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Discursos fora da ordem:

Sexualidades, Saberes e Direitos


Discursos fora da ordem:
Sexualidades, Saberes e Direitos

Richard Miskolci
Larissa Pelúcio
(Editores)
Para Márcia Arán (in memoriam)
Sumário

Apresentação: Discursos fora da ordem 9


Richard Miskolci e Larissa Pelúcio

Parte I 27
Deslocamentos

Viajantes e migrantes: pessoas 29


e teorias em um mundo pós-colonial
Miriam Adelman

A moda nasce em Paris e morre em Caracas 59
Marcia Ochoa

Brasileiros/as no atravessar de fronteiras: 73


(des)organizando imaginários
Iara Beleli

Estranhezas que roubam a cena: entre celuloides, tapetes e closes 97


Karla Bessa

Parte II 123
Reinvenções

Repensando o sexo e o gênero 125


Judith Jack Halberstam
Discursos fora da ordem 8

Por uma cartografia não-normativa das identificações e do desejo:


algumas reflexões a partir das experiências trans 139
Márcia Arán

Construindo saberes e compartilhando


desafios na clínica da travestilidade 155
Flavia do Bonsucesso Teixeira,Rita Martins Godoy Rocha
e Emerson Fernando Rasera

Intersexualidade, intersexualidades: notas sobre alguns
desafios teóricos, metodológicos e políticos contemporâneos 179
Paula Sandrine Machado

Parte III 197


Direitos

Interseccionalidades, direitos humanos e vítimas 199


Adriana Piscitelli

Atos, sujeitos e enunciados dissonantes: 227
algumas notas sobre a construção dos direitos sexuais
Adriana Vianna

Direitos sexuais e heteronormatividade: 245


identidades sexuais e discursos judiciais no Brasil
Roger Raupp Rios e Rosa Maria Rodrigues de Oliveira

Pedagogia do armário e currículo em ação: 277


heteronormatividade e homofobia no cotidiano escolar
Rogério Diniz Junqueira

Sobre @s autores/as 307


Apresentação:
Discursos fora da ordem

Richard Miskolci
Larissa Pelúcio

Discursos fora da ordem resultou dos debates que surgiram no Se-


minário Internacional Sexualidades, Saberes e Direitos, realizado no
Auditório Bento Prado Jr. da Universidade Federal de São Carlos (UFS-
Car), nos dias 17 e 18 de agosto de 2010. Financiado pela Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), e
apoiado pelo Departamento e pela Pós-Graduação em Sociologia, desde
a concepção o evento foi imaginado como um diálogo entre os feminis-
mos, os estudos sobre sexualidade contemporâneos, em especial os da
vertente da Teoria Queer, e os Estudos Pós-Coloniais. Também pautou
a criação desta obra o compromisso de pensar a partir do empírico, das
demandas dos sujeitos e das dinâmicas que os envolvem: a sociedade
civil organizada, o Estado e o mercado.
Este livro busca apresentar uma amostra cartográfica dos desloca-
mentos, das reinvenções e das demandas por reconhecimento que ca-
racterizam o cenário contemporâneo. Feito no Brasil, mas inserido nas
questões globais, almeja contribuir para aprofundar diálogos teóricos,
repensar conceitos e temas expandindo as análises disponíveis sobre gê-
nero, sexualidade, raça, nação e outros marcadores sociais das diferenças
por meio de apostas interseccionais. Os estudos aqui reunidos buscam re-
constituir as condições culturais e históricas das experiências contempo-
râneas de ser socialmente marcado como mulher, estrangeiro, homosse-
Discursos fora da ordem 10

xual ou mesmo estranho/anormal, ressaltando como elas se inserem em


processos mais amplos que criam os não-marcados, aqueles e aquelas que
se beneficiam do privilégio de serem pressupostos como norma social.
Distanciando-se das armadilhas identitárias ou de discursos vi-
timizadores, estes artigos ensaiam outras formas de compreender ex-
periências por meio do deciframento da forma como os silêncios e as
invisibilidades se articulam em regimes de controle, disciplinamento e
normalização social. Nos termos de Jacques Derrida, buscam “pensar no
limite”, de forma deslocada e deslocadora, por isto mesmo se tecem por
meio de fontes como a Teoria Feminista, os Estudos Pós-Coloniais e
a Teoria Queer, os também chamados Saberes Subalternos, termo que
começou a ser usado de forma restrita na década de 1980, mas que re-
centemente passou a unificar vertentes teóricas construídas em tensão
com a epistemologia hegemônica ocidental1.
O que diferencia os Saberes Subalternos dos estudos identitários
ou de minorias é o fato de privilegiarem não o lugar social (ou identi-
dades) de quem pesquisa ou é pesquisado, mas antes o lugar geopolíti-
co e o corpo-político das enunciações. Em outras palavras, os Saberes
Subalternos são compreendidos aqui como aqueles que partilham de
um lugar epistêmico questionador das teorias eurocêntricas que, sob
alegado universalismo, privilegiam uma forma de conhecer que toma
o Ocidente, a branquitude, o masculino e a heterossexualidade como a
medida do humano.
Os Saberes Subalternos não propõem uma simples troca de pers-
pectiva, a mera inversão de posições como na retórica do dar a voz aos
excluídos, marginais ou dominados. Gayatri Spivak (2010) já nos mos-
trou que o subalterno não pode falar não porque não tem voz, mas por-
que o vocabulário disponível insere até mesmo seu discurso na ordem do
poder. Daí os Saberes Subalternos voltarem-se para o questionamento
das premissas de um conhecimento que se constrói a partir de dualismos

1 Na análise esclarecedora de Beatriz Preciado: “A crítica pós-colonial e queer responde, em certo


sentido, à impossibilidade do sujeito subalterno articular sua própria posição dentro da análise da história do mar-
xismo clássico. O lócus da construção da subjetividade política parece ter se deslocado das categorias tradicionais
de classe, trabalho e da divisão sexual do trabalho para outras concepções transversais como podem ser o corpo, a
sexualidade, a raça, mas também a nacionalidade, a língua, o estilo ou, inclusive, a linguagem.” (2007: 383).
11 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

que tendem a justificar as configurações de poder existentes. Assim, não


buscam construir umaalternativa simétrica ao hegemônico, mas antes
empreendimentos que torcem o eixo da produção do conhecimento es-
tabelecido introduzindo ruído e incerteza nas narrativas hegemônicas.
Esta obra unifica discursos fora da ordem, no sentido de que in-
disciplinadamente se constituem a partir de uma desconstrução da for-
ma de pesquisar prevalecentes, segundo a qual seria possível conhecer
de forma não-situada, universal. Historicamente, já em fins do século
XVIII, o feminismo constitui-se no primeiro saber a desafiar a ciência
cartesiana e o aparato político universalista (Miskolci, 2010), daí não
surpreender que o diálogo entre o feminismo e vertentes teóricas con-
temporâneas marque cada um dos artigos que abrem as seções que com-
põem este livro. O diálogo dele com os Estudos Pós-Coloniais é mais
visível na primeira parte, com a Teoria Queer na segunda e, na última, o
diálogo se dá com o aparato jurídico-estatal, em especial o dos recentes
estudos sobre direitos sexuais.
Começamos pelos “Deslocamentos”, reunindo nesta primeira par-
te da coletânea autoras que se movem teórica e literalmente, mostrando
neste movimento que as leva a refletir na fronteira (Anzaldua, 1987) a
necessidade de descolonizarmos nosso olhar para dar conta das tramas
do presente.
Miriam Adelman abre a seção com o texto “Viajantes e migrantes:
pessoas e teorias em um mundo pós-colonial”,no qual destaca o encontro
com o Outro como constitutivo tanto dos processos histórico-econômi-
cos que marcaram a história ocidental contemporânea quanto da cons-
trução de nossas subjetividades. O artigo trata empírica e teoricamente
os deslocamentos de mulheres brasileiras que têm buscado realizar, na
Espanha, o que a autora chama de “projeto do Eu”. Na encruzilhada da
teoria feminista e das perspectivas pós-coloniais com as narrativas de mu-
lheres brasileiras que empreendem estas viagens “para fora”, a pesquisa-
dora procura compreender o que impulsiona esse desejo de mobilidade,
considerando “quais os fatores – culturais, sociais, econômicos, pessoais
– que estimulam suas buscas em terras estrangeiras, e como assimilam
suas experiências, como mulheres ‘do sul’: brasileiras, na Europa”.
Discursos fora da ordem 12

Na ida para o exterior as brasileiras sonham em alcançar vidas mais


arejadas e, desejavelmente, mais glamorosas, identificando a Europa
como um lugar capaz de viabilizar esse projeto. Essa possibilidade de
alguma forma pode se realizar pela via do consumo, da moda e da cor-
porificação de um ideal de beleza e sucesso, como nos mostra Marcia
Ochoa em “A moda nasce em Paris e morre em Caracas”.Em uma criati-
va e fascinante análise das relações entre a América Latina e a Europa, a
autora associa as vidas queer de “transformistas”2, sempre tomadas como
o Outro da nação, com a própria imagem da Venezuela, como espaço de
morte, fracasso e desordem. Por esse caminho ela vai explorar a lógica
cultural de morte e poluição que marca corpos e lugares étnico-raciais/
sexuais subalternizados. De maneira que o glamour também sofre um
deslocamento: deixa de ser apenas uma categoria “nativa” para se trans-
formar, na proposta de Ochoa, numa ferramenta teórica que possibilita
pensá-lo como uma “tecnologia de intimidade”.
Para a realização desses projetos e tecnologias apresentadas por
Adelman e Ochoa há um imperativo diaspórico. É preciso mover-se,
forçar as fronteiras, ousar fazer, como uma prática teórica, a qual as au-
toras e autores deste livro se propuseram a enfrentar, tratando relações
de poder, imperialismo e subalternidade por meio de questões estéticas
e culturais. Essa dinâmica também nos faz pensar sobre um sentimento
difuso de “fracasso” latino-americano em seguir um modelo de moder-
nidade euro-norte-americano. Relações econômicas, políticas e estéticas
se unem e se iluminam abrindo caminho para os artigos seguintes de
Iara Beleli e Karla Bessa.
Beleli traz uma inovadora contribuição para diversas vertentes de
estudo, em particular para os sobre imigração brasileira em Portugal.
Seu foco são brasileiras e brasileiros que se inserem na paisagem local a
partir de projetos de realização intelectual e pessoal. Isto é, “não foram
a Portugal em busca de um upgrade econômico”, ainda assim, não con-
seguem se diferenciar aos olhos dos portugueses, dada as persistentes

2. O termo pode equivaler ao que no Brasil reconhecemos como travestis. É importante ressaltar, como faz a
própria Ochoa, que essas categorias têm marcas locais, assim, carregam histórias, marcas culturais, preconcei-
tos sociais gestados em contextos específicos.
13 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

imagens essencializadoras veiculadas sobre o Brasil e sua tropicalidade,


gerando uma expectativa de que os atributos da nação sejam literalmen-
te incorporados pelos que aqui nasceram.
Em seu artigo “Brasileiros/as no atravessar de fronteiras: (des)
organizando imaginários”, reflete sobre como esses imaginários foram
organizados a partir da “matriz de poder colonial” capaz de “afetar todas
as dimensões da existência social, tais como a sexualidade, a autoridade,
a subjetividade e o trabalho” (Quijano, 2000, apud Grosfoguel, 2006:
51). A partir de uma epistemologia de fronteira, Beleli coloca em diálo-
go o transnacional e o local, os estereótipos nacionais e as imagens que
viajam e seus impactos nas vidas cotidianas desses e dessas migrantes.
A “midialização da cultura” (Thompson, 1998) é outra ferramenta
acionada por Beleli para mostrar como a ideia de que somos “festivos e
simpáticos, alegres e receptivos” sustentada pela linguagem pictórica da
propaganda, esconde que estes são adjetivos subalternizantes, tramados
a partir de discursos coloniais ancestrais, mas que, na roupagem tecno-
lógica da mídia aparecem como atributos positivos e naturalizados, sem
ligação, portanto, com processos políticos culturais de hierarquização.
De forma sutil, o texto une essas análises a uma etnografia a respeito
das diferentes formas como brasileiras e brasileiros incorporam seleti-
vamente lugares-comuns e estereótipos a seu favor. Ao invés de vítimas
de um imaginário colonial engessado, imigrantes brasileiros/as em Por-
tugal se revelam agentes capazes de des-organizar imaginários, deslocar
referências culturais e agir.
“Estranhezas que roubam a cena: entre celuloides, tapetes e closes”
encerra a primeira parte do livro com uma análise da transformação do
festival de cinema gay e lésbico de Lisboa em um festival de cinema que-
er. Karla Bessa reconstitui historicamente este deslocamento refletindo
sobre suas características, as quais sintetiza na análise do filme de abertu-
ra do festival, Chuecatown. A película materializa uma perspectiva queer
com relação ao recente processo de normalização/comercialização do
universo das homossexualidades. A história se passa em Chueca, famoso
bairro gay madrilenho, no qual formas diversas de homossexualidade
enfrentam o modelo hegemônico e higienizado gay encarnado na figura
Discursos fora da ordem 14

de seu vilão, uma equivalente espanhola da Barbie brasileira ou da Mus-


cle Queen norte-americana. O homem musculoso e autocentrado revela-
se um assassino, atacando todos que não quer em seu ideal de mundo
adaptado e mercantil: mulheres, idosos e “afeminados”.
Chuecatown mostra mudanças históricas nas homosociabilidades,
em especial a forma como o pânico sexual da aids desencadeou um des-
monte higienista dos antigos guetos homossexuais metropolitanos, os
quais, em países como a Espanha, originaram bairros gays e, em outros,
como o Brasil, apenas circuitos comerciais. Passamos, nos termos de Jú-
lio Assis Simões e Isadora Lins França (2004), do gueto ao mercado, ou,
como a análise queer de Bessa indica: da marginalidade-experimentação
do gueto para o altamente comercial e normalizado “meio gay”. O gay
musculoso de Chuecatown encarna esta fúria higienizante, preconcei-
tuosa e capitalista enfrentada pelo casal de “ursos”, rapazes um pouco
obesos e menos enquadrados na homonormatividade contemporânea.
Chegamos à segunda parte do livro, a qual se inicia em um diálogo
queer com o pensamento feminista. Nas últimas duas décadas, o femi-
nismo tornou explícito seu caráter plural e se renovou no encontro com
teorias pós-coloniais e com os estudos sobre (homos)sexualidades. É na
esteira do desenvolvimento do conceito de gênero e da problematização
do pensamento feminista anterior que se desenvolve tanto o feminismo
da diferença, as vertentes críticas do conceito de gênero, assim como a
Teoria Queer. Apesar da possibilidade de apresentarmos este caminho
seguindo uma cronologia, resulta simplista dizer que há uma linha de
sucessão ou “evolução” que vai dos estudos sobre mulheres à Teoria
Queer ou ao pós-feminismo. Parece mais profícuo pensar no pensamen-
to feminista contemporâneo como tendo se transformado, refeito suas
bases, mas – a despeito das mudanças – mantido características que as-
seguram certa unidade e tornam possível pensar não em um conjunto de
etapas, mas antes em um processo contínuo de reavaliação crítica de suas
premissas (Butler, 2004).
As re-invenções ensaiadas na segunda parte do livro sugerem que
certos saberes são invenções poderosas que têm logrado não só criar
uma gramática convincente sobre os corpos, como, a partir dela, criá-
15 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

los como desviantes, anormais, problemáticos, disruptivos. As propostas


teóricas e estudos empíricos que compõem essa seção trazem não só um
embate com esses saberes, como a recusa de diferentes sujeitos ao cum-
primento de modelos socialmente impostos de identidade.
Começamos com um diálogo de Judith Jack Halberstam com al-
gumas teóricas clássicas do pensamento feminista contemporâneo como
Gayle Rubin e seu artigo “Pensando sobre sexo” (1984). Em “Repen-
sando o sexo e o gênero”, Halberstam analisa três exemplos artísticos de
propostas de reinvenção do feminino, três obras que apresentam dimen-
sões diferentes da possibilidade de não se tornar mulher, ou melhor, não
se tornar o modelo de mulher ou de gênero socialmente incentivado.
Baseando-se em criações que exploram formas de agência feminina que
não costumam ser reconhecidas como resistência ou tampouco como
ação, Halberstam provoca-nos teórica e politicamente.
O pessoal nunca foi tão político, mesmo quando a ação resulta em
autodegradação e morte. Halberstam nos incita a expandir nossa com-
preensão dos meios acionados por algumas mulheres de diversas partes
do mundo para resistir. A cena que nos é apresentada é constituída a
partir de “uma genealogia do antissocial ou anti-humanista ou ainda do
feminismo contraintuitivo que emerge do queer, do pós-colonial e dos
feminismos negros e que pensa mais nos termos da negação do sujeito
do que nos de sua formação”. De maneira que a autora, como as prota-
gonistas dos dramas que analisa, recusa as possibilidades oferecidas e,
criativamente, busca apresentar outras gramáticas possíveis para falar de
direitos, de vida e de sexualidade. Um léxico que, segundo seus argu-
mentos, pode ajudar-nos a desviar das armadilhas de construir um con-
tradiscurso nos servindo justamente da lógica normativa contra a qual
temos dedicado nossos esforços.
Neste sentido, as pesquisas de Márcia Arán, Flávia Teixeira et alli
e Paula Sandrine Machado revelam as fissuras e incoerências dos biossa-
beres, a partir de seus próprios termos. Esta sequência de trabalhos deixa
evidente o que a filósofa queer Beatriz Preciado vem discutindo quando
propõe que:
Discursos fora da ordem 16

será necessário criar novas formas de combate que escapem ao paradigma


dialético da vitimização, mas também das lógicas da identidade, da repre-
sentação e da visibilidade que em boa medida já têm sido re-absorvidas
pelos aparatos mercantis, midiáticos e de hipervigilância como novas
instancias de controle. Parte do desafio político consistirá em como as
minorias sexuais e os corpos cujo estatuto de humano ou sua condição
de cidadania têm sido postos em questão pelos circuitos hegemônicos da
biotanatopolítica possam ter acesso às tecnologias de produção das sub-
jetividades para redefinir o horizonte democrático. (Preciado, 2010: 24)

Assim, Márcia Arán procura mostrar como “em torno da questão


das transexualidades pode-se melhor vislumbrar como se dá a gestão
biomédica das subjetividades no contexto atual da sociedade de con-
trole”. A partir daí, ela nos apresenta uma proposta de reinvenção do
pensamento psicanalítico fundada em uma perspectiva não-normativa
sobre o desejo e as identidades sexuais. Seu texto, “Por uma cartografia
não-normativa das identificações e do desejo: algumas reflexões a partir
das experiências trans” se inserem em uma vertente importante da Teo-
ria Queer que busca lidar com as relações entre subjetividade e poder,
sofrimento psíquico e controle social.
A partir de “uma breve genealogia sobre a constituição do disposi-
tivo da transexualidade”, Arán mostra como o monopólio sobre as tec-
nologias de gênero vai sendo assegurado por um campo específico do
conhecimento, autorizando-o a realizar as classificações e alterações nos
corpos das pessoas transexuais, de modo que as suas próprias subjeti-
vidades são também constituídas por esta maquinaria complexa. Com
este artigo singelo e certeiro, Márcia Arán, falecida em abril de 2011,
deixa sua última contribuição para este promissor campo de pesquisas
que ajudou a construir em nosso país.
O esforço reinventivo do artigo de Flávia Teixeira et alli aponta
justamente para o potencial de redefinição do horizonte democrático,
conforme reivindica Preciado, quando se trata de pensar políticas públi-
cas em saúde para travestis e transexuais. O relato da implantação do am-
bulatório para travestis do hospital da Universidade Federal de Uberlân-
17 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

dia abre trilhas no terreno acidentado da saúde integral, constituindo-se


em rico exemplo empírico na busca desse alargamento de fronteiras para
a escuta de outras vozes. Como sublinham as autoras e autores:

A clínica tornou-se o espaço da alteridade em que o ponto de partida


não seria estabelecido pela suposta segurança ao posicionar as travestis e/
ou transexuais em categorias diagnósticas indicativas de transtornos ou
distúrbios – da sexualidade ou do gênero –, mas sim pela compreensão
de que ao buscarem esse serviço específico, suas particularidades impor-
tariam e não seriam relegadas a um processo de exclusão e silenciamento
(Teixeira et alli).

“Construindo saberes e compartilhando desafios na clínica da tra-


vestilidade”, os/as autores/as desenvolvem uma etnografia dos encontros
entre saberes médicos e travestis, os diálogos encetados e a forma como
eles e elas reinventam concepções de saúde, cuidado e bem-estar.
Diálogos que aparecem menos horizontalizados no texto de Pau-
la Sandrine Machado, mas onde igualmente podemos sentir as forças
reinventivas de pessoas que aprenderam a pensar sobre si a partir das
categorias científicas, mas não o fazem passivamente. “Intersexualidade,
intersexualidades: notas sobre alguns desafios teóricos, metodológicos
e políticos contemporâneos” encerra a segunda parte do livro com uma
análise densa de como o fenômeno da intersexualidade tem desafiado
o saber e as tecnologias médicas obrigando-os a repensar até mesmo o
estatuto do corpo humano, o qual tende a ser cada vez mais visto como
resultado da intersecção entre a história, o social e o psíquico, ao invés
de mero dado biológico-natural.
Como nos lembra Donna Haraway, “a medicina moderna está
cheia de ciborgues” (2000), isto é, de híbridos em cujos corpos o pro-
tético e o político ganham carne, sofrendo a força de “um poder que
nunca, antes, existiu na história da sexualidade” (Haraway, 2000: 36). O
extraordinário desta proposta é a capacidade que ela tem, como o texto
de Machado prova, de mostrar que somos todos ciborgues, uma vez que
o aparato discursivo e tecnológico da medicina e da psicologia que criam
Discursos fora da ordem 18

fronteiras entre sujeitos naturalmente sexuados e os “outros”, ao fim nos


cria a todos.
Propositadamente, Machado confunde as fronteiras entre o que é
produzido pelo saber médico e aquilo que é apreendido e resignificado
“pelas próprias pessoas intersex, seus familiares e o movimento político
internacional intersex”. Leva-nos, assim, para além de uma concepção
medicalizada da intersexualidade, apresentado-a como um “fenômeno
complexo, polissêmico e produzido por diferentes concepções, experi-
ências e saberes em constante trânsito” (Machado).
Nestes trânsitos, os sujeitos que habitam essa sessão acabam por
“ultrapassar a linha vermelha”. Sônia Corrêa (2006) mostra que essa não
é uma travessia trivial, uma vez que coloca, na ordem do discurso da
medicina e da lei, outras “leis”, por meio da qual se questionam identi-
dades normativas. Neste ponto os direitos à saúde aparecem claramente
associados aos direitos sexuais. Ainda que neste conjunto de artigos es-
tes dois planos não estejam sendo diretamente associados. Talvez esse
silêncio não seja fruto apenas de escolhas metodológicas, mas reflexo da
lógica que tem articulado parte da agenda política dos direitos sexuais,
na qual as pessoas transexuais, travestis, intersexos, lésbicas e gays têm
tido dificuldade de se fazer ouvir.
A plataforma dos diretos sexuais ganha força depois da década de
1960, mas é a partir das grandes conferências feministas ocorridas na dé-
cada de 1990 que passa a mostrar seus resultados políticos mais visíveis.
Estes vêm, naquele momento, fortemente atrelados às questões repro-
dutivas e, assim, às reivindicações e demandas de mulheres heterossexu-
ais. Os ganhos não são desprezíveis, mas é preciso reconhecer, como faz
Corrêa, que “no contexto das Nações Unidas, a legitimação dos ‘direitos
sexuais’ das mulheres não foi acompanhada por avanços equivalentes no
que se refere aos direitos da diversidade sexual” (Idem: 103).
Em relação aos avanços intelectuais, é importante associar a esse
debate as contribuições das teorias pós-modernas que com suas provo-
cações em relação aos essencialismos de sexo e gênero permitiram ques-
tionamentos mais elaborados às convenções de sexo e gênero, possibi-
litando a diferentes atores sociais deslocar a abjeção e o desejo para o
19 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

campo político. “Sexo é sempre político”, já afirmou Gayle Rubin em


seu clássico “Pensando sobe sexo” (1984), portanto, a novidade que os
textos reunidos na última seção deste livro trazem é de procurar dimen-
sionar não apenas a entrada em cena dos direitos sexuais, mas como as
discussões acadêmicas têm contribuído com esse debate, fornecendo
mesmo instrumental teórico para a elaboração de demandas. Esta busca
recente em conceituar e legitimar os direitos sexuais tem exigido esfor-
ços teóricos substancias, apropriados por vezes por setores extra-acadê-
micos de maneira instrumental, exigindo refino conceitual e discussões
permanentes por parte de pesquisadoras e pesquisadores.
Se o século XIX conferiu ao corpo e ao sexo um lugar privilegiado
na arena do poder, o XXI tem sido aquele no qual assistimos ao “fe-
nômeno da hipervisibilidade do ‘sexo’ nos espaços onde se condensa o
poder político” (Corrêa, 2009: 19). Caminha-se, idealmente, das mar-
gens para o centro, da exclusão para a legitimidade, das sombras à visi-
bilidade. Como tem se dado esse percurso e quais têm sido os percalços
nesse caminho nada linear? “Se a visibilidade excessiva é um traço dos
dispositivos disciplinares, como conceber estratégias de visibilidade?”
(Idem: 22).
É a questões espinhosas como esta que se dedica a última parte
do livro, a qual se abre com “Interseccionalidades, direitos humanos e
vítimas”, no qual Adriana Piscitelli articula a problemática do fenômeno
multifacetado do tráfico internacional de pessoas com fins de explora-
ção sexual à discussão sobre direitos humanos e sexuais. Mas a contri-
buição de Piscitelli não para aí, pois ela insere sua discussão empírica
em uma das vertentes mais promissoras da análise social: o estudo das
interseccionalidades, o qual tem marcado o entrecruzamento entre o
feminismo contemporâneo e a Teoria Pós-Colonial tanto quanto tem
sido acionado na busca em criar um retrato das chamadas “vítimas”.
É justamente esse (ab)uso do conceito de interseccionalidade, tan-
to na academia quanto fora dela, que motiva as reflexões de Piscitelli.
Em sua arquitetura teórica, a autora nos oferece um didático e denso
panorama das diversas correntes do feminismo e dos estudos culturais
que têm se debruçado sobre a proposta da interseccionalidade, situando
Discursos fora da ordem 20

o debate desde suas filiações mais liberais até as abordagens mais críticas.
A partir desse pormenorizado levantamento, Piscitelli passa a proble-
matizar a apropriação extra-acadêmica dos debates sobre intersecciona-
lidade, mostrando que, por vezes, justamente o que ele pode ter de mais
rico parece não ser tomado em conta pelas agências públicas nacionais
e transnacionais: o potencial dos “marcadores de identidade, como gê-
nero, classe ou etnicidade não aparecem apenas como formas de catego-
rização exclusivamente limitantes”, mas também “oferecem, simultanea-
mente, recursos que possibilitam a ação” (Piscitelli). Esta possibilidade
de agir e a capacidade para pensar articuladamente sobre suas próprias
vidas aparecem subestimadas, por exemplo, em algumas abordagens so-
bre a imigração de mulheres para o mercado do sexo.
Para desenvolver essa discussão teórica, Piscitelli parte de dados
empíricos sobre tráfico de pessoas e turismo sexual, reunindo um sig-
nificativo número de documentos e pesquisas não-acadêmicas, para
assimcompreender como foi moldada e disseminada a caracterização
das vítimas de tráfico internacional de pessoas com fins de exploração
sexual. A pesquisadora mostra como algumas agências internacionais
têm buscado, nas discussões acadêmicas sobre interseccionalidade, antes
uma espécie de a fórmula do “desempoderamento” do que perceber gê-
nero, raça ou classe como categorias articuladas e que devem ser conside-
radas na complexidade: existem e são conformadas em relações íntimas,
recíprocas e contraditórias.
Na sequência, acompanhamos Adriana Vianna por espaços acadê-
micos e políticos nos quais os diretos sexuais têm sido largamente deba-
tidos. Em “Atos, sujeitos e enunciados dissonantes: algumas notas sobre
a construção dos direitos sexuais”, Vianna tece uma instigante reflexão
sobre esse campo novo, derivado de outro corpus, o dos direitos huma-
nos, revelando as tensões, embates e arranjos em uma arena na qual as
sexualidades dissidentes podem correr o risco da normalização jurídica,
num grande e arriscado salto rumo ao século XVIII, para ficarmos com
a cronologia proposta por Foucault em Os anormais.
Vianna transita pelos territórios onde se têm construído lutas,
discutido agendas e, sobretudo, pensado o lugar político do sexo e dos
21 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

direitos à diferença, pautado pela matriz dos direitos humanos. Nesse


cenário “impreciso”, a autora dedica-se a pensar a constituição desses di-
reitos a partir de duas linhas de força:

[...] a primeira dessas linhas fala-nos basicamente dos atos como fator
preponderante para construção, definição e mesmo aprisionamento de
pessoas na condição de sujeitos-objetos das políticas e direitos sexuais. A
segunda nos fala, em movimento inverso, dos enquadramentos dos sujei-
tos como elemento determinante para qualificar os atos que as atingem
ou os significados que dão para situações sociais específicas.

Estes atos que conformam sujeitos e os sujeitos que definem atos,


são ações assentadas em convenções potentes, colocadas em xeque nes-
ses fóruns que a autora nos apresenta, apontando para os limites traça-
dos pela linguagem do direito que reivindica muitas vezes abordagens
essencializadas a fim de materializar quem seriam esses sujeitos de direi-
to, e quais direitos caberiam a eles.
A pretensão universalista esteve na gênese dos direitos humanos.
Mesmo quando se focou nas particularidades, as formas hegemônicas de
pensar a diferença prevaleceram. A gramática dos direitos fez-se podero-
sa e de longo alcance. O desafio, então, tem sido o de não cair na lógica
que se procura combater. O idioma dos direitos precisa de uma gramá-
tica suficientemente plástica para que em um mundo cada vez mais fora
da ordem seja possível garantir reconhecimento e equidade a sujeitos
que cruzam fronteiras físicas e simbólicas.
Em “Direitos sexuais e heteronormatividade: identidades sexu-
ais e discursos jurídicos no Brasil”, Roger Raupp-Rios e Rosa Oliveira
exploram a forma como a esfera jurídica tem lidado com as demandas
de reconhecimento das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo.
Traçam um panorama sobre alguns conceitos-chave no campo dos di-
reitos sexuais e seus usos na “seara jurídica”, e o quanto são refletidos (ou
são reflexo, em alguns contextos) nas diversas movimentações em torno
das identidades sexuais no Brasil contemporâneo. Iniciam com uma re-
flexão butleriana em torno das categorias identitárias, para depois, por
Discursos fora da ordem 22

meio da análise de algumas categorias utilizadas para a referência das


mesmas identidades em acórdãos judiciais, considerar os avanços no ho-
rizonte do reconhecimento dos direitos sexuais como direitos humanos,
questionando os usos de conceitos neste campo, em especial no âmbito
do discurso dos tribunais e dos operadores do direito.
A reflexão de Raupp-Rios e Oliveira faz parte deste novo cená-
rio histórico, no qual nos distanciamos de uma sociedade fundada na
heterossexualidade compulsória e no heterossexismo institucional para
adentramos em uma época marcada pelo que Eve Kosofsky Sedgwick
definiu como “guerras de visibilidade” (2003). Lutas contemporâneas
tais como as que reivindicam o casamento ou parceria civil entre pessoas
do mesmo sexo mostram que as homossexualidades não estão mais nas
sombras ou nas margens da sociedade, antes se deslocam para o centro
ganhando visibilidade e, frequentemente, almejando reconhecimento
nos termos hegemônicos e a partir de modelos relacionais tradicionais.
Visibilizadas por interesses mercadológicos em gramáticas (homo)nor-
mativas, cada vez mais vemos as homossexualidades negociarem sua
aceitação social aderindo à heteronormatividade. As razões deste enqua-
dramento residem além de qualquer reflexão consciente ou politizada,
antes em mecanismos sociais de disciplinamento e controle corporal e
subjetivo desde a mais tenra infância.
Neste contexto, a esfera dos direitos se estende para os espaços
de educação formal na contribuição de Rogério Diniz Junqueira que
encerra esta coletânea. Seu artigo mostra como no currículo em ação,
conceito que unifica tanto o currículo formal quanto o oculto, opera o
que ele denomina de pedagogia do armário. Regime de ordenação dos
corpos, das sexualidades e dos gêneros, o armário foi o motivo-chave
para a obra fundadora da Teoria Queer, o livro Epistemology of the Closet
(1990), de Eve Kosofsky Sedgwick. Na magistral análise da pensadora
norte-americana, o armário, ao contrário do que pensa o senso comum,
não opera pelo binário dentro/fora, mas antes por uma complexa dinâ-
mica de relações de poder que rege o dispositivo histórico da sexualida-
de desde o final do século XIX. A reflexão de Junqueira mostra que o
armário é ensinado nas escolas por meios violentos, ou mesmo sutis, de
23 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

treinamento para que crianças e adolescentes aprendam a compreender


os seus desejos e os dos outros ordenando-os segundo uma lógica que os
hierarquiza a partir da norma heterossexual, masculina e branca.
É dentro desta pedagogia do armário que se desenvolve tanto a he-
gemonia heterossexual quanto a heteronormatividade crescentemente
incorporada pelos/as homossexuais, estendendo as forças normalizado-
ras para dentro da esfera do desejo por pessoas do mesmo sexo. Daí o
fenômeno das fobias contra o deslocamento dos gêneros em travestis,
transexuais ou mesmo em lésbicas masculinas ou gays femininos, as
quais engendram diversas violências, mas também reatualizam o armá-
rio. Sua forma contemporânea se assenta em fenômenos como a efemi-
nofobia entre homens que se relacionam com outros homens, mas que
cultuam como valor máximo a masculinidade e os privilégios históricos
concedidos a ela. No vasto espectro das homossexualidades brasileiras,
hoje vige uma hegemonia interna masculinista, branca e de classe alta
dos que se compreendem como “discretos” e aspiram ser vistos como
heterossexuais relegando para outros/as a linha da recusa social. É a este
espaço da abjeção que são relegados os/as não-brancos, pobres, “afemi-
nados”, “masculinizadas”, em suma, os/as queer.
As três partes deste livro, articuladas, auxiliam a compreender al-
guns dos processos contemporâneos – frequentemente associados – de
constituição simultânea e interdependente do hegemônico e do subal-
terno, das diferentes modalidades de cidadania envolvidas nos fenôme-
nos dos deslocamentos migratórios, passando pela forma como os sabe-
res e as práticas constituem corpos e identidades normalizados/as por
meio da invenção de corpos e subjetividades inconvenientes. Algumas
das quais aspiram a direitos forçando a gramática legal para além de sua
concepção restrita das fronteiras do humano.
As transformações históricas que vivemos nos inserem em um ce-
nário em que pessoas e saberes se deslocam. Ao se moverem encontram
alteridades e desenvolvem relações dialógicas fora da ordem familiar
que os reinventam. O pessoal, o teórico e o político se intersectam des-
organizando imaginários antigos ao mesmo tempo em que demandam
reconhecimento e direitos desafiando o limitado vocabulário disponí-
Discursos fora da ordem 24

vel. Discursos fora da ordem busca contribuir para articular às experi-


ências dos sujeitos contemporâneos novas formas de compreendê-las.
Em nossa sociedade reflexiva e pós-disciplinar ou – nos termos de Be-
atriz Preciado – farmacopornográfica,vivemos marcados pelas pressões
de enquadramento político-mercadológicas, diante das quais emerge
o desafio de reconhecer as novas formas de resistência que emergem e
se expressam em relações inovadoras entre desejos de reconhecimento,
deslocamentos e reinvenções.

São Paulo, maio de 2011.

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Deslocamentos
Viajantes e migrantes: pessoas e teorias
num mundo pós-colonial

Miriam Adelman

“Viajar é a melhor maneira de aprender e se empoderar”, dizia minha avó,


Yasmina, que era analfabeta e vivia num harém, um lar tradicional com
portões trancados que as mulheres não deveriam transpassar.“ Você preci-
sa prestar atenção nos forasteiros que você conhece e tentar compreendê-
los. Quanto mais você conhecer o forasteiro, melhor você conhecerá si
mesma, e mais poder você terá”. Para Yasmina, o harém era uma prisão,
um lugar do qual se proibia às mulheres saírem. Portanto, ela enaltecia as
viagens e considerava a oportunidade de cruzar fronteiras um privilegio
sagrado, a melhor forma de se livrar da impotência.1
(Fatema Mernissi, Scheherazade Goes West: Different Cultures, Different
Harems.)

Introdução: teorias, literatura, viagens

Desde as escritas sociológicas de Georg Simmel do início do sécu-


lo XX ereemergindo pelas veredas das teorias e literaturas pós-coloniais
de hoje,surgea noção do“encontro com o ‘Outro’” comocomponente
fundamental dos processos de construção da subjetividade moderna.Se,
por um lado, podemos identificar as relações forjadas nestes encontros
entre pessoas que inicialmente não se reconhecem como pertencentes

1. Mernissi, 2001: 1. Tradução da autora.


Discursos fora da ordem 30

ao elenco das experiências fundantes do sujeito moderno, por outro,


percebemos que se trata de conteúdos em grande parte ausentes das nar-
rativas canônicas sobre a modernidade. Estas últimas, por sua sua vez,
concebem a “modernização ocidental” em termos de racionalização, bu-
rocratização e mercantilização, como os fenômenos que, por excelência,
representam a essência de uma nova época, desenrolando-se, evidente-
mente, numa esfera pública e sendo protagonizados quase exclusiva-
mente por sujeitos de sexo masculino.
Assim, é só na segunda metade do século XX, após várias décadas
de debates, que emergem certas vertentes da teoria social contempo-
rânea que reconhecem plenamente a “outra face” dos processos que a
sociologia clássica tomou como seu (quase) único objeto. Um esforço
inicial neste sentido é oferecido por Eli Zaretsky (1976) ao apontar a
emergência de uma esfera de “vida pessoal” – vinculada claramente às
mulheres – e os processos de subjetivação decorrentes dela como des-
dobramento e elemento central de um novo tempo histórico.Também
encontramos um argumento mais “inclusivo” das experiências das
mulheres nos hoje muito conhecidos trabalhos de Anthony Giddens
(1991a, 1991b, 1992), que elaboram uma teoria sobre a “reflexividade”
cotidiana e institucionalizada que faz parte constitutiva de uma socieda-
de que rompe – embora de forma irregular e heterogênea – com modos
“tradicionais” de vida.Acrescentaríamos também, como extremamente
pertinente, a crítica que vem sendo realizada da construção cultural de
uma identidade “ocidental” afincada em formas particulares de imagi-
nar a semelhança e a diferença (Anderson, 1983; Said, 1979, 1994) e
a abertura do elenco dos processos fundantes da modernidade para in-
cluir as numerosas experiências que nascem dos (des)encontros entre os
tempos dos colonizadores e os colonizados.
Teorizações sobre gênero, raça e sexualidade fazem parte funda-
mental destas tentativas de repensar e reescrever as narrativas “clássicas”
da teoria social desde outras perspectivas, como a das “experiências fe-
mininas” ricamente interpretadas por Felski (1995) ou as que emergem
da construção histórica de um “Atlântico negro” (Gilroy, 2001). De
fato, Gilroy, no seu livro que leva esta última sentença como título, faz a
31 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

sugestão radical que consideremos as culturas que emergem da diáspora


africana como uma verdadeira “contracultura da modernidade” – um
argumento convincente e que nos fornece a oportunidade de estender
a analogia para outras experiências não hegemônicas, como as próprias
“experiências femininas” sobre as quais Felski se debruça (que geram,
entre outras coisas, formas diferentes de estar no público, e no privado)
e a subcultura homossexual que emerge, desde o final do século XIX,
semente do “queer” pós-moderno.
Desta maneira, podemos apontar para um ponto de convergência
social e epistemológica, como o lugar de encontro das várias “epistemo-
logias da alteridade”: a que emerge do pensamento feminista de Simone
de Beauvoir, inspirada no antigo conceito do “véu” (que encobre o olhar
dos poderosos) do filósofo negro norte-americano W.E.B. DuBois e
que se renova nos debates surgidos em torno daspropostas das teóricas
feministas contemporâneas da “standpoint theory” e a“epistemologia
do armário” teorizada por Eve Kosofsky Sedgwick (1990), entre asmais
relevantes para nós2. A partir destas epistemologias, se visibilizam e se
legitimam “saberes subalternos”, trilhando um caminho pelo qual se ilu-
minam as várias dimensões da experiência social “moderna” que – como
já indiquei – as perspectivas canônicas da teoria social tendiam a negar
ou ignorar.De fato, este sujeito subalterno, segundo argumento aqui,
não é de modo algum uma presença históricacircunscrita ao momento
presente, embora de certa forma represente uma nova presença discur-
siva, pois desde o cenário transformado das últimas décadas do século
XX seu protagonismo vem se intensificando, abrindo espaço para a con-
quista de uma maior visibilidade/legitimidade cultural, social e política.
Vale lembrar que o status do “Outro”  emerge dos entrecruzamentos das
relações de gênero e sexualidade, classe e raça, inscritos no colonialis-

2. Discuto noutro lugar a importância desta problematização do pensamento desde uma posição de sujeito femi-
nino (Adelman, 2009), a qual complementa-se com o conceito oferecido por Sedgwick: [a epistemologia do
armário] “... proposes that many of the major modes of thought and knowledge in twentieth-century Western
culture as a whole are structured – indeed, fractured – by a chronic, now endemic crisis of homo/heterosexual
definition, indicatively male , dating from the end of the nineteenth century…. an understanding of virtually
any aspect of modern Western culture must be, not merely incomplete, but damaged in its central substance
to the degree that it does not incorporate a critical analysis of modern homo/heterosexual definition… the
appropriate place for that critical analysis to begin is from the relatively decentered perspective of modern gay
and antihomophobic theory” (Sedgwick, 1990:1).
Discursos fora da ordem 32

mo e nas divisões mundiais das quais o mundo moderno nasce.  Seu


legado persiste, como relações de dominação, poder e conflito,  e por-
tanto, como  contextos dos quais surgem os movimentos pelo reconhe-
cimento da diversidade e a diferença, pela promoção da igualdade social
e pela expansão concreta de formas de cidadania.
Se o feminismo vem sendo amplamente reconhecido como um
movimento social que teve um impacto enorme sobre como vivemos hoje,
outras mudanças, propiciadas talvez menos por movimentos de contes-
tação e mais em decorrência de fatores institucionais, também trazem
consequências (especialmente não-intencionais) amplamente debati-
das. Os trabalhos de estudiosos como Arjun Appadurai (1996), Avtar
Brah (1996), Gayatri Spivak (1990), Cláudia Costa (2000), Stuart Hall
(Hall e Sovik, 2003) e Homi Bhabha (1994) analisam (as velhas e) no-
vasdiásporas do mundo pós-colonial da segunda metade do século XX
e a circulação do conhecimento que promovem. As trocas culturais que
são produzidas pela intensificação de circuitos de migração estimulam
novas discursividades e novas formas de participação em redes de comu-
nicação, na medida em que as tecnologias avançadas se espalham por um
mundo cada vez mais globalizado e “(inter)conectado”. É importante
não perder de vista que se trata de um mundo “pós-68”, marcado por cer-
tos ganhos relativos à visibilidade e legitimidade dos “sujeitos subalter-
nos” como atores e agentes sociais, sendo estaconquista – como sugere
Jeffrey Weeks (2007) na introdução ao seu livro recente The World We
Have Won – tão inegável quanto inacabada e contraditória.
O fluxo intenso de pessoas, bens materiais e “discursos” ao redor
do globo que está no centro do cenário atual é produto de forças histó-
ricas – sociais, econômicas –que não deixam de reproduzir antigas de-
sigualdades entre povos e regiões do mundo. Assim, as trocas culturais
que este processo perpetua são também, necessariamente, complexas e
perpassadas por inúmeras contradições, tecidas através de lutas sobre
formas de representação e autorrepresentação, conforme o trabalho pio-
neiro de Said (1979, 1994) evidenciou. Meu foco mais específico aqui
– as trocas que se constroem relativas a “sujeitos mulheres” através do
globo – nos remete à junção de perspectivas avançadas pelo feminismo e
33 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

pela Teoria Pós-Colonial, em si um encontro que também gerou tensões


e polêmicas sobre representação, cultura e política. Um dos seus debates
centrais foi aquele que problematizou a relação da teoria e do movimen-
to feministas da “segunda onda” em termos dos interesses ou olhares dis-
tintos desde posições de “norte /sul” (ou entre “o Ocidente e o resto”)
(Hall e Sovik, 2003) e a noção, frequentemente avançada, de um cer-
to monopólio das mulheres ocidentais sobre a capacidade de pensar e
agir em relação à formas históricas de dominação masculina. Desde esta
perspectiva, as mulheres do Terceiro Mundo (ou do “Sul global”) seriam
(representadas como) pouco mais do que vítimas passivas carentes de
instrumentos e discursos emancipatórios próprios e, portanto, depen-
dentes de ajuda ou empréstimosadvindos do feminismo/das feminis-
tas ocidentais. Contudo, este tipo de perspectiva sofreu uma perda de
credibilidade dentro do campo da teoria e das práticas feministas após
ampla crítica de suas falhas e do viés contido nele (cf. Adelman, 2009):
de como, por exemplo, ignorava a existência dos feminismos indígenas
de diversas partes do mundo e dos registros históricos e antropológicos
dos encontros entre colonizadores e colonizad@s, (des)encontros que
por vezes significavam uma perda de status para as mulheres relativas à
posição mantida na cultura e relações sociais “pré-contato”.
Há uma literatura nada escassa que joga luz sobre os diversos fe-
minismos produzidos em lugares diferentes do planeta, que discuti
noutros momentos (Cf. Adelman, 2009; 2007). Pelas limitações de
espaço, me remeto aqui apenas à obra da socióloga e escritora mar-
roquina Fatema Mernissi. Em Scheherazade Goes West,um livro tão
intensamente sociológico quanto pessoal, perpassado pelo humor, a
eloquência e um profundo senso dos paradoxos que caracterizam asvi-
vências interculturais,Mernissi examina o percurso sinuoso do discurso
ocidental “orientalista” e suas construções mistificadas das mulheres – e
dos homens – do mundo árabe.Ela nos alerta para uma longa história
– segundo ela nos diz, imortalizada em tradições culturais inicialmente
orais, como as narrativas de As mil e uma noites – de consciência das mu-
lheres sobre sua opressão, que por vezes se traduz numa extrema astúcia
mobilizada num interesse de burlar controles patriarcais.
Discursos fora da ordem 34

De fato, para dissipar mistificações ou pré-conceitos, nada há de


mais importante do que escutar com muita atenção as vozes e testemu-
nhos de mulheres ao redor do globo e, através deles, re-construir nos-
so olhar sobre as condições sociais e culturais que forjam as relações de
gênero conforme se desenvolvem em tempos/espaços particulares. De-
vemos também procurar compreender as novas relações que emergem
quando as próprias teorias feministas seguem suas viagens de norte ao
sul (cf. Cláudia Costa, 2000, a respeito), – e claro, do sul ao norte, e do
sul ao sul, entre oriente e ocidente, e assim por diante, isto é, tentar per-
ceber como o próprio discurso feminista é moldado e remoldado con-
forme seu deslocamento de um lugar para outro(s), e como volta, por
vezes muito transformado, para os centros acadêmicos de sua origem.
Considerando, num primeiro momento, a questão das experiências
das mulheres do “Sul global”, incorporarei aqui um trabalho em equi-
pe3, em andamento, que focaliza narrativas femininas de lugar e espaço,
pertencimento e busca, no contexto global contemporâneo (Viajantes e
migrantes: subjetividades femininas num mundo pós-colonial, Adelman,
Costa e Felipe, 2009.). Neste trabalho, nos perguntamos sobre aquilo
que as mulheres migrantes e viajantes apreendem dos lugares novos que
encontram, sociedades ou “culturas” que frequentemente se caracteri-
zam por uma história de gênero que aloja diferenças significativas – em
termos de arranjos materiais, de códigos e de representações – quando
comparadas com a cultura de origem. Embora esta pesquisa possua um
objeto empírico próprio (no caso, as experiências de mulheres brasilei-
ras atualmente radicadas na Espanha), nosso repertório de inquietações
se nutre de fontes que incluem também narrativas fornecidas pela lite-
ratura – romances, contos, ensaios e outros textos que trazem vozes do
momento pós-colonial no feminino, de diversas partes do mundo.
Entre o vasto campo composto hoje por autoras que escrevem des-
de esta localização – sejam mulheres que moram no sul ou no norte,
mas que de alguma maneira, possuem uma história que as vincula às

3. Equipe de pesquisa: Profa. Dra. Miriam Adelman (UFPR), coordenadora; Profa. Dra. Jane Felipe de Souza
(UFRGS); Bianca Guizzo, doutoranda em Educação, UFRGS; Milena Costa de Souza, mestre em sociologia
pela UFPR.
35 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

sociedades do sul4 –,ressalto aqui apenas algumas que se destacam na


minha própria agenda de leituras recentes e/ou particularmente mar-
cantes: Sandra Cisneros, poeta e escritora chicana,que explora de manei-
ra brilhante o que é viver traspassando fronteiras de vários tipos; Jhumpa
Lahiri e Jamaica Kincaid, duas escritoras que retratam os conflitos exis-
tenciais e sociais vividos por mulheres que se deslocam das terras onde
nasceram, por “livre escolha” ou face a situações coercitivas.Nos seus
textos, os ganhos e os riscos de atravessar países e culturas se imbricam
de maneira inseparável. As e os protagonistas desenvolvem estratégias
pessoais para lidar com o novo, o instigante e o adverso, adquirem uma
compreensão da vida que ganha riqueza e complexidade e muitas vezes
são conduzidas a repensar sua relação com seu lugar de origem ao mes-
mo tempo que conduzem algumas pessoas na “sociedade receptora”a
pensar a sua própria5.Exemplos particularmente reveladores podem en-
contrar-se na obra de várias escritoras sino-americanas, na forma como
tematizam o conflito geracional que emerge entre mulheres criadas na
China e suas filhas, nascidas e criadas nos EUA.A crítica literária Rita
Felski (2003) já estudou a obra dessas escritoras dentro do contexto da
escrita feminina contemporânea, contribuindo com alguns insights fun-
damentais sobre os processos de conflito cultural e “hibridização” que
configuram a construção identitária de mulheres que vivem este tipo de
experiência6. Noutro lugar, falei também sobre uma maneira de narrar
no feminino, que descobri na obra de uma escritora negra sul-africana,
Pamphilia Hlapa (2006). Hlapa retrata um mundo ainda permeado pe-
las formas mais terríveis de violência masculina, as quais emergem, na

4. Entendo aqui a “localização pós-colonial” como tratando de um momento discursivo (de deslegitimação de
relações que impõem a hegemonia de um olhar e pensar ocidentais e imperialistas e a conquista da legitimação
discursiva de grupos cuja voz era negada ou suprimida por este regime discursivo) que se desenrola em espaços
geográficos diversos e diferentes.
5. Por exemplo, no conto de Jhumpa Lahiri, “Sexy” (1999), uma jovem trabalhadora inglesa que se envolve com
um homem indiano casado – alguém que ela admira tanto por sua formação cultural e educacional elevada
quanto pelo que ele representa de “exótico” – descobre algo ainda mais importante sobre ela mesma, e sobre
ser mulher, através da forte amizade que ela desenvolve com uma colega de trabalho, também da Índia.
6. O conceito de hibridização, vale a pena assinalar, é um conceito-chave dos estudos culturais contemporâneos,
enquanto uma tentativa de superar visões dicotomizadas que opõem culturas “ocidentais” e “não-ocidentais”;
remete às trocas e influências recíprocas, às transformações culturais e à própria impossibilidade de existir
qualquer manifestação ou fenômeno cultural “puro”e “autêntico”; também contempla a esfera da cultura
como um mundo impulsionado por conflitos e lutas simbólicas onde os resultados nunca são, e nunca serão,
simples ou predeterminados.
Discursos fora da ordem 36

obra dela,“desde dentro” (na lógica cultural “nativa”) e “desdefora”(pelo


legado da brutalidade da herança colonialista) das tradições do seu
povo.Sugere, nas entrelinhas, novas formas de protagonismo feminino,
que se bem recuperam laços de solidariedade ou nurturing vinculados a
práticas femininas históricas, se afincam também nas possibilidades de
acessar instituições sociais modernas, principalmente as que pertencem
à esfera da educação formal e superior.
Fatema Mernissi, por seu lado, é sempre uma grande mestra que
nos revela algo que escapa totalmente de vista do imaginário orientalista
do Ocidente, onde as mulheres são retratadas como incapacitadas para a
ação em prol de si mesmas. Mernissi (2001) nos mostra um outro lega-
do, presente tanto nas tradições literárias e folk do mundo árabe quanto
nas vidas de muitas mulheres dessa parte do mundo hoje, de mulheres
ousadas e competentes que não só agem com astúcia e coragem como
também são admiradas por seus atributos e atitudes pouco convencio-
nais. Desde a lenda da princesa persa que caçava tigres ou da Schehereza-
de esperta, cuja astúcia e habilidade de narradora lhe permitiram mudar
não só seu próprio destino mastambém o de outras mulheres fadadas à
morte, até os milhares de mulheres do mundo árabe que hoje tomam seu
lugar nas universidades e dentre as ocupações científicas, tecnológicas e
até políticas, Mernissi evoca outra noção do feminino: “Uma mulher”, ela
nos diz, “deve estar sempre preparada para pular ao lombo de um cavalo
e atravessar territórios alheios.A incerteza é o destino de uma mulher”7.

Trajetórias de algumas…

El capitán gritó, “Sálvese quien pueda”


y yo, sin pensarlo más, me lancé al agua,
como ávida nadadora
como si hubiera estado esperando ese momento,
el momento supremo de soledad

7. “A woman must always be ready to jump on a horse and cross alien territories. Uncertainty is a woman´s
destiny” (Mernissi, 2001: 178).
37 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

en que nada pesa


nada queda ya
sino el deseo impostergable de vivir;
me lancé al agua, es cierto, sin mirar atrás.
(Cristina Peri Rossi, uruguaia, radicada na Espanha desde 1972.)

Sair do lugar de origem ou residência para aventurar-se em terras


estrangeiras: não é pouca a coragem que se precisa ter, principalmente
quando as condições de recepção são ambíguas, instáveis ou potencial-
mente hostis. O que motiva as pessoas e, em particular, pessoas que são
mulheres, a fazê-lo? O que buscam? O que encontram?
Segundo é demonstrado pela antropóloga Adriana Piscitelli (2008)
no seu trabalho sobre a experiência de mulheres brasileiras radicadas na
Europa, a motivação de emigrar destas mulheres vincula-se geralmente
a estratégias para melhorar sua qualidade e condições de vida, mas as
emigradas não costumam ser pessoas provenientes dos setores mais em-
pobrecidos da sociedade brasileira. Como muitas das suas entrevistadas
afirmam claramente, antes de apontar para situações de privação nas suas
comunidades de origem, na maioria dos casosé um desejo de “melhorar-
se” ou “melhorar de vida” (seja em termos financeiros, seja em termos de
outros tipos de “capitais” de caráter sociocultural) ao trabalhar e viver na
Europa que vem ao encontro de uma possibilidade real – através de con-
tatos, rede de apoio ou dinheiro guardado – que permite realizar tama-
nha mudança. Então, viver no exterior surge como uma opção para a as-
censão material ou outros tipos de “empoderamento” para mulheres cuja
situação na sua terra natal era vivenciada simplesmente como estagnada
ou “pouco promissora”. Ao olhar especificamente para o caso de mulhe-
res e travestis trabalhadoras do sexo – um grupo de pessoas evidentemen-
te marcadas pelo estigma social que o mundo da prostituição carrega –,
Piscitelli aponta que os motivos para deixar o Brasil mais frequentemente
citados – juntar dinheiro para construir uma casa, montar um negócio
ou pagar seus estudos ou os estudos de algum familiar – são comparti-
lhados tanto por trabalhadores/as do sexo como por outras pessoas que
pertencem a grupos sociais e ocupacionais de maior status ou aceitação.
Discursos fora da ordem 38

Contudo, o que mais vale ressaltar aqui remete principalmente a uma


questão metodológica e política sobre a agência de pessoas – e particular-
mente, mulheres que não pertencem a grupos sociais privilegiados8. Mui-
tas histórias – histórias que eu li e as que me foram contadas em nossa
pesquisa de campo– nos ajudam a perceber que, embora sejam as pessoas
de grupos sociais privilegiados que aparecem como protagonistas e escri-
tores/as nos gêneros literários de viagem e aventura (e geralmente pesso-
as de sexo masculino)9, há muit@s outr@s que “botam o pé na estrada”
impulsionad@s não só por “necessidade econômica” (ou política)10 mas
pela influência desse imaginário social moderno que nos sugere que via-
jar, e a procura de “um outro lugar neste amplo mundo”, pode ser uma
alternativa – temporária ou permanente – para a construção de uma nova
vida e um novo “projeto do Eu”11.
No projeto de pesquisa acima mencionado, procuramos trabalhar
– na encruzilhada da teoria feminista e as perspectivas pós-coloniais –
com as narrativas de mulheres brasileiras que empreendem estas viagens
“para fora”. Buscamos compreender o que as impulsiona, quais os fatores
– culturais, sociais, econômicos, pessoais – que estimulam sua busca em
terras estrangeiras, e como assimilam suas experiências, como mulheres
“do sul”, brasileiras, na Europa12.

8. Em circunstâncias parecidas ou diferentes, mulheres do Sul global protagonizam muito do movimento mi-
gratório do mundo contemporâneo. Os casos apresentados e cenários discutidos no excelente livro Global
Woman, organizado por Arlie Hochschild e Barbara Ehrenreich (2003), enfatizam e ilustram a relação deste
movimento de mulheres com as necessidades geradas nos países do Primeiro Mundo por mão de obra femini-
na no setor (e em empregos comumente precários) na indústria do cuidado de pessoas (crianças, idosos etc.).
Enfrentando uma série de dificuldades para poder melhorar suas vidas e/ou as de seus familiares, não são só
mulheres solteiras que emigram sozinhas: em países como Sri Lanka e Filipinas, é comum hoje ver mulheres
casadas que deixam seu lugar de origem para procurar uma saída para a crise, enquanto seus maridos (frequen-
temente desempregados ou subempregados) ficam no país. São circunstâncias que tendem a produzir efeitos
muito desestabilizadores sobre a estrutura familiar e a ordem de gênero “tradicional”.
9. Ver, por exemplo, Hodgson (2002).
10. Estas necessidades não devem ser menosprezadas, pois não é de duvidar que continuem sendo os fatores que
mais obrigam ou empurram pessoas em diversas partes do Sul global a sair dos seus países de origem e enfren-
tar o que é, muito frequentemente, uma vida de novas dificuldades e marginalidade em contextos sociais e
culturais que lhes são estranhas
11. Um ótimo exemplo de uma narrativa neste gênero, protagonizada por uma jovem pobre do interior brasileiro,
é o excelente filme de Karim Ainouz, O céu de Suely (Brasil, 2006), “um filme” segundo Walter Salles, seu
produtor, “sobre a necessidade que temos de nos reinventar” (http://www.cinemaemcena.com.br/ceudesue-
ly/blog.asp ).
12. Vale lembrar a pergunta feita em 1996 por Avtar Brah: “Will the consolidation of a new European identity
strengthen the racisms through which Europe and its diasporas have constructed the non-European ‘others’?”
A “racialização” do conceito de “brasileiro”, apontada por pesquisadoras como Pontes (2004) e Piscitelli
39 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Apenas numa fase inicial, fizemos cinco entrevistas com mulheres


(entre 28 e 42 anos). Muito diferentes entre si, em termos de origem so-
cial, racial e regional (porém, todas estas, nossa pequena amostra inicial,
se narram como “heterossexuais”), suas trajetórias mostram algumas con-
vergências importantes. Todas colocaram algum tipo de “desafio existen-
cial” no centro da suas narrativas, dando uma importância maior, desta
maneira, ao simbólico e ao subjetivo do que a outro tipo de motivação
(financeira, de ascensão social ou abertamente “romântico”, por exemplo).
Carla (todos os nomes citados aqui são pseudônimos) provém de
uma família de classe média de uma capital do Sul do Brasil; Ana é de
uma família pobre do Nordeste brasileiro; Elisa é filha adotiva de um
casal protestante pobre do estado de São Paulo, e duas informantes são
da Bahia: Giovanna, filha de uma família de classe média baixa pobre-
com raízes italianas que lhe deram o direito de emigrar com cidadania
italiana, e Márcia, de uma família pobre, de 11 irmãos, na qual prin-
cipalmente as filhas vivenciaram alguma mobilidade social através da
educação superior.De fato, o papel da educação se destaca como fator
fundamental na definição de suas trajetórias e oportunidades:quatro das
cinco já tinham terminado a faculdade antes de deixar o Brasil.Giovan-
na e Márcia, inclusive,foram para a Espanha com projetos vinculados à
continuação dos estudos.No caso de Giovanna, formada em Arquite-
tura após uma luta difícil (ela se narra como outsider num meio muito
“aburguesado” – a Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal
– e ainda carregando muita responsabilidade familiar). O “ir embora”
parece representar uma saída para uma fase da vida em que havia alguma
frustração com sua situação profissional e pessoal:

Só o trabalho estava me sugando o sangue mesmo, né? Nunca tinha tido


férias em todos esses anos... nunca férias. E eu me sentia mesmo viu, que
merda, que merda... eu estava num relacionamento péssimo, péssimo. Só
me sugava também... que só me sugava também, não me dava nada. Aí,

(2008), faz parte deste cenário – os/as brasileir@s são automáticamente marcad@s como “não branc@s”
em função dela e independentemente de sua origem étnica particular. Sua “racialização” – e a “sexualização”
geralmente associada a ela – pode agir de maneira mais ou menos forte sobre a forma como são percebidas,
recebidas e tratadas, como uma informante nossa explica (um pouco mais adiante).
Discursos fora da ordem 40

eu: “porra”, ou seja, um vazio, né... “realmente eu tenho que ir embora da-
qui...eu tenho que ir embora daqui”... só que eu tenho a minha família...
bruxaria, minha família tava meio assim Família Adams... porque tudo é
muito bruxo.

Márcia, por sua vez, enfatiza a importância da educação, em ter-


mos pessoais e sociais:

... eu sempre achei que a Educação é um caminho, né, pra mudanças no


nosso país... eu sempre tive essa ideia... isso é o que me movia a trabalhar
com a Educação, eu pensei que a Educação como um caminho, como
uma possibilidade de mudança da nossa realidade, né... e principalmente
no Nordeste... com isso eu fui me dedicando à Educação e trabalhando e
bom... fazendo algumas coisas.

Foi assim que, após anos trabalhando em projetos escolares, e par-


ticularmente nas Aldeias Infantis SOS, no interior da Bahia, ela sentiu
vontade de ter uma outra experiência, conhecer outros países e seguir
seus estudos no exterior.
Carla, por outro lado, já tinha uma vida profissional que ia relati-
vamente bem na sua cidade natal mas, conforme relata, não estava total-
mente satisfeita com seu ramo (relações públicas); havia estudado teatro
também e sonhava ainda dedicar-se à música, e conhecer um pouco do
mundo.“Sempre admirei muito essas pessoas que iam, que ficavam três,
quatro anos fora, que moravam nos Estados Unidos”, disse ela. Aos 26
anos, num momento em que poderia optar por “posicionar-se seriamen-
te no mercado, buscar uma empresa”, fez outra escolha:

Então foi aí que achei que era a oportunidade de fazeruma viagem... Eu


não tinha muita ideia de pra onde ir... Pensei em Estados Unidos, mas
achei que, por ter passaporte [europeu] seria... sabe, buscaruma ‘incomo-
didade”... na verdade, queria aprender inglês, mas [não fazia tanto senti-
do] ir para os Estados Unidos tendo a facilidade...do passaporte espanhol.
E então também pensei em Londres, mas eu não sou muito chegada em
41 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

frio e mau tempo... Então eu disse, primeiro eu vou pra Espanha, depois
eu vou ver o que acontece... Na verdadeeu não tinha um plano fixo. Eu
queria descobrir coisas. Foi mais um impulso.

Ana, que afirma “nunca ter gostado do estudo”, nem por isso quis
se limitar.Num português apimentado com frases e palavras castelhanas,
se caracterizou como uma pessoa dinâmica e empreendedora – nas pala-
vras dela, a “mais criativa” de uma família de seis irmãos. Falou do dese-
jou que nutria, desde cedo, deir embora da cidadezinha nordestina onde
nasceu, cujo ambiente ela identificou como “entediante” e “estagnado”:

...a caçula da casa, mas sempre tive um olho mais adelante do que as outras,
eu sempre quis sair de aí, sair de onde eu vivia, que era uma cidade muito
pequena. Não é capital, as coisas sempre chegavam com... mais atrasadas e
eu llegava junto com as coisas, no sentido de... que as coisas já estavam lá
fora e eu já queria para mim isso. E eu sempre falava que um dia eu ia sair de
Imperatriz... que ali não era lugar para mim. Sempre dizia isso aí pra minha
mãe, pras minhas irmãs. E as minhas irmãs sempre diziam: “Como que tu
vai? Pra ir pra fora não é assim, tão fácil... não é só dizer: ‘eu vou’”. Mas todo
mundo pensava que era só coisa de menina, de menina de 12, 13 anos. E eu
cresci aí, trabalhei aí... não mucho porque, lógico, a cidade era muito peque-
na e não tinha muitas oportunidades de trabalho e como sempre fui muito
criativa pa’ tudo... eu sempre fui muito ágil, eu sempre queria tá no meio de
todo mundo... aprendi a trabalhar com festas de crianças e conheci pessoas,
pessoas importantes na cidade. Tive bons relacionamentos.

Foi a partir daí que ousou uma viagem a Portugal, através de conta-
tos pessoais, onde surgiu a possibilidade de trabalhar como cabeleireira,
que logo se tornaria seu novo campo de profissionalização.
Elisa (39 anos) nos surpreendeu com sua história, pois vinculou
sua busca existencial a um projeto religioso evangélico.“Sempre fui
muito sonhadora, muito idealista”, é como ela se caracteriza.Após uma
experiência de estudos frustrados de Jornalismo e Direito, já casada,
morando na Amazônia, estudou e terminou sua formação na área de
Discursos fora da ordem 42

Enfermagem. Aos 32 anos e com três filhos, ela foi “pega de surpresa”
pelo fim do seu casamento. Ela conta que estava feliz, levava uma vida
“estável” de classe média, era “apaixonada pela família, filhos e marido”
e, de repente, se viu perante a necessidade de ter que “começar de novo”:

Recomeçar de novo, recomeçar de novo, e mais uma vez eu vi como a jus-


tiça do meu país deixa muito a desejar, porque apesar de termos perdido
o patrimônio que nós tínhamos, ele ficou numa situação muito melhor
do que eu, né! Porque ele saiu de casa, me deixou com os filhos e simples-
mente não assumiu as responsabilidades de pai, então eu tive que assumir
as responsabilidades, todas. De criar os meus filhos sozinha, de educar os
meus filhos sozinha, a partir daquele momento, e são sete anos que eu te-
nho vivido só e que eu tenho criado e educado meus filhos só, assumindo
todas as responsabilidades, todas as despesas, tudo, né!

Elisa, enquanto reconstrói a história do seu próprio esforço face à


grande adversidade e decepção, permeia sua fala com referências cons-
tantes a sua relação com Deus. Abriu mão da ajuda do ex-marido “por-
que eu e os meus filhos não necessitamos... abri mão de qualquer coisa
que viesse deles, diante da situação... e parti pra luta. Parti pra luta, Deus
me deu graça... Deus me louvou, me sustentou...”. Na sequência, Elisa foi
morar noutra cidade, onde montou um restaurante japonês, fase que ela
qualifica como “muito difícil, trabalhei muito, vi os frutos do trabalho”e
conseguiu dar “o melhor de tudo” para os filhos; fala com orgulho de ter
aprendido a lidar sozinha com o sustento da casa, de administrar um ne-
gócio e velar pelo bem estar dos filhos. Quanto ao desejo de sair do Brasil,
ela diz que sempre teve vontade de ir morar fora, nos EUA ou Canadá,

... por causa da língua inglesa, que eu sou apaixonada, não sei, eu sempre
tive assim, sabe?... Estados Unidos, Canadá, países totalmente desen-
volvidos, com alta qualidade de vida, de educação, de saúde e tudo, mas
assim, nunca na minha cabeça a Europa, isso nunca tinha passado pela
minha cabeça. Aí meus filhos começaram a me pedir: “Ah, vamos embora
daqui, eu quero ir embora do Brasil, eu quero”. E até mesmo pelas circuns-
43 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

tâncias, o fato de não ter contato com o pai, de ver que o pai estava próxi-
mo, mas não ter contato, de ter um pai totalmente ausente na vida deles.

Num mesmo sentido que ela sustentou ao longo da entrevista,
conectava sua busca pessoal e familiar a noções religiosas de destino e
Providência. “Pessoas falavam para mim que Deus ia me levar para fora
do Brasil, ia me tirar do Brasil... como profecia. Ele ia fazer tudo novo na
minha vida, fazer novos frutos, novas flores...”. E ela diz que respondia:
“Eu vou, eu vou sim, o melhor lugar pra você estar é quando você está na
vontade de Deus, nada acontece por acaso...”.
Finalmente, as passagens para Europa foram oferecidas por um se-
nhor da sua igreja; de Portugal, a porta de entrada, que não gostou (“foi
assim um choque, porque pra mim eu tinha um outro conceito de Por-
tugal, outra visão pelo fato de estar na Europa, eu achei que fosse como...
uma Suíça...”), se mudaram para Barcelona.“Foi na aventura mesmo”,
porque tinham apenas um contato com um brasileiro, amizade virtual
de uma de suas filhas – e só a esperança de encontrar moradia e trabalho
–, mas uma aventura que, segundo ela, deu certo.
Por outro lado, vale a pena observar que todas as nossas entrevis-
tadas eram solteiras ou “livres” na hora de deixar o Brasil (num caso, di-
vorciada com três filhos; nos outros casos, solteiras e sem filhos) e todas,
já vivendo na Espanha, estabeleceram relações com homens europeus13.
Contudo, é só no caso de Ana – aliás, a única de nossas informantes que
não tinha curso superior nem “capital cultural” acumulado para destacar
– que o estabelecimento de uma relação com um homem espanhol toma
lugar central na sua narrativa.
Em certo sentido, as histórias das nossas informantes repetem temas
e questões que aparecem noutras pesquisas, que discutem as representa-
ções que circulam em nível transnacional sobre mulheres brasileiras e sobre
as possibilidades de relacionamento entre mulheres brasileiras e homens
europeus (cf. Piscitelli, 2008; Roca I Girona, 2007a; 2007b). Enquanto

13. Carla mora com o namorado catalão, Ana é casada há vários anos com um engenheiro de outra parte da
Espanha, Márcia casou recentemente com um garçom catalão com quem acabou de ter um filho, Giovanna
é casada com um italiano que conheceu em Barcelona e Elisa namora um engenheiro que mora numa outra
cidade, a aproximadamente 150 quilômetros de distância de Barcelona.
Discursos fora da ordem 44

ser brasileira “agrega valor simbólico” num certo mercado matrimonial


de homens europeus que acreditam que as brasileiras, assim como outras
mulheres da América Latina, teriam características que as tornam mais ap-
tas para um papel de companheira ou esposa, muitas brasileiras ou latino-
americanas pensam que nos homens europeus encontrarão homens mais
“evoluídos” ou “menos machistas” do que entre seus pares latino-america-
nos. É de fato, como o trabalho de Roca I Girona (2007b) já mostrou, um
campo de suposições muito minado, quer dizer, que facilmente conduz a
surpresas e decepções decorrentes de expectativas que se baseiam mais em
estereótipos do que na verdadeira complexidade dos sujeitos humanos e as
traduções culturais. Mas, quaisquer que seja a realidade “por trás” destes
pressupostos, o fato deles serem formas tão comuns de representação de
uns/umas e de outras, pode sugerir como conjectura que o fato de elas esta-
rem sem parceiro tenha influenciado positivamente a decisão de emigrar;
entre os diversos elementos que as pessoas juntam ao forjar seu “projeto
migratório pessoal” (cf. Pontes, 2004), a esperança de achar um parceiro,
de outro lugar, em outro lugar,seria tão coerente quanto legítimo.
Por outro lado, apesar de cientes de uma certa valorização da bra-
sileira no mercado sexual e matrimonial espanhol, todas as nossas infor-
mantes se posicionaram a uma distância crítica do “mito da brasileira”
que circula amplamente no contexto europeu. Até poderíamos imaginá-
las muito mais próximas ao suposto padrão “das espanholas” do que ao
estereótipo da “brasileira”, no que diz respeito a estilos de feminilidade e
de vida. Márcia, que como mulher negra se sabe e se sente olhada de uma
forma particular na Europa, nos disse:

A ideia da mulher brasileira é a mulher que tá aí, desnuda, nua... e que


tem uma vida sexual super ativa e que, bom... tem toda essa ideia, essa
propaganda inclusive... então, muito dificilmente você chega, e se você
diz que é brasileira eles vão ter, num primeiro momento, o respeito... né...
eles vão sempre, a imagem que eles vão fazer, o que vai passar pela cabeça
deles é que você pode avançar um pouco no sentido da... da orgia, da
coisa assim mais... Então isso em alguns momentos tive contatos, às vezes
por internet... e eu sempre fui muito combativa nisso, sempre combati
45 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

bastante, até porque a realidade não é essa [a verdade]... Na mesma pro-


porção que temos aí no Brasil mulheres que fazem opção de vida, né, de
uma vida mais liberada, existe em todos os países... verdade assim, aca-
bei que não tive muitas relações com espanhóis, eu tive algumas, poucas,
com alguns brasileiros, e mais contato que eu fazia às vezes por internet, a
gente via que eles tinham um pouco essa ideia...Mas eu sempre dizia que
“olha, as mulheres são inteligentes, as mulheres no Brasil são inteligentes,
estudam, pesquisam, sabe... são intelectuais, têm trabalhos maravilhosos,
magníficos, e tal e tal e tal”... eu sempre fui nessa defesa.

Apesar das suas histórias e circunstâncias de vida diferentes, um


elemento comum às narrativas das nossas informantes foi a convicção
de que, como pessoas, como mulheres, poderiam fazer e refazer suas
vidas, dentro de um contexto “transnacional”. De fato, foi o anseio de
crescer e mudar o que as levou para além das fronteiras da nação e longe
de suas comunidades de origem. A linguagem que usavam para contar
suas histórias, por vezes muito eloquente, retratava a vida como aberta
e repleta de possibilidades. Neste sentido, elas fornecem um exemplo
de como algumas mulheres brasileiras, jovens ou nem tanto, de classes
e origens sociais diferentes, se permitem pensar num horizonte amplo,
a construção, como diria Anthony Giddens (1992) de um “projeto do
Eu”. Todas expressaram em algum momento a ideia de serem “mulheres
comuns”, “como todas as outras” – nem ricas, nem de elevado status so-
cial; mas esforçadas, trabalhadoras, e corajosas, isso sim. Sabem, por ou-
tro lado, que adquiriram recursos novos e socialmente valorizados atra-
vés das suas experiências transnacionais: um tipo de “capital” efetivo que
provém da aprendizagem de cruzar fronteiras, aprender outra língua e
desenvolver capacidades que, noutro momento, ficavam mais restritos a
grupos sociais mais privilegiados. Há diferenças de classe, e as mulheres
que pertencem às camadas médias (por origem ou por escolarização/
profissionalização) tendem a beneficiar-se maisde oportunidades de
aperfeiçoarhabilidades e acrescentar elementos novos ao capital cultural
que já possuem, e de obter, destes elementos, retornos talvezmais ime-
diatos e menos ambíguos, em termos profissionais. Contudo, como a
Discursos fora da ordem 46

história da Ana demonstra, outras mulheres – de camadas populares –


também encontram formas de acessar mundos de conhecimento e status
que antes lhes eram impedidos ou inacessíveis – tornando-se “fluentes”
em experiências culturais diferentes, adquirindo um capital cultural par-
ticular, digamos, acessando formas de cultura “cosmopolita” que no seu
país de origem eram monopolizadas por outr@s.
Na literatura, hoje em dia bastante abundante, sobre a feminização
dos processos migratórios, a questão do trabalho emerge como chave
central, inclusive porque muitas pessoas, homens e mulheres, iniciam
sua trajetória emigrante motivad@s por necessidades econômicas e a
promessa de melhorar suas vidas através de condições de melhor remu-
neração da força de trabalho (manual, profissional) no país receptor.
Dentre as nossas entrevistadas, havia duas (Márcia e Giovanna) cujos
projetos migratórios davam um lugar central aointeresse de continuar os
estudos ou a formação profissional, e sua necessidade de trabalhar vinha
em função disto, para sua viabilização.Giovanna, no caso, tentou, sem
muito êxito, fazer valer seu título brasileiro de arquiteta e acabou achan-
do um novo campo profissional, embora temporário, na área de publici-
dade.Márcia sobrevivia trabalhando em restaurante ou noutros serviços,
os quais, no Brasil, empregam mão de obra bem menos qualificada do
que a sua; assim, tanto ela quanto Elisa se encaixaram numa situação re-
lativamente comum, de mulheres imigrantes com formação profissional
que aceitam empregos de menor status do que suas atividades no país
de origem. Carla também teve uma experiência deste tipo, começando
sua estada na Europa como babá, para depois conseguir trabalhos mais
condizentes com sua formação de Relações Públicas no Brasil, situação
facilitada pelo passaporte espanhol que possuía. No entanto, das cinco,
apenas uma fala de um emprego que realmente gosta, que a ajudou a cres-
cer numa área profissional diferente:Ana, que chegou na Espanha com
ensino médio completo, e conseguiu se aprimorar como cabeleireira.
Todas essas narrativas trazem à tona questões amplamente debati-
das na sociologia contemporânea, sobre os lugares relativos de trabalho,
emprego e profissão na vida de homens e mulheres, hoje. Vemos, por
exemplo, que para estas mulheres, emprego, vocação, realização pesso-
47 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

al e profissional são todos elementos que fazem parte do seu elenco de


preocupações, informando seus sonhos e escolhas, mas o emprego é fre-
quentemente um elemento que destoa do resto, um simples instrumento
ou até um fardo. Realização pessoal, por outro lado, é um processo com-
plexo que se constrói em várias dimensões, sendo uma a profissional,
outra, os filhos (para as duas que os têm, pois além de Elisa, que já tinha
três filhos ao emigrar, Marcia também tornou-se mãe, pois teve um filho
na Espanha), ou uma atividade artística, atividade política ou comuni-
tária. A relação conjugal toma maior centralidade na narrativa do eu de
duas delas, enquanto as outras três parecem priorizar outros elementos,
pelo menos no sentido de definição de planos ou lugar-chave na busca
da realização pessoal. A vocação emerge como algo que se descobre ou
que se constrói ao longo da vida; pode ser um fio condutor, mas permite
também muita fluidez e vai tomando formas erumos diferentes.
Como aparece claramente nas falas anteriormente apresentadas de
Carla e Elisa, todas nutriram um alto nível de expectativas quando de-
sembarcaram na Europa, de tal maneira que não surpreendem algumas
frustrações ou desilusões posteriores e, inclusive, a menção de “encon-
tros tensos” com aspectos da realidade espanhola. Nas suas narrativas,
forjadas num novo contexto de, em todos os casos, primeiro encontro
com a vida na Europa e no exterior, percebemos que fazem leituras bas-
tante “realistas” do mundo e das tentativas de pensarem-se dentro dele.
O Brasil aparece como a terra materna, lugar da família de origem e lem-
branças valorizadas, como nesta fala da Márcia:

No Brasil a gente tem algo que a gente não tem aqui, que é o afeto... que é o
respeito, digamos... é... como ser humano, uma valorização pelos sentimen-
tos que você pode construir, né... então, eu acho que no Brasil as relações
são mais bonitas, são mais amáveis, as pessoas são mais dadas, as pessoas são
mais alegres, as pessoas são mais lutadoras, as pessoas são mais, de alguma
forma, solidárias... e aqui é um pouco diferente, aqui as coisas são mais frias,
as pessoas são frias, não existe uma, uma questão assim de ajuda, no sentido
de sentimentos até... então, essa é uma, um ponto muito forte... eu vim de
uma família, que acabei de dizer, uma família grande, bonita...
Discursos fora da ordem 48

Mas a Europa, e a Espanha em particular (não obstante os desdo-


bramentos de uma crise que, na época das entrevistas, se mostrava cada
vez mais acentuada), oferecem vantagens de outro tipo, particularmente
as que se relacionam com políticas e infraestrutura públicas, e o menor
grau de violência nas ruas.
Por outro lado, cada uma era sujeita a dificuldades, ou boas expe-
riências, particulares. Márcia, por exemplo, teve dificuldades ao tentar
acompanhar seus estudos de doutorado na Espanha: problemas com a
língua, que ainda não falava, e talvez problemas ocasionados por defici-
ências na sua própria formação anterior. Segundo nos relatou, precisava
de mais tempo de adaptação antes de empreender o projeto do doutora-
mento, mas quando tentou fazer primeiro outro curso que pudesse via-
bilizar isso, teve problemas relativos à licença do seu trabalho no Brasil.
Agora, com filho nascido na Espanha, não vê com muita clareza se o
melhor seria voltar ou ficar, mas sente que talvez seja melhor para o filho
se ela ficar na Espanha para criá-lo.
Para Giovanna, na época da nossa entrevista, faltavam poucas se-
manas para empreender o retorno a Salvador, junto com seu marido ita-
liano, que se encontrava bastante ansioso em relação às possibilidades
de trabalho que encontraria no Brasil. Mas para ela, em cuja narrativa
se destacavam decepções no mundo do trabalho e do estudo, e até em
relação à sociabilidade catalã (“A melhor coisa daqui para mim foram os
amigos latino-americanos”, ela nos disse), o momento de um já desejado
retorno lhe alegrava:

...eu vi que aqui tem um limite pra se crescer como estrangeira... como
imigrante... tem um limite, né. E o meu limite é muito mais alto do que
o que eles me dão aqui... E minha família... eu via que aqui também as
coisas não eram perfeitas... aqui também tem problema, eu vi que a base
onde tava a economia era uma bolha, que havia uma imobiliária que era
especulativa,que ia estourar,que não tem fonte de energia, que aqui é uma
terra que provavelmente vai ter problema de secura, de seca, que não tem
plantação, que não tem autonomia alimentar, são coisas muito sérias pra
um país... então, esse não é um lugar pra você viver... dizer: “Não, eu vou
49 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

passar o resto da minha vida aqui”... não... se você não tem família aqui.
E chegou um momento em que eu disse: “Eu vou ter que ir embora...
Alberto [seu cônjuge], querido, a gente vai ter que ir embora”.

Carla, muito pelo contrário, se sente à vontade em Barcelona,


aproveitando, entre outras coisas, seus estudos de música, querepresen-
tam uma oportunidade que ela considera que não teria no Brasil, pelo
tipo de opção musical que ela fez. Considera-se também muito à vonta-
de com seu companheiro catalão, com sua vida cotidiana numa cidade
que ela gosta e com certas vantagens que encontra na vida na sua socie-
dade “adotiva”. A respeito do que cada lugar lhe oferece, ela explica:

Porto Alegre é uma cidade com recursos limitados na área artística, né,
nós temos uma indústria musical muito local... Barcelona é uma cidade
que proporciona várias coisas assim... melhor estrutura, melhores trans-
portes, melhor saúde, melhor segurança.

Esclarece que pretende voltar para o Brasil, mas enfatiza que sua
motivação é “exclusivamente familiar”, porque não está disposta a passar
o resto da sua vida longe de pai, mãe e irmãos. Explica, aliás, que seu na-
morado entende essa necessidade sua, e ficará ao seu critério, finalmente,
decidir se a acompanha ou não.
Elisa, que veio para a Europa após uma época de intensos sacrifí-
cios e sofrimento no Brasil, reitera que embora haja coisas que ela ama
no seu país de origem, prefere pensar na sua vida – e no futuro dos seus
filhos – na Europa.
Somente Ana parece ansiosa em desvincular-se do seu lugar e país
de origem, afirmando contundentemente que a vida que tem na Espa-
nha é muito melhor da que tinha no Brasil, embora sinta muita falta de
sua mãe e de outros familiares – os quais, aliás, ela ajuda a sustentar, com
o envio mensal de dinheiro do salário dela .As remessas, aliás, como Ana
relata com orgulho, permitiram que sua mãe ajeitasse sua casa e futu-
ramente darão às suas sobrinhas a oportunidade de estudar em colégio
particular. Curiosamente, é seu marido, engenheiro espanhol, que “ado-
raria morar no Brasil” se houvesse oportunidade.
Discursos fora da ordem 50

Elisa parece não ressentir as dificuldades iniciais que teve quando


chegou à Europa. Na época de nossa entrevista em Barcelona, morando
só com o filho (sua filha mais velha tinha voltado ao Brasil para estudar e
a outra vivia com o namorado brasileiro, jogador de futebol, noutro país
europeu) num bairro de imigrantes de diversas partes do mundo – “nem
se ouve falar espanhol na rua” –, ela afirmouseu desejo de continuar tri-
lhando o caminho adotado ao sair do Brasil.Recorrendo a uma lingua-
gem que codifica seucompromisso com o mundo a partir de metáforas
religiosas, enfatizava que desde o Brasil sempre foi “muito voltada para
o social”; já trabalhou com populações ribeirinhas na Amazônia e pre-
tende, em Barcelona, levar adiante um projeto de montar uma creche
para crianças imigrantes. Da sua vida atual, ela fala nos seguintes termos:

Eu não imaginava, quando eu cheguei, que a Espanha, que Barcelona,


que a Espanha se tornaria minha segunda pátria. Eu amo, eu amo esse
lugar, eu amo essa gente, eu amo os espanhóis, eu amo essas pessoas e eu
quero ser um diferencial nesse lugar, eu quero fazer a diferença com o
meu trabalho, com a minha vida. Eu cheguei aqui, eu fui no hospital clí-
nico doar sangue, eu sou doadora de sangue,eu estou inscrita na fundação
de carreira para doação de medula óssea, eu estou esperando a resposta
porque tem provavelmente um receptor compatível que é um paciente
de câncer na Califórnia e eu estou esperando a resposta pra poder fazer
essa doação. Então, assim, a minha vida, o que eu quero, eu quero dedicar
a minha vida sabe? Eu tenho falado assim:“Olha,Deus, eu quero fazer a
diferença onde quer que eu esteja, seja em Espanha, seja na África, seja no
Canadá, não importa o lugar, eu quero fazer a diferença”.

Também no caso de outras duas das informantes, a busca pessoal


de realização tinha um componente coletivo e até político. No caso de
Giovanna, que já se encontrava pronta para voltar ao seu país de origem,
isso se dava através do campo profissional, do seu sonho de trabalhar
com arquitetura popular. Márcia, por outro lado, já vinha com uma tra-
jetória de ativismo de esquerda no Brasil, e quando a entrevistamos se
encontrava envolvida num grupo não-partidário engajado na questão da
defesa dos direitos d@s imigrantes.
51 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Finalmente, é importante ressaltar que todas se posicionam implí-


cita ou explicitamente como mulheres que fazem, elas mesmas, o que
querem com suas vidas. Numa das suas falas mais fortes, Márcia enfatiza
que na visão dela as questões do machismo existem tanto na Espanha
como no Brasil, e que se há uma diferença entre as culturas de gênero
em ambos os países, reside na diferença das atitudes mais claramente
combativas das espanholas (e não propriamente dentro das cabeças – ou
dos corações – dos homens), que esperam e exigem mais a igualdade.

Viagens dos sujeitos, viagens de teorias: a sociologia em transformação

Há diversas maneiras, linguagens e posições para se estar no mun-


do hoje, mas trabalhos recentes sobre as diásporas, e sobre a feminili-
zação dos circuitos migratórios, apontam para a necessidade de novas
formas de entender a relação de pessoas de categorias subalternas nas
configurações globalizadas. Assim, sem minimizar as desigualdades de
diversos tipos que condicionam e estruturam as formas de circular por
estas redes de trânsito global, reivindica-se também o resgate da agência
dos que se deslocam, também, do sul para o norte, de mulheres, de pes-
soas que carregam o estigma do trabalho sexual, de migrantes que vêm
de camadas populares e que tentam, de uma ou outra forma, fazer uso de
recursos existentes ou disponíveis em outro lugar para refazer seu desti-
no e/ou o de seus familiares.
Neste sentido, torna-se interessante considerar a noção de “cosmo-
politismos populares”, que aparece na obra de vários autores (Appadurai,
1996; Gustavo Lins Ribeiro, 2003), se referindo a novas formas de re-
lação de pessoas de grupos subalternos e a apropriação de espaços, bens
e legados que a humanidade constrói coletivamente, mas desde lugares
diferentes. Appadurai, por exemplo, parte do pressuposto de mudanças
significativas nas sociedades ao redor do globo, fruto da conjugação de
dois fenômenos que caracterizam a vida da segunda metade do século
XX: a expansão do alcance e do acesso às mídias eletrônicas e a inten-
sificação dos fluxos migratórios ao redor do globo (do sul ao norte, mas
também entre regiões do sul, entre o leste europeu e o a Europa ocidental,
Discursos fora da ordem 52

e através dos circuitos propagados pelas novas ou reativadas diásporas).


Dentre as múltiplas consequências que pertencem a este cenário, Appa-
durai enfatiza como se criam as bases para novas formas de reflexividade;
a imaginação, ele assinala, “has entered the logic of ordinary life from
which it had largely been successfully sequestered”. “More people than
ever before seem to imagine routinely that they or their children will live
and work in places other than where they were born…” (1996:5). Desta
maneira, modifica-se a própria relação com o “cosmopolitismo”, essa for-
ma profundamente “moderna” de apreciar (e até consumir!) a capacidade
de navegar a grande diversidade humana e perceber seus sentidos, que, até
recentemente, pertencia ao capital e era competência cultural de relativa-
mente poucos, membros de grupos sociais elitizados.
Atualmente, conforme o argumento de Appadurai – que me parece
corretíssimo e muito instigante –, emergem “muitos cosmopolitanismos
alternativos que caracterizam o mundo hoje e os complexos fluxos cultu-
rais transnacionais que os ligam” (Idem:64). Estes cosmopolitismos estão
atrelados, de diversas formas, aos processos das novas diásporas, que agem
particularmente como mecanismos que espalham os habitantes do Sul glo-
bal ao redor do planeta, por vezes em situações de fuga (vinculadas ao polí-
tico, ao econômico e até ao ecológico-ambiental), e outras “simplesmente”
(como no caso de nossas entrevistadas) à procura de uma vida melhor. É
por isto que ele assinala a necessidade de reconhecer diásporas diversas: as
do terror, do desespero, ou da esperança. Diríamos que hoje as diásporas e
seus principais desdobramentos, no âmbito do cultural ou da política, são
muitas vezes processos protagonizados por sujeitos dupla ou triplamente
marcados pela subalternidade, criando saberes e resignificando a vida – a
sua, individual, e a coletiva. Este é o caso das mulheres de países do sul, na
condição também de membros de camadas não-elitizadas, marcadas como
“não brancas”, que participam da já ressaltada “feminilização” dos circuitos
migratórios transnacionais, o que deve implicar efeitos culturais nada des-
prezíveissobre noções de agência e sobre “quem faz a história”.
Talvez tenham passado os tempos das discussões sobre quem é (era)
realmente o “sujeito da revolução”; somos mais modestos e percebemos
que muitas pessoas podem participar, de formas muito diversas, em ativi-
dades ou projetos para transformar o cotidiano e mudar a vida. A sociolo-
53 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

gia contemporânea, por sua vez, e sem deixar de contemplar as profundas


“questões estruturais” que imprimem sua marca na construção de um cam-
po disciplinar, virou muito mais uma sociologia dos sujeitos e das subjetivi-
dades. De certa forma, podemos dizer que muitos dos debates e afazeres
teóricos da sociologia contemporânea se desdobraram neste sentido, quer
dizer, desenvolvendo um instrumental para iluminar a ação e a (inter)sub-
jetividade humanas,sem abdicardo desafio “moderno” de situá-las dentro
de contextos históricos ou vinculá-las à materialidade das relações sociais
(Cf. Hall In: Hall e Sovik, 2003). Nos debates que decorrem destas novas
tentativas de lidar com antigas questões sobre “sujeitos” e “estruturas”, o
assunto de “quais os sujeitos” reconhecidos pela teoria e de “quem conta
(su)a história” torna-se uma área fundamental de reflexão e toma novos
rumos, reconstruindo o palco da ação e redesenhando rotas e mapas.
Nestes novos meandros, a meu ver, as contribuições fundamentais
da teoria feminista, a perspectiva pós-colonial e a Teoria Queer são as de
maior destaque, convergindo ao oferecer um a“epistemologia da alterida-
de” e propondo olhares e categorias que nos permitem captar experiências
tão profundamente “modernas” quanto marginalizadas pelas perspectivas
fundantes da sociologia e disciplinas afins. A Teoria Queer, cuja contribui-
ção foi pouco explicitada nas páginas anteriores, merece algumas palavras
adicionais, pois é ela que revela, como nos argumentos tão claramente for-
mulados pela sua mais reconhecida expoenteatual, Judith Butler(1990),
que toda cultura moderna traz consigoas profundasmarcasdos discursos e
práticas da “matriz heterossexual”. Assim, por um lado, podemos entender
a absoluta relevância da perspectiva queer enquanto ela promove a des-
construção radical das fronteiras tão esmeradamente erguidas por uma
cultura historicamente hegemônica e disciplinar, entre “os normais” e
tod@s os outr@s;desta maneira, comopropõe Miskolci (2009), podemos
entendê-la como perspectiva que acrescenta ao corpus da sociologia con-
temporânea uma absolutamente necessária “analítica da normalização”14.

14. A Teoria Queer se desenvolve iluminando processos fundantes da modernidade que hegemonizam determi-
nados valores ou maneiras de ser como “o normal”; são, agora sabemos, processos que instauram o mito (como
sabemos, “de perto, ninguém é...”) e que constroem e validam o poder (disciplinamento, controle, punição de
quem não aparenta ser normal). Metodologicamente, como Miskolci deixa muito claro no seu texto, incorporar
esta “analítica da normalização” à teoria sociológica contemporânea nos capacita para entender uma ampla gama
de processos que pertencem à dinâmica profunda da vida social, nas suas facetas institucionais e cotidianas.
Discursos fora da ordem 54

Por outro lado, para as discussões aqui realizadas, podemos desco-


brir na Teoria Queer uma contribuição específica para entender os deslo-
camentos de sujeitos corporificados pelo mundo, e como transitam pelos
espaços/tempos “pós-modernos”. Os próprios (des)encontros das nossas
informantes com as maneiras de representar (perceber, julgar) “as brasilei-
ras” no seu trânsito pelos espaços globalizados da Europa contemporânea
oferecem evidências a respeito; poderia dizer-se que há uma política he-
gemônica que afeta a recepção das “mulheres do sul”, que está imbricada
numa lógica de hierarquização de corpos e sujeitos, exatamente essa que se
ilumina de maneira fundamental através da lente que nos fornece a Teoria
Queer. Na inteligentíssima formulação de Halberstam (2005):

Em versões queer da geografia pós-moderna, a noção de uma identidade


centrada no corpo cede lugar a um modelo que localiza subjetividades
sexuais dentro e entre corporificação, lugar e prática. Mas o trabalho que-
er sobre sexualidade e espaço, como o trabalho queer sobre sexualidade e
tempo, vem tendo que responder ao trabalho canônico sobre “geografia
pós-moderna”[... com sua] exclusão fundante, que atribuía ao corpo/lo-
cal/pessoal [...] e tomava a classe, o global e o político como seu marco
de referência, [tornando] difícil introduzir questões de sexualidade e de
espaço entre as conversações mais gerais sobre globalização e capitalismo
transnacional. (Tradução livre, p. 5)15

O que percebemos também claramente a partir dos relatos de e


sobre as mulheres nos seus trânsitos pelas “cidades globais” da atualida-
de é que sua experiência de espaço/tempo evoca experiências e lógicas
que interrompem expectativas e padrões, baseadas numa norma que é,
simultaneamente, branca, masculina, de elite, heterossexual16, se inse-

15. “In queer renderings of postmodern geography, the notion of a body-centered identity gives way to a model
that locates sexual subjectivities within and between embodiment, place and practice. But queer work on
sexuality and space, like queer work on sexuality and time, has had to respond to canonical work on ‘post-
modern geography’... [with its] foundational exclusion, which assigned to the body/local/personal and took
class/global/political as its proper frame of reference, [making] it difficult to introduce questions of sexuality
and space into the more general conversations about globalization and transnational capitalism.”
16. Vale lembrar aqui o que foi tão claramente articulado por Goffman (1988) falando, no início dos anos 1960
nos Estados Unidos: “... num sentido importante há só um tipo de homem que não tem nada de que se enver-
gonhar: um homem jovem, casado, pai de família, branco, urbano, do Norte, heterossexual, protestante, de
55 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

rindo exatamente naquilo que Halberstam enuncia, a seguir:“lógicas e


organizações não-normativas de comunidade, identidade sexual, corpo-
rificação e atividade no espaço e no tempo” (p. 6).17
Assim, podemos enfatizar que é a partir das percepções radicais
(radicalmente profundas e perturbadoras da ordem existente) da Te-
oria Queer, sobre os sujeitos queers de todos os tipos e cores – junto
com todos os/as sujeitos que ganham visibilidade com a ascensão das
perspectivas da Teoria Feminista e da Teoria Pós-Colonial – que muitos
seres humanos desta terra emergem finalmente num horizonte teórico e
histórico, caminhando numa direção que os afasta do lugar simbólico de
“minoria” e aproximando-os a outras conquistas: as de desconstrução de
fronteiras, mitos e práticas de violência e desigualdade. Por enquanto, há
uma questão que cabe a nós que trabalhamos com a teoria social afirmar
e consolidar: garantir a posição que estes “novos sujeitos” ganham, no
elenco das personagens teórica e politicamente reconhecidas como @s
que moldaram, moldam e continuarão dando forma e conteúdo à vida-
nas sociedades (pós)modernas.

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esportes. Todo homem americano tende a encarar o mundo sob essa perspectiva, constituindo-se isso, num
certo sentido, em que se pode falar de um sistema de valores comuns na América. Qualquer homem que não
consegue preencher um desses requisitos ver-se-á, provavelmente – pelo menos em alguns momentos –, como
indigno, incompleto e inferior...” (p. 139).
17. No que Halberstam (2005) fala sobre (os possíveis) queer subjects “...they live (deliberately, accidentally or
necessity) during the hours when others sleep and in the spaces (physical, metaphysical and economic) that
others have abandoned, and in terms of the way they might work in the domains that other people assign to
privacy and family … also those people who live without financial safety nets, without homes, without steady
jobs, outside the organizations of time and space that have been established for the purpose of protecting the
rich few from everyone else ...” (p. 10) ressoa muito que condiz com as vidas das mulheres que saíram de suas
casas, de seus países, para viver longe de suas famílias, por necessidade e/ou por escolha.
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A moda nasce em Paris e morre em Caracas1

Marcia Ochoa

Em seu provocativo livro de memórias, Morir de Glamour (2000),


o extravagante expatriado venezuelano que tornou-se ícone pop espa-
nhol, Boriz Izaguirre, relembra os dias de “Caracas Mortal”. Caracas
Mortal foi uma série de festas organizadas por um grupo de homens
gays. Essas festas foram realizadas no final da década de 1980, no fim da
era da ilusão petrolífera chamada La Venezuela Saudita, a explosão da
indústria do petróleo. A ideia por trás de Caracas Mortal era criar um
meio de “repulsa” do social – misturando pessoas de todos os círculos
sociais de Caracas. Não sendo exatamente revolucionário, do ponto de
vista desses homens gays, o objetivo era romper um pouco a monotonia
e o elitismo da cena social de Caracas. Izaguirre descreve a mistura em
um dos clubes onde foi realizado o Caracas Mortal:

[...] nós nos enturmávamos com fãs de futebol brasileiros, travestis e pros-
titutas. O fotógrafo Fran Beaufrand, o estilista Ángel Sánchez e eu nos
alternávamos com os travestis, dando a eles conselhos sobre suas roupas.
Inclusive, eles nos explicavam gentilmente que queríamos vesti-los como
señoras e “isso, meu bem, é a morte” [para nós].(Izaguirre, 2000:230)

1. Este artigo é a tradução de Richard Miskolci de minha apresentação feita no Seminário Internacional Sexuali-
dades, Saberes e Direitos, na UFSCar, em agosto de 2010. O capítulo completo será publicado emQueen For
a Day: Transformistas, Misses and Mass Media in Venezuela, meu livro editado pela Duke University Press.
Discursos fora da ordem 60

Eso, mi amor, es la muerte. Até as transformistas da avenida Liber-


tadoras, que eram chamadas de moradoras de rua, eram colocadas na
mistura de Caracas Mortal. Edgar Carrasco, um dos organizadores da
festa, a descrevia como inspirada no Baile Preto-e-Branco de Truman
Capote em 1966. Izaguirre diz que eles foram influenciados tanto pela
Factory de Andy Warhol quanto pela publicação Madrid me mata. Eles
montaram listas de convidados que incluíram celebridades venezuela-
nas, intelectuais, moradores de rua, estudantes, transformistas, inclusive
Jacqueline Onassis e Raisa Gorbachev. Eles encontravam um lugar que
estivesse disposto a permitir o evento e organizavam-no em apenas dois
dias. A festa então acontecia e tornar-se-ia lendária.
Caracas Mortal é o tipo expressão que esse grupo de homens gays
usaria entre eles. É o tipo de humor que você inventa quando brinca
com o queer e a morte. Afetado. Sórdido. Um pouco mórbido. Quan-
do conheci Edgar em 2001, Izaguirre há muito havia se mudado para
a Espanha. Edgar havia se tornado um defensor dos direitos humanos
que trabalhou com HIV/aids e problemáticas LGBT por quase 30anos
na Venezuela. E eu estava lá, trabalhando com a organização de Edgar,
Acción Cuidadana Contra El SIDA, para desenvolver meu trabalho com
mulheres transgênero, ou transformistas2, e participantesde concursos de
beleza na Venezuela.
Como era minha primeira imersão na sociedade venezuelana, registrei
com atenção tudo que ouvi quando eram mencionadas beleza, moda, misses
ou transformistas. Então, quando Gaston, um de seus amigos, casualmente
disse que “La moda nace en Paris y muere en Caracas”, eu me fascinei com
essa imagem de um circuíto cultural que terminava na morte em Caracas.
Eu a ouvi repetidamentenesse grupo de homens e acreditei erroneamen-
te que era um ditado venezuelano. Não era. Quando eu perguntei sobre
ele, Gaston e Edgar disseram que o inventaram com seus amigos nos anos
1980. Eis uma armadilha para o método etnográfico: o sentido que você
faz é particularmente seu. Ainda assim, a frase permaneceu comigo – em

2. Na Venezuela, “transformista” é uma categoría de gênero que se refere a pessoas do sexo masculino que se
transformam em mulheres ou “meninas de aparência feminina”. O trabalho sexual muitas vezes é parte desta
identidade, mas é importante reconhecer que nem todas as mulheres trans da Venezuela são transformistas
tampouco trabalhadoras sexuais.
61 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

parte porque é uma das muitas expressões, como “Caracas Mortal”, que
(meio que alegremente) liga Caracas, a capital venezuelana, com a morte,
o fracasso e a desordem. Essa não é uma figura de linguagem incomum
na América Latina. No caso de La moda... e Caracas Mortal, a morte é
evocada pelo queer, mas também materializa a ideia de poluição, da con-
taminação de algo puro com algo impuro ou tabu.
Neste artigo, vou explorar a lógica cultural de morte e poluição na
qual um lugar como Caracas pode consumir a moda europeia por meio
da morte e então transformá-la, e propor o glamour como uma tecno-
logia de intimidade que media o espaço da morte venezuelana. Como
todo bom pervertido, devemos começar com um ato de poluição.

A poluição e o patrimônio nacional

A metáfora da poluição brotou aqui e ali durante meu trabalho de


campo na Venezuela entre 2002 e 2003, onde encontrei uma celebração
irreverente da poluição, inclusive quando as suas implicações negativas
eram explicitadas. Por exemplo, na cena final do documentário TRANS:
Lastransformistasde Caracas, de Manuel Herreros e Mateo Manaure
(1983), uma transformista chamada Venezuela (em si um ato de polui-
ção) lidera um grupo num mergulho dedicado à Era de Aquário em um
monumento nacional, a enorme fonte da Plaza Venezuela, ícone localiza-
do a algumas quadras da avenida na qual transformistas trabalhavam com
sexo e construíram sua lenda em Caracas por mais de 40 anos.
Elas caminham daavenida Libertador até o monumento, que é
marcado pelas cores mutantes da água na noite escura. Venezuela se
aproxima do pedestal da fonte, pega uma pequena placa e a aproxima do
chão, conclamando seus amigos. Eles seguem seu caminho até a fonte
arquitetural com o tráfego da Plaza Venezuela circulando em torno de-
les. Sem se darem conta eles escalam cada nível até finalmente atingirem
o espelho d’água e pararem, dramaticamente, na sua borda. A trilha so-
nora que toca ao fundo reforça a transgressão: ¿qué hiciste, abusadora?
Nesse ato, a transformista chamada Venezuela impõe sua nacionalidade:
ela e as suas são a Venezuela – quer você goste ou não.
Discursos fora da ordem 62

Então, como entender esse modo de falar ao poder, que reescreve a


nação e ao mesmo tempo a polui? Ou, no caso da multidão da Caracas
Mortal, que reescreve o eurocentrismo e ao mesmo tempo o polui? Don
Kulick e Richard Klein (2001) sugerem que a “reterritorialização da ver-
gonha” está presente na sua investigação do escândalo das travestis brasi-
leiras. De acordo com Kulick e Klein, uma travesti consegue exigir mais
dinheiro de um cliente por meio do escândalo, o que associa o cliente
aos seus próprios desejos, os quaissua sociedade condena. A fim de silen-
ciar o escândalo, o cliente entrega o dinheiro. Essa ideia de “reterritoria-
lização da vergonha” sugere um modo de trabalhar com o poder de um
ponto de desvantagem na lógica simbólica do gênero – basicamente pela
extorsão, com base no fato de que você, como uma trabalhadora do sexo
transgênero latino-americana, já é poluída e pode, então, contaminar. O
ato de poluição cometido pela transformista chamada Venezuela e suas
companheiras organiza essa técnica de modo diferente: elas “poluem”
simbolicamente o monumento nacional por meio desse ataque. Essa po-
luição expressa a mágica do contágio – o contágio da nação, no qual as
transformistas aparecem como moscas na sopa.
Foi esse movimento que me ajudou a entender que os meios que nós
temos para descrever mulheres transgênero, particularmente na América
Latina, frequentemente removem qualquer tipo de interpretação nacional,
política ou econômica, considerando-as como “simples” transgressoras de
normas de gênero ou como sintomas da ideologia concentrada do gênero.
Esse é o modo como Don Kulick notavelmente, mas não exclusivamente,
representa a comunidade de travestis em Salvador, Bahia. E nessa moldu-
ra, nós, dos estudos transgênero, podemos perder a oportunidade de con-
ceber as pessoas transgênero como sujeitos da nação (isso é algo que Susan
Stryker está fazendo muito bem agora, em seu trabalho sobre Christine
Jorgensen, nas Filipinas), e também desenvolver uma ótica queer baseada
no transgênero de como a nação é produzida. Em outras palavras, nós tira-
mos a nação do caminho quando falamos de sujeitos queere transgênero.
Eu desenvolvi o (trans)nacional como um modelo analítico para descrever
uma política de escala que incorporasse atos como a poluição da fonte na
Plaza Venezuela: ao mesmo tempo incorporado e extralocal em sua escala.
63 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Sobre o (trans)nacional

No projeto de livro do qual esse ensaio faz parte, dou atenção es-
pecialmente aos meios aplicados pelas transformistas para sobreviver a
essas forças mortais que encontram em seu dia-a-dia. No mesmo modelo
analítico, eu considero os modos pelos quais a Venezuela foi construída
como uma nação periférica no sistema mundial moderno, e os modos
como essa periferia foi contestada e reformulada através do concurso na-
cional de beleza. Por fim, tento entender os modos pelos quais essas áreas
discrepantes estão conectadas – como a perversão das pessoas e lugares
negocia sua existência continuada nos circuitos hostis de poder. Exploro
a lógica cultural que possibilita a ligação entre queer, morte e a nação
venezuelana, mas também sem considerar exclusivamente sujeitos queer
ou transgênero, como essa lógica de queer, poluição e morte funcionam
na construção de nação na Venezuela – ou como a Venezuela vem a ser
vista como um espaço de morte, fracasso e poluição: um lugar perverso.
Desse modo, estou fazendo essas indagações no nível do (trans)nacio-
nal – ou seja, embutindo aspessoas transgênero em lógicas existentes do
nacional ao invés de vê-las como exceção, e entendendo a nação como
um autoconstruto em economias transnacionais, tanto simbólicas quan-
to materiais. Enquanto isso se desenrola em uma paisagem confusa de
perspectivas contorcidas, de pequenos atos sobre o corpo a mobilizações
arrebatadoras de pessoas e tecnologias, desbravar esse terreno irregular
permite-me fazer ligações importantes por entre lugares sociais díspares.

Centro e periferia

Enquanto sujeitos queer e transgênero usam individualmente algo


como a lógica do Caracas Mortal para contestar e reinventar o espaço
de morte ao qual eles estão relegados na sociedade, meu argumento é
que a nação da Venezuela também emprega técnicas similares para cons-
truir sua própria autoridade em uma divisão transnacional do trabalho
que a transforma no que Anna Tsing (1993) chama de lugar “incomum”.
Desse modo, sugiro que a marginalidade seja algo que os sujeitos queer/
Discursos fora da ordem 64

transgênero e a nação venezuelana tenham em comum. Isso me forçou


a abraçar a metáfora de centro e periferia ao descrever relações de po-
der. Enquanto eu compartilho da crítica de nações totalitárias tanto do
centro quanto da periferia, também encontrei espaços nos quais o poder
absoluto do Estado combateu corpos não-conformes, onde tais corpos
foram interpretados como absolutamente periféricos perante qualquer
atividade econômica ou social que fosse normalizada e legitimada. En-
contrei a imposição de ideias eurocêntricas e caraqueñas de beleza nos
corpos por toda Venezuela, mas especialmente no que se chama el inte-
rior da Venezuela, as províncias, de uma perspectiva caraqueña, que se
considera central. Sendo uma formação geopolítica construída como um
espaço “periférico” em uma lógica de modernidade, a nação da Venezuela
contestou e reformulou seu estado periférico através de sua história.
Seguindo o trabalho de Michael Taussig em Shamanism, Colonia-
lism and the Wild Man (1986), afirmo que a violência colonial que for-
mou a Venezuela também a construiu como um espaço de morte e terror.
Para Taussig, o espaço de morte é o produto do processo inefável e super-
faturado de significação que emerge do terror da conquista e da violação
dos corpos dos colonizados. Ele descreve como o sistema de produção
colonial se baseava tanto na tortura quanto na reificação dos corpos indí-
genas na região produtora de borracha em Putumayo, Colômbia:

Ir aos índios por seus poderes de cura e matá-los por sua selvageria não
são atitudes tão distantes. De fato, tais ações não são somente interliga-
das, mas também codependentes – e é essa codependência que se tece de
forma assustadora quando consideramos quão tênue é a linha que separa
o uso dos índios como trabalhadores, por um lado, e como objetos míti-
cos de tortura,por outro.
O terror em Putumayo foi o terror dessa linha tênue, enquanto o capi-
talismo internacional convertia os “excessos” da tortura em rituais de
produção, não menos importantes que a própria extração da borracha.
A tortura e o terror não eram simples meios utilitários de produção. Eles
eram uma forma de vida, um modo de produção e, de várias formas, para
muita gente, os próprios índios eram o principal produto e insumo da
tortura e do terror. (Taussig, 1986:100)
65 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

De acordo com Taussig, as formas de alteridade encontradas no


projeto colonial povoaram o imaginário social do Ocidente em relação
ao espaço da morte: “Com a conquista e colonização europeias, tais espa-
ços de morte se mesclavam em um repositório de significantes-chave que
prendiam a cultura transformadora do conquistador à do conquistado”
(1986: 5). Canibalismo e sodomia. As figuras de linguagem da coloni-
zação espanhola da terra à qual chamavam Yndias. Nesse trabalho, sigo
Sharon Holland (2000) na localização do queer – o queer das pessoas
de cor nesse espaço de morte colonial. Enquanto Taussig desenvolve esse
conceito nas perversões de Putumayo (o que inclui as próprias tendên-
cias sodomíticas de Roger Casement, vide p. 13), é Holland quem or-
ganiza o espaço de morte como um meio de imaginar as possibilidades
falidas da subjetividade negra no imaginário nacional norte-americano.
Nesse projeto, ela faz o chamado que eu tento responder na Venezuela:

Se formos expandir a definição do queer para abrigar outros corpos, então


temos muito trabalho árduo a fazer aqui. Vamos precisar nos concentrar
no que realmente queremos dizer quando ligamos o corpo/sujeito queer
com os espaços do limiar. É mais que assustador pensar que tais espa-
ços do limiar poderiam tornar-se tão perigosos até tornarem-se a própria
morte. Eles representam um momento apocalíptico para o queer studies
e um desafio, de ler “raça” dentro da equação de suas origens. Os corpos
de Bill e Tupac são emblematicamente queer, pois se recusam a partir, e
ainda aqui vêm duramente macios, abraçando a contradição como se ela
fosse religiosa. O espaço da morte é marcado pelo ser negro e por isso já
é, desde sempre, queer. (Holland, 2000:180)

A convergência dos conceitos de queer, morte e nação não é aci-


dental, nem a convergência dos corpos racializados com o terror e o
fracasso em serem modernos. Nesses limiares sobrepostos, corpos e uni-
versos que são transformados no outro, no queer, e de outros modos
afastados no projeto normativo da construção nacional, continuam a
reaparecer, como tantas moscas na sopa nacional. Esses corpos inconve-
nientes emergem em espaços de abjeção e prestígio, nunca permitindo
à nação ser como gostaria de imaginar-se, como parte da modernidade.
Discursos fora da ordem 66

Esse projeto caminha pela linha tênue de uma contradição funda-


mental: as perversões da modernidade que busca a normalização, ou tal-
vez a extinção, de nossos corpos desalinhados, são também as perversões
nas quais nós produzimos nossa própria existência perversa de cor e que-
er. Existem muitos nomes para descrever os modos de negociação dessa
contradição – “desidentificação,” “chusmería”, “rasquachismo”, “queer
Latinidad”, “pós-colonialismo”. O que pretendo fazer nesse projeto é
delinear a paisagem de tal contradição, como a vi na Venezuela.
O trabalho que faço aqui é trazer a ótica de Holland de volta ao
espaço colonial de morte que (ainda) é a Venezuela – um movimento
perigoso que arrisca achatar as existências de transgênero, queer, negro,
indio e criollo em camadas de complexidade. Faço isso em honra da lógi-
ca canibalista que possibilita a Caracas tornar-se o lugar aonde a moda
parisiense vai para morrer.

A automontagem crioula

A nação venezuelana, a República Bolivariana da Venezuela, não


é um lugar incomum do mesmo modo que as Meratus highlands da
etnografia In the Realm of the Diamond Queen, de Tsing. Enquanto
partes da Venezuela certamente poderiam ser vistas desse modo agora,
e a região tem sido vista como marginal, periférica, ou incomum em
diversas iterações econômicas globais por toda a história da coloniza-
ção, a Venezuela se mostrou desde o século XIX como uma paisagem
criolla, muito engajada em círculos transnacionais de ideias, bens e
pessoas. Mary Louise Pratt (1992) descreve o projeto de “automonta-
gem crioula” em seu livro Imperial Eyes, referindo-se a vários intelectu-
ais latino-americanos da época, começando especialmente por Andres
Bello, um estadista fundador da nação venezuelana. Arevista Reperto-
rio Americano de Bello foi publicada na Europa, mas circulou entre a
elite euro-americana, ou crioula, que residia na Europa e nas Américas.
Ela tornou-se um lugar para que os revolucionários desenvolvessem
seu imaginário de paisagem, economia, filosofia política e nação na era
pós-independência.
67 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Inicialmente, pode parecer que as aspirações criollas de liberté,


egalité, fraternité são simples imitações do pensamento social e da ação
política da França (assim como sua estética política) em solo americano,
mas Pratt nos adverte contra esse ponto de vista. Ao invés disso, Pratt su-
gere que outro processo esteja acontecendo, o de “transculturação”, um
processo descrito pelo antropólogo cubano Fernando Ortíz em sua et-
nografia das indústrias de açúcar e tabaco cubanos, publicada em 1940.
As elites crioulas, de acordo com Pratt, “projetaram dramas morais e
cívicos na paisagem” (Pratt, 1992:188).

Pode-se pensar mais precisamente em representações crioulas de trans-


culturar materiais europeus, selecionando e organizando-os em modos
que não simplesmente reproduzam as visões hegemônicas da Europa ou
simplesmente legitimem os desígnios do capital europeu. (Pratt,idem,
ibidem)

Para compreender a lógica da dominação em um lugar como a Ve-


nezuela, devemos desenvolver meios de pensar sobre o poder que to-
mem em conta suas perversões, distorções e, especialmente, o lugar do
qual tal poder pode ser interrompido e transformado. Enquanto pode
parecer pouco claro inicialmente o que as participantes de concursos de
miss e transformistas venezuelanas têm a ver com Bolívar fantasiado de
Napoleão, a negociação da modernidade nesses corpos, e o modo como
esses sujeitos trazem à tona discursos transnacionais de gênero, raça e
nação em seus corpos, revelam a continuidade que une essas figuras.
A Venezuela é um local variegado, como uma folha estriada com
pigmentos. Aiwha Ong (1999) desenvolve a ideia de “soberania varie-
gada”, em seu livro Flexible Citizenship, para descrever zonas de cum-
plicidade entre Estado e capital, o que facilita a exploração de trabalho
e a mobilidade dos sujeitos privilegiados. Ong usa a diversificação como
metáfora para relações desiguais de poder. Na Venezuela, especialmente
em Caracas, a diversificação é uma topografia de situações desiguais de
marginalização, acúmulo, pobreza e privilégios. É nessa paisagem varie-
gada que uma estética de alto contraste se desenvolve: pobreza e luxo an-
Discursos fora da ordem 68

dam lado a lado, e sempre a um olhar esguio de distância uma do outro.


A diversificação é um meio para visualizar os padrões heterogêneos de
poder e pobreza, e enquanto imaginamos esse terreno desigual eu sugi-
ro que várias respostas a essa marginalização, colonialismo e exploração
tenham emergido desses sistemas de dominação. O consumo e a produ-
ção da beleza e da feminilidade têm trazido oportunidades para vene-
zuelanas, assim como à nação venezuelana, de capitalizar suas próprias
assimetrias de valor e centro como resposta aos processos de marginali-
zação. A história de Suana Duijm ilustra esse modo de capitalização das
assimetrias de valor para centralizar a si mesma.

A breve turnê europeia de Carmen La Sauvage

Duijm é a beldade venezuelana exótica clássica. A reputação das


misses venezuelanas “no cenário mundial” começa com ela. Uma criolla
alta (1,74m), cabelos negros, despretensiosa e desapegada, Duijm ainda
se porta com fácil confiança. Ela aparece como criolla em seu gosto sem
apologias pela estética, costumes e comida venezuelana. A construção
de seu criollismo se torna clara em seu tratamento público em relação a
qualquer coisa europeia, o que ficou mais claro durante sua breve viagem
pela Europa em 1955.
Duijm certamente não representava a maioria das venezuelanas
pobres ou trabalhadoras, mas ela apareceu vinda da classe média. Ela
era uma office-girl no concurso nacional de beleza, um concurso para
debutantes. Duijm representou o Estado de Miranda e chegou às finais
do concurso Miss Venezuela 1955, juntamente com a representante do
Estado de Bolívar e com Mireya Casas Robles, representante de Caracas
(portanto, da elite). Wolfgang Larrazábal, três anos antes do golpe de
Estado que o levou ao seu curtoperíodo na presidência da Venezuela,
ergueu-se entre os jurados e dizem ter proclamado que “Como único
oficial militar do júri, eu decido que a vencedora é Mireya Casas Ro-
bles”. Outra jurada, Carola Reverón, também se ergueu e contra-atacou:
“Como única mulher do júri, eu proponho que deixemos o público de-
cidir pelo aplauso”. O público, aparentemente, preferiu a morena Susana
69 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Duijm. Montaldo Pérez reconta que Duijm foi chamada india, negra,
fea e pata en el suelo (descalça) mas, de qualquer maneira, seguiu repre-
sentando a Venezuela no cenário global.
O reinado de Duijm como Miss Venezuela começou com uma
viagem a Long Beach, Califórnia, para o concurso de Miss Universo,
no qual ela chegou às semifinais. Ela foi coroada Miss Mundo naquele
mês de outubro e viajou para Londres e Paris antes de voltar a Caracas.
Foi capa da Paris Match, a única venezuelana a aparecer na capa, e era a
personificação da contradição entre os sistemas de valores criollo e euro-
peu. Altamente premiada por sua beleza, ela encantou os europeus, mas
dizem ter depreciado seus costumes, atenção e comida. Trabalhou como
modelo em Paris por pouco tempo após ganhar o título de Miss Mundo,
recebeu o apelido de "Carmen, a Selvagem" (Carmen la Sauvage) após
desfazer um penteado caríssimo, e após dez dias retornou a Caracas. Ela
estava farta do “mundo refinado” de Londres e Paris, e sentia falta de
suas caraotas (feijão preto) e de seus entes queridos.
Apesar de Londres e Paris, ela retornou para ser adorada como íco-
ne do entretenimento nacional. Ao posicionar-se como “selvagem” em
relação à Europa e como a encarnação criolla, Susana Duijm personifi-
cou um tipo de relação venezuelana com a modernidade que critica as
normas europeias ao mesmo tempo que as abraça e as incorpora. Duijm
pôde capitalizar no imaginário europeu da América do Sul, no qual pa-
receu “exótica” e “selvagem”. Ao mesmo tempo, ela era segura o suficien-
te para atuar reconhecidamente bem na Europa e na Venezuela. Ela é
“incivilizada” o suficiente para ignorar o valor de um caro penteado, mas
ela não está tão fora da lógica e da estética ocidental moderna a ponto
de tornar-se ininteligível como tal (negra, india, fea). Pois não importa
quão negativamente Duijm tenha sido retratada pela imprensa e pela
sociedade venezuelana após sua coroação, ela não é de fato nem india,
nem negra, mas enfaticamente criolla. A turnê europeia de Carmen La
Sauvage ilustra uma indiferença venezuelana em relação aos padrões eu-
ropeus que, em sua rejeição, também os abraça completamente. Por fim,
essa história não é uma liberação das normas colonialistas; é um modo
de compreender as negociações íntimas de modernidade, centro e peri-
Discursos fora da ordem 70

feria que ocorrem nos corpos das venezuelanas. Então como nós, assim
como Susana Duijm, vamos de Paris a Caracas? O que Duijm nos diz da
arte queer de morrer?
Duijm, diferentemente de Bill T. Jones e Tupac Shakur, não ne-
cessariamente se localiza no espaço da morte. Mas como Carmen la
Sauvage, ela responde às normas eurocêntricas capitalizando o excesso
de significados produzido pelo imaginário colonial. Ela incorpora, de
certo modo sem crítica, o canibalismo instigado por Oswald de Andra-
de no Manifesto Antropofágicode 1928. Mas ela o faz através do que eu
nomeio a tecnologia íntima do glamour. Enquanto há diversos modos
de contestar e reformular a marginalidade – resistência, revolução, opo-
sição, aculturação, sincretismo ou outros termos controversos –, quero
me concentrar especificamente no glamour como uma tecnologia de
intimidade, a qual marcou minha experiência com homens gays e mu-
lheres transgênero da América Latina, e com a Venezuela como cenário.

Glamour

Sim, o glamour – como um modo de reordenar espaço e tempo


(mesmo que temporariamente) em torno de si mesmo para fins de en-
cantamento. Izaguirre, como citado anteriormente, tem muito a dizer
sobre o assunto em seu livro de memórias, flutuando entre a narrativa
dos socialites eurocêntricos do século XX e suas próprias negociações
da fabulosidade na vida diária. De que outra maneira poderia o filho
sudaco3 de um arquivista de cinema infiltrar a sociedade espanhola tão
completamente a fim de tornar-se um ícone pop? O Oxford English Dic-
tionary define glamour como “uma beleza mágica ou fictícia anexada a
qualquer pessoa ou objeto, um charme atrativo ou ilusório”.
Enquanto o glamour corre o risco de ser revelado vazio, é ainda útil
como um meio de abrir espaço para si, digamos, para fazer uma entrada
(Gundle, 2008). Interessei-me pelo glamour como uma tecnologia de
intimidade na Venezuela após ler o livro de memórias de Boriz Izaguirre

3. Sudaco é um insulto espanhol dirigido a uma pessoa de origen sulamericana.


71 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

e observar o modo como as transformistas e os produtores e participantes


do concurso Miss Venezuela invocavam o glamour nas práticas diárias.
O glamour é algo liso e brilhante, evocado de várias formas, ne-
cessariamente mistificado e raramente teorizado de maneira sustentável.
Nesse projeto, eu considero o glamour, a beleza e a feminilidade como
tecnologias de práticas específicas, que resultam em elegibilidade social,
poder íntimo e, potencialmente, sobrevivência física em ambientes hos-
tis. Portanto, a produção do glamour, da beleza e da feminilidade fun-
cionam dentro das economias transnacionais de desejo e consumo. Den-
tro dessas economias, o glamour permite que seus praticantes obtenham
autoridade extralocal, materializando um espaço contingente de ser e
pertencer. Apesar disso, o glamour não é redentor, e não irá salvar você,
e é nesse ponto que se torna difícil explicar o glamour como política.
Como tecnologia de intimidade, o glamour pode funcionar para
criar facilmente espaços fora do discurso hegemônico, mas esse espaço
pode ser esmagado pelo poder do Estado, do patriarcalismo, da nor-
matividade ou do colonialismo com a mesma facilidade. O título do
livro que estou escrevendo, Queen for a Day, refere-se não ao programa
de televisão da década de 1950 no qual donas-de-casa ganhavam ele-
trodomésticos para facilitar seus trabalhos, mas sim à autoridade mo-
mentânea dada a um indivíduo que pode acessar a beleza, o glamour
e a feminilidade. Ser rainha por um dia, ou a reina de la noche, requer
grandes investimentos numa forma especial de corporalidade hiperfe-
minina, o que implica uma recompensa que é altamente contingente em
poder patriarcal e reconhecimento. Apesar disso, é uma forma de poder
que serve às transformistas e a outras mulheres venezuelanas diariamen-
te para fornecer elegibilidade, autoafirmação, renda e outros elementos
necessários à sobrevivência. Como uma figura que medeia a marginali-
dade na Venezuela, a Miss permite diversas possibilidades de resposta
na negociação do poder transnacional e local. E como ela transita pelo
espaço da morte, como visto nos cerros [morros]de Caracas, os corpos
das transformistas e o imaginário europeu de selvageria, podemos ver
o que acontece com a beleza, o glamour e a moda quando eles entram e
emanam do espaço da morte. Estendo a metáfora de rainha por um dia
Discursos fora da ordem 72

à própria nação venezuelana, em sua própria negociação de periferia e


poder no cenário global.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Oswald de. “The Cannibalist Manifesto”.Translated by


Stephen Berg.Third Text, 92-96, 1999.
GUNDLE, Stephen. Glamour: a history. Oxford: Oxford University
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HOLLAND, Sharon Patricia. Raising the Dead: Readings of Death
and (Black) Subjectivity.Durham: Duke U Press, 2000.
IZAGUIRRE, Boris. Morir de glamour. Madrid: Espasa Calpe, 2000.
KULICK, Don; KLEIN, Charles. “Scandalous Acts: the Politics of
Shame Among Brazilian Travesti Prostitutes”. In: HOBSON, Barba-
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Nacional de la República Bolivariana de Venezuela, Cinemateca Nacio-
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Durham: Duke U. Press, 1999.
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PRATT, Mary Louise. Imperial Eyes: Travel Writing and Transcultura-
tion. London: Routledge, 1992.
TAUSSIG, Michael. Shamanism, Colonialism, and the Wild Man: a
Study in Terror and Healing. Chicago: University of Chicago Press,
1986.
TSING, Anna. In the Realm of the Diamond Queen. Princeton, NJ:
Princeton U. Press, 1993.
Brasileiros/as no atravessar das fronteiras:
(des)organizando imaginários1

Iara Beleli

Quando se vive no Brasil, não há propriamente hipótese de escolha. Céu


azul, areia branca, flores laranja, papagaios amarelos...
a cor está por todo o lado e envolve-nos de optimismo, de felicidade... e
faz tão bem!
Esta alegria de viver contagiosa deu origem às novas
Havaianas Top Mix.
Para fazer este modelo, a marca brasileira Havaianas juntou todas as cores
do Brasil, misturou os tons como se de vitaminas se tratassem.
O resultado:
Basta ter umas Top Mix nos pés para sentir uma energia incrível.
Os efeitos são imprevisíveis porque, no Brasil, as cores têm efeitos ligeira-
mente diferentes do que nos outros países:
Por lá, o laranja dá vontade de dançar o samba.
O verde, de deitar-se numa cama de rede.
O roxo, de colher nozes de coco.
O vermelho, de passear de biquíni.
O amarelo, de falar com as catatuas.2

1. Agradeço as sugestões de Adriana Piscitelli, Taddeus Blanquet e Ana Paula Silva à primeira versão deste texto.
A elaboração do texto final se beneficiou das discussões empreendidas no I Seminário de Estudos sobre Imigra-
ção Brasileira na Europa (Barcelona, 25-27/11/2010), do qual participei com apoio da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
2. Segundo o dicionário Houaiss, catatua é um pássaro, mas também pode se referir à “mulher mais velha que se
veste de forma espalhafatosa”.
Discursos fora da ordem 74

O preto, de festejar durante toda a noite.


O rosa, de exibir-se como uma estrela em Copacabana.
Com a mistura das Top Mix podem imaginar o resultado...
Preto + Vermelho + Amarelo:
falar com uma catatua durante toda a noite de biquíni.
Roxo + Laranja + Verde:
dançar com uma noz de coco numa cama de rede.
Rosa + Verde + Branco:
exibir-se numa cama de rede em Copacabana.
(http://activa.aeiou.pt)3

Se essa campanha se afasta da antiga combinação “mulata-cachaça-


futebol” para definir o Brasil, outra entra em seu lugar: “samba-biquíni-
Havaianas”. A evocação do cenário tropical aparece como algo que sedi-
menta o diagnóstico de felicidade, de otimismo, dos/as brasileiros/as, mas
vai além. Este cenário marca a particularidade de mulheres brasileiras, dis-
poníveis para uma conversa noite adentro, vestindo biquíni e de sandálias
Havaianas, evocando uma simpatia que, mesmo não nomeada, segundo
Padilha (2007:124), diferencia os brasileiros de sul-americanos ou latino-
americanos, como se “fosse uma qualidade inerente, quase genética...”.
Nesse sentido, este artigo busca refletir sobre como essa particula-
ridade, recorrente nas variadas mídias, é apreendida pelas narrativas de
“migrantes”4 brasileiros em Lisboa, cujas atividades não conferem cen-
tralidade ao corpo. Através da articulação de marcadores de diferença
– gênero, raça/cor/etnia, sexualidade (Brah, 2006) – a análise percorre
as falas dos/as interlocutores/ras desta pesquisa à luz do que as mídias
marcam como modos de ser nacional.
A maior circulação de bens, produtos e pessoas no crescente pro-
cesso de internacionalização tem dado maior visibilidade ao Brasil em
Portugal. Se os números oficiais de migrantes brasileiros em Portugal
são efêmeros, dada a constante mobilidade para outros países europeus
e à migração ilegal, sua presença pode ser sentida em vários setores – de

3. Ação veiculada pela Activa na campanha das havaianas em Portugal (03/05/2010).


4. A denominação “migrantes” remete à “transitoriedade”, marcada pelos interlocutores desta pesquisa.
75 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

trabalhadores de mesa (garçons, pizzaiolos, cozinheiros) a profissionais


do sexo, contextos bastante explorados pela literatura.
Os interlocutores desta pesquisa não foram a Portugal em busca
de um upgrade econômico, não tinham intenção de migrar e a maioria
vivia em Lisboa com bolsa de estudos, alguns conquistaram postos de
trabalho que, de alguma forma, os diferenciava de migrantes inseridos
em atividades muito aquém de suas qualificações, como apontam vários
autores (Padilha, 2007; Malheiros, 2007). Para elas/eles, Lisboa signifi-
cava um lugar que lhes propiciaria uma formação profissional, aumen-
tando seu capital cultural, ainda que ao longo do percurso não estives-
sem certos de que a experiência profissional em Lisboa ou o fato “ter um
diploma europeu” fossem um diferencial na volta ao Brasil5.
As estratégias de interação desse grupo, num primeiro momento,
parecem ter sido pautadas pela construção de “comunidades imagina-
das” em diáspora ( Jeffres, 2000; Anderson, 2005) para, posteriormente,
adotar uma atitude de integração, evidenciando dinâmicas de represen-
tação de identidades (Pires, 2003). Nessas dinâmicas, a evocação da na-
cionalidade permeia as narrativas, em geral, como crítica às representa-
ções que circulam nos meios de comunicação, que remetem a um estilo
de vida – modos de andar, de vestir, de falar –, que (re)cria e difunde va-
lores, comportamentos, pensados como próprios das/os brasileiras/os.

Mediações

Uma peça importante nesse jogo de construção de imaginários é


a mídia. Intencionalmente ou não, a mídia difunde visões de mundo
que oferecem sentido à vida das pessoas, função antes atribuída à famí-

5. A pesquisa de pós-doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Su-
perior (Capes), em convênio de cooperação internacional Pagu/ISCTE(Instituto Universitário de Lisboa
- ISCTE-IUL). Entre janeiro e abril de 2008 entrevistei 14 brasileiros/as (12 mulheres e 2 homens), três
mulheres e dois homens portuguesas/es (exceto no caso de duas interlocutoras, naquele momento todos/
as estavam inseridos em programas de pós-graduação). Paralelamente, fiz um levantamento de produtos de
mídia mencionados nas entrevistas ou que mereceram destaque em veículos dirigidos aos meios (atualizado
até meados de 2010). Agradeço a Margarida Moz, Paula Togni, Maria Manuel e Vanda Silva por facilitar o
contato com os primeiros entrevistados/as, possibilitando a formação de uma rede. Agradeço especialmente
a Antonia Pedroso de Lima que, além da recepção calorosa no ISCTE, sugeriu formas de lidar com situações
conflitantes que se apresentaram na pesquisa de campo.
Discursos fora da ordem 76

lia, à escola, às religiões. Nesse sentido, a produção de notícias, imagens,


merece uma observação vigorosa, na medida em que implica também a
produção, transmissão e “mercantilização” de formas simbólicas, o que
Thompson (1998:24) chama de “midiação da cultura”. Segundo o autor,
“cada vez mais, a cultura acontece por meio da mídia” (idem), de forma
que as manifestações culturais só são reconhecidas ao serem incorpo-
radas pela mídia, resultando na produção de uma “cultura midiática”.
Como aponta Martín-Barbero (2006:69), “os agentes da comunicação
deixam de figurar como intermediário e assumem o papel de mediador”.
A alardeada “natureza sensual e exótica da mulher brasileira”, na
maioria das vezes associadas a corpos “morenos”, se justapõe à “marca
Brasil” dentro e fora do país. Em pesquisa realizada na cidade do Porto,
Igor Machado (2009) conclui que os imigrantes brasileiros são percebi-
dos pelos portugueses como exóticos, associados ao samba, ao futebol, à
sexualidade e à mestiçagem. Nessas associações, alguns adjetivos são des-
tacados: sensuais, doces, alegres, felizes e simpáticos, privilegiando os/as
brasileiros/as na disputa por trabalhos que exigem contato com o públi-
co, não só no comércio, mas também no cuidado com os idosos e crianças
(Fernandes, 2008). A “alegria” é um atributo também marcado por es-
trangeiros entrevistados por Piscitelli (2004) em pesquisa sobre turismo
sexual realizada em Fortaleza. Mas vale o alerta da autora ao destacar que
“alegria, malemolência, receptividade” não deixam de adquirir conota-
ções de “imprevidência, irresponsabilidade, passividade e indolência”.
No Brasil, a associação ao exotismo e à sexualidade privilegiou a
“mulata” como objeto de desejo em várias manifestações culturais – lite-
ratura, poesia, música, dança (Corrêa, 1996) – e, até pouco tempo, sua
imagem era utilizada como alvo da propaganda oficial para estimular o
turismo internacional, mas nos últimos anos mudanças podem ser sen-
tidas. Imagens de mulatas sexualizadas foram paulatinamente substituí-
das por imagens de mulheres percebidas como “brancas”, enfatizando a
alegria do povo brasileiro, evocada em propagandas de lugares turísticos
do Brasil, particularmente o Nordeste, veiculadas na Europa6.

6. Em outro contexto, “a vocação inata do Brasil e dos brasileiros para a felicidade” é um dos argumentos utiliza-
do por Juan Arias, articulista do El País, para explicar a escolha do Rio de Janeirocomo sede dos Jogos Olímpi-
77 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Festivos e simpáticos, alegres e receptivos são adjetivos que suge-


rem certa submissão a estereótipos que marcam a distinção das mulhe-
res brasileiras e, ancorados na nacionalidade, criam uma identidade a
partir da naturalização desses atributos. A análise de Luciana Pontes
Pinto (2005) foi inspiradora nesta questão. Apesar de não ser central
em seu trabalho, a autora analisa como alguns produtos brasileiros apre-
sentados na publicidade portuguesa se ancoram em cargas simbólicas
de forma a criar modos de ser brasileiro, particularmente de ser mulher
brasileira. Concordando com a análise de Machado e Piscitelli, Pinto
(2005:242) reafirma que as noções de “um corpo, um jeito diferente”,
que remetem a um discurso sexualizado, são compartilhadas por suas
entrevistadas também como um marcador de diferença em relação às
mulheres portuguesas, apresentadas como “arrogantes... agressivas, do-
minadoras e conservadoras”.
A diferença, estabelecida em relação a outras identidades, é um
processo social e simbólico em contínua construção, como aponta Woo-
dward (2000:17):

a representação, compreendida como um processo cultural, estabelece


identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela
se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que
eu poderia ser? Quem eu quero ser?

Os chamados à “identificação” nas variadas mídias são estendidos


aos grupos e, transmutadas no filtro dos agentes de comunicação, ao in-
vés de questionar, informam quem você é, o que você pode ser e quem
você gostaria de ser.
O “conservadorismo” das portuguesas foi explicitado pelas narra-
tivas ao evocar o episódio que ficou conhecido como as “mães de Bra-
gança”, cidade localizada à Nordeste de Portugal. Ao constatar que seus

cos de 2016, vencendo a disputa com Madri, Chicago e Tóquio: “Assim são os brasileiros. São mergulhadores
no mar da felicidade e, como não escondem isso, acabam contagiando os outros. Sem dúvida esse contágio
também teve a ver na hora da votação em Copenhague”. ARIAS, Juan. “O que explica Rio-2016? A vocação
inata do Brasil para a felicidade”. El País, Madrid, 14/10/2009. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/
midiaglobal/ elpais/2009/10/14/ult581u3555.jhtm>. Acesso em outubro de 2009.
Discursos fora da ordem 78

maridos frequentavam uma boate ligada à prostituição, esse grupo de


mulheres reivindicou das autoridades a expulsão de prostitutas brasilei-
ras ilegais. Na extensa cobertura da mídia sobre o caso, o episódio me-
receu capa da revista Time. Se a matéria aponta para as distintas nacio-
nalidades das prostitutas (Leste Europeu, Brasil e África), a imagem da
capa é de uma brasileira de 27 anos, reiterando as afirmações das “mães
de Bragança” de que o “problema” é com as brasileiras7.
O caso, ocorrido em abril de 2003, teve decisão judicial em julho
de 2007, condenando o empresário Camilo Gonçalves a nove anos de
prisão e ao pagamento de 1,8 milhão de euros ao Estado pelos crimes
de lenocínio (fomento da exploração) e apoio à imigração ilegal8. Nas
matérias publicadas sobre a decisão, alguns articulistas apontaram para
a “severidade” da punição, alegando que não havia evidências de que as
prostitutas eram forçadas a realizar o trabalho. Outros argumentos tam-
bém explicitaram dúvidas sobre a decisão. Taxistas e cabelereiras entre-
vistadas reclamaram da perda da clientela: “Prostituição tem em todo
lugar... seria melhor que o dinheiro tivesse ficado por aqui... agora vai
para Espanha”, disseuma entrevistada, referindo-se ao local para onde
as prostitutas se transferiram, já que Bragança fica a apenas 15 minutos
de carro do país vizinho, e sugerindo que os maridos das “mães de Bra-
gança” não deixaram de sair com prostitutas, apenas tinham agora que
atravessar a fronteira9.
A produção de imagens/informações orienta de alguma forma,
distintas percepções de si e dos “outros”, assim, a “mensagem deve ser
analisada não em termos da ‘mensagem’ manifesta, mas em termos de
sua estruturação ideológica” (Hall, 2002:64). Se a construção dos sen-
tidos organiza ações e percepções, (re)criando identidades nacionais a
partir da representação, isso não significa que a recepção das mensagens
é única (Thompson, 1998), tampouco está paralisada no tempo.

7. Segundo Feldman-Bianco (2001), os imigrantes brasileiros são percebidos pela primeira vez como um “pro-
blema” no início dos anos 1990, devido ao processo de proletarização. No caso das “mães de Bragança”, a
reivindicação estava claramente associada ao trabalho sexual.
8. Cf. <http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia>. Acesso em 17/09/2008.
9. Esse caso, mesmo passados alguns anos, também foi o mais lembrado pelas brasileiras entrevistadas por Valdi-
gem (2006), em pesquisa sobre os usos dos media.
79 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

As notícias sobre o caso das “mães de Bragança” mostram como a


organização das percepções pode ser modificada. Se o foco inicial das
mídias associava a imigração ilegal ao aumento da prostituição (Ferin,
2006a), após o desfecho do processo, a notícia passa a dar maior ênfase
ao trabalho forçado, que não se restringe a essa atividade, sugerindo que
a prostituição pode ser legítima, desde que não haja coação. O segundo
argumento, de certa forma, também legitima a prostituição, ao apontar
para as perdas financeiras dos prestadores de serviço no seu entorno. Na
mudança de enfoque, a nacionalidade das prostitutas não é mencionada,
coincidindo com as recomendações de Rui Marques – na época, Alto
Comissário para a Imigração e Diálogo Intercultural –, que esteve à fren-
te da preparação do Ano Europeu do Diálogo Intercultural (2008), con-
vocando os meios de comunicação a evitar as “as armadilhas do valor-no-
tícia: diferente, estranho e exótico” e empreender esforços no sentido de
erradicar a utilização de categorias grupais, como “ciganos” ou “negros”,
ou enquadrar os sujeitos a partir de determinados comportamentos10.

Contrastando imaginários

Apesar das recomendações do Alto Comissariado, a imagem da


mulher brasileira em Portugal está associada com o estereótipo da pros-
tituta (Padilla, 2007:125). Um programa infantil – exibido em 6 de ja-
neiro de 2008 pela TV SIC (Sociedade Independente de Comunicação)
– mereceu contestação da Associação dos Pesquisadores e Estudantes
Brasileiros em Coimbra:

Um avião sobrevoa o Nordeste brasileiro, quando dois passageiros vesti-


dos de executivos (interpretados por crianças) iniciam um diálogo:
– A intenção é dar a conhecer a nossa agência de viagens e os nossos ser-
viços, apesar de o Brasil ser um destino turístico cada vez mais procurado.

10. Em matéria veiculada pelo jornal Público (14/11/2007), Rui Marques salientou a centralidade dos produtores
de mídia na promoção do diálogo intercultural e da tolerância, referindo-se à importância do trabalho dos
jornalistas portugueses. Apesar do discurso de integração e de algumas ações promovidas pelo Alto Comissa-
riado em 2008, este ano foi marcado pelas mudanças de discursos políticos de líderes de vários países europeus
no tocante à restrição da imigração (ver Togni, 2008).
Discursos fora da ordem 80

A nossa tarefa não vai ser nada fácil.


– Compreendo senhor diretor.
– Estamos a concorrer com produtos turísticos de todo o mundo num
país com milhões de habitantes, com maioria de pobres e analfabetos.
– Compreendo senhor diretor.
– E tratar de negócios quando desce o dólar é um perigo. Basta conhecer
a realidade social do Brasil de hoje.
– Aí já não posso falar. Eu nunca vim cá, mas pelo que já ouvi dizer o
Brasil é só prostitutas e futebolistas.
–Isto também não é bem assim, olha que a minha mulher é brasileira.
– Ah é sim? Em que clube ela joga?
(Programa “Mini Malucos do Riso” 11.)

Independentemente do fato de existirem brasileiras que vêm para


Portugal trabalhar como prostitutas e jogadores de futebol disputados
pelos clubes internacionais, essas atividades não constituem uma prerro-
gativa de quaisquer culturas ou nacionalidades. Neste caso, a linguagem
do humor, apresentada de forma a desqualificar os sujeitos (Zemon-
Davis, 1995), marca atributos que hierarquizam nações e profissões,
na medida em que um dos interlocutores está seguro que a mulher do
amigo é jogadora de futebol, profissão pouco usual para mulheres, e não
prostituta12.
No Brasil, as representações de portugueses, desde a Monar-
quia, remetem à pouca inteligência, à “ignorância” (Feldman-Bianco,
2001:420). O estereótipo de “burro”, recorrente nas piadas cotidianas
sobre portugueses, é suavizado por Fabiana (em Lisboa há quatro anos13,

11. “Os Malucos do Riso”, levado ao ar aos domingos, às 21 horas, é a série de humor mais antiga da SIC (no ar
desde 1995) e consiste na dramatização de anedotas populares referente aos alentejanos, às loiras, à mercearia,
entre outras. O sucesso desta série levou à criação de outras versões, entre elas, “Os Mini Malucos do Riso”. No
Brasil, o programa guarda semelhança com o “Zorra total”, exibido pela Rede Globo aos sábados à noite.
12. A Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros em Coimbra (APEB-Coimbra) solicitou a retratação
do canal televisivo mediante requerimento encaminhado diretamente à emissora e denúncias à Entidade Re-
guladora para a Comunicação, notificando o ocorrido ao Ministério das Relações Exteriores, ao Ministério
do Turismo, à Embaixada do Brasil em Portugal, ao Consulado do Brasil em Lisboa, ao Consulado do Brasil
no Porto, à Casa do Brasil em Lisboa e à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Até o final de 2009,
apenas a Entidade Reguladora respondeu a solicitação, afirmando que iria averiguar o ocorrido.
13. O tempo de permanência no país tem como referência o ano de 2008 e se aplica a todos/as entrevistados/as.
81 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

doutoranda em História, branca, cabelos castanhos claros, olhos acara-


melados, 1,70m, do Paraná):

O início foi bem difícil, eu não entendia o que falavam e eles se irritavam
com o meu “o quê?”... se eles entendiam tudo o que eu dizia, porque eu
não conseguia entender eles, acho que era isso que irritava... também ti-
nha a coisa muito formal, por exemplo, se eu queria tomar um café com
um colega, eu logo convidava e aquilo parecia para ele um evento, ou uma
cantada, e não, eu só estava convidando para um café mesmo... isso me
parecia meio burro, quero dizer, tinha que dizer, explicar, que só queria
mesmo tomar um café, continuar a discussão da aula, coisa que no Brasil
é comum fazer depois da aula...

Fernando (músico catarinense, branco, olhos claros, 35 anos, em


Lisboa desde 2000) também se decepcionou com o que encontrou em
Lisboa, pois esperava uma realidade bastante diferente do Brasil:

...tem aspectos positivos, tem boas pessoas aqui... fiz bons trabalhos,
mas aqui parece muito o Brasil em determinados aspectos... um país tão
corrupto quanto o Brasil, já foi o mais rico... a quantidade de ouro que
tiraram do Brasil, as riquezas da África e está complemente arruinado,
a coisa não funciona, tem uma burocracia impensável... não tem um pen-
samento linear, dá mil voltas para chegar ao ponto... são muitas reuniões,
mas o trabalho em si é muito pouco... se perdem na sua própria burrice...
vou falar uma coisa, agora entendo o porquê do imaginário de português
burro, que tanto se ouve em piadas no Brasil... faz sentido! Prá você ter
uma ideia, eu prestei um concurso para dar aula no Estado e tive que fazer
uma prova de língua portuguesa, junto com os ucranianos... o que era um
absurdo, porque essa deveria ser a nossa vantagem, ou o que eu achava
que era uma vantagem, o fato de já sabermos a língua.

Fernando explicita seu estranhamento de “sentir-se estrangeiro”,


pois a escolha de Portugal como país de destino foi pautada não só pela
facilidade de comunicação, mas também por achar que o compartilha-
Discursos fora da ordem 82

mento do passado dos dois países poderia ser um fator que amenizaria
as dificuldades de estar longe de casa. A nostalgia de Fernando parece
estar acompanhada de um sentimento ambíguo. Ao mesmo tempo, ele
acredita que a ida a Lisboa foi a melhor decisão para impulsionar sua
carreira de músico, mas seu olhar se torna melancólico ante a perda do
que imagina não ter vivido no Brasil (Appadurai, 1996).
Quanto às imagens das brasileiras na mídia, Fernando compactua
com ideia de que as mulheres, “de cara”, tem que desconstruir o imagi-
nário de sensualidade, e aponta para as diferenças entre as comunidades
migrantes, afirmando que os/as brasileiros/as são mais respeitados que
os africanos, e estes geram menos desconfiança que os ciganos14. A per-
cepção de Fernando ecoa as análises de Machado (2009), em pesquisa
realizada na cidade do Porto, ao apontar que os brasileiros se encontram
numa posição intermediária, o que reitera a análise de Corrêa (1996)
para o Brasil – uma maior rejeição à “negra... preta”.
Em entrevista a mim concedida, uma publicitária portuguesa, par-
te da equipe de uma importante agência de publicidade, afirma que o
estereótipo da “mulher sensual” é recorrente em propagandas de produ-
tos brasileiros ou portugueses que se ancoram em imagens de brasileiras,
mas ela explica que a utilização de modelos (Daniela Cicarelli, Juliana
Paes, Ivete Sangalo) está vinculada ao apelo das novelas – “não estamos a
partir do zero”, diz ela. Além disso, “é mais barato”, comparado às portu-
guesas que se destacam na cena cultural lisboeta. A publicitária também
aponta diferenças quanto às comunidades migrantes: “os africanos são
um folclore... tens a negra quase nua com o rabo empinado, os brasilei-
ros... há um desconhecimento profundo do que se passa no Brasil... tudo
que é Brasil dá ideia de vida boa”.
Esses imaginários, segundo Joice (de Minas Gerais, há cinco anos
em Lisboa, cabelos pretos, curtos e anelados, olhos castanho-escuros,
pele clara, mestranda), são acionados em ambientes distintos. Dois epi-
sódios vividos por ela merecem destaque:

14. Para Cabecinhas (2003), os ciganos são vistos com o menor status social pelos portugueses. Sobre a diferença
de percepções de comunidades migrantes pela mídia portuguesa, ver Ferin (2006a).
83 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Estava com meu orientador no café da universidade e chegou um outro


professor. Fui apresentada como mestranda, meu orientador explicou
minha pesquisa [sobre migração brasileira em Portugal], mas marcou
que eu era brasileira. O professor perguntou:
– Ah! E tem mais mulheres ou homens migrantes?
– Desde 2003, as mulheres são maioria.
Com ar satisfeito, o professor disse: “Ah! Isso é muito bom”.
Por sorte, meu orientador foi rápido e disse:“São exatamente essas ques-
tões e comentários que ela está analisando...”, o que gerou uma situação
meio constrangedora...

No segundo episódio, ela narra:

Eu trabalhava em um restaurante e o gerente me convidou uma vez para


sair, quando recusei, ele saiu pela tangente e disse que eu havia entendido
mal, que ele estava convidando todo mundo para uma confraternização,
mesmo assim eu recusei. Dias depois ele me convidou novamente para
sair e eu de novo recusei. Um dia eu terminava de almoçar, quando o
restaurante já estava fechado, e ele me disse que queria comer uma sobre-
mesa e pediu uma sugestão, eu disse que não sabia e ele respondeu: “Você
é que não é, né?”.Eu disse a ele que tomasse cuidado com as palavras, pois
eu podia processá-lo por assédio, e ele respondeu: “Que é isso, menina!
Você é brasileira, é mais fácil eu te processar por assédio”. O clima foi fi-
cando cada vez pior, e a angolana que estava na cozinha se fingiu de mor-
ta, claro! Ela não podia mesmo falar nada, estava ilegal ainda... No final,
ele pegou a colher do meu prato e disse: “Vou usar essa colher mesmo,
voce não fez nada com seu namorado hoje pela manhã, não é?”.

Os contextos distintos não impediram que a nacionalidade e os


atributos a ela imputados fossem acionados. No primeiro episódio – um
encontro entre intelectuais – poderia ter sido acionada a hierarquia da
relação professor/aluna, no entanto, a nacionalidade permite o comen-
tário do professor – “é muito bom que tenha mais mulheres que ho-
mens migrantes” –, que, segundo Joice, jamais seria feito se a aluna fosse
Discursos fora da ordem 84

portuguesa. A gravidade do segundo episódio é evidente e parece estar


marcada na intersecção de classe, gênero, nacionalidade, sexualidade. A
angolana “se fingiu de morta”, segundo Joice, porque estava ilegal, mas
certamente a questão racial/étnica, na intersecção com outros marcado-
res de diferença, é um fator que pode provocar acirramento da subalter-
nidade. A legalidade de Joice possibilitou uma reação aos despautérios
de seu chefe, mas não podemos abstrair outros fatores que, certamente,
influenciam as interações: sua branquitude e o fato de estar inserida na
academia, marcando distinções de raça e classe.

Protocolos para o flerte

Se as percepções e autopercepções marcam lugares sociais mais ou


menos valorizados no mundo do trabalho, isso se estende às relações afe-
tivas e amorosas. Mesmo levando em conta que as identidades são histo-
ricamente construídas em cada grupo, as noções do que é “diferente” e do
que é “igual” são acionadas a partir de discursos e de visões de mundo pro-
duzidos pelos sistemas de representação simbólica, incitando os sujeitos a
se posicionar, se “identificar” com determinados perfis de forma a assumir
uma cultura, um povo, uma “comunidade imaginada” (Anderson, 2005).
Joice mostra como são acionadas essas representações de ambos os lados:

O fato de ser brasileira me ajudava para o mercado de trabalho, eu era


bonitinha, simpática, eu fui muito assediada, muito mais que no Brasil...
e usei isso em vários momentos. Em trabalho de férias na Alemanha num
parque de diversão, o grupo contratado para o trabalho... dormiam todos
juntos em uma casa, parecia um big brother, e eu fiquei amiga de uma por-
tuguesa, mas que era negra, e todo mundo achava que eu era portuguesa e
ela era brasileira. Um dia fomos para uma festa e fiquei muito interessada
no DJ, que só me deu bola quando minha amiga portuguesa disse que eu
era a brasileira... até então ele estava flertando com minha amiga.

Se a mestiçagem, antes recorrente, já não está no centro das ima-


gens que divulgam o Brasil no exterior, o par cor/sedução, que muitas
85 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

vezes independe da “aparência” (Fry, 1995/1996), é um forte compo-


nente na percepção do Brasil. O DJ se surpreende com a desorganiza-
ção de seu imaginário, pois para ele a negra foi associada imediatamente
à brasilidade, mas rapidamente aciona outros atributos, a exemplo da
sensualidade, segundo Joice, marcada pelo jovem após algumas horas de
conversa. De outro lado, a própria entrevistada afirma ter utilizado o
imaginário que se tem das brasileiras – festivas, simpáticas – para facili-
tar sua entrada, e permanência, no mercado de trabalho, construindo o
que Machado (2009) chamou de “identidade-para-o-mercado”.
Além das entrevistas, acompanhei Joice e outras interlocutoras
desta pesquisa a vários lugares – cinema, bares, restaurantes, cafés, te-
atros –, percebendo, de um lado, as diferenças entre os relatos no con-
texto da entrevista e as performances em outros contextos; de outro, a
imagem que elas e eles fazem de si e a que os/as portugueses/as fazem
deles/as. As conversas entabuladas nessa interação marcaram o modo
particular de ser brasileiro – alegre, otimista, mesmo ante as adversida-
des. Quando eu insistia para que dessem exemplos dessa particularidade,
os comentários das portuguesas vinham em uníssono, aqui traduzido na
narrativa de Maria João (26 anos, portuguesa do Norte, doutoranda, em
Lisboa desde 2004), que se diz “apaixonada pelo Brasil”:

...vocês têm uma forma de usar as coisas... as roupas, os adereços... que


fica diferente... vocês andam diferente, vocês tem gingado no andar, vocês
encaram as pessoas no olho, as portuguesas não fazem isso... isso é ser
sensual. E não sei porque vocês brasileiras se incomodam tanto com essa
imagem, imagine a gente... a gente tem que provar que não é feia, que não
tem bigode e que pode ser sensual, eu prefiro que pensem de cara que eu
sou sensual...

A morenice parece ser suplantada pela hexis corporal15 – o “re-


quebrar dos quadris” agrega um novo item à particularidade nacional,
marcando e naturalizando a diferença. Se o depoimento de Maria João

15. Hexis corporal remete à inculcação do habitus bourdieriano, queinclui posturas, gestos, e se associa a signifi-
cados e valores sociais que se realizam na, e pela, prática (ver Bourdieu, 2006).
Discursos fora da ordem 86

positiva a “sensualidade” das brasileiras em contraste com a “falta de


sensualidade” das portuguesas, outros destacam como esta imagem é
pernóstica, dificultando as interações. Madalena, única entrevistada au-
todeclarada negra (de São Paulo, cabelos encarapinhados e volumosos,
mas com movimento, pele amarronzada, glúteos avantajados, 38 anos,
em Lisboa há três anos), narra as percepções de colegas e professores:

Eles vêm atrás do estereótipo, mas quando convivem comigo eles veem
que não tem nada a ver... e se surpreendem, claro que depende da experi-
ência que eles têm de conhecer outras mulheres, pode ser do Brasil ou da
Europa mesmo, digo fora de Portugal... o estresse é quando eu percebo
que eles e elas também já fazem a referência direta com a “Gabriela, cravo
e canela”, e já ouvi de portuguesas coisas como “onde tem uma brasileira,
tá tudo tramado, elas vêm para seduzir nossos homens”... fui elegante, mas
deixei de barato, o que me rendeu, depois, muitos pedidos de desculpas.

“Gabriela, cravo e canela” – imagem di-


fundida pela novela16 baseada no livro
de Jorge Amado – é ainda muito lem-
brada pelos portugueses, na chave da
exotização, e pelas portuguesas, na cha-
ve da concorrência. Se a cor de Madale-
na não passa despercebida, o comentá-
rio da portuguesa, mesmo com
posterior pedido de desculpas, parece
alocar na brasilidade ações que inde-
pendem da cor. O diagnóstico “elas
vem para seduzir nossos homens” é
confirmado pela revista portuguesa Focus (agosto de 2010)17 e, diferen-
temente de uma conversa estabelecida em um pequeno grupo, ganha as
bancas de revistas, disseminando tal ideia – “Eles adoram-na, elas
odeiam-na”.

16. Sobre a presença das novelas brasileiras em Portugal e seus impactos na noção de brasilidade, ver Ferin (2005).
17. Agradeço a Paula Togni, que fotografou a capa da revista.
87 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Mesmo não entrando no conteúdo da matéria, a capa em si chama


a atenção pelo vínculo de uma parte específica do corpo que resume os
“segredos da mulher brasileira”. A imagem é similar à descrição da publi-
citária sobre o estereótipo das africanas evocado na propaganda – “rabo
nu e empinado”. No entanto, a bunda empinada e arredondada oferecida
ao leitor é parte de um corpo “moreno”, talvez por isso entre na chave da
concorrência, porque está em um continuum de cor mais aceito. Mada-
lena, mesmo se afirmando como “negra”, afirma que percebe a rejeição
às “mais negras”:

eu sinto a diferença na rua, como minha pele é mais clara, não chama
muito a atenção, e quando começo a falar, eles e elas já sabem que sou bra-
sileira e aí já relacionam com o que pensam que brasileiras são... também
tem a questão do gueto, os brasileiros estão mais espalhados pela cidade,
os africanos ficam mais juntos.

Apesar de em nada se parecer à imagem veiculada na capa da revista


Focus, a “brasilidade” de Mariana (de Minas Gerais, loira, olhos acarame-
lados, 1,65m, em Lisboa há dois anos) era recorrentemente acionada. Na
“noite africana” do “Ciclo Outras Lisboas”18 observei seu sucesso entre os
rapazes, que a disputavam para dançar, ao que Mariana atribuiu a “uma
sensualidade... a uma forma de expressão corporal que eu acho que atrai, o
jeito de dançar, talvez um jeito mais espontâneo”. Sem se dar conta, Maria-
na reitera a imagem da brasileira sensual que ela própria detecta, e critica,
na mídia. Ao mesmo tempo, ela evoca, no contraponto, sua percepção das
mulheres portuguesas como “mais fechadas”, o que estabeleceria a dife-
rença de protocolo para o flerte, no qual brasileiras seriam “mais abertas”.
A maioria das pessoas presentes no local poderia ser percebida
como negra, mulata ou morena. Mariana afirma que talvez ela tivesse se

18. O “Ciclo Outras Lisboas”, parte das comemorações do Ano Europeu do Diálogo Intercultural (2008), promo-
veu palestras, eventos, shows e festas, dedicando uma semana a cada comunidade migrante: África (14 a 24 de
fevereiro), Europa do Leste (6 a 15 de março) e Brasil (17 a 28 de abril). Conversas informais, pautadas por
críticas a esse Ciclo, apontam para a institucionalização da diferença, provocando hierarquias entre nacionais e
imigrantes, diferente do discurso de diálogo cultural impulsionado pelo Alto Comissariado. Essa ideia é corrobo-
rada por Togni (2008) em pesquisa sobre os fluxos matrimoniais transnacionais entre brasileiras e portugueses.
Discursos fora da ordem 88

destacado pela sua cor clara, “o contraste sempre é destacado”, diz ela, mas
lembra que os pares de dança se surpreenderam no início da conversa, ao
perceber que ela era brasileira. O alto grau de teor alcoólico de um dos
seus pares de dança (português), aliado à descoberta de sua nacionalida-
de, pode ter influenciado, segundo Mariana, “o comportamentoincove-
niente” de querer dançar de forma que os corpos ficassem muito colados.
De forma ambivalente, Mariana marca sua sensualidade particular e, ao
mesmo tempo, tenta se distanciar do imaginário “brasileira fácil”.
Mariana narrou outro episódio, segundo ela, desconfortável. Fazia
muito calor, ela estava no comboio (trem) e usava um vestido indiano de
alcinha, deixando parte de seu colo discreto à mostra. Um jovem senhor,
sentado à sua frente, perguntou se ela era brasileira e, ante sua confirma-
ção, ele tentou entabular uma conversa, que ela considerou pouco usual,
dada sua dificuldade em estabelecer conversas mais pessoais com seus
colegas na universidade. A primeira pergunta foi justamente se ela era
casada. Ela percebeu isso como uma espécie de assédio, cortou a conver-
sa e mudou de lugar.
Outras entrevistadas brasileiras e portuguesas atribuem essa forma
de abordagem mais direta, “atirada”, aos brasileiros, diferente da maioria
dos depoimentos que apontam para o “tempo excessivo” que os homens
portugueses levam para assediar uma mulher, marcado de forma mais
evidente no depoimento de Joice:

Eu nunca namorei com nenhum português, nunca me atraiu... quase na-


morei um, ele tinha 26 anos... mas perdi a paciência, porque depois de
cinco encontros e muitos cafés ele disse: “Apetece-me imenso beijar-te se
não estiver sendo um bocado precipitado” [risos]... era Eça de Queiróz
baixando no sujeito.

Fernando também marca as diferenças de abordagens nas relações


amorosas entre portugueses e brasileiras: “Os portugueses abordam de
forma oculta, não é tão direto, mais postura, gestos... são outros padrões,
outras formas de expressar... o brasileiro é mais claro, tá interessado?
Olha, conversa... aqui o processo é mais lento...”.
89 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

De outro lado, as narrativas apontam que essa forma “atirada” dos


portugueses quando se trata de brasileiras é também marcada pela forma
de ser das portuguesas. Se as mídias insuflam a disponibilidade das bra-
sileiras para o sexo, Fernando coloca essa questão em perspectiva com o
imaginário das mulheres portuguesas: “No Brasil, você cruza na rua com
uma mulher e ela te olha no rosto, mesmo que não tenha interesse. As
portuguesas, em 99% dos casos, olham para o chão e isso eu vi acontecer
comigo e também com amigos portugueses”. A narrativa de Fernando
ecoa nas análises de Pinto (2005:242) ao reafirmar que as noções de “um
corpo, um jeito diferente”, que remetem a um discurso sexualizado, são
compartilhadas por suas entrevistadas também como um marcador de
diferença em relação às mulheres portuguesas.
Corroborando as percepções de Fernando, Clara (de Santa Catari-
na, pele clara, 1,80m, olhos marcantes, cabelos longos e cuidados, chefe
de escritório de uma empresa de obras, em Lisboa há dois anos) narra
conversas informais com amigos portugueses:

–As raparigas [moças portuguesas] não enfrentam o olhar, elas podem


estar interessadas, mas baixam o olhar, podem até pensar “te comia todo”,
mas fazem de conta que não é com elas, às vezes, olham até com nojo...
–E as brasileiras são diferentes, se gostam, elas encaram, eu gosto disso,
porque aí eu tenho coragem de chegar, coisa que com as portuguesas é
bem mais difícil. O que não quer dizer que a brasileira está completamen-
te disponível para sexo...

Clara concorda com a fala dos amigos portugueses e afirma ter


percebido, mais de uma vez, esse desvio de olhar. Ao conversar sobre
isso com uma colega de trabalho portuguesa, percebeu que

há uma forma de ser que é para o outro [masculino]... e minha amiga diz
que o homem português pode ficar atrás de quem encara o olhar, mas
não se casará com essa mulher, quando ele quer algo mais sério, ele vai
bem devagar.
Discursos fora da ordem 90

Ao longo da narrativa, Clara se diz confusa, pois sabe que seu jeito
espontâneo, falante e de olhar o outro no olho marca uma identidade,
muitas vezes percebida, e positivada, pelos portugueses com os quais
convive também como “sensualidade”. No entanto, o diagnóstico da
amiga sobre quem os homens portugueses, de fato, levam a sério, algu-
mas vezes a faz duvidar de seu comportamento, de modo semelhante às
narrativas apresentadas na pesquisa de Ferin (2006). Como pergunta
minha interlocutora: “Para ser levada a sério preciso deixar de ser eu?”.
Ainda no tocante ao flerte e às relações afetivo/amorosas ou de
amizade entre brasileiras e portugueses, uma narrativa se destaca. Cata-
rina (de São Paulo, pele clara, estatura mediana, formas arrendondadas)
veio trabalhar em Lisboa a convite de uma empresa de telecomunica-
ções, por seu desempenho na área no Brasil. Diferente do deslumbra-
mento de algumas interlocutoras com o fato de “terem conseguido estar
na Europa”, ela não tinha certeza se queria trocar São Paulo por Lisboa,
mas acabou “colocando na balança” e percebeu que a relação custo-be-
nefício lhe era favorável, não só pela questão econômica, mas também
por ter uma experiência profissional internacional em seu currículo, o
que lhe permitiria alçar outros vôos.
Durante a entrevista, Catarina se mostrou focada no trabalho e
sem interesse em estabelecer relações amorosas com portugueses, o que
aguçou minha curiosidade – “Por que não com os portugueses?”:

Olha... sei que estou aqui porque tenho uma especialização que eles pre-
cisam, mas mesmo assim eles me vêem como menos, porque sou do Bra-
sil, é como se eles ainda pensassem que são os colonizadores... o tempo
todo tenho que ficar reafirmando que fui convidada... eu não batalhei por
este trabalho, eles foram me buscar no Brasil... e não tenho culpa se eles
têm pouca gente capacitada nessa área. Por isso eu evito ter relações com
os portugueses... parece que eles ainda pensam o Brasil como colônia...

Catarina mostra conhecimento sobre a história das relações entres


os dois países e está segura que algumas áreas estão mais desenvolvidas
no Brasil, o que gera certo desconforto, porque muito além da compe-
tição, para ela,
91 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

os portugueses sabem que estão ficando para trás em todos os sentidos.


E isso eu digo também porque eles mesmos se desvalorizam... por isso
eu nunca quis namorar um português. As pessoas que namoram gente
de outras nacionalidades... quero dizer, não é qualquer nacionalidade...
tem que ser assim inglês, francês, italiano, da comunidade [europeia]...
são mais valorizadas por eles e eu senti isso quando apareci com um na-
morado inglês.

A separação da afetividade das relações profissionais desorganizou


o imaginário da simpatia, da conversa fácil, como aparece de forma con-
tundente na ação das sandálias Havaianas. O namorado inglês aumen-
tou seu “capital social” porque, segundo ela, “para os portugueses, a In-
glaterra ainda é pensada como um império na Europa, um império que
eles não conseguiram constituir, apesar de terem tido todas as chances
para isso com as riquezas que trouxeram do Brasil e da África”.

Considerações finais

Essas imagens estabelecem a distância entre um “nós” e os “ou-


tros” nas relações entre portugueses/as e brasileiros/as. No entanto, a
nacionalidade aparece intersectada às marcas de gênero e sexualidade,
e a cor parece não fazer tanta diferença, na medida em que a maioria
das mulheres aqui entrevistadas podem ser facilmente percebidas como
brancas (inclusive pela diferença estabelecida pelos/as portugueses/as
em relação às africanas), algumas muito altas, o que difere do imaginário
veiculado pelas mídias de que o que vem do Brasil é “mulata, pequena,
com jeito de nordestina”.
Se os encontros faceaface desorganizam esses imaginários, outros
são construídos. Mariana e Fernando apontam para a questão da identi-
dade, pois, apesar de serem identificados como estrangeiros, suas aparên-
cias não coadunam com imagens de brasilidade que circulam nas variadas
mídias, gerando um duplo estranhamento (ser estrangeiro e não corres-
ponder ao estereótipo de brasileiro) – no revés da dificuldade de ser eu-
ropeu e negro (Gilroy, 2001), ser brasileiro e branco. Nessa negociação,
Discursos fora da ordem 92

Fernando lamenta e se recusa a ter que explicar sua branquitude ques-


tionada pela nacionalidade. Mariana aciona a sensualidade, o “jeito de
ser da brasileira”, marcado enfaticamente pelas/os interlocutoras/as desta
pesquisa, para compensar a falta de melanina. A branquitude de Maria-
na e a negritude de Madalena parecem não fazer diferença na percepção
dos/as portugueses/as, que acionam a hexis corporal, os modos de andar,
de vestir, de falar, mas particularmente de olhar... para marcar a diferença.
Se os estereótipos não são incorporados da forma explícita, como
aparece na ação das Havaianas, eles dialogam com a percepção de imi-
grantes e nacionais, marcando a interação entre esses sujeitos. Para Mada-
lena, o fato de ser imigrante brasileira aparece em primeiro lugar – se sua
cor não passa despercebida, ela é apenas mais um item que pode exacer-
bar a “sensualidade inerente das mulheres brasileiras”. A diferença natu-
ralizada, informada pela circulação de textos e imagens veiculados pelas
variadas mídias e, em alguns casos, autoinformada remete a um imaginá-
rio cujas formas e gestos corporais parecem enunciar fantasias, desejos...
Tomar esses imaginários como apreendidos de forma única leva à
recorrente culpabilização das mídias, como se, de um lado, os produtores
de mídia inventassem dados, situações, fatos; e, de outro, como se os su-
jeitos fossem passivos ante as imagens a que são expostos cotidianamente,
ideia há tempos contestada pela literatura. O “requebrar dos quadris” e
a forma de “encarar o outro no olho” se constitui como marca nacional
aos olhares forâneos, agregando novos itens à particularidade nacional,
de modo que a morenice parece ser suplantada pela hexis corporal, racia-
lizando a nacionalidade. Essa racialização, associada a corpos “morenos”
ou não, particulariza formas e gestos corporais, um “capital social” que,
atribuído ou autoatribuído, estabelece diferenças em vários protocolos.
Voltando à questão inicial, essas diferenças ora parecem facilitar,
ora dificultam interações e interlocuções. Algumas enunciações reitera-
das pelos media são incorporadas pelos sujeitos, não necessariamente para
facilitar a entrada no mercado de trabalho, mas como forma de facilitar o
reconhecimento daquilo que eles/as imaginam que se pensa deles/as. Esse
ponto de partida, muitas vezes não calculado, resulta em situações ambí-
guas que reiteram imaginários de brasilidade, mas também os desorgani-
93 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

zam. Essa desorganização posta nas narrativas, muitas vezes impulsionada


pela agência dos sujeitos, permite contestar os estereótipos que apresen-
tam “mulheres brasileiras” como “catatuas”, dispostas a voar para qualquer
parte com quaisquer parceiros a qualquer hora do dia ou da noite.

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Estranhezas que roubam a cena:
entre celuloides, tapetes e closes

Karla Bessa

Celuloides

Já nos indagamos sobre a pertinência de atrelarmos determinadas


sensibilidades e estéticas a uma dada identidade. Haveria uma estética
gay? Uma sensibilidade queer? Se houvesse, qual seria seu fundamento?
A análise que proponho desenvolver neste artigo segue outro roteiro de
questões. Menos voltada para a descrição e circunscrição de identidades
que gestam, promovem e frequentam as edições do Festival Queer de Ci-
nema de Lisboa, a leitura, seja dos filmes ou do festival, não elaboraqual-
quer tipode fundamento da sensibilidade ou estética cinematográfica seja
glbt ou queer. A questão mais ampla que percorre todo o meu campo de
pesquisa sobre festivais e filmes – cujo circuito é denominado indie (ou
alternativo) em contraposição ao cinema comercial ou mainstream– é a
criação e gestão de políticas e códigosde visibilidade difundidos nos pró-
prios termos de instituições e agentes que se autonomeiam queer.
No interior deste recorte figuram outras relevantes inquietações de
natureza ético-política, refiro-me às disputas, enunciadas no interior do
repertório cinematográfico estudado, em relação à liberação do desejo e
da sexualidade. Interessa-nos pensar o quão submetidas e/ou subversivas
elas estão em relação às convenções de um simbólico fálico, binário e hete-
ronormativo, regulador das práticas morais e estéticas subentendidas nas
imagens e enredos fílmicos. Lado a lado à problemática da liberação, há os
Discursos fora da ordem 98

processos de normalização afirmados, questionados, invisibilizados através


do jogo entre cena/encenação.Em outras palavras, o diálogo com os filmes/
Festival Queer Lisboa visa retomar a noção de “materialidade do simbóli-
co”, partindo do suposto de que o imaginário e o simbólico estão em diá-
logo contínuo, redimensionando-se mutuamente (Metz, 1980). Trago em
mente a indagação: quais relações entre imaginário e simbólico estão sendo
elaboradas duranteoFQL1? Esta aproximação inicial com a semiologia de
Metz pode supor um retorno ao estruturalismo enquanto referencial teóri-
co dos Estudos Fílmicos. No entanto, a utilizo apenas como ponto de par-
tida, poiso leitor perceberá que o decorrer da análise que segue é marcado
pela compreensão pós-estruturalista, que considera a relação tempo/espa-
ço uma referência importantepara realizar a aproximação entrea análise das
imagens, a Teoria Queer e a conjectura específica do Festival Queer Lisboa.
Nesta coletânea de artigos sobre sexualidade, saberes e direitos, várias
outras pesquisas, como as realizadas por Adriana Vianna e Rosa Oliveira
tratam depolíticas públicas e sobre a relação entre Estado e configuração
de direitos. Nessas pesquisas, tanto a questão simbólica quanto o imagi-
nário estãopresentes, embora não sejam evidentes no primeiro plano. Ao
tratar de filmes e festivais, é comum estabelecer uma imediata correlação
com o simbólico. No entanto, as aproximações entre a minha e as outras
pesquisas são maiores do que pode parecer à primeira vista, pois ao traba-
lhar com filmes e festivais também lidamos com o lado “material” das rela-
ções de produção que os transformam em produtos consumíveis. Alguns
dos festivais de cinema glbt e queerdependem de políticas públicas para
existir, como é o caso do Queer Lisboa, que recebe incentivo cultural e
financeiro proveniente de verbas destinadas às artes e à cultura portugue-
sa. O mesmo acontece com parte da produção fílmica deste circuito, pois
sãomajoritariamente produções independentes que contam com algum
tipo de auxílio de políticas públicas ou culturais. Ou seja,mesmo quan-
do estamos na sala escura do cinema, dispersos e entretidos, não estamos
livres de toda a presença da máquina (simbólica e material) do Estado.
Paralelamente, ambos os textos acima mencionados citaram filmes, cenas

1. Utilizarei a sigla FQL para referir-me ao Festival Queer Lisboa. Quando a sigla vier acompanhada de um
número (ex. FQL 08), este fará referência à edição do Festival.
99 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

e se remeteram a imagens como recurso de inteligibilidade, reforçando


aquelas falas presentes no filme Celluloid Closet (Rob Epstein e Jeffrey
Friedman,EUA, 1995, Doc.) de que o cinema moldou e molda muito da
nossa sensibilidade. Reporto-me a este exemplo introdutório apenas para
reforçar a importância, já reconhecida pelo próprio movimento glbt, de
uma política de representação e expressão que façacontraponto às ima-
gens/imaginário predominantes (reiterativamente presente nas várias
mídias – outdoor, comercial,novela,rádio – e que se estende na trama do
filme, que por sua vez é reencenado ou parodiado no teatroda escola pri-
mária e simulado no videogame da geração teen). Invisibilidade (queer) em
contraste com a hipervisibilidade heteronormativa e falocêntrica.
A partir desta constatação é possível conjecturar que o dar a ver
e ser visto ocupa largo espaço no nosso cotidiano, daí tantas disputas e
redes, uma verdadeira indústria do fazer-se notar. Ao lado disso, ainda
temos o jogo real/virtual a abrir novas arestas no arranjo e composição
das imagens. O inspirado diálogo de Zizek com o que ele denominou
de hiper-realismo no filme Videodrome (e em eXistenZ), de D. Cronen-
berg, acrescenta a essamirada a relação entre tecnologia e corporalidade,
apontando para uma inquietante tendência contemporânea de querer
ultrapassar os limites impostos pela anatomia humana, ou seja, as restri-
ções decorrentes do orgânico. O biotecnológico2 traduzido na arte cine-
matográfica brinca com as fronteiras entre as ciências biológicas, físicas,
exatasehumanas. Nosso devir neste segundo milênio insufla os sentidos
do olhar. O olho dignificou-se no melhor suporte de mediação entre
real/virtual por sua fenomenal adaptação à simulação tridimensional.
Imersa nesta multiplicidade de possibilidades, uma determinada
filmografia busca seu lugar ao sol. Inicia com certa timidez, atacando
primordialmente o objeto cênico, o enredo, ou seja, tenta produzir ima-
gens ainda não vistas na grande tela, mas ao realizar esta tímida emprei-
tada desaba em um efeito colateral: ao mexer no que há para ser visto
acontece, em alguns casos, o deslocamentodo próprio modo de ver.

2. Em 2008 a Caixa Cultural realizou no Rio de Janeiro uma mostra da filmografia de D. Cronemberg. No link
abaixo encontram-se artigos que fazem um grande diálogo com o cinema autoral de Cronenberg, passando
tanto por leituras mais psicanalíticas quanto históricas. Destaque para o artigo de Ivana Bentes. Cf. <http://
www.carneviva.com/textos.html#artigoivanabentes>.
Discursos fora da ordem 100

Isso nos coloca diante do potencial dos Estudos Fílmicos, numa


ótica queer, para perceber a dinâmica de investimentos em visibilidade,
promovida pelos movimentos, pela comunidade ou simplesmente por
adeptos individuais da vida gay, lésbica, transgênera ou das praticas se-
xuais dissidentes. A injunção da visibilidade gerada pela sociedade do es-
petáculo gerou nos grupos e comunidades minoritários a procura pelos
holofotes. Os Festivais LGBT iniciaram suas edições justamente com
essa missão de disseminação e publicização. Imagens, cenas e cenários
destinados a provocarem estranhamentos, pois acreditava-se que o fato
de estranhar desafiaria nossa automaticidade nos processos de decodi-
ficação, tornando os atos de ver e olhar menos mecânicos. Em outras
palavras, os festivais e o crescimento vertiginoso sofrido nos últimos 20
anos na produção fílmica com temática LGBT equeerestá em estreita
correlação com uma clara percepção de que a mídia, a produção de ima-
gens e a manipulação e apropriação de imaginários marcados por gênero
constituem um espaço concreto de disputas simbólicas e merecem toda
a atenção de práticas que se pretendem subversivas, no sentido de provo-
carem outros entendimentos a respeito da naturalização e normalização
da (hetero/homo)sexualidade e das hierarquias nas relações de gênero.
Sendo assim, para fechar esta breve introdução sobre a presença do
cinema na formação da nossa sensibilidade, gostaria de citar um breve
trecho do crítico e historiador Ismail Xavier, que aborda a relação entre
produção de imagens, formas de recepção e de divulgação. Trata-se do seu
artigo “Cinema: revelação e engano”. Ao refletir sobre as diferenças entre
posturas cinematográficas distintas, tais como a defesa de Eisenstein da
produção de significados a partir da montagem e da proposta de Bazin de
deixar que a imagem ganhe a cena sem muitas interferências (a valorização
dos planos longos), Xavier aborda justamente os mecanismos produtores
da verdade da imagem ou da crença na verdade que emergiria da imagem.
Uma das razões de ser da crítica de arte, e do cinema em especial, seria a
de chamar a atenção para as artimanhas do enquadramento, ou seja, os
recortes que nos fazem ver desta ou daquela maneira e que criam a ilusão
de autenticidade conferida à imagem. Os Estudos Fílmicos estariam na
encruzilhada entre, de um lado, oselementos, técnicas e estratégias de me-
101 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

lhoria na arte de iludir e, de outro, os acessos a estes meios, possibilitando


sua (auto)desconstrução crítica. Afinal, como afirma Xavier: “Para iludir,
convencer, é necessário competência, e faz partedesta saber antecipar com
precisão a moldura do observador, as circunstâncias da recepção da ima-
gem, os códigos em jogo” (Xavier, 1983: 369; Novaes, 1988).
Dessa reflexão mais ampla sobre as potencialidades de lidar com o
imaginário e o simbólico, desenvolveu-se toda uma literatura e a formu-
lação de um subcampo disciplinar em torno dos Estudos Fílmicos, sub-
divididos em feministas (Laura Mulvey, Teresa de Lauretis, bell hooks, E.
Ann Kaplan,Jane M. Gaines), gay e lésbico-feminista (Vito Russo, Paul
Julian Smith, Robert James Parish, P. Parmar, Harry Benshoff, Alexan-
der Doty) e queer film studies ( Ruby Rich, Richard Dyer, Sean Griffin,
Andrea Weiss, Ellis Hansan, Chris Berry).Nestes estudos, as análises con-
seguiram ir muito além da descrição,realçando a maneira como os filmes
apresentam visões estereotipadas das relações de gênero e performances
sexuais.Laura Mulvey realizou um trabalho pioneiro na problematiza-
ção tanto de narrativas quanto da técnica visual, sobre a construção do
“voyeurismo” como prerrogativa masculina.Junto com Metz, argumenta
que o cinema une a formação do ego, narcisismo, com a constituição de
imaginários e do simbólico, acrescentando a noção de que este simbólico
está pautado pela diferenciação de gênero.Na década de 1990, a produ-
ção bibliográfica que apontava para uma releitura do cinema, chamava
atenção para aspectos até então pouco trabalhados, por exemplo: as re-
lações entre as fantasias, pensadas como constitutivas do universo gay, e
as atuaçõesdeatores e atrizes,tais como Judy Garland, Elizabeth Taylor,
Joan Crawford, Catherine Deneuve, que se tornaram ícones do gayness
(estilo gay) e do imaginário lésbico. Demarcaram ainda leituras de perso-
nagens e narrativas envolvendo monstros, fluidos e filmes de terror, que
lidam com metáforas imagéticas para abordarem aspectos menos visíveis
da sexualidade (lésbicas vampiras, gays) e os “medos” que aterrorizam
nosso imaginário. Há também estudos que se dedicaram à história de
filmografias locais (o cinema gay português, a personagem homossexu-
al no cinema brasileiro, a constituição da “comunidade gay” americana
etc.).Estudam as potencialidades dramáticas e narrativas do cinema.
Discursos fora da ordem 102

O recorte que trago neste artigo se insere na perspectiva dos Es-


tudos Fílmicos queer, com a especificidade, no entanto, de tentar aliar
a análise fílmica propriamente dita com aspectos associados à dinâmica
de produção deste lugar histórico (os festivais existem desde final dos
anos 1970 nos EUA) de projeção e divulgação de filmes que são os fes-
tivais. Apresentarei aqui parte das reflexões geradas a partir de umapes-
quisasobre o Festival (de cinema) Queer Lisboa.

Tapetes

Ao visitar a cidade de Lisboa em 2009 para acompanhar a realiza-


ção do FQL, percebi logo na entrada do Cine Teatro São Jorge3 a pre-
sença de cores que acenavam para a preparação cênica do que estaria nas
telas durante os próximos cinco dias de festival. A troca do histórico
“tapete vermelho” por um imenso tapete lilás e a decoração floral que
tomou conta do cinema anunciavam a atmosfera disruptiva evocada
pela filmografia, salas de debate e exposições fotográficas inseridas na
programação do FQL. A ironia está na literalidade da ocupação de um
dos espaços mais tradicionais da cidade de Lisboa como lugar central
da realização de um festival de cinema voltado para sexualidades dissi-
dentes. Um certo ar transgressorconfortavelmente instalado na tradição
deu o tom do paroxismo que parece representar o FQL para a cidade e
para os próprios organizadores. Para adentrar o seio deste contrassenso,
recorro a uma brevíssima exposição histórica sobre a formação do FQL.
O festival teve sua primeira edição em 1997, numa década que repre-
sentou o boom de festivais gays pela Europa e EUA, e se chamava Festival
Gay e Lésbico de Lisboa.Este primeiro festival abordou vários temas can-
dentes na época, como travestismo, gays negros (Looking for Langston),

3. De acordo com o site do Cinema São Jorge, trata-se de um dos mais renomados cinemas da cidade de Lisboa.
“Situado na artéria central da cidade e considerado o mais emblemático dos cinemas de Lisboa, o Cinema
São Jorge foi inaugurado em 1950, segundo projecto da autoria do Fernando Silva, que lhe valeu o Prémio
Municipal de Arquitectura (atribuído em 1951). Como polo central da actividade cultural da urbe, o Cinema
São Jorge apresenta, hoje, uma programação eclética, ao longo de temporadas anuais que têm na sua essência
a apresentação dos principais festivais de cinema da cidade, para além de inúmeras ante-estreias cinematográ-
ficas, concertos de música e espectáculos de teatro”.
103 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

sadomasoquismo, história do movimento gay (Before Stonewall e After


Stonewall),biografias de gayse lésbicas famosas, enfim, foi uma primeira
edição bastante panorâmica, com primazia dos grandes documentários e
ficções ligados ao universo gay e lésbico, já consagrados por outros festi-
vais do gênero. O filme de abertura dessa primeira edição foi The Celluloid
Closet, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman. O filme é uma produção que
parte de fragmentos de 120 filmes produzidos entre 1895 e 1995, para
abordar as visões de Hollywood sobre a homossexualidade e a forma
como o cinema americano a concebeu e apresentou ao público.O festival
utilizou o mote do filme e organizousessões dedicadas à história (homena-
gens) do cinema que enfrentou o tema do sexo (amor) entre iguais (same
sex desire), de maneira frontal ou lateral, trazendo filmes de diretores po-
lêmicos como Pasolini, Antonioni, Hitchcock, Derek Jarman, Kenneth
Anger, entre outros.Abaixo, organizei uma lista de filmes e temas para ter-
mos uma ideia geral de como foi esta primeira edição do festival:

Filmes e temas

1) Travestismo
Glen or Glenda (EdWood Jr.,EUA, 1953)
Privates on Parade (Michael Blakemore, Inglaterra, 1992)
The Rocky Horror Picture Show ( Jim Sharman, Inglaterra, 1975)

2) Universo gay negro


Lookingfor Langston (Isaac Julien,Inglaterra,
1988)

3) Hermafroditismo/intersexualidade
L´Hypothese Hemaphrodite (Alain
Burosse,França, 1997)

4) Drag Queen
Paris is Burning ( Jennie Livingston, EUA,
1991)
Discursos fora da ordem 104

5) Biografias de gays e lésbicas famosos


Daddy and the Muscle Academy (Ilppo Pohojola,EUA, 1992)
Tiny and Ruby- Hell DivinWomen (Greta Schiller e Andrea Weiss,
EUA, 1988)

6) Sadomasoquismo
Noir et Blanc (Claire Devers,França, 1986).

7) Aids/SIDA
The Dead Boys Club (Mark Christopher, EUA, 1992)
Des Majorettes dans L´Espace (David Fourier, França, 1996)
The Last Supper (Cynthia Roberts, Canadá, 1995)

8) Crítica à cultura gay correcta (gay correctness)


Gay a Tout Prix (Laurent Baccall e Philip Brooks, Paris, 1997)

9) História do Movimento Gay


Before Stonewall (Greta Schiller e Robert Rosenberg, EUA, 1993)
Eurogayvision ( Jean Baptiste R&K, França, 1997)
Queer Son (Vickie Seitchik, EUA, 1994)
The Boys in the Band (William Friedkin,EUA, 1970)
105 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

10) Homenagens
Um Chant d’Amour ( Jean Genet, França, 1950)
Les Diaboliques (Henri-Georges Clouzot, França, 1955)

Couch (Andy Warhol, EUA, 1964)


Teorema (Pier Paolo Pasolini, Itália, 1968)
Scorpio Rising (Kenneth Anger, EUA, 1963)
The Children’s Hour (Willam Wyler, EUA, 1962)
The Dammed (Luchino Visconti, EUA/Itália, 1969)
The Rope (Alfred Hitchock, EUA, 1945)
Sebastiane (Derek Jarman, Inglaterra, 1976)
Mishima: A life in Four Chapters (Paul Schrader, Inglaterra, 1985)

O que importa destacar a partir desta variedade temática e diversi-


dade temporal representada na escolha dos filmes é que o festival tentou
cobrir boa parte da filmografia existente até o momento, priorizando
aquelas já consagradas pelos outros festivais da mesma natureza. Hou-
ve uma preocupação por buscar filmes legitimados pelos festivais gays e
lésbicosinternacionais, porém completamente desconhecidos do gran-
de público (gay e straight) português. Diretores como Derek Jarman,
Kenneth Anger e Isaac Julien tornaram-se verdadeiros ícones do cinema
gay masculino na Europa e, de alguma maneira, alguns dos seus filmes-
representam o que Richard Dyer nomeou de filmografia pós-afirmativa,
ou seja, aquela que permite o diálogo interno crítico e cultiva uma certa
autoironia e não se intimida ao trazer para a tela desejos eróticos muitas
vezes tidos como excêntricos ou perversos, relações amorosas e sexuais
nada convencionais, enfim, configuram um conjunto de imagens cho-
Discursos fora da ordem 106

cantes, no sentido de promoverem reações muitas vezes diametralmente


opostas, de simpatia ou de total perplexidade e aversão.
Do conjunto dos filmes apresentados logo nesta primeira edição,
ouso afirmar (depois de assistir a praticamente todos aos quais tive aces-
so) que o festival foi extremamente corajoso por agrupar numa mesma
proposta filmes tão densos e polêmicos. Não terei tempo neste breve
artigo para descrever em detalhe cada uma das demais edições que segui-
ram a este excitante debut do FQL. Pelos cartazes de alguns dos filmes
dápara se ter uma ideia das imagens que estavam anunciadas em diferen-
tes lugares para divulgação do festival e durante o mesmo, além, é claro,
daquelas completamente exibidas nas salas de projeção.
Farei um salto, passando para a 11ª edição, ocorrida em 2007,
porque se trata de um corte ou de uma tentativa de marcar um “antes e
depois”, narrada pelos seus próprios organizadores. É nesta edição que o
FQL muda seu nome, trocando o “gay e lésbico” pelo queer. Peço licença
ao leitor para transcrever quase na íntegra a justificativa apresentada na
ocasião, por acreditar que ela destaca e pontua muito do debate estético
e político em cena não apenas em Portugal, mas no circuito de festivais
de cinema gays e lésbicos como um todo. Eis o argumento:

O início da década de 90 vê surgir uma nova linguagem, estética e narrativa


cinematográfica que sugerem novas negociações das subjetividades ligadas
às identidades sexuais e de gênero, bem como uma revisitação das histó-
rias das comunidades e realidades individuais de gays, lésbicas, bissexuais,
transgêneros de todo o mundo. [O texto cita que em 1991, no Festival de
Sundance, foi exibido o filme Paris is Burning, documentário sobre a comu-
nidade negra do Harlem. Cita vários filmes que estariam dentro desta nova
classificação do “new queer cinema”, muitos dos quais já estiveram presentes
no festival de Lisboa desde sua primeira edição, como é o caso de Paris is
Burning edeDrag, o vogueing – que inspriou Madonna, que depois foi ho-
menageada no festival, por ser uma das “divas”da comunidade LGBT, um
circuito de referencias.] Nas artes, uma parte expressiva dos grandes movi-
mentos (coletivos ou individuais) nasceramdas margens. Quase todas estas
expressões foram assimiladas pelo mainstream, esvaziando-as de sua força
107 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

simbólica original. Tudo que é pseudolinguagem ganha rapidamente fama,


notoriedade, muito dinheiro. Os realizadores do NQC e seus herdeiros,
quase sempre alheios à lógica do cinema comercial, partem de um pressu-
posto fundamental: o de que estão a fazer cinema para um público queer
(que não exclui os heterossexuais!), pelo que não têm necessidade de “ex-
plicar” ou justificar a sexualidade das suas personagens, nem de cederem ao
politicamente correto ou à condescendência face a uma suposta diferença.
O Queer Lisboa tem esta responsabilidade: exibir importantes novas pro-
postas cinematográficas, que são retrato e consequência das diversas reali-
dades sociais das comunidades e indivíduos queer de todo o mundo e que
não se encontram acessíveis ao grande público. (Queer Lisboa 11, 2007)

Ao comentar as diferentes sessões do festival, o diretor ressalta


“The picture of Dorian Gray propõe-nos mais um olhar – desta feita for-
temente marcado pelas linguagens pós-modernas da fragmentação, da
sobreposição e da intertextualidade- da obrareferência de Oscar Wilde,
que, neste ano, homenageamos enquanto escritor e ícone incontornável
da cultura pop e do universo camp”. Essa é a fala do João Ferreira. [no
final do texto, retomaa importância do gênero documentário para o ci-
nema queer.João Ferreira menciona nesta apresentação sobre o lado pop
do termo queer e das possíveis vantagens e desvantagens (esvaziando-as
do seu teor crítico em relação às normatizações de genero/sexualidade]..
O queer na TV, no mercado, como algo que sugere uma “democratiza-
ção” e resolução social em relação ao “mundinho gay”.
O ex-diretor do festival, Celso Junior, do qual esteve à frente por
quase uma década, ao se despedir comenta os novos rumos do evento,
destaca mais as relações políticas entre o festival e a própria cidade de Lis-
boa (tanto do ponto de vista moral como social), e faz também uma críti-
ca aos próprios frequentadores do festival e ao movimento gay português.
O interessante no texto de Celso Junior é que ele começa dizendo que em
2003 havia sido contra a mudança do nome para Festival da Diversidade
(que retiraria do festival as palavras Gay e Lésbico), mas vinha agora de-
fender a mudança para queer, que para ele é um termo que daria maior
abrangência ao festival, incluindo, maior reconhecimento internacional:
Discursos fora da ordem 108

Numa sociedade como a portuguesa, que, segundo os padrões da Euro-


pa Ocidental, é retrógrada e preconceituosa, especialmente, em “novas
velhas” áreas como a homofobia e a transfobia, ou a misoginia e o ma-
chismo, reveste-se de singular relevância a forma como as instituições e as
grandes empresas atuam e dão exemplo... Infelizmente as nossas próprias
comunidades lgbt não são ainda muito diferentes da sociedade de onde
emanam. Perante os ataques, as omissões e o apagamento, os lgbt nacio-
nais manifestam um alheamento preocupante e pouco saudável. Permi-
to-me um desafio final: acordem e desfrutem deste evento QUEER que
vos é oferecido. (Depoimentos do Queer Lisboa 11, 2007, p.14)

A partir dos escritos dos diretores é possível perceber quehouve


uma (auto)reflexão e uma tentativa de diálogo do festival com uma pro-
posta mais geral de sintonia entre os jogos de representação ali coloca-
dos e os propósitos de uma vertente da produção cinematográfica que
eles também denominaram de newqueer cinema.
Como parte desta breve descrição do evento, gostariade ressaltar a
estreita relação entre o festival e alguns pesquisadores portugueses que
trabalham com estudos sobre sexualidade, movimento gay e lésbico etc.
Muitos dos debates promovidos durante o festival receberam convida-
dos acadêmicos como Miguel Vale de Almeida e Fernando Cascais.Am-
bos também presentes na importante coletânea organizada por Cascais
em 2004 sobre os estudos queer, gays e lésbicos. Nesta coletânea, o texto
de Fernando Cascais traça uma “evolução dos estudos gays e lésbicos até
a teoria queer”. Ao recriar a trajetória, Cascaismenciona desde estudos
sociológicos e filosóficos sobre sexualidade até os estudos dedicados à
aids e a questões psicológicas da “homossexualidade”, os estudos sobre a
história dos movimentos lgbt até a formulação do que ele denomina de
Teoria Queer, cujos nomes destacados são Judith Butler (Problema de
gênero) e Eve Sedgwick (A epistemologia do armário), em seus trabalhos
seminais.Avalia como um desafio para o pensamento das ciências huma-
nas em Portugal a contribuição de Butler que questiona a normalidade
universal. Em suas palavras:
109 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

O re-aprisionamento das potencialidades emancipatórias do constru-


cionismo em identidades rígidas, feministas, lésbicas, lésbico-feministas,
gays, constitui o grande fantasma da sensibilidade queer que equipara a
construção rígida de identidades, na militância política-social, à naturali-
zação médico-científica de outrora. (Cascais, 2004: 60)

O autor chama atenção para duas dificuldades enfrentadas pela Teo-


ria Queer: 1) a necessidade política de definir identidades mais ou menos
rígidas em nome das quais denunciar discriminações e formular direitos,
liberdades e garantias; 2) as desigualdades sociais, de representatividade
política e a capacidadede pressão que levam a que os mais favorecidos pos-
suam os meios de gerir a permutabilidade das suas diferentes identidades e
os menos favorecidos que se veem reduzidos à unidimensionalidade(Idem:
61). Havia naquela conjuntura uma leitura favorável às críticas à política
identitária, no entanto, a mesma suscitava certa insegurança quando pen-
sada enquanto atividade política de conquista de direitos e formulação de
políticas públicas de proteção social. Como o texto aqui abordado não di-
rigia-se diretamente às produções filmográficas e às práticas artístico-cul-
turais, e por ver o investimento realizado pelo festival no sentido de uma
postura queer, investimentos estes que contaram ao longo dos últimos dez
anos com a participação constante desse autor, deduzo que, no tocante às
práticas imagéticas, ao trabalho estético de representação das relações de
gênero e sexualidades dissonantes, a postura do autor fosse mais enfática
sobre a necessidade de um desfazer-se das armaduras identitárias.
Outro autor da coletânea organizada por Cascais cujo diálogo e par-
ticipação no FQL são assíduos é o antropólogo Miguel Vale de Almeida.
O seu artigo é pontual no tocante a discutir a Teoria Queer e a contestação
da categoria “gênero”. Apoiando-se na maneira como Annamarie Jagose
problematizou a noção e os usos da Teoria Queer, o autor delineia o que
seriam os principais traços da formulação de um campodisciplinar queer,
sendo o primeiro deles o fato denão estaralinhado a qualquer categoria de
identidade; pelo contrário, trataria-se de uma teoria disposta a expor as in-
coerências nas relações supostamente estáveis entre sexo, gênero e desejo.
Para o autor, em sintonia com Jagose, o termo queer não é um modismo,
Discursos fora da ordem 110

nem tampouco uma distinção entre estilos velhos e novos, no entanto,


pode perfeitamente ser (coloquialmente) utilizado como descrição de
uma população cujo posicionamento diante da sexualidade seja antinor-
mativo e, diferentemente do ideal gay do momento “gay proud”, visa antes
criar, inventar práticas eróticas e modos de relacionamento do que revelar
uma sexualidade pensada como pura, livre e natural. Ao adentrar as espe-
cificidades do jogo político e teórico em Portugal, Miguel Vale de Almei-
da, argumenta no sentido de que ali sepoderia proceder ao que denomi-
nou de bricolage conceptual e estratégica, a partirda situação portuguesa de
semiperiferia e atraso cultural, ou seja, tentar conciliar prática com realidade
social objetiva. O que fica visível neste sugestivo artigo de Almeida é que a
questão dos direitos e a formulação de políticas de reconhecimento é algo
vital para que ele entenda a possibilidade de negociar proximidades entre
as críticas da Teoria Queer e as necessidades da luta política portuguesa.
Retomei estes autores apenas para tentar situar o debate e a apro-
priação do termo/categoria queer no sentido de mostrar que as mudan-
ças ocorridas nofestival de cinema não eram algo completamente isola-
do num contexto puramente cinematográfico.
Já se foram três anos desde a mudança de nomenclatura do FQL, no
entanto, creio que ainda seja precipitado indagar sobreo que, além dono-
me, também mudou nos rumos do festival desde a sua perspectivaqueerdo
cinema. Eu poderia destacar dois eventos que presenciei, nos anos de 2008
e 2009, paracontribuir nesta busca de entendimento sobre as mudanças
intencionais, pois captar parte desta dinâmica é uma maneira de alargar e
aprofundar nossas reflexões sobre os potenciais, ou não, da Teoria Queer
em situações bem específicas. Em outras palavras, a Teoria Queer, enquan-
to crítica cultural, propõe, no seu nascedouro, uma analítica da normali-
zação, naquele momento, como bem situa Miskolci, focada na sexualidade
(Miskolci, 2009: 151).Nas duas sessões do FQL – 2008 e 2009–, além da
mudança no repertório de filmes centrados com a incorporaçãode temáti-
cas mais amplas que incluíam sexualidades dissidentes, também foram exi-
bidos filmes cujas personagens estavam às voltas com problemas relacio-
nados à práticas heterossexuais fora do padrão fidelidade/conjugalidade e
os seus dramas arredores (traições, separações, disputas etc.),numa tenta-
111 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

tiva de minimizar as categorizações implícitas dos sujeitos e das práticas


sexuais, evitando a dicotomia heteroversus homossexuais.
Assim, não vai ser possível neste curto espaço apresentar em detalhes
as imagens e as narrativas que foram incorporadas à programação, para
lhes “adiantar” uma leitura que faço que é a de que o festival realmente foi
além do rótulo puro e simples, ele buscou e busca interagir com a crítica
(que está na academia) aos essencialismos identitários que predominavam
nas organizações dos festivais LGBT ao longo da década de 1990.Ressalto
ainda que isso não representou um golpe de marketingvoltado para a im-
prensa e o público português a fim de distrair a atenção em relação às lutas
por direitos, liberdades e visibilidades gays e lésbicas, como já houve acu-
sações. O potencial político do evento foi dimensionado nos termos da
possibilidade de simultaneamente enaltecer o orgulho de estar fora dos pa-
drões morais da cultura portuguesa, mas, ao mesmo tempo, desenvolver a
autocrítica. Percebo que os organizadores do FQL são críticos da política
de “etnização da categoria gay”, ou seja, de transformação da comunidade
gay em uma minoria compacta e que partilha uma genealogia comum, são
críticos da superficialidade que vem atrelada à cultura gay urbana consu-
mista e aos usos e abusos do gayness como modo de vida que busca na
normalização (casamento monogâmico, parentalidade, divisão hierárqui-
ca das responsabilidades domésticas4 etc.) uma forma de integração social.

Celuloides e closes

Dentro do espírito de trazer para este artigoum pouco mais do que


seria o new queer cinema, passo agora da leitura do festival para uma bre-

4. Conheço de perto o debate espinhoso sobre o casamento ou união civil entre pessoas do mesmo sexo e sou
particularmente favorável a essa luta. No entanto, a crítica realizada aqui pelo FQL, e também subtendida na
minha escrita, é de que o problema está em fazer desta luta mais uma maneira submissa de integrar a dissi-
dência no seio da normalidade heteronormativa. A crítica à necessidade do casamento, da parentalidade, da
monogamia e outras formas de organização da família nos padrões burgueses é extensiva aos casais e práticas
heterossexuais tanto quanto homo. Por que deveríamos responsabilizar os casais de mesmo sexo a carregar a
luta pelo reconhecimento de uniões afetivas sem a tutela da Igreja ou do Estado? Enquanto cidadãos, penso
que os tipos de parceria e contrato possíveis entre casais hetero deveriam estar automaticamente disponíveis
para casais de mesmo sexo, independente do gênero que professam. Numa sociedade laica, suscitar a questão
do casamento “gay” não deveria nem se constituir em um problema legal.
Discursos fora da ordem 112

ve análise do filme que abriu o FQL5 em 2008.Chuecatown ( Juan Flahn,


Espanha, 2007) é uma película espanhola focada na tensão entre dife-
rentes estilos de vida gay. O enredo alude à crítica a uma visão homo-
gênea do que costumamos denominar de comunidade gay. Quando vi o
lançamento do filme, com a presença do diretor e a sala lotada, pensei
que as reações fossem ser de desprezo. Uma das personagens, Victor, um
misterioso gay, completamente obcecado com a perfeição estética, um
verdadeiro representante das barbies, no linguajar dos entendidos, escon-
dia um grave segredo. Não, não é um filme centrado em uma história de
coming out (saída do armário), o segredo não era sua homossexualidade e
sim sua fria fúria assassina, cuja marca era o cheiro de um perfume muito
fino (nos dizeres da detetive encarregada da investigação do caso).
Outro filme de gay vilão? Também não. Duas outraspersonagens
compõem o par de mocinhos dessa trama policial, fazendo oposição a
essa personagem tão emblematicamente negativizada. Um casal de gays,
Leo e Rey, caricaturalmente desengonçados para compor o perfil típi-
co do casal de ursos (gays gordinhos e peludos), termo mencionado no
filme como autodenominação. A descrição da diversidade do universo
gay masculino não para por aí, pois há outras personagens e situações
que sugerem a multiplicidade cultural e outras diferenças (faixa etária,
escolaridade, classe social) que configuram e constituem a variedade dos
estilos gays de vida.Destacarei as questões relacionadas a gênero e sexua-
lidade, principalmente porque uma das diferenças exaltadas diz respeito
à “vida de um casal” em contraste com erotismos nômades e práticas
como sadomasoquismo, sexo grupal, relações abertas, princípios éticos.
A abertura do filme traz uma bem-humorada animação, possivel-
mente uma maneira de fazer referência ao desenho animado no qual o
script foi baseado, que mostra um dos atores atravessando o armário, alu-
são à personagem Luis – o investigador dos crimes ocorridos em Chue-
catown. Dessa forma, há também no filme a problematização sobre os

5. Outro filme deste mesmo festival foi um documentário brasileiro sobre prostitutas que tralhavam na Praça
da Luz, em São Paulo (o filme é 69, Praça da Luz). O documentário é dirigido por Carolina Markowicz e
Joana Galvão e participou do 18° Festival de Curtas-Metragens de São Paulo, em 2007, no qual as diretoras
ganharam o troféu "Coelho de Prata". O filme foi inscrito também no Festival Mix Brasil (Festival de Cinema
e Vídeo da Diversidade Sexual - 2007), no qual ganhou o prêmio de "Melhor Filme Brasileiro".
113 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

sofrimentos e desventuras da vida dentro do armário (com enfoque para


o armário em relação à família e ao ambiente de trabalho), pautada pela
autodescoberta e pelo desabrochar de uma sensualidade e afirmação até
então sem lugar.Numa das cenas do filme, Luis (o investigador) é encon-
trado por Leo numa sauna gay, completamente chapado e desfrutando
das carícias anônimas de um grandalhão sedutor tatuado e malhado. Ao
ser indagado sobre o que estava fazendo ali, ele responde: “Eu também te-
nho direito, estou me expressando, libertando-me”.Certamente uma das
cenas que dialoga com um dostemas do festival,“ Transgredir e libertar”.
Uma outra cena, também protagonizada pela personagem Luis,
merece atenção. A cena está em um quadro pouco aberto, com mãe e
filho no centro, e o olhar da mãe dirige-se à genitália do filho. O mo-
vimento da câmera não acompanha o seu olhar, ou seja, não vemos a
sua genitália, apenas visualizamos o constrangimento da mãe com o co-
mentário picante de “como cresceu”, completado por“isso me perturba”.
E Luiz (ingenuamente?!) conclui, “mas eu sou assim” (referindo-se à
homossexualidade e não ao tamanho da genitália). É uma cena cheia de
humor, que brinca com adupla tensão da narrativa, ou seja, do momento
de “descoberta”do assassino e de visibilidade da condição gay da perso-
nagem que fora saindo do armário ao longo do filme.
A relação neurótica entre mães e filhos gays é um capítulo à parte
no filme e nos lança em algumas questões de gênero muito interessantes.
A presença de personagens mulheres não é abundante (afinal, trata-se
de um bairro gay), então, elas surgem na pele de mães ou de velhinhas
indefesas vítimas do grandevilão (de uma beleza grega indubitável!).A
outra personagem feminina que aparece no filme é lateral, no entanto,
crucial para o desenrolar da trama, visto que ela é uma escritora que re-
solveu escrever sobre a relação amorosa de Leo e Rey.Ela é amiga do casal
e filha de umas das vítimas, eacaba sendo também assassinada. Então,
mães manipuladoras, superprotetorase autoritárias convivem ao lado
deamigas doces e carinhosas. Elas são presença constante e ambígua na
vida de três das personagens gays retratadas num ângulo positivo. O frio
assassino não esteve (em nenhum momento do filme) cercado seja por
relações familiares ou afetivas. Os interesses dele eram majoritariamente
Discursos fora da ordem 114

de característica individualista, estetizante e consumista. Sua altivez e


beleza foram contrastadas com sua fraqueza ética e decadência moral.
Interessante é pensar que traços de feminilidade foram completamente
apagados de sua persona. Sua virilidadefora exaltada em termos de ativi-
dade, desenvoltura e bom gosto,racionalidade.
No jogo espelhar de contrastes, as outras personagens gays tran-
sitaram facilmente entre passividade/atividade e entre feminilidade/vi-
rilidade, com destaque e espaço para sentimentalismos que eram vistos
como humanizadores e valorizadores das qualidades das personagens.
Nesse sentido se pode dizer que além de um libelo anti-homofóbico,
o filme Chuecatown buscou contrastar imagens numa tentativa de des-
construir um ideal de corpo belo masculino desejável.
Por que pensei na possibilidade de uma má reação do público por-
tuguês em relação ao filme? Porque era comum ver uma ala mais mi-
litante do público gay questionar filmes que envolvessem personagens
gays com práticas e ou psiques violentas ou conturbadas.Mais do que
isso, o filme aborda diversidades políticas internas ao “universo gay”, jus-
tamente mostrando seus díspares contextos e maneiras de ser e de se ver
no mundo em relação a outros valores éticos e políticos fundamentais.
O filme traz uma séria visão crítica do vínculo fácil entre cultura gay, eli-
te, estetização, luxo e riqueza, realçando superficialidades e hipocrisias
de uma vida cuja orientação seria “segurança, modernidade, limpeza e
beleza”, como nos dizeres de Victor.
Como o filme aborda questões éticas e estéticas para representar
modos de subjetivação eivados deinvestimentos afetivos e eróticos, pen-
so que ele é um bom exercício para pensar como essa outramaneira de
representação da vida erótica e amorosa entre pessoas do mesmo sexo se
relaciona com reflexões de autores vinculados à Teoria Queer, em espe-
cial Judith Butler,sobre gênero, sexualidade e desejo. Há duas questões
que eu destacaria como centrais no filme e no debate queer: 1) as esco-
lhas e todo o problema filosófico e político do que elas direcionam e
condicionam em termos da disputa entre livre-arbítrio e determinação
na configuração da sexualidade e do gênero; 2) a relação entre reconhe-
cimento e a constituição de identidades (sexuais).
115 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Com relação às escolhas e à orientação sexual como algo que se es-


colhe ou se forma ao longo da vida e de maneira relacional, Butler tem
dois longos e instigantes diálogos com Simone de Beauvoir. Primeiro,
“Ruínas circulares do debate contemporâneo” (título de um dos capítu-
los de Butler em Problema de gênero), porque ali ela retoma justamente
uma das questões mais importantes do debate feminista que é a noção de
“construção” (do sexo/gênero) tal qual fora pioneiramente sugerida por
Simone de Beauvoir (e que deu um novo impulso ao feminismo como um
todo!).A questão que Butler retoma ali érelativa à noção de construção
estar atrelada à polaridade filosófica convencional entre “livre-arbítrio” ou
“determinismo”.Se a noção de construção supõe um agente criador e uma
“base” para a criação, essa base seria o “corpo”/“sexo”? Ou seja, Simone de
Beauvoir faria a distinção (que se tornou clássica no feminismo francês)
entre sexo e gênero, enfatizando o gênero como adquirido ao longo da
existência. Por que retomar este (já sabido!) debate? Porque penso que
muito das diferenciações atribuídas ao pensamento queer estão intrinca-
das (decorrem e alargam) nessa relação. Para Butler o texto deBeauvoir
foi libertador, pois formulou argumentos para a crítica feminista de que a
“anatomia não é o destino” . Seria voluntária a escolha do gênero? Como
a individualização se daria, no interior de um “processo”, um conjunto de
ações, nas quais há um sistema patriarcal e falocêntrico determinando a
construção cultural do gênero? Como esse sistema funciona? Essas são
questões datadas no interior do debate feminista dos anos 1980. A ques-
tão que agora se coloca é: como estamos em relação a isso?
No texto de Butler sobre a Simone de Beauvoir, a discussão é colo-
cada nos termos de “será que a noção de ‘becoming’ a woman (or a man)
(tornar-se uma mulher ou um homem) coloca em cena o dualismo sartria-
no (cartesiano) da separação entre corpo/mente?”. O desdobramento desta
questão está na relação que a Teoria Queer, naquilo que há de comum entre
seus maiores exponentes, estabelece com a noção de diferença sem privi-
legiar a diferença sexual como ponto de partida. O entrelaçamento entre
constrangimentos sociais, limites culturais e corpóreos (incluindo aqui de-
terminações biológicas) é o grande desafio da compreensão queer da subje-
tividade. O filme Chuecatown está em sintonia com a Teoria Queer.
Discursos fora da ordem 116

No melhor estilo almodovariano, as qualidades em geral atribu-


ídas como femininas forammais bem apropriadas por alguns homens
gays do filme. O cuidado, a generosidade, a delicadeza, a sensibilidade,
são todas características presentes no casal central da trama (Leo e Rey),
que, numa cena engraçadíssima, recebe o gracioso apelido de “frescuras”.
A origem ou constituição da identidade ou do desejo gay não foi algo
abordado pelo filme. Talvez justamente porque a temporalidade foca-
da era intencionalmente aquela pertinente ao universo de personagens
adultas que, com exceção de Luis, que passa por momentos de autodes-
cobertas, já sabem o que querem, embora marcados por todo um con-
junto de ansiedades e inseguranças que, independente de se tratar de um
casal hetero ou homo, rondam a “vida a dois”.
Neste sentido, diria que a representação do gênero, e em especial
da sexualidade, em Chuecatown não resvala nem no construcionismo
nem nos essencialismos (biológicos ou sociais). A corporalidade das
personagens funciona como termômetro de como elas se orientam no
campo das práticas eróticas e das diferenças de gênero.O belo é desloca-
do da harmonia segundo princípios estéticos greco-romanos, imortali-
zados em perfis como o de Adônis (jovem, alto, músculos torneados). O
falo não é objeto de veneração, pelo contrário, é ponto de interrogação
e isso talvez seja um dos pontos fortes do filme em consonância com a
perspectiva queer, pois não é apenas uma crítica ostensiva à perspectiva
identitária, ou à heteronormatividade, como também questiona a cen-
tralidade do falo na configuração das relações de poder. No tocante ao
falocentrismo, são poucos os filmes gays que conseguem se redimensio-
nar sem cair na vitimização de suas personagens.
Há algo bastante perturbador (trouble!), embora de modo sutil, na
corporalidade do urso. A docilidade de determinados gestos e certa de-
licadeza e graciosidade femininas contrastam com a aparência máscula
forjada pela presença dos pêlos e por excesso de peso (mais gordinhos!)
do maneirismo “macho”, estilizado não apenas no figurino, mas também
na formação corpórea. De certa maneira, confunde porque instiga a vi-
sibilidade da descontinuidade entre sexualidade e gênero, mesclando de
maneira pouco previsível atributos considerados masculinos e femininos.
117 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Contígua à constituição corpórea, que tem sua própria tempora-


lidade de formação, podemos explorar na análise fílmica os elementos
cenográficos e a paleta de cores que orientam a percepção da cena dire-
cionando nosso olhar para certos ícones da referencialidade masculina
e feminina, só que arranjados de modo a embaralhar a produção da de-
codificação.
Os Estudos Fílmicos contemporâneos abandonaram aquela con-
cepção passiva e universal de um espectador idealizado. Certamente os
elementos cênicos e a própria narrativa foram e são apropriados de ma-
neira diferente se o universo do espectador é relativamente próximo ou
distante das questões que estão em tela (Europeu? Branco? Gay? Hete-
ro? Jovem?). Cada uma dessas combinações implicará em um leque de
diferentes apropriações. Contudo, como o caso aqui não é um estudo de
recepção, o que interessa destacar são os objetos e a decoração do apar-
tamento de Leo e Rey, bem como o contraste com a concepção clean
e moderna idealizada por Victor como conveniente para o estilo (gay)
fino de ser.
No tocante ao item 2, a noção dereconhecimento e sua relação com
a constituição de identidades sexuais (ou uma política identitária), o fil-
me lida particularmente com o que Butler diz sobre o reconhecimento
comolugar de poder no qual o humano é diferencialmente produzido.
Corroboro do argumento de Butler de que o senso de sobrevivência de-
pende do quanto se consegueescapar das normas de reconhecimento.
Há reconhecimentos que estão no nível da relação entre gênero/sexua-
lidade e profissão, que estabelece um lugar social que disponibiliza dife-
rentes e hierárquicos acessos a bens culturais e de consumo, bem como
orienta (estrutura) respeitabilidade social entre pares (nas relações de
trabalho, por exemplo).
Leo é um professor de autoescola, Victor um corretor imobiliá-
rio e Luis um investigador policial, profissões essas que não evidenciam
(sem outros marcadores) sexualidades, mas são tipicamente tidas como
masculinas, ainda que estejam sendo narradas em um contexto europeu,
século XXI e eminentemente urbano (Madri), num bairro demarcado e
reconhecido como gay. O meu ponto aqui é justamente o de chamar aten-
Discursos fora da ordem 118

ção para o fato de que as personagens de Chuecatown não estão sujeitas a


drásticos constrangimentos de reconhecimento no mundo do trabalho,
nem no bairro onde se locomovem, ou seja, boa parte do seu cotidiano
ocorre em função de outros desafios que não este de se enquadrarem nas
normas heterossexuais de reconhecimento e legitimação de sua humani-
dade. Isso sem dúvida demarca uma importante diferença de contexto e
libera o enredo para abordar outros desafios e modos de enfrentamento
que não necessariamente esta luta imediata pela sobrevivência.
O reconhecimento passa então a ser problematizado entre estilos
de vidagay, uma crítica em sintonia com as manifestações já ocorridas
em grandes centros urbanos (Canadá, EUA, Holanda) contra o mains-
tream gay consumista e racista6. O início do século XXI foi marcado
por críticas à transformação dos gaybourhoods (gayvillages) em atrações
turísticas, caracterizando uma vida interna altamente elitizada. O filme
é uma imersão no que eu chamaria de mundo intragay7, visando expor e
contrapor as lutas e disputas por visibilidade gay em diferentes padrões.
O reconhecimento agora passa pelo desejo, por exemplo, na conforma-
ção de um corpo desejável, nas inseguranças vividas por um casal na ten-
tativa de preservar o seu (longo) relacionamento.
Seria Chuecatown uma reatualizaçãodo gueto? Eu diria que não,
seria mais uma representação contemporânea da crítica à segmentação
proporcionada pela elitização dos bairros gays, recheados de ricos ho-
mens brancos, malhados, sem afetação e plumas consideradas bregas,
que gostam de se distinguir de travestis (considerados a escória a ser ex-
purgada) e manterem a pose de senhores de si. Um tipo de liberdade e
orgulho que é o avesso da visibilidade pretendida nos idos anos 1970
pós-Stonewall. A presença simbólica dessa discrepância e luta por di-

6. Registro aqui um inspirador grupo radical canadense, os Anti-capitalist Ass Pirates, que desde 2003 realizam
manifestações públicas contra a estetização vazia do mundo gay. Aconsituição dos guetos (primeiramente
étnicos e depois gays e lésbicos) possui uma longa história, em especial como forma de isolamento e controle
(durante a Segunda Guerra Mundial), e na década de 1960 como alternativa de sobrevivência, comunitarismo
e proteção. Nos anos 1990 essa primeira tendência dos guetos diminui, configurando novas territorialidades e
novos propósitos aos bairros e locais de sociabilidade destinados a glbt (no Brasil também GLS). Alguns au-
tores discutiram essa construção territorial sexual e afetiva, tais como Nestor Perlongher, Júlio Simoes, Maria
Toneli, Juliana Perrucchi e Isadora França. Cf. <http://www.hour.ca/news/news.aspx?iIDArticle=3768>.
7. Para diferenciar-se da expressão “mundinho gay”, que carrega uma conotação muito pejorativa ou “meio gay”,
que em geral remete ao mercado e espaços de sociabilidade voltados para consumidores gays.
119 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

ferentes atitudes e éticas dentro de uma pretensa mesma “sexualidade”


engajada, é a busca pela preservação das “velhinhas” que estavam sen-
do assassinadas no eixo da trama.O velho, o disforme, o gordo, o pe-
ludo, o negro e o pobre estariam simbolizados ali e seriam justamen-
te o contraponto ao desejo de transformarChuecatown num espaço
homogeneamente gay (barbie-fino!). De certa maneira, o filme é uma
afronta às tendências consumistas, racistas e completamente misóginas
e efeminófobas,exemplarmente formuladas pela personagem de Victor.

Primeiras conclusões

Gênero é uma prática de improvisação numa cena de constrangimento.


Uma ação de constituir-se sem que se saiba ou que se deseje.
(Butler, Undoing Gender)

Os festivais de cinema GLBT e, em especial, o FQL aqui em tela,


têm sido lugar de provocação do gender trouble, desestabilizando os
olhares dos espectadores que entram para as salas de cinema e dos que
passam pelas ruas, leem os jornais, promovendo debates abertos sobre
temas polêmicos (casamento/parceria civil entre casais de mesmo sexo,
homoparentalidade, pornografia, transexualidade). Não fez parte da
pesquisa indagar quem são os sujeitos, ou seja, não realizei um levanta-
mento mais sociológico do perfil dos frequentadores do festival favore-
cidos por toda essa movimentação. No entanto, tentei trazer ao leitor,
a partir de um olhar sobre a organização do evento e da análise de uma
dada filmografia, como é possível elaborar o deslocamento político do
debate sobre gênero e sexualidade com foco nas práticas e não nos su-
jeitos recortados por categorias classificatórias que reforçam e reiteram
normatividades das quais nós queremos nos livrar.
Apesar da Teoria Queer ter surgido em contextos culturais diver-
sos do que encontrei em Lisboa ou do que presenciamos no Brasil, pen-
so que na última década ela tem representado um ponto de referência
significativamente forte e ainda muito eficaz para problematizarmos e
refletirmos sobre modos de subjetivação, com foco nas relações entre
Discursos fora da ordem 120

corpos, prazeres, identidades, exclusões, erotismos, imagens e imaginá-


rios nos quais gênero e sexualidade importam.
Desde 1997, ano em que ocorreu o primeiro Festival Gay e Lés-
bico de Lisboa8, como iniciativa de uma associação cultural em prol da
comunidade gay e lésbica (ILGA-Portugal- International Lesbian and
Gay Association), um público cada vez mais crescente e também um nú-
mero cada vez maior de filmes são vistos e exibidos na cidade de Lisboa9.
A existência em si do festival não consistiria em um evento se se tratasse
apenas de mais um festival temático (como o Festival do Cinema Fran-
cês, ou Festival de Animação etc.). O que tentei demonstrar ao longo do
artigo é que a escolha da filmografia, bem como os temas e debates que
caracterizam o FQL trazem à luz do dia, e por um valor muito acessível
– refiro-me aqui ao valor dosbilhetes de entrada para os filmes, visto que
no Brasil e em outros espaços o valor é exorbitante –, vários e instigan-
tes personagens, situações, imagens, enredos, facilmente categorizados
como estranhos (inclusive no universo dos entendidos). No mínimo, este
evento (festas, filmes, debates, corredores, exposições, ver e se dar a ver),
no seu conjunto, provoca, senão subverte, as imagens omnibus (palavra
latina que significa para todos) das quais nos fala Saliba (2007).
As imagens omnibus estão em todo lugar, são excessivamente mas-
sificadas no nosso cotidiano, a ponto de naturalizarem-se. Possuem, se-
gundo o autor, um poder coercitivo, já que ao naturalizarem configuram
a ilusão de que exista um objeto referencial do qual elas seriam meras
representações espelhares, o que, por sua vez, confere à imagem um po-
der de testemunha, de verdade10.Chuecatown, Claudette, Antônia, Jihad
for love, são títulos de películas que passaram, entre outras centenas, pelo
FQL e cujas imagens lançadas na grande tela tanto remetem a lugares-
comuns quanto promovem desconfianças, incômodos, suscitando um

8. O primeiro diretor do festival foi Celso Júnior, atualmente o diretor do festival é João Ferreira.
9. Segundo relatório dos organizadores do FQL, o número total de espectadores do Queer Lisboa em sua 12ª
edição foi 7.818. Isso representou um crescimento de 26% no número oficial de espectadores em relação à sua
edição de 2007 (que teve 6.183 espectadores), de 85% em relação à sua edição de 2006 (4.228 espectadores) e
de 100% em relação à edição de 2005 (3.924 espectadores). Num espaço de três anos o Queer Lisboa dobrou
o seu número de espectadores.
10. Saliba partilha do argumento que apresentei no início do texto sobre a análise de Xavier a respeito do dom de
iludir do cinema como revelação.
121 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

pouco mais do espectador.Seguramente, alguns dos filmes ali projetados


estão em sintonia com a maneira queer deinterrogar e de chamar à críti-
ca os padrões de convivência afetiva e sexual, principalmente quando en-
quadrados em termoshetero versus homo. Em outras palavras, o espírito
crítico queer seria aquele que não poupa a si mesmo nem ao outro de
um olhar que promova sempre o sacudir das normatividades, ainda que
estas tenham a boa intenção de promover a (auto)sobrevivência, como
no caso anteriormentemencionado do reconhecimento.Estamos acos-
tumadosa fazer associações rápidas e inquestionadas, do tipo “mulher
(gênero), lésbica (sexualidade)” e “homem (gênero), gay (sexualidade)”,
mas Butler (1993), assim como Sarah Cooper (2000), nos relembra que
há sempre várias maneiras de fazer a passagem (crossing) entre as catego-
rias gênero e sexualidade.

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Reinvenções
Repensando o sexo e o gênero1

Judith Jack Halberstam

Há duas ou três coisas que eu sei mesmo; e uma é que preferiria ir nu a


usar o casaco que o mundo criou para mim.
(Dorothy Allison)

Esta reflexão surgiu de um livro que acabo de terminar para a Duke


University Press,intituladoThe Queer Art of Failure. Neste livro, abor-
do desde os desenhos animados para crianças até a performance e a arte
queer de vanguarda para pensar sobre formas de ser e conhecer fora dos
modelos convencionais de sucesso. Minha reflexão segue a força do que
chamo de “negatividade queer” por meio de obras de arte preocupadas
em deixar de ser, desfazer-se, esterilidade e futilidade, muito do que é
visto como o desfazer de si em obras literárias e o espaço presente do
espaço vazio em trabalhos visuais.
O fracasso passa diretamente pelo território da estranheza [queer-
ness] que, para alguns teóricos queer como Leo Bersani, Lee Edelman,
Heather Love, (a primeira) Judith Butler, (a última) Lauren Berlant, sig-
nifica uma recusa da coerência da identidade, da completude do desejo,
da clareza do discurso ou da sedução do reconhecimento. Para outros,
como Rod Ferguson, José Muñoz e Lisa Duggan, a negatividade tem a
ver com uma forma de crítica que emerge dentro da Teoria Queer como

1. Tradução de Richard Miskolci.


Discursos fora da ordem 126

uma forma de antiutopismo. Mas muito deste trabalho emerge de uma


teoria original de “Pensando sobre sexo”, criado 25 anos atrás por Gayle
Rubin (1992). O ensaio de Rubin iluminou os sistemas ideológicos nor-
te-americanos que associavam sexo ao contágio, ao caos e à corrupção
e originou, no século XX, numerosos pânicos sexuais. Como ela tinha
feito em outro ensaio marcante, “A troca de mulheres” (1975), Rubin
uniu doses saudáveis de teorização pragmática a flashes de brilhantes, e
muitas vezes contraintuitivos, insights sobre as esperanças e os medos,
as ansiedades e as excitações que se ligam ao sexo na teoria e na prática.
Enquanto “A troca de mulheres” interrogava com sensibilidade como te-
óricos como Freud e Lévi-Strauss teorizaram sobre a institucionalização
das hierarquias de gênero sem as criticar, “Pensando sobre sexo” indaga-
va sobre porque uma vertente moralista do feminismo tinha se tornado
o espaço privilegiado para teorias sobre a conduta sexual. Percebendo
que o essencialismo e a negatividade sexuais eram comuns aos projetos
políticos de esquerda ou de direita, ela concluía epigramaticamente: “Se
o sexo é levado tão a sério, então a perseguição sexual não tem sido leva-
da suficientemente a sério” (Rubin, 1992: 35).
Obviamente, a perseguição sexual tem sido um tema importante
nos estudos queer e uma rationale forte para todo seu empreendimen-
to intelectual, mas enquantoo ensaio de Rubin nos demanda atenção
para a maneira como as minorias sexuais podem ser reprimidas e mar-
ginalizadas, ele tambémlembra-nos, em seu cuidadoso delineamento
do conteúdo das hierarquias sexuais, que a opressão sexual não se refere
apenas à aplicação de medidas legais por heterossexuais contra os ho-
mossexuais. De alguma forma, deveríamos, 25 anos após a publicação
do ensaio de Rubin, ser capazes de abandonar certas narrativas heroicas
sobre sexo e dissidentes sexuais que alocam homossexuais como sendo
sempre, e em toda parte, progressistas, oprimidos e enfrentando o po-
der. De fato, o modelo de “chegar ao poder”, um modelo que Foucault
chamou de “discurso de réplica”, ainda provê, em muitas instâncias, o
enquadramento dominante para pensar sobre sexo. Muitos ensaios nos
estudos queer (alguns dos quais eu escrevi!) terminam imaginando e
descrevendo as novas formas sociais que, supostamente, emergem das
127 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

orgias gays masculinas, das fugas do cruising ou do erotismo do gênero-


queer, do sadismo sodomita ou do prazer queer de uma forma ou ou-
tra. Mas talvez seja sempre melhor trabalhar em direção ao protesto ao
invés do confronto, no sentido de que o vínculo é sempre, para citar
Foucault, “para o benefício do falante”, já que tais narrativas, Foucault
sugere, são aquelas que contamos a nós mesmos para manter uma “hipó-
tese repressiva” que aloca o queer corajoso como o lutador heroico pela
liberdade em um mundo de puritanos. Dentro dessa mesma narrativa,
gays e lésbicas são marcados como resistentes à norma, sempre parte de
um movimento social ou um grupo protopolítico e sempre, de alguma
forma, em conflito com a respeitabilidade, a decência e a domesticidade.
Esta narrativa, como Michel Foucault afirma firmemente em História
da sexualidade (volume 1), é sedutora, comovente, convincente... e al-
tamente errônea. Enquanto ela é muito para o “benefício de quem fala”,
como Foucault coloca descaradamente,contar este tipo de história sobre
a marcante emergência das minorias sexuais da tirania dos regimes re-
pressivos é também outra narrativa autocongratuladora, agradável, do
humanismo liberal que celebra o homo-heroísmo e ignora as frequente-
mente conectadas agendas do Estado e dos homossexuais burgueses, das
famílias e casais homossexuais, dos homossexuais decentes e cristãos, das
hierarquias raciais e dos homossexuais brancos.
Como Rubin afirmou sucintamente: “o sexo sempre é político”.
Isto é indiscutível; e, como obras de Leo Bersani, Lee Edelman, Heather
Love e outros têm sugerido, não há garantia de que forma o político
tomará quando se trata de sexo. A obra de Rubin nos pede para “pensar
sobre sexo” em cada contexto, e Foucault nos incita a examinar nossos
investimentos nestas narrativas de liberdade sexual e rebelião. Enquan-
to Foucault substitui a narrativa romântica da resistência gay/lésbica
pelo conceito de “discurso de réplica”, Leo Bersani (1965), por sua vez,
aponta a favor de uma vertente anticomunitarista de prática queer que
enfrenta a tendência dos laços homoeróticos entre homens de forma-
ruma rede de apoio ao patriarcado por meio da superação dos laços ho-
mossociais com não-relacionalidade, solidão e masoquismo. Em outras
palavras, enquanto o homem gay pode ser um apoio ao Estado patriarcal
Discursos fora da ordem 128

engajado no negócio dos laços masculinos e na formação de comunida-


de gay, ele pode se tornar uma ameaça para o status quo político quando
recusa a dominação masculina, rejeita a relação mesma e opta por “um
desaparecimento não-suicida do sujeito”. É este tipo de subjetividade gay
masculina que Bersani traça por meio da obra de Genet, Proust e outros,
e que ele apresenta como o significado da homossexualidade: homosse-
xualidade, diz Bersani, via Genet, “é parente da traição” (Bersani, 1965:
153).Ainda que eu aqui não explore a leitura de Bersani de Genet, é su-
ficiente dizer que a negatividade queer para homens gays brancos é uma
forma muito clara e específica de negatividade e ela depende fortemente
de uma noção de “deixar de ser” que também conota o abandono de cer-
tos mitos fálicos de fortitude e por aí vai. Realmente, o autoestilhaçar-se
que ocupa o centro da noção de Bersani do desconstruir-se da mascu-
linidade indica um desejo de ser penetrado e de modelar uma masculi-
nidade que não é consistente com uma hombridade heterossexual, mas
que não é redutível ao ser “desmasculinizado” ou transformado em uma
“mulher”. O que a negatividade queer parece quando ela não envolve
apenas uma mudança óbvia do poder fálico?
Construindo aqui a partir do trabalho de feministas como Saidiya
Hartman e Saba Mahmood, e localizando uma feminilidade queer que
recusa resistência e recria o significado do político no processo, quero
oferecer, na tradição de Bersani narrada e estendida por Heather Love em
seu livroFeeling Backward(2009), uma teoria queer do masoquismo e do
afeto negativo que revela nos fracassos, construídos em torno de um su-
jeito anti-heroico, desintegrado, e no processo, realoca o projeto de pen-
sar sobre o sexo e o gênero. Também quero apresentar uma genealogia de
um feminismo antissocial ou anti-humanista, ou ainda contraintuitivo, o
qual surge do queer, do pós-colonial e dos feminismos negros, e que pen-
sa nos termos da negação do sujeito ao invés de em sua formação. Nes-
ta genealogia queer feminista, que poderia se estender das reflexões de
Gayatri Spivak (1988) sobre o suicídio feminino em “Pode o subalterno
falar?” às noções de Saidiya Hartman (1997) de “atos cotidianos” “ima-
ginativos” [fanciful] e “excessivos” em Scenes of Subjection, dos fantasmas
de Toni Morrison às anti-heroíanas de Jamaica Kincaid (1997), e passa
129 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

pelos territórios do silêncio, da obstinação, autoabnegação e sacrifício,


não encontramos nenhum sujeito feminista, mas apenas sujeitos que não
podem falar, que recusam falar. Sujeitos que desfazem, que recusam ser
coerentes. Sujeitos que recusam “ser” onde ser já foi definido nos termos
de um sujeito liberal autoativado, que conhece a si mesmo.
Em um dos meus textos feministas prediletos de todos os tempos,
o drama épico animado A fuga das galinhas, a ave politicamente ativa e
explicitamente feminista, Ginger, se opõe em sua luta para inspirar as ga-
linhas a se sublevarem por outros dois “sujeitos feministas”. Um é a cínica
Bunty, uma lutadora de nariz duro que rejeita sonhos utópicos à mão, mas
a outra é Babs, dublada por Jane Horrocks, que algumas vezes dá voz a
uma ingenuidade feminina e, em outros momentos, aponta o obsurdo do
terrreno político como ele tem sido delineado pela ativista Ginger. Gin-
ger diz, por exemplo, “ou morreremos como galinha frita ou morreremos
tentando”. Babs pergunta ingenuamente: “Estas são as únicas opções?”.
Como Babs, quero recusar as opções oferecidas – a liberdade nos termos
liberais ou a morte– e pensar sobre um arquivo sombrio de resistência,
um que não fala na linguagem da ação e do momento, mas, ao contrá-
rio, se articula nos termos da evasão, recusa, passividade, do deixar de
ser, desfazer-se. Esta é uma forma de feminismo queer preocupado com
a negatividade e a negação. Como Roderick Ferguson (2004) coloca em
um capítulo sobre “As negações do feminismo negro lésbico” emAberra-
tions in Black: “a negação não apenas aponta as condições de exploração.
Ela denota as circunstâncias para a crítica assim como as alternativas”.
Ferguson, a partir de Hortense Spillers, está tentando circunscrever uma
gramática política “americana” que insiste em inserir lutas por liberação
na mesma lógica dos regimes normativos contra as quais elas se voltam.
Uma luta diferente, de tipo anarquista, requer uma nova gramática, pos-
sivelmente uma nova voz, potencialmente, a voz passiva.
A percepção de Babsde que deve haver mais formas de pensar so-
bre a ação política ou a não-ação do que fazer ou morrer encontra con-
firmação teórica completa na obra de teóricas como Saidiya Hartman.
As pesquisas de Hartman, em Scenes of Subjection, sobre as contradições
da emancipação para os escravos recém-libertos propõem não apenas
Discursos fora da ordem 130

que “liberdade”, como definida pelo Estado racial branco, permeie no-
vas formas de aprisionamento, mas também que a as próprias definições
de liberdade e humanidade dentro das quais os abolicionistas operavam
limitavam severamente a habilidade dos ex-escravos pensarem transfor-
mações sociais em termos fora da estrutura do terror racial. Hartman
nota: “a longa e íntima ligação entre liberdade e aprisionamento tornou
impossível imaginar a liberdade independente da restrição ou a perso-
nalidade e a autonia separada da santidade da propriedade e das noções
proprietárias de si mesmo” (Hartman, 1997:115). Dessa forma, onde a
liberdade foi oferecida nos termos de propriedade, localizada e produti-
va, o ex-escravo devia escolher entre “mover-se em torno” ou mudar-se
para experienciar o significado da liberdade. Hartman escreve: “Como
uma prática, mover-se acumulava nada e não causava nenhuma mudan-
ça do poder, mas incansavelmente levava ao irrealizável – ser livre – por
eludir temporariamente os constrangimentos da ordem”. Ela continua:
“como entrar sem ser notado, era mais simbolicamente fragrante do que
transformador materialmente” (Idem: 128). Não há comparações sim-
ples a serem feitas entre os ex-escravos e as minorias sexuais, mas quero
unir às revelações surdas de Hartman sobre a continuidade da escravidão
por outros meios as formulações de Leo Bersani, Lynda Hart e Heather
Love de histórias e subjetividades queer que são melhor descritas em ter-
mos do masoquismo, da dor e do fracasso do que do domínio, do prazer
e da liberação heroica.Como o modelo de Hartman de uma liberdade
que se imagina nos temos de uma ordem social ainda não alcançada, as-
sim os mapas do desejo que rendem o sujeito incoerente, desorganizado
e passivo provêm uma linha de fuga melhor do que aquelas que levam
inexoravelmente ao sucesso, ao reconhecimento e à aquisição.
Uns poucos exemplos da literatura podem revelar os pontos po-
líticos em um projeto como este que soa como se não tivesse nenhuma
aplicação material. Os textos que considero brevemente aqui propõem
uma forma radical de passividade masoquista que oferece uma crítica,
não apenas da lógica organizadora da agência e da subjetividade elas
mesmas, mas que também surgem de certos sistemas construídos em
torno de uma dialética entre colonizador e colonizado, mestre e escravo.
131 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Por exemplo, na obra de Jamaica Kincaid (1997), o sujeito colonizado


recusa seu papel como colonizado ao recusar ser o quer que seja. Em
Autobiography of My Mother, a protagonista se retira de uma ordem co-
lonial que a compreende como filha, esposa e mãe recusando ser qual-
quer destas identidades e até recusando também a categoria mulher.A
personagem nem mesmo conta sua história de tornar-se tampouco a
história de sua mãe e, apropriando-se da não-história de sua mãe como
sua (Autobiography of My Mother) ela sugere que a mente colonizada
passa de geração para geração e deve-se resistir a ela por meio de um
certo modo de evasão.
Outro exemplo de romance em que a protagonista mulher literal-
mente se desfaz é A professora de piano, da ganhadora do Prêmio Nobel
Elfride Jelinek (1988). Aqui a recusa de ser é vivida no outro fim da
escala do poder: Erika Kohut, a personagem principal, é uma mulher
austríaca solteira na faixa dos 30 que vive com sua mãe na Viena do Pós-
Segunda Guerra Mundial e dá lições de piano em seu tempo livre, en-
quanto colide com sua mãe em uma certa fantasia sobre a música, a Áus-
tria, a alta cultura e sobre a superioridade cultural. Enquanto a história
segue, Erika vagarosamente recua da cumplicidade com uma mitologia
nacional austríaca de grandeza e começa a se pulverizar como que para
destruir tudo que é austríaco dentro de si mesma. Ela se envolve com um
jovem, um de seus estudantes, e pede que ele abuse dela sexualmente e a
maltrate, a destrua, a faça passar fome e a negligencie. Ela quer ser des-
truída e quer destruir seus próprios estudantes neste processo. Enquanto
a narradora do romance de Jamaica Kincaid retira a si mesmo e a sua mãe
das narrativas que o colonialismo contaria sobre elas, Jelinek expõe seu
duo mãe/filha a um escrutínio violento e as encerra em uma dança inces-
tuosa estéril que só terminará com suas mortes. O romance termina com
a protagonista primeiro ferindo um jovem estudante e, depois, cortando
sua própria carne, não exatamente para se matar, mas para continuar a
cortar a parte de si que permanece austríaca, complacente, fascista e con-
formista. Aqui, a passividade de Erika é uma forma de recusar ser um
canal para uma vertente persistente do nacionalismo fascista, seu maso-
quismo ou autoviolação indica seu desejo de matar dentro dela mesma
Discursos fora da ordem 132

as versões do fascismo que estão dentro de seu ser – por meio do gosto,
por meio das respostas emocionais, por meio do amor ao país, o amor à
música, por meio do amor à sua mãe.
Quero concluir com três pequenos takes em algumas cenas de
corte, de excesso masoquista, feminilidade queer e passividade radical.
Cada uma combina raça a gênero, feminilidade a masoquismo e sexua-
lidade com uma contranarrativa do ser como precariedade, e cada uma
representa a feminilidade queer como perigo: em uma, a feminilidade é
uma forma de sacrifício; na outra, a feminilidade queer requer o desapa-
recimento do corpo e, no exemplo final, a feminilidade queer desmonta
à beira do colapso. Todos os três conectam estranheza [queerness] e fe-
minilidade a formas de negatividade que oferecem, ambas, crítica social
e recusa das convenções da crítica social no mesmo gesto.
1) Peça corte: Uma parte considerável da arte performática – fe-
minista ou não – da cena experimental dos anos 1960 e 1970 do século
passado explorara o solo fértil do colapso masoquista.A peça performá-
tica de Faith Wilding,Waiting,retrata a narrativa viva de mulheres como
desejos não-realizados, como antecipação sem fim e como vidas em sus-
penso. Chris Burden permitiu-se ser fotografado em sua peça de perfor-
mance Shoot, de 1971. Em 1974, em “Rhythm 0”, Marina Abramovicz
convidou seu público a usar e abusar dela com 72 objetos que ela deixou
na mesa. Alguns objetos podiam dar prazer, alguns infligir dor, as armas
incluíam uma pistola e uma única bala. Abramovicz tinha isto a dizer
depois da performance:

O que aprendi da experiência foi que... se você deixa a decisão para o


público, você pode ser morta... Senti-me realmente violada: eles cortaram
minhas roupas, enfiaram espinhos de rosa em minha barriga, uma pessoa
apontou a arma na minha cabeça e outra a tirou de suas mãos. Criei uma
atmosfera agressiva.

Em 1965, no Carnegie Hall, em Nova York, quase dez anos


antes,Yoko Ono sentou em um palco, completamente vestida, e deu ao
público um par de tesouras. A performance de nove minutos de Yoko
133 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Ono intitulada “Peça corte” envolve a artista sentada no palco enquan-


to membros da audiência vêm e cortam pedaços de sua roupa. O ato
de cortar aqui é assignado ao público ao invés de à artista e o corpo da
artista se torna o quadro enquanto o gesto autoral é disperso nos gestos
sádicos, sem nome, que desnudam Ono e a deixam aberta e desprote-
gida em relação ao toque do Outro. O público é misto, mas enquanto
a performance acontece mais e mais homens sobem ao palco e eles se
tornam mais e mais agressivos no ato de cortar sua roupa até que ela é
deixada, seminua, as mãos sobre seu peito, sua suposta castração, des-
conforto emocional, vulnerabilidade e passividade completamente à
mostra. Como podemos pensar sobre feminilidade e feminismo aqui no
contexto do masoquismo, apresentação racializada, visualização como
espectador e temporalidade?
Enquanto, obviamente, esta performance não sugere imediatamen-
te um ato “feminista”, quero pensar sobre feminismo aqui em termos
de um comentário em andamento sobre o fragmentário, a submissão e
o sacrifício. Esta performance que se desmonta nos pressiona a indagar
sobre o tipo de sujeito que é desfeito em nove minutos por um público?
É tal ato, e tal modelo de si, feminista? Podemos pensar sobre esta recusa
de si mesma como um ato antiliberal, uma afirmação revolucionária de
oposição pura que conta com o gesto liberal de desafio, mas que acessa
outro léxico do poder e fala outra língua de recusa?
2) Espelhos sombrios: Quero associar a performance de Ono com
um uso explicitamente queer da colagem, da arte do corte, dentro da
qual a tensão entre a energia de rebelião da variação de gênero e a revolta
silenciosa da feminilidade queer vêm à tona. Uma artista queer contem-
porânea de Los Angeles, Monica Majoli, escolhe o tema da escuridão em
sua obra. Majoli realmente usa um espelho escuro para estes rascunhos
e pinturas e tira fotos de suas ex-amantes assim como elas aparecem no
espelho escuro e depois pinta a partir das imagens do espelho. Impos-
sivelmente escuros, impenetráveis, melancólicos e polidos com perda,
estes retratos desafiam a definição de espelho, retrato e mesmo de amor.
Uma imagem de espelho, claro, é, antes de mais nada, um autorretrato
e, assim, as imagens devem ser lidas tanto como uma representação da
Discursos fora da ordem 134

própria artista e descriçõesde casos amorosos após seu fim.Na maioria


dos retratos, Majoli cria um paralelo entre um rascunho ou pintura de
uma figura com uma versão abstrata chamando a atenção para as trevas
de todas as oposições em um espaço especular escurecido – enquanto
uma pintura convencional pode depender de alguma forma de relação
entre a figura e o real, nestes retratos, o fundo preenche a figura com
intensidade emocional, literalmente com escuridão, e nos demanda que
olhemos fortemente na interioridade ela mesma. As versões abstratas
não são mais difíceis ou fáceis de ler ou olhar do que as figuras que nos
lembram que as figuras também são abstrações e que o formato de uma
cabeça ou o delineamento de um seio nada garantem em termos de pre-
sença humana ou conexão ou intimidade. Os retratos são dolorosamen-
te íntimos e, ao mesmo tempo, recusam intimidade. Todas as tentativas
de olhar mais de perto, de criar traços, de entender a trajetória de uma
linha terminam na mesma escuridão fervente, um negro que não é plano
porque ele é uma superfície especular e um espelho que não é profundo
porque ele suga a luz da imagem.
Os retratos feitos depois que o caso amoroso terminou e represen-
tam o que compreendemos como fracasso: o fracasso do amor em durar,
a mortalidade da conexão, a natureza flutuante do desejo. Obviamente, o
desejo está presente em cada gesto da pintura e ainda o desejo aqui, como
o espelho escuro, devora ao invés de gerar, oblitera mais do que ilumina.
As pinturas de Majoli são tecnicamente muito difíceis, mas emocional-
mente também trabalhadas – os desafios técnicos, nomeadamente como
esculpir uma figura por meio da escuridão, como desenhar no escuro, re-
fletem assuntos emocionais e afetivos –, denotam como narrar a relação
que termina, como encarar o fim do desejo, como olhar para os fracas-
sos de alguém, sua mortalidade e limitações. Majoli segura um espelho
escuro para quem vê e insiste que ela olhe dentro do vazio. Ouvindode
volta uma história de representações da homossexualidade como perda e
morte de Proust a Radcliffe Hall, as pinturas de Majoli conversam com a
tradição de imaginar iniciada por Brassia e estendida por Arbus.
3) Wobbling: Em uma peça contemporânea de performance que
começa onde estas artistas saem, uma peça de performance de 55 minu-
135 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

tos intituladaAmerican the Beautiful, Nao Bustamente combina perfor-


mance avant-garde com o burlesco, o ato circense e foge a farsas de artis-
ta. A performance solo casa banalidade, os rigores do adorno feminino
com alta tensão e a trêmula e cambaleante subida do corpo constrangido
em uma escada. Combina a disciplina da performance física com o espe-
táculo de incerteza corporal. O público ri desconfortavelmente durante
a performance, assistindo enquanto Bustamente prende seu corpo nu
com fita colante transparente e, desajeitadamente, se aplica maquiagem
e uma peruca loira desarrumada. Música sentimental tocadocemente ao
fundo e conflita barulhentamente com a performance dura de femini-
lidade que Bustamente encena. Em sua peruca loira e maquiagem, com
sua pele apertada, ela mostra as demandas de beleza feminina racializada.
Para confirmar o perigo de tal beleza ela se inclina e rebola precariamen-
te enquanto usa sapatos de salto alto para subir em uma pequena escada.
Finalmente, Bustamente sobe uma escada muito maior carregando um
fogo de artifício e ameaçando cair a qualquer momento de seu degrau.
Em uma entrevista com José Muñoz, Bustamente se refere à qua-
lidade improvisada de sua obra e clara e brilhantemente associa-se à tese
de que não há tal coisa, a improvisação, em performance e a ideia de que
“espaço fresco” sempre existe. Algo do balanço entre improviso ensaiado e
o imprevisível do “espaço fresco”: marca o trabalho de Bustamente como
uma recusa rigorosa da mestria. Muñoz nomeia positivamente isto na en-
trevistacomo “amadorismo” e, em particular, em relação à performance na
escada em America The Beautiful, e Bustamente concorda mas elabora:
“o trabalho que faço é sobre não conhecer o equipamento e não conhe-
cer aquele particular balanço e, então, encontrá-lo enquanto vou”. Como
ela diz, cada noite a escada é posicionada de forma um pouco diferente
no chão, ou é uma escada diferente, o cambaleio ocorre diferentemente,
tem um espectro diferente e o corpo dela deve responder no local e no
momento da performance às novas configurações do espaço e da incerteza.
Enquanto, obviamente, as performances de Bustamente e Ono não
sugiram imediatamente atos e imagens “feministas”, elas permitem-nos
pensar sobre o feminismo na forma como eu abordava a estranheza [que-
erness] antes, nomeadamente em termos de um comentário presente so-
Discursos fora da ordem 136

bre o fragmentário, a submissão e o sacrifício. Podemos pensar sobre esta


recusa de si como um ato antiliberal, uma declaração anarquista de opo-
sição pura que conta não com o gesto liberal de desafio, mas que acessa
outro léxico de poder e fala outra língua de recusa? A performance de
Ono, racialmente marcada como era em 1965 por seu status como uma
mulher asiática dentro da imaginação imperial, pergunta, em termos
que Hartman poderia reconhecer, se a liberdade pode ser imaginada se-
parada dos termos em que ela é oferecida. Se a liberdade, como Hartman
mostra, foi oferecida ao escravo como uma espécie de contrato com o
capital, então mover-se, ser sem descansar, recusar adquirir propriedade
ou riqueza, flerta com formas de liberdade que são inimagináveis para
aqueles que oferecem liberdade como a liberdade de se tornar domi-
nador. Aqui Ono para, espera pacientemente e passivamente, e recusa
resistir nos temos oferecidos pela estrutura que a interpela. Ser cortada,
desnuda, violada publicamente é uma forma particular de performance
resistente e, nela, Ono habita uma forma de des-agir, deixar de ser, não se
tornar. O estado inanimado de Ono, pontuado apenas por um involun-
tário recuo dentro do evento, como os cortes masoquista em A professora
de piano e as recusas do amor em Autobiografia de minha mãe,oferecem
gestos masoquistas silenciosos que nos convidam a des-pensar o sexo
como aquela narrativa atraente de conexão e liberação e pensar o sexo de
novo como o local do fracasso e da conduta do deixar de ser.

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Por uma cartografia não-normativa das
identificações e do desejo: algumas
reflexões a partir das experiências trans

Márcia Arán

Tendo como referências as novas configurações de gênero e formas


de subjetivação contemporâneas, pretendo discutir as possibilidades da
produção de uma cartografia não-normativa das identificações e do de-
sejo. Para isto, tomarei como referência o debate sobre as transexualida-
des para melhor compreender como se constitui o modelo normativo
das identidades fixas e da diferença sexual, fortemente reiterados pela
biomedicina e pelos saberes psi. O exemplo das transexualidades foi es-
colhido para demonstrar como, nestas racionalidades, gêneros inteligí-
veis são aqueles que mantêm uma continuidade entre sexo, gênero, práti-
cas sexuais e desejo, por intermédio da qual a identidade é reconhecida
e adquire um efeito de substância. Os espectros de descontinuidade e
incoerência que se transformam numa patologia são, desta forma, ape-
nas concebíveis em função deste sistema normativo (Butler, 2003: 39).
Porém, é importante ressaltar que embora esta reflexão se baseie
nas experiências trans1, do meu ponto de vista não existe um processo es-
pecífico de construção de gênero na experiência transexual. Como afirma
Berenice Bento:

1. Esta reflexão tem como referência a pesquisa “Transexualidade e saúde: condições de acesso e cuidado inte-
gral” (IMS-UERJ/MCT/CNPq/MS/SCTIE/DECIT). Esta pesquisa teve como objetivo (1) aprofundar
o conhecimento sobre a genealogia do transtorno de identidade de gênero na biomedicina e nos saberes psi;
(2) analisar as praticas de saúde nos serviços que prestam assistência integral a usuários/as transexuais na rede
de saúde pública no Brasil; (3) analisar a diversidade de construções de gênero e formas de subjetivação na
transexualidade (Arán; Murta, 2009).
Discursos fora da ordem 140

O gênero só existe na prática, na experiência e sua realização se dá mediante


reiterações, cujos conteúdos são interpretações sobre o masculino e o femi-
nino, e um jogo, muitas vezes contraditório, escorregadio, estabelecido com
as normas de gênero. O ato de pôr uma roupa, escolher uma cor, acessório, o
corte de cabelo, a forma de andar, enfim, a estética e a estilística corporal, atos
que fazem o gênero, que visibilizam e estabilizam os corpos na ordem dico-
tomizada dos gêneros. Também os/as mulheres biológicas se fazem na repe-
tição de atos que se supõe sejam naturais. A partir da citacionalidade e uma
suposta origem, transexuais e não transexuais igualam-se. (Bento, 2006: 228)

No entanto, em torno da questão das transexualides pode-se melhor


vislumbrar como se dá a gestão biomédica das subjetividades no contexto
atual da sociedade de controle. Interessa-me refletircomo a produção discur-
siva dos saberes psi sobre a identidade de gênero, por um lado, e sobre uma
operação dita simbólica, que opõe identidade e desejo, e que fundamenta a
noção de diferença sexual, por outro, compõem parte de um núcleo duro
das tecnologias degênero que perpetua a heteronormatividade. Estes sabe-
resproduzem a evidência “de um saber interior sobre si mesmo, de um sen-
tido do eu sexual que aparece como uma realidade emocional‘sou homem’,
‘sou mulher’, ‘sou heterossexual’ ‘sou homossexual’ ” (Preciado, 2008:89).
Esta lógica discursiva é facilmente demonstrável na Psiquiatria, na Sexologia
e em parte na Psicanálise, mas falta ainda percebermos como incorporamos
estes saberes nas nossas próprias pesquisas ou nomovimento social quando,
por exemplo, diferenciamos LGBTT nos referindo ora a orientação sexual,
ora a identidade, como se estas se excluíssem mutuamente2.
Em seguida, a partir da interface entre a Psicanálise, a Filosofia
da Diferença e a Teoria Queer, pretendo esboçar uma cartografia teó-
rica que permita pressupor a plasticidade darelação entre assunção do
sexo, escolha de objeto sexual e uso das tecnologias nas construções de
si. Com base nesta elaboração, pretendo ainda propor novas gramáticas
sexuais para o campo da saúde, reconfigurando as normas de acesso, as
formas de cuidado e os direitos individuais.

2. Para um maior aprofundamento do tema ver Judith Halberstam (2009) e Mauro Cabral (2003).
141 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Sobre a “identidade de gênero”

Para compreender como se dá a gestão técnica e política das modi-


ficações corporais do sexo e a evidência da existência de uma “identidade
de gênero” é importante retomar uma breve genealogia sobre a consti-
tuição do dispositivo da transexualidade.
De acordo com Ilana Löwy (2003), nos anos 1920 e 1950 assisti-
mos a um desenvolvimento significativo e rápido da endocrinologia e da
citologiaque permitiu uma melhor compreensão da biologia da interse-
xualidade, inaugurando a possibilidade da medicina interferir de forma
concreta nas modificações corporais do sexo. Neste contexto a produ-
ção industrial de hormônios sexuais e o aperfeiçoamento das técnicas
de cirurgia plástica promoveram a possibilidade da intervenção médica
sobre o corpo com o objetivo de remediar a ambivalência sexual no caso
de indivíduos intersexos3. Em seguida, nos anos 1950, médicos e psicó-
logos que se dedicaram ao tratamento da intersexualidade começaram
a pesquisar as relações entre “a identidade profunda do indivíduo (core
identity), sua estrutura anatômica, sua fórmula cromossômica e seus
efeitos hormonais (Löwy, 2003: 86), o que teve forte influênciano que
Henry Benjamin chamará de “fenômeno transexual” (Benjamin, 1966).
É importante destacarque na Alemanha, no o início dos anos 1920,
já eram divulgadas as cirurgias de mudança de sexo realizadas no Instituto
de Ciência Sexual de Magnus Hirschfeld. Nesse período Hirschfeld for-
mula a noção de intermediários sexuais para designar variações possíveis
da sexualidade. Outrateoria desenvolvida na época foi a da bissexualidade
humana universal, proposta inicialmente por Wilhem Fliess e Sigmund
Freud. Estas teorias acabaram por desconstruir a noção de sexos distintos
e opostos, oriunda do modelo do dimorfismo sexual, promovendo a ideia
de um continuum entre os sexos que vai desde o hermafroditismo até as
características tênues das sexualidades ditas normais. Tudo isto acompa-
nhado de um movimento jurídico e político que contribuiu em muito
para uma “liberação sexual” sem precedentes. Esse é o panorama no qual,

3. Para um aprofundamento do tema ver Paula Machado (2008).


Discursos fora da ordem 142

no final dos anos 1950, assistimos a um deslocamento do sexo ao gêne-


ro. As teorias dos intermediários sexuais e da bissexualidade humana dão
lugar a uma definição de “sexo psicológico” que vai determinar o con-
ceito de “identidade de gênero” descrito acima, aprimorado por Henry
Benjamin, Jonh Money e Robert Stoller (Arán; Murta, 2009). Estas te-
orias ainda são reiteradas nos manuais diagnósticos e nas racionalidades
biomédicas, em que se destacam os pressupostos discutidos em seguida.
Henry Benjamin (1966) propõe um esquema classificatório com-
posto por oito tipologias que tem o sexo como referência: 1) o sexo cro-
mossômico determinado geneticamente (fêmeas XX e machos XY); 2)
o sexo anatômico (genitália externa); 3) o sexo legal (a expressão pública
e legítima juridicamente da genitália externa); 4) o sexo gonodal (ligado
às gônadas – testículos e ovários); 5) o sexo germinal (reprodução); 6)
o sexo endócrino (influenciado pela presença dos hormônios de mas-
culinização “androgênios” e de feminilização “estrogênios“; 7) o sexo
psicológico (sentimento de pertencimento a um determinado sexo); e
8) o sexo social (processo de educação). No âmbito do que Benjamin
denomina de o “sexo psicológico”, a transexualidade será compreendida
como um fenômeno de desacordo entre sexo e gênero. Este desacordo
seria definido pela convicção que o individuo teria de pertencimento ao
gênero oposto e pelodesejo de realizar uma cirurgia de mudança de sexo.
Em 1947, Jonh Money buscou demonstrar a independência radi-
cal entre o social e o biológico. Deste modo, a educação seria modelado-
ra do gênero dos indivíduos, e este, por sua vez, prevaleceria em relação
ao sexo (Money, 1969). No entanto, o autor seguia um modelo rígido de
determinação da feminilidade e da masculinidade. Características “típi-
cas” de um determinado gênero, tais como gostar de bonecas ou brincar
de bola, eram dados de extremo valor, que, unidos à pressuposição de
uma heterossexualidade natural, definiam como seria a adequação sexu-
al, de modo a extinguir qualquer possibilidade de ambiguidade.
Na obra Os papéis sexuais, Tucker e Money (1981) expõem, de for-
ma detalhada, o que designam como identidade e papel sexual. Os auto-
res definem a formação da identidade sexual como algo imprescindível
na vida do ser humano, que vai fundamentar o sentimento de pertenci-
143 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

mento ao masculino ou ao feminino. Partindo da ideia de esquemas se-


xuais, os autores afirmam que estes esquemas começam a se desenvolver
no cérebro, logo após o nascimento. As relações familiares, num primei-
ro momento, e, em seguida, outros setores sociais são fundamentais para
a construção da identidade sexual, a qual, segundo os autores, se consti-
tui nos três primeiros anos de vida da criança, em paralelo à aquisição da
linguagem e da estrutura de pensamento (Santos, 2010; Löwy, 2003).
Adotando em parte esta trajetória teórica, o psiquiatra e psicanalista
Robert Jesse Stoller (1969) dá continuidade a esta distinção e propõe a
noção de “núcleo de identidade de gênero” como operador central na com-
preensão da experiência transexual. Este conceito designa o sentimento de
ser homem ou mulher, estabelecido no segundo e terceiro anos de vida,
e torna-se uma importante referência nas teorias sobre o transexualismo.
De acordo com este ponto de vista, a definição de transexualismo se baseia
em três aspectos principais: 1) um sentimento de identidade permanente
– crença (no caso do transexualismo masculino) numa essência feminina
sem ambiguidades (diferentemente do transvestismo, por exemplo); 2)
uma relação com o pênis vivida “como horror” (não existindo nenhuma
forma de investimento libidinal); 3) uma especificidade na relação com a
mãe (que o autor chama de simbiose). Considerando, no entanto, que a
capacidade de integração social destas pessoas permanece intacta, Stoller
ressalta que esta relação originária não pode ser considerada psicotizante.
Com a criação de centros de transgenitalização e a elaboração de
protocolos de atendimento com base nas definições dos autores, tornou-
se necessário que as redesignações sexuais fossem inseridas em processos
terapêuticos formais e que os procedimentos fossem normatizados. Foi
assim que Norman Fisk, em 1973, fundamentou uma nosografia psi-
quiátrica para o transexualismo, ancorada fundamentalmente num au-
todiagnóstico, dando origem à noção de transtorno de identidade de
gênero (Murta, 2007).
Nestas teorias, o termo transexualismo e a noção de “transtorno de
identidade” são oriundos de uma racionalidade que pressupõe que o sexo
– masculino ou feminino – é um dado natural, fundamentado em uma
essência orgânica, genética e biológica, eque o gênero é uma construção
Discursos fora da ordem 144

histórica e social, forjado principalmente pela educação e que assume cer-


ta relevância em relação ao sexo. Esta tese, porém, restringe em muito a
possibilidade de compreensão das subjetividades e das sexualidades e da
complexidade da relação entre o corpo e gênero.Como argumenta Mau-
ro Cabral, é importante destacar que para que a socialização, ou seja, para
que o processo de generização aconteça, é necessária a existência de um
corpo, ou seja, de uma materialidade. Nas suas palavras:

Para socializar alguém como menina, para que sua identidade feminina
tenha êxito, é imprescindível que o corpo seja, em sua aparência exterior,
de uma menina standard, capaz de sustentar o olhar e a palavra da sua
mãe, de seu pai e a sua própria percepção como ser sexuado. O corpo
volta, portanto, não como uma determinação a priori – biológica – senão
como uma sustentação material imprescindível da assunção do gênero e
do êxito desta assunção ao longo da vida. (Cabral; Benzur, 2005: 288)

Neste momento se instaura a gestão de um dos mais violentos dis-


positivos do tecnobiopoder contemporâneo: a construção biotecnoló-
gica dos corpos sexuados. Tese esta fortemente contestada por feminis-
tas e teóricos queer.
Teresa de Lauretis (1989), analisando criticamente esta concepção,
afirma que o gênero não é nem um simples derivado do sexo anatômico
ou biológico, nem mesmo o resultado de um imprinting educacional.
Para a autora, o gênero é antes o produto de diferentes tecnologias so-
ciais, ou seja, o efeito cruzado de representações e modos de vida pro-
duzidos pordiferentes dispositivos institucionais: como a educação, a
família, amedicina e a religião; mas também, pelos meios de comunica-
ção: como a internet, o cinema, os jornais, o rádio, a televisão, a arte e a
literatura. Desta forma, o gênero não é propriedade dos corpos nem algo
que existe a priori nos seres humanos ditos masculinos e femininos, mas
o conjunto de efeitos que produz uma ficção reguladora.
Da mesma forma, Judith Butler (2003), ao considerar o gênero
como um efeito performático de subjetivação, que adquire uma estabili-
dade em função da repetição e reiteração de normas, afirma que a cons-
145 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

trução histórica e social das sexualidades pode ser compreendida como


umprocesso de materializaçãoestabilizado ao longo do tempo para pro-
duzir um efeito de naturalização, o qual consiste na definição de limites
e de fronteiras. Neste sentido, o que importa pensar é através de que nor-
mas reguladoras o sexo é materializado e o gênero construído. Seguindo
este raciocínio, os efeitos de gênero, ou mesmo de corpos, entendidos
como produção de subjetividades, emergem na modernidade através da
reiteração da matriz heterossexual constituída ao mesmo tempo pela do-
minação masculina e pela exclusão da homossexualidade.
Nestas condições poderíamos pressupor que asidentificações de
gênero se fazem ao longo da vida, principalmente na primeira infância,
a partir do encontro afetivo e corporal com o outro e com o ambiente,
assim como, num sentido mais amplo, com as tecnologias de gênero que
produzem representações e ações performáticas. No entanto, mesmo que
os processos de introjeção de traços identificatórios signifiquemcerta ter-
ritorialização, é importante pressupor que o ambiente,para usar o termo
de Winnicott (1978), está sempre aberto para as redescrições subjetivas,
sociais e políticas. Embora o gênero seja produto das reiterações da norma
sexual, as identificações não são fixas. Na própria instabilidade da repeti-
ção do mesmo é possível vislumbrar a positividade da subjetivação como
resistência, singularidade e produção de diferença. Como afirma Cabral:

[...] é necessário insistir na complexidade da experiência trans do corpo,


da sexualidade, da expressão de gênero e da identidade. Esta complexida-
de, manifestada em cada narrativa trans particular, não pode ser reduzida,
em sua diversidade, a um único modelo experencial de alcances normati-
vos. (Cabral, 2003: 3)

Sobre a diferença sexual e a heteronormatividade

Outra questão que me interessa ressaltar é como os saberes psi for-


temente influenciados pelo modelo do conflito edípico reiteram uma
racionalidade que opõemidentificação e desejo, ou seja, a velha história
do menino que deseja a mãe e identifica-se com o pai. Este modelo pres-
Discursos fora da ordem 146

supõe que a subjetivação e os processos identificatórios se dão através de


uma triangulação que opera um sistema de opostos sempre baseado na
heteronormatividade.
Eve Sedgwick (1992),ao analisar romances do século XIX centra-
dos em triângulos amorosos, apresentou historicamente a formação desta
nova ordem da sexualidade, demonstrando como emergiram as identifi-
cações de gênero e desejo baseadas nas noções de masculino e feminino
e na homo e heterossexualidade. Segundo Miskolci (2009), no contexto
em que as relações entre homens passam a ser problematizadas social-
mente, emerge o que podemos denominar como homofobia ou heteros-
sexismo, ou seja, não apenas o ódio àqueles que se relacionam com outros
do mesmo sexo, mas tambémum complexo mecanismo social de controle
das relações entre homens para que elas mantivessem sua função de par-
ceria na dominação masculina das mulheres. Assim, para que o modelo
da heterossexualidade se estabeleça como forma social distinta, faz-se
necessáriauma concepção inteligível da homossexualidade e também a
proibição dessa concepção, tornando-a culturalmente ininteligível. É por
isso que em certas concepções psicanalíticasa bissexualidade e a homosse-
xualidade são consideradas predisposições libidinais primárias, e a hete-
rossexualidade é uma construção laboriosa que se baseia no recalcamento
gradual daquelas disposições anteriores (Butler, 2003: 116).
No debate sobre política, sexualidade e novas formas de subjeti-
vação na cultura contemporânea, tem sido recorrente a utilização da
categoria diferença sexual com base no modelo da heteronormativida-
de, como estratégia política de sedimentação do campo social. No âm-
bito da Psicanálise, alguns teóricos de inspiração lacaniana, herdeiros
do estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, sustentam que as normas de
gênero não seriam apenas construções histórico-sociais,neste sentido
contingentes, mas “posições” ditas sexuadas que necessariamente ocu-
pam um lugar pré-determinado pelo campo simbólico, constituído pela
diferenciação entre o masculino e feminino.
Esta concepção estruturalista de sociabilidade faz dos complexos
de Édipo e de castração uma matriz normativa para a sexualidade. Neste
caso, o “primado genital”, travestido de “simbólico”, torna-se o telos em
147 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

relação ao qual a homossexualidade só pode ser pensada como narci-


sismo ou perversão. No caso da transexualidade, para retornarmos ao
nosso tema, esta tese chega a se transformar numa concepção totalmente
dogmática que prescinde, muitas vezes, da própria experiência clínica.
Alguns autores como Henry Frignet (2002), M. Czermak (1982)
e Catherine Millot (1992), consideram a transexualidade como uma
forma específica de psicose. Tendo como base alguns pressupostos de
Freud e Lacan sobre a identidade sexual, os autores propõem uma clínica
estrutural do transexualismo, diferenciando “transexualistas” de “transe-
xuais verdadeiros”, sendo que, nestes últimos, a identidade sexual estaria
foracluída, o que os colocaria “fora (do) sexo”. Devido a essa suposta “fo-
raclusão do nome do pai”, os transexuais ditos masculinos não se iden-
tificariam com “uma mulher” propriamente dita, mas com “A mulher”,
posição idealizada e vivida como plenitude. Nesse sentido, para estes
autores, os transexuais recusariam a diferença sexual e não teriam aces-
so à castração dita simbólica, o que em última instância os aproximaria
da psicose (Arán, 2005). Como afirma Pat Califa (2003: 161), Stoller
elege o modelo médico da sexualidade humana e Millot o modelo ló-
gico da sexuaçãocomo referência, sempre pressupondo que o processo
terapêuticoconsiste em trazer um paciente considerado “anormal” para
o registro da norma, sem considerar como se constituem os movimentos
de normatização, discriminação e abjeção.
É óbvio que não podemos estabelecer a priori quetransexuaisou
transgêneros padeçam de uma patologia ou sejam, necessariamente, por
uma questão de estrutura, psicóticos. A transexualidade não fixa neces-
sariamente uma única posição subjetiva, pois, ao contrário, existe uma
grande diversidade de formas de subjetivação nas experiências trans. Isto
quer dizer que numa relação terapêutica, os sujeitos podem apresentar
um funcionamento “normal”, histérico, obsessivo, borderline, psicosso-
mático ou mesmo psicótico (como qualquer outra pessoa).Como afir-
mei em outros momentos, é importante deslocar a manifestação social e
políticada transexualidade da necessidade de traduzi-la imediatamente
numa estrutura ou num modo de funcionamento específico (Arán; Zai-
dhaft; Murta, 2008).
Discursos fora da ordem 148

Este gesto exige que as concepções teóricas que fundamentam os


saberes psi, estabeleçam uma relação mais produtiva com as novas for-
mas de construção de gêneros na cultura contemporânea, em que as di-
ferenças, singularidades e alteridades não necessariamente sigam os pre-
ceitos do modelo normativo da diferença sexual. Sendo assim, importa
pensar como cada indivíduo, na sua singularidade, vive a diferença para
além das definições prescritivas da heteronormatividade.
No campo da saúde, este pressuposto exige imediatamente a des-
patologização da transexualidade, já que esta definição tem sido utiliza-
da mais como uma forma de regulamentação do acesso à assistência do
que propriamente a constatação e o tratamento de uma psicopatologia
psiquiátrica. A partir da noção de integralidade, um dos princípios do
Sistema Único de Saúde (SUS)brasileiro, pode-se reconhecer o sofri-
mento psíquico e corporal como critério de acesso, sem que necessaria-
mente este sofrimento seja patologizado. Para isto torna-se necessário a
realização do deslocamento de um modelo que parte da noção de “tran-
sexual verdadeiro” para a concepção da diversidade trans que exige a in-
dividualização do cuidado.

Por uma cartografia não-normativa das identificações e do


desejo

Uma cartografia não-normativa das identificações e do desejopressupõe


quea instabilidade das normas de gênero permite afrouxar a relação entre
a assunção do sexo, a escolha do objeto sexual e o uso das tecnologias na
construção de si. Neste sentido, formas de subjetivação se constituem por
deslocamentos e substituições que não necessariamente se ajustam aos mo-
delos supostamente normais da sexuação, ou seja, a heteronormatividade.
Segundo Butler, por exemplo, uma mulher pode encontrar o resíduo fantas-
mático de seu pai em outra mulher ou substituir seu desejo pela mãe por um
homem, e nesse momento se produz certo entrecruzamento de desejos he-
terossexuais e homossexuais. Temos de problematizar esta racionalidade que
pressupõe que deslocamentos coerentemente heterossexualizados requerem
que as identificações se efetuem sobre a base de corpos similarmente sexua-
149 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

dos, e que o desejo se desvie através da divisão sexual para membros do sexo
oposto. Se um homem pode identificar-se com sua mãe e desejar partindo
dessa identificação, ele de algum modo já confundiu a descrição psíquica do
desenvolvimento de gênero estável. E se esse mesmo homem deseja outro
homem ou uma mulher, será que o seu desejo é homossexual, heterossexual
ou mesmo lésbico? E o que significa restringir qualquer indivíduo dado a
uma única identificação? (Butler, 1993: 99; Arán; Peixoto Jr., 2007)

É importante ressaltar que esta referência por parte dos autoresà


identificação múltipla não equivale a sugerir que todos se sintam compe-
lidos a ser ou ter tal fluidez identificatória, mas sim que estes processos
estão abertos para uma diversidade de possibilidades. No entanto, a mo-
bilização das categorias do sexo no discurso político e os movimentos de
desidentificação podem ser cruciais para a realização de deslocamentos
das normas reguladoras pelas quais a identidade fixa e a diferença sexual
são materializadas e que tanto feministas quanto políticos queer possam
se mobilizar em torno destes processos para a rearticulação da contesta-
ção democrática.
Diante disso, como afirma Rosi Braidotti, uma das questões que
está em jogo é a maneira de conciliar parcialidades edescontinuidades
com a construção de novas formas de relações e projetos políticos cole-
tivos. A autora utiliza a figuração “subjetividades nômades” como forma
de resistência política às visões hegemônicas e excludentes das subjetivi-
dades. No entanto, argumenta que o nômade não representa a falta de
um lugar, nem um deslocamento compulsivo e sim a figuração de um su-
jeito que renuncia a toda ideia, desejo ou nostalgia do estabelecido. Esta
figuração expressa o desejo de uma identidade feita de transições, de des-
locamentos sucessivos, de movimentos que prescindem deuma unidade
essencial, mas que ao mesmo tempo não está completamente desprovida
de unidade. Uma espécie de consciência crítica que resiste a estabelecer
os modos socialmente codificados de pensamento e de conduta. Uma
forma de resistência política às visões hegemônicas e excludentes da sub-
jetividade. “Possessão de um sentido de identidade que não se baseie no
fixo e sim no contingente” (Braidotti, 2000: 59).
Discursos fora da ordem 150

Para concluir e retomar, pela última vez, o exemplo das transexua-


lidades, Deleuze e Guattari, quando teorizam sobre o devir – no intuito
de desconstruir as identidades fixas e os binarismos sexuais afirmando o
caráter positivo da diferença, entendida como sendo um processo múl-
tiplo e constante de transformação – consideram que:

Os ritos de transvestismo e de travestimento nas sociedades primitivas


onde o homem torna-se mulher, não se explicam nem por uma organi-
zação social que faria corresponder relações dadas, nem por uma organi-
zação psíquica que faria com que o homem desejasse ser mulher quanto
a mulher ser homem. A estrutura social, a identificação psíquica, deixam
de lado demasiados fatores especiais: o encadeamento, as precipitaçõese
a comunicação de devires que a travesti [transgênero] desencadeia. A po-
tência do devir-animal que decorre disso; e sobretudo a pertença desses
devires a uma máquina de guerra específica. É a mesma coisa para a sexu-
alidade: esta se explica mal pela organização binária dos sexos e não se ex-
plica melhor pela organização sexual por cada um dos dois. A sexualidade
coloca em jogo devires conjugados demasiadamente diversos que são os
n sexos, toda uma máquina de guerra pela qual o amor passa (Deleuze;
Guattari, 2005: 71).

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Construindo saberes e compartilhando
desafios na clínica da travestilidade

Flavia do Bonsucesso Teixeira, Rita Martins


Godoy Rocha e Emerson Fernando Rasera

No espaço da consulta, o encontro dos mundos:

“esse lugar... ser atendida aqui no ambulatório é um luxo sim. Porque é só


para nós, nós que não temos lugar nenhum”.
(Bruna, 2007)

Escolhemos um fragmento da fala de Bruna para iniciar nossa dis-


cussão, primeiramente porque ela foi uma de nossas primeiras usuárias
e, posteriormente, porque sua morte nos ajudou a pensar sobre os limi-
tes entre ter um lugar e ser o lugar do cuidado. O Ambulatório Saúde
das Travestis foi inaugurado no Complexo do Hospital das Clínicas da
Universidade Federal de Uberlândia em setembro de 20071, sendo o úl-
timo eixo de intervenção a ser construído devido à complexidade de se
implantar um espaço de prestação de serviço em saúde que considerasse

1. As reflexões aqui desenvolvidas são decorrentes do acompanhamento do Programa de Extensão intitulado


Em Cima do Salto: Saúde, Educação e Cidadania”, que iniciou suas atividades em 2006, vinculado à Faculdade
de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia. Durante esse período, consolidamos um conjunto de
ações por meio de eixos de atuação, visando oferecer serviço de qualidade que contribuísse para diminuir a
situação de vulnerabilidade das travestis e que promovesse a constituição de projetos de atenção/assistência
em saúde para atender demandas específicas das travestis. A equipe inicial foi composta por um professor/
orientador de Clínica Médica, um professor/orientador de Psicologia, uma professora/orientadora de An-
tropologia, sete estudantes do curso de Medicina do décimo e sexto períodos, um estudante de Psicologia do
sétimo período. O ambulatório funciona semanalmente, nas quintas-feiras, de 17h30 às 21h30, e o agenda-
mento é realizado por telefone ou por meio dos outros projetos do programa. O acolhimento também ocorre
por demanda espontânea.
Discursos fora da ordem 156

os aspectos do ensino, da pesquisa e da extensão orientados pelos prin-


cípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) para uma clientela,
até então, (des)conhecida do serviço de saúde oficial.
As primeiras reflexões sobre essa experiência (Brito et. al., 2009)
trataram de aspectos relacionados aos desafios da construção dos es-
paços de cuidado e da dificuldade de se propor fluxos e normatizações
para os atendimentos, questionando e alargando os limites propostos
pelos protocolos legitimados e informados pela lógica da heteronor-
matividade. A clínica tornou-se o espaço da alteridade, em que o ponto
de partida não seria estabelecido pela suposta segurança ao posicionar
as travestis e/ou transexuais em categorias diagnósticas indicativas de
transtornos ou distúrbios – da sexualidade ou do gênero –, mas sim pela
compreensão de que, ao buscarem esse serviço específico, suas particu-
laridades importariam e não seriam relegadas a um processo de exclusão
e ao silenciamento. Pensar o cuidado em saúde, no contexto da clínica,
questionando a hegemonia dos saberes médico e psi é um compromisso
(e um desafio) reiterado no cotidiano de nossas ações.
Para o trabalho aqui proposto, privilegiamos a construção de sen-
tidos para o cuidado em saúde a partir dos olhares que se encontram no
momento da consulta no ambulatório. Recortamos fragmentos de ca-
sos clínicos dos atendimentos realizados no período de janeiro de 2009
até julho de 2010, analisados a partir de uma perspectiva qualitativa, na
tentativa de oferecer subsídios para discutir o significado do cuidado em
saúde e a importância do conhecimento da complexa teia de relações
que envolve os diferentes sujeitos que se apresentam, por vezes, através
de uma simples solicitação de exame.
Nesse período, foram atendidas cerca de 65 travestis e 6 transe-
xuais no ambulatório, constituindo um total de 180 atendimentos, in-
cluindo os retornos. A média de idade do grupo atendido é de 24,9 anos.
Em relação ao acesso ao serviço de saúde, informam que, em média, este
se deu há um ano sem especificações quanto à especialidade. Sobre o
estado civil, 94% se identificam solteiras, 4% casadas e 2% namorando.
Em quesitos relativos à raça, 47% se consideram brancas, 40% pardas/
morenas e 12,5% negras. No que se refere à moradia, cerca de 75% resi-
157 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

dem em casas com outras travestis, 15% moram com a família nuclear,
4% residem com o companheiro e 2% sozinhas.
Em relação à procedência, 48% informam ter nascido na cidade de
Uberlândia e o restante seria procedente de várias partes do Brasil: 10%
migraram da região Norte; 8% da região Nordeste; 6% da região Cen-
tro-Oeste, com destaque para o estado de Goiás; 25% da região Sudeste,
sendo que 10% de cidades próximas a Uberlândia. Não foi identificada
nenhuma procedência do sul do país. A ausência das travestis oriundas da
região não reflete a ausência das mesmas em outros projetos do programa,
ou mesmo nos espaços das casas e da prostituição. Flavia Teixeira (2008)
aponta para o deslocamento para a cidade de Uberlândia como uma etapa
para a realização do projeto migratório, preferencialmente a Itália. O fato
de 52% de travestis procederem de outras regiões tem respaldo na literatu-
ra que indica um trânsito interno significativo de travestis no Brasil.
Também em consonância com os estudos sobre as dificuldades de
acesso e permanência das travestis na escola, a escolaridade do grupo anali-
sado situa-se, em cerca de 80% dos casos, no ensino fundamental. A socia-
lização vivida nas ruas parece substituir o direito à experiência na escola.
Frases soltas como “estudei na calçada”, “aprendi tudo na rua” são aciona-
das diante da pergunta sobre escolaridade e mais parecem uma justificativa
para o processo de expulsão, visto que muitas vezes não o conseguem no-
mear e acreditam ser uma escolha (responsabilidade) individual2.
A demanda principal pelo ambulatório é para atendimento clíni-
co em geral, desde o que denominam por check-up a queixas por lesões
dermatológicas, irritações, náuseas, realização de exames para sorologia
HIV e DST, seguida por hormonioterapia3 e complicações por silicone
injetável.
Considerando as vivências da equipe no atendimento ambulato-
rial a essa população e as lacunas da literatura a esse respeito, destaca-

2. Os trabalhos dos antropólogos Hélio Silva (1993), Mônica Siqueira (2004), Marcos Benedetti (2005) e La-
rissa Pelúcio (2007) com as travestis em diferentes locais se referem a um processo de subjetivação, “um modo
de ser travesti”, tendo como orientadoras (professoras) as travestis mais velhas.
3. A construção do Protocolo para Uso do Hormônio segue a recomendação da Profa. Dra. Mariluza Terra
Silveira, coordenadora do Programa de Transexuais da Universidade Federal de Goiás, e as adequações neces-
sárias para as travestis são discutidas com a mesma (Silveira, 2010: 29).
Discursos fora da ordem 158

remos quatro aspectos significativos do modo de construção da relação


das travestis com o cuidado e o serviço de saúde, quais sejam: o diagnós-
tico e tratamento em HIV/aids; o uso de hormônio; o abuso de drogas
e a importância do nome social.

Aids: a promessa de um destino e a possibilidade de agência

Considerando que 98% das travestis relatam histórico de práticas


de sexo desprotegido, a sorologia aparece, nos relatos das travestis e da
equipe de saúde, como uma questão significativa nas consultas.
As travestis demonstram receio em relação ao tema, e a equipe ten-
ta manejar tal sentimento, buscando aberturas ao diálogo e a possibili-
dade de empoderá-las nessa decisão sobre a realização do exame. Assim
como identificado em outros contextos, a aids é comumente denomina-
da no ambulatório como tia:

Entre as travestis a aids pode ser silenciada e, até mesmo, negada, sendo
quase um tema tabu, sobre o qual se calam, tornando-o impronunciável.
Talvez por isso, entre elas, a aids tenha recebido nomes carinhosos: “tia
Lili”, ou simplesmente “tia” (denotando parentesco, afinidade, alguém
mais velho que cuida); “babadinho”, “bichinho”. (Pelúcio, 2007: 221; des-
taques no original)

Ao performarem, através da linguagem, uma relação de parentesco


com a aids, as travestis dizem de uma relação inevitável. Não se escolhe
integrar uma rede de parentesco, simplesmente e fatidicamente, passa-
mos a “fazer parte”. “Tia”, ainda que seja aquela tia que não é a mais que-
rida entre os familiares, é, ainda assim, a “Tia”: ela está lá, integrando o
álbum de fotografia e os almoços de domingo. Esta suposta familiari-
dade com a aids, no entanto, não traduz uma relação de tranquilidade.
A relação com a aids aparece de modo peculiar desde o momento
em que o tema é introduzido na consulta. Por vezes, a realização do exa-
me não é consentida e a temática é retomada em outros atendimentos,
nem sempre logrando êxito. Ainda que exista o desejo manifesto de sua
159 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

realização ou o consentimento para fazê-lo, a dificuldade retorna, agora


com maior propriedade, diante da necessidade da segunda amostra. Nesse
momento, algumas travestis tendem a se afastar de um diagnóstico, o que
se configura num cenário de desistência que as impossibilitaria de receber
um resultado indesejado, mas também que as afastaria do ambulatório.
Aprender a lidar com a autonomia das travestis para a decisão
sobre o momento oportuno para a realização do exame e, ao mesmo
tempo, trabalhar para a identificação precoce da infecção são desafios
constantes. Trata-se de encontrar o fio que equilibra o respeito à autono-
mia do sujeito, garantindo o seu direito aos cuidados em saúde, e (des)
estabiliza a força prescritiva do poder médico nos cuidados em saúde.
A perspectiva dialógica que embasa o atendimento do ambulatório sus-
tenta, como ato de educação em saúde, a permanente negociação entre
profissional de saúde e travesti sobre os caminhos do cuidado a serem
trilhados conjuntamente.
Embora a travesti pudesse ser posicionada como sujeito desacre-
ditável (Goffman, 1988), ao nomear a aids como tia, enunciando seu
caráter compulsório, essa nomeação parece muito mais informar uma
inexorabilidade sobre a qual não se exerce agência, portanto seria estar a
priori no lugar de sujeito desacreditado4. Nessa interação, compreender
também o deslocamento produzido pelo resultado negativo do exame,
parece acrescentar novos tons a um cenário de estigmatização, pois o
resultado positivo está longe de ser “uma mera constatação da realidade”.
As recorrentes desconfianças sobre a confidencialidade do resultado do
exame são trazidas como contrapontos à exibição do resultado negativo
– ao se defrontarem com o resultado negativo de seu exame, são comuns
as expressões: “vou colocar na porta do quarto”, “vou fazer um quadro”,
“vou tirar xerox e distribuir” – e ao silenciamento que denuncia o seu
oposto, ou no mínimo preserva um “quase segredo”.

4. Segundo Goffman (1988), quem porta um estigma está inabilitado para uma aceitação social plena; este seria
um traço que poderia se impor e afastar os outros atributos da pessoa. Para o autor, o estigma pode apresentar-
se em uma dupla perspectiva: a primeira, quando a característica que distingue o estigmatizado é conhecida ou
imediatamente evidente, posicionando o indivíduo como desacreditado; e a segunda quando a característica
que distingue o estigmatizado não é conhecida nem imediatamente perceptível, posicionando o indivíduo
como desacreditável. Passar da categoria indivíduo desacreditável para a desacreditado pode tornar a vida do
sujeito insuportável.
Discursos fora da ordem 160

Guida, 25 anos, residente em Uberlândia há cerca de três anos, par-


ticipativa em outros projetos do programa, relutava em agendar o retorno
ao ambulatório. Apesar de sua primeira consulta ter se dado logo na inau-
guração, o retorno para acompanhamento, após a solicitação da segunda
coleta, não ocorreu. Realizamos busca ativa para discutir a ausência e ela
justificou dizendo: “Eu não estou preparada para essa resposta agora. Eu
sei do resultado, mas, mesmo assim, enquanto não tem a última resposta,
tem sempre uma esperança”. Embora tenha retornado para outros proce-
dimentos no ambulatório, a recusa do exame permanece.
Paradoxalmente, embora a demanda para a realização da sorologia
para HIV apareça no momento da consulta, favorecida pela sensibiliza-
ção feita pelo profissional de saúde, ela é também a causa para o aban-
dono do ambulatório. Assim como Guida, outras seis pacientes, após
receberem a solicitação para a segunda coleta, não fizeram o exame e
não retornaram para o ambulatório; 12 pacientes não realizaram sequer
a primeira amostra, ainda que tivessem concordado com a solicitação.
Parece que, para essas travestis, o não recebimento de um resultado ne-
gativo quando da primeira amostra é significado como um resultado
positivo que não precisa ser confirmado. Nos fragmentos a seguir, desta-
caremos como a associação entre ser travesti e ter aids constituiu-se num
discurso capaz de performar realidades (Butler, 2004a).
Tereza tem 23 anos e morava no Brasil e na Itália, alternadamente.
Ao agendar sua consulta no ambulatório, justificou dizendo de um fu-
turo retorno à Itália, o que motivou a demanda pela realização de uma
avaliação de saúde. Além disso, ela relata situações em que se expôs a
práticas sexuais desprotegidas e que, por essa razão, estava certa sobre o
resultado positivo de sorologia para o HIV.
Diante do resultado negativo do exame, recusou-se a acreditar.
Solicitou, insistentemente, a realização de novo exame e deixou o con-
sultório afirmando que realizaria nova testagem no sistema privado. Po-
deríamos pensar na relação de desconfiança com o sistema público de
saúde, tantas vezes reiterado pela grande mídia. No entanto, seu retorno
permitiu ampliar a possibilidade explicativa, pois relatou que aquela se-
ria a 18ª vez que realizaria o exame, incluindo os realizados nos sistemas
161 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

públicos e privados do Brasil e Itália. Seu questionamento apontava a


confusão gerada por não compartilhar um destino tido como comum a
toda travesti. Tereza dizia de sua dificuldade em ser travesti sem ter aids.
Clenis tem 30 anos e reside em uma casa de apoio para portadores
do HIV denominada FALE5. A queixa principal na primeira consulta foi
relacionada à presença de lesões dermatológicas na região das nádegas,
devido a complicações por silicone industrial. Clenis solicitou o encami-
nhamento para realizar sorologia para HIV. Diante do resultado negati-
vo para HIV, Clenis informou que nunca havia realizado o exame, mas
que sua condição de travesti, profissional do sexo e seu relacionamento
afetivo-sexual desprotegido com um suposto portador, fizeram com que
ela e seu grupo “diagnosticassem” a condição sorológica da mesma.
A legitimidade do ingresso e da permanência de Clenis na FALE in-
dependiam de sua sorologia. A suposta naturalização da correspondência
entre travesti e aids produz um efeito de verdade que dispensa, inclusive,
a realização de práticas e protocolos – extremamente valorizados no con-
texto da clínica –, reiterando um discurso que nem sempre é verbalizado,
mas que constitui efeitos de realidade: “destino de travesti é ter aids”6.
Entendemos também, nesse contexto, ser relevante a discussão so-
bre a compreensão do grupo em relação à janela imunológica7. Durante
as ações de educação em saúde e em outros espaços de interação, fomos
questionados sobre a possibilidade de que o intervalo entre a infecção pelo
vírus HIV e a detecção de anticorpos anti-HIVpudesse durar anos. Apesar

5. A Instituição Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (FALE), de Uberlândia, é reconhecida como desti-
nada a abrigar “portadores de Aids”.
6. Acreditamos que esta relação tenha sido iniciada nos anos 1980, porém William Peres (2005) problematizou
a dificuldade de se pensar em projetos de vidas com as travestis diante de uma expectativa compartilhada
da morte que aparece historicamente atrelada à situação de violência. Existe um consenso de que, embora
a violência contra as travestis tenha diminuído, a violência permanece como causa significativa de óbitos,
compartilhando o espaço com as doenças decorrentes da Aids. No entanto, não temos dados seguros sobre
essa mortalidade, porque nem mesmo as mortes de travestis por causas externas (violências) podem ser quan-
tificadas, uma vez que estas integram os relatórios e laudos como óbitos de homens. O reconhecimento da
precariedade destas vidas pode ser sustentado pelas afirmações sobre a baixa expectativa de vida das travestis
brasileiras (aproximadamente 30 anos) proferidas durante diferentes eventos organizados pelo Ministério da
Saúde, sem que em nenhuma situação houvesse contestação dessas afirmações.
7. Janela imunológica é o intervalo de tempo entre a infecção pelo vírus da aids e a produção de anticorpos
anti-HIV no sangue. Esses anticorpos são produzidos pelo sistema de defesa do organismo em resposta ao
HIV e os exames irão detectar a presença dos anticorpos, o que confirmará a infecção pelo vírus. Informação
disponível no site do Departamento Nacional de Aids e Hepatites Virais no endereço eletrônico: <http://
www.aids.gov.br/pagina/o-que-e-janela-imunologica>. Consultado em dezembro de 2010.
Discursos fora da ordem 162

de as travestis terem as informações objetivas sobre tal situação, pairava


um questionamento insistente em relação a isso. É como se a aids fosse
inevitável e tivesse tomado todos os corpos travestis, aguardando apenas
o momento futuro para sua identificação. Nesse processo, a infecção pelo
HIV deixa de ser entendida como um risco e passa a estar associada a um
destino inescapável. A aids seria, assim, um devir para toda travesti.
Essa forma de significação da aids nesse universo se constitui como
uma profecia autorrealizadora por meio da qual as travestis, por se jul-
garem a priori como infectadas pelo HIV, em decorrência de sua tra-
vestilidade, deixam de se proteger e então se infectam. Ao sustentarem
tal modo de entender a travestilidade, reafirmam a associação entre ser
travesti e portadora do HIV.
Apesar de amplamente compartilhado, tal destino é sempre vela-
do. Ele é compartilhado, mas pouco discutido ou explicitado. Há como
um pacto de silêncio em relação a ele. Assim, a infecção pelo HIV, quan-
do ocorre, é tipicamente vivida de forma isolada. Identificar-se no grupo
como uma travesti portadora do HIV parece transgredir tal acordo gru-
pal, o que pode gerar diferentes penalidades8.
No universo em discussão, apenas duas travestis informaram na
primeira consulta serem soropositivas. Uma referiu acompanhamento
regular e a outra abandonou o tratamento, interrompeu o uso de me-
dicamento e recusou encaminhamento para novo ingresso nos serviços
oferecidos na cidade.

Hormônios, medicamentos e silicone: a circulação dos senti-


dos na construção do feminino

O uso do hormônio é cotidiano entre as travestis e envolve uma


das primeiras iniciativas na construção do feminino, aparecendo como
vinculada às possibilidades iniciais para a sua constituição. Entre as tra-
vestis atendidas, 92% já fizeram ou fazem uso (ou abuso) de hormônios

8. Temos observado, de 2006 a 2010, as dificuldades enfrentadas pelas travestis que se identificam como soropo-
sitivas de pautarem temáticas sobre suas vivências, necessidades e expectativas durante os Entlaids (Encontro
Nacional de Travestis e Transexuais na Luta contra a Aids).
163 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

para modificação corporal, nesse contexto, a partir da automedicação.


Pensamos o uso e o abuso dos hormônios na perspectiva que busca fazer
dialogar os saberes e práticas das travestis e os nossos saberes oficiais.
Os protocolos para administração de hormônios utilizados por
nossa equipe são resultantes das pesquisas que visam atender às pessoas
transexuais e, portanto, resultam de conhecimentos acumulados sobre
a temática9. As adequações para as travestis fazem parte da construção
de um saber cotidiano que, por questões de recorte, fogem ao objetivo
deste trabalho, mas esta digressão justifica-se para registrarmos a neces-
sidade de incentivos para pesquisas na área10.
É recorrente o relato do uso de contraceptivos hormonais, tais
como Perlutan, em doses abusivas, semanalmente, intercalados à in-
gestão diária de contraceptivo hormonal oral ou à ingestão única de
uma cartela de contraceptivo hormonal oral na semana. A informa-
ção, a disponibilidade para o acompanhamento na hormonioterapia e
a possibilidade da escuta sobre suas práticas – num ambiente de con-
fiança – têm produzido modificação da percepção e do uso dos hor-
mônios pelas travestis.
O uso do hormônio é compreendido pela equipe seguindo a trilha
apontada por Marcos Benedetti (2005), na qual o hormônio é conce-
bido como o veículo do feminino, pela constituição de silhuetas arre-
dondadas, o desenvolvimento de seios e a suavização da pele. Contudo,
o uso do hormônio carrega elementos não desejados pelas travestis, in-
terpretados por elas como um processo de “enfraquecimento do corpo”
porque “afina o sangue”, e exteriorizado na labilidade emocional e irri-
tabilidade. Não são todos os atributos que estão atrelados ao marcador
do gênero feminino que as travestis desejam, elas também se mostram
ameaçadas por uma suposta fragilidade do feminino.

9. Nosso agradecimento à Dra. Mariluza Terra Silveira, coordenadora do Programa de Transexualidade da Uni-
versidade Federal de Goiás, que capacitou e mantém um diálogo constante com a nossa equipe.
10. Necessidade explicitada nas diretrizes das políticas públicas, como por exemplo: Política Nacional de Saú-
de Integral LGBT (Ministério da Saúde, 2010), disponível em: <http://www.ccr.org.br/uploads/noticias/
Pol%C3%ADtica_nacionalLGBT.pdf>; e do Plano de Enfrentamento da Epidemia de Aids e das DST entre
Gays, HSH e Travestis (Ministério da Saúde, 2007), disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publi-
cacoes/plano_enfrentamento_epidemia_aids_hsh.pdf>. Essas Políticasforam corroboradas pelas delibera-
ções dos Entlaids realizados em 2007, 2008, 2009 e 2010.
Discursos fora da ordem 164

A partir da compreensão de que, para as travestis, o feminino re-


presentado pelo uso do hormônio, ao circular no corpo, o enfraquece e
fragiliza, despertando desconfianças sobre sua potência, inferimos sobre
a função de um outro medicamento, comum a esse universo: o Benzeta-
cil. São recorrentes os relatos, nas consultas e também nos encontros de
educação em saúde, de autoadministração do Benzetacil. Considerado
um medicamento muito forte, sua recomendação se faz a partir do reco-
nhecimento de que ele fortalece e cura. Os primeiros relatos sobre o uso
do medicamento nos remeteram a pensar na sua indicação como medi-
camento preferencial para tratamento dasífilis. Posteriormente, com a
recorrência dos relatos, percebemos que algumas travestis utilizam esse
medicamento com frequências mensais, para suavizar os efeitos da su-
posta “fragilidade” provocada pelo feminino do hormônio.
Os usos dos medicamentos nesse universo sugerem a busca de
equilíbrio entre duas tensões: uma que constitui e marca o trânsito da
travesti mediada pelo feminino; e outra que, revestida pelas palavras for-
ça e potência, aciona os marcadores masculinos. Ao materializarem “um
corpo ambíguo”, elas desestabilizam as normas que conferem legitimida-
de aos corpos. Essa ambiguidade constitui um desafio para a lógica biná-
ria com a qual aprendemos a interpretar o mundo, e, porque não dizer, a
nossa forma de compreender os processos de saúde-adoecimento-cuida-
do. Estar na fronteira, reivindicar o pênis sem necessariamente avocar a
posição de homem, construir um corpo feminino deslocado do status de
mulher e transitar nos dois gêneros são situações que colocariam as tra-
vestis num outro projeto de reconhecimento que exige dos profissionais
um deslocamento e uma conduta que ainda é muito incipiente, mas que
pode ser fortalecida a partir das políticas públicas.
Estarmos atentos para os diferentes saberes e crenças sobre a anato-
mia e a fisiologia do corpo, os modelos explicativos sobre seu funciona-
mento e as estratégias de cuidado das pessoas em geral são prerrogativas
para uma conduta adequada em saúde. Aqui, particularmente, reafirma-
mos que nossa disponibilidade para compreender as travestis nas suas
especificidades, nas diversidades de suas práticas, possibilitou uma rela-
ção de cuidado que produz novos conhecimentos sobre o grupo, como
o exemplo a seguir.
165 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Lívia, 27 anos, procurou o ambulatório com a queixa referente a


uma lesão ulcerada na mucosa oral. O formato da lesão era sugestivo de
sífilis, porém apresentava um quadro bastante atípico. Ao ser investiga-
da sobre o uso de Benzetacil, informou que havia utilizado na semana
anterior, uma única dose, indicada por uma amiga. Como se vê, é neces-
sário pensar as implicações dos contextos, alertando para a necessidade
de um olhar na clínica que reconheça os múltiplos sujeitos que buscam
o cuidado.
Numa outra perspectiva, temos outro relato. Apesar de ser infor-
mada sobre o resultado de seu exame em que fora diagnosticada com sí-
filis, Silvia, 20 anos, manteve a recusa anterior de coletar a amostra para
sorologia de HIV. Embora a equipe discutisse que seria inviável e inócua
a ação terapêutica sem o diagnóstico da soropositividade, manteve a de-
terminação de não realizar o exame. Após as informações necessárias e
a assinatura do termo de responsabilidade, o atendimento dela se encer-
rou com um sentimento de fracasso da equipe. Apesar da compreensão
da equipe sobre o significado do resultado do exame e dos medos da pa-
ciente, ainda é difícil o manejo de questões que envolvem a autonomia
do paciente e a recusa de tratamento. Silvia permanece no programa e,
em outro momento, declarou que: “Eu vou me tratar sozinha, vou to-
mar umas 30 Benzetacil e quero ver se não saro”. Novamente, foi retoma-
da a questão de que a recusa não significa abandono ou punição, mas é
necessário considerar que os corpos e os sujeitos alojados na tradição do
discurso médico são corpos cartesianos, que se aproximam da metáfora
do homem-máquina; não são os corpos pensados e (re)construídos no
campo dos debates dos quais estamos participando.
As intervenções no corpo e o cuidado de si, além dos hormônios
e medicamentos, incluem o uso do silicone. Como já apontado pelas et-
nografias sobre as travestis no Brasil (Benedetti, 2005; Pelúcio, 2007), é
comum a prática de “bombar” o corpo, ou seja, de aplicar silicone líquido
para moldar a silhueta do corpo da travesti, dando-lhe formas mais arre-
dondadas e femininas. No trabalho cotidiano, vários são os momentos em
que este tema aparece na conversa, envolvendo desejo e receio. Por um
lado, a aplicação do silicone constitui um passo fundamental na constru-
Discursos fora da ordem 166

ção do corpo, marcando definitivamente sua inserção no universo travesti


e fazendo dessa prática algo unanimemente valorizado pelas travestis. Por
outro lado, é de conhecimento delas as possíveis complicações decorrentes
do uso do silicone líquido, gerando preocupação e a sensação de perigo.
Considerando esse duplo olhar para o uso do silicone, ações da
equipe têm permitido ampliar as possibilidades de relação com essa prá-
tica. Ao longo do último ano, muitas travestis têm investido simbólica
e materialmente na utilização de próteses de silicone para aplicação nos
seios. Trata-se de uma opção que considera o resultado estético e os maio-
res riscos de uso do silicone injetável nesta região do corpo, que, devido à
sua proximidade com o coração, pode colocar em risco o órgão que sim-
bolicamente “é a própria vida”. Ao mesmo tempo, a prática de “bombar” as
nádegas permanece difundida, considerada pelas travestis como de menor
risco e, por produzir melhores efeitos que as próteses de silicone, daria
“uma aparência mais natural e feminina”, conforme afirmam as travestis.
Buscando outro olhar face às construções das travestis, numa gramá-
tica que amplia a relação homem-máquina, caminhamos na construção de
uma relação de cuidado em que as crenças das travestis sobre a estrutura e
o funcionamento dos seus corpos são consideradas – para além dos sinto-
mas, queixas ou sinais clínicos – e compreendidas como elementos consti-
tuintes de um discurso que revela um modo de estar no mundo.

Autonomia, responsabilidade e dependência: um cenário turvo11

O uso de drogas é um tema que tem se apresentado como transver-


sal a todos os atendimentos e que tem se configurado como um desafio
para pensar estratégias de cuidado para as travestis. A fala de Lise traduz
a relevância da questão no ambulatório: “Antes a gente saía para exibir
nossa beleza na rua, agora a gente sai pra droga”. Essa fala é corroborada
pelo levantamento realizado junto às travestis que frequentam o ambu-
latório, o qual revelou o uso de drogas como o álcool (85,5%) e as drogas
consideradas ilícitas (72,7%).

11. Essa é uma expressão utilizada pelas travestis para identificar uma pessoa embriagada.
167 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

A experiência com as drogas integra as histórias das travestis. O uso


estaria associado principalmente ao momento em que as travestis saem da
casa dos familiares (Silva, 1993; Benedetti, 2005; Pelúcio, 2007). Nesses
trabalhos, a temática surge dissolvida nos espaços de sociabilidade vincu-
lados à prostituição, por meio das práticas com os clientes e da violência
compartilhada. Afirmamos a carência de pesquisas que tratem da relação
entre o uso de drogas e as travestis, considerando o campo da saúde.
Novamente, retomamos, neste trabalho, a importância de se consi-
derar as lógicas dos sujeitos envolvidos na definição de suas problemáticas.
Identificamos a distância entre a classificação da síndrome de dependência
química disposta no discurso psiquiátrico e o significado atribuído pelas
travestis à dependência. Utilizando os critérios diagnósticos do CID-10
(Organização Mundial de Saúde, 2007) para definir a dependência quí-
mica, seria possível classificar cerca de 55% das usuárias do serviço como
incluídas na categoria dependente. No entanto, as travestis se representam
como usuárias e associam o uso ao contexto da prostituição, não apresen-
tando demandas para tratamento. Trata-se de uma evidência explicitada
quando observamos que, embora a frequência identificada sugira o uso
abusivo entre as travestis, apenas uma travesti buscou o serviço demandan-
do acompanhamento para a dependência química (Rocha, 2010).
Reconhecemos que uma multiplicidade de fatores envolve a temá-
tica do uso de drogas, de uma forma geral, o que demanda a construção
de políticas públicas intersetoriais12. Neste momento, nos importa pen-
sar algumas especificidades do seu (ab)uso entre as travestis.
A pesquisa de Larissa Pelúcio (2007) apontou que a proposta de
abstinência, a priori, parece não surtir efeito no universo das travestis.
Sendo assim, e por acreditarmos que as propostas para a prevenção e a
intervenção no que diz respeito ao abuso de drogas não devem ser anco-
radas por ações proibitivas e culpabilizantes, sustentamos nosso posicio-
namento em consonância com as diretrizes da Política Nacional sobre
Drogas, que contempla ações de redução de danos sociais e à saúde13.

12. Em consonância com as existentes, como a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários
de Álcool e outras Drogas, 2004. Além da Política Nacional sobre Drogas, 2005, e da Política Nacional sobre
o Álcool, 2007.
13. A Política Nacional sobre Drogas de 2005 prevê a promoção de estratégias e ações de redução de danos vol-
Discursos fora da ordem 168

Buscamos basear nossas ações em fundamentações éticas que respeitem


a autonomia e afirmem a responsabilização das usuárias e dependentes,
estabelecendo pactos para minimizar os riscos e os danos de natureza
biológica, psicossocial e econômica, associados ao uso e ao abuso de dro-
gas. Promover um diálogo em que o consumo deixe de ser central, ainda
que faça parte do processo, pode ser um fator que facilite o contato e
uma posterior adesão ao tratamento das travestis, particularmente, as
profissionais do sexo (Bucher, 2009; Mello; Andrade, 2001).
“É possível deixar as drogas sem sair da rua?” A pergunta é dispara-
da por uma travesti em um dos atendimentos e mobilizou a equipe. Esse
questionamento se baseia em uma autoidentificação como usuária, que
carrega no seu bojo uma justificativa a partir da condição de prostituta.
Lise tem 21 anos, primeira e única usuária que buscou o serviço
apresentando como queixa o abuso de drogas. Refere que a iniciativa da
busca se deu por “insistência da dona da pensão onde morava com outras
travestis”. Naquele momento, poderia ser considerada uma das mais be-
las travestis que estava trabalhando nas ruas de Uberlândia. Ao longo da
consulta, Lise justificava que estar na “batalha” favorecia o uso de drogas
e não demonstrava intenção de interromper o consumo por completo.
Após analisar, com ela, sua realidade, foi apresentada a proposta de tra-
balho ancorada na redução de danos e considerada também a existência
de outros serviços integrados à rede de saúde mental do município, como
o CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas). Na
semana seguinte, embora combinado, Lise não retornou. Segundo outras
travestis, Lise se envolveu com um traficante e saiu da cidade de Uber-
lândia. Recentemente, fomos informados de que ela estava em regime de
privação de liberdade em um presídio do interior do Estado de São Paulo.
O atrelamento das condições de trabalho na prostituição ao uso da
droga traz em si uma armadilha. Não nos parece que o fato de trabalhar
como prostituta é uma condição necessária ou suficiente para o abuso de
drogas. Aceitar o chamamento “é possível deixar as drogas sem sair da

tadas para saúde pública e direitos humanos, que deve ser realizada de forma articulada intra e intersetorial,
visando à redução dos riscos, das consequências adversas e dos danos associados ao uso de álcool e drogas para
a pessoa, a família e a sociedade.
169 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

rua?” como um construto de verdade seria nos deixarmos prender por


uma retórica que anuncia a vitimização e não a responsabilização. Seria
contribuirmos para o fortalecimento de discursos estigmatizadores so-
bre as prostitutas e a prostituição.
É importante reconhecermos as travestis como integrantes de um
conjunto da população vulnerável. O abuso de drogas, nos espaços da
prostituição, deve ser compreendido como potencializador desta vul-
nerabilidade, principalmente em relação à menor capacidade de enfren-
tamento das violências e menor poder de negociação do uso do preser-
vativo, aumentando as chances de exposição às doenças. Mas atrelar
travesti-prostituição e drogas seria potencializador do preconceito de
marginalidade que marca o grupo. Segundo Sérgio Carrara e Adriana
Vianna (2006), muitos assassinatos envolvendo as travestis são descon-
siderados por presumirem que a travesti vítima estava ligada ao tráfico
de drogas ou a algum outro crime.
Reconhecer as diversas configurações do trabalho exercido nas
ruas, as precárias redes de proteção para as prostitutas, compreender
o contexto em que trabalham muitas travestis é, também, fortalecer a
reivindicação dos movimentos sociais pela regulamentação da prosti-
tuição como trabalho, para além do paradoxo criado quando do reco-
nhecimento como ocupação no Código Brasileiro de Ocupações14 e da
manutenção no Código Penal15 da proibição de formar cooperativas ou
empresas para seu exercício.
Sem problematizar a queixa de Lise, que não se traduzia em deman-
da, uma vez que o reconhecimento de sua dependência e dos efeitos ne-
gativos para sua saúde (e vida) eram externos, não se pode estabelecer o
consenso em relação à efetiva necessidade do tratamento. Lise não é uma
exceção. Em relação ao uso que fazem das drogas, as travestis não se perce-
bem dependentes, ou mesmo sofrendo pelo uso, embora sejam frequentes

14..Código: 5198, profissional do sexo. Refere-se a Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messa-
lina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Trabalhador do sexo. Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/
cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf>.
15. Artigo 229 do Código Penal: “Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra ex-
ploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão,
de dois a cinco anos, e multa”.
Discursos fora da ordem 170

os relatos sobre situações de violências (potencializadas pelo uso), empo-


brecimento, exploração e outros decorrentes do abuso da droga.
É preciso encontrar um espaço de diálogo que colabore para pro-
blematizar e significar quando os usos traduzem relações sociais. É a
“taba”16 que acompanha o café da tarde, compartilhada coletivamente
nas sombras das árvores enquanto esperam o horário de começar a se
arrumar para o trabalho. As estratégias coletivas para dissimular seu uso,
a partilha das diferentes receitas combinando destilados e refrigerantes,
destilados e energéticos e também destilados entre si, como por exem-
plo, a Maria Mole, resultado da mistura de conhaque com Martini, mar-
cam a relação das travestis com as drogas.
Nosso convite é o de ampliar o repertório de experiências das tra-
vestis, desnaturalizando o uso da droga, não na perspectiva prescritiva
da imposição da abstinência, mas da possibilidade de compartilhar ou-
tros recursos de prazer – socialmente produzidos e historicamente “não
permitidos” às travestis. Essa perspectiva está ancorada na compreensão
do que se considera como princípio da integralidade no SUS e, portan-
to, dependente de outras políticas intersetoriais.

Nome social: a experiência de reconhecimento a partir


da Carta dos Usuários do SUS

Conforme aponta Judith Butler (2004a), entramos no espaço so-


cial e em um tempo singular ao sermos nomeados. O nome nos acom-
panha e nos confere singularidade. Seguindo essa trilha, entendemos o
lugar do nome feminino para a subjetivação das travestis, apontando
para a necessidade do seu reconhecimento pelo outro. Os vários rela-
tos de pesquisa informam sobre a adoção dos nomes femininos após ou
concomitantemente às transformações no corpo.
Um corpo que performa e constitui a plasticidade e transitoriedade
do sujeito, construindo sentido, expressa, atua e experimenta identidades
e diferenças e produz também a abjeção (Butler, 2003). No processo de

16. Nomenclatura utilizada para referenciar a maconha.


171 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

subjetivação, os termos que permitiriam às travestis serem reconhecidas


como pertencentes à categoria de seres humanos são limitados; conside-
radas corpos posicionados fora da lógica inteligível das normas de gênero
são remetidas às zonas que estão fora do “domínio dos sujeitos”.
Ao dizer da reiteração dos atos de fala capazes de ferir e produtores
do abjeto, o fragmento do relato da história de Joelma fornece elemen-
tos empíricos para pensar a experiência das travestis e a necessidade de
produção de espaços de legitimação e reconhecimento.
Joelma tem 28 anos e buscou o ambulatório a partir da indicação
de outras travestis que apontavam sua necessidade de atendimento psi-
cológico urgente. Cecil Helman (2003) discute os fatores socioculturais
que embasam as decisões pela busca de atendimento e interferem na ava-
liação dos sujeitos sobre sua condição de saúde e adoecimento, definin-
do inclusive o tipo de auxílio a ser demandado. Nesse caso, não eram os
sintomas físicos os responsáveis pelo incômodo de Joelma (e das outras
travestis com quem se relacionava) ao buscar o serviço; ela revelava o
sofrimento causado pelo não reconhecimento.
Trajando um jeans largo e um boné que parecia esconder (ou de-
nunciar) os cabelos raspados, muito magra, lembrava um adolescente.
Egressa do sistema prisional, período em que por nove meses experi-
mentou a abjeção numa perspectiva muito menos sutil, extrapolando as
violências físicas, sexuais e as “violências invisíveis” que marcam o coti-
diano de muitas travestis.
“Como eu faço? Parece que estou num sonho, não me sinto fazen-
do parte da minha vida. Eu não consigo...”. Uma mensagem traduzida
em dúvida: Joelma seria reconhecida ou se reconheceria como uma tra-
vesti? Num choro abafado, entre as dores do passado e o temor do que
estaria por vir, relatava a vergonha, a exposição e as reiteradas violências
vividas. Na prisão, o sexo forçado foi transformado em moeda para ob-
tenção do sabonete, da pasta dental e até mesmo para o acesso à medica-
ção. Dizia: “É a primeira vez que choro depois de tudo”.
Não é nossa intenção discutir a despersonalização e as práticas vio-
lentas que as instituições prisionais proporcionam, mas pensar que, se
outros detentos possuem objetos que são usados em práticas de escambo
Discursos fora da ordem 172

e de comércio, restou a esta travesti a submissão de seu corpo, diferente-


mente da negociação realizada no mercado sexual, em que, na prestação
de serviço sexual, o contrato do trabalho pode ser recusado ou modifi-
cado (Perlongher, 1987).
Ao ingressar no sistema penitenciário, a pena para Joelma foi além
da privação de liberdade. Acrescida dos castigos infligidos aos demais
detentos, como denuncia Foucault (2009), restou ainda uma dupla
mensagem: manter as travestis em regime de prisão no mesmo espaço
que os homens seria muito mais do que adotar o critério sexo como
marcador de lugares, seria a possibilidade de acionar esse marcador para
reposicionar a travesti na gramática normativa dos gêneros.A partir da
percepção foucaultiana que enfatiza a função transformadora da prisão,
reconhecemos nela uma instituição que não se resumiria a “excluir” o
indivíduo, mas, sobretudo, “incluí-lo” no sistema de normas.
As práticas homossexuais forçadas (no contexto da prisão) posi-
cionam aqueles reconhecidos como “fracos-passivos” num desprestigio-
so polo feminino. Ao refletir sobre a dimensão cultural da experiência
humana no processo de subjetivação e assujeitamento, Judith Butler
(2005a) questiona a potência da matriz heterossexual para interditar a
homossexualidade, impelindo o outro a se posicionar num lugar de fragi-
lidade – “Todavia em um homem, o terror do desejo homossexual pode
conduzir ao terror de ser julgado feminino, feminilizado, não sendo mais
propriamente um homen, mas um homem falido (...)”17 (2005a, p. 130).
Depois de tudo, Joelma desejava um espaço, parecia buscar a res-
posta sobre quem restou. Ao término do primeiro atendimento, foi
providenciada a confecção do prontuário e do cartão de identificação
dos usuários. De posse do seu cartão com o nome feminino, Joelma o
segurou, releu o nome no feminino, parecia não acreditar. Olhava e
observava novamente. Levantou-se e foi até a porta prometendo vol-
tar na semana seguinte. Afirmou que voltaria montada: “Vou voltar
como uma travesti de verdade, não posso voltar assim. Agora tenho
isso![apontando para o cartão]”.

17. Tradução livre dos autores.


173 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Joelma retornou como prometera e com a equipe identificou o dese-


jo de falar de si por meio de um diário. Ela escreveu relatos da sua história
que intitulou: “Cruz, batom e estrada”. Reinventou-se travesti. Estabele-
cemos aqui um paralelo com a observação de Márcia Arán (2010), para
quem a noção de sofrimento psíquico e corporal deve ser reconhecida
como critério de acesso à saúde, sem que necessariamente este sofrimento
tenha que ser traduzido pelos critérios específicos da CID 10, que tratam
dos transtornos de identidade do gênero. Assim como a autora, acredi-
tamos que, “para a psicologia e a psicanálise, importa pensar como cada
indivíduo na sua singularidade vive [e sofre] a diferença para além das de-
finições prescritivas da heteronormatividade” (2010: 88-89).
Destacamos o uso do nome social das travestis nos serviços de saú-
de como uma estratégia de reconhecimento e reivindicação de pertenci-
mento, entendendo que é nesse lugar do reconhecimento mediado pelo
outro – profissional de saúde e instituição – que uma existência subjeti-
va e social pode ser possível e legitimada para as travestis. No caso espe-
cífico de Joelma, podemos remeter a um mediador terapêutico, por ter
colaborado, de forma decisiva, no reconhecimento e reinvenção de uma
história interrompida pela norma regulatória da instituição prisional.

Se entendermos opoder do nomecomo um efeito dasua historicidade,


então, a força nãoéefeito meramentecausalde um golpe, mas funciona em
parte através deuma memóriacodificada outrauma,uma memória quevive
nalinguagem eque a linguagemtransporta. A forçado nomedepende não
só dasuaiteratividade,mas tambémuma forma derepetição, queestá rela-
cionada com otrauma, a repetição de algo que,em sentido estrito, nãose
recorda, mas se reviveatravés de uma substituiçãolinguistica no lugar doe-
vento traumático.O acontecimentotraumático éuma experiênciaestendi-
da que ao mesmo desafia epropagaa representação. (Butler, 2004a: 65-6)

Embora com efeitos restritos aos serviços de saúde, a Carta dos


Direitos dos Usuários da Saúde18 em sua primeira versão se tornou um

18. Portaria nº 675, divulgada em março de 2006. Essa resolução foi revogada e redimensionada com a Portaria 1820,
de agosto de 2009. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2009/01_set_carta.pdf>.
Discursos fora da ordem 174

marco para o reconhecimento e estimulou o acesso das travestis ao ser-


viço de saúde. Não foram poucos os relatos sobre a busca do ambula-
tório para “fazer o cartão com o meu outro nome”, episódios em que
as travestis passaram a levar para os espaços de trabalho os cartões de
identificação do usuário do Hospital de Clínicas da Universidade Fe-
deral de Uberlândia, chamado por elas de “cartão do ambulatório”. Este
foi o documento que elas passaram a apresentar aos policiais quando
abordadas19.
Acreditamos que foi também a iniciativa do Ministério da Saúde –
em resposta à pressão da sociedade civil – que deflagrou um número sig-
nificativo de leis municipais e estaduais referentes ao uso do nome social
nas escolas. Em meio ao reconhecimento dessas vitórias, pensamos que
a iniciativa possibilitou, também, materializar nos serviços de saúde as
dificuldades, os preconceitos, colocando em evidência o despreparo até
mesmo dos formuladores da política para lidar com aquilo que escapa às
normas. Embora estabeleça que:

Parágrafo único. É direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter


atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação,
restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orien-
tação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais,
estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe:
I - identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo docu-
mento do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, in-
dependente do registro civil, sendo assegurado o uso do nome de preferência,
não podendo ser identificado por número, nome ou código da doença ou ou-
tras formas desrespeitosas ou preconceituosas. (Brasil, 2009; grifos nossos).

O espaço para o nome social em todos os documentos dos servi-


ços de saúde, nos formulários, nos protocolos oriundos da esfera federal,

19. Embora o documento não possua legitimidade jurídica para substituir qualquer documento de identifica-
ção, o diálogo estabelecido a partir do Programa Em Cima do Salto: Saúde, Educação e Cidadania com os
integrantes da 9ª Região da Polícia Militar de Minas Gerais tem facilitado os acordos e as parcerias entre a
Associação das Travestis do Município, Triângulo Trans e a polícias Militar e Civil – facilitando os encontros
e diminuindo as vulnerabilidades.
175 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

não foi incluído. Essa situação, ainda hoje, gera constrangimentos e difi-
culta os serviços ao encaminharem os usuários para outras unidades ou
para realização de procedimentos.
Relembramos que uma luta não substitui a outra, e enquanto de-
fendemos a ampliação do uso do nome social, referendamos a luta pelo
direito à alteração do registro civil independentemente da realização de
procedimento cirúrgico ou diagnóstico de transexualidade.
As jurisprudências disponíveis para fundamentar a alteração do
nome civil, na maior parte dos casos, se relacionam ao estabelecimento
de uma suposta coerência entre sexo (genitália), gênero e prática sexual,
sendo “necessário que a expressão de um sexo não biológico esteja confi-
gurada como um transtorno e reafirme os laços entre o poder judiciário
e o poder médico” (Teixeira, 2009: 71), geralmente condicionados à ci-
rurgia de transgenitalização.

Compartilhando os desafios

Ao final deste artigo, ainda parece desafiadora a continuidade do


mesmo. Concomitantemente, mantemos o fôlego de seguir em frente,
levados pelas histórias, roteiros diversos, que possibilitaram finais inusi-
tados, que favoreceram uma releitura acerca da integralidade da saúde e
sua complexidade. Pensar a saúde no contexto de travestis, aqui nomea-
do como um ensaio sobre a clínica da travestilidade, implica a negocia-
ção cotidiana, a parceria generosa, uma coconstrução. Estar disponível
para o que não aparece em protocolos, em livros, em cartilhas. É uma
invenção compartilhada.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Fernada. F. de; JANNELLI, Maurízio. A Princesa:


a história do travesti brasileiro na Europa escrita por um líder da Brigada
Vermelha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
ARÁN, Márcia. “A saúde como prática de si: do diagnóstico de trans-
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Discursos fora da ordem 176

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Intersexualidade, intersexualidades: notas
sobre alguns desafios teóricos, metodológi-
cos e políticos contemporâneos

Paula Sandrine Machado

A história da intersexualidade1 no Ocidente é uma história de pa-


tologização e de medicalização. Os outrora chamados “hermafroditas”
desempenharam um papel fundamental nos debates sobre as definições
relacionadas à diferença sexual, constituindo uma espécie de “casos pa-
radigmáticos”, sobretudo para a medicina do século XIX e do início do
século XX2, pois permitiriam observar in vivo alguns aspectos envolven-
do a atuação específica da “natureza” e da “cultura” na ordenação dessa
diferença (Löwy, 2006). E exatamente por desafiarem a dicotomia sexu-
al como norma, os corpos intersex constituíram o palco privilegiado de
atuação do regime político e de autoridade imposto pelo saber médico
sobre os corpos sexuados (Dorlin, 2005).
Problematizar as questões em torno da patologização e medicaliza-
ção nesse campo coloca, de imediato, o desafio de pensar as relações que a
medicina e a psicologia – e todo o seu aparato discursivo e tecnológico –
estabelecem com a intersexualidade. Trata-se, também, de considerar os
efeitos concretos desses discursos, ferramentas e tecnologias sobre os cor-

1. Opto pela utilização dos termos intersex e intersexualidade por razões teóricas e políticas. É importante res-
saltar, contudo, que em 2006 foi publicado um “Consenso” médico, o Consensus Statement on Management
of Intersex Disorders, conhecido também como “Consenso de Chicago”, que sugere a utilização do termo
“Disorders of Sex Development” (DSD) no lugar da nomenclatura “Intersex” ou “Estados Intersexuais” (Lee
at al., 2006).
2. Nesse contexto, merece destaque não apenas a preocupação com a origem da “diferença sexual” mas também
a descoberta dos hormônios sexuais como promessa de desvelamento da “chave” ou ponto inequívoco para
entender tal diferenciação (Oudshoorn, 1994; Wijngaard, 1997, Rohden, 2008).
Discursos fora da ordem 180

pos, considerando as tecnologias em saúde como exemplos concretos de


práticas capazes de inscrever os corpos em uma cultura em que a biome-
dicina desempenha um papel central nas definições sobre o corpo e sua
“natureza”. Por outro lado, é preciso enfatizar que esses debates excedem
em muito a esfera dos profissionais de saúde e envolvem diferentes atores
sociais, entre os quais podemos destacar as próprias pessoas intersex, seus
familiares e o movimento político internacional intersex3.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é destacar algumas problema-
tizações contemporâneas ligadas aos estudos e às práticas relacionadas à
intersexualidade. Primeiramente, serão apresentados dois imperativos
que concorrem para sustentar as práticas médicas normativas acionadas
nesse contexto – o imperativo da inscrição na cultura e o imperativo da
funcionalidade. Em seguida, passarei à análise do que significa pensar a
intersexualidade hoje, ou seja, como ela se constitui e quais seriam alguns
dos desafios éticos, políticos e epistemológicos que coloca. O argumen-
to a ser desenvolvido é o de que tratar da medicalização e da patologiza-
ção da diversidade corporal implica viabilizar uma discussão que vá além
do marco da doença e da medicina4. Mais especificamente, referindo-se
ao tema em análise, significa pensar a intersexualidade como múltipla5,
abordando-a enquanto fenômeno complexo, polissêmico e produzido
por diferentes concepções, experiências e saberes em constante trânsito.
As questões que serão abordadas integram uma análise crítica do
que podemos chamar de gerenciamento sociomédico da intersexuali-
dade, que engloba práticas, definições, técnicas e biotecnologias muito
sofisticadas envolvendo a gestão médica e psicológica de corpos que não
se enquadram no padrão de corpos sexuados femininos e masculinos,
estabelecido socioculturalmente, em um contexto em que as definições

3. O primeiro grupo de ativismo intersex, a Intersex Society of North América (ISNA), surgiu nos Estados
Unidos nos anos 1990. O grupo passou a promover o uso do termo “Disorders of Sex Development” (sem,
necessariamente, abandonar o antigo termo “intersex”) e, em 2008, encerrou seu trabalho, dando lugar a uma
nova organização, chamada Accord Alliance, que adota a nova nomenclatura DSD. Disponível em:<http://
www.isna.org>. Acesso em maio de 2008.
4. Sobre o desafio de construir modos não medicalizados da intersexualidade, conferir a “Presentación” e o sub-
título “Acerca de este libro” da obraInterdicciones. Escrituras de la intersexualidad en castellano, por Mauro
Cabral (2009).
5. Conforme será desenvolvido ao longo do artigo, a partir da concepção de “corpo múltiplo” de Annemarie Mol
(2002).
181 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

biomédicas ocupam um lugar particularmente importante. Ao mesmo


tempo, o que tenho sustentado é que o gerenciamento da intersexuali-
dade não se encerra no diagnóstico ou no ato cirúrgico, nem se sustenta
apenas no domínio biomédico. Ele está combinado a uma regulação diá-
ria, minuciosa, interminável: um gerenciamento cotidiano que também
ocorre fora do hospital, envolvendo, por exemplo, a família, os vizinhos,
a escola, entre outras redes de convívio6.

Os imperativos. As promessas. A intersexualidade no hospital.

O funcionamento da “determinação sexual” e, mais especificamen-


te, as questões relacionadas aos antigos “hermafroditas”, vêm sendo ob-
jeto de interesse em diferentes campos de produção de conhecimento,
como a Filosofia, a História, a Sociologia, a Biologia, a Medicina, o Di-
reito (Foucault, 1983; Fausto-Sterling, 2000; Laqueur, 2001; Rohden,
2001). Conforme já referido, a história da intersexualidade no Ocidente
remete a narrativas e práticas patologizadoras e medicalizantes.
Nos dois hospitais em que realizei trabalho de campo, uma vez iden-
tificada uma genitália ambígua (que, do ponto de vista dos profissionais,
não podia ser considerada claramente nem masculina nem feminina), e/
ou uma situação em que a genitália, apesar de não ser considerada aparen-
temente ambígua, apresentasse uma discordância em relação ao cariótipo
e à gônada7, diferentes especialistas vão sendo acionados a fim de que se
dê início a basicamente três processos, mais ou menos concomitantes: 1)
investigação da causa da ambiguidade ou discordância; 2) determinação
do “diagnóstico”; 3) decisões referentes às modalidades de intervenções
“corretoras” que serão aplicadas, sejam elas cirúrgicas ou hormonais.

6. Para uma análise mais aprofundada sobre o gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade, a
partir de uma etnografia realizada em um hospital no sul do Brasil e em Paris, ver minha tese de doutorado
(Machado, 2008a). Os dados de trabalho de campo que embasam e que foram utilizados neste artigo inte-
gram essa pesquisa, a qual, de um lado, tratou de compreender as perspectivas, as práticas e os discursos de
profissionais de saúde (contexto brasileiro e francês) e, de outro, aqueles das famílias e jovens intersex (apenas
no contexto brasileiro).
7. Casos, por exemplo, em que a genitália é considerada pelos médicos como feminina, mas o cariótipo é 46XY
e a gônada apresenta tecido testicular (como ocorre nas chamadas Insensibilidades Completas aos Andróge-
nos) ou quando a genitália é definida como masculina e o cariótipo é 46XX, e/ou identifica-se presença de
tecido ovariano (caso dos “Homens XX”, segundo descrito pelos médicos).
Discursos fora da ordem 182

Dois imperativos concorrem para introduzir as cirurgias genitais


como legítimas nas narrativas e práticas médicas: o imperativo da ins-
crição na cultura e o imperativo da funcionalidade. Pode-se afirmar que
esses imperativos, da forma como são acionados nas práticas médicas,
reproduzem e produzem normas de gênero, tomando como pressuposto
fundamental a dicotomia sexual como verdade e como norma – verdade
e norma do corpo, verdade e norma subjetiva, verdade e norma social.
No que se refere ao imperativo de inscrição na cultura, significa con-
siderar que a intersexualidade remete, entre outros elementos, a questões
relativas às possibilidades ou não de determinados sujeitos ingressarem
na cultura e os rituais e/ou práticas que regem esse ingresso. Nesse cam-
po, poderíamos situar algumas práticas como a circuncisão, a mutilação
genital feminina e as intervenções cirúrgicas em relação à intersexualida-
de. A esse respeito, Mauro Cabral (2006), em um artigo em que analisa
as biopolíticas da intersexualidade, chama a atenção para a “lógica biopo-
lítica da incorporação”. A “incorporação”, segundo ele, remete ao mesmo
tempo à ideia de inscrição na cultura, na língua, na lei e à ideia de “fazer
(um) corpo”. As cirurgias genitais são efeitos concretos, portanto, desse
imperativo de inscrever os corpos em determinados padrões culturais.
A esse imperativo médico de inscrição na cultura se articula ou-
tro, o imperativo da funcionalidade. Na tomada de decisões médicas
em relação à intersexualidade, há uma complexa combinação de fatores
e a ideia de função assume centralidade, ou seja, há uma preocupação
explícita relacionada ao fato de que aquele órgão a ser construído pelo
cirurgião funcione ou, ainda, que as pessoas submetidas às intervenções
(clínicas e/ou cirúrgicas) tenham uma genitália externa e interna funcio-
nal. No marco do que se está chamando de imperativo da funcionalida-
de, as funções remetem basicamente a duas ordens: reprodutiva e sexual.
De maneira geral, a função reprodutiva remete à fertilidade, e a fun-
ção sexual à resposta ao estímulo hormonal: aumento do pênis e possi-
bilidade de ereção, para os homens; “não-masculinização” (relacionada
aos pêlos, ao tom da voz, desenvolvimento de mamas e menstruação),
para as mulheres. A função sexual também remete à possibilidade de
reconstrução cirúrgica da anatomia genital (Machado, 2005).
183 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Por meio de uma série de ferramentas de diagnóstico e interven-


ção, os profissionais médicos examinam os corpos intersex, e isso é feito
em níveis cada vez mais microscópicos do corpo. Ao mesmo tempo em
que essas ferramentas buscam “encontrar um sexo” (feminino ou mas-
culino) no corpo das crianças intersex, o imperativo da funcionalidade
pressupõe determinados marcadores de “bem-estar”, de “desejo” e de
“saúde” – física e/ou psicossocial – ligados, por exemplo, à fertilidade, à
potencialidade para o sexo penetrativo e heterossexual, ao tamanho do
pênis e do clitóris, entre outros aspectos, em nome dos quais são justifi-
cadas, pelos profissionais de saúde, as intervenções cirúrgicas.
Nesse contexto, as intervenções, sobretudo a cirúrgica, são aciona-
das como formas de colocar os corpos intersex na norma e de evitar pro-
blemas futuros através das promessas médicas de apagamento de marcas
que remetam à intersexualidade e/ou que remetam à história de um corpo
que passou por intervenções médicas.Essas promessas estão baseadas em
dois principais argumentos: 1) de que os problemas atuais relacionados às
intervenções estariam sempre ligados a um passado no qual as técnicas e
instrumentos médicos eram menos sofisticados e, portanto, insuficientes
para cumprir seu propósito de eficácia plena, ou seja, a promessa se cumpre
com técnicas e procedimentos melhores e diagnósticos precisos; 2) o ou-
tro argumento é o de que cada intervenção no presente seria resolutiva em
si mesma porque vai ao encontro da natureza. Nesse sentido, a promessa
se cumpriria porque se converte discursivamente na sua própria negação,
ou seja, a promessa de construir um sexo masculino ou feminino se trans-
forma na afirmação da estabilidade do sexo no corpo (Machado, 2010).
Quando os dois imperativos, o da funcionalidade e o da inscrição
na cultura, se articulam e são colocados em ação, as cirurgias são pensadas
pelos profissionais de saúde como inevitáveis e defensáveis, já que, como
indica Katrina Roen (2009), a cirurgia não é apresentada como um pro-
cedimento cosmético, mas como sendo um “projeto de desenvolvimen-
to” – ou seja, como uma ferramenta para a criança se desenvolver social e
psicologicamente de forma adequada no gênero atribuído – e como um
“projeto identitário”, garantindo a ela uma identidade de gênero consis-
tente. Existiria, assim, como aponta Anne Fausto-Sterling (2000: 80) um
Discursos fora da ordem 184

“imperativo social” de normatização que se transforma em um “imperati-


vo médico”, apesar dos problemas envolvendo as cirurgias.
Toda essa discussão, que remete ao espaço do hospital ou às defi-
nições, saberes e práticas biomédicas, aponta também para outros es-
paços, saberes e experiências, nos quais a intersexualidade é construída
de maneiras distintas. Tais elementos introduzem zonas de incômodo,
desafios para a teoria e a política intersex.

Intersexualidade e algumas questões contemporâneas

Não há dúvidas de que, em grande medida, o que conhecemos, de-


finimos e o que conforma a intersexualidade atualmente se produz dentro
do hospital ou a ele remete – nos diagnósticos, nas consultas clínicas, nas
mesas de cirurgia, nas discussões de caso, nos rumores das salas de espera,
nas experiências relacionadas aos tratamentos médicos. Foi a partir da me-
tade do século XX, impulsionadas pelos avanços nas técnicas cirúrgicas, a
descoberta dos hormônios sexuais, os novos entendimentos sobre a dife-
renciação sexual do ponto de vista embriológico, cromossômico e neural,
e as tecnologias e discursos psicológicos e psicanalíticos sobre a diferença
sexual, que as formas de intervenção médica sobre a intersexualidade foram
sendo estabelecidas (Fausto-Sterling, 2000; Löwy, 2006; Karkazis, 2008)
Há, assim, uma história do tratamento médico da intersexualidade
que, como indica Iain Morland (2009a: 191), inclui outra: uma história
recente da crítica ética dirigida a esse mesmo tratamento. Assim, é em
direção a esse espaço do hospital – às práticas e definições nele produzi-
das – que se dirigiram as análises críticas dos tratamentos vigentes e para
onde se voltou grande parte dos estudos acadêmicos em relação à inter-
sexualidade. Autoras como Anne Fausto-Sterling, Suzanne Kessler, Ali-
ce Dreger e Sharon Preves passam, a partir dos anos 1990, a se dedicar
mais intensamente ao tema, lançando questionamentos aos protocolos
médicos8. A discussão feminista dá a essas pesquisadoras o arcabouço

8. Alguns trabalhos fundamentais dessas autoras sobre intersexualidade devem ser destacados, como: Fausto-
Sterling (2000); Kessler (1998); Dreger (2000); Preves (2003). Para uma abordagem mais atual do geren-
ciamento sociomédico da intersexualidade no contexto dos EUA, ver Karkazis (2008). No que se refere à
América Latina, ver o livro Interdicciones, editado por Mauro Cabral (2009), no qual estão incluídos artigos
185 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

teórico e político para questionar a própria ideia hegemônica de ciência


embutida nesses protocolos. Uma ciência, segundo elas, que estava lon-
ge da “imparcialidade” e da “neutralidade”, e que produzia verdades so-
bre o sexo que eram reificadoras de estereótipos e de hierarquias sociais.
Fausto-Sterling (2000: 3) aponta, nesse sentido, que:

[...] rotular alguém homem ou mulher é uma decisão social. Podemos utilizar
o conhecimento científico para nos ajudar a tomar a decisão, mas só nossas
crenças sobre o gênero – e não a ciência – podem definir nosso sexo. Além
disso, nossas crenças sobre o gênero também afetam o tipo de conhecimento
que os cientistas produzem sobre o sexo. (Fausto-Sterling, 2001/2002: 15)

As técnicas de intervenção aplicadas sobre os corpos intersex eram,


num primeiro momento, notadamente destinadas a transformar corpos
que não se adequavam no padrão dicotômico masculino/feminino em
corpos “mais parecidos o possível” com os de mulheres. Desse modo, es-
sas análises feministas sobre o tema buscavam demonstrar a abordagem
heterossexista e desigual presente em tratamentos que privilegiavam
uma preocupação com a “funcionalidade” da genitália masculina, o que
ficava evidente nas primeiras argumentações médicas de que era mais
difícil tecnicamente construir um pênis (capaz de penetrar) do que uma
vagina (capaz de ser penetrada)9.
A contribuição, sobretudo, de pesquisadoras do campo da Biologia
à crítica feminista da ciência irá incidir fortemente sobre a questão da di-
ferenciação sexual, mostrando que a própria categoria de “sexo natural”
é heterogênea e que engloba uma enorme complexidade. Em última ins-
tância, irá indicar que a biologia do sexo encarna possibilidades múltiplas,
não aventadas pela ciência não pela inexistência de “dados científicos” para
tanto, masem função de uma política do gênero restritiva que a sustenta10.

que oferecem, a partir de diferentes olhares, uma perspectiva crítica aos tratamentos vigentes nesse contexto,
como em Eva Alcántara Zavala (2009), Luciana Lavigne (2009) e Paula Sandrine Machado (2009).
9. O que ficava explícito no conhecido trocadilho dito entre os médicos a propósito das cirurgias realizadas em inter-
sexuais: “It is easier to poke a hole than to build a pole” (É mais fácil cavar um buraco do que construir um poste).
10. Os trabalhos de Anne Fausto-Sterling (1985, 2000) são um bom exemplo dessas análises que buscam demons-
trar como a ciência constrói a diferença entre os sexos a partir de um olhar masculino.
Discursos fora da ordem 186

Nesse contexto, a intersexualidade foi utilizada, de formas e em


graus diferentes, como ferramenta para publicizar a produção de uma ci-
ência “masculinista”. A esse respeito, Iain Morland aponta que, de forma
geral, essas autoras, precursoras nos estudos sobre intersexualidade, uti-
lizaram a questão primeiramente como “exemplo de androcentrismo”
e se encaminharam lentamente para pensá-la enquanto “exemplar da
injustiça e contestação sexual/política” (Morland, 2005: 57). Suzanne
Kessler (1998), por exemplo, em suas análises sobre o manejo médico
da intersexualidade, perseguiu sistematicamente a forma como o sexo,
na “construção médica do gênero”, é justamente um efeito do gênero.
De acordo com Morland (2005), o exame dessas questões relativas à in-
tersexualidade levou a autora a reformulações no conceito de gênero e a
um olhar crítico em relação ao campo dos estudos feministas da ciência.
É preciso destacar, ainda, que há uma implicação entre a produção
científica emergente nesse campo e o também nascente movimento éti-
co e político intersex nos anos 1990 nos EUA. Pode-se afirmar, então,
que desde as primeiras intervenções médicas e psicoterapêuticas aplica-
das sobre os corpos intersex até os dias atuais, ocorreram mudanças em
diferentes esferas, como aquelas relacionadas ao contexto sociocultural
e político-jurídico no qual se dão essas intervenções. Um exemplo dessas
transformações é, justamente, a emergência, nos Estados Unidos, nos
anos 1990, da Intersex Society of North America (ISNA) e sua dissolu-
ção em 2008, marcando um momento bastante particular do ativismo
intersex e integrando aquilo que constitui a intersexualidade hoje. Pode-
se apontar, ainda, para as mudanças no âmbito da produção de conhe-
cimento e de ferramentas técnico-científicas, que não ficaram restritas
à esfera da saúde em geral, e da medicina em particular, mas também
aconteceram na esfera das ciências humanas e sociais.
As análises a partir da Teoria Queer, que surgiu nos Estados Uni-
dos no final da década de 1980, apontaram para possibilidades analíticas
que problematizavam a fixidez das identidades sexuais e tensionavam,
ainda mais, a ideia de natureza (e da natureza binária da diferenciação
sexual), bem como apontavam para o borramento das fronteiras entre
o “natural” e o “cultural”. De acordo com Morland (2009b), ao rom-
187 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

per com as concepções de identidades fixas, as quais eram, em última


análise,reiteradamente buscadas nos tratamentos vigentes em relação à
intersexualidade, as análises queer mostraram que as tentativas médicas
de garantir a estabilidade das dicotomias de sexo e gênero eram não ape-
nas inalcançáveis, mas também politicamente questionáveis.
Em artigo em que analisa a relação da Teoria Queer com a inter-
sexualidade, Iain Morland (2009b) nos remete a mais uma questão que
constitui a intersexualidade atualmente. Refletir contemporaneamente
sobre a intersexualidade implica pensar o que temos oferecido para jo-
vens e adultos/as intersex com histórias médicas, além das análises de-
nunciando as violações pelas quais passaram. Morland (2009b) propõe,
então, a seguinte questão: que espaço de participação política é dado
para pessoas com “corpos pós-cirúrgicos”? É como se elas ocupassem
algum lugar entre um passado a ser denunciado, um presente de sofri-
mento e um futuro com poucas possibilidades. Para Morland (2009b:
305), é importante o questionamento das cirurgias genitais, sem, no en-
tanto, tentar presumir (ou afirmar) de antemão o que vem depois delas:
“vergonha ou prazer; naturalização ou desnaturalização; familiarização
ou desfamiliarização”. Se reivindica-se espaços celebratórios e desejantes
para os corpos intersex, criticando as intervenções cirúrgicas precoces,
é preciso também reivindicar espaços celebratórios e desejantes para os
jovens e adultos intersex que já passaram por essas mesmas intervenções.
Todas essas questões apontam para uma conjuntura histórica sin-
gular pela qual atravessam os estudos sobre intersexualidade: a comple-
xificação radical de seu objeto de estudo. Talvez seja um momento em
que, para articularmos novas questões para o campo, seja necessário sair
do hospital para pensar que se é verdade, como dissemos, que grande
parte do que é a intersexualidade hoje se constrói no hospital, isso não
significa que a intersexualidade seja uma construção do sistema médico.
Além disso, ainda que continuemos no hospital ou problematizando a
ciência que informa as práticas médicas, isso não equivale a dizer que a
intersexualidade, mesmo nessa esfera, construa-se de maneira unitária e
homogênea.
Discursos fora da ordem 188

Intersexualidades e os trânsitos da ciência

Tentando perseguir a questão de que a intersexualidade não é pro-


duzida como um todo unitário, coeso, fixo e coerente, abordarei alguns
pontos de convergência com o que podemos chamar de “trânsitos da
ciência”. Os trânsitos da ciência dizem respeito, desde uma certa pers-
pectiva, à circulação da ciência feita entre experts e a sua relação com a
ciência atualizada na prática: como, por exemplo, toda uma teorização
complexa sobre a diferenciação sexual, a infinidade de gens envolvidos e
as diferentes possibilidades de sexo apresentadas pela biologia molecu-
lar, pelas gônadas, pelos genes etc., estabelece relações particulares com
a lógica da intervenção no caso das pessoas intersex, considerando que
a partir dessa lógica se busca, em última instância, reafirmar a diferença
sexual enquanto verdade? No que se refere à intersexualidade, estamos
falando, portanto, de um conjunto de práticas colocadas em ação por
uma ciência comprometida em encontrar, localizar, teorizar e promover
a diferença sexual como verdade.
Os trânsitos da ciência dizem respeito, também, às apropriações,
aos usos e aos entendimentos públicos da ciência. O que as pessoas fa-
zem com as categorias científicas? Como avançar na discussão sobre a
produção científica sem entender melhor o modo como ela medeia as
relações sociais e o modo como as produções científicas se inscrevem
no cotidiano “não científico”? Isso significa pensar não apenas nas con-
sequências das tecnologias e do conhecimento científico na vida das
pessoas. Estou particularmente me referindo à noção de “coprodução”
entre ciência e ordem social, apontada por autoras como Sheilla Jasanoff
(2006)11. Significaria entender o que as pessoas têm a dizer sobre as cate-
gorias científicas, como fazem uso delas e, sobretudo, como participam
da produção dessas categorias.
Assim, ao abordar os “trânsitos da ciência”, enfatiza-se o fato de que
não se trata de uma mera tradução de um nível (por exemplo, mais abstra-

11. Vale destacar que a ideia de que existem múltiplas interações e mútuas produções entre ciência e sociedade já
aparece em um artigo de Ludwik Fleck, de 1929, intitulado “On the crisis of ‘reality’” (Fleck, 1986 [1929]),
conforme assinala Ilana Löwy (2004).
189 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

to, produzido fora da clínica, nos laboratórios e discussões acadêmicas)


para outro que envolva as práticas cotidianas e a experiência das pessoas.
A ideia da transição aponta para uma aposta teórica e metodológica: uti-
lizar a concepção de “corpo múltiplo”, de Annemarie Mol (2002). De
acordo com a autora, em suas análises sobre a arteriosclerose a partir de
uma perspectiva da filosofia empírica, a ideia de “corpo múltiplo” não
remete apenas a diferentes percepções dirigidas a uma mesma realidade,
mas, de fato, à produção de diferentes realidades. Mol nos convida a pen-
sar a respeito de uma realidade e de uma natureza que se desdobram. Es-
ses desdobramentos, diria ela em relação à arteriosclerose, não tornariam
a “realidade” ou o “objeto” em questão algo coeso, unitário. Ao contrário,
tornam esse objeto incoerente, múltiplo, ao mesmo tempo em que é acio-
nada uma série de operações e hierarquizações que buscam “coordenar a
multiplicidade” para alcançar uma determinada coerência.
A partir dessa aposta e da perspectiva de que ocorrem contínuos
trânsitos da ciência, o que nos permitiria falar em “intersexualidades”,
destaco dois dos desafios teóricos e metodológicos que me parecem im-
portantes no campo de discussões sobre a intersexualidade. O primeiro
deles diz respeito às possibilidades de considerar a intersexualidade para
além do marco da doença ou para além dos limites restritos da biome-
dicina. O segundo, que está ligado ao primeiro, diz respeito às possibi-
lidades de nos referirmos a intersexualidades distintas, ao invés de nos
remetermos à existência de distintas perspectivas em relação a uma in-
tersexualidade que, no fundo, seria sempre a mesma.
No que se refere a esse debate, pode-se afirmar que a definição de
uma “patologia da diferença sexual” (ou “anomalia da diferenciação se-
xual”, forma como foi traduzido o termo “DSD” no Brasil) só se cons-
titui a partir da negação das possibilidades apontadas acima, ou seja, a
partir da reiteração da intersexualidade como uma questão exclusiva-
mente médica, que só pode ser falada e imaginada em termos médicos,
e, ainda, através da compreensão da intersexualidade como algo que re-
mete a uma realidade corporal supostamente única. Essa realidade cor-
poral supostamente única remeteria, por sua vez, a uma verdade a ser
encontrada em todo e qualquer corpo: a da diferença sexual.
Discursos fora da ordem 190

Como já indicado, a história da intersexualidade no Ocidente é


uma história de patologização e medicalização e é também a história
da emergência do sexo como verdade do sujeito (Foucault, 1988) e da
mobilização da medicina e de toda uma ciência visando a encontrar a
diferença entre os sexos (Oudshoorn, 1994; Wijngaard, 1997; Roh-
den, 2008).
Como é possível deslocar a intersexualidade para além desse mar-
co da doença? Para além das narrativas, práticas e regulações médicas?
Mauro Cabral (2009) destaca que um dos desafios teóricos e políticos
que se apresentam nesse campo diz respeito, justamente, a como cons-
truir, como imaginar, “modos não medicalizados” da intersexualidade.
Não se trata apenas de uma questão de escolha de termos que correspon-
dam melhor a uma suposta realidade do corpo intersex. Atrás de cada
termo ou atrás da aplicação de cada conceito diferente estão decisões
ético-políticas fundamentais. Assim, pode-se dizer que cada definição
particular do que seja intersexualidade encerra os corpos intersex em
narrativas específicas, envolvendo práticas particulares e produzindo
distintas intersexualidades.
O outro desafio teórico e metodológico pode ser sintetizado na
seguinte pergunta: como, de fato, tomar a intersexualidade como algo
que se materializa de diferentes maneiras? E como se equacionam essas
diferentes materialidades na prática clínica? Como se equacionam os
“modelos” científicos de corpo e as intervenções tecnológicas sobre os
corpos intersex, considerando os deslocamentos entre tais modelos, que
tomam como valor central a verdade da diferença sexual, até a sua rea-
firmação enquanto realidade corporal ou sexual? As cirurgias que visam
inscrever os corpos intersex em uma inteligibilidade dicotômica do sexo
são consequências concretas desse procedimento.
Mol (2002) propõe que, ao contrário do que costumamos consi-
derar, a própria medicina não é um sistema coeso. No final das contas,
mesmo quando os agentes biomédicos falam e tratam a intersexualidade
como algo único, podem estar falando de realidades passíveis de serem
contraditórias, mesmo excludentes. Por exemplo, quando um endocri-
nologista ligado à genética observa a ação do gene SF-1 na transforma-
191 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

ção da gônada bipotencial em testis e na manutenção da função testi-


cular12, ele precisa de um corte da pessoa e a partir disso ele falará de
intersexualidade. Por outro lado, ele não pode ter ao mesmo tempo esse
corte e a “pessoa inteira” à sua frente, em relação a qual a intersexualida-
de, em outro momento, será examinada fora do microscópio.
A partir da observação participante em diferentes contextos hospi-
talares e das entrevistas realizadas com médicos/as brasileiros/as e fran-
ceses/as, o que se pode perceber é que o sexo, segundo as classificações
médicas, aparece como potencialmente impresso em diferentes níveis
em um mesmo indivíduo – molecular, cromossômico, gonadal, hormo-
nal, social e psicológico – e, embora a coerência entre eles seja inces-
santemente buscada, na prática podem se combinar das mais diferentes
formas (Machado, 2005). Em um artigo onde analisa minuciosamente
pesquisas na área da biologia referentes à determinação do sexo em se-
res humanos, a filósofa Cynthia Kraus (2000) também discorre sobre
os diferentes níveis do “sexo biológico” e desconstrói a bicategorização
por sexo como uma dicotomia natural, demonstrando que a mesma não
deriva diretamente das observações e dos dados disponíveis. Ela parece,
segundo a autora, dar suporte a um imperativo cultural que constrange
os corpos a serem considerados pertencendo a um – apenas e inequivo-
camente um – sexo. Para Kraus (2000), o que ocorre não é uma oposição
entre o feminino e o masculino, mas a produção de uma relação, com
efeito de oposição, entre dois conjuntos de coisas.
Percebe-se que todo o processo conduzido no sentido de encon-
trar a diferença sexual como verdade – a qual engloba supostamente
todo e qualquer corpo – só funciona através de uma série de ferramen-
tas, de instrumentos e procedimentos que, em última análise, colocam
essa mesma verdade em suspenso – quais corpos a encarnam absoluta-
mente? Esse mecanismo de construção e desconstrução da diferença
sexual como verdade atua cotidianamente nas discussões em torno da
intersexualidade.

12. Conforme observado durante o trabalho de campo nos contextos hospitalares.


Discursos fora da ordem 192

(In)compatibilizando realidades: as múltiplas intersexualidades

Apoiando-nos na perspectiva de Annemarie Mol, é possível afir-


mar que as narrativas biotecnológicas, mesmo quando se referindo a
uma mesma pessoa, dizem e ao mesmo tempo não dizem respeito a um
mesmo corpo. Assim, é necessária toda uma hierarquização de fatores e
combinação de distintos elementos para que essas diferentes realidades
sejam levadas a cooperar (Mol, 2002).
Conforme analisa Jean-Paul Gaudillière (2003), as transformações
que ocorreram ao longo do século XX na direção de uma “moleculari-
zação” da diferença sexual – envolvendo, notadamente, o “sexo hormo-
nal” e o “sexo genético” – não apenas trouxeram à cena novos níveis nela
implicados. Elas também instauraram uma nova “hierarquia do natural”
(p. 58), de acordo com a qual um nível incide no outro, ou podemos
dizer, utilizando a terminologia empregada por Mol (2002), que um
nível “coopera” com o outro – do gene à anatomia – em uma escala de
determinações que vai do molecular ao macroscópico.
No que se refere ao gerenciamento sociomédico contemporâneo
da intersexualidade, emerge o que chamei de “sexo-código” (Machado,
2008b), ou seja, aquele que está sob o registro linguístico e cognitivo da
nova genética e da biologia molecular. Ele não se apresenta através de
uma linguagem que pode ser compartilhada por todos, mas apenas por
um grupo restrito de “iniciados”. O “sexo-código” constitui uma verdade
sobre o sujeito, que é revelada pelo corpo em cada fragmento genético
e que é produzida através de inúmeros procedimentos que envolvem
distintas operações de ampliação e redução: maximização da parte e
molecularização do todo. Nesse processo, o corpo em seu registro ma-
croscópico perde densidade, decompõe-se, desaparece. No entanto, ele é
resgatado no momento de pensar a intervenção, a qual irá reafirmar so-
bre o mesmo, material, concreta e visivelmente, a “evidência” inscrita nas
moléculas. O resultado de cada intervenção é a afirmação dessa verdade.
Dentro ou fora do contexto hospitalar, é importante destacar que
as distintas versões da intersexualidade podem ser simultâneas e estão em
disputa, o que equivale a dizer que nem sempre cooperam completamen-
193 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

te. Há momentos de fissura. O diagnóstico pode ser um momento de mui-


tas rupturas, quando alguns elementos parecem não se encaixar. Quando,
por exemplo, a intersexualidade produzida pelas famílias e pessoas inter-
sex contrasta com a intersexualidade produzida pelo médico endocrinolo-
gista, que é diferente daquela materializada pelas técnicas cirúrgicas.
Este artigo buscou, assim, apresentar alguns desafios que se en-
contram no campo contemporâneo de debates sobre a intersexualidade,
indicando a concepção de “corpo múltiplo” de Annemarie Mol (2002)
como uma abordagem possível para percorrer essas questões. Pensar a
intersexualidade como múltipla é, portanto, uma aposta teórica, meto-
dológica e também ética. Essa perspectiva parece inserir um ponto crí-
tico para o debate dentro e fora do hospital, dentro ou fora dos marcos
da ciência, na experiência cotidiana da intersexualidade, pois coloca em
suspenso a unicidade do corpo, a urgência dos diagnósticos e, conse-
quentemente, coloca em suspenso a urgência das intervenções.

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Direitos
Interseccionalidades, direitos humanos e
vítimas

Adriana Piscitelli

Apresentação

Neste texto realizo alguns comentários sobre a categoria “intersec-


cionalidades”, levando em conta como ela está sendo pensada e utilizada
no Brasil, em meios acadêmicos e em pesquisas voltadas para informar as
ações de organismos governamentais e não-governamentais. Essa catego-
ria alude à multiplicidade de diferenciações que, articulando-se a gênero,
permeiam o social. Elaborada no seio do pensamento feminista, dissemi-
nou-se a partir da década de 1990, considerada como uma ferramenta pro-
missora para desestabilizar a centralidade concedida a gênero em diversas
abordagens desse pensamento, uma vez que permitiria apreender como
diversas diferenças são operacionalizadas na produção de desigualdades.
No momento atual, porém, essa categoria vem sendo alvo de diver-
sos questionamentos. Algumas problematizações, explicitadas por colegas
em seminários e em bancas de tese, estão situadas no plano teórico. Nelas
são levantados, basicamente, dois pontos. O primeiro é que a categoria
interseccionalidades coloca excessiva ênfase nos eixos classificatórios, sem
prestar suficiente atenção à experiência. O segundo ponto é que ela “enges-
sa” as relações de poder, ao considerá-las em termos de eixos de opressão.
Meus desconfortos com o processo de disseminação dessa categoria
no Brasil estão situados em outro plano. Eles estão relacionados com a ma-
neira como essa conceitualização está sendo utilizada em espaços extra-aca-
Discursos fora da ordem 200

dêmicos, em discussões, pesquisas, diagnósticos e formulações de políticas,


particularmente em estudos sobre tráfico internacional de seres humanos
com fins de exploração sexual.Nesse âmbito, uma particular ideia de inter-
seccionalidades permeia a produção de um perfil de vítima que se reitera de
maneira pouco crítica na produção de conhecimento sobre o tema.
Tomando como referência esse conjunto de problematizações em
relação a uma categoria que considero fértil, em termos analíticos, na
primeira parte do texto sintetizo as distinções em abordagens feministas
que trabalham com ela. Detenho-me, particularmente, nas diferentes
formas deconceitualização das diferenças, das maneiras como o poder
opera e nas margens de agência (agency) concedidas aos sujeitos. Na se-
quência, considero depois como essa categoria está sendo utilizada em
espaços extra-acadêmicos e, no entanto, “habitados” por pessoas forma-
das na academia, particularmente em pesquisas sobre tráfico interna-
cional de pessoas com fins de exploração sexual no Brasil. Finalmente,
reflito sobre os caminhos seguidos por essa categoria que, como outras,
foram produzidas por abordagens acadêmicas em diálogo com movi-
mentos sociais, prestando particular atenção a como opera o poder.

Eixos de opressão?

A proposta de trabalho com interseccionalidades é oferecer ferra-


mentas analíticas para apreender a articulação de múltiplas diferenças
e desigualdades1.É necessário observar que já não se trata da diferença
sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas
da diferença, em sentido amplo, para dar cabida às “interações” entre
diferenças que adquirem relevância em contextos específicos. Essa pro-
posta, porém, é desenvolvida em diferentes abordagens, entre as quais
há divergências.
As distinções entre essas perspectivas podem ser percebidas con-
trapondo as formulações de autoras relevantes no debate. Uma delas é
Kimberlé Crenshaw (2002), cujo “Documento para o encontro de es-

1. Uma versão mais elaborada dessa discussão foi publicada em Piscitelli (2008).
201 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

pecialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero” foi


difundido no Brasil nos primeiros anos da década de 2000.A autora,
advogada, procura oferecer elementos para formular políticas com o ob-
jetivo de evitar a violação dos direitos humanos das mulheres em escala
global.A proposta de Crenshaw é ampliar, ou seja, estender os direitos
humanos para pessoas cuja exclusão é apagada pelo fato de considerar
apenas uma dimensão de opressão.
A autora destaca a relevância de ter sido incluída a dimensão de gê-
nero na discussão sobre direitos humanos. Como exemplo, observa que
a Declaração Universal dos Direitos Humanos contemplava a tortura. No
entanto, quando mulheres sob custódia eram estupradas, ou quando elas
eram espancadas no âmbito doméstico, esses abusos eram considerados
periféricos em termos de garantias básicas dos direitos humanos.Isso
teria se modificado com a inclusão do gênero. Para Crenshaw, porém,
essa inclusão não é suficiente, pois frequentemente a “vulnerabilidade
das mulheres é interseccional”, produzida na confluência entre gênero e
outras desigualdade, como etnicidade ou “raça”.
Um exemplo é o estupro de mulheres por razões étnicas, na Bós-
nia. O tráfico de pessoas com fins de exploração sexual é outro dos exem-
plos utilizado pela autora para tratar da “subordinação interseccional”.
Ela argumenta que, embora o discurso sobre tráfico de pessoas chame
a atenção para o fato de que as mulheres são vítimas preferenciais desse
crime, não se trata de quaisquer mulheres: são aquelas marginalizadas
racial e socialmente. E aqui é importante sublinhar três aspectos.O pri-
meiro é que o significado de discriminação racial, para Crenshaw, se-
guindo a International Convention on the Elimination of all formas of
Racial Discrimination/CER, é toda discriminação baseada na cor, na
descendência e na origem étnica ou nacional. O segundo aspecto é que
ela considera relevante levar em conta a articulação entrediscriminações
raciais internas aos países e as que operam no plano global. E o terceiro
é que ela pensa em interseccionalidades incluindo não apenas as discri-
minações raciais, mas integrando também outras discriminações vincu-
ladas às identidades sociais das mulheres, como classe, casta, religião e
orientação sexual.
Discursos fora da ordem 202

Segundo Crenshaw, as interseccionalidades são formas de capturar


as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação:
sexismo, racismo, patriarcalismo. Essa noção de interação entre formas de
subordinação possibilitaria superar a noção de superposição de opressões.
Por exemplo, a ideia de que uma mulher negra é duplamente oprimida.
A interseccionalidade trataria da forma como ações e políticas específi-
cas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, confluindo e, nessas
confluências, constituem aspectos ativos do “desempoderamento”.
Uma das minhas principais questões em relação a essa abordagem
é que, em uma perspectiva antropológica, ela apresenta uma séria fragili-
dade, pois funde a ideia de diferença com a de desigualdade. As leituras
críticas sobre interseccionalidade adicionam outra questão: elas consi-
deram a abordagem de Crenshaw expressiva de uma linha que destaca o
impacto do sistema ou a estrutura sobre a formação de identidades.Nes-
se sentido, questionam o fato de que as identidades apareçam apenas em
termos de subordinação social e “desempoderamento”, mesmo quando
a ideia seja atacar essa subordinação através de políticas públicas capazes
de neutralizá-la.
Outro problema apontado é que nessa abordagem o poder é tra-
tado como uma propriedade que uns têm e outros não. A ideia é que
essa linha de pensamento às vezes trabalha com o referencial oferecido
por Foucault, mas utiliza seletivamente sua noção de poder. Ela igno-
raria o fato de que esse autor pensa em poder não apenas em sentido
repressivo, mas também produtivo, que não apenas oprime, mas produz
sujeitos. Finalmente, não levaria em conta que as relações de poder estão
em constante alteração, marcadas por conflitos e pontos de resistência.
Esses problemas estão embutidos nas leituras voltadas para o “de-
sempoderamento”, que, difundidas no ativismo feminista, foram incor-
poradas no âmbito acadêmico2. Vale observar que o binômio “desempo-
deramento”/ “empoderamento” tem sido alvo de numerosas críticas no
seio do próprio pensamento feminista.Os questionamentos destacam
que as linhas que utilizam essas noções se centram ora na dominação,

2. Agradeço a Gloria Bonelli por ter levantado este ponto no seminário Sexualidades, Saberes e Direitos, no qual
este trabalho foi apresentado.
203 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

destacando o poder que os homens têm sobre as mulheres e as maneiras


como elas foram vitimizadas, ora, ao contrário, no “empoderamento”,
no poder que as mulheres têm.Essas últimas abordagens, vinculadas ao
feminismo da diferença, consideram que esse poder está ancorado nas
capacidades peculiares às mulheres, como as habilidades para o cuidado
e a maternidade, desvalorizadas nas culturas misoginistas3.O principal
ponto destacado nas críticas é que umas e outras leituras de poder são
lineares, ignorando os complexos processos acionados nas dinâmicas
envolvidas em sua distribuição (Allen, 1998).
Há, porém, outras linhas de abordagem que se diferenciam das for-
mulações de Crenshaw, destacando os aspectos dinâmicos e relacionais
da identidade social.Nelas são marcantes a visão de poder em termos
de lutas contínuas em torno da hegemonia, e o trabalho com a noção
de articulação entendida como prática que estabelece uma relação entre
elementos, cuja “identidade” se modifica como resultado da prática arti-
culatória. Essa perspectiva, que não utiliza uma linguagem de “desempo
deramento”/“empoderamento”, traça distinções entre diferenças e desi-
gualdades, entre categorias de diferenciação e sistemas de discriminação.
De acordo com Prins (2006), autora que realiza uma leitura crítica
das formulações de interseccionalidades, na linha de abordagem exem-
plificada pelo trabalho de Crenshaw, a agência não é inteiramente nega-
da aos sujeitos. Entretanto, a interseccionalidade aparece voltada para
revelar o poder unilateral das representações sociais e as consequências
materiais e simbólicas para os grupos atingidos pelos sistemas de subor-
dinação. Os sujeitos aparecem como constituídos por sistemas de domi-
nação e marginalização e, nesse sentido, carentes de agência.

3. Amy Allen (1998) traça um histórico dessas leituras sobre poder, desenvolvidas na década de 1980. Segundo
ela, as formulações de autoras como Catherine MacKinnon, Andrea Dworkin e Carol Pateman oferecem
exemplos das leituras do “desempoderamento” ou a dominação. De acordo com MacKinnon e Dworkin, a
dominação das mulheres é anterior às diferenças entre homens e mulheres, que seriam efeitos desse sistema
e são utilizadas para justificá-lo. As três autoras aderem a uma leitura da dominação como díade, como a re-
lação entre amo e escravo, mas enquanto Pateman realiza uma leitura crítica do contratualismo clássico, para
MacKinnon e Dworkin essa dominação deriva diretamente da sexualidade, no âmbito da heterossexualidade.
Entre as teóricas do “empoderamento”´, cujo foco é no poder das mulheres para a transformação, estariam
Carol Gillighan e Sarah Ruddick, que considerama valoração positiva da vinculação das mulheres com o
cuidado e a maternidade como caminho para novas compreensões feministas da interação social. Pensar essas
atividades como fontes de poder e controle possibilitaria outras maneiras de considerar o poder.
Discursos fora da ordem 204

Na segunda linha de abordagem, os processos mediante os quais os


indivíduos se tornam sujeitos não os tornam apenas sujeitos a um poder
soberano, mas há algo mais, que oferece possibilidades para os sujeitos.
E os marcadores de identidade, como gênero, classe ou etnicidade não
aparecem apenas como formas de categorização exclusivamente limitan-
tes. Eles oferecem, simultaneamente, recursos que possibilitam a ação.
Vale aqui introduzir um comentário sobre a noção de agência, cuja
utilização vem sendo questionada nos últimos anos, quando ela é con-
siderada como expressão de autonomia, de livre escolha e livre-arbítrio.
As leituras críticas sobre o uso da agência questionam essa utilização e
também chamam a atenção para a inadequação de considerar aagên-
cia como sinônimo de resistência, no sentido de poder exercido como
resposta à dominação, tal como foi utilizado por teóricos dos Estudos
sobre Subalternidade (Subaltern Studies) e por algumas linhas feminis-
tas (Ahearn, 2001; Allen, 1998)4.Em termos antropológicos, a primeira
acepção de agência é impensável porque significa ignorar como a cultura
molda as intenções, crenças e ações humanas5. A segunda acepção, pre-
sente em discussões feministas que depois de terem destacado o poder
de constrição das normas e estruturas de gênero passam a sublinhar as
capacidades de resistência dos indivíduos, não é incorreta. Certamente
há agência nas resistências, mas a agência não pode ser reduzida a isso6.
Nessa segunda linha de abordagem em relação às interseccionali-
dades podemos situar autoras como Anne McKlintock (2010) e Avtar

4. Agradeço também a observação de Judith Halberstam sobre a relação entre agência e resistência, formulada
no seminário no qual foi apresentada a primeira versão deste texto.
5. Em termos antropológicos, a agência é a capacidade de agir, mediada social e culturalmente, realizando ações
que têm efeitos nos outros. Na medida em que envolve efeitos, envolve dimensões de poder. Marilyn Strathern
(2006) trata da agência chamando a atenção para a relevância de não confundir o agente com a pessoa. De
acordo com ela, o agente age tendo outro em mente e a maneira de agir revela a modalidade de pessoa em jogo.
Essa é uma ideia particularmente fértil para pensar em ações que, orientadas por diferentes interesses, evidenciam
diferentes modalidades de pessoa, mais “individuais”, ou relacionais, como corporificação de relações.
6. Isto não significa que os antropólogos tenham resolvido os problemas relativos à agência. As abordagens
vinculadas à teoria da prática destacam as influências das estruturas sociais que moldam as ações humanas,
mas também se preocupam em compreender como, além de constrições, abrem possibilidades para que as
ações reforcem ou reconfigurem essas estruturas. Contudo, há um problema central, relativo a explicar como
a reprodução social se torna transformação social, evidente na obra de Bourdieu, que enfatiza as tendências à
reprodução do habitus. Esse problema foi enfrentado por autoras como Sherry Ortner (2001), que chama a
atenção para as tensões e contradições inerentes no habituse considera que uma direção proveitosa é distinguir
entre tipos de agência, reconhecendo que há múltiplos tipos envolvidos em qualquer ação. Isso possibilitaria
compreender a complexidade e ambiguidade da agência.
205 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Brah (2006). Para ambas a questão da diferença é central7. E, embora


Avtar Brah inicie suas reflexões a partir da inquietação pela racializa-
ção do gênero, as duas autoras estão preocupadas pela articulação entre
múltiplas diferenciações. Isto não significa, como explicita McKlintock,
“incorrer em um pluralismo liberal de lugar-comum que abraça gene-
rosamente a diversidade para melhor apagar os desequilíbrios de poder
que arbitram a diferença”. Significa estar aberta à percepção de quais são
as categorias articuladas operando nas desiguais distribuições de poder
presentes em contextos específicos.
McKlintock, no marco dos estudos culturais, nos Estados Unidos,
analisa o poder imperial afirmando que raça, gênero e classe não são âm-
bitos diferentes de experiência que existem isoladamente uns dos outros,
nem podem ser simplesmente montados em conjunto como se fossem
peças de um lego. Essas categorias existem em e através das relações entre
elas. Por esse motivo são categorias articuladas. As categorias de diferen-
ciação não são idênticas entre elas, mas existem em relações, íntimas, re-
cíprocas e contraditórias. Nas encruzilhadas dessas contradições é possí-
vel encontrar estratégias para a mudança. A articulação seria perceptível
ao considerar como, no âmbito imperial, gênero está vinculado à sexua-
lidade, mas também ao trabalho subordinado, e raça é uma questão que
vai além da cor da pele, incluindo a força de trabalho, atravessada por
gênero. Ao analisar as categorias articuladas, a autora explora políticas
de agência diversificadas, que envolvem coerção, negociação, cumplici-
dade, recusa, mímesis, compromisso e revolta.
A noção de articulação e uma leitura ampla das políticas de agên-
cia estão presentes também no trabalho Avtar Brah. Suas formulações,
“localizadas”, como pensamento de uma feminista negra, do “Terceiro
Mundo”, na Inglaterra, propõem uma análise macro, mas consideran-
do simultaneamente subjetividade e identidade para compreender as
dinâmicas de poder na diferenciação social. Este é um aspecto caracte-
rístico das feministas do “Terceiro Mundo” e que trabalham com teorias

7. Nesse ponto, vale prestar atenção à citação de Audre Lorde, afirmando que o lugar [das feministas] é a própria
casa da diferença e não a segurança de qualquer diferença particular, reproduzida por McKlintock na Intro-
dução ao seu livro, Couro imperial (2010).
Discursos fora da ordem 206

pós-coloniais (Shohat, 1992), porque as preocupações políticas que as


orientam requerem que as análises compreendam a produção de subje-
tividades no marco da história do imperialismo e do capitalismo. Avtar
Brah levanta vários pontos importantes.
A autora afirma que a procura de grandes teorias especificando as
interconexões entre racismo, gênero e classe tem sido pouco produti-
va. Essas interconexões seriam mais bem compreendidas como relações
contextuais e dependentes/contingentes, em termos históricos. Ela con-
sidera que analisar as interconexões entre racismo, gênero, classe, sexua-
lidade etc. requer levar em conta a posição de diversos racismos, um em
relação aos outros.
A proposta de Avtar Brah é trabalhar, não com gênero como ca-
tegoria analítica – como J. Scott (1998), por exemplo –, mas com dife-
rença como categoria analítica. Essa ideia remete à análise de como as
formas específicas de discursos sobre a diferença se constituem, são con-
testadas, reproduzidas e re-significadas, pensando na diferença como
experiência, como relação social, como subjetividade e como identida-
de .A autora afirma que há discursos que apresentam diferenças, como
o racismo, que traçam limites fixos. Mas, outras diferenças podem ser
apresentadas como relacionais, contingentes. Como a diferença nem
sempre é um marcador de hierarquia nem de opressão, uma pergunta a
ser constantemente feita é se a diferença remete a desigualdade, opres-
são, exploração. Ou, ao contrário, se a diferença remete a igualitarismo,
diversidade, ou a formas democráticas de agência política.
Brah considera que a procura de grandes teorias especificando as
interconexões entre racismo, gênero e classe pouco tem rendido. Segun-
do ela, essas interconexões seriam mais bem compreendidas como re-
lações contextuais e contingentesem termos históricos.Na perspectiva
da autora, analisar as interconexões entre racismo, gênero, classe, sexu-
alidade etc. requer levar em conta a posição de diversos racismos e um
em relação aos outros. No que se refere aos processos de racialização, ela
assinala que nem sempre têm lugar em uma matriz simples de bipolari-
dades, de negatividade ou positividade, de inclusão ou exclusão. Em um
contexto racializado, todas as sexualidades estão inscritas em matrizes
207 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

racializadas de poder, mas os encontros racializados também têm lugar


em espaços de profunda ambivalência, admiração, inveja, desejo.

Questões

Uma questão que pode surgir da consideração conjunta das formu-


lações dessas autoras é perguntar-se se analisar as experiências de pessoas
em situações de exclusão e formular políticas para garantir a defesa dos
seus direitos humanos exige necessariamente seguir a linha de Crenshaw,
isto é, considerar os efeitos dos marcadores de diferença apenas em ter-
mos de desigualdade e subordinação. Discordo dessa ideia, pois conside-
ro que um recurso fundamental para desafiar opressões é oconhecimento
do universo das pessoas que se pretende retirar de situações de exclusão.
Nesse sentido, é crucial compreender como operam os sistemas de dis-
criminação, mas também como os/as agentes operacionalizam as noções
e classificações nas quais estão imersos/as na construção de espaços de
agência, entendendo quais são as modalidades de agência em jogo.
Retomemos agora as problematizações às quais me referi no início
do texto.A ideia de que a categoria interseccionalidades coloca excessiva
ênfase nos eixos classificatórios sem prestar suficiente atenção à experi-
ência poderia conduzir a pensarque a análise das interseccionalidades
se diferencia do trabalho com categorias de articulação, pois as autoras
que utilizam essa última conceitualização concedem lugar de destaque
à experiência. Nesse debate, contudo, as visões sobre diferença, poder
e agência presentes nas diversas abordagens são mais importantes do
que os termos que designam esses conceitos (interseccionalidade ou ca-
tegorias de articulação). Avtar Brah (2006; Brah; Phoenix,2004), por
exemplo, utiliza alternativamente a ideia de categorias de articulação e
de interseccionalidades. Uma leitura atenta de suas formulações, assim
como das de Anne McKlintock, mostra que as autoras prestam séria
atenção à experiência, considerando como os sujeitos são constituídos
através de experiências que permanentemente articulam diferenças.Essa
articulação de categorias que se constroem mutamente, de maneira con-
traditória, desafia a ideia de eixos classificatórios.
Discursos fora da ordem 208

No que se refere à ideia de que o trabalho com interseccionali-


dades “engessa” as relações de poder, embora Anne McKlintock preste
particular atenção às “sobredeterminações” de poder e Avtar Brah às es-
truturas de poder (classe, racismo, sexualidade, gênero), as duas autoras
se esforçam para abarcar a complexidade de operação das relações de
poder, chamando a atenção para a imbricação entre sobredeterminações
e reações às estruturas de poder, permeadas pelo entrelaçamento entre
categorias de diferenciação.

Interseccionalidades no âmbito extra-acadêmico

Como se vinculam essas discussões com a noção de intersecciona-


lidade difundida em espaços extra-acadêmicos no Brasil? Essa conceitu-
alização está presente nos escritos de articulações feministas e de organi-
zações não-governamentais voltadas para a defesa dos direitos humanos,
sobretudo dos direitos humanos das mulheres negras8.Nesses escritos,
essa categoria é frequentemente entendida como “transversalidade de
gênero e raça”9 e está vinculada à primeira das abordagens consideradas
na primeira parte deste texto.De maneira mais específica, está associada
a leituras do texto já citado de Crenshaw que, aliás, está disponível onli-
ne nas páginas virtuais de algumas dessas organizações10.
A difusão desse conceito também é evidente no material produzi-
do pelo governo federal relativo aos direitos das mulheres. Um exemplo
significativo é o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (Secre-
taria Especial de Políticas para as Mulheres, 2008).A proposta do docu-
mento é ampliar o escopo do I Plano Nacional (Secretaria de Políticas
Públicas para as Mulheres, 2004), através da introdução de novos eixos
estratégicos e o detalhamento de eixos já existentes, para destacar seg-
mentos de mulheres em situação de vulnerabilidade.

8. Ver <http://www.slideshare.net/observatorionegro/mulher-negra-e-interseccionalidades>.Consultado em
janeiro de 2011.
9. Ver ARTICULANDO Eletronicamente, veículo de informação da Articulação de Mulheres Brasileiras, ano 4,
125, 30/06/2005, p. 1. Disponível em: <www.articulacaodemulheres.org.br/amb/adm/uploads/.../AE%20
125-.doc>. Consultado em janeiro de 2011.
10. Ver <http://www.criola.org.br/artigos.htm>. Consultado em janeiro de 2011.
209 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

No I Plano, difundido em 2004, o termo interseccionalidades não


é utilizado. No entanto, nele concede-se atenção prioritária às desigual-
dades ancoradas não apenas em gênero, mas em “questões de gênero,
raça e etnia”, considerando como elas afetam a população afro-descen-
dente e indígena, e também prestando atenção às diferenças entre popu-
lações rurais e urbanas. As desigualdades vinculadas à “orientação sexu-
al” também são alvo de atenção, assim como discriminações vinculadas
a deficiências físicas, ou o fato das mulheres serem portadoras de HIV.
Entretanto, nesse Plano, a orientação sexual não aparece com relevância
análoga às discriminações vinculadas a raça/etnia.
O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, difundido
em 2008, elaborado após a II Conferência Nacional de Políticas para
as Mulheres, que teve lugar em Brasília em 2007 (Secretaria Nacional
de Políticas Públicas para as Mulheres, 2007), incorpora o termo inter-
seccionalidade. A conceitualização utilizada também segue aspectos da
formulação de Crenshaw, mas apresenta algumas especificidades. Três
aspectos chamam a atenção. O primeiro é que, embora aluda a subor-
dinações múltiplas e simultâneas, o Plano também opera com a ideia
de “soma” de discriminações que Crenshaw tentava superar. O segun-
do aspecto, certamente vinculado à força adquirida pelo movimento
LGBTT, é ter adicionado a orientação sexual às discriminações ancora-
das no gênero e na raça/etnia, como aspectos centrais nas discriminações
que afetam as mulheres. Esse destaque é evidente em várias partes do
documento e no capítulo 9,destinado ao enfrentamento do racismo, do
sexismo e da lesbofobia.O terceiro aspecto do documento que merece
ser destacado é que as desigualdades ancoradas na classe social aparecem
como outras variáveis, assim como idade e presença de deficiência física.
A partir da perspectiva da interseccionalidade, é possível tornar
visível a existência ou não de desvantagens produzidas sobre as pessoas
em uma sociedade desigual. No caso das mulheres, estas desvantagens
podem ser resultantes de discriminações de raça/etnia (ser negra ou
ser indígena), de sexo (ser mulher) e orientação sexual (ser lésbica). E
podem ainda se somar a outras variáveis como classe social (ser pobre),
condição de moradia (residir em favelas ou em áreas rurais afastadas),
idade (ser jovem ou idosa), presença de deficiência, entre outras.
Discursos fora da ordem 210

Vítimas

O processo de organização das duas Conferências Nacionais da


Mulher e as elaborações dos dois Planos coexistem com a intensificação
do debate público sobre tráfico de pessoas e com a incorporação dessa
temática nas agendas governamentais e de algumas articulações femi-
nistas. A problemática foi incluida nos dois Planos de formas análogas.
Considerando o tráfico nacional e internacional de mulheres como um
dos aspectos da violência contra a mulher, uma das diretrizes dos Planos
écombater as distintas formas de apropriação e exploração mercantil do
corpo e da vida das mulheres, como a exploração sexual, o tráfico de
mulheres e o consumo de imagens estereotipadas da mulher. E, embora
seja mais destacado no primeiro, os dois Planos delineiam um perfil de
vítima de tráfico de pessoas com fins sexuais que remete a mulheres e
adolescentes afro-descendentes, com idade entre 15 e 25 anos.
Essa caracterização das vítimas, na qual predomina a ideia de de-
sigualdades vinculadas a gênero e raça, extremamente disseminada no
Brasil, começou a chamar minha atenção quando realizei ou coordenei
pesquisas vinculadas a essa problemática em fluxos internacionais de
pessoas em direção a países europeus. Alguns desses estudos estiveram
voltados para analisar a inserção de brasileiras na indústria do sexo da
Espanha (Piscitelli, 2009; 2007a; 2007b). Outros procuraram apreen-
der indícios de tráfico de pessoas entre mulheres e travestis deportadas e
não admitidas que retornavam ao Brasil através do aeroporto de Guaru-
lhos (Secretaria Nacional de Justiça, 2005; 2006).
Nesse conjunto de trabalhos, parte significativa das brasileiras en-
volvidas na indústria do sexo, em estilos de deslocamento que, de acor-
do com o Código Penal Brasileiro, poderiam ser vinculados ao tráfico
de pessoas, se autoclassificavam como brancas. Essa percepção no que
se refere aos fluxos de brasileiras que se inseriram na indústria do sexo
em países do Sul da Europa foi referendada pela equipe de atendimen-
to do Centro de Apoio Humanizado ao Migrante em Guarulhos.Essa
ONG atende pessoas que retornam ao Brasil através do aeroporto de
Guarulhos e que apresentam indícios de tráfico. Até 2009, as mulhe-
211 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

res que receberam nessa condição eram majoritariamente “brancas”11.A


discrepância no perfil das vítimas levou-me a prestar atenção a como foi
traçado esse perfil no Brasil, pois embora a ideia de que as vítimas sejam
predominantemente afro-descendentes possa ser vinculado a outros flu-
xos, internos e/ou fronteiriços, ela não se adequava aos dados que fui
levantando sobre as mulheres nos deslocamentos em direção à Europa.
Observo que a delimitação dos aspectos que tornam ou não uma
pessoa vítima do tráfico de pessoas no Brasil não é simples, em função,
entre outros elementos, de discrepâncias nas leis que tipificam esse cri-
me.Pessoas que estão se deslocando com o objetivo de oferecer serviços
sexuais podem, de acordo com a leitura das leis, ser consideradas vítimas
de tráfico de pessoas12.Neste capítulo, porém, não entro nessa discussão,
que foi desenvolvida em outros textos (Piscitelli, 2008 e 2008a); Vas-
concelos e Bonzon, 2008). O meu interesse aqui é compreender como
foi moldada e disseminada a caracterização das vítimas de tráfico inter-
nacional de pessoas com fins de exploração sexual.Seguindo o percurso
de escritos e pesquisas que foram delineando esse perfil, percebi como a
conceitualização de interseccionalidades participou nesse processo.

Turismo sexual

No âmbito internacional, os debates sobre tráfico de pessoas foram


retomados na década de 1970, a partir da pressão de feministas preocupa-
das com os impactos sociais da reconstrução e do desenvolvimento do Su-

11. Comunicação pessoal da equipe de atenção da ONG em São Paulo, em junho de 2009; ver também Secretaria
Nacional de Justiça/ASBRAD, 2009.
12. No Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil em 2004, o crime de tráfico de pessoas é definido concedendo
ênfase à coerção, ao engano ou ao abuso de situação de vulnerabilidade em qualquer fase do processo do des-
locamento para ser explorado em qualquer setor de atividade. As leis sobre tráfico do Código Penal Brasileiro,
de 1940, tipificavam o crime de maneira diferente. Essas leis definiam o crime como promoção ou facilitação
da entrada no território nacional de mulheres que nele viessem a exercer a prostituição, ou, ao contrário, a saí-
da de mulher que fosse exercê-la no estrangeiro (artigo 231). O emprego de violência, grave ameaça ou fraude,
centrais para a definição do crime no Protocolo de Palermo, eram apenas agravantes no Código Penal. ALeinº
11.106, de 28 de março de 2005, modificou o capítulo V do Código Penal, tratando de tráfico internacional
de pessoas (e não mulheres) e adicionando disposições relativas ao tráfico interno de pessoas (isto é, no âmbito
do território nacional). E as alterações legais mais recentes, Lei nº 12015, de 7/08/2009, modificam essas
disposições adicionando (artigo 231.1) que as penas se estendem àqueles que agenciem, aliciem ou comprem
a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, a transportem, transfiram ou alojem.
Discursos fora da ordem 212

deste da Ásia após a Guerra do Vietnã e com a permanência contínua das


tropas militares estadunidenses na região (Enloe, 1990).Essas campanhas
atacaram a prostituição voltada para os militares, o turismo sexual, as noi-
vas arranjadas por correspondência, os casamentos forçados e as coerções
e violência no deslocamento e no emprego de mulheres de áreas pobres
em lugares “ricos”, nas indústrias do lazer e do sexo (Kempadoo, 2005).
No Brasil, as recentes discussões sobre tráfico de pessoas seguiram
um percurso diferente. As problemáticas do tráfico de pessoas e da pros-
tituição não integraram o principal leque de preocupações feministas,
durante as décadas de 1970 e 1980 (Moraes, 1996; Corrêa, 1984; Sar-
ti, 2004; Piscitelli, Beleli, Skackaukas e Passeti, 2011; Corrêa e Nieto
Olivar, 2010). Nesses anos, a relação entre brasileiras, principalmente
mulatas, com turistas estrangeiros – e ainda as viagens e casamentos de-
correntes desses relacionamentos –, chamaram a atenção de feministas
negras e, nesse sentido, vale mencionar os escritos pioneiros de Lélia
González (1982). Esses relacionamentos foram considerados expressão
da subordinação das mulheres negras, porém, nesse momento, não fo-
ram traduzidos como turismo sexual nem vinculados ao tráfico interna-
cional de pessoas.
No final da década de 1990, o efeito das preocupações do feminis-
mo transnacional se fez sentir no Brasil. A inquietação pelas relações en-
tre turismo sexual e tráfico internacional de pessoas presente no exterior
passou a ser perceptível nas ações e nos escritos de organizações não-
governamentais que trabalham em cidades do Nordeste, tidas como
alvo do turismo sexual, Recife e Salvador. Um olhar atento para textos
e documentos produzidos no Brasil nesse período mostra que a ideia de
mulheres e meninas negras e morenas como vítimas predominantes do
tráfico de pessoas está presente neles. Ela aparece vinculada à denúncia
do turismo sexual, frequentemente fundido com o tráfico de mulheres,
em cidades do Nordeste do Brasil, abrangendo também os casamentos
com turistas estrangeiros, considerados vias para a exploração sexual e o
cárcere privado no exterior (Prestrello; Dias, 1996; Chame, 1998). Esse
procedimento tem sido alvo de diversas leituras críticas (Grupo da Vida,
2005; Piscitelli, 2004). O que me interessa sublinhar aqui é a relevância
213 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

dessa vinculação para compreender como se produz a caracterização das


vítimas de tráfico de pessoas no Brasil.
No material produzido por essas ONGs, a negritude é vinculada
à pobreza, mas também se adiciona outro elemento: o estilo de sexuali-
dade, marcado pelo exotismo, com a “sexualidade à flor da pele”, “extre-
mamente livre”, atribuído às mulheres afro-descendentes, que atrai os
estrangeiros. Essas ideias são apresentadas como motor para o turismo
sexual e para o tráfico internacional de mulheres.
Essas relações entre “cor” e sexualidade, reiteradas inúmeras vezes
em matérias publicadas na mídia brasileira (Piscitelli, 1996), se torna-
ram crescente alvo das denúncias de feministas, particularmente de fe-
ministas negras. Nos textos e documentos do movimento, a condição
econômica precária e o estilo de sexualidade atribuído à mulher negra
no Brasil são percebidos como resultado do entrelaçamento entre pa-
triarcalismo e racismo (Carneiro, 1995) e como extensões dos papéis
sociais e econômicos concedidos às mulheres negras, no Brasil, ao longo
da escravidão (Rufino, s/d). É frequente o procedimento de considerar
que a racialização/sexualização interna, criada historicamente no Brasil
e difundida pela propaganda no exterior, atrai os estrangeiros para o tu-
rismo sexual e os casamentos interculturais e expõe as mulheres negras
ao tráfico de pessoas no exterior (Theodoro, s/d).
A exotização das brasileiras, racializadas como morenas ou mula-
tas e tidas como portadoras de uma sexualidade exacerbada, certamente
é um aspecto relevante da dinâmica do turismo sexual protagonizado
por homens estrangeiros e mulheres nativas no Brasil, em contextos de
interação extremamente desiguais, em termos estruturais. O que é im-
portante destacar, porém, é como esses textos, na fusão ou íntima cone-
xão que estabelecem entre turismo sexual e tráfico de pessoas, produzem
a ideia de “vítimas de tráfico” calcada na caracterização das mulheres e
adolescentes que participam do turismo sexual.Nesse procedimento,
eles articulam ora gênero, classe e raça, ora, principalmente, gênero e
raça, em leituras que, às vezes, levam em conta o entrelaçamento entre
opressões, mas frequentemente consideram que há uma soma de efeitos
provocados por esses eixos de subordinação.
Discursos fora da ordem 214

Quando as ONGs sediadas no Nordeste passaram a expressar suas


preocupações em relação ao turismo sexual, na década de 1990, suas de-
núncias foram difundidas, inclusive no exterior, mas tiveram escassos
efeitos no debate público brasileiro. No entanto, no final dessa década,
no contexto mais amplo da preocupação internacional pelo tráfico de
pessoas, essa inquietação teve um forte impacto político quando foi le-
vantada pelos movimentos pelos direitos da criança, a partir dos dados
da primeira pesquisa nacional sobre tráfico com fins de exploração sexu-
al comercial, a PESTRAF, que comento em seguida.

Pesquisas sobre tráfico de pessoas

A “Pesquisa nacional sobre o tráfico de mulheres, crianças e ado-


lescentes para fins de exploração sexual comercial/PESTRAF”, conside-
rada um marco em termos das articulações contra o tráfico de pessoas,
teve início em 2000. A coordenação nacional e a articulação institucio-
nal estiveram vinculadas a instâncias de defesa dos direitos de crianças
e adolescentes. A pesquisa foi difundida nacionalmente em 2002, com
amplacobertura da mídia, com o propósito de chamar a atenção para o
debate público sobre o tema. Seus resultados tiveram efeitos na discus-
são, nos estudos que se seguiram e, inclusive, na alteração da lei sobre
tráfico de pessoas presente no Código Penal Brasileiro13.
Nessa pesquisa, o perfil das vítimas de tráfico de pessoas com fins de
exploração sexual é traçado considerando gênero, “raça”, idade e classe so-
cial. A caracterização remete à pobreza, em termos que parecem ancorar-
se nas atividades desempenhadas no país, mas diversas partes do relató-
rio priorizam as marcas raciais sobre a classe social, como uma espécie de
síntese da desigualdade que atinge essas pessoas. No entanto, os diversos
corpos de material analisados praticamente não apresentam dados sobre
cor14 (Cecria 2002). Apesar disso, o relatório traça uma caracterização das

13. Ver nota anterior.


14. O relatório dessa pesquisa é composto por dois volumes, o segundo dos quais apresenta detalhadamente a
metodologia. Os resultados se baseiam na análise de diferentes corpos de material: 1) matérias publicadas
pela mídia impressa, 2) inquéritos policiais e processos judiciários e 3) estudos de caso. No que se refere ao
material da mídia, a pesquisa trabalhou com 276 matérias, que serviram de referência para a elaboração de
215 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

vítimas de tráfico de pessoas mediante critérios de subordinação vincula-


dos a raça e idade, que até hoje é reproduzida no debate: “No Brasil, o trá-
fico para fins sexuais é, predominantemente, de mulheres e garotas negras
e morenas, com idade entre 15 e 27 anos” (Cecria, 2002: 48).
Neste ponto é importante destacar que, como vimos, essa pesquisa
não produziu a ideia de mulheres e meninas negras como vítimas predo-
minantes do tráfico de pessoas, mas reproduziu a caracterização de víti-
mas de tráfico de pessoas delineada pelas ONGs que, sediadas no Nor-
deste, trabalhavam com pessoas envolvidas no turismo sexual. A partir
da força adquirida pelo movimento de proteção aos direitos da criança,
a PESTRAF deu voz a essas inquietações, reiterando noções presentes
nas suas denúncias e “amplificando-as”, através do impacto que o estudo
teve no debate público.
No período da difusão dos resultados da PESTRAF, em 2002, a
ideia de vítimas do trafico, inclusive internacional, como meninas e mu-
lheres negras, passou a ser reproduzida em matérias veiculadas na mí-
dia e em páginas web de entidades que promovem os direitos humanos,
com particular ênfase nos sites e documentos produzidos por feministas
negras. As imagens de mulheres negras e morenas passaram a integrar
folhetos destinados a promover o combate ao tráfico de pessoas, princi-
palmente os produzidos por organizações não-governamentais.
Ao longo da década de 2000, o movimento de combate ao tráfico
de pessoas se ampliou, impulsionado pelo programa da Secretaria Na-
cional de Justiça, com apoio do o Escritório das Nações Unidas Con-
tra as Drogas e Crimes (UNODC)15. Nesse âmbito foram realizados

gráficos relativos ao gênero e idade das pessoas consideradas traficadas e às “rotas”, nacionais e internacionais.
O relatório explicita que registrar a identificação étnica das pessoas envolvidas foi uma das propostas originais
da equipe de pesquisa. Contudo, foi inviabilizada, pois apenas duas matérias faziam menção explícita a esse
aspecto. A análise dos estudos de caso apresenta um quadro semelhante: apenas dois dos dez casos contem-
plados na pesquisa aludem à cor. Apenas uma das pessoas apresentada como vítima aparece como parda e uma
como negra, mas nos restante oito casos não há alusões à cor. Finalmente, na análise de inquéritos policiais e
processos judiciais não há nenhuma alusão à cor das vítimas.
15. Esse programa incluiu a realização de pesquisas, a criação de escritórios de Combate e Prevenção ao Tráfico de
Seres Humanos, a realização de seminários em diversas partes do país e cursos de capacitação e sensibilização
para operadores de direito, policiais, agentes que trabalham em aeroportos e pessoas de instâncias governa-
mentais e não-governamentais que atenderiam às vítimas. Entre 2005 e 2006 foi elaborada a Política Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que incluiu uma ampla consulta à sociedade (Ministério da Justiça,
2007).
Discursos fora da ordem 216

outros estudos. Considerarei cinco pesquisas, realizadas entre 2004 e


2008, que adquiriram relevância no debate sobre o tema. Quatro delas
foram realizadas pela Secretaria Nacional de Justiça e a quinta por uma
ONG sediada no Pará. Nenhum desses estudos teve abrangência nacio-
nal. Eles se centraram na análise de processos judiciários e inquéritos
policiais nos estados considerados como relevantes em termos do crime
e em regiões de fronteira: no Sul, na Tríplice Fronteira e no Norte, nos
deslocamentos entre Belém e Suriname e também no fluxo de migrantes
deportados de países europeus e dos Estados Unidos que retornaram ao
Brasil através do aeroporto de Guarulhos.
A primeira dessas pesquisas, o “I Diagnóstico sobre tráfico de se-
res humanos – São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará”, esteve cen-
trada em análises de processos judiciários ( Justiça Federal) e inquéritos
(Polícia Federal) relativos ao crime de tráfico de pessoas nesses quatro
estados (Secretaria Nacional de Justiça, 2004a). Esse estudo indica que
as vítimas são, sobretudo, do sexo feminino e que no tráfico internacio-
nal de pessoas, as vítimas são, sobretudo, mulheres e não adolescentes.
A pesquisa traça o perfil das vítimas considerando ocupação e grau de
instrução, deparando-se com as limitações da informação presente nos
processos. No que se refere à “cor”, o instrumento de pesquisa utilizado
não inclui essa informação entre os dados da vítima. E aqui é necessário
observar que em diferentes processos, incluindo sentenças condenató-
rias, a cor dificilmente aparece registrada nas informações sobre a víti-
ma16. Contudo, no CD preparado para a difusão dos dados de pesquisa,
o diagnóstico é acompanhado pela imagem de uma mulher negra (Se-
cretaria Nacional de Justiça, 2004a).
O segundo dos estudos (Secretaria Nacional de Justiça, 2004b),
voltado para a compreensão da dinâmica do tráfico de pessoas na tríplice
fronteira, analisou inquéritos policiais e processos judiciários instaura-
dos no Rio Grande do Sul e notícias veiculadas pela mídia impressa.
Neste estudo, o perfil das vítimas é traçado levando em conta idade, ní-

16. Este é o caso do conjunto de sentenças analisadas pela Dra. Ela Wiecko de Castilho (2008) e Marina Pires
de Oliveira (2008). São 23 decisões (14 de primeiro grau e 9 de segundo grau) em ações penais relativas à
aplicação do art. 231 do Código Penal. As sentenças foram proferidas, no período de 2004 a 2008, na maioria
por juízes federais. Os fatos objeto das sentenças ocorreram nos anos de 1999 a 2006.
217 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

veis de renda e escolaridade, considerados baixos, e não inclui nenhuma


alusão à cor da pele (Secretaria de Justiça 2004b: 27).
As duas pesquisas seguintes foram realizadas no aeroporto de Gua-
rulhos, com pessoas deportadas e não admitidas em países do “Norte”/Eu-
ropa e Estados Unidos17. Diferentemente dos estudos anteriores, essas duas
pesquisas incluíram a cor declarada no perfil das pessoas entrevistadas. Nas
duas se trabalhou com um conjunto amplo de pessoas deportadas e não
admitidas18, entre as quais, em torno de 8% afirmaram ter trabalhado na
indústria do sexo no exterior. Foram 19 pessoas, 10 mulheres, com idades
entre 24 e 38 anos e 9 travestis, entre 22 e 40 anos, originárias de diver-
sos estados brasileiros. Considerando anos de estudo e renda, os resulta-
dos mostraram que se tratava de pessoas que não podiam ser consideradas
como atingidas pelas desigualdades mais extremas no Brasil. Em termos de
cor, essas pessoas apresentaram um quadro diversificado. As pessoas que se
autoclassificaram como brancas constituíram 40% do total das que afirma-
ram ter trabalhado na indústria do sexo. Apenas uma mulher se conside-
rou negra. As restantes se consideraram principalmente como morenas e
pardas19.E, neste ponto, é necessário realizar uma observação.
No Brasil, categorias como pardo, mestiço e inclusive moreno,
são englobadas na categoria negro pelo IBGE, por movimentos sociais
e também por pesquisadores (Oliveira, 2009).No entanto, as racializa-
ções imperantes nos países do Sul da Europa e, de maneira particular, na
indústria do sexo nesses países, não são coincidentes com as categoriza-
ções de cor presentes no Brasil.
Nesses países, as brasileiras que se autoclassificam como brancas ou
morenas são racializadas basicamente em termos de nacionalidade e ten-
dem a se inserir nos “níveis médios” de prostituição, assim caracterizados
em função do valor dos serviços sexuais. Nos espaços ocupados por es-

17. A primeira pesquisa, centrada em mulheres e travestis, contemplou exclusivamente indícios de tráfico com
fins de exploração sexual (Secretaria Nacional de Justiça, 2005). O segundo estudo trabalhou com um uni-
verso que incluiu homens, mulheres e travestis e considerou indícios de tráfico com fins de exploração em
qualquer setor de atividade (Secretaria Nacional de Justiça, 2007).
18. A amostra contou com 175 pessoas na primeira pesquisa e 73 na segunda, com um número de entrevistados
que não tem representatividade estatística.
19. De dez mulheres, quatro se declararam brancas, uma negra, uma indígena, duas morenas, uma parda, uma
mulata. Entre as nove travestis, duas se declararam brancas, uma amarela e as restantes pardas ou morenas.
Discursos fora da ordem 218

ses “níveis” há uma demanda por diversidade nacional e étnica que inclui
mulheres de diversas nacionalidades e de tonalidades de pele consideradas
como relativamente claras. Nesses espaços há escassa receptividade e, às ve-
zes, rejeição aos “extremos”, nos quais se situam as mulheres consideradas
negras, em termos descritivos, isto é, com pele considerada muito escura.
Nesses casos, a racialização deixa de ser baseada na nacionalidade e se vin-
cula à cor da pele. As pessoas assim percebidas são objeto de graus mais in-
tensos de racismo20. Essas categorizações certamente têm vinculação com
a significativa presença de brasileiras que se consideram “brancas” ou “mo-
renas” entre as que trabalharam na indústria do sexo no Sul da Europa.
Finalmente, o quinto estudo sobre tráfico de pessoas, realizado pela
ONG Só Direitos (2008), contemplou o tráfico de brasileiras com fins de
exploração sexual nos deslocamentos entre Belém e Suriname. Este estudo
também considera a cor na caracterização das vítimas. São 17 mulheres,
predominantemente adultas (apenas uma adolescente). Somente três delas
se declararam brancas, não consta informação sobre outras três, há quatro
negras e as demais se distribuem entre indígenas e pardas. Seus perfis as
diferenciam do universo de entrevistadas do aeroporto. A única ocupação
de todas as entrevistadas de Belém, com “baixíssimos rendimentos”, além
da prostituição, foi o serviço doméstico. As experiências de vida marcadas
pela violência, inclusive sexual, o trabalho iniciado às vezes na infância e o
saldo negativo dos processos migratórios também as diferenciam das entre-
vistadas de Guarulhos. Várias destas últimas conseguiram através do traba-
lho realizado nas viagens comprar imóveis e melhorar a qualidade de vida
de suas famílias no Brasil. Ao contrário, as entrevistadas que foram para
o Suriname retornaram a uma situação econômica igual o pior à anterior.

Gênero e raça

Uma leitura desse conjunto de pesquisas, prestando atenção às


fontes utilizadas em cada uma, permite perceber que os primeiros es-

20. Este aspecto, presente em entrevistas com empresários, com clientes desses espaços e em material da web, foi
referendado por minha observação em vários clubes, apartamentos e inclusive na rua, em diversas cidades
espanholas (Piscitelli, 2009).
219 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

tudos afirmam a predominância de vítimas negras sem ancoragem em-


pírica, pois não contemplaram ou não obtiveram informações sobre a
cor na coleta de dados. Os estudos posteriores, que trabalharam com
essa informação, remetem a um mosaico em termos de idade, gênero e
“cor” que não referenda a difundida caracterização das vítimas, quando
se trata dos fluxos internacionais em direção aos países do Sul da Euro-
pa. A ideia de meninas adolescentes como vítimas parece restringir-se
ao tráfico interno. No que se refere à “cor”, de acordo com os critérios
presentes no Brasil predominam pessoas não-brancas entre as pessoas
consideradas vítimas do crime e, em termos amplos, entre migrantes que
se inserem na indústria do sexo no exterior. Contudo, esses estudos mos-
tram perfis diversos em termos de escolaridade, graus de pobreza e cor,
com concentrações diferenciadas de brancura, negritude e de categorias
intermediárias, como morena, de acordo com os países de destino. No
que se refere aos fluxos para países do Sul da Europa, o que no Brasil
pode ser lido como predominância de não-brancas, porque a soma de
mulheres que se autoclassificam como morenas, pardas, indígenas e ne-
gras supera as brancas, nesses países, de acordo com as racializações ne-
les presentes, pode ser lido como predominância de não-negras, porque
brancas, morenas, pardas e indígenas superam as negras.
O conjunto de pesquisas sugere que a caracterização das vítimas de
tráfico de pessoas presente na discussão sobre o tema não é necessaria-
mente estabelecida em diálogo com as evidências empíricas. O caminho
seguido, que estende às vítimas de tráfico de pessoas a caracterização das
mulheres e meninas envolvidas no turismo sexual em cidades do Nor-
deste do país, utiliza, em anos recentes, o termo interseccionalidade.
Esse termo tende a adquirir o sentido de soma de opressões. A ideia é
que o maior número de opressões, principalmente as vinculadas a gêne-
ro, raça, pobreza e idade, indica o maior grau de vulnerabilidade. E essa
vulnerabilidade aparece vinculada às vítimas de tráfico internacional de
pessoas, independentemente dos fluxos envolvidos e ignorando as de-
mandas específicas dos mercados do sexo dos países de destino.
Um segundo ponto relevante é que essa particular leitura de soma
de opressões estende às brasileiras no exterior o significado racial das
Discursos fora da ordem 220

desigualdades presentes no Brasil. E aqui vale lembrar os diversos sig-


nificados atribuídos por Kimberlé Crenshaw ao sentido de “racial”, que
envolve tanto as hierarquizações internas aos países como as presentes
na escala global. A questão é que essas últimas não necessariamente es-
pelham as primeiras.
As desigualdades envolvendo morenas/mulatas/negras, no Brasil,
e a particular sexualização dessas mulheres podem confluir para que al-
gumas se tornem disponíveis nos mercados do sexo no país e para que,
ao mesmo tempo, sejam consideradas atraentespor parte de consumi-
dores de sexo brasileiros e por estrangeiros à procura de exotismo. Mas,
esses critérios não são replicados em setores altamente mercantilizados
dos mercados do sexo no exterior, no Sul da Europa.
Na Espanha, os racismos envolvendo algumas nacionalidades,
como a brasileira, são mais suaves, e se traduzem em uma linguagem
etnicizada, considerando a diferença vinculada à nacionalidade basi-
camente em termos culturais. Entretanto, esta leitura ocorre somente
quando a pele é considerada como relativamente clara, incluindo bra-
sileiras que se consideram “brancas”, “morenas” e até “mulatas”. Esse
tipo de racismo coexiste com uma racialização inteiramente negativa,
associada à cor “negra”, que remete a uma maior distância, a uma in-
feriorização mais intensa do “outro” e à deserotização. As mulheres
“etnicizadas”, “que têm saída no mercado”, incluindo brasileiras, outras
latino-americanas e mulheres do Leste Europeu ocupam os setores
intermediários da indústria do sexo e, paralelamente, constituem os
principais contingentes de estrangeiras com os quais casam os homens
espanhóis. Já as mulheres consideradas negras, ocupam os piores luga-
res na indústria do sexo.
Considerando esses aspectos, a utilização da noção de interseccio-
nalidade presente no debate sobre tráfico internacional de pessoas difi-
culta a compreensão das especificidades dos diferentes fluxos vinculados
ao tráfico internacional de pessoas com fins de exploração sexual. E tam-
bém dificulta a compreensão dos aspectos vinculados aos deslocamentos
para trabalhar na indústria do sexo na Europa.
221 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Considerações finais

Afirmei no início que, apesar do desconforto provocado por certas


utilizações da categoria interseccionalidade, considero que ela é fértil.
Penso nisso levando em conta as possibilidades que algumas formula-
ções dessa conceitualização abriram nas minhas pesquisas para pensar
nas dinâmicas envolvidas na transnacionalização dos mercados do sexo.
Entender a relação entre racismos na Espanha foi relevante para
compreender a inserção de brasileiras de pele considerada como relati-
vamente mais clara nessa indústria. Explorar a articulação entre gênero,
nacionalidade, racialização e sexualização que envolve essas mulheres
na indústria do sexo nesse país contribuiu para pensar como elas, assim
como outras latino-americanas de países “tropicalizados”, têm “saída”
nessa indústria. De outro lado, explorar a articulação entre categorias
de diferenciação e a criação de espaços de agência possibilitou entender
como essas mulheres jogavam com os atributos a elas atribuídos para
negociar seus posicionamentos nesse setor de atividade.
Os estilos de feminilidade de brasileiras, cubanas, colombianas
são racializados como mestiços e sexualizados, além de vinculados a
diversos outros traços considerados altamente positivos, como alegria,
afetuosidade, disposição para o cuidado. Em setores intensamente mer-
cantilizados da indústria do sexo na Espanha, nos quais as brasileiras são
diluídas na categoria mais ampla de latino-americanas e nos quais a ideia
de morenas/mestiças “quentes” é associada, sobretudo, às mulheres das
ex-colônias espanholas, minhas entrevistadas tentavam singularizar-se
através de atributos supostamente “brasileiros”.
Não se tratava, contudo, de apelar a uma sexualidade exacerbada,
senão de destacar a afetuosidade, a alegria e o cuidado, que traduziam
como qualidades essenciais da nacionalidade brasileira. Deslocando-
se de uma sexualização da nacionalidade, que nesse mercado não lhes
concedia particular valor em relação a outras latino-americanas, elas jo-
gavam com atributos vinculados a um temperamento carinhoso e com
certo sabor a domesticidade, e através do jogo com esse arsenal de cate-
gorias várias conseguiram posicionar-se para alcançar seus objetivos. O
Discursos fora da ordem 222

que me interessa assinalar é que só podemos pensar nesses jogos se con-


sideramos que as formas de categorização podem limitar, mas também
abrem possibilidades para a agência.
Finalizando, é importante considerar que a categoria de intersec-
cionalidades, assim como a de gênero, remete a momentos específicos da
história do pensamento feminista e faz sentido considerando as forças
políticas que a foram moldando. A questão é que não se trata de formu-
lações puramente teóricas. Elas vão adquirindo diferentes significados
em distintos usos, nem sempre os que desejamos, no jogo político do
qual elas também são resultado.

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Atos, sujeitos e enunciados dissonantes:
algumas notas sobre a construção
dos direitos sexuais

Adriana Vianna

Preâmbulos e perambulações

As ideias que pretendo expor aqui são resultado de múltiplas in-


completudes e errâncias. Antes de trazê-las ao Seminário Sexualidades,
Saberes e Direitos, elas vagaram, de modo mais ou menos semelhante ao
que aqui se apresenta, por outros fóruns e contaram com a valiosíssima
colaboração de diferentes interlocutores/as1.
Por outro lado, é preciso dizer que os próprios enovelamentos
do texto em construção – e da construção do texto – de certo modo
casam-se com o processo algo errático de observação e reflexão que lhe
dá sustento. Longe de ser resultado de um trabalho sistemático de pes-
quisa, cujas anotações possam ser cartesianamente reunidas e alinhadas,
as considerações que faço aqui nasceram inicialmente de processos va-
riados de participação-observação em que sensações, imagens e emoções
foram suscitadas tanto pelas falas e corpos de outrem, como por minhas
próprias falas (e silêncios) e por meu próprio corpo posto em cena. Seu
caráter é, assim, duplamente ensaístico: seja porque pretende mais colo-
car observações do que comprová-las com o rigor e sistematização que

1. Agradeço a Larissa Pelúcio e Richard Miskolci o convite para participar do seminário e a paciência na espera
do texto sempre inconcluso. Boa parte dessas ideias foi discutida em outros momentos, em especial no GT Se-
xualidade, Corpo e Gênero da Anpocs de 2009, quando contei com a leitura atenta e com as ricas sugestões de
Bibia Gregori, Júlio Simões e José Miguel Olivar. Sérgio Carrara, interlocutor constante e precioso, também
discutiu em diferentes momentos algumas das ideias aqui presentes.
Discursos fora da ordem 228

se deve esperar de trabalhos de pesquisa, seja porque permanece como


espécie de rascunho perene, irremediavelmente inacabado.
Acompanhando reuniões políticas variadas ao longo de alguns
anos (de 2003 a 2008, principalmente), percebi-me sempre localizada
em parte pelo precário das identificações formais – “pesquisadora do
CLAM”; “professora do Museu Nacional”; “antropóloga”. E, mais rara-
mente, “companheira” – e sempre por meu corpo e por discretas espe-
culações em relação à minha sexualidade. Os limites à minha escuta e da
minha escuta por certo também estiveram marcados por esses proces-
sos de localização, alguns dos quais pude apenas pressentir e outros que
acreditei perceber de modo mais evidente, senão nas outras pessoas, ao
menos em mim mesma: momentos em que minha fala não parecia auto-
rizada, momentos em que minha possibilidade de ouvir e compreender
saturava-se em irritações, incapacidade de empatia, desacordo político.
O processo que reúne esse conjunto de experiências pode ser
pensado como tributário de uma recente invenção contemporânea, os
“direitos sexuais”, conjunto disperso e heterogêneo de princípios, de-
mandas, incômodos e subjetividades políticas. Meu contato com esse
universo começou em 2002 quando, como pesquisadora do recém cria-
do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos –
CLAM, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, engajei-me na
aparentemente descomplicada tarefa de elaborar um panorama das
políticas e direitos sexuais naquele momento. De descomplicada a ta-
refa não tinha nada, como fomos – eu, Paula Lacerda e Sérgio Carrara,
sobretudo – nos apercebendo com mais e mais clareza2. Em processo
ele próprio de organização naquele momento, o CLAM estruturou-se
em três grandes frentes de abordagem, coincidentemente basicamente
as mesmas que reencontramos hoje no seminário que originou esta fala:
saberes, comportamentos-experiências e direitos. Não, eu não estava so-
zinha na dificuldade. O curioso foi, porém, que à primeira vista me senti
como quem explorava o terreno mais preciso e delimitável, em compara-
ção com a fluidez e os limites borrados dos demais. Menos, porém, que

2. Esse trabalho teve como primeiro resultado a publicação Vianna; Lacerda (2004). Outros desenvolvimentos
foram apresentados em Vianna; Carrara(2007: 27-52) e em Vianna; Carrara (2008: 334-360).
229 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

compilar totens e fetiches da política e do direito (leis, política públicas,


decisões judiciais exemplares) vi-me em meio a um redemoinho de ca-
tegorias em embate e de combate, projetos conflitantes e performances
político-existenciais variadas.
Longe de recuperar exaustivamente o contexto ou as condições
dessas observações tão dispersas quanto renitentes, o que procurarei
discutir brevemente são pequenas recorrências que talvez possam nos
levar para além (ou para baixo, subterraneamente, quem sabe?) desses
mesmos totens. Se projetos de lei em pauta ou almejados, articulações
ativistas, temas relevantes e emblemáticos, temas incômodos etc., pare-
cem ocupar o primeiro plano dos debates tecidos em torno dos direitos
sexuais – ou das sexualidades como “direitos” –, é o questionamento ex-
plícito ou implícito sobre quem seriam os seus ou as suas protagonistas,
sobre a adequação de sua participação nessas cenas ou textos que parece
constituir a malha menos aparente desses mesmos debates.
Para compreender um pouco esse redemoinho, porém, creio ser
importante, antes de mais nada, situar o quanto é recente a emergên-
cia de um enunciado de políticas e reivindicações centrado nessa ideia,
ainda algo imprecisa e oscilante, de “direitos sexuais”. Desentranhados
em princípio de outros corpus/corpos mais consolidados no campo dis-
cursivo dos direitos humanos, como os direitos das mulheres e das antes
chamadas “minorias”, tais direitos propõem, a seu modo, certa autono-
mização da sexualidade face ao universo de problemáticas legítimas em
tais fóruns (em especial face à reprodução), ao mesmo tempo que subli-
nham ou inventam solidariedades não muito simples de serem articula-
das no plano das iniciativas políticas3.
Nesse sentido, o próprio esforço de cunhagem do termo ou de seus
similares revela, como constantemente ocorre nos cenários profícuos de
emergência de “direitos”, uma dimensão demiúrgica, traduzida na possi-
bilidade de fazer nascer necessidades e sujeitos para essas necessidades ao

3. Cabe notar que não estou pensando aqui no horizonte mais longo e profundo de formas de intervenção,
regulação e normatização da sexualidade, algo que envolve políticas de naturezas as mais diversas, bem como
campos de saberes variados, mas tomando como ponto de partida o enunciado plural dos “direitos sexuais”,
entendo-o como vinculado ao horizonte complexo e recente dos direitos humanos da segunda metade do
século XX.
Discursos fora da ordem 230

enunciá-las e mesmo “revelá-las”4. Não à toa, tal trabalho envolveu proces-


sos de deslocamento sutil tanto em relação aos campos dentro dos quais a
sexualidade poderia surgir como tema relevante em termos de “direitos”,
quanto à própria artesania das formas de falar sobre o tema que guarda ain-
da uma dimensão – curiosamente – de tabu em certos campos políticos.
Como militantes e outros atores/autores têm apontado constantemente,
foi no bojo de duas grandes conferências de direitos humanos de meados
dos anos 1990, a Conferência Internacional de População e Desenvolvi-
mento, realizada no Cairo em 1994, e aConferência Internacional de Di-
reitos das Mulheres, em Pequim, em 1995, que se forjaram, não sem mui-
tas negociações, as bases para tais deslocamentos, afirmando-se sobretudo
a ideia da sexualidadecomo parte das necessidades e direitos individuais5.
Se, no plano dos enunciados utópico-normativos dos direitos
humanos, a sexualidade teve suas possibilidades de emergência a par-
tir do curioso entroncamento biopolítico da gestão de populações e de
relações de gênero encarnadas em certos corpos femininos (não em to-
dos, decerto, haja vista as dificuldades com a prostituição e com corpos
femininos não biologicamente “originais”), no mapa mais impreciso
das articulações políticas podemos pensar que não raras vezes é ela, a
sexualidade, que ocupa a linha de frente na construção dos próprios su-
jeitos, ao anunciarem-se antes de tudo enquanto “seres sexualizados” e,
sobretudo, “seres políticos porque sexualizados”. O que o processo de
enunciação dos direitos sexuais possibilita, nesse sentido, é uma reor-
denação, em primeiro lugar, da relação entre práticas ou experiências
individuais e coletivas e as políticas de reconhecimento e, em segundo
lugar, das relações entre os próprios sujeitos assim construídos, reunidos
em princípio pelos efeitos de diferenciação face ao dominante genérico
(homem, branco, heterossexual, culturalmente hegemônico etc.). Mas
também pelo compartilhamento dessa certeza contemporânea de que é

4. Podemos sempre lembrar que Foucault (1988) há muito já nos alertava que o fascinante na discursividade
loquaz sobre a sexualidade não era o que se veiculava – sermos “reprimidos” – mas sim a sedução da própria
loquacidade, a obrigação de proclamar aos gritos que “sim, somos reprimidos”!
5. Para um panorama desse contexto e suas implicações, ver, entre outros Correa; Petchesky (1996: 147-177).
Para as complexas implicações e desafios dos direitos sexuais como direitos humanos, ver Correa (2006: 101-
121).
231 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

na sexualidade que estaria nossa verdade mais profunda, incluindo-se aí


também nossa “verdade política”.
Como mencionado antes, o que a enunciação da sexualidade como
parte dos direitos humanos faz é promover sutis deslocamentos, às vezes
dentro de uma mesma seara de sujeitos já consagrados (como as mulhe-
res), mudando a forma de falar das relações de poder em que tais sujeitos
estariam colocados e dando à sexualidade uma posição destaque para o
seu fazer-se político. Em outras vezes, funcionando para denunciar a in-
suficiência das rubricas e personagens políticos encobertos pela noção he-
terogênea de “minorias”, insuficiente simbolicamente para dar conta das
dissidências sexuais e da própria fluidez da sexualidade. Teríamos, assim,
uma situação em que para alguns desses sujeitos os direitos relativos à se-
xualidade poderiam ser pensados como parte de uma plêiade de condi-
ções, experiências e relações de poder, enquanto para outros seria a forma
principal de indexação em um mundo de classificações e possibilidades
de atuação coletiva. Entre o sexo dos sujeitos e os sujeitos do sexo, os pe-
sos iriam sendo distribuídos, não apenas entre as próprias pessoas e seus
enquadramentos nos dispositivos de sexo/gênero (mulheres hétero, mu-
lheres lésbicas, homens gays, pessoas trans etc.), mas também relacional
e situacionalmente face a contextos, dramas, reivindicações e estratégias.
Nesse quadro, gostaria de propor aqui duas linhas de força que permi-
tem pensar um pouco sobre a complexidade presente nos jogos entre sujei-
tos, atos e classificações no cenário impreciso da sexualidade como direito.
A primeira dessas linhas fala-nos basicamente dos atos como fator prepon-
derante para construção, definição e mesmo aprisionamento de pessoas na
condição de sujeitos-objetos das políticas e direitos sexuais. A segunda nos
fala, em movimento inverso, dos enquadramentos dos sujeitos como ele-
mento determinante para qualificar os atos que as atingem ou os significa-
dos que dão para situações sociais específicas. Por fim, entrecruzando essas
linhas, há tensões e torções trazidas pela presença cada vez mais visível e rui-
dosa nas militâncias LGBT de pessoas localizadas em algum ponto da di-
versificada gama da transexualidade, travestilidade ou intersexualidade que
colocam em questão classificações e categorizações tidas como elementares
e relativamente fixas, como homens/mulheres ou héteros/não-héteros.
Discursos fora da ordem 232

Atos que fazem sujeitos

Ao dar à sexualidade o contorno de um “direito”, esse tópico valora-


tivo e ativo crucial das formas políticas contemporâneas, cabe aos atores
sociais envolvidos e situados em diferentes localizações desse processo a
dupla tarefa de recortar atos como sendo propriamente “sexuais” e dimen-
sões da vida das pessoas como passíveis de serem compreendidas nessa
chave específica. Ou seja, institui-se a necessidade de depurar atos, experi-
ências e desejos como aqueles que “pesam” e “importam” (Bultler, 1993)
nos corpos politizados ou politizáveis em nome de quem supostamente
falam militâncias e especialistas. Nesse processo de depuração, reeditam-se
e cristalizam-se certas “margens”, permanecendo aquilo que seria central –
no sentido de modelar ou ideologicamente dominante – paradoxalmente
apagado, como se não fosse preciso falar dele: não é qualquer “sexo” o ato
central dos direitos sexuais, mas suas errâncias, dissonâncias e estranhezas.
Teríamos, assim, com mais evidência a presença de sujeitos só per-
ceptíveis a partir de certas condutas: não seriam, portanto, “mulheres”
as protagonistas exemplares dos direitos sexuais, como no caso do femi-
nismo ou dos “direitos das mulheres”, mas sim “mulheres que abortam”;
ou “mulheres que se relacionam sexualmente com outras mulheres” ou
ainda “mulheres-trans” ou “trabalhadoras sexuais”. Nessa linha de força,
temos que os sujeitos dos direitos sexuais aparecem, sobretudo, como
sujeitos de seus atos e, em especial, do desejo de alterar a forma pela qual
seus atos são social e politicamente percebidos (de transgressões ou cri-
mes a direitos, por exemplo).
Tal enfoque coloca dimensões interessantes para as políticas de re-
conhecimento que se engendram nesse cenário. Se, por um lado, como
indicarei mais à frente, há uma relação estreita com o reconhecimento
dos próprios sujeitos constituídos nesse processo de mapeamento dos
atos (“lésbicas”, “pessoas trans” etc.), por outro há uma inflexão que re-
força a cisão dentro de certos universos de movimentação política a par-
tir do posicionamento face aos atos privilegiados.
Onde isso talvez fique mais claro seja exatamente no campo amplo
e heterogêneo dos direitos das mulheres e dos feminismos. O direito ao
233 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

aborto, questão crucial para as articulações feministas, foi desde os anos


1970 um ponto de grande tensão e mesmo divisão entre os movimentos
e militantes assim definidos e o grupamento mais vago dos movimentos
de mulheres. Com a possibilidade aberta pela delimitação de um novo
campo de articulações a partir da enunciação dos direitos sexuais, pode-
mos perceber iniciativas de tornar o tema do aborto questão relevante
em outros movimentos, tecendo alianças e abandonando impasses incô-
modos. Para transformá-lo em pauta legítima para atores improváveis,
como os homens gays, tem sido preciso hipersexualizá-lo, no sentido de
inseri-lo mais efetivamente nas discussões dos direitos inerentes à sexua-
lidade, afastando-o da reprodução.
Tal trabalho foi levado a sério por militantes feministas durante
uma série de encontros de articulação política empreendidos junto com
militantes LGBT durante os anos de 2005 e 2006, significativamente
chamados “Diálogos estratégicos”6. Em tais encontros enfatizava-se a
relevância de separar uma vez mais sexo de reprodução, radicalizando
o argumento de que as resistências políticas à legalização do aborto são
da ordem dos dispositivos de controle da sexualidade, retomando uma
estratégia discursiva que vinha sendo abandonada ou ao menos apresen-
tada de modo mais tímido na última década. O mesmo ato, portanto,
que afasta e inviabiliza certas alianças discursivas e políticas em alguns
campos de articulação, opondo mulheres que defendem o aborto às “ou-
tras mulheres”, encontra espaço semântico e abertura tática para reunir
grupamentos distintos, identificados e identificáveis entre si a partir do
suposto de que há na natureza de seus atos – abortos, relações não-he-
terossexuais – uma dissonância que os nivela frente à força modelar e
sufocante da norma heterossexual e reprodutiva.
Esse acionamento das solidariedades subjacentes que conectaria
sujeitos políticos díspares não desfaz, porém, a força e a rentabilidade
estratégica das articulações a partir do reconhecimento dos próprios
sujeitos enquanto “obviamente” semelhantes, como “mulheres”, “gays”,

6. Esses encontros aconteceram em diferentes cidades brasileiras, sendo promovidos por grupos e ONGs arti-
culados principalmente aos movimentos feminista e LGBT. Pude acompanhar apenas três edições, em Belo
Horizonte, São Paulo e João Pessoa.
Discursos fora da ordem 234

“lésbicas” etc. Ao falarmos desses sujeitos de direitos sexuais, portanto,


falamos de invenções que oferecem certas margens de mobilidade estra-
tégica, desenhando percursos de aproximação e afastamento que variam
de acordo com as arenas, contextos e oportunidades oferecidas.
A linguagem dos atos e a linguagem dos seres combinam-se e
alternam-se situacionalmente, criando cenas curiosas que se repetem
em múltiplos encontros trans-militantes, em que é preciso falar ao
mesmo tempo das propriedades instituídas pelas localizações de cada
um (“falo como homem gay”, “falo como mulher negra e lésbica”, “falo
como travesti”) e oferecer as conexões para se solidarizar com o geral
ou com o alheio.Raras são as vezes em que as torções são tão radicais
que parecem produzir a possibilidade de abandonar de vez o lugar “ób-
vio” de pertencimento para aderir a outro, inusitado, dado pela força
dos atos e por outras marcas menos visíveis nesse mundo de sujeitos
políticos sexuais. Das diversas cenas que acompanhei apenas uma traz
tal grau de surpresa. Em um desses “Diálogos estratégicos”, aconteci-
do em João Pessoa, em 2006, o tema do aborto era debatido e todos
os participantes posicionavam-se a partir de diferentes percepções de
sua proximidade com o “ato”, enfatizando sempre em algum ponto sua
condição peculiar como mulheres, homens gays, transexuais etc. Até
que uma importante militante travesti da Paraíba levantou-se e disse
que achava a legalização do aborto um ponto central para os direitos
sexuais, mas que não falava nem como mulher, nem como travesti, mas
sim como parteira do sistema municipal de saúde de Campina Gran-
de, de onde via todos os efeitos perversos dos abortos ilegais ou da
gravidez não desejada.
Essa forma de se apresentar e qualificar sua perspectiva política
chama a atenção tanto pela capacidade de oferecer múltiplos lugares de
solidariedade, alguns dos quais poderiam, inclusive, lhes ser negados em
diversas arenas, como em setores dos movimentos feministas ou de mu-
lheres (o lugar de ser mulher), quanto pela raridade com que é acionado
em um mundo cartografado predominantemente a partir das condições
atribuídas aos sujeitos.
235 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Sujeitos que definem atos

Ao contrário do movimento apresentado agora, que privilegia o


trabalho político a partir dos atos, fazendo incidir interrogações sobre
quais seriam seus sujeitos privilegiados, a segunda linha de força que
proponho opera fundamentalmente a partir dos próprios sujeitos como
indexadores que dotariam de sentido político atos variados. Em lugar
de atos dissonantes que produziriam os sujeitos dos “direitos”, portan-
to, o que veríamos seriam sujeitos concebidos como primordialmente
dissonantes, o que faria com que uma série de situações por eles vividas
ganhasse contornos próprios e fosse destacada.
Se em várias dimensões essa linha de força se confunde com a an-
terior, com sujeitos e atos entremeando-se de tal modo que podem pa-
recer indistintos, isso se dá precisamente pelo fato de ambos, enquanto
elementos de construção política, nascerem e reforçarem um idioma de
“direitos” marcado pela ideia de compreensão do mundo a partir da dife-
rença, como já dito antes. Refratando, assim, a formulação de que certos
atos marcam e desentranham sujeitos (como as mulheres que abortam
em relação ao generalizante “as mulheres”, estas últimas já uma distinção
face ao “humano” no masculino), temos aqui que certos sujeitos inscre-
vem nos seus atos as condições de compreensão, aceitação ou repúdio
aos mesmos. A diferença, nesse caso, é constantemente transmutada em
discriminação, seja pelo impedimento de acesso a bens simbólicos rele-
vantes, seja pela fragilização da própria vida.
Para pensar melhor sobre essa dinâmica, proponho que tomemos
muito tangencialmente dois temas que, não à toa, ocuparam em mo-
mentos distintos a linha de frente das demandas e discussões dos mo-
vimentos LGBT brasileiros: a criminalização da homofobia e a união
ou parceria civil entre pessoas do mesmo sexo. Não pretendo fazer aqui
uma contextualização desses momentos ou marcar as posições de grupos
e militantes quanto a essas questões, como seria importante caso qui-
séssemos analisar em detalhe o lugar ocupado por essas “bandeiras” no
cenário político concreto. Em lugar disso, quero sublinhar sua relativa
complementaridade do ponto de vista dessa relação atos–sujeitos e de
Discursos fora da ordem 236

seu desdobramento político e moral, formado pelo jogo entre diferença


e discriminação.
No caso da homofobia é importante, antes de mais nada, notar
que, enquanto qualificação de um conjunto variado de atos percebidos
como hostis em relação a sujeitos que rompam com a heterossexualida-
de, em sentido mais estrito, e com a heteronormatividade, em sentido
mais amplo, seu enunciado requalifica os próprios atos cometidos, bem
como os sujeitos envolvidos, sejam eles perpetradores ou alvo dessas
ações. É a forma como se lida com a diferença, ou a incapacidade de
lidar com ela, que se insere, então, no cerne dessa relação entre os sujei-
tos, manchando os atos de alguns frente a outros, e, com isso, revelando
que os mesmos atos não seriam possíveis se outros fossem os sujeitos em
cena. O ocultamento do afeto em público, o impedimento do acesso a
recursos de ordem variada – empregos, imóveis etc. – e, no limite, o risco
de ser objeto de violência física e verbal, entre outras situações, apare-
ceriam simultaneamente como manifestações e efeitos dessa qualidade
relacional designada como homofobia.
Construir politicamente o ato homofóbico como singular impli-
ca, então, como condição imprescindível de inteligibilidade, a constru-
ção dos próprios sujeitos, atingidos por esses atos e em sua centralidade
simbólica. O que explica os atos contra tais sujeitos, explicaria, por efei-
to, os próprios sujeitos, tornando-os fonte e ponto de partida daquilo
que os atingiu. Forma-se, assim, um jogo de iluminação concomitante
de atos–sujeitos–motivações em que a sexualidade ou a identidade de
gênero desempenham o papel principal.
Essa movimentação não deve, porém, ser tomada como peculiar da
trajetória da sexualidade e do gênero no campo de batalha dos “direitos”,
muito pelo contrário. Como vem sendo discutido entre atores sociais
variados – militantes, formuladores de políticas públicas, legisladores
etc. –, a criminalização da homofobia responderia à mesma lógica que já
atingiu outras formas de discriminação, sendo o racismo a mais emble-
mática delas no caso brasileiro. Respaldado pela construção mais ampla
da Constituição Federal de 1988 sobre a discriminação. Esse processo
de especificação teria como finalidade materializar e dar concretude às
237 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

dinâmicas discriminatórias que atingiriam algumas pessoas e não outras.


Nesses termos, trata-se de pôr em relevo certas condições sociais que
ficariam apagadas em definições mais genéricas, qualificando-as não
apenas como singulares, mas, de certo modo, como reconhecidamente
relevantes, justamente por terem sido singularizadas, destacadas do fun-
do comum de desigualdades.
Se no plano da trajetória de enunciação de “direitos” podemos ver
esse processo como tributário da linguagem da especificação de sujeitos
e das “identidades”, no plano da ação política propriamente dita pode-
mos pensá-lo como atravessado por concorrências e espelhamentos face
a outras “causas” e sujeitos. Em situações variadas, como em encontros
prévios à realização de uma das Paradas do Orgulho no Rio de Janei-
ro, em 2009, ou ainda durante a realização da Conferência Nacional de
Direitos LGBT, no mesmo ano, lideranças militantes exaltavam publi-
camente a importância de equiparar tais formas de discriminação, reve-
lando essa composição que reúne tanto ingredientes de colaboração e
exemplo entre políticas minoritárias quanto um quê de competição por
recursos simbólicos e políticos.
Se no caso da homofobia e, em especial, da violência de caráter
homofóbico, o que temos é algo que poderia ser pensado como da or-
dem da discriminação pela diferença (exacerbada em seu limite como
desejo de eliminar o diferente), no caso das recusas ao reconhecimento
da legitimidade das parcerias conjugais entre pessoas do mesmo sexo o
que teríamos seria uma forma de discriminação pela não-aceitação. A di-
ferenciação face à heterossexualidade apareceria, assim, simultaneamen-
te também como identificação com ela ou com suas instituições sociais
mais conhecidas. Os confrontos ganham, então, a forma de denúncia
sobre os limites postulados social e politicamente a alguns sujeitos em
detrimento de outros. Para que esse movimento seja bem sucedido em
termos lógicos, porém, é preciso negar a diferença, pelo menos em ter-
mos de valor, entre as experiências e relações desses sujeitos. Trata-se,
assim, de desafiar o privilégio concedido a alguns indagando-se sobre o
que, afinal, há de tão distinto entre essas formas de vida. Se estão em jogo
relações conjugais, por que seria o sexo d@s parceir@s o fator capaz de
Discursos fora da ordem 238

justificar a interdição a uma forma de reconhecimento institucionaliza-


do do “casal” e tudo o que isso acarreta em termos de direitos socialmen-
te reconhecidos?
Tal movimento procura, desse modo, apagar a diferença do ato
– ser “casal”, “ter família”, seriam intrinsecamente iguais para héteros e
não-héteros –, evidenciando que a raiz da discriminação se localizaria
nos próprios sujeitos, rejeitados em seu desejo de reconhecimento e
no direito de acesso a bens sociais e políticos franqueados aos demais.
Cabe notar, porém, que nesse processo surge como protagonista e fi-
gura moral central não o indivíduo, mas o casal, o casal com filhos ou
ainda o indivíduo com filhos. Assim, o sujeito dessa enunciação política
é aquele profundamente inscrito em uma ordem relacional, a partir da
qual elabora suas demandas pelo reconhecimento de seus mapeamen-
tos afetivos, sociais e morais. Nesses termos, é um sujeito talvez menos
compromissado com uma vaga solidariedade política da condição de
si (homossexual) do que com sua própria biografia, que ele/ela experi-
mentam ver desvalorizada ou apagada nas relações com a sociedade e,
em especial, com as instituições. Creio que posso dizer que assistimos a
movimentação de uma interessante práxis político-afetiva, materializa-
da através das ações judiciais de reconhecimento dos direitos a planos de
saúde, heranças, herdeiros, descendentes etc.
Por outro lado, como já apontado por alguns de nós, essa forma
de movimentação acaba trazendo de modo subjacente e nem sempre ex-
plícito uma espécie de justificativa moral para o acesso aos direitos. Ao
estabelecer as equivalências entre as formas de vida e, com isso, iluminar
as dinâmicas discriminatórias presentes na interdição ou não-reconhe-
cimento de certos direitos para alguns sujeitos, tal estratégia naturaliza
o valor moral daquilo que está previamente estabelecido, colaborando
para o deslocamento dos vetores e fronteiras de discriminação, mas sem
eliminá-los. Se é a “família” e o “direito à família” o cerne desse jogo de
equivalências que permite evidenciar a discriminação que incide sobre
os sujeitos não-héteros, outras distinções se produzem nesse processo,
como as que deixam sem lugar aqueles que não almejam ou podem mos-
trar tais bens sociais.
239 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

A sexualidade como direito, nesse caso, opera como o indexador


de sujeitos que carregam outros aportes morais, como a estabilidade das
relações, o desejo de descendência, o compromisso com aqueles que em
tudo se assemelham aos já contemplados nas instituições do direito ci-
vil ou do direito de família. Os atos potencialmente dissonantes – re-
lações que não sigam o modelo do casal, compromissos solidários que
não espelhem as famílias legalmente reconhecidas – permanecem fora
dos enunciados e movimentações estratégicas assim construídas, já que
o que está em jogo é denunciar a injustiça da percepção desses sujeitos
como dissonantes, uma vez que apresentam todas as credenciais para
participar das mesmas instituições como iguais. Sem querer julgar as
implicações estratégicas e pragmáticas que podem estar presentes nessa
movimentação, quero apenas destacar que esse apelo ao familismo, nos
termos de Roger Raupp Rios, não deixa de carregar um traço algo con-
servador7. Menos pelas “causas” e ganhos políticos concretos em ques-
tão, e mais pelo fato de trazer em suas dobras certa fantasmagoria moral,
a do “merecimento” de direitos, borrando os limites entre os “sujeitos
que enunciam” e os “enunciados que sujeitam”.

Sujeitos? Quais sujeitos?

Para além dos temas pelos quais vêm sendo instituídas agendas,
estratégias e linguagens em relação aos direitos sexuais, creio ser impor-
tante pensar também em deslocamentos que vêm se dando a partir dos
agentes/sujeitos privilegiados desse processo. Um terreno fecundo para
tanto pode ser identificado na transformação do antigo “movimento
Homossexual” em LGBT – com variadas composições de siglas –, o que
indica o crescente reconhecimento das diferenças antes, do ponto de vis-
ta da exibição política, ocultas sob o manto genérico da homossexuali-
dade. Melhor seria talvez pensarmos que lidamos com alianças possíveis
entre dissidentes sexuais que encontram como ponto de referência co-
mum o seu confronto com a força ideológica e modelarmente dominan-

7. Ver, entre outros textos desse autor: Rios (2006: 71-100).


Discursos fora da ordem 240

te da heterossexualidade. Pluralizar a homossexualidade, reconhecendo


que há mais de um modo de localizar-se enquanto pessoa marcada so-
cialmente pela experiência, pelo desejo ou pela relação com pessoas do
mesmo sexo é, porém, apenas a parte mais simples desse processo.
A maior participação ou visibilidade política de travestis, transexuais
ou pessoas intersex não apenas multiplica, mas altera a possível associação
desses sujeitos dissidentes com a homossexualidade, chegando-se em al-
gumas situações à curiosa guinada de fazer do enunciado da heterossexu-
alidade a principal subversão. Em uma situação relativamente comum em
encontros que contem com muitas travestis e pessoas transexuais, sua iden-
tificação com a homossexualidade pode ser ruidosamente questionada, na
medida em que o que está em jogo é também seu reconhecimento feminino.
Nesse sentido, mais do que dissidências inseridas na ordem da sexualidade,
o que teríamos seriam fundamentalmente dissidências inscritas no e pelo
gênero, reveladas nas variadas demandas de uso “correto” dos pronomes, no
tratamento a seus relacionamentos amorosos como relações heterossexuais,
quando conveniente, ou ainda nas inúmeras situações de interação social em
que sua identidade feminina ou masculina seria posta em questão.
Se, como disse antes, há na construção dos direitos sexuais certo
privilégio aos atos como capazes de contaminar os sujeitos e seus corpos
(homens ou mulheres que desejam o mesmo sexo e por isso são discri-
minados ou têm suas relações amorosas invisibilizadas do ponto de vista
dos direitos sociais; mulheres que abortam e por isso são condenadas
moralmente ou mesmo criminalmente etc.), no caso de travestis, tran-
sexuais ou pessoas intersex, parecem ser os corpos o resultado último e
perseguido de seus atos, exibindo todo um trabalho que não pode mais
ser apagado ou temporariamente ocultado. É nos corpos, afinal, que re-
sulta toda essa dissidência de gênero tão mais difícil de se assimilar por-
que, diferentemente das relativas estritamente à sexualidade, ultrapassa
o binarismo e confunde suas categorias mais elementares. Não são ho-
mens e mulheres que gostam do mesmo sexo, mas pessoas que desafiam
os próprios limites do que sejam seus sexos.
O universo de discriminações, por sua vez, se altera também em
função desse deslocamento dos próprios sujeitos. Se violências ou formas
241 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

diversas de não reconhecimento podem ser partilhadas, há distâncias sig-


nificativas de expectativas e ambições em relação aos “direitos” a serem
conquistados. A possibilidade de mudar de nome, o acesso a serviços de
saúde diferenciados, o direito de não ser forçado, durante a menoridade,
a ter seu sexo “consertado”, são demandas que ultrapassam em muito a or-
dem de compreensão que as “homossexualidades” nos propõem8.
Em muitos casos o desafio parece ser conseguir ser reconhecido
pelo gênero escolhido e tão custosamente perseguido com maior ou me-
nor sucesso estético, lutando contra o resíduo de “natureza” que pode
ser jogado socialmente sobre si (não deixarem mudar o nome nos do-
cumentos, acusarem maliciosamente de não “parecer mulher” ou ainda
ser objeto de projetos de operação, como ocorre com crianças e adoles-
centes intersex e de classificações médicas propositalmente vagas, como
“genitália ambígua”).
O que é curioso é que essa mesma tensão inglória entre a “nature-
za que não vai embora” e os “projetos de si” que os sujeitos podem ter
nem sempre operam no mesmo sentido, como numa espécie de crescente
discriminação ou coisa que o valha. Com alguns elementos de surpresa e
outros tantos de farsa, é possível entrever subversões curiosas, em que os
benefícios do sexo original combinam-se desafiadoramente com o sexo/
gênero construído, como procurarei indicar quase anedoticamente agora.

Torções irônicas para aliviar tensões crônicas

Gostaria de fechar este texto com duas cenas recentes que falam
das torções entre sexo-gênero e direitos de um modo que me parece es-
pecialmente intrigante e produtivo.
A primeira delas foi amplamente divulgada e trata da imagem do
“homem grávido” que tomou conta dos jornais há cerca de dois anos. As
fotos exibidas traziam um homem, com barba e uma grande barriga de gra-
videz, sendo explicado em geral nos textos que acompanhavam a foto de

8. Cabe lembrar que a homossexualidade também já foi tomada como aprisionamento ou inversão, como aponta
Sedgwick (2007: 19-54).
Discursos fora da ordem 242

que se tratava de uma “mulher” transexual. Para além dos diversos elemen-
tos da ordem dos dispositivos de sexo-gênero que podem ser discutidos a
partir dessa situação, o que me chamou atenção foi, por interesses próprios
de pesquisa, o lugar ocupado pela reprodução, tema tão espinhoso social-
mente e politicamente tão relevante para as agendas LGBT (entre outras).
Curiosamente, nesse caso a reprodução não aparece como reivindicação,
mas como fato dado – mesmo que possa parecer aberrante, do ponto de
vista estético, para muitos, e seguramente bastante provocador para nos-
sas sensibilidades generificadas –, mas intocada e intocável em termos dos
“direitos”. A biologia subvertida na mudança de sexo aparece estabilizada
no direito à maternidade, tão mais questionado em outras situações, como
as que envolvem gays, lésbicas, travestis e transexuais que desejam adotar
filhos ou que, em caso de separação, podem ser eliminados posteriormente
da vida da criança caso não tenham vínculo biológico com ela.
Matéria de jornal? Por certo. Objeto de condenações psicomorais?
Provavelmente. Mas foco de invisibilidade ou perseguição judicial, para
que não pudesse criar @ filh@? De certo que não. A força dos enquadra-
mentos biológicos ou biologizantes para a definição das marcas sociais
dos direitos (especialmente do direito de “ter” pessoas ou “ter” relações
sociais reconhecidas) uma vez mais mostrou aqui sua profundidade.
A segunda cena me veio através trabalho de pesquisa de Flávia
Teixeira, na época doutoranda da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), sobre as travestis na Itália, durante o Seminário organizado
por Adriana Piscitelli e Márcia Vasconcellos, e pelo Núcleo de Estudos
de Gênero Pagu (Unicamp), sobre tráfico de pessoas9. Em certa passa-
gem, Flávia menciona o caso de uma travesti que, mediante pagamen-
to, casa com uma mulher para obter visto. Travestida de homem, fir-
ma seu compromisso heterossexual para poder continuar trabalhando
na prostituição. O jogo farsesco aqui presente me levou às gargalhadas:
como em uma composição cômica de espelhos, vem à tona (e abaixo)
todo o esforço social de manutenção das ficções da nacionalidade, do

9. Tanto o trabalho quanto o comentário feito por mim na ocasião encontram-se publicados no “Dossiê: Gêne-
ro no Tráfico de Pessoas”, organizado por Adriana Piscitelli e Marcia Vasconcellos para os Cadernos Pagu. Ver
Teixeira (2008: 275-308); e Vianna (2008: 309-314).
243 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

casamento e, sobretudo, da heterossexualidade. O fascinante dessa situ-


ação debochada é que seu potencial subversivo está na exacerbação das
próprias regras e da nossa crença nelas. Usando faixas para segurar seus
seios cuidadosamente construídos com silicone, e dinheiro conseguido
na prostituição para viabilizar o acordo, a travesti montou-se de homem
heterossexual e jurou publicamente amor e fidelidade a uma mulher,
condição fundamental para ganhar a nacionalidade e seus direitos.
Longe de operar a partir das pautas que vêm sendo desenhadas por
militâncias organizadas ou das marcações sociais que fazem nascer su-
jeitos políticos singularizados, conectados a marcações identitárias que
se pretendem fixas ou fixadas, essa cena nos ilumina jogos complexos
de manipulação de normas e códigos dominantes, operando a partir de
suas bordas, margens e exageros.

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Direitos sexuais e heterossexualidade com-
pulsória: identidades sexuais e discursos
judiciais no Brasil

Roger Raupp Rios


Rosa Maria Rodrigues de Oliveira

Nós não devemos excluir a identidade se é por meio desta identidade que
as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar esta iden-
tidade como uma regra ética universal.
(Michel Foucault)

Introdução

O Brasil adentrou o século XXI com inúmeras respostas que re-


presentam grandes avanços em termos de políticas públicas no campo
dos direitos sexuais voltadas à população “LGBTTT”, termo que vem
assinalando a existência material de lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais e transgêneros como referentes de uma “identidade homos-
sexual” desdobrada em representações correspondentes aos sujeitos que
reivindicariam perante o Estado seus direitos. O uso da sigla assume,
no cenário atual, portanto, um importante conteúdo de representação
política, ao menos de um ponto de vista teórico1.

1. Ainda é fraca a presença de ativistas e raras as aparições de grupos bissexuais no cenário das relações entre
movimento “LGBT” e Estado. No entanto, a letra “B” segue sendo utilizada em eventos e manifestações
públicas, com foi o caso da I Conferência Nacional LGBT, ocorrida entre os dias 5 e 8 de junho de 2008 na
cidade de Brasília. O evento foi coordenado pela Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos,
da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, e é um marco político
importante a partir da edição do Programa Brasil sem Homofobia.
Discursos fora da ordem 246

Regina Facchini (2005) aponta, com efeito, que o denominado


“movimento homossexual” compõe ao longo de sua história o que
a autora denomina de rede de relações sociais, recorte no qual estão
presentes indivíduos e organizações da “sociedade civil”, diferenciá-
veis pelo fato de compartilharem e atuarem com vistas a um mesmo
objetivo geral em relação ao tema da “homossexualidade”: a “emanci-
pação” ou a obtenção de “cidadania plena” para os/as homossexuais
ou outras identidades sexuais tomadas como sujeito do movimento
(Fachini, 2005: 25).
A chamada identidade “LGBT” foi construída como substância
essencial na composição das relações políticas entre Estado e movi-
mento social nos últimos 30 anos no Brasil sendo acompanhada de
forte apelo normativo. Paralelamente a esse fenômeno, dão-se as dis-
putas com setores religiosos fundamentalistas em torno da aprovação
de projetos de lei que criminalizem a homofobia ou garantam direitos
plenos em termos de parentesco a homossexuais, enquanto no cenário
social crescem reações violentas dirigidas a homossexuais, incluindo
surras em via pública e homicídios que atingem milhares de pessoas
todos os anos.
Neste artigo buscamos traçar um panorama sobre alguns concei-
tos-chave no campo dos direitos sexuais e seus usos na “seara jurídi-
ca”, e o quanto são refletidos (ou são reflexo, em alguns contextos) nas
diversas movimentações em torno das identidades sexuais no Brasil
contemporâneo. Na primeira parte contextualizaremos as discussões
em torno das categorias identitárias, tomando a discussão sobre a “mu-
lher” presente na crítica que Judith Butler (2003) articula em relação
ao uso da categoria para o feminismo e sua relação com o tema da he-
terossexualidade compulsória. Em seguida, através de uma análise de
algumas categorias utilizadas para a referência das mesmas identidades
em acórdãos judiciais, buscamos considerar os avanços no horizonte
de um reconhecimento dos direitos sexuais como direitos humanos,
questionando os usos de conceitos neste campo em especial no âmbito
do discurso dos tribunais e dos operadores do direito.
247 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

1. Identidades sexuais e heterossexualidade compulsória: a


produção dos sujeitos sexuais e a reprodução dos modelos
heterossexistas

Partindo dos estudos gays e lésbicos no campo do feminismo, Judi-


th Butler (2003) questionará a postura essencialista mais tradicional do
feminismo ao analisar os desvios e faltas possíveis no posicionamento da
“mulher” como um sujeito “único”, abordando esta inscrição como mar-
cada pelo registro de uma “matriz heterossexual”. A autora argumenta de
forma central contra os binarismos definidos por esta matriz: o “femini-
no” deixa de ser uma noção estável, e seu significado é “tão problemático
e errático quanto o de mulher”. Daí o foco de sua genealogia (extraída de
sua leitura de Foucault) no gênero e na análise relacional por ele sugerida.
Dois conceitos traçados pela Teoria Queer mostram-se importan-
tes para referenciar esta análise – a heterossexualidade compulsória e a
performatividade de gênero. Don Kulick (2005) anota, num estudo so-
bre a performatividade do não, que a performance “trata da linguagem
como ação, que nestas (ou nas suas) enunciações muda o mundo e o leva
a uma nova ordem social”. Sobre a ideia de performatividade, ele observa
que a mesma “virou moda” a partir da obra Problemas de gênero (Butler,
2003), e que a mesma teve uma grande penetração nos estudos em ciên-
cias humanas. Mas, alerta Kulick, performancenão éperformatividade. A
primeira relaciona-se com algo que o sujeito “faz”, ao passo que a seguinte
definiria o processo segundo o qual os sujeitos emergem. Assim, performan-
ce é uma dimensão da performatividade. (Kulick, 2005: 61)
Torna-se então possível compreender que o sistema proposto por
Butler não deve ser lido confundindo-se performatividade e performan-
ce. Kulick conclui que performance estaria referida à identidade, e per-
formatividade às operações através das quais o sujeito é constituído, ou aos
processos de identificação.
Butler (2003) direciona a crítica à teoria feminista, a qual essen-
cialmente presumiria a existência de “uma identidade definida, compre-
endida pela categoria de mulheres, que não só deflagra os interesses e
objetivos feministas no interior de seu próprio discurso, mas constitui
Discursos fora da ordem 248

o sujeito mesmo em nome de quem a representação política é almeja-


da” (Butler, 2003: 17-8). A autora cogita sobre a importância, em con-
trapartida, do uso da categoria mulheres, em termos de representação
política no sentido em que tornou coerente um discurso para sua visibi-
lidade neste cenário. Se por um lado esta importância é óbvia, de outro
ponto de vista deve ser resgatado o questionamento a partir do interior
do discurso feminista, da relação entre teoria feminista e política.
O uso crítico que Butler faz do que Foucault denominaria capaci-
dade de produção de sujeitos a partir dos discursos em sua análise parece im-
portante para construção de sua teoria da performatividade, que acentua
a produção do sujeito como obra em particular dos sistemas jurídicos. Ela
afirmará, sobre isso, que “a construção política do sujeito procede vincu-
lada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações polí-
ticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise política que
toma as estruturas jurídicas como seu fundamento” (Butler, 2003: 19).
Desse modo, a categoria mulheres só alcança estabilidade e coe-
rência no contexto da matriz heterossexual. Para a autora, a construção
variável da identidade seria o objetivo de uma nova opção política para
o feminismo – “uma política representacional capaz de renovar o femi-
nismo em outros termos. [...] isto é, uma política feminista que tome a
construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico
e normativo, senão como um objetivo político” (Butler, 2003: 23).
As discordâncias sobre o significado do gênero (por exemplo, se ele
é uma característica secundária das pessoas ou a própria noção de pessoa,
posicionada como sujeito na linguagem, ou mesmo se o gênero constitui
de fato o termo a ser discutido, ou seria a construção discursiva do sexo
o que importa mais para análise) estabelecem a necessidade de repensar
radicalmente as categorias da identidade no contexto das relações de uma
assimetria radical do gênero. Para Butler, o gênero será visto como uma
complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais plena-
mente exibida em qualquer conjuntura considerada (Butler, 2003: 37).
O que significará a identidade, a partir de tais reflexões, e como essas
suposições (persistência ao longo do tempo, unificação, coerência interna,
semelhança entre identidades) atingem as identidades de gênero? A partir
249 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

daí, Butler conceituará o que denomina gêneros inteligíveis, como “aqueles


que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e conti-
nuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (Butler, 2003: 38-9).
Butler reforça sua concepção sobre a heterossexualidade compul-
sória, segundo a qual o gênero é regulado de forma binária, em que o
termo masculino opõe-se ao feminino por meio das práticas do desejo
heterossexual, consolidando e conferindo coerência interna entre sexo,
gênero e desejo. O gênero, portanto, não é substantivo, mas performativo,
e opera no interior de um discurso

herdado da metafísica da substância – isto é, constituinte da identidade


que supostamente é. [...] não há identidade de gênero por trás das expres-
sões de gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas
próprias expressões tidas como seus resultados. (Butler, 2003: 43)

A natureza é produzida, e opera conforme a heterossexualidade


compulsória. Segue-se daí que o desejo homossexual transcenderia as
categorias do sexo, referido por Wittig como “uma marca que de algum
modo é aplicada pela heterossexualidade institucionalizada, marca esta
que pode ser apagada ou obscurecida por meio de práticas que efetiva-
mente contestem essa instituição” (Butler, 2003: 49-50).
Butler aponta então que a teoria feminista (por exemplo, Jacque-
line Rose e Jane Gallop, que distinguem o status construído da diferença
sexual) desenvolveu um ponto de vista sobre a diferença sexual que se
opõe ao falocentrismo lacaniano, na medida em que procura “teorizar
o feminino, não como uma expressão da metafísica da substância, mas
como uma ausência não representável, produzida pela negação (mascu-
lina) que estabelece a economia significante por via da exclusão”.A sexu-
alidade, sendo construída nos termos do discurso e do poder (adequado
com as convenções culturais heterossexuais e fálicas), não é estabelecida
antes, fora ou além desse mesmo poder (Butler, 2003: p. 52).
O gênero seria a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos
repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual
se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma
Discursos fora da ordem 250

classe natural de ser.Esta passagem permite deixar mais claro o lugar da


biologia em Butler – que se situa no plano de uma construção discur-
siva (de uma ontologia e dos próprios corpos). O gênero, a partir daí,
será pensado como um regime de subjetivação. Neste contexto, cria-se a
necessidade de reconhecer que “a própria noção de sujeito, só inteligível
por meio de sua aparência de gênero, admite possibilidades excluídas à
força pelas várias reificações do gênero constitutivas de suas ontologias
contingentes” (Butler, 2003: p. 59). Stuart Hall (2000) considera, por
sua vez, a desconstrução por diversas disciplinas das perspectivas iden-
titárias, observando que todas elas partem da crítica à existência de uma
“identidade integral, originária e unificada”. Em síntese, é no contexto da
crítica antiessencialista que o tema da identidade e da subjetividade vem
inspirando algumas das concepções teóricas mais imaginativas e radicais.
Onde está então o interesse da discussão em torno da identidade?
Para Hall, a mudança teórica significativa que Butler propõe é a ligação
que faz

do ato de assumir um sexo com a questão da identificação e com os meios


discursivos pelos quais o imperativo heterossexual possibilita certas iden-
tificações sexuadas e impede ou nega outras identificações. [...] Esse cen-
tramento da [...] identificação, juntamente com a problemática do sujeito
que ‘assume um sexo’, abre, no trabalho de Butler, um diálogo crítico e
reflexivo entre Foucault e a psicanálise que é extremamente produtivo.
(HALL, 2000: 127-8)

Recordando Jacques Derrida, o autor propõe pensar a identidade


como um conceito que opera “sob rasura2, no intervalo entre a inversão e
a emergência: uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas
sem a qual certas questões-chave não podem sequer ser pensadas” (Id.,
Ibid.: 104). No que se refere às identidades de gênero, a formulação de
Hall tem muito a contribuir, particularmente ao pensar nas transforma-
ções corporais que as travestis e as/os transexuais operam em si.

2. O sinal de rasura (x) indica que eles não servem mais – não são mais ‘bons para pensar’ – em sua forma original,
não reconstruída. Mas uma vez que não há outros conceitos que os superem, ainda se faz uso deles, deste modo.
251 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Os processos de construção dos sujeitos são compostos pelo dis-


curso jurídico como um de seus elementos mais impactantes, de modo
especial quando estão em jogo noções de gênero e sexualidade. Pierre
Bourdieu (1998) considera neste sentido o discurso jurídico como uma
“fala criadora, que faz existir aquilo que enuncia”. Esta é considerada

o limite para o qual aspiram todos os enunciados performativos, bênçãos,


maldições, ordens, desejos ou insultos: quer dizer a palavra divina, o di-
reito divino, que [...] dá existência àquilo que enuncia, ao contrário de to-
dos os enunciados derivados constatativos, simples registros de um dado
preexistente. (Bourdieu, 1998:20)

Óscar Correas (1996), por sua vez, conceitua o “direito” como um


termo que serve para “designar um fenômeno que tem conexão com
outro conjunto de fenômenos sociais que se inscrevem no contexto do
exercício do poder em uma sociedade”. A definição de “direito” é consi-
derada “parte do grupo de fenômenos que pertencem ao âmbito da lin-
guagem, dos discursos que circulam socialmente” (Correas, 1996:43).
Esta dinâmica pode ser observada em muitos domínios do direito
positivo estatal, tais como o direito de família e o direito penal relativo
aos crimes sexuais. Para tanto concorrem o legislador, o processo políti-
co parlamentar, a “doutrina jurídica” (formada pelo trabalho de reflexão
e comentário por parte de acadêmicos e profissionais do direito, em face
do direito positivo e da jurisprudência) e a jurisprudência (conjunto de
decisões proferidas pelos diversos tribunais e instâncias do Poder Judici-
ário a respeito de determinado tema).
Para melhor compreender o tema da produção de sujeitos atra-
vés dos discursos jurídicos, partiremos de uma compreensão de direitos
sexuais compatível com a necessária abertura apontada por Butler na
primeira parte deste artigo, de modo a elucidar quais os parâmetros que
permitirão contrastar os conteúdos trazidos pela jurisprudência selecio-
nada, segundo critérios de relevância e de aptidão para exemplificar as
tendências dominantes na jurisprudência em matéria de diversidade se-
xual. Neste contexto, propomos uma tipologia do discurso judicial em
Discursos fora da ordem 252

demandas em que identidades sexuais e performances de gênero estive-


ram no centro da apreciação jurídica.
Vale lembrar que o uso da expressão “diversidade sexual” refere-se
à concretização do ideal democrático do pluralismo, que se manifesta
pelas diferentes manifestações sociais, culturais, religiosas, raciais e se-
xuais, nas variadas esferas da vida pública e privada, conforme o sentido
jurídico constitucional do termo. Não se trata, portanto, de referência
ao debate entre essencialismo e construção social aplicado à sexualidade,
muito menos à ideia de que diversidade pressuponha algum padrão de
normalidade, a servir de parâmetro a todo o restante que não se encerre
no mesmo. No que toca à diversidade, portanto, não estamos adotando
a perspectiva do debate entre teoria do reconhecimento e diferença.

2. Direitos humanos e direitos sexuais: abertura e pluralismo


na construção dos sujeitos e das identidades sexuais

Mais diretamente ao que interessa a este trabalho, a reificação


das identidades sexuais e a repetição de modelos heterossexistas nas
relações homossexuais são manifestações particularmente persistentes
desta dinâmica, como a análise da jurisprudência que se fará na terceira
parte revela. Com a emergência de movimentos sociais reivindicando a
aceitação de práticas e relações divorciadas dos modelos hegemônicos,
levou-se à arena política e ao debate jurídico a ideia dos direitos sexu-
ais, especialmente dos direitos de gays, lésbicas, travestis e transexuais.
O surgimento destas demandas e o reconhecimento de alguns direitos,
ainda que de modo lento e não uniforme, inaugurou uma nova moda-
lidade na relação entre os ordenamentos jurídicos e a sexualidade. Os
direitos sexuais devem ser compreendidos no contexto da afirmação dos
direitos humanos, ao invés de apartá-los e concebê-los de modo paralelo
aos princípios fundamentais consagrados na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948.
Nesta perspectiva dos direitos humanos, a trajetória dos direitos
sexuais tem enfrentado desafios com muita originalidade. De fato, con-
forme a história dos instrumentos internacionais demonstra, os direitos
253 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

sexuais não foram concebidos originalmente de modo autônomo aos


direitos reprodutivos. Ao contrário, eles foram entendidos como uma
espécie de complemento da ideia de direitos reprodutivos. Efetivamen-
te, a preocupação principal que historicamente orientou a expressão “di-
reitos reprodutivos e sexuais” foi a denúncia da injustiça presente nas
relações de gênero e a negação de autonomia reprodutiva. Não há dúvi-
das sobre a importância desta reivindicação. Todavia, como a reflexão e
a prática dos direitos sexuais deixam muito claro, o âmbito da sexuali-
dade vai bem além. Esta dimensão da realidade requer que se leve a sério
a liberdade de expressão sexual, direito que é desafiado especialmente
diante da resistência ao reconhecimento de direitos de homossexuais,
masculinos ou femininos, transexuais e travestis. Ademais, a afirmação
de direitos sexuais vai além da proteção desta ou daquela identidade se-
xual (homossexual ou travesti, por exemplo) e alcança, inclusive, práti-
cas sexuais não necessariamente vinculadas à condição identitária, como
exemplificam as práticas sadomasoquistas e a prostituição.
O que importa, portanto, é visualizar os direitos sexuais a partir
dos princípios fundamentais que caracterizam o paradigma dos direitos
humanos, criando as bases para uma abordagem jurídica que supere as
tradicionais tendências repressivas que marcam historicamente as atu-
ações de legisladores, promotores, juízes e advogados nesses domínios.
A partir desta perspectiva, estabelecem-se as bases para, superando-se
regulações repressivas, concretizarem-se os princípios básicos da liber-
dade, da igualdade, da “não-discriminação” e do respeito à dignidade
humana na esfera da sexualidade.
A luta pelo reconhecimento e a promoção dos direitos de homos-
sexuais é um caso emblemático da necessidade de uma compreensão
dos direitos sexuais na perspectiva dos direitos humanos. Com efeito,
as trajetórias até hoje percorridas neste esforço demonstram como os
mencionados princípios fundamentais são hábeis para proteger indiví-
duos e grupos considerados minoritários em face dos padrões sexuais
dominantes. Trata-se de afirmar a pertinência da sexualidade ao âmbito
de proteção dos direitos humanos, deles extraindo força jurídica e com-
preensão política para a superação de preconceito e de discriminação
Discursos fora da ordem 254

voltados contra todo comportamento ou identidade sexuais que desafie


o heterossexismo, entendido como uma concepção de mundo que hie-
rarquiza e subordina todas as manifestações da sexualidade a partir da
ideia de “superioridade” e de “normalidade” da heterossexualidade.
Ao longo dos debates sobre diversidade sexual e direitos humanos,
são invocados vários direitos: liberdade sexual; integridade sexual; segu-
rança do corpo sexual; privacidade sexual; direito ao prazer; expressão
sexual; associação sexual e informação sexual. Neste campo, os direitos
humanos cuja invocação se revelou mais capaz de proteger homossexu-
ais em face da homofobia e do heterossexismo foram, basicamente, o
direito de privacidade e o direito de igualdade.
Com efeito, uma decisão da Corte Europeia de Direitos Huma-
nos, examinando a lei penal da Irlanda do Norte que criminalizava
práticas homossexuais consensuais entre adultos, considerou que tal
tratamento viola o artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Hu-
manos, no qual se garante o respeito à vida familiar e privada (caso
Dudgeon v. UK, 1981). Desde então, predomina no direito europeu
a compreensão de que o direito humano de privacidade protege ho-
mossexuais em face de discriminação em virtude de sua orientação se-
xual3. Relacionado de modo indissociável à privacidade está o direito
de liberdade, mesmo porque a privacidade nada mais é do que uma
manifestação, no âmbito das relações interpessoais, do próprio direito
de liberdade. Com efeito, o direito de liberdade possibilita aos indiví-
duos, de forma autônoma, a tomada de decisões quanto aos objetivos e
aos estilos de vida. Diante da importância ímpar que a sexualidade as-
sume na construção da subjetividade e no estabelecimento de relações
pessoais e sociais, a liberdade sexual, que também se expressa como
direito à livre expressão sexual, é concretização mais que necessária do
direito humano à liberdade.

3. Num estudo sobre o Grupo Triângulo Rosa e seu protagonismo na discussão sobre a inclusão da expressão
“orientação sexual” no texto constitucional resultante do processo constituinte de 1988, Cristina Câmara
(2002) anota: “A orientação sexual consolidou o momento emergencial da discussão sobre os direitos indivi-
duais no movimento gay e a criação de um lugar simbólico para a expressão pública da homossexualidade. Foi
a alternativa teórica do movimento gay, que marcou uma posição na luta simbólica contra a medicalização e a
criminalização da homossexualidade, fugindo ao imaginário do séc. XIX” (Câmara, 2002:103).
255 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Não ser discriminado em virtude de orientação sexual é outro


direito humano decisivo para a proteção de homossexuais em face da
homofobia e do heterossexismo. Tanto na sua dimensão formal (“todos
são iguais perante a lei”), quanto na sua dimensão material (tratar igual-
mente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigual-
dade”), o direito de igualdade não se compadece com tratamentos preju-
diciais baseados na orientação sexual. Desse modo, restrições de direito
não autorizadas em lei (por exemplo, a proibição de manifestações de
carinho entre homossexuais idênticas àquelas admitidas para heterosse-
xuais), bem como preterições de direitos fundadas em preconceito (por
exemplo, justificar a exclusão de gays e lésbicas da possibilidade de ado-
tar sob o pretexto de danos à criança), caracterizam violação do direito
de igualdade, diretamente vinculada ao âmbito dos direitos sexuais.
A proibição de discriminação por orientação sexual, por vezes, é
explicitamente prevista pelo direito. Exemplos disso são as Constitui-
ções de países como África do Sul4 e Equador, e de estados brasileiros
como Sergipe e Mato Grosso. Na maioria das vezes, o que ocorre é a
proibição decorrente da abertura das listas de critérios de discrimina-
ção, expressas ao admitir, além dos fatores previstos (raça e origem, por
exemplo), quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, IV, da
Constituição Federal de 1988).
A proteção da dignidade humana é outro direito humano bási-
co com repercussões imediatas para o exercício dos direitos sexuais por
travestis, transexuais, gays e lésbicas. Compreendida como o reconheci-
mento do valor único e irrepetível de cada vida humana, merecedora de
respeito e consideração, este direito humano requer que, na esfera da sexu-
alidade, ninguém seja vilipendiado, injuriado ou qualificado como abjeto
em virtude de orientação sexual diversa da heterossexualidade. Implica
também que os projetos de vida, concernentes a tão importante dimensão
da subjetividade, não sejam impostos por terceiros ao sujeito, de forma he-
terônoma, fazendo do indivíduo um meio para o reforço de determinadas

4. Não obstante, as práticas repressivas contra a liberdade de expressão sexual que ocorrem na África do Sul,
como o denominado “estupro corretivo” cometido contra lésbicas, vêm sendo denunciadas por organizações
não governamentais. Cf. <http://www.avaaz.org/po/stop_corrective_rape/?fpla>.
Discursos fora da ordem 256

visões de mundo, a este externas e alheias. A violação a este princípio tão


fundamental no regime jurídico dos direitos humanos é recorrente.
Assim compreendidos, os direitos sexuais podem ser instrumen-
to valioso para o enfrentamento das manifestações de preconceito com
base na norma heterossexista, na medida em que seus princípios abrem
a possibilidade para as manifestações subjetivas de reconstrução dos su-
jeitos a partir de suas vivências sexuais sem as amarras de uma concepção
unitária sobre sexo/gênero, desejo e sexualidade. Levados a sério, os va-
lores da liberdade, igualdade e dignidade podem ser concretizados sem a
restrição dos significados atribuídos, de modo hegemônico, às noções de
heterossexualidade, de homossexualidade e de bissexualidade. Eles têm
a capacidade de desafiar a rigidez da estrutura reguladora fruto de uma
cristalização produtora da aparência de uma substância natural, para nos
valermos da expressão de Butler (2003).
No entanto, o discurso jurídico nacional, ao tratar demandas em
que orientação sexual e identidade de gênero estiveram no centro de seu
debate, revela a predominância de posturas resistentes a possibilidades
diversas do que delimitam os marcos da heterossexualidade compulsó-
ria. É o que revela não só a jurisprudência, como também as principais
normativas e políticas públicas pertinentes ao combate à homofobia e
ao respeito à diversidade sexual, como a seguir brevemente descrevemos.

3. Tendências e tensões no desenvolvimento dos direitos sexu-


ais no Brasil

No contexto nacional, o marco mais significativo sobre diversida-


de sexual e direitos sexuais é o Programa Brasil sem Homofobia (Pro-
grama de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB – gays,
lésbicas, transgêneros e bissexuais – e de Promoção da Cidadania de
Homossexuais), lançado em 2004 pela Secretaria Especial de Direitos
Humanos, a partir de definição do Plano Plurianual PPA – 2004-2007
(Brasil, 2004). Trata-se de um programa constituído de diferentes ações,
objetivando:
257 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

(a) o apoio a projetos de fortalecimento de instituições públicas e não


governamentais que atuam na promoção da cidadania homossexual e/
ou no combate à homofobia; (b) capacitação de profissionais e repre-
sentantes do movimento homossexual que atuam na defesa de direitos
humanos; (c) disseminação de informações sobre direitos, de promoção
da autoestima homossexual; e (d) incentivo à denúncia de violações dos
direitos humanos do segmento LGBT. (Brasil, 2004)

Antes do Programa Brasil sem Homofobia, as duas versões do Pla-


no Nacional de Direitos Humanos (de 1996 e 2002) mencionaram o
combate à discriminação por orientação sexual, sem, contudo, empres-
tar ao tópico maior desenvolvimento.
Como vimos, na trajetória dos direitos humanos, a afirmação da
sexualidade como dimensão digna de proteção é relativamente recente,
tendo como ponto de partida, no contexto internacional, a consagra-
ção dos direitos reprodutivos e da saúde sexual como objetos de preo-
cupação (Rios, 2007). Em âmbito nacional, a inserção da proibição de
discriminação por orientação sexual iniciou-se em virtude de demandas
judiciais, a partir de meados dos anos 1990, voltadas para as políticas de
seguridade social (Leivas, 2003). Seguiram-se às decisões judiciais ini-
ciativas legislativas, municipais e estaduais, concentradas nos primeiros
anos do segundo milênio, espalhadas por diversos estados da Federação
(Vianna, 2004).
Um exame do conteúdo destas iniciativas e da dinâmica com que
elas são produzidas no contexto nacional chama a atenção para duas ten-
dências: a busca por direitos sociais como reivindicação primeira em que
a homossexualidade se apresenta como obstáculo ao acesso a benefícios,
por exemplo, e a utilização do direito de família como argumentação ju-
rídica recorrente. Estas tendências caracterizam uma dinâmica peculiar
do caso brasileiro em face da experiência de outros países e sociedades
ocidentais, onde a luta por direitos sexuais inicia-se pela proteção da pri-
vacidade e da liberdade negativa e a caracterização jurídico-familiar das
uniões de pessoas do mesmo sexo é etapa final de reconhecimento de
direitos vinculados à diversidade sexual.
Discursos fora da ordem 258

Além destas tendências, a inserção da diversidade sexual, como


manifestada na legislação existente, revela a tensão entre as perspectivas
universalista e particularista no que diz respeito aos direitos sexuais e à
diversidade sexual, de um lado, e à luta por direitos específicos de “mi-
norias sexuais”, de outro.
A primeira tendência a ser examinada é a utilização de demandas
reivindicando direitos sociais como lugar simbólico de defesa da liber-
dade de expressão sexual. Enquanto em países ocidentais de tradição
democrática a luta por direitos sexuais ocorreu, inicialmente, pelo com-
bate a restrições legais à liberdade individual, no caso brasileiro o que
se percebe é a afirmação da proibição da discriminação por orientação
sexual como requisito para o acesso a benefícios previdenciários. Tal é o
que revela, por exemplo, a superação no direito europeu da criminaliza-
ção do sexo consensual privado entre homossexuais adultos – a chamada
sodomia – com fundamento no direito de privacidade, ao passo que, no
caso brasileiro, desde o início, o combate à discriminação foi veiculado
em virtude da exclusão discriminatória contra homossexuais do regime
geral da previdência social, quando se trata de pensão e auxílio-reclusão
para companheiro do mesmo sexo.
Uma hipótese para a compreensão deste fenômeno vem da gênese
histórica das políticas públicas no Brasil. Gestadas em suas formulações
pioneiras em contextos autoritários, nos quais os indivíduos eram con-
cebidos muito mais como objetos de regulação estatal do que sujeitos de
direitos, estas dinâmicas nutrem concepções frágeis acerca da dignidade
e da liberdade individuais. Alimentadas pela disputa política entre oli-
garquias e pelo referencial do positivismo social, as políticas públicas
no Brasil caracterizaram-se pela centralidade da figura do trabalhador
como cidadão tutelado, caracterizando um ambiente de progresso eco-
nômico e social autoritário, sem espaço para os princípios da dignidade,
da autonomia e da liberdade individuais (Bosi, 1992). Daí a persistência
de uma tradição que privilegia o acesso a prestações estatais positivas
em detrimento da valorização do indivíduo e de sua esfera de liberdade
e respeito à sua dignidade, dinâmica que se manifesta na história das
demandas por direitos sexuais mediados pelos direitos sociais no Brasil.
259 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

A segunda tendência é a recorrência dos argumentos do direito de


família5 como fundamentação para o reconhecimento de direitos de ho-
mossexuais, fenômeno que designamos como “familismo jurídico”. De
fato, não é difícil perceber que, em muitos casos, o sucesso de deman-
das relativas à orientação sexual valeu-se de argumentos de direito de
família, o que se manifesta de modo cristalino pela extensão do debate
jurídico – nos tribunais e naqueles que se dedicam a estudar direitos
sexuais – acerca da qualificação das conjugalidades homoeróticas6. A par
da polêmica sobre a figura jurídica adequada a essas uniões, é comum
associar-se de modo necessário o reconhecimento da dignidade e dos
direitos dos envolvidos à assimilação de sua conduta e de sua personali-
dade ao paradigma familiar tradicional heterossexual.
É o que sugere, por exemplo, a leitura de precedentes judiciais que
deferem direitos ao argumento de que, afora a igualdade dos sexos, os
partícipes da relação reproduzem em tudo a vivência dos casais hete-
rossexuais – postura nitidamente nutrida na lógica assimilacionista.
Nesta, o reconhecimento dos direitos depende da satisfação de predica-
dos como comportamento adequado, aprovação social, reprodução de
uma ideologia familista, fidelidade conjugal como valor imprescindível
e reiteração de papéis definidos de gênero. Daí, inclusive, a dificulda-
de de lidar com temas como prostituição, travestilidades, liberdade se-
xual, sadomasoquismo e pornografia. Ainda nesta linha, a formulação
de expressões, ainda que bem intencionadas, como “homoafetividade”,
revela uma tentativa de adequação à norma que pode revelar uma su-
bordinação dos princípios de liberdade, igualdade e não-discriminação,
centrais para o desenvolvimento dos direitos sexuais (Rios, 2007) a uma
lógica assimilacionista, o que produziria um efeito contrário, revelando-
se também discriminatória, pois, na prática, distingue uma condição

5. Em estudo sobre a apreciação dos Tribunais de Justiça brasileiros sobre o reconhecimento de efeitos jurídicos
às conjugalidades homoeróticas, Rosa Oliveira (2009) anota: “Se pensarmos nas noções presentes na Consti-
tuição Federal sobre a família, podemos perceber que há variadas conexões com a discussão no campo dos di-
reitos sexuais e direitos reprodutivos, como aquela que propugna ser a sexualidade reservada para reprodução,
e que o casamento deva assegurar normativamente (de um ponto de vista técnico – estatuto legal) a institui-
ção familiar, em seu conceito ‘tradicional’, que envolve a conjugalidade heterossexual” (Oliveira, 2009:129).
6. A expressão “conjugalidades homoeróticas” busca designar as relações amorosas estáveis entre pessoas não he-
terossexuais, a partir de marcos teóricos encontrados em Jurandir Freire Costa (1992), bem como em Miriam
Grossi (2003) e Maria L. Heilborn (1993).
Discursos fora da ordem 260

sexual “normal”, palatável e “natural” de outra assimilável e tolerável,


desde que bem comportada e “higienizada”. Com efeito, a sexualidade
heterossexual é tomada como referência para nomear o indivíduo “na-
turalmente” detentor de direitos (o heterossexual, que não necessita ser
heteroafetivo), enquanto a sexualidade do homossexual é expurgada
pela “afetividade”, numa espécie de efeito mata-borrão.
As razões da recorrência aos conceitos mais tradicionais no campo
do direito de família podem ser buscadas na já registrada fragilidade dos
princípios da autonomia individual, da dignidade humana e da privaci-
dade que caracterizam nossa cultura. Com efeito, fora da comunidade
familiar, em que o sujeito é compreendido mais como membro do que
como indivíduo, mais como parte, meio e função do que como fim em si
mesmo, não haveria espaço para o exercício de uma sexualidade indigna
e de categoria inferior.
Uma rápida pesquisa sobre as respostas legislativas estaduais e
municipais revela a predominância de duas perspectivas quanto à diver-
sidade sexual e aos direitos a ela relacionados. De um lado, diplomas
legais de cunho mais particularista, nos quais uma categoria de cidadãos
é identificada como destinatária específica da proteção: são os casos,
por exemplo, da legislação paulista sobre combate à discriminação por
orientação sexual, Lei nº 10.948 de 2001 (São Paulo, 2001); da cidade
de Juiz de Fora, Lei nº 9.791 de 2000 ( Juiz de Fora, 2000); de outro,
diplomas mais universalistas, destacando-se a lei gaúcha, Lei nº 11.872
de 2002 (Rio Grande do Sul, 2002). De fato, enquanto os primeiros
referem-se a “qualquer cidadão homossexual (masculino ou feminino),
bissexual ou transgênero” (conforme o art. 1º da lei mineira), o segundo,

reconhece o direito à igual dignidade da pessoa humana de todos os seus


cidadãos, devendo para tanto promover sua integração e reprimir os atos
atentatórios a esta dignidade, especialmente toda forma de discriminação
fundada na orientação, práticas, manifestação, identidade, preferências
sexuais, exercidas dentro dos limites da liberdade de cada um e sem preju-
ízo a terceiros. (Rio Grande do Sul, 2002, art. 1º)
261 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Não se questiona, em nenhum momento, a intenção antidiscrimi-


natória presente nestes dois modelos de respostas. Todavia, é necessário
atentar para as vantagens, desvantagens e os riscos próprios de cada um,
especialmente considerando as advertências de Butler (2003) e Hall
(2000) quanto ao sistema sexo-gênero e à identidade sexual, referidas
na primeira parte.
De fato, a adoção de estratégias mais particularistas expõe-se a ris-
cos importantes: reificar identidades, apontar para um reforço do gueto
e incrementar reações repressivas (basta verificar o contradiscurso con-
servador dos “direitos especiais” e a ressurgência de propostas de legis-
lação medicalizadora “curativa” de homossexuais). Isto sem se falar dos
perigos de limitar a liberdade individual na potencialmente fluida esfera
da sexualidade (preocupação expressa pela chamada “Teoria Queer”) e
de requerer, quando acionados os mecanismos de participação política e
de proteção estatal, definições identitárias mais rígidas acerca de quem é
considerado sujeito da proteção jurídica específica. Neste contexto, pa-
rece preferível a adoção de estratégias mais universalistas. Elas parecem
ser capazes de suplantar as dificuldades de uma concepção meramente
formal de igualdade, desde que atentas às diferenças reais e às especifi-
cidades que se constroem a cada momento, sem nelas se fechar; trata-se
de reconhecer a diferença sem canonizá-la, trabalhar com as identidades
autoatribuídas sem torná-las fixas e rejeitar a reificação do outro.

4. Orientação sexual e a identidade de gênero:


heterossexualidade compulsória na jurisprudência brasileira

O exame de precedentes judiciais envolvendo orientação sexual e


identidade de gênero aponta para a persistência de compreensões em
que as sexualidades não-hegemônicas (entendidas como identidades,
preferências, expressões e práticas diversas do padrão heterossexual tra-
dicional) são submetidas a exigências de acomodação ou assimilação à
heteronormatividade, quando não expressamente desvalorizadas. É o
que se verifica, inclusive, na maioria das hipóteses em que os deman-
dantes obtiveram respostas judiciais favoráveis às pretensões ajuizadas.
Discursos fora da ordem 262

Partindo da relação entre heterossexismo e determinadas perspecti-


vas em face da diversidade sexual, e objetivando analisar as compreensões
presentes no Poder Judiciário, com atenção ao fenômeno da heterossexu-
alidade compulsória, bem como aos conceitos utilizados, identificamos
padrões discursivos que podem conduzir a uma tipologia das decisões ju-
diciais neste campo7. Neste esforço, a título exemplificativo, selecionamos
julgamentos de tribunais superiores de acordo com a matéria tratada, a
posição institucional do respectivo tribunal na organização judiciária bra-
sileira e a propriedade do precedente para ilustrar a tendência identificada.
A fim de nomear as principais tendências observadas diante de demandas
em que surgem questões relacionadas à orientação sexual e identidade de
gênero, é proposta uma tipologia quaternária. Nos três primeiros grupos
são identificadas relações, em graus diversos, entre heterossexismo e a
apreciação/desvalorização social da homossexualidade como argumento.
No último, por sua vez, revela-se uma perspectiva oposta.
Os três primeiros grupos relacionam o heterossexismo com três
graus de apreciação ou desvalorização em termos de orientação sexual,
aos quais se associam determinadas perspectivas político-jurídicas: con-
servadorismo judicial, liberalismo abstencionista e assimilacionismo fami-
lista. O último, diversamente, aponta para posições judiciais no sentido
da afirmação dos direitos sexuais, inclusive com o questionamento de
padrões estabelecidos de gênero e de sexualidade.

4.1. Conservadorismo judicial e heterossexismo explícito

A primeira tendência que se constata no exame dos precedentes


judiciais sobre diversidade sexual é aqui denominada conservadorismo
judicial. Trata-se de modalidade de raciocínio judicial informada por
uma classificação hierárquica das diversas manifestações da sexualidade,
que subordina à matriz heterossexual todas as demais expressões.

7. Ernesto Meccia (2010:63) empreendeu esforço semelhante ao realizar uma tipologia dos discursos jurídicos
acerca das demandas do movimento “LGBT” e o matrimônio igualitário na Argentina, valendo-se das cate-
gorias “discurso do desconhecimento”, “discurso conservador”, “discurso liberal abstencionista” e “discurso
liberal de reconhecimento”.
263 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

A jurisprudência registra diversas manifestações negativas quan-


to à homossexualidade, mesmo em demandas judiciais em que houve
sucesso por parte daqueles que procuraram proteção judicial. Exemplo
emblemático desta tendência é o julgamento em que pela primeira vez
o Superior Tribunal de Justiça qualificou juridicamente as uniões entre
pessoas do mesmo sexo como sociedades de fato, visto que nele houve
pronunciamentos depreciativos da homossexualidade em comparação
à heterossexualidade. Não obstante o caráter inovador desta diretriz
quando de seu advento, uma leitura atenta da sua fundamentação revela
juízo negativo, ou, no mínimo, de menosprezo, em face de demandas
por reconhecimento jurídico de conjugalidades homoeróticas:

A negativa da incidência de regra assim tão ampla e clara, significaria, a


meu juízo, fazer prevalecer princípio moral (respeitável) que recrimina
o desvio da preferência sexual, desconhecendo a realidade de que esta
união – embora criticada – existiu e produziu efeitos de natureza obriga-
cional e patrimonial, que o direito civil comum abrange e regula.
[...] O comportamento sexual deles pode não estar de acordo com a mo-
ral vigente, mas a sociedade civil entre eles resultou de um ato lícito, a
reunião de recursos não está vedada na lei e a formação do patrimônio
comum é consequência daquela sociedade. (https://ww2.stj.jus.br/pro-
cesso/jsp/ita/abreDocumento.jsp?num_registro=199700661245&dt_
publicacao=06-04-1998&cod_tipo_documento=3)(REsp 148.897/
MG, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em
10/02/1998, DJ 06/04/1998, p. 132)

Do teor da decisão, extrai-se que mesmo tendo acolhido o pedido


de divisão patrimonial decorrente de vida em comum entre duas pessoas
do mesmo sexo, o acórdão foi claro ao inferiorizar a homossexualidade,
reconhecendo um princípio moral que “recrimina o desvio”, emitindo
juízo de valor depreciativo diante das conjugalidades homoeróticas.
Tanto quando afirmou a possibilidade de aplicar a regra da sociedade
de fato, realidade meramente econômica e não familiar, como quando
se valeu da moral majoritária vigente para afastar a natureza familiar da
união vivida por duas pessoas do mesmo sexo.
Discursos fora da ordem 264

Rosa Oliveira (2009) destaca ainda que “o reconhecimento de


efeitos jurídicos às conjugalidades homoeróticas passa na maioria dos
acórdãos pela comprovação da existência da sociedade de fato”, posição
“que remete os pares homossexuais a enquadrar-se na noção que estava
presente na Súmula [380] do STF, que exige então a comprovação da
contribuição na construção do patrimônio para que possa ser partilhado
(Oliveira, 2009: 123).

4.2. Liberalismo abstencionista e heterossexismo implícito

O liberalismo abstencionista é modalidade de discurso judicial que


se propõe a aplicar as regras jurídicas sem emitir juízo de valor, positi-
vo ou negativo, diante da esfera de decisão individual protegida da in-
tervenção estatal, no caso, o exercício da sexualidade e a realidade da
diversidade sexual. Partindo do pressuposto de que a sexualidade é âm-
bito protegido constitucionalmente pelo direito à privacidade, dentro
do qual as escolhas individuais devem ser preservadas, o discurso liberal
abstencionista pretende-se neutro.
Em termos ideais, sua pretensão é nada adicionar ou diminuir, en-
quanto manifestação estatal, a respeito do maior ou menor valor intrín-
seco no que concerne à orientação sexual e à identidade de gênero.
A ausência de qualquer juízo de valor ou manifestação sobre a dig-
nidade da relação havida entre pessoas do mesmo sexo caracteriza esta
modalidade de discurso judicial, conduzindo ao enquadramento da re-
lação pela via do direito obrigacional (sociedade de fato). Nesta linha,
podem ser encontrados alguns precedentes do Superior Tribunal de Jus-
tiça, como ilustra a ementa abaixo transcrita:

RECURSO ESPECIAL. RELACIONAMENTO MANTIDO EN-


TRE HOMOSSEXUAIS. SOCIEDADE DE FATO. DISSOLUÇÃO
DA SOCIEDADE. PARTILHA DE BENS. PROVA. ESFORÇO
COMUM. Entende a jurisprudência desta Corte que a união entre pes-
soas do mesmo sexo configura sociedade de fato, cuja partilha de bens
exige a prova do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado.
265 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (REsp.


648.763/RS, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado
em 07/12/2006, DJ 16/04/2007, p. 204)

O discurso judicial liberal abstencionista acaba por conduzir, do


ponto de vista da diversidade sexual, a uma postura conivente com o
preconceito e a discriminação podendo ser caracterizado, portanto,
como uma manifestação implícita de padrões heterossexistas.
Assim ocorre, no mínimo, pelo fato de que o silêncio diante da
homofobia coopera para a perpetuação desta, mesmo que de modo im-
plícito. Ainda que não sejam apresentadas concepções homofóbicas ou
conservadoras de modo explícito, o silêncio sobre a homossexualidade,
com a afirmação implícita de forte cunho heterossexista, funciona como
elemento de um discurso judicial que se afasta do respeito e da proteção
à diversidade sexual, em dinâmica semelhante ao que ocorre no âmbito
educacional (Lionço; Diniz, 2009:62).

4.3. Assimilacionismo familista e homoafetividade

A terceira tendência discursiva identificada na leitura das decisões


é o assimilacionismo familista. Esta modalidade de discurso judicial é
assim caracterizada pela conjugação de duas ideologias: o assimilacio-
nismo (em que membros de grupos subordinados ou tidos como infe-
riores adotam padrões oriundos de grupos dominantes, em seu próprio
detrimento [Rios, 2008:140]) e o familismo (aqui entendido como ten-
dência a subordinar o reconhecimento de direitos sexuais à adaptação a
padrões familiares e conjugais institucionalizados pela heterossexualida-
de compulsória [Mello, 2006]).
No campo da diversidade sexual, o assimilacionismo se manifesta
por meio da legitimação da homossexualidade mediante a reprodução,
afora o requisito da oposição de sexos, de modelos aprovados pela he-
teronormatividade. Vale dizer, a homossexualidade é aceita desde que
nada acrescente aos padrões heterossexuais hegemônicos e não os ques-
tione, desde que anule qualquer pretensão de originalidade, transforma-
Discursos fora da ordem 266

ção ou subversão do padrão heteronormativo. Nesta dinâmica, a estes


arquétipos são associados atributos positivos, cuja reprodução se espera
por parte de homossexuais, condição sine qua non para sua aceitação.
No assimilacionismo familista, a dimensão mais palatável, e cuja
adaptação mais facilmente pode ocorrer, verifica-se nas relações fami-
liares, dada a predominância, na dogmática contemporânea do direito
de família, das realidades existenciais em detrimento do formalismo nos
vínculos jurídicos, diretriz antes predominante. Neste contexto, a iden-
tificação do “afeto” como fator distintivo dos relacionamentos e identifi-
cador dos vínculos familiares, cumpre função anestésica e acomodadora
da diversidade sexual às normas da heterossexualidade compulsória, na
medida em que propõe a “aceitação” da homossexualidade sem qualquer
questionamento mais intenso dos padrões sexuais hegemônicos. Isto
porque a “afetividade” acaba funcionando como justificativa para a acei-
tação de dissonâncias à norma heterossexual servindo como um meca-
nismo de anulação, por compensação, de práticas e preferências sexuais
heterodoxas, cujo desvalor fica contrabalanceado pela “pureza dos sen-
timentos”. Desta forma, opera-se uma assimilação ao mesmo padrão que
se buscava enfrentar, produzindo a partir daí um novo rol de exclusões.
O julgamento que deferiu adoção conjunta de duas crianças a um
casal de lésbicas pode ilustrar esta modalidade de discurso judicial (REsp
889.852/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julga-
do em 27/04/2010, DJe 10/08/2010). Nele, apesar do deferimento do
pedido com fundamentação forte e coerente a respeito da prevalência
do melhor interesse das crianças, no caso concreto, percebe-se raciocí-
nio de cunho assimilacionista. A estrutura argumentativa busca afastar a
alegação de inadequação de um casal composto por duas mulheres como
adotante (invocada unicamente pelo Ministério Público nas razões do
recurso especial), sem tecer qualquer consideração positiva quanto à di-
versidade sexual e sem questionar a presunção relativa, no mundo dos
fatos, de que a adoção por casal heterossexual seria mais bem medida,
seja em abstrato, seja no caso concreto. Vale dizer, em que pese toda a
consistente argumentação e esforço não-discriminatório do julgado, a
legitimação da adoção por casal lésbico se operou pelo fato de interesses
267 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

familiares justificarem a admissão de algo considerado, implicitamente,


menos valioso e adequado que a adoção por heterossexuais.
Colhe-se na própria ementa do julgado:

1. A questão diz respeito à possibilidade de adoção de crianças por par-


te de requerente que vive em união homoafetivo com companheira que
antes já adotara os mesmos filhos, circunstância a particularizar o caso
em julgamento. [...] 4. Mister observar a imprescindibilidade da preva-
lência dos interesses dos menores sobre quaisquer outros, até porque está
em jogo o próprio direito de filiação, do qual decorrem as mais diversas
consequências que refletem por toda a vida de qualquer indivíduo. 5. A
matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por casais homos-
sexuais vincula-se obrigatoriamente à necessidade de verificar qual é a
melhor solução a ser dada para a proteção dos direitos das crianças, pois
são questões indissociáveis entre si. 6. Os diversos e respeitados estudos
especializados sobre o tema, fundados em fortes bases científicas (realiza-
dos na Universidade de Virgínia, na Universidade de Valência, na Acade-
mia Americana de Pediatria), “não indicam qualquer inconveniente em
que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a
qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão
inseridas e que as liga a seus cuidadores”. [...] 9. Se os estudos científicos
não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza para as crianças, se
elas vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo,
assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que se impõe.
[...] 11. Não se pode olvidar que se trata de situação fática consolidada,
pois as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas por
ambas como filhos. Existe dupla maternidade desde o nascimento das
crianças, e não houve qualquer prejuízo em suas criações.

Os trechos acima citados permitem perceber como opera o discur-


so assimilacionista. Na linha das tendências e tensões acima identifica-
das, percebe-se que a reprodução de atributos associados à heterossexu-
alidade compulsória e a padrões familiares tradicionais é fator de suma
importância para a legitimação judicial da adoção pelo casal de lésbicas.
Discursos fora da ordem 268

Como também acima referido, não é por acaso que este raciocínio
se disseminou entre profissionais e acadêmicos do direito mediante o
uso do termo “homoafetividade”: expressão familista que muito dificil-
mente pode ser apartada de conteúdos conservadores e discriminató-
rios, por nutrir-se da lógica assimilacionista, sem o que a “purificação”
da sexualidade reprovada pela heterossexualidade compulsória compro-
mete-se gravemente, tudo com sérios prejuízos aos direitos sexuais e à
valorização mais consistente da diversidade sexual.
Os efeitos colaterais indesejados produzidos pelo assimilacionis-
mo familista não se limitam aos direitos sexuais. Eles também provo-
cam, indireta mas efetivamente, a naturalização da inferioridade e da
precariedade dos abrigos e lares comunitários para crianças e adolescen-
tes, vitais de modo especial para quem a adoção por famílias tradicionais
se mostra inadequada e potencialmente danosa, dado que a tolerância
com adotantes homossexuais se nutre desta premissa.
Registre-se, por fim, que, em sua manifestação mais direta, este dis-
curso tangencia o conservadorismo judicial, na medida em que a orien-
tação sexual das adotantes necessitou ser “higienizada” de conteúdos
negativos (promiscuidade e falta de seriedade) que, a contrariu sensu¸se
associam à homossexualidade. Como registrou outro dos votos concor-
rentes para a decisão sem divergência, “as duas vivem uma relação séria
e estável. A assistente social chega a essa conclusão para recomendar a
adoção, dizendo que não há nenhuma relação de promiscuidade”.

4.4. Diversidade sexual e afirmação dos direitos sexuais

A última modalidade de discurso judicial destaca-se das demais


por reconhecer dignidade e valor a orientações sexuais e identidades
de gênero diversas da heterossexualidade compulsória. Diferentemente
das primeiras três espécies de discurso, aqui a diversidade sexual é con-
siderada não somente uma realidade objeto de debate e polêmica, a ser
contida ou neutralizada, mas uma dimensão positiva da vida individual
e social, merecedora de reconhecimento e de proteção judiciais, acaso
ameaçada. Nesta esteira, abre-se caminho para a afirmação dos direitos
269 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

sexuais, entendidos como concretização, na esfera da sexualidade, de di-


versos direitos humanos e fundamentais, inclusive sem a necessidade de
sua “purificação” pelo assimilacionismo familista.
Neste sentido, há precedentes judiciais enfatizando a legitimidade
das diversas expressões da sexualidade, associando a estas vários direitos
humanos e fundamentais, tais como a liberdade sexual, a autodetermi-
nação, a igualdade, a dignidade humana, a solidariedade e a busca da
felicidade.
A manifestação do ministro Celso de Mello, no Supremo Tribu-
nal Federal, exemplifica esta diretriz em matéria de orientação sexual, ao
invocar princípios fundamentais (“como os da dignidade da pessoa hu-
mana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo,
da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade”) como
alicerce do “reconhecimento do direito personalíssimo à orientação se-
xual”, alertando, ainda, que

[...] enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança


de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito
menos os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas
preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe
confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de con-
teúdo meramente religioso. (ADI 3300 MC, Relator (a): Min. Celso
de Mello, julgado em 03/02/2006, publicado em DJ 09/02/2006 PP-
00006 RTJ VOL-00200-01 PP-00271 RDDP nº 37, 2006, p. 174-176
RCJ v. 20, nº 128, 2006, p. 53-60 RSJADV jul., 2007, p. 44-46)

No mesmo sentido, ainda quanto à orientação sexual, julgado unâ-


nime do Superior Tribunal de Justiça, registra (REsp 1026981/RJ, Rel.
Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 04/02/2010,
DJe 23/02/2010):

Sob essa ótica, a proteção do Estado ao ser humano deve ser conferida
com os olhos fixos na vedação a condutas preconceituosas, discriminató-
rias e estigmatizantes, forte nos princípios fundamentais da dignidade da
Discursos fora da ordem 270

pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da autodeterminação, da inti-


midade, da não discriminação, da solidariedade e da busca da felicidade.
Deve muito mais garantir liberdades do que impor limitações. Significa
dizer: a ausência de previsão legal jamais pode servir de pretexto para de-
cisões omissas, ou, ainda, calcadas em raciocínios preconceituosos, evi-
tando, assim, que seja negado o direito à felicidade da pessoa humana.

Num contexto de valorização positiva da diversidade sexual e de


afirmação dos direitos sexuais, abre-se espaço para a demanda por reco-
nhecimento das identidades de gênero, potencialmente mais questio-
nadoras e subversivas do binarismo de gênero que acompanha a lógica
heteronormativa.
Exemplo disso é o julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª Re-
gião, em ação civil pública objetivando a inclusão no sistema público de
saúde de cirurgias de mudança de sexo. Ao invés de reduzir a demanda
à normalização de “defeitos da natureza” em matéria de saúde sexual, o
precedente situou o debate no exercício mais amplo de diversos direitos
sexuais, concebidos como possibilidades de invenção de si e de constru-
ção de identidades pertinentes à diversidade sexual.A ementa, ao resu-
mir a relação entre alguns direitos fundamentais e a diversidade sexual,
envolvendo orientação sexual e identidade de gênero, anota:

1 - A exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo Sistema


Único de Saúde das cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos
complementares, em desfavor de transexuais, configura discriminação proi-
bida constitucionalmente, além de ofender os direitos fundamentais de
liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade, proteção
à dignidade humana e saúde. 2 - A proibição constitucional de discrimina-
ção por motivo de sexo protege heterossexuais, homossexuais, transexuais
e travestis, sempre que a sexualidade seja o fator decisivo para a imposição
de tratamentos desfavoráveis. 3 - A proibição de discriminação por motivo
de sexo compreende, além da proteção contra tratamentos desfavoráveis
fundados na distinção biológica entre homens e mulheres, proteção dian-
te de tratamentos desfavoráveis decorrentes do gênero, relativos ao papel
271 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

social, à imagem e às percepções culturais que se referem à masculinidade


e à feminilidade. 4 - O princípio da igualdade impõe a adoção de mesmo
tratamento aos destinatários das medidas estatais, a menos que razões sufi-
cientes exijam diversidade de tratamento, recaindo o ônus argumentativo
sobre o cabimento da diferenciação. Não há justificativa para tratamento
desfavorável a transexuais quanto ao custeio pelo SUS das cirurgias de ne-
ocolpovulvoplastia e neofaloplastia, pois (a) trata-se de prestações de saúde
adequadas e necessárias para o tratamento médico do transexualismo e (b)
não se pode justificar uma discriminação sexual (contra transexuais mascu-
linos) com a invocação de outra discriminação sexual (contra transexuais fe-
mininos). 5 - O direito fundamental de liberdade, diretamente relacionado
com os direitos fundamentais ao livre desenvolvimento da personalidade e
de privacidade, concebendo os indivíduos como sujeitos de direito ao invés
de objetos de regulação alheia, protege a sexualidade como esfera da vida
individual livre da interferência de terceiros, afastando imposições indevi-
das sobre transexuais, mulheres, homossexuais e travestis. 6 - A norma de
direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a
consideração do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio
para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por ter-
ceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo heterônomas, que
imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão
no acesso a procedimentos médicos. (TRF4, AC 2001.71.00.026279-9,
Terceira Turma, Relator Roger Raupp Rios, D.E. 22/08/2007).

Considerações finais

Sexualidade e direitos humanos, concretizados por meio da efeti-


vação de direitos sexuais e pela valorização da diversidade sexual, recla-
mam uma compreensão cada vez mais atenta e crítica dos padrões e das
identidades sexuais hegemônicas. Para tanto, é imprescindível a conju-
gação do ativismo dos movimentos sociais, da reflexão acadêmica e das
respostas do Estado, entre as quais o trabalho dos tribunais, na busca da
superação dos riscos para o exercício livre dos direitos sexuais simboliza-
dos pela norma da heterossexualidade compulsória.
Discursos fora da ordem 272

Quando se apresentam no cenário dos direitos humanos temas


como sexualidade, identidades e direitos sexuais, mais que a reprodu-
ção acrítica de padrões heteronormativos, a tarefa que se impõe a aca-
dêmicos, ativistas e operadores jurídicos implica o exame rigoroso das
concepções filosóficas, sociológicas e antropológicas que informam, de
modo consciente ou não, de forma mais ou menos elaborada, a utilização
dos conceitos e o desenvolvimento da argumentação jurídica realizados.
Ausente este cuidado, ficariam comprometidos o vigor dos princípios
mais caros aos regimes democráticos contemporâneos que, em matéria
de sexualidade e de diversidade sexual, vislumbram horizonte sem o qual
os direitos humanos de indivíduos, de grupos e de toda a sociedade são
constante e gravemente violados.
Retomando a argumentação de Judith Butler (2003a) sobre paren-
tesco homossexual, pedra de toque das demandas por reconhecimento
jurídico neste campo no Brasil atualmente, é necessário fazer um contra-
ponto à necessidade de equiparação a determinados “modelos” de conju-
galidade. A autora pensa na opinião pública norte-americana, para quem
o casamento é visto (e se propõe que assim seja mantido) como instituição
e vínculo heterossexuais. Neste cenário, o parentesco apenas é identificado
como tal se assumir uma forma “reconhecível” de família (no sentido de
sua conceituação tradicional, que remete ao vínculo heterossexual).
Há entre estas noções variadas conexões, como aquela que propug-
na ser a sexualidade reservada para reprodução, e que o casamento deva
assegurar normativamente (de um ponto de vista técnico – estatuto le-
gal) a instituição familiar, em seu conceito “tradicional”, que envolve a
conjugalidade heterossexual. Relações reprodutivas, casamento e sexua-
lidades são mantidos,assim, “em equilíbrio” por essa noção de entidade
familiar, composta pelo casal heterossexual e sua prole.
Desse modo, controvérsias técnicas sobre temas como as que exa-
minamos, no que diz respeito ao enquadramento de conjugalidades
homoeróticas nos conceitos jurídicos de sociedade de fato ou de união
estável, por exemplo, operariam como uma espécie de “justificativa” ao
estabelecimento de marcos discursivos que classificam as partes dos pro-
cessos com base em sua orientação sexual, pela diferenciação de acesso
273 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

ao direito ao casamento, à partilha de bens, filiação e outras questões


correlatas, posicionando o debate na fronteira entre o campo jurídico
e o político e interferindo na constituição como sujeitos de direito e no
exercício pleno da capacidade jurídica dos indivíduos em função de sua
sexualidade, sacrificando, com isso, os ideais de justiça equitativa que
animam o Estado Democrático de Direito, implicando em perdas que
não se resumem aos sujeitos por elas atingidos diretamente.

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Pedagogia do armário e currículo em ação:
heteronormatividade, heterossexismo e
homofobia no cotidiano escolar

Rogério Diniz Junqueira1

Cotidiano e currículo

Nós, que situamos nossa ação no mundo social da escola, assisti-


mos no dia-a-dia a um pipocar infindável de discursos, enunciados, ges-
tos e ocorrências e dele fazemos parte de variados modos. Lidamos com
um cotidiano escolar que se desdobra na esteira de situações corriquei-
ras, fortuitas e outras mais incomuns, dentro e fora da sala de aula, nas
mais distintas, banais e inusitadas situações de aprendizagem, no âm-
bito das quais se (re)constroem saberes, sujeitos, identidades, diferen-
ças, hierarquias (Camargo; Mariguella, 2007). Ali, entre permanências,
reiterações, iterações e possibilidades do novo, cotidiano e currículo se
interpelam e se implicam mútua e indissociavelmente.
De diversas maneiras e com variadas intensidades, o cotidiano es-
colar tende a aderir-se, engastar-se, interagir e inferir em cada aspecto do
conjunto de saberes e práticas que constituem o currículo usualmente
proclamado como oficial (o currículo “formal” ou “explícito”). E caberia
então dizer que, possivelmente, isso seja ainda mais verdadeiro ou inten-
so no caso do “currículo oculto” ( Jackson, 1990 [1968]), ao longo de
suas manifestações sub-reptícias, veladas ou negadas2

1. Agradeço Rosa Núbia Sorbille pelo generoso diálogo sobre esse texto.
2. O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do
currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita para aprendizagens sociais relevantes [...] o que
Discursos fora da ordem 278

As fontes e os meios do currículo oculto parecem inesgotáveis e


animam, caracterizam e delineiam a própria cotidianidade escolar: as
relações sociais da escola, a organização dos espaços, o ensino do tempo,
o conjunto de rituais, regras, regulamentos e normas, as diversas divi-
sões e categorizações explícitas e implícitas próprias do mundo escolar
(“bons”/“maus alunos”), entre outras (Silva, 2002: 79). No entanto, isso
não significa que somente o currículo oculto ensina conformismo, apro-
funda e cimenta valores e crenças preconceituosas. O assim dito currí-
culo formal, o explícito, em todos os seus aspectos se constitui como
um artefato político e, ao mesmo tempo, uma produção cultural e, logo,
discursiva. O currículo se relaciona à produção sociohistórica de poder
por meio de produção de regras e de padrões de verdade, da seleção,
organização, hierarquização e avaliação do que é definido como conhe-
cimento/conteúdo escolar. É um campo de permanentes disputas e ne-
gociações em torno de cada disposição, princípio de visão e de divisão
do mundo e das coisas – especialmente daquelas que dizem respeito ao
mundo da educação e às figuras que o povoam e, ali, (re)definem senti-
dos e (re)constroem significados.
Bem por isso, ao se procurar evitar uma abordagem prescritiva
de currículo, menos refém de dicotomias, tais como conteúdo/forma,
explícito/oculto, a noção de “currículo em ação” pode revelar-se bas-
tante proveitosa. Corinta M. G. Geraldi (1994) a recupera para se re-
ferir à pluralidade de situações formais ou informais de aprendizagens
vivenciadas por estudantes (e cabe acrescentar: por toda a comunidade
escolar), que podem ser ou não ser planejadas e, ainda, ocorrer dentro
ou fora da sala de aula, sob a responsabilidade da escola. É, em suma, o
que “ocorre de fato nas situações típicas e contraditórias vividas pelas
escolas, com suas implicações e compreensões subjacentes, e não o que
era desejável que ocorresse e/ou o que era institucionalmente prescrito”
(Geraldi, 1994: 117). Ademais, a noção mostra-se ulteriormente valiosa
por permitir pensar o currículo também como campo de produção, con-

se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações [...]. Entre
outras coisas, o currículo oculto ensina, em geral, o conformismo, a obediência, o individualismo [...] como ser
homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como a identificação com uma determinada raça
ou etnia (Silva, 2002: 78-79).
279 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

testação e disputas: abriga relações de poder, formas de controle, possi-


bilidades de resistência/conformismo. No currículo em ação, universos
simbólicos distintos e desigualmente valorizados se enfrentam, não raro
ao largo de processos de resistência desenvolvidos ao sabor (ou em opo-
sição) de disposições sociais (duradouras e dinâmicas) do campo em que
se desdobram.
A prática da observação e a análise da trama miúda do cotidiano es-
colar podem revelar um conjunto infinito de situações e procedimentos
pedagógicos e curriculares, estreitamente vinculados a processos sociais
por meio dos quais se desdobra e aprofunda a produção de diferenças,
distinções e clivagens sociais que interferem, direta e indiretamente, na
formação, no desempenho escolar de cada um/a, na desigualdade da dis-
tribuição de “sucesso” e “fracasso” escolares – atualmente, cada vez mais
atribuídos aos indivíduos e menos aos dispositivos institucionais que os
fabricam ao hierarquizar, marginalizar e excluir (Perrenoud, 1992).
Aqui procuro refletir sobre dimensões da heteronormatividade
que impregnam o currículo em ação, a partir da problematização de
relatos que me foram apresentados por profissionais da educação, no
decorrer de atividades de formação no âmbito do Programa Brasil Sem
Homofobia, desde 20053. Todos mostram semelhanças ou nos fazem
pensar em situações recorrentemente vividas em cada sala de aula ou
pátio escolar, nas instâncias de deliberação da política educacional, nos
ambientes de trabalho e de lazer, e em muitas famílias.
Essa mesma escola que, cotidianamente, cultiva e ensina precon-
ceitos e discriminações, também é um espaço privilegiado para a crítica,
a problematização de mecanismos de reificação e marginalização e de
crenças e atitudes desumanizantes. Ali, o costumeiro ou trivial, natu-
ralizado e tido como incontornável, pode ser confrontado, ao longo de
uma prática pedagógica disposta a promover releituras, reelaborações,
novas e mais criativas maneiras de ser, ver, classificar, escolher e agir. Es-
tas, traduzidas em novas possibilidades de currículo em ação, poderiam

3. São depoimentos de mulheres, docentes das redes públicas, em geral jovens, de cada região do país. Os poucos
homens presentes quase não intervinham, talvez por um temor (in)consciente de que manifestar maior inte-
resse pelo tema pudesse colocar em risco o reconhecimento social de suas masculinidades.
Discursos fora da ordem 280

desencadear processos dialógicos e críticos de reinvenção e dignificação


da vida, que, por sua vez, teriam como eixos a promoção da igualdade e
o direito à diferença não reificada4.

Heteronormatividade, homofobia, heterossexismo e pedago-


gia do insulto

Dizer que o cotidiano escolar e as diferentes formas de expressão


curricular são atravessados por manifestações de valores, crenças e pre-
conceitos não significa que fatores curriculares, (re)produtores de alie-
nação, desapossamento e hierarquias opressivas, devam ser banalizados,
naturalizados e aceitos. Se assim fosse, nós, profissionais da educação,
estaríamos eticamente autorizados a fazer de nossos ofícios meios propí-
cios à livre manifestação de preconceitos e discriminações. Para que a es-
cola e seus currículos se constituam – como pretendemos – em espaços
e oportunidades efetivamente pedagógicos, seguros e de formação para
a vida autônoma, a cidadania e a liberdade, seria importante nos inter-
rogarmos constantemente sobre que fatores, discursos e práticas ainda a
levam a ser diferente disso.
Ao longo de sua história, a escola brasileira (e por escola refiro-
me também a seus currículos, lato sensu) estruturou-se a partir de pres-
supostos fortemente tributários de um conjunto dinâmico de valores,
normas e crenças responsável por reduzir à figura do “outro” (considera-
do estranho, inferior, pecador, doente, pervertido, criminoso ou conta-
gioso) todos aqueles/as que não se sintonizassem com os arsenais cujas
referências eram e ainda são centradas no adulto, masculino, branco,
heterossexual, burguês, física e mentalmente “normal”. A escola tornou-
se, assim, um espaço em que rotineiramente circulam preconceitos que
colocam em movimento discriminações de diversas ordens. Com efeito,
classismo, racismo, sexismo, heterossexismo, homofobia, entre outros
fenômenos discriminatórios, fazem parte da cotidianidade escolar não

4. Busco contribuir para a discussão, inquietar olhares acostumados com um reiterado estado de coisas e – quiçá
– animar aqueles/as que apresentam suas retinas fatigadas, sem pretender ser exaustivo, esgotar análises ou
impor uma leitura como a única possível.
281 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

como elementos intrusos e sorrateiros. Eles, além de terem sua entrada


geralmente franqueada, agem como elementos estruturantes do espaço
escolar, onde são cotidiana e sistematicamente consentidos, cultivados e
ensinados, produzindo efeitos sobre todos/as5.
A escola é um espaço obstinado na produção, reprodução e atuali-
zação dos parâmetros da heteronormatividade – um conjunto de disposi-
ções (discursos, valores, práticas) por meio das quais a heterossexualidade
é instituída e vivenciada como única possibilidade “natural” e legítima
de expressão (Warner, 1993). Uma expressão que não é apenas sexual,
mas também de gênero. Afinal, as disposições heteronormativas voltam-
se a naturalizar, impor, sancionar e legitimar uma única sequência sexo–
gênero–sexualidade: a centrada na heterossexualidade e rigorosamente
regulada pelas normas de gênero, as quais, fundamentadas na ideologia
do “dimorfismo sexual” (a crença na existência natural de dois sexos que
se traduziriam de maneira automática e correspondente em dois gêneros
necessariamente complementares e em modalidades de desejos igual-
mente ajustadas a esta lógica binária e linear), agem como estruturadoras
de relações sociais e produtoras de subjetividades (Butler, 2003).
A heteronormatividade está na ordem das coisas, no cerne das con-
cepções curriculares; e a escola se mostra como instituição fortemente
empenhada na reafirmação e na garantia do êxito dos processos de he-
terossexualização compulsória e de incorporação das normas de gênero,
colocando sob vigilância os corpos de todos/as6.
Histórica e culturalmente transformada em norma, produzida e
reiterada, a heterossexualidade hegemônica e obrigatória torna-se o
principal sustentáculo da heteronormatividade (Louro, 2009). Não por

5. Não por acaso, ao falar de suas lembranças da vida escolar, Guacira Lopes Louro nota: “[...] as marcas perma-
nentes que atribuímos às escolas não se referem aos conteúdos programáticos [...], mas [...] a situações do dia-
a-dia, experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior [...]. As marcas que nos fazem lembrar
[...] dessas instituições têm a ver com as formas como construímos nossas identidades sociais, especialmente
nossa identidade de gênero e sexual (Louro, 1999: 18-19). Obviamente, isso vale também para a construção e
as reconfigurações de nossas identidades étnico-raciais e os processos de edificação de complexas hierarquias
em que somos enredados e que, de variadas maneiras, acionamos ou a elas resistimos.
6. As normas de gênero encontram no campo da sexualidade reprodutiva um dos mais poderosos argumentos
para justificar as teses naturalizantes acerca das identidades sexuais e de gênero e as violações dos direitos das
pessoas que pareçam delas destoar. A escola, porém, ao mesmo tempo que procura garantir o êxito da incor-
poração da norma heterossexual, também se empenha em conter manifestações da sexualidade que considera
normais (Epstein; Johnson, 2000).
Discursos fora da ordem 282

acaso, heterossexismo e homofobia agem aí, entre outras coisas, instau-


rando um regime de controle e vigilância não só da conduta sexual, mas
também das expressões e das identidades de gênero, como também das
identidades raciais. Por isso, podemos afirmar que o heterossexismo e a
homofobia são manifestações de sexismo, não raro associadas a diversos
regimes e arsenais normativos, normalizadores e estruturantes de cor-
pos, sujeitos, identidades, hierarquias e instituições, tais como o classis-
mo, o racismo, a xenofobia ( Junqueira, 2009b)7.
É oportuno observar que o termo homofobia tem sido comu-
mente empregado em referência a um conjunto de emoções negativas
(aversão, desprezo, ódio, desconfiança, desconforto ou medo) em rela-
ção a “homossexuais”8. No entanto, entendê-lo assim implica pensar o
seu enfrentamento por meio de medidas voltadas sobretudo – ou ape-
nas – a minimizar os efeitos de sentimentos e atitudes de indivíduos
ou de grupos homofóbicos em relação a uma suposta minoria. Relacio-
nar a homofobia simplesmente a um conjunto de atitudes individuais
em relação a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais implicaria
desconsiderar que as distintas formulações da matriz heterossexual, ao
imporem a heterossexualidade como obrigatória, também controlam o
gênero. Por isso, parece-me mais adequado entender a homofobia como
um fenômeno social relacionado a preconceitos, discriminação e violência
voltados contra quaisquer sujeitos, expressões e estilos de vida que indiquem
transgressão ou dissintonia em relação às normas de gênero, à matriz he-
terossexual, à heteronormatividade. E mais: seus dispositivos atuam ca-
pilarmente em processos heteronormalizadores de vigilância, controle,
classificação, correção, ajustamento e marginalização com os quais to-

7. Marcadores identitários não se constroem separadamente e sem fortes pressões sociais relativas a outros mar-
cadores sociais, e as identificações produzidas são plurais e estão imbricadas (Butler, 2002). Como Deborah
Britzman (2004) sugere, “as construções racistas do corpo exigem que ele também seja construído através do
gênero e da sexualidade, para que a categoria raça seja inteligível” (p. 165).
8. O termo homofobia, em que pesem seus limites e os equívocos que tende a gerar, conquistou espaços im-
portantes no campo político e parece ainda apresentar certo potencial que não recomenda seu abandono.
Ao buscar evitar a carga semântica da ideia de “fobia” e sublinhar aspectos políticos relativos à discriminação
social, fala-se em heterossexismo (Morin, 1977; Welzer-Lang, 2001; Herek, 2004, entre outros), homonega-
tividade (Hudson; Rickett, 1980), homopreconceito (Logan, 1996) etc. São termos que também apresentam
limites e sofrem resignificações. Para um histórico do termo heterossexismo e suas origens no pensamento de
feministas lésbicas, ver Herek (2004).
283 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

dos/as somos permanentemente levados/as a nos confrontar ( Junquei-


ra, 2007, 2009)9.
De toda a sorte, dizer que a homofobia e o heterossexismo pairam
ameaçadoramente sobre a cabeça de todos/as não implica afirmar que
afetem indivíduos e grupos de maneira idêntica ou indistinta. Embora
a norma diga respeito a todos/as e seus dispositivos de controle e vi-
gilância possam revelar-se implacáveis contra qualquer um/a, a homo-
fobia – especialmente a violência homofóbica – não deixa de ter seus
alvos preferenciais. As lógicas da hierarquização, da abjeção social e da
marginalização afetam desigualmente os sujeitos. O macho angustiado
por não cumprir com os ditames inatingíveis da masculinidade hegemô-
nica (Connell, 1995) não tenderá a ter seu status questionado se agredir
alguém considerado menos homem. Pelo contrário, com tais manifes-
tações de virilidade, além de postular-se digno representante da comu-
nidade dos “homens de verdade”, ele poderá até ser premiado. Mesmo
vítima de sua posição de dominante que ocupa (pois, “dominado pela
sua própria dominação”) e afligido pela pesada carga que ela acarreta10,
ele, para esconjurar ameaças a seus privilégios, terá à sua disposição um
arsenal heterossexista socialmente promovido.
O aporte da escola, com suas rotinas, regras, práticas e valores, a
esse processo de normalização e ajustamento heterorreguladores e de
marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à ma-
triz heterossexual é crucial. Ali, o heterossexismo e a homofobia podem
agir, de maneira sorrateira ou ostensiva, em todos os seus espaços11. Pes-

9. O termo homofobia, na acepção aqui empregada, em certa medida se aproxima da noção de heterossexismo
corrente nos Estados Unidos (Welzer-Lang, 2001), porém não a sobrepõe, pois esta ainda gira fortemente
em torno da discriminação e opressão por orientação sexual (não raro, a partir de pressupostos essencialistas),
conferindo pouca ênfase às normas de gênero e à heteronormatividade, que me parecem centrais. Ao conside-
rar tal centralidade, adotar uma acepção mais ampla e evitar abordagens individualizadoras e despolitizantes,
parece adequado empregar heterossexismo ao lado de homofobia, especialmente em referência a um fenôme-
no do qual a homofobia deriva.
10. “O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contraposição na tensão e na contensão per-
manentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer
circunstância, sua virilidade. [...] A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas
também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em caso de vingança), é, acima de
tudo, uma carga” (Bourdieu, 1999: 64).
11. Com efeito, em distintos graus, na escola podemos encontrar heterossexismo e homofobia no livro didáti-
co, nas concepções de currículo, nos conteúdos heterocêntricos, nas relações pedagógicas normalizadoras.
Explicitam-se na hora da chamada (no furor em torno do número 24, mas, sobretudo, na recusa de se chamar
Discursos fora da ordem 284

soas identificadas como dissonantes em relação às normas de gênero e à


matriz heterossexual serão postas sob a mira preferencial de uma peda-
gogia da sexualidade (Louro, 1999) geralmente traduzida, entre outras
coisas, em uma pedagogia do insulto por meio de piadas, ridicularizações,
brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualificantes e
desumanizantes. Tratamentos preconceituosos, medidas discriminató-
rias, ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais
têm sido uma constante na rotina escolar de um sem-número de pessoas,
desde muito cedo expostas às múltiplas estratégias do poder.
As “brincadeiras” heterossexistas e homofóbicas (não raro, acio-
nadas como recurso didático) constituem-se poderosos mecanismos
heterorreguladores de objetivação, silenciamento (de conteúdos curri-
culares, práticas e sujeitos), dominação simbólica, normalização, ajus-
tamento, marginalização e exclusão. Elas fazem com que tal pedagogia
do insulto seja acompanhada de tensões de invisibilização e revelação
(geralmente involuntárias), próprias de experiências do armário. Uma
pedagogia que se traduz em uma pedagogia do armário, que se estende e
produz efeitos sobre todos/as.

Vigilância das normas de gênero na pedagogia do armário

Embora para a instituição heteronormativa da sequência sexo–gêne-


ro–sexualidade concorram diversos espaços sociais e institucionais, parece
ser na escola e na família que se verificam seus momentos cruciais. Quantas
vezes, na escola, presenciamos situações em que um aluno “muito delicado”,
que parecia preferir brincar com as meninas, não jogava futebol, era alvo de
brincadeiras, piadas, deboches e xingamentos por parte dos colegas? Quan-
tas são as situações em que meninos se recusam a participar de brincadeiras
consideradas femininas ou impedem a participação de meninas e de meni-
nos considerados gays em atividades recreativas “masculinas”?

a estudante travesti pelo seu “nome social”), nas brincadeiras e nas piadas consideradas inofensivas e usadas
inclusive como instrumento didático. Estão nos bilhetinhos, carteiras, quadras, banheiros, na dificuldade de
ter acesso ao banheiro. Afloram nas salas dos professores, nos conselhos de classe, nas reuniões de pais e mes-
tres. Motivam brigas no intervalo e no final das aulas. Estão nas rotinas de ameaças, intimidação, chacotas,
moléstias, humilhações, tormentas, degradação, marginalização, exclusão etc.
285 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Processos heteronormativos de construção de sujeitos masculinos


obrigatoriamente heterossexuais se fazem acompanhar pela rejeição da
feminilidade e da homossexualidade, por meio de atitudes, discursos
e comportamentos, não raro, abertamente homofóbicos. Tais proces-
sos – que são pedagógicos e curriculares – produzem e alimentam a
homofobia e a misoginia, especialmente entre meninos e rapazes. Para
eles, o “outro” passa a ser principalmente as mulheres e os gays e, para
merecerem suas identidades masculinas e heterossexuais, deverão dar
mostras contínuas de terem exorcizado de si mesmos a feminilidade e a
homossexualidade. Eles deverão se distanciar do mundo das meninas e
ser cautelosos na expressão de intimidade com outros homens, conter a
camaradagem e as manifestações de afeto, e somente se valer de gestos,
comportamentos e ideias autorizados para o “macho” (Louro, 2004). À
disposição deles estará um arsenal nada inofensivo de piadas e brinca-
deiras (machistas, misóginas, homofóbicas etc.) e, além disso, um reper-
tório de linhas de ação de simulação, recalque, silenciamento e negação
dos desejos “impróprios”.
Na escola, indivíduos que, de algum modo, escapam da sequên-
cia heteronormativa e não conseguem ocultar este fato, arriscam-se a ser
postos à margem das preocupações centrais de uma educação suposta-
mente para todos/as (Butler, 1999). Tal marginalização, entre outras
coisas, serve para circunscrever o domínio do sujeito “normal”, pois,
como ensina Mary Douglas (1976), à medida que se procura consubs-
tanciar e legitimar a marginalização do indivíduo “diferente”, “anômalo”,
termina-se por conferir ulterior nitidez às fronteiras do conjunto dos
“normais”. A existência de um “nós-normais” não depende apenas da
existência de uma “alteridade não-normal”: é indispensável legitimar a
condição de marginalizado vivida pelo “outro” para afirmar, confirmar e
aprofundar o fosso entre os “normais” e os “diferentes”.
Por meio da tradução da pedagogia do insulto em pedagogia do armá-
rio , estudantes aprendem muito cedo a mover as alavancas do heterosse-
12

xismo e da homofobia. Desde então, as operações da heterossexualização

12. Termo cunhado por Graciela Morgade e Graciela Alonso (2008), que, no entanto, não o caracterizam.
Discursos fora da ordem 286

compulsória conduzem a processos classificatórios e hierarquizantes, nos


quais sujeitos ainda muito jovens podem ser alvo de sentenças que agem
como dispositivos de objetivação e desqualificação: “Você é gay!”. Estas
crianças e adolescentes tornam-se, então, alvo de escárnio coletivo sem
antes se identificarem como uma coisa ou outra13. Sem meios suficientes
para dissimular a diferença ou para se impor, por exemplo, o “veadinho
da escola” terá seu nome escrito em banheiros, carteiras e paredes, per-
manecerá alvo de zombaria, comentários e variadas formas de violência
que a pedagogia do armário pressupõe e dispõe, enquanto sorrateiramente
controla e interpela cada um/a.
Tais “brincadeiras” ora camuflam ora explicitam injúrias e insul-
tos, que são jogos de poder que marcam a consciência, inscrevem-se no
corpo e na memória da vítima e moldam pedagogicamente suas relações
com o mundo. Mais do que uma censura, traduzem um veredicto e agem
como dispositivos de perquirição e desapossamento (Éribon, 2008). E
mais: o insulto representa uma ameaça que paira sobre todas as cabeças,
pois pode ser estendido, por exemplo, a qualquer um que por ventura
falhar nas demonstrações de masculinidade a que é submetido sucessi-
va e interminavelmente. A pedagogia do armário interpela a todos/as.
Ora, o “armário”, esse processo de ocultação da posição de dissidência
em relação à matriz heterossexual, faz mais do que simplesmente regular
a vida social de pessoas que se relacionam sexualmente com outras do
mesmo gênero, submetendo-as ao segredo, ao silêncio e/ou expondo-as
ao desprezo público. Com efeito, ele implica uma gestão das fronteiras
da (hetero)normalidade (na qual estamos todos/as envolvidos/as e pela
qual somos afetados/as) e atua como um regime de controle de todo o dis-
positivo da sexualidade. Assim, reforçam-se as instituições e os valores
heteronormativos e privilegia-se quem se mostra devidamente confor-
mado à ordem heterossexista (Sedgwick, 2007).
Em suma, a vigilância das normas de gênero cumpre papel central
na pedagogia do armário, constituída de dispositivos e práticas curricu-
lares de controle, silenciamento, invisibilização, ocultação e não-nomea-

13. “Identificar-se como “gay” não comporta necessariamente “sair do armário”. As lógicas do armário são mais
complexas do que o binarismo dentro/fora pode levar a supor.
287 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

ção que agem como forças heterorreguladoras de dominação simbólica,


(des)legitimação de corpos, saberes, práticas e identidades, subalterni-
zação, marginalização e exclusão. E a escola, lugar do conhecimento,
mantém-se em relação à sexualidade e ao gênero, como lugar de censura,
desconhecimento, ignorância, violência, medo e vergonha14.

Vigilância de gênero e inclusão periférica

A internalização dos ditames da heterossexualidade como norma faz


com que frequentemente se confundam expressões de gênero (gestos, gos-
tos, atitudes), identidades de gênero e identidades sexuais. Não existe uma
forçosa, inescapável e linear correspondência entre esses conceitos. Com-
portamentos não correspondem necessariamente a assunções identitárias.
Bastaria notar que podemos ser ou parecer masculinos ou femininos,
masculinos e femininos, ora masculinos ora femininos, ora mais um ora
mais outro, ou não ser nem uma coisa nem outra, sem que nada disso diga
necessariamente respeito a nossa sexualidade. Para ser “homem” alguém
precisa ter pênis, ser agressivo, saber controlar a dor, ocultar as emoções,
não brincar com meninas, detestar poesia, bater em “gays”, ser heterosse-
xual ou estar sempre pronto para acossar sexualmente as mulheres? O que
o professor espera que o aluno faça para se tornar, segundo a sua visão, um
“homem”? O “homem” aí almejado não é justamente aquele frequente-
mente denunciado como violento, machista e misógino?
Em frases como “Vira homem, moleque!”, tão comumente relata-
das, além de pressupor uma única via natural de amadurecimento para
os “garotos” (que supostamente devem se tornar “homens”), subjaz a
ideia de um único modelo de masculinidade possível. Algo a ser con-
quistado pelos indivíduos masculinos, numa luta árdua por um título
a ser defendido a cada momento da vida, sob a implacável vigilância de
todos. Uma busca por um modelo inatingível, fonte permanente de in-
satisfação, angústia e violência. Reafirma-se a ideia segundo a qual rapa-

14. Para uma análise dos mitos e medos curricularmente produzidos e alimentados acerca das hetero/homossexu-
alidades, ver Britzman (1996).
Discursos fora da ordem 288

zes afeminados seriam “homossexuais”. Uma crença cuja força reside na


fé que se deposita na insistentemente reiterada doxa heteronormativa.
A sua sistemática repetição confere uma inteligibilidade ao “outro” que,
porque menos masculino, só pode ser homossexual. E vice-versa15.
No entanto, não existe apenas o modelo da masculinidade hege-
mônica, mas uma gama de possibilidades de construção e de expressão
de masculinidades, que representam distintas posições de poder nas re-
lações quer entre homens e mulheres, quer entre os próprios homens
(Connell, 1995), fortemente influenciados por fatores como classe
social, etnicidade, entre outros, apresentando diferentes resultados. As
escolas incidem nesse processo de construção na medida em que lidam
com diferentes masculinidades, especialmente ao classificarem seus es-
tudantes como bons e maus, reforçando hierarquias de classe, raça/etnia
e gênero (Carvalho, 2009).
Seria, além disso, necessário perceber que não são apenas os alunos os
que vigiam cada garoto “afeminado”, mas sim a instituição inteira. E todos
o fazem à medida que, de maneira capilar e permanente, controlam os de-
mais e a si mesmos. E mais: “Vira homem!”, mesmo que potencialmente
endereçável a todos os rapazes, costuma configurar um gesto ritual por meio
do qual seu alvo é desqualificado ao mesmo tempo em que seu enunciador
procura se mostrar como um indivíduo perfeitamente adequado às normas
de gênero. Assim, um professor que, aos berros, cobra de um aluno que vire
“homem” pode sentir-se um emissor institucionalmente autorizado, orgu-
lhosamente bem informado pelas normas de gênero.
Seria importante então sublinhar uma existência plural, dinâmica,
porosa e multifacetada de masculinidades e feminilidades. No entanto,
ao percorrer as escolas, notamos facilmente a intensa generificação dos
seus espaços e de suas práticas, e o quanto as fronteiras de gênero são ob-
sessivamente demarcadas e sublinhadas. Atividades, objetos, saberes, ati-
tudes, espaços, jogos, cores que poderiam ser indistintamente atribuídos
a meninos e a meninas tornam-se, arbitrária e binariamente, masculinos

15. Não existe em nossa cultura um correspondente do “Vire homem, moleque!” para as meninas. Em contextos
sexistas, “virar mulher” tende a ser percebido como um desfecho fadado de uma feminilidade naturalmente
incrustada nos corpos das meninas ou, ainda, a se revestir de significados negativos, pois aí “mulher” se con-
trapõe à ideia de “virgem”.
289 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

ou femininos. São generificados e transformados em elementos de dis-


tinção e classificação. Os critérios podem ser inventados no momento e
imediatamente assumidos como naturais. A criatividade é posta a serviço
da heteronormatividade. A distribuição tende a ser binária e biunívoca.
Afirmações ou expressões heteronormativas como “meninos brin-
cam com meninos e meninas com meninas”, “coisas de mulher”, entre
tantas outras, requerem problematizações. Por que uma simples boneca
ou um objeto rosa nas mãos de um garoto pode gerar desconforto e até
furor? Uma criança não pode preferir brincar com outras coisas definidas
como pertencentes a um gênero diferente do seu? Por que o atravessa-
mento ou o borramento das fronteiras de gênero é tão desestabilizador?
Seria possível existir uma masculinidade (heterossexual ou não) que per-
mitisse livre trânsito de jogos, objetos, gestos, saberes, habilidades e pre-
ferências hoje entendidas como femininas? O mesmo não pode se dar em
relação às meninas e às “coisas de homem”? São possíveis masculinidades
ou feminilidades homo ou bissexuais? Feminilidades e masculinidades
devem continuar a ser atribuídas de maneira binária? Investir na oposição
binária entre masculinidades/feminilidades ou entre hetero/homossexu-
alidades não seria exatamente reiterar ditames heteronormativos?
As escolas prestariam um grande serviço à cidadania e ao incre-
mento da qualidade da educação16 se se dedicassem à problematização
de práticas, atitudes, valores e normas que investem nas polarizações
dicotômicas, no binarismo de gênero, nas segregações, na naturaliza-
ção da heterossexualidade, na essencialização das diferenças, na fixação
e reificação de identidades, na (re)produção de hierarquias opressivas.
Isso, porém, sem desconsiderar que, graças às cambiantes operações da
heterossexualidade hegemônica e obrigatória, impugnações do binarismo
de gêneros podem ser acompanhadas de novos métodos de normalização
heterorreguladora.
De todo modo, tal regime de controle compõe um cenário de es-
tresse, intimidação, assédio, agressões, não-acolhimento e desqualifica-
ção permanentes, nos quais estudantes homossexuais ou transgêneros

16. Qualidade na educação tornou-se uma palavra de ordem em torno da qual existem entendimentos muito
distintos. Ver Gentili; Silva (1999).
Discursos fora da ordem 290

são frequentemente levados/as a incorporar a necessidade de apresenta-


rem um desempenho escolar irrepreensível, acima da média. Assim, con-
trariando a ideia de que o heterossexismo e a homofobia seriam menos
graves quando não produzem baixo rendimento, evasão ou abandono
escolar, estudantes podem ser impelidos/as a apresentarem “algo a mais”
para, quem sabe, serem tratados/as como “iguais”17. Sem obrigatoria-
mente perceber a internalização das exigências da pedagogia do armário,
podem ser instados a assumirem posturas voltadas a fazer deles/as: “o
melhor amigo das meninas”, “a que dá cola para todos”, “um exímio con-
tador de piadas”, “a mais veloz nadadora”, “o goleiro mais ágil”. Outros/
as podem dedicar-se a satisfazer e a estar sempre à altura das expectativas
dos demais, chegando até a se mostrar dispostos/as a imitar condutas ou
atitudes atribuídas a heterossexuais. Trata-se, em suma, de esforços para
angariar um salvo-conduto que possibilite uma inclusão consentida em
um ambiente hostil, uma frágil acolhida, geralmente traduzida em algo
como: “É gay, mas é gente fina”, que pode, sem dificuldade e a qualquer
momento, se reverter em: “É gente fina, mas é gay”. E aí, o intruso é
arremetido de volta ao limbo. Essa frenética busca de uma “supercom-
pensação” (Castañeda, 2007) não impede que qualquer insucesso seja
logo traduzido como sinal inequívoco de seu “defeito homossexual”18.
Na escola (e fora dela), as contínuas vigilância e repetição da doxa
heteronormativa aprofundam o processo de distinção e elevação estatu-
tária dos indivíduos pertencentes ao grupo de referência – os heterosse-
xuais –, cujos privilégios possuem múltiplas implicações. A norma os pre-
sume, e sua incessante reiteração garante maior sedimentação das crenças
associadas ao estereótipo, podendo levar a sua “profecia” a se cumprir ou
a exercer seus efeitos de poder na inclusão periférica ou na completa mar-
ginalização do “outro”, tanto em termos sociais quanto curriculares.

17. Ver Human Rights Watch (2001, item IV).


18. Isso, evidentemente, vale também para os docentes e outros/as profissionais. No caso dos professores homosse-
xuais que atuam na Educação Infantil (nível em que é escassa a presença docente masculina), às preocupações
e ansiedades em supercompensar costumam se somar aquelas de evitar suspeitas de pedofilia. Se vistos como
heterossexuais, eles tendem a ficar expostos a suspeitas de possuírem propensões à pedofilia. Se homossexuais,
as desconfianças se agravam exponencialmente; e eles tenderão a buscar refúgio no armário. Malgrado a multi-
plicidade e a instabilidade dos significados ligados a gênero e sexualidade, permanece limitado o repertório das
normas de gênero; e o estereótipo “gay-pedófilo” ainda apresenta enorme capacidade de sobrevivência.
291 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Normalização e fúria desumanizante

As normas de gênero costumam aparecer numa versão nua e crua das


pedagogias do insulto e do armário. Estudantes, docentes, funcionários/as
identificados como “não-heterossexuais” costumam ser degradados à con-
dição de “menos humanos”, merecedores da fúria homofóbica cotidiana
de seus pares e superiores, que agem na certeza da impunidade, em nome
do esforço corretivo e normalizador. Seus direitos (que direitos?) podem
ser suspensos e contra eles/as pode ser despejada toda a ira coletiva.
As pessoas aí não agem em seus próprios nomes. O que temos aí é
a escola – a instituição e não apenas os colegas e os superiores – mostran-
do-se cruamente como uma instituição disciplinar (Foucault, 1997). Seus
dispositivos, técnicas e redes de controle e de sujeição conseguem alcan-
çar, microfisicamente, cada espaço, situação e agente. Aqui, disciplinar
é mais do que controlar: é um exercício de poder que tem por objeto os
corpos e por objetivo a sua normalização, por meio da qual uma identi-
dade específica é arbitrariamente eleita e naturalizada, e passa a funcionar
como parâmetro na avaliação e na hierarquização das demais. Ela, assim,
recebe todos os atributos positivos, ao passo que as outras só poderão
ser avaliadas de forma negativa e ocupar um status inferior (Silva, 2000).
Quem não se mostrar apto a ser normalizado torna-se digno de repulsa e
abjeção, ocupando um grau inferior ou nulo de humanidade.
Isso não necessariamente significa que tudo venha ao conhecimento
dos setores formalmente responsáveis pelo controle social no âmbito esco-
lar. Numa instituição disciplinar isso não é necessário, já que ali os agentes
vigiam-se mutuamente e cada um vigia a si mesmo19. De todo modo, dian-
te de casos de opressão ostensiva, de enorme visibilidade, deveriam causar
perplexidade as cenas em que dirigentes mostram-se totalmente alheios a
eles. Como fazem para ignorá-los ou não nomeá-los enquanto tais?
Se, como disse uma docente em seu relato, “cada pessoa possui seus
valores e preconceitos”, precisaríamos nos interrogar sobre como, quan-
do e em que medida esses valores e preconceitos encontram guarida e

19. Não por acaso, Foucault (1997) nos pergunta se ainda devemos nos admirar que prisões se pareçam com
fábricas, escolas, quartéis, hospitais e que estes se pareçam com prisões.
Discursos fora da ordem 292

são consolidados no espaço e na cultura escolar e pelo saber-poder esco-


lar, isto é, na escola como instituição e, por conseguinte, no inteiro siste-
ma de ensino e nos seus currículos em ação. Ademais, o que significa que
“os considerados gays não têm direitos na sala de aula”? Diante de tais
assertivas, cabe perguntar o que os/as docentes, os/as responsáveis pela
gestão e demais autoridades consideram ser as suas responsabilidades.
Por que não se proporcionam atividades de formação e não se fomenta
a mobilização social? Por que não se busca envolver setores de fora da
escola em iniciativas permanentes voltadas à inclusão e à qualidade edu-
cacional? Afinal, projetos culturais alternativos requerem abordagens
em que a escola não seja tomada isoladamente (Epstein; Johnson, 2000).
No relato de uma diretora escolar, surge um “problema”: um aluno
de seis anos que, por ser considerado feminino, ela conclui ser homos-
sexual. Ela narra que o aconselhou a “deixar de desmunhecar para não
atrair a ira dos outros”, ignorando os processos de reificação, margina-
lização e desumanização conduzidos pela instituição, bem como toda
a violência física a que ele é rotineiramente submetido. Ora, somente
uma fúria disciplinar heterorreguladora poderia fazer alguém identifi-
car e atribuir (como em uma sentença condenatória) homossexualidade
a uma criança e, ainda, não se inquietar diante da violência a que ela
é submetida, coletiva e institucionalmente. Na esteira do processo de
desumanização do “outro”, a indiferença em relação a esse sofrimento
e a cumplicidade para com os algozes exprime um autêntico “estado de
alheamento, isto é, uma atitude de distanciamento, na qual a hostilidade
ou o vivido persecutório são substituídos pela desqualificação do sujeito
como ser moral, não reconhecido como um agente autônomo ou um
parceiro (Costa, 1997, p. 70)20. E só um profundo estado de alheamento
poderia fazer com que o curioso conselho – uma nítida expressão curri-
cular da pedagogia do armário – seja considerado aceitável21.

20. Processos de desumanização também degradam e aviltam quem agride e objetifica o “outro”, similarmente ao
que se dá nos casos de tortura, nos quais o torturador busca prazer no aniquilamento alheio, na vã esperança
de superar a própria (im)potência.
21. Diante de tamanha sanha (hetero)normalizadora, é necessário lembrar que, não raro, os processos disciplinares
por meio dos quais se busca a normalização de indivíduos são também responsáveis por impossibilitá-los de
se constituírem como sujeitos autônomos (Fonseca, 1995). Normalização, heteronomia, alheamento, juntos,
produzem, não raro, um currículo em ação a serviço do enquadramento, da desumanização e da marginalização.
293 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Casos como esse escancaram a insuficiência do discurso dos direitos


humanos frente à fúria normalizante das pedagogias do insulto e do armá-
rio. Embora partilhe da visão de que a livre expressão de gênero e do desejo
é um direito humano, penso que a busca da legitimação das homossexua-
lidades não pode ficar aprisionada a visões e posturas que traduzem uma
ânsia por uma espécie de autorização, concessão, aquiescência ou clemên-
cia, que não implica avanço ético e político algum, pois equivale a advogar
pelo reconhecimento do inevitável, e não da legitimidade de um direito 22.
Diante de tais pedagogias, é inútil falar em direitos humanos de
maneira abstrata e genérica. Não por acaso, Jaya Sharma (2008) defende
que, em favor da promoção dos direitos sexuais e do enfrentamento à
opressão sexista e homofóbica, é preciso considerar a própria heteronor-
matividade uma violação dos direitos humanos. E mais: além de duvidar
de formulações vagas e bem-intencionadas, seria indispensável confron-
tar-se diretamente com as crenças e as lógicas produtoras de opressão 23.

Negação e silenciamento do feminino e da lesbianidade

O preconceito e a discriminação contra lésbicas e a lesbianidade,


em suas diversas formas de manifestação, costumam figurar entre as me-
nos perceptíveis formas de homofobia e heterossexismo, especialmente
graças aos processos de negação e de invisibilização a que as lésbicas ge-
ralmente estão submetidas na sociedade e pela pedagogia do armário. A
invisibilidade lésbica (mais do que a feminina tout court) foi construída
ao longo da História (e na historiografia), nos discursos sobre a sexuali-
dade, a homossexualidade, a militância e a diversidade em geral. Vetores
discriminatórios que operam no mundo social contra o feminino e as
mulheres em geral se acirram no caso das lésbicas – ainda mais se forem

22. Na mesma esteira desse conformismo encontra-se a rejeição do emprego do termo “opção” ou “escolha sexual”,
em favor de uma adoção essencialista da noção de “orientação sexual”. Trata-se de uma renúncia ao debate
público qualificado e, como sublinha Alípio de Sousa Filho (2009), uma capitulação política.
23. Como reivindicar direitos humanos se você não é considerada/o humana/o? [...] Em contextos mais liberais,
há quem aceite as/os homossexuais como pessoas cujos direitos não devem ser violados. Entretanto, mesmo
neste caso, se o desconforto e o julgamento moral contra o desejo por pessoas do mesmo sexo não são confrontados,
uma mera afirmação dos direitos não será suficiente. Não existe alternativa ao enfrentamento das crenças e dos
valores subjacentes que alimentam a hostilidade (Sharma, 2008: 115).
Discursos fora da ordem 294

lésbicas pertencentes a outras (equivocadamente chamadas) minorias.


Aquelas que tendem a se tornar visíveis e identificáveis são as que são
consideradas mais masculinas e tornam-se alvo fácil da violência física.
Durante esses anos de encontros com profissionais da educação de
todo o país, algo que me chamou a atenção foi o fato de a maior parte
dos relatos de docentes referirem-se a casos de heterossexismo e homo-
fobia quase que apenas contra estudantes de sexo masculino. Isso, de um
lado, faz logo pensar na vigilância obsessiva das normas de gênero na
construção e no disciplinamento dos sujeitos portadores da identidade
de referência, a masculina heterossexual. Mas, de outro, remete-nos aos
processos de interdição e silenciamento do feminino e da mulher, seu
corpo e sua sexualidade. As normas de gênero e seus aparatos de vigilân-
cia e controle geralmente não exigem que mulheres exorcizem a mascu-
linidade e a homossexualidade para serem reconhecidas como tais. Os
“delitos femininos” são outros: o infanticídio (o aborto), a prostituição
e o adultério ( Juliano; Osborne, 2008). Nesta lógica de negação e su-
balternização do feminino e do corpo da mulher, a lesbianidade nem
sequer existiria como alternativa.
No entanto, nas escolas o beijo entre as meninas – o “selinho” – tem
sido motivo de preocupação para muitos/as dirigentes escolares. A peda-
gogia do armário lhes oferece amparo curricular: de um lado, um discurso
procura esvaziá-lo de seu possível conteúdo transgressivo e desestabiliza-
dor, banalizando-o, definindo-o como “moda”, “coisa passageira”; de ou-
tro, dispõe de medidas disciplinares para inibi-lo e cerceá-lo24.
Em sociedades muito hierarquizadas e nas quais a democracia ain-
da não se consolidou, não é incomum a naturalização de diversas mani-
festações violentas. É o caso do estupro e da violência contra as mulheres
em geral e, de maneira pulsante, nas situações em que a vítima “não é
bem uma vítima”, mas “alguém que foi atrás de encrenca” e que “recebeu
o que merecia”. Do contrário, como entender o silêncio que existe em
torno de tantos assassinatos de lésbicas e travestis?

24. O fato de a sociedade aceitar certas manifestações de afeto entre as mulheres costuma ser percebido como uma
maior tolerância em relação à lesbianidade. Ledo engano. O que talvez esteja se tornando apenas midiatica-
mente mais palatável é o par que reúne mulheres “femininas”, brancas, em relações estáveis e sem disparidade
de classe ou geração (Borges, 2005).
295 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Creio ser preciso desestabilizar os elementos curriculares que inte-


gram um universo material e simbólico que produz e alimenta os índices
de estupro. Relatos de estupros contra lésbicas masculinas, gays femini-
nos e travestis não são tão incomuns nas escolas. São atos impregnados de
desprezo em relação às mulheres e ao feminino que exprimem um desejo
de normalização, uma ânsia para encerrar, de maneira binária, a mascu-
linidade nos homens e a feminilidade nas mulheres (Platero, 2008). Por
isso, no caso do estupro contra lésbicas, tais atos de violência heteronor-
mativa são comumente animados pela crença de que mulheres lésbicas
somente são lésbicas por não terem encontrado um homem que soubesse
“fazer o serviço direito”. Agente das pedagogias do insulto e do armário, o
estuprador de uma lésbica se veria como um pretenso agente de normali-
zação. Seria o estupro uma “oportunidade de redenção” de mulheres que
ousaram desobedecer aos cânones da matriz heterossexual? 25

E quando “meninos” não desejam se tornar “homens”?

O preconceito, a discriminação e a violência que, na escola, atin-


gem lésbicas, gays e bissexuais (entre outros) e lhes restringem direitos
básicos de cidadania, se agravam enormemente em relação a travestis e
transexuais. Essas pessoas, ao construírem seus corpos, suas maneiras de
ser, expressar-se e agir, não podem passar incógnitas, pois elas, mais do
que ninguém, não tendem a se conformar à pedagogia do armário. Não
raro, ficam sujeitas às piores formas de desprezo, abuso e violência. Por
estarem situadas nos patamares inferiores da “estratificação sexual” (Ru-
bin, 1992), seus direitos são sistematicamente negados e violados sob a
indiferença geral.

25. Estupros são truculências heterorreguladoras de afirmação masculina e heterossexual, mesmo quando um
homem estupra outro. Por meio deles, também se procura fazer as vítimas lembrarem que sexo para elas deve
permanecer “um sofrimento imposto, uma violência sofrida – nunca uma iniciativa ou um prazer” (Calligaris,
2009). Em todos os casos, são atos de tortura, rebaixamento, marginalização, desapossamento e anulação
física, social, psicológica e simbólica. Sua execução em grupo é corriqueira em situações em que o “outro” é
reduzido à condição de presa ou prêmio, atrocidades coletivas de aniquilamento heteronormativo. A força
do universo material e simbólico que o produz explica o tristemente sintomático tom de humor que reveste
a famosa frase “Estupra, mas não mata”. Expressões de humor apaziguadoras sinalizam mais concordância do
que indiferença em relação àquilo de que se ri.
Discursos fora da ordem 296

Não por acaso, diversas pesquisas têm revelado que as travestis


constituem a parcela com maiores dificuldades de permanência na esco-
la e de inserção no mercado de trabalho (Peres, 2009). Os preconceitos
e as discriminações a que estão cotidianamente submetidas incidem di-
retamente na constituição de seus perfis sociais, educacionais e econô-
micos, os quais, por sua vez, serão usados como elementos legitimadores
de ulteriores discriminações e violências contra elas. A sua exclusão da
escola passa, inclusive, pelo silenciamento curricular em torno delas.
Privadas do acolhimento afetivo, em face das suas experiências de
expulsões e abandonos por parte de seus familiares e amigos, são alvo de
inúmeras formas de violência por parte de vizinhos, conhecidos, des-
conhecidos e instituições. Com suas bases emocionais fragilizadas, tra-
vestis e transexuais, na escola, têm que encontrar forças para lidar com
o estigma e a discriminação sistemática e ostensiva por parte de colegas,
professores/as, dirigentes e servidores/as escolares (Peres, 2009). As ex-
periências de chacota, ridicularização e humilhação, as diversas formas
de opressão e os processos de segregação e guetização a que estão expos-
tas as arrasta como uma “rede de exclusão” que se fortalece, na ausência
de ações de enfrentamento ao estigma e ao preconceito, bem como de
políticas públicas que contemplem suas necessidades básicas.
Como os relatos ilustram, nas escolas elas tendem a enfrentar obs-
táculos para se matricular, participar das atividades pedagógicas, ter suas
identidades minimamente respeitadas, fazer uso das estruturas das esco-
las (os banheiros, por exemplo26) e conseguir preservar sua integridade
física. Por que pode ser tão difícil e perturbador reconhecer o direito de
uma pessoa ser tratada da forma como ela se sente confortável? O nome
social não é um apelido e representa o resgate da dignidade humana, o
reconhecimento político da legitimidade de sua identidade social.
Não raro, o currículo em ação eclode e se explicita nas atitudes
dos/as professores/as face à diferença. Com efeito, um/a docente, ao
se recusar a chamar uma estudante travesti pelo seu nome social, está
ensinando e estimulando os/as demais a adotarem atitudes hostis em

26. Na escola, banheiros são dispositivos (re)produtores de diferenciações sociais (Carvalho, 2008).
297 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

relação tanto a ela quanto à diferença/diversidade sexual em geral. Trata-


se de um dos meios mais eficazes de se traduzir a pedagogia do insulto e o
currículo em ação em processos de desumanização e exclusão.
Ao lado disso, é preciso sublinhar que a espacialização é um dos
procedimentos cruciais dos dispositivos de poder. Bem por isso, é um
dos aspectos centrais do currículo, que se verifica na esteira dos proces-
sos de divisão, distinção e classificação que este continuamente opera.
A violação do direito ao acesso ao banheiro é um exemplo que mostra
que os processos de espacialização são acompanhados de naturalizações
extremamente sutis, que se desdobram em interdições e segregações.
Uma aluna travesti dificilmente poderá, em segurança, arrumar-se
diante do espelho em um banheiro masculino. Pesquisas trazem depoi-
mentos de travestis que relatam episódios frequentes de agressões e estu-
pros nos banheiros masculinos, em que elas acabaram punidas e não os
agressores (Peres, 2009). Na escola, negar o direito do uso do banheiro
conforme a identidade de gênero de alguém (e não necessariamente se-
gundo seu sexo biológico) corresponde a negar-lhe o direito à educação.
Quem não pode ir ao banheiro não pode permanecer na escola.
Para que as pessoas transgênero (especialmente travestis ou transe-
xuais) tenham seus direitos de cidadania assegurados (entre eles o de re-
ceber uma educação de qualidade), é indispensável garantir-lhes o direi-
to de serem tratadas em conformidade com suas identidades de gênero.
O reconhecimento da legitimidade da transgeneridade é decisivo para
assegurar-lhes direito à autodeterminação de gênero e dignidade humana.

Para terminar: pedagogia do armário X qualidade da educação

A heteronormatividade está na ordem do currículo. Assim, seria


incorreto pensar que o heterossexismo e a homofobia se manifestam de
maneira fortuita ou isolada nas instituições escolares, ou como uma he-
rança, um resíduo trazido de fora, cujas manifestações a escola meramen-
te admitiria. Em vez disso, a escola consente, cultiva e promove homofobia
e heterossexismo, não só repercutindo o que se produz em outros âmbi-
tos, mas oferecendo uma contribuição decisiva para a sua atualização e o
Discursos fora da ordem 298

seu enraizamento. E mais: não raro também informados pelo racismo e


pelo classismo, e sempre atrelados às concepções postas pela heteronor-
matividade e pelas tecnologias da pedagogia do armário, heterossexismo e
homofobia atuam na estruturação deste espaço e de suas práticas pedagó-
gicas e curriculares, produzindo efeitos em todos/as.
Muitos relatos anteciparam nas crianças a homossexualidade, con-
fundindo expressão de gênero, identidade de gênero, orientação sexual e
identidade sexual, a partir da linearidade da sequência sexo–gênero–se-
xualidade. Ao mesmo tempo, os termos “homofobia” e “heterossexismo”
também não aparecem nos relatos. As possíveis razões para tal silêncio
terão a ver com as dificuldades das instituições e dos seus agentes em
falar de determinados sujeitos e em nomear certas formas de violação
de direitos. Mencionar sujeitos e violações a que estão submetidos po-
deria implicar processos de reconhecimento não só de suas existências
sociais, mas de suas condições como sujeitos de direitos27. Passo impor-
tante para se enfrentar as hierarquias e os privilégios que os processos de
invisibilização e o armário nutrem ou produzem.
Não raro, as narradoras posicionam-se como observadoras exter-
nas, apresentando dificuldade em se perceberem como parte do proble-
ma – como se as relações ali construídas, as práticas pedagógicas ado-
tadas, as normas e as rotinas institucionais não cumprissem um papel
socialmente relevante nos processos de naturalização da heterossexuali-
dade, na heterossexualização compulsória e na legitimação da marginali-
zação daqueles/as considerados/as “diferentes” ou “anormais”.
Além de uma sensação comum de isolamento e falta de respaldo
técnico e institucional para se fazer frente a uma opressão sistemática,
muitos relatos evidenciam uma ausência de indignação e uma forte
busca de autoapaziguamento. Uma mescla de ingredientes (confor-
mismo, resignação, indignação, descontentamento, dor, desconforto,
compaixão, impotência, indiferença) em meio a uma frequente falta de
motivação para ir em busca de alternativas mais eficazes, coletivamente
construídas. Orientadas pelas disposições da pedagogia do armário, as

27. Agradeço a Marco Aurélio Máximo Prado por esta sinalização.


299 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

providências tomadas são paliativas ou equivocadas e não apontam para


nenhuma maior articulação social. Muitos encaminhamentos adotados
parecem informados por um modo de ver que não leva à mudança. E,
não raro, alguns discursos perfazem um deslocamento nos processos de
atribuição de responsabilidades, que migram do grupo e da instituição,
autores da violação, para o alvo da discriminação direta. Uma ação hete-
rorreguladora da economia da culpa da pedagogia do armário.
Na esteira dessa pedagogia, as narrativas deixam transparecer um
entendimento de que respeitar o “outro” seria um gesto humanitário,
expressão de gentileza, delicadeza ou magnanimidade. Indicam uma
espécie de benevolente tolerância que deixa ilesas as hierarquias, as re-
lações de poder e a heteronormatividade. Em casos assim, pessoas com
distintos graus de preconceitos costumam se perceber dotadas de atribu-
tos positivos justamente por crerem-se portadoras de sensibilidade em
relação às vítimas, uma dose de uma espécie de compaixão, em função da
qual o “outro” recebe uma aquiescente autorização para existir, em geral
à margem e silenciado.
Na escola, antes mesmo de falarmos em respeito às diferenças (ou
de só nos limitarmos a isso, sem problematizar hierarquias e engessa-
mentos identitários), poderíamos questionar processos sociocurricula-
res e políticos por meio dos quais elas são produzidas, nomeadas, (des)
valorizadas. Isto é, não é suficiente denunciar o preconceito e apregoar
maior liberdade, é preciso desconstruir processos de normalização e de
marginalização. Atentos/as às disputas, às negociações e aos conflitos
constitutivos das posições ocupadas pelos sujeitos, evidenciaríamos e
problematizaríamos a heteronormatividade e a constante reiteração das
normas regulatórias voltadas a fazer crer na suposta estabilidade e na le-
gitimidade da identidade padrão, por definição, a presumida e não-pro-
blemática (Louro, 2004b). Muito além de buscar respeito28 e defender
um vago pluralismo, procuraríamos discutir e desestabilizar relações de
poder, desconstruir naturalizações, fender processos de hierarquização,

28. A noção de respeito está historicamente fundamentada no princípio da não-discriminação: respeitar é agir
com justiça e não com bondade. Nesta acepção, trata-se de um direito, dificilmente garantido apenas por via
jurídica. As leis tendem a se reconfigurar ao abrigo das transformações sociais que as engendram, e não se pode
atribuir a elas o dom de, sozinhas, produzir as mudanças.
Discursos fora da ordem 300

perturbar classificações e questionar a produção de identidades reifica-


das e diferenças desigualadoras. Ao longo de tudo isso, refletiríamos so-
bre o que o currículo e as suas verdades têm a ver com isso – e suas novas
possibilidades.
Não é de pouca monta investir na desconstrução de processos so-
ciais, políticos e epistemológicos, próprios da pedagogia do armário, por
meio dos quais alguns indivíduos e grupos se tornam normalizados ao
passo que outros são marginalizados29. Para isso, é também importante
atentar-se para o fato que processos de configuração de identidades e
hierarquias sociais nas escolas estão também relacionados à desigual-
dade na distribuição social do “sucesso” e do “fracasso” educacionais.
Embora seja previsível que ambiências preconceituosas desfavoreçam o
rendimento das pessoas que são alvo de preconceito e discriminação di-
reta, pesquisas revelam existir uma correlação negativa entre ambiência
escolar discriminatória e desempenho escolar do conjunto do alunado30.
Ao produzirem e alimentarem privilégios e discriminações, ambientes
escolares racistas, sexistas, heterossexistas e homofóbicos tendem a com-
prometer o rendimento escolar de todo o corpo discente.
Reside aí uma ulterior razão para que a busca pela qualidade na
educação não prescinda da incessante desestabilização das lógicas hierar-
quizantes, desumanizadoras e marginalizantes das formas de discrimi-
nação que atuam de maneira interconectada, merecendo enfrentamen-
tos mais atentos às suas articulações31. Ademais, o “rendimento escolar”
apenas parcialmente consiste no que é formalmente testado. Seus efeitos
são de enorme extensão e profundidade. Os discursos da pedagogia do
armário não atuam como uma transmissão de um mero conjunto abstra-
to de ideias que devem ser transpostas para a mente e a consciência, mas

29. Diante das possibilidades, descontinuidades, transgressões e subversões que o trinômio sexo–gênero–sexuali-
dade experimenta e produz, vale resistir à comodidade oferecida por concepções naturalizantes que separam
sexo da cultura e oferecem suporte a representações essencialistas, binárias e redutivistas em relação às concep-
ções de corpo, gênero, sexualidade, identidade sexual etc. (Louro, 2004b).
30. A “Pesquisa sobre preconceito e discriminação no ambiente escolar” (BRASIL, INEP, 2009) revelou que a
apresentação de altos níveis de manifestação de preconceitos e de discriminação nas escolas está relacionada à
obtenção de médias gerais mais baixas nos exames da Prova Brasil.
31. É célebre a observação de Philippe Perrenoud (2000: 149): “Se um jovem sai de uma escola obrigatória per-
suadido de que as moças, os negros ou os muçulmanos são categorias inferiores, pouco importa que saiba
gramática, álgebra ou uma língua estrangeira. A escola terá falhado drasticamente [...]”.
301 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

também como processos de inscrição material de atributos de subjetivi-


dade, no corpo. A aprendizagem escolar relaciona cognição e emoção e,
logo, implica distinções, diferenciações e sensibilidades que inscrevem
sentimentos, esperanças, expectativas, desejos, atitudes e modos de ser
que passam por processos de apropriação (Popkewitz, 2002: 192-193).
Não raro, profissionais da educação se mostram desmotivados/as,
ou se percebem expropriados, sem suficientes diretrizes ou desprovidos
de respaldo institucional para agir de maneira distinta e contraposta ao
instituído pela escola, pelo sistema de ensino ou pela sociedade. Além
disso, como todos/as, tais profissionais ao longo de suas socializações
foram feitos portadores de um formidável lastro heteronormativo, cons-
tituído de disposições dinâmicas, mas profundamente incorporadas
(Bourdieu, 1992). Não surpreende, assim, que, ao lado de tanto descon-
tentamento em relação ao mundo das escolas, seus discursos se mostrem
frequentemente informados por uma matriz de conformação e, por isso,
não se encontrem suficientemente persuadidos quanto à necessidade de
se promover mudanças nos modos de ver, pensar, agir, aprender e en-
sinar relacionados aos ditames da heteronormatividade e suas redes de
poderes e vigilância.
No entanto, é possível pensar e orientar nossas ações curriculares
em novas direções. Um número crescente de profissionais da educação
tem se mostrado disposto a problematizar e desestabilizar o heterosse-
xismo, a homofobia, o racismo e outras formas de discriminação e gestão
das fronteiras da normalidade. Eles/as promovem experiências curricu-
lares que consideram corpos, sexualidades, sujeitos, padrões culturais,
normas, valores, relações humanas e hierarquias como construções so-
ciais e históricas em contínua transformação. Confiantes na promoção
do questionamento e da reconsideração de indivíduos e sociedade sobre
si mesmos, investem na problematização das certezas, dos valores he-
gemônicos e das relações de poder, em favor da invenção dialógica das
regras e das formas de conviver, ensinar e aprender.
Para dizê-lo com De Certeau (1998), é possível reinventar perma-
nentemente o cotidiano escolar por meio de táticas criações de práticas
de vida frente às estratégias opressivas do poder. Um empenho didático
Discursos fora da ordem 302

voltado à dissolução de ortodoxias, rigidezes, ce(n)suras e hierarquias,


perturbando códigos dominantes de significação. Uma busca de uma
pedagogia mais prazerosa, que também procure dessemelhanças no que
parece homogêneo e semelhanças no aparentemente estranho. Uma pe-
dagogia que, ao desestabilizar o discurso da intim(id)ação, da delação e
do estigma, perceba nuances e enseje horizontalidades, movimentos e
olhares que não veem por antecipação.

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Sobre @s autores/as

Adriana Piscitelli é antropóloga, feminista, pesquisadora nível A


da Unicamp, no Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (pisci@uol.com.
br).É autora de “Looking for New Worlds: Brazilian Women as Interna-
tional Migrants”, Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 33:
784-793(2008); “Shifting Boundaries:Sex and Money in the Northeast
of Brazil”, Sexualities, Vol 10-4:489-500(2007). Nos últimos dez anos
têm trabalhado na integração do Brasil na transnacionalização dos mer-
cados do sexo.

Adriana Vianna é antropóloga e professora do Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade
Federal do Rio Janeiro. Desenvolveu pesquisas sobre a construção social
e gestão de “direitos” e políticas, sobretudo nas áreas de família, infância
e sexualidade. É também consultora do Centro Latino Americano em
Sexualidade e Direitos Humanos/ Instituto de Medicina Social/Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro(CLAM/IMS/UERJ).

Emerson Fernando Rasera, doutor em Psicologia pela Universida-


de de São Paulo com estágio sanduíche na University of New Hampshi-
re (EUA), é professor adjunto III da Universidade Federal de Uberlân-
dia e coordenador do projeto “Conhecer para (trans)formar: educando
pelos pares”, destinado às travestis que trabalham como profissionais do
sexo em Uberlândia. 
Discursos fora da ordem 308

Flavia do Bonsucesso Teixeira, doutora em Ciências Sociais pela


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é professora adjunta
da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia e co-
ordenadora do “Programa Em Cima do Salto: saúde, educação e cidada-
nia”, que articula atividades de pesquisa, ensino e extensão destinadas às
travestis e transexuais.

Iara Belelidoutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadu-


al de Campinas (2005), com pós-doutorado no ISCTE-Lisboa (2008).
Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e editora executiva
do Cadernos Pagu, ambos da Unicamp. Tem atuado principalmente em
temas que envolvem a mídia, a partir da perspectiva de gênero em inter-
secção com outros marcadores de diferença.

Judith Jack Halberstam é professora titular da University of Sou-


thern California. Autora de livros como Female Masculinity (1998) e In
a Queer Time and Place (2005), Halberstam também coorganizou a co-
letânea What’s Queer About Queer Studies Now? (2005), contribuindo
para estender e aprofundar as relações entre a Teoria Queer, os Estudos
Pós-Coloniais e as Ciências Sociais.

Karla Bessa é doutora em História pela Unicamp, pesquisadora


do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, professora do Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciências Sociais/Unicamp e colaboradora do
Programa de Mestrado em História da Universidade Federal de Uber-
lândia. Atua na área de pesquisa dos Estudos de Gênero e Sexualidade
aliada aosEstudos Fílmicos, com ênfase na análise de filmes e festivaisde
cinema queers. 

Larissa Pelúcio é professora de Antropologia da Universidade Es-


tadual Paulista (Unesp)/Bauru e do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Unesp/Marília. Doutora em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de São Carlos (SP), desenvolveu pós-doutorado
no Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, onde ainda atua
309 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

como pesquisadora-colaboradora. Autora de diversos artigos, publicou


também Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventi-
vo de aids (2009), resultado de sua tese de doutorado.

Márcia Arán foi professora de Psicologia do Instituto de Medici-


na Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dedicou-se a
pesquisas que buscavam desenvolver uma cartografia não-normativa da
psique, em especial a partir da experiência transexual. Faleceu em abril
de 2011, no Rio de Janeiro.

Marcia Ochoa é doutora em Antropologia pela Universidade de


Stanford. Professora do Departmento de Estudos Feministas da Univer-
sidade da California, Santa Cruz, Ochoa tem produzido investigações
que lidam com temas como transmigrações, cidadania fora de um en-
quadramento liberal e estudos de mídia.

Miriam Adelman  tem M.Phil. em Sociologia (New York Uni-


versity) e doutorado em Ciências Humanas (Universidade Federal de
Santa Catarina). É professora do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Paraná desde 1992 e cofundadora do Núcleo
de Estudos de Gênero dessa instituição.Publicou, em 2009, A voz e a
escuta: encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia con-
temporânea, e em 2010 coeditoua coletânea Mulheres, homens, olhares
e cenas, sobre representações de gênero no cinema contemporâneo.Pes-
quisa e publica sobre temáticas diversas relacionadas com gênero, cultu-
ra, corporalidade e subjetividade.

Paula Sandrine Machado é doutora em Antropologia Social pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é pro-
fessora do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. É pesquisadora
do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (NUPSEX)/
UFRGS e do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde
(NUPACS)/UFRGS. E-mail para contato: machadops@gmail.com.
Discursos fora da ordem 310

  Richard Miskolci é doutor em Sociologia pela Universidade de


São Paulo, com pós-doutorado no Department on Women’s Studies da
Universidade de Michigan. Desde 2004 é professor do Departamento e
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal
de São Carlos (SP) e coordenador do Grupo de Pesquisa Corpo, Iden-
tidades e Subjetivações (www.ufscar.br/cis). Também é pesquisador-co-
laborador do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp e membro
do corpo editorial da revista Cadernos Pagu. Coeditou com Júlio Assis
Simões o primeiro dossiê brasileiro de estudos queer (2007) e, recente-
mente, organizou o livro Marcas da diferença no ensino escolar (2010).

Rita Martins Godoy Rocha é mestranda em Psicologia pela Univer-


sidade Federal de Uberlândia; é a atual psicóloga e coordenadora técni-
ca doAmbulatório de Saúde das Travestis e Transexuais.

Roger Raupp Rios émestre e doutor em Direito (Universidade Fe-


deral do Rio Grande do Sul), professor do Mestrado em Direitos Hu-
manos da UniRitter (Porto Alegre), juiz federal, membro do CLAM
(Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos-IMS-
UERJ), do ICHRP (International Council on Human Rights Policy)
e do CNDC-LGBT (Conselho Nacional de Combate à Discrimina-
ção, da Secretaria Especial de Direitos Humanos). Principais interesses
atuais de pesquisa em Direito da Antidiscriminação e Direitos Sexuais.
Contato: roger.raupp.rios@gmail.com.

Rogério Diniz Junqueira é doutor em Sociologia das Instituições


Jurídicas e Políticas pelas universidades de Milão e Macerata (1998).
Atua como pesquisador junto ao Instituto Nacional de Estudos e Pes-
quisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). No Ministério da Edu-
cação, atuou na implementação do Programa Brasil Sem Homofobia
(2005-2008). Organizou o livro Diversidade sexual na educação: proble-
matizações sobre a homofobia nas escolas (2009).
311 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)

Rosa Oliveira  é advogada, mestre em Direito e doutora em Ci-


ências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina.  Possui
experiência em advocacia e assessoria jurídica de populações mais vul-
neráveis, na área de direitos humanos, feminismo, sexualidades, gênero,
violência contra mulher, programas de capacitação de lideranças comu-
nitárias em direitos humanos, HIV/aids e questões ligadas à população
LGBT desde 1989.
Discursos fora da ordem 312

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