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LET THE WATER BE YOUR GUIDE

MARCOS BECCARI
LET THE WATER BE YOUR GUIDE

MARCOS BECCARI
Let the water be your guide

2020 | Marcos Beccari

Creative commons:
O conteúdo desta publicação pode ser compartilhado livremente, desde que
observada a atribuição de autoria e sem propósitos comerciais.

Sobre o autor:
Marcos Namba Beccari é aquarelista e filósofo. Doutor em Educação pela
USP, atua como professor da UFPR, como coordenador do Grupo de Estudos
Discursivos em Arte e Design da UFPR (nedad.ufpr.br) e como um dos
coordenadores do site, revista e podcast Não Obstante (naoobstante.com.br).
É também colunista da revista abcDesign e autor de artigos diversos nas
áreas de arte, filosofia e design. Influenciado principalmente por Nietzsche
e Foucault, dedica-se ao ensino e à pesquisa transdisciplinar em crítica e
filosofia do design, estudos do discurso e estudos da visualidade.

Através do Instagram (@marcosbeccari), suas pinturas ganharam noto-


riedade mundial, especialmente pelo realismo técnico e uso vibrante das
cores. Com forte influência barroca e impressionista, sua obra faz referência
a mestres da aquarela como Winslow Homer, John Singer Sargent, Anders
Zorn, Stephen Scott Young e Mary White. Por atribuir fluidez e esponta-
neidade às figuras que pinta, Marcos Beccari é hoje um dos expoentes da
renovação da pintura em aquarela, tendo uma produção já prestigiada por
sociedades de arte e revistas especializadas dos E.U.A. e Europa.

www.marcosbeccari.com
sumário

5
Introdução

7
8 Pinceis
9 Tinta
11 Papel
Materiais
12 Acessórios

15
Formas 16
Valores 17
Bordas 18
Desenho
Proporções 19
24 Pinceladas

23 26
29
Camadas
Monocromática
Pintura 31 Orientações

33
Tom & 36
Temperamento
Composição 38
Cromática Cores
46 Fotografia

45 47
52
Narratividade
Planejamento
Coesão 53 Recomendações
Let the water be your guide

-4-
Introdução
OU MODO DE USAR

E
ste material é direcionado aos cursos de aquarela que eu mi-

nistro. Portanto, seu objetivo é fundamentalmente didático,

no sentido de servir primordialmente como ferramenta comple-

mentar às minhas aulas. Por isso eu tentei ser o mais econômi-

co possível no texto, deixando de lado explicações secundárias ou

mais aprofundadas. Caso se queira uma abordagem mais teórica,

indico dois livros meus: Sobre-posições,1 onde explico filosofica-

mente a minha relação com a pintura, e Antirrealismo,2 onde de-

lineio uma breve história da pintura figurativa realista.

Em meus cursos de aquarela, procuro transmitir a com-

preensão geral que eu tenho da técnica em aquarela, dando ên-

fase na iluminação e na expressividade da figura humana. A partir

de demonstrações e estudos guiados com referências fotográficas,

os/as estudantes aprendem o uso de cores e valores, bem como a

construção de harmonia e ritmo na composição da pintura. Para

além das propriedades técnicas da aquarela, valorizo o entendi-

mento integrado de todo o processo de pintura, a fim de instruir

o/a estudante a obter consistência realista e atmosferas vibrantes.

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Let the water be your guide

O que ofereço a seguir não são receitas, ata- modo a deixar a aquarela “falar” por si mesma. Desse

lhos ou regras. São apenas algumas orientações com modo, a pintura em aquarela requer um desenho

base no que eu aprendi até o momento. E o princi- certeiro, pois fazer correções compromete a pintura.

pal já foi dito pelo mestre John Singer Sargent, para A prática nos faz desenvolver uma capacidade de se

quem a aquarela é como “tirar o melhor proveito de antecipar aos erros. Na linha do que eu trabalho, em

um acidente”. De fato, trata-se de um medium que particular, é preciso também ter uma compreensão

é ao mesmo tempo elementar em sua simplicidade geral de como a anatomia humana funciona.

e ilusório em seu controle, mas também capaz de Por fim, meu maior desejo é incentivar você a

capturar elementos que fatalmente escapam do olhar pintar do seu jeito. E o ponto de partida para isso é

deliberado do artista. dedicar parte do seu tempo à pintura, seja reservan-

Por conseguinte, há dois princípios fundamen- do uma manhã por semana, ou combinando de pintar

tais que, embora pareçam contraditórios, são indis- nos finais de semana com colegas artistas, fazendo

sociáveis entre si: (1) planejar toda a pintura antes cursos, acompanhando exposições etc. Espero poder

mesmo de iniciá-la e (2) não corrigir os acidentes, de contribuir com a sua caminhada.

1. Beccari, M. Sobre-posições: ensaios sobre a insinuação pictórica. Rio de Janeiro: Áspide, 2019.
2. Beccari, M. Antirrealismo: uma breve história das aparências. Curitiba: Kindle Direct Publishing, 2019.

“A aquarela é como tirar o melhor


proveito de um acidente.”
— John S. Sargent

-6-
Materiais

Como em muitas profissões, a pintura requer

um investimento inicial em materiais, além de uma

constante pesquisa em torno das marcas e lojas espe-

cializadas. A má notícia é que materiais profissionais

de aquarela tendem a ser muito caros (às vezes mais

do que os de outras técnicas), e aqueles feitos para

estudantes são, em geral, tão distantes em qualidade

que chegam a parecer outra modelidade de pintura.

Portanto, o que posso dizer é que investir em mate-

riais profissionais é importante. Tenha em vista que,

com os devidos cuidados, eles tendem a durar bas-

tante tempo — o que acaba sendo mais econômico do

que aquele “barato que sai caro”, mesmo com o uso

frequente deles.

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Let the water be your guide

PINCÉIS

A maioria dos pincéis profissionais para A melhor maneira de guardar os pinceis é pen-

aquarela é feita com cerdas de kolinsky, marta (red durando-os de cabeça para baixo, porque isso evi-

sable) ou esquilo (petit gris, kazan) devido à sua boa ta que a água penetre na madeira (o que evita ra-

capacidade de reter água, além de serem ao mesmo chaduras e queda de pelos). Também por isso nunca

tempo resistentes e flexíveis, permitindo espon- os mantenha imersos na água, e evite deixá-los por

taneidade e controle. Existem outros pinceis feitos muito tempo de pé, com a ponta para cima. Lave os

com cerdas mais baratas, como as de cabra, texugo pinceis em água corrente, e depois os enxague com

e pônei, além das cerdas sintéticas, cuja qualidade pano ou papel, modelando as cerdas para que retor-

varia bastante — algumas marcas como a Escoda nem ao formato original. Nunca use sabão — a tinta

têm feito pinceis sintéticos muito bons. deve sair com a própria água.

Os tipos de pincel são definidos pelo formato da

ponta, sendo os mais comuns para aquarela os re-

dondos, os chatos (wash, brigth), “gota” (quill, mop,

oval) e suas variações: “língua de gato” (cat’s tongue),

amêndoa (filbert), angulado (sword) etc. Para meus

cursos, peço que os alunos tragam apenas três ti-


Ponta Ponta Ponta de
pos: redondo, chato e “gota” — sendo este o mais
“redonda” “chata” “gota”
versátil e autossuficiente. Quanto ao tamanho, infe-

lizmente não há uma numeração padrão, variando de

um fabricante para outro. Listo abaixo os pinceis que

eu recomendo em meus cursos:

• Ponta “redonda” — Winsor & Newton Series 7

(tamanhos 4-8) ou Rosemary Series 22 (tama-

nhos 7-11).

• Ponta “chata” — Raphael Series 916 (tamanhos

12-16), Escoda Óptimo Flat Wash (tamanho 3/4).

• Ponta de “gota” — Raphael Series 803 (tamanhos

1-6), Escoda Aquario Mop (tamanhos 10-14).

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Materiais

TINTA

Recomendo trabalhar apenas com linhas

profissionais de tinta aquarela, pois contêm uma


Naples Yellow Lemon Yellow
proporção maior de pigmento em relação a elemen-

tos aglutinantes, gerando assim cores mais intensas

e duradouras. Embora o nome dos pigmentos seja


Yellow Ochre Chrome Orange
padronizado, as tintas correspondentes variam (ex.

o Naples Yellow não é igual em todas as marcas), além

de haver cores exclusivas de determinadas marcas.


Burnt Sienna Van Dyck Brown
Quanto ao formato, prefiro trabalhar com tubos em

vez de pastilhas, apenas por serem mais fáceis de

manusear. Além disso, a consistência da tinta varia


Cad. Red Light Opera Rose
(opaca XX, semiopaca XX, transparente XX e semi-

transparente XX), bem como o seu grau de resistên-

cia à luz. Listo à esquerda as cores que utilizo em


Alizarin Crimson Dioxazine Purple
minha paleta e, abaixo, alguns nomes de pigmentos

sugeridos para cada cor:

Cerulean Blue Ultramarine Blue


• Amarelo: Naples Yellow, Lemon Yellow, Yellow

Ochre, Cadmium Yellow, Nickel Yellow, Indian

Royal Blue Prussian Blue


Yellow.

• Laranja: Chrome Orange, Cadmium Orange,

Quinacridone Orange, Chinese Orange, Red

Turquoise Green Indigo Orange, Sennelier Orange.

• Marrom: Burnt Sienna, Van Dyck Brown, Burnt

Umber, Raw Sienna, Raw Umber, Maroon

Forest Green May Green Perylene.

• Vermelho: Cadmium Red Light, Quinacridone

Red, Indian Red, Venetian Red, Winsor Red,

Warm Grey Neutral Tint Vermilion.

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• Rosa: Opera Rose, Alizarin Crimson, Quinacri- conforme a ocasião: uma paleta de metal dobrável

done Rose, Permanent Magenta, Rose Madder. da marca Holbein (13 cores) e um estojo de metal da

• Violeta: Dioxazine Purple, Cobalt Violet, Ultra- Schmincke (24 cores). O importante é que não seja de

marine Violet, Manganese Violet, Quinacridone plástico e que tenha uma boa área para misturar as

Violet, Helios Purple. tintas. A distribuição das cores na paleta não importa

• Azul: Cerulean Blue, Ultramarine Blue, Prus- muito, desde que você consiga se “localizar”. E não

sian Blue, Royal Blue, Indigo, Mountain Blue, vale a pena comprar estojos que já venham com um

Cobalt Blue, Phthalo Blue, Cinereous Blue. kit de cores dentro, pois na maioria das vezes são

• Verde: Turquoise Green, Forest Green, May cores diferentes das que eu listei acima. Após ter-

Green, Sap Green, Phthalo Green, Hooker’s minar de trabalhar, somente a área utilizada para a

Green, Viridian, Olive Green. mistura deve ser limpada (com água e pinceis), e o

• Cinza: Warm Grey, Neutral Tint, Greenish Um- estojo deve ser guardado em um lugar arejado. Para

ber, Paynes Grey, Sepia. evitar que as tintas ressequem no estojo, umedeça-as

com água diariamente.

As marcas de aquarela que eu recomendo são:

Sennelier, Schmincke e Winsor & Newton. Para mis-

turas as tintas, eu uso dois recipientes, revezando-os

Paleta Holbein 13 cores Estojo Schmincke 24 cores

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Materiais

PAPEL

Penso que o papel é o material mais importante

para o aquarelista. Mais do que em qualquer outra

modalidade de pintura, a qualidade do papel faz toda

a diferença na aquarela. Papéis mais baratos ten-


Grana Grossa
dem a esfarelar na segunda camada de tinta, e mui-

tos parecem ter uma película que repele a tinta. Em

contrapartida, como os papeis profissionais (100%

algodão) estão cada vez mais caros, o aquarelista

iniciante tende a ter medo de usá-lo. Bem, não tem

jeito, o papel é feito para ser usado. Para economizar


Grana Fina
no gasto, você pode trabalhar nos dois lados da folha

(não há um lado certo e um errado, embora a textura

seja diferente em cada lado).

Papeis de aquarela são vendidos em rolos, blo-

cos e folhas avulsas, e se diferenciam em três cate-

gorias de textura: grana grossa (rough), grana fina


Satinado
(cold pressed) e satinado (hot pressed). O primeiro

possui uma textura mais acentuada, o que reforça a

diferença entre pinceladas suaves e ríspidas, favore-

cendo a profundidade de campo. O papel grana fina, Os quatro lados do papel devem estar bem fixa-

prensado a frio no processo de fabricação, é muito dos durante a pintura, evitando que ele se expanda

versátil, pois permite pinceladas mais controladas, e sofra ondulações. Para isso eu utilizo fita adesiva

camadas sucessivas e um fluxo uniforme de cores. A — gosto da Scotch Blue, feita para pintura de pare-

maioria de meus trabalhos é sobre papel Arches, gra- de, que é impermeável e não prejudica o papel —, e

na fina, 300 g/m2. Já o papel satinado, que é prensado não faço nenhum tratamento prévio no papel. Alguns

a quente em sua produção, possui a superfície mais aquarelistas preferem umedecer totalmente o papel,

lisa. Por isso, ele demora mais para reter o pigmento, grampeando-o ainda molhado sobre uma armação

mas propicia conexões polidas, detalhes precisos e de madeira, de modo que a folha estique enquanto

cores luminosas. seca. Esse processo, embora mais eficiente em man-

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Let the water be your guide

ter o papel liso durante a pintura, é trabalhoso e não

faz tanta diferença em papeis de gramatura igual ou

superior à 300g. Com relação ao formato, incenti-

vo meus estudantes a pintarem em folhas grandes

(maiores que A4). No meu caso, costumo comprar

folhas avulsas, então geralmente adoto o formato

padrão de 56 x 76 cm (ou a metade: 38 x 56 cm).

Por fim, a melhor maneira de armazenar os papeis,

já pintados ou não, é por meio de uma mapoteca de

metal (antigo gaveteiro onde se guardavam mapas,

plantas e cartografias). Caso não se disponha disso,

o importante é protegê-los da umidade e da ilumi- Lapiseira Pentel 0.7 mm

nação solar.

ACESSÓRIOS

Como não dá para “apagar” a aquarela (no sen-

tido de retornar ao branco do papel) e a tinta branca

não é totalmente opaca, uma maneira de preservar Limpatipos Cretacolor

áreas brancas é aplicar, antes de iniciar a pintura,

máscara líquida: ela permite pintar livremente sobre

essas áreas e depois removê-la, como um adesivo.

Sugiro usar um pincel velho ou barato para aplicar

o líquido, porque é difícil de removê-lo depois, o que

compromete as cerdas – para evitar isso, esfregue o

pincel numa barra de sabão antes de mergulhá-lo na

máscara líquida. Ademais, é preciso ter parcimônia

no uso da máscara líquida: as áreas brancas resul-

tantes ficam muito bem delimitadas, o que tende a

parecer um tanto artificial. Algumas alternativas

para isso são: fita adesiva, que produz uma borda

mais irregular; lápis dermatográfico branco para o Máscara líquida Daniel Smith

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Materiais

caso de fios de luz; giz de cera branco para brilhos Para fazer o desenho, costumo usar uma lapi-

granulados (pois o giz cobre irregularmente a textu- seira com ponta 0,7 e grafite 2B, junto com um “lim-

ra do papel); tinta guache branca para encobrir áreas patipos” (borracha maleável) – nunca use uma bor-

já pintadas (não encobre totalmente). racha dura, de escritório, pois ela tende a quebrar as

Nunca usei cavalete para pintar, porque são fibras do papel. Para armazenar a água, qualquer re-

poucos os que inclinam o suficiente e se mantêm cipiente serve; eu gosto de usar um pequeno balde de

firmes. Se você costumar trabalhar num estúdio, metal da Holbein (15 cm de altura e 13 cm de diâme-

como eu, o ideal é ter uma grande prancheta de de- tro), que também serve para lavar os pinceis. Tam-

senho (daquelas que os arquitetos usam) com in- bém é útil ter por perto um borrifador spray de água,

clinação ajustável. Outra opção é usar uma prancheta para umedecer algumas áreas e difundir a pincelada.

de mesa, com inclinação de 30º ou 45º. Para quem Para controlar a quantidade de água carregada no

prefere trabalhar ao ar livre, é comum adaptar um pincel, utilizo um pano de alta absorção: Scotch-Brite

tripé de fotografia para um cavalete portátil: cola-se “enxuga fácil”, geralmente usado para secar pias

uma prancha de madeira no suporte para a câmera, de cozinha. Finalmente, quando não se tem muito

e encaixa-se outra prancha nas pernas do tripé, aco- tempo para realizar a pintura (como em minhas de-

modando nela os materiais. monstrações em sala de aula), um secador de cabelo

serve muito bem para acelerar a secagem do papel.

Prancheta Trident 4830 Holbein Metal Brush Washer

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Desenho
ONDE TUDO COMEÇA

Nós somos capazes de reconhecer pessoas com poucas infor-

mações visuais. E é assim que você deve começar o seu desenho:

como se estivesse reconhecendo alguém de longe, com o mínimo

possível de informações. Uma maneira de fazer isso é tentar olhar

grandes formas e não se preocupar com os detalhes. Em especial,

observe a forma da luz e da sombra, em vez de coisas e pessoas.

Assim, podemos estabelecer três elementos básicos a serem leva-

dos em conta no desenho:

• Formas (shapes): são as delimitações das grandes formas a

serem desenhadas;

• Valores (values): são as diferentes gradações que indicam luz

e sombra;

• Bordas (edges): são as fronteiras que separam a luz e a

sombra.

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Let the water be your guide

FORMAS

A primeira questão a ser pensada é a dis-

tribuição das formas no papel. É necessário distin-

guir e organizar os espaços, com atenção especial à

relação entre formas positivas (iluminadas) e negati-

vas (escuras). A dinâmica entre essas formas é o fator

determinante da composição. Por exemplo, note como

pode haver muitas composições possíveis a partir de

uma mesma fotografia ou uma pose de modelo-vivo:

dependendo do enquadramento a ser feito (no rosto,

no dorso, no corpo inteiro etc.), a dinâmica entre for-

mas positivas e negativas se altera.

Como saber qual dinâmica funciona melhor?

Verificando se ela está “equilibrada”. A noção de

equilíbrio deve ser pensada da seguinte forma: para

que qualquer coisa (ex. o nosso próprio corpo) man-

tenha-se de pé mediante a força da gravidade, é pre-

ciso que haja um equilíbrio em sua estrutura, sua

posição e suas partes. De maneira análoga, as for-

mas negativas podem ser consideras como “pesos”

visuais, e todo peso requer um contrapeso para fi-

car em equilíbrio. O gráfico abaixo esquematiza esse

conceito:

-16-
Desenho

VALORES

Embora os valores representem, em primeiro

lugar, luz e sombra, eles também indicam a dif-

erença entre planos em relação à fonte de luz. Um

cubo, por exemplo, pode ser sintetizado com apenas

dois valores (claro e escuro), pois seus planos estão

bem delimitados em cada um dos seis lados. Já uma

esfera possui infinitos planos em sua superfície, o

que requer uma gradação tonal. Coisas como pedras,

água ou rostos são mais complexas, porque possuem

planos difusos e bem delimitados ao mesmo tempo.

Isso é importante para entender que valores

tonais não representam apenas sombras projetadas,

mas antes a volumetria dos sólidos. E a maneira mais

fácil de entender essa volumetria é localizar a fonte

de luz principal, porque é a direção dessa luz o que

determina a lógica entre os planos e valores. Acon-

tece que geralmente não há uma única fonte de luz

numa fotografia e ou num modelo-vivo — por isso

é necessário localizar “mentalmente” a fonte de luz

principal, bem como entender “mentalmente” como

a volumetria em questão se torna visível sob essa luz

direcionada.

-17-
Let the water be your guide

BORDAS

As bordas podem ser classificadas em três ti- certa dramaticidade ao desenho. Outra vezes essa

pos, conforme o grau de nitidez na passagem da luz síntese pode prejudicar a descrição dos volumes, e

para a sombra: rígidas (hard edges), suaves (soft edges) nesses casos é preciso restringir as conexões de ma-

e desfocadas (lost edges). Mas tais categorias servem neira a acentuar algumas pequenas diferenças locais.

mais para a fase de pintura, uma vez que o desenho Na maioria dos casos, essa decisão pode ser

deve ser econômico e, portanto, sinalizar apenas as feita com base na hierarquia focal, isto é, distinguin-

bordas mais rígidas. Na elaboração do desenho, es- do qual será a área de interesse principal (aonde se

sas bordas são um recurso importante para conectar dirigirá o olhar do observador) e quais serão os es-

elementos que tendemos a ver como separados: na- paços secundários (que orientam o olhar ao ponto fo-

riz, sobrancelha, boca etc. A chave para obter clareza cal). A área de interesse deverá ser a mais detalhada,

no desenho é organizá-lo por meio de agrupamentos o que requer borda rígidas com poucas conexões. Por

entre formas e volumes diferentes. Mas é difícil sa- sua vez, os espaços secundários demandam bordas

ber o quão sintéticos devem ser tais agrupamentos. suaves e silhuetas mais simplificadas, tendendo a se

Às vezes é interessante exagerar nas conexões entre dispersar/desfocar à medida que se distanciam da

as formas, eliminando muitos detalhes para gerar área de interesse principal.

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Desenho

PROPORÇÃO DA FIGURA HUMANA

A figura humana requer um desenho certeiro 1. Gesture drawing: O desenho gestual é foca-

quanto às proporções. E embora haja uma infinidade do em linhas de ação, no sentido de vetores

de abordagens diferentes, até os artistas mais expe- de movimentos. O método envolve uma série

rientes cometem erros o tempo todo. Mas o objetivo de princípios e pode parecer difícil no começo,

de todos os métodos que existem é traduzir o que mas depois torna-se muito útil.

vemos em algo gerenciável. O problema é que não há 2. Envelope imaginário: Desenhar um envelope

um único método que funcione bem para todo mun- imaginário ao redor da figura ajuda a visualizar

do — algumas pessoas preferem um caminho mais a forma geral da figura. Mas o que importa aqui

solto e flexível, enquanto outras se dão melhor com é tentar “deduzir” o espaço negativo que con-

procedimentos mais regrados e controlados. Parti- forma a figura no interior do envelope.

cularmente pertenço ao primeiro grupo: procuro re- 3. Intersecção de ângulos: Trace os ângulos que

duzir tudo o que vejo a formas simplificadas como atravessam a figura, pontuando os principais

bolas, caixas e triângulos, verificando as relações vértices (pontos de intersecção). Evite linhas

entre elas. Listo a seguir alguns caminhos que po- curvas e não se prenda a detalhes, pois o obje-

dem ser úteis. tivo é mapear a proporção.

1 2 3

-19-
Let the water be your guide

4. Sólidos geométricos: Procure visualizar no metade dessa linha a altura dos quadris. Per-

corpo humano sólidos geométricos inter- ceba que o ângulo dos quadris é geralmente

ligados, considerando suas partes principais: oposto ao dos ombros. E lembre-se que a colu-

cabeça, coluna, caixa torácica, pélvis, braços e na cervical nunca está reta, ela é sempre curva.

pernas. Quando visto como uma unidade geral, 6. Diagrama: Divida a folha em quatro partes

o tronco pode ser visualizado como uma espé- iguais, formando uma “cruz”, e visualize a

cie de estrutura tubular flexível. figura centralizada nessa cruz. A ideia é que

5. Medidas relacionais: Esse caminho é indica- os eixos vertical e horizontal te auxiliem a lo-

do para poses muito verticais. Comece traçan- calizar os pontos de “ancoragem” (vértices, al-

do uma linha do topo à base, encontrando na turas e limites), a serem conectados entre si.

4 5 6

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Desenho

DICAS GERAIS PARA O DESENHO

• Seja econômico: cada traço deve ter uma função

no desenho.

• Comece com linhas longas para delimitar as

formas estruturais mais importantes, como

proporção e áreas positivas/negativas.

• Não se prenda a linhas retas ou curvas. Tente

fazer traços “gestuais” que o levem a comuni-

car melhor a forma.

• Separe tudo em luz e sombra, mesclando todas

as nuances em dois valores.

• Não refine o desenho obsessivamente. O im-

portante é mapear as coisas realmente essen-

ciais, como ângulos e estruturas.

O esquema ao lado, que eu costumo adotar, é um

misto de gusture drawing e medidas relacionais.

Começa-se com três linhas curvas: a curvatura mais

longa que percorre o corpo (A); as ligações cruzadas

entre os ombros e quadris (B e C), em forma de “8”.

Na sequência, são feitas linhas retas para indicar os

ângulos principais (ombros e quadris) e secundários

(pernas, braços, tornozelos etc.). Tais coordenadas

esfatizam o balanço e o ritmo dos traços anatômicos.

-21-
Pintura
PRINCÍPIOS BÁSICOS DA AQUARELA

Mais do que qualquer outra modalidade de pintura, a aquarela

é uma questão de timing: logo na primeira pincelada se inicia uma

“contagem regressiva” para a tinta secar. Nesse processo, é pre-

ciso saber em que momento se pode aplicar uma nova pincelada,

bem como tentar prever como as cores vão interagir e o quanto vão

clarear no decorrer da secagem. Somente o tempo de prática nos

leva a dominar esse timing. No entanto, há dois princípios bási-

cos que facilitam o aprendizado: os tipos de pincelada e a lógica

de sobreposição em três camadas. Fora isso, há inúmeras técnicas

mais específicas (como efeitos de textura, profundidade de campo

etc.), mas acredito que esses dois princípios constituem a base da

pintura em aquarela.

Além desses dois princípios, abordo neste capítulo a im-

portância dos estudos monocromáticos, e encerro pontuando al-

gumas orientações gerais para a pintura. Questões mais voltadas

às cores e à composição serão tratadas nos próximos capítulos.

-23-
Let the water be your guide

PINCELADAS

As pinceladas podem ser pensadas em termos nova camada — comento a seguir sobre a lógica de

em processo (sucessão de pinceladas) e de aplicação sobreposição de camadas. Por ora, o importante é

(modo de pincelar), sendo cada qual divido em duas entender que enquanto a tinta estiver molhada só se

categorias. deve fazer conexão, e não sobreposição.

Em termos de processo, é preciso diferenciar Em termos de aplicação, a pincelada pode ser

movimentos de conexão e de sobreposição. A cone- feita em papel úmido (wet-on-wet) ou seco (wet-

xão se dá entre pinceladas sucessivas enquanto estão on-dry). Se o papel estiver úmido, a pincelada flu-

úmidas: você vai “puxando” e modelando as formas irá suavemente e de maneira “desfocada”, isto é,

com o pincel. Além disso, a conexão também serve sem deixar rastros nítidos. Se o papel estiver seco,

para produzir gradações tonais (do claro ao escuro, a pincelada terá bordas bem delimitadas, e você terá

e vice-versa) e cromáticas (ex. passar do azul para maior controle sobre a forma. Além disso, é possível

o laranja). Já a sobreposição é quando se aplica tinta mesclar os dois efeitos no papel seco: basta umede-

sobre uma área seca de pintura, iniciando assim uma cer previamente determinadas áreas ou “puxar” uma

Gradação tonal
Conexão
por conexão

Transição tonal
Sobreposição
por sobreposição

-24-
Pintura

área já pintada, e ainda úmida, com um pincel carre- ladas wet-on-wet, por conseguinte, definem áreas

gado só com água — ou, ainda, borrifar um pouco de secundárias e planos distantes. Mas tais pinceladas

água sobre a pintura ainda úmida, embora tal pro- também são úteis para representar elementos que

cedimento seja pouco controlável. estão submersos na sombra, como a parte de um

A transição entre esses dois tipos de pinceladas rosto sombreado por um chapéu. Por fim, é possível

corresponde, em geral, à variação de foco/desfoco e subtrair do pincel o máximo de água para trabalhar

de profundidade de campo. Pinceladas wet-on-dry com sua ponta quase seca (dry brush), o que geral-

determinam a área de interesse (que atrairá o olhar) mente serve para criar texturas (como a de barba ou

e o plano focal (1º plano ou plano médio). Pince- a de vegetação).

wet-on-wet wet-on-dry dry brush

Pincelada

wet-on-wet

Pincelada

wet-on-dry

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Let the water be your guide

CAMADAS

A lógica de sobreposição em camadas é, a meu gia não se refere às cores dessas substâncias, mas às

ver, o princípio mais crucial da aquarela. Porque a suas consistências: o chá é translúcido e aguado, o

chave da aquarela consiste em saber em que ordem leite é semiopaco e “leitoso”, o mel é denso e viscoso.

as coisas devem ser colocadas na pintura. Acredito Quanto à umidade do papel, prefiro associá-la aos ti-

que Joseph Zbukvic tenha sido o primeiro a registrar pos de pincelada (conforme expliquei anteriormente),

um método para isso, que ele batizou de “Watercolor e não às camadas — é possível trabalhar tanto com

Clock” em seu livro Mastering Atmosphere and Mood wet-on-wet quanto com wet-on-dry nas duas primei-

in Watercolor. Seu relógio mostra, de um lado, cinco ras fases, sendo que somente a terceira fase (do mel)

níveis de umidade do papel (seco, quase seco, úmido, requer necessariamente o papel seco.

molhado e muito molhado) e, de outro, cinco tipos de Por que esse método é tão importante? O inici-

“consistências” da aquarela: chá, café, leite, creme ante em aquarela tende a usar a tinta com uma única

e manteiga. A ideia é que cada tipo de consistência consistência (seja a do chá, a do leite ou a do mel),

corresponda a uma das fases da secagem do papel. sem variar e sem planejar a sequência de tonali-

Embora seja um método bastante preciso (tal como dades. Desse modo, a pintura fica sem profundidade,

um relógio), ele me parece mais adequado à pintura porque tudo terá o mesmo valor tonal. O método nos

ao ar livre — pressupondo, por exemplo, que se deva faz compreender que, na aquarela, o valor tonal é

iniciar com o papel molhado, o que nem sempre é uma questão de consistência da tinta (mais do que da

necessário no caso da figura humana. própria cor) e de sobreposição de camadas (do claro

Em meu trabalho, eu adoto uma versão simpli- ao escuro). E as três consistências definidas seguem

ficada do mesmo método, reduzindo a consistência essa lógica global: cada qual nomeia uma das fases

da aquarela a três tipos: chá, leite e mel. Em pri- que, por sua vez, corresponde a uma camada. As três

meiro lugar, é preciso compreender que essa analo- fases/camadas devem seguir a seguinte ordem:

Watercolor Clock de Joseph Zbukvic Watercolor Clock adaptado para 3 fases

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Pintura

Chá Leite Mel

1. Chá: O pincel deve carregar uma proporção de mesma forma que a fase do chá, a fase do leite

50% água e 50% tinta. Esta fase é reservada tende a clarear, então procure já atingir os tons

aos valores mais claros da pintura — não con- mais escuros (sobretudo no caso de pinceladas

fundir com as cores mais claras (as fases não wet-on-wet). A fase do leite tende a ocupar 50%

regem cores). O importante é ter em mente que da área pintada e deve durar cerca de 40% do

esta camada ficará por detrás das próximas, e tempo total da pintura.

que ela clareará bastante depois de seca. A fase 3. Mel: O pincel deve carregar o mínimo possível

do chá tende a ocupar 80% da área da pintura de água, podendo inclusive aplicar tinta pura.

e deve durar cerca de 50% do tempo total da Esta fase é reservada aos valores mais escuros

pintura. e aos detalhes finais — não tente acrescentar

2. Leite: O pincel deve carregar uma proporção de meios-tons nesta etapa. A fase do mel tende a

30% água e 70% tinta. Esta fase é reservada aos ocupar 20% da área pintada e deve durar cerca

meios-tons da pintura. Mas lembre-se que, da de 10% do tempo total da pintura.

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Let the water be your guide

Considero importante não fazer mais do que Com quais tipos de pincelada? Quais serão as cores de

três fases, pois o papel pode começar a desgastar base (chá), e quais deverão ser acrescentadas? Qual

e a pintura tende a ficar muito “poluída”. Também é a área de interesse principal e quais são os planos

não se pode alterar a ordem entre as camadas, ou secundários? Tudo isso deve ser respondido antes da

mesmo tentar reforçar a camada anterior após já ter primeira pincelada. E saber quando cada uma dessas

passado para a fase seguinte. De modo geral, esse questões deverá “entrar” na pintura (isto é, medi-

método nos força a pintar “numa taca só”, sem nun- ante a qual tipo de consistência da tinta) é a chave

ca voltar atrás. Isso requer um bom planejamento para uma boa organização.

prévio: quais elementos deverão ser pintados antes?

Chá Leite Mel

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Pintura

PINTURA MONOCROMÁTICA

Veremos adiante que as cores nunca funcionam

isoladas de valores tonais. Inversamente, porém, os

valores funcionam sozinhos. Logo, estudos mono-

cromáticos são muito úteis para o planejamento de

uma pintura colorida: permitem testar rapidamente

a composição, a dinâmica entre áreas claras e escu-

ras, as pinceladas etc. São também os exercícios mais

apropriados para iniciantes, pois fixam os princípios

básicos da aquarela antes de envolver a complexi-

dade das cores. Para esse tipo de estudo, costumo

trabalhar com o pigmento Neutral Tint, que abrange

um amplo espectro de valores, mas o Sépia e o Paynes

Gray também funcionam bem — outra alternativa,

ainda, é a mistura entre Burnt Sienna e Ultramarine

Blue, que produz um azul bem escuro.

Um dos principais proveitos do estudo mono-

cromático é estabelecer o intervalo entre luz e som-

bra. Esse intervalo se refere à concentração tonal na

composição, o que é decisivo para o planejamento da

pintura. Os dois exemplos ao lado mostram inter-

valos diferentes: o de baixo possui maior concen-

tração de sombra, e o de cima, maior concentração de

luz. No caso da pintura mais escura, a referência fo-

tográfica possuía uma grande quantidade de valores

e gradações. Mas eu sabia que, se tentasse pintar

todas essas nuances, eu gastaria muito tempo e, no

final, as áreas de luz e sombra ficariam fragmentadas

e confusas. Decidi então que a luz ficaria apenas nas

bordas do rosto, para que o restante da faixa de va-

lores fosse explorado dentro do meio-tom.

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Let the water be your guide

Para a pintura de cima, eu estava mais interes- representar as nuances de luz e sombra, é preciso lo-

sado nas sutilezas das luzes e das massas em meio- calizar as grandes áreas tonais, de modo a enfatizar

tom. Isso me levou a decidir empurrar todas as som- a volumetria geral dos sólidos e mesclar o máximo de

bras para um intervalo muito estreito. Desse modo, nuances em um mínimo de valores.

enfatizei a gama de tons que perfaz a área iluminada, Por fim, a pintura monocromática também é

em vez daquela que está sob as sombras. útil para elaborar esboços em miniatura (thumbnail

Outra questão importante é saber organizar as sketches), de modo a visualizar com antecedência se

diferenças tonais. Um equívoco comum é dar mui- sua composição vai funcionar. Como o próprio nome

ta atenção a contrastes locais em vez de perceber indica, um esboço em miniatura não deve ser grande

as massas gerais de luz e sombra. Dessa maneira, a nem detalhado, devendo se focar nas formas maiores

distribuição tonal fica irregular e a pintura acaba se e na dinâmica tonal da composição. Um esboço em

parecendo mais com uma “ameixa seca” do que com miniatura, portanto, serve para planejar a dis-

uma cabeça ou um corpo humano. Imagine-se como tribuição de formas e valores. Além disso, ele tende

um escultor: você não esculpiria primeiro os detalhes a criar fusões e pinceladas espontâneas, o que mui-

para tentar reuni-los depois, mas começaria, para tas vezes acaba sendo mais atraente do que a pintura

fazer uma cabeça humana, pela forma de um ovo, finalizada. É interessante, então, analisar os pontos

e depois escavaria os orifícios até chegar nos vincos fortes do esboço e incorporá-los à pintura final.

faciais. Na pintura não é diferente: antes de tentar

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Pintura

ORIENTAÇÕES GERAIS PARA A PINTURA

• Incline sua prancheta em 30º ou 45º. Isso pos- com a maneira como você segura o pincel: se-

sibilita prever a direção da água (para baixo, gurá-lo perto das cerdas (tal como seguramos

pela gravidade), sem que ela escorra o tempo uma caneta) favorece pequenos detalhes, ao

todo. passo que segurá-lo na parte traseira favorece

pinceladas mais soltas e espontâneas.

• As cores devem ser pré-mixadas fora do papel.

Por exemplo: se você quer aplicar um azul-es- • Um erro comum é usar muita água mistura-

verdeado, você deve atingir essa cor em seu da com o pigmento, culminando numa pintu-

godê/paleta, levando-a já pronta para o papel. ra “pastel”, sem intensidade. Lembre-se que

as cores tendem a clarear bastante enquanto

• Sempre comece a pintar pela parte superior, secam, então procure chegar ao tom desejado

seguindo para baixo, como uma “impressora” logo “de primeira”.

— e reinicie o processo a cada nova camada.

Caso contrário, as pinceladas estarão lutando • Como a aquarela seca rápido, você deve aplicar

contra a gravidade. a tinta rapidamente! Quanto mais rápido, me-

lhor — e se o papel demorar para secar, use um

• Na mesma lógica da “impressora”, na medida secador de cabelo. Assim você garante um fluxo

em que você vai caminhando para baixo, pro- mais homogêneo de conexões e sopreposições,

cure também conectar as pinceladas horizon- evitando irregularidades e manchas indeseja-

talmente. Isso é importante para evitar que al- das.

gumas áreas sequem de maneira indesejada e,

assim, não permitam mais conexões. • Não tente pintar tudo o que você vê em sua

referência. Mais importante é traduzir o que

• Use pinceis grandes para formas grandes e você vê. Por exemplo, em vez de copiar exata-

pinceis pequenos para formas pequenas. Dê mente as feições de um rosto, atente-se à forma

preferência a formas grandes na fase do chá, e a pela qual a sombra se projeta nesse rosto. É isso

formas pequenas na fase do mel. E fique atento o que você deve pintar, e não o rosto em si.

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Cores
A LÓGICA DAS SENSAÇÕES

É comum que um aquarelista iniciante se sinta mais satis-

feito com seus estudos monocromáticos do que com suas pintu-

ras coloridas. A composição cromática é de fato complexa, envolve

muitos fatores e depende de um conhecimento básico em teoria da

cor. Em primeiro lugar, é preciso partir da premissa de que as cores

que pintamos são sempre uma tradução daquelas que observamos

(afinal, cor-luz não é cor-pigmento). Isso quer dizer que, na pin-

tura, não existe cor inerente — por exemplo, o verde “natural” das

folhas ou o amarelo que emana do fogo. Só há cores relacionais, isto

é, que só se tornam discerníveis mediante àquelas ao seu redor.

Sendo assim, não basta escolher as cores com base naquilo

que você pretende pintar. E ter uma grande quantidade de cores à

disposição também não garante muita coisa. Cada pigmento possui

inúmeras propriedades particulares: nível de transparência, tempo

de secagem, predominância em relação aos demais pigmentos etc.

Mas, antes de entender isso tudo, você deve partir de um enten-

dimento básico do círculo cromático para saber localizar as cores

primárias, secundárias e complementares.

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Let the water be your guide

• Cores primárias e secundárias: A ideia de cores tir a intensidade das cores, considerando o seguinte

primárias é que seja possível extrair delas to- princípio fundamental: quanto mais cores você mistu-

das as outras cores. Os pintores geralmente rar, menos intensa será a cor resultante. Suas pinturas

consideram vermelho, amarelo e azul como as parecerão mais brilhantes e vivas se você não mis-

cores mais básicas, com as quais teoricamente turar demais os pigmentos. Esse princípio nos leva a

é possível extrair as cores secundárias violeta, pensar em três atributos principais das cores: satu-

verde e laranja. ração, matiz e valor.

• Círculo Cromático: Se você posicionar as três

cores básicas nas arestas de um triângulo • Saturação (Chroma/Intensity): Quando as cores

equilátero, intercalando as cores secundárias complementares são misturadas em igual pro-

entre elas, você terá uma versão simplificada porção, resultam em um cinza neutro, que

do círculo cromático. se localiza no centro do círculo cromático. A

• Cores complementares: No círculo cromático, saturação da cor refere-se à sua distância em

as cores que tenham uma direção diretamente relação a esse centro cinza: a cor tem baixa

oposta entre si são chamadas de complemen- saturação quando está próxima do cinza, e alta

tares. Naquela versão simplificada do círculo, saturação quando está distante dele.

os pares de cores complementares são amare- • Matiz (Hue): Matiz é simplesmente o nome

lo-violeta, vermelho-verde e azul-laranja. convencional da cor, como azul ou laranja, mas

também se refere à posição da cor no perímetro

Se você organizar sua paleta com base no cír- do círculo cromático. Nesse sentido, a matiz é

culo cromático, o uso das cores na pintura se tornará a cor em seu estado mais “puro”, o que corres-

mais lógico, pois você saberá localizar as cores e pre- ponde à sua saturação máxima.

sumir suas misturas, em vez de ficar procurando um • Valor: As cores nunca estão isoladas de valores

pigmento que corresponda exatamente à cor que você tonais. E tal aspecto não deve ser confundido

quer. Mas isso ainda não é suficiente para trabalhar com saturação (o quão intensa ou acinzentada a

com as cores. Por exemplo: embora eu tenha vinte cor aparece) nem com matiz (o preto e o branco

e quatro cores disponíveis em minha paleta, geral- não estão no círculo cromático). Na aquarela, o

mente não uso mais que dez cores em uma pintura. valor não é só uma questão de pigmentos claros

Isso não apenas por uma questão de coesão composi- e escuros, mas também da quantidade de água

cional (como explico adiante), mas antes para garan- carregada no pincel.

Saturação Matiz Valor

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Cores

Acima faço um panoramana simplificado da história dos círculos cromáticos. Da esquerda para a direita: Moses Harris

(séc. XVIII), Goethe (séc. XIX), Munsell (séc. XX). O círculo de Newton não foi incluído por não tratar de cor-pigmento.

Naples Lemon May


Yellow Yellow Green

Yellow Turq.
Ochre Light
Cerulean
Chrome
Orange

Círculo Mapeamento
Blue

“mental” da paleta

Cad. Red Ultram.


Light Blue

Burnt Opera Diox.


Sienna Rose Purple

O esquema acima mostra que a teoria não corresponde perfeitamente à prática. À esquerda: o esquema “mental” que eu

faço do círculo cromático (com base no modelo de Munsell). À direita: como eu mapeio meus principais pigmentos.

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Let the water be your guide

TOM & TEMPERATURA

A maneira como você conjuga os três atribu- como entre intensidades cromáticas. Não significa

tos acima determinará dois aspectos importantes da que o resto da composição tenha que ser homogêneo,

pintura: o “tom” (ou mood) e a temperatura. O tom e sim que as variações devem estar mais dispersas.

é estabelecido por meio dos valores: trabalhar com Além disso, um trabalho mais coeso não requer

baixo contraste (ou seja, com a predominância de muitas variações de tom e temperatura. Nesse sen-

valores claros ou escuros) gera um tom mais sereno tido, gosto de pensar nessas variações em termos de

ou sóbrio; já uma pintura que perpassa os dois ex- proporção, com as seguintes expressões metafóricas:

tremos do claro-escuro terá um tom mais dinâmico. galão, litro e punhado. Uma pintura pode ser arran-

Por sua vez, a temperatura da pintura se dá por meio jada para ter um “galão” de escuridão, um “litro” de

da saturação e dos matizes. Em termos de matizes, luzes e um “punhado” de meios-tons. Outra pintura

costumamos nos referir a certas cores como quentes pode comportar um “galão” de tons médios, um “li-

ou frias. Mas a temperatura geral da composição de- tro” de luz e um “punhado” de escuridão. Os mes-

pende mais de sua saturação relativa: cada vez que mos termos podem ser aplicados à saturação: cores

uma cor intensa é introduzida em um arranjo, todas intensas, menos intensas e neutras. Não importa em

as cores prévias mudam de temperatura. quais “recipientes” você vai distribuir os valores e

Como trabalhar com o tom e a temperatura? Em intensidades, e reitero que as medidas são metafóri-

primeiro lugar, considere que nosso olho é sempre cas e bastante imprecisas. O que importa é pensar

atraído pelo contraste. Sendo assim, o ponto focal em três graus de valor/saturação, distribuindo-os de

ou centro de interesse de sua pintura deve conter a modo que um deles esteja em maior proporção que

maior variação entre valores claros e escuros, bem os demais.

“Galão” de tons médios/neutros + “litro” de

tons claros + “punhado” de turquesa escuro.

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Cores

Estudos em miniatura monocromáticos (ou embora cruciais, ainda não explicam como escolher

com poucas cores) são a melhor ferramenta para as cores para cada pintura — eis o assunto do próxi-

planejar o tom e a temperatura. Mas tais aspectos, mo tópico. Por ora, listo abaixo as orientações gerais

para a definição de tom e temperatura:

• Tudo começa estabelecendo de onde vem a fon-

te de luz dominante. O tom e a temperatura não

interferem na direção dessa luz.

• Estabelecida essa direção, deve-se perguntar:

onde está o ponto focal e como ele será des-

tacado das demais áreas?

• Com isso definido, planeje a distribuição do

tom e da temperatura: a maior parte da pintura

será constituída por valores claros ou escuros?

Por cores intensas ou acinzentadas?

• Quanto mais valores e intensidades diferentes,

menos coesa será a composição: o espectador

não saberá para onde olhar se todas as áreas

estiverem contrastantes. Por isso é necessário

organizar cores e valores.

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Let the water be your guide

COMPOSIÇÃO CROMÁTICA

Vejamos agora como escolher as cores para grande de pigmentos à sua disposição, suas possibi-

cada pintura. Em primeiro lugar, tenha em mente lidades de paletas aumentam e suas pinturas podem

que a coesão cromática da pintura depende de uma ser mais diversificadas.

paleta reduzida. Há pelo menos três razões para isso: Há muitos métodos possíveis para definir a

o olho humano enxerga mais valores do que cores gama de cores de uma pintura. No campo do design,

(pois possui muito mais bastonetes do que cones); o por exemplo, é comum definir a paleta com base em

agrupamento de muitas cores resulta em cores indis- esquemas relacionais no círculo cromático: cores

tinguíveis (do mesmo modo que a mistura de muitas complementares, tríades, análogas etc. O problema

cores acarreta em cinza neutro); uma paleta reduzida desse tipo de abordagem, quando aplicada à pintura,

nos impele a reorganizar e traduzir as cores que ve- é que ela se limita ao perímetro dos matizes, sem

mos (em vez de tentar reproduzi-las fielmente). Não indicar diretrizes de valor e saturação. Já na tradição

significa, porém, que a paleta tenha que ser reduz- acadêmica da pintura à óleo, costuma-se pensar em

ida ao máximo, ou seja, às três cores primárias. A termos de chaves cromáticas (color strings) a partir

aquarela, diferente de outros mediuns (como a pin- das cores que parecem predominar no objeto/cena

tura à óleo), não sustenta muitas variações a partir de referência: cor de fundo, da pele, da roupa etc. O

de poucas cores. Logo, a paleta reduzida em aquarela método Reilly, um pouco mais elaborado, consiste

deve conter pelo menos cinco cores e no máximo dez. em selecionar de três a seis pigmentos e, a partir da

E isso não quer dizer que você deva sempre se lim- mistura secundária entre eles, organizar pelo menos

itar a essa quantidade: se você tiver uma variedade três escalas de valores: quente, fria e neutra.

Lógica de dedução cromática a partir

do método Reilly.

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Cores

Mas o caminho mais interessante e versátil que tadas: os vértices se referem às cores principais, ao

eu conheço reside na “máscara gama” (gamut map- passo que as cores que percorrem os lados do triân-

ping), como James Gurney o descreve. Trata-se de gulo são secundárias. A região central do polígono

delimitar a gama cromática de uma pintura através aponta para a mistura de todas as cores, o que equi-

de um polígono sobreposto ao círculo cromático. Há vale à temperatura neutra da composição. Observe

pelo menos três vantagens nesse simples procedi- que essa temperatura não coincide necessariamente

mento: ele privilegia a escala de saturação (assi- com o cinza neutro (a menos que o polígono esteja

nalando, portanto, a temperatura geral); ele indica centralizado ao círculo cromático). Note também que

quais pigmentos serão utilizados (aqueles que este- os vértices não precisam se aproximar igualmente

jam próximos dos limites do polígono); e são mui- do perímetro dos matizes: um dos vértices pode ser

tas as possibilidades de demarcação (pode-se adotar mais intenso que os demais, por exemplo. Não sig-

qualquer forma poligonal, com qualquer tamanho e nifica, nesse caso, que a cor mais intensa deve ocupar

em qualquer posição no círculo cromático). a maior área da composição – essa distribuição pode

A ideia geral da máscara gama é servir como variar de muitas maneiras, como já vimos.

uma bússola de orientação cromática, e não como Pois bem, como criar uma máscara gama? Aqui

um método restritivo. O polígono mais fácil de ser devemos entender o seu caráter analítico: a máscara

aplicado é o triângulo, pois fornece coordenadas mais é sempre criada a partir de alguma referência exter-

simples. A primeira coordenada reside no perímetro na. Você pode, por exemplo, partir de uma pintura de

do triângulo, que indica quais cores devem ser ado- algum artista que você admira, ou ainda selecionar a

B B

C “A boa cor não vem apenas do que

A A
você inclui em uma composição,
D
mas também do que você deixa de
A - cores principais
B - cores secundárias fora.” — James Gurney
C - temp. neutra
D - cinza neutro

-39-
Let the water be your guide

Exemplo de máscara gama feita a partir da cena acima, do


filme The Tree (2010), e aplicada na aquarela abaixo.

cena de algum filme que possui uma bela fotografia. Estou convencido de que esse tipo de raciocínio

A partir dessa referência, você deve tentar mapear analítico é muito mais eficaz do que qualquer modelo

as cores principais, as secundárias e a temperatu- esquemático de combinação cromática. Uma paleta

ra neutra, criando uma máscara gama digital com o reduzida às cores primárias (azul, vermelho e ama-

auxílio do Photoshop. Não é um exercício fácil (rara- relo), por exemplo, é na prática um triângulo muito

mente chegamos a um recorte preciso), mas ele nos estreito dentro do círculo cromático: o vermelho e o

força a compreender melhor o círculo cromático, a amarelo estão próximos um do outro. Os resultados

dinâmica entre as cores e, principalmente, por que dessa limitação podem ser bons ou ruins, mas em

determinada composição cromática nos parece ser todo caso serão irrefletidos, pois não procedem de

tão atraente. um estudo cuidadoso de outras possibilidades. Bem

-40-
Cores

diferentes são algumas das diretrizes que Gurney diadas por cores neutras, o que corresponde à

nos fornece, e que nos levam a ponderar sobre certo forma de um diamante longo que atravessa o

“efeito narrativo” a ser aludido na pintura: círculo cromático, passando pelo centro.

• Composições mais dramáticas (como instantes

• Em composições poéticas ou sublimes (como de tensão emocional) tendem a acentuar a tem-

momentos de contemplação), geralmente pre- peratura através de duas configurações pos-

valece a configuração de uma “tríade atmos- síveis: um triângulo estreito (com a base pró-

férica”: triângulos equiláteros deslocados do xima do cinza neutro e apenas um dos vérti-

centro do círculo cromático. ces com intensidade alta) ou um triângulo largo

• Em composições de natureza épica, ou seja, (cuja base não alcança o cinza neutro, acres-

que remetem a narrativas heroicas, é comum a centando-se uma área oposta, sem misturas

predominância de cores complementares me- intermediárias).

Tríade atmosférica (poético/sublime) Triângulo estreito (dramático)

Diamante (épico) Triângulo largo (dramático)

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Let the water be your guide

Claro que as diretrizes acima são discutíveis e saber “onde encontrá-las”. E geralmente as “en-

não devem ser tomadas como receitas. O importante contramos” mais facilmente nas obras dos grandes

é perceber que tais interpretações derivam de um ex- mestres, como Vermeer ou Sargent, que nos obri-

tenso estudo analítico. Ou seja, o domínio da com- gam a pensar as cores de maneira mais ampla, isto

posição cromática é mais uma questão de repertório é, como apenas um dentre outros elementos que

do que de fórmulas. Digo para meus alunos que não só funcionam em conjunto — conforme explico no

basta saber como aplicar as cores. Antes é preciso próximo capítulo.

Exemplo de máscara gama feita a partir de um painel de

referências e aplicada nas aquarelas abaixo.

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Cores

Simulação digital de variação de máscara gama a

partir de uma mesma referência fotográfica.

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Coesão
OU CONSISTÊNCIA FIGURATIVA

Até o momento, procurei descrever uma série de elementos

importantes a serem considerados na pintura em aquarela. No en-

tanto, acredito que o mais decisivo seja o entendimento integrado

do que podemos chamar de coesão ou consistência figurativa, isto

é, uma lógica que “amarre” todos os elementos abordados até aqui.

O domínio das cores, por exemplo, não é suficiente sem uma com-

pressão mínima de desenho e composição. Mas tanto uma coisa

quanto a outra só funcionam de maneira interligada, de modo que

o resultado faça sentido de maneira global e imediata, e não arre-

dada em níveis diferentes.

Embora tudo o que vemos possa ser pintado, nem tudo o que

vemos é “bom de ser pintado”. A questão é que, enquanto o leigo

se preocupa em distinguir o que serve e o que não serve como

referência, nós devemos saber como tornar as coisas pintáveis. Em

outras palavras, precisamos entender o que faz uma pintura con-

seguir “parar de pé” por conta própria e, sobretudo, ser capaz de

chamar a nossa atenção.

-45-
Let the water be your guide

O RECURSO FOTOGRÁFICO

Ao longo deste material, insisti na ideia de que nuances e possibilidades de tom e temperatura que

a pintura deve traduzir o que vemos, em vez de mera- escapam complemente à câmera.

mente reproduzir. Mas tal tradução não deve possuir Mais precisamente, a fotografia tende a dis-

o intuito de corrigir, reconstruir ou reinventar vi- torcer a luz e a cor das seguintes maneiras: muitas

sualmente a realidade; ela deve servir, na verdade, gradações tonais são reduzidas a preto e branco; boa

justamente para vermos melhor a realidade. Ao menos parte das cores são intensificadas quanto à satu-

é assim que eu entendo o realismo figurativo, ou seja, ração; cores intermediárias e refletidas muitas vezes

a ideia de narrar a realidade por meio da pintura. não são registradas. Claro que há uma série de ma-

Devo esclarecer que, no entanto, eu não guardo neiras para contornar isso, como você pode desco-

nenhum tipo de “purismo” nessa noção de realidade. brir ao estudar fotografia e manipulação digital. De

Eu prefiro, por exemplo, trabalhar com fotografias minha parte, acho suficiente usar, como referência,

do que modelo-vivo ou cenas ao ar livre — embora pelo menos duas versões de uma mesma foto: uma

eu não duvide do valor didático e contemplativo des- com exposição mais clara, favorecendo as nuances

sas experiências. Muitos dizem que a fotografia já de sombra, e outra com exposição mais escura, o que

nos oferece tudo “pronto”: a composição, as cores, os torna mais visíveis as gradações de luz.

valores etc. Ora, isso não é verdade. Há uma série de

-46-
Coesão

NARRATIVIDADE VISUAL

Hoje em dia, temos acesso a milhões de ima-

gens de referência na internet. E, de maneira geral,

a indústria do entretenimento (cinema, games, ani-

mação etc.) expandiu o nosso horizonte imaginativo.

Ainda assim, a pintura realista segue sendo admi-

rada e praticada. Mais que isso, muitos profissionais

do audiovisual recorrem às tradições da pintura para

criar narrativas mais contundentes. Isso porque a

pintura figurativa e realista é capaz de produzir nar-

ratividade visual — e é isso o que, no fim das contas,

“amarra” tudo em virtude de uma consistência figu-

rativa da qual eu falava há pouco.

A ideia de narratividade visual não deve ser

confundida com a de “narrativa visual”, isto é, a

narração de uma história por meio de peças visuais.

Afinal, em vez de servir a uma narrativa prévia, uma

pintura realista pode, por si mesma, insinuar uma

narrativa. Esse efeito que dispensa o storytelling é o

que eu chamo de narratividade visual. Isso se mani-

festa particularmente na pintura da figura humana,

onde cada cor, valor e pincelada acaba dizendo algu-

ma coisa a respeito dele ou dela. Além disso, ao con-

trário do que pregavam os pintores acadêmicos, essa

narratividade não depende de temas históricos ou

mitológicos — quase todas as pinturas de Vermeer,

por exemplo, foram feitas em um canto de seu estú-

dio, com a luz saindo da janela à esquerda.

De maneira concisa, podemos definir quatro

níveis fundamentais que, ordenados hierarquica-

mente, sustentam a narratividade visual. Você notará

que todos esses níveis já foram abordados ao longo

deste material, embora ainda não tenham sido rela-

-47-
Let the water be your guide

cionados entre si à luz de uma estrutura coesa. Tal de temperatura (fria, quente ou neutra) ou de

estrutura é representada como uma pirâmide, o que gama (espectro do círculo cromático).

nos permite estabelecer a seguinte hierarquia: 3. Leitura: É a maneira como as coisas pintadas

assumem uma importância visual na com-

1. Arranjo: É a base composicional, composta por posição. Isso pode ser feito definindo-se um

formas e valores. Mesmo nesse nível básico é ponto focal (através da variação de bordas níti-

preciso decidir se a composição será iniciada a das e difusas) ou um fluxo dinâmico (através

partir de valores (com um intervalo tonal bem de ângulos, direções e planos de profundidade).

definido) ou de formas (com o planejamento de 4. Figuração: É quando as figuras se tornam

pesos visuais e linhas de força). reconhecíveis, como resultado dos níveis an-

2. Tom: É a conjugação das cores e da luminosi- teriores. Esse nível também abarca o possível

dade, o que estabelece a chave principal da pin- acréscimo de detalhes formais (ex. fios de ca-

tura. Esse nível pode ser articulado em termos belo) e simbólicos (ex. aliança, lágrimas etc.).

FIGURAÇÃO
detalhes

LEITURA foco fluxo


A

ÉP
AM

ICO

temp. gama
DR

TOM

ARRANJO
valores formas

ABSTR AÇÃO

-48-
Coesão

Exemplo de narratividade dramática. Exemplo de narratividade épica.

A ideia básica dessa organização é mostrar tonais, por uma temperatura acentuada e por uma

como cada nível interfere e/ou depende dos demais, leitura focal. Por sua vez, a tendência “épica” costuma

produzindo ao final consistência figurativa e narra- ser construída a partir de arranjos formais, de uma

tividade visual. Mas tal hierarquia não deve ser en- gama cromática delimitada e de um fluxo dinâmi-

tendida como sequência processual (como o método co de leitura. Diferente de James Gurney (que, como

do chá, leite e mel), e sim como um modelo teórico vimos, também aborda tais categorias), não penso

que relaciona os diversos elementos tratados ante- que haveria uma terceira categoria a ser chamada de

riormente: o arranjo é a base para se modular o tom, “poética” ou “sublime” — termos que, além de va-

que por sua vez interfere na definição da leitura, a gos, nos remetem antes à base da pirâmide, em que

qual esclarece, por fim, a figuração. Na prática, o predomina a abstração (tonal ou formal).

ideal é que os quatro níveis sejam pensados conjun- Claro que tais categoria são meramente con-

tamente no momento do planejamento da pintura, ceituais (em analogia forçada a gêneros literários) e,

de modo a guiarem previamente todas as decisões a no âmbito pragmático da pintura, não definem muita

serem tomadas. coisa com precisão. Não cabe aqui, portanto, apro-

Perceba também que cada nível, com exceção fundar essa dimensão estética e conceitual; por ora,

do último, indica duas variáveis de ênfase: valores e basta pontuar algumas diretrizes de como esse mo-

formas (no arranjo), temperatura e gama (no tom), delo da narratividade visual pode funcionar, e tam-

foco e fluxo (na leitura). Essa divisão indica dois bém como ele definitivamente não funciona. Com

eixos principais que eu identifico na construção da isso, também ficará mais clara a própria configu-

narratividade visual: o drama e o épico. A tendên- ração piramidal do modelo proposto.

cia “dramática” é geralmente pautada por arranjos

-49-
Let the water be your guide

O QUE FUNCIONA PARA A NARRATIVIDADE VISUAL

AR
R
Os dois primeiros níveis já são suficientes para obter
TOM

ANJ
narratividade, mesmo que resultem em composições

TO
O

M
mais abstratas (o que muitas vezes implica maior

LE
ITU
ARRANJO

FIG
consistência figurativa).

UR
A


ÃO
FIGURAÇÃO

LEITURA
Uma narratividade visual mostra-se consistente

quando a pintura se “sustenta” sob qualquer posição


AR

TOM OM isso é refletin-


FIGURAÇÃO
de observação (um modo de T
R

verificar
A

LEITURA
NJ

do-a no espelho e vendo se ela ainda fazLsentido).


EITU
ARRAN RA
TO
O

JO
M

LE

ARRANJO
ITU

ARRANJO
FIG
RA

UR

ÃO

FIGURAÇÃO

FIGURAÇÃO A consistência figurativa não equivale a uma “obra

prima”. Ou seja, nem todos os níveis da narratividade


LEITURA
visual precisam ser explorados, basta apenas que es-
TOM tejam bem “assentados” um sobre o outro.
ARRANJO
LEITU
ARRAN RA FIG

JO
UR A
ÇÃO

TOM
ARRANJO
LEITURA
FIGURAÇÃO FIGURAÇÃO

-50-

FIG
UR
AR
FIGURAÇÃ

R
Coesão
TOM

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NJ

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O

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ARRANJO ARRAN

FIG
RA

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ÃO
FIGURAÇÃO O QUE NÃO FUNCIONA PARA A NARRATIVIDADE VISUAL
AR

FIGURAÇÃO
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LEITURA
LEITURA
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TOM TOM ARRANJO


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FIG
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ÃO

FIG

JO
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ÇÃO

TOM
RRANJO
ARRANJO
LEITURA
FIGURAÇÃO

Começar direto pelos detalhes da figuração, tentando


FIGURAÇÃO
construir os outros níveis e elementos a partir disso.
LEITURA
LE

TOM ARRANJO
FIG
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ÃO

LEITU
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ÇÃO

TOM
ARRANJO
LEITURA
AÇÃO FIGURAÇÃO

Confundir a hierarquia entre os níveis, trabalhan-

do-os de maneira irregular ou insuficiente.

ITURA FIG
UR A
ÇÃO

TOM
ARRANJO
LEITURA
FIGURAÇÃO

Acreditar que apenas um dos níveis (em especial o da

figuração) é autossuficiente.

-51-
Let the water be your guide

PLANEJAMENTO EM 4 PASSOS

Agora que chegamos ao fim do percurso que eu 2. Por meio de um esboço em miniatura, defina o

procurei conduzir neste material, resta indicar um enquadramento e a fonte de luz principal.

caminho de planejamento de uma pintura e, por fim, 3. A partir de suas referências, faça uma máscara

pontuar algumas recomendações que entrelaçam to- gama para mapear as cores da composição.

dos os tópicos abordados. 4. Defina uma estratégia a partir da pirâmide de

narratividade visual. Com isso, você já pode

1. Organize um rol de referências, incluindo fo- iniciar a pintura!

tografias, pinturas, cenas de filmes etc.

1. Rol de Referências 2. Enquadramento e Luz

AR
RA

3. Gama Cromática 4. Narratividade


TOM Visual
NJ

TO
O

LE
ITU

ARRANJO
FIG
R

UR
A


ÃO

FIGURAÇÃO

LEITURA

TOM TOM
LEITU
ARRAN RA
JO
ARRANJO
FIGURAÇÃO

-52-
Coesão

RECOMENDAÇÕES FINAIS

1. Antes de começar a pintar, planeje ao máximo 7. Não faça correções. Nunca. Simplesmente re-

todas as suas ações. A aquarela é um acidente sista à tentação.

inevitável, mas só funciona, paradoxalmente,

ser for bem planejado. Procure visualizar todas 8. Não tenha medo de errar. Se tiver medo, você

etapas da pintura antes de iniciá-la. vai errar muito mais. É preciso estar disposto a

correr esse risco, tanto quanto a aprender com

2. Lembre-se que as cores não existem separadas os seus próprios erros.

dos valores. Não dá para fazer uma coisa sepa-

rada da outra (como, por exemplo, tentar corri- 9. Saiba quando é o momento de terminar a pin-

gir um valor tonal após a aplicação de uma cor). tura. Diferente do óleo, a aquarela nos impõe

esse momento. E frequentemente as últimas

3. Não se prenda à referência. Pense nas possíveis palavras que dizemos antes de arruinar nossa

variações de arranjos, temperatura etc. Teste pintura são: “só está faltando uma coisinha...”

essas possibilidades por meio de esboços em

miniatura. 10. Sempre tente fazer o seu melhor trabalho. Se

não for para ser o melhor, nem comece. Claro

4. Estabeleça claramente a fonte de luz e não per- que não será a sua melhor pintura — porque

ca de vista essa simples coordenada. A con- ainda haverá a próxima.

sistência da iluminação é o que garante boa

parte da pintura. 11. Busque orientação, partilhe suas descobertas,

conheça o máximo de aquarelistas que você

5. Crie intimidade com os pigmentos que você tem puder. Vamos aprender uns com os outros,

à disposição. Use uma paleta reduzida. Evite porque é isso o que faz tudo valer a pena.

misturar muitas cores ao mesmo tempo.

6. O caos não reside na pintura, mas naquilo que Com amor e respeito,

você quer pintar. A pintura reflete a sua capaci-

dade de organizar esse caos de informações.

-53-
BIBLIOGRAFIA SUGERIDA

Portrait Painting in Watercolor (Charles Reid, 1973) simplificada e dinâmica, ideal para iniciantes em

— Traz uma abordagem simples e didática para re- aquarela. https://www.amazon.com/Figure-Water-

tratos, com muitos exercícios sobre a construção da color-Simple-Fast-Focused/dp/0823016943

cabeça. Disponível para download em: https://ar-

chive.org/details/Portrait_Painting_in_Watercol- Creative Illustration (Andrew Loomis, 1947) —

or_by_Charles_Reid/. Clássico voltado à ilustração impressa, traz capítu-

los detalhados sobre valores tonais e combinações

Color and Light (James Gurney, 2010) — O livro cromáticas. https://www.amazon.com.br/Creative-

mais completo que eu conheço sobre teoria e práti- Illustration-Andrew-Loomis/dp/1845769287

ca das cores. https://www.amazon.com.br/Color-

Light-Guide-Realist-Painter/dp/0740797719. Confira Sites recomendados

também o blog do autor, Gurney Journey, que é um

poço sem fundo de conteúdo: http://gurneyjourney. Brushwork Atelier — Esse site mantido por Luiz

blogspot.com/. Celestino traz conteúdo artístico aprofundado e ao

mesmo tempo bem diversificado, como análises de

Painting Portraits and Figures in Watercolor (Mary livros, dicas de materiais, vídeos, entrevistas e cur-

White, 2011) — Um livro generoso e detalhado daque- sos. https://brushworkatelier.com/

la que eu considero a melhor aquarelista de nossa

época. https://www.amazon.com/Painting-Por- FAQ da Loish — Essa é a página mais completa que

traits-Figures-Watercolor-Whyte/dp/0823026736 eu conheço de “perguntas frequentes”. Embora Loish

seja uma artista digital, há muita informação útil

The Figure in Watercolor: Simple, Fast and Focused sobre ensino de arte, áreas de atuação e modos de

(Mel Stabin, 2002) — Traz uma abordagem mais precificar o trabalho. https://loish.net/faq/
Versão produzida em janeiro de 2020.

https://www.instagram.com/marcosbeccari

https://www.marcosbeccari.com

contato@marcosbeccari.com

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