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Escritos

RODRIGO NATAN
2008
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Índice

Coma Metafísico
Antônia
A travessia
A Batalha da Humanidade
Quão cedo é?
O Disco Voador
Mais uma caminhada
Alice no País das Idiossincrasias
Esquecimento
Sé - São Bento
Pessoas A e B
Uma tarde má sucedida de bird watching
Texto 1
A última Flor do Sertão
Os amantes de Teruel
Texto 2
Parapeito
Viva a Monarquia
BLÉIN! Fragilidade da vida
Capítulo I
Carta de um amigo
Relatório psicanalítico de um suicida
De um rapaz extremamente apaixonado
Bipolaridade
Naturalidade
Um tatu brasileiro
Marduque
Declaração de Amor
Almir
Raquel Urbana

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Coma Metafísico

Lembro bem quando isso começou: numa tarde ensolarada e colorida


fui tomar sorvete com Cassandra. Ela pediu morango e eu, como sempre,
não resisti ao pistache. Era um sorvete cremoso e gelado, mas... Onde
estava o pistache? O sabor havia se perdido em algum lugar, aquilo parecia
mais um sorvete de chuchu, sem gosto nenhum. Reclamei ao sorveteiro e
disse que não voltaria mais.

Apesar do sorvete insosso, o dia foi cheio de sabores, luzes e cores.


Cassandra e seu cabelo vermelho faziam como sempre sentir-me vivo e
nossas conversas daquele dia continuam em minha mente até hoje. A
perspectiva de uma vida repleta de sorrisos, sons e alegria.

No dia seguinte, fomos jantar em um belo restaurante. Na volta para


casa, ela me perguntou se eu havia gostado de seu novo perfume. Respondi
que sim, embora não tivesse sentido nenhum perfume durante a noite. Ao
deixá-la em casa, recebi o beijo mais frio que eu já sentira. Quando abri os
olhos, ela continuava a me beijar, então percebi que meu tato estava
comprometido, pois não sentira que seus lábios ainda tocavam os meus. Fui
embora para casa pensando sobre essas insensibilidades que estavam me
ocorrendo. Já não sentira o gosto do pistache, o perfume e nem o beijo de
Cassandra. Minha preocupação fazia com que eu roesse as unhas, antiga
mania que nunca consegui deixar. Chegando a minha casa, percebi que
meu dedo estava ensangüentado. Eu havia roído demais a unha e não
sentira dor alguma!

Ao passar dos dias, minha insensibilidade aumentava. Eu não comia


mais pelo prazer de sentir os sabores que já não sentia. Apenas almoçava
porque eu sabia que precisava e era uma maneira de não expor à minha
família e à Cassandra minha doença, que eu imaginava que logo terminaria.

Mas minha situação foi apenas piorando e minha visão também


começou a esvaecer. Uma cortina cada vez mais escura surgiu diante meus
olhos e pela primeira vez tive a sensação de que a vida começava a fugir de
mim. A cada dia que passava, meus olhos enxergavam menos e a escuridão

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aumentava. Durante estes dias, me tranquei em casa. Para Cassandra eu
disse que estava doente e gostaria de ficar descansando por uns dias.

Certo dia, quando não havia ninguém em minha casa, percebeu que
também estava perdendo minha audição, pois o vizinho veio reclamar do
volume da música que eu estava ouvindo e que para mim parecia estar na
altura normal. Fiquei extremamente preocupado, pois realmente a doença
só piorava. Decidi ir ao hospital.

Foi uma luta caminhar pelas calçadas escuras em pleno dia, mas
como se fosse uma madrugada sem lua. Já não sentia meus pés tocarem o
chão e o som dos carros e das pessoas era apenas um barulho distante e sem
sentido para mim.

Enfim cheguei ao hospital. O médico que me atendeu se mostrou


surpreso com minha situação e parece que não entendeu bem a gravidade
da doença. Pediu para eu retornar em dois dias. Mal sabíamos nós que seria
tarde demais.

Ao acordar no dia seguinte, a cegueira era total. Abri os olhos e


surgiram apenas trevas, escuridão, negrume. Eu imaginava estar ainda
deitado em minha cama, mas como saber? Havia perdido completamente
meu tato, não sentia o colchão em minhas costas, travesseiro sob minha
cabeça nem cobertores sobre meu corpo. Minha vontade era de se mexer,
abrir a boca e falar, gritar! Pedir ajuda para sair daquele desespero que me
tomara! Na minha cabeça eu tentava gritar, mas já não podia ouvir qualquer
som, nem mesmo sentir minha boca se abrir, nem qualquer outra parte de
meu corpo.

Eu havia perdido qualquer relação com o mundo exterior à minha


mente e qualquer maneira e caminho de se contatar a vida que é por meio
dos sentidos que eu havia perdido: olfato, tato, paladar, audição e visão. Se
eu ainda conseguia falar, me movimentar? Eu não sei. Tentei com a força
de minha mente exercer comando sobre meu corpo, para de alguma
maneira me relacionar com as pessoas lá fora, mas não pude saber se
consegui.

Isso aconteceu há não sei quantos dias, quantos meses, quantos anos
e até hoje estou preso na escuridão de minha mente. A sensação de tempo
foi completamente alterada. Não posso acompanhar o correr dos dias, por
isso não sei há quanto tempo estou aqui. Pode ter ocorrido há um mês ou há
uma década.
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O desespero que tive no início já passou. Aprendi a conviver apenas
comigo mesmo. Criei um mundo próprio, paisagens próprias e pessoas
próprias. Até mesmo Cassandra continua comigo. Claro que sei que nada
mais são do que o resultado de minha imaginação, mas às vezes eles me
causam sensações semelhantes aos que me causavam antes de eu entrar
nesse coma.

O que me questiono hoje é: eu realmente perdi o mundo existente?


Ou será que, aquele mundo em que eu vivia, minha família, Cassandra, o
sorvete de pistache eram apenas uma concretização de minha própria
imaginação, o resultado de meu cérebro? Talvez eles nada mais fossem do
que minha criatividade e talvez nunca existissem realmente como outros
indivíduos próprios. E mesmo se fossem indivíduos assim como eu, qual a
diferença de tê-los pessoalmente como eu tinha antes do coma e tê-los
agora, ao recriá-los em minha mente? Pois de uma maneira ou de outra, ao
imaginá-los neste meu mundo pessoal, ainda me oferecem sensações como
outrora. O amor que tenho pela Cassandra criada por minha mente é o
mesmo que tinha pela Cassandra pré-coma. O que quer que sejam os seres
humanos, a hipótese imutável é que são apenas resultados de sensações
recebidas. Sendo assim, talvez este meu coma tenha sido uma etapa numa
evolução pessoal. Sei que posso criar meu próprio mundo a partir de meu
cérebro. Todas as pessoas (se é que elas existem) fazem isso, mas não
percebem. Todas têm mundos e universos pessoais. Talvez eu não tenha
perdido realmente meus sentidos, mas apenas perdi o poder de imaginar o
mundo concreto com antes.

E ainda vou além: imaginarei que passaram 100 anos desde meu
“coma”. Será que meu corpo ainda é vivo – se é que realmente tive um
corpo? Seria eu apenas uma mente, uma personalidade a vagar por um
universo infinito a criar seus mundos próprios? Será que realmente existem
outras mentes assim como eu? Seria eu o único ser existente, uma mente
solitária que passa a eternidade a criar universos?

O irônico é saber que tudo isto que declarei até agora será ouvido
apenas por mim mesmo. Toda minha história, desde que comecei a contar
sobre o sorvete até estas indagações, tudo isto eu disse só para mim mesmo,
pois não há ninguém mais aqui comigo. Se há alguém mais que ouviu tudo
isso, só pode ser alguém criado por mim mesmo neste meu mundo próprio
e infinito. Você que lê isto, é apenas fruto de minha imaginação?

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Bem, tais indagações ficam para outra hora, pois dentro de poucos
minutos casarei com Cassandra.

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Antônia

Há alguns anos, quando estava prestes a me formar, trabalhei em


uma fábrica que produzia garrafas térmicas. Certo dia, precisei passar
algumas horas na produção a fim de acompanhar o processo de um dos
produtos. A garrafa era praticamente toda montada à mão, passando de
funcionário a funcionário, numa linha de processo muito repetitiva. Foi
quando conheci Antônia.

Antônia

Antônia trabalha em uma fábrica de garrafas térmicas há 12 anos.


Faz parte de uma linha de montagem na qual sua função é embalar a
garrafa pronta e lançar na planilha diária alguns dados característicos de
cada item, como código de identificação, um defeito esporádico, término
de fabricação, lote, etc. É o que Antônia faz há 12 anos.

Fiz certa amizade com Antônia. Na verdade, conversamos um pouco


naqueles dias e me senti tocado por sua vida que no momento me pareceu
tão vazia. Depois de alguns meses saí daquela empresa que já não me
proporcionava o reconhecimento que eu almejava. Formei-me na faculdade
e continuei estudando ao passo que evoluía como profissional, adquirindo
respeito e progredindo de emprego a emprego.

Antônia acorda às seis da manhã, compra pão e volta para casa


onde faz e toma seu café matinal. Veste sua calça jeans, sua blusa
unicolor, seu sapato baixo e se maquia com um batom vermelho.
Religiosamente às seis e meia Antônia vai ao trabalho. Caminha por uma
hora e quinze minutos até a fábrica onde bate seu cartão de ponto e
começa seu trabalho, sempre às oito da manhã.

A mera graduação superior não era suficiente para o espaço que eu


buscava, então logo terminei a pós-graduação e o mestrado, que me
possibilitaram dar um passo bastante largo na carreira. Meus certificados e
experiências que havia adquirido nas diversas empresas em que passava me
deram uma bagagem invejável.

Durante o expediente Antônia está proibida de manter conversas


com suas colegas de trabalho para que a produção não seja prejudicada,
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mas pode ir ao banheiro, contanto que seja rapidamente e poucas vezes ao
dia.

Chegou o momento em que me senti enfim preparado para casar. Eu


já namorava há quatro anos, e com uma pequena pressão de minha noiva
marcamos a data de nosso casamento. Foi um dia espetacular. O sítio que
alugamos estava lindo aos raios de sol naquela manhã de sábado e
Jaqueline estava maravilhosa em seu vestido que havia me custado o
salário de uma semana inteira de trabalho.

Meio-dia é hora de almoço para Antônia. É quando ela aquece sua


marmita no fogão comunitário e divide uma mesa grande com as outras
operárias. Sua comida é diferente das demais. Ela evita frituras e carnes,
gorduras e açúcares, pois sofre de uma enfermidade estomacal da qual
nenhum médico, ainda que tenham cobrado caras consultas, conseguiu
diagnosticar e muito menos sanar.

A lua-de-mel foi perfeita. Passamos uma semana em Paris, alguns


dias em Londres e mais algumas semanas em nosso novo apartamento. Mas
a empolgação do casamento enfim acabou e logo nos vimos novamente
numa rotina de trabalho constante, pois Jaqueline também sempre foi muito
ativa e bem sucedida em seu emprego. Desde então a vejo esporadicamente
quando coincidimos de estar no apartamento ao mesmo tempo, algo que
não ocorre com muita freqüência.

Após o almoço Antônia retorna ao serviço para embalar produtos e


preencher os campos de uma ficha da qual não entende o significado e o
motivo, mas faz exatamente conforme a ensinaram há 12 anos.

Não que eu não ame mais Jaqueline – bem, na verdade ainda não tive
tempo de raciocinar se ainda a amo. Mas nunca brigamos e nos damos bem.
Marcamos com antecedência algumas viagens e alguns jantares em bons
restaurantes, onde temos tempo para nós mesmos e conversamos,
geralmente sobre nossos serviços.

Ao ouvir o sinal, bate seu cartão de ponto e caminha de volta para


casa por mais uma hora e meia, onde cozinha sua janta, arruma as roupas
para usar no dia seguinte, assiste a novela e dorme. Acorda às seis e meia
da manhã e retoma sua rotina.

Achamos por bem não ter filhos. Assim podemos ter mais tempo e
dinheiro para nossos investimentos. Aliás, investimentos que vão muito
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bem. Apesar de hoje ser bem sucedido profissional e financeiramente,
continuo sempre estudando e participando de seminários e eventos
internacionais, onde aumento minha rede de contatos e aplicações.

Nos finais de semana Antônia lava e passa sua roupa para usar no
trabalho, limpa a casa que se empoeirou no meio de semana, faz a compra
semanal e vê TV. No domingo vai à igreja onde participa de um grupo de
pessoas solteiras de meia-idade, vê TV e se prepara para recomeçar a
semana de trabalho.

Às vezes me vejo há 16 anos atrás e penso comigo mesmo: ‘quem


diria que aquele rapaz que sempre usava camisas pólo e que um dia
trabalhou na indústria de garrafas térmicas seria esse empresário que sou
hoje, sempre trajando elegantes ternos e fechando negócios milionários. ’

Antônia faz assim há 28 anos. Sente falta de seus irmãos que deixou
no nordeste há muito tempo atrás e de sua mãe que faleceu quando ainda
era adolescente e a grande mágoa de sua vida foi a decepção amorosa que
seu ex-marido deixou ao partir com todo o dinheiro que ela havia poupado
e nunca mais apareceu.

Hoje ao acordar no horário costumeiro e em minha cama grande e


vazia demorei alguns minutos a mais para levantar. Após tanto tempo
finalmente percebi que eu sou Antônia. Levantei e fui comprar pão. Tomei
café preto, vesti minha calça jeans, meu sapato baixo, maquiei-me com um
batom vermelho e saí.

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A travessia

Havia uma montanha


Mas eu não queria atravessá-la
Então tentei rodeá-la
Porém havia um rio
E igualmente não o quis atravessar
Voltei por onde fui
E novamente fiquei a contemplar
A montanha envolta pelo rio

Este é um pequeno texto com cara de poesia. Embora também pareça


uma poesia com cara de texto. É sobre uma montanha. Uma montanha e
um rio. Embora a montanha e o rio sejam apenas coadjuvantes para o eu
lírico, o narrador, a primeira pessoa.
O sujeito em questão inicia a narrativa nos apresentando uma singela
paisagem de apenas um ícone: a montanha.
Quando o leitor visualiza a montanha mentalmente, logo se depara,
no segundo verso, com o primeiro fato negativo do texto: a negação do
sujeito por não querer atravessá-la.
Porém, logo uma reação se apresenta: a alternativa de circundar o
obstáculo. No entanto, infelizmente o rio surge para novamente
decepcionar o leitor e o próprio indivíduo. Mais uma vez o leitor enfrenta a
negação.
Para terminar, o indivíduo opta por desistir de sua empreitada e
retorna ao início oculto, porém já imagino pelos leitores: a contemplação
da esplêndida montanha lindamente envolta pelo rio.

Este é um pequeno texto que analisa outro pequeno texto. Porém, é


uma análise que não nos leva a nada, pois suas conclusões são
completamente óbvias e não nos acrescenta nada.

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A Batalha da Humanidade

Tive sorte em encontrar esta casa praticamente intacta. Apesar de os


principais utensílios - cobertores, talheres, copos e comida - já terem sido
saqueados, provavelmente há muitos anos, encontrei na despensa alguns
enlatados que me servirão para hoje e talvez para mais uns três dias. Ainda
melhor foi encontrar água nos encanamentos, pois já havia dois dias que eu
estava sem beber. Assim como as outras casas desta região, os vidros das
janelas e das portas estão quebrados, há poeira por todos os cantos, plantas
se espalham pelos cômodos, mas não parece ter sido saqueada mais de uma
ou duas vezes. Esta é a vantagem de se viajar grandes quilômetros rumo ao
desconhecido: às vezes nos deparamos com vilas e cidades fantasmas que
há muitos anos não recebem visitas de pessoas desesperadas por abrigo e
comida, assim como eu, e nestes lugares podemos encontrar boas surpresas
como esses enlatados de conserva, cobertores, roupas e se tiver ainda mais
sorte, gasolina e automóveis que funcionem.

Por muitos meses pude viajar grandes distâncias por automóvel, de


cidade em cidade, conseguindo facilmente combustíveis em outros carros
abandonados, garagens ou antigos postos de abastecimento. Graças a isso,
hoje me encontro do outro lado do continente, onde acredito haver certa
abundância de alimentos e, espero eu, um clima mais ameno e com menos
furacões e tormentas. Há cerca de duas semanas não encontrei mais
gasolina e tive que continuar minha viagem a pé. Foram dias difíceis, mas
felizmente não encontrei ninguém na estrada. Fui cauteloso como sempre,
viajando apenas durante a noite e dormindo longe das cidades e das
rodovias.

Agora acredito estar a salvo por algum tempo nesta cidade, da qual
só tive tempo de conhecer uma pequena parte, até que alguma tribo a
encontre, tome suas casas e eu tenha que fugir no meio da noite pela
escuridão da rua antes que me achem, como tantas outras vezes já fui
obrigado a fazer. E, na verdade, o grande objetivo desta minha
peregrinação, desta minha viagem, é um dia encontrar um lugar que esteja
livre desta batalha brutal entre os sobreviventes humanos, poder avistar
alguém ao longe e caminhar a seu encontro com receptividade ao invés de
me esconder ou ao ser surpreendido por alguma pessoa, não mais lhe
alvejar com minha pistola antes que me mate. Pois só a partir de certa
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união, é que poderemos formar uma perspectiva de sobrevivência neste
mundo em que quase nada floresce.

Em muitas noites, enquanto caminho silencioso por entre a


escuridão, penso naqueles dias passados, sobre os motivos da catástrofe e
em alguma possibilidade de unir as pessoas. Infelizmente, ainda não vejo
chances de se concretizar essa reunificação, de tirar do coração dos
humanos de hoje a brutalidade proveniente do senso de sobrevivência
intrínseca de cada pessoa nascida após a destruição do mundo antigo. Sei
que sou um dos poucos que ainda têm essa mentalidade de uma raça
humana unida, pois realmente sou um dos poucos sobreviventes que viveu
no pré-guerra.

Enquanto vasculhava a casa tentando encontrar comida ou alguma


roupa, deparei com uma pilha de revistas e jornais antigos. Esses momentos
são os mais emocionantes nessas minhas invasões. São até mais
emocionantes do que encontrar esqueletos dos antigos visitantes que
morreram enquanto ainda sentiam o calor e a esperança de um mundo
totalmente diferente de hoje. Isso porque minha rotina já me fez indiferente
à morte e a corpos. Quantas pessoas tive que matar para que o cadáver
caído ao chão não fosse o meu! Meu coração acabou calejado por tanto
desastre. Mas quando me recordo dos dias antigos, em que eu era jovem,
em que o mundo punia os assassinos, em que os humanos viviam, de certa
maneira, lado a lado, acabo por me emocionar.

Eu ainda era muito jovem e não podia no momento compreender os


motivos que começavam a catástrofe. Só durante a guerra, enquanto
amadurecia é que entendi alguns detalhes que levaram a essa grande
destruição.

Há muitos anos atrás, nos últimos dias de vida de meus pais,


enquanto estávamos trancados em casa à espera de um milagre que pudesse
salvar nossas vidas, me interessei em compreender o que levara a
humanidade ao caos, e por meio de revistas e com a ajuda de meu pai,
obtive as informações que hoje poucos têm. A estabilidade econômica das
grandes potências mundiais entrou em colapso por causa de juros e de
inflações. Em muitos países a moeda perdia o valor e uma grande pobreza
generalizada se alastrou pelo mundo. A falta de água potável e comida
pioravam ainda mais a situação. A miséria e a falta de saneamento básico
fizeram com que doenças inéditas se espalhassem pelo mundo. Como
cenário para tamanho desastre econômico havia um planeta que sofria ao
limite conseqüências drásticas da poluição, do desmatamento e
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irresponsabilidades humanas. Nunca antes a Terra parecia tão furiosa com
esse desrespeito ao meio ambiente e, como resposta, ocorreu diversas
catástrofes naturais pelo mundo: terremotos, furacões, frio e calor extremo,
ondas enormes, aumento do nível do mar... O mundo estava em caos.

A pior, porém, presumida conseqüência foi a terceira grande guerra


mundial. O detalhe fatal desta guerra que a diferenciou das anteriores foi
que, desta vez, os países dispunham de armas nucleares, biológicas e
químicas. Não se imaginava que países tidos como pacíficos possuíssem
armas tão poderosas e exércitos tão vorazes. A crueldade foi levada ao
extremo. Bombas destruíam cidades e matavam centenas de milhares de
pessoas a cada dia. Os países sentiam-se obrigados a responder a cada
ataque rival com mais força e violência, criando um ciclo de morte e
destruição que só acabou após a última bomba ter explodido. A raça
humana passou por um choque que levou grande parte de suas vidas
embora e o planeta respondeu à altura: os climas foram completamente
alterados. Países tropicais tiveram sua temperatura elevada; cidades foram
submersas pelo mar; enchentes; desequilíbrio na cadeia alimentar, que fez
com que enxurradas de insetos e animais pestilentos invadissem as
cidades...

Por anos a vida foi atacada. Tudo o que havia mudou em menos de
uma década. Restara apenas um mundo destruído, tal como está até hoje.
Cidades abandonadas, destroçadas pelas bombas; um ar radioativo para
respirar; climas que tornam certas regiões inabitáveis, seja pelo frio ou pelo
calor excessivo. Mas o pior de tudo, a mais cruel herança que a catástrofe
nos legou foi a batalha constante da humanidade.
Desde que a guerra acabou não se tem mais acesso à alimentação como
antes. Não existe mais o dinheiro, muito menos as lojas de conveniências,
os supermercados, nada. A raça humana regressou ao nível de caçadora,
onde se deve lutar pela comida e lutar para não ser a comida.

Certos grupos de pessoas se formaram e criaram tribos nômades que


viajam de cidade em cidade, de país em país devorando cada migalha de
pão, sugando cada gota de água que encontram. Assim tentam criar forças
para se proteger e atacar outras tribos e invadir cidades que muitas vezes já
estão habitadas. Desta maneira, a humanidade se divide em grupos
violentos e alguns forasteiros solitários, como eu.
Logo após a catástrofe, eu mesmo fundei uma tribo. Mas naquela época, a
idéia desses grupos era apenas de sobrevivência e socialização. Era uma
maneira de nos mantermos unidos numa época difícil em que ninguém
sabia exatamente como lidar e juntando idéias e habilidades conseguíamos
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maior chance de vida. Tentamos manter essa postura o máximo possível,
mas ao passar do tempo, a alimentação foi se tornando escassa e a fome faz
o ser humano se comportar como o bicho irracional. Houve uma rebelião
dentro de nosso grupo. Os rebeldes achavam que se a tribo não mostrasse
uma postura mais agressiva em relação às demais, acabaríamos por morrer.
Sendo assim, os participantes do motim tomaram a dianteira e achei por
bem me distanciar do grupo. Prefiro não estabelecer um julgamento a
respeito desse ponto de vista agressivo, mas eu, que vivi num mundo em
que os humanos iam unidos às compras nos supermercados, não consigo
invadir uma aldeia para matar crianças e roubar comidas vencidas há mais
de vinte anos. Claro que para esses jovens revolucionários que nasceram e
cresceram num mundo rodeado pela miséria e pela lei da sobrevivência a
realidade é totalmente diferente. Eles são de uma sociedade de bichos
famintos e realmente não passam disso, por isso não os julgarei com base
na consciência humana que ainda reside em mim.

Devo confessar que a vida como forasteiro é bem mais difícil.


Somos vistos pelas tribos como simples animais de caça. Por isso vivo
escondido, viajando à noite, dormindo longe dos pontos importantes e é
também por isso que mantenho sempre comigo uma pistola carregada.

Há cerca de dois anos, enquanto saía da antiga Portugal e entrava na


Espanha com um carro que eu achara em bom estado, fiz a besteira de
viajar durante o dia. Eu dirigia tranqüilo, pois parecia uma região inabitada,
sem rios nem lagos, cidades destruídas por bombas atômicas, um clima
árido, enfim, um lugar que não deveria abrigar uma tribo. Porém,
subitamente senti um tranco no carro. Passei por sobre uma armadilha na
estrada e tive os pneus furados. O carro foi perdendo a velocidade ao
mesmo tempo em que percebi uns cinco caçadores correndo em minha
direção com pedras e tacapes. Acelerei o carro e consegui certa distância,
mas os pneus gastaram e as rodas acabaram por entortar até não conseguir
mais andar. Desci do carro deixando todos meus pertences: cobertores,
roupas, comida, água. Levei apenas minha arma.
Os caçadores não se satisfizeram apenas com o carro e minhas coisas, eles
queriam minha carne e continuaram correndo atrás de mim. Após correr
alguns metros, parei, me virei contra eles, esperei chegarem bem próximo e
quando estavam à cerca de dez metros, prontos para me jogarem pedras e
lanças, saquei a pistola e com três tiros lancei dois ao chão. Os outros
olharam assustados, pois uma arma carregada era raridade naquela região, e
voltaram correndo à sua tribo. Cheguei a apontar novamente contra aqueles
covardes, mas não tive coragem de apertar o gatilho.

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Este incidente me fez caminhar por várias semanas bebendo água da
chuva, devorando insetos, bichos e qualquer fruta que via pelo caminho, até
encontrar uma pequena vila. Lá consegui água em abundância num tanque
e encontrei uma casa que nunca havia sido invadida. Ficava no fim de uma
antiga estrada, já quase totalmente encoberta pelo matagal. Ao arrombar a
porta, encontrei uma sala e cozinha peculiares. A arrumação me fez
lembrar de súbito a ordem que minha mãe mantinha em casa.

O cheiro de mofo não tirava do ar a sensação de lar de cada detalhe.


A sensação de um lar que eu já perdera há anos e que nunca mais tivera.
Aquela sensação de aconchego, de segurança maternal, familiar. A mesa de
jantar redonda, os enfeites de gesso sobre o armário, as fotografias da
família na parede, a televisão em frente ao sofá. As camas permaneciam
arrumadas após décadas de desordem mundial, mas mesmo tão cansado
como estava, não consegui deitar sobre aqueles lençóis e alterar um dos
poucos contatos que ainda existiam do período pré-guerra. Fui à sala e
deitei no sofá, exausto após caminhar por tanto tempo.

Nos meus sonhos pude voltar àquela mesma casa décadas atrás. A
mãe cozinhava um belo assado de carne com seu avental enquanto o
marido que acabara de voltar do trabalho retirava os sapatos em seu quarto.
As crianças brincavam sobre o tapete da sala e assistiam seu desenho
favorito na televisão. Mais tarde, a família completa, unida, sentava-se ao
redor da mesa e oravam, agradecendo o jantar. Após alguns meses tive que
deixar aquela casa e a vila, pois os insetos me começaram a me atormentar
dia e noite. Então acordei e percebi que o sonho se tornara pó por sobre a
mobília. Mas, afinal de contas, mesmo se a grande guerra não tivesse
acontecido, ainda assim a mesma família se tornaria pó e aquele sonho
continuaria perdido para sempre. O fim e o esquecimento são as únicas
verdades perenes para humanidade e mesmo que eu insista em sobreviver
nesse mundo destinado à destruição, sei que todo meu esforço me garantirá
apenas mais alguns anos de vida para então, em algum dia debaixo desse
céu encoberto e sobre essa terra repleta de destruição e morte, me juntar
aos bilhões de esquecidos que já provaram da única experiência de viver.

Muitas vezes, principalmente após o pôr-do-sol, quando já não se vê


mais nada, pois não temos energia elétrica há muitas décadas, penso e tento
imaginar qual será o futuro da Terra e dos humanos. Será que é possível
estabelecer um mínimo de ordem num mundo tão brutal? Chegamos a tal
ponto que o canibalismo se tornou corriqueiro e um costume normal entre
as tribos.

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Há não muito tempo encontrei uma pessoa com quem pude me
relacionar após muitas décadas. Era uma mulher jovem que havia se
perdido de seu grupo e estava com sua saúde debilitada. A encontrei no
centro da cidade na qual estava passando o inverno e, por estar muito fraca
e doente a levei para a casa que eu havia escolhido como lar temporário.

Não pude entender muito bem o que dizia, pois seu dialeto era uma
variante do antigo inglês. Porém, com o tempo começamos a nos
comunicar melhor. Seu nome era Belunska e deveria ter não mais do que
25 anos de idade. Ela me contou sobre sua tribo e me informou coisas que
muito me espantaram, pois eu não tinha noção de quão brutal e cruel os
humanos haviam se tornado. Com muita naturalidade e com certo orgulho,
disse que seu grupo mantinha confinado, como uma antiga fazenda de
gados, um grupo de humanos capturados, forasteiros e de tribos derrotadas,
que com o passar dos anos iam servindo de alimento para a tribo. Era uma
forma de manter comida estocada.
Mesmo sabendo que a prática do canibalismo havia se espalhado por toda a
Terra, ouvir aquilo me provocou náusea. Estive com Belusnka por cerca de
50 dias, até que se recuperou e tomou novamente sua busca por sua tribo.

Bem, hoje, após tantos anos de fugas e esconderijos, fome e


cansaço, encontro-me mais uma vez em uma casa estranha. Já não sei por
quanto tempo terei forças para continuar nessa interminável corrida pelo
direito de continuar correndo. Minhas pernas já não são as mesmas de 30
anos atrás, minha vontade de viver, assim como meu fôlego, já se esvaiu
em sua grande parte. Talvez eu seja o último do planeta que viveu os anos
anteriores à guerra, o único que não consegue assimilar a crueldade
banalizada que tomou este mundo e, talvez, tenha sido a última esperança
de reconciliação dos humanos.

Mais uma vez tento dormir com medo de ser morto durante o sono e
com a angústia de ter a mente dividida entre dois mundos, lembrando e
pensando em como, naqueles dias antigos, a humanidade não pôde
perceber o caminho a qual estava traçando, como, se era tão lógica essa
trágica desgraça mundial? Por que não mudaram drasticamente sua política
mesquinha e capitalista que nos levou à destruição? Por que insistiram no
sistema econômico tão frágil que não poderia ter levado a nada, senão a
esse mundo que hoje se destrói? Minhas esperanças de encontrar um
mundo bom, em que as pessoas vivam em união e felizes, mesmo com a
iminente morte, se resumem agora a essas poucas horas de sono.

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Quão cedo é?

Um errante que insiste em delirar sobre a vida, sobre o vermelho e o


preto, a árvore e o tempo e persiste na busca de um alvo inexistente a que
chama satisfação. Um errante que se aflige pela morte de um desconhecido
ocorrida há 70 anos e se imagina Lord Byron dentro de uma camiseta
listrada. Um errante pelas artes, que procura em todas as belezas qualquer
fuga de seu mundo materialmente morno, pálido e rotineiro e geralmente
caminha sozinho por entre, por sobre, por sob a cidade apenas para levar e
espalhar sua busca pelas ruas e toda a extensão possível.

Um errante que repentinamente tropeça em seus próprios versos ao


bruscamente trombar com a mulher, que vorazmente destroça todos os seus
livros. A mesma espécie que o fizera escrever páginas intermináveis e
pintar quadros ruins agora o faz rasgar as folhas de poesias e clássicos. A
mesma espécie que o trancafiara num cubículo de egocêntrico celibato,
autodependência e suficiência agora o liberta para o calor do dia e abre-lhe
os ramos para ser queimado ao sol da feminilidade.

Tanto tempo para perceber que os livros não podem explicar ou


descrever porque a pele dela é tão doce e seus lábios tão suaves. E nem
Freud nem Jung foram claros o suficiente ao expor em suas teses a atuação
do hormônio quando se vê as linhas que contornam seu corpo
languidamente, formando côncavos e convexos de desejo e paixão.

Até a natureza o decepcionara, pois nem o pêssego era mais macio


que seu rosto, nem a grama regada pela relva da manhã era tão fresca
quanto seus dedos que o enlaçam, nem as folhas das árvores ao vento
apresentavam um movimento tão suave quanto os seus. Ou a leve
correnteza de um rio, a visão de uma montanha de cumes agudos, a doçura
de um filhote felino, o azul intenso de um dia ensolarado, nada poderia
trazer mais prazer que cada detalhe dela.

Seu beijo ficara. Aquele simples ato de se provar os lábios tornava-se


a maneira de expressar o que não se podia dizer, e enquanto as bocas
unidas se tornavam mudas, seu coração chamejante gritava e tentava ser
ouvido, mas era impedido por sua mente que se torturava com a dúvida:
“quão cedo ainda é?”.

Todos os livros caíam e espalhavam suas páginas soltas pelo ar


banhadas pela dúvida constante “quão cedo é?”.
17
Estendido ao chão com seus óculos pêndulos, sob a chuva de
palavras impressas, sob os poetas que lentamente se deitavam sobre e a seu
lado, que o fitavam e com indignação enquanto se iam deixando levar pela
gravidade, como a queda de uma folha que vem e vai, como um barco
deixado ao balanço do mar, não respondiam, porém alteravam sua dúvida,
retrucando-lhe: “quão cedo ainda é para dizer eu te amo?”.

18
O Disco Voador

O dia em que um disco voador surgiu nos céus da pequena cidade de


São João da Boa Vista

Luizinho foi o primeiro a ver. Entrou correndo na cozinha:


“Manhê...! Tem um disco voador lá fora!”
A mãe, que preparava o feijão para o almoço, nem sequer lhe virou o
olhar.
- ‘Menino, vá-se daqui. Deixe de me encher, vá!’ Voltou correndo pra rua.
E a mãe continuou preparando o feijão. Depois de cozinhado, separa um
punhado. Mistura o refogado bem temperado de alho e cebola e deixa fritar
um pouco. Depois a folha de louro e tudo volta pra panela grande. Mistura
bem e deixa cozinhando com a tampa aberta só pra pegar gosto.

“Manhêê...! Vem ver o disco voador!” grita Luizinho.


- Ai diacho de menino! Já falei pra não me encher, senão não tem almoço
hoje, moleque! Vá brincar com seus irmão!
Separa os pratos. São seis como de costume. Pro Zé e a criançada toda.
Enxuga a mão no pano com uma galinha bordada e sai chamar a família pra
comer. Chegando à calçada vê o Zé olhando pro céu.
- “Mas que diacho tão inventando agora?”
Não era só o Zé. Debaixo desse sol de meio-dia estava também toda a
molecada que havia parado de brincar. O seu Barbosa da adega, a vizinha
Maria... Todos olhando pro sol, mas que negócio é ess... “Vixe Maria meu
Padim Ciço!”

Lá em cima, bem na direção do sol estava o bicho: parado, imóvel,


soberano e, principalmente, redondo. Devia de estar há uns não sei quantos
metros de altura, mas dava pra se perceber que não era coisa boa.
Todos parados sem falar uma palavra. Apenas olhando aquele círculo que
pela distância ficava pequeno, mas que parecia estar igualmente os
observando. Doíam os olhos de se ver assim, contra o sol. Tinha que
espremer bem pra poder enxergar. Depois de alguns minutos de silêncio, o
Jair da quitanda dá a primeira palavra:
“Esse que é o tal do disco avoadô, né?”
A frase parece que fez todos acordarem do primeiro choque e começaram a
ensaiar algumas opiniões a respeito da aparição:
- ‘Esse aí num é coisa boa não, viu?’ tentou profetizar um.

19
- ‘Ai meu Jesusi! Ajuda nóisi..’ pediu a outra.

Aos poucos a rua ia ficando cheia de gente. Seu Berenício da banca


que não deixava ninguém ler as revistas sem comprar, deixou-as ao léu
enquanto ia caminhando com a cabeça inclinada pro céu, até trombar com a
freira Jussara, que vinha contando o terço pela rua pra espantar o demônio lá
de cima.

O delegado Juvenal que sempre quisera se sobressair em qualquer


conflito popular, por menor que fosse (como naquela vez em que chegou
derrubando o tabuleiro de dama com a arma na mão quando dois velhos
começaram a discutir sobre o jogo) dessa vez ficou acuado num canto da
praça, com medo do invasor extraterrestre exterminar primeiro a linha de
defesa da cidade.

As raparigas da Pensão Cabrobó finalmente deram as caras debaixo


de sol. Elas, que só ousavam por os pés na calçada durante a noite, para atrair
a clientela, e que de dia repousavam da longa noite de trabalho, se
misturaram com a multidão de trabalhadores e donas de casa no meio da rua.
Até dona Filó, que dividia o marido com as raparigas da Pensão (fato
conhecido de toda a cidade) admirava-se ao lado de dona Menininha, a
cafetina do Cabrobó.

E foi assim no dia em que o disco apareceu no céu de São João da Boa
vista: o padre não se lembrou de tocar os sinos do meio-dia e, como não
ousava enfrentar a multidão ávida por uma explicação, ficara dentro da
igreja, rezando e espiando o círculo voador pelas janelas altas; a professora
deixou a aula de ciência e levou os meninos pro pátio coberto, onde era mais
seguro; o doido da praça que vivia nas esquinas gritando palavrões se
ajuizou. Parou lado a lado com o prefeito e discutiram indignados sobre a
aparição. O prefeito de tanto olhar pro céu mal notara que seu interlocutor
era o louco. E vice-versa. Toda a cidade estava nas ruas, na praça, nos
telhados. São João estava parada, esperando algo.

E finalmente aconteceu. Tão veloz quanto chegou, o disco se foi.


- Num to mais vendo. Sumiu, é?
- Sumiu nada. Tá ali, ó...
- Tá mais não, rapaz.

20
Em um instante, a incrível e espantosa cena do invasor espacial se
tornara apenas o rotineiro céu azul que queimava com o sol sempre intenso
de São João de Boa vista. E por alguns minutos, o pessoal todo permaneceu
olhando, procurando pelo céu qualquer sinal. Começou o burburinho
indignado do povo que não aceitava que aquilo devesse acabar assim.
- Mas num é possível. Foi embora assim, é? Nem sequer matou o delegado.
- Oxee.. Mas pra que um bicho desse vem até aqui então, se é pra ir embora
avexado?

O povo queria tudo: um contato de terceiro grau ou um grande ataque


de invasão, menos que se fosse o bicho espacial. O único que ficou aliviado
foi o delegado.
Decepcionados, começaram a calar o burburinho. Aos poucos começavam a
baixar a cabeça, de vez em quando levantando novamente o olhar, numa
esperança de retorno daquele que fora capaz de quebrar a eterna e pacata
rotina da cidade.

O padre bateu então os sinos, um quarto de hora depois do meio-dia,


e abriram-se as portas da igreja; A professora levou com dificuldade, de
volta à sala de aula, os alunos que já brincavam e jogavam bola no pátio; o
doido da praça soltou um baita palavrão, fazendo o prefeito dar um pulo de
susto e voltar a seu gabinete. Quem viu se riu da cena, fazendo o prefeito
enraivecer; O delegado tomou logo as providências e mandou botar o doido
na cadeia, pela terceira vez naquela semana; As raparigas voltaram ao
Cabrobó, debaixo de uma discussão de baixo nível com dona Filó, que as
ofendia de tudo que é nome possível de se imaginar.

O cheiro do feijão queimado fez a mãe correr por dentro da casa. E


Luizinho brincava de disco voador.

21
Mais uma caminhada

Enquanto caminhava tentava descobrir em exatamente qual momento


sua vida se perdera. Em exatamente qual dia sua língua se tornara insossa,
sua pele rija e seus olhos perderam o prazer de encontrar o belo. Essa
insensibilidade não acontecia por suas papilas gustativas estarem
prejudicadas, seu tato danificado ou seus olhos estarem míopes, mas sim
por seu coração calejado.

Como todo processo de calejamento, não ocorrera de uma hora para


outra. Não num passo mágico, mas calejado por um processo, ou melhor,
um desgaste. O desgaste do tempo perdido, da beleza negligenciada e, pior
que o desgaste da solidão, o desgaste da negação e da exigência desmedida
de quem o rodeia. Pois a solidão é ainda o estado neutro, em nível de
relacionamento interpessoal. Mas abaixo da solidão há a negação, a
discordância provinda da sociedade, que é ainda mais fortalecida com a
constante cobrança que distancia o indivíduo de qualquer relação.

Enquanto caminhava entendeu que havia se feito um alvo. Um alvo


de todos e, também, de tudo. Pois não apenas as pessoas e as tradições o
miravam, mas igualmente os objetos, a calçada, a rua, os muros e as
paredes do quarto. Caminhava de cabeça baixa, como que evitando o
mundo.

Não se podia acordar tarde, não se podia chegar tarde. Não se podia
atrasar as contas, nem sumir, nem aparecer. Seu corpo não era bem vindo;
seu dinheiro, sim. Caçado constantemente.

E continuava assim. Trabalhando em grandes empresas para poder


pagar os gastos com produtos de grandes empresas.

Não quero viver minha vida novamente.

22
Alice no país das Idiossincrasias

Capitulo um

- Alice, Alice... Vamos, vamos! Ao parque, ao parque!

Alice não entendia porque a irmã tinha que repetir todas as palavras. Não
gostava daquilo, mas queira ou não, a ênfase dada pelas repetições acabava
fazendo-a se apressar. Assim sendo, armou-se de seu Ipod, sem nem ao
menos atualizá-lo, e saiu pela porta acompanhada da irmã.

‘Ora, o dia está relativamente bonito’ pensava, enquanto seguia sua irmã
que, apressada, já ia a dois ou três passos à frente.

Pulemos esta caminhada, pois se transpusemos aqui todos os pensamentos


inquietantes de Alice, esta estória se tornaria um livro, e realmente não
estou interessado em livros chatos. Como sabemos, são durante tais
caminhadas que as reflexões mais profundas vêm à tona.

Pois bem, chegaram ao parque e cada uma se arranjou da maneira que mais
lhe convinha. A irmã sentada num banquinho típico de jardim abrindo seu
livro e Alice apoiada numa árvore, enquanto se dava conta de que a bateria
de seu Ipod estava chegando ao fim.

Enquanto xingava a si mesmo, passou-lhe um coelho branco. De súbito


aquele transeunte apressado lhe chamou a atenção, visto estar vestindo um
traje tipicamente humano. E ainda por cima escocês.

‘Oh não, oh não! Em cima da hora!’, dizia em voz alta o coelho, enquanto
apressava o passo. Aquela cena curiosa chamou a atenção de Alice, que
passou a seguir o apressadinho, não sem antes estar certa de que sua irmã
estava interagida demais com a leitura para se dar conta desta escapadela.
Um pensamento rápido veio à mente de Alice, enquanto observava sua
irmã: aquela criatura politicamente correta, vestida de maneira social,
moral e contemporaneamente direita era uma idiota.

Bem, agora já tentava alcançar o coelhinho engraçado, que a cada passo


parecia mais preocupado com seu suposto encontro marcado. Alice tentou
chamá-lo, sem sucesso. Continuou sua perseguição até o ponto em que o

23
bicho repentinamente parou. Olhou o relógio, praguejou, e entrou por uma
toca cuja entrada tinha exatamente sua altura. Ao chegar ali, o Sr. Coelho já
havia desaparecido, mas a porta da casinha estava aberta. Ora, era uma
casinha! Já não era mais uma toca!

‘Devo entrar por uma porta cuja permissão não me foi concedida?’
perguntava-se Alice - ‘..mas, veja só! Preocupada com uma ridícula regra
de etiqueta! Deve ser culpa desses genes que me impregnam!’

Alice era uma moça naturalmente refinada. Conhecia todas as regras da


educação ocidental e, involuntariamente apresentava-se assim por seus
modos de lidar com as pessoas, de se vestir e de se portar. Mas, como uma
típica jovem, estava passando por um período de rebeldia em sua vida. Esse
período pelo qual a maioria das pessoas passa e enquanto estamos nele,
achamo-nos como seres interessantes, enquanto na verdade, não somos
absolutamente!

E como são irritantes esses adolescentes rebeldes! Imagino que o leitor


conheça alguns pessoalmente. Há tantos desses espalhados por aí e são tão
iguais! E por serem iguais tão desinteressantes!

Que há de curioso e interessante numa maçã, visto ser uma fruta


amplamente distribuída e muito conhecida? Agora me diga: Já provaste a
beldroega? Não?

A humanidade está distribuída desta forma, como uma horta repleta de


muitas maçãs, bananas e morangos, mas poucas beldroegas. O grande
porém é que a vasta maioria adora maçãs, mas, quem gosta de beldroegas,
embora sejam curiosas? E, mesmo que fossem deliciosamente superiores,
com um nome desses, as beldroegas dificilmente seriam popularmente
aceitas. Deveriam ser chamadas momôs.

‘Momô é um bom nome para uma planta’ pensava Alice, enquanto se


esforçava para entrar na pequena porta.

Lá dentro, percebeu que estava num tipo de hall muito peculiar. Hall
porque não tinha nada além de chão, paredes e teto. Peculiar porque não
tinha nada além de chão, paredes e teto. Alice gostou especialmente do
chão. Das paredes e do teto também.

Frustrou-se por não encontrar ali o tal coelho. Mas, eis! Parece que havia
naquele hall peculiar mais do que chão, paredes e teto, e Alice percebeu um
tipo de garrafinha em cima de uma mesinha. Ambos pequeninos, como já
24
indica o modo diminutivo de minha escrita na frase anterior (Desculpe-me
o leitor mais sensato, mas devo explicar explicitamente tais detalhes,
levando em conta o tipo geral de leitor que esta estória terá. Acontece que
na conversação diária o modo coloquial distorce um pouco o significado
das palavras. Na utilização do diminutivo, por exemplo. Pois bem,
resumirei nosso bate-papo dentro deste parênteses).

Alice percebeu uma impressão na garrafinha: ‘beba’. Lembrou-se logo da


Coca-Cola e riu-se ao passar por sua cabeça como até hoje se usa esse tipo
de marketing tão ultrapassado, inspirado em teorias psicológicas antigas.

E, ao continuar lendo aquela palavra, sentiu-se impulsionada a beber. Mas,


ora, sabia bem que esse tipo de propaganda não funciona e, além do mais,
não se deve beber tudo que se vê pela frente. Não ia beber, não! Como uma
adolescente rebelde que era, desobedeceria a ordem estrita ali escrita. Mas,
pensando melhor, demonstraria ainda mais rebeldia se bebesse a tal
garrafinha e desobedecesse toda a lógica da sensatez e da razão de abster-se
da ingestão de alimentos de origem desconhecida. E outra: já estava se
arriscando tendo perseguido o coelho, entrando sem permissão na casa e
agora iria até o fim nisso! Não que este modo de pensar fosse coerente, mas
a coerência a cansava. Pegou a garrafinha e, antes de beber, pensou que
realmente, não deveria ter seguido aquele coelho. No mundo de hoje, não
se pode confiar em ninguém, muito menos em coelhos, que são conhecidos
taradinhos.

Assim, tomou de uma vez quase todo o líquido, percebendo que era
realmente uma garrafa de Coca-Cola (Neste ponto, a história a qual
estamos nos inspirando segue por um caminho diferente. Você, leitor, sabe
bem: Alice diminui de tamanho, aumenta, chora e cria um mar de lágrimas.
Sinto muito se a partir de agora nossa estória parecer um tanto ilógica e
confusa. Mas não se importe com isso. A idéia principal não é o transcorrer
dos fatos, mas sim as questões morais, idiossincráticas, sociais e filosóficas
com as quais nossa heroína se depara. E é assim que vai ser. Se não lhe
agrada, pare de ler. Não estou interessado em ter muitos leitores. Se
estivesse, faria agora mesmo com que Alice encontrasse, nesse mar de
lágrimas, um marinheiro seminu de porte atlético e desenrolaria um conto
erótico. Mas não é isso que vai acontecer, conforme perceberá se continuar
lendo).

Ao ler no verso da garrafa os valores nutricionais da bebida, nossa amiga


Alice, que era uma vítima da moda e consequentemente anoréxica, foi
tomada por uma profunda tristeza e remorso e pôs-se a chorar

25
indiscriminadamente. A cada linha da tabela nutricional, uma lágrima
maior e mais pesada rompia ao chão.

Quando chegou finalmente a linha do açúcar, percebeu que suas lágrimas


gordas criavam um mar de pranto no hall peculiar, mas já era tarde. Um
grande maremoto tomou conta do recinto! Ondas a jogavam, redemoinhos
brincavam com seu corpo cheio de açúcar. Imaginando que seria este seu
fim, tentou alcançar ainda a garrafinha para dar uma última tragada na
Coca-Cola, já que seu corpo gorducho nunca mais seria visto, quando
subitamente foi puxada para cima de um barquinho por mãos estranhas.
Salva!

‘Salva?’ - pensou, ao ver que seus heróis não eram exatamente marinheiros
musculosos seminus. Eram três: um assemelhava-se muito a uma coruja,
mas vestido de maneira muito elegante, via-se logo que era francês; outro a
um rato, semblante humilde e conformado, de roupagem muito discreta e
gasta; e o terceiro a um gato, tão elegante quanto a coruja, mas tendo em
vista sua vestimenta, era inglês.

- ‘Seja bem vinda, mademoiselle’ - disse o Sr. Coruja, arrumando o


monóculo no olho esquerdo – ‘parece que pescamos um belo exemplar de
beluga hoje!’

- ‘Ora’, disse o rato, enquanto mirava Alice dos pés à cabeça, ‘não me
parece uma beluga, pois estava se afogando. Deve ser algum tipo de
pintassilgo.’ (É muito sabido que os ratos têm inveja dos pintassilgos e até
se torna irrelevante mencionar isso, mas, tendo em vista a gama variada e
extensa dos leitores, é melhor esclarecer este fato) ‘O joguemos novamente
ao mar! Pois de que vale um pintassilgo? Eles cantam suas ditas belezas,
declamam seus pomposos poemas, e falam do amor inutilmente. Não nos
servem a nada! Matemo-no!’

- ‘Mr. Rato, não seja tão impulsivo’ retrucou o gato inglês, ‘os pintassilgos
são muito úteis, sim, nas nossas refeições, como prato principal, assim
como tua própria espécie. Mas, como conhecedor nato de espécimes, devo
advertir-lhes que isto que pescamos não é uma beluga, muito menos um
pintassilgo. É uma serpente! It’s a Snake!’

Nisto, o Sr. Coruja logo sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha, e deu


dois passos para trás.

- ‘Nada disso, nada disso! Que beluga, que pintassilgo, que serpente?!’
disse enraivecida Alice - ‘Como vocês que nem mesmo podem discernir a
26
que espécie pertencem querem me classificar? Pois, são todos animais e se
vestem como humanos! Vê-se logo um erro aqui. ’

- ‘Mademoiselle, por que dizes isto? Não sabes que são os humanos que se
vestem como nós, não nós que vestimos como humanos? Oh peine!’ disse
francamente o Sr. Coruja. (francamente é uma piada, em alusão ao franco-
sotaque do Coruja. Ha-ha)

Chegando próximo a Alice, disse o Sr. Gato, sussurrando-lhe:

- ‘Não se importe com ele, Srta. Serpente, o Sr. Coruja pensa ser sempre o
dono da razão, a voz da sabedoria. Com o tempo aprenderá que o melhor é
que suas palavras entrem pelo ouvido esquerdo e saia pelo direito...’

- ‘O que dizes, insolent ?’ gritou o Sr. Coruja ‘não é a toa que sou
considerado símbolo da sabedoria! ‘A coruja de minerva alça seu vôo ao
amanhecer!’ Tua raça felina sempre invejando nossos aguçados olhos do
conhecimento. l'anglais sot.’

- ‘Vamos, não discutam!’ pediu com jeito Alice - ‘Quando a discussão


entra no encargo pessoal não leva a lugar algum, e a cada resposta a réplica
se torna mais rude até que em determinado momento, apenas a agressão
física se torna mais bruta que as ofensas. E, não seria fino da parte de vocês
irromperem uma briga em frente a uma dama como eu. Tomem o exemplo
de seu amigo rato que, calado, prende-se a sua discrição, e que acredito não
queira mais devolver-me ao mar, visto estar esclarecido o fato de eu
realmente não ser um pintassilgo. ’

- ‘Discrição?’ perguntou o Sr. Gato - ‘Chamaria isso de cautela. Pois o Sr.


Rato sabe muito bem que está abaixo da cadeia alimentar em ambos os
casos, e se está ainda vivo é por não estarmos com fome.’

O gato e a coruja continuaram a discussão acalorada, enquanto Alice se


apiedava do Sr. Rato, que parecia tão indefeso e ignorante. Não que ela
gostasse de ratos, mas era triste saber que sua posição na cadeia alimentar
fazia-o um excluído, sem direito à opinião. E lá estava ele. Enquanto seguia
a briga, o Sr. Rato tentava manter as velas do barquinho içadas e as amarras
bem firmes.

‘Oh tristeza! A injustiça da exclusão é semelhante até mesmo entre os seres


mais vis! Como julgar mal um rato que sofre preconceitos em uma
realidade tão segregadora?!’ disse Alice para consigo mesma, enquanto se
aproximava do rato.
27
- ‘Sr. Rato,’ disse Alice, enquanto este terminava seu trabalho com as
amarras e parecia indiferente à conversa ao redor - ‘vejo que é o único
desta embarcação que se preocupa com os afazeres e trabalhos referentes à
navegação. É sempre assim? É sempre indiferente às discussões e sempre
submisso àqueles que estão acima de ti na cadeia alimentar?’

- ‘Sim, sou’ respondeu secamente;

- ‘Não te sentes disposto à conversa, não é mesmo? E a essa tua suposta


escravidão, estas disposto?’

- ‘É sim, estou disposto ao trabalho a que chama escravidão e, não, não


disposto a muita conversa, só a necessária, característica que não se encaixe
neste diálogo. ’

- ‘Tentaste afogar-me por me confundires com um pintassilgo. Qual o


problema de seus cantos? O que há de errado com a poesia? Com a beleza?
Com os debates racionais? Tudo isso é tão necessário quanto o trabalho a
que tanto insistes. Só com a arte, a beleza, os debates é que nos
enriquecemos e criamos um olho capaz de enxergar as maravilhas do
mundo. O trabalho enche o estômago, nos provê um teto. A beleza nos
enche o coração e a mente. Ambos são muito importantes! Talvez a beleza
seja ainda mais. ’

- ‘Escuto tudo isso com indiferença’ respondeu Sr. Rato, desviando-lhe o


olhar– ‘com tanta indiferença como escuto a conversa desses dois, os Srs.
Gato e Coruja, todos os dias, incessantemente. Pois saiba que conheço tua
dita beleza, presumida arte. E saiba ainda que tenho certa admiração por
ela, sim. Mas prefiro admirá-la de longe, ouvi-la apenas na boca dos outros.
Veja estes dois. O francês sempre falando das artes, declamando poesias e
cantando filosofias pela proa e pela popa. Passa o dia assim, melancólico,
pensando profundamente sobre as tristezas da vida e tentando imaginar
suas distantes e impalpáveis vertentes. E assim, por pensar demais e
trabalhar pouco se considera superior a todos. O felino inglês: suas
tradições e seus livros o fazem achar que é o maior de todos, imagina-se
quase como um descendente na linhagem real. E assim, permanece
constantemente frio e distante, como se não quisesse se misturar com os
plebeus. Agora, lhe pergunto: qual o maior de todos neste barco?’

- ‘Se há de se comparar estes dois, eu não sei. ’ respondeu Alice, pensando


ser ela mesma maior do que todos ali, mas não ousando confessar.

28
- ‘Eu’ - respondeu de pronto, o rato – ‘Eu sou o maior de todos. E quer
saber o porquê? Porque enquanto eles se fecham nas suas mentes
imaginando coisas abstratas e irreais, eu estou fazendo todos nós
continuarmos vivos em cima deste barquinho. E não me importo se não sei
filosofar, poetar, ou seja lá o que for. Trabalho, como, durmo. Assim vivo,
assim sou. Sei que posso ser comido por uma ave de rapina a qualquer
hora, mas, hora ou outra, todo mundo se vai, não é verdade?’

Como a cumprir tal despretensiosa profecia, irrompeu nos céus uma águia,
de grandiosa envergadura e magnífica imagem. Ao visualizar o rato
trabalhador do alto, iniciou um vertiginoso mergulho em sua direção,
sabendo ter facilmente a seu alcance a janta das crianças.

Por um golpe do destino, a águia tinha um pequeno desvio na córnea de seu


olho direito, o que a fazia perder a precisão em suas investidas. Sendo
assim, agarrou Alice ao invés do rato e batendo fortemente as asas,
ascendeu novamente aos céus em direção a seu ninho.

Durante este inesperado vôo, Alice refletia profundamente sobre o ponto de


vista do roedor. Naquele barquinho, que agora já se perdia de vista, havia
três seres que imaginavam, cada um, ser um superior ao outro. Cada qual
com sua própria ideologia. Qual seria a mais correta? Se é que se pode
classificar ideologias! Se cada verdade estava servindo bem ao propósito de
cada um, por que haveria de discuti-las?

Capitulo dois

Mergulhada em pensamentos, Alice ia admirando o vasto oceano enquanto


continuava sendo carregada pela águia. Chegaram então ao continente e ao
ninho da ave, que fora construída fora do alcance de predadores, no cume
de uma árvore alta, alta! Lá dentro, dormiam três aguiazinhas peladas. Ao
deixar Alice como jantar no ninho, a águia mãe logo voou para uma nova
caçada, deixando-a a sós com os filhotes.

-‘Oh, oh’ pensou Alice. ‘Acho que serei o prato principal desses
bichinhos.’

Logo despertaram, e ao ver Alice, um deles lhe falou, com muita meiguice
típica dos nenês:
29
- ‘Olá, moça. Muito bonito seu vestido xadrez. ’

- ‘Obrigada. Sua mãe me deixou aqui para tomar conta de vocês três’
respondeu Alice, tentando salvar sua pele. ‘Mas, como vejo que estão
muito comportadinhos, já vou me retirando. ’

E, antes que tentasse descer pela árvore, um deles lhe imputou um pontapé
no traseiro, que a fez voar pelos ares, caindo no matagal abaixo. Pois, as
crianças costumam tratar melhor sua alimentação do que a seus
responsáveis, e são sempre assim: à primeira impressão parecem meigos,
mas podem ser tão cruéis quanto um terrorista chinês.

Alice se deu conta que caíra num mato muito fechado, e tentou abrir
caminho. Já não tinha mais esperança de encontrar o tal coelhinho que
havia visto no começo da estória. E, enquanto ia refletindo sobre a
crueldade intrínseca das crianças, encontrou um personagem muito
estranho. Era uma lagarta que fumava maconha em cima de um cogumelo.

- ‘Olá Sr. Lagarta’ disse cordialmente Alice.

- ‘Ora, que desacato!’- respondeu furiosamente a lagarta - ‘Onde já se viu


chamar-me pelo nome de minha espécie? Por acaso passou por tua cabeça
que tenho nome? Pois, sim, tenho, e é Von Lafaiete. Gostaria que ao invés
de chamar-te pelo nome, a chamassem por Srta. Menina? A propósito, qual
seu nome?’

- ‘Alice. Desculpe-me. Acontece que ainda há pouco me encontrei com três


figuras que tinham por nome a definição de sua própria espécie. Deveras,
também estranhei, mas como sou nova por aqui, imaginei que fosse um
costume do país. ’

- ‘Ah, sim. Aceito suas desculpas. Saiba que também não sou oriundo desta
região. Venho da Holanda.’ disse Von Lafaiete, enquanto enrolava seu
baseado.

- ‘Holanda! Que maravilha! Ouvi muito bem a respeito de seu país. Deve
se orgulhar muito de sua nacionalização!’

- ‘Ora, mas por que deveria eu de vangloriar-me simplesmente pelo fato de


ter nascido em uma posição geográfica a qual nem mesmo tive
oportunidade de escolher? Saiba ainda de mais uma coisa: prego, por onde
passo, a humildade. E isto me impede de ser nacionalista. ’ disse a lagarta,
enquanto olhava seriamente para Alice.
30
- ‘Mas que há a humildade a ver com o nacionalismo? Não compreendo.
Não pode se ser humilde e ainda assim lutar por seu povo e pela sua
nação?’ indagou Alice, sabendo que estava a desencadear uma longa
discussão.

- ‘Há maior exemplo de egoísmo do que o nacionalismo?’ respondeu-lhe


Von Lafaiete. ‘Pense bem: o egoísmo individual e pessoal faz o ser olhar
somente por si, sem se importar com o resultado de suas ações nos outros
seres ou na comunidade. O ser egoísta quer o melhor para si, e luta por seus
ideais, independentemente do bem alheio. Este comportamento não é
novidade e é bem conhecido por todos nós, sendo censurado pelos seres
cientes, racionais, e pelos órgãos religiosos e comunitários.

Agora, pense de modo massificado: em vez de um ser, uma nação. Todo


país quer o melhor para si mesmo. Os melhores produtos, estruturas,
economias e por aí vai. Até então não tem problema, pois querer o melhor
para si não é mal. O problema é que para conseguir tais vantagens e
benefícios, as nações entram em guerra, matam, exterminam milhares,
milhões, diretamente por meio do exército, ou indiretamente, por meio do
protecionismo e de armas ainda mais poderosas do que as bombas: os juros
e impostos. Ao sermos nacionalistas, estamos fazendo parte de um enorme
sistema egoísta, porém, nossos costumes fazem-nos achar que somos
valentes e heróis. Esse tipo de egoísmo os órgãos religiosos e comunitários
aceitam! É uma vergonha!

O mundo todo gira em torno do egoísmo de cada pessoa, de cada nação. E


isso é uma lástima, pois a Terra foi feita para funcionar em harmonia. Até
as partes mais distantes devem agir em conjunto, para que os sistemas
ambientais e alimentares não entrem em colapso. ’

- ‘Entendo seu ponto de vista’ respondeu Alice, que não concordou de


pronto com a idéia de Von Lafaiete – ‘de qualquer forma, ainda que as
guerras e as discordâncias econômicas sejam um lado negativo do
nacionalismo, temos o fato da herança cultural, a qual devemos prezar e
nos orgulhar de receber de nossos antepassados. Nossa cultura faz cada
país ter sua beleza própria, sua identidade. Isso é lindo!’

- ‘Lindo? Qual o quê!! Esse negócio de identidade cultural é a pior besteira


que já ouvi em toda a minha vida! É uma forma de cada povo se trancafiar
dentro de suas próprias idéias e verdades relativas. É uma forma de fechar
os olhos para o mundo tão extenso!

31
Saiba ainda de mais outra coisinha: os indivíduos, durante sua estadia neste
planeta, encontram-se em diversas situações e lugares, dos quais consciente
ou inconscientemente sugam as informações e costumes e criam assim, sua
personalidade e sua intelectualidade.

Por exemplo: assim como seu Ipod, só ganham conteúdo e valorizam-se ao


puxar seu conteúdo de muitas e variadas fontes. Entre essas fontes
encontram-se os livros e os lugares, mas não há melhor fonte do que outros
indivíduos semelhantes.

Imagine agora que você puxe seus MP3s de um único site. Um site que só
tenha certo tipo de música. Vamos supor, que só tenha músicas que estejam
no Top10 da semana. Ora, com certeza você perderá uma grande riqueza
musical!’

- ‘Oh, meu Deus!’ disse Alice, assustada – ‘imagine eu ter que escutar
Simple Plan e RBD pelo resto da vida! Seria um nojo!’

- ‘Exatamente’ – disse Von Lafaiete – ‘Seria um nojo! Assim como a


maioria da intelectualidade alheia que se vê por aí: um nojo. ’

Ainda assustada com tal visão aterradora do inferno, Alice partiu dali,
enquanto Von Lafaiete acendia seu cigarrinho.

Enquanto caminhava com dificuldade pela floresta, Alice escutou ao longe


uma música. Uma canção tão singela que lhe tocou o coração, e pôs-se a
procurar de onde vinha. Ao passar por debaixo de uma erva daninha, viu
uma visão lindíssima que fez-lhe lembrar os cenários mágicos dos contos
de fada: flores de todas espécie dançavam e cantavam a beleza do amor,
abelhas cortavam o ar graciosamente e colibris namoravam por entre as
folhas que se riam. Provavelmente estava sob o efeito-tabela, por causa da
fumaça inalada enquanto conversava com Von Lafaiete.

Uma poesia pura e o som harmonioso das harpas mágicas fizeram-lhe


correr as lágrimas e seu coração palpitar. Já dançava entorpecida de um
amor sublime envolta de tanta beleza multicolorida e luzes exuberantes,
acompanhando os seres da natureza, totalmente entregues à emoção,
quando, de repente, todos silenciaram. Cada qual retirou-se a um canto
enquanto sussurravam baixinho: ‘Lá vem ele, lá vem ele..’ ‘Fiquemos
caladas..’

Alice não entendeu o que estava acontecendo, imaginou que estava na


verdade em uma reunião do santo daime, mas se juntou à maioria das
32
abelhas e mariposas embaixo de uma rosa cantora, que agora estava quieta
como um vegetal, e perguntou a uma libélula:

- ‘Por que paramos? Quem está chegando? O que está acontecendo?’

- ‘O rei do lirismo vem aí’ – sussurrou-lhe a libélula –‘o poeta mais


sensível e de voz mais tocante deste país se aproxima. Feche a boca e abra
o coração. ’

Então, por dentre as mais belas orquídeas surge ele, o poeta rouxinol!
Pousa sobre um galhinho seco, faz uma pausa e o silêncio é geral. Todos ao
redor o observam sem um pio. Assim, num momento mágico, o rouxinol
abre seu bico e derrama seu canto no coração de cada ouvinte.

Sua canção é tão harmoniosa que todos entram em contato com seu próprio
coração. Alice pôde ver o amor tão claramente que chorou. Não de tristeza,
nem de alegria, mas, simplesmente, de amor. As flores e plantas também
caíram em prantos, orvalhando-se. E assim continuou o rouxinol, contando
em suas notas tudo que sabia de verdade. E assim se faz um belo músico.
Não de habilidades técnicas, mas de saber mostrar por meio da música a
verdade que ninguém pode ver por outros meios.

Depois desta experiência transcendental, Alice, que agora sentia uma larica
desgraçada, continuou sua peregrinação, e com a ajuda de sua nova amiga
libélula, encontrou uma trilha. Enquanto seguia caminho, disse à libélula,
que vinha voando a seu lado:

- ‘Não sabia que o orvalho surgia dessa maneira. Sempre pensei que fosse
pela umidade relativa do ar. ’

- ‘Umidade relativa do ar?’ - perguntou a libélula indignada – ‘De onde


você tira tanta besteira?’

- ‘Então por que todas as manhãs as flores e plantas amanhecem


orvalhadas? Elas passam a madrugada toda a chorar?’ perguntou Alice.

- ‘Sim, sim. É principalmente de madrugada que pranteiam os seres.’

- ‘E por que tanto choram?’

- ‘As flores e as plantas choram os mortos de que são feitas. ’ Depois desta
explicação, a libélula pôs-se a seu próprio caminho, e deixou Alice seguir
em frente.

33
Alice finalmente conseguiu sair daquela floresta psicodélica, e viu-se na
entrada de uma grande cidade. Suas ruas eram todas pavimentadas com
pedras, suas casas eram grandes e seus habitantes, peculiares: eram cartas
de baralho.

Capitulo três

Havia então na cidade, um grande burburinho sobre a visita de um


estóico. Não demorou muito até Alice o avistar, em meio à praça pública,
rodeado de cartas de baralho admiradas com seu discurso complexo. Ao se
aproximar do aglomerado, Alice percebeu que o filósofo se tratava de uma
formiga vestida como um grego antigo e um raminho de folhas na cabeça.

Alice, ainda sob o efeito da poesia e do amor se aproximou para ouvir.

- ‘Meus irmãos, viveis todos como pulgas em um grande coelho branco.


Vossa visão está sumarizada em sorver da superfície o asqueroso sangue e
vossas vidas, Ah, vossas vidas! Quão efêmeras! Quão efêmeras! Saiais
deste coelho! Escalais os pelos grossos e brancos, e tendes a visão que eu
tenho! A visão da verdade!’

E assim continuava o discurso um tanto confuso, mas de aspecto profundo.


As cartas ouviam-no, algumas com curiosidade, outras com respeito, ainda
outras com repúdio. Alguns jovens valetes já seguiam o passo do filósofo,
vestindo um traje semelhante e deixando de lado as tentações materiais.

Ao acabar o discurso e dispensar a multidão, Alice pôde se aproximar do


estóico e fazer-lhe a seguinte indagação:

- ‘Sr. Estóico, não entendo muito das palavras que dizes. Qual sua
ideologia?’

- ‘Ora, posso perceber com minha visão extra-coelho que não és uma carta
de baralho. Que fazes em meio a esta cidade?’ perguntou-lhe o filósofo,
enquanto ia a caminhar pela calçada.

- ‘Não, não sou uma carta. Estou de passagem pela cidade. Na verdade
estava à procura de um coelho, mas já desisti....’

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- ‘Ah sim, o coelho. Deixe-me explicar minha teoria sobre coelhos.
Acontece que... ’

- ‘Já ouvi sua teoria sobre coelhos’ – interrompeu-lhe Alice – ‘mas de fato
não a entendi. Assim como, imagino, todas as cartas também não a
entendam. ’

- ‘Sei bem disso. Minha filosofia não é para que cartas de baralho a
entendam. ’

- ‘Então por que paras a cidade com teus discursos, e dizes tais palavras
enigmáticas e sem sentido para a população? Que lógica há nisso?’

- ‘Minha amiguinha’ – disse o estóico, enquanto parou sua caminhada e


olhou fixamente para Alice – ‘os filósofos não estão no mundo para ajudar
ninguém. Todos nós sabemos que nossas teorias a respeito da vida não
mudarão o mundo e não melhorarão a vida de ninguém, e ainda por cima
estragam a vida de alguns, como por exemplo, no caso desses tolos valetes
que querem tanto ser meus discípulos. Mas na maioria dos casos e,
geralmente, é assim que funciona com os cidadãos: falamos, falamos,
admiram-se e permanecem tal como estão, porém um pouco mais ciente de
quão tolos e superficiais são. Não quero mudar-lhes os costumes, quero
apenas mostrar-lhes quão superior eu sou.’

- ‘Então a razão de sua filosofia é simplesmente vangloriar a si mesmo!


Uma vaidade!’ indignou-se Alice.

- ‘E que razão há para a filosofia além da vaidade? Mas isso não diminui a
verdade das minhas palavras. Claro que meu modo de colocá-las aumenta
sua profundidade. Teorias simples ganham aspecto grandioso com as
palavras corretas. Mas não minto ao público. Digo o que penso. Não que eu
ache que mereça tamanha admiração da parte deles, mas, já que me dão,
aceito-a de bom grado e permaneço neste ofício.

Agora, se me der licença, estou a caminho de um jantar oferecido a minha


pessoa na casa do prefeito. Políticos gostam de parecer amigos de pessoas
públicas como eu. ’ E foi-se embora o estóico, rindo consigo mesmo.

E, se o leitor quiser saber a reação de Alice por ter presenciado tamanha


irreverência, não lhe direi, mas a farei conhecer pessoalmente. Pois, com
sua licença, tal como o estóico, também me retiro desta estória. Não dar-
35
lhe-ei um fim digno da longa leitura a qual se submeteu até aqui. Apenas
escrevo para alimentar minha vaidade de ser lido, e não me importa o que o
leitor tira de proveito.

Quero mais é que se explodam.

36
Esquecimento

Eu pensava erradamente.

Acreditava que a maturidade vinha junto com nossas conquistas e


nossos pertences. Acreditava que maduro era aquele que pôde experimentar
de tudo, conhecer diversos lugares e muitas pessoas. Engano.

Hoje sei que a maturidade vem com as perdas. Maduro é quem já


sabe que tudo aquilo que conquista não durará por muito tempo. É triste,
mas ela sempre acompanha certo grau de pessimismo. O fato é que o
pessimista se decepciona bem menos e no final das contas, pode ser mais
feliz que o otimista.

As decepções são constantes na vida e mais previsíveis do que as


alegrias. Mas ambas são efêmeras. Nossa mente sempre dá um jeito de
esquecer o passado. Não completamente, é claro, pois senão a maturidade
seria impossível de ser alcançada.
Aproveitando o ensejo, digo que se não houvesse o esquecimento, a vida
seria insuportável. O bem estar depende exclusivamente de como estamos
hoje. Um atleta entra em êxtase porque ganhou uma medalha, deixando
para trás suas antigas derrotas. Uma mãe entra em desespero por seu filho
estar morto, esquecendo todas as alegrias que ele lha proporcionou em
vida. Nós somos extremamente dependentes do presente. O presente é
egoísta.

Imagine um mundo em que o sentimento se desprenda da linha do


tempo. Um mundo onde todos os sentimentos são permanentes, todas as
alegrias eternas, todas as tristezas perenes. Onde a morte de seu cachorro
há 20 anos ainda pese tanto em seu peito quanto naquele dia. Onde a
felicidade das férias escolares ainda o faça saltitar. Nenhum coração seria
grande o suficiente para suportar isso. Então as sensações são furtivas, as
imagens se desgastam, os sons se emudecem e tudo some na névoa do
tempo.

Mas de tudo que passou, o que guardo com mais fidelidade na mente
( ou seria no coração?) é um sorriso. Já se perde os cabelos que o
emolduravam, a pele e o olhar que o acompanhavam. A voz já se foi há
muito tempo. Mas tal sorriso continua a minha frente, ainda acelerando
meu coração toda vez que retorna, como uma assombração.
37
Sé – São Bento

- Não. Sinto muito. Foi apenas uma canção.

Saio do metrô e deparo com tanta gente aqui fora. Minha mania de
encarar todos os rostos que passam ainda me trará problemas. Mas as
manias são difíceis de deixar. Minhas pernas não conseguem acompanhar
meus olhos, que deslizam por cada olhar, cada face, cada carro, cada
parede.

Um menino pára e olha um outro caído no chão cinza. Todas as


pessoas deveriam olhar através de meus olhos em certos momentos. E eu
mantenho a imagem focada numa esperança inconsciente e infundada de
que isso ocorra.

A beleza da cidade está em sua intrínseca falta de beleza. Está em


sua decadência.
Não há muito tempo que fiz este caminho ao encontro da morte. Agora as
ruas me jogam em suas paredes ao me indagar o porquê de ainda estar vivo.
Abaixo a cabeça e sigo reto.

Foi inesperado esse cheiro que me lembra algo bom de um passado.


Não sei de onde vem, mas trás um longínquo dia feliz.
Eu deveria ter dito “eu te amo” bem antes.
Um ambulante toca uma música que faz mudar minha direção. Trombo.

- Você não vê por onde anda?


- Não. Sinto muito. Foi apenas uma canção.

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Pessoas A e B

Uma pessoa do grupo A não interage com uma pessoa do grupo B. A


pessoa do grupo B não se interessa pela do grupo A.Onde a pessoa do
grupo A está, não se vê uma pessoa B. A pessoa B não visita a pessoa A.

As comidas preferidas do grupo B, são repudiados por quem é de A.


As músicas preferidas da pessoa A, nunca foram tocadas no grupo B.

As coisas belas para a pessoa do grupo A, passam desapercebidas


pela pessoa do grupo B. As coisas agradáveis para a pessoa do grupo B, são
repugnáveis para a pessoa do grupo A.
Situações cômicas para as pessoas B, não são engraçadas pra quem é de A.
Muitas vezes são até tolas.

As vezes uma pessoa do grupo B confunde quem é do grupo A, mas


não demora até se compreender a confusão e então a segregação é refeita.
A pessoa A se veste de um jeito. A pessoa do grupo B se veste de outro.

As palavras do grupo A são ouvidas com preconceito por quem é do


grupo B. As palavras do grupo B são ouvidas com desdém por quem é do
grupo A.

A pessoa do grupo A às vezes acredita, em outras desacredita. A


pessoa do grupo B às vezes desacredita, às vezes acredita.

Eu sou do grupo A. Você é do grupo B.

39
Uma tarde má sucedida de bird-watching

Nada melhor para fugir de uma vida estressante do que uma boa tarde
observando pássaros. Ou não.

De todos os dias em que saí para fotografar, acho que hoje foi o mais
infrutífero. Nem um único passarinho quis dar o ar da graça pra mim.
Ainda por cima me aparece um senhorzinho interessado em comprar o
terreno – meu campo de observação. Tive que ouvir calado que ‘seria bom
se transformassem todo aquele terreno em área residencial’! Um absurdo
dizer isso pra alguém que está com uma câmera fotografando a beleza
natural do lugar.

Acho que por pior que seja uma tarde de bird-watching, sempre se sai
com fotos de alguma coisa. Nem que seja macros de insetinhos ou, pior
ainda, o velho recurso do pôr-do-sol que está quase todo dia lá pedindo pra
ser fotografado e admirado.

Mas, apesar de ser um recurso apelativo, não concordo com a idéia de


que fotos de por-do-sol não são originais. Tanto são, que cada segundo
desses momentos são únicos na história do universo. Nunca se verá um
momento semelhante a outro numa escala de um bilhão, um trilhão de anos
de por- do-sol.
Esses dias, li a idéia de um cara que não gosta de usar a fotografia como
recordação de pessoas. Segundo ele, não se deve prender uma imagem
assim, pois as pessoas e as opiniões que temos sobre elas mudam ao passar
do tempo. ‘Não se deve aprisionar o tempo numa imagem’. Ainda não sei
se concordo com ele. Não parei pra pensar no assunto com vontade.

Aliás, há vários assuntos como esses, idéias, teorias, pensamentos, lidos


numa revista, num site, ou criado em minha cabeça mesmo, quais ainda não
tive tempo para raciocinar sobre e criar uma opinião concisa. E eles ficam
guardados em algum canto da minha cabeça, esperando uma vontadezinha
para que a classifique como certa ou errada. AH, ingenuidade eu dizer isso!
Como se o mundo fosse apenas dividido em dois, certo e errado!

Enfim, voltando a minha tarde de observação de pássaros: tive ainda a


desagradável surpresa de ver minha câmera morrendo em minhas mãos ao
sugar toda a energia das pilhas. Desliguei-a antes de presenciar sua agonia
40
final, e na esperança de guardar um pouquinho de energia no caso de ainda
ver alguma cena boa de ser fotografada durante o retorno.

E realmente, ao sair da área repleta de árvores e mato, quando estava


passando em frente a uma empresa que fabrica lajes, ouvi um assobiozinho
vindo de dentro da cerca. Voltei, procurei, e achei um pássaro num estado
lamentável pousado sobre as armações de ferro. Depenado, com o bico
torto e sinais de machucado. Pelo jeito, não conseguia voar. Rapidamente
saquei minha câmera no êxtase de ter uma foto extremamente dramática,
com a cerca de arame e os ferros enferrujados desfocados em primeiro
plano, o pássaro e seus olhos penosos me encarando, e ao fundo também
desfocado, peças de caminhões e tratores, formando uma imagem poética e
que daria muito o que refletir.

Mas em segunda instância, ao observar novamente o olhar do pássaro que


havia se silenciado por medo em minha direção, desci lentamente a câmera
e achei que seria um ato extremamente anti-ético, amoral e covarde. Eu,
que havia fracassado em fotografar um pássaro vivo e feliz em suas
atividades rotineiras, construindo um ninho, alimentando os filhotes,
voando com seu amor, brincando nas ondas de vento, não teria coragem de
cometer esse ultraje com a vida e com as aves, as quais respeito
muitíssimo. De repente, pareceu me agradecer com o olhar e com um salto
sumiu de vista.

Bem, de qualquer maneira, coloco aqui algumas fotos de hoje. Não são
boas, mas são genuinamente o resultado de uma tarde má sucedida de bird-
watching.

41
Texto

Eu, esses dias, comi um pedaço de meu dente. Mordi e arranquei um


belo pedação de meu último dente – não tenho certeza se é o siso. Não sei
nem se o siso chegou a crescer ou está incrustado em alguma regiãozinha
de minha gengiva.
Há muitos casos em que ele cresce horizontalmente por baixo da arcada
dentária, ou torto. Não sei se esse é meu caso. Aliás, faz muito tempo que
não vou ao consultório.
Ademais, muito tempo que não vou a qualquer instituição médica com a
finalidade de me consultar, embora realmente devesse.

Continuando esta consideração a respeito de minha saúde, ou falta


dela, creio que debaixo de meu couro cabeludo haja uma comunidade de
vermes semelhantes a gusanos ou minhocas – talvez mais compridos. Por
ora não chegam realmente a me incomodar, por isso também não os tenho
incomodado. Acredito que seria um ato egoísta ter meu corpo apenas para
mim. Há tantas espécies parasitas que necessitam de colaboração mútua
para sobreviver! Assim como nós que parasitamos a Terra.

È um ato genuíno de amor dividir nosso corpo, que nada mais é do


que um lar para nossa mente. Pois o que somos, além de mente? As leis
físicas não permitem que nossa mente percorra o mundo, por isso Deus nos
deu um corpinho.
Gostaria de aproveitar a oportunidade para reclamar de algo que me
incomoda à tempos: os emails encaminhados com textos supostamente de
autoria de Luiz Fernando Veríssimo e Arnaldo Jabor.

Não que eu tenha algo contra eles, mas esses textos, muitas vezes
mal formulados geralmente têm sua autoria falsificada! Ora, é óbvio que a
maioria não é de Jabor nem do Veríssimo, e sim de algum insono que quis
ter seu textinho espalhado por aí.
Outro dia tive a surpresa de encontrar um texto falsamente atribuído
ao Veríssimo em que continha como idéia central da conclusão uma frase
retirada de um filme de Sessão da Tarde, o breguíssimo Noiva em Fuga!!
Alguma besteira falando sobre o amor. Imagine a reação do escritor ao ver
seu nome atribuída tal vergonha!
Tenho uma teoria sobre esse fenômeno da dissimulação tão grande de
emails com textos motivacionais. Perceba, geralmente são idéias formadas
que lhe impõe uma maneira de pensar de bases desconhecidas e obrigam
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sua aceitação. Quem quer que tenha escrito tais coisas, seja um insono
maluco ou realmente o Arnaldo Jabor, viveu experiências próprias para
chegar a tal conclusão. Por que aceitar uma idéia pronta ao invés de
racionarmos e construirmos nossas próprias opiniões?

Hoje as pessoas esqueceram a filosofia, o raciocínio, a leitura


aprofundada e acompanhada de meditação, o contemplamento, a indagação
– caminhos para se chegar à nossas próprias idéias.

Muito mais fácil é receber e abraçar opiniões prontas de quem se


presume poder confiar. Pois eu digo: da próxima vez que receber textos
motivacionais, de auto-ajuda, ou esses que estão repletos de “verdades
incontestáveis”, pergunte-se se são realmente incontestáveis antes de
encaminhá-las a mim.

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A última flor do sertão

Dizem que isso aconteceu há muitas décadas lá nos arredores de São


Pedro da Boa Vista, no tempo em que a região passava pelo maior aperreio
causado por estio de que se tem notícia. Era aquele azulão todo no céu, sem
uma manchinha branca sequer pra trazer esperança de chuva. Branco
mesmo só as ossadas que agora estavam espalhadas sobre a vermelhidão do
solo mais seco do mundo, de se perder de vista. E era tanto sol que doía o
olho de ver, mas, como dizem, doía inda mais era o coração.

Os rebanhos, as bicharadas agora já estavam todas morridas. E


chegava a hora e a vez do bicho-homem de se ir. Ou ficava pra morrer em
casa, de fome, sede ou inté de desesperança, ou ia estrada afora, em busca
de um tiquinho de vida esquecida em algum canto qualquer.

E foi assim que se deu início à história mais triste já acontecida nesse
sertão. Foi quando se iniciou a fuga de São Pedro da Boa Vista. Metade se
foi, metade ficou. Quem ficou, ficou mesmo era porque já não tinha mais
força pra andar e sabia que ia morrer na estrada. Era velho doente, velha
reumática, criança desnutrida, mulher de barriga. Quem se foi, foi mesmo
porque não tinha coragem de ficar e ver tamanha mortandade e preferia
entrar numa caminhada desesperançada e desafiar a danada da morte. Mas
a verdade é que quem partiu sabia da dificulidade de resistir mais de dois
dias com as marretadas do sol na cabeça, inda mais sem um pingo d’água.

Então chegou o dia que juntou-se a última caravana de retirada.


Reuniram-se toda a gente na saída da cidadezinha. Quem não podia ou não
queria ir ficava só vendo, aquele rebanho de gente magra indo-se embora.
Demorou pra partir, por causa das despedidas. Era filho deixando mãe,
marido deixando esposa, irmãos se despedindo. E no meio estava
Apolinário, menino-moço, com sua mãe agonizante no colo.
- Vamo, menino! Deixe tua mãe que já não há mais de viver. Mais hora
menos hora a morte a leva, e então tu vai ficar sozinho nessa cidade
fantasma. Se avexe que já tamo partino!
- Vo não – respondia Apolinário. Era desafeição demais deixar sua mãe ali,
entregue a morte, solitária. Ela, mãe-solteira. Ele, filho único. Ela era tudo
que ele tinha, e ele tudo pra ela. Quantas e quantas dificulidades dessa vida
tinham passado os dois juntos, e essa havia de ser a pior de todas. Não

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havia de abandoná-la, não! Ela não o deixaria, ele sabia bem disso. Havia
de ficar ali!

A mulher, já inconsciente, delirava deitada, com a cabeça pendente


sobre o colo de Apolinário que sentia vontade de chorar, mas estava seco
era demais por dentro pra ter o luxo de se derramar uma lágrima. E via a
multidão aprontando-se lá fora, indo-se embora. E o tio Mazinho:
- Menino, vamo que é a última vez que lhe chamo! Tamo indo e é agora
mesmo. Tem de se ser forte nesse momento, menino. Olhe: é da vontade de
sua mãe que tu vá conosco, sei disso.
- Vo não. Vo ficar é aqui mesmo. Na minha casa, com minha mãe.
- Menino, olhe: não posso é te arrastar à força, pois nem força mais eu
tenho pra isso. O povo tá-se indo e indo eu me vo tamém. Vamo enfrentar
esse sol na esperança de vivência. Tu tem que entender que vou levar a
jarra dessa água que sobrou. A gente vai pra debaixo do sol, tu vai ficar na
sombra, Apolinário. Eu quero é o melhor pra ti, mas essa água há de ser
mais preciosa pra gente que tamo ino. Deus te abençoe.

E Apolinário viu a gente indo embora, levando até o ultimo gole de


água que lhe restara.
Continuou sentado no chão, afagando o cabelo de sua mãe em seu colo e
vendo pela porta o povo indo, sumindo na vermelhidão do inferno. Ficaram
alguns espalhados pela cidade. Escutava um choro sem cessar de uma
criança e vez por outra, ouvia passos ao longe.

A noite chegou e o choro continuava. Apolinário deitou a cabeça de


sua mãe com cuidado e levantou-se a modo de encontrar a criança. Saiu
pela porta e sentiu o vento gelado bater-lhe no rosto. A lua cheia lá em
cima iluminava as ruas de São Pedro da Boa Vista e as árvores secas
imprimiam no chão de terra batido sombras de fantasmas e vultos errantes
pela cidade solitária. Lamparinas acesas em duas ou três casas ao longe
evidenciavam os poucos que, assim como ele, ficaram pra trás.

Continuou seguindo o choro que a cada passo se tornava mais


agonizante, mais desesperador. Mas ora parecia que o choro vinha da
esquerda, ora da direita e misturava-se com o vento insistente que parecia
varrer da cidade os últimos resquícios de vida. Perambulando pelas casas
de barro Apolinário sentia que não estava sozinho e sempre que passava à
frente de alguma porta sentia que alguém o observava da escuridão lá de
dentro.

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Então, encontrou a casa de onde vinha o choro interminável. Quanto
mais perto o choro ficava mais forte e mais alto. Uma casinha pequena, as
paredes quebradas e a porta entreaberta. Lá dentro, escuridão. Então parou
à frente da porta e a empurrou com cuidado. Nesse momento o choro
parou. Apolinário também. Não havia mais som algum vindo de dentro da
casinha. Apolinário correu de volta pra casa sem olhar ao redor.
Sentou-se ao lado da mãe, gelada, que já não respirava. E lamentou-se por
ter perdido o seu último momento de vida. Durante a madrugada ouviu
berros de bezerro vindo de fora. Mas esperou até amanhecer para sair de
casa.

No dia seguinte, com o sol já reinando, Apolinário levantou. Botou a


mãe na rede e saiu. Seu olho doeu do sol tão forte. O vento da madrugada
havia parado, e agora o calor misturava-se com o cheiro cadavérico dos
mortos espalhados pela cidade.
Com o sol Apolinário criou coragem e foi até a casa de onde vinha o choro
na noite anterior. Da porta entreaberta sentia o forte cheiro da morte.
Encontrou a mãe e a criança dormindo docemente na rede, unidos para
sempre num gelado abraço materno.
Apolinário saiu e parou debaixo daquele sol. Já não tinha aonde ir. A sede
agora aumentava ainda mais. Cansaço. Fome. Voltou pra casa e dormiu no
chão ao lado do túmulo da mãe, a rede imóvel.

Apolinário acordou com barulho de gente. Era a caravana que vinha


de Terra Bonita, cidadezinha que ficava a dois dias dali. O pessoal todo
entrando nas casas à procura de algo pra comer ou beber, sem dizer uma
palavra.
Sem pedir nem ser chamado, Apolinário sentou-se ao lado de alguns que
descansavam à sombra de uma casa. Eram duas dúzias de gente com cara
de faminta, queimada de sol, mas que estavam ainda melhor do que sua
gente que saíra de lá.
Enquanto mirava os rostos sofridos daqueles seres que teimavam em
sobreviver, Apolinário se deparou com a maior beleza que já havia visto na
sua vida: Cidinha. Menina morena de cabelo queimado até os ombros. Olho
grande e preto. Magriça feito lagartixa. Apolinário pensou que era mais
bonita até que dona Rosa, aquela prima de Santo Antônio dos Açores.

O olhar de Cidinha era tão poderoso que fizera Apolinário não


pensar mais em morte, em sede ou fome. Era bonita por demais.
Logo, sem uma palavra, se levantaram e começaram a partir como se cada
um ali soubesse de cor a hora de recomeçar. Antônio das Lamparinas ia à

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frente, por que conhecia o caminho, as mulheres e os mais velhos iam atrás
dele e os mais moços iam lá atrás.
- Mãe morreu, ficou lá atrás, disse Apolinário.
- Pai é aquele ali da frente, respondeu Cidinha.
- Pra onde ta levando a gente?
- Diz que é pra terra do padim Ciço. Diz que é longe por isso nem falar a
gente pode, que é pra não gastar saliva.
Apolinário se calou, mas ia olhando Cidinha com o olhar de lado.
- Quer água? Cidinha perguntou.
Apolinário balançou a cabeça e Cidinha estendeu a garrafinha de coca-cola
com dois dedos de água. Ele bebeu meio dedo e devolveu.
O grupo parou novamente, na cidade de Passo Raso, já com três pessoas a
menos, que ficaram pelo caminho. No fim da tarde Cidinha dormiu no colo
de Apolinário, que apesar de se esforçar pra permanecer acordado e ficar
olhando aquela beleza toda, adormeceu.

Apolinário acordou antes de Cidinha e foi procurar uma flor pra


colocar em seu cabelo como havia visto sua prima Rosa uma vez usar. Saiu
pela cidade vazia e silenciosa ao amanhecer. Ao chegar à rua principal da
cidade, fria e solitária, avistou um corpo do lado da praça. Chegou mais
perto e percebeu que era o corpo seco e magro do tio Mazinho. O vento
gelado fazia sua pele tremer e voltou rapidamente para junto de Cidinha,
pois havia percebido que nenhuma flor sobrevivera àquela secura toda.
Caiu no sono.

Dia amanheceu e acordou só a metade dos que haviam dormido.


Quem se levantou, partiu logo antes do sol começar a queimar mais forte.
Antônio das Lamparinas levou Cidinha no colo, que não conseguiu
acordar. Foi quem foi. Apolinário ficou.
Mas porém não havia morrido. Acordou sozinho, percebendo que o havia
deixado ali. Pensaram que o pobre magricelo já havia deixado de viver.
Num canto estavam alguns corpos que o haviam acompanhado desde São
Pedro de Boa Vista, mas o de Cidinha não estava lá. Apolinário seguiu
sozinho.
O calor já não era tão insuportável, pois tinha na cabeça a figura de Cidinha
indo à sua frente, e foi tentando caminhar tão rápido quanto suas pernas
franzinas permitiam.

O sol ia fazendo sua curva pelo céu mais azul de que um dia já vira,
e não agüentando mais, Apolinário sentou debaixo de uma árvore seca, que
lhe dava certo frescor na sombra minguada.

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Quando o sono já vinha e seus olhos começaram a fechar, Apolinário viu a
sua frente uma figura qual nunca vira antes, era de beleza tamanha que só
não se comparava com a de Cidinha. Era uma flor amarela, solitária,
debaixo da sombra de uma rocha. Apolinário se levantou, como se
houvesse esquecido tamanho esgotamento, pegou a flor que facilmente se
entregara à mão sua mão, como se soubesse de seu belo destino, e impôs no
coração descarnado de Apolinário ritmo para que recomeçasse seu
caminhar, não mais à procura de sobrevivência, mas de Cidinha.
No meio da tarde, Apolinário e sua flor passaram pelo corpo de Antônio
das Lamparinas e antes do crepúsculo, chegou à cidadezinha de
Ermengardo Quarana. Lá estava o povo de Terra Bonita.

Apolinário partiu em busca de Cidinha, no meio da gente silenciosa,


da qual não se ouvira uma palavra. Das duas dúzias que chegaram à São
Pedro da Boa vista, restara não mais do que meia.
Dentro da casa mais fresca da cidade, encontrou Cidinha. Não derramava
lágrimas, mas chorava com o olhar.
Apolinário pôs a flor amarela em seu cabelo longo e queimado. A flor que
já havia morrido pela viagem quente. A flor amarela morrera, mas estava
viva naquela casa de Ermengardo Quarana, a última flor do sertão.

48
Os amantes de Teruel

Segundo a tradição espanhola..:

Em 1217, na pequena cidade de Teruel, Espanha, havia duas famílias


ricas, os Mascilla e os Segura. Diego Martinez era um Marcillia e Isabel era
da família Segura. Os dois se apaixonaram quando ainda eram amigos de
infância, mas quando chegaram próximos à idade do casamento, a família
de Diego entrou em dificuldades financeiras. O pai de Isabel, sendo o mais
rico da cidade, proibiu o casamento. Indignado com a decisão, Diego fez
um acordo com o pai de Isabel de que ele deixaria a cidade por 5 anos a fim
de fazer fortuna. Se nesses 5 anos Diego ficasse rico, teria permissão para
se casar com sua filha.

Durante os próximos 5 anos, o pai de Isabel insistiu para que ela se


casasse com outro. Ela negava, dizendo que Deus a queria virgem até
completar os 20 anos e que ainda não estava preparada para se tornar uma
boa esposa. Por seu pai a amar muito e desejar sua felicidade, ele
concordava e durante 5 anos, Isabel aguardou o retorno de Diego.

Ninguém ouviu sequer uma notícia de Diego durrante esse período e


então, num dia próximo de se completar os 5 anos, o pai de Isavbel a casou
com Dom Pedro de Azagra, de Albarracím.

Logo depois da cerimônia de casamento, houve um burburinho no


portão de Zaragoza. O vigia informou o vilarejo que Diego Marcilla havia
retornado com grande fortuna e com a intenção de se casar com Isabel.
Diego não avisou o dia em que voltaria por que confiou no acordo feito
com o pai de Isabel.

Naquela noite, Diego entrou sorrateiramente no quarto de Isabel e seu


marido, e com muito cuidado a acordou. Ele implorou: "Besame, que me
muero" mas ela recusou, dizendo: "No quiera Dios que yo falte a mi
marido. Por la passion de JesuCristo os suplico que busques a otra, que de
mim no hagais cuante.Pues si a Dios no ha complacido, tampoco me
complace a mi."

Ele implorou mais uma vez, dizendo que estava morrendo e desejava
49
um último beijo. Mas ela novamente negou. Após ouvir isto, DIego não
suportou a dor da separação dele com seu amor e com um suspiro
morreu aos pés de sua amada Isabel.

Quando ela se deu conta que Diego havia morrido, ela tremeu.
Acordou seu marido, dizendo que seu ronco a havia assustado e queria
ouvir uma estória. Ele contou, e no fim, ela contou sua própria história. Ela
contou sobre Diego e como havia caido ao lado da cama.
- "Oh, sua miserável! Por que você não o beijou?!"
- "Para não trair meu marido.."
- "Ah sim, claro.." ele resmungou.." uma mulher elogiável."

Eles concordaram em enterrar Diego em segredo nos túmulos da


Igreja, porque o marido temia que ele fosse culpado pela morte.
No dia seguinte, durante o funeral de Diego Marcilla, Isabel apareceu
vestida de noiva.

Ela andou foi até a frente da Igreja e dessa vez, Isabel fez o que havia
negado na noite anterior e beijou Diego. Mas ao fazer isso, Isabel morreu,
caindo em cima do corpo daquele homem que ela havia amado.

As duas mortes por amor fizeram com que o povo de Terual


reinvidicasse que os corpos fossem enterrados lado a lado. Dessa maneira,
eles poderiam estar finalmente unidos. Durante vários anos, muitos
visitantes foram à tumba dos amantes de Teruel. Então, em 1560, as
múmias foram exumadas e colocados na tumba construída por Juan de
Ávalos, onde estão até hoje.

50
Texto 2

Um cachorro é um cachorro até que ele mie; um gato é um gato até


que ele relinche; um cavalo é um cavalo até que ele fale.

Queira ou não, nós somos o que sai de nossas bocas. Então como
definir figuras que só falam merda? Que abrem sua maldita boca apenas
para sonorizar as mais mal escolhidas palavras nas piores ordens possíveis,
formando as menos bem-vindas frases nas horas mais inconvenientes?

Aposto que à sua mente, leitor, já afluiu a imagem de um desses


merdísticos personagens, senão vários. Ah sim! O mundo nos oferece
milhares de seres que realmente nada tem a adicionar à sociedade em geral
e ainda por cima subtrai!
Qual a razão de existirem e como se formaram? Talvez a resposta seja a
mais óbvia de todas: má educação.

Talvez seja o resultado de ser uma criatura impetuosa que fala sem
pensar duas vezes. Ou (pensando bem (Ops...isso é contraditório? (um
parêntesis dentro de um parêntesis sem ser equação matemática é difícil de
se ver ( puxa, quanto mais parêntesis, mais o assunto se perde do inicial))))
seja justamente o resultado de se pensar duas vezes!! Pois tenho conhecido
pessoas que são um perigo quando pensam uma vez. Que eu nunca ouça o
que sai da boca delas ao pensarem duas. E muito menos esteja perto para
ver de que são capazes ao usarem em demasia sua precária massa cinzenta.

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Parapeito

Quando foi exatamente o momento em que vim parar nesse parapeito


eu não sei.
Tentar entender é vão. E no entanto, pq é impossível fugir do
comtemplamento? E é bem verdade que o contemplamento foi o início de
minha desgraça.
No entanto eu vejo e penso e morro. Quão bom seria apenas ver. Ou
não? Talvez eu não trocasse a morte pelo pseudo-contentamento intrínseco
dos seres que dividem o ônibus comigo. Mas afinal de contas, Talvez é
simplesmente 50%.
Sendo assim, qual a importância do Talvez?

Enfim, no parapeito encontro tal situação. De um lado a inevitável


morte da queda e do outro a insegurança da calçada. Se eu caio para
esquerda, algo realmente importante acontecerá. Se eu caio para direita,
nada terá mudado para mim e para o mundo. Continuarei a existir e a
persistir na minha vida insossa mesmo que tenha quase morrido. Mudaria
algo saber que quase morri?

Quanto mais próximo estivemos da morte, tanto mais a encaramos


com indiferença. É um processo natural. Sabermos que
estamos apenas vivendo o bônus nos faz aceitar o inevitável fim. Próprio e
alheio.

É bem mais fácil pensar quando não se tem uma vida a se preocupar.
E por que se preocupar com a vida se ela não se preocupa
contigo? Ora, se um ajudante de confeiteiro não é bem quisto socialmente,
quanto mais o diretor da bolsa de valores!

Enfim, o que te prende aqui em cima?

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Viva a Monarquia!

Viva a monarquia!
Um grande passo na luta contra a corrupção indiscriminada no nosso
Brasil e a favor de uma melhor distribuição de renda, uma base política
sólida e unida a caminho de um único objetivo traçado pelo rei e seus
conselheiros.

Chega dessa falsa democracia, que imputa em simples e reles


plebeus proletários, tamanha responsabilidade social de escolher seu
próprio governante! Não é possível crescimento bem fundado sendo que o
direcionamento político muda de quatro em quatro anos e com tamanha
influência partidária e eleitoral.

O rei tem toda autoridade para comandar e conduzir da melhor


maneira possível seu próprio lar, recebendo desde o berço as instruções
necessárias e trazendo em seu sangue azul o nobre brio, valentia e
inteligência que fazem da monarquia o mais forte sistema político
.
Sendo assim, partamos todos ao Palácio do Planalto, sede do poder
executivo em Brasília, tomemos à força as armas dos Dragões da
Independência e dependuremos a cabeça de Lula no mais alto mastro da
bandeia nacional! Derrubemos Brasília! Voltemos ao Rio de Janeiro ou à
Salvador e elejamos nosso novo rei!!

Viva o rei..... errr.. ops.. falta-nos ainda escolher nosso novo


comandante, o príncipe do Império brasileiro que nos guiará diretamente à
glória.

Pois bem. Temos algumas opções para a vaga em aberto. Há quem


prefira que o trono volte à família Bragança. Sendo assim, nosso primeiro
candidato é......:

D. LUIZ DE ORLEANS E BRAGANÇA - primogênito e herdeiro


dinástico do falecido Príncipe Dom Pedro Henrique de Orleans e
Bragança, admirável figura de brasileiro, chefe de família exemplar e
artista de conhecido talento; é neto de Dom Luiz de Orleans e Bragança;
bisneto da Princesa Isabel, a Redentora, e trineto do Imperador Dom
Pedro II.

53
É um currículo invejável, com certeza e tendo em vista a linhagem de
herdeiros ao trono, seria o mais provável rei – é o que diz a ala direitista
da revolução. Mas a ala esquerdista, prefere que aproveitemos a
oportunidade dessa re-implantação da monarquia para criarmos uma
linhagem totalmente nacionalizada, sem a interferência dessa antiga
marca européia incrustada no coração do Brasil. Sendo assim, a opção
da ala esquerdista da revolução tem como sua escolha para novo rei
brasileiro:

ROMÁRIO DE SOUZA FARIA, mais conhecido apenas como


Romário, (Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 1966) é um importante
futebolista brasileiro, terceiro maior artilheiro da Seleção Brasileira com
71 gols marcados tendo mantido este recorde até maio de 2006, já que
fez seu último jogo pela seleção brasileira em 2005.

Também é um ótimo currículo! Seus pontos principais que o


diferenciam de Dom Luiz, segundo a ala da esquerda, é que ninguém
além de Romário tem tanta ligação com a alma do povo brasileiro e
muito menos a confiança que ele adquiriu de cada habitante canarinho.
Ora, as pessoas confiam mais em Romário do que no Lula! Ninguém
melhor que ele para por a coroa real na cabeça e muitos esperam o dia
em que ouvirão dele: “É isso aí, peixe! Diga ao povo que fico!”
E ainda há uma terceira opção. O candidato, ou melhor, a candidata
escolhida pelo povo após uma breve pesquisa de opinião.
Maria Odete Brito de Miranda, ou simplesmente Gretchen, cantora
e dançarina brasileira que se tornou conhecida como a "Rainha do
Bumbum" em razão do jeito como dançava, virando-se de costas para as
câmeras de televisão e para platéia, tornando-se a pioneira da Bunda
Music.

Ela tem a vantagem de já ser conhecida pelo povo com o título de rainha
e ser muito querida pelo público em geral. E outra vantagem, é que de
brecha já nos imputaria também uma nova princesa, sua filha lésbica
Tammy!

Fica agora a expectativa de nossa revolução, a mudança drástica a


caminho da nossa futura nação gloriosa, regada de ordem e progresso, o
império brasileiro!

54
BLÉIN! A fragilidade de nossas vidas...

BLÉIN! Foi o barulho que fez Roberta parar e olhar para trás
enquanto cruzava a esquina da Av. São João com a Aurélia, percebendo o
infeliz acidente causado por um alicate que caiu do alto do elevado Costa e
Silva diretamente à cabeça de uma senhora que tbm passava por ali.
Contemplando por alguns momentos tal acontecimento, Roberta não
continuou andando e nem trombou ao cruzar a esquina com Romualdo, que
pediria perdão e a convidaria para tomar uma Coca, que se transformaria
alguns anos mais tarde na champagne de um grande casamento e uma vida
aparentemente feliz regada de amor e a alegria de dois filhos, Roberto e
Rodrigo que, consequentemente, não morreria naquele acidente de moto
enquanto estivesse indo para o litoral. Acidente, diga-se de passagem, que
só seria causado se Rodrigo não se distraísse com a buzina do caminhão em
suas costas BLÉÉÉIN!...

É... Uma fatalidade! Roberta e Romualdo ficariam, então,


inconsoláveis, tendo à mente pelo resto de suas agora miseráveis vidas o
barulho causado pelo choque da cabeça de seu filho com o poste da Rod.
Ayrton Senna, BLÉIN!, que, por sua vez, assustaria o pacato pica-pau que
repousava lá em cima, nos fios de alta tensão, fazendo-o voar diretamente
para o gerador que BLÉIN! explodiria, deixando todas as vilinhas próximas
sem energia elétrica. E, naquela noite escura, o ladrãozinho esperto tentaria
se aproveitar da penumbra para entrar silenciosamente em uma casinha de
portas abertas. Mas o coitado levaria na cabeça uma BLÉIN! panelada da
senhorinha que estava acordada, que faria ecoar pelos corredores e quartos
tal som e acordaria Ernesto, após finalmente ter conseguido vencer sua
insônia, que não mais dormiria durante aquela noite e perderia a hora para
o serviço do dia seguinte, sendo então demitido.

Ora, se não fosse aquele BLÉIN! e a conseqüente demissão, Ernesto


nunca teria ido ao Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades de
emprego, nunca teria iniciado aquele serviço de conferente de estoque,
supervisor de logística, encarregado geral e vice-presidente da
transportadora... E muito menos teria saído mais cedo do serviço naquela
sexta-feira para comemorar seu aniversário de 15 anos de casamento e nem
lhe teria passado aquele menino de bicicleta em frente a seu carro na av.
Copacabana. Mas graças a Deus que Ernesto buzinou BLÉIN! chamando a
atenção do menino que rapidamente se desviaria, permanecendo ileso e
permitindo que Ernesto chegasse na hora para o aniversário.
55
Permanecendo ileso?? Ernesto nunca deixaria de saber que apesar q
o menino tivesse escapado da primeira, o susto da buzina faria com q ele
fizesse o desvio para o lado errado e fosse consequentemente atropelado
por um fusca vermelho que passaria em alta velocidade. O menino cairia
inconsciente parando toda a avenida, provocando grande engarrafamento e
muitas buzinadas BLÉIN! BLÉIN! BLÉIN! som q deixaria Abigail
extremamente estressada, estacionando o carro e descansando um pouco na
praia de Copacabana, enquanto o trânsito não andasse.

Abigail escutaria então aquele sonzinho típico : BLÉIN! BLÉIN!...


Ora, que boa surpresa: o carrinho de sorvetes! Ela teria pedido o de sabor
chocolate..
- “Não, não.. O Sr. teria o de côco queimado aí?”
- “Não senhora.. o coco queimado eu pedi mas ainda não chegou,
não...”
- “Vai o de morango, então.”
( Realmente, o de coco queimado não chegaria tão cedo... A empresa
fornecedora de São Paulo estaria fechada há três dias, por luto. Parece que
Romualdo, um alto funcionário de lá, se suicidaria. Ele teria uma vida
triste, pelo que parece, o filho teria morrido em um acidente de moto na
rod. Ayrton Senna há vários anos, a esposa teria ficado tão triste que
adoeceria e morrido de desgosto há poucos meses. )

BLÉÉÉÉÉIIIIN! BLÉÉÉÉÉIIIIN! Chegaria então a ambulância em


Copacabana. A paramédica poria logo a vítima dentro do carro e tentaria
ainda salva-lo lá dentro. Ela ficaria muito preocupada com seu estado. Tão
preocupada que até esqueceria de seu aniversário de casamento de 15 anos
que deveria estar ocorrendo naquela mesma hora. Passaria a ambulância
pelo restaurante Beira-mar com sua sirene alta, Ernesto ouviria e se irritaria
ainda mais pela indiferença de sua esposa q o teria deixado ali, a esperando.
Tocaria então a campainha várias vezes seguidas BLÉIN! BLÉIN!
BLÉIN!.... para chamar o garçom q se irritaria, pois não teria sido
necessário apertar tantas vezes a campainha para chamá-lo. Ocorreria então
uma discussão e uma briga séria que faria Juan, revoltado, largar o
emprego de garçom e voltar à sua terra natal, Argentina.

Ainda no aeroporto, Juan despertaria de um leve cochilo ao BLÉIN!


sinal do sensor de metais. Quem teria sido barrada era Marieta, mulata
brasileira que faria Juan trocar sua passagem de destino Buenos Aires para
Assuncíon, Paraguai, onde passaria o resto da vida ao lado de... Marieta?

56
Não... Pablo. Juan descobriria que era Gay ao ver o brilho dos olhos de
Pablo BLÉIN! Nasceria uma paixão!

Quando estariam caminhando pelas ruas paraguaias, a atenção de


Pablo se desviaria pelo BLÉIM! som causado pela batida da porta de vidro
daquela agência de viagens, onde um grande cartaz na vitrine ofereceria
então uma bela promoção de férias para Austrália, para casais. Ficariam
abismados ao descobrirem que a promoção não entraria em vigor para
casais homossexuais e organizariam uma grande manifestação contra o
preconceito e a favor da liberação de casamentos entre.... iguais.

A manifestação teria sido tumultuada. Um grupo de Skin Heads


entraria em conflito. Resultado final: 9 mortos, 54 presos e uma
‘organización paraguaya pro-Gays’. Como presidente da organização, Juan
viajaria o mundo para palestras e manifestações. Organizaria uma grande
excursão de gays de Assunção para a grande marcha da Av. Paulista.

Devido à previsão de um número recorde de participantes naquele


ano, a prefeitura de SP organizaria uma reforma pelas ruas e bairros do
centro. Contrataria inúmeros funcionários para o serviço, inclusive
Antônio, morador de SP, que não conseguiria dormir naquela noite, devido
a grande barulheira na rua causada por homossexuais vindos do Paraguai,
inclusive Juan e Pablo, que se embebedariam alguns dias antes da passeata
e passariam a noite importunando Antônio com suas canções anti-
preconceito e sinos, ah sim! Principalmente os sinos BLÉIN! BLÉIN! não
deixaram Antônio dormir durante toda a noite.

Dia seguinte Antônio irritado e cansado não conseguiria trabalhar


direito. Teria sido comissionado para reformar o parapeito do elevado
Costa e Silva. O cochilo foi inevitável. Finalmente descansando, quando de
repente BLÉÉÉÉIN! o sinal da hora de almoço fez Antônio acordar
sobressaltado, derrubando o alicate lá embaixo, na Av. São João bem na
cabeça de uma pobre senhora BLÉIN. Coitada.

57
Capítulo I

Capítulo I – Canto de Bar

Numa dessas sextas-feiras em que saímos do serviço e


acompanhamos nossos colegas a algum barzinho a fim de tomar cerveja e
comemorar o início do fim de semana (ou o fim do meio) avistei numa
mesa de canto um homem solitário, que tomava seu chopp vagarosamente,
de gole em gole, e tinha um olhar perdido e distante em meio às arruaças e
falatórios ao redor. Aquela imagem poética e curiosa me intrigou e roubou
alguns instantes da minha descontração. Mas, como era uma de minhas
primeiras noitadas e eu não conhecia bem o ambiente, imaginei que aquela
era apenas uma cena típica de recintos noturnos. Apenas mais um boêmio.
Pois bem, aquela noite acabou e por eu ter levado um senhor esporro de
minha esposa ao voltar pra casa, tarde e bêbado, nunca mais retornei àquele
bar.

Passaram-se alguns meses desde aquele episódio e novamente tive


uma discussão feroz com minha mulher, a quem prometi amar eternamente,
mas que agora já me fazia repensar os votos matrimoniais. Em meio à
discussão e, antes que me ferisse fisicamente, saí de casa batendo a porta da
sala tão forte quanto fosse possível, mas tomando cuidado para não quebrar
a batente, visto ser eu mesmo quem teria que arrumar, e rumei
instintivamente ao bar.

Chegando lá percebi que havia outros homens na mesma situação


que eu. Pelo menos aparentavam pelos gestos rudes e incertos, olhares
ainda marcados pela expressão típica do nervosismo oriunda da briga,
respiração inconstante e busca urgente pela cerveja.

A cerveja! Eis o melhor remédio para os piores momentos! E eis


um conselho de amigo: quando sentires desesperado, nervoso e estressado,
seja pela razão que for, pare e tome um chopp gelado. Verás como o
mundo ao redor se veste de tranqüilidade, mínima que seja.

58
Pois bem. Sentei ao balcão e pedi uma garrafa. Enquanto esperava,
avistei, no canto de bar, aquele mesmo homem que eu havia admirado uns
meses atrás! Sentado na mesma mesa, à meia-luz e a caneca de chopp
como companhia. Olhar fixo e distante. Sua expressão inerte demonstrava
uma profundidade de pensamento e me incitava a uma curiosidade
tremenda. Seu cabelo escuro e a ausência de fios brancos denunciavam a
pouca idade, embora a profundidade estampada em seu rosto fosse típica de
um homem vivido e marcado de experiências de vida. Olhos enterrados
numa face bonita. Se não fosse esse ar melancólico e decaído, seria um
belíssimo homem: bonito cabelo levemente ondulado, olhos claros, lábios
carnudos e traços fortes, nariz bem definido, alto, de bom porte.

Ao me entregar finalmente a garrafa de cerveja, o garçom percebeu


meu interesse pelo estranho, e me disse:
- ‘Aquele ali ta no mundo da lua, hehe. ’
- ‘É a segunda vez que vejo esse homem. E é justamente a segunda vez que
venho a este bar. Ele vem sempre aqui?’ perguntei.
- ‘Ele vem aqui uma, duas vezes por semana’ respondeu o garçom,
enquanto enxugava uma caneca – ‘vem, pede uma caneca de chopp e
procura sempre o canto. Fica ali, uma, duas horas e depois se vai sem puxar
conversa com ninguém. ’

Aquilo me deixou ainda mais encafifado. Como é que ele conseguia fugir
pro bar com tanta freqüência? Ele não podia ter esposa, não é possível!
Minha vontade agora era de ir até lá e saber o motivo daquele olhar
profundo. Mas ainda não estava alto o suficiente para puxar conversa com
um estranho tão compenetrado em seu mundo próprio. Tomei mais uma
garrafa e fui.

Puxei uma cadeira e sentei a seu lado com mais uma garrafa e dois
copos, já que seu chopp estava no fim.
- ‘Também brigou com a mulher?’ – perguntei, enquanto sentia o álcool
fazer efeito, me desinibindo e fazendo-me sentir como o mais amigável dos
homens sobre a Terra.
- ‘Ahnn? Não, não...’ – respondeu, enquanto repentinamente saiu de seu
universo, focalizando seu olhar ao objeto mais próximo, a caneca de chopp,
como se quisesse disfarçar sua fuga mental. Com um meio-sorriso

59
forçosamente estampado no rosto deu dois últimos goles na bebida e
desceu a caneca vazia sobre a mesa, enquanto eu enchia nossos copos.

- ‘É como sempre digo’ – eu disse – ‘quando a loira lá de casa ta brava, o


jeito é apelar pra loirinha gelada. Pelo menos esta aqui não me trai. ’ -
Claro que eu disse isso apenas pra quebrar o gelo e também por estar
alcoolicamente alterado.

Ele agradeceu pela cerveja, mas a princípio não parecia estar aberto
a conversas com bêbados como eu.
- ‘Sabe’ – continuei – ‘É a segunda vez que te vejo aqui. Por que senta
sempre nessa mesa afastada?’
- ‘É uma boa mesa’ – respondeu o estranho, entre um risinho, desta vez,
espontâneo –‘É próxima à janela, onde posso observar a rua e as árvores da
praça balançando pelo vento da noite, além de ser o lugar com melhor
ventilação do bar. ’
- ‘Gosta de ver árvores balançarem?’ – perguntei, intrigado com tal
interesse estranho. Por que gostaria de ver árvores balançando?
- ‘Sim, gosto. É uma forma de se ver o vento, não é?’ E sorriu, enquanto
tomava os primeiros goles da cerveja.

concordei com aquela afirmação, mas me deu vontade mesmo de rir.


Ver o vento? Para que finalidade alguém quer ver o vento, meu Deus?!
- ‘Mas, afinal de contas é um lugar muito bom. ’ Eu disse, na falta de algo
melhor –‘Vem cá, sua graça qual seria mesmo?’
- ‘Geraldo Azevedo, muito prazer’ e me estendeu a mão.
- ‘Prazer todo meu. Me chamo Anacleto.’ Respondi apertando sua mão
com força e orgulho, por ter conseguido me aproximar de homem tão
furtivo.

Em meio a conversação toda e cumprimentos, pude perceber em tal


homem uma presença diferente, um forma altiva e respeitosa de falar e de
se pronunciar, por meio de gestos e olhares. Demonstrava ter muita
vivência, apesar de ter provavelmente a mesma idade que eu, senão menos.
Quando falava, falava com convicção, certeza do que estava afirmando.
Certeza de afirmação, coisa difícil de ter. Era como se tivesse sempre a
razão, tivesse a conhecido em algum lugar desse mundo e a levasse consigo
assim, de cima pra baixo.

60
Depois de mais alguma conversa cujo teor não me recordo bem, visto
minha leve embriaguez, e antes de despedir-nos, perguntei-lhe quando
voltaria ao bar e ele me respondeu dizendo que seria provavelmente na
próxima sexta, sem saber que estava marcando um encontro comigo.

Queria encontrar novamente Geraldo e tentar descobrir mais a seu


respeito. Se eu tinha me aproximado naquela noite a fim de matar minha
curiosidade, tal aproximação só me fez aumentá-la ainda mais. De onde
vinha esse homem? Quem ele era?

Ao sair do bar, o observei caminhando pelas ruas, indo embora pra


casa e sumindo na escuridão. Tomei então meu caminho de volta, passando
pelo meio da praça. A noite estava fria e o vento batia em meu corpo,
fazendo-me tremer. Foi quando parei e observei as árvores. E pela primeira
vez eu vi o vento.

61
Carta de um amigo

Recebi esta carta de um amigo ha alguns anos.

Caro amigo,

como de costume estou a escrever-lhe. E, como bem sabe, agrada-me poder


lhe
externar meus mais profundos pensamentos. Dessa vez, porém, não lhe
envio poema algum.
Apenas contarei fato ocorrido.

Bem, já lhe é conhecido o amor que tenho pela minha sempiterna


musa, a
qual me inspira a te escrever tantas cartas transpondo em poesia meus
sentimentos. Pois, tamanha foi minha surpresa e alegria por receber convite
para estar presente em sua casa, em um tipo de reuniao social. Poderia um
mero mortal recusar convite do monte olimpo? Claro que nao. Mas, talvez
por
uma necessidade inconsciente de nao querer admitir a minha aparente
inferioridade em relacao aos seres superiores presentes no circulo social de
minha imensuravel, nao aceitei o convite em primeira instancia, alegando
indisponibilidade de horario. Tu sabes amigo, que minha noite seria
totalmente vazia e otimistamente eu teria apenas duas garrafas de cerveja
para me consolar. Porém esse foi o modo que encontrei para me sentir um
pouco menos rebaixado: sendo indiferente e supostamente ocupado. Logo
percebi que besteira cometi! A impressao que deixei na realidade foi a que
eu teria algo melhor a fazer do que estar junto de minha indizivel!

Aceitei finalmente o convite, fazendo questao de informar que consegui


um espacinho na minha agenda. Pois bem. Presentes a reuniao, pessoas
profissionalmente bem sucedidas cujo entrosamento entre si era enorme e a
amizade de longa data era evidente entre todos ali, o que me colocou fora
da
maioria das conversas. Era incrivel. Pareciam todos tao felizes. De fato,
nao consegui me enturmar!

Os temas das conversas variavam de lógica da programacao à novas


aquisicoes de automóveis. Nas rodas mais descontraidas, o humor era tao
simples e as risadas eram tao facilmente conquistadas, que minhas piadas
62
sarcasticas e sutis ora eram levadas como de mau gosto, ora como sem
graças.
A noite passava e meu prazer estava nas rapidas trocas de palavras e de
olhares que trocava com minha estimadíssima rosa. Oh amigo, que olhos!
Oh
amigo, que perfume!

Chegou enfim a hora do jantar. Todos sentamos ao redor de uma grande


mesa regada de doces e salgados de toda sorte. A maioria deles, nunca
tinha
visto muito menos provado. Sentados, todos juntos, a conversa se tornou
uma
só, muito descontraída e todos, menos eu, participavam do falatório. Se nao
me engano, o assunto girava em torno de investimentos e pequenas
empresas.
Nao me recordo bem, mas era algo que realmente nao me interessava.
Eu estava sentado ao lado do pai daquela poesia viva, cujos
versos de beleza podia eu contemplar do outro lado da mesa. Ele, ao se dar
finalmente conta de minha presença, perguntou-me sobre meus planos
profissionais e minha carreira. Talvez tenha me perguntado por piedade de
me
ver tão fora daquele clima social e quisera me entrosar. Mas ainda acho que
foi por pura maldade. Afinal, perguntou em voz alta, fazendo com que
todos na mesa interrompem-se a conversa e inclinassem os ouvidos
vermelhos e quentes
para minha resposta.

Devo admitir que o velho foi astuto em sua armadilha. Se queria


deixar claro aos presentes que eu não era apto financeiramente para estar
ali, e quanto mais de se relacionar com sua filha, foi muito bem sucedido. E
deve ter vibrado mais ainda internamente por conseguir me enrubescer e
me
fazer de pierrô para seus convidados e na presenca valorosa da obra prima
da
natureza.

Respondi aquela pergunta maldosa inocentemente, dizendo que eu


buscava
uma profissao que fosse satisfatoria e que nela pudesse expressar meus
dotes
artisticos, mesmo que nao fosse tao recompensadora no sentido monetario.
Eu

63
esperava provocar no minimo uma leve discussao, para que entao pudesse
defender meu ponto de vista a todos ali presentes. Ja sabia inclusive o que
ia dizer. Mas a reacao geral foi nula. Consideraram minha resposta
imerecida
de uma refuta e continuaram a conversar sobre os tais empreendimentos
empresarias. Tu bem sabes que ser ignorado é ainda mais humilhante do
que
ser contestado.

Percebi um unico olhar em minha direcao. Compadecido, materno.


Vinha de
minha queridíssima. Tive vergonha nesse momento por nao ter sido o que
ela
esperava de mim. Essa vergonha me fez desviar rapidamente o olhar e
parar em
uma garrafa de cerveja na minha frente. O alcool era agora minha unica
saida. Ficar ali, parado, sem falar, sem participar da conversa seria uma
auto-declaracao de minha ignorancia. Se estivesse bebendo, logicamente
nao
poderia estar falando - pensei - e seria uma desculpa quase convincente
para
nao participar da conversa. E alem disso, quem sabe, depois de um copo
cheio me sentiria mais a vontade para entrar na conversa. Entao, era isso.
Comecei a beber. Daqui em diante amigo, talvez meu relato daquela noite
indigna possa parecer um tanto desconexa e talvez omita alguns detalhes -
Quem dera se o alcool houvesse apagado toda aquela noite de minha
memória.
Principalmente os fatos que ocorreriam a seguir.

Depois de alguns copos, ousei dar meu primeiro comentario. Nao lembro
bem o que eu disse. Era algo a ver com politica. Como nao sou bem
inteirado
a respeito, minha opiniao dessa vez provocou risos. 'Bem,' pensei, 'pelo
menos dessa vez eles me ouviram' e isso me impulsionou a continuar
falando,
cada vez mais entusiasticamente. Agora, todos na mesa davam sua irrestrita
atencao
a mim. Hoje, quando lembro do rosto deles ao me ouvirem, sei que
estavam se
divertindo com um pobre bebado. Tinha que ver a expressao de
contentamento
e de vitoria na face gorda e rica do velho sentado ao meu lado, pai de
64
minha
inefavel. Claro que, cego pelo alcool, nao pude perceber a real situacao.
Achava sim que tinha finalmente conseguido penetrar naquele sólido
circulo
social. Comecaram entao a me fazer perguntas, e logo me vi no centro
desse circulo. Todos falavam comigo, e a minhas frases provocavam risos
gerais. Agora sei que nao riam comigo. Riam de mim.

Empolguei-me com a sociabilidade conquistada e me senti entao


confiante
a expressar meus sentimentos sinceros pela minha invólucra Eva do amor.
Fiz
isso da pior forma possivel para a ocasiao: recitei um dos tantos poemas
que
tinha composto a ela, mas que ninguem mais, alem de vc, amigo, tinha lido.
Pelo estado em que eu estava, imagino que os versos devem ter sido
declamados desordenadamente. O resultado deve ter sido muito comico,
confirmando as risadas espalhafatosas que ouvi entao. Alguns convidados,
de
tanto rirem perdiam o folego, se retirando do local. Ainda outros
engasgavam
com suas bebidas. Foi aí que percebi a piada que me tornei. Olhei para a
musa. Ela exibia uma expressao de extrema vergonha e desapontamento.
Entao
me calei.

Enquanto os convidados retornavam ao estado consciente do qual minha


poesia os havia tirado, senti toda a cerveja descer diretamente por minha
bexiga. Amigo, precisava urinar urgentemente.
Levantei-me, e com a pressa que
estava, passei por cima do colo daquele velho que eu agora odiava,
enquanto
entornava sem perceber um copo de agua sobre a mesa. A agua se
esparramou
sobre os aperitivos e ainda molhou duas ou tres pessoas. Pedi desculpas
gerais, mas nao aceitaram. Agora eles já nao nao riam de mim nem me
ignoravam. Consideravam-me um estorvo para a ocasiao, e faziam questao
de
expressar suas opinioes de maneiras criativamente ironicas. Enquanto me
dirigia ao banheiro, lembro de ter ouvido alguem dizer à minha
encantadora
cabra montesa: 'Foi voce que o trouxe até aqui? Parabens...!' Mas não
65
acredito que tenha sido um elogio sincero.
Ao ver a privada, nao contive o vômito. Toda aquela cerveja que parecia
que ia descer por baixo, agora retornava de onde viera. E era como o
vomito
que eu me sentia: devia sair de lá o mais depressa possivel. Pior do que
estar sozinho, é estar com quem nao quer sua presenca. Continuei
vomitando,
e meu abdômen agora estava doendo. Assim como, de dentro do banheiro
podia ouvir as ofensas
referidas a mim, tambem meus acusadores podiam ouvir o expelir de
minhas
entranhas. É provavel que eu tenha acabado com a fome da maioria.

Quando saí do banheiro, todos os olhares estavam voltados a mim. As


mulheres com expressao de nojo, e os homens, de raiva. Fiquei ali parado
de
pé, sendo observado por alguns segundos, até que alguem gritou à minha
inacessivel: 'Nao foi voce que o trouxe? Agora faça-o ir!' Ela se levantou
passou do meu lado sem ao menos olhar-me. Entendi que deveria
acompanha-la.
Logo atras viriam quatro polacos. Aqueles que ha minutos atras perderam o
folego ao ouvir minha poesia. Ela abriu o portao da casa, e, segurando a
macaneta permaneceu
olhando para o nada, apenas para não ter o desprazer de me olhar. Saí da
casa.

66
Relatório psicanalítico de um suicida

Relatório Psicanalítico - Hospital Geral Frei Galvão

Este relatório apresenta de forma integral a entrevista concebida a


mim, Dr. Alvarenga Peixoto Gonzáles, pelo paciente Antônio Marcos
Lázaros Campos, que veio a exercer o título de suicida no dia posterior à
realização desta, e tem como finalidade distribuir pelo meio médico,
especialmente ao ramo psicanalista a oportunidade de estudo e análise da
mentalidade do suicida e os fatos e experiências que podem acarretar em tal
desfecho de vida.
Espero, com este trabalho, contribuir para o esclarecimento de alguns lados
obscuros da complexa mente humana e futuramente contribuir no
tratamento de suicidas potenciais.

Presentes ao consultório: Doutor Alvarenga Gonzáles, psicólogo; paciente


Antônio Marcos no divã; escrivão João Garibaldo, cuja transcrição da
entrevista foi extremamente fiel.

[Escuso do relatório os cumprimentos pessoais, por não haver em tais


formalidades nenhum aspecto de finalidade científica]

- Qual sua idade e ocupação neste momento, Sr. Campos?

Nasci há 27 anos. E ocupo o meu tempo a esperar.

- A esperar? Creio que não fui bem claro na pergunta. Quero saber qual
sua profissão:

Ah sim. Perdoe-me. Não exerço profissão alguma.

- E por que não trabalha? Tem dificuldade em encontrar um emprego?

Não tenho dificuldade em encontrar emprego porque justamente não


procuro. Já ocupei diversos cargos e trabalhei consideravelmente. Mas não
acho sensato ocupar meus últimos dias de vida trancafiado em algum
cubículo e gastar minhas horas para benefício de alguma empresa
exploradora. Não há necessidade de dinheiro no túmulo.

67
- O que quis dizer em sua primeira resposta, quando disse que passa os
dias a esperar?

Bom, creio que na realidade passei minha vida toda a esperar. Mas agora
estou à espera de um único momento. O momento de minha morte. E
outrora, desde o dia em que vim ao mundo, estive à espera de outra coisa. É
claro que não nasci esperando o dia de minha morte. Ninguém nasce
pensando em morrer. Essa idéia surgiu concretamente há poucos anos.

- Então, o que sempre esperou, durante toda a vida? E diga-me se


encontrou o que buscava e, se não, por que desistiu da procura.

Bem, pode lhe parecer estranho, mas a verdade é que nunca soube o que
esperava. Quando criança, nunca me senti completamente satisfeito e feliz.
Mesmo nos momentos de brincadeiras e alegria. Esperava que na
adolescência encontrasse alguma lógica na vida. Porém, a adolescência
passou e tampouco nela encontrei algum fator estimulante. Na verdade, só
encontrei mais decepções e vi-me tornar um ser desanimado. Hoje, como
adulto formado, já desisti de encontrar algo que trouxesse satisfação e
felicidade no viver.

- Vamos aproveitar este momento de trazer o passado à tona, e vejamos


como foi sua infância. Vou dar algumas instruções e, por favor, tente se
concentrar, okay?

Okay.

- Estenda-se no divã. Feche os olhos. Inspire profundamente e relaxe. Isso.


Solte o ar vagarosamente. De novo. Assim. Só mais algumas vezes. Pronto.
Agora tente voltar alguns anos ao passado. Tente puxar do seu âmago a
mais antiga memória de vida. Sua primeira lembrança. Onde você está?

- Tenho três anos. Estou no jardim de infância. Numa sala à meia-luz. Há


varias crianças sentadas no chão, e eu sou uma delas, mas estou longe das
demais. Lá na frente está passando um desenho, um tipo de Slide, não sei
bem. É a estória de um pato amarelo. Ele nada no rio com as patas debaixo
d’água, e eu tenho medo que apareça um jacaré para mordê-las. Mas agora
apareceu um adulto e fez todas as crianças saírem da sala e não vi o final
do desenho.

- Okay... Mais alguma coisa do jardim de infância?

68
É o último dia lá. Todas as crianças estão reunidas com seus pais para um
tipo de festa. Tem bexigas, doces e salgadinhos em cima de uma mesa. Eu
estou sozinho. Meus pais não chegaram. Estou com fome, mas tenho
vergonha de ir até a mesa. A professora me fez entrar nas brincadeiras, mas
eu não queria. Eu tinha que sentar em cima da bexiga e estoura-la para
ganhar um prêmio. Mas a bexiga não estourou e eu caí no chão e perdi o
prêmio. A professora agora quer que eu morda uma maçã pendurada numa
linha. Mas a maçã é muito grande e minha boca muito pequena. Chorei
enquanto tentava morde-la, mas ninguém percebeu, porque disfarcei.
Novamente não consegui e fui embora. Fui pra trás da escola. Lá tinha um
corredor gostoso. Tinha sombra gelada e não tinha ninguém. Encontrei uma
bexiga estourada na janela e mordi. É gostoso. Lá é bom. Minha mãe agora
chegou, e me pôs ao colo. Mas não me deixa mais morder a bexiga porque
é suja. Apesar de ter perdido os jogos e ter desistido das brincadeiras
ganhei um presente no final. Um brinquedo de plástico. Está escurecendo.

- Muito bem. Agora tente avançar mais alguns meses à frente e me diga o
que está acontecendo.

Outra festinha na escolinha. Tem palhaços e algodão doce. As crianças são


cruéis. Furam a fila. Mas o algodão doce é azul e gostoso. A mão ficou
toda melecada! No teatrinho eu pedi para o menino sair da minha frente pra
me deixar ver a peça. Ele me respondeu que não vai chover. Não gosto
dele. É feio e malvado. Não precisa ser malvado. Mas ele é.

- E onde estão seus amiguinhos?

Acho que não tenho amiguinhos. Mas eu não preciso, porque sei brincar
sozinho. Ah, tem uma menina bonita lá. Ela tem o cabelo preto e um rosto
tão delicado! E ainda por cima um estojo mágico. Gosto de vê-la na aula de
dança. Eu não sei e não gosto de dançar. Mas sou obrigado a fazer a tal
aula. Prefiro desenhar. Tem um menino que senta ao meu lado e cospe
quando fala. Eu tenho nojo dele.

- Vamos agora avançar alguns anos na sua vida. Seus primeiros anos de
escola. O que está acontecendo?

Estou correndo atrás das meninas, por que elas gostam de mim. E eu não
gosto delas. Corro pra puxar o cabelo delas, de raiva. Uma menina loira me
deu muita coisa de presente. Colocou em cima da minha carteira. Tinha
cadernos, figurinhas e brinquedos. Joguei tudo no chão e ela chorou.
Peguei uma colega de sala olhando por dentro de minha bermuda quando

69
eu estava sentado, fazendo lição. Tinha um olhar de desejo. Depois desse
dia comecei a usar cueca todos os dias. Tenho sete anos.

- Você não gostava das meninas?

Eu gostava de apenas uma. Ela era bonita. Tinha a pele muito branca. Mas
um dia ela apareceu com um namorado. Das outras eu não gostava.

- Continue a avançar no tempo de escola.

Gostava de jogar futebol. Era o melhor da sala e sempre o primeiro a ser


escolhido para os times. Mas isso mudou. Não jogo mais bola, e minha
diversão preferida agora é desenhar. Ninguém desenha como eu na sala. Eu
sei disso e comecei a perceber que me diferencio de muitas maneiras dos
colegas. Na quarta série, as conversas e as brincadeiras agora giram em
torno do sexo. Os garotos passam o dia a passar a mão nas meninas, que
por sua vez passam o dia a flertar e beijar na boca meninos mais velhos.
Agora realmente me dei mal, por que as meninas começaram a intensificar
seu ataque contra minha pessoa. Elas queriam me beijar, mas eu negava.
Fiquei então conhecido como “bicha”. Era o que diziam. Ora, eu não sou
homossexual e sei disso. Mas realmente não me agradava a promiscuidade
que se instalara na sociedade. É desafiador ser o único a defender uma idéia
no meio de uma comunidade que não te compreende. E passei alguns anos
escolares assim, sendo ofendido por meio de atos, palavras e coros. Mas
enfim cheguei ao ensino médio. Lá as coisas eram mais fáceis. Não era tão
assediado pelas garotas, que agora preferiam os meninos que se vestiam e
agiam como a moda mandava. E como eu era retraído e me vestia de
qualquer modo, fui deixado de lado e isolaram-me. Fato que foi muito bom.
Tive a oportunidade de observar de fora aqueles seres e percebi que
caminham lado a lado, formando essa sociedade tão previsível e
desinteressante que temos hoje. Se quer saber, são pessoas bobas. É o que
eu acho. Faltei o máximo que pude nas aulas, para evitar ter contato com
esses bichos.

- E como eram as suas notas nos exames? Gostava de estudar?

Eram boas. Na verdade, não muito boas. Na época não via muita lógica em
aprender aquelas coisas que não me interessavam. Sabia que depois de um
mês já teria esquecido de tudo. Acho que eles não ensinam bem. Eu aprendi
a não gostar de estudar.

- Como foi sua inclusão no meio profissional?

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Foi fácil. Nunca tive dificuldade em conseguir emprego. Agora começava a
trabalhar e conhecer a sociedade adulta. E comecei a perceber que as
pessoas não mudam muito conforme se passa o tempo. Os adultos eram
como aquelas crianças da escola, só que maiores. O sexo ainda era um
ponto importante, mas agora não passavam a mão nas mulheres com tanta
imprudência como antes. E no tempo que tem para si mesmo, ou seja, dois
dias por semana, elas tentavam se divertir. Por certas vezes entrei nesse
jogo, mas não me senti satisfeito. Nem nas diversões, nem no trabalho.
Então parei de me divertir e de trabalhar.

- Durante esse tempo, encontrou alguma mulher que lhe fez sentir o amor?

É sim... encontrei.

- E o que aconteceu? O que sentiu? Não encontrou a satisfação e a lógica


de vida que tanto procura no amor?

Senti alegria e um sentimento totalmente estranho a mim nos dias que tive
minha amada a meu lado. Era como se ela emanasse um calor que aquecia
meu coração e fazia-me sentir vivo de verdade, tal como nunca havia
sentido antes. Todas suas características me agradavam, e senti prazer e até
alegria em certos momentos. Suas mãos, seus olhos, sua voz, quase tudo
nela me agradava.

- Quase tudo?

É... Quase tudo. Infelizmente, ela era uma pessoa, e por isso vítima da
exposição cruel a que o mundo submete. Havia certos aspectos nela que me
desgostavam, pois mostravam as facetas da desgraçada espécie humana. No
entanto, concedia-lhe certa tolerância, logicamente oriunda de meu amor.
Porque o amor faz-nos ser tolerantes.

- Este amor não foi forte o suficiente para lhe salvar a vida?

Não é questão de ser forte ou não. O amor não tem níveis. Tem tipos. Mas
se quer saber, nenhum tipo é capaz de me retirar deste estado de decepção e
profundo tédio, deste caminhar errante e melancólico, e me levar de volta à
procura insistente e inútil da felicidade.

- Não acredita na felicidade?

Logicamente acredito. Sei bem que estas pessoas que se auto-declaram


felizes não mentem. Mas elas estão em outro patamar. Depois que você
71
adquire os olhos que eu tenho, capazes de ver a asquerosidade do homem e
da mulher, depois que você consegue observar o mundo do patamar que eu
vejo, a felicidade se torna impossível. E realmente não desejo que ninguém
suba até este patamar. Que vocês todos morram afogados em sua
imundície, repugnantes, mas felizes.

- Chamou há pouco a raça humana de desgraçada. Por quê?

Ora, os motivos que fazem os homens a continuar vivos e os fatos que


constroem suas vidas são tão banais e ilusórios! São tão mesquinhos,
egoístas, tagarelas, cruéis. Em quase tudo que fazem e pensam tem
finalidade sexual. São atraídos por objetos materiais. Preocupam-se sempre
em estar acima dos demais. Traem conscientemente. Não respeitam o
planeta. Agem de forma ilógica e assistem novelas. Sabe Doutor, acredito
que as novelas sejam um grande ícone da terrível situação a qual a
humanidade está enclausurada. Pense nisso quando assistir.

- Não sente satisfação no trabalho, nas diversões e no amor. E quanto à


religião? É religioso? Sabia que a religião diz que os suicidas irão para o
limbo?

Sou religioso, sim. Católico. Provavelmente pela grande influência da


família. E conheço bem a história do limbo. Pois saiba que não pretendo
herdar os céus, nem o inferno, tanto menos o limbo. Acontece que não
gosto de viver. Não sinto prazer em sentir o tempo passar, em estar
consciente, em saber que sou um nada em meio a tantas pessoas odiosas. É
isso. Vou tirar minha vida, e se Deus for misericordioso comigo, não me
levará à lugar algum. Apenas me tirará a existência.

- Não acha ilógico este modo de pensar? Não acha assustador imaginar
que você não existirá mais? Em lugar algum haverá um rastro seu. Eu, da
minha parte, acho imensuravelmente melhor existir, mesmo que seja nas
profundezas mais cruéis do inferno, do que não estar em parte alguma.
Acho muito mais razoável sentir as dores mais profundas do que não poder
sentir nada. Já tentou imaginar este fato? De você não existir?

Doutor, nunca imaginei este fato. Simplesmente porque é impossível


imaginar isto. Ora, todos nós imaginamos a partir de nossos sentidos e
consciência. Somos, cada um, um universo próprio de imaginações e
sentimentos. Uma vez que não irei existir, não posso criar um quadro
mental do futuro, simplesmente porque não haverá mais mente, nem
quadro.

72
- E as pessoas que o amam? Sua família?

Não prestou atenção a que eu disse? Se não existirei mais, nada mais
existirá. Nem pessoas, nem família. Que diferença fará para mim, sendo
que não existirá o mim?

- Não acha que este modo de escape, o suicidio, revela covardia e medo? É
a forma mais fácil de fugir da vida e dos desafios que ela lhe apresenta.

Doutor, sinto lhe dizer que está redondamente enganado. Pois o suicida é o
ser mais valente e digno que pode haver. Tirar a vida de nossos próximos é
muito fácil. Tirar a própria vida é um ato que requer muita reflexão e
coragem. A maior e mais pura forma de coragem! E não é a bem dizer um
modo de escape. Geralmente a idéia do suicídio nao ocorre de uma hora
para outra, não ocorre em um único momento de desespero. Em alguns
casos, como no meu, é um planejamento que leva anos. O suicida não é
aquele que se sentiu pequeno demais neste mundo, mas aquele que evoluiu
sua alma de tal maneira que já não cabe mais neste mundinho.

- Pois bem. Creio que já finalizamos a consulta de hoje. Agradeço por sua
cooperação, Sr. Campos. Por favor, antes de sair, espere que lhe entregue
a receita de seu remédio.

[Retirei novamente as formalidades envolvidas nos cumprimentos finais da


entrevista deste relatório, por não ter cunho cientifico.]

Não hei de concluir este relatório com minha própria análise, pois quero
deixar esta brecha para que as futuras pesquisas possam chegar a um
consenso independente de minhas conclusões.

Nota (Apenas como fator de informação adicional):

Ao finalizar a entrevista, receitei ao paciente a seguinte recomendação:

Organofosforado anticolinesterásico Aldicarb; Uma dose apenas de 10


comprimidos; Via oral; Ingestão em local isolado.
[popularmente conhecido Chumbinho]

Dr. Alvarenga Peixoto Gonzáles

73
De um rapaz extremamente apaixonado

A verdade é que desde aquele momento alguma coisa já não ia bem,


alguma coisa começava a se formar contra nós, contra o que imaginávamos
que seria eterno. A verdade é que com o passar do tempo, você soube disso,
eu soube disso, e parece que todos ao redor também souberam, mas nossa
história foi se formando, nosso caso foi se tornando tão grande. Hoje penso
sobre tudo que aconteceu, tantos obstáculos que conseguimos vencer e me
pergunto se não teria sido melhor nada ter acontecido, se não teria sido
melhor nunca termos nos olhado pela primeira vez. Por quê, afinal de
contas, tantos sentimentos foram derramados durante esses anos e para qual
finalidade, se hoje sinto como se não tivesse cumprido meu objetivo de
vida? E ele era você.

A verdade é que me sinto hoje como apenas uma metade do homem


que fui enquanto estávamos juntos e eu sei que já se foram os dias mais
importantes de minha vida. A verdade é que, embora talvez pareça exagero
( e devo ser sincero, nunca imaginei sentir isso por alguém), agora espero
apenas a morte, por que já não encontro mais lógica em seguir sozinho. A
verdade é que nesta vida houve três de mim: um antes de lhe conhecer, um
durante nossa estada juntos e um último que surge agora, ao te ver partir.

A verdade é que cada vez que fecho os olhos surge a imagem que
faz recordar com tanta vivacidade nossos mais intensos momentos. E se
quer saber, hoje, apesar da tristeza que me mata, eu sorri. Sim, sorri
bastante. Pois enquanto passava por uma dessas esquinas, ouvi uma
música. Uma música que vinha de dentro dum barzinho, dum restaurante,
não lembro bem. Mas era uma música latina que me levou para aquele dia.
Lembra-se? Aquele dia do tango! Haha! Poxa, como foi divertido! Eu que
nunca gostei de dançar! Você me puxou pelo braço: “Dança comigo?” E
como poderia eu recusar? “Acompanhe minhas pernas” você disse. E eu
juro que tentei, apesar de não parecer! Você vestia um vestido preto e seu
cabelo estava amarrado. Lembra-se? A música... Lembro-me perfeitamente
do refrão: “Crei, que tu vida era mina e que tu me querias, como yo te
quiero a mi..” Era assim o refrão. E pela primeira vez eu dancei. E pela
primeira vez percebi como realmente queria que sua vida fosse minha e
vice-e-versa, mais ou menos como dizia a canção, como a dança
sincronizada.

Mas deixei de prestar atenção ao resto da música pois a letra


continuava tristemente. Parece que os amantes se separavam no final. Sabe
74
esse tipo de música que diz algo que se encaixa perfeitamente com sua
vida, mas é só no refrão? E depois as letras perdem o sentido pra você.
Talvez hoje ela tivesse mais sentido para mim.

As coisas são assim. Ganham e perdem sentido com o passar do


tempo. Por exemplo, aquela noite, quando estávamos sentados juntos, não
lembro bem onde isto aconteceu, mas lembro perfeitamente das suas
palavras, dos seus olhos e do seu cabelo. Você me fez prometer que
daquele momento em diante, sempre que eu olhasse para a lua, lembraria
de você. No momento aquilo não fez sentido, tanto que eu lhe disse que
não seria necessário pois sempre que eu visse a lua, você estaria ao meu
lado. E você não respondeu. Parece que já sabia que partiria . Há certos
momentos que passaram despercebidos para mim, mas que hoje voltam à
minha cabeça e que finalmente consigo entender. Ah! Se quer saber, todas
as vezes que olho para a lua, ainda penso em você. Essa promessa não
quebrei.

A verdade é que, no começo, você tinha medo de dizer que me


amava e eu tinha medo de lhe amar. Mas quando você finalmente me
desprendeu desse receio tão cruel, amei mais do que qualquer um deveria.
E as vezes penso que esse foi meu erro. Talvez toda aquela vontade de
amar estivesse contida em meu peito e quando você o abriu, rompeu de tal
maneira que foi demasiado forte. Talvez eu devesse ter amado antes, talvez
eu devesse ter me entregue para outras aventuras antes de finalmente me
entregar para o amor definitivo que deveria ter sido o nosso. Talvez eu
devesse ter feito tantas coisas que não fiz e nem mesmo imagino o que
sejam.

Eu não sei, não sei... Fico tão preso no passado, no que deveria ter
acontecido, no futuro perfeito de nosso imperfeito pretérito que
simplesmente deixo de viver o presente. Também, de que me adianta agora
o presente? Se você quer saber, eu trabalhava e continuava nesta vida
simplesmente para poder te ver mais um dia. Para saber que você existia e
estava ao meu lado a cada momento. E de que me adianta agora
sobreviver? Para gastar o fruto de meu trabalho na sorveteria, talvez? Eu
não gosto muito de sorvetes. Mas eu amava dividir aquele sundae com
você! Ah, lembro que sempre iamos àquela sorveteria com o toldo
amarelo, assim, em cima da calçada. E pegavamos a mesa que ficava mais
de lado, porque era a única em que batiam os raios de sol. Ficavamos um
tempão por lá enquanto nossos sundaes derretiam. Gostavámos de tomar
sorvete derretido! Pelo menos eu gostava, mas acho que nunca perguntei
para você se também achava aquilo gostoso.

75
Será que foi isso que fez-nos separar? Será que eu lhe impunha
demais minhas vontades? Mas você realmente nunca foi contra minhas
idéias. Talvez tivesse muito respeito por mim, e não quisesse ser uma
companheira rebelde. Se você não gostava de alguma coisa, deveria ter me
dito! Eu, com certeza, sentiria ainda mais prazer em tomar o sorvete
enquanto ainda estivesse consistente, se fosse sua vontade. Eu teria sentido
mais prazer em fazer sua vontade. Posso jurar que não me sentiria lesado,
não estaria perdendo nada, ao contrário! Deus, devo estar enlouquecendo!

A verdade é que simplesmente não sei onde errei. A verdade é que


não vejo mais ninguém ao meu redor. Sabe, parece que os amigos, os
parentes, assim, todos aqueles que eram mais chegados comigo perderam
sua função ao descobrir você. Porque você era pra mim a mãe, a irmã, a
filha e a amiga que eu sempre precisei. E enquanto estava com você perdi a
afeição por qualquer outra pessoa que ousasse se aproximar de mim.
Involuntariamente. Mas não havia lógica em recorrer para o lado de fora da
casa, quando o ser mais importante e acalentador estava ali, ao meu lado. E
como era reconfortante seu colo! A gente brincava como se fossemos
crianças, lembra? Fazia cócegas em você. Meu Deus, como você odiava
aquilo. Será que eu não sabia controlar meu bom humor? Será que estas
coisas contribuíram para sua ida? Eu não sei. Eu sei que sua ida fez como
que eu perdesse a mãe, a irmã, a filha e a amante. Perdi minha vida toda.

A verdade é que se hoje eu rio, é porque me lembrei de algum


momento nosso. Se estou triste é porque me dou conta que se foi. Se me
entedio, é porque não lhe tenho ao meu lado. A verdade é que tudo o que
sinto hoje está relacionado a você. Minha vida foi toda fundada sobre nosso
amor. E agora está desmoronando. Dizem que eu deveria levantar a cabeça
e recomeçar do zero. Mudar completamente de vida e de pensamento.
Chegaram a me dizer para arranjar outro amor. Vê se pode! Acho que essas
pessoas nunca amaram de verdade, não sabem do que estão falando! Sei
que o certo seria tentar levar minha vida, tentar lhe esquecer. Mas não
quero o certo! O certo pra mim é simplesmente você!

A verdade é que eu deveria ter dito as palavras certas que são tão
importantes nas horas erradas quando você estava se distanciando. Com
certeza, se eu tivesse mais discernimento, mais tato, faria com que tudo
fosse diferente, com atos, palavras, não sei. De alguma forma, com algum
apelo. A verdade é que eu não soube me expressar bem. Não soube tocar
seu coração quando mais precisava. A verdade é que deixei escapar toda
minha vida.

76
E hoje me lembro de nossos primeiros dias apaixonados. A verdade
é que desde aquele momento alguma coisa já não ia bem, alguma coisa
começava a se formar contra nós, contra o que imaginávamos que seria
eterno. Alguma coisa que eu nunca entenderei o que era. Mas era um
caroço que crescia em seu coração desde aquele momento. Deve ser isso
que lhe fazia distante tantas vezes. Que lhe fazia vaguear enquanto
estávamos juntos. A verdade é que nunca descobri o que era esse caroço e
nunca consegui desfazê-lo.

A verdade é que o que me faz ainda estar vivo são as lembranças, o


tango, o sorvete, a lua... Enquanto eles me trouxerem você, eu estarei aqui.
Mas quando se forem, não haverá mais lugar algum pra mim.

77
Bipolaridade

Em casa tenho guardado uma carta. Na verdade mais de uma. Mas


elas não chegaram pra mim. Na verdade elas nunca foram. São cartas que
escrevi e nunca tive coragem de enviar. Talvez falta de coragem não seja
bem o verdadeiro motivo de elas nunca terem saído de meu quarto.
Acontece que o ânimo e o surto de amor que me envolve enquanto
escrevo nunca é tão prolongado a ponto de perdurar até os correios.
Ademais, elas não duram até a última linha. Por isso todas essas cartas
estão inacabadas.
Ontem mesmo, estava eu em meu quarto escrevendo a quem
supostamente amo. Escrevi que ela me faz suportar a vida; que só chego
inteiro ao fim do dia por ter seus cuidados; que a emoção que tenho ao vê-
la continua sendo o mesmo após um ano; que adoro quando me chama de
“meu”; e que respondo a ela sozinho, em voz baixa, imaginando que onde
quer que esteja me ouvirá; agradeci por ela; e estava maldizendo cada
momento nosso de despedida, quando então, um súbito desânimo tomou-
me a paixão e mais uma carta, mais um e-mail, mais uma frase ficou pela
metade. Palavras que fariam tanta diferença a ela quanto as cartas que ela
manda fazem a mim. E de certa maneira me sinto mal por não prover a ela
o que eu poderia tão facilmente.
Acontece que esse desânimo repentino não é nada mais do que a
consciência de que ela não merece meu amor. É essa sensação que vem à
tona a cada falha exposta sua; a cada passo em falso da namorada; a cada
lembrança de uma mágoa antiga.
No entanto, devo ter em mente que nenhum ser humano merece o
amor. É justamente por isso que Deus é cheio de benignidade
IMERECIDA, de misericórdia. O amor é bom demais para essa raça.
Talvez um dia eu assimile essa realidade e possa admitir que o amor
perfeito que desejei durante a vida não existe e aceitar uma relação
superficial e infiel. Só não sei que utilidade prática me trará tal situação.

78
Naturalidade

E os seres humanos insistem em se proliferar.


E sei bem que essa é a única ordem divina a qual o mundo piamente
respeita: ‘Sede fecundos e enchei a Terra. ’ Hoje são quantos nessa
piromba? Seis, sete bilhões de seres humanos? Espere um momento: quem
contou isso? Não. Não hei de transmitir uma informação de fonte
desconhecida e estimativa duvidosa em meu texto. Qualquer estimativa é
duvidosa, contanto que não seja provinda de minha pessoa!

Uma estimativa: cem por cento das pessoas são movidas pelo sexo.
É possível culpa-los? Ademais, é necessário culpa-los? É culpável tal
situação tipicamente animal?

Que direito temos de culparmos a raça humana, afinal de contas?


Não. Eu prefiro não culpar nem mesmo aqueles que me atingem. Ora,
depois de ser tão alvejado podem até me atingir, mas nem sinto mais tanta
dor.

Admito que outrora, o ressentimento era sentimento constante. Mas,


enfim... Hoje me rio dos seres próximos que pensam me enganar, mostram
falso respeito e um amor putrefato. Deixo-os assim. Percebo que não é
necessário informa-los a respeito da minha ciência de que se passa. E assim
persistem relacionamentos falsos por todo o redor e nem ao menos um
genuíno.

Como suporto a falsidade? Ora, é tudo um jogo de interesses. Na


verdade, toda a rede de relacionamentos interpessoais de que se compõe o
mundo é um jogo de interesses egoístas. Tais pessoas me distraem e
esporadicamente posso até mesmo usufruir de falsos momentos de amor e
de sinceridade. Realmente pode ser um choque reconhecer tal realidade.

O mundo tem mudado a todo instante, mas não as pessoas. Veja por
exemplo a Internet. Nada mais funciona sem ela.

Eu, pessoalmente, gosto e a utilizo muito. Já comprei e vendi carro


pela rede, arranjei emprego, encontrei casas para aluguel, encontrei livros e
músicas raríssimas e comprei diversas quinquilharias por preços
baixíssimos. Como o alcance da Internet é enorme, conseguimos encontrar
muita variedade de diversas regiões do mundo. O único problema continua
sendo o frete cobrado pra trazer as compras até minha casa. Ora, até
79
namorada eu já arranjei pela Net! Mas realmente, o frete de vê-la toda
semana, morando longe, continua sendo o problema.

As coisas caminham para a individualidade. Por um lado a traição e


decepção proveniente de quem diz estar próximo nos afasta das pessoas, e
por outro o aconchego gelado da solidão que atrai pela estabilidade.

Mas por ora continuemos assim: falsidade por todos os lados! Viva a
hipocrisia, enfim! Quanto ao amor: que amor?? Aquilo em que pisaram?
Ah, sim! Aquilo ficou pra trás.

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Um tatu brasileiro

Era uma vez um tatu. Sim, um tatu daqueles com carapaça e focinho,
daqueles bem brasileiros. Esse tatu a princípio não tinha nome, mas
podemos nomeá-lo, talvez com o nome de Agrinaldo.

Sendo assim, era uma vez Agrinaldo, um tatu brasileiro. Tal como
qualquer tatu, adorava cavar buracos e meter-se por entre as terras alheias
construindo tocas e buscando furunfadas com tatus fêmeas. Não era
exatamente um bicho feliz, mas tampouco era um dos tristes.

Agrinaldo já era adulto, bem vivido, cheio de experiências (como


daquela vez em que fugiu de um cachorro, e até hoje os tatuzinhos ficam de
boca aberta quando ouvem a história), conhecia bem toda a região, desde
os altos morros, sobre os quais nada havia de interessante, até as margens
do rio que circundava toda a área. E esse era seu mundo, por onde viveram
seus pais, avós, e toda sua espécie.

Pois um belo dia, numa época de grande seca, Agrinaldo decidiu


visitar as margens do rio em busca de água. Era um solitário. Sendo assim
não tinha grandes preocupações mesmo em épocas dificultosas como
aquela. Afinal a verdade é essa: quem é sozinho vive muito mais
tranquilamente. Ao chegar à margem, nosso herói deparou-se com uma
cena ainda inédita em sua rica vida de tatu: a água havia sumido.

Pois incrível que pudera parecer, a seca extinguira até mesmo a


corrente da fonte mais preciosa de vida dos tatus e de outros animais.

Em uma fileira triste, diversos tatus e bichos se mantinham na beira


do leito seco, olhando para o fundo lameado e sem saber direito como agir.
Agrinaldo, porém, deu o primeiro passo a frente sem pestanejar. Afundou
seu pezinho de unhas grandes na lama e atravessou com certa dificuldade
até o outro lado nunca antes visitado por nenhum daqueles bichinhos.

Agrinaldo olhou para trás, avistando pela última vez seus


companheiros, que o viam embasbacados por sua coragem e teimosia, e
retomou seus passos frementes e decididos rumo ao novo. Seu pequeno
coração batia e bombeava por suas veias um sangue pioneiro, que fazia

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cada célula de seu corpo respirar o oxigênio da aventura, da liberdade, da
exultação do ser vivo. Como Armstrong ao pisar na lua; como Colombo ao
avistar a América; como Costeau em regiões abissais, como em 2001 uma
odisséia no espaço, Agrinaldo assumiu um papel quase divinal e respirou
um novo ar, avistou novas luzes, sentiu a pressão atmosférica aliviar seu
corpo e viu.

A estrada.

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Marduque

Marduque estava parado no meio da rua, em frente a sua casa,


observando o pôr do sol e admirado por não haver ninguém ao alcance da
vista. Aquela rua era sempre agitada, e durante o fim da tarde ainda mais,
pois era o horário em que seus vizinhos voltavam para casa, as linhas de
ônibus aumentavam de freqüência, os jovens saíam para faculdade ou para
se divertir. Enfim, era o período em que geralmente não se podia
permanecer parado no meio da rua. No entanto lá estava ele, de pé a algum
tempo, no meio da rua vazia e silenciosa, não sabia exatamente quanto – 10
minutos, 1 hora talvez. E o sol se mostrava impassível, assim como ele.

Foi então que Marduque acordou pelo toque do despertador. Seu


sonho que parecera tão real foi interrompido e se viu de repente em sua
cama, ao lado de sua esposa, em seu quarto levemente iluminado pelo sol
matutino que penetrava pela cortina. Demorou ainda alguns segundos para
sair completamente do sonho. Após se arrumar e tomar café, como
costumeiro, como rotina de muitos anos seguidos, saiu para trabalhar. Teve
dificuldade em sair com seu carro pela rua tão movimentada.

O serviço como contador de uma multinacional era repetitivo,


insosso e desestimulante, porém era estável e sustentava a si e sua esposa
muito bem. Podia manter sua comida, suas roupas e seu carro. Também lhe
rendia a TV por assinatura, seu bem mais precioso. Ao chegar em casa a
noite, afundado em seu sofá e equilibrando o jantar, passava horas
assistindo diversos programas com sua mulher, as vezes sentada ao seu
lado. Sentia-se de certa forma bem por vestir tão justamente seu caráter de
classe média e consumista exemplar. Então se esforçava para levantar e
dormia novamente, esperando pelo despertador do dia seguinte.

Novamente na rua – no meio. O silêncio dessa vez era mais alto, a


rua se tornava mais palpável e o sol continuava em seu pôr. Era uma visão
bonita, o céu misturando violetas e azuis, as nuvens em tons laranjas, o sol
amarelo. Marduque espremeu os olhos para admirar a vista e assim ficou
por alguns instantes. De repente, observou o primeiro movimento daquele

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cenário: lá no fim da rua, onde o asfalto tocava o horizonte e dava a
impressão de entrar por aquele quadro multicolorido, um ponto começou a
partir em sua direção. A princípio, era pequeno demais para entender o que
era exatamente, mas conforme foi se aproximando, Marduque percebeu a
imagem de um cachorro que caminhava em sua direção, no meio da rua,
firme e constante, em sua direção.

Hora de trabalhar. O despertador sempre programado para as 7:00,


sintonizado na rádio preferida da esposa. Estende a mão e desliga o rádio,
tira o lençol de cima de si, põe os pés no chão gelado e vai ao banheiro,
Marduque, mais um dia para seu trabalho.

Ao chegar na empresa, encontra Elias, colega de longa data que


Marduque quase considera seu amigo, no ponto do café, 15 minutos antes
de começar o expediente. Ambos consideram importantíssimo estarem no
mínimo 15 minutos antes dentro do escritório, por motivos de boa
reputação e imagem, e assim o fazem desde que começaram a trabalhar
como bons e corretos contadores. Marduque conta a Elias sobre o sonho
que se repetiu por duas noites seguidas.

- Seqüências de sonhos são muito comuns. Eu mesmo tenho sonhos


semelhantes por mais de uma noite - disse Elias.

- Sim, eu também já passei por isso. No entanto, o que me


impressiona dessa vez é como esse sonhos ficaram marcados em minha
mente, e como parecem reais. Geralmente esquecemos de nossos sonhos ao
levantar da cama, não é mesmo?

- Mesmo assim isso ainda é normal. Espere até amanhã, e se o sonho


voltar, amanha me conte se foi mordido pelo cachorro.

Marduque não havia dito a seu colega, mas estava ansioso para saber
o que o cachorro faria, quando chegasse até ele. Ele tinha certeza que o
sonho voltaria durante a próxima noite. Pensou nisso durante os primeiros
minutos do expediente, e então se distraiu com seus números burocráticos,
tabelas e planilhas e assim ficou até as 18:00. Despediu-se de seus colegas
e de Elias com um breve “até amanhã” e foi para casa, passar por sua rotina
noturna novamente.

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No dia seguinte, Elias se encontrou com Marduque no ponto do café,
pontualmente as 7:45.

- E então? Alguma novidade sobre o cachorro? – perguntou Elias


antes mesmo de dizer bom dia.

- Nada – respondeu, com um tom forçosamente desanimado e


tremulo – acho que realmente foi apenas uma bobagem. O sonho não
voltou.

- É como eu te disse. Essas coisas acontecem as vezes, não podemos


se importar. Muita gente acaba levando sonhos e coisas bestinhas a sério,
dizendo que são previsões e visões e acabam seguindo-as religiosamente.
Acreditam que trazem mensagens e sinais para suas vidas.

Elias continuou falando, porém Marduque não prestou atenção em


nada do que dizia. Retirou-se do ponto do café e sentou em sua mesa, sem
olhar para os lados e nem cumprimentar os colegas pela primeira vez em
sua carreira. Ele tinha em que pensar. Ele pensava no sonho que realmente
tivera durante a noite, e preferiu não assumir para Elias. Como nas outras
duas noites anteriores, lá estava ele, no meio da rua. O pôr do sol imutável,
o silêncio, as casas solitárias, a rua vazia, e ao longe, o cachorro.
Caminhava normalmente, não demonstrava agressividade e se aproximava.
Marduque fixava o olhar sem piscar naquela imagem distante. Quanto mais
se aproximava, mais lhe parecia familiar. Então o animal alcançou uma
distância suficiente para fazer Marduque perceber que o bicho que vinha
em sua direção era Pingo, seu cachorro de estimação durante a infância. Ele
o havia ganhado de seus pais quando ainda era uma criança muito pequena,
cerca de 4 anos e viveu a seu lado, como amigo fiel até morrer por velhice
– ele com 18, Pingo com 14.

Ao reconhecer o cachorro, Marduque ficou muito feliz, seus olhos


encheram de lágrimas. Correu a seu alcance. Pingo lhe abanou o rabo,
também estava feliz, mas não tanto quanto ficava ao ver seu dono, nos
tempos idos. O cachorro parecia mais sério agora, mais experiente, talvez
por ter passado por uma situação grave como sua própria morte, pensou
Marduque, que lhe beijou o focinho repetidas vezes enquanto o segurava
no colo.

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O cão então pulou ao chão, caminhou alguns passos de volta em
direção ao sol, parou, olhou pausadamente para Marduque, e disse:

- Vamos?

Marduque acordou sobressaltado, o rádio tocando alto a seu lado, sua


mulher lhe reclamando com voz rouca de sono ‘Não vai desligar esse rádio
hoje?’, aquela pergunta e a visão de Pingo lhe encarando ecoando em sua
mente. Marduque permaneceu por um momento estagnado sentado na
cama, até sua esposa lhe repetir a pergunta, desta vez com tom mais bruto.
Desligou o despertador e continuou na cama, pensando naquela cena que
ainda lhe causava arrepio. Sua mulher voltou a dormir e apesar do receio,
era isso que queria voltar a fazer. Ajustou então o despertador para mais 20
minutos e se reclinou, tentou dormir, virou-se, pôs o travesseiro sobre o
rosto, mas não adiantou. O rádio mais uma vez ligou, sua mulher lhe gritou
novamente e chegou atrasado 5 minutos no serviço – algo que não
acontecia há um bom tempo.

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Declaração de Amor

Esta é minha declaração de amor. Assumida, direta, explícita. Não


quero deixar subtendidos meus sentimentos, mas quero estas palavras
ecoando como um grito eterno e público, tão simples de ser entendido que
até o mais rude dos homens compreenderá a dimensão deste amor e por um
minuto me invejará.

Declarações são comumente feitas por música, poema, pintura.


Porém, escolho o texto. Não quero os grilhões da harmônica enjaulando
meus versos, nem a obrigatoriedade rítmica das estrofes poéticas
ordenando meus sentimentos, tampouco as margens de um quadro
limitando meu amor.

Quero que estas palavras se tornem fugidias e deixem o papel


tornando-se leves como o toque daquela que amo, lindas como as
expressões de seu sorriso, e penetrem docemente em seu coração e
fortemente em sua mente, assim como sou atingido a cada momento em
que a reencontro.

Esta é minha declaração de amor. De um amor único. Único por seu


imensurável tamanho, erroneamente, mas indispensavelmente comparado
ao infinito céu desconhecido, atraente e temeroso. Ou tão simples como
grãos de areia, mas ainda assim, intermináveis.

De sentimentos os homens são feitos. Por vontades o homem se


move, é compelido a erguer-se, labutar e descansar. Assim vive, desde o
nascimento até seu final. De seu amor eu sou feito. Por ela levanto-me,
caminho, labuto. Sem ela não há descanso suficiente nem recompensa
satisfatória. Para entregar-me a ela é que nasci.

Sim, meu amor é um exagero, assim como sua beleza. Minhas


palavras são grandiosas demais para ser verdade, assim como sua presença
é tão forte para ser apenas humana. Se algum dia duvidarem do que digo,
deveis saber que também duvido da realidade a cada segundo em que a
olho nos olhos. Não temo que duvidem de mim, mas temo e entristeço ao
pensar que por um instante ela deixe de acreditar.

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Peço-lhe que acredite e, se não for assim, que me prove! Estou
disposto a ser provado como um fiel é provado por seu deus. E o que sinto
nada mais é que uma devoção sincera e profunda pelo amor, por ela, por
nós.

O sentimento puro e único, destruidor de todos os outros sentimentos


está em mim, está direcionado a uma pessoa. E o quero para sempre; e a
quero para sempre. Quero-a para mim egoistamente e digo isso sem receio
nem escrúpulo. Seu corpo e alma inteiramente, para que eu possa cuidar
com extremo carinho e possa contemplar, florescendo em sua essência, o
mesmo amor que lhe tenho, eterno, único, perfeito e cujos frutos nada mais
trazem do que plena felicidade.

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Almir

Há algum tempo, surgiu na cidade de São João da Boa Vista um


singelo personagem. Singelo não por seu nome, pois se chamava Almir
José Silva, o que é um nome bastante comum. Silva por parte de pai, José
por homenagem ao santo pai de Jesus. Quando criança, Almir perguntou ao
seu pai de onde viera seu sobrenome.

- Não sei bem. Dizem que Silva foi usado séculos atrás para nomear as
pessoas que moravam nas selvas. Assim como o nome Costa para nomear
os moradores litorâneos.

E assim cresceu Almir vendo-se como um descendente das selvas e


invejando o sobrenome Costa. Imaginava os arredores de São João da Boa
Vista repletos de matas fechadas, florestas densas, animais selvagens e
índios nus, dezenas de anos antes de transformarem tudo em plantações. E
imaginava a praia, a areia e o mar, do qual nunca chegou perto em toda sua
vida e nem chegara seus ancestrais.

Também não era singelo por sua profissão. Trabalhou durante a


maior parte de sua vida como arquivista da prefeitura, metido em salas
abafadas, em meio a papéis amarelados e paredes mofadas. Como cidade
rural, os empregos públicos eram muito valorizados e as vagas eram
restritas a uma elite minoritária que as conquistavam por fortes indicações.
Almir conseguiu seu cargo quando ainda era moço, como recompensa de
um serviço que seu pai prestara ao prefeito. Bom funcionário, sabia como
ninguém trabalhar vagarosamente para que sempre tivesse algo a fazer.
Aprendeu bem, pois nos primeiros meses de serviço, fazia todo o trabalho
rapidamente, em cerca de 2 dias, e passava o resto do mês ociosamente.

Também não era singelo por sua aparência. Seu pai era um caboclo
de roça, sua mãe, cafuza. Almir se tornou algo como um típico nordestino
brasileiro: cor de formiga, baixo, rosto truncado, nariz bruto, pescoço rude.
Do ponto de vista de seus conterrâneos, não era feio, tampouco bonito.

Enfim, Almir não possuía nenhuma característica peculiar durante a


semana – durante a semana. Porém, criou um hábito excêntrico de fim de
semana: Todo sábado de manhã, Almir veste-se como mulher, seja usando
um vestido, uma saia, blusinhas delicadas ou o que quer que seja. E

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permanece até domingo vestindo trajes femininos. Passeia pela cidade, pelo
mercado, pela pracinha central,vai a igrejas sempre trajado dessa maneira e
adornado por brincos, colares e outros acessórios.

Nas primeiras vezes em que Almir pôs em prática sua mania de fim
de semana, a cidade se embasbacou. Chamavam-no de homossexual,
travesti, bicha, devoto do demônio e outras ofensas. Sua excentricidade
quase o fez perder o tão visado emprego. O padre não queria permitir que
participasse da missa dominical. Sua mãe não se importou. Na realidade,
nunca comentou a respeito. Seu pai não se mostrava feliz com a situação,
mas continuava o tratando da mesma maneira indiferente de sempre.

Ao perguntarem o motivo de tal prática, Almir simplesmente


respondia que fazia aquilo porque tinha vontade. E não concordava com o
título de pederasta. Aconteceu então que, ao passar do tempo, a cidade
acostumou-se com sua roupa feminina e após alguns meses, já não causava
mais espanto nem revolta.

Almir viveu assim, vestindo-se de mulher durante os fins de semana


da cidade de São João da Boa Vista.

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Raquel Urbana

Raquel estava cansada, então decidiu sentar-se. Lá de onde estava


podia ver as luzes da cidade, os carros - centenas deles, com os faróis
ligados. Os prédios comerciais apresentavam algumas salas ainda acesas,
apesar das horas avançadas. A chuva que acabara de banhar a cidade havia
deixado uma umidade pesada no ar, porém, de certo modo aconchegante. O
som dos automóveis chegava a seus ouvidos abafado pela distância, assim
como cada detalhe da cidade. Raquel conhecia bem cada um desses
detalhes.

A brisa fazia-lhe tremer esporadicamente, mas sentia-se bem, pois


ali, longe da cidade, sentia mais protegida e distante das depravações
urbanas. Sabia que essas depravações estavam ocorrendo naquele mesmo
instante, diante de seus olhos, em cada canto da cidade. Aqueles carros
levavam ladrões, adúlteros, traficantes. Aqueles escritórios iluminados
abrigavam funcionários corruptos, gananciosos e mesquinhos. As ruas
transbordavam sangue e sexo. Tudo isso era comum a Raquel, tudo isso já
destruíra seu romantismo de vida há muitos anos. Ela olhava impassiva,
mas não mais com tristeza, como em tempos atrás. Mais uma vez a brisa
bateu em seu rosto, trazendo o cheiro da cidade. O cheiro de sexo, de
cocaína, de sangue, de dinheiro sujo. E tudo isso era comum a Raquel.

Lembrou-se de um tempo em que acreditava em poesias, em amores


e altruísmo. Havia amado demais e se entregue a paixões profundas. Em
tempos idos, encarava o sexo como uma recompensa do amor. Mas o que
vê agora nas ruas da cidade, em cada casa, em cada coração, é apenas a
sede por fornicação, a prostituição, o homossexualismo, a entrega de si
mesmo a prazeres sensuais. A cidade fede pudicamente; cada esquina
direciona a devassidão moral; as prostituas riem dentro de quartos
mofados; as esposas e os maridos traem-se mutuamente; crianças fazem
sexo; velhos se tornam pedófilos. Raquel lembrou-se que um dia acreditara
na beleza do amor, do privilégio sexual concedido aos amantes. Mas aquilo
ficara para trás.

Lá de cima, Raquel observava jovens perambulando sob os postes


de luzes alaranjadas. Todos atrás de drogas. Crack, cocaína, heroína.
Aquela cena não era mais absurda para Raquel, como a mídia costuma
imprimir. Ela conhecia as drogas. Já usara muito e também já vendera,
traficara, apenas por diversão. Pensou consigo: as drogas de certo modo são
um tipo de aventura que vivemos dentro de nossas rotinas. São uma forma
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de quebrar nossas monotonias sem necessariamente destruí-las. Os
cidadãos estavam aos milhares em busca de emoções, prazeres e riscos.
Sensações aprisionadas pelo concreto e asfalto da cidade e das empresas.

Aquele mundo já havia ficado para trás e não a excitava mais. Mas
conhecia o submundo dos entorpecentes, o sangue e a violência gerados
pela química, as mortes banalizadas. Também sabia como grande parte da
população faz parte desse jogo. Um jogo infantil onde todos fingem não
usar, mas sabem que todos usam.

Nos escritórios, agora, funcionários egoístas vendem informações,


corrompem colegas, mentem e fazem das empresas um microcosmo do que
é nossa nojenta e corrupta cidade. A violência moral dos funcionários é
camuflada atrás de camisas bem passadas ou uniformes. Porém, a
convivência em grupo e o ambiente competitivo apenas estimula o
animalismo humano.

Raquel percebia que os seres humanos têm bons e maus costumes.


Mas sabia que coletivamente, apenas os maus costumes enfatizavam-se.
Assim a cidade se enchia de maldade e selvageria.

O vento batia no rosto de Raquel, trazendo o cheiro de cocaína, sexo


e sangue. O cheiro viciante e tentador que atrai e ajunta milhões de
seguidores desses cidadãos moribundos e doentes. O exército da
depravação urbana caminha lentamente e é composto de corpos gordurosos
e sedentários. Tais soldados inspiram com dificuldade o ar poluído até seus
pulmões estragados. Caminham, sem destino, vagarosamente sobre suas
pernas raquíticas de músculos fracos e debilitados.

A cidade passava pelos olhos de Raquel, que nada tinha a


contemplar, senão a morte coletiva do qual todos fazem parte.

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