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1º mês
A maioria da população está preocupada com o coronavírus. Quem é autônomo teme
não ter renda e quem está empregado teme a demissão. Quem tem mais de 60 anos
teme o fato de estar no grupo de risco e quem tem menos teme pelos pais e avós. E
quem tenta manter o otimismo e alguma fé diante da avalanche de notícias ruins teme
acabar soterrado pelo pessimismo e fatalismo.
Mas há sempre quem se regozije com o sofrimento humano. Não me refiro, aqui, aos
espertos que vendem lenços enquanto os outros choram ou aos estelionatários que
oferecem soro de imunidade ou coisas do gênero. Nem tampouco à contraditória
“alegria estoica” de quem sabe que a pandemia do coronavírus um dia vai passar e
também que não há o que fazer diante do pânico que se instalou no mundo – a não ser
lavar as mãos, claro.
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Me deparei pela primeira vez com essa estranha felicidade diante da morte em massa
de pessoas num artigo do filósofo Slavoj Žižek publicado no site da editora Boitempo.
Logo no começo do texto, o sempre contraditório Žižek fala dos males dos “vírus
ideológicos” para em seguida dizer que “é possível que outro vírus ideológico, este muito
mais benigno, também deva se alastrar e, com sorte, infectar a todos nós: o vírus de
começarmos a pensar em possibilidades alternativas de sociedade, possibilidades para
além do Estado-nação, e que se atualizam nas formas de cooperação e solidariedade
globais”.
Ou seja, Žižek está feliz com a pandemia de coronavírus porque, para ele, a doença e a
crise e pânico que a acompanham são uma chance de ouro de ele ver renascer e triunfar
o combalido comunismo. Na argumentação do empolgado Žižek há espaço para tudo,
desde curiosos conselhos de higiene como “não toque em livros” até a sádica
observação de que os cruzeiros, ícones do estilo de vida capitalista e para ele uma
“obscenidade”, foram um dos primeiros alvos do coronavírus.
Žižek, porém, é de um cinismo sem igual, e por isso salienta que “o ponto não é se
aproveitar sadicamente do sofrimento generalizado contanto que ele contribua com
nossa causa”, para em seguida propor não “o comunismo à moda antiga, é claro, mas
algum tipo de organização global capaz de controlar e regular a economia, bem como
limitar a soberania de Estados-nação quando assim for necessário”.
Depois, no delírio de quem sofre de uma intensa febre maoísta com pequenas pintinhas
de stalinismo espalhadas pelo corpo, Žižek argumenta que a única forma de defender a
liberdade é... abdicar da liberdade. Isto é, se render à disciplina do Estado que, para ele,
na China comunista mostrou-se eficaz em impor medidas de contenção do coronavírus.
Falácias e oportunismo
Mas nem só de Žižek vive o neomarxismo. Ele se manifesta também no pensamento
perigosamente simplório do homem comum, aquele que não dispõe de PhD nem jamais
abriu um livro na vida (e não por questões de higiene, como propõe Žižek), mas que hoje
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tem à sua disposição uma das armas mais nocivas para propagação dessa doença que
debilita o intelecto e o espírito: as redes sociais.
Já escrevi sobre o fetiche da peste – a ideia de que uma pandemia como a do coronavírus
surgiu para purificar a Humanidade, eliminando os maus e recompensando os bons. É
um fetiche ambíguo, que afeta tanto os que o rejeitam quanto os que nele chafurdam
para dar vazão a um impulso que só posso classificar como eugenista. Isto é, um
impulso que tem por base a ideia de que a Humanidade pode ser melhorada com a
eliminação dos indesejáveis.
Duas postagens chamam a atenção porque revelam toda a mesquinhez daqueles que se
deixam levar pelo mito purificador da pandemia. A primeira, do antropólogo Edgard
Piccino, diz que o coronavírus está ensinando algumas lições para a Humanidade. A
saber: “Estado mínimo não funciona; iniciativa privada não atende o interesse coletivo;
no capitalismo o lucro está acima da vida; a solidariedade é a base do bem estar comum;
e não devemos eleger dementes”. A publicação teve um Maracanã de interações, o que
só prova que a ignorância é tão ou mais nociva do que um vírus da covid-19.
Outra vertente desse triste culto que celebra o fetiche da peste é a ambiental, para a
qual o coronavírus é uma bênção maior do que qualquer New Deal Verde que uma
Ocasio-Cortez qualquer é capaz de propor. São várias as publicações que celebram a
diminuição da poluição mundial causada pela redução da atividade econômica no
mundo todo. O fato de as pessoas morrerem e empobrecerem, o que no médio e longo
prazo só gerará ainda mais poluição, não importa. O que importa é ceder à falácia da
Mãe Terra.
“Os cidadãos de Wuhan podem finalmente ouvir os pássaros cantando depois de anos,
os canais de Veneza estão limpos e cheios de peixe e dá para ver os montes Tatra a
partir de Cracóvia porque a fumaça desapareceu. Isso não é um apocalipse. É um
despertar”, escreve uma pessoa que diz estar “curando a si mesma e aos outros por
meio da arte”.
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Até Gabriela Pugliesi, famosa e influente por algum motivo que desconheço e que está
com covid-19, romantizou o vírus, anunciando-o como o arauto de uma nova era, mais
pura e igualitária. Escreveu a moça:
Hino comunista
Isso sem falar nos artistas multimilionários que, do conforto da quarentena regada a
espumante em suas mansões, gravaram um jogral com a fatídica Imagine, de John
Lennon – esse mal disfarçado hino em homenagem à utopia comunista.
A mesma utopia que, imposta na vida de 1,3 bilhão de chineses, e por meio de seu
aparato repressor, deu origem a este pandemônio viral, sem contar Holodomor, gulags e
outras aberrações cometidas em nome da solidariedade e da melhoria da espécie de
humana.
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