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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

FICÇÕES ECONÔMICAS E REALIDADES JURÍDICAS: UMA ETNOGRAFIA


DA POLÍTICA DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL

Gustavo Gomes Onto

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
FICÇÕES ECONÔMICAS E REALIDADES JURÍDICAS: UMA ETNOGRAFIA
DA POLÍTICA DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL

Gustavo Gomes Onto

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como requisito parcial à obtenção
do título de Doutor em Antropologia Social.

Orientador: Federico Guillermo Neiburg

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016

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FICÇÕES ECONÔMICAS E REALIDADES JURÍDICAS: UMA ETNOGRAFIA
DA POLÍTICA DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL

Gustavo Gomes Onto

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu


Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Antropologia Social. Aprovada por:

________________________________________________

Prof. Dr. Federico Guillermo Neiburg (Presidente)

PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte

PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________

Prof. ª Dr.ª Adriana de Resende Barreto Vianna

PPGAS/MN/UFRJ

________________________________________________

Prof. Dr. Fernando Rabossi

PPGSA/UFRJ

________________________________________________

Prof. Dr. Juan Pablo Pardo-Guerra

University of California, San Diego, EUA

________________________________________________

Prof. Dr. John Comerford (Suplente)

PPGAS/UFRJ

________________________________________________

Prof. Dr. Arlei Damo (Suplente)

PPGAS/UFRGS

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CIP - Catalogação na Publicação

Onto, Gustavo Gomes


O58f Ficções econômicas e realidades jurídicas: uma
etnografia da política de defesa da concorrência
no Brasil / Gustavo Gomes Onto. -- Rio de
Janeiro, 2016.
292 f.

Orientador: Federico Guillermo Neiburg.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social, 2016.

1. política antitruste. 2. defesa da


concorrência. 3. práticas de conhecimento. 4.
mercado. 5. agente econômico. I. Neiburg, Federico
Guillermo, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).

! iv
RESUMO

Esta tese descreve como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE),


autarquia vinculada ao Ministério da Justiça, defende a concorrência no Brasil, ao
mesmo tempo concebendo-a e construindo-a. O órgão responsável pela política de
defesa da concorrência ou política antitruste, como também é conhecida, tem como
missão “zelar pela livre concorrência nos mercados”, o que implica principalmente
analisar e decidir, autorizando ou não, solicitações relativas a fusões, aquisições e
outros atos de concentração empresariais, além de investigar e julgar condutas
consideradas nocivas à livre concorrência, como a prática de cartel. A investigação e
análise envolvidas na instrução de processos administrativos de concentrações ou
condutas empresariais acarretam a produção de um conhecimento das relações de
mercado tendo em vista a visualização de um possível “problema concorrencial”,
permitindo aos profissionais do órgão decidir se uma concentração pode ser aprovada
ou se uma conduta deve ser condenada administrativamente. Com exceção do primeiro
capítulo, que traça uma genealogia do governo da concorrência no Brasil, o restante da
etnografia descreve as práticas de conhecimento, ou seja, os conceitos, as técnicas e os
artefatos utilizados por funcionários do órgão para analisar, interpretar e definir as
relações econômicas em mercados específicos. Como demonstro, a visualização de um
problema concorrencial e, portanto, da própria concorrência requer o conhecimento, a
concepção e a construção de objetos e sujeitos econômicos, tais como o “mercado” no
qual empresas atuam e os “agentes econômicos” que nele concorrem. Este trabalho
também aponta como essas práticas de conhecimento são interpretadas pelos
funcionários do CADE, buscando ressaltar as convergências e as divergências, ora mais
explícitas, ora mais implícitas, que emergem da relação entre práticas jurídico-
administrativas e concepções e práticas sobre a economia. Esta tese, portanto, descreve
como a economia é concebida, produzida e governada a partir do órgão responsável
pela defesa da concorrência no Brasil.

Palavras-chave: política antitruste, defesa da concorrência, práticas de conhecimento,


mercado, agente econômico.

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016 !

! v
ABSTRACT

This thesis describes how the Administrative Council for Economic Defense (CADE),
autarchy linked to the Ministry of Justice, defends competition in Brazil, at the same
time conceiving it and building it. The body responsible for competition defense policy
or antitrust policy, as it is also known, has the mission to “ensure free competition in
markets”, which in practice implies reviewing and deciding, authorizing or not,
petitions regarding mergers, acquisitions and other corporate “concentration acts”, as
well as investigating and judging harmful anticompetitive practices, such as cartels. The
analysis and investigation involved in the administrative proceedings regarding merger
reviews and anticompetitive practices implies the production of knowledge of market
relations aiming at visualizing a possible “competitive concern” or “problem”, allowing
regulators decide if a concentration can be approved or if a practice should be
administratively condemned. With the exception of the first chapter, which traces a
genealogy of the government of competition in Brazil, the rest of the ethnography
describes knowledge practices, i.e., concepts, techniques and artifacts used by antitrust
regulators to analyze, interpret, and define economic relations in specific markets. As it
is demonstrated, the visualization of a “competitive problem” or of competition itself
requires the conception and the construction of economic objects and subjects, such as
the “market” in which corporations act and the “economic agents” which compete in it.
This thesis also points to how these knowledge practices are interpreted by CADE’s
employees, putting into evidence the convergences and divergences, more or less
explicit, that emerge through the relation between legal-administrative practices and
conceptions and practices about the economy. This thesis describes how the economy is
conceived, produced and governed by the governmental body responsible for
competition or antitrust policy in Brazil.

Keywords: antitrust policy, competition defense, knowledge practices, market,


economic agent.

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016

! vi
AGRADECIMENTOS

Quando o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional


ainda era relativamente desconhecido por mim, fui conversar com Federico Neiburg, de
quem eu havia lido um artigo que muito me interessara. Lembro até hoje que neste dia
em julho de 2009 conversamos durante três horas seguidas sobre aquilo que eu tinha
estudado nos mestrados e também sobre sociologia e antropologia econômica. Entrei
em sua sala cheio de dúvidas e saí resolvido que iria tentar entrar no programa. É difícil
explicar em palavras o quanto Federico contribuiu para a elaboração desta tese. Não
poderia imaginar um orientador que fosse tão generoso, afetuoso e tão interessado nos
caminhos pelos quais eu ia produzindo meu trabalho. Nestes quase sete anos de
convivência, por meio de perguntas, conversas e observações minuciosíssimas nas
laterais dos textos (que só seus orientandos e ex-orientandos podem conceber), Federico
formou meu olhar de antropólogo e me ensinou que a originalidade desse modo de
pensar não está nas grandes teorias, mas sempre nos nuances e sutilezas dos detalhes.
Sou extremamente grato por tudo que aprendi com ele e pela sempre atenciosa
orientação.

Agradeço a Fernando Rabossi pelas inúmeras sugestões e apontamentos sobre este


trabalho nas diversas ocasiões em que discutimos seus desenvolvimentos. Sua leitura
sempre precisa e original de trechos desta tese em seminários do NuCEC foram
fundamentais para a discussão que acabei realizando. Agradeço também a Adriana
Vianna e Luiz Fernando Dias Duarte por aceitarem fazer parte da minha banca e por
estarem sempre abertos a conversar sobre meu trabalho. Sou extremamente agradecido
também a Juan Pablo Pardo-Guerra que sempre se dispôs a dialogar sobre minha
pesquisa nos raros momentos em que estávamos na mesma cidade. Tenho certeza que
essa conversa vai continuar apesar da sempre presente distância.

A John Comerford e Arlei Damo agradeço pelos comentários e sugestões sobre


minha pesquisa no Rio e em Porto Alegre, além do aceite do convite em participar
como suplentes da banca. Gostaria muito de poder conversar pessoalmente com vocês
sobre este trabalho quando possível. No Museu Nacional também agradeço a Olívia
Cunha que participou de minha banca de qualificação e que me auxiliou a encontrar
possíveis caminhos para a investigação que eu conduzia. Sou grato também aos

! vii
professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional
com quem tive a oportunidade de cursar disciplinas. Além dos já mencionados acima,
agradeço especialmente a Antônio Carlos de Souza Lima, Aparecida Vilaça e José
Sérgio Leite Lopes.

Não poderia deixar de agradecer minha querida ex-orientadora Ana Cristina Braga
Martes por ter me incentivado a pesquisar o tema do antitruste e por ter me ensinado,
com seu rigor característico, como fazer uma pesquisa acadêmica. Na FGV-EAESP,
agradeço também a Mário Aquino Alves que além de ter promovido a minha descoberta
de variadas possibilidades teóricas e metodológicas, lembrou-me na banca da
dissertação que a noção de “performatividade”, como formulada na sociologia
econômica, poderia e deveria ser melhor compreendida enquanto prática. A ideia de
prosseguir o doutorado no mesmo tema partiu principalmente desta advertência.

Agradeço ao CNPQ que me concedeu uma bolsa de doutorado ao longo de quatro


anos do doutorado e às agências de fomento CAPES e COFECUB que possibilitaram a
realização de um período sanduíche no programa de doutorado conjunto EHESS-ENS
em Paris, onde pude discutir e apresentar partes deste trabalho. Agradeço imensamente
a Benoît de L’Estoile pela acolhedora recepção nesta ocasião e pelo seminário
organizado para discutir esta pesquisa. Durante o período no exterior, em seminários,
congressos ou em conversas particulares, pude contar com a contribuição de diversos
sociólogos e antropólogos a quem devo muito. Agradeço a Alex Preda, Keith Hart, José
Ossandón, Horácio Ortiz, Fabian Muniesa, Tomás Undurraga, Patrice Maniglier,
Vincent Lépinay, Bruno Latour, Laurence Fontaine, Olivier Godechot, Anne van der
Graaf, Will Davies, Gil Eyal, Afrânio Garcia e Taylor Nelms, que comentaram e
criticaram partes deste trabalho e sugeriram caminhos a seguir.

Em Brasília, funcionários de outros órgãos da administração pública dizem que o


CADE é a “exceção”, um lugar onde tudo funciona “como numa empresa”,
diferentemente das outras organizações da administração pública. Se este é o caso, isso
se deve aos brilhantes profissionais que lá trabalham. Não consigo imaginar como esta
etnografia sobre formas de conhecimento, práticas e conceitos seria realizada sem o
grande interesse que esses profissionais tinham por aquilo que faziam e igualmente pela
minha investigação. Agradeço aos amigos Luiz Ros, Pedro Magalhães, Isabelle

! viii
Menezes, Andréa Freire, Fernnanda Sá e Maria Enilde Araújo. Foi principalmente
aquilo que aprendi com vocês que procuro descrever e explicar neste trabalho.

No CADE também sou muitíssimo grato a Elvino Mendonça, Alessandro Octaviani,


André Gama, Vanessa Takabatake, Ricardo Ruiz, Eduardo Pontual, Marcos Paulo
Veríssimo, Ricardo Faria, Ricardo Leite Ribeiro, Ricardo Medeiros de Castro, Eduardo
Frade, Carlos Ragazzo, Tainá Leandro, Gilvandro Vasconcelos, Ana Frazão e Gesner
Oliveira. A Vinícius Carvalho, agradeço a oportunidade única de poder realizar esta
pesquisa e a generosa disposição em receber pesquisadores de outras áreas. Agradeço
especialmente a Elizabeth Farina que, além de ter me ensinado há quinze anos atrás
teorias que embasam a política pública de defesa da concorrência, me incentivou a
realizar esta pesquisa e abriu as portas para que eu pudesse fazer meu trabalho de campo.

No longo percurso que resultou nesta tese, ninguém me ouviu falar mais de
antitruste que Eugênia Motta. Ela provavelmente conhece tão bem esta política pública
quanto eu. Sua amizade e seus conselhos incentivadores foram essenciais na produção
deste trabalho. Agradeço pela companhia inestimável nesse longo percurso. Agradeço
também às minhas amigas doutoras ou quase doutoras Karen Shiratori, Gabriela Toledo,
Andressa Lewandowski e Viviane Fernandes, que estão presentes neste trabalho de
diversas formas. Agradeço também a todos os meus queridos amigos do Museu
Nacional, do NuCEC e de fora do PPGAS com quem eu tive a oportunidade de
conversar sobre este trabalho, especialmente Marco Martinez, André Dumans Guedes,
Leticia Ferreira, Laura Lowenkron, Guilherme Giufrida, Louise Scoz, Patrícia Silva,
Luiz Couceiro, Rejane Valvano, Andrés Góngora, Rodrigo Cantu, Julia O’Donnell,
Bruno Guimarães, Marcos Carvalho, Lucas Freire, Everton Rangel, Iagê Miola, André
Nahoum, Victor Biagioni e Silvia Fagá.

Agradeço também aos funcionários da biblioteca, da secretaria e do xerox do


PPGAS/Museu Nacional pelo auxílio inestimável nesses últimos cinco anos. A Malu
Resende, agradeço pela revisão minuciosa do texto desta tese e a Marcel Steiner que me
ajudou a desenhar perfeitamente o local onde permaneci durante um semestre no CADE.

Agradeço aos meu pais e avós que sempre me apoiaram de todas as formas
imaginárias nas várias etapas da trajetória escolar e acadêmica que resultou nesta tese.
Sem esta incrível família este trabalho não existiria.

! ix
Por fim, agradeço ao meu companheiro de vida Caetano. Não posso imaginar o que
seria teria sido fazer esta pesquisa e este trabalho sem seu apoio e companhia. Se esse
apoio consistisse somente nas correções jurídicas, ortográficas e lógicas dos meus
escritos, já seria uma enormidade. Mas sua importância transcende qualquer forma de
ajuda e não poderia caber neste pequeno agradecimento. Por isso, dedico este trabalho a
ele.

! x
LISTA DE FIGURAS, TABELAS E GRÁFICOS

FIGURA 1 Novo logo do CADE 2


FIGURA 2 Website 50 anos 24
FIGURA 3 Edifício do CADE na Asa Norte de Brasília 102
FIGURA 4 Planta do gabinete 106
FIGURA 5 Autos de processos na mesa 108
FIGURA 6 Armários de cada assessor 112
FIGURA 7 Quadro com os prazos dos processos 123
FIGURA 8 As etapas de análise econômica de atos de concentração 155
FIGURA 9 Rede de relações com base na sra. Ângela Rodrigues 232
FIGURA 10 Ligações entre Anhanguera, Pátria, Ângela e Anhembi 240
FIGURA 11 Novelo de participações societárias 242
FIGURA 12 “Concorrência” 255

TABELA 1 Tabela de “Monitoramento de processos” 119


TABELA 2 Cálculo do prazo de um processo 124
TABELA 3 Distâncias entre unidades da Associados e Oncotech 186
TABELA 4 Sobreposição – mercado geográfico 20 km ou 30 min 187
TABELA 5 “Mercado relevante geográfico” 189
TABELA 6 Participação de mercado dos concorrentes 216

GRÁFICO 1 Processos julgados pelo CADE 68

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AP – Averiguação Preliminar
AC – Ato de Concentração
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica
CIP – Comissão Interministerial de Preços
DOJ – Department of Justice
ICN – International Competition Network
FTC – Federal Trade Commission
HHI – Herfindahl-Hirshman Index
OI – Organização Industrial
PA – Processo Administrativo
SBDC – Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência
SDE – Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça
SEAE – Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda
SG – Superintendência-Geral do CADE
SUNAB – Superintendência Nacional de Abastecimento e Preços

! xii
SUMÁRIO

Introdução 1

Da história às práticas 4
Entre o Estado, a economia e o direito 12
Organização da tese 19

1. A justiça e a eficiência da concorrência 23


1.1. Da coincidência para a rivalidade 28
1.2. A concorrência livre e natural 34
1.3. O surgimento dos trustes e das medidas antitruste 41
1.4. A economicização do antitruste 48
1.5. Da economia popular à ordem econômica 55
1.6. A liberalização da economia e a nova política antitruste 63
1.7. Defendendo e produzindo a concorrência 75

2. Artefatos do antitruste 82
2.1. Um “momento de transição” 86
2.2. Redes pessoais e institucionais 90
2.3. Documentando a pesquisa 96
2.4. Mexendo e cuidando de processos 102
2.5. Parando, soltando e fazendo andar os processos 116
2.6. Acesso restrito 126
2.7. Governo dos papéis e governo pelos papéis 132

3. Definindo mercados 138


3.1. Limiares da troca 143
3.2. O mercado relevante 151
3.3. Os slots do Santos-Dumont 161
3.4. Conhecendo e fazendo mercados 171
3.4.1. Experiências vividas ou pessoais 172
3.4.2. Dos ofícios, petições, perguntas e tabelas 181
3.4.3. O espelho e o filtro 191
3.5. O mercado como um contexto 198

4. Identificando concorrentes 207


4.1. Pessoas jurídicas, agentes econômicos e concorrentes do mercado 211
4.2. Quem manda quando não tem dono? 222
4.3. Duas concorrentes e um professor 231
4.4. Ficções jurídicas e realidades econômicas 244
4.5. Agentes econômicos e suas relações 248
4.6. Sobre a concorrência 253

5. Considerações finais 258


Referências bibliográficas 266

! xiii
Introdução

“No concept in economics – or elsewhere – is ever defined fully, in the sense that its
meaning under every conceivable circumstance is clear. […] And of course a word like
‘competition’, which is shared with the whole population, is even less likely to be
loaded with restrictions or elaborations to forestall unfelt ambiguities.”

(George Stigler, Prêmio Nobel de Economia, 1957, p. 1)

“Ser que vincula e que, para tanto, deve sempre separar, ser que, se não separar, não
tem como vincular, o homem primeiro precisa apreender em espírito a mera existência
indiferente de duas margens como uma separação, para então vinculá-las por meio de
uma ponte. Do mesmo modo, o homem é um ser de fronteira que não conhece
fronteiras nem limites.”

(Georg Simmel, 1909, p. 75)

No dia 12 de setembro de 2012, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica,


o CADE, autarquia vinculada ao Ministério da Justiça do Brasil, completou 50 anos
desde sua criação no governo João Goulart. Nesse mesmo ano, segundo um jornalista
do jornal Valor Econômico, o órgão administrativo sediado na capital federal e
responsável pela chamada política de defesa da concorrência ou política antitruste,
como também é conhecida, tornou-se o “SuperCADE” (Basile, 2013). Tal prefixo não
lhe foi atribuído devido ao seu cinquentenário, mas sim porque a data coincidiu com
importantes transformações que o modificaram profundamente. A mais importante
dessas transformações foi a entrada em vigor de uma nova legislação concorrencial,
dando maiores poderes para o órgão exercer sua função de “zelar pela livre
concorrência dos mercados”. Entre as alterações produzidas com a substituição da
antiga legislação de 1994 estava a transferência para o CADE de todos os
procedimentos investigativos dos processos administrativos pelos quais é responsável
por instruir e decidir. Anteriormente, esses procedimentos eram realizados pela extinta
Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça e pela Secretaria de
Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda.

Para dar cabo dessas novas atribuições, o órgão antitruste teve que se transferir
fisicamente de seu antigo e pequeno edifício no Setor Hoteleiro Norte para um maior e
mais imponente na quadra 515 da Asa Norte da capital. A nova sede poderia abrigar
muitos dos funcionários que antes exerciam funções nas mencionadas secretarias da
administração pública federal. A transferência foi possível graças a um aumento

! 1
considerável do orçamento do CADE, que possibilitou inclusive a criação de uma
carreira no serviço público específica para a organização. Como um exemplo claro da
transformação institucional e organizacional pela qual o CADE passava, no início de
2011 havia 150 funcionários trabalhando no órgão antitruste e, ao final de 2013, 350
funcionários.

A transformação legal, institucional e organizacional do chamado “Sistema


Brasileiro de Defesa da Concorrência” (SBDC) foi considerada por todos aqueles
envolvidos no dia a dia da política antitruste – seja pelos atuais e os ex-funcionários do
CADE, seja por advogados que representam empresas, economistas que atuam como
pareceristas em processos e jornalistas que cobrem suas decisões – como um
reconhecimento da importância desta política pública por parte do governo federal. A
“autoridade” administrativa antitruste, como também é denominada, teria enfim mais
recursos e capacidade para analisar e eventualmente proibir fusões e aquisições
empresariais que pudessem prejudicar a concorrência e para investigar e punir condutas
anticompetitivas empresariais, como a prática de cartel. A “livre concorrência”, um dos
princípios sobre os quais deve estar baseada a “ordem econômica” nacional, conforme a
Constituição de 1988, parecia agora contar com uma organização com poderes
suficientes para assegurá-la.

Neste mesmo ano de 2012, no qual iniciei a pesquisa que deu origem a esta tese, o
órgão criou um novo logo para acompanhar o acrônimo CADE. Nesse momento
“histórico” ou “singular”, como o presidente da autarquia Vinícius Carvalho denominou,
pelo qual passava a política antitruste nacional, o órgão passou a ser representado por
um olho estilizado na cor azul, conforme a figura 1 abaixo, que sugeriria sua atribuição,
agora fortalecida, de vigiar as atividades empresariais no país e, com isso, defender a
concorrência nos mercados.

Figura 1: Novo logo do CADE

! 2
Utilizando essa metáfora sobre a função do CADE, esta tese parte de uma questão:
como o órgão antitruste enxerga a economia? Como os profissionais que lá trabalham
conhecem, concebem e visualizam as relações e as condutas empresariais que eles são
responsáveis por administrar? Por meio de que práticas, conceitos, técnicas e artefatos o
CADE consegue defender a “concorrência” nos mais diversos mercados do país? Mais
do que isso, o que significa defender a “concorrência”? Onde estão e quem são esses
“concorrentes”? Por fim, como, na prática, se governam os mercados a partir do ponto
de vista da defesa da concorrência? Buscando responder a tais questões, esta tese
apresenta uma etnografia das práticas de conhecimento características da política de
defesa da concorrência e do órgão que a implementa, descrevendo como os
profissionais do CADE são capazes de visualizar um “problema concorrencial” e, a
partir disso, tomar decisões relativas a concentrações empresariais e condutas
anticompetitivas no país.

O órgão antitruste brasileiro exerce as funções a ele atribuídas na chamada Lei da


Concorrência.1 Na prática, o conselho age, principalmente, por meio da instrução e, em
seguida, do julgamento de dois tipos de processos administrativos.2 O primeiro tipo de
processo refere-se a solicitações para “fusões”, “aquisições de controle”,
“incorporações”, “joint ventures”, e outras uniões contratuais, temporárias ou não, entre
grandes empresas. Após uma investigação dos mercados e das empresas envolvidas, o
CADE pode decidir por autorizar esses chamados “atos de concentração” ou vedá-los,
caso a investigação tenha indicado que a união empresarial pode impor algum “risco”,
“dano” ou “prejuízo” à concorrência nos mercados. O segundo tipo de processo refere-
se a investigações de “condutas empresariais anticompetitivas”, sendo a mais conhecida
delas a prática de “cartel”.3 Geralmente abertos a partir de denúncias ou de indícios
descobertos pelo próprio CADE, esses processos podem gerar pesadas multas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1 No Brasil, uma nova Lei de concorrência, 12.529, de 30 de novembro de 2011, entrou em vigor em 30
de maio de 2012, substituindo a Lei anterior 8.884 de 1994 e alterou, entre outras coisas, a estrutura
institucional do chamado “Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência”, transferindo as funções da
Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça para a Superintendência-Geral do CADE e
incluindo a necessidade de uma “notificação prévia” ao CADE de “atos de concentração”, conforme
explico mais adiante.
2 “A Administração Pública, para registro de seus atos, controle da conduta de seus agentes e solução de
controvérsia de seus administrados, utiliza-se de diversificados procedimentos, que recebem a
denominação comum de processo administrativo” (Meirelles, 2010, p. 734).
3 Há uma grande variedade de condutas “anticompetitivas”, como, por exemplo, “acordos de
exclusividade”, “recusa de venda”, “fixação de preços de revenda”, “cartéis”, “preço predatório” e “venda
casada”. Essas condutas podem ser práticas “unilaterais”, quando se trata da ação de uma só empresa, ou
“coordenadas”.

! 3
administrativas para as empresas envolvidas, caso sejam comprovadas condutas ilícitas.
No primeiro tipo de processo, a investigação é feita com o objetivo de se preverem
“potenciais danos” que uma concentração pode gerar à concorrência de um mercado no
futuro, enquanto, no segundo caso, a investigação é retrospectiva, buscando
compreender se uma determinada prática individual ou coordenada entre duas empresas,
no passado mais ou menos recente, gerou algum prejuízo à concorrência.4

A instrução de processos administrativos de matéria concorrencial, portanto, requer


uma análise ou investigação visando produzir um conhecimento sobre as relações de
mercado. Somente a partir dessa análise ou investigação é possível visualizar a
existência ou não de um “problema concorrencial”, possibilitando uma decisão
favorável ou não às empresas. Esta tese descreve os conceitos, as técnicas e os artefatos
que são utilizados para interpretar, visualizar e conceber relações entre empresas
envolvidas nos processos, o comportamento dos consumidores e as características dos
mercados. As práticas e os conceitos descritos buscam elucidar o caminho pelo qual os
profissionais chegam a uma decisão ou julgamento. Este trabalho demonstra como essa
análise implica a construção de objetos e sujeitos econômicos, “mercados” e “agentes
econômicos” que permitem aos analistas conceberem as relações concorrenciais e
assegurarem que estas relações estejam estruturadas conforme um ideal de
funcionamento da economia e dos seus mercados. Além disso, demonstro como estas
práticas e estes conceitos são interpretados pelos profissionais do órgão antitruste,
procurando compreender como eles entendem seu trabalho de defender e construir a
concorrência nos mercados. Esta tese descreve como a economia é concebida,
produzida e governada a partir da perspectiva do órgão responsável pela defesa da livre
concorrência nos mercados do Brasil.

Da história às práticas

A noção de concorrência ou de “livre concorrência” aparece recorrentemente em


textos legais e constitucionais da grande maioria das democracias modernas como um

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
A distinção entre os tipos de processos (“atos de concentração” e “condutas anticompetitivas”) e os
efeitos que suas diferentes temporalidades produzem na atividade dos reguladores e nas concepções de
concorrência será objeto de descrição no capítulo 2.

! 4
princípio que deve guiar a organização das economias nacionais.5 No Brasil, a livre
concorrência é um dos princípios constitucionais sobre os quais deve estar assentada a
“ordem econômica”.6 Além de embasar a formulação de políticas públicas diversas, a
“concorrência” também é objeto de legislações específicas que tentam fazer deste
princípio uma realidade.

A política de defesa da concorrência ou política antitruste pode ser definida como


um “conjunto de políticas e leis que garantem que a concorrência nos mercados não será
reduzida de forma a diminuir o bem-estar econômico” (Motta, 2004, p. 30). 7
Legislações ou políticas que buscam garantir a concorrência, em geral sob a forma de
regulamentação do comportamento de comerciantes ou empresários, têm sido
instituídas desde a Antiguidade. Contudo, como explico no primeiro capítulo, foi apenas
no final do século XIX, com a formação de grandes conglomerados empresariais nos
Estados Unidos, que a concorrência ou “livre concorrência” tornou-se propriamente um
objeto da ação governamental. A partir desse momento, políticas e legislações de defesa
da concorrência nos mercados foram se disseminando entre todos os países
industrializados, baseando-se em uma premissa central do liberalismo econômico,
mantida por vertentes predominantes da ciência econômica, de que situações de maior
concorrência nos mercados trazem maiores benefícios para consumidores e para a
economia nacional como um todo, isto é, a concorrência entre as empresas pela venda
de produtos e serviços permitiria aos consumidores comprar produtos a preços menores
e tornaria as empresas mais inovadoras e produtivas (Forgioni, 2013). Como indicador

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
A manutenção da livre concorrência também justifica as ações de organizações multilaterais como a
Organização Mundial do Comércio (OMC).
6
O artigo 170 da Constituição Federal estabelece nove princípios constitucionais da ordem econômica, a
partir dos quais o Estado deve regular a economia. São eles: soberania nacional, propriedade privada,
função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente,
redução das desigualdades regionais e sociais, busca de pleno emprego e tratamento favorecido para as
empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham suas sede e administração no
país.
7
Os países de língua inglesa costumam utilizar a expressão “política antitruste” ao invés de “política
concorrencial” ou de “defesa da concorrência”. Isto se deve, em parte, ao fato, como descrevo mais
detalhadamente no primeiro capítulo, de a história das legislações e das políticas concorrenciais, tentando
combater monopólios comerciais, cujos primeiros registros podem ser traçados desde o Código de
Hamurábi, ter tido uma grande inflexão com a guerra aos “trustes” (tipo forma legal em que podem se
enquadrar empresas no direito norte-americano) no final do século XIX, nos Estados Unidos. Nesse
período, novas legislações, como o Sherman Act de 1890, foram promulgadas, buscando-se combater os
cartéis formados pelos grandes “trustes” das companhias ferroviárias. A expressão antitrust como o
conjunto de medidas tomadas para combater as práticas “anticompetitivas” das grandes empresas tornou-
se comum nas campanhas presidenciais do período.

! 5
da aceitação desta premissa por governos nacionais, entre 1980 e 2009, o número de
países com legislações concorrenciais passou de 20 para 107 (Aydin, 2010).

Entre os países industrializados é praticamente unânime a utilização de órgãos ou


agências estatais para implementar a política de defesa da concorrência, baseando-se
nas legislações concorrenciais correspondentes.8 No caso brasileiro, o artigo 173, § 4º,
da Constituição de 1988 especifica a função do órgão antitruste, depois detalhada em lei
complementar: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos
mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Outros
órgãos antitruste do mundo, embora estejam organizados diferentemente ou tenham
poderes legais e institucionais variados, possuem funções praticamente similares à do
órgão brasileiro: prevenir e reprimir práticas empresariais que possam gerar um risco à
“livre concorrência” nos mercados. Esta função comum dos órgãos antitruste exige o
uso de saberes especializados das áreas de economia e direito e, por isso, são
profissionais dessas áreas que costumam atuar nessas organizações.9

No Brasil, o órgão responsável por garantir a concorrência nos mercados é o


Conselho Administrativo de Defesa Econômica, uma autarquia judicante vinculada ao
Ministério da Justiça. 10 Embora tenha sido criado em 1962, inspirado no órgão
antitruste norte-americano, o CADE passou muito tempo tendo uma função marginal na
política econômica nacional (Considera & Corrêa, 2002). Como explicado no primeiro
capítulo, somente a partir da década de 1990, quando novas legislações concorrenciais
foram aprovadas, buscando complementar medidas adotadas para o controle da inflação,
é que a política antitruste brasileira ganha relevância. A política passa a ser considerada
pelos economistas favoráveis às reformas econômicas como imprescindível numa
economia de “livre-mercado”, mais privatizada e com poucas empresas estatais (Miola,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
Existiam pelo menos 104 órgãos de defesa da concorrência no mundo em 2009, em mais de 92
jurisdições distintas (ICN, 2009).
9
A reflexão sobre a concorrência e o modo de governá-la é objeto de duas disciplinas ou saberes cuja
relação é vista como complementar. O direito da concorrência é a área do direito que estuda o conjunto de
normas, princípios e procedimentos que limitam as práticas econômicas que “abusam do poder
econômico” e, portanto, infringem um dos princípios da ordem econômica, a “livre concorrência”. Por
outro lado, a “economia antitruste” ou “economia organização industrial”, uma subárea da
microeconomia, estuda o comportamento de empresas (ou “firmas”) e os efeitos (econômicos) sobre a
concorrência de mercado que certas práticas produzem.
10
Segundo o jurista Hely Meirelles (2010, p. 380): “Autarquias são entes administrativos autônomos,
criados por lei específica, com personalidade jurídica de Direito Público interno, patrimônio próprio e
atribuições estatais específicas […] esta administra-se a si própria, segundo as leis editadas pela entidade
que a criou”.

! 6
2014; Onto, 2009). O CADE evitaria o “abuso do poder econômico” por parte de
empresas grandes o suficiente para controlar mercados de produtos ou serviços.

Desde 2012, com base na nova legislação, o órgão antitruste é responsável ao


mesmo tempo pelas investigações e pelo julgamento dos processos administrativos, que
são realizados, respectivamente, mas não exclusivamente, pela Superintendência-Geral
(SG) do CADE e pelo Tribunal Administrativo de Defesa Econômica. A SG é dividida
em várias coordenações e é o setor do órgão responsável pela instauração e a instrução
de todos os processos. Um processo administrativo pode ser decidido pela SG sem que
este seja enviado ao Tribunal para julgamento. Processos considerados “complexos” são
necessariamente remetidos ao Tribunal que, quando necessário, realiza uma instrução
complementar antes de julgá-los. O Tribunal Administrativo é responsável pelo
julgamento dos processos e dos recursos, além da aprovação de termos de
compromissos e acordos com empresas, sendo composto pelos gabinetes dos seis
conselheiros e do presidente do órgão – os sete membros que possuem poder de voto no
plenário. Os processos, sejam eles referentes a atos de concentração ou a condutas
anticompetitivas, são julgados em sessões públicas quinzenais.

Duas características da política antitruste têm chamado mais a atenção de cientistas


sociais. Primeiramente, a sua relação com preceitos fundantes do liberalismo econômico
e, em segundo lugar, a notável similaridade com que tais políticas são implementadas
por diferentes países. Estas características são aquelas ressaltadas pelos raros estudos
que se dedicaram à investigação sobre esta política pública. Trabalhos em sociologia
(Bello, 2005; Davies, 2010; Dobbin & Dowd, 1997, 2000; Onto, 2009; Miola, 2014) e
em ciência política (Wigger, 2008; Silva, 2011; Türem, 2010), tanto no Brasil quanto no
exterior, têm se utilizado de uma perspectiva histórica para explicar as transformações
das legislações concorrenciais e das decisões de política pública, enfatizando os
movimentos políticos ou ideológicos que a modificaram desde o início do século XX.
Na maior parte desses trabalhos, as diferenças ou similaridades que a política de defesa
da concorrência apresenta entre diferentes países do mundo, as tendências a
convergências e divergências legais e institucionais ou de prática antitruste ao redor do
mundo podem ser explicadas atentando-se para os grupos ou as redes de profissionais,
em geral de economistas e advogados, que influenciam ou assumem a responsabilidade
pela condução da política pública, descrevendo-se onde esses profissionais se formaram,
suas trajetórias, associações políticas ou acadêmicas (Miola, 2014).

! 7
Essa mesma perspectiva histórica e sociológica orientou as pesquisas que realizei
sobre a política antitruste brasileira nos dois mestrados que cursei. Como havia me
formado em economia e estagiado numa consultoria econômica especializada em
regulação e concorrência durante meu curso de graduação, conhecia pessoalmente dois
ex-presidentes do CADE – economistas que haviam sido fundamentais para o
desenvolvimento e a transformação da política de defesa da concorrência no Brasil a
partir dos anos 1990. Conhecendo atores relevantes da política antitruste, que poderiam
me facilitar a aproximação com outros especialistas da área, além de algo das teorias
econômicas que sustentam decisões do órgão antitruste, ingressei no mestrado em
Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo,
dedicando-me a pesquisar o ingresso dos economistas no corpo dirigente do órgão de
defesa da concorrência a partir da década de 1990 (Onto, 2009).

O órgão antitruste, desde a sua criação em 1962, era composto sobretudo por
juristas e funcionários públicos de outras carreiras. A entrada, a partir dos anos 1990, de
economistas atuantes como conselheiros e presidentes do órgão, ou seja, como
membros que instruíam e julgavam os processos, fez com que argumentos e conceitos
econômicos passassem a ser mais utilizados para justificar os julgamentos de processos
administrativos. Procurei demonstrar na dissertação de mestrado como, segundo alguns
interlocutores e entrevistados, a nomeação de economistas para a autoridade antitruste
foi um modo de tornar mais “legítima”, “racional” e “técnica” a intervenção
governamental na economia, livrando-a de supostos interesses políticos escusos.

A maior participação de economistas no órgão antitruste brasileiro não produziu


apenas uma política pública mais técnica aos olhos dos envolvidos na sua
implementação, mas também levou a uma nova maneira de conceber os problemas
concorrenciais e a forma de governá-los. Num segundo mestrado, concluído em maio de
2009 no Departamento de Sociologia da Universidade de Columbia, nos Estados
Unidos, tracei uma genealogia da defesa da concorrência no Brasil, baseada em
documentos oficiais, artigos, livros especializados e em entrevistas com profissionais da
área, que explicasse a nova racionalidade de governo ou governamentalidade (Foucault,
2007a) que se instituíra a partir dos anos 1990. Assim como outros estudos sobre
políticas econômicas influenciados pela abordagem foucaultiana (Davies, 2010; Miller
& Rose, 1990, 2008), busquei demonstrar como a defesa da concorrência a partir desse
período, diferentemente das políticas econômicas do passado, podia ser considerada

! 8
uma forma de governar preços da economia “a distância”, ou seja, indiretamente, por
meio da concorrência dos mercados. Essa nova característica de governar, que a
literatura associa ao movimento político e intelectual chamado “neoliberalismo”,
produziu, no caso da política antitruste brasileira, novos objetos que deveriam ser
governados: os “mercados”, como explico no terceiro capítulo.

Embora a literatura histórica e sociológica sobre o tema seja ainda relativamente


escassa, tanto no Brasil como em outros países, esta tese propõe, alternativamente, uma
descrição etnográfica de como essa política é, na prática, implementada. Sem discordar
da maior parte dos argumentos desses estudos, resta o fato de que os órgãos antitruste,
isto é, as organizações que implementam a política e “aplicam” (enforce), como dizem
alguns juristas, a legislação concorrencial, permanecem, ainda assim, uma “caixa-preta”
(Latour, 1987). O modo com que as organizações antitruste funcionam ou decidem
casos é descrito apenas na forma de modelos esquemáticos e teóricos em manuais de
direito e economia, ou então em guias procedimentais produzidos pelos próprios órgãos
antitruste. 11 Pouco sabemos o que acontece dentro dos órgãos reguladores da
concorrência: Quem são os profissionais que realizam as investigações? Quais as
práticas mais comuns, os conceitos mais relevantes, as técnicas, as teorias e os artefatos
que são mobilizados para decidir um caso? Como os diferentes saberes envolvidos são
utilizados, traduzidos e relacionados na prática? E quais os efeitos produzidos a partir
dessas práticas de conhecimento?

Como percebi ao final do meu mestrado, estas perguntas não eram abordadas pelos
estudos porque elas eram irrelevantes nas perspectivas adotadas pelos trabalhos de
ciências sociais até então realizados sobre a política antitruste. Em primeiro lugar, esses
trabalhos impõem implicitamente um modelo de funcionamento a organizações estatais,
de acordo com o tipo-ideal weberiano de burocracia, que transforma o trabalho de
certos profissionais, grande parte das práticas rotineiras da administração pública e dos
artefatos produzidos e circulados nelas, meros detalhes. As pesquisas, sem exceção,
privilegiam a descrição das trajetórias, as associações políticas e acadêmicas dos
funcionários de órgãos antitruste que estão no topo da hierarquia burocrática, isto é,
conselheiros, presidentes ou chefes de departamentos, tornando apenas estas pessoas,
aquilo que eles decidem e pensam como parte da investigação sociológica. Como
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
11
A única exceção são os relatos anedóticos escritos por economistas ou advogados sobre o processo
investigativo de casos no livro de Fox e Crane (2007).

! 9
consequência, no caso do CADE, por exemplo, assume-se implicitamente que cerca de
outros 343 profissionais irão apenas seguir ordens e procedimentos acordados pelo topo
da hierarquia.

Contudo, no órgão antitruste brasileiro e em muitos outros, sejam eles órgãos


judicantes ou unicamente investigativos, os seis conselheiros e o presidente, apesar de
serem responsáveis pelo julgamento e pela condução da investigação e da análise dos
processos administrativos, não instruem os processos sozinhos; não realizam o trabalho
por conta própria. No CADE, cada conselheiro tem quatro ou cinco funcionários em seu
gabinete para auxiliá-lo, entre assessores, estagiários e a secretária pessoal, que redigem
relatórios, votos e ofícios, participam de reuniões com representantes das partes de um
processo, realizam ligações telefônicas, organizam os processos administrativos e
analisam os casos. Todas as práticas de conhecimento necessárias para que um processo
possa ser julgado por um conselheiro passa também por esses funcionários, que não
aparecem nos estudos até então realizados sobre órgãos governamentais de defesa da
concorrência. Além disso, como já disse, na legislação atual, muitos dos processos são
instruídos, decididos e arquivados pelas coordenações da Superintendência-Geral do
órgão, que têm seus próprios funcionários, não chegando nem mesmo aos gabinetes do
Tribunal Administrativo. Desconsiderar, portanto, o trabalho desses outros funcionários
equivale a deixar de compreender o modo como as decisões do órgão são tomadas, que
tem sido o principal objetivo dos estudos sociológicos sobre a política antitruste.

No caso brasileiro, objeto deste trabalho, o foco nos seis conselheiros e no


presidente, os únicos membros com poder judicante no conselho, também exagera, para
dizer o mínimo, a importância das trajetórias profissionais e acadêmicas dos
funcionários do CADE na orientação da política pública. A legislação concorrencial
exige que os conselheiros e o presidente indicados para o órgão possuam “notório saber
em direito ou economia”. Esses profissionais são quase sempre doutores e professores
dessas disciplinas nas universidades mais renomadas do país, intelectuais que escrevem
e lecionam sobre economia ou direito da concorrência. Porém, a legislação não exige o
mesmo dos demais funcionários do CADE. Embora muitos deles tenham formação em
direito e economia, os servidores públicos que realizam a instrução processual (analistas
técnicos, assessores, estagiários e coordenadores) são funcionários concursados ou
comissionados com as mais variadas formações. A investigação e a análise envolvidas
na instrução processual do CADE, portanto, não é necessariamente realizada por

! 10
bacharéis em direito ou em economia, como se poderia supor. Durante meu trabalho de
campo conheci formados em psicologia, geologia e relações internacionais, sem
formação universitária em direito ou economia da concorrência, que analisavam casos
por meio de procedimentos, técnicas e conceitos aprendidos no próprio trabalho.

A descrição do que se passa no interior dessas organizações não é relevante apenas


porque não há nada escrito sobre o tema ou porque até o momento desconsideram-se as
atividades realizadas pela grande maioria dos profissionais do órgão. O foco exclusivo
nos “interesses”, nos “incentivos” ou nas “influências” que movem os altos funcionários
do conselho faz com que todas as práticas e técnicas performatizadas dentro do CADE,
necessárias à decisão de um caso, percam a sua importância empírica e teórica, pois
podem ser explicadas ou entendidas considerando-se o contexto político em que estão
inseridas. Se esta tese toma como ponto de partida as investigações e as análises feitas
por burocratas, é porque considera que as práticas, os conceitos, as técnicas e os
artefatos envolvidos na investigação moldam as possibilidades de interpretação ou ação
dos responsáveis pela defesa da concorrência, além de contribuírem para a própria
construção da realidade que o órgão antitruste busca administrar. As práticas de
conhecimento têm efeitos porque são mediadoras entre as experiências ou
conhecimentos dos profissionais do antitruste – adquiridas nas suas trajetórias
acadêmicas, profissionais e pessoais – e as decisões ou os julgamentos finais do
conselho.

Em uma ocasião, durante meu trabalho de campo, perguntei para um conselheiro-


relator de um processo do CADE, que já estava há dias e noites trabalhando na análise
de uma fusão empresarial, se ele acreditava que os outros conselheiros iriam votar com
ele, concordando com sua decisão. O conselheiro disse que não poderia prever o que os
outros fariam, mas que, se discordassem de sua opinião e pedissem vista do processo,
teriam muito trabalho para refutar a complexa análise contábil que embasava a
argumentação de seu voto. Sua resposta demonstra a importância dada às práticas de
conhecimento no exercício da política antitruste. Por este motivo, esta tese não se
propõe a investigar as disputas decorrentes de conflitos entre grupos profissionais com
interesses políticos ou econômicos, que certamente existem e serão mencionados
quando necessário, mas sim demonstrar que esses conflitos e interesses são mediados
por práticas, conceitos e artefatos que condicionam os limites da regulação e daquilo
que é regulado (Mitchell, 2005): a concorrência.

! 11
O trabalho de campo que gerou esta tese foi motivado pela percepção de certas
limitações empíricas e teóricas dos estudos históricos e sociológicos sobre o modo
como um órgão antitruste exerce sua função de “defender a concorrência”. Sendo assim,
em agosto de 2012, como explico detalhadamente no capítulo 2 desta tese, um mês
antes do cinquentenário do CADE, visando observar a forma pela qual os profissionais
da autarquia analisam e interpretam os casos com que trabalham, obtive acesso ao
gabinete de um dos conselheiros do Tribunal Administrativo e, posteriormente, em
março de 2013, à sala de uma das coordenações da SG. Além da observação do trabalho
dos funcionários desses dois setores durante um ano, de conversas e entrevistas com
eles e da atuação como “analista técnico” instruindo processos por um curto período,
acompanhei também as sessões de julgamento do Tribunal Administrativo, abertas ao
público, entre março de 2012 e agosto de 2013. Além da descrição das práticas
realizadas nesses locais, utilizo como material etnográfico também os autos públicos
dos processos administrativos e artefatos comuns às práticas de conhecimento
performatizadas pelos funcionários, como documentos, tabelas e softwares. Também
procuro, por meio de artigos, livros e trabalhos especializados das áreas de direito e
economia, contextualizar os conceitos e as práticas adotados nesta política pública,
procurando entender seus usos e efeitos particulares sobre a atividade governamental e
aquilo que ela busca governar.

Entre o Estado, a economia e o direito

A instrução12 de um processo administrativo, ou seja, o conjunto de formalidades e


procedimentos necessários para pôr um processo em estado de ser julgado, implica,
como já mencionado, investigação e análise jurídico-econômica dos fatos alegados ou
do requerimento das partes. A análise tem como objetivo produzir um conhecimento
sobre as características dos mercados e das empresas envolvidas no processo. Esse
conhecimento permite a avaliação dos impactos de concentrações e a comprovação da
ocorrência de condutas empresariais ilícitas, fornecendo argumentos para justificar as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
Segundo o jurista Hely Meirelles (2010, p. 742): “a instrução é a fase de elucidação dos fatos, com a
produção de provas da acusação no processo punitivo, ou de complementação das iniciais no processo de
controle e de outorga, provas estas que vão desde o depoimento da parte, as inquirições de testemunhas,
as inspeções pessoais, as perícias técnicas até a juntada de documentos pertinentes. Nos processos
punitivos as providências instrutórias competem à autoridade ou comissão processante e nos demais
cabem aos próprios interessados na decisão de seu objeto, mediante apresentação direta das provas ou
solicitação de sua produção na forma regulamentar”.

! 12
decisões do órgão antitruste. Esta tese descreve estas práticas de conhecimento que
envolvem a mobilização de teorias econômicas e conceitos jurídicos, além de
procedimentos e artefatos específicos da administração pública brasileira,13 buscando
compreender como interagem no exercício da defesa da concorrência.

Ainda, este trabalho demonstra como tais práticas de conhecimento são


constitutivas de objetos e sujeitos jurídico-econômicos. A visualização de um problema
concorrencial só é possível na medida em que se define ou se delimita um espaço
geográfico onde um determinado produto ou serviço é comercializado, ou seja, um
“mercado relevante”. Além disso, a análise também requer a concepção e a
identificação daqueles que são os sujeitos que concorrem nos mercados. Para que seja
possível visualizar um problema concorrencial, portanto, é preciso definir onde se dá a
concorrência, o que está sendo comercializado e quem são os agentes que concorrem no
mercado. Esta tese demonstra, portanto, como é fundamental para a defesa ou o governo
da concorrência conhecer, conceber e construir um tipo específico de mercado e de
agente econômico.

Nesse sentido, esta etnografia aborda um tema clássico nas ciências sociais: o modo
como a “economia”, os “mercados” e os sujeitos econômicos (homo economicus) têm
sido historicamente construídos por meio de projetos governamentais e legais (ver, p.ex.,
Agnew, 1986; Polanyi, 1944; Weber, 1922), instituindo um sistema de produção,
distribuição e circulação de mercadorias caro à ideologia econômica moderna (Dumont,
1977; Mauss, 1920; Weber, 1920). Essa tradição clássica da antropologia ou da
sociologia argumenta, contrariamente aos pressupostos de grande parte da ciência
econômica, que tais entidades não podem ser pensadas como resultados naturais,
derivados de estruturas e disposições humanas não sociais. Pesquisas mais recentes em
antropologia da economia continuam, em grande parte, adotando uma postura crítica à
teoria econômica, seguindo a mesma linha de argumentação, embora a questão
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
Desde meados da década de 1970 nos Estados Unidos, quando as teorias econômicas passaram a ser
mais utilizadas para basear as decisões legais de casos antitruste, a “legalidade” tornou-se uma função dos
“custos e benefícios competitivos de uma conduta econômica particular” (McChesney, 1996, p. xiv). As
agências antitruste nos Estados Unidos tornaram-se uma nova oportunidade de trabalho para economistas
que auxiliam advogados a avaliar concentrações e condutas empresariais, observando se essas operações
promovem maiores ganhos de eficiência econômica nos mercados, maior bem-estar dos consumidores ou
mais inovação empresarial. Essa “economicização” do antitruste (Onto, 2009; Davies, 2010), descrita por
economistas como a “Revolução Antitruste” (Mattos, 2003), é vista pelos profissionais do ramo como um
progresso em direção à racionalização: uma análise econômica técnica deveria supostamente livrar a
política antitruste de influências políticas indesejadas e de julgamentos qualitativos e subjetivos. Este
desenvolvimento será abordado no capítulo 1.

! 13
predominante não seja mais se o “econômico” é uma construção social, mas sim como
se dá essa construção.

Vários pesquisadores têm se proposto a descrever etnograficamente as práticas


estatais ou burocráticas pelas quais a economia, seus objetos e sujeitos são construídos.
Influenciados pelos estudos sociais das ciências ou pela literatura de
governamentalidade, esses trabalhos procuram mostrar que a produção de conhecimento
estatal é chave para se compreender como certas relações de poder são instituídas a
partir da construção de modos de conceber e interpretar as relações ou a vida econômica.
Entre as etnografias mais recentes voltadas à descrição das formas de governo ou
regulação da economia (Collier, 2011; Elyachar, 2005; Holmes, 2014; Mitchell, 2002;
Neiburg, 2006; Riles, 2011a), a referência às ideias do sociólogo da ciência Michel
Callon é frequente. Callon (1998), utilizando como exemplo a etnografia realizada por
Marie-France Garcia (1986) sobre o mercado de morangos em Fontaines-en-Sologne,
argumenta, conforme já haviam sugerido Karl Polanyi (1944), Louis Dumont (1977) ou
Michel Foucault (2007b), que o estudo do “econômico” não pode prescindir do estudo
das formas de conhecimento que o definem, mensuram e formatam. Baseando-se na
noção de performatividade de John Austin (1962) e sua própria teoria do ator-rede
(actor-network-theory), Callon (1998, p. 2) afirma que a ciência econômica “performa”
a economia: “Economics, in the broad sense of the term, performs, shapes and formats
the economy, rather than observing how it functions”.

Para Callon, sua abordagem, que privilegia a observação de como se dá a


performatividade do conhecimento econômico, representa uma alternativa aos trabalhos
de sociologia e antropologia da economia. Estes ainda costumam, na maior parte das
vezes, criticar o “virtualismo” (Miller, 1998) da ciência econômica, ou seja, sua
particular epistemologia que pressupõe a construção de conhecimento a partir de
abstrações e modelos. Segundo eles, as teorias econômicas supostamente irreais sobre o
funcionamento de mercados e o comportamento de indivíduos deveriam ser
complementadas ou mesmo substituídas por explicações sociais, políticas e culturais.
Para Callon, pelo contrário, o pesquisador deveria, em vez de criticar os economistas,
entender como suas teorias e modelos são fundamentais não somente como
representações ou explicações do mundo econômico, mas sim como ferramentas que o
performam ou o formatam por meio de práticas e políticas (Callon, 2007).

! 14
Muitos trabalhos de antropologia e sociologia da economia, inclusive aqueles que
lidam com o governo da economia, passaram a descrever como o conhecimento
econômico (teorias, formas de cálculo ou de mensuração), materialidades (documentos,
softwares, computadores) e os profissionais da economia (Neiburg, 2007) –
especialistas que lidam com questões econômicas, sobretudo os economistas 14 –
contribuem para a produção de objetos, como “mercados” (MacKenzie, Muniesa & Siu,
2007; Pardo-Guerra, 2013), “preços estáveis” (Holmes, 2014; Neiburg, 2006) e a
própria noção de uma “economia nacional” (Mitchell, 2002). Além disso, os estudos
descrevem como são produzidas subjetividades econômicas, como versões do indivíduo
calculador e maximizador no mercado financeiro (Zaloom, 2006) ou
“microempreendedores” em periferias urbanas (Elyachar, 2005). Os trabalhos
demonstram, desta forma, como o conhecimento econômico e as práticas a ele
associadas, governamentais ou não, constroem a realidade que supostamente, de acordo
com sua própria concepção científica, ele apenas descreve ou explica.

A abordagem performativa do econômico, que permeia estes e outros estudos, não


pretende criticar, portanto, o modo como economistas descrevem a economia, mas sim
a explicação a posteriori de cunho naturalista e realista que a ciência econômica daria
para seus objetos de conhecimento (Muniesa, 2010). Segundo Latour (1993), referência
importante nesta perspectiva, os cientistas – entre eles os economistas – se utilizariam
de uma “língua bifurcada” (forked tongue) para dizer que a realidade não é construída
quando tiverem acabado de construí-la. Dessa maneira, a abordagem performativa, tal
como utilizada na antropologia da economia, pressupõe uma diferença entre sua
perspectiva sócio-antropológica e o conhecimento econômico. Os cientistas sociais, ou
melhor, aqueles que se identificariam com a perspectiva performativa, assumiriam que
constroem o conhecimento tanto quanto a realidade que descrevem. Os economistas,
por outro lado, embora formatem ou performem a economia (por diversos meios, tais
como pela formulação de políticas públicas, conselho políticos, publicação de artigos,
entrevistas etc.), afirmam que somente descrevem, explicam ou desvendam o
comportamento e as relações econômicas. Essa distinção entre as duas formas de
conhecimento é o que produziria grande parte da relevância analítica e empírica dos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
Segundo Neiburg (2007, p. 120-121), podemos classificar de “profissionais da economia não só os
economistas acadêmicos, mas também os jornalistas, os funcionários de agências internacionais e de
governo, os operadores de mercado e, em termos mais gerais, utilizando uma expressão de inspiração
weberiana, todos aqueles indivíduos que vivem ‘de’ e ‘para’ a economia”.
!

! 15
estudos de performatividade, que apontam a fabricação daquilo que os profissionais da
economia dizem ser dado ou natural.

Entretanto, se essa abordagem é interessante ao propiciar um movimento crítico das


formas de concepção dos objetos e sujeitos econômicos como compreendidos pela
ciência econômica, ela parece ser menos relevante ou pelo ainda evidente para
profissionais de uma política que busca defender a concorrência, pois se supõe que ela
não é garantida, nem natural, nem dada. Qual o sentido de afirmar que a política
antitruste e suas práticas performam a concorrência, sendo que este foi exatamente o
propósito do surgimento das medidas antitruste na América do Norte há mais de um
século? Qual a vantagem analítica ou empírica em se afirmar que a concorrência é uma
produção artificial quando isso é afirmado por diversos economistas e juristas desde
pelo menos a década de 1940, como aponto no primeiro capítulo? Como demonstro por
meio de relatórios anuais do CADE, conversas com profissionais do antitruste e pela
descrição do modo como eles entendem suas práticas, a defesa da concorrência nos
mercados é, para todos aqueles envolvidos nela, a construção da concorrência nos
mercados.

A abordagem performativa perde sua eficácia analítica quando as práticas dos


profissionais que produzem o econômico são pensadas ou concebidas de forma similar
àquelas com as quais os cientistas sociais (ou alguns deles) estão acostumados: como
produzindo sua realidade. Essa literatura parece assumir que as práticas ou políticas que
performam o econômico são sempre concebidas e implementadas somente por atores
que acreditam na naturalidade dos fenômenos econômicos, sejam eles economistas ou
não. No caso do órgão antitruste brasileiro, não se pode dizer que todos os economistas
que lá se encontram compartilham um naturalismo irrestrito. Além disso, como descobri
ao longo do trabalho de campo, apontar o construtivismo dos objetos e os sujeitos
econômicos não era algo intrigante para os profissionais que realizam análises e
investigações no CADE. Isto se devia ao fato de que muitos deles tinham diferentes
formações acadêmicas, principalmente na área do direito, para a qual as implicações das
noções de “performatividade” ou de “construtivismo” soam menos incômodas ou
distantes do que para a maior parte dos economistas.

Uma das limitações de grande parte dos trabalhos e das etnografias que tratam da
economia é que eles costumam deixar de lado, ou tratar apenas brevemente, do papel do

! 16
direito ou do conhecimento jurídico na regulação econômica. Segundo Annelise Riles
(2010), a literatura que tem destacado o papel das culturas epistêmicas na concepção e
na formatação da economia lida com o conhecimento jurídico como uma simples versão
do conhecimento econômico, um “outro processo de abstração que mascara sua própria
política” (Riles, 2010, p. 796).15 Para a autora, essa postura, pouco sensível ao caráter
particular do conhecimento jurídico e a maneira pela qual ele é entendido, é reforçada
ainda mais pela literatura dos estudos sociais do direito (socio-legal studies), a
sociologia e a antropologia do direito, que não se interessaria pelo conhecimento legal
em si, limitando-se a identificar as “forças sociais” que o utilizam em seu benefício
(Riles, 2011a) – as mesmas “forças sociais”, por sinal, descritas acima nos estudos
atuais sobre antitruste: a disputa por cargos, interesses econômicos, ideologias políticas,
entre outras.16

Entretanto, novos trabalhos em antropologia do direito (Beviláqua, 2010; Latour,


2002; Pottage, 2012; Pottage & Mundy, 2004; Valverde, 2007, 2009; Silbey, 2005;
Hagan & Levi, 2005; Lezaun, 2012) têm se dedicado a descrever mais detalhadamente
como o conhecimento jurídico é utilizado na prática – incluindo nisso os conceitos, os
procedimentos, as técnicas, as materialidades e as doutrinas jurídicas. Em um
movimento similar ao da antropologia da ciência, que passou a estudar a prática
científica no final dos anos 1970 (Woolgar & Latour, 1986; Lynch, 1993), e aos já
aludidos desenvolvimentos mais recentes da antropologia da economia, que têm dado
ênfase à performatividade do conhecimento econômico, os autores mencionados têm
destacado as particularidades epistemológicas e materiais do conhecimento jurídico e o
modo como ele enquadra conflitos políticos e sociais (Riles, 2011a). O “direito”, neste
caso,

não é considerado como um sistema de poder dotado de autoridade e


autonomia particular, mas sim como um sistema de conhecimento entre
muitos outros, como uma máquina de processamento de asserções
epistêmicas que coexiste com máquinas de conhecimento científico e
máquinas de conhecimento burocrático, entre outras (Valverde, 2007, p. 83).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
Riles cita como exemplo o trabalho de Timothy Mitchell (2002).
16
Mariana Valverde (2007, p. 78) também critica a literatura de estudos sociais do direito norte-
americana: “In many studies, the effects of sociolegal events on law itself are almost ignored to the point
that relevant court decisions and statutes sometimes remain unread. Political and social causes, interests,
and effects are sometimes assumed to be the only objects worth studying. This bias is understandable
given the minority status of law-and-society scholarship vis-à-vis the tremendous volume of strictly legal
scholarship daily generated by blackletter lawyers; but it nevertheless distorts the field in that the ‘society’
part of ‘law and society’ ends up much better researched that the ‘law’ part”.

! 17
Nesse conjunto de autores, o trabalho da antropóloga e jurista Annelise Riles
(2010a, 2011a) sobre a regulação do mercado financeiro japonês é particularmente
importante para esta tese, pois se concentra na descrição das tecnicalidades e
materialidades contratuais que tornam possível as trocas de ativos no mercado
financeiro. Seu trabalho preocupa-se com a maneira pela qual certas técnicas (como a
analogia), conceitos (como o de “colateral”) e artefatos (documentos) específicos do
conhecimento jurídico permitem aos reguladores reconhecer, receber, rejeitar,
transformar ou traduzir outras formas de conhecimento. Descrever o direito como um
conjunto de técnicas e materialidades possibilita ao etnógrafo, segundo Riles (2005),
evidenciar a “agência das formas legais”, ou seja, aquilo que faz do direito algo
específico, com efeitos singulares, embora sempre imerso em outras práticas de
conhecimento.

Esta etnografia enfatiza a utilização dos conceitos, das técnicas e dos artefatos
jurídico-administrativos específicos das práticas de conhecimento do antitruste. Estes
últimos, os artefatos ou documentos que permeiam todos os procedimentos realizados
pelo CADE, são parte importante do material etnográfico deste trabalho, pois é
principalmente a partir deles que a produção de conhecimento econômico e a
visualização de um problema concorrencial é possível. Esta tese descreve, em primeiro
lugar, como essas práticas jurídico-administrativas, associadas à ciência econômica,
performam a realidade, defendendo e garantindo a concorrência nos mercados.
Demonstro como técnicas, conceitos e artefatos jurídico-administrativos constroem
limites, recortando aspectos da “realidade econômica” (Riles, 2011a) e produzindo
“mercados” e “agentes” de um tipo particular, tendo em vista os propósitos da
legislação e da política antitruste. Descreve-se, portanto, como o direito e o Estado
governam, na prática, a concorrência, produzindo objetos e sujeitos econômicos e
jurídicos.

Entretanto, como procuro apontar ao longo dos capítulos, a relação entre as várias
práticas de conhecimento envolvidas na política antitruste também resulta em
importantes divergências interpretativas. Embora profissionais com formações distintas
costumem exercer as mesmas práticas analíticas e investigativas na instrução de
processos de matéria concorrencial, não necessariamente suas interpretações sobre as
práticas que realizam são idênticas. No decorrer dos capítulos descrevo como conceitos,

! 18
técnicas e artefatos podem ser interpretados distintamente: como documentos, são
pensados ora como instanciações, ora como representações da realidade à qual eles se
referem (capítulos 2 e 3); como os “mercados”, são concebidos ora como representações
econômicas, ora como técnica jurídica (capítulo 3); como as “pessoas jurídicas”, que
enviam seus requerimentos ao CADE, são consideradas ficções jurídicas e, às vezes,
coincidentemente, também agentes econômicos reais dos mercados (capítulo 4).

A tese, portanto, não busca apenas descrever o modo como a economia – neste caso,
os “mercados”, os “concorrentes” e a “concorrência” – é construída, mas sim o que
ocorre, na prática, quando o conhecimento jurídico e administrativo e suas práticas são
utilizados na produção do conhecimento econômico necessário ao governo da economia.
Como os profissionais entendem a relação entre tais práticas, conceitos e artefatos e a
realidade que eles buscam governar? Quais são as confluências e as divergências
epistemológicas inerentes a essa forma de governar a economia? Dessa maneira,
seguindo a linha traçada por antropólogos que têm estudado a regulação ou o governo
da economia em outras esferas, procura-se descrever o modo como funcionários do
órgão antitruste constroem entendimentos sobre a realidade que eles administram,
atentando para a relação entre as práticas e os conceitos jurídico-administrativos e o
conhecimento econômico.

Organização da tese

A tese está dividida em quatro capítulos, além desta introdução e da conclusão. O


primeiro capítulo apresenta uma genealogia do governo da concorrência no Brasil e no
mundo. Descrevo, primeiramente, com base na história do pensamento econômico
ocidental, o desenvolvimento da noção de concorrência e o modo como ela, aos poucos,
passa a ser entendida como uma característica que proporciona mais justiça e eficiência
às trocas comerciais. Em seguida, apresento o modo como a concorrência passou a ser
um objeto específico de governo no final do século XIX nos Estados Unidos,
promovendo o que ficou conhecido como políticas antitruste ou políticas de defesa da
concorrência. Esta política pública foi sendo cada vez mais justificada em função de
argumentos provenientes da ciência econômica. Explico como a teoria econômica é
atualmente, em todos os países em que há esta política, a base epistemológica sobre a
qual as decisões de um órgão antitruste se assentam. Ainda, traço brevemente uma

! 19
genealogia da política de defesa da concorrência no Brasil, explicando suas
características legais, institucionais e organizacionais. Procuro demonstrar neste
capítulo como atualmente a política antitruste no Brasil e no mundo é influenciada por
correntes do pensamento econômico neoliberal, que pressupõem que a concorrência nos
mercados não é dada, mas sim construída pelo Estado e pelas leis.

O segundo capítulo aborda a entrada em campo nas dependências do CADE e


explica por que certos artefatos das práticas administrativas do órgão antitruste,
principalmente os documentos, são tão relevantes para os profissionais que lá
trabalham. Procuro descrever neste capítulo como a política de defesa da concorrência
implica variadas práticas de documentação, ou seja, na produção, na circulação e na
organização de diferentes documentos. Demonstro como os funcionários do gabinete do
Tribunal Administrativo em que eu me encontrava entendiam que a organização e o
cuidado com documentos eram particularmente importantes, tendo em vista o caráter de
confidencialidade ou as temporalidades que alguns documentos tinham. Descrevo como
diferentes cargos profissionais eram responsáveis por distintos aspectos da gestão dos
documentos e como, por isso, eles os concebiam diferentemente. A atenção dada por
esses profissionais aos artefatos e seus efeitos, que leva em conta tanto seus aspectos
materiais quanto aquilo a que eles se referem, tornou-se um modo de compreender
etnograficamente relações entre as práticas jurídico-administrativas, o conhecimento
econômico e a realidade que se buscava administrar.

O terceiro capítulo refere-se ao procedimento de definição ou delimitação do


“mercado relevante”, considerado essencial na análise de todos os processos
administrativos relativos a atos de concentração. Segundo os profissionais do CADE,
não há concorrência “em geral”. A concorrência somente pode ser concebida ou
visualizada quando se define um mercado. O procedimento de definição de mercado na
política antitruste procura identificar quais produtos ou serviços serão afetados pela
concentração empresarial em análise e onde, geograficamente falando, essa
concentração causará um impacto substantivo. Descrevo como essa definição é feita
através do envio e do recebimento de documentos, de ligações telefônicas ou de
reuniões com representantes de empresas. Além disso, a definição se dá a partir de
conversas entre os funcionários responsáveis pela análise e, como é bastante frequente,
em função da mobilização de experiências pessoais dos analistas. Argumento, neste
capítulo, que o “mercado relevante”, ou o mercado da política antitruste, pode ser

! 20
compreendido como um contexto: em parte, como uma fronteira nativa das restrições
concorrenciais enfrentadas pelas empresas, mas sobretudo como um enquadramento
legal, necessário à aplicação da lei. Como dizem os funcionários do CADE, o mercado
é, ao mesmo tempo, um “espelho” das relações econômicas e um “filtro” da lei. Explico
como essa ambiguidade do conceito de mercado na política antitruste o distingue de
concepções mais comuns na teoria econômica e de perspectivas mais recentes sobre
mercados na antropologia e na sociologia.

O quarto capítulo descreve como os analistas do órgão definem os agentes que


concorrem num determinado mercado. Para que esses profissionais possam estimar a
probabilidade de um prejuízo futuro à concorrência e possam aprovar ou não uma
concentração, torna-se necessário saber quem e quantos são os agentes econômicos que
concorrem no mercado já definido. Esta tarefa torna-se extremamente complexa na
medida em que, devido à maior financeirização da economia, diversas empresas estão
interconectadas por meio de uma rede nem sempre explícita de relações de propriedade
e/ou controle empresariais. Seriam os concorrentes do mercado as pessoas jurídicas que
enviaram o requerimento de fusão ou aquisição, perguntam os analistas? O capítulo
aborda alguns procedimentos de investigação de uma fusão no setor de educação
superior privada e o modo como analistas do CADE identificaram um concorrente neste
mercado. Pretende-se com essa descrição apontar a forma com que práticas de
conhecimento antitruste produzem sujeitos econômicos com base em relações pessoais,
jurídicas e administrativas.

Concluo o quarto capítulo com uma interpretação sobre o modo como a


concorrência é concebida e visualizada na prática antitruste. Como diz George Stigler
(1957), a concorrência é uma noção de difícil definição. Na prática antitruste este
conceito, curiosamente, é pouco mencionado, sendo em geral referenciado pelos seus
negativos: a “não concorrência”, a “falta de concorrência” ou o “problema
concorrencial”. Como descrevo ao longo dos capítulos, a concorrência se apresenta
como um conjunto de relações de diferença e semelhança que só pode ser percebida na
interação entre práticas, artefatos jurídico-administrativos e teorias econômicas. Se tais
práticas, teorias e artefatos não restringem completamente o significado da noção de
concorrência, ao menos são capazes de, como Stigler diz, “evitar ambiguidades”.

! 21
Apesar de descrever práticas, conceitos e artefatos que envolvem a análise de
variados tipos de processos administrativos de matéria concorrencial, privilegio a
descrição de procedimentos realizados na instrução de casos relativos a atos de
concentração, tendo em vista que, na época em que foi realizado o trabalho de campo, a
instrução desses processos era considerada mais urgente entre os funcionários do órgão
antitruste, como explico mais profundamente no segundo capítulo. Este tipo de processo
administrativo responde pela grande maioria dos processos instruídos pelo órgão
antitruste desde o início dos anos 1990 (Miola, 2014). Nas considerações finais desta
tese demonstro mais detalhadamente como essa opção moldou minha forma de
compreender a política antitruste. Vale mencionar também que ao descrever as práticas
de conhecimento do CADE, utilizo, com poucas exceções, nomes próprios modificados,
sem sobrenomes, para preservar a identidade das pessoas, embora nenhuma das práticas
ou informações citadas sobre os processos sejam confidenciais, ilícitas ou
desconhecidas por parte dos profissionais de dentro ou fora do Estado que lidam com a
política de defesa da concorrência diariamente.

! 22
Capítulo 1 : A justiça e a eficiência da concorrência

“Quando empresas concorrem entre si, elas buscam ofertar bens e serviços de maior
qualidade e a preços mais baixos. O resultado dessa competição é o consumidor pagar
menos para ter acesso a uma maior variedade de produtos e serviços. Competitividade
estimula a inovação e o aumento de eficiência e de produtividade, além de gerar
oportunidade para empresas entrarem em um mercado e desenvolverem seus negócios.
Esses elementos contribuem para um ambiente econômico sadio, com geração de
crescimento para o país e bem-estar para a sociedade.”

(CADE, 2013a, p. 31)

A cerimônia de comemoração de 50 anos do CADE em setembro de 2012 foi


relativamente simples e discreta, não muito distinta de uma quarta-feira em que há
sessão de julgamento no plenário. Embora estivessem presentes muitos de seus
integrantes e ex-integrantes, pouco se notava que aquele dia era especialmente
importante na história desse órgão da administração pública. A nova sede do CADE
estava ainda em vias de ser decorada e mobiliada apropriadamente, fazendo com que o
seu grande plenário lembrasse mais uma cheia sala de aula. Em compensação, um
grande cartaz localizado ao lado da tribuna do plenário chamava a atenção. Ele,
reproduzido logo abaixo, mostrava uma imagem que também estava no website
comemorativo do cinquentenário, ilustrando a largada de uma corrida masculina. A
metáfora pretendia mostrar a importância do órgão e da política que implementava.

! 23
Figura 2: Website 50 anos (Fonte: www.cade.gov.br/50Anos/. Acesso em: 20 de janeiro de 2014)

“Sabe quem ganha com uma competição assim no mercado? Você, as empresas, o
Brasil”. A concorrência nos mercados não tem perdedores, dizia o cartaz; todos seriam
beneficiados: indivíduos, sociedades e a nação. O cartaz apresenta ainda uma sequência
temporal com datas importantes para o órgão e a política antitruste no país, iniciando-se
em 1945, com aquele que foi considerado o primeiro estatuto legal antitruste, a Lei
Malaia, e finalizando no ano de 2011, quando foi aprovada a mais nova legislação sobre
a matéria no Congresso. No site era possível ainda encontrar mais informações a
respeito do que é o CADE, o que ele faz, o seu percurso ao longo do tempo e as
alterações principais com a nova legislação. Sobre a “competição no mercado”, no
entanto, sabemos apenas que ela é benéfica, mas não se esclarecem quais seriam esses
benefícios nem como eles se produziriam.

No evento de comemoração anunciou-se também a publicação do livro eletrônico


Defesa da concorrência no Brasil: 50 anos, que foi disponibilizado pelo website do
CADE no ano seguinte. A publicação visava, segundo o presidente do CADE em
exercício Vinícius de Carvalho, que assinou a apresentação do livro, narrar o “curso de
fortalecimento institucional crescente e de transformação contínua nos contextos

! 24
político e econômico”, fornecendo um histórico dos “episódios que construíram a
política de defesa da concorrência que temos hoje” (CADE, 2013a, p. 16).17 Além de
apresentar as “conquistas” institucionais, como maior “eficiência da política no combate
às práticas ilícitas”, e as conquistas sociais logradas pela política, como, por exemplo, a
“difusão da cultura concorrência” e maior “reconhecimento da sociedade”, que teriam
ocorrido ao longo dos seus 50 anos de existência, o livro introduz as mudanças mais
recentes provocadas pela nova legislação. Essa apresentação institucional narra uma
história de sucesso, em que “desafios” são, no decorrer dos anos, “superados” com a
adoção de novas práticas administrativas, constantes aperfeiçoamentos legais e
crescentes recursos orçamentários. Pela narrativa apresentada, o leitor compreende que,
finalmente, 50 anos após a criação do CADE, pode-se dizer que o país conta com uma
política que defende de modo eficaz a concorrência nos mercados.

A publicação que relata o sucesso da empreitada, financiada pelo Ministério da


Justiça, vai um pouco além do cartaz na justificação dos benefícios da política
implementada pelo CADE. No primeiro parágrafo da introdução, citado acima, e apenas
neste parágrafo, o autor anônimo enfatiza as razões pelas quais tal política pública é
benéfica e necessária, ou seja, porque se deve “defender a concorrência”. De acordo
com a publicação, em primeiro lugar, quando há concorrência, o “consumidor” pode
escolher entre uma variedade maior de produtos ou serviços a preços menores. Em
segundo lugar, a concorrência ou a competitividade estimularia a “inovação”, a
“eficiência” e a “produtividade” empresarial. Estes dois resultados somados
produziriam benefícios mais amplos, a geração de um ambiente econômico “sadio”, de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Ao longo desta tese incluo como nota de rodapé, quando necessário, as trajetórias profissionais e
intelectuais de funcionários e ex-funcionários do CADE, do mesmo modo como foram expostas pelo
sociólogo Iagê Miola na sua detalhada tese de doutorado de 2014. Em seguida ao nome de cada
profissional, Miola incluiu também, como se pode ver, a idade da pessoa, de acordo com dados públicos
ou por estimativas aproximadas. “Vinicius Marques de Carvalho, 30. A law graduate from USP law
school (2001), Carvalho held a joint PhD degree obtained from USP and University of Paris I – Pantheón
Sorbonne in commercial law, supervised by Calixto Salomão Filho, a competition lawyer and law
professor, and Eros Roberto Grau, an exponent of Brazilian economic law, and justice of STF. While an
undergraduate student, Carvalho was a member of the ‘PET-CAPES Sociology of Law’ group at USP,
supervised by José Eduardo Faria, and was Faria’s teaching assistant in 2002. Between 2001 and 2006,
Carvalho served in different political appointments connected to the Worker’s Party: at the city council of
São Paulo, in the House of Representatives of the state of São Paulo, and as a legal advisor in the Federal
Senate. In 2006, he became a federal public official in the career of “Specialist in Public Policies and
Governmental Management”. Between 2006 and 2007, he was an advisor of CADE’s president, Farina,
and between 2007 and 2008, he was the Chief of Staff of the Special Secretariat for Human Rights, an
organ connected to the Presidency of the Republic. After serving as a commissioner between 2008 and
2010, Carvalho was appointed Secretary of SDE, and in 2012 he became CADE’s president” (Miola,
2014, p. 300).

! 25
crescimento econômico e de “bem-estar” social. Mais do que um valor, um princípio
constitucional, portanto, que envolveria uma noção de justiça, nessa curta explicação a
concorrência, entendida como um estado ou uma característica dos mercados, ganha
uma justificativa econômica. Essas relações de causalidade, que não precisam de
maiores detalhamentos na publicação, parecem óbvias e necessárias, provavelmente de
fácil compreensão por leitores familiarizados com o tema.

Este primeiro capítulo proporciona uma explicação de como a “livre concorrência”


ou a concorrência nos mercados passa a ser entendida como produtora de resultados
econômicos, sociais e morais benéficos, tornando-se algo que vale a pena ser
preservado ou “defendido” por diversos países e pelo Estado brasileiro. O capítulo,
portanto, traça uma genealogia do governo da concorrência, de modo que fiquem claros
não apenas a evolução das justificativas que são dadas para a implementação desta
política pública, mas também os contornos intelectuais, legais, institucionais e
organizacionais que esta política passou a ter no início do século XXI no Brasil.

Para isso, busco primeiramente explicar as transformações percorridas pela noção


de concorrência no pensamento econômico. 18 Por meio desse percurso, podemos
compreender como essa noção ganha, a partir do século XVI, uma conotação de
rivalidade e competição, associando-se, no pensamento escolástico medieval, a noções
de justiça, em especial aquela de “preço justo”. Do século XVII em diante, a relação
entre liberdade e concorrência mostrou-se tão óbvia e necessária que a expressão “livre
concorrência” tornou-se corrente entre pensadores franceses e ingleses. A obra de Adam
Smith foi fundamental, nessa trajetória conceitual, para consolidar a concorrência ou a
“livre concorrência” como uma realidade que os governantes não poderiam ignorar.
Mais do que isso, a concorrência surge, com o trabalho dos economistas políticos
liberais, como um importante argumento contra as políticas econômicas mercantilistas
adotadas pelas nações europeias.

A partir da obra de Adam Smith a noção de concorrência passou a estar


diretamente contraposta à noção de monopólio. Entretanto, até o final do século XVIII,
os monopólios combatidos por pensadores liberais eram especialmente aqueles criados
pelos governos nacionais com o propósito de organizar o comércio, explorar alguma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
Utilizo aqui principalmente as obras de Paula Forgioni (2013) e de Kenneth Dennis (1977), que traçam
essa complexa arqueologia do conceito de concorrência e dos seus usos como objeto de governo ao longo
dos últimos séculos.

! 26
atividade ou garantir um serviço público. A concorrência era entendida como forma de
organização mais eficiente (e justa) do que as organizações monopolistas estatais, ou
seja, era componente essencial de um argumento contra a interferência estatal nas
relações econômicas. Com o surgimento de grandes corporações e trusts nos Estados
Unidos na segunda metade do século XIX, os monopólios criados por agentes privados
tornaram-se aos poucos mais preocupantes para a opinião pública e para os juristas do
que aqueles criados pelo Estado.

Como explico neste capítulo, no fim do século XIX, nos países de economia já
industrializada, iniciou-se a implementação de um conjunto de políticas públicas e
estatutos legais que visavam promover ou preservar uma condição tida como ideal ou
ótima para o funcionamento dos mercados (Forgioni, 2013, p. 36): a concorrência.19
Esta condição ideal estava ameaçada não pelo Estado, mas pelas próprias empresas que
buscavam, para crescer, eliminar seus concorrentes por meio de acordos que
prejudicavam os consumidores. A partir do século XX, após a ciência econômica ter
avançado na conceituação mais detalhada da noção de concorrência e na explicação dos
seus benefícios (Dennis, 1977),20 a linguagem dos economistas tornou-se hegemônica
na justificação das políticas de defesa da concorrência existentes nos mais diversos
países. Essa linguagem econômica, considerada mais técnica pelos juristas, pois
supostamente isenta de valores morais, ajudou a fazer com que a concorrência passasse
a ser regulamentada para o “bem-estar da sociedade” e do sistema econômico (liberal)
que a caracterizava.

Atualmente, a política de defesa da concorrência ou política antitruste brasileira,


assim como a de muitos outros países influenciados pela política norte-americana,
difere muito pouco da justificativa com que é implementada. A história do antitruste no
Brasil, no entanto, é mais recente, e só começa a ganhar importância entre as políticas
econômicas estatais a partir da década de 1990, um período de transformação dos
modos de intervenção estatal na economia. Neste capítulo, mostro como a política de
defesa da concorrência brasileira ganhou relevância nesse período por meio de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
A noção de mercado, intimamente ligada a noção de concorrência conforme entendida na política
antitruste, também foi se transformando paralelamente durante todo esse período. O capítulo 3 será
dedicado à investigação desta noção.
20
Sobre a importância da noção de concorrência nesse período, Foucault afirma (2007b, p. 119):
“Practically since the end of the nineteenth century, more or less all liberal theory has accepted that the
most important thing about the market is competition, that is to say, not equivalence but on the contrary
inequality. It is the problem of competition and monopoly, much more than that of value and equivalence,
that forms the essential armature of a theory of the market”.

! 27
transformações legais, institucionais e organizacionais. Por fim, dou especial atenção ao
modo como a política antitruste, a partir do ano 1996 pelo menos, é explicitamente
elaborada e justificada, conforme a concepção do pensamento conhecido como
neoliberal, como uma forma não apenas de defender a concorrência, mas de construí-la.

1.1. Da coincidência para a rivalidade

“Multitudo emptorum concurrentium plus uno tempore, q alio, & maiori aviditate, facit
pretium accrescere: emptorum vero raritas facit illud decrescere.” [Uma maior
concorrência entre compradores fará aumentar os preços, mas uma demanda mais rara
os reduzirá].

(Luis de Molina, 1593, De Justitia et Jure)21

Segundo a jurista Paula Forgioni (2013), na Grécia antiga era comum a instituição
de “monopólios” públicos (ou estatais) pelas cidades-estados, visando garantir a oferta
de determinados produtos, um abastecimento de mantimentos relativamente estável nas
cidades e uma maior arrecadação de impostos.22 Monopólios privados, formados por
comerciantes, não eram necessariamente proibidos, mas certas atividades comerciais
eram regulamentadas buscando evitar a escassez de produtos de primeira necessidade,
especialmente de grãos e cereais, entre a população.23 Similarmente, na Roma antiga,
monopólios estatais também eram comuns, tais como o monopólio do sal, que garantia
boa parte da receita do Império. Havia também em Roma a tentativa de evitar que
comerciantes cometessem abusos contrários aos interesses da população em geral, como
o açambarcamento de mercadorias – a acumulação de mercadorias em grande
quantidade para provocar a sua falta nos mercados e vendê-las depois por um preço
mais elevado – ou a fixação de altos preços entre os vendedores. Essas práticas eram tão
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
Citado em De Roover (1955).
22
Forgioni (2013, p. 37), citando o economista Fritz Machlup, afirma que a palavra “monopólio” foi
utilizada pela primeira vez na obra Política, de Aristóteles, em 347 a.C., no sentido de um monopólio
privado, quando discorria no texto sobre pessoas que instituíam monopólios de lagares e de ferro, para
depois revendê-los com lucro mais elevado em tempos de alta demanda.
23
Diz-se que o comitê executivo do Senado de Atenas em 386 a.C. teria julgado aquilo que seria o
primeiro caso “antitruste” da história, decorrente de uma acusação de que comerciantes “estariam
comprando grãos e se recusando a vendê-los ao público em tempos de guerra, estocando mais do que
seria lícito e revendendo quando os preços estavam altos em tempos de paz” (Forgioni, 2013, p. 39).

! 28
frequentes que deram origem ao Édito de Zeno, do ano 483, considerado por muitos o
primeiro diploma legal a regulamentar e proibir certos acordos entre comerciantes.

Assim como na Grécia e na Roma antigas, na Idade Média, monopólios também


eram entendidos principalmente como instrumentos de governo, formas de privilégios
ou “regalias” concedidas pelos soberanos a agentes privados, não somente por razões
fiscais, mas também políticas e sociais (Forgioni, 2013, p. 42).24 Costumava-se dar uma
concessão a um agente particular para a venda de determinadas mercadorias, sendo que
este daria preferência ou exclusividade ao soberano quando ele quisesse adquirir
mercadorias em momentos de escassez, para que fosse possível sustentar exércitos ou a
população das cidades (Forgioni, 2013). Na baixa Idade Média, contudo, com o
surgimento das conhecidas corporações de ofício, além de grandes empresas, como o
Banco da Família Médici em Florença, nota-se um desenvolvimento mais consolidado
daquilo que hoje chamaríamos de associações ou uniões entre “agentes econômicos”
que buscavam eliminar a rivalidade ou a concorrência entre seus membros visando à
proteção de interesses mercantis comuns, como os atuais “cartéis”.

As corporações de ofício criavam regras de conduta entre seus membros para que a
atividade de um não prejudicasse a de outro. Proibia-se, por exemplo, o fabrico de um
novo produto não acordado previamente, a abertura de lojas ou oficinas com distância
próxima às de outros, a publicidade e a difamação da imagem do outro vendedor e de
seu produto (Forgioni, 2013, p. 48). A vigilância e a coordenação entre seus membros,
com possíveis punições nos casos de desvios de conduta, constituíam uma
regulamentação privada da concorrência, acabando por uniformizar o preço, a
quantidade e a qualidade dos produtos vendidos. Essa atuação monopolista, em que
qualquer um que não fosse parte da corporação poderia produzir ou vender um
determinado produto, causava apreensão entre governantes de cidades como Florença,
Veneza e Verona.

Cidades medievais passaram a criar regras próprias para o controle dessas


corporações, buscando evitar um certo abuso nos preços cobrados em produtos de
primeira necessidade. Governantes chegavam a impor limites aos lucros que certas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
“[...] entre esses tipos de monopólios figura, em primeiro lugar, aquele de cunho da moeda, sempre
considerado uma regalia. Na Lombardia, aqueles que procuravam ouro nas areias dos rios do Vale
Padano eram obrigados a vender todo o metal à câmara real de Pavia por preço estabelecido pelo próprio
comprador, ou seja, tinha-se o autêntico monopólio de compra do produto” (Forgioni, 2013, p. 42).

! 29
categorias profissionais poderiam obter (Forgioni, 2013, p. 46). Uma das formas
encontradas para reduzir o monopólio de comerciantes foi a realização de feiras em
determinados espaços circunscritos da cidade, as “praças do mercado”, onde a compra e
venda de mercadorias era realizada num horário predeterminado e os comerciantes eram
obrigados a vender toda a sua mercadoria antes do final da feira. Isto induzia os
comerciantes a reduzir seus preços para acabar com os estoques, evitando ter seus
produtos confiscados. O conjunto dessas regulamentações também foi acompanhado
pelo início de uma reflexão mais profunda de certos pensadores sobre a “justiça nas
trocas comerciais” (Dennis, 1977).

Escritores medievais escolásticos rejeitavam amplamente monopólios, fossem eles


formado pelos governos das cidades ou pelos comerciantes que se associavam, pois os
monopólios eram gerados arbitrariamente, produzindo iniquidades nas trocas
econômicas. Essa implicação causal decorria de estudos da filosofia aristotélica e do
direito romano que produziram uma forma de compreensão da relação entre preços e
justiça. Tomás de Aquino foi o mais importante autor desse movimento. Ele agregou
em sua obra Summa Theologica uma reflexão sobre a justiça da troca feita por
Aristóteles em sua obra Ética, com uma concepção dos juristas romanos de “preço justo”
(iustum pretium). Segundo São Tomás, a obtenção de uma estimativa comum
(communis aestimatio) do valor das coisas, ou seja, do “preço justo” das coisas, só é
possível quando um grande número de compradores e vendedores está livre para decidir
seu próprio preço (Dennis, 1977, p. 20). Isto envolvia precisamente uma ausência de
arbitrariedade ou de qualquer influência de um indivíduo na determinação do preço
cobrado por outro.

Entretanto, não se pode dizer que Aristóteles, os juristas romanos ou os escolásticos


medievais tenham relacionado claramente a noção de “concorrência” à noção de “preço
justo”. Kenneth Dennis (1977), que estudou as origens do conceito de concorrência no
pensamento econômico, afirma que esses pensadores não estavam preocupados com a
explicação dos comportamentos em mercados e com seus efeitos. Como teóricos morais,
eles estavam tentando formular regras de justiça nas trocas e, assim, a estimativa
comum, o “preço justo”, era apenas o resultado de um consenso, de um acordo entre
compradores e vendedores, como uma barganha, e não de um processo de competição
entre eles (Dennis, 1977, p. 20). Esta questão começou a ser transformada lentamente a
partir do século XVI, quando a noção de “concorrência” (concurro ou competo, em

! 30
latim) assumiu outros significados, aproximando-se do conceito jurídico de “preço
justo”.

Até o fim do século XV, o verbo competo, em latim, tinha um sentido relativamente
neutro, denotando em certas circunstâncias simultaneidade, reunião, paralelismo,
coincidência ou acordo (Agnew, 1986, p. 38), e era utilizado para caracterizar eventos,
causas, condições abstratas ou pessoas (Dennis, 1977, p. 4). Atualmente, o verbo inglês
to concur e o substantivo concurrence mantêm praticamente esse mesmo sentido
original. Mais relevante, o verbo competo, assim como o verbo concurro também eram
utilizados na prática jurídica romana para descrever o ato de peticionar uma causa legal
ou de contestar um caso, o que, segundo Dennis (1977), indica uma prática voltada à
solicitação ou ao requerimento por justiça. Tal noção pode explicar uma relação prévia
com a de “preço justo”. Essas raízes latinas foram mantidas em várias línguas
românticas, como o português, o espanhol e o francês, com pequenas variações.25 A
noção de competência, tanto nesses idiomas quanto no inglês, que compartilha a mesma
raiz da palavra competição, teria surgido posteriormente, quando tanto a palavra
concorrência quanto a palavra competição passaram a ter um sentido de associação
conflituosa ou antagonista. O competente ou o competitivo passou a ser aquele que
sobrevive à concorrência ou competição.

Como explica Dennis (1977), a partir do século XVI, na Espanha, o verbo concurro
passa a ser utilizado no sentido de “correr em conjunto”, ganhando contornos de
“oposição” ou “luta”, como exemplificado na citação que inicia esta seção. O “século de
ouro” espanhol gerou uma série de tratados sobre assuntos econômicos, promovendo
outros termos para denominar relações antagonistas nos mercados das cidades ou entre
as próprias cidades, tais como “rivalidade” ou “emulação”. Porém, essa literatura, ainda
escolástica na sua essência, não produziu nenhuma reflexão mais profunda sobre o
conceito de concorrência. O século seguinte não mudou radicalmente essa situação, mas
seus pensadores passaram a se interessar por questões que iam além das fronteiras das
praças de mercado (marketplaces) nas cidades.

A literatura sobre questões econômicas do século XVII estava voltada para os


problemas da troca em termos do comércio entre nações no contexto de surgimento dos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
25
É interessante notar que a política de defesa da concorrência nos países de língua espanhola é chamada
de política de defensa de la competencia (competição), sendo que, ainda hoje, o termo concurrir, assim
como no inglês, mantém o sentido original de coincidência.

! 31
Estados-nações europeus. Os tratados “mercantilistas” desse período voltavam-se à
política comercial, à troca internacional e à regulação das moedas nacionais. 26
Acreditava-se que a acumulação de metais preciosos, como o ouro e a prata, decorrente
de balanças comerciais positivas, seria responsável pela riqueza de uma nação. A
utilização de certas concessões no comércio colonial, na forma de monopólios estatais,
passou a ser uma ferramenta para a obtenção desse resultado. Segundo Dennis (1977, p. 27):

It was in this context that the status of the incorporated company, a medieval
form of business organization which had risen to prominence as a response to
the new pattern of overseas trade, came to be scrutinized as an instrument of
national economic policy. Initially set up to overcome the huge financial
hurdles of raising large sums of capital for risky ventures, and vested with
special powers and privileges by the governments which created them, they
often proved to be a lucrative source of public revenue to those selfsame
central governments, but as time wore on their status as "monopolies" with
monopoly power both at home and in markets abroad became more and more
the central issue under discussion.

A extensão da forma corporativa das associações medievais para empreendimentos


coloniais caracterizou a política mercantilista das metrópoles europeias. Assim como
outras concessões dadas pelos governantes na Idade Média, essas corporações, como as
Companhias das Índias Orientais inglesa e holandesa, tinham exclusivo controle sobre o
comércio, porém, dessa vez, sobre as colônias desses Estados. Como disse Max Weber
(2003, p. 347), o mercantilismo significava “fazer funcionar o Estado como se este
consistisse exclusivamente de um conjunto de empresários”. Para autores que
defendiam teses mercantilistas, a unidade da organização monopolista representava a
unidade do “interesse nacional”, sendo portanto legítima. A concorrência, nesse caso,
adquiriu um sentido seguramente conflitivo, porém nacionalista. São as nações ou os
monopólios organizados por elas que “concorrem” por metais preciosos.

Na Inglaterra, que nesse período começou a ultrapassar os países do Mediterrâneo


em termos de volume comercial, surgiu um imenso debate público e parlamentar sobre
as vantagens e as desvantagens dos monopólios, especialmente depois da criação da
Companhia das Índias Orientais no ano de 1600. Para aqueles que criticavam os
monopólios, não se concebia como alternativa qualquer coisa aproximada do que
entendemos como a noção de “concorrência”, que nesse contexto estava associada,
como já foi dito, às disputas nacionais. Os monopólios, segundo seus críticos,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26
“The late medieval concern with usury and inflation gave way to the early modern concern with the
“balance of trade” (Dennis, 1977, p. 26).

! 32
“restringiam a liberdade de comércio”, o que não significa neste caso a ausência de
concorrência. Mais do que isso, nesse período, não se pode dizer que havia qualquer
associação entre as noções de liberdade (freedom e liberty) com aquela de concorrência
ou “emulação” (emulation), noção esta utilizada como sinônimo. Não havia nenhum
contraste entre monopólio e concorrência, pois eram os monopólios que possibilitavam
a força competitiva das nações.

Entre os autores influentes que defendiam os monopólios no país estava Thomas


Hobbes. Embora na sua obra Leviathan (1651) ele não tenha utilizado o conceito de
concorrência especificamente na discussão sobre monopólios, os sentidos que deu ao
termo, ao mesmo tempo políticos e econômicos, caracterizando o “conflito interpessoal”
no estado de natureza, ganhou repercussão entre os autores da época. Segundo Dennis
(1977, p. 35), a obra de Hobbes aproximou a noção de concorrência, pela primeira vez,
de um aspecto do comportamento individual, ainda que não tivesse se livrado
completamente de um caráter nacionalista.

Além disso, uma outra associação com a noção de concorrência já começava a ser
traçada no final do século XVII, livrando-a aos poucos de conotações mais negativas.
Autores como William Petty, que realizavam pesquisas empíricas, sugeriam que uma
maior variedade de produtores poderia gerar efeitos estimulantes sobre o progresso das
“artes”, no caso, as técnicas produtivas. Num estudo realizado por outro autor, Sir
Josiah Child, chegou-se à conclusão de que pescadores da costa de Newfoundland, após
terem eliminado todos os seus rivais comerciais, ficando assim “livres daquela
concorrência” (freed from that competition), logo se tornaram “preguiçosos” (lazy). A
concorrência passou a estar associada a uma situação de “eficiência econômica” ou
“eficiência produtiva”, que daria base futuramente para teorias econômicas mais
complexas sobre a relação entre características das trocas e resultados econômicos.
Como se pode ver, até o início do século XVIII a noção de concorrência, embora tenha
ganhado um sentido de rivalidade, não tinha uma definição contrastante com a ideia de
monopólio, entendida como uma forma de organização da produção econômica. Mesmo
aproximando-se de noções de justiça, tal como a de “preço justo” e de eficiência
produtiva, a concorrência era utilizada sobretudo para indicar a rivalidade entre nações e
não entre indivíduos.

! 33
1.2. A concorrência livre e natural

“C’est la concurrence qui met un prix juste aux marchandises, et qui établit les vraies
rapports entre elles.”
(Montesquieu, 1748).27

Nessa breve arqueologia do conceito de concorrência no pensamento econômico e


social, podemos dizer que o ano de 1748 foi um ponto de inflexão. A publicação
simultânea das obras de Montesquieu (De L’esprit des Lois), David Hume
(Philosophical Essays) e, principalmente, Josiah Tucker (Brief Essay on Trade)
ampliaram consideravelmente a discussão sobre a noção de concorrência, dando a ela
um estatuto de princípio moral, político e econômico (Dennis, 1977). Tais obras foram
fundamentais no desenvolvimento das teorias fisiocráticas na França e, posteriormente,
para a síntese do pensamento econômico liberal do período formulada por Adam Smith
em 1776.

O inglês Josiah Tucker promoveu uma mudança considerável no pensamento


mercantilista ao estender o sentido da assunção amplamente aceita de que a procura do
lucro pelo comerciante ou produtor é de interesse da nação como um todo. Para Tucker,
a disputa entre nações deveria ser “aberta”, imersa num “espírito de Emulação e
Indústria”. Ao invés de uma rivalidade ou concorrência entre monopólios organizados
pelas nações, uma disputa livre e auto-interessada de comerciantes ou produtores pelo
comércio internacional poderia, segundo Tucker, ser mais benéfica para o interesse
geral (General Good). A noção de concorrência possibilitava a ele conciliar o que
denominava de “paixão pela autoestima” (passion of self-love) com a “promoção do
interesse público e privado ao mesmo tempo” (Tucker citado em Dennis, 1977, p. 63).
“Is not Emulation a strong Principle in human nature?”, perguntava Tucker em 1752.
David Hume, leitor de Tucker, acrescentou no ensaio Of the Jealousy of Trade uma
pequena mas importante modificação a esta interpretação. Para Hume, a concorrência
ou emulação era benéfica para todos os países envolvidos na disputa comercial,
mantendo “a indústria viva em todos eles”, e não apenas para aqueles que se
mostrassem mais bem sucedidos na venda de seus produtos no exterior.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
Montesquieu apud Dennis (1977).

! 34
Essas poderosas reinterpretações, que aproximavam das noções de concorrência ou
emulação certas preocupações sobre aquilo que motivava o comportamento humano, na
forma de “paixões” ou “interesses” (Hirschman, 1977), tiveram uma recepção
importante do outro lado do Canal da Mancha, após uma série de traduções dos
pensadores ingleses terem sido feitas no período. A afirmação, “c’est la concurrence qui
met un prix juste aux marchandises, et qui établit les vraies rapports entre elles”, não
muito bem contextualizada no livro de Montesquieu, mostrava a influência dos autores
ingleses no pensamento francês do período. Por causa de autores como François
Forbonnais, a França acabou dando certos contornos inovadores à história do conceito.
Entre muitas obras produzidas, Forbonnais, um importante e bem-sucedido industrial
francês, foi convidado a escrever o ensaio e o verbete Concurrence na Encyclopédie
organizada por Diderot e D’Alembert em 1753. Neste texto, que se transformou em
uma referência no período, o autor estabelece que a concorrência é a verdadeira
essência da liberdade econômica: “la concurrence est l’âme & l’aiguillon de l’industrie,
& le principe le plus actif du commerce [...] elle est la base principale de la liberté du
commerce” (citado em Dennis, 1977, p. 69). Tal relação entre as noções de liberdade e
de concorrência acabou se tornando corrente entre os vários autores franceses do
período.

Parte dessa associação estava relacionada às importantes discussões sobre a


reforma agrária na França na metade do século XVIII. A literatura voltada a temas
políticos e econômicos abordava quase necessariamente aspectos ligados às políticas de
tarifação do comércio exterior agrícola, sendo que os mais influentes e respeitados
autores defendiam a liberalização do comércio, tanto dentro da França como no exterior.
A relação entre liberdade e concorrência tinha, portanto, um significado claro e preciso:
a liberdade de entrar e participar da troca econômica, quando barreiras alfandegárias e
fiscais fossem extintas. A partir dos anos 1760, a relação entre estas duas noções era tão
explícita na França que não se falava mais em liberté et concurrence, mas simplesmente
em libre concurrence (free competition), expressão corrente até os dias de hoje. O
conhecido édito real de 1763, por exemplo, que legalizou o comércio interno de grãos
entre as regiões da França, mencionava os benefícios de uma “concorrência livre e
inteira” (Forbonnais citado em Dennis, 1977, p. 76). Esta noção foi disseminada
principalmente entre os panfletos e as obras dos “fisiocratas” do período.

! 35
A fisiocracia foi um movimento intelectual de pensadores sociais franceses que
afirmavam que a riqueza das nações provinha única e exclusivamente da renda da terra.
Apenas a produção agrícola seria, para eles, geradora de riqueza, de valor econômico, e
não a produção industrial ou as trocas comerciais. Esta teoria, promovida, entre outros,
por François Quesnay, questionava diretamente aquela proposta por autores
mercantilistas, para os quais a riqueza seria gerada por meio de metais preciosos
acumulados com uma balança comercial positiva no comércio internacional. Para os
fisiocratas, o comércio entre nações, assim como entre indivíduos, é uma troca ou
“transferência de equivalentes”, sem qualquer ganho ou perda entre as partes. Por isso,
não há justificativa para disputa conflituosa de vantagens comerciais entre os países,
como propunham os mercantilistas. O comércio livre de barreiras entre as nações era
vantajoso para todos, visto que promoveria a produção de “recursos naturais” (produtos
agrícolas), estes sim capazes de gerar riquezas.

A concepção de concorrência mercantilista, como uma forma de rivalidade nacional,


era aos poucos substituída por uma concepção liberal individualista que, para os
fisiocratas, parecia oferecer uma resposta mais coerente com uma tentativa de se pensar
a economia como um sistema ordenado (Dumont, 1977). Em primeiro lugar, a noção de
concorrência oferecia um modo de conciliar interesses opostos. Quesnay argumentava,
por exemplo, que o comércio e a agricultura se beneficiariam do que ele chamou de la
plus grande concurrence possible. Mais do que isso, Quesnay chegou a proclamar:
“Qu’on maintienne l’entière liberté du commerce: car la police du commerce intérieur
et extérieur la plus sure, la plus exacte, la plus profitable a la nation et a l’état, consiste
dans la pleine liberté de la concurrence” (Quesnay citado em Dennis, 1977, p. 80).
Além de reconciliar as classes sociais e as nações rivais, seguidores de Quesnay, entre
eles Le Mercier de La Rivière, afirmavam também que, com a concorrência, “les
intérêts de ces deux hommes se concilient parfaitement malgré leur opposition
apparente”. Para este autor, a concorrência também agia como um “árbitro” que
estabelecia o “valor justo” (juste valeur) dos bens econômicos e que garantia um
“equilíbrio habitual” (equilibre habituel) às relações econômicas. Para os fisiocratas, a
“ordem”, a “justiça”, o “equilíbrio” e o “interesse comum” eram todos frutos da
natureza humana, sendo a concorrência apenas sua expressão ou princípio natural, como
havia formulado Tucker.

! 36
É com base nessa extensa produção intelectual francesa e naquela produzida alguns
anos antes por Tucker, Hume e outros na Grã-Bretanha que o escocês Adam Smith
desenvolve uma grande síntese do pensamento econômico e político de sua época.
Embora Smith não tenha feito à noção de concorrência nenhuma elaboração adicional
àquela desenvolvida por estes autores, a utilização de tal noção como um “princípio
conector” (Dennis, 1977, p. 88) de todos os seus argumentos torna inevitável examinar
seu trabalho. Além disso, como demonstrou Michel Foucault (2007b), a relevância de
suas ideias, que foram fundantes do liberalismo econômico, consiste na elaboração de
novo modo de se conceberem as relações econômicas e também de governá-las. A
noção de concorrência surge, portanto, não apenas como a descrição de uma
característica da vida econômica, mas como uma noção que impõe e ilustra os limites
naturais do soberano.

A similaridade entre o pensamento de Adam Smith e o de autores fisiocratas sobre


o tema da concorrência é notável. Em sua obra Lectures of Justice, Police, Revenue and
Arms (1765), organizada a partir de um curso dado na Universidade de Glasgow, Smith
utiliza a palavra concurrence, no sentido francês do termo, ou seja, no sentido de
rivalidade, ao invés de empregar a palavra inglesa competition (Dennis, 1977). Isto
pode ser explicado pelo fato de Smith ter passado a maior parte de três anos, de 1764 a
1766, em Toulouse, na França, período em que as teses fisiocratas se tornaram notórias
em Paris. Foi exatamente durante sua estada na França que Smith iniciou a escrita da
sua mais conhecida obra, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of
Nations (A Riqueza das Nações), que levaria mais de uma década para ser concluída.

Assim como os franceses, Smith também utilizou nesta obra a noção de free
competition sem que desse qualquer explicação sobre o que ele entendia como relação
entre liberdade e concorrência (Dennis, 1977). Porém, ao mesmo tempo, usou o termo
referindo-se mais explicitamente do que o faziam os fisiocratas à concorrência entre
indivíduos. Curioso é que, ao contrário do que muitos imaginam, Adam Smith não
afirmou explicitamente em seus escritos que a concorrência deveria ser tomada como
um princípio que governaria o comportamento econômico. A concorrência seria apenas
a consequência ou o efeito de um “Sistema de Liberdade Natural”, sistema este que
possibilitaria a todo indivíduo exercer o “esforço natural” de melhorar sua própria
condição. Em nenhuma ocasião, segundo Dennis (1977), a concorrência é citada em
seus textos como uma forma de lei universal, absoluta ou imutável.

! 37
Da mesma forma que os fisiocratas, Smith entende a concorrência entre indivíduos
nos mercados ou nas trocas comerciais segundo um papel equilibrante ou regulador.28
Por meio de vários exemplos na sua principal obra, Smith mostra como a concorrência
permitiria que os preços, os custos ou as rendas alcançassem seu patamar “natural”, o
que seria vantajoso para mais produtores e, por isso, para a própria nação.
Diferentemente dos fisiocratas, para Smith, a fonte da riqueza estava no trabalho. Era o
trabalho que gerava valor, fosse ele o trabalho agrícola ou não. Assim, além da
agricultura, tanto o comércio quanto a indústria podiam ser produtivos, geradores de
riqueza, pois eles também seriam capazes de promover a divisão do trabalho.29 Quanto
maior a concorrência, maior o incentivo para a especialização e, portanto, para a
geração de riqueza. Mais que uma forma de relação, na obra de Smith, a concorrência
surge como uma intensidade, um tempero, que permitiria a expressão de
comportamentos humanos direcionados à crescente eficiência produtiva.

Como se pode ver, a concorrência tem um papel estratégico na sua formulação


teórica. Mas a força da ideia tem a ver com o fato de que ela está relacionada ao mesmo
tempo à noção de liberdade e a um caráter coercitivo. A expressão livre concorrência
(free competition) remetia à possibilidade de entrada em mercados antes restritos e
regulados (possibilidade de comercializar neles), o que representava uma atração
imediata para toda uma classe de pequenos e médios produtores, comerciantes e
agricultores. Porém, a concorrência simultaneamente “obstrui” (hinders), “compele”
(compells), “obriga” (obliges), “regula” (regulates) e “disciplina” (disciplines) as ações
dos homens, como Smith expõe ao longo de sua obra (Dennis, 1977). Essa dualidade é
aparente quando ele afirma, por exemplo:

[...] where the competition is free, the rivalship of competitors, who are all
endeavoring to justle one another out of employment, obliges every man to
endeavour to execute his work with a certain degree of exactness. […]
Rivalship and emulation render excellency (Smith, 1779, p. 421).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
O termo mercado é usado como sinônimo de comércio de mercadorias, não tendo nenhum sentido mais
específico nesse momento que mereça atenção. Sobre o desenvolvimento do conceito de mercado, ver
capítulo 3.
29
Uma das explicações para o sucesso estrondoso de sua obra é o fato de que sua teoria foi capaz de
mostrar a “produtividade” de todas as atividades econômicas de seu tempo, atividades que disputavam a
influência nas decisões políticas. Talvez a única exceção sejam os grandes empresários, as corporations
ou os monopólios, criticados diversas vezes em sua obra.

! 38
Esse caráter de coação e coerção da concorrência entre indivíduos é o que permite a
Smith explicar seus benefícios em contraste com situações de monopólio. A
concorrência tinha um efeito disciplinador e econômico, de coagir os homens a
produzirem mais e melhor, algo que monopólios sempre impediam, como Smith ilustra
dezenas de vezes nas suas obras.30 É importante frisar que os monopólios criticados por
ele e por outros liberais do período eram principalmente aqueles organizados e
regulados pelos Estados nacionais, e não monopólios essencialmente privados que só
surgiriam com maior intensidade no século seguinte. A concorrência irrestrita era vista
como um contraponto à forma de organização da produção e do comércio promovida
pelos Estados nacionais coloniais. Por isso, o conceito de concorrência, agora com um
sentido expandido e enaltecido, tornou-se uma argumento econômico poderoso contra o
pensamento mercantilista e os monopólios por eles impulsionados.

Como já apontado por Michel Foucault e por diversos comentadores (Burchell,


1996; Gordon, 1991), a crítica de Adam Smith ao mercantilismo também correspondia a
uma crítica à forma de intervenção que esse sistema de governo implicava,
especialmente à formação de monopólios estatais que a caracterizava. O mercantilismo
seria, para Smith, uma forma irracional de governo, pois não seria capaz de
compreender como a realidade econômica funciona, isto é, a complexidade dos
processos econômicos naturais, tal como a concorrência. Para ele, no mercantilismo, a
criação de monopólios formados por corporações para controlar o comércio interno e
externo produziria resultados econômicos e sociais inferiores aos que seriam obtidos
caso fosse permitido aos homens concorrerem com base em suas disposições naturais.31
O liberalismo smithiano, como explica Foucault (2007a, p. 353), propõe implantar

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
30
“Todos os monopólios são extremamente nocivos. A riqueza de um Estado consiste nos preços baratos
das provisões e de todas as outras coisas necessárias ou que atendam às comodidades da vida, ou seja,
importa considerar qual a relação que guardam com o dinheiro que é pago por elas, tendo em vista a
quantidade de dinheiro existente no país ou, em outras palavras, aquele dinheiro com o qual podem
facilmente ser obtidas. A pobreza de um Estado, ao contrário, consiste na inacessibilidade ou dificuldade
com que são obtidas as várias coisas necessárias à existência. Ora, evidentemente todos os monopólios
tendem a promover a pobreza ou, o que é a mesma coisa, a inacessibilidade à coisa monopolizada. Assim,
por exemplo, se alguém obtiver o privilégio exclusivo para fabricar e vender toda a seda do reino, este
alguém elevará significativamente o seu preço, já que ele será o único a produzi-la. Reduzirá,
provavelmente, a uma décima parte a quantidade atualmente consumida, e elevará o preço
aproximadamente nesta mesma proporção, com o que conseguirá um grande lucro com menor gasto de
materiais e trabalho do que se muitos outros tivessem a liberdade que ele tem. É assim que se elevam os
preços das mercadorias, e ao mesmo tempo diminui a quantidade das coisas necessárias, dos ornamentos
ou comodidades, de modo que tudo se torna duplamente menos acessível do que antes. Consequências
más como estas decorrem de todo e qualquer monopólio” (Smith, 1763, p. 67).
31
Para Smith, o mercantilismo representava uma barreira artificial na convergência de “preços de
mercado” e de “preços naturais”, estes últimos gerados pela concorrência.

! 39
“mecanismos de segurança ou [...] intervenções estatais com o objetivo de assegurar a
segurança dos fenômenos naturais dos processos econômicos ou processos intrínsecos à
população”. A concorrência, como um fenômeno natural, produziria resultados
melhores se não sofresse intervenções do governo. Nesse sentido, a concorrência não é
apenas uma tendência, mas expressa uma forma mais racional e econômica de regular
ou governar, ignorada pelo mercantilismo.32

A noção de concorrência impulsionada por Adam Smith difundiu-se entre


pensadores econômicos liberais. Como um fenômeno que expressa as disposições
naturalmente interessadas dos homens, a concorrência era tida, pelo menos em teoria,
como mais propensa a gerar mais benefícios econômicos, proporcionando uma forte
justificativa a projetos políticos variados. Na teoria econômica, a noção de “livre
concorrência” ou simplesmente concorrência tornou-se expressão comum por mais de
um século após a publicação de A Riqueza das Nações, ganhando aos poucos
propriedades mais harmônicas e o estatuto de lei científica, assumindo nos trabalhos um
caráter ao mesmo tempo normativo e hipotético. John Stuart Mill foi o autor mais
importante nesta reinterpretação do ponto de vista formulado por Adam Smith. Mill
mostrou como o conceito de concorrência era simultaneamente uma hipótese abstrata da
teoria econômica e como um ideal de funcionamento dos mercados (Dennis, 1977, p.
161-169), como podemos ver pela seguinte passagem:

So far as rents, profits, wages, prices, are determined by competition, laws


may be assigned for them. Assume competition to be their exclusive
regulator, and principles of broad generality and scientific precision may be
laid down, according to which they will be regulated (Mill citado em
Demsetz, 1981, p. 1).

Apesar de os economistas terem realizado pesquisas que buscavam compreender os


efeitos que a concorrência tinha sobre aspectos da produção e da distribuição de
mercadorias, pouco havia sido alterado um século após a publicação maior de Adam
Smith. Na segunda metade do século XIX, no entanto, as noções de livre concorrência
ou mesmo concorrência passaram a não dar mais conta das exigências formais da teoria
econômica. Principalmente devido à utilização do cálculo diferencial, a “livre
concorrência” foi substituída pela “concorrência perfeita”, um conceito que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
Burchell (1996, p. 22) explica a interpretação foucaultiana de Adam Smith desta forma: “Laissez-faire
is here both a limitation of the exercise of political sovereignty vis-à-vis the government of commercial
exchanges, and a positive justification of market freedom on the grounds that the State will benefit more
– will become richer and more powerful – by governing less”.

! 40
pressupunha e reduzia a noção a uma série de critérios lógicos e matemáticos (ver
capítulo 3).

A crítica liberal aos monopólios estatais permaneceu uma constante até meados do
século XIX. No entanto, a partir dessa época, principalmente nos Estados Unidos, o
entendimento sobre as grandes empresas que controlavam o comércio de determinados
produtos começou a se transformar. Se os monopólios eram antes criações do Estado
regulamentadas por leis, eles passam então a ser vistos como efeitos próprios dos
mercados (Barkan, 2013). A preocupação com monopólios privados, que veio a
substituir aquela anterior com os monopólios públicos, ocorreu de forma mais evidente
e radical nos Estados Unidos, dando origem a uma política pública voltada
exclusivamente para garantir a concorrência nos mercados.

1.3. O surgimento dos trustes e das medidas antitruste

“Se os poderes concentrados (de um truste) forem depositados em um único homem,


isto representa uma prerrogativa real, inconsistente com nossa forma de governo, e deve
estar sujeita a uma forte resistência do Estado e das autoridades nacionais. Se alguma
coisa estiver errada, esta é errada. Se não vamos admitir um rei como poder político,
não devemos admitir um rei sobre produção, transporte e vendas de qualquer bem
necessário à vida.”

(Senador Sherman, 1890)33

A partir da segunda metade do século XIX a economia nacional norte-americana


começa uma fase de grande expansão. A imigração e a urbanização crescentes foram
acompanhadas da duplicação da malha ferroviária do país, construindo um grande
mercado de consumidores e de trabalhadores para as empresas (Forgioni, 2013). Além
do enorme mercado para a venda de produtos, a expansão das empresas norte-
americanas foi facilitada por uma série de desenvolvimentos legais desde os anos 1790,
que permitiu a elas se organizarem juridicamente na forma de corporations.

Até esse momento as corporações eram formas que o Estado norte-americano tinha
de conceder à exploração privada certos serviços públicos, como serviços bancários,
construção civil, obras de saneamento e de infraestrutura de comunicação. As
corporações, que atuaram como monopólios nos mais diversos governos coloniais, eram

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
33
Senador Sherman apud Farina (1990, p. 460).

! 41
agora utilizadas para facilitar o investimento em determinadas áreas consideradas
essenciais e que só receberiam investimentos caso a empresa tivesse um controle
exclusivo sobre a atividade, isto porque seus custos eram muito altos. Essas entidades,
que eram criadas unicamente pelo Estado por meio de documentos oficiais (charters),
passaram a ser autorizadas a existir de forma independente do governo por meio de “leis
de incorporação” (incorporation laws) instituídas separadamente pelos estados da
federação. A partir de 1790 foram criadas corporações religiosas e escolares e, em 1811,
o estado de Nova York permitiu a criação de corporações de manufaturas. Até a
Primeira Guerra Mundial todos os estados norte-americanos já tinham leis similares
(Barkan, 2013).

Rapidamente, os estados americanos, buscando atrair a criação de corporações em


seus territórios, começaram a editar novas leis que davam maiores poderes às
corporações que ali se estabeleciam. O estado de Nova Jérsei, por exemplo, legalizou as
holdings (holding company), permitindo às corporações possuírem propriedade, na
forma de ações, de outras corporações, o que na prática dava a elas condições de atuar
em mais de um estado da federação, sem estarem sujeitas às suas legislações. Além
disso, leis de responsabilidade limitada (limited liability) separavam claramente a
corporação como pessoa jurídica distinta das pessoas físicas ou jurídicas (sócios) que a
criaram. Segundo o geógrafo Joshua Barkan (2013, p. 57), o que estava implícito na
formulação dessas novas legislações era a noção de que indivíduos, ao contrário do
Estado, poderiam organizar melhor as relações de produção da sociedade, assim como
Adam Smith havia sugerido. Contudo, tais argumentos a favor das novas leis de
incorporação não previram aquilo que poderia ocorrer na prática com a formação de
corporações privadas.

Desde o final da guerra civil norte-americana, as estradas de ferro no país cresciam


exponencialmente financiadas por capitais da costa leste e por estrangeiros. A
construção de ferrovias foi promovida pela emissão de charters pelos estados por elas
atravessados, muitos deles impondo direitos exclusivos às corporações responsáveis por
suas expansão e manutenção. As corporações que operavam as ferrovias podiam, por
isso, cobrar preços elevados, pois costumavam ser as únicas provedoras do serviço nas
localidades. Na década de 1870, após as corporações terem competido intensamente
pelo uso de suas ferrovias, diminuindo o preço das tarifas a ponto de incorrerem em
prejuízos, as diferentes concorrentes do mercado celebraram acordos que, na prática,

! 42
eliminavam a concorrência entre elas. As corporações fixaram as tarifas de utilização
das ferrovias constituindo um “cartel” (Forgioni, 2013). Tais condutas empresariais
foram condenadas num caso que chegou à Suprema Corte norte-americana, criando a
necessidade de instituir formas de regulação e legislação federais para lidar com
práticas corporativas que se estendiam para além das fronteiras dos estados. Entre
algumas regulações estabelecidas estava o Interstate Commerce Act, que procurou
limitar a imposição de tarifas elevadas e tornar o preço “justo” e “razoável” (Barkan,
2013, p. 58)

Outras corporações, no entanto, não envolvidas com a construção e a manutenção


de ferrovias, utilizaram um instrumento jurídico, particular do direito anglo-saxão para
tentar se livrar do problema que a concorrência dos mercados impunha aos seus lucros
elevados. Segundo explica Forgioni (2013, p. 69), o advogado Samuel Dodd, da
Standard Oil Company, maior empresa petrolífera do mundo naquela época, sugeriu a
criação de um trust para associar diversas empresas. No trust, um empresário transfere a
um trustee o poder derivado de suas ações e recebe um trust certificate. Os trustees, que
atuam no papel de agentes fiduciários, exercem o controle coordenado sobre os
negócios das empresas, sendo que os empresários que cederam os direitos ficam apenas
com participações de dividendos das ações de sua companhia. No caso da Standard Oil
Company, seu criador, John Rockefeller, e outros trustees puderam administrar
diferentes empresas que atuavam no mesmo mercado de produção, refino e distribuição
de petróleo, reduzindo quase completamente a concorrência nesse mercado e
constituindo na prática um grande monopólio no setor.

Muitas empresas, ou conjuntos de empresas, organizaram-se sob a forma de trustes


nesse período, gerando uma série de reações, tanto favoráveis quanto contrárias, a esses
conglomerados empresariais. Alguns economistas e empresários defendiam os trustes
alegando que eram um produto da própria concorrência e que seria “natural” a evolução
para essas formas de organização da produção. As teorias darwinianas e spencerianas no
final do século XIX contribuíram para essa forma de interpretação de que a empresa
mais adaptada sobreviveria (Forgioni, 2013).34 A grande maioria da opinião pública, no

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
34
Forgioni (2013, p. 71) cita P.S. Atiyah: “In the mid-nineteenth century, the idea that competition was a
‘natural law’ received a powerful impetus from the writings of Charles Darwin, and the use to which they
were put by Herbert Spencer. Darwin’s Origin of Species was first published in 1859, and it was (as he
himself acknowledged) much influenced by Malthus and also by Spencer. Applying the ideas of Malthus
to the whole animal and vegetable kingdom and combining them with the concept of the social struggle

! 43
entanto, era contrária aos trustes, exigindo uma reação imediata por parte do governo
federal para que fossem retirados seus “poderes”. Intensas campanhas publicitárias
foram realizadas procurando mostrar a imoralidade dos trustes.35 Como dizem Fox e
Sullivan (1990, p. 63): “the term trust came to denote more than a specific legal device
for corporate combination. It was a catchphrase in a public debate over the course of
economic growth and the distribution of wealth”.

A opinião pública era tão contrária aos trustes que nas eleições presidenciais norte-
americanas de 1888 todos os candidatos se posicionaram igualmente a favor de medidas
que impusessem um freio a essas associações. O presidente Harisson é eleito e o projeto
de lei do senador Sherman é aprovado no ano seguinte. Surge, em 1890, o Sherman
Antitrust Act, que proibia as restrições de comércio, como a prática de cartel, e a
monopolização do comércio interestadual e exterior. Apesar de sua importância,
considerada junto com o Act of Prevention and Suppression of Combinations Formed in
Restraints of Trade, do Canadá (1889), os marcos iniciais da legislação da matéria no
mundo,36 a lei não abarcou aquilo que mais preocupava a população norte-americana: as
concentrações empresariais que, quando não monopolizavam completamente os
mercados, criavam conglomerados grandes o suficiente para reduzir a concorrência e
prejudicar pequenos empresários.37 Como conta Forgioni (2013, p. 73), a investigação
federal sobre um suposto money trust deixou a opinião pública ainda mais exaltada.
Descobriu-se que o grupo bancário Morgan “detinha trezentas e quarenta e uma

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for survival propagated by Herbert Spencer, Darwin had hit upon the theory of natural selection […] the
phrase, ‘the survival of the fittest’ which was used by Darwin was, in fact, borrowed by him from Herbert
Spencer, who had previously used it in a description of the social struggle which takes place among
mankind”.
35
A quantidade de cartoons em jornais da época que ilustram o poder dos trustes é um fator
representativo desse movimento social fortemente contrário às associações empresariais.
36
O surgimento de legislações de defesa da concorrência no mundo não foi coincidente em todos os
países, como podemos observar: (i) entre 1890 e a 2ª Guerra: Canadá, EUA e Austrália; (ii) do período
pós-2ª Guerra até o início dos anos 80: Alemanha, Comunidade Econômica Europeia (CEE), Reino
Unido, Japão, Suécia, França, Brasil, Argentina, Espanha, Chile, Colômbia, Tailândia, Índia, África do
Sul e Paquistão; (iii) nos anos 80: Quênia, Sri Lanka e Coreia; (iv) e a partir dos anos 90: Rússia, Peru,
Venezuela, México, Jamaica, República Tcheca, Eslováquia, Costa do Marfim, Bulgária, Cazaquistão,
Polônia e outros (Oliveira & Rodas, 2004).
37
A política antitruste surge nos países europeus, com exceção da Áustria, somente após a Segunda
Guerra Mundial, quando o Plano Marshall, de reestruturação econômica e financeira, promovido pelos
EUA, exigiu a implementação de legislações antitruste. Mesmo assim, a adoção de políticas antitruste na
Europa, embora cada vez mais similares às de outras partes do mundo, foi realizada de acordo com
características próprias de sua história política e econômica que implicavam uma maior intervenção
estatal na economia e uma menor restrição a fusões empresariais. A Alemanha constitui o melhor
exemplo de como essa influência sofreu adaptações na Europa, de modo que seu sistema político-
institucional de concorrência serviu de modelo tanto para os demais países europeus (inclusive a
Comissão Europeia) quanto para países como Japão, Canadá e Coreia do Sul (Monteiro, 2002).

! 44
diretorias em cento e doze companhias, cuja riqueza agregada era três vezes superior ao
valor de todas as propriedades imobiliárias e pessoais da Nova Inglaterra” (p. 73).

Respondendo a essa limitação legal e à insatisfação geral, foi promulgado, em 1914,


o Clayton Act, que proibia práticas comerciais restritivas que dessem origem a formas
concentradas de organização de mercados. A lei instituiu que as aquisições de ações de
outras companhias que “reduzissem a concorrência ou tendessem a criar um monopólio”
seriam proibidas, impondo uma análise das fusões e das aquisições empresariais norte-
americanas. O Federal Trade Commission Act, do mesmo ano, criou o FTC, órgão
administrativo norte-americano que visa fiscalizar e aplicar os estatutos antitrustes.38

O importante a frisar é que o problema dos monopólios ou trustes norte-


americanos, que exigiu uma resposta concreta do governo central, era entendido como
essencialmente jurídico. As justificativas mais elaboradas para o controle dos
monopólios não saía das páginas de livros de economia, mas principalmente de juristas
preocupados com as responsabilidades legais que eram dadas às novas corporações e o
quanto estas estavam sujeitas ao controle do Estado.39 A noção de livre concorrência,
quando surgia justificando medidas contra os trustes, não tinha necessariamente, nesse
contexto, um sentido estrito dado pela ciência econômica, mas era acionada como um
valor em conjunto com as noções de livre empresa e livre iniciativa.40

Segundo a economista Lúcia Helena Salgado (1992, p. 6), “o processo de


concentração do poder econômico afrontava de maneira direta alguns dos pilares da
organização da sociedade norte-americana, particularmente o das liberdades individuais,
no que se inclui o espaço de iniciativa dos agentes econômicos de pequeno porte”. Para
sociólogos que se dedicaram a esse período histórico, a formulação ideológica da
política antitruste norte-americana decorre menos de uma percepção dos benefícios
econômicos, pró-concorrenciais, que seriam gerados pela criação de uma legislação

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
38
Posteriormente, outros institutos legais foram aprovados, visando fortalecer as medidas antitruste, como
o Robinson-Patman Act (1936), que trata da discriminação de preços (cobrança variada de preços entre
compradores) e o Celler-Kefauver Act (1950), que reforça dispositivos do Clayton Act a respeito de
fusões.
39
Segundo Waller (2001), embora o Sherman Act tenha sido promulgado exatamente no mesmo ano que
o economista Alfred Marshall, professor da Universidade de Cambridge, publica o livro seminal da
economia neoclássica, Principles of Economics (1890), não se pode dizer que a ciência econômica do
final do século XIX tenha tido qualquer influência relevante sobre a formulação da lei ou sobre os
inflamados discursos populares.
40
Peritz (1996) explica que a noção de concorrência tinha conotações ao mesmo tempo positivas e
negativas nos debates congressuais que levaram à adoção de legislações antitruste.

! 45
antitruste, e mais das especificidades da “cultura industrial e política” norte-americana
(Dobbin, 1994), que via nas grandes corporações uma afronta aos pequenos
empreendimentos que seriam a sustentação da liberdade individual.

Independentemente da complexa relação entre doutrinas jurídicas, “culturas


políticas” e movimentos de massa que levaram à aprovação de leis antitruste (ver Peritz,
1996), a criação de agências e comissões federais, como a FTC, a Industrial
Commission e o Bureau of Corporations, teve como consequência a construção de um
modo de pensar os monopólios a partir de uma perspectiva cada vez mais econômica,
pois se tornaram cada vez mais um campo de trabalho para economistas de carreira
universitária. 41 Nos primeiros anos de existência das agências e das comissões
governamentais, o governo federal trouxe uma série de economistas renomados, como
Jeremiah Jenks, William Ripley e John Commons, para realizar estudos sobre os efeitos
dos monopólios sobre as indústrias, a concorrência interna e externa do país e os
consumidores (Barkan, 2013, p. 61).

As análises empreendidas por estes especialistas consistiam em verificar as


variações ou as “flutuações” nos preços das mercadorias ofertadas pelos monopólios. O
impacto nos preços seria um modo objetivo de calcular os impactos dos monopólios nos
diferentes setores estudados. Caso os preços de um setor tivessem subido mais do que
seria razoável, por exemplo, as autoridades poderiam sugerir um controle
governamental dos preços ou impor multas às corporações. As formas de representação
estatísticas e gráficas das flutuações de preços acabaram resultando numa forma de
conceber o poder dos monopólios como uma questão eminentemente econômica e
estavam baseadas em dinâmicas da concorrência dos mercados e das estratégias
empresariais (Barkan, 2013, p. 61).42

Embora a coleta de informação sobre empresas e setores produzissem argumentos


econômicos que justificavam as ações dos órgãos governamentais, a linguagem
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
41
Nesse período ainda incipiente da ciência econômica universitária norte-americana, foi hegemônica a
abordagem chamada “institucionalista” na produção acadêmica até os anos 1930, produzida
especialmente nas universidades de Johns Hopkins, Wisconsin e Columbia. Essa abordagem, muito
influenciada pela da Escola Histórica Alemã, na qual muitos haviam se formado, privilegiava a coleta e a
análise sistemática de dados sobre as condições econômicas conjunturais (Fourcade, 2009). A análise
empírica quantitativa dessa abordagem caracterizou o desenvolvimento dos estudos econômicos
realizados pelas agências antitruste nesse período.
42
Segundo um dos economistas que realizavam esses estudos: “It is impossible to understand why there
has been of late so strong a tendency toward the formation of industrial combinations, unless one first
sees clearly the economic conditions out of which they arise” (Jenks apud Barkan, 2013, p. 62).

! 46
predominante nas decisões administrativas e jurídicas sobre antitruste costumava ser
aquela das práticas de administração de empresas, uma “linguagem dos negócios”
(business language), segundo Weller (2001). Essa linguagem, e não a da ciência
econômica, era a mais conhecida pelos empresários que se defendiam e pelos
advogados que os representavam nos vários casos antitruste do pós-Primeira Guerra. O
uso não muito frequente da teoria econômica nos primeiros anos de funcionamento da
política antitruste norte-americana também se deve ao fato de que os economistas do
país não estavam particularmente interessados nas questões microeconômicas, ou seja,
no estudo de mercados e do comportamento de empresas (“firmas”) singulares, e
também porque o antitruste não era considerado uma área de especialização para esses
profissionais.

A situação se transforma a partir dos anos 1920. Primeiramente, na área jurídica, o


antitruste ou o direito da concorrência, como ficou também conhecido, separou-se
definitivamente das áreas do direito corporativo e societário (business ou corporate
law) quando professores passaram a publicar livros e a lecionar cursos sobre o assunto
(Weller, 2001). Isto exigiu uma maior especialização e um diálogo acadêmico mais
aprofundado com os economistas que, por outro lado, estavam sendo solicitados cada
vez mais para auxiliar as agências antitruste na elaboração de estudos sobre setores
específicos. Outro fator inesperado também contribuiu para maior utilização da ciência
econômica como ferramenta argumentativa e analítica do antitruste. A crise econômica
de 1929 acabou colocando em dúvida teorias macroeconômicas sobre o funcionamento
das economias nacionais, levando às críticas formuladas por John Maynard Keynes,
entre outros. Porém, a crise deu impulso às teorias microeconômicas, pois gerou, ao
mesmo tempo, um ataque ao discurso dos administradores empresariais, discurso este
em que ninguém mais parecia acreditar depois das demissões em massa no período. A
linguagem da ciência econômica, mais técnica e cada vez mais matemática, tornou-se
uma boa alternativa ao discurso prático do mundo dos negócios (Weller, 2001).43

A partir dos anos 20, portanto, e mais intensamente a partir da Segunda Guerra
Mundial, o estudo dos setores, das indústrias ou dos mercados feitos pelos economistas
passou a embasar o argumento tanto da ação governamental quanto das partes
envolvidas nos processos antitruste. Como alguns conceitos correlatos da teoria
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Segundo o jurista Thurman Arnold, no período da crise de 1929: “The public discovered that ‘sound’
business thinking had been mostly superstition” (apud Waller, 2001).

! 47
econômica estavam inseridos no corpo dos textos legais, os juízes eventualmente
consultavam economistas para formular suas decisões. Quando se poderia intervir ou
não, seja nos trustes, seja em outras formas de associações empresariais, ou em
condutas como cartéis, passou a depender de argumentos teóricos e empíricos
desenvolvidos por economistas. Segundo Kovacic e Shapiro (2000, p. 43):

By enlisting the courts to elaborate the Sherman Act’s broad commands,


Congress gave economists a singular opportunity to shape competition policy.
Because the statute’s vital terms directly implicated economic concepts, their
interpretation inevitably would invite contributions from economists. What
emerged is a convergence of economics and law without parallel in public
oversight of business. As economic learning changed, the contours of
antitrust doctrine and enforcement policy eventually would shift, as well.

1.4. A economicização do antitruste

A atuação dos economistas, seja como funcionários de agências reguladoras norte-


americanas ou como pareceristas que atuam para empresas, produziu um conjunto
extenso de estudos sobre a economia norte-americana. Feitos com propósitos jurídicos,
esses estudos tornaram-se referências acadêmicas para a ciência econômica. Como
explico mais detalhadamente no capítulo 3 deste trabalho, tais pesquisas forneceram o
material empírico necessário para o desenvolvimento de teorias econômicas modernas
sobre o comportamento empresarial e os mercados, dando origem ao campo de estudos
denominado Organização Industrial (OI) ou à Microeconomia. As pesquisas na área de
OI colocavam em questão uma série de pressupostos da economia clássica e neoclássica
sobre o funcionamento dos mercados, das empresas e da concorrência entre elas.

A política antitruste norte-americana operava e opera realizando análises de casos


individuais relativos a concentrações de mercado (como fusões, aquisições etc..) ou
investigações de condutas empresariais (como cartéis). Os estudos que embasam as
decisões costumam detalhar, portanto, características específicas de setores ou mercados
nos quais atuam as empresas envolvidas nos casos. Essa necessidade de investigação
minuciosa e obviamente empírica mostrou como os setores, os mercados e as empresas
da economia norte-americana eram muito distintos entre si e deveriam ser avaliados
com base nas suas próprias características. Se o setor petrolífero tinha menos empresas
atuantes devido aos altos custos do investimento, o mesmo não era o caso do setor

! 48
varejista. A maior ou menor presença de concorrentes, as técnicas de produção, as
características daquilo que se produzia e dos consumidores do mercado eram fatores
que deveriam ser levados em consideração, caso a caso, setor por setor, na decisão
governamental de punir ou proibir concentrações e condutas empresariais. Essa
necessidade de estudar mercados específicos, da forma mais empírica que fosse possível,
explica a dificuldade que a política antitruste e os estudos de OI tinham de utilizar
conceitos e hipóteses muito abstratos e matemáticos de algumas vertentes da teoria
econômica.

Como argumentaram influentes economistas do período entre guerras, como


Edward Chamberlin e Joan Robinson, os mercados são sempre “imperfeitos”, assim
como a concorrência que existe neles. Isto significa que os mercados nunca são e nem
tendem a uma situação de concorrência absoluta, como sugeriam alguns economistas, e
também raramente se encontra um monopólio com uma única empresa controlando toda
a produção ou venda de um produto ou serviço. As pesquisas de OI provaram que as
situações em que três ou quatro empresas atuam ofertando produtos ou serviços num
mercado – a chamada “concorrência oligopolista” – são mais frequentes do que aquelas
idealizadas pela vertente teórica neoclássica. Os estudos deixaram claro que cada
mercado ou setor tinha características singulares e que não existia uma fórmula simples
ou única que determinasse quando intervir e quando não intervir para garantir a
concorrência. O impacto de uma fusão entre empresas tinha que ser avaliado caso a caso.

A partir dos anos 1930, ganham influência as teorias vindas do departamento de


economia de Harvard, desenvolvidas, entre outros, por Edward Mason e Joe Bain. A
“escola de Harvard”, como ficou conhecida, argumentava que, embora cada caso tivesse
que ser analisado independentemente, uma variável particular, a “concentração” de um
mercado, ou seja, o número de empresas participantes e concorrentes nele, poderia
servir como um indicativo consistente da probabilidade que condutas ou concentrações
empresariais têm de alterar a concorrência. Quanto mais concentrado um mercado, ou
seja, quanto menos empresas participam dele, maior o “poder” que as empresas têm
para impor preços abusivos, prejudiciais à economia.

Na nomenclatura proposta por Mason, a “conduta” de uma empresa está sempre


relacionada à “estrutura” do mercado, isto é, o quanto a empresa tem de participação
nele (Hovenkamp, 2005, p. 36). Esta perspectiva, que enfatizava as condições

! 49
“estruturais” da concorrência, implicava decisões do órgão antitruste que tendiam
sempre a manter ou mesmo a aumentar o número de empresas concorrentes. Por isso,
suspeitava-se principalmente das fusões, das aquisições e de outras uniões contratuais
nos mercados que reduziam sempre o número de concorrentes de um mercado. Esta
vertente da economia predominou na política antitruste até o fim dos anos 1960, visto
que muitos economistas vinculados a ela passaram a trabalhar nas agências antitruste.
Esse período foi caracterizado por uma série de litígios antitruste nas cortes norte-
americanas, sendo o FTC quase sempre vitorioso no combate às fusões empresariais.

Embora as proposições da escola de Harvard estivessem baseadas em teorias


econômicas e matemáticas, especialmente aquelas do francês Antoine Cournot (1801-
1877), o entendimento de que um número pequeno de participantes em um mercado
seria prejudicial à concorrência ou à economia e à sociedade em geral trazia consigo
antigas percepções a respeito da concorrência, que estavam presentes desde o século
XVI, como vimos mais acima. O julgamento “quanto mais concorrentes num mercado,
melhor para a economia”, revestia-se agora de uma justificação técnica e econômica
muito precisa. Foi essa mesma união entre rigor técnico e julgamentos morais que tanto
contribuiu para o sucesso programático da escola de Harvard e sua influência na política
norte-americana, que acabou por ser criticada, a partir da década de 1970, por
economistas da chamada “escola de Chicago”.

Resumidamente, a escola de Chicago, no que diz respeito à política antitruste,


diferenciava-se bastante daquela que predominara anteriormente, já que, para estes
economistas, as fusões nem sempre podem ser consideradas prejudiciais à concorrência.
Enquanto os economistas de Harvard avaliavam o impacto das fusões em termos dos
seus efeitos sobre os preços dos produtos nos mercados, que para eles tenderiam a subir,
os economistas de Chicago avaliavam as fusões pela sua capacidade de reduzir os
custos das empresas. Caso a fusão reduzisse os custos significativamente, devido a um
aumento da “eficiência” alcançada pela produção em maior escala, por exemplo, seria
provável que houvesse uma redução nos preços dos produtos (Kwoka & White, 2004).
Esta diferente perspectiva resultou numa completa transformação da política antitruste,
que deveria se pautar prioritariamente, segundo os economistas de Chicago, na análise
das eficiências (ou “eficiência alocativa”) geradas pelas fusões nos mercados. De
acordo com esta abordagem, os órgãos antitruste deveriam interferir apenas nos casos
em que não fosse possível vislumbrar quaisquer ganhos de eficiência derivados de uma

! 50
fusão empresarial. Como não era muito difícil encontrar argumentos de ganhos de
eficiência em fusões, o espaço de atuação dos órgãos antitruste se tornava, de acordo
com esta perspectiva, muito reduzido.44

A perspectiva de Harvard parecia, aos olhos dos economistas de Chicago, parte


de uma ideologia “populista”,45 pois perseguia, segundo eles, objetivos variados e nem
sempre claros. Para os economistas Kwoka e White (2004), antes da “revolução” gerada
pelos economistas de Chicago a partir dos anos 1970, o discurso jurisprudencial
antitruste deixava diversos detalhes a serem resolvidos, tornando a política pouco eficaz,
visto que os tribunais deveriam interpretar termos ambíguos como “monopolização”,
“diminuição substancial da concorrência” e “conspiração”. Para eles, essa situação
gerava uma “interpretação formalística” da lei, sem qualquer referência ao crescente
corpo de conhecimento sobre firmas e indústrias.46 Como explica o sociólogo William
Davies (2010, p. 65), que estudou a transformação da política norte-americana nesse
período:

American antitrust policy had been used to pursue various political and moral
goals, from defence of small businesses, to ensuring public accountability of
cartels and monopolies, to redistributing wealth, to attacking organized crime.
These were all abandoned in less than a decade, as the Chicago definition of
efficiency was recognized as the only coherent objective. The outcome of
this transformation is a virtually unchallenged authority for neo-classical
economic logic in the decision-making procedures of US antitrust authorities
and the courts.

Nessa época, mais intensamente do que já vinha ocorrendo, os argumentos


utilizados para a justificação de decisões das autoridades antitruste norte-americanas
começaram a se apropriar ainda mais da linguagem da teoria econômica, em especial da
noção de eficiência. Todos os argumentos possíveis para a justificação de medidas
antitruste formulados anteriormente passaram a ser considerados “absurdos” (nonsense)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
44
Segundo o jurista Richard Posner, professor de direito de Chicago: “To the extent that efficiency is the
goal of antitrust enforcement, there is no justification for carrying enforcement into areas where
competition is less efficient than monopoly because the costs of monopoly pricing are outweighed by the
economies of centralising production in one or a very few firms” (Posner, 2002, p. 2).
45
Para o economista Lawrence White (2007, p. 2), um crítico da abordagem de Harvard: “Historically a
second strain of antitrust was present: American populism, with its fears of bigness and its goal of
keeping economic institutions small and locally oriented. That strain has disappeared from current
enforcement and interpretation”.
46
De acordo com Kwoka e White (2004, p. 5), o resultado dessa revolução é uma mudança interpretativa
a favor de um raciocínio econômico: “the paramount importance of economics in the antitrust process is
firmly established. Enforcement policy and court decisions will be grounded in economic analysis to an
ever-greater degree. Supporters and critics of policy issues all now debate in terms of competition and
efficiency, clearly conceding the central role that economics plays”.

! 51
pelos economistas e juristas que agora tinham mais influência sobre a política (Davies,
2010). O critério da eficiência era tido como isento de quaisquer fundamentos políticos
ou morais que pareciam impregnar as antigas decisões influenciadas pela Escola de
Harvard. Segundo a jurista Paula Forgioni (2013, p. 173), uma crítica dessa nova
abordagem, a escola de Chicago “baseia-se no tecnicismo”, pois entende que as
decisões tomadas a partir de seus pressupostos “derivariam de opções [...] racionais e
neutras”. Para ela, “Trata-se de ‘ofensiva de neutralidade a política’, baseada na lógica
do economicismo e na pressuposição (inegavelmente política) de que os mercados
devem ser conduzidos conforme suas próprias e irrevogáveis leis” (p. 173).

A crítica à escola de Harvard e à política antitruste que ela propunha provinha


não apenas do Departamento de Economia de Chicago, mas sobretudo do Departamento
de Direito da mesma universidade. A composição inusitada deste departamento incluía
economistas que achavam a linha do Departamento de Economia muito à esquerda de
suas preferências ideológicas. Muitos desses professores, como Aaron Director, o
economista que se tornou chefe do Departamento de Direito nos anos 1940,
participaram das famosas reuniões da Sociedade Mont Pelérin, na Suíça, e deram
impulso ao movimento político-intelectual conhecido como neoliberalismo47 (Van Horn,
2009). A reunião de economistas e juristas vinculados a essa vertente intelectual em
Chicago produziu um conjunto de trabalhos extremamente influentes conhecidos como
Law & Economics, que postulava a utilização da análise econômica como critério para
avaliar tanto as decisões jurídicas quanto os impactos das normas legais. Como se pode
perceber, essa abordagem econômica do direito tinha um terreno fértil para pesquisas no
campo da política antitruste.

Com o lançamento de obras impactantes como as de Robert Bork (The Antitrust


Paradox) e Richard Posner (Antitrust Law) nos anos 1970, a análise econômica do
direito começou a ser considerada também pelos juízes que julgavam casos antitruste
como mais apropriada. Segundo Forgioni (2013, p. 173), a abordagem da Law &
Economics passou a ser vista como contribuição para reduzir o problema da “incerteza
do direito”,48 como apontado pelo jurista austríaco Hans Kelsen. As palavras do jurista

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
47
Entre os professores estavam Edward Levi, Milton Friedman, Wilber Katz, Frank Knight e o austríaco
Friedrich Hayek.
48
“O modelo chicaguiano de pensamento é, acima de tudo, positivista e procura distanciar do direito
aquilo que poderia desestabilizá-lo. Para a Escola de Chicago, a certeza e segurança demandam o
afastamento dos elementos que não levam à eficiência alocativa e que comprometem o grau de

! 52
e ex-conselheiro do CADE Luiz Fernando Schuartz resumem bem o argumento a favor
da utilização da teoria econômica para dissipar incertezas e ambiguidades legais. Para ele:

“o sistema jurídico [...] repele ambiguidades relativas à definição dos


critérios de distinção entre condutas lícitas e ilícitas, permitidas e não
permitidas [...] A vantagem da economia neoclássica no âmbito da aplicação
do Direito da Concorrência está [...] no fato de ela oferecer a autoridades,
advogados e empresas critérios unívocos de classificação de fatos processuais
para fins de posterior esquematização jurídica. Assim, por exemplo, atos de
concentração econômica terão impactos unívocos (a) positivos, (b) neutros
ou (c) negativos sobre o bem-estar social (definido aqui como a “soma” entre
os excedentes do produtor e do consumidor), podendo o sistema jurídico
esquematizar tais atos também univocamente como (a) autorizados (duas
primeiras hipóteses) ou (b) não autorizados (na última hipótese)” (Schuartz,
2002, p. 52).

Os desenvolvimentos da escola de Chicago, tanto em seu aspecto relativo às teorias


econômicas quanto às doutrinas jurídicas, geraram um entendimento de que as fusões
não eram feitas sempre para prejudicar outras empresas ou consumidores. Ainda, de
acordo com seus pressupostos mais liberais, a ação governamental de desautorizar
certas condutas empresariais, tentando manter a concorrência em determinados
patamares, poderia produzir ainda mais “ineficiências” nos mercados. Essa vertente do
pensamento econômico tornou-se muito influente no FTC a partir do governo de Ronald
Reagan, aliando-se perfeitamente ao seu discurso de redução da intervenção estatal na
economia. O próprio recurso financeiro para o FTC foi reduzido, inaugurando um
período de maior permissividade em relação às concentrações empresariais. Enquanto
na década de 1960 a proteção de pequenas empresas ou a proibição de fusões entre
empresas com parcelas pequenas de mercado eram comuns nas resoluções do FTC, nas
décadas de 1980 e 1990, fusões de grandes companhias de petróleo foram aprovadas,
além de casos que incluíam firmas com significativa participação de mercado. Várias
outras diferenças podem ser observadas entre esses dois períodos, inclusive no
tratamento de condutas anticompetitivas que passaram a ser mais aceitas de acordo com
os critérios de eficiência utilizados pelos órgãos reguladores.

Entretanto, essa nova justificativa dos propósitos e da ação antitruste produzida


pela Escola de Chicago não se tornou um consenso absoluto entre os economistas e os
juristas da área. Nem todos concordavam que uma análise das eficiências produzidas
fosse o único critério para decidir sobre fusões ou condutas empresariais. Pode-se dizer
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
previsibilidade do sistema. Posner afirma que essa análise econômica do direito é, de certa forma, o
resgate da doutrina de Kelsen, para quem o problema da ‘indeterminação’ do direito coloca-se sempre
como um defeito por conta de uma linguagem que não é suficientemente clara, deixando espaços para
vários significados” (Forgioni, 2013, p. 173).

! 53
que desde os anos 1990, com o início da administração Clinton, houve na prática
antitruste uma “síntese pós-Chicago” (Davies, 2010), em que tanto argumentos de
Harvard quanto de Chicago são colocados lado a lado na avaliação de concentrações e
condutas empresariais. Isto significa que critérios como o número de participantes num
mercado e a eficiência das práticas são levados em consideração por juízes, economistas,
advogados e demais funcionários das agências governamentais. Outras teorias
econômicas mais recentes, como a teoria dos jogos, a teoria dos contratos e as teorias de
custos de transação, auxiliadas por modernas técnicas econométricas (estatísticas),
também reforçaram a multiplicidade de abordagens e técnicas econômicas utilizadas no
antitruste norte-americano. Embora tenha perdido hegemonia entre os argumentos que
justificam decisões antitruste, a escola de Chicago teve um papel fundamental na
consolidação do uso do pensamento econômico na política e na inserção dos
economistas nas agências norte-americanas.

Desde os anos 1970, portanto, os economistas passaram a constituir um grupo


profissional essencial à aplicação da política antitruste. No início da década de 1960, as
duas agências de enforcement antitruste, o FTC e o DoJ (Department of Justice), tinham
poucos economistas treinados no seu quadro de funcionários e a participação de
economistas apoiando ou testemunhando a favor das partes em uma disputa na corte
antitruste era rara. Atualmente, ambas as agências passaram a ter economistas
acadêmicos como parte integrante do corpo funcional e praticamente qualquer caso de
antitruste envolve economistas. No DoJ, há atualmente cerca de 60 PhDs em economia,
chefiados por um procurador-geral que normalmente é um economista de renome. Do
mesmo modo, o Departamento Econômico do FTC tem aproximadamente 70
economistas com doutorado (White, 2007). Os economistas também estão presentes em
grande número nas empresas privadas de consultoria econômica, que são contratadas,
juntamente com escritórios de advocacia, para auxiliar na formulação de análises que
justificam condutas empresariais (Fourcade, 2009).

A presença necessária dos economistas, dentro e fora das agências, indica o quanto
a teoria econômica, periférica no início do século XX, passou para o centro das
justificativas da existência da própria política e para o centro dos argumentos
formulados pelas partes de um processo judicial nas cortes dos Estados Unidos. Os
economistas e alguns juristas, ao redefinirem aos poucos o antitruste como uma política
que tem o objetivo de gerar e manter a concorrência ou aumentar a eficiência

! 54
econômica, ao invés de um modo de defender o consumidor, as pequenas empresas ou
combater o poder dos trustes, acabaram por vincular essa forma de governo a
pressupostos caros à ciência econômica. A teoria econômica moderna, ao focar nos
incentivos, no comportamento das empresas, no modo como elas decidem e fazem
escolhas, propicia um amplo conjunto de argumentos para justificar as decisões
antitruste que são feitas muitas vezes prevendo futuros cenários da economia. Segundo
Schuartz (2002, p. 46):

A ciência [...] relaciona-se com o direito de forma mediada, na medida em


que fornece inputs para a construção de paradigmas jurídicos com ela
sintonizados. No caso do Direito da Concorrência tal como praticado
convencionalmente nos ordenamentos dos países desenvolvidos, os inputs
têm sido fornecidos predominantemente pela microeconomia neoclássica. Os
modelos neoclássicos têm disponibilizado os insumos teóricos para a
elaboração de “visões” da economia capitalista que vão orientar respostas a
perguntas não apenas dos policy makers no âmbito da formulação de uma
política de concorrência, mas também das autoridades administrativas e
judiciais (e dos advogados) no âmbito da interpretação e da aplicação dos
textos normativos. Em outras palavras, são essas “visões” da estrutura e do
funcionamento de uma moderna economia capitalista, [...] que vão servir
para a definição racional dos antitrust goals e, a partir daí, para a montagem
dos conceitos dogmáticos básicos e a sua operacionalização nos casos
concretos (Schuartz, 2002, p. 46).

Como explica Schuartz, atualmente, não apenas nos Estados Unidos, mas na maior
parte dos países que possuem legislações e políticas antitruste, a ciência econômica
fornece os meios de “visualização” da economia, constituindo a base dos argumentos
das decisões jurídicas ou administrativas. No Brasil não é diferente, embora a relevância
dos economistas e de suas teorias na política de defesa da concorrência também tenha se
dado mais recentemente e muito tempo após o surgimento de uma política antitruste
nacional.

1.5. Da economia popular à ordem econômica

Como vimos, a política antitruste ou de defesa da concorrência pode ser explicada


retrospectivamente como uma medida governamental diretamente influenciada pelo
liberalismo político e econômico. Porém, assim como nos Estados Unidos, também no

! 55
Brasil os primeiros marcos legais que deram origem a esta política pública não surgiram
por vias de uma ideologia econômica muito bem delineada, em que a livre concorrência
seria tomada como o melhor caminho para a criação da justiça ou da eficiência das
relações econômicas. As condutas empresariais específicas que poderiam prejudicar
consumidores e o abastecimento da população ou, nos termos utilizados na época, as
condutas que prejudicam a “economia popular”, justificavam por si só a adoção de
regulamentos sobre as atividades do setor empresarial no país.

No Brasil, o longo período de colonização e o relativo pequeno desenvolvimento do


setor privado industrial até os anos 1930 fizeram com que regulações especificamente
voltadas a empresas privadas surgissem apenas após a Segunda Guerra Mundial. Até
então, grande parte das mercadorias vendidas no país era produzida no exterior, pelo
próprio Estado, ou em pequena escala para atender a mercados regionais. A crise
econômica de 1929 e a pressão da incipiente indústria nacional, entretanto, fizeram com
que o Estado cunhasse um conjunto de legislações e medidas para garantir a estabilidade
e o desenvolvimento da produção econômica nacional (Forgioni, 2013, p. 99).

Em 1934, foi publicado o decreto no 24.150, que é considerado pela literatura uma
primeira medida contra o “abuso” de preços no país. O decreto intervinha na formação
de preços na economia, determinando, por exemplo, o índice de reajuste de aluguel de
imóveis e de tarifas do setor elétrico, ambos os setores privados na época (Considera &
Corrêa, 2002). A Constituição de 1937, que segundo Forgioni (2013) tem inspiração
nitidamente fascista, definiu de modo mais preciso o que se entendia pela intervenção
do Estado no domínio econômico nesse período, que poderia se dar pelo “controle”,
“estímulo” ou “gestão direta”, porém visando somente “suprir as deficiências da
iniciativa individual e coordenar os fatores de produção, de maneira a evitar ou resolver
os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos
interesses da Nação” (Forgioni, 2013, p. 99).

Como princípio constitucional, encontramos nessa época a “proteção à


economia popular”, cujo Decreto-lei 869 de 18 de novembro de 1938 veio a
regulamentar. De acordo com Forgioni (2013), pode-se dizer que este decreto é o
primeiro diploma brasileiro antitruste. Contudo, diferentemente da referida legislação
norte-americana de 1890, que já incluía entre seus objetivos a proteção da “livre
concorrência”, conforme os princípios liberais mais amplamente disseminados, a

! 56
legislação brasileira antitruste surge buscando a “tutela da economia popular”, o que
significava a repressão ao abuso do poder econômico para a proteção da população ou
do consumidor (Forgioni, 2013, p. 100). Entre as normas explicitamente antitruste que
constam do Decreto-lei de 1938 estava a proibição de “promover ou participar de
consórcio, convênio, ajuste, aliança ou fusão de capitais, com o fim de impedir ou
dificultar, para o efeito do aumento arbitrário de lucros, a concorrência em matéria de
produção, transporte ou comércio”. Além disso, estavam proibidas práticas com “o fim
de dominar o mercado em qualquer ponto do país e provocar alta de preços”.

Contudo, apesar das normas estarem presentes e ativas, na prática o decreto serviu
como um instrumento para corrigir “disfunções no campo dos preços, artifícios e
fraudes contra os consumidores” (Forgioni, 2013, p. 102) e foi raramente aplicado para
punir ou proibir práticas como trustes, cartéis e fusões empresariais.49 Essas primeiras
medidas, portanto, eram bastante distintas da noção contemporânea de defesa da
concorrência, em que o Estado pode apenas autorizar ou punir as empresas
administrativamente. Ao contrário, de acordo com os decretos publicados nos anos
1930, o Estado poderia, quando necessário, tomar o controle direto das empresas e
determinar o preço de certos produtos ou serviços.

Não é apenas a proteção da “economia popular” que difere a trajetória brasileira da


norte-americana. O segundo importante estatuto legal antitruste do país, o Decreto-lei
7.666 de 1945, conhecido como “Lei Malaia”, foi pensado mais como uma forma de
combater o “abuso do poder econômico” que derivava do capital estrangeiro e como
mecanismo de proteção da indústria nacional do que como um combate ao poder das
corporações e dos trustes. 50 Mesmo assim, influenciado pelas legislações norte-
americanas, o Decreto-lei, idealizado por Agamemnon Magalhães, ministro da Justiça
de Getúlio Vargas, incluiu no país a possibilidade de repressão aos trustes, cartéis e
outras formas de combinações empresariais. Mas o que diferenciava a legislação
brasileira de forma mais radical era seu caráter eminentemente administrativo e não
judicial. Nos Estados Unidos, o FTC faz a investigação antitruste e leva seu caso às

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
49
No ano de 1938, ainda, o Decreto-lei no 431 tornou crime a artificiosa manipulação de preços de
gêneros de primeira necessidade, prevendo penas de prisão sem direito à liberdade condicional e
julgamento pelo Tribunal de Segurança Nacional para acordos e fusões que impedissem ou dificultassem
a concorrência (Salgado, 2004).
50
O nome “Lei Malaia” se deve ao fato de o Ministro da Justiça Agamemnon Magalhães, idealizador da
legislação, apresentar traços fisionômicos aparentemente “orientais”, sendo conhecido como “Malaio”.

! 57
cortes judiciais que julgarão o processo. No caso brasileiro, as práticas ilícitas constadas
em lei seriam reprimidas apenas administrativamente.

Outras duas inovações da “Lei Malaia” também foram importantes para o que veio
a ser a política concorrencial brasileira. Primeiramente, a legislação deixou de se referir
aos “crimes contra a economia popular” e passou a penalizar os “atos contrários aos
interesses da economia nacional”, ou aos "atos contrários à ordem moral e econômica",
iniciando uma lenta transição do objeto-alvo regulado pela lei, como explico mais
adiante. Em segundo lugar, a lei criou a “Comissão Administrativa de Defesa
Econômica”, C.A.D.E., precursora do atual conselho e subordinada diretamente ao
presidente da República. A Comissão, vinculada ao Poder Executivo, deveria averiguar
as práticas contrárias aos interesses da economia nacional, determinar a aplicação de
sanções e autorizar atos restritivos (Forgioni, 2013, p. 105). Contudo, o decreto de 1945
e a Comissão, criada para fazer cumpri-lo, duraram apenas três meses. Com exceção do
próprio ministro da Justiça, não havia muitos adeptos da nova legislação, que recebeu
inúmeras críticas devido ao seu conteúdo supostamente bastante “intervencionista” e
“protecionista”. Alguns membros da oposição chegaram a afirmar que a CADE era um
órgão “nazifascista” que ameaçava a economia brasileira (Forgioni, 2013, p. 106), e o
jornal carioca Correio da Manhã mencionou até mesmo a possibilidade de um teor
“apocalíptico” na lei em razão de sua numeração – Decreto-lei nº 7.666 (Cabral,
2015).51

Com a queda do governo Vargas em outubro de 1945, o Decreto-lei foi revogado


pelo presidente José Linhares, porém a Constituição do ano seguinte incorporou muito
dos seus princípios. Pela primeira vez um texto constitucional trazia expressa a
necessidade de “repressão ao abuso do poder econômico” quando fossem caracterizados
atos cuja finalidade fosse “dominar o mercado nacional”, “eliminar a concorrência” ou
“aumentar arbitrariamente os lucros” (Forgioni, 2013, p. 108). Forgioni (2013, p. 107)
cita Agamemnon, que explica a racionalidade da inserção desse princípio na legislação:

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51
“As críticas feitas à época eram em parte pertinentes. Como diploma elaborado por governo ditatorial,
não foi precedido de discussão parlamentar, muito menos de debate com a sociedade. Foi obra da cabeça
do ministro – e Getúlio comprou a briga. Ademais, os entreveros entre Agamemnon e Assis
Chateaubriand, dono do grupo Diários Associados, fizeram com que da ‘Lei Malaia’ fosse dito que
atentava contra as empresas jornalísticas e, por conseguinte, contra a liberdade de expressão. Anote-se,
ainda, que o decreto dava à C.A.D.E. poderes de intervir e até de desapropriar, sem necessidade de
qualquer autorização judicial, empresas que praticassem atos considerados ‘contrários aos interesses da
economia nacional’” (Cabral, 2015, p. 1).

! 58
“A livre concorrência é [...] a base da economia liberal”. Por sua vez, o
poder econômico “é o que resulta da posse dos meios de produção. Quando
esses meios de produção, em certos setores da atividade são dominados por
um indivíduo ou por um grupo de indivíduos, são dominados por uma
empresa ou por um grupo de empresas, evitando que outros deles também
possam dispor, há abuso do poder econômico”. Nesse contexto, o Estado
deve “intervir para evitar ou suprimir o abuso”.

No entanto, a regulamentação legal do “abuso do poder econômico” só foi realizada


efetivamente em 10 de setembro de 1962, com a Lei no 4.137, após o projeto de lei
tramitar durante 14 anos no Congresso Nacional. A legislação de 1962 recriou o CADE,
dessa vez como um “conselho”,52 para apurar e reprimir abusos de poder econômico,
separando, assim, a função deste órgão daquela de outros já existentes que tratavam
mais especificamente da “economia popular” ou de questões de “abastecimento”.53 A
lei, além de reprimir práticas a posteriori consideradas abusivas do poder econômico,
como a eliminação total da concorrência, também incluía disposições para que o CADE
autorizasse previamente a efetivação de “atos, ajustes, acordos ou convenções entre
empresas” que pudessem diminuir o grau de concorrência num mercado.

De 1962 até o final dos anos 1980, porém, tanto a lei quanto o CADE tiveram um
papel muito restrito. Até 1975, segundo Forgioni (2013, p. 117), apenas 11 processos
haviam sido julgados pelo CADE e somente em um deles a prática foi considerada
abusiva. Um dos motivos da performance modesta do órgão teria sido a atuação do
Poder Judiciário, que acabou suspendendo muitas decisões a partir de mandados de
segurança impetrados pelas empresas condenadas administrativamente. Ainda, de
acordo com um integrante da Procuradoria do CADE em 1964, o órgão, que funcionava
no subsolo do Palácio do Catete, como não era conhecido pelo público, não recebia
nenhuma denúncia de práticas empresariais que pudessem ser por ele investigadas
(CADE, 2013a).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
52
A mudança da denominação de “comissão” para a de “conselho” foi justificada pelos parlamentares
como sendo mais apropriada para garantir que os integrantes do CADE estivessem posicionados em uma
“categoria especial, inclusive com garantias e incompatibilidades de membros do Poder Judiciário”
(CADE, 2013a, p. 41).
53
Em 1951, surgem medidas governamentais mais incisivas para controlar os preços da economia, como
as Leis no 1.521 e no 1.522, que dispunham sobre os ilícitos no campo da concorrência – “crimes e
contravenções penais contra a economia popular” – e promoviam forte intervenção estatal no domínio
econômico. Tais Leis definiam como crime a transgressão de tabelas oficiais de preços para bens e
serviços considerados essenciais. O órgão responsável por inspecionar e aplicar o controle de preços era a
COFAP – Comissão Federal de Abastecimento e Preços. Em 26 de setembro de 1962, com as Leis
Delegadas no 4 e 5, a COFAP é substituída pela SUNAB – Superintendência Nacional de Abastecimento
e Preços.

! 59
Entretanto, para a maior parte dos analistas, o CADE não teve um papel relevante
durante esse período devido à incompatibilidade entre sua função legal e a direção mais
ampla que a política econômica seguiu a partir dos anos 1960. Novos órgãos estatais,
como a CIP – Comissão Interministerial de Preços – e a Sunab – Superintendência
Nacional de Abastecimento e Preços – que controlavam preços e tarifas na economia, e
a atuação de ministérios que incentivavam a fusão e a incorporação de empresas, se não
causavam um enfrentamento jurídico direto com o CADE, ao menos politicamente
pareciam ir na direção oposta. Segundo Elizabeth Farina (1990, p. 472), ex-presidente
do órgão antitruste: “a tímida atuação do CADE é absolutamente consistente com a
política econômica mais geral que protegeu nossa indústria da concorrência externa e
estabeleceu várias formas de controles setoriais que limitavam a concorrência ao invés
de estimulá-la”.54 Além disso, o CADE exercia outras incumbências administrativas que
não eram necessariamente relacionadas à sua função antitruste, servindo, assim como
outros órgãos governamentais, para controlar diretamente a atividade das empresas.
Comentando sobre o papel do CADE nesse período, o economista Luciano Coutinho
(2004, p. 6) diz: “Na realidade, pretendia-se que o CADE funcionasse como conselho
de administração e conselho fiscal de estatais, ou mesmo, como empresa de
auditoria”.55

De fato, quando o governo militar assume em 1964, adota-se uma política fiscal
ortodoxa e uma política monetária contracionista para lidar com a crise econômica no
período, restringindo crédito, gastos públicos e salários. Entretanto, contrário à
orientação mais liberal predominante no Ministério da Fazenda e no recém-criado
Banco Central, os militares preferem continuar com a adoção de uma política de
substituição de importações, investindo em empresas estatais. O segundo governo
militar aprofunda ainda mais esta política e passa a utilizar o controle estatal de preços

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
Para o economista Hélcio Tokeshi, ex-secretário do Ministério da Fazenda, em pronunciamento na
Câmara dos Deputados (2004, p. 13): “Nesse primeiro momento de substituição das importações,
enquanto esse modelo não era abandonado, não fazia sentido tentar pensar em defesa da concorrência,
porque o Estado era o agente coordenador e regulador dos mercados, interferindo diretamente na oferta,
nos preços e nas quantidades”.
55
Pode-se dizer que a própria lei antitruste de 1962 carregava um forte viés intervencionista. Dentre os
seus objetivos, havia o de "exercer a fiscalização da administração das empresas de economia mista e das
que constituem patrimônio nacional [empresas públicas]". Também definia que a "fiscalização se estende
à gestão econômica da empresa e seu regime de contabilidade...", e estabelecia que "o CADE examinará
anualmente os balanços e relatórios das empresas a que se refere este artigo e, em face deles e dos
resultados de sua fiscalização, proporá ao Conselho de Ministros as providências que lhe parecerem
necessárias" (BRASIL, 1962).

! 60
de mercadorias e serviços como mecanismo essencial de combate à inflação,
mecanismo este que caracterizará a política econômica até a década de 1980.

Em 23 de fevereiro de 1965, com a Diretiva Interministerial 65, o sistema de


controle de preços é aperfeiçoado. São oferecidas vantagens fiscais e monetárias a
empresas que adotem aumentos “moderados” de preços, e a Comissão Nacional para o
Estímulo da Estabilização de Preços (Conep) é criada. Devido à simplicidade da medida
e ao fato de poder ser adotada espontaneamente pelas firmas, é grande o número de
empresas que adere à política governamental (Considera & Corrêa, 2002). No segundo
governo militar, com a chegada do ministro da Fazenda Delfim Netto e, com ele, de um
novo grupo de economistas advindos principalmente da Universidade de São Paulo
(Loureiro, 1997), a adoção do sistema de controle de preços passa a ser compulsória
(Decreto no 61.993).56 Todo o aumento de preços da indústria manufatureira, de parte da
indústria alimentícia, da indústria da madeira, do couro, de calçados e roupas estava
sujeito à análise e à aprovação da Conep. Esse controle deveria ser perseguido até que a
inflação chegasse ao fim.57

Desde o início do governo Vargas, as associações de produtores industriais tinham


uma estreita relação com o governo. Elas objetivavam aumentar e proteger a chamada
“indústria nascente nacional” da indústria estrangeira. Entre 1930 e 1945, as associações
eram oficiais, criadas pelo governo Vargas, e recebiam contribuições do governo para
funcionar. As principais associações eram a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo), a Firj (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, agora Firjan), e a CNI
(Confederação Nacional da Indústria), além das associações de outros estados. Suas
metas eram aumentar as tarifas de importação, criar controles para a importação,
influenciar a taxa de câmbio e promover a indústria de infraestrutura, protegendo o
mercado doméstico e incentivando o capital privado nacional. Sua influência no
governo era enorme, sendo que a Fiesp e a Firj tinham cargos no governo Dutra. Além
dessas, existiam outras 160 associações de produtores, que negociavam acordos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
56
28 de dezembro de 1967.
57
O aumento de preços estava sujeito a várias condições. As firmas precisavam, primeiramente, mostrar
que o aumento era proporcional ao aumento de custos que haviam tido. A CIP, que substituiu a Conep,
calculava a taxa média de retorno do capital para firmas e setores específicos para medir o aumento de
produtividade que poderia ser repassado aos preços. Segundo Considera e Corrêa (2002, p. 10): “as regras
de controle eram muito detalhadas e complexas, representando uma intervenção nos segredos de
administração das firmas inimaginável numa sociedade democrática. Quando aplicavam para um
reajustamento de preços, vários segredos industriais das firmas tinham que ser expostos aos oficiais do
governo, com pouca garantia de que não seriam disponibilizados aos seus concorrentes”.

! 61
salariais coletivos com sindicatos de trabalhadores no Ministério do Trabalho ou em
cortes trabalhistas (Considera & Corrêa, 2002).

De acordo com Considera e Corrêa (2002), a partir dos anos 1970, com o aumento
da inflação, as associações de produtores começaram a ter um papel importante também
na política microeconômica, principalmente no que se refere à política de preços. A CIP
passou a reunir funcionários públicos e representantes de produtores para organizar o
setor industrial e diversos mercados. Na prática, o Estado institucionalizava espaços que
possibilitavam o encontro de diferentes organizações para a discussão e a negociação de
preços e custos. Assim, a política econômica adotada no Brasil, ao tentar estabilizar os
preços dos produtos por meio de negociações, acabava por organizar uma estrutura para
o funcionamento de cartéis, fazendo com que os industriais brasileiros se reunissem e
conversassem sobre custos e preços (Considera & Corrêa, 2002). Com o fim do milagre
econômico, período de excepcional crescimento da economia brasileira entre 1968 e
1973, a política de preços do governo prosseguiu sem a mesma rigidez, mas o aumento
da inflação tornou a atuação da CIP claramente insuficiente. Mesmo assim, até 1984, a
CIP continuou a promover acordos entre empresas sem causar reduções nos preços, mas
mantendo-os homogeneamente altos. Nesse contexto de forte intervenção estatal nos
preços, o papel do órgão antitruste foi extremamente reduzido. Segundo um ex-
integrante do órgão, Luiz Paulo Mayer,

Com a ditadura, o CADE, que ainda não estava totalmente instituído, foi
gradativamente deixado de lado, até ser extinto por inanição e pela limitação
das suas funções. Como hoje, os mandatos dos conselheiros eram exercidos
por um prazo determinado. Com a saída de um deles, o substituto deveria ser
indicado pela Presidência da República. Como não havia interesse no
funcionamento do órgão, encerrado um mandato de conselheiro, o
governante de plantão não fazia a indicação do substituto, como lhe cabia.
Pela omissão, decretou-se a extinção do CADE (CADE, 2013, p. 44-45).

Para que o órgão pudesse ter alguma relevância, seria necessária uma
transformação substancial da política econômica nacional, algo que ocorreu apenas a
partir dos anos 1990. Tal transformação, por outro lado, requeria também uma nova
concepção da realidade que se buscava governar, uma mudança do “governo dos crimes
contra a economia popular” para o “governo das infrações à ordem econômica”, do
“controle dos preços” para a “defesa da concorrência”.

! 62
1.6. A liberalização da economia e a nova política antitruste

A Constituição de 1988 marca o início de um período de transição da política


antitruste que culmina com a Lei de Concorrência de 1994. Esse período coincide com
uma série de mudanças na política econômica nacional que fizeram a política de defesa
da concorrência ganhar paulatinamente mais relevância. Entre as medidas estão: a
privatização dos setores de telecomunicações e de energia; a abertura comercial e de
capitais dos mercados nacionais; o aumento da autonomia decisória do Banco Central; e
a criação de agências reguladoras setoriais. Todas essas políticas implicavam uma
ampla reformulação da relação entre o Estado, os mercados e seus participantes,
conforme ideais mais liberais, ou neoliberais, como ficaram conhecidos. A privatização
de empresas e a maior abertura do mercado interno a produtos estrangeiros
determinaram uma relativa transferência para o setor privado da responsabilidade pela
condução do desenvolvimento econômico nacional, reservando ao Estado a posição de
mero “regulador”, apenas estabelecendo as “regras do jogo” dos mercados. Nesse novo
entendimento sobre o modo de administrar a economia, a política de defesa da
concorrência ganhou mais espaço como forma de governo.

A Constituição Federal apontava para essa nova direção que estava sendo tomada
pela política econômica nacional ao definir, como já mencionado, a “livre concorrência”
como um princípio da “ordem econômica” (art. 170) e ao restabelecer, de acordo com
as legislações anteriores que, por meio de uma legislação complementar, se
regulamentassem os critérios de repressão ao “abuso do poder econômico que vise à
dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos
lucros” (art. 173). Uma alteração importante do texto da nova Constituição foi a de não
mais tutelar a “economia popular”, mas sim a “ordem econômica”. Como afirma
Fernando Rabossi (2013, p. 6):

Na década de 1980 e início dos 1990, a “economia popular” entendida como


patrimônio coletivo deixa de ser o alvo da proteção da lei, sendo
paulatinamente substituída pela “ordem econômica”, uma ordem abstrata que

! 63
passa a ser tutelada juridicamente. Nessa mudança, não é o povo, mas as
regras do sistema as que devem ser protegidas.58

A noção de “ordem econômica”, cunhada e disseminada internacionalmente por


juristas e economistas alemães de meados do século XX, tais como Walter Eucken e
Wilhelm Röpke, implicava, para estes autores, a existência de um sistema de preços
livres e de mercados, sendo esta a única ordem garantidora da “liberdade humana”.59 A
noção de ordem estava claramente vinculada, portanto, a uma ordem jurídica liberal,
promovida pelos mercados e garantida pela lei ou pelo Estado. Como explica o
constitucionalista Eros Grau (2014, p. 59-88), a noção de ordem econômica, na
Constituição brasileira e em diversos outros textos legais, comporta tanto um sentido
ontológico, como o “modo de ser empírico de uma determinada economia concreta”,
um “conceito de fato”, quanto um “conjunto de normas [...] que respeitam a regulação
do comportamento dos sujeitos econômicos”, ou seja, implica tanto no “mundo do ser”
quanto no do “dever-ser”. Este duplo sentido também é apontado pela antropóloga
Annelise Riles (2010b, p. 9), que argumenta que, embora a “ordem econômica” seja
aquela dada pelos mercados, ela é necessariamente uma construção jurídica: “As one of
the grandfathers of international economic law [Röpke] long ago insisted, the
international economic order is an ‘as if’ economic order [...] The ultimate concern of
international economic law is how to build an ‘economic order’– it does not ‘exist’ at
the outset”.

Nesse novo contexto de promoção de uma ordem econômica liberal,


caracterizada por mercados em livre concorrência, a política antitruste ganha
importância especialmente como mecanismo de combate a um dos maiores problemas
políticos e econômicos do período, a inflação.60 Todo o conjunto de novas políticas
adotadas no período, inclusive a política de defesa da concorrência, era justificado para
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
58
Segundo Rabossi (2015, p. 5): “Se formos observar as leis que foram assumindo o espaço da Lei
1.521/51 e onde são tipificados os crimes anteriormente descritos nela, vemos a paulatina emergência de
um outro conceito que ocupa o espaço da economia popular: a ordem tributária e econômica. São elas: a
Lei 7492 (“Define os crimes contra o sistema financeiro nacional, e dá outras providências”, de
16/06/1986), o Código do Consumidor (Lei 8.078, de 11/09/1990), a Lei 8.137/90 (“Define os crimes
contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo e dá outras providências”, de
27/12/1990) e a Lei 8.176 (“Define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de
Combustíveis”, de 8/02/1991)”.
59
Os ordoliberais alemães foram um influente grupo de economistas e juristas da Escola de Friburgo, que
desenvolveram, entre 1930 e 1950, uma vertente liberal que dava extrema importância à formulação dos
fundamentos jurídicos da economia liberal. Sobre os ordoliberais e o conceito de ordem econômica, ver
Foucault (2004) e a seção final deste capítulo.
60
Sobre o governo da inflação e dos preços nesse período, ver Neiburg (2006).

! 64
que os preços se “estabilizassem” (Neiburg, 2006). O antitruste, ao invés de controlar
diretamente os preços, como o governo vinha fazendo desde 1967 pelo menos, os
controlaria indiretamente, garantindo um comportamento competitivo das empresas nos
mercados. A concorrência dos mercados e a “ordem” que ela estabeleceria fariam com
que os preços se ajustassem automaticamente ao seu “equilíbrio”, este correspondendo
àquele derivado das forças de “oferta” e “demanda” sem a interferência estatal. Nessa
época, foi a política de controle de preços adotada no período militar que se tornou
incompatível com a forma de governo adotada, pois a ordem pretendida não era mais
dada exclusivamente pela intervenção estatal, mas sobretudo pelo funcionamento dos
mercados. Como consequência, em 1990, a CIP foi extinta e, em 8 de janeiro de 1991, a
Lei no 8.158 reorganizou as normas antitruste no Brasil, de acordo com a nova
pretensão constitucional. A legislação criou a Secretaria Nacional de Direito Econômico
(SNDE), vinculada ao Ministério da Justiça, cuja função era:

apurar e propor as medidas cabíveis com o propósito de corrigir as anomalias


de comportamento de setores econômicos, empresas ou estabelecimentos,
bem como de seus administradores e controladores, capazes de perturbar ou
afetar, direta ou indiretamente, os mecanismos de formação de preços, a livre
concorrência, a liberdade de iniciativa ou os princípios da ordem econômica
(Brasil, 1991).

Esta segunda instância administrativa daria o apoio técnico necessário ao CADE,


que passava a ter uma função propriamente judicante (Strauss, 2005).61 A legislação de
1991 estava conforme com outras legislações antitruste de países industrializados,
visando à repressão (art. 3o) e à prevenção (art. 13o) do uso abusivo do poder de
mercado. Conceitos da teoria econômica moderna e da jurisprudência internacional,
como as noções de eficiência e de “mercado relevante” (ver capítulo 3), passaram a ser
mencionados explicitamente no corpo da lei, tornando-se mais frequentes na
argumentação das decisões posteriores do conselho. Contudo, não faltaram críticas por
parte de economistas à sua pouca “fundamentação econômica”. Um dos pontos
questionados seria a possibilidade de permitir concentrações empresariais por “motivos
preponderantes da economia nacional e do bem comum”, ou seja, motivos que não
poderiam ser explicados “tecnicamente”. Além disso, condenou-se a exigência legal de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
61
Segundo a economista e ex-conselheira do CADE Lúcia Helena Salgado (2004), a criação da SNDE
reflete a relutância de parte da burocracia em extinguir os mecanismos de controle de preços no período
de hiperinflação, em que a coordenação estatal era vista como necessária para o controle inflacionário.
Isto porque o orçamento administrativo e de pessoal do CADE, todos os seus cargos e funções passaram a
integrar a estrutura da SNDE, reduzindo a autonomia do conselho.

! 65
se redistribuírem possíveis ganhos ao consumidor, na forma de redução de preços, para
que um processo fosse aprovado pelo conselho. Isto indicaria, segundo um economista,
um viés distributivo da lei (Lima, 1998), 62 diferenciando-a dos estatutos adotados
internacionalmente. A lei de 1991, no entanto, não produziu uma transformação tão
abrangente na política.

Como explicou um ex-presidente do CADE, nesse período o órgão estava


“praticamente abandonado”, visto que os “mandatos dos conselheiros anteriores haviam
terminado e ainda não havia indicação de novos integrantes” (CADE, 2013, p. 52). O
órgão não possuía sequer mobília e todos os “documentos relativos aos processos
administrativos instruídos pelo conselho estavam empilhados em uma sala, sem
preservação”, segundo Ruy Coutinho (CADE, 2013, p. 52). No início da década de
1990, o desconhecimento do papel do órgão na administração pública era tamanho que
se considerou extingui-lo oficialmente.63 Conforme explicam especialistas em direito ou
economia da concorrência, o antitruste ganhou importância efetiva entre as políticas
governamentais voltadas à economia somente após a aprovação da legislação de 1994.

Curiosamente, no entanto, a Lei de Concorrência no 8.884 de 1994 foi idealizada


visando reinstaurar a adoção de um sistema de controle de preços já extinto pelo
governo.64 No conturbado período pós-impeachment do presidente Fernando Collor,
enquanto o ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, organizava o futuro
Plano Real, o presidente da República Itamar Franco estava particularmente interessado
em impedir a cobrança do que ele considerava como preços abusivos do setor
farmacêutico.65 Em janeiro de 1993, o ministro da Justiça Maurício Corrêa, por ordem

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
62
Para o ex-conselheiro Ruy Santacruz Lima, “a legislação brasileira parece não ter capturado o sentido
da discussão que envolve o pensamento mainstream antitruste, representado pelos adeptos do modelo
estrutura-conduta-desempenho [Harvard], nem da sua crítica, na forma apresentada pela escola da
eficiência de Chicago” (Lima, 1998).
63
O material produzido pelo CADE em 2013 inclui um curioso episódio narrado pelo secretário-
executivo do Ministério da Justiça nesse período, Tércio Sampaio Ferraz Jr., quando se precisou decidir
em que local da estrutura governamental o órgão antitruste deveria se estabelecer: “Na época havia uma
grande dúvida em que ministério colocar a Funai [Fundação Nacional do Índio]. Aí a brincadeira era:
quem levar os índios leva o CADE. Fazia todo sentido que a Funai ficasse no Ministério da Justiça
porque é uma questão de direitos humanos. E aí disseram que a concorrência não tinha nada a ver com
direito. Eu disse: ‘tem sim, direito da concorrência’, que era uma expressão nova para a época” (CADE,
2013a, p. 52-53).
64
Para uma análise sociológica mais densa sobre a formulação da Lei de 1994, ver Bello (2005), Miola
(2014) e Onto (2009).
65
Conforme Oliveira e Konichi (2006, p. 4): “[...] a motivação política para a Lei 8.884 ganhou
inspiração da noção de intervenção do Estado no mercado, herdada de estágios anteriores. O presidente
Itamar Franco esperava que a lei permitisse uma rápida punição ao abuso de preços do setor farmacêutico
e demandava a aprovação do que se tornaria a nova lei de concorrência como uma condição para a

! 66
do presidente, instituiu uma comissão de especialistas para “estudar e propor, no prazo
de vinte dias, o aperfeiçoamento e a consolidação da legislação sobre defesa da
concorrência e abuso do poder econômico, visando à fixação de um novo modelo
institucional que propicie melhor ação governamental nesse campo”. Segundo o
ministro, o objetivo da lei era coibir o aumento arbitrário de preços para combater “a
cultura brasileira da inflação – aumentar preços sempre que o governo tenta combater a
inflação”.66 Em dois meses concluiu-se o trabalho e, no dia 23 de abril de 1993,
encaminhou-se ao Congresso Nacional o projeto de lei que dispunha sobre a repressão
ao abuso do poder econômico e autorizava a transformação do CADE em autarquia,
com autonomia administrativa e orçamento próprio.67

O projeto de lei enfrentou a reação de setores políticos e econômicos, visto que se


sentiam inseguros por não compreenderem bem o alcance da proposta. Parte do
discurso daqueles favoráveis ao projeto consistia em convencer as partes contrárias que
a política de concorrência não enfraqueceria o papel do Estado na economia, mas faria
precisamente o contrário (Coutinho, 2004). Mesmo assim, a Lei acabou sendo aprovada
principalmente devido ao amplo apoio político ao Plano Real e à possibilidade de que a
política antitruste ajudaria os objetivos anti-inflacionários (Bello, 2005). A legislação
antitruste foi considerada por economistas e juristas um grande avanço na matéria do
direito da concorrência, incluindo uma série de dispositivos presentes em jurisdições
estrangeiras.68

O diploma de 1994 deu maior poder para o corpo técnico do CADE, que agora se
tornava a última instância decisória sobre a legislação concorrencial na esfera
administrativa. A decisão do CADE seria dada após a emissão de pareceres técnicos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
implementação do plano de estabilização”. Segundo Ruy Coutinho (2004), ex-presidente do CADE e
presidente da comissão mencionada: “O vice-presidente, Itamar Franco, que assumiu a Presidência da
República, em várias reuniões insistia em que incluíssemos na Lei Antitruste mecanismos de controle de
preços justamente no momento em que estava em gestação o Plano Real, que não tinha nada de controle
de preços. [...] o presidente da República tentava inserir na Lei Antitruste, ao contrário do que imaginava
o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, esses mecanismos exóticos, no intuito de
ressuscitar todo aquele aparato que havia sido penosamente desmontado ao longo do tempo” (Câmara dos
Deputados, Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio, 30 de novembro de 2004).
66
Apud Bello (2005, p. 54).
67
Mensagem Presidencial n° 213 e Projeto de Lei no 3.712/93!
68
De acordo com o economista Luciano Coutinho (2004): “com a Lei nº 8.884, apesar das eventuais
impropriedades, creio que se conseguiram reduzir substancialmente as imensas discrepâncias que nos
separavam dos países desenvolvidos no campo do antitruste. Não era a legislação ideal, mas a que foi
possível para aquela época, a fim de que o país fizesse uma transição razoavelmente tranquila para a
economia de mercado” (Câmara dos Deputados, Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e
Comércio, 30 de novembro de 2004).

! 67
pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE), que substituía a
SNDE, e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda
(SEAE), criada no ano seguinte. Os três órgãos passaram a formar o chamado “Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência” (SBDC). As decisões do CADE seriam
proferidas por um colegiado composto por um presidente e seis conselheiros, nomeados
pelo presidente da República e aprovados por uma sabatina no Senado. Esses membros
do colegiado que, de acordo com a lei, devem ter “notório saber jurídico ou econômico”,
tinham um mandato de dois anos com direito a uma recondução.

A legislação de 1994, que durou mais de 15 anos, transformou radicalmente a


política de defesa da concorrência no país. O gráfico seguinte, produzido pelo CADE
em 2007, ilustra quantitativamente a pouco expressiva atividade do órgão no período
entre 1962 e 1993, em contraste com a atividade verificada sob a égide da Lei 8.884.
Antes de 1994, o CADE julgava, em média, menos de 10 processos por ano, sendo que
no período entre 1994 e 2006 a média foi de 450 (CADE, 2007).

Gráfico 1: Processos julgados pelo CADE (Fonte: Relatório Anual do CADE, 2007)69

O aumento do número de processos julgados pelo órgão antitruste decorre


principalmente de a nova Lei 8.884/94 ter instituído um controle mais rígido dos atos de
concentração empresariais no Brasil. Todas as fusões e aquisições empresariais que se
enquadravam nos critérios especificados estavam sujeitas à aprovação do conselho, o
que obrigou as empresas a começar a enviar seus requerimentos ao CADE, cada um
deles dando origem a um processo administrativo. O maior número de processos
instruídos também foi possível graças a um incremento no número de profissionais no

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69
Em 2015, o CADE julgou 715 processos, sendo 386 atos de concentração. (www.cade.gov.br)

! 68
órgão, obrigando a transferência de sua sede de um andar no prédio anexo do Ministério
da Justiça para um edifício próprio no Setor Comercial Norte da capital.

Essa nova fase da política de defesa da concorrência brasileira coincidiu com a


entrada no CADE de um maior número de profissionais formados em economia e de um
uso crescente de teorias econômicas como parte dos argumentos que justificavam as
decisões do órgão judicante e das outras secretarias adjuntas (SDE e SEAE). Embora os
economistas tivessem participado ativamente da formulação das leis de defesa da
concorrência de 1991 e 1994 (Miola, 2014), a presença desses profissionais no conselho
era rara até o início do governo de Fernando Henrique Cardoso.70 Em 1996 foi nomeado
o primeiro economista no cargo de presidente do órgão desde 1962, além de dois outros
conselheiros com formação em economia. Segundo o ex-conselheiro César Mattos
(2003, p. 21), “se tornava cada vez mais forte a percepção de que era crucial aprofundar
o papel da análise econômica na aplicação da legislação antitruste”, resultando na
inauguração da “prática de reservar algumas vagas do conselho a economistas mestres
ou doutores, com reconhecida competência para a apropriada aplicação da teoria
econômica nos importantes casos de concentração em estoque e ainda por vir” (Mattos,
2003, p. 22).

De acordo com César Mattos e outros ex-conselheiros, a inclusão de profissionais


com essa formação foi resultado de uma tentativa do Executivo de se evitarem conflitos
políticos que vinham ocorrendo com a atuação mais incisiva do órgão de defesa da
concorrência, que ganhara mais poderes com a nova legislação.71 Os economistas e sua
ciência dariam um aspecto mais técnico ao CADE, reduzindo a possibilidade de o órgão
ser criticado por decidir julgamentos baseados na pressão política das partes ou do

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
70
Ao se observar a comissão formada por “especialistas em defesa da concorrência” para formular a nova
Lei Antitruste em 1993, encontramos apenas um economista. Sua influência se deu por meio de
comentários ao projeto de lei em formulação. Economistas do recém-criado grupo de estudos de defesa
da concorrência do IPEA e acadêmicos voltados para a área foram consultados. No primeiro caso, o
economista Antônio Kandir e outros, como Lúcia Helena Salgado e Hélcio Tokeshi, que trabalhavam no
IPEA, deram opiniões a respeito do projeto de lei, assim como a economista e professora da USP
Elizabeth Farina, uma das primeiras pesquisadoras do tema no país (Miola, 2014).
71
Em 1996, o caso da compra da Siderúrgica Pains pelo Grupo Gerdau (Ato de Concentração no 16) foi
um dos que geraram conflitos políticos com reflexos na mídia e na esfera política. O CADE havia
determinado a desconstituição da compra da Pains pela Gerdau. Porém, contrariando o disposto no artigo
50 da Lei nº 8.884/94, que define que “nas decisões do CADE não comporta revisão no âmbito do Poder
Executivo”, o então ministro da Justiça pediu a revisão da decisão, tentando interferir politicamente na
decisão. Mesmo assim, o CADE determinou a venda da Pains para outra companhia, não seguindo o
ministro, gerando um desconforto nos conselheiros e nos funcionários do órgão em relação à sua
autonomia.

! 69
governo.72 A entrada desses especialistas, embora tenha contribuído para a reputação do
CADE como órgão técnico na imprensa, nos meios acadêmicos e na administração
pública (Miola, 2014), não acabou com as disputas jurídicas e políticas, mas fez com
que estas fossem mediadas pela linguagem da teoria econômica, aproximando a política
de defesa da concorrência brasileira daquela existente há mais tempo em outros países
(Onto, 2009).

Mais importante, para o sociólogo Iagê Miola (2014), os economistas que estavam
sendo indicados para cargos comissionados, como conselheiros e presidentes do órgão,
a partir de 1996 tinham perfis distintos daqueles profissionais com formação em
economia que tinham atuado no CADE anteriormente. Enquanto os outros tinham
carreira no funcionalismo público e haviam feito no máximo um mestrado em uma
universidade brasileira, os novos profissionais nomeados possuíam títulos de doutorado
de universidades renomadas no Brasil e no exterior. Dois integrantes do novo conselho
de 1996, por exemplo, Gesner Oliveira (ex-presidente) e Lucia Helena Salgado (ex-
conselheira), tinham PhDs pela Universidade de Berkeley, importante centro de estudos
em Organização Industrial nos Estados Unidos.73 Segundo Miola (2014), os novos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
72
Segundo Lúcia Helena Salgado, uma das economistas que entraram logo em seguida ao caso Gerdau-
Pains no cargo de conselheira do CADE, nessa época inicia-se uma busca pela “racionalidade” ou
“racionalização” da atividade do órgão antitruste brasileiro (comunicação pessoal). Para a Presidência da
República, a busca por maior “racionalidade” da atividade do órgão deveria servir para evitar os
problemas políticos que o órgão poderia gerar. De acordo com o relato da ex-conselheira, quando
nomeados, os economistas Gesner Oliveira e Lucia Helena Salgado receberam a seguinte recomendação
do presidente da República Fernando Henrique Cardoso: “Não me causem problemas!”. Como descreve o
sociólogo Carlos Bello (2005, p. 92), os ministros Pedro Malan, da Fazenda, e Nelson Jobim, da Justiça,
manifestaram-se publicamente, afirmando que os novos conselheiros deveriam ser técnicos. Um pouco
antes da data das nomeações, os dois ministros reuniram-se com o ministro José Serra e o presidente
Fernando Henrique Cardoso e chegaram ao consenso de indicar técnicos especializados, com formação
jurídica ou econômica. Para o sociólogo, o presidente estava “muito preocupado que a balcanização
política pudesse gerar novos conflitos com o CADE [...] Os economistas serviriam para bloquear o
CADE”, não para torná-lo mais eficaz.
73
“Gesner José de Oliveira Filho, 40. An economist graduated from USP, Oliveira held a master’s degree
in economics obtained at UNICAMP where he was supervised by José Serra – by then Minister of
Planning of Cardoso. In 1989, he concluded a PhD in economics at the University of California, at
Berkeley, with a thesis on liberalization policies, and the Brazilian experience with the IMF, supervised
by Albert Fishlow. Prior to his recruitment to CADE, Oliveira’s career combined academic duties,
political appointments, and activities in private practice. Between 1980 and 1984, he was a professor of
economics at PUC-SP, and since 1990 he thought at the FGV-SP. In 1990, he was a consultant at the
BNDES on privatizations, and between 1991 and 1993 he worked in the private sector, as a consultant of
the Swiss Development Cooperation, of a bank, and of a law firm. Back to government in 1993, he was
appointed Deputy-Secretary of Economic Policy of Gustavo Franco, at the Ministry of Finance. When
SPE was converted into SEAE in 1995, Oliveira became the Secretary for a few months. As a Secretary,
it is likely that his appointment to CADE was articulated by the Minister of Finance, Pedro Malan, an
economist and professor of economics at PUC-Rio, who also obtained his PhD in Berkeley, in 1973”
(Miola, 2014, p. 262). “Lucia Helena Salgado, 35. […] By 1996, Salgado had completed her PhD in
economics at UFRJ, during which she was a visiting doctoral student at the University of California, at

! 70
profissionais eram também mais jovens e vinculados a centros conhecidos da teoria
econômica ortodoxa, assim como outros economistas que naquele período também
foram nomeados para outros órgãos da administração pública. Como exemplo, entre os
17 economistas nomeados pelo CADE entre 1996 e 2012, encontramos doutores
formados pela Universidade de Chicago, Universidade de Londres, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo e Universidade de Brasília (Miola,
2014).

Conforme identificou Miola (2014, p. 316), nada menos do que oito desses
economistas tinham algum vínculo com a chamada abordagem “neoinstitucionalista” na
ciência econômica. Conhecida pelos trabalhos de autores como Douglass North, Oliver
Williamson e Ronald Coase, essa abordagem é considerada um braço intelectual do
programa político neoliberal que argumenta em função da necessidade de instituições
que garantem e produzem o funcionamento de mercados eficientes. Para Miola (2014, p.
319), a economia neoinstitucional pode ser descrita como “um conjunto de fundamentos
teóricos e receitas políticas que consolidam os resultados das reformas
macroeconômicas neoliberais”.74

Como afirmam diversos sociólogos (Babb, 2001; Montecinos & Markoff, 2009), os
economistas como grupo profissional foram muito importantes, especialmente na
América Latina, para a disseminação de políticas econômicas neoliberais nos anos 1980
e 1990. Essa relevância estava associada à sua capacidade de produzir justificativas

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Berkeley. As she maintained in an interview, in her period abroad she filled a ‘gap’ of her formation:
‘There, I attended all courses on econometrics, mathematics and industrial organization’. Her doctoral
thesis was an analysis of the incipient Brazilian antitrust regime, still under the law of 1991, focusing on
Administrative Procedures. As Salgado reported in an interview, during her visit to UCB, she ‘had the
best professors I could have at that moment’ – notably the exponents of new institutional economics, such
as Oliver E. Williamson, Carl Shapiro, and Douglass North. Besides these foreign professors, Salgado
also mentioned other people that would have been influential in her PhD formation, such as Gustavo
Franco, an economist of PUC-Rio and PhD by Harvard University who was the Secretary of Economic
Policy of the Ministry of Finance between 1993 and 1999, and later became the President of the Brazilian
Central Bank; Armando Castelar Pinheiro, also a PhD at Berkeley and supervised by Fishlow, professor
of economics at PUC-Rio, and one of the pioneers of the ‘law and economics’ approach in Brazil; and
Regis Bonelli, PhD by Berkeley with several joint publications with Winston Fritsch and Gustavo Franco.
After serving CADE, Salgado resumed her post at IPEA” (Miola, 2014, p. 263).
74
“As part of the theoretical endeavor of neoliberal economics, NIE [New Institutional Economics]
became a complementary policy program to the objectives previously pursued through structural
adjustments, privatizations, and liberalization: the production of efficient markets. Illustrative of such role
was the conversion of NIE into the theoretical basis of the ‘institutional turn’ taken by the Washington
Consensus in the late 1990s and early 2000s (e.g. as reflected in the World Bank’s famous document
‘Building institutions for markets’, of 2002). Market efficiency, as in the initial years of neoliberal
reforms, was still at the center of both theoretical efforts and policy translations of NIE. […] The primacy
of the market was only to be guaranteed by the appropriate institutions” (Miola, 2014, p. 318).

! 71
técnicas para a adoção das mais variadas reformas de governo a serem implementadas.
Parte importante da explicação da disseminação e da convergência de políticas
econômicas ao redor do mundo está numa trajetória acadêmica comum que passa pela
formação em universidades norte-americanas, centros hegemônicos da produção da
ciência econômica internacional. No caso da política antitruste, essa influência não foi
diferente. Assim como ocorreu em outros países, no Brasil a política antitruste também
foi aos poucos se apropriando de conceitos, técnicas e práticas característicos do direito
concorrencial norte-americano, muito influenciado pelas teorias econômicas de Harvard
e Chicago.

Comparativamente aos Estados Unidos, no entanto, o papel dos economistas no


CADE pode ser descrito como mais central, de um ponto de vista organizacional, para
política de defesa da concorrência. O FTC é um órgão administrativo que realiza as
investigações de condutas e análises de concentrações econômicas, podendo em seguida
atuar como um promotor contra empresas acusadas de práticas ilícitas nas cortes
judiciais. No antitruste norte-americano, os economistas exercem atividade somente
como analistas do FTC ou como pareceristas externos contratados por empresas. Por
outro lado, o CADE, como um órgão administrativo judicante, além de realizar
instruções processuais, dando prosseguimento às investigações e às análises necessárias,
também julga os processos administrativamente. Os economistas nomeados como
conselheiros no Brasil atuam como juízes, dando o parecer final sobre condutas e atos
de concentração empresarial, estando, portanto, hierarquicamente em posição similar
aos juristas no sistema brasileiro. Não há uma única posição do órgão antitruste que
esteja reservada exclusivamente a um jurista ou a um economista, de modo que no
antitruste brasileiro as duas formas de expertise agem de maneira ainda mais integrada
do que na administração pública estadunidense.75

Essa complementaridade entre direito e economia tornou-se ainda mais sólida a


partir dos anos 2000, quando o perfil dos conselheiros e presidentes com formação em
direito começou a se transformar. Miola (2014) descreve que os novos profissionais
nomeados tinham formação acadêmica em direito empresarial em universidades
reconhecidas, em geral com passagens pelos Estados Unidos – seja como alunos de pós-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
75
Há duas únicas exceções: o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do CADE, que exige a
presença de economistas, e a Procuradoria do CADE, que exige profissionais concursados formados em
direito.

! 72
graduação ou por experiência profissional – trazendo um grande conhecimento da
tradição legal daquele país. Entre os 24 juristas nomeados desde 1996, encontramos
doutores pela Universidade de Frankfurt, Universidade de São Paulo, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e Universidade de Paris.76 Muitos trabalhavam em grandes
escritórios de advocacia brasileiros ou estrangeiros, atuando já como reconhecidos
especialistas em direito da concorrência (Miola, 2014). A maioria deles também tinha
familiaridade com as teorias econômicas adotadas na prática antitruste.

A atuação desses juristas e economistas, muito influenciados pelas teorias e práticas


em voga no antitruste norte-americano e com fortes relações acadêmicas no exterior e
conexões com setores empresariais, contribuiu para a imagem do CADE como um
órgão técnico e eficiente, reconhecido internacionalmente (Miola, 2014). Em 2011,
como prova desse reconhecimento, o CADE ganhou o prêmio de “melhor agência
antitruste das Américas”, dado pela publicação Global Competition Review, colocando
o órgão antitruste brasileiro à frente das respeitadas agências norte-americanas Federal
Trade Commission e Department of Justice.77 No importante estudo das trajetórias
intelectuais e profissionais dos funcionários nomeados para o órgão antitruste brasileiro,
Iagê Miola (2014, p. 325) conclui que:

Through this set of measures advanced by lawyers and economists in the


practice of the field, Brazilian competition policy was being aligned with the
broader political and economic impulses that characterized the neoliberal
transformation of the economy and the state. In substantive terms, although
the law of 1994 already consolidated the tenets of neoliberal antitrust policy
developed in the US in the 1980s, as the agents of the field saw it, the law
was being poorly enforced. It was thus through the hands of corporate
lawyers and mainstream economists that the modern standard for antitrust
policy gained specific methodologies and parameters to be applied – and
moreover, that it was effectively and, according to those standards, correctly
applied.

A nova Lei de concorrência no 12.529, aprovada em 2011, contribuiu para a


solidificação do CADE como órgão eficiente, técnico e eficaz, na visão de jornalistas e
especialistas no tema, pois aumentou ainda mais o número de funcionários e o
orçamento disponibilizado para seu funcionamento. As mudanças mais notáveis
ocasionadas pela nova legislação de 2012 referem-se, como já dito, a transformações na

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76
O ex-presidente do CADE entre 2000 e 2004 e professor da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco, João Grandino Rodas, tornou-se, entre 2010 e 2014, reitor da Universidade de São Paulo.
77
Em 2014, o CADE voltou a ganhar esse prêmio pela mesma publicação.

! 73
estrutura do SBDC. A partir de 2012, a SEAE ficou encarregada apenas de atuar na
promoção da concorrência junto a outros órgãos da Administração Pública. A atividade
investigativa e instrutiva dos processos administrativos, antes realizada pela SDE, foi
transferida para um novo departamento, a Superintendência-Geral do CADE. O órgão
ganhou mais poderes, pois agora é responsável tanto pela instrução quanto pelo
julgamento dos processos. Tendo em vista essa unificação de atribuições na mesma
organização, o Congresso aprovou conjuntamente com a lei um reforço no orçamento
do órgão, aumentando-o de R$ 10 milhões para R$ 25 milhões em 2012.

Além disso, criou-se também o Departamento de Estudos Econômicos (DEE)


dentro do órgão, que tem a função de produzir análises e pareceres técnicos para
embasar as decisões da SG ou do Tribunal. Em relação ao Tribunal Administrativo, ele
manteve as funções já anteriormente atribuídas ao CADE, sendo responsável pelo
julgamento dos processos administrativos. Suas decisões são tomadas em sessões
plenárias públicas de julgamento, das quais participam os seis conselheiros e o
presidente. Cada conselheiro leva ao julgamento processos de sua relatoria e lê os votos,
que podem ser acatados ou não pelos outros conselheiros. O resultado do julgamento de
cada um dos processos é obtido pela maioria simples dos votos.

A nova legislação modificou muito pouco a lei anterior de 1994 no que se refere às
práticas consideradas ilícitas e aos procedimentos administrativos no âmbito do CADE.
Sobre a legislação, vale apontar, neste momento, apenas o artigo 36, que tipifica, de
modo idêntico à lei de 1994, as práticas consideradas ilícitas. O texto determina que
constituem “infração à ordem econômica”

os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam
produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar,
falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre
iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar
arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição
dominante.” (Brasil, 2011)

Os próximos capítulos desta tese descrevem as práticas administrativas de


conhecimento envolvidas na instrução processual do CADE, evidenciando o modo
como essas infrações são identificadas e definidas em casos particulares. Porém, quanto
aos efeitos descritos no artigo 36, é relevante o comentário da jurista Paula Forgioni
(2013, p. 143). Segundo ela, a legislação antitruste brasileira tem duas vertentes

! 74
principais, que ela denomina de “almas”: uma relativa à proteção da livre iniciativa e da
livre concorrência e outra relativa à tutela do “consumidor”, no que tange aos abusos
que podem ser cometidos contra eles ou contra outros agentes do mercado, como
fornecedores e distribuidores. Este ponto é relevante já que os responsáveis pela análise
e a investigação de casos particulares estão sempre atentos aos efeitos de condutas e
concentrações tanto em relação ao consumidor e outras empresas, participantes
específicos dos mercados, quanto à “concorrência”, definida, ou melhor, visualizada, a
partir de práticas descritas nos próximos capítulos.

É importante mencionar, finalmente, que muitas das práticas ilícitas contra a ordem
econômica, apreciadas administrativamente pelo CADE, são também passíveis de
serem apreciadas na esfera criminal e cível pelo Ministério Público, conforme
estabelecido na Lei no 8.137 de 27 de dezembro de 1990. O órgão antitruste muitas
vezes atua em coordenação com o MP na investigação de ilícitos à concorrência,
fornecendo informações ou análises, porém, não cabe ao CADE a propositura de uma
ação judicial, sendo esta função exclusiva do Ministério Público. As decisões do
conselho, por outro lado, podem ser levadas à apreciação do Poder Judiciário, que tem o
poder de revisar as decisões tomadas pela autoridade antitruste. Esta possibilidade,
garantida pela Constituição Federal, tem sido utilizada recorrentemente pelas partes
condenadas em processos administrativos visando anular as decisões do órgão antitruste.

1.7. Defendendo e produzindo a concorrência

Neste capítulo, vimos como aos poucos a noção de concorrência torna-se um valor
expressivo e legítimo ao associar-se a noções de liberdade, justiça e eficiência. O
pensamento econômico dos séculos XVIII e XIX foi responsável por dar a esse valor
um estatuto ontológico, natural, que exigiria uma nova relação entre a ação estatal e a
realidade administrada. Embora não tenham sido idealizadas com base num
conhecimento técnico do pensamento econômico, as políticas antitruste foram sendo
justificadas a partir do século XX por teorias desenvolvidas por economistas. Estes
passaram paulatinamente a assumir cargos de importância dentro de órgãos antitruste no
Brasil e no exterior e os argumentos econômicos tornaram-se, assim, essenciais para

! 75
justificar os motivos pelos quais os governos deveriam ou não agir em relação a
condutas ou concentrações empresariais. A política antitruste, que no início do século
XX em países desenvolvidos procurava garantir juridicamente a manutenção de um
valor reconhecido como fundamental por aquelas sociedades – a livre concorrência –
tornou-se cada vez mais um modo de garantir o funcionamento de uma ordem
econômica considerada ideal pelos economistas liberais.

Em mais de um século de existência, a política antitruste sofreu diversas críticas de


pensadores, economistas ou não. Alguns desses, mais à esquerda politicamente,
acreditavam que o capitalismo estava se transformando naturalmente e que a
concorrência não seria (ou nunca teria sido) sua característica fundamental, tornando
todas as tentativas de preservá-la fadadas ao fracasso. Entre eles estavam Lenin e
Marcel Mauss, como mostro no capítulo 4. Para outros autores, como Karl Polanyi
(1944), a política antitruste ilustraria um paradoxo do liberalismo, uma contradição
inerente entre as ideias e as práticas liberais. Em sua obra mais famosa, A Grande
Transformação, Polanyi afirma:

Analysis reveals that not even radical adherents of economic liberalism could
escape the rule which makes laissez-faire inapplicable to advanced industrial
conditions; for in the critical case of trade union law and antitrust regulations
extreme liberals themselves had to call for manifold interventions of the state,
in order to secure against monopolistic compacts the preconditions for the
working of a self-regulating market. Even free trade and competition required
intervention to be workable (Polanyi, 1944, p. 156).

De fato, a política antitruste parece um desafio para a tradição que decorre


principalmente de certas leituras feitas sobre o pensamento de Adam Smith. A
concorrência, como um fenômeno natural dos mercados, não exigiria qualquer forma de
intervenção estatal para se realizar, pois, de acordo com a doutrina do laissez-faire, toda
forma de intervenção produziria resultados econômicos ainda mais desfavoráveis do
que aqueles que seriam obtidos sem qualquer ação governamental. A existência de uma
política que serve para defender a concorrência ou que existe para intervir nos mercados
parece ilustrar, como afirma Polanyi, um contrassenso da doutrina liberal, já que os
mercados supostamente deveriam funcionar naturalmente ou, pelo menos,
predominantemente em livre concorrência. No entanto, entre os liberais do século XVIII
não era de todo irracional a ideia de ações estatais garantindo certas condições para a
prática mercantil ou para o bom funcionamento da economia.

! 76
Como mostrou Albert Hirschman (1977), Sir James Steuart, outro pensador liberal
escocês que escreveu sua principal obra alguns anos antes de Adam Smith, já admitia
ou incluía em suas formulações a possibilidade ou mesmo a necessidade de uma
interferência estatal na economia em determinadas circunstâncias. Para ele, a
“complicada oeconomia moderna” podia ser comparada ao mecanismo de um relógio.
Por um lado, “o relógio é tão delicado que pode ser imediatamente destruído quando
[...] tocado por qualquer mão pouco gentil”. Por outro lado, os mesmos relógios “estão
continuamente deixando de funcionar corretamente, às vezes o ajuste é muito fraco ou
muito forte para a máquina [...] exigindo a mão de um profissional para corrigi-lo”.
Segundo Steuart, portanto, a “oeconomia” requer intervenções pontuais, contanto que
estas sejam feitas sem arbitrariedade ou descuido (Hirschman, 1977, p. 84-87; Gordon,
1991, p. 17). Como apontado por Hirschman e também por Foucault (2007b), a
problematização do modo e da intensidade com a qual a intervenção estatal deve ser
feita na economia é constitutiva do próprio pensamento liberal, mesmo que os críticos
mais influentes do liberalismo clássico não tenham se importado com as sutilezas e as
variações entre seus principais proponentes. Entre críticos ou mesmo entre aderentes,
ainda persiste até hoje uma caricatura do liberalismo como uma doutrina do Estado
mínimo, em geral associada ao pensamento de Adam Smith.

Assim, na perspectiva de um historiador atento como Karl Polanyi, o liberalismo


propagado desde o século XVIII podia ser entendido, em 1944, como uma grande
ficção, uma “falácia economística” – economistic fallacy (Polanyi, 1977), que assumia
um mundo “natural” que ele mesmo se esforçava em produzir por meio de políticas, tais
como as medidas antitruste. Porém, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, a
crítica ao pensamento liberal, se fosse se utilizar da suposta contradição entre ideias e
práticas, enfrentaria um desafio muito mais árduo. O pensamento moderno liberal,
surgido nesse período, fosse aquele proveniente da escola alemã Ordoliberalen, fosse do
neoliberalismo norte-americano, vinculado especialmente à Universidade de Chicago,
difere do liberalismo mais clássico exatamente por não supor uma realidade natural,
composta por mercados nos quais agentes racionais concorreriam livremente e diante da
qual o Estado deveria manter-se distante.78 Pelo contrário, no liberalismo formulado no

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
78
“Early liberalism determines the questions of how to govern in relation to an object-domain which is a
kind of quasi-nature with its own specific self-regulating principles and dynamic. This natural domain is
both what has to be governed and what government must produce or, at least, maintain in the optimum
condition of what naturally it is” (Burchell, 1996, p. 25).

! 77
século XX, os mercados, a concorrência e o homo economicus “existem e somente
podem existir sobre certas condições políticas, legais e institucionais que devem ser
ativamente construídas pelo governo” (Burchell, 1996, p. 23).

Para os novos liberais, portanto, a economia ou os mercados descritos pelos liberais


clássicos continuam sendo os mecanismos mais apropriados para gerar
“desenvolvimento”, “bem-estar” ou “eficiência”. A diferença reside no fato de que, para
os neoliberais, é o governo que deve “conduzir a política da sociedade para que seja
possível a existência e o funcionamento desses mercados” (Gordon, 1991, p. 41).79 O
problema do liberalismo, entendido como uma racionalidade e técnica de governo,
consistiria agora em auxiliar na construção das “condições legais, institucionais e
culturais que permitem um jogo de conduta empresarial artificial e competitivo ser
jogado, visando a melhores resultados” (Burchell, 1996, p. 27).80 A ideia de que a
economia formada por mercados em concorrência e indivíduos racionais é uma
construção artificial do Estado e da lei transforma o naturalismo do pensamento liberal
em uma forma de construtivismo, situando o problema apontado por Polanyi sobre a
contradição entre as ideias e a prática em um segundo plano. O economista Friedrich
Hayek, um dos mais importantes intelectuais do novo liberalismo, deixa claro, em um
texto circulado em 1947 na conferência de Mont-Pélerin na Suíça, a importância da
ação governamental nesse novo paradigma e os problemas que a caricatura usual do
liberalismo impõe para os próprios objetivos liberais:

While it would be an exaggeration, it would be not together untrue to say that


the interpretation of the fundamental principle of liberalism as absence of
state activity rather than as a policy which deliberately adopts competition,
the market, and prices as its ordering principle and uses the legal framework
enforced by the state in order to make competition as effective and beneficial
as possible – and to supplement it where, and only where, it cannot be made

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
79
É interessante observar que, segundo Foucault (2007b, p. 105-106), o ordoliberalismo alemão, que
influenciou diretamente a vertente de Chicago, traz consigo a herança sociológica de Max Weber ao
aceitar, implicitamente, a crítica marxista da economia política clássica. Segundo Marx, os economistas
clássicos não levaram em conta as dimensões legais e institucionais dos mercados e do capitalismo. Para
os ordoliberais, assim como para Weber, o jurídico não é uma mera superestrutura da economia, mas um
aspecto central de sua existência (Gordon, 1991, p. 43).
80
Foucault (2007b, p. 120), ao explicar a noção de concorrência dos ordoliberais, diz: “For what in fact is
competition? It is absolutely not a given of nature. The game, mechanisms, and effects of competition
which we identify and enhance are not at all natural phenomena; competition is not the result of a natural
interplay of appetites, instincts, behavior, and so on. In reality, the effects of competition are due only to
the essence that characterizes and constitutes it. The beneficial effects of competition are not due to a pre-
existing nature, to a natural given that it brings with it. They are due to a formal privilege. Competition is
an essence. Competition is an eidos. Competition is a principle of formalization. Competition has an
internal logic; it has its own structure. Its effects are only produced if this logic is respected. It is, as it
were, a formal game between inequalities; it is not a natural game between individuals and behaviors”.

! 78
effective – is as much responsible for the decline of competition as the active
support which governments have given directly and indirectly to the growth
of monopoly. It is the first and general thesis which we shall have to consider
that competition can be made more effective and more beneficent by certain
activities of government than it would be without them (Hayek, 1948, p. 110).

Pode-se dizer que a política antitruste brasileira atual está em sintonia com essa
nova orientação liberal. A noção de que a concorrência nos mercados não é apenas
defendida, mas também produzida pelo Estado, fica clara quando observamos, por
exemplo, as narrativas sobre o autodenominado “papel educativo” do CADE. Em 1996,
ano da importante nomeação de novos conselheiros, publica-se o primeiro Relatório
Anual do CADE. O Relatório buscava “dar maior transparência para a sociedade sobre
a atividade do órgão antitruste”, proporcionando uma síntese dos processos julgados,
das decisões administrativas tomadas, além de um conjunto de estatísticas sobre a
atividade do órgão no ano. O índice do primeiro relatório divide-se em três partes, que
corresponderiam às três funções do órgão antitruste: (i) o combate às infrações de
ordem econômica, ou o papel repressivo; (ii) o controle de atos de concentração, ou o
papel preventivo; e (iii) a promoção da livre concorrência, ou o papel educativo. Um
trecho do Relatório de 1996 ilustra de forma mais clara a função do “papel educativo”:

Dado o longo período de atuação de um Estado interventor, e de fechamento


do país, a concorrência ainda se constitui um elo estranho às relações
econômicas e seus agentes. Sendo assim, é crucial que o CADE se torne um
instrumento de difusão da cultura da concorrência. Nesse sentido, o CADE
deve ter três papéis complementares e interdependentes: educativo,
preventivo e repressor. O papel educativo representa a própria difusão da
cultura da concorrência no país. Torna-se, assim, uma obrigação do CADE
divulgar e demonstrar analiticamente a importância da defesa da
concorrência de forma a prover um maior grau de intimidade da sociedade
com seus elementos constituintes. No exercício de seu papel preventivo,
basicamente regula as operações que venham a implicar aumento excessivo
do poder de mercado e que, consequentemente, tornem provável a ocorrência
de abusos. Já o papel repressor é o mais óbvio, sendo aquele pelo qual o
público naturalmente reconhece a função de órgãos como o CADE. Ressalte-
se que tanto o papel preventivo como, principalmente, o papel repressor são
fundamentais para o cumprimento do papel mais importante do CADE, que
é o educativo. De fato, o principal efeito da repressão e da prevenção é, sem
dúvida, a sinalização que o mercado obtém a respeito de que tipo de ações e
condutas são toleradas ou não, conforme o critério de razoabilidade
consagrado na jurisprudência moderna do direito econômico (CADE,
Relatório Anual, 1996, p. 25, grifos meus).

O papel educativo do CADE, ou a “advocacia da concorrência”, como também são


conhecidos esses esforços em foros internacionais, era entendido como algo necessário,

! 79
considerando-se a trajetória histórica das formas de relação empresarial brasileira.81
Segundo Considera e Corrêa (2002, p. 3), “o clima ideológico parece não ter favorecido
a concorrência como a regra do jogo econômico; o setor privado não a entende como o
cerne da atividade econômica [...]. Pelo contrário, o clima ideológico parece ter
favorecido a ‘negociação’ entre firmas”. Para os economistas, esse “clima ideológico”
derivava da herança do período de política econômica mais desenvolvimentista ou
intervencionista. Conforme explica Elizabeth Farina (comunicação pessoal), ex-
presidente do conselho, existia na economia brasileira uma espécie de “cultura de
planilha de custos”. Essa cultura refletia-se numa prática empresarial comum desde o
período militar, em que planilhas com os custos das firmas eram repassadas de uma a
outra empresa para que todas pudessem comparar seus preços e organizar sua produção
coordenadamente. Essa prática de cartel não era entendida como ilegal ou imprópria
pelas empresas. Por isso, para a ex-conselheira Lúcia Helena Salgado:

as políticas de defesa da concorrência têm um importante papel a


desempenhar, na medida em que venham, por um lado, a evitar que as
barreiras levantadas pelo governo sejam repostas por aqueles que detêm o
poder econômico e, por outro lado, reeducar o mercado – leia-se aí
produtores e consumidores – de acordo com as regras de intensa competição
que hoje orientam as transações internacionais (Salgado, 1992, p. 30).82

A política educacional explicitada nos relatórios anuais do CADE demonstra como


a política antitruste promovida a partir dos anos 1990 comporta uma nova forma de
governamentalidade, na qual os objetos que busca governar não são considerados dados
ou muito menos naturais. 83 A construção de mercados em que comportamentos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
81
O relatório do biênio 1998/1999 do CADE afirmava: “o nível de conhecimento da legislação é baixo e
o estoque jurisprudencial ainda é reduzido, tornando importante uma atividade de esclarecimento por
parte da autoridade de defesa da concorrência”. E continua: “vários segmentos [...] não conhecem bem a
legislação e/ou ainda não internalizaram os valores concorrenciais. Tal fenômeno é compreensível depois
de várias décadas de prevalência de uma prática e cultura intervencionistas” (CADE, 1998/1999, p. 142).
82
Cumpre notar, entretanto, que o papel educativo do CADE caracterizou-se também por políticas
bastante práticas. Entre 1996 e 2008, o CADE adotou uma série de políticas “educativas” específicas, nos
moldes das medidas adotadas pelo FTC norte-americano. O papel de advocacia da concorrência
desempenhado pelo CADE abrange inúmeras iniciativas que vão desde uma campanha intensiva na mídia
à participação em grupos de trabalho com diversos órgãos governamentais (Considera & Araújo, 2002).
As principais políticas de advocacia da concorrência desse período foram: a criação de fórum permanente
de políticas de concorrência, a criação de um website, a reedição da revista de direito econômico e a
criação de um programa de intercâmbio.
83
Além de modificar a própria realidade, construindo comportamentos e, com isso, mercados mais
competitivos, os relatórios oficiais elaborados nos anos 1990 deixam também explícito o modo como a
política antitruste desse período implicava uma redefinição do próprio papel do Estado. O Relatório
Anual de 1998/1999 enfatiza a importância do papel educativo do CADE, relacionando-o às
transformações de Estado neoliberais que simultaneamente ocorriam no mundo: “Tal papel se reveste de
particular importância em um momento de reformulação do papel do Estado na economia que vem se

! 80
competitivos prevalecem é uma aspiração daqueles profissionais responsáveis pela
implementação da política, juristas e economistas que assumiram, a partir dos anos
1990, cargos de conselheiros e presidentes do órgão antitruste.

A constatação dessa intenção explícita dos profissionais do órgão antitruste é


importante tendo em vista que esta tese se utiliza, como material empírico central, das
práticas de conhecimento performatizadas por eles. Essas práticas visam conhecer certas
características da realidade administrada, das relações empresariais nos mercados, da
relação entre consumidores e vendedores e dos modos de produção ou de venda de
produtos ou serviços, por exemplo. Os profissionais do CADE sabem que suas decisões
ou julgamentos podem alterar ou transformar essa realidade. Por isso, para eles, a
relação entre aquilo que é dado, como a realidade empírica observável, e aquilo que é
formulado teórica ou abstratamente, como os ideais formais, não é tão simples de ser
formulada. Ao descrever as práticas de conhecimento que caracterizam a política de
defesa da concorrência nos próximos capítulos, performatizadas por profissionais de
diferentes formações, procuro apontar não apenas para o modo como objetos e sujeitos,
ou seja, como mercados, agentes econômicos e a concorrência são construídos, mas
também como os profissionais concebem ou interpretam essa construção. Como esta
breve genealogia demonstrou, a política antitruste envolve uma complexa relação entre
teorias econômicas e conceitos jurídicos, além de procedimentos e artefatos específicos
da administração pública. Tão importante quanto mostrar como todo esse complexo
contribui para a defesa e a produção da concorrência, penso ser igualmente relevante
compreender como a relação entre essas diferentes práticas e conceitos produz
convergências e divergências interpretativas ou epistemológicas que caracterizam o
governo da concorrência.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
observando de forma intensa em todo o mundo no último quartel deste século e, em particular, nos países
em desenvolvimento. As agências de defesa da concorrência no plano internacional têm apresentado um
papel cada vez mais proeminente na consolidação dos processos de desregulamentação e liberalização da
economia” (CADE, 1998/1999, p. 137) Podemos compreender essa transformação da política antitruste,
portanto, como parte de um processo mais amplo de formação e transformação do Estado, um novo modo
de conceber e governar a economia.

! 81
Capítulo 2 : Artefatos do antitruste

Entre janeiro e agosto de 2012, participei de seminários e congressos sobre política


antitruste, frequentei sessões de julgamento, enviei diversos e-mails para funcionários
do conselho e conversei com ex-presidentes do CADE, tendo em vista obter acesso para
a realização da minha pesquisa de campo. A partir de abril desse ano, protocolei, no
andar térreo do órgão antitruste, repetidos requerimentos formais, assinados por mim
ou pela coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS)
da UFRJ, solicitando permissão para “realização de trabalho acadêmico” dentro das
dependências do conselho. Essas solicitações foram endereçadas ora ao presidente, ora a
um dos conselheiros, ora à procuradoria do órgão. Entre os envios dos requerimentos e
de modo a compreender quais deveriam ser os próximos passos até que minha
autorização fosse concedida, participei de reuniões com assessores, com o conselheiro e
com o chefe de gabinete da presidência. Todo esse movimento de envio de documentos,
reuniões com assessores e, não menos importante, as viagens frequentes entre o Rio de
Janeiro, onde morava, e Brasília constituíam uma forma de relacionamento com o órgão
homóloga àquela com a qual advogados, representantes das partes, estavam
acostumados na sua rotina de trabalho.84

Como fiquei sabendo meses depois através do conselheiro em cujo gabinete


permaneci, os advogados, então, em conversas paralelas entre eles e com os
conselheiros, costumavam perguntar quem era aquele novo advogado ou estagiário em
direito que agora frequentava semanalmente o órgão.85 De fato, vestir terno e gravata,
acompanhar as sessões de julgamento, marcar reuniões e protocolar requerimentos
caracterizavam práticas comuns dos advogados. Economistas, que prestam consultoria
às empresas, não costumam acompanhar tão frequentemente sessões de julgamento e
jornalistas, que cobrem as decisões do conselho, não usam terno.

Além de movimentos e práticas similares aos dos advogados que entram e saem
diariamente do edifício da Asa Norte da capital, minha inquietação também girava em
torno da circulação, da interpretação e do destino dos mesmos artefatos: os documentos.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
84
Leticia Barrera (2008) relata uma comparação similar em sua etnografia sobre a Suprema Corte
argentina.
85
Quando me refiro a advogados nesta tese, são os advogados representantes das partes envolvidas nos
processos administrativos, e não a bacharéis em direito que trabalham no órgão antitruste.

! 82
No caso dos advogados, a interação com o órgão consistia em convencer assessores ou
conselheiros por meio de petições que as condutas exercidas por seus clientes ou suas
solicitações de concentração empresarial não eram preocupantes do ponto de vista da
legislação concorrencial. Já meus seguidos requerimentos argumentavam que a pesquisa
idealizada não seria preocupante para o conselho em termos jurídicos ou
administrativos. Nosso objetivo mútuo, meu e dos advogados que trabalhavam para
empresas, era acompanhar e interferir, na medida do possível, na vida estatal dos
documentos, de modo que a interpretação deles não nos prejudicasse.

No meu caso, não era simplesmente a interpretação e o destino dos meus


requerimentos que estavam em suspense, mas principalmente a minha relação com os
demais documentos que circulam no CADE. A principal dificuldade de entrada no
campo decorreu de um parecer produzido pela procuradoria do órgão, em resposta ao
meu requerimento, sobre as condições em que seria realizada minha pesquisa. No
entender do conselheiro e de sua assessora, a procuradoria exigia que minha presença
no seu gabinete fosse autorizada caso eu tivesse acesso apenas aos documentos
“públicos” dos processos administrativos e não aos volumes “confidenciais”. Com esta
restrição, meu trabalho de campo poderia se tornar inviável, visto que volumes
“confidenciais” estavam espalhados por todas as mesas do gabinete. Alguns meses
depois, com uma nova avaliação do mesmo parecer por outro funcionário do órgão, esta
restrição foi flexibilizada e a pesquisa pôde enfim ser realizada.

Assim, a partir do momento em que busquei autorização para pesquisar no CADE,


iniciei uma forma de relacionamento com o órgão mediada por documentos cujo
conteúdo versava, vez por outra, também sobre a possibilidade ou não de visualizar
outros documentos. Este capítulo descreve essa relação com os documentos a partir do
momento de “entrada no campo” e, em seguida, por meio da descrição de práticas
rotineiras do gabinete de um dos conselheiros do Tribunal Administrativo do órgão
antitruste, onde permaneci entre agosto de 2012 e março de 2013. Procuro mostrar que,
na prática, o funcionamento da política antitruste depende, antes de tudo, de certas
“práticas de documentação”, ou seja, práticas de juntar, receber, enviar, organizar,
armazenar documentos e práticas de registrar, redigir e interpretá-los.

A literatura antropológica recente sobre documentos vem argumentando que eles


são mais do que apenas instrumentos de racionalização (Weber, 2005 [1922]) que

! 83
facilitam as tarefas de variadas maneiras de organização – sejam elas órgãos
governamentais, tribunais, empresas, prisões, departamentos policiais ou ONGs (ver
Riles, 2006a). 86 Algumas dessas etnografias, realizadas em burocracias ou órgãos
estatais (p.ex., Latour, 2002; Lewandowski, 2014; Lowenkron & Ferreira, 2014),
enfatizam que as diferentes formas materiais de documentação ou comunicação e as
práticas que envolvem essas materialidades são constitutivas de relações, subjetividades,
hierarquias, emoções e sentidos, além dos próprios objetos cuja organização procura
administrar ou governar (Hull, 2012b; Mosse, 2004). A relação dos funcionários dessas
organizações com os documentos que as permeiam fornece, portanto, uma perspectiva
particularmente favorável para se observar o modo como uma organização como o
CADE governa a concorrência e o que está envolvido nessa tarefa.

Antropólogos como Matthew Hull (2012a) e Annelise Riles (2000, 2006b) têm
descrito documentos como “artefatos”, sublinhando que sua importância para as pessoas
que com eles se relacionam não deriva apenas do seu conteúdo, mas também de sua
materialidade ou forma. Do mesmo modo, utilizo a expressão artefato, indicando
principalmente os documentos presentes nas práticas antitruste, como uma alternativa a
“texto” ou “representação” com o objetivo de enfatizar tanto os aspectos discursivos e
referenciais das formas burocráticas de documentação quanto suas características
materiais ou estéticas – como a organização do espaço gráfico, modelos de documentos,
suas qualidades sigilosas ou eletrônicas, tipos de armazenamento, entre outras. Segundo
Annelise Riles (2000, p. 186), documentos podem ser concebidos como artefatos
quando “chamam a atenção para a forma” e não apenas para seu conteúdo.87 Neste
capítulo, identifico esses artefatos em negrito quando aparecem pela primeira vez no
texto.

Tal concepção dos documentos parece apropriada quando observamos as práticas


de um órgão administrativo e judicante, nas quais a circulação e produção de
documentos respondem a procedimentos estritos da administração pública. O trabalho
de instrução e julgamento de processos administrativos, principal função do conselho,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
86
O papel dos documentos nas burocracias tem longa trajetória de reflexão nas ciências sociais. Sobre
esta tradição ver Hull (2012b).
87
Matthew Hull (2012a, p. 259) prefere utilizar o termo graphic artifacts por algumas razões: “First,
many of the ongoing semiotic processes that involve artifacts are not well enough defined to be
characterized as ‘texts’. Second, I wish to define a certain class of artifacts, written materials, and to
emphasize the non- and para-linguistic semiotic functions of this type of artifact. One last point about this
term: the word ‘artifact’ sometimes has the connotation of a second byproduct of some prior or primary
process [...] I don’t use it in this sense”.

! 84
pode ser essencialmente descrito, de certo ponto de vista, como a produção, a
organização, o envio e o recebimento de documentos de tipos determinados, cada um
com seus efeitos e usos, produzidos e circulados diferentemente. Em sua etnografia
sobre o Conseil d’État na França, órgão superior de direito administrativo neste país,
Bruno Latour (2002) ilustra a relação entre os procedimentos e o caráter legal dos
documentos. Segundo ele, um conjunto de papéis torna-se um processo administrativo,
juridicamente produtivo, somente no momento em que entra no órgão, é amarrado com
um barbante, numerado e organizado em prateleiras. Igualmente, para que uma decisão
do CADE tenha um efeito administrativo e legal, os procedimentos devem seguir ritos
previamente definidos. Documentos devem ser escritos conforme modelos
preconcebidos, circulados conforme as regras da administração pública e
disponibilizados somente para pessoas autorizadas, conforme o “devido processo legal”.

A preocupação em garantir a legalidade da instrução processual foi, por exemplo,


aquilo que dificultou minha entrada no CADE. O requerimento para a realização da
pesquisa dentro do gabinete de um conselheiro gerou a necessidade de uma reflexão por
parte de procuradores federais, assessores e do próprio conselheiro sobre as formas de
relacionamento entre o pesquisador e os documentos do órgão. Quais eram os tipos de
documentos que poderiam ser lidos por mim, como eles poderiam ser reproduzidos e
onde estariam localizados eram algumas das perguntas que deveriam ser
adequadamente elaboradas na redação de um termo de compromisso para permitir a
minha presença e o desenvolvimento da pesquisa.

Este capítulo descreve o modo como os funcionários do CADE atentam para a


estética, a organização e a circulação dos artefatos que permeiam as práticas de
instrução processual, procurando mostrar as formas de relações com os documentos e
aquilo que elas produzem. As primeiras três seções deste capítulo descrevem o percurso
realizado pelo pesquisador até a entrada efetiva num gabinete do Tribunal
Administrativo de Defesa Econômica. Procura-se ressaltar o modo como essa entrada,
realizada num momento crítico de transição institucional e física do órgão, exigiu tanto
o acionamento de relações pessoais quanto de instrumentos mais formais da prática
burocrática: os documentos.

As outras três seções do capítulo descrevem as práticas de documentação


envolvidas na instrução processual a partir do gabinete de um dos conselheiros do

! 85
Tribunal, enfatizando o modo como diferentes profissionais, como a secretária, os
estagiários e os assessores, “mexem” e “cuidam” desses artefatos, levando em
consideração tanto seus aspectos formais e materiais quanto seus aspectos referenciais.
Descrevo principalmente duas características desses artefatos que são particularmente
importantes para esses profissionais: sua temporalidade e sua confidencialidade. A
temporalidade de alguns tipos de processos, que podem ter seu prazo expirado, impõe
restrições à ação dos funcionários do gabinete e exigem a construção de mecanismos
para organizar ou gerir os documentos. Se a temporalidade limita a ação de quem está
dentro do órgão antitruste, por outro lado, o acesso restrito que alguns documentos
podem ter limita a possibilidade de ação de quem não faz parte do CADE. Descrevo
como a confidencialidade dos documentos é producente de uma separação entre
perspectivas de dentro e fora do CADE, não apenas pela imposição de um limite
interpretativo, mas também pela restrição da circulação das pessoas dentro do órgão.

2.1. Um “momento de transição”

Durante a concepção do projeto de pesquisa que resultou nesta etnografia, pareceu-


me evidente que a possibilidade de acessar o órgão de defesa da concorrência e
presenciar o trabalho desenvolvido por seus funcionários derivava especialmente de
uma particular trajetória acadêmica e profissional que eu havia traçado. Ainda no
mestrado, a opção de pesquisar a política de defesa da concorrência decorreu
principalmente por eu ter estagiado numa consultoria econômica especializada em
regulação e concorrência (G.O. Associados), presidida por um ex-presidente do CADE,
o economista Gesner Oliveira, professor da Escola de Economia da FGV-SP. Essa
experiência profissional me tornou familiarizado com o tema e facilitou minha busca
por novos contatos e informantes para a pesquisa, tanto dentro como fora do CADE.
Coincidentemente, no curso de graduação em economia da USP, havia cursado duas
disciplinas (Microeconomia I e II) com outra ex-presidente do CADE, a também
economista Elizabeth Farina, uma das principais referências acadêmicas em economia
do antitruste no país.88 As relações com outros economistas e advogados da área,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
88
“Elizabeth Mercier Querido Farina, 51. An economist graduated from USP in 1976, with a PhD in
industrial organization obtained from the same university in 1983, Farina is often reputed as one of the
“pioneers” of antitrust economics in Brazil. She was a professor of microeconomics and industrial

! 86
decorrentes das entrevistas realizadas no meu mestrado, também facilitaram a
pesquisa.89

Embora essas relações formadas com ex-presidentes e ex-conselheiros do CADE


trouxessem uma relativa segurança em relação à possibilidade de realizar uma pesquisa
no interior do órgão antitruste, optei inicialmente por me inserir no órgão através do
programa de intercâmbio realizado duas vezes ao ano pelo CADE. Pensava que assim
não incomodaria meus contatos e me incluiria de forma mais legítima – conforme ritos
oficiais burocráticos – no dia a dia da organização. O chamado PinCADE (Programa de
Intercâmbio do CADE) é aberto a estudantes de pós-graduação de todas as áreas que
tenham interesse em aprender sobre o trabalho do órgão antitruste e tem como objetivo
principal a “disseminação da cultura da concorrência” no Brasil. O programa, que tem a
duração de três semanas, inclui aulas teóricas e um período de trabalho em algum setor
do conselho. O PinCADE atrai majoritariamente estudantes de pós-graduação em
economia e direito, embora mais recentemente também tenha atraído estudantes de
relações internacionais ou de administração pública.

Um estudante de antropologia no PinCADE seria novidade, porém, antes de sair o


resultado dos candidatos aprovados, o programa de janeiro de 2012 foi cancelado
devido à impossibilidade de o conselho organizá-lo a tempo. Segundo um funcionário
do órgão, todos os setores do conselho estavam operando naquele momento no “limite
de suas capacidades”, tendo em vista a transição do órgão para uma nova localização
em Brasília e a preparação para a entrada em vigor da nova lei de concorrência, que
alteraria muitos procedimentos internos da autarquia. O cancelamento do programa fez
com que o início de trabalho de campo se restringisse às sessões de julgamento
quinzenais do órgão, todas elas abertas ao público. A entrada na sessão, sempre às
quartas-feiras, exigia somente o preenchimento do nome e de um número de identidade
numa folha de papel.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
organization, and dean of the department of economics of USP by the time of her appointment, and had
experience working as an economic consultant in antitrust cases presented before CADE, and in
publishing academic pieces about competition policy […] After serving as CADE’s president until 2008,
in 2012 Farina retired as a professor, and became the president of the Sugar Cane Industry Union in
Brazil (UNICA), the largest industrial association of the sectors of sugar and bioethanol production. In
2013, she was appointed a member of FIESP’s Council of Agribusiness” (Miola, 2014, p. 287).
89
Somando-se a essas relações pessoais, minha orientadora de mestrado, a professora Ana Cristina Braga
Martes, da FGV-EAESP, era casada com um ex-conselheiro do CADE, o jurista e professor da
Universidade de São Paulo, Ronaldo Porto Macedo, que participou da minha banca de qualificação de
mestrado.

! 87
Os votos e as discussões das sessões de julgamento do CADE são pouco
compreensíveis para ouvintes não muito familiarizados com o direito ou a economia da
concorrência. É comum que jornalistas, no final do julgamento de um processo,
aproximem-se dos assessores dos conselheiros ou de advogados para que estes
expliquem de forma mais simples aquilo que foi decidido pelo plenário. Não é raro
também que advogados peçam para seus pares um esclarecimento sobre algo discutido
no julgamento. Além disso, há poucas controvérsias entre os conselheiros e raros
discursos memoráveis de advogados. A maior parte dos julgamentos é decidida em
comum acordo entre os conselheiros, sem discussão entre eles. Muitos meses depois,
um assessor me explicou que essa dinâmica dos julgamentos do CADE era proposital,
um espécie de performance (como todo julgamento) que visava produzir uma imagem
de tecnicidade e unidade para o conselho. Também aprendi depois que no dia anterior a
todo julgamento público, os conselheiros, o procurador-geral do órgão e o presidente se
reúnem de portas fechadas para discutir os casos que serão apresentados e “evitar
qualquer surpresa desagradável” na sessão pública, ou seja, qualquer desacordo mais
contundente entre os conselheiros. Chama-se essa reunião de “seminário interno” ou de
“plenarinho”90.

Segundo um dos conselheiros, a intenção dessas reuniões era promover uma


direção única para a política de defesa da concorrência. De acordo com ele, procurava-
se dar uma orientação governamental “sem ambiguidades” àquilo que se consideravam
práticas ilícitas ou lícitas pelo órgão. O desacordo ou a controvérsia nos julgamentos
poderia suscitar múltiplas interpretações por parte dos administrados, ou seja, das
empresas que atuam no Brasil. Se, por um lado, essa performance podia ajudar nos
objetivos de política econômica, por outro lado, não parecia contribuir para o meu
trabalho etnográfico, pelo menos da forma como eu imaginava que ele seria realizado
naquele momento. Tornando o julgamento público, por assim dizer, asséptico, produzia-
se o efeito de que a produção de sentidos e efeitos da política antitruste seria encontrada
somente na observação da elaboração dos votos pronunciados pelos conselheiros-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
90
Sobre essa prática, o livro comemorativo de 50 anos da política de defesa da concorrência explica:
“uma prática iniciada nesse período, a realização do seminário interno, se mantém até hoje. Trata-se de
uma reunião, realizada na véspera da sessão pública de julgamentos, na qual os conselheiros se encontram
para discutir pontos de vista, ideias, experiências e trocar informações gerais sobre os temas que
envolvem os casos a serem julgados. Naquele final dos anos 1990, quando a prática se estabeleceu, o
Cade ainda carecia de instrumentos materiais, como apoio para pesquisas de jurisprudência, e os
seminários internos serviam para prover os conselheiros de melhores condições e respaldo técnico para
realização de suas análises e conclusões” (CADE, 2013a, p. 61)

! 88
relatores, em particular na análise antitruste restrita ao acesso do público. Acompanhar
o julgamento não parecia muito diferente para mim do que ler os votos que eram
disponibilizados no website do CADE no mesmo dia.

Por isso, parecia inevitável acompanhar, observar e participar das atividades


internas do órgão a partir de outra perspectiva. Procurei, portanto, a professora
Elizabeth Farina, que enviou um e-mail para o então presidente do CADE, Fernando
Furlan, perguntando sobre a possibilidade da realização da pesquisa.91 Furlan estava de
saída do Conselho e encaminhou o pedido para um funcionário da “área processual” do
CADE que demorou algumas semanas para responder que o novo presidente substituto,
Olavo Chinaglia, teria dito que o “momento de transição” pelo qual passava o órgão
impossibilitava a realização da pesquisa.92 Nesse período, advogados e advogadas, fosse
em conversas na ponte aérea Rio-Brasília, fosse no intervalo das sessões de julgamento,
vinham me alertando continuamente para que eu repensasse minha “metodologia de
pesquisa”, tendo em vista o período conturbado do conselho.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
91
“Fernando Magalhães Furlan, 39. Furlan held two undergraduate degrees by the time of his
appointment: in law, obtained from UnB in 1993, and in management, obtained from the State University
of Santa Catarina (UDESC), in 1990. Besides having a master’s degree in International Relations, and a
PhD in Political Science, both obtained from the University of Paris I – Pantheón Sorbonne, between
2000 and 2006, Furlan had also attended a program on management of governmental performance,
organized by Harvard University School of Government and School of Business (2005), and a program
on international economic diplomacy at Georgetown University (2004). A professor of law in Brasília
between 1995 and 1998, since the early 1990s Furlan occupied positions in government. Between 1991
and 1993, he was a legal advisor at the National Congress, first of his father’s office, a representative
elected by the PPB, and later in the office of Inocêncio Oliveira, of the PFL. In 1994, he became a public
official at the Brazilian Supreme Court (STF), and served until 1995. He also worked as an executive of
foreign relations at the Brazilian food conglomerate Sadia SA (1995-2001), and as a foreign associate of
McDermott, Will & Emery, in Chicago and Washington (1996), and of O’Connor and Company (1997)
in Brussels, in the areas of international trade and World Trade Organization (WTO). In 2001, after
participating in the internship program PinCADE, Furlan was appointed Attorney-General of the council,
and served until 2003. From 2003 to 2007, he was the Chief of Staff of the Ministry of Development,
Industry, Commerce and the Director of the Department of Economic Defence. The Minister between
2003 and 2007 was Luiz Fernando Furlan, who until then was the CEO of Sadia SA and Furlan’s cousin.
After serving as a commissioner for two years, Furlan was CADE’s president between 2010 and 2012.
Since 2013, he owns a consultancy firm on competition policy, international trade, and regulation” (Miola,
2014, p. 300).
92
“Olavo Zago Chinaglia, 33. Graduated in law from USP in 1996, Chinaglia obtained an MBA in
corporate law in 2003, and a PhD in corporate law from USP in 2008. A professor of business law since
2002, Chinaglia was a corporate and competition lawyer since graduation, working as an associate at L. O.
Baptista Advogados (1997-1999), Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados (1999-2000), and later as a
partner at Advocacia Del Chiaro (2000-2006 – founded by José Del Chiaro, former SDE between 1989
and 1991), and Velloso, Pugliese e Guidoni Advogados (2006-2008). Chinaglia was the son of Arlindo
Chinaglia, a congressman of the Worker’s Party (PT) and president of the House of Representatives by
the time of Olavo’s appointment to CADE. After leaving CADE in 2012, since 2013 Chinaglia is a
partner and coordinator of the competition law area of Veirano Advogados, and a consultant of the
International Competition Network (ICN)” (Miola, 2014, p. 301).

! 89
A professora Farina colocou-me também em contato com um funcionário da
Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE-MF), Ricardo Faria. A legislação
de 1994 estipulava que a análise econômica de atos de concentração, chamada de
“análise estrutural dos mercados”, deveria ser feita primeiramente pela SEAE, sendo
depois enviada ao CADE para julgamento ou instrução complementar. Como minha
pesquisa tinha a intenção de investigar as práticas envolvidas na análise dos processos
administrativos, a entrada e o acompanhamento da atividade da SEAE também seriam
necessários para descrever etnograficamente práticas de conhecimento antitruste.
Contudo, faltando alguns meses para a entrada em vigor da nova lei, a SEAE também
passava por uma fase de transição e a procuradoria do órgão não estava autorizando
mais a entrada de estagiários. A análise que até então era realizada na SEAE passaria a
ser feita pela Superintendência-Geral do novo CADE a partir de julho. Segundo Ricardo
Faria, alguns funcionários da SEAE já estavam ensinando a funcionários do CADE
como fazer essa análise. Não haveria mais “análise antitruste” para acompanhar dentro
desta Secretaria, cuja função ficaria restrita à “advocacia da concorrência”, realizando
estudos e pareceres para o Ministério da Fazenda, considerando aspectos concorrenciais
dos setores da economia brasileira.

A transição do CADE para o chamado “Super CADE” transformava, portanto, o


projeto de pesquisa. Devido ao fato de que a instrução dos processos administrativos
seria agora integralmente realizada dentro do próprio CADE e não mais dividida entre a
SEAE e a SDE, seria irrelevante a partir de então compreender o funcionamento destas
secretarias, que teriam uma função marginal na política de defesa da concorrência.
Tendo sido adiada a minha possibilidade de entrada no CADE para, pelo menos, o final
do ano, a presença nas sessões de julgamento parecia ser a única possibilidade de
compreender o antitruste na sua prática.

2.2. Redes pessoais e institucionais

Se até o momento a transição legal e, conjuntamente, a transição física do órgão


tornavam pouco propícia a realização da pesquisa dentro do CADE, o encontro anual da
International Competition Network (ICN) no Rio de Janeiro, em abril de 2012,

! 90
contribuiu para alterar esta perspectiva. A ICN é uma organização ou uma “rede virtual”
que “proporciona a órgãos de defesa da concorrência um espaço informal para manter
contatos frequentes e endereçar preocupações práticas da política concorrencial” (ICN,
2009). Conforme explica o website da rede, a globalização crescente das empresas faz
com que casos antitruste similares sejam cada vez mais frequentes, visto que grandes
empresas fusionam-se em diversas jurisdições ao mesmo tempo. Nesse contexto, a ICN
contribuiria ao promover a adoção de “padrões e procedimentos superiores na política
concorrencial ao redor do mundo”, formulando propostas para a “convergência
procedimental e substantiva” e facilitando a cooperação internacional. A convergência
seria benéfica para “agências membros, consumidores e as economias dos países” (ICN,
2009, p. 2).

Criada em 25 de outubro de 2001 por autoridades antitrustes de 14 países, a rede


tem atualmente como membros 107 autoridades antitruste nacionais ou multinacionais
(como a Comissão Europeia). A ICN não tem funcionários próprios e funciona com a
participação de funcionários das agências antitruste filiadas à rede. As plataformas de
comunicação disponibilizadas no website da rede e os eventos que promove são sua
principal forma de existência. Seu funcionamento se dá por meio de grupos de trabalho
virtuais entre funcionários de diferentes órgãos antitruste, que organizam workshops
regularmente para discutir por telefone, pela internet ou por meio de plataformas
eletrônicas temas relacionados à prática antitruste. As conclusões que resultam desses
grupos de trabalho são divulgadas como recomendações de “melhores práticas” (best
practices) que podem ou não ser implementadas pelas agências vinculadas à rede. Uma
série de acordos bilaterais ou multilaterais tem sido promovida a partir desses trabalhos.

A ICN tem servido em parte como um substituto da existência de uma entidade


internacional sobre o tema do antitruste. Não há nessa esfera de política pública um
organismo internacional com poder decisório e multilateral, como, por exemplo, a
Organização Mundial do Comércio (OMC), que exerce esse papel no âmbito da política
comercial internacional. Como resultado disso, há mais de 50 anos o mais famoso cartel
do mundo, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), funciona sem
qualquer restrição governamental internacional.93 As fusões, as aquisições ou os cartéis

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
A OPEP é uma organização intergovernamental permanente, sediada em Viena, Áustria, criada na
Conferência de Bagdá em 1960. Composta atualmente por 12 países, entre os maiores produtores de
petróleo do mundo, seu objetivo é unificar e coordenar as políticas de produção de petróleo entre os

! 91
entre empresas que atuam em diversos países do mundo são avaliados somente a partir
de cada jurisdição, de acordo com suas próprias legislações concorrenciais ou antitruste.
A ICN, assim como o Global Forum on Competition organizado pela OCDE,
proporciona um espaço de diálogo do qual podem surgir práticas convergentes entre os
países, embora isto não tenha resultado numa política internacional de defesa da
concorrência.94

Segundo um professor de economia da Universidade de Hong Kong, Thomas


Chang, que se tornou meu interlocutor durante grande parte do evento no Rio de Janeiro
(atualmente um conselheiro da recém-implantada agência antitruste de Hong Kong), a
ICN serve principalmente aos interesses de grandes escritórios de advocacia norte-
americanos, representados pela American Bar Association (ABA), a ordem de
advogados dos Estados Unidos, ou europeus, que se beneficiam de convergências legais
e procedimentais na prática antitruste. Quanto mais países adotarem as “melhores
práticas regulatórias”, em geral práticas, conceitos e técnicas concebidos no antitruste
norte-americano ou europeu, maior será a probabilidade de esses escritórios, já
familiarizados com tais práticas, atuarem em causas nas mais variadas jurisdições. A
convergência é, portanto, financeiramente interessante para esses escritórios.95

A realização do evento no Brasil, organizado pelo CADE, embora não fosse


financeiramente interessante para o conselho – o Ministério da Justiça pagou os custos
de aluguel das instalações e hospedagem, transporte e alimentação de muitos
convidados – era certamente politicamente desejada. O CADE, que já havia ganhado o
reconhecimento de “melhor agência antitruste das Américas”, procurava se posicionar
como um dos mais respeitados órgãos antitruste do mundo. No início da sessão de
julgamento após o evento da ICN, o presidente do CADE afirmou que o evento havia
“sedimentado o Brasil no cenário internacional” e demonstrado a “capacidade dos
conselheiros e do órgão antitruste brasileiro”. O evento também serviu como plataforma
para a divulgação da nova legislação que entraria em vigor a partir da metade do ano,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
países-membros, “garantindo a estabilização dos mercados de petróleo para assegurar uma oferta regular,
eficiente e econômica de petróleo aos consumidores, uma receita estável para os produtores e um retorno
justo de capital para aqueles que investem na indústria do petróleo” (http://www.opec.org/
opec_web/en/about_us/24.htm).
94
O Global Forum of Competition também funciona, como a ICN, promovendo “melhores práticas” entre
agências de defesa da concorrência por meio de eventos e workshops.
95
Sobre os interesses em jogo na construção da ICN e sobre seu papel em contribuir para a convergência
de práticas e regimes legais, ver Aydin (2010).

! 92
buscando reforçar uma imagem de solidez institucional. Conforme folhetos explicativos
em inglês, distribuídos pelo CADE durante o encontro, a lei representava um “marco
histórico e decisivo para o desenvolvimento da política de defesa da concorrência no
Brasil”.

Em março de 2012, ao descobrir que a 11a conferência anual da ICN seria no Rio
de Janeiro, fiz a inscrição pela internet sem ter certeza sobre os requisitos necessários
para participar deste evento. No dia seguinte, recebi um e-mail do mesmo Ricardo Faria
da SEAE com quem havia conversado uma semana antes. Ricardo, coincidentemente,
havia recebido meu pedido de inscrição, pois ele era um dos responsáveis pela
organização. Ele disse que tentaria me incluir na cota de participantes da SEAE como
um “NGA” (Non-Governmental Advisor) indicado pelo Ministério da Fazenda. Esta
posição me permitiria assistir a todos os workshops e conferências do evento, em geral
restrito a funcionários das agências antitruste, acadêmicos (economistas ou juristas)
renomados, advogados e consultores reconhecidamente atuantes na esfera do antitruste.

Confirmada a inscrição, acompanhei os quatro dias de evento, entre 17 e 20 de abril,


no centro de convenções do Hotel Royal Tulip no bairro de São Conrado. Algumas das
dezenas de painéis, mesas redondas e palestras que ocupavam todo o centro de
convenções do hotel tinham como título: “análise de fusões”; “cooperação internacional
na investigação de cartéis”; “negociando acordos”; “direito da concorrência na América
Latina”; “administrando recursos humanos”; “trabalhando com tribunais e juízes”; ou
“desafios práticos na aplicação de testes de preço predatório”. As contribuições eram
feitas majoritariamente por funcionários de órgãos antitruste do mundo, em geral
conselheiros (commissioners), e em menor número por acadêmicos e consultores,
economistas e advogados renomados que, na maioria das vezes, tinham tido uma
experiência profissional no setor público. As mesas redondas eram organizadas de
modo que houvesse sempre profissionais de diferentes países ou mesmo de diferentes
continentes em diálogo. A ideia era que cada um apresentasse suas experiências locais,
ou seja, suas dificuldades, estratégias e práticas na implementação das medidas
antitruste, para que consensos ou soluções fossem aos poucos sendo forjados.

Esse “intercâmbio de experiências” que, segundo o professor Chang, caracterizava


o evento, era facilitado por uma linguagem comum, híbrida, como descreveu na ocasião
o economista e ex-conselheiro do CADE César Mattos: “fala-se um ‘antitrustês’, algo

! 93
que mistura o conhecimento jurídico e o econômico”96. Não por acaso o professor
chinês era formado em direito pela Universidade de Harvard, com mestrado em
economia pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology). A facilidade com que
profissionais de diferentes países discutiam questões relativas à política antitruste só é
possível, como explicado no capítulo anterior, pelo fato de técnicas, conceitos e práticas
serem extremamente similares em diferentes jurisdições, mesmo com tradições jurídicas
ou trajetórias políticas diversas. O evento organizado pelo CADE e pela ICN
exemplificava claramente como essa linguagem comum estava consolidada.

Entre difíceis discussões sobre os desafios da legislação antitruste – “como lidar


com empresas estatais?” – ou sobre as práticas dos órgãos antitruste – “como construir
uma base de dados eletrônica para acompanhar as decisões, resultados e problemas do
passado?” – que conduziam à recomendações jurídicas, teóricas e administrativas, era
nítida a importância dada àquilo que os relatórios anuais do CADE chamam de “papel
educativo” da autoridade antitruste. Nada menos que uma manhã toda foi dedicada a
painéis sobre como órgãos antitruste poderiam “explicar os benefícios da concorrência”
para governos, empresas, para a imprensa e para o “público geral”. Um ex-conselheiro
do CADE, agora advogado em um grande escritório, disse em um dos painéis que uma
das tarefas de um órgão antitruste é explicar o que é a concorrência de mercado,
fazendo com que os “agentes econômicos” incorporem uma “ética concorrencial”.

Porém, de acordo com alguns participantes com os quais conversei, a incorporação


da “concorrência” pelos “agentes econômicos” era um desafio ainda maior em certas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
96
“César Costa Alves de Mattos, 43. Mattos graduated in economics from UnB in 1986, obtained a
master’s degree in economics, with a dissertation of stabilization policies, from PUC-Rio in 1991,
supervised by Gustavo Franco, and a PhD in economics from UnB in 2001, with a thesis on regulatory
reform of the telecommunications sector. During his PhD, he was a visiting student at Oxford University.
In 2005, he was a visiting scholar at the Haas School of Business of the University of California, at
Berkeley. The author of several publications on antitrust economics, Mattos edited two books about
economic analysis of competition policy and the “antitrust revolution in Brazil”, both quoted in this
dissertation (Mattos 2003, 2008). At least one of his publications was co-authored with Gesner Oliveira,
CADE’s president between 1996-2000. As a professor of economics, Mattos thought several courses on
“economic analysis of law and regulation”, microeconomics and competition policy. In 1995, Mattos was
approved a public official in the position of financial analyst at the Ministry’s of Finance National
Treasury. In 2002, he became an economic advisor of the National Congress. Also active in political
positions, between 1993 and 1994 he was an advisor to the World Bank’s mission in Brasília, in 1994,
Mattos was part of the technical staff of Fernando Henrique Cardoso’s campaign, and later became the
advisor of José Serra and of PSDB’s office in Congress. Between 1996 and 1999, he was an assistant to
CADE’s president, Gesner Oliveira (with whom he had worked previously at the Secretariat of Economic
Policy), and in 2002 he was appointed deputy secretary of international affairs at the Ministry of Finance,
where he stayed until May 2003, despite the change of government. Between 1999 and 2001, he was
hired as an economic consultant at the multinational law firm Baker & McKenzie. After leaving CADE in
2010, Mattos resumed his career as a public official in the National Congress.” (Miola, 2014, p. 301)

! 94
localidades. Durante uma palestra, um advogado norte-americano de meia-idade me
disse: “Concorrência?”, perguntou ele apontando para dois conselheiros da autoridade
antitruste da Armênia, “aqueles ali ainda não têm nem mercados [...] precisam fazer
mercados antes de pensar nisso”. Parecia evidente para os profissionais do antitruste,
dado os painéis e as palestras do evento, que a política de defesa da concorrência ou
antitruste ali discutida não consistia somente em ações para prevenir ou reprimir
condutas empresariais potencialmente prejudiciais à concorrência, mas antes de tudo em
produzir a própria concorrência, incluindo aquilo que a concorrência supostamente
pressuporia, ou seja, os “mercados” e os “agentes” que neles atuam. Esta concepção
sobre os objetivos da política antitruste e sobre as próprias condições de existência da
“concorrência” acabou sendo fundamental, como ficará mais claro nos próximos
capítulos, para o meu próprio modo de observar e descrever as práticas envolvidas na
instrução de processos administrativos.

Além de proporcionar uma prévia de problemas, dificuldades, formas de


conhecimento e profissionais que poderiam ser esperados em um órgão antitruste, o
evento da ICN também tornou a entrada no CADE mais provável. Durante o evento,
Ricardo Faria me apresentou a vários funcionários da SEAE e do CADE, além de
alguns advogados e economistas, sabendo que minha pesquisa poderia se beneficiar
desses encontros e contatos. Durante um dos muitos coffee breaks, conheci um
conselheiro (daqui por diante Carlos) que se interessou pelo meu projeto de doutorado,
mesmo eu o tendo resumido em apenas dois minutos. Descrevi minha pesquisa dizendo
que buscava compreender a relação entre o conhecimento jurídico e o econômico,
dando ênfase às formas de conhecimento e às técnicas utilizadas no antitruste. Embora
fosse correta minha descrição, não ressaltava tanto o fato de estar fazendo um trabalho
em antropologia, acreditando que isto pudesse ser entendido como uma descrição dos
interesses políticos e econômicos em jogo na análise e no julgamento antitruste – algo
que poderia eventualmente prejudicá-lo profissionalmente e pessoalmente. Em
contrapartida, sublinhava minha trajetória como economista e minhas relações pessoais
com ex-funcionários do órgão, buscando trazer certa segurança quanto aos limites do
meu projeto.

Para minha surpresa, era exatamente a pesquisa em antropologia que o interessava.


Segundo ele, economista de formação, ex-funcionário da SEAE e que havia sido
recentemente nomeado conselheiro do CADE, “seria bom ter alguém para conversar

! 95
sobre o trabalho no dia a dia”. Carlos pediu-me para que eu o procurasse na próxima
sessão de julgamento para que ele se lembrasse de perguntar aos seus pares como minha
pesquisa poderia ser realizada. Se o evento havia me inserido mais profundamente no
universo das dificuldades e dos desafios dos profissionais do antitruste, minha inserção
num gabinete do Tribunal do CADE exigiria o uso de procedimentos administrativos e
seus artefatos.

2.3. Documentando a pesquisa

Na data da sessão de julgamento realizada após o evento da ICN fui ao CADE, que
ainda estava localizado no Setor Hoteleiro Norte da capital federal, para encontrar o
conselheiro. No fim da sessão, levantei-me e fui ao plenário quando, em geral,
conselheiros costumam cumprimentar ou despedir-se de advogados. Conversei com o
conselheiro que me apresentou ao procurador-geral do CADE. Quando perguntei sobre
os procedimentos necessários à autorização para a realização da pesquisa, o procurador
disse que eu precisava protocolar um requerimento endereçado ao gabinete do
conselheiro, que então o enviaria à procuradoria do órgão para que esta elaborasse um
parecer sobre o pedido. Mostrei ao procurador uma carta que já havia sido endereçada
ao presidente do CADE, Olavo Chinaglia. O procurador disse que aquela carta não
“tinha valor”, pois teria que ser endereçada ao gabinete e “protocolada” formalmente.
Segundo ele, o documento não estava na “forma mais adequada”. Imediatamente fui ao
centro comercial mais próximo do CADE e alterei o documento para que pudesse
protocolá-lo ainda no mesmo dia. O conselheiro parecia confiante de que não haveria
nenhum empecilho para a realização da pesquisa.

Uma semana depois de protocolar o documento, voltei ao CADE para uma reunião
atendendo ao pedido da assessora e chefe de gabinete do conselheiro. A assessora e o
conselheiro me receberam na sala de reunião com um ar de decepção. Disseram que a
procuradoria autorizara minha entrada no CADE, porém eu não poderia “observar” os
autos confidenciais. Como os autos confidenciais, quando existem num processo, estão
sempre anexados conjuntamente aos autos públicos, eu teria que permanecer numa sala
separada daquela dos assessores, com horário restrito para realizar a pesquisa e

! 96
“observar” os autos. Esta opção restringiria muito as práticas que eu poderia observar e
as pessoas com as quais eu poderia me relacionar. A chefe de gabinete me disse que era
formada em ciências sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) na
mesma universidade em que eu cursava o doutorado e que, por isso, compreendia
perfeitamente a necessidade que eu tinha de “estar presente” na mesma sala que os
assessores. “Por que”, perguntou ela indignada, “alunos de graduação em economia ou
direito podem estagiar no CADE e um aluno de pós-graduação em antropologia não
pode?”. O conselheiro e a assessora sugeriram que eu obtivesse uma carta do reitor da
UFRJ endereçada diretamente ao presidente do órgão, o que, a meu ver, seria pouco
provável de conseguir.

Minha primeira reação foi então ler o tal parecer da procuradoria que
aparentemente limitava bastante minha presença no órgão. Contudo, a assessora não
permitiu que eu o lesse detalhadamente naquele momento. Segundo ela, o parecer,
agora parte de um memorando, era apenas “para circulação interna” e eu não poderia
tirar uma cópia dele naquela ocasião. Ela pediu para que eu fizesse um requerimento
solicitando cópia integral do memorando no 08700.002588/2012-01, registrando-o no
setor protocolar do órgão. No dia seguinte protocolei o pedido. A autorização me foi
dada, mas não me disponibilizaram o memorando. Quando conversei novamente com a
assessora, ela disse que ele teria sido remetido novamente à procuradoria e “logo mais”
poderia ser acessado. Decepcionado e angustiado com a possível longa espera do
retorno do documento ao gabinete, passei a refletir sobre outras possibilidades de
entrada no órgão.

Naquela ocasião, a continuação da minha pesquisa, pelo menos do modo como eu


gostaria que fosse realizada, estava interrompida porque eu não podia me “manifestar
sobre o teor” do parecer, conforme solicitei no requerimento. Isto se devia ao fato de
que o documento havia sido movimentado dentro do órgão, não estava mais no espaço
onde eu poderia copiá-lo e acessá-lo. Sua circulação gerava uma barreira para mim,
tanto quanto a sua interpretação por parte da chefe de gabinete. Se a interpretação da
chefe de gabinete e do conselheiro poderia ser ao menos questionada, a movimentação
espacial do documento, por qualquer que fosse o motivo, limitava uma forma de ação
da minha parte. Pode-se explicar a espera que me foi imposta como uma característica
do modo como as organizações burocráticas funcionam. Como argumentam Lowenkron
e Ferreira (2014, p. 96) descrevendo as autorizações necessárias para o acesso a

! 97
documentos policiais, a imposição de incerteza e de espera é um recurso de poder eficaz
para essas organizações. Mas a espera, nesse caso, também era resultante da própria
característica de um tipo de documento, o memorando. Como a chefe do gabinete me
explicou, este documento “fica na procuradoria”. Para que fosse enviado ao gabinete,
um requerimento teria que ser feito pelo próprio gabinete.

Aguardaria então até agosto, quando o novo presidente do CADE já estaria


empossado. Eu sabia que ele era próximo da minha ex-professora e ex-presidente do
CADE, Elizabeth Farina. Talvez, pensei, com a ajuda dela eu pudesse ao menos reaver
o documento e, com isso, solicitar uma reconsideração do meu pedido. Pouco após a
professora enviar um e-mail ao novo presidente Vinícius Carvalho, ele respondeu
pedindo para que eu procurasse seu chefe de gabinete para conversar sobre meu pedido.
Uma semana depois, no dia 15 de agosto, fui ao gabinete do presidente explicar meu
requerimento e também meu projeto de pesquisa. Chegando lá, conversei com o chefe
do gabinete, que ligou imediatamente para o assessor e também chefe de gabinete do
conselheiro Carlos perguntando sobre o conteúdo do parecer produzido pela
procuradoria do órgão. Após uma conversa entre os dois por telefone, o chefe do
gabinete da presidência disse que não havia encontrado qualquer empecilho para a
realização da minha pesquisa. Apenas esclareceu que necessitaria providenciar
conjuntamente com a procuradoria um termo de compromisso para que eu assinasse.

No dia seguinte, conforme recomendado pelo gabinete da presidência, fui ao


gabinete do conselheiro para saber se o termo de compromisso já estava redigido. O
chefe de gabinete do conselheiro não era mais a cientista social que me recebera em
abril. Esta havia se transferido para outro gabinete. O novo assessor, funcionário
público de carreira do Ministério do Planejamento e psicólogo de formação, falou com
entusiasmo que estava tudo certo quanto à minha autorização e que bastaria que eu
retornasse ao gabinete do presidente para assinar o termo. Nesse momento, ele me
mostrou o memorando feito pela procuradoria, intitulado “Apreciação de requerimento
para realização de pesquisa acadêmica no âmbito das dependências do CADE”, e disse
que o termo de compromisso que eu assinaria precisaria ser anexado a esse processo.
“Sua pesquisa toda está aqui agora”, falou apontando para o memorando, já em sua
posse. Antes que eu saísse, o assessor apenas perguntou o que eu precisaria para realizar
a pesquisa em termos de “infraestrutura”. Eu disse que seria bom se tivesse uma mesa e
uma cadeira para sentar na mesma sala em que ele e os outros assessores trabalhavam.

! 98
O “termo de ciência e compromisso” que assinei na sala do chefe de gabinete da
presidência consistia em um documento de três páginas que me franqueava acesso aos
autos de processos administrativos, “COM EXCEÇÃO” (grifos no original):

(a) de apartados ou de volumes dos autos aos quais o Sistema Brasileiro de


Defesa da Concorrência (SBDC) conferiu tratamento confidencial ou que
classificou como sigilosos ou de acesso restrito; (b) de qualquer ato
administrativo, instrumento ou documento que contenha, sem nenhuma tarja
ou meio de ocultação, uma ou mais informações às quais o SBDC conferiu
tratamento confidencial, que classificou como sigilosas ou que considerou
pessoais, assim entendidas as que disserem respeito à intimidade, à vida
privada, à honra, à imagem ou ao estado dos negócios ou atividades dos
agentes econômicos envolvidos.

Caso eu tomasse conhecimento “acidentalmente ou em virtude de caso fortuito nas


dependências ou instalações do CADE” de informações confidenciais, sigilosas,
pessoais ou de acesso restrito, eu estava obrigado a preservar o sigilo, não revelando a
terceiros e não publicando ou reproduzindo essas informações. Como esta restrição
aparentemente não interferia nos objetivos do meu trabalho de campo, assinei o
documento e fui, no mesmo dia, ao gabinete do conselheiro acompanhar o trabalho dos
assessores.

Desse modo, a assinatura do termo do compromisso e sua anexação ao memorando


possibilitaram a minha entrada nas dependências do CADE ou, mais especificamente,
na sala dos assessores do conselheiro. Como me explicou o chefe do gabinete da
presidência, o parecer da procuradoria havia “deferido parcialmente” meu requerimento,
mantendo meu acesso restrito aos autos públicos dos processos. Embora o parecer não
tivesse especificado a necessidade de um termo de compromisso, o chefe de gabinete da
presidência julgou que um documento deste tipo seria suficiente para assegurar as
condições impostas pela procuradoria. Ao mesmo tempo, o termo me sujeitaria à
“sanções de ordem penal, civil ou administrativa”, caso eu divulgasse informações
confidenciais. Ele também viabilizava jurídica e administrativamente minha pesquisa,
dando aos conselheiros, assessores, procuradores e ao chefe de gabinete a segurança de
que não seriam responsabilizados por minhas eventuais ações indevidas.

A relativa demora entre o parecer da procuradoria em abril e a resolução


aparentemente simples do problema imposto pelos autos confidenciais coloca algumas
questões sobre o conjunto de relações que perpassam a produção, a circulação e a
interpretação de documentos neste caso. Se o termo de compromisso era uma
ferramenta simples e de amplo conhecimento para solucionar um problema como este,

! 99
como me foi dito depois por outro assessor, por que não teria sido aventado mais
prontamente?

A entrada recente do conselheiro no CADE explica parte dessa demora. Talvez por
desconhecimento ou por insegurança, a presença de um pesquisador em seu gabinete
poderia ser considerada inconsequente por outros conselheiros ou pela presidência. O
fato de o chefe do gabinete da presidência ter ele mesmo redigido o termo de
compromisso com a procuradoria conferiu à pesquisa um caráter mais institucional, que
escapa da responsabilidade exclusiva de seu gabinete. Da mesma forma, a assessora,
então chefe do gabinete, responsável pelo acompanhamento de todos os processos
administrativos e pela gestão pessoal dos outros assessores, poderia acreditar que não
fosse totalmente factível uma pesquisa deste tipo com aquele parecer da procuradoria. A
interpretação do parecer da procuradoria por parte do conselheiro e de sua assessora
dependia, portanto, de certas condições derivadas de suas posições relativas ou de
deveres no órgão antitruste.

Se a entrada formal no CADE se deu somente após a conversão da minha pesquisa


em um tipo de processo administrativo, um memorando, que seria analisado e decidido
de acordo com procedimentos e normas característicos da administração pública, isto
não reduziu a importância de práticas mais informais de minha parte, visando fazer com
que o parecer fosse interpretado ou mesmo lido no momento correto. Como sugerem
outros estudos etnográficos realizados em burocracias (Barrera, 2010; Ferreira, 2011;
Lowenkron, 2012), as práticas administrativas ou burocráticas, embora sejam
caracterizadas e valorizadas pela impessoalidade ou a formalidade, nunca são
desprovidas de relações pessoais que as atravessam. A minha maior probabilidade de
acesso às dependências do CADE se devia tanto às relações pessoais decorrentes da
minha trajetória pessoal quanto da correta adesão a procedimentos burocráticos
mediados pelos documentos.

Seguir os documentos que permitiram o acesso ao gabinete, por sua vez, constituiu
uma necessidade tanto quanto uma forma de descrever as relações que eles produzem e
os sentidos que são dados a eles. Duas considerações sobre a agência desses artefatos
merecem ser apontadas por ora. Em primeiro lugar, como exemplificado pela
recomendação do procurador do CADE, a capacidade que minha carta de requerimento
tinha de fazer agir e comandar outros procedimentos internos do órgão – o “valor” do

! 100
requerimento – dependia de uma certa característica formal do documento: de para
quem estava endereçada a carta e como ela foi entregue a alguém do conselho. Como a
carta não havia sido protocolada corretamente, ou seja, entregue no guichê de
atendimento acessado pela rua lateral ao CADE, ela não possuía valor jurídico ou
administrativo. Por outro lado, a interpretação dos documentos era igualmente relevante
para definir aquilo que poderia ser feito com eles. Conforme ilustrado com o parecer da
procuradoria, a possibilidade ou não de permanecer diariamente no gabinete do
conselheiro dependia fundamentalmente de uma interpretação que tornasse possível a
redação de um termo de compromisso para o pesquisador.

Como argumenta Matthew Hull (2012a, p. 26) em sua etnografia sobre a burocracia
paquistanesa, não é possível compreender as práticas de organizações governamentais
dando atenção apenas à circulação dos documentos e às suas características formais,
materiais ou estéticas. A interpretação do texto contido nesses documentos é igualmente
importante para seus funcionários. Por isso, podemos caracterizar grande parte das
práticas de órgãos estatais, inclusive as do CADE evidentemente, como “práticas de
documentação” (Riles, 2006b). Essa expressão torna evidente o duplo sentido do verbo
“documentar” e suas diferentes formas de ação, ao mesmo tempo a organização de
documentos (como artefatos da prática burocrática) e o registro escrito de informação
ou conhecimento. Como o dicionário Aurélio define:

documentar (De documento + ar). Verbo transitivo direto. 1. Juntar


documentos a; provar, com documentos, que (algo) é verdadeiro, autêntico,
etc. 2. Registrar visando maior organização e referência para posteriores
alterações (Dicionário Aurélio, 2009)

No CADE, práticas de documentação são frequentes e atendem a diferentes


objetivos administrativos, jurídicos e analíticos. Como descrito, a entrada de campo
exigiu a “juntada” de documentos relativos à minha pesquisa e o registro em um deles
sobre a minha devida relação com os documentos confidenciais, ou seja, práticas que
envolveram a circulação, a organização e a produção de determinadas formas
documentais e, simultaneamente, a sua interpretação. Essa relação entre a forma e o
conteúdo dos documentos aparece claramente quando se observa o funcionamento de
um dos gabinetes do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica. Em especial, no
modo como são geridos e organizados os documentos nesse espaço de trabalho.

! 101
2.4. Mexendo e cuidando de processos

Quando comecei a acompanhar o trabalho dos assessores do conselheiro no CADE,


este já havia sido transferido para um novo prédio na ponta da Asa Norte, em Brasília,
entre as avenidas W2 e W3 (figura abaixo). O prédio espelhado, que exigia o uso
contínuo do ar-condicionado, havia sido alugado e projetado para atender a todos os
departamentos e às funções do órgão, conforme o modelo build to fit, como me explicou
o diretor administrativo do Conselho. Na mesma quadra do novo edifício estava o
prédio da OAB-DF (Ordem dos Advogados do Brasil) e uma das sedes do Sebrae
(Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). Um pouco mais distante,
o edifício da Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários). Vários prédios
similares de cinco andares estavam sendo construídos nesta quadra ainda pouco
edificada. Dizia-se no CADE que algumas agências reguladoras também se
transfeririam para o local.

Figura 3: Edifício do CADE na Asa Norte de Brasília

! 102
No andar térreo do edifício estão o plenário, onde ocorrem as sessões de
julgamento e distribuição de processos, a biblioteca, uma sala da OAB, onde os
advogados podem aguardar as sessões de julgamento ou imprimir documentos e acessar
a internet, o escritório do Ministério Público Federal, que tem um representante no
CADE, e a Coordenação-Geral Processual, o “setor protocolar”, como também é
chamado, por onde devem entrar todos os documentos enviados para o órgão. O setor
protocolar possui um guichê, acessado também pela calçada da W2, no qual advogados
devem entregar petições e solicitar cópias de peças processuais.

No primeiro andar estão departamentos considerados “atividades-meio” do órgão,


em contraste com as “atividades-fim”, que seriam os departamentos responsáveis pela
instrução e o julgamento de processos. A classificação utilizada pelos próprios
funcionários e pela diretoria administrativa do CADE entre as chamadas atividades
“fins” e atividades “meio” reforça a percepção de que existe uma atividade mais
“central” do órgão. O trabalho dos gabinetes e das coordenações mais analíticos ou
interpretativos são considerados “fins”, enquanto o trabalho da área processual ou da
área de recursos humanos, por exemplo, é denominado “meio”, servindo apenas para
“auxiliar” as áreas fins. Entre as “áreas-meio” localizadas no primeiro andar estão: a
Coordenação-Geral de Tecnologia da Informação do órgão (CGTI), a Coordenação-
Geral de Gestão de Pessoas (CGESP) – o RH – e a Coordenação-Geral de Orçamento,
Finanças e Logística (CGOFL), responsável por patrimônio, almoxarifado, licitações,
contratos e a contabilidade, entre outras funções.

Subindo um andar no edifício e na hierarquia organizacional, há a


Superintendência-Geral, criada com a nova lei para instruir todos os processos
administrativos. A SG é organizada em coordenações que se especializam em práticas
econômicas ou de casos. Durante minha pesquisa, as coordenações eram denominadas e
divididas, de modo não formalizado, em sete diferentes tipos: “cartéis internacionais”,
“cartéis em licitações”, “outros cartéis”, “condutas unilaterais e ACs [atos de
concentração] em mercados diferenciados”, “condutas unilaterais e ACs [atos de
concentração] em serviços”, “indústria e bens homogêneos” e “triagem”. As salas do
andar abrigavam uma ou duas coordenações, cada uma com aproximadamente quatro
“analistas técnicos” que respondiam a um “coordenador-geral”. Saindo do segundo para
o quarto andar do edifício, encontramos o Departamento de Estudos Econômicos (DEE),
o Gabinete da Presidência, a Assessoria Internacional (Assint), que serve como ligação

! 103
com órgãos antitruste de outros países, a Assessoria de Comunicação Social (Asscom),
que divulga as notícias do CADE e faz a intermediação com jornalistas, a Assessoria de
Planejamento e Projetos (Assplan), que coordena eventos e as atividades entre todos os
departamentos do órgão, e a Procuradoria Federal Especializada junto ao CADE
(ProCADE).97

No terceiro andar do órgão, onde permaneci durante os primeiros seis meses de


trabalho de campo, estão os gabinetes dos seis conselheiros que trabalham no Tribunal
Administrativo, além do escritório da Diretoria Administrativa do órgão. Cada um dos
gabinetes é dividido entre a sala de espera, uma sala de reuniões, a sala dos assessores e
a sala do conselheiro. Além do conselheiro e de sua secretária, costumam trabalhar no
gabinete três ou quatro assessores, sendo um deles o chefe de gabinete. Também é
frequente a presença de um ou dois estagiários, um de ensino médio, que auxilia a
secretária, e outro cursando direito ou economia, que auxilia os assessores.98

No início do meu trabalho de campo em agosto de 2012, entre os conselheiros do


CADE havia três economistas e três juristas. Dois economistas eram professores
doutores nas Universidades Federais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. O outro não
era professor mas também tinha doutorado em economia pela Universidade de Brasília.
Entre os juristas, dois eram professores de direito da Universidade de São Paulo e a
única mulher entre os conselheiros era professora da Universidade de Brasília. Em geral,
o plenário costuma ser composto majoritariamente por homens. Por outro lado, entre os
demais funcionários do órgão, o número de homens e mulheres é praticamente
equivalente. O presidente do CADE, Vinícius Carvalho, era também um jurista formado
na Universidade de São Paulo, com doutorado por esta e pela Universidade de Paris I.
Chamava atenção o fato de que a média de idade dos conselheiros era menor que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
97
“[A ProCADE] é um órgão vinculado à Procuradoria Geral Federal (PGF) da Advocacia Geral da
União (AGU) e tem como funções básicas: prestar consultoria e assessoramento jurídicos ao Cade, seja
em relação a suas atividades finalísticas, seja em relação a suas atividades-meio; representar o Cade
judicial e extrajudicialmente; postular ou defender, em juízo, os interesses do Cade; promover a execução
judicial das decisões desta autarquia federal; tomar as medidas judiciais solicitadas por órgãos do Cade
(mais exatamente, a Superintendência-Geral e o Tribunal Administrativo), necessárias à cessação de
infrações à ordem econômica ou à obtenção de documentos para a instrução de processos administrativos
de qualquer natureza; promover acordos judiciais, após autorização do Tribunal Administrativo; e, ainda,
apurar a certeza e liquidez dos créditos da autarquia federal, para inscrevê-los em dívida ativa.”
(Disponível em: www.cade.gov.br. Acesso em 17/02/2013).
98
O processo de seleção de estagiários de ensino médio é feito em parceria com a CIEE (Centro de
Integração Empresa-Escola), organização sem fins lucrativos que auxilia na colocação de jovens no
mercado profissional. A seleção de estagiários universitários, quase sempre graduandos em economia ou
direito da Universidade de Brasília (UnB), é feita por meio de indicações e entrevistas realizadas pelos
assessores ou pelos conselheiros.

! 104
quarenta anos. O presidente e vice-presidente da Superintendência-Geral também
tinham aproximadamente esta idade, indicando em parte como o ganho de relevância
recente da política antitruste tem gerado um grande número de jovens profissionais
especializados em direito e economia do antitruste ou da concorrência. Sobre a
nomeação desses profissionais para o CADE, vale notar que estes costumam ser
indicados por diferentes áreas do governo que possuem mais influência sobre o órgão
antitruste. Como um assessor me explicou, “existe o conselheiro indicado pelo BNDES,
os conselheiros do ministro da Justiça, o conselheiro do ministro da Fazenda e os outros,
acadêmicos ou funcionários públicos, pra variar”.

Em 27 de agosto de 2012, ao descer da sala do gabinete da presidência no quarto


andar, após a assinatura do termo de compromisso, fui imediatamente conversar com o
conselheiro Carlos para lhe dar a boa notícia. Sabia que ele estava muito entusiasmado
para que eu conduzisse a pesquisa em seu gabinete. Ele me disse que eu teria uma mesa
na sala dos assessores para poder observar mais de perto o trabalho por eles realizado,
mas que, nessa primeira semana, ainda não tinham realocado uma das estagiárias que
trabalhava na mesa onde eu ficaria. Dessa forma, passei os primeiros dias sentado na
sala de espera do gabinete, lugar em que trabalhava a secretária do conselheiro, Carol, e
ao lado dela um estagiário do ensino médio.

Como ilustrado na planta abaixo (figura 4), o gabinete em que permaneci tem duas
portas, uma que dá acesso direto à sala do conselheiro, utilizada somente por ele, e outra
que abre para a sala de espera, onde ficava a secretária. As salas do gabinete estavam
então com poucos objetos decorativos devido à recente mudança para o edifício. Os
únicos objetos que havia eram cadeiras, mesas, computadores, telefones e armários em
fórmica bege. A sala de reuniões era utilizada principalmente em encontros com
advogados das partes requerentes ou representadas, e também nas reuniões internas
entre assessores e o conselheiro. A sala dos assessores tinha mesas de trabalho e
computadores para três assessores e dois estagiários. Além dos computadores e das
impressoras, era comum a presença de livros de economia ou direito e revistas
especializadas, espalhados pelas mesas ou dentro das gavetas e dos armários instalados
sob medida. A sala do conselheiro Carlos já estava um pouco mais personalizada, com
pôsteres e porta-retratos que ele havia trazido e uma estante aberta de livros, cuja
coleção incluía obras de economistas clássicos, tais como Adam Smith e David Ricardo.

! 105
SALA  DE  REUNIÕES

SALA DOS
ASSESSORES

SALA DE ESPERA

SALA DO
CONSELHEIRO
CORREDOR

WC

Figura 4: Planta do gabinete

Depois de dar a notícia ao conselheiro, passei o restante do meu primeiro dia no


gabinete conversando e explicando meu projeto de pesquisa para a secretária, uma
jovem de 24 anos, moradora em uma cidade satélite de Brasília, que trabalha numa
empresa terceirizada contratada pelo CADE, como todas as outras secretárias do
conselho. Tínhamos nos tornado próximos durante os meses em que eu tentei ter acesso
ao gabinete, tendo ela me auxiliado a caminhar através dos procedimentos e dos
requerimentos necessários para isso. Por este motivo, ela parecia também contente por
eu ter conseguido entrar finalmente e formalmente no CADE. Na sala de espera em que
ela trabalhava, fora mesas, cadeiras e armários, a única coisa que chamava a atenção
eram as pilhas de papéis nos carrinhos com rodinhas que estavam estacionados num
canto da sala e um retrato da presidente Dilma Rousseff. Nesse primeiro dia,
percebendo que eu estava observando a fotografia, um dos assessores, atravessando a
sala me disse sarcasticamente: “não fala mal dela, hein, aqui em cima tem gente que a
defende com unhas e dentes”, apontando para o 4o andar e fazendo a secretária sorrir.
“Eu não falei nada”, respondi. O assessor se referia à notória simpatia do presidente do

! 106
conselho pelo Partido dos Trabalhadores, muito pouco compartilhada por outros
funcionários do órgão.

Ainda na primeira semana de pesquisa, a secretária, tentando entender minha


presença no gabinete “como antropólogo”, a secretária passou a explicar suas tarefas
diárias e a descrever seu trabalho enquanto o fazia. Num dos dias, disse que sua
primeira função seria “abrir um volume do processo”. Explicou que quando um
processo chega a 200 páginas, o “ideal”, conforme a orientação regulamentar, é que se
abra um novo volume, mas que isto não é sempre feito; alguns volumes chegam a se
estender por até 300 páginas. Levantando-se, disse que para fazer isso seria necessário ir
ao setor protocolar, no piso térreo do edifício. Ao observar minha expressão de relativa
incompreensão quanto ao que ela estava colocando, perguntou, inconformada: “Você
nunca viu um processo?”. Embora eu soubesse que o CADE instruía e julgava
processos, não era evidente para mim que instruir e julgar também exigiria ver, tocar,
separar, numerar ou classificar esses processos. Foi apenas nesse momento que me dei
conta de que os documentos utilizados na entrada de campo e aqueles com os quais os
funcionários lidam o tempo todo poderiam ser pensados como artefatos.

Para mim, os processos pareciam ser importantes somente no sentido de que neles
estavam os requerimentos de empresas e suas justificativas. Além disso, os processos
transportavam e continham informações sobre a realidade econômica em que atuavam
as partes. Ler e interpretar seriam as principais ações a serem realizadas com esses
conjuntos de papéis. Não pensava que a atenção dada à organização e à gestão desses
artefatos, tornando explícito seus aspectos materiais, fosse algo relevante para os
funcionários do órgão antitruste. Como explica o antropólogo Matthew Hull (2012a, p.
12), a percepção de que documentos, como os processos, ficam inseridos em coisas que
realmente importam, dando acesso imediato àquilo que eles documentam, torna-os
“invisíveis”. Como descrevo no capítulo seguinte, os autos processuais têm também
essa função de produzir informações que possibilitam a análise e o julgamento de
processos. Porém, este não era certamente o motivo principal de a secretária do gabinete
se importar com eles. Procurando mostrar que “ver” os processos era importante para
compreender o trabalho do CADE, a secretária me explicou algumas de suas
características, apontando para os processos abaixo que estavam na mesa de uma das
assessoras do gabinete:

! 107
Figura 5: Autos de processos na mesa de um dos assessores

Cada processo, como ela me indicou, é o conjunto de volumes empilhados e


amarrados por uma fita elástica com as iniciais do Ministério da Justiça ou de algum
outro órgão no qual o processo tinha sido instaurado. Cada um desses são os “autos de
um processo”, ela disse, identificados por um número dado pelo setor protocolar quando
o processo for criado. As fitas elásticas não são obrigatórias, mas ajudam a identificar e

! 108
a separar volumes (e documentos) que fazem parte de um mesmo processo. Quando um
documento, uma petição, por exemplo, é colocado pela secretária na mesa de um
assessor (ou estagiário), este o insere no processo correspondente, evitando assim uma
possível mistura imprópria entre documentos de processos distintos. Uma eventual
desorganização dos documentos pode levar a uma invalidação da própria decisão do
conselho por perda de um documento relevante, a desconsideração de provas e
evidências importantes na construção de um julgamento, ou mesmo a “perda do prazo”
do processo (ver abaixo).

Na mesa de um dos assessores, além de seu computador e de um telefone, estavam


vários processos que ele é responsável por instruir. A instrução exige a produção de um
enorme número de documentos, principalmente ofícios que constarão dos autos e cujas
respostas auxiliarão os assessores e o conselheiro na redação de um voto escrito sobre o
caso analisado. Segundo a secretária, a quantidade de processos na mesa de um assessor
pode indicar sua qualidade como analista, tendo em vista que o chefe de gabinete ou o
conselheiro acreditam que este assessor tem a capacidade para “cuidar” desses
processos. O “cuidar” inclui tanto a capacidade de analisar e interpretar os casos a que
eles se referem quanto de geri-los. Isso implica que o assessor atenda e converse com os
representantes das partes daquele processo, acompanhe as petições enviadas pelos
advogados e responda a elas, saiba das futuras medidas que serão tomadas para a sua
instrução e, principalmente, atente para a sua temporalidade (ver próxima seção), não
deixando o “prazo” expirar. Porém, a quantidade de processos em cima da mesa pode
ser também um demonstrativo da ineficiência do funcionário, como me explicou um
deles, acusando implicitamente seus companheiros de sala de não conseguirem fazer o
trabalho de instrução de forma mais rápida.

Em relação aos autos, a quantidade de volumes dentro de um processo pode indicar


tanto a longevidade de sua existência em circulação na burocracia e/ou sua relativa
“complexidade”, o que implica a existência de um amplo conjunto de documentos
produzidos pelos diferentes setores do órgão antitruste, pelas partes do processo ou por
outros interessados. Um processo com vários volumes também pode significar um
grande número de evidências ou de certas características de provas materiais que foram
a ele anexadas. Por exemplo, em 2013, quando estava na Superintendência-Geral do
CADE, acompanhei a instrução de um processo relativo a empresas editoras de revistas
de passatempo, como palavras-cruzadas e sudoku. Os primeiros volumes do processo

! 109
eram todos de revistas deste tipo, fazendo com que ele tivesse, naquele momento, um
total de 12 volumes, número considerado grande.

Alguns volumes de um processo costumam ser classificados como “confidenciais”


(ou de “acesso restrito”). Estes volumes, claramente demarcados com uma fita vermelha,
como na figura 5 acima,99 incluem cópias dos documentos que contêm informações
consideradas sigilosas pelas partes do processo e são acessíveis somente aos
funcionários do CADE. Nos volumes públicos, os mesmos documentos têm marcações
pretas nos trechos considerados confidenciais. Quando uma das partes do processo pede
cópia dos autos, somente os volumes públicos são disponibilizados, evitando-se assim
que as informações sigilosas de outros interessados ou representantes do processo sejam
conhecidas. Como explico mais adiante neste capítulo, os volumes confidenciais
exigem uma atenção maior por parte dos profissionais do CADE.

Parcela considerável do trabalho do estagiário de ensino médio consiste em


enumerar as folhas dos processos sobre os quais ele não tem a menor ideia do que
tratam. Como é padrão em órgãos da administração pública que lidam com processos
administrativos, cada folha de um volume é carimbada e enumerada em intervalos de
200 em 200 folhas para facilitar a leitura e a identificação de uma referência específica
quando os relatórios, os pareceres técnicos e os votos sejam redigidos. Estes também
serão anexados ao processo e suas folhas igualmente carimbadas e numeradas. Como os
documentos são furados e inseridos na sequência dos outros documentos relativos ao
processo à medida que entram no gabinete, o processo acaba consistindo em uma
“crônica de sua própria produção, uma sedimentação de sua própria história” (Hull,
2012a, p. 116). Nesse contexto, portanto, o processo é o conjunto de documentos,
anexados na ordem em que foram produzidos ou enviados ao órgão, separados por
volumes de 200 páginas, com folhas enumeradas e identificados geralmente por uma
fita elástica com a sigla CADE ou MJ (Ministério da Justiça).

Se o estagiário mais jovem se restringe quase exclusivamente à numeração de


páginas, atividade esta não menos necessária, a secretária, por sua vez, é responsável

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
A fita vermelha dos volumes confidenciais remonta a uma tradição do século XV, quando o governo da
Espanha começou a amarrar documentos estatais ou legais com uma fita vermelha. Utilizada
constantemente nas colônias inglesas nos séculos posteriores, o termo red tape passou a ser entendido
como o excessivo uso de formalidade burocrática em organizações estatais ou privadas. A expressão
cutting the red tape tornou-se um sinônimo de desburocratização em países de língua inglesa (ver Gupta,
2012; Hull, 2012a, p. 116).

! 110
por várias tarefas, entre elas a separação dos documentos pelos assessores do gabinete.
Quando um documento chega ao gabinete trazido por um dos funcionários do
“protocolo” nos carrinhos de rodinha que cruzam os corredores diariamente, a secretária
o redistribui para o assessor responsável pela instrução do processo correspondente. Isto
requer saber a qual processo o documento se refere, além de qual assessor “cuida”
dele.100 Ler o documento – sua primeira página pelo menos – e identificar o processo
correspondente pelo seu número protocolar ou pelo nome das partes é uma tarefa
corriqueira, exigida várias vezes por dia assim que o documento chega ao gabinete,
visto que uma nova petição das partes pode alterar o prazo de um processo ou ainda
viabilizar a elaboração de um voto do conselheiro para a próxima sessão de julgamento.

Durante o segundo semestre de 2013, os funcionários do gabinete, devido à grande


quantidade de processos que deveriam ser analisados e julgados, guardavam e dividiam
os processos entre a sala dos assessores e a sala de espera/recepção. Os processos foram
separados de acordo com uma divisão compreendida por todos os profissionais do
antitruste. Os conhecidos “ACs” (atos de concentração), “PAs” (processos
administrativos) e “APs” (averiguações preliminares) são as siglas mais comuns no dia
a dia do CADE. Os processos de ACs, por terem um “prazo” para resposta e, portanto,
por serem passíveis de “esquecimento”, são armazenados na sala dos assessores, pois
exigem uma atenção, um cuidado maior. Os PAs e APs, segundo os assessores, “podem
esperar”, pois não têm prazos curtos de resposta e, por isso, são armazenados – e isto
não surpreende – na “sala de espera”, sendo somente abertos para instrução quando os
prazos dos ACs estiverem “sob controle”, como diziam. Cada um dos três assessores
que trabalhavam no gabinete em que eu pesquisava possuía na sala um armário com seu
nome onde estavam os ACs de sua responsabilidade, conforme a figura abaixo:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
100
Neste gabinete, a secretária havia criado sua própria base de dados no software Microsoft Access para
saber quem era o responsável pelos processos e, portanto, pelos documentos que ela estava recebendo.

! 111
Figura 6: Armários de cada assessor com os processos sobre seu cuidado

Entretanto, nem todos os assessores trabalhavam da mesma maneira com os dois


tipos de processos. Em primeiro lugar, os ACs e os PAs não são necessariamente
instruídos pelas mesmas pessoas. Em geral, estagiários se especializam em ACs ou PAs,
dependendo da formação superior que estiverem cursando. ACs são considerados
processos que exigem uma análise econômica mais extensa, enquanto PAs demandam

! 112
um conhecimento “mais jurídico”. No gabinete em que eu me encontrava, o conselheiro,
sendo economista de formação, preferia ter estagiários cursando direito, pois o
ajudavam a redigir e a analisar certos temas em que ele não se sentia tão seguro,
especialmente na instrução de processos do tipo PAs. O trabalho dos estagiários
costumava ser o de auxiliar os assessores na investigação dos casos. Sobre os assessores,
apenas os mais experientes trabalhavam com os dois tipos de processos. Mas mesmo
estes tinham suas preferências entre os dois tipos. Assessores que não conseguiam
instruir ambos os tipos de processos e que não faziam questão de aprender eram mal
vistos pelos outros, sendo considerados “típicos funcionários públicos”.

Naquele mesmo dia, após mostrar os processos e explicar sua disposição no


gabinete, a secretária voltou às suas tarefas rotineiras. Primeiramente, realizou alguns
procedimentos necessários para “tramitar” um processo para outro setor do CADE, a
Procuradoria. Para isso, foi necessário entrar no sistema interno do conselho, acessado
pelo seu computador, e preencher um formulário com o nome das partes do processo, o
número de volumes, a origem (Gabinete X), o destino (Procuradoria), o tipo de processo
(AC, PA ou AP), o número, a data e o horário. O sistema gerava um recibo que
precisava ser impresso e anexado ao processo. Somente desta forma seria possível fazer
circular os autos processuais dentro do CADE, transportando-os no carrinho para a
Procuradoria, que iria estudar o caso, redigir um parecer e realizar o mesmo
procedimento para que o processo retornasse ao gabinete para julgamento.

O registro eletrônico utilizado para a movimentação de processos também se faz


necessário no recebimento dos documentos. Além de a secretária assinar um pequeno
caderno trazido pelo funcionário do protocolo que registra o recebimento de um
documento no gabinete, ela precisa “fazer a fase” no sistema. 101 Para que um
documento ou todo um processo saia do setor protocolar no andar térreo, um
funcionário daquele departamento deve registrar no sistema o envio daquele documento
para o gabinete. Somente com o registro de envio é que a secretária pode acessar o
sistema em seu terminal, ao qual apenas ela e o chefe de gabinete têm acesso (login), e
então registrar o recebimento. O registro eletrônico do envio e do recebimento do
documento permite o acompanhamento de toda a transferência pelos funcionários e
evita possíveis extravios de documentos. A inscrição eletrônica da ação feita com o
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
101
Entre as “fases”, ou ações, possíveis de serem registradas no sistema, que aparecem como opções na
intranet do CADE estão “encaminhamento dos autos”, “recebimento” e “juntado aos autos”.

! 113
documento também permite às partes de um processo o acompanhamento das ações que
são realizadas com ele. Por meio do website do CADE é possível procurar o processo e
identificar quais foram os últimos documentos produzidos e anexados a ele e saber onde
ele está localizado no órgão.

Nas semanas em que há sessão de julgamento, a secretária precisa também produzir


um referendo, uma listagem de todos os ofícios e despachos que serão “pronunciados”,
juridicamente validados, no julgamento. Todos os ofícios e despachos produzidos pelo
gabinete nas duas semanas desde a última sessão de julgamento precisam ser incluídos
no referendo, que é publicado em conjunto com as decisões do julgamento. Para que
isso possa ser feito, utiliza-se uma pasta virtual do gabinete na qual assessores colocam
os documentos eletrônicos, em arquivo PDF, dos ofícios, despachos e relatórios por eles
produzidos, assim como os votos que serão lidos pelo conselheiro. As versões
eletrônicas dos documentos não substituem cópias impressas dos mesmos, que também
precisam ser enviadas para o setor processual e arquivadas no gabinete.

A maior parte das ligações atendidas pela secretária diz respeito à circulação, à
visualização e ao conteúdo dos documentos. Alguns dias depois de iniciada minha
pesquisa no gabinete, um advogado ligou reclamando que ofícios foram enviados às
partes pedindo informações similares àquelas que ofícios anteriores já haviam solicitado.
Após passar a ligação para o assessor responsável pelo processo, a secretária explicou
que isso pode ter acontecido por um erro do gabinete ou por uma falta de resposta ao
ofício anterior. Pouco tempo depois, outro advogado ligou pedindo para que o gabinete
autorizasse a cópia de um processo ou de parte de um processo ao protocolo. Ela
explicou ao advogado, que segundo ela deveria ser um pouco inexperiente, que nesse
caso o protocolo deve enviar ao gabinete um requerimento de cópia que precisa ser
aprovado pelo gabinete, assinado e reenviado ao protocolo. O setor protocolar então
emitiria um GRU (Guia de Recolhimento da União) que deveria ser pago pelo escritório
de advocacia e depois recolhido no protocolo. Segundo a secretária, “advogados mais
espertos ‘pedem vista’ do processo e tiram foto dele, sem precisarem fazer um
requerimento de cópia”.

Nesse mesmo dia, um representante das partes, ainda estagiário em direito, entrou
no gabinete pedindo para falar com um assessor para que uma petição sua fosse deferida.
Após o advogado sair da sala, a secretária disse: “não sei como aparecem aqui”. Ela se

! 114
referia ao fato de que os advogados não poderiam subir ao terceiro andar do CADE sem
que tivessem marcado uma reunião pelo sistema do conselho ou ao menos telefonado
para o gabinete.102 O advogado aproveitou para deixar o memorial de um caso que seria
julgado no dia seguinte. Memoriais são documentos endereçados ao conselheiro que
resumem o caso a ser julgado e explicitam claramente a posição da parte interessada no
julgamento próximo. Raramente lidos pelo conselheiro-relator, sua entrega, segundo um
dos assessores, se justifica em parte como modo de se aproximar de assessores e do
conselheiro antes do julgamento, demonstrando uma consideração maior para com ele.
O memorial serviria também e principalmente para informar aos conselheiros não
relatores – que não são responsáveis pelo processo – sobre casos que irão a julgamento
mas que eles podem desconhecer.

Após o advogado se retirar, a secretária levantou-se e dirigiu-se à sala de reuniões


do gabinete, que precisaria estar arrumada em cinco minutos. Ela pediu ao garçom, que
trabalha para todos os gabinetes do andar, para que ele servisse água e café e imprimiu
uma lista de presença com os nomes dos participantes, lista esta que será
posteriormente anexada ao processo correspondente à reunião. Antes de entrar
novamente na sala de reuniões, a secretária comentou comigo: “trabalhar no CADE é
aprender a mexer com os documentos”.

Nessas primeiras semanas de trabalho de campo acreditava que essa consideração a


respeito do trabalho do CADE era própria do seu cargo como secretária, que consistia
principalmente em reunir, separar, copiar, distribuir, enviar e registrar documentos dos
mais variados tipos. A secretária teria razões para entender cada processo como um
conjunto de documentos e cada documento como um artefato, com seus próprios efeitos,
temporalidades e limitações, atentando ao mesmo tempo para seus conteúdos e para
suas formas. Seu conhecimento dos procedimentos, dos tipos documentais e da eficácia
que eles produziam era reconhecido por todos do gabinete, que a procuravam para tirar
dúvidas a respeito de como enviar, assinar, procurar ou classificar os documentos.
Registrando as perguntas feitas à secretária em apenas uma hora do dia, podemos citar
as seguintes: “Carol, como faço para dilatar o prazo da resposta?”; “O advogado tem
um pedido de vista sem procuração, devo autorizar apenas a versão pública?”; ou

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
102
Essas incursões de advogados não são incomuns. Eles costumam ir a reuniões em outros gabinetes ou
em coordenações da SG e aproveitam a ocasião para conversar ou realizar um pedido mais informal em
outro local do CADE.

! 115
“Quem deve assinar esse ofício? Você pode deferir isso também?”. Os funcionários do
gabinete perguntavam inclusive sobre a localização do processo no próprio gabinete,
algo que incomodava muito a secretária, pois, segundo ela, se os assessores e os
estagiários “cuidassem” apropriadamente de seus processos, deveriam ao menos saber
onde eles estavam. O conselheiro, que estava há pouco tempo no cargo, afirmava que
não poderia realizar seu trabalho sem ela e que, para onde quer que fosse após o CADE,
a levaria junto.103

Contudo, conforme passei a observar o trabalho de outros profissionais do gabinete,


profissionais que faziam o que se denominava de atividade “central” ou “atividade-fim”
do conselho – a instrução processual, com suas análises e interpretações – percebi que a
concepção da secretária era compartilhada por outros funcionários do órgão. Não havia
analista, assessor, estagiário, coordenador ou conselheiro que não tivesse a necessidade
de aprender a mexer ou a lidar com documentos. Entretanto, o “cuidar” dos processos,
tarefa designada especificamente aos assessores e estagiários de nível universitário,
implicava uma relação distinta com os documentos, que contemplava também uma
particular atenção às diferentes temporalidades em que o trabalho de instrução estava
imerso e à confidencialidade das informações processuais.

2.5. Parando, soltando e fazendo andar os processos

O segundo semestre de 2012 foi particularmente conturbado para os profissionais


do CADE de todas as áreas. A nova lei de concorrência, aprovada no ano anterior, tinha
acabado de entrar em vigor, alterando profundamente procedimentos, funções
profissionais e a estrutura organizacional do órgão. Além disso, como já dito, o CADE
havia se transferido para um novo e maior edifício. Entre outras coisas, a transferência
física gerou uma desorganização dos processos administrativos sob a responsabilidade
de cada gabinete. Todos os processos foram levados para o novo prédio, mas a
localização precisa de alguns dentro do gabinete ainda gerava controvérsias, apesar da
minuciosa mudança organizada pelo conselho. Como muitas empresas não sabiam

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
103
Dificilmente isto seria possível, na medida em que as secretárias do CADE, todas mulheres, são
terceirizadas.

! 116
exatamente como seria aplicada a nova lei e acreditando que esta poderia ser mais rígida
com as concentrações entre empresas, houve no primeiro semestre, ainda antes da
entrada em vigor da nova lei, um aumento muito grande de requerimentos de atos de
concentração que abarrotaram de papéis as salas do conselho.

Esses atos de concentração que haviam sido protocolados antes da mudança física
do órgão para o novo endereço e que teriam que ser julgados com base na legislação
anterior passaram a ser chamados de “estoque”, sendo que um dos objetivos da
presidência do CADE nesse período era “acabar” com esses processos, julgando-os o
mais rapidamente possível. Além do risco de “perder o prazo” dos processos, agora
muito mais numerosos, pretendia-se apresentar um órgão bem mais eficiente com a
nova legislação e, por isso, havia uma tentativa coordenada de “soltar” (ou seja, julgar
ou arquivar) uma quantidade grande de processos por sessão. Tornou-se comum apontar
como critérios de “produtividade” ou “eficiência” do CADE a quantidade de processos
instruídos por mês e o tempo em dias necessário para fazê-lo.

O grande “estoque” de processos gerava ainda uma outra preocupação, resultante


de outra temporalidade, esta considerada externa ao CADE: o tempo da “economia” ou
do “mercado” (Miyazaki, 2003). A demora no julgamento de atos de concentração
significa um prejuízo para as empresas que moldam suas estratégias com base nas
decisões do órgão administrativo. Uma fusão pode demorar tanto para ser aprovada que
as duas empresas acabam desistindo da união, e podem fazer a fusão com outras ou
ainda entrar em falência. Por isso, como disse o presidente do CADE na comemoração
de 100 dias da nova lei, um dos objetivos que deveriam ser continuamente perseguidos
pelos conselheiros, assessores e demais funcionários era “analisar os casos num tempo
econômico”, o que significava o tempo da vida econômica e não dos processos jurídicos
ou burocráticos.

Por todos estes motivos e especialmente nesse momento, o gerenciamento dos


processos administrativos, particularmente dos atos de concentração, era uma tarefa
distribuída entre os assessores e constituía uma forma de disciplinar suas ações no
gabinete. Como já relatado, processos de tipos diferentes são armazenados em locais
distintos, pois exigem maior ou menor urgência em seu tratamento. Atos de
concentração são os tipos processuais que mais constrangem as ações dos assessores,
pois podem “expirar” e, com isso, não serem julgados apropriadamente. A “perda do

! 117
prazo” desses processos seria catastrófica para a reputação e a carreira do assessor
responsável e do conselheiro, já que a operação (fusão, aquisição etc.) sob análise acaba
sendo aprovada automaticamente. 104 Os ACs têm 60 dias para serem instruídos e
julgados, mas este prazo pode ser estendido indefinidamente, contanto que um ofício
requerendo mais informações das partes seja enviado, aumentando o prazo com os dias
estipulados no próprio documento, em geral 15 ou 30 dias para a resposta. Uma tarefa
importante do chefe de gabinete é acompanhar o “vencimento” desses ofícios, atentando
para os prazos de todos os processos do gabinete.

Para fazer isso com mais facilidade, o chefe de gabinete produziu uma tabela no
computador que pudesse auxiliar todos os assessores, os estagiários, a secretária e o
conselheiro a identificar suas prioridades no dia a dia do trabalho. Este arquivo
eletrônico, uma enorme tabela denominada “Monitoramento de Processos”, informa
dados relevantes de mais de uma centena de processos que estavam sob a
responsabilidade do gabinete. Num pequeno recorte desse arquivo apresentado na tabela
abaixo, podemos identificar as principais variáveis que mobilizavam então o trabalho
dos funcionários do gabinete e as temporalidades que deveriam ser levadas em conta.105

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
104
Durante o período em que permaneci no gabinete não houve nenhuma “perda de prazo”, embora
existissem relatos de que um antigo assessor cometeu essa falha e que, por isso, tinha sido transferido
para outro departamento.
105
A tabela apresentada abaixo altera os dados relativos dos número dos processos, dos nomes das partes,
dos mercados relevantes e das datas de protocolo, visando preservar possíveis informações confidenciais
dos processos instruídos pelo conselho. A visualização de um pequeno recorte alterado da tabela tem o
objetivo de apontar as variáveis e as opções que produziam restrições e condições para a instrução dos
processos no gabinete.

! 118
! 119
A tabela, um documento que podia ser acessado na pasta eletrônica compartilhada
do gabinete, discriminava, para cada processo, seu número, o assessor responsável, seu
“tipo” (AC, PA, AP, entre outros) e as partes envolvidas (empresas).106 Além disso, a
tabela indicava se o processo tinha ou não um parecer prévio de algum outro órgão que
compunha o SBDC: a SDE ou a SEAE. Como explicado no capítulo anterior, antes da
nova legislação, os processos administrativos eram instruídos pela SDE e a SEAE e
seguiam posteriormente para o CADE para uma instrução complementar, caso fosse
necessário, e julgamento.107 A existência ou não de pareceres desses órgãos facilita o
trabalho dos assessores e do conselheiro, principalmente quando esses pareceres são
“convergentes” em termos de análise, pois apontam para um mesmo entendimento do
caso.

A coluna referente ao prazo dos processos no CADE era a única que continha
algumas células em vermelho, indicando que o prazo de 60 dias estava quase sendo
alcançado, exigindo mais atenção quanto à “data para resposta” dos ofícios (ver adiante).
Como não há prazo nos processos que não são atos de concentração, a célula aponta que
esse critério de prazo “não se aplica” ao processo. Outro critério (e temporalidade), que
aparece como relevante, é a prioridade de julgamento de certos processos pela
presidência do órgão. Como todos os assessores e alguns conselheiros sabiam, havia
uma clara intenção do presidente do CADE, expressada em reuniões internas entre
conselheiros, de privilegiar e “fazer andar” mais rapidamente processos relativos às
áreas de “saúde” e “educação”. Como a coluna “mercado” aponta – mercado aqui num
sentido amplo de setor industrial ou conjunto de produtos e serviços relacionados – os
processos de empresas atuantes na área de “serviços médicos e de saúde” e da “indústria
farmacêutica” tinham uma prioridade maior do que os outros. Essa prioridade não
necessariamente impedia a instrução de outros processos, mas devia ser levada em
consideração pelos assessores e conselheiros.

A localização do processo no CADE também influencia a sua temporalidade.


Assim como na minha entrada de campo o parecer da procuradoria estava fora do meu
alcance, e que eu só poderia esperar que alguém o remetesse de volta ao gabinete, um

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
106
Quando o número do processo se inicia com os números “08012” significa que este foi inicialmente
criado pela SDE, ou seja, o processo será instruído de acordo com a legislação anterior. Já no caso dos
processos com a numeração “08700”, eles foram “abertos” no CADE, após a transferência da sede do
órgão e após a mudança do estatuto legal, como a data do “protocolo no CADE” indica.
107
A SEAE fazia pareceres somente nos casos de atos de concentração.

! 120
processo administrativo, quando está em outro gabinete ou na procuradoria, também
não pode ser julgado. Como o processo está em outro local, que poderá elaborar novos
pareceres ou sugerir outros caminhos de investigação, não há como o gabinete agir
sobre o processo, podendo apenas solicitar seu envio para a continuação da instrução ou
para que possa ser pautado numa futura sessão de julgamento, conforme estipulado na
última coluna da tabela.

No gabinete, as sessões de julgamento quinzenais estabelecem uma divisão do


trabalho entre uma “semana de julgamento” e uma “semana de pauta”. Os processos
que serão julgados devem ser “pautados” na semana anterior ao julgamento. Isto faz
com que as atividades da “semana de pauta” sejam direcionadas para se decidir quais
processos estão “prontos” para serem julgados, o que significa verificar quais votos de
processos estarão redigidos até a semana seguinte. Os assessores, nessa semana,
precisam produzir um pequeno relatório sobre cada um dos processos pautados, uma
espécie de resumo do conteúdo das principais “peças processuais” (documentos do
processo). Para pautar os processos, a secretária redige um documento, a pauta, com as
informações principais (número, partes, representantes) e envia para os assessores do
plenário, que farão uma compilação de todos os processos pautados dos gabinetes e da
presidência. A pauta completa da sessão é disponibilizada no website do órgão para que
os representantes das partes dos processos tomem conhecimento.

Por último, a coluna da tabela “fundo de private equity” servia para apontar uma
das preocupações recorrentes entre conselheiros do órgão. Buscava-se identificar quais
processos envolviam empresas controladas por fundos de investimento que investem e
administram empresas. Essa preocupação dos conselheiros e as características desses
processos serão exploradas em detalhe no capítulo 4 deste trabalho.

Além deste arquivo em Excel, que organizava a relação dos funcionários do


gabinete com os processos e, assim, a própria produção de documentos, como votos,
relatórios e pautas, outras formas de gestão dos documentos e de suas temporalidades
também eram utilizadas. Um grande quadro branco (figura 7) com um calendário do
mês e com os prazos de resposta estipulados nos ofícios enviados às partes foi
pendurado na parede da sala dos assessores para que todos soubessem claramente as
prioridades máximas do dia e da semana. Por exemplo, segundo este quadro, no dia 13
de março o ofício que foi enviado a uma das partes do processo que envolve a empresa

! 121
JBS iria “vencer”, ou seja, a partir desse dia o prazo do ato de concentração iria “voltar
a correr”, dentro dos 60 dias que o processo tem para ser analisado. Nesse dia seria
recomendável que o processo tivesse sido julgado, pautado para a próxima sessão de
julgamento, ou que um novo ofício fosse produzido e enviado “parando o prazo” do
processo. Os ofícios – documentos encaminhados às empresas requerentes,
representantes ou concorrentes tendo em vista a obtenção de informações a respeito das
empresas e mercados – têm também, portanto, a função de segurar o “tempo” do
processo. A complexidade e a quantidade de perguntas nos ofícios são critérios
utilizados para se estimar o tempo de resposta das empresas e, por isso, as perguntas são
formuladas levando-se em consideração ao mesmo tempo a necessidade de certas
informações e a maior ou menor urgência de “segurar” os prazos dos processos.

! 122
Figura 7: Quadro com os prazos dos processos, identificados pelos nomes das partes. Um
elemento importante nesse quadro é a identificação do processo pelo nome mais conhecido da
requerente (Microsoft, Amil etc.), que costuma ser o modo de se referir a eles no gabinete

No caso dos atos de concentração, a grande preocupação com o fim do prazo de 60


dias para análise gerava a necessidade de uma avaliação e um cálculo constante de
quanto tempo já foi “percorrido” por eles. Os assessores, os estagiários e inclusive a

! 123
secretária costumam “contar o prazo” dos processos, construindo tabelas com o
indicativo de quais deles estão alcançando o prazo limite. Para isso, eles abrem os autos
e calculam, pela data de envio e recebimento de cada um dos ofícios, quanto tempo o
processo “ficou parado”, sendo esse o período crítico que faz o prazo do processo
avançar. “Ficar parado” é o tempo entre o momento em que os requerentes dos
processos enviaram uma petição ao CADE e o momento em que o órgão produziu um
novo ofício para os requerentes. O chefe do gabinete, calculando o prazo de um
processo, produziu a seguinte tabela:

Tabela 2: Cálculo do prazo de um processo

Neste caso, a petição inicial das requerentes foi protocolada no dia 4 de abril (o
primeiro mês está equivocado na tabela) e apenas no dia 30 desse mês, 26 dias depois
(indicado em amarelo), o primeiro ofício foi expedido. Nesse período considera-se que
o processo “ficou parado”. Somando-se com o período entre 1o de junho e 6 de junho,
este processo está com 31 dias de prazo, não sendo ainda uma prioridade ou uma
preocupação maior do gabinete. A cor verde indicada no prazo não é um alerta para o
chefe de gabinete, que precisa estar a par do prazo de dezenas de processos do gabinete.

Os ofícios são os documentos mais produzidos pelo CADE e constituem a principal


forma de os analistas do órgão obterem informações a respeito das concentrações ou das
condutas que eles investigam108. No corpo do ofício estipula-se um prazo para que a
empresa (ou o seu representante) responda às informações requeridas. Este prazo varia
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
108
Segundo o jurista Hely Lopes Meirelles (2011, p. 190): “Ofícios são comunicações escritas que as
autoridades fazem entre si, entre subalternos e superiores e entre Administração e particulares, em caráter
oficial. Os ofícios tanto podem conter matéria administrativa como social. Diferem os ofícios dos
requerimentos e petições, por conterem aqueles uma comunicação ou um convite, ao passo que estes
encerram sempre uma pretensão do particular formulada à Administração”.

! 124
normalmente de 5 a 30 dias, dependendo da quantidade de informação que o assessor
esteja pedindo e da complexidade esperada de obtenção desse material. A empresa que
não responder ao ofício “tempestivamente” corre o risco de ser punida mais
severamente pelo órgão regulador, receber uma multa ou não obter um parecer
favorável no julgamento. Contudo, conforme ilustrado acima, os ofícios não produzem
apenas informações. Seus prazos funcionam como organizadores das temporalidades
internas do gabinete, definindo os processos mais urgentes e “empurrando para frente”
aqueles que não podem ser analisados no momento.

O envio do ofício, entretanto, exige que a empresa acuse seu recebimento. Caso isto
não seja feito, o prazo pode não ser “parado”. Um e-mail da empresa ou de sua
representante confirmando o recebimento geralmente é impresso e anexado ao processo,
garantindo assim uma prova de que o ofício tinha sido enviado e recebido na data
especificada. Quando as empresas não conseguem responder a tempo ao ofício, elas
costumam pedir uma “dilação de prazo” por meio de uma petição. No segundo semestre
de 2012, como a quantidade de processos era muito grande, os assessores costumavam
conceder tal dilação sem muita hesitação.!

Estas e outras formas de temporalidades, como as avaliações semestrais do gabinete


e o período de exercício do cargo dos conselheiro, que serão descritos em outras partes
deste trabalho, moldam formas de relação com documentos, seus sentidos e sua
produção. Tudo se passa como se toda atividade dos profissionais do gabinete,
especialmente assessores e estagiários, fosse pautada por temporalidades que de alguma
forma estão inscritas na forma ou no conteúdo dos documentos com os quais eles
mexem e dos quais eles cuidam. Lidar com o tempo dos processos – saber quando pará-
los, soltá-los ou fazê-los andar – é parte do saber necessário para exercer esses cargos e
condição de sucesso da própria política de defesa da concorrência, que buscava nesse
período de transição institucional “responder rapidamente aos agentes econômicos” (em
tempo econômico) e mostrar “eficiência organizacional”.

Mas, para os funcionários, atentar para todas as temporalidades envolvidas no


trabalho burocrático tornava-se também fonte de preocupação e insatisfação. Como uma
das assessoras de outro gabinete me relatou, o fato de ela não conseguir se dedicar a
fundo aos casos em que trabalhava, por falta de tempo, gerava um grande
desapontamento. Ela conta que, ao ler um voto formulado pela Comissão Europeia,

! 125
tinha se sentido mal por ver como era tão detalhado e preciso. Afirmou que, no seu
trabalho, acabava “passando batido” por vários casos, produzindo votos e relatórios sem
qualidade. Segundo Hirokazu Miyazaki (2003), em sua etnografia sobre funcionários de
bancos japoneses, a sensação de “incongruidade temporal”, gerada quando há várias
interseções entre demandas organizacionais, jurídicas e econômicas, resulta em
ansiedades e esperanças divergentes entre os profissionais. Do mesmo modo, no CADE,
as temporalidades que atravessavam as práticas de documentação produziam também
sentimentos que qualificavam e classificavam o valor dos artefatos produzidos.

2.6. Acesso restrito

Além das temporalidades que atravessam e constituem práticas de instrução e


análise no órgão antitruste, o caráter confidencial – ou “sigiloso” 109 – de certos
documentos e volumes processuais também participa na construção de subjetividades,
limites e possibilidades da ação burocrática. Como já relatado, a minha entrada em
campo foi dificultada em virtude desta característica comum aos artefatos do gabinete.
Na carta formulada pelo gabinete em abril de 2012 e endereçada ao procurador-geral do
CADE, enfatiza-se esta possível restrição:

Senhor Procurador Geral:

Tendo recebido em meu Gabinete o requerimento em anexo, formulado pelo


Sr. Gustavo Gomes Onto, Doutorando em Antropologia Social do Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, protocolizado
junto ao CADE sob nº 08700.002529/2012-24, submeto-o à apreciação dessa
ProCADE, para que analise a pretensão formulada sob a ótica da legalidade.

Em caso de viabilidade jurídica do pedido, requeiro, outrossim, orientação


sobre quais medidas deverão ser adotadas relativamente ao estabelecimento
de condições de acesso às instalações e documentos do CADE a serem
observadas pelo Requerente, mormente no que concerne ao trato das
informações confidenciais de órgãos públicos e entes privados cujo manuseio
é rotina no âmbito desta instituição [...] (CADE, 2012, fl.1).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
Conforme a denominação da nova Lei de acesso à informação no 12.527, de 18 de novembro de 2011,
que, no art. 4o, parágrafo III, estipula: “informação sigilosa: aquela submetida temporariamente à
restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do
Estado”.

! 126
O parecer da procuradoria em resposta ao gabinete consistiu basicamente em uma
“Análise da legislação relativa às informações contidas em registros e documentos,
produzidos ou acumulados por órgãos ou entidades públicas” (CADE, 2012, fl. 4).
Neste parecer afirma-se inicialmente que, com base tanto na Lei no 9.784/1999, que
“disciplina o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal”, e
na mais recente Lei no 12.527 de 2011, que “regulamenta o direito constitucional
de acesso às informações públicas”, os cidadãos interessados têm:

[...] o direito de obter informações contidas em registros e documentos


produzidos ou acumulados por órgãos ou entidades públicas, bem como as
informações relativas às atividades exercidas por esses órgãos e entidades,
ressalvadas, desse direito de acesso, as informações consideradas como
sigilosas ou de acesso restrito (m. fl. 7).

Segundo o parecer, a Lei no 12.527, no artigo 21, parágrafo 1o, confere “acesso
restrito”, pelo prazo de até cem (100) anos a contar da data de sua produção, “às
informações pessoais – que dizem respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem
das pessoas – detidas pelo Poder Público”.110 De acordo com a legislação, somente os
agentes públicos legalmente autorizados, as próprias pessoas às quais as informações se
referem, e terceiros, diante de previsões legais, podem ter acesso a essas informações.

No CADE, contudo, as “pessoas” envolvidas nos processos administrativos


instruídos não são “pessoas físicas”, mas sim “jurídicas”.111 Sobre este ponto, o parecer
esclarece que “conceitos como intimidade, privacidade, honra e imagem, embora sejam
intuitivamente ligados a pessoas físicas, são, fora de dúvida, plenamente aplicáveis a
pessoas jurídicas [...], como se pode observar em várias passagens do ordenamento
jurídico pátrio” (CADE, 2012, fl. 8). Após ilustrar com alguns exemplos de julgamentos
do Supremo Tribunal Federal a utilização desses conceitos em “pessoas jurídicas”,112 a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
110
“O fundamento de um prazo tão dilatado para disponibilização de informações pessoais – cem anos –
é a de que dificilmente a divulgação de informações constantes de arquivos, cadastros, bancos de dados
ou registros administrativos provocará danos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem de
determinada pessoa, depois de passado um século” (CADE, 2012a, fl. 08).
111
Este ponto será explorado com maior profundidade no capítulo 4 desta tese.
112
“A título de exemplo, o artigo 198 do Código Tributário Nacional impõe à Fazenda Pública e a seus
servidores o dever de guardar o sigilo acerca da situação econômica ou financeira de determinada pessoa
e acerca da natureza e do estado de seus negócios ou atividades. Conforme entendeu a Segunda Turma do
Colendo Supremo Tribunal Federal, o sigilo fiscal é um ‘desdobramento do direito à intimidade e à vida
privada’. Também o artigo 1o da Lei Complementar no 105/2001 estabeleceu que as instituições
financeiras deveriam conservar sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados a terceiros.
Mais uma vez, a Segunda Turma do Colendo Supremo Tribunal Federal pronunciou-se no sentido de que
o sigilo bancário é uma ‘espécie de direito à privacidade protegido pela Constituição de 1998’” (CADE, 2012a,
fl. 8).

! 127
procuradoria afirmou também que, no caso de pessoas jurídicas como “sociedades
empresariais” – um tipo específico de pessoa jurídica – uma série de informações
podem ser consideradas como parte de sua “intimidade” ou “vida privada”: “trata-se de
informações cujo conhecimento coloca, sem dúvida, um empresário ou sociedade
empresária em vantagem competitiva em relação aos concorrentes que não as possuem”
(CADE, 2012, fl. 9).

Segundo a procuradoria, informações fiscais, bancárias, industriais e comerciais das


empresas “deverão ficar – na medida do indispensável – distantes dos olhos do público
em geral” (CADE, 2012, fl. 9), distantes de outras pessoas jurídicas e físicas, seus
concorrentes, que podem utilizá-las de modo prejudicial. Como explicado no parecer da
ProCADE, o Regimento Interno do CADE definiu quais informações fazem parte da
“esfera recôndita e indevassável dos agentes econômicos” (CADE, 2012, fl. 9), a ponto
de poderem receber tratamento confidencial no CADE. Pode ser dado “tratamento
confidencial” aos “autos, documentos, objetos, dados e informações relacionados a:

a) escrituração mercantil;
b) situação econômico-financeira de empresa;
c) sigilo fiscal ou bancário;
d) segredos de empresa;
e) processo produtivo e segredos de indústria, notadamente processos
industriais e fórmulas relativas à fabricação de produtos;
f) faturamento do requerente ou do grupo a que pertença;
g) data, valor da operação e forma de pagamento;
h) documentos que formalizam o ato de concentração notificado;
i) último relatório anual elaborado para os acionistas ou quotistas,
exceto quando o documento tiver caráter público;
j) valor e quantidade de vendas e demonstrações financeiras;
k) clientes e fornecedores;
l) capacidade instalada;
m) custos de produção e despesas com pesquisa e desenvolvimento de
novos produtos e serviços. (CADE, 2012, fl. 9)

Após listar as informações passíveis de serem consideradas confidenciais conforme


o regimento do órgão, a procuradoria concluiu o parecer, como já relatado, afirmando
que o requerimento apresentado por mim poderia ser deferido, “desde que o estudante
só tenha acesso a informações constantes de autos e documentos públicos”.
Subentendia-se do parecer da procuradoria que minha presença no órgão seria
concebida como a de um “terceiro” interessado nos processos administrativos do CADE.
Conforme esta interpretação, minha relação com os documentos também seria similar
àquela de outras pessoas, físicas ou jurídicas, externas ao CADE, que têm acesso apenas
aos autos públicos. Por outro lado, o termo de compromisso, que possibilitou minha

! 128
entrada na sala dos assessores do gabinete, alterou minha relação com os documentos,
tornando-a similar àquela que funcionários do gabinete têm com os documentos
confidenciais. Assim como eles, eu poderia agora ver e ler os volumes confidenciais
sem publicar ou divulgar seu conteúdo. Dessa forma, a possibilidade de “mexer” com
este tipo de documento indicava, mais do que qualquer outra coisa, a minha nova
posição no órgão antitruste, diferenciando-me daquela em que os advogados das partes
se encontravam.

Documentos são “tratados” como confidenciais – ou de “acesso restrito” – quando


uma parte de um processo pede para que certas informações que ela disponibilizou para
a autoridade antitruste não sejam disponibilizadas para outras partes ou interessados
(como outros concorrentes do mesmo mercado investigado). O funcionário responsável
pela instrução do processo necessita deferir o pedido de confidencialidade para que
certos trechos de documentos sejam tornados de acesso restrito, o que costuma ser feito
sem maiores controvérsias. Ao ser deferido o pedido, produz-se então uma cópia
exatamente igual, porém com trechos grifados e ocultados em preto, trechos estes que
trazem as informações consideradas sigilosas ou confidenciais pela requerente ou
representante. Essa versão com trechos marcados torna-se a versão pública. A versão
com todas as informações confidenciais é agrupada em um volume separado,
distinguido com uma fita vermelha, como mostrado acima. Em contraste com os autos
públicos que são copiados pelas partes do processo e outros interessados, os autos
confidenciais não costumam sair da mesa do assessor ou do conselheiro responsável
pelo processo, sendo movidos apenas quando ele é enviado para outro departamento
dentro do órgão, como a procuradoria ou outro gabinete.

Os apartados confidenciais geralmente são mais importantes, tendo em vista que


costumam conter as informações necessárias para a análise da empresa, suas
informações internas, como seu faturamento, e as estratégias empresariais. Por isso, a
leitura, a manipulação e a conversa sobre os autos confidenciais dentro do gabinete é
ainda mais frequente do que sobre os autos públicos. Grande parte da análise antitruste
realizada por assessores, estagiários e conselheiros se utiliza apenas das informações
desses autos. Como os votos redigidos pelos conselheiros nunca prescindem de
informações dos documentos confidenciais, estes possuem versões públicas e
confidenciais.

! 129
A manutenção da confidencialidade não é apenas uma questão para as empresas,
que podem ter suas informações utilizadas pelos concorrentes. O tratamento
confidencial dos documentos exige constante cuidado por parte do gabinete, pois a sua
incorreta disposição é capaz de invalidar uma decisão do conselho. Colocar nos autos
públicos documentos confidenciais pode ser extremamente danoso para as empresas,
mas colocar documentos públicos em autos confidenciais poderia impossibilitar o
acesso aos autos por parte dos representantes ou requerentes, fazendo com que se
questionem juridicamente os procedimentos de instrução processual. Por isso, quando
são enviados documentos confidenciais ao CADE, é obrigatório que sejam também
enviadas versões públicas. Desse modo, o assessor, o estagiário ou a secretária do
gabinete saberá que o documento é confidencial e o colocará nos volumes devidos.
Porém, tal prática nem sempre é seguida rigorosamente pelos advogados e/ou pelas
empresas. Quando uma petição é recebida sem qualquer cópia ou especificação sobre o
sigilo de seu conteúdo, a secretária geralmente a lê e pergunta ao assessor se o
documento parece conter ou não informações confidenciais. Ela ou algum assessor
telefona para as empresas e seus representantes quando há uma dúvida sobre o caráter
público ou não das informações nos documentos.

A atenção para o “tratamento” ou o modo de lidar com os documentos


confidenciais se deve, portanto, a possíveis consequências jurídicas, econômicas e
administrativas que a incorreta disposição desses documentos pode gerar. Mas,
conforme já expliquei quanto à minha própria entrada no gabinete, a relação com esse
tipo de documento, que pode limitar a compreensão da vida íntima das pessoas jurídicas,
também tem o efeito de produzir uma diferenciação entre perspectivas ou posições entre
o CADE e aqueles que o órgão é responsável por administrar.

O conteúdo dos autos confidenciais de um processo é conhecido pelo órgão


administrativo e pela requerente ou representante (empresa A, por exemplo) que
solicitou a confidencialidade desses volumes. As outras representantes ou partes
interessadas no processo (empresa B, C etc.) não têm acesso aos volumes confidenciais
da empresa A. Mas as empresas B ou C, por exemplo, também podem ter volumes
confidenciais que não estão disponíveis para a parte A. Desse modo, os volumes
confidenciais constroem duas perspectivas: aquela do órgão antitruste e aquela de cada
uma das pessoas jurídicas envolvidas no processo. Enquanto o órgão governamental
tem acesso às informações confidenciais sobre todas as partes, sejam elas partes

! 130
integrantes ou apenas partes interessadas no processo, cada uma delas tem somente a
informação de suas operações e as informações públicas disponibilizadas pelas outras
partes.

No segundo semestre do meu período de trabalho de campo, quando participei da


instrução de processos na Superintendência-Geral do CADE, recebi ligações de
advogados perguntando se havia, no processo específico no qual atuavam, algum outro
volume confidencial além daquele que eles haviam protocolado. O interesse dos
representantes não residia especificamente no conteúdo de outro volume confidencial,
mas simplesmente na existência dele.113 Caso houvesse mais um volume, a defesa
suspeitaria que outro participante do mercado ou interessado no processo estaria
fornecendo ao CADE informações relevantes para o caso. A defesa, neste caso, se
anteciparia em relação a possíveis informações prejudiciais à sua solicitação. Assim, a
simples existência de documentos confidenciais altera o modo com que partes de um
processo participam da instrução processual – os advogados que representam as partes
poderiam, por exemplo, requerer reuniões e enviar petições ao CADE caso a outra parte
no processo tivesse protocolado no órgão documentos confidenciais supostamente
relevantes.

Desse modo, os documentos confidenciais contribuem para a produção do efeito de


uma perspectiva do “Estado”, no caso da autoridade antitruste, perspectiva esta
englobadora que inclui todas as informações dos participantes do mercado. Os
funcionários do CADE, pelo fato de terem acesso às informações confidenciais, tornam-
se apartados do mercado e, por isso, têm a capacidade de administrá-lo
“imparcialmente”, ou seja, a partir de um ponto de vista de todas as partes (ou de
nenhuma). Tratar os documentos de modo confidencial, separados esteticamente e
espacialmente dos outros, é uma forma de construir fronteiras (Riles, 2011a, p. 113)
entre aqueles que são administrados e aquele que administra.114 Essa fronteira não é
construída apenas pelas restrições impostas à visualização de tais documentos, mas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
113
Como eu não sabia se era permitido o fornecimento da informação de que existia outro volume
confidencial no processo, perguntei ao coordenador responsável sobre como proceder. Segundo ele, não
havia nada que impedisse uma das partes do processo de saber sobre a existência de outro volume
confidencial. Porém, nada obrigava o analista (eu, no caso) a fornecer essa informação pelo telefone.
114
Por outro lado, a confidencialidade é, ela mesma, criadora da possibilidade de se conceberem as partes
de um processo como “agentes econômicos” (conceito utilizado no parecer da procuradoria), ou como
concorrentes de um mercado. A confidencialidade é um indicativo de que existem estratégias empresarias
em disputa e de que as informações empresariais, fiscais, bancárias, societárias ou industriais são parcela
importante dessas estratégias. Sobre a concepção dos agentes econômicos, ver capítulo 4.

! 131
também pelo fato de que pessoas não autorizadas, que não são parte do órgão antitruste,
não podem estar no mesmo local que esses artefatos. Os documentos restritos, portanto,
limitam a própria circulação de pessoas dentro do órgão, produzindo uma espacialidade
particular, também restrita.

Como disse, a possibilidade de mexer com documentos confidenciais, ler e


manusear esses artefatos é exclusiva dos funcionários do conselho, pois esses
documentos carregam em seu conteúdo parte da “vida íntima” das pessoas jurídicas,
tipo de informação que não pode ser divulgado ou publicado. Minha efetiva entrada em
campo foi restringida até certo ponto pela impossibilidade de que eu, como antropólogo
ou pesquisador, pudesse lidar com esse tipo de documento. O meu acesso ao gabinete
implicou o estabelecimento de uma nova relação com os documentos confidenciais,
discriminada pelo termo de compromisso assinado. Como consequência dessa
possibilidade de entrar no gabinete e conviver com esses documentos qualificados como
confidenciais, passei a ser identificado pela Coordenação de Gestão de Pessoas como
“colaborador”, conforme o crachá que me deram e que deveria ser utilizado sempre
dentro do edifício, como os outros funcionários. A identificação me dava acesso a todos
os espaços do conselho, embora meu trabalho estivesse sob a responsabilidade de um
dos gabinetes.

Minha nova identificação e a possibilidade de circular no mesmo espaço onde


documentos confidenciais permaneciam faziam com que eu pudesse ler e ver como são
circulados e produzidos todos os documentos do gabinete, tanto públicos quanto
confidenciais, físicos ou eletrônicos. Devido à quantidade de processos no gabinete,
muitos autos estavam dispostos na própria mesa na qual eu havia sido lotado. Até
mesmo o memorando que busquei por semanas, com meu requerimento para pesquisa e
o parecer da procuradoria, estava agora acessível, como se pouco importasse, num nicho
da minha mesa. A partir dessa nova condição de pesquisa, dentro da sala dos assessores,
pude acompanhar outros aspectos da análise antitruste envolvida no trabalho de
instrução processual, os quais descrevo nos próximos capítulos.

2.7. Governo dos papéis e governo pelos papéis

! 132
Na terceira semana de pesquisa no CADE, o chefe de gabinete me ofereceu uma
mesa com um computador dentro da sala dos assessores, para que eu pudesse
acompanhar seus trabalhos. Passei os primeiros meses conversando com assessores,
estagiários, com a secretária e com o conselheiro, tentando compreender e descrever o
que estavam fazendo. Eu esperava encontrar no gabinete um diálogo constante entre
esses profissionais sobre possibilidades de uso de teorias econômicas, a situação de
mercados específicos e os indícios de condutas anticompetitivas praticadas pelas
empresas. Mas, para minha surpresa, esses funcionários estavam aparentemente mais
interessados em saber que ofícios precisavam ser produzidos, que processos deveriam
ser “soltos” na próxima sessão de julgamento e quais documentos poderiam ser
disponibilizados quando os advogados solicitassem uma cópia.

Como descrevi neste capítulo, a minha trajetória, desde as primeiras tentativas de


entrada de campo, foram permeadas por práticas que envolviam diferentes artefatos
remarcados ao longo do texto – como requerimentos, petições, pareceres, termos de
compromisso, memorandos, processos, ofícios, votos, relatórios, referendos, despachos,
memoriais, listas de presença, pautas e e-mails. Desde o início, a observação e a
descrição dessas práticas de documentação, que caracterizavam o trabalho do órgão
antitruste, serviam como uma iniciação a práticas rotineiras da política antitruste.
Mesmo tendo formação em economia, a quantidade, a profundidade e a variedade das
questões jurídicas, administrativas e econômicas com as quais esses profissionais
lidavam fugiam bastante do meu conhecimento. Por outro lado, a observação dos tipos
de documentos, dos sentidos que eram dados a eles e das relações que eram construídas
com as suas produção, circulação e organização não exigiam de mim uma compreensão
maior das doutrinas jurídicas e teorias econômicas mobilizadas por eles. Da mesma
forma que para mim, essas práticas são também as primeiras com as quais novos
funcionários do CADE devem se familiarizar, sendo mais fundamentais para o exercício
das mais variadas funções do que o próprio conhecimento teórico e analítico exigido na
política de defesa da concorrência, pois este “viria com o tempo”, segundo alguns
interlocutores.

As práticas de documentação que descrevi neste capítulo permeiam a defesa ou o


governo da concorrência. A maioria delas não é exclusiva deste gabinete, mas são
características de todos os setores do órgão que instruem processos administrativos,
inclusive da Superintendência-Geral do CADE, embora o trabalho neste setor não esteja

! 133
sujeito às temporalidades relativas aos julgamentos realizados quinzenalmente. As
práticas de documentação envolvem um conhecimento sobre como produzir, enviar,
circular diferentes formas documentais, conhecendo qual a sua eficácia administrativa e
como devem ser utilizadas. Além disso, implicam saber como lidar com diferentes
temporalidades, com formas de acesso e com a organização de vários artefatos
simultaneamente. Essas práticas, portanto, necessitam ser compreendidas tanto pelos
funcionários do órgão antitruste quanto pelas pessoas (físicas e jurídicas) que lidam com
eles, como advogados que representam partes interessadas nos processos.

Baseado em outras etnografias que têm dado importância analítica às qualidades


formais, estéticas (Riles, 2006b, 2011a) ou materiais (Hull, 2012a; Latour, 2002) dos
documentos sob variados aspectos, procurei, neste capítulo, descrever como algumas
características desses artefatos – como seu tipo (PAs ou ACs), seu acesso, sua
temporalidade, seu tamanho e disposição – e as práticas que os incluem – mexer, cuidar,
parar, soltar, fazer andar – contribuem para constituir subjetividades, hierarquias,
relações sociais ou emoções. Essa descrição demonstra como em determinadas
circunstâncias e para alguns cargos profissionais qualidades materiais ou formais desses
artefatos são tão ou mais importantes para o exercício de determinadas funções no
gabinete do que o conteúdo dos documentos ou aquilo a que se referem.115

No início do trabalho de campo, na sala de espera do gabinete, passei a “ver”, assim


como a secretária e o estagiário do ensino médio, os documentos ou os conjuntos de
documentos que ali eram produzidos e circulados como artefatos – objetos cuja eficácia
transcende seu caráter referencial. Tanto o estagiário como a secretária não tinham
formação em direito ou economia e muito menos na especialidade do antitruste ou da
concorrência, de modo que para eles não era a análise jurídico-econômica que aqueles
documentos traziam, fosse em petições, fosse em relatórios, que importava. Eram a
disposição, a numeração, o modo de envio e de recebimento dos artefatos que faziam
toda a diferença, pois “mexer” com eles de forma equivocada, tratando-os
inapropriadamente, poderia resultar na invalidação de uma decisão administrativa do
órgão ou mesmo na demissão de quem assim tivesse agido . A secretária, no entanto,
apesar de não se envolver na análise, necessitava saber que tipo de documento era

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
115
Na literatura antropológica mais recente sobre documentos, tais características materiais ou formais
servem como um contraponto metodológico e analítico ao que seria uma consideração exclusivamente ou
excessivamente referencial do tratamento etnográfico do material documental (ver Riles, 2006b, 2011a).

! 134
aquele e quem era o seu responsável, o que envolve uma apreciação ao mesmo tempo
da forma e do conteúdo dos documentos.

Na sala dos assessores, esses artefatos exigiam uma atenção, um “cuidado”


particular, principalmente em relação à sua organização, à sua temporalidade e ao seu
acesso. A criação de formas de gestão dos documentos, como tabelas e quadros, era
parte do trabalho do chefe de gabinete. Essa organização era feita acima de tudo para
lidar com a temporalidade dos processos (seu prazos) e com outras que influenciavam o
trabalho do gabinete, como as “prioridades da presidência” e o “tempo da economia”.
Saber quando “parar”, “soltar” e “fazer andar” um processo constituía também uma
forma de expertise que envolvia principalmente a produção e o envio de outro tipo de
documento: o ofício. Como será descrito nos próximos capítulos, este tipo de
documento é a principal ferramenta que os analistas de um processo utilizam para obter
informações sobre as empresas, os mercados e os setores envolvidos em uma
concentração ou conduta empresarial. Porém, neste capítulo, os ofícios são o meio pelo
qual os assessores e os estagiários buscam controlar as diversas temporalidades que
atravessam a instrução processual. Os ofícios são, deste ponto de vista, um artefato para
controlar o tempo burocrático e as diversas demandas que lhes são impostas.

Os artefatos também estabelecem limites sobre o que é possível ser feito com eles,
produzindo diferentes posições e perspectivas. Em primeiro lugar, os documentos
sigilosos criam uma separação clara entre quem faz e quem não faz parte do CADE,
restringindo quem pode vê-los ou lê-los, mas também quais são os espaços acessíveis a
quem não é um funcionário do órgão antitruste. Os documentos sigilosos, portanto, são
limitados em sua circulação, mas também acabam por limitar a própria circulação de
pessoas. Ao fazerem isso, esses documentos, pelo seu conteúdo particular, também
estabelecem a diferença entre uma perspectiva do órgão antitruste, que tem informações
íntimas de todas as pessoas jurídicas envolvidas no processo, e uma perspectiva de cada
um dos “agentes de mercado”, que não têm as informações compiladas de todos.

Em seu estudo sobre a burocracia paquistanesa, Matthew Hull (2012a) cunha o


termo government of paper para descrever o trabalho das organizações burocráticas
estatais. Em inglês o termo tem o duplo sentido de um governo dos papéis e um
governo pelos papéis. O primeiro sentido refere-se às práticas comuns de administração
das várias formas documentais que são características de burocracias nas mais variadas

! 135
localidades. O segundo sentido da expressão refere-se ao modo como as organizações
estatais governam objetos ou sujeitos por meio dos papéis, ou seja, por meio de
artefatos que, ao serem produzidos e circulados para além dos limites organizacionais,
constituem e exercem formas de controle, regulação ou governo.

Neste capítulo, enfatizei o primeiro sentido dessa expressão, ou seja, o modo


como os documentos são constitutivos das relações internas de funcionamento do órgão
antitruste. Ao descrevê-los como artefatos, busquei demonstrar como os aspectos
materiais e formais (como a temporalidade e o acesso restrito) dos documentos do
CADE podem ser tão importantes para os funcionários quanto seus aspectos
referenciais. Nos próximos capítulos, entretanto, procuro descrever como os
documentos do CADE também são constitutivos do conhecimento necessário à análise
antitruste: o entendimento dos mercados e dos agentes econômicos, ou seja, dos
próprios objetos e sujeitos que se procura administrar. Neste sentido, demonstro como o
CADE governa pelos papéis. Ao descrever, separando analiticamente estes dois
sentidos da expressão government of paper, procuro atentar para essa característica
multifacetada da eficácia dos documentos em órgãos estatais que tem sido apontada em
algumas etnografias. Como afirma Adriana Vianna (2014, p. 47):

levar a sério os documentos como peças etnográficas implica tomá-los como


construtores da realidade tanto por aquilo que produzem na situação na qual
fazem parte – como fabricam um “processo” como sequência de atos no
tempo, ocorrendo em condições específicas e com múltiplos e desiguais
atores e autores – quanto por aquilo que conscientemente sedimentam.116

Principalmente para os que fazem as análises envolvidas na instrução processual,


aquilo a que um documento se refere, seu conteúdo ou “aquilo que conscientemente
sedimentam” têm uma importância tão grande quanto a organização, a temporalidade e
a confidencialidade deles dentro do gabinete. A instrução do processo requer uma
análise antitruste que envolve práticas de documentação tanto no sentido de organizar e
gerir tipos de documentos quanto de registrar, descrever e interpretar relações
econômicas e condutas empresariais. Por isso, neste segundo caso, os documentos são
compreendidos também como “mediadores” (Latour, 2005) entre o órgão antitruste e as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
116
De modo similar, Matthew Hull (2012a, p. 5) argumenta: “In addition to describing the logics,
concepts, norms, and sociology of bureaucratic texts, scholars also need to account for how documents
engage (or do not engage) with people, places, and things to make (other) bureaucratic objects […] how
bureaucratic objects are ‘enacted’ in practice”.

! 136
empresas do mercado, ferramentas que produzem um conhecimento sobre uma
realidade considerada externa ao órgão antitruste. No próximo capítulo, explico essa
outra concepção dos documentos por meio da descrição de como os profissionais do
CADE – assessores, analistas técnicos, conselheiros ou coordenadores – fazem para
“definir mercados”.

! 137
Capítulo 3 : Definindo mercados

No primeiro mês em que permaneci no gabinete, logo após uma sessão de


julgamento, o conselheiro abriu a porta da sala dos assessores sorrindo e
cumprimentando todos de forma entusiasmada. Pediu que eu fosse à sua sala para que
pudéssemos conversar mais tranquilamente. Após se sentar em sua cadeira, disse que
estava contente, pois os outros conselheiros o haviam elogiado publicamente na sessão
daquele dia. Sua inovação metodológica para a “definição do mercado relevante
geográfico”, utilizada no julgamento de um processo referente a uma fusão hospitalar,
tinha sido considerada uma contribuição importante para a jurisprudência do órgão. A
partir de então seria muito provável que a mesma metodologia fosse empregada por
outros conselheiros e assessores quando analisassem este mesmo setor da economia. O
conselheiro acreditava que tal reconhecimento era importante não apenas como forma
de demonstração de respeito por parte de seus pares, subordinados e advogados, mas
também como um indício de que sua recondução ao cargo seria plausível no ano
seguinte. Tendo em vista esses benefícios, ele explicou que continuaria trabalhando
para que sua capacidade em “definir mercados” fosse considerada uma “marca” de seu
mandato.

A trajetória do conselheiro Carlos como funcionário da SEAE já lhe trouxera uma


exímia reputação como técnico, sendo comum que assessores de outros conselheiros do
Tribunal o procurassem para que ele indicasse ou elucidasse o melhor caminho a seguir
ao analisar certos casos. Como responsável pela instrução de atos de concentração na
secretaria, o doutor em economia pela Universidade de Brasília e funcionário de carreira
do Ministério da Fazenda estava bastante familiarizado com as técnicas utilizadas para
analisar processos deste tipo. A mais conhecida delas, a tal “definição de mercado
relevante”, considerada também a primeira e mais importante “etapa” da análise de
concentrações, constituía não apenas a sua especialidade, mas também o modo pelo
qual o conselheiro compreendia a importância do seu trabalho e da política de defesa da
concorrência como um todo. Segundo ele, a “análise estrutural de mercados”, como
também é conhecido o procedimento de definição de “mercados relevantes”, possibilita
ao regulador a obtenção de “critérios objetivos” para a avaliação de uma concentração,
isto é, permite a especificação exata onde poderá surgir um “problema concorrencial”.

! 138
Por isso, a definição de mercados era, para ele, condição necessária para a análise
antitruste, garantindo decisões baseadas em “argumentos concretos” sobre o
funcionamento da economia.

Não por acaso, portanto, o conselheiro se dedicava quase integralmente à instrução


dos processos de concentração empresariais. Como dito anteriormente, o esvaziamento
do “estoque” de processos restante da legislação anterior era um desejo e uma
prioridade para o presidente do órgão antitruste. Esse conjunto de processos foi
redistribuído de modo a que atos de concentração fossem instruídos por gabinetes de
conselheiros economistas e outros tipos de processos administrativos fossem instruídos
por juristas, levando em consideração a maior carga de análise econômica envolvida na
investigação de fusões e aquisições. A divisão gerava uma oportunidade para o
conselheiro. Esses processos tinham a vantagem de serem mais familiares a ele,
tornando sua interpretação e sua análise mais simples. Mostrar que aqueles processos
poderiam ser analisados com rapidez, mas ao mesmo tempo com rigor técnico, poderia
lhe valer uma recondução ou uma promoção a cargos mais altos em outros órgãos da
administração pública117. “Deixar de lado”, na sala de espera de seu gabinete, processos
que não fossem “atos de concentração”, possivelmente resultaria numa estratégia bem-
sucedida quanto ao seu futuro profissional. Assim, nos meses em que passei no gabinete,
grande parte das conversas entre assessores ou entre estes e o conselheiro diziam
respeito à análise e à instrução de atos de concentração, que envolviam, quase
necessariamente, práticas relacionadas à “definição de mercados”.

A importância central dada por este conselheiro e seu gabinete às práticas que
envolvem definir as “fronteiras” de um mercado na análise de atos de concentração não
é de todo surpreendente. Outros profissionais do antitruste também compartilham da
concepção de que tais práticas são fundamentais. “Não há concorrência em geral, o que
existe é concorrência em um mercado”, me disse um assessor do CADE, formado em
direito, de outro gabinete. “Grande parte do nosso trabalho é identificar qual é este

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
117
Como profissional de carreira do Ministério da Fazenda, Carlos não pensava deixar o serviço público
ao final do mandato no CADE. Ao saírem do CADE, conselheiros que antes de serem nomeados atuavam
como acadêmicos, advogados ou consultores econômicos, costumam receber ofertas de empregos em
cargos mais altos, geralmente em escritórios de advocacia ou consultorias econômicas. Este mandato
temporário dos conselheiros acaba servindo como uma promoção na carreira profissional. A possibilidade
de trabalhar no setor privado ao final do mandato também tem o efeito de reduzir a possibilidade de
conflitos mais tensos entre o órgão antitruste e as empresas e seus representantes. Os advogados e
economistas mais respeitados que representam empresas costumam ser ex-conselheiros do órgão
antitruste.

! 139
mercado, num caso particular”, e continuou: “o problema é que a lei [de concorrência] é
horizontal e os mercados são todos diferentes [...] cada caso é um mercado e é por isso
que se faz a delimitação do mercado relevante”. No CADE como um todo, para que seja
possível apreciar a união entre duas empresas, considera-se indispensável uma
delimitação ou definição de um “mercado relevante”. Para especialistas em direito ou
economia da concorrência, essa definição é suficiente, em muitos casos, para uma
avaliação dos possíveis prejuízos à concorrência gerados com a união de duas ou mais
empresas (McChesney, 1996).

Considerada um procedimento central na análise de atos de concentração nos


órgãos antitruste em todo o mundo, a “definição de mercado” ou a “definição do
mercado relevante” implica, em larga medida, especificar qual produto ou serviço
comercializado será afetado pela concentração e onde, em que local, a venda desses
produtos será afetada. O “mercado”, como ficará mais claro adiante, no sentido da
política antitruste, é portanto um recorte que permite avaliar e mensurar o impacto que
uma fusão ou uma aquisição poderá ocasionar. Tal procedimento exige um extenso
trabalho de produção e interpretação de conhecimento sobre empresas, setores da
economia e consumidores, visando delimitar claramente quais produtos competem entre
si – quais são “substitutos” entre si – e quais não competem, além de delimitar
geograficamente onde (bairros, municípios, Estados) essas empresas concorrem.

A definição de mercado adquire uma importância central na prática antitruste, pois,


sendo ela essencial para a análise de um caso e para o futuro das empresas interessadas,
o procedimento acaba sendo fonte de maiores controvérsias. Esse recorte ou
enquadramento costuma ser o principal motivo de divergência entre os órgãos antitruste
e as empresas envolvidas nas concentrações. A definição é realizada principalmente
com informações fornecidas pelas próprias empresas no momento em que notificam ao
CADE sua intenção de unir-se. Como desejam que o órgão aprove esse pedido, as
empresas tendem a argumentar a favor de uma definição de mercado que as favoreça,
fornecendo à autoridade antitruste informações que não as prejudiquem. Por isso,
costuma haver desentendimentos entre a definição do mercado relevante produzida
pelas requerentes, com o auxílio de consultorias econômicas e escritórios de advocacia,
e aquela produzida pela autoridade antitruste.

! 140
Sendo fundamental na política antitruste da imensa maioria dos países e, ainda por
cima, caracterizando o trabalho e as motivações do gabinete em que eu me encontrava,
as práticas envolvidas na definição de “mercados relevantes”, além dos conceitos e das
racionalidades que as caracterizam, tornaram-se incontornáveis na tentativa de se
compreender etnograficamente a política de defesa da concorrência. Entretanto, como
constatei logo no início, descrever essas práticas não seria algo trivial, nem mesmo para
alguém formado em economia, que já tenha dedicado horas de estudo ao funcionamento
do sistema econômico e de seus “mercados”. Embora a definição de um mercado pareça
uma tarefa habitual a um economista, este tipo de definição, em que há a necessidade de
uma especificação exata de fronteiras geográficas e de produtos comercializados, é
relativamente raro na análise econômica. Com exceção da área de marketing (ver
Araujo, Finch & Kjellberg, 2010), são poucas as ocasiões em que a definição precisa de
um mercado – de um tipo muito específico de mercado – é tão fundamental quanto no
antitruste (ver Christophers, 2014, 2015; Kjellberg, 2010).118

Na primeira e na segunda seções deste capítulo, descrevo como o conceito de


“mercado relevante” utilizado na política de defesa da concorrência difere das noções
de mercado mais usuais da teoria econômica. Para isso, faço uma breve arqueologia
mostrando como desenvolvimentos nos estudos econômicos de mercados e na
legislação e jurisprudência estadunidenses produziram um conceito de mercado que tem
um sentido muito particular voltado à necessidade de se construir um recorte para que a
lei possa ser aplicada. Também descrevo o modo como esse conceito começou a ser
empregado no Brasil, quase 40 anos após sua primeira formulação nos Estados Unidos.
Procuro mostrar como a especificidade do “mercado relevante”, ou seja, o mercado
pertinente à análise de um caso, decorre do fato de ele ser um conceito híbrido, ao
mesmo tempo jurídico e econômico. Na terceira seção, descrevo o procedimento de
delimitação de mercado no voto do conselheiro-relator do caso relativo à fusão das
empresas Gol Linhas Aéreas e Webjet. A utilização do conceito de “mercado relevante”
neste caso que tanto gerou controvérsias possibilita compreender como o mercado
funciona simultaneamente como uma técnica de enquadramento legal, possibilitando

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
118
“Market definition in that rigid sense is a notion unknown in economics more generally. True,
microeconomics works routinely with notions of markets, in both the product and geographic senses.
Outside the antitrust world, however, not even the least Austrian of economists would pretend to be able
to define the product and geographic boundaries of markets with any useful precision” (McChesney, 1996,
p. XVI)

! 141
definir o escopo de aplicação da lei, e como um recorte de relações econômicas,
permitindo visualizar as restrições concorrenciais enfrentadas pelas empresas.

Na quarta seção, descrevo por meio de dois relatos etnográficos as práticas


envolvidas na definição de mercados em diferentes casos analisados pelos profissionais
do gabinete em que eu me encontrava. Primeiramente, abordo como os funcionários do
CADE se utilizam de experiências vividas pessoalmente para ajudá-los a inferir a
respeito das características do comportamento de consumidores, vendedores ou sobre
particularidades dos setores ou das empresas. Ao acionar essas experiências, os
responsáveis pela análise dos casos se colocam como sujeitos das relações econômicas
que eles buscam conhecer. Contudo, indo além dessas experiências, que não podem ser
usadas como evidências jurídicas para a decisão de um caso, os funcionários do CADE
definem os mercados principalmente através de práticas de documentação, ou seja, pelo
envio, a produção, a circulação e o recebimento de documentos. Nesta seção, mostro
como o envio de ofícios e o recebimento de petições, com anexos e tabelas neles
incluídos, produzem o conhecimento necessário e juridicamente válido para visualizar e
delimitar o espaço geográfico e os produtos ou serviços que serão possivelmente mais
afetados pela concentração.

Ainda, por meio de conversas e entrevistas com conselheiros, assessores e


coordenadores, procuro explicar como eles entendem a definição e o conceito de
mercado relevante. Nota-se claramente que os funcionários do CADE têm duas
concepções sobre o mercado. O mercado pode ser entendido como uma representação
de uma realidade econômica, agindo como um “espelho” das relações econômicas reais,
ou o mercado pode ser considerado uma ferramenta ou uma técnica jurídica, agindo
como um “filtro” útil para a análise antitruste, sem a pretensão de retratar a realidade.
Essas duas formas de conceber o mercado, embora sejam utilizadas concomitantemente
na prática, expressam, como pude perceber, uma diferença na relação dos funcionários
com as práticas de documentação envolvidas na definição de mercados. O modo como
eles entendem a relação entre os documentos, principalmente ofícios e petições, com
aquilo a que eles se referem (os mercados), ajuda a explicar essas duas concepções do
mercado relevante.

Por fim, coloco essas concepções de mercado da política antitruste em paralelo com
aquelas desenvolvidas na sociologia e na antropologia da economia. Procuro

! 142
demonstrar como tais concepções se aproximam em alguns aspectos e diferem em
outros de uma série de formulações mais clássicas e mais contemporâneas a respeito
dos mercados nas ciências sociais. Mais especificamente, argumento que as abordagens
mais contemporâneas sobre mercados, em especial a chamada perspectiva sociotécnica
ou performativa dos mercados (Callon, 2007; MacKenzie, 2008), influenciada pelos
estudos sociais das ciências e da tecnologia, impossibilitam compreender a relação das
leis e do direito na concepção e na construção de mercados. Quando destacam essa
relação, tais estudos argumentam que as leis e o direito são apenas mais um dos
elementos que participam de arranjos formatadores ou performadores de mercados.
Como procuro demonstrar, essa abordagem desconsidera tanto a particularidade
epistemológica do conhecimento jurídico quanto a perspectiva de pessoas, como os
funcionários do CADE, que, mesmo construindo mercados, se consideram externos a
eles. Argumento que o mercado na política antitruste é concebido principalmente como
um recorte ou um contexto legal e econômico que tem a função de evidenciar relações e
capacidades dos agentes econômicos, permitindo ao analista visualizar um possível
problema concorrencial e, assim, definir a possibilidade de ocorrência de um ato ilícito.

3.1. Limiares da troca

Segundo o historiador Jean-Christophe Agnew (1986) em trabalho sobre as


transformações sociais e culturais trazidas pelas trocas comerciais na Europa, pode-se
dizer que, na história da Europa, aquilo que se tornou conhecido como noção de
“mercado” (market ou marketplance) na Idade Média surgiu de forma mais clara ainda
na Antiguidade. Naquele período era comum a existência de esferas segregadas da
atividade comercial; locais marginais onde era permitido realizar a troca de mercadorias.
Delimitados por pedras sagradas em zonas rurais, entre vilarejos e tribos, ou contidos
nas ágoras de cidades-estados gregas, os “mercados” eram considerados espaços
transgressores, poluidores de formas mais centrais de troca (como a troca de dádivas) e
de comportamentos. Mercadores (metics), pessoas que praticavam tais trocas comerciais,

! 143
eram igualmente considerados marginais, sendo a eles proibida a posse de direitos de
propriedade e a cidadania.

Na Grécia Antiga, por exemplo, circunscreviam-se as transações mercantis em uma


variedade de práticas festivas e cerimoniais, sendo que a entrada no espaço das ágoras
requeria juramentos ao deus Hermes, rituais e amuletos especiais. Essa limitação
política, social, cultural e temporal das relações de troca mercantis evidencia uma
tentativa de situá-las em uma estrutura de autoridade e poder (Agnew, 1986, p. 25),
tendo em vista sua capacidade, segundo os gregos, de romper com os fundamentos
morais e sociais estabelecidos. Agnew denomina esses espaços segregados como
“limiares da troca” (thresholds of exchange) (p. 23): uma fronteira ou um contexto
definido simbólica e materialmente no qual a troca ocorre e, mais importante, onde ela é
permitida.

Segundo Agnew, esses espaços bem definidos passaram a ser denominados


“mercados” na Idade Média. O historiador argumenta que a palavra market (mercado)
começou a ser utilizada na língua inglesa em torno do século XII em documentos que
buscavam registrar horários para a compra e a venda de alimentos ou de rebanhos
animais em determinados espaços públicos. Do latim mercatus, cujo significado era
“troca” ou “lugar de troca”, a palavra market denotava precisamente a área, a ocasião ou
a agremiação de compradores e vendedores reunidos em local e horário específicos. Se
na Antiguidade delimitavam-se espaços de troca mercantis com pedras sagradas, na
Idade Média eram usadas cruzes para marcar os espaços dentro das cidades onde essa
troca era permitida. Os locais onde essas cruzes foram dispostas passaram a ser
conhecidos como praças de mercados (market squares), parte importante da vida urbana
onde se celebravam festivais e se encenavam peças teatrais. Fernand Braudel (1976, p.
33) denominou os mercados desse período de “públicos” ou “abertos”, caracterizados
precisamente por serem vigiados, administrados e regulamentados pelas “autoridades
urbanas”. Segundo Agnew (1986, p. 41), o mercado medieval sugeria “uma esfera de
comércio claramente delineada, um espaço físico e social experienciado [...] Era,
resumidamente, um termo situado”.119 O próprio termo marketplace, que também era
utilizado como sinônimo de market, indica esta conotação.

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119
“Early markets did not so much control space as they were controlled by spatial arrangements growing
out of the organization of other kinds of social exchange, including gift and tributary practices. These
markets were, in every possible sense of the term, situated phenomena; that is to say, they were assigned

! 144
Os mercados, como espaços bem delimitados nas cidades, eram importantes do
ponto de vista dos governantes, especialmente para evitar abusos por parte dos
comerciantes. Dentro de um espaço segregado era mais simples controlar os preços que
eram cobrados e garantir que estes seriam “estimativas comuns” (publica aetimatio),
correspondentes ao “preço justo” obtido pelo consenso e pela barganha entre
compradores e vendedores (Agnew, 1986; Braudel, 1976). Os mercados garantiam,
assim, a possibilidade de uma situação de “concorrência”, no sentido usual no século
XVI, como vimos no primeiro capítulo, de uma coincidência ou paralelismo no valor
dos preços. A relação entre o mercado e a concorrência, portanto, está intimamente
vinculada a uma configuração espacial e temporal que permite ao governante e aos
compradores “visualizarem” as pessoas e os produtos da troca mercantil. O mercado era
nesse período, segundo Agnew (1986, p. 40), um “lugar para ver” (place for seeing), o
que possibilitava obter resultados mais justos e favoráveis para todos.

A partir do fim da Idade Média e início do Renascimento, contudo, a noção de


mercado havia se multiplicado em várias outras mais abstratas. O mercado agora se
referia, principalmente, a qualquer ato de compra e venda de mercadorias, sem
localização precisa no tempo ou espaço, e ao preço ou ao valor de troca de bens ou
serviços. Progressivamente, o “mercado” deixou de requerer a existência de um sítio ou
local, bastando apenas a presença de itens compráveis ou vendáveis e de uma renda
disponível para comprá-los – um mercado que poderia se expandir no espaço e no
tempo. Para Agnew (1986, p. 41), no final do século XVIII, na Inglaterra, entre círculos
intelectuais, o entendimento de que um “mercado” era um fenômeno sem fronteiras
espaciais e temporais era tão disseminado que juristas, tendo em vista a administração
de praças de comércio, tiveram de cunhar o termo market overt (mercado aparente, não
escondido) para especificar aquele mercado urbano situado e visível, que agora estava
presente em praticamente qualquer povoado. Em alguns séculos, portanto, devido a uma
série de fatores que modificaram a forma e o entendimento das transações comerciais, o

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to precise sites – in space and time – in societies where the particularities of place and season were
intricately linked to the dominant patterns of meaning and feeling and where the configuration of the
landscape was itself used as a mnemonic repository of collective myth, memory, and practical wisdom”
(Agnew, 1986, p. 18).

! 145
sentido da noção de mercado passa de um local específico no tempo e no espaço para
um processo ou, ainda, um princípio regulador das trocas.120

Os vários sentidos que a noção de mercado ganhou no final do Renascimento


europeu não foram mitigados com o surgimento de um pensamento mais teórico sobre a
economia a partir do século XVIII. Isto porque, entre os chamados economistas
políticos, a explicação para o crescimento e o enriquecimento das nações – preocupação
principal naquele período – estava localizada mais na produção de mercadorias e menos
na sua circulação ou distribuição. Se a produção do “valor econômico” estava centrada
no trabalho e na produção, como afirmavam Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx,
entre outros, não havia interesse maior em desenvolver mais profundamente teorias
sobre o mercado ou sobre a “esfera de circulação”, como Marx o chamava, pois esta era
apenas “uma esfera barulhenta onde tudo acontece na superfície” (Marx, 1987, citado
em Swedberg, 1994, p. 259).

A relativa falta de estudos teóricos mais aprofundados sobre o conceito de mercado


na ciência econômica tem sido criticada por vários economistas e sociólogos (Callon,
1998) até os dias de hoje. Segundo o reconhecido historiador econômico Douglas North
(1977, p. 710): “é peculiar o fato de que a literatura de economia [...] contenha tão
pouca discussão da instituição central em que se baseia a economia neoclássica, o
mercado”.121 Para alguns desses críticos, a literatura econômica sempre lidou com o
conceito de mercado, porém de modo implícito (Swedberg, 1994, p. 257), sendo que
uma reflexão mais extensa, embora ainda relativamente superficial sobre o conceito,
inicia-se somente com a chamada “revolução marginalista” (ou neoclássica) na teoria
econômica em meados do século XIX. É nessa época que a relação de troca se torna o
foco central das preocupações de economistas. Substituindo a ênfase na produção e na
“teoria do valor”, o estudo dos mercados, que na perspectiva matemática dos novos
autores consistia basicamente numa relação entre oferta e demanda de produtos e
serviços, tornou-se mais relevante para se compreender a formação de preços, custos e a

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120
Esses vários sentidos da noção de mercado, como local e como princípio, foram detalhadamente
descritos e utilizados pela antropologia econômica desde seu surgimento, como veremos mais adiante
neste capítulo.
121
Outros dois prêmios Nobel de economia, Ronald Coase e George Stigler, também criticaram a falta de
uma investigação mais detalhada sobre o conceito. Coase (1988, p. 7), que desenvolveu um projeto de
pesquisa sobre o tema, afirma: “in modern economic theory the market itself has an even more shadowy
role than that of the firm”. Para o George Stigler (1967, p. 291): “a teoria econômica preocupa-se com
mercados (e) é, portanto, uma fonte de constrangimento que tão pouca atenção tenha sido dada à teoria
dos mercados”.

! 146
“alocação de recursos” numa economia. A partir de então, quando economistas se
referem a mercados, eles têm em mente o que Gerowski (1998) denomina de “mercado
de troca” (trading market), cuja expressão máxima se deu com o trabalho do
matemático e economista francês Antoine Cournot, para quem:

Economistas entendem pelo termo Mercado não um local de mercado


[marketplace] particular onde coisas são compradas e vendidas, mas toda a
região em que compradores e vendedores estão em tamanha livre conexão
uns com outros que os preços de bens similares tendem à igualdade
facilmente e rapidamente (Cournot, 1838, citado em Marshall, 1890).

A definição de Cournot, que se tornou uma referência na área, buscava estender o


conceito de mercado como algo além de um local específico,122 acrescentando uma
consideração a respeito da intensidade da interação entre compradores e vendedores e,
mais importante, um princípio ou um modelo de funcionamento. Sua inovação foi
definir um “mercado” como um espaço geográfico em que a concorrência entre os
vendedores seria “perfeita” e onde todos os compradores e vendedores possuiriam igual
informação sobre os produtos e seus preços.123 Essa definição dá origem ao conceito de
“concorrência perfeita” na segunda metade do século XIX, vindo substituir, na teoria
econômica, a noção de “livre concorrência”, tão cara aos economistas políticos clássicos.
A “concorrência perfeita” é o pressuposto de que o mercado abarca um número tão
grande de vendedores que nenhum deles tem a capacidade de alterar significativamente
o preço do produto (o mercado de pão francês é um exemplo). Isto implicaria que um
mercado seria qualquer região ou área em que os preços de produtos semelhantes
estivessem convergindo para um mesmo valor (Swedberg, 1994, p. 259).

Da mesma maneira, outro economista, William Stanley Jevons (1871), também


distanciou e expandiu o conceito de mercado quanto ao sentido original que vigorou até
o final da Idade Média, argumentando que o importante na definição de um mercado é a
interação entre vendedores e compradores, que podem estar em locais distintos, mas
participarem do mesmo mercado:

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122
A perspectiva deste economista, vale enfatizar, não ignorava o aspecto geográfico na definição de um
mercado, mas simplesmente afirmava que esse espaço poderia se estender ilimitadamente dependendo da
forma de interação entre os agentes e, consequentemente, do comportamento dos preços. Segundo
Cournot (1971, p. 51 [1838]): “[mercado é] todo o território em que as partes são tão unidas pelas
relações de comércio irrestrito que os preços se nivelam por toda parte com facilidade e rapidez”.
123
Informação perfeita significa que todos os atores no mercado, automaticamente e sem custo algum,
possuem todas as informações sobre os concorrentes, produtos e preços praticados no mercado
(Swedberg, 1994).

! 147
Originally a market was a public place in a town where provisions and other
objects were exposed for sale; but the word has been generalized, so as to
mean any body of persons who are in intimate business relations and carry on
extensive transactions in any commodity. A great city may contain as many
markets as there as important branches of trade, and these markets may or
may not be localized. The central point of a market is the public exchange,
mart or auction rooms, where the traders agree to meet and transact business.
In London Stock Market, the Corn Market, the Sugar Market, and many
others are distinctly localized; in Manchester the Cotton Market, the Cotton
Waste Market, and others. But this distinction of locality is not necessary.
The traders may be spread over a whole town, or region or country, and yet
make a market, if they are, by means of fairs, meetings, published price lists,
the post-office or otherwise, in close communication with each other (Jevons,
1871, citado em Marshall, 1890, p. 270).

Essa noção de mercado, que, similar a Cournot, implica um ideal de funcionamento,


fica clara na definição do mais importante economista do final do século XIX, o
professor de Cambridge Alfred Marshall (1890, p. 270): “um mercado é mais perfeito
quanto mais forte for a tendência para que o mesmo preço seja pago pela mesma coisa
ao mesmo tempo em todos as partes do mercado”. A igualdade de preços entre produtos
similares, para Marshall, indicava a presença de um mercado consolidado, isto é,
“perfeito”, cuja concorrência entre os vendedores ou ofertantes de um produto seria, por
definição, perfeita. Para os economistas neoclássicos, portanto, todos os fatores que
influenciam a demanda e a oferta de um produto ou serviço, entre eles a comunicação
entre os agentes, como disse Jevons, devem ser levados em conta para que se possa
definir o que é um mercado, quem faz parte dele e como ele funciona. A portabilidade
ou a perecibilidade de certas mercadorias, por exemplo, pode fazer com que o mercado
se estenda até um bairro ou até outro continente (Marshall, 1890, p. 271). O mercado,
nesse sentido, é todo o conjunto de relações entre vendedores e compradores de um
produto ou serviço estendido no espaço em que eles efetivamente interagem e se
influenciam mutuamente a ponto de os preços se tornarem equivalentes. A concepção
neoclássica, portanto, não exclui a possibilidade de um mercado estar situado no tempo
e no espaço, mas faz com que essa contextualização esteja referida ou condicionada ao
comportamento de preços, que tendem, no limite, à igualdade.

Como expliquei brevemente no primeiro capítulo, a partir da crise de 1929, um


novo campo na ciência econômica, denominado Organização Industrial (OI), inicia aos
poucos uma transformação nos estudos sobre mercados, adotando uma postura mais
empírica e, a princípio, menos normativa que buscava explicar as complexidades de

! 148
setores industriais existentes.124 Criticando a literatura anterior que, para eles, partia de
postulados irreais sobre o funcionamento dos mercados – como aquele de que preços
tenderiam à uniformidade e de que produtos teriam características similares – Edward
Chamberlin, na Universidade de Harvard, e Joan Robinson, na Universidade de
Cambridge, pesquisaram práticas e estratégias empresariais e concluíram, em obras
publicadas em 1933, que as relações de concorrência entre empresas são fundamentais
para se compreender o modo como mercados são constituídos e transformados. Se os
autores neoclássicos anteriores entendiam mercados como relações de troca, estes
procuravam concebê-los a partir das relações concorrenciais.125

Como resultado de vários trabalhos, observou-se que mercados raramente tendem à


concorrência perfeita ou funcionam do modo como afirmavam os modelos matemáticos
dos economistas neoclássicos.126 O mais comum seria encontrar mercados em situação
de “concorrência imperfeita” (ou concorrência oligopolista), nos quais poucos
vendedores disputam consumidores por meio de estratégias de diferenciação de seus
produtos.127 De acordo com estes autores, essa diferenciação de produtos é fundamental
para as empresas evitarem a concorrência de outras. Através do desenvolvimento de
marcas e patentes, do uso da publicidade, da reputação dos vendedores e dos “contatos
pessoais” entre compradores e vendedores, as empresas criam seus próprios mercados,
diferenciando-se das demais, atraindo consumidores que acreditam estar adquirindo
produtos que não são substituíveis por outros. Segundo Chamberlin (1950), tendo em
vista o fato de que as empresas criam e transformam mercados a cada nova tentativa de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
124
Há uma enorme quantidade de trabalhos que em conjunto são considerados contribuições para este
campo, como os estudos de Joseph Schumpeter, John Kenneth Galbraith, John Bates Clark e Joe Bain.
125
Weber pode ser visto como um precursor desta perspectiva do ponto de vista sociológico. Para ele,
“pode-se dizer que existe um mercado onde quer que haja concorrência, mesmo que apenas
unilateralmente, por oportunidades de troca entre uma pluralidade de partidos potenciais” (Weber, 1922,
p. 635).
126
É importante dizer que, caso os mercados tendessem à concorrência perfeita, como afirmado pelos
neoclássicos, nada justificaria a existência de uma política de defesa da concorrência, pelo menos no que
tange às concentrações empresarias. Autores neoliberais do pós-guerra também criticavam a ideia de
concorrência perfeita dos economistas neoclássicos, como, por exemplo, Friedrich Hayek: “what the
theory of perfect competition discusses has little claim to be called ‘competition’ at all and [...] its
conclusions are of little use as guides to policy. The reason for this seems to me to be that the theory
throughout assumes that state of affairs already to exist which, according to the truer view of the older
theory, the process of competition tends to bring about (or to approximate) and that, if the state of affairs
assumed by the theory of perfect competition ever existed, it would not only deprive of their scope all the
activities which the verb ‘to compete’ described but would make them virtually impossible” (Hayek,
1948, p. 42).
127
O que era argumentado pelos novos economistas não era o fato de que existiam mercados em situações
de oligopólio ou mesmo monopólio, pois isso já era alvo das legislações antitruste norte-americanas. O
que esses economistas procuraram teorizar e explicar foram os fatores que levaram os mercados a tender
para essas situações e não para situações de concorrência perfeita.

! 149
diferenciar seus produtos, seria ilusório acreditar ser possível definir precisamente os
limites de um mercado, ou de uma “indústria” ou “commodity”, como ele preferia
chamá-los.128

Os economistas menos radicais do mesmo campo, que acreditavam ser possível


precisar empiricamente as fronteiras de um mercado – quem participava, até onde ele se
estendia, qual produto ele compreendia – passaram a se utilizar de critérios
aparentemente mais subjetivos para compreender as relações de concorrência e troca.
Para eles, a divisão entre um mercado e outro era uma questão de grau, sempre
relativamente “elástica”, visto que “produtores diferentes não estão vendendo nem
produtos ‘idênticos’, nem produtos ‘diferentes’, mas sim produtos ‘mais ou menos
diferentes’” (Kaldor, 1934, citado em Shughart et al. 1996, p. 86).129 Em primeiro lugar,
para entender o funcionamento ou o limite de um mercado, é necessário compreender a
perspectiva dos vendedores: a “oferta”. Para um dos principais economistas da área,
Edward Mason, o mercado de uma empresa compreendia as empresas que esta entendia
como seus concorrentes significantes (Werden, 1992). Para Mason:

O mercado ou a estrutura de mercado deve ser definida com referência à


posição de um único vendedor ou comprador. A estrutura do mercado de um
vendedor inclui todas as ponderações que ele [vendedor] leva em conta na
determinação de suas políticas e práticas empresariais. Seu mercado inclui
todos os vendedores e compradores, de qualquer produto, cujas ações ele
considera que influenciam seu volume de vendas (Mason, 1939, p. 69).

Porém, para se compreender um mercado, era preciso investigar não somente a


oferta, mas também a “subjetividade da curva de demanda” (Baldwin, 2007), ou seja,
como compradores se comportam e fazem escolhas entre produtos, o que os
consumidores consideram como produtos substitutos e até onde um consumidor está
disposto a se locomover para comprar algo.

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128
“‘Industry’ or ‘commodity’ boundaries are a snare and a delusion – in the highest degree arbitrarily
drawn, and, wherever drawn, establishing at once wholly false implications both as to competition of
substitutes within their limits, which supposedly stops at their borders, and as to the possibility of ruling
on the presence or absence of oligopolistic forces by the simple device of counting the number of
producers included” (Chamberlin, 1950, p. 86).
129
Nessa época, economistas na Universidade de Harvard desenvolviam um grande projeto de pesquisa
sobre os mais importantes setores da economia norte-americana: petróleo, mineração, ferrovias etc. Essas
pesquisas deram origem ao chamado paradigma “Estrutura-Conduta-Desempenho”, importante base
teórica para o estudo concorrencial dos mercados e para a noção de “mercado relevante” que se
desenvolveu em seguida na jurisprudência antitruste (Baldwin, 2007).

! 150
Concluindo esta breve arqueologia, os economistas do campo de OI também
retiveram, de forma ainda mais evidente que os neoclássicos, o sentido original do
termo mercado. Sua descrição e sua definição implicavam a especificação de um espaço
geográfico preciso, onde a troca entre si de produtos ou serviços substituíveis se daria.
Contudo, segundo esses economistas, para que esta localização espacial e material (e
por vezes temporal) fosse possível, seria preciso investigar o contexto do qual
vendedores e compradores consideram fazer parte, ou seja, aquele em que as empresas
acreditam atuar e concorrer com outras efetivamente, além de se investigar a percepção
das opções de escolha que os compradores têm no mercado. Como explico adiante mais
detalhadamente neste capítulo, essa noção se aproxima do modo como antropólogos e
sociólogos têm buscado explicar mercados, pois parte de uma perspectiva nativa dos
próprios agentes de um mercado sobre o ambiente em que eles atuam.

Os desenvolvimentos teóricos e empíricos do campo de Organização Industrial,


grande parte deles produzidos na Universidade de Harvard em meados do século XX,
possibilitaram uma inovação jurisprudencial que deu origem a um conceito de mercado
particularmente apropriado à política antitruste: o “mercado relevante”. Tal noção
tornou-se essencial para justificar as decisões do órgão antitruste ou os argumentos das
partes dos litígios antitruste nos Estados Unidos.

3.2. O mercado relevante

O desenvolvimento de estudos sobre os mercados na ciência econômica foi também,


em grande medida, promovido pelas próprias necessidades da política e da legislação
antitruste norte-americana. No ano de 1914, nos Estados Unidos, foi promulgado o
Clayton Act, estatuto legal que condena práticas restritivas à concorrência. O texto
original da seção 7 deste estatuto afirmava que estavam proibidas as aquisições por uma
corporação do controle acionário de outras, caso esta aquisição “diminua
substancialmente a concorrência entre essas corporações”. Em 1948, o julgamento da
Suprema Corte do caso United States vs. Columbia Steel Corporation causou uma série
de controvérsias no Congresso norte-americano devido à dificuldade de se definirem

! 151
claramente critérios para identificar uma “diminuição da concorrência” (Werden, 1992).
Essas controvérsias deram origem, dois anos depois, a um novo estatuto legal, o Celler-
Kefauver Act, que alterou o texto da seção 7 da antiga legislação, que agora proibia
“aquisições de ações ou de ativos cujo efeito possa reduzir substancialmente a
concorrência [...] em qualquer linha de comércio em qualquer seção do país”.

A partir desse momento, nos Estados Unidos, por meio de diversas decisões
judiciais, a identificação da “linha de comércio” e da “seção do país” tornou-se um pré-
requisito para a análise e o julgamento de fusões e aquisições entre empresas, ou seja,
para se decidir se uma concentração empresarial é considerada ilícita. A jurisprudência
passou a utilizar então os conceitos de “mercado relevante de produto” (product
relevant market) – também conhecido como “mercado relevante material” – e “mercado
relevante geográfico” (geographic relevant market) como substitutos respectivos das
noções de “linha de comércio” e “seção do país”. Consolidou-se, assim, uma noção de
mercado particular à política antitruste, como aquele que é relevante, no sentido de
pertinente, para a avaliação de um possível “prejuízo à concorrência” (marché pertinent,
no direito concorrencial francês).130

Vale notar que a palavra “relevante” tem uma particular conotação na língua
inglesa, conforme indica sua etimologia. No latim medieval, as palavras relevans e
relevare, significando “levantar” ou “tornar mais visível”, implicavam uma forma de
ação e não um estado ou uma qualidade do mundo. Já no século XVI, a palavra relevant
ganha, no vocabulário jurídico escocês, o sentido de “juridicamente pertinente” (Cunha,
2010; Oxford American Dictionary). A etimologia nos remete à qualidade construída da
noção de relevância ou pertinência. Relevante não é apenas aquilo que sobressai ou que
é saliente (Novo Dicionário Aurélio, 2008), mas aquilo que é tornado relevante.

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130
Ainda sobre o desenvolvimento teórico e prático desses conceitos, um economista do Departamento de
Justiça norte-americano explica: “Much of the intellectual development of the concepts relating to
antitrust market delineation took place in classrooms and seminar halls at law schools and economics
departments, in judges’ chambers and, in the offices of enforcement agencies, law firms, and economic
consultants” (Werden, 1992, p. 125). Aquilo que se pode afirmar é que o conceito de mercado relevante e
as técnicas utilizadas para defini-lo foram sendo aos poucos aperfeiçoados com base em novas teorias
econômicas, novos procedimentos estatísticos e novos casos antitruste que a autoridade norte-americana
enfrentava. A relação com a teoria econômica, em especial com a linha de Organização Industrial, era
evidente, pois a partir da década de 1930 diversos economistas passaram a atuar como experts em
julgamentos antitruste norte-americanos, produzindo pareceres para o governo ou para empresas sobre
aquilo que julgavam ser a correta delimitação do mercado (Werden, 1992).

! 152
No Brasil, em 1962, quando o CADE foi criado, inexistia o conceito de mercado
relevante nos diversos estatutos nacionais que legislavam sobre os “abusos do poder
econômico”. Como já explicado, penalizavam-se administrativamente os “atos
contrários à ordem moral e econômica”, “crimes e contravenções contra a economia
popular” e os “domínios de mercados nacionais” que tivessem como objetivo a
eliminação da concorrência (Forgioni, 2013). A partir dos anos 1990, com a
promulgação de novas legislações concorrenciais e com a presença de mais economistas
como conselheiros do órgão, o conceito passou a ser utilizado com frequência nas
decisões do órgão antitruste (Onto, 2009). O caso da aquisição da empresa Kolynos pela
Colgate, julgado pelo CADE em 1996 e de relatoria da conselheira Lucia Helena
Salgado, é considerado por muitos economistas um marco na política antitruste
brasileira por ter apresentado no voto uma explicação do conceito de mercado relevante
e por tê-lo utilizado para a análise do caso. Essa economista havia acabado de voltar de
seu doutorado na Universidade de Berkeley e buscou introduzir nas decisões do
antitruste brasileiro conceitos já comuns na prática regulatória daquele país.131 Em
relação ao conceito de mercado relevante, Salgado (CADE, 1995, fl. 2856.) afirma:

O ponto de partida da análise de um processo de concentração econômica, da


perspectiva da política de concorrência, é a delimitação precisa das fronteiras
dos mercados afetados pela operação. Tal delimitação é que permitirá uma
avaliação objetiva dos efeitos prováveis da concentração [...] A
jurisprudência norte-americana criou o conceito de mercado relevante, um
híbrido jurídico-econômico, cujo significado é o de delimitar as fronteiras do
espaço econômico da análise antitruste. Partindo da noção usual de mercado
– espaço composto pelo produto e seus substitutos próximos – acentua a
relação intrínseca existente entre o poder de mercado e o universo de
escolhas do consumidor.

A jurista Paula Forgioni (2013, p. 213) explica de modo similar o conceito:


“mercado relevante é aquele em que se travam as relações de concorrência ou atua o
agente econômico cujo comportamento está sendo analisado” (p. 213). Segundo ela,
sem sua identificação seria impossível determinar a incidência de quaisquer hipóteses

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
131
Segundo Salgado, a introdução destes conceitos econômicos tinha motivos que iam além de uma
melhor decisão técnica: “Para a consolidação da autoridade antitruste e legitimidade do CADE como a
instância administrativa decisória no Brasil em defesa da concorrência, era fundamental a demonstração
da capacitação técnica do órgão para lidar com questões complexas como a representada pelo ato de
concentração [Kolynos-Colgate] [...] Estava-se diante do duplo desafio de superar a fragilidade de um
órgão recém-instituído e a desconfiança com relação a ele e o julgamento público do caso Kolynos-
Colgate, em vista de sua complexidade e repercussão, criou as condições para enfrentar tal desafio [...] O
caso Kolynos-Colgate serviu de ensejo para introduzir no antitruste brasileiro os conceitos básicos dessa
análise econômica” (Salgado, 2003, p. 29-30).

! 153
previstas no art. 36, caput, da Lei 12.529 de 2011, que caracterizam ilícitos
concorrenciais. Todas as infrações à ordem econômica instadas nesse texto – vale dizer,
(i) “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre
iniciativa”, (ii) “dominar mercado relevante de bens ou serviços”, (iii) “aumentar
arbitrariamente os lucros”, e (iv) “exercer de forma abusiva posição dominante – têm
um caráter geral e “somente existem em concreto, ou seja, se referidas a um
determinado mercado: ao mercado relevante” (Forgioni, 2013, p. 213).

Pode-se ver como o mercado relevante tornou-se essencial para a análise de fusões
e aquisições no Brasil por meio do “Guia de Análise de Concentrações Horizontais”,
publicado em 2001, em portaria conjunta da SEAE e da SDE. Este guia, baseado no
similar produzido pelas autoridades antitruste norte-americanas, define os critérios
levados em consideração em todas as etapas da análise econômica de concentrações
feitas pelos órgãos de defesa da concorrência, servindo não somente para os
funcionários responsáveis pela análise, mas também para que as requerentes e seus
representantes se familiarizem com os procedimentos do órgão. 132 O guia detalha
perguntas que devem ser respondidas pelos analistas que instruem atos de concentração
e inclui a seguinte representação:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
132
A publicação desse guia e de outros documentos pelo CADE faz parte dos esforços para cumprir
requisitos de transparência burocrática, amplamente apoiados pelo órgão desde meados dos anos 1990
(Onto, 2009).

! 154
Figura A:
As Etapas de Análise Econômica de Atos de Concentração
Horizontal

Definição do
Mercado Relevante
ETAPA I

NÃO
Há Parcela
Substancial % de mercado < 20% e C4<75% Parecer
ETAPA II de Mercado?
C4≥75% e % de mercado < 10% Favorável

SIM

Exercício de poder de
mercado é provável?
NÃO
ETAPA III (Ver detalhe na Parecer
Figura B) Favorável

SIM

ETAPA IV Eficiências

Custos do exercício NÃO


de poder de
mercado são
Parecer
ETAPA V Favorável
maiores que as
eficiências geradas?

SIM

Parecer Negativo

Figura 8: As Etapas de Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal (SEAE/SDE, 2001, p. 7)

A figura ilustra os procedimentos analíticos que são comumente levados em


consideração na análise antitruste de atos de concentração por meio de cinco etapas. A
primeira delas é a definição do “mercado relevante”, isto é, o enquadramento dos
mercados nos quais atuam as empresas requerentes que serão impactados pela operação.
Conforme explica Forgioni (2013, p. 213), “se o texto normativo da legislação faz
menção à restrição da ‘concorrência’, para a caracterização do ilícito devemos
determinar de qual concorrência estamos tratando” (ênfase no original). A definição de
mercado é exatamente a definição de uma determinada “concorrência” localizada no
espaço em relação a um ou mais produtos ou serviços.

! 155
De acordo com o guia, definido(s) o(s) produto(s) e a área geográfica que poderá
ser afetada pela concentração, ou seja, o mercado relevante, estima-se a concentração de
mercado (market shares) por meio das participações relativas das empresas no mercado
relevante, em geral pela quantidade de produtos vendidos ou pelo faturamento em
relação ao total de venda no mercado. Podem ser elaborados também índices de
concentração de mercado, como o C4 apontado acima. Essas estimativas são feitas
sempre visando a um cenário futuro do mercado no qual a fusão ou a aquisição foi
aprovada.

A terceira etapa refere-se à possibilidade de exercício do “poder de mercado”, que


exige considerar as “barreiras à entrada” presentes e futuras no mercado, isto é, as
condições efetivas e potenciais da entrada de novos concorrentes no curto prazo.
Segundo o guia, caso exista a possibilidade de entrada, mesmo que a nova empresa
tenha uma alta participação no mercado, isto não geraria tantos prejuízos aos
concorrentes ou aos consumidores. A quarta etapa implica a avaliação de possíveis
ganhos e perdas derivados de uma fusão no mercado, o que consiste na busca por
“eficiências econômicas” da operação sob investigação, a já explicada contribuição
analisa antitruste trazida pela Escola de Chicago. Busca-se mensurar os possíveis
ganhos e a redução de custos para as empresas, no sentido de reorganização produtiva
ou de ganhos na capacidade de inovação. Por último, faz-se uma análise de custo e
benefício, um trade-off entre ganhos e perdas que a concentração trará para o mercado
relevante, reunindo todas as informações coletadas na investigação e nas etapas
anteriores.

Os procedimentos descritos pelo Guia brasileiro, baseados em teorias econômicas


desenvolvidas pela Escola de Harvard e Chicago, elucidam a racionalidade envolvida na
análise de atos de concentração no conselho; como se dá o processo de decisão pela
aprovação ou não de determinada operação. Na prática, como será descrito nas
próximas seções, essas etapas não são seguidas numa sequência tão organizada quanto a
apresentada, porém a forma de organizar o guia mostra como a definição de mercado
relevante é considerada uma pré-condição para a análise antitruste de concentrações
entre empresas. Sobre esta primeira etapa da análise, o guia afirma:

A definição de um mercado relevante é o processo de identificação do


conjunto de agentes econômicos, consumidores e produtores, que
efetivamente limitam as decisões referentes a preços e quantidades da
empresa resultante da operação. Dentro dos limites de um mercado, a reação

! 156
dos consumidores e produtores a mudanças nos preços relativos – o grau de
substituição entre os produtos ou fontes de produtores – é maior do que fora
destes limites [...] O mercado relevante se determinará em termos dos
produtos e/ou serviços (de agora em diante simplesmente produtos) que o
compõem (dimensão do produto) e da área geográfica para qual a venda
destes produtos é economicamente viável (dimensão geográfica) (SEAE/SDE,
2001, p. 9).

A definição de mercado requer, assim, em termos gerais, a especificação de uma


fronteira entre produtos e serviços que competem entre si (e que, portanto, fazem parte
do mercado) e produtos e serviços que não competem, além da consideração da área
geográfica em que isso ocorre. Dentro do limite desses mercados, caso a concorrência
seja reduzida “substancialmente” com a fusão ou a aquisição, por exemplo, o pedido
das empresas poderá ser rejeitado. Dois breves exemplos podem ser utilizados para
explicar a definição dessas duas “dimensões” do mercado relevante, a geográfica e do
produto.

Para se definir o mercado relevante geográfico de uma concentração entre empresas


que prestam serviços de concretagem, por exemplo, os funcionários do CADE levam
em consideração uma característica técnica do produto. O mercado relevante geográfico
neste caso será de no máximo 50 km a partir das fábricas produtora de concreto, pois a
partir dessa distância o concreto seca e é impossível lançá-lo por meio de um caminhão
betoneira. Se uma empresa produtora de concreto consegue vender apenas a uma
distancia de 50 km, seus possíveis concorrentes também estão dentro desse raio de
distância. Apenas as empresas vendedoras que estiverem a 50 km das fábricas da
requerente que deseja fusionar-se podem ter alguma relação de concorrência com ela e,
por isso, podem ser afetadas pela operação.133

No caso da aquisição da empresa Mate Leão pela Coca-Cola, julgada em 2008 pelo
CADE, o mercado relevante de produto foi alvo de controvérsia entre as requerentes e o
órgão antitruste. As empresas alegaram que o mercado que deveria ser considerado para
análise era o “mercado de bebidas alcoólicas, que inclui bebidas carbonatadas à base de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
133
Como podemos ver no Ato de Concentração no 08012.002467/2008-22: "a possibilidade de secagem
do concreto antes de se chegar ao local de lançamento cria grave risco de prejuízo ao produto e ao
caminhão transportador, motivo pelo qual não se afigura viável o percurso de longas distâncias por meio
de tais betoneiras." Aliás, a constante visão, em tecido urbano, de caminhões carregando concreto e
girando-os, a fim de que não atinjam o ponto de secagem antes do destino final e, além de ocasionar a
perda da entrega, causem também a perda da própria peça do caminhão (o que, para a indústria
seguradora, durante anos, foi causa de aumento do controle, nos contratos de seguro, contra os riscos
assumidos nas garantias aos cascos de caminhões e responsabilidade civil do transportador), é um
elemento qualitativo a confortar a jurisprudência do Conselho”.

! 157
colas, outras bebidas carbonatadas, água, suco de fruta prontos para beber ou
concentrados, refrescos, chás prontos para beber, isotônicos, sucos de frutas não
concentrados” ou até “todas as bebidas comercializáveis”. Não é fácil perceber que, se
esse mercado fosse aquele considerado relevante para a análise antitruste, seria muito
difícil que as empresas não fossem autorizadas a se unir. Isto porque a compra da Mate
Leão pela Coca-Cola não afetaria as opções de escolha do consumidor que, segundo
essas empresas, entenderiam praticamente todas as bebidas comercializáveis como
produtos substitutos (Forgioni, 2013, p. 221).

O CADE considerou pouco razoável essa definição e argumentou que o mercado


relevante deveria ser o de “chás prontos para beber e os guaranás não gaseificados”,
pois, segundo o CADE, o consumidor considera esses produtos como substitutos, mas
não considera um chá como substituto de um suco ou refrigerante.134 Esta definição
prejudicava as requerentes, pois as únicas marcas de chás prontos vendidas no Brasil
eram a Mate Leão e a Nestea, que era um produto também da Coca-Cola em parceria
com a empresa Nestlé. A venda de chás prontos no país seria, se o CADE aprovasse a
aquisição, monopólio da mesma empresa.135 A consideração do comportamento do
consumidor foi portanto importante para a definição do “mercado relevante do produto”.

O mercado relevante exige assim uma consideração específica sobre o modo como
consumidores/clientes entendem os produtos e fazem escolhas, além da forma como
essas escolhas são feitas num espaço geográfico. Nesse sentido, o conceito de mercado
no antitruste se baseia nos trabalhos do campo da Organização Industrial. Porém, o
mercado relevante vai além de uma simples conceitualização subjetiva, pois ele também
enquadra um espaço e um objeto que poderão ser prejudicados pela concentração. Sua
definição equivale a uma operação hipotética de avaliação de um possível efeito
anticompetitivo decorrente de uma fusão. Na linguagem mais técnica, a delimitação de
mercado busca revelar o espaço no qual o “poder de mercado” possa ser exercido ou, de
outra forma, o espaço onde há a probabilidade do chamado “exercício do poder de
mercado”, prejudicando consumidores e/ou concorrentes (Possas, 2002). O “exercício
do poder de mercado”:

consiste no ato de uma empresa unilateralmente, ou de um grupo de empresas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
134
O CADE chegou a essa conclusão baseado em coleta de informações com outros concorrentes do
mercado e estudos econométricos realizados também por esses concorrentes.
135
Ato de concentração no 08012.001383/2007-91.

! 158
coordenadamente, aumentar os preços (ou reduzir quantidades), diminuir a
qualidade ou a variedade dos produtos ou serviços, ou ainda, reduzir o ritmo
de inovações com relação aos níveis que vigorariam sob condições de
concorrência irrestrita, por um período razoável de tempo, com a finalidade
de aumentar seus lucros (SEAE/SDE, 2001, p. 4).

O “poder de mercado”, portanto, refere-se ao poder de fixação discricionária de


preços num dado mercado (Possas, 2002) ou, dito de outro modo, na capacidade de
estabelecer preços acima do nível de custos da empresa, obtendo lucros acima do
“normal” e prejudicando consumidores.136 Essa capacidade ou poder é maior quanto
menos concorrentes existirem no mercado. Um mercado é “relevante”, jurídica e
economicamente significativo, quando existe nele a possibilidade, mesmo que mínima,
de existência do exercício de poder de mercado por parte das empresas requerentes da
concentração, isto é, a possibilidade de as novas empresas unidas praticarem preços
muito acima daqueles que vigorariam em uma situação de mais concorrência. Em suma,
o objetivo central da definição de mercado relevante, enquanto exercício analítico,
consiste em:

avaliar preliminarmente a possibilidade de que a atividade econômica [...] em


causa possa vir a dotar-se, em algum nível de agregação de produtos e em
alguma área geográfica – que recebem então conjuntamente a designação de
“mercado” – de condições técnico-econômicas estruturais nas quais o
exercício de poder de mercado em termos de preços (e quantidades) seja
logicamente possível [...] Por “estruturais” entendam-se aqui condições de tal
modo enraizadas na natureza técnica, produtiva e de consumo dos produtos
em questão que a sua simples presença possibilite, e sua ausência
impossibilite de todo, o exercício do poder econômico por meio de preços e
quantidades oferecidas, independentemente de quais venham a ser as
eventuais estratégias coordenadas ou os comportamentos colusivos (cartel)
por parte das empresas envolvidas (ênfases no original, Possas, 2002, p. 77).137

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
136
Sobre a noção de “poder de mercado”, o economista Mario Luiz Possas (2002, p. 84) afirma que se
trata de uma noção “tributária da noção ainda mais imprecisa de ‘poder econômico’, da qual é uma versão
mais delimitada [...] Ela compartilha com esta última a percepção, essencialmente correta e na tradição da
Economia Política, de que as relações econômicas são permeadas de relações de poder entre diferentes
agentes [...] Em particular, do ponto de vista jurídico, por mais indeterminada que seja a noção de poder
econômico e complexa a sua conceituação, trata-se de formar juízo sobre seu exercício supostamente
abusivo, o que impõe inexoravelmente a fixação de critérios objetivos que o demarquem com a precisão
necessária à aplicação da lei, a despeito dos prováveis constrangimentos conceituais que venha a sofrer
por isso no plano da análise econômica. Em termos desta última, entretanto, são extremamente variadas
as formas de manifestação de poder econômico, e uma simples tentativa de classificá-las aqui – mesmo
antes de organizá-las analiticamente – seria descabida. Já a noção de poder de mercado é um pouco mais
familiar e manejável na análise econômica, sendo ademais, claramente, a forma básica pela qual o poder
econômico é exercido no âmbito dos mercados”.
137
Sobre a definição de mercado, Possas (2002, p. 76) cita Werden (1992): “o que ela [a definição de
mercado] pretende é ‘realizar o simples exercício mental de determinar que tipo ou tipos de poder de
mercado poderiam ser exercidos no contexto em questão’, por meio do qual ‘se determina que mercados
precisam ser delineados’”.

! 159
Como no caso de uma fusão entre empresas produtoras de concreto, uma condição
“técnica” do produto – sua tendência a endurecer – faz com que este mercado seja
definido com um raio geográfico relativamente reduzido, pois o poder de mercado
poderá ser exercido apenas em uma distância de 50 km da fábrica de concreto. Esta
característica “estrutural” do mercado gera uma forma de relação de concorrência
específica entre os produtores de cimento e entre estes e seus consumidores. A
necessidade de observação desse conjunto de características dá à definição de mercado
relevante a denominação de “análise estrutural” dos mercados.

Na teoria e na prática antitruste não existe um único meio para se delimitar o


mercado relevante. Podem ser utilizados desde procedimentos estatísticos
(econométricos) para se estimar o grau com que consumidores estão dispostos a
substituir um produto pelo outro até pesquisas sobre os processos produtivos das
empresas sob investigação.138 Cada caso exige uma abordagem particular, tendo em
vista que empresas produzem e comercializam produtos e serviços com características
singulares. A delimitação baseia-se em “métodos que acabam por [...] fornecer
indicativos que, utilizados de forma conjugada, auxiliam [...] nessa tarefa” (ênfase no
original, Forgioni, 2013, p. 213). Algumas informações que auxiliam os responsáveis de
análise de fusões a definir mercados são: (i) hábitos dos consumidores; (ii) custos de
transporte dos produtos; (iii) características comerciais dos produtos (embalagens,
marcas, p.ex.); (iv) características dos processos produtivos; e (v) evolução dos preços e
das quantidades vendidas no passado. Este tipo de informação ajuda a estabelecer em
quais relações de concorrência as empresas estão imersas, definindo quem são seus
consumidores e concorrentes, atuais e potenciais.

Em suma, podemos dizer que o mercado relevante é o espaço (geográfico) e o


objeto (produto ou serviço) que caracterizam as relações de concorrência enfrentadas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
138
O procedimento estatístico mais conhecido é o “teste do monopolista hipotético”, que “consiste em se
considerar, para um conjunto de produtos e área específicos, começando com os bens produzidos e
vendidos pelas empresas participantes da operação, e também com a extensão territorial em que estas
empresas atuam, qual seria o resultado final de um “pequeno porém significativo e não transitório”
aumento dos preços para um suposto monopolista destes bens nesta área. [...] Um suposto monopolista
está em condições de impor um “pequeno porém significativo e não transitório” aumento de preço
quando os consumidores não puderem desviar uma parcela significativa da demanda para bens substitutos
ou bens provenientes de outra região. Os conjuntos de produtos e as áreas geográficas que um hipotético
monopolista deve controlar para que possa impor um “pequeno porém significativo e não transitório
aumento” dos preços determinam, respectivamente, a dimensão do produto e a dimensão geográfica do
mercado relevante (SEAE/SDE, 2001, p. 9-10)

! 160
pelas empresas requerentes de uma concentração. Como diz Forgioni (2013, p. 228), “se
o recorte do mercado relevante implica, necessariamente, a percepção do mercado no
qual atua determinado agente econômico (ou agentes econômicos), estamos tratando do
mercado em que este concorre. Ou seja, a busca do mercado relevante passa pela
identificação das relações (concretas, ainda que potenciais) de concorrência de que
participa o agente econômico”. Contudo, como tenho argumentado nesta seção, o
conceito de mercado relevante é mais do que uma forma de representação de relações
(nativas) econômicas.139 O mercado relevante também é, como Forgioni mesma afirma,
uma “ferramenta para identificar e definir fronteiras”, ou seja, uma técnica de
enquadramento que possibilita aplicar a lei e garantir o exercício da política de defesa
da concorrência.

Na seção seguinte, utilizo como material etnográfico principalmente o voto do


conselheiro-relator do processo administrativo referente à aquisição da empresa Webjet
por parte da Gol, que gerou bastante discussão e controvérsia no período em que estava
no órgão antitruste. Tal caso permite descrever o modo como a utilização da noção de
mercado relevante permite ao analista simultaneamente recortar o que é pertinente para
a análise jurídico-administrativa e visualizar as restrições que os concorrentes e os
consumidores enfrentam e enfrentariam caso a fusão fosse aprovada.

3.3. Os slots do Santos-Dumont140

No início de julho de 2008, as empresas Gol e a Webjet fecharam um acordo para


estabelecer as linhas gerais de um futuro contrato de aquisição, que teria ainda que ser
aprovado pelo CADE e pela Anac.141 Pelo acordo, decidiu-se que a Gol pagaria R$ 96
milhões aos controladores da Webjet e assumiria dívidas de aproximadamente R$ 215
milhões da empresa. Segundo o jornal Folha de São Paulo, o presidente da Gol,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
139
“O mercado relevante, embora construído totalmente com técnica econômica, é em última análise um
conceito essencialmente jurídico” (Possas, 2002, p. 90).
140
Nesta seção, utiliza-se como material etnográfico os autos públicos do processo no
08012.008378/2011-95, especialmente o voto do Conselheiro Ricardo Machado Ruiz, além da gravação
da 8a Sessão Ordinária de Julgamento do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica e do
acompanhamento da sessão pelo pesquisador.
141
Conforme já explicado no capítulo 1, de acordo com a lei prevalecente até 2012, as empresas
poderiam enviar a solicitação para aprovação da união contratual ao CADE após a união ser formalizada.
Por se tratar de uma aquisição no setor aéreo, a Anac também deveria produzir um parecer.

! 161
Constantino de Oliveira Junior, anunciou durante uma teleconferência que a marca
Webjet iria desaparecer após a aquisição da companhia pela Gol e que o programa de
milhagem Smiles seria estendido aos passageiros da adquirida. Além disso, a Gol
renovaria toda a frota da outra companhia (24 aeronaves), considerada velha, em no
máximo dois anos (Folha de São Paulo, 11/07/2011).

Em justificativa ao CADE, a empresa argumentou que a fusão traria benefícios ao


consumidor, mediante uma provável redução de tarifas ou por meio de um aumento da
oferta de itinerários e destinos. Isto seria possível graças à criação de “sinergias”
operacionais entre as duas empresas, considerando que ambas atuam de forma
complementar com um mesmo modelo de negócios (conhecido como low cost, low
fare142). A aquisição geraria ganhos de eficiência (custos menores) na compra de
combustível, na troca de peças e na manutenção de aeronaves (CADE, 2012b, fl. 1810).
A maior eficiência e a capacidade operacional também reduziriam a probabilidade de
demissões, segundo o presidente.

Mais de dois anos depois, no dia 10 de outubro de 2012, após o conselheiro-relator


ler em voz alta 128 páginas do seu voto, o Tribunal do CADE decidiu unanimemente
pela aprovação da aquisição da Webjet. A decisão, contudo, exigia que a adquirente Gol
assinasse um termo de compromisso que a obrigava a seguir alguns critérios de
“eficiência”. A principal preocupação do conselheiro-relator, o economista Ricardo
Ruiz, era com o aumento de slots controlados pela Gol no aeroporto Santos Dumont.143
Os slots são as autorizações para pouso ou decolagem, regulados e distribuídos pela
Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Com o controle acionário da Webjet, a Gol
incorporaria seus slots e poderia decidir não utilizá-los, reduzindo a oferta de voos e
aumentando o preço das passagens para os viajantes. Para impedir isso, o conselheiro
decidiu impor a Gol a utilização de todos os seus slots no Santos Dumont com uma alta
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
142
O modelo low cost, low fare constitui uma estratégia empresarial que busca oferecer passagens mais
baratas por meio da redução do custo de operação da companhia aérea. Empresas que seguem este
modelo costumam apresentar um serviço de bordo reduzido, menor variedade de assentos nas aeronaves e
processos automatizados para a emissão de bilhetes ou check-in.
143
“Ricardo Machado Ruiz, 45. Ruiz obtained an undergraduate degree in economics from UNICAMP,
in 1988, and a master’s degree in economics from the same university (1994), with a dissertation on
industrial restructuring in Brazil in the 1980s and 1990s, supervised by Luciano Coutinho, an exponent of
Brazilian heterodox economics, and who since May 2007 is the President of BNDES. Ruiz obtained his
PhD degree in economics from the New School for Social Research, in 2003, with a thesis that discussed
Paul Krugman’s Computable General Equilibrium Model. A full time professor of economics at UFMG
since 1995, Ruiz has taught undergraduate and graduate courses on theories of regional and urban
development, microeconomics, industrial organization, antitrust and regulation economics, among others”
(Miola, 2014, p. 306).

! 162
regularidade de voos. Tendo a Gol assinado o termo comprometendo-se a ofertar voos
suficientes, a aquisição foi aprovada.

Poucas semanas após a decisão, representantes sindicais, ex-funcionários e


parlamentares posicionaram-se criticamente em relação à aprovação, que traria, segundo
eles, consequências graves para todo o setor aéreo. Representantes dos trabalhadores
recorreram ao CADE na tentativa de anular a decisão, argumentando que, uma semana
após o julgamento, a Gol subiu o preço da passagem Guarulhos-Santos Dumont em 211
por cento. Outras tarifas também teriam tido aumento proporcional no mesmo período
(O Globo, 26/11/2012). Parte dos 850 ex-pilotos, ex-comissários e outros funcionários
da Webjet que foram demitidos no dia 23 de novembro pela Gol protestaram nos
aeroportos de diferentes capitais do país, alegando que a Gol havia prometido manter 16
aviões da Webjet em operação e fazer somente demissões pontuais. O Ministério
Público do Trabalho se disponibilizou a tentar reverter as demissões dos funcionários
promovendo reuniões entre a companhia e o sindicato da categoria (Época Negócios,
27/11/2012). 144 Segundo alguns parlamentares, o setor de aviação civil já estava
extremamente concentrado, comprovado pelos preços elevados de passagens, o que
tornava a aprovação da aquisição incompreensível.145

No órgão antitruste, outros conselheiros e assessores, embora apreensivos e


incomodados com as críticas, não pareciam muito surpresos com a repercussão da
decisão. Um conselheiro explicou que o público de modo geral não compreende o
trabalho do CADE, que naquele momento era chamado pelos sindicalistas de “Conselho
Administrativo de Defesa dos Empresários”. Para ele, a legislação não trata dos
possíveis efeitos de uma concentração no funcionamento interno das empresas, mas
apenas dos efeitos de um “ponto de vista concorrencial”, ou seja, nos mercados. Para
um assessor do CADE, que não havia trabalhado no caso Gol-Webjet, a análise do
conselheiro-relator havia sido “impecável”, pois determinou, de modo incontestável,
onde e sobre o que poderia ser exercido o “poder de mercado”. “Foi um lindo voto”,
disse ele, um “atento estudo de mercado”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
144
As demissões tiveram grande repercussão política, já que outra fusão que ainda estava sob análise do
CADE, entre as empresas aéreas Azul e Trip, poderia produzir as mesmas consequências.
145
Organizou-se uma reunião da Comissão de Assuntos Sociais do Congresso com parlamentares,
trabalhadores do setor aeroviário e o conselheiro-relator do caso para discutir as demissões e a atual
situação econômica do setor. O senador Cyro Miranda (PSDB-GO) afirmou que a fusão consistiu em
apenas “mais um conchavo para alijar alguém do mercado” (Jornal do Senado, 12/12/2012). Eudes
Carneiro, do Ministério do Trabalho, argumentou que as demissões não tinham justificativa plausível,
dado que o Brasil tem superado a “crise econômica mundial” (idem).!

! 163
O voto do conselheiro-relator, seguindo o rito, inicia-se com uma descrição das
características das empresas que solicitaram autorização para unificar suas operações.
De acordo com o voto, a empresa Gol Linhas Aéreas Inteligentes S/A foi criada em
2001 com uma estratégia de massificar o transporte aéreo no Brasil e na América do Sul.
O forte crescimento da empresa, resultante de uma estratégia de tarifas menores, forma
de pagamento diferenciada e publicidade agressiva, estimulou a entrada de um novo
perfil de consumidores no mercado. A compra da Varig em 2007, aprovada pelo CADE
em 2008, e o encerramento das atividades da Transbrasil contribuíram para o aumento
da sua participação no mercado de transporte aéreo de passageiros e de carga.
Diferentemente da Gol, a empresa Webjet Linhas Aéreas S.A., criada em 2005, não
tinha atuação internacional. Subsidiária do Grupo GJP, que controla agências de
turismo, viagens (CVC) e outras empresas do setor hoteleiro, a Webjet conectava os
principais destinos do Brasil utilizando aeronaves Boeing 737-300, similares àquelas da
Gol e possuía, ao final de 2008, 3,17% da participação do mercado de transporte aéreo
de passageiros no país (CADE, 2012b, fl. 1818).

Após uma breve descrição da evolução do setor de aviação civil brasileiro e de seu
acentuado crescimento recente, o conselheiro iniciou um relato sobre o funcionamento
da “indústria de transporte aéreo” no país que, segundo ele, apresenta uma “estrutura
oligopolista”.146 Apresentando tabelas com informações sobre a quantidade de horas e
quilômetros voados e de assentos oferecidos por cada empresa, entre outros dados,
concluiu-se que a indústria é “concentrada”, sendo que apenas seis concorrentes
respondem por praticamente 90% de toda a atividade no mercado interno. Um mercado
oligopolista – poucos concorrentes – é algo comum em vários países, podendo ser
considerada uma característica do setor aéreo, devido aos altos custos e riscos deste tipo
de negócio.

As tabelas apresentavam também informações sobre o mercado externo onde atuam


as duas maiores empresas brasileiras desse setor (TAM e Gol) e variados concorrentes
estrangeiros. Como a empresa Webjet apenas participa no mercado interno, o
conselheiro afirmou que sua análise se restringiria apenas a este mercado, visto que a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
146
Essa estrutura é definida a partir de um “número modesto de firmas que atuam em escala nacional, em
particular nos grandes mercados metropolitanos e regionais, possuem frotas com dezenas de aviões,
operam múltiplas rotas, têm agressivas políticas de marketing e fidelização de clientes” (CADE, 2012b,
fl.1827).

! 164
aquisição da Webjet não alteraria em nada as relações concorrenciais que a Gol mantém
com a TAM e outras empresas estrangeiras nas rotas internacionais. Assim, como
primeira delimitação analítica, o conselheiro excluiu de consideração o mercado externo.
As viagens internacionais e o mercado de passagens que as movimentam estão, portanto,
fora de consideração na análise deste caso.

Sobre o mercado interno, explicou que este possui duas empresas “líderes” – TAM
e Gol – com quase 75% de participação no mercado de passageiros transportados em
2012 – e quatro outras empresas de menor porte – Webjet, Azul, Trip e Avianca – com
aproximadamente 24% do mercado. A redução paulatina da presença de empresas
regionais como a Pantanal e a Total demonstra, segundo o conselheiro, como este setor
favorece empresas com forte presença ou abrangência nacional. A constituição de uma
grande empresa neste setor não pode ser considerada uma tarefa trivial, dado que se
“requer anos para a montagem de uma malha competitiva, além [de] elevados
investimentos” (CADE, 2012b, fl. 1831) A dificuldade que as empresas aéreas têm em
manter a rentabilidade em patamares mínimos, devido a mudanças bruscas de custos
(preço do combustível), necessidade de elevado giro dos equipamentos e
descontinuidades na demanda dos passageiros, faz com que casos de concentração e
cooperação entre as empresas neste setor sejam frequentes.147

Um segundo recorte analítico consistiu em excluir da análise o serviço de


transporte aéreo de carga, considerado concorrencialmente distinto do serviço de
transporte aéreo de passageiros. O voto apresenta duas tabelas produzidas pela Anac
com receitas anuais de 2009 e 2010 das empresas aéreas transportadoras de carga no
Brasil. Com base no valor da receita financeira das empresas, definiu-se a participação
de mercado da Webjet, que não ultrapassava 0,5% do faturamento de todo o setor em
2010. Segundo o conselheiro, a “atuação ínfima da Webjet” no transporte de cargas e a
grande quantidade de empresas atuantes não geram preocupações concorrenciais nesse
setor, sendo portanto irrelevante sua análise para o caso julgado (CADE, 2012b, fl.
1843).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
147
O voto aponta vários exemplos de acordos ou uniões entre empresas aéreas internacionais (KLM e Air
France, Iberia e British Airways, Lufthansa e Swiss Air) e nacionais (TAM e LAN, US Airways e TAM,
KLM e Varig, TAP e TAM), muitas delas julgadas pelo CADE, tendo em vista realçar o caráter instável e
necessariamente oligopolista desse mercado.

! 165
Após esses “comentários iniciais”, iniciou-se a seção propriamente dita do voto
intitulada “Do Mercado Relevante”.148 Primeiramente, o conselheiro enfatizou que, de
acordo com inúmeros estudos já realizados sobre este setor, a observação das “rotas de
viagem”, ou seja, pontos de origem e destino oferecidos pelas companhias aéreas, deve
ser considerada como fundamental na determinação dos “mercados relevantes” para a
análise antitruste. Isto significa que, apesar de concorrerem em todo o território nacional,
as empresas o fazem essencialmente pela preferência dos passageiros em cada uma das
rotas de viagem disponíveis no país. A oferta de diferentes opções de rotas com horários
alternativos que empresas aéreas oferecem aos passageiros é o que caracterizaria
fundamentalmente a concorrência deste setor. A jurisprudência do órgão antitruste,
seguindo esses estudos, tem definido que cada rota – cada trecho aéreo que conecta duas
cidades ou aeroportos – configura um mercado distinto do setor de transporte aéreo de
passageiros; um provável mercado relevante. Porém, quais seriam as rotas relevantes
para a análise deste caso?

Conforme explicado anteriormente, mercados relevantes são aqueles que podem


gerar algum tipo de preocupação concorrencial por parte dos analistas, sendo neles mais
provável o exercício do poder de mercado. Uma das primeiras opções que analistas
antitruste utilizam para identificar esses mercados é procurar as “sobreposições”
geradas em todos os mercados afetados. Isto consiste em saber quais os mercados em
que ambas as empresas fusionadas atuam. Haja vista que a concorrência no setor aéreo
de passageiros se dá por meio das opções de rotas, podendo cada uma delas ser
considerada um mercado, o conselheiro precisa determinar quais são as rotas oferecidas
ao mesmo tempo pela Gol e pela Webjet. Isto porque na fusão entre as duas empresas
essas rotas serão as únicas a serem afetadas, já que serão ofertadas por menos
concorrentes. Utilizando novamente dados da Anac, o conselheiro identificou 86 rotas
sobrepostas no primeiro semestre de 2010 e 112 rotas sobrepostas no segundo semestre
desse ano, possibilitando uma primeira aproximação com o número de mercados
relevantes para análise.

A seleção de rotas apenas no período de alguns semestres ilustra como o mercado


relevante é também, em alguns casos, uma forma de recorte temporal, além de material
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
148
A explicação da delimitação de mercado aqui apresentada necessariamente simplifica certos
argumentos e exclui alguns dados e informações do voto escrito pelo conselheiro, a fim de que seja mais
facilmente compreendido o processo de progressiva delimitação ou contextualização característico da
análise antitruste.

! 166
e espacial das relações de concorrência. Esses períodos específicos, que incluem toda a
sazonalidade (variação) anual pela qual uma companhia aérea organiza seus voos, são
tidos como representantes do conjunto de voos ofertados pelas requerentes no passado
recente, sendo suficientes para a análise das rotas sobrepostas.149

Contudo, embora essas rotas sejam oferecidas tanto pela Gol quanto pela Webjet,
foram utilizados outros “filtros”, como denominou o conselheiro, para definir quais
dessas rotas poderiam ser mais afetadas com a união empresarial. Os filtros usados
foram os índices numéricos C1, C4 e HHI que são adotados na prática antitruste em
diversas jurisdições para se avaliar o “grau de concentração” dos mercados. Neste caso,
os índices auxiliaram a responder quais rotas seriam ofertadas por um número tão
pequeno de empresas de modo a prejudicar as opções de escolha dos passageiros e
possibilitar um aumento indiscriminado do preço das passagens por parte das empresas
concorrentes.

Primeiramente excluíram-se as rotas cuja oferta conjunta da Gol e da Webjet não


chegaria a 20% do total ofertado no mercado, ou seja, rotas nas quais outros
concorrentes teriam ao menos 80% das opções de voo daquele trecho (índice C1). Com
um número menor de rotas, um segundo indicador foi calculado, e gerou a eliminação
das rotas nas quais a participação de mercado detida pelas quatro maiores empresas
ofertantes era menor do que 75% (índice C4150). Por último, selecionaram-se apenas
aquelas rotas que apresentaram uma variação do índice HHI (Herfindahl-Hirshman
Index) superior a 1.500 pontos. Um índice HHI acima deste numeral indica uma
diminuição da concorrência e um aumento do poder de mercado.151 A seleção das rotas
por meio dos índices tornou possível, de acordo com o conselheiro,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
149
Forgioni (2013) afirma que um mercado relevante temporal poderia ser entendido como vários
mercados relevantes de produto. Poderíamos considerar, por exemplo, a safra de um produto agrícola
como um mercado relevante temporal específico ou considerá-la, como em geral é feito, como parte do
mercado relevante de um produto que inclui apenas uma safra, tendo em vista que este produto difere dos
outros de safras distintas.
150
“O índice C4 mede o % [porcentual] de mercado detido pelas quatro maiores empresas do mercado.
Conforme estabelece o Guia [de análises de concentrações] Horizontal [is] da SEAE, quando esta soma
for igual ou superior a 75% do mercado há fortes evidências de que tais empresas possam exercer de
forma coordenada o poder de mercado. Nestas condições, o Guia sugere que a análise do mercado em
questão seja aprofundada” (CADE, 2012b, fl. 1861).
151
Sobre o cálculo do HHI, o voto explica que: “HHI é uma medida de tamanho das empresas em relação
à indústria e um indicador do grau de concorrência entre elas. [O índice é calculado] [...] como as somas
dos quadrados das participações de mercado das 50 maiores empresas dentro da indústria, em que as
participações de mercado são expressas em números de 0 a 100. O resultado é proporcional à participação
de mercado média, ponderada pela participação de mercado individual de cada firma. [...] A grande

! 167
[...] identificar os mercados afetados pela operação e potencialmente
problemáticos, ou seja, rotas em que a participação conjunta das Requerentes
[Gol e Webjet] evidenciam um significativo incremento na concentração do
mercado com potencial impacto concorrencial (CADE, 2012b, fl. 1862).

Foram identificados como mercados relevantes para a análise desta concentração


empresarial, 26 rotas no primeiro semestre de 2010, 27 no segundo semestre de 2010 e
18 rotas no primeiro semestre de 2011,152 muitas delas coincidentes.

Definidos os mercados nos quais as partes requerentes teriam grande porcentual das
vendas, a análise do conselheiro se utilizou de outros indicativos para verificar quais
dessas rotas teriam a possibilidade de serem “contestadas” por empresas concorrentes.
A investigação de “barreiras à entrada” nessas rotas consiste num novo “filtro”, uma
nova delimitação, que reduz mais ainda o número de mercados “potencialmente
problemáticos”.153 Uma análise de barreiras requer saber qual a possibilidade que uma
empresa existente e concorrente que não oferecia qualquer dessas rotas tem de vir a
oferecê-las para os consumidores no curto prazo. Também implica investigar se alguma
nova empresa ainda não existente poderia vir a ingressar nesses mercados. Como
explicado no voto, saber quais mercados serão mais concentrados, com menos empresas
ofertando certos produtos, não torna essas rotas necessariamente mais propícias ao
chamado “exercício de poder de mercado” por um dos poucos concorrentes. A
facilidade de entrada de concorrentes externos torna mais provável a contestação – uma
concorrência por preços – de um eventual aumento significativo de preços por parte dos
concorrentes atuais.

Alguns tipos de barreiras de mercado analisadas pelo conselheiro e que costumam


impedir a entrada de novos concorrentes nas rotas foram: barreiras regulatórias (regras
referentes à distribuição dos slots), barreiras físicas (limitações da infraestrutura
aeroportuária disponível), barreiras econômicas (custos envolvidos na manutenção de
uma empresa de transportes aéreos, como aquisições de aeronaves, publicidade e

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
vantagem do HHI é dar mais peso às grandes empresas em uma análise de concentração de mercado”
(idem, fl. 1862).
152
O conselheiro descartou a necessidade de restringir ainda mais os mercados relevantes utilizando
outras variáveis como, por exemplo, diferentes tipos de passageiros (passageiros business e turismo) ou
diferentes combinações das rotas (voos diretos e voos com escala).
153
Embora a “definição de mercado” ou “delimitação do mercado relevante” seja considerada uma
primeira etapa da análise, na interpretação que eu faço desta prática, considero algumas etapas posteriores,
como a análise de barreiras à entrada, como também parte dessa delimitação, pois agem como novos
“filtros” do que é preocupante de um ponto de vista concorrencial e legal.

! 168
marketing), barreiras técnicas (aeroportos com permissão limitada a tipos específicos de
aeronaves) e programas de fidelidade, que incentivam clientes a comprarem passagens
de uma única companhia. Todos estes aspectos, caso existam, podem reduzir a
probabilidade de que outra empresa passe a concorrer com as empresas fusionadas nas
rotas “concorrencialmente preocupantes”.

Resumindo a análise, o conselheiro considerou escassa a possibilidade de entrada


de um novo concorrente nos mercados – uma nova empresa que fosse capaz de
competir com as já existentes nas rotas consideradas com oferta mais concentrada.154
Entretanto, julgou provável que a entrada nessas rotas possa ocorrer pelas empresas já
instaladas, tendo em vista que possuem capacidade operacional para concorrer com a
Gol e evitar aumentos de preços de passagens aéreas. Apesar desta constatação, o
conselheiro manteve-se cauteloso em relação a certas características da infraestrutura
aeroportuária, pois nos principais aeroportos do país – Congonhas/SP, Guarulhos/SP,
Santos Dumont/RJ, Galeão/RJ, Confins/MG e Brasília/DF – um grande número de slots
é controlado pelas empresas já existentes, sendo improvável a criação de novos espaços,
físicos e temporais, de decolagem e aterrissagem.155 Como explica o conselheiro:

O raciocínio é simples e objetivo: para se ter uma entrada na rota das


empresas fusionadas que registram elevada concentração, é necessário que os
concorrentes tenham disponibilidade de slots nos aeroportos de origem e
destino, ou seja, em um par de aeroportos (CADE, 2012b, fl. 1902).

Após um extenso relato sobre as características de cada aeroporto em cujas rotas já


tinham sido identificadas concentrações elevadas, conclui-se que os aeroportos de
Congonhas, em São Paulo, e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, são aqueles que
apresentam maiores restrições para a entrada de um concorrente, visto que não podem
ser expandidos fisicamente e não possuem slots ociosos (não utilizados). Desse modo,
apenas as rotas identificadas que têm origem e destino nestes dois aeroportos foram
consideradas relevantes para a análise. O aeroporto de Congonhas, contudo, foi

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
154
Esta era a alegação principal das requerentes para justificar um impacto irrelevante da fusão.
155
Um ponto enfatizado no voto, previamente apontado pela Anac diz respeito à situação da
infraestrutura dos aeroportos no país. Considera-se que o maior empecilho concorrencial para a entrada
de novos concorrentes neste setor não reside nos altos custos necessários para um concorrente passar a
ofertar voos, mas sim no fato de os aeroportos não terem mais “espaços físicos e temporais para
decolagem e aterrissagem de aeronaves” que possam atender à demanda de passageiros. Esta situação
acaba beneficiando as empresas que já possuem slots e exigem das autoridades reguladoras uma atenção
particular para o seu uso eficiente.

! 169
excluído da análise, apesar de ser o aeroporto mais movimentado e menos ocioso do
país. Isto porque os slots que a Gol incorporaria com a aquisição da Webjet eram
“poucos e distribuídos nos finais de semana, quando existe ampla disponibilidade de
slots” (CADE, 2012b, fl. 1902), ou seja, a mudança concorrencial nas rotas atuais com
origem ou destino neste aeroporto seria mínima com a aquisição.

Sobre o aeroporto Santos Dumont, onde a Webjet tem parcela considerável dos
slots, o conselheiro verificou ser impossível a entrada de outra empresa nas faixas de
horário então sob o controle da Webjet. A Gol passaria a controlar mais slots de rotas
que já estão muito concentradas, sem que outra empresa pudesse ofertar essas rotas,
pois não há disponibilidade para mais pousos e decolagens neste aeroporto. Assim, as
rotas concentradas do aeroporto Santos Dumont são as únicas em que há a
“probabilidade do exercício do poder de mercado” por parte da empresa fusionada
(CADE, 2012b, fl. 1917).

A solução proposta pelo conselheiro foi aprovar a aquisição da Webjet pela Gol
condicionando-a ao cumprimento de obrigações previstas num Termo de Compromisso
de Desempenho (TCD) que possa “permitir que as estruturas obtidas pela Gol sejam
operadas com eficiência e em benefício do consumidor”. Segundo o termo, a empresa
deve utilizar todos os slots que possui no Aeroporto Santos Dumont com uma eficiência
mínima de 85%, seja para pouso, seja para decolagem. Caso a empresa não utilize os
slots com este índice de eficiência, avaliado trimestralmente pela Anac, ela terá que
devolvê-los à agência reguladora. Esse forte incentivo para ofertar voos frequentes nos
slots controlados visa gerar um uso mais eficiente da infraestrutura aeroportuária tida
como escassa e já saturada. Ainda, a necessidade de ofertar voos e de utilizar os slots
tende a impedir o aumento de preços de passagens nessas rotas já concentradas.156

O voto do conselheiro ilustra o modo como a delimitação de mercado relevante


pode ser descrita como um procedimento de enquadramento, recorte ou
contextualização em que limites vão sendo continuamente redefinidos – do mercado
externo ao interno, do mercado de cargas ao de passageiros, das rotas sobrepostas às
rotas com elevada concentração, dos principais aeroportos do país ao Santos Dumont –
de modo que o escopo da aplicação da lei e, simultaneamente, as restrições

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
Sem o TCD, a Gol poderia optar por utilizar pouco seus slots e ofertar menos voos, cobrando
passagens mais elevadas e utilizando suas aeronaves ocasionalmente.

! 170
concorrenciais que são e possivelmente serão encontradas pelas empresas se tornem
visíveis.

3.4. Conhecendo e fazendo mercados

As etapas procedimentais apontadas no voto do conselheiro no caso Gol-Webjet


descrevem a utilização e a função do conceito de mercado relevante no seu processo de
interpretação do caso. Porém, a descrição da analítica, feita conforme o guia elaborado
pela SEAE e SDE, não coloca em evidência as práticas que foram realizadas pelos seus
assessores e estagiários dentro do gabinete para se definirem os vários mercados
relevantes deste caso específico. A leitura integral do voto no julgamento apresenta
apenas parte das informações coletadas no decorrer do processo, organizadas de forma
didática, visando ao convencimento dos outros membros do Tribunal e ao fácil
entendimento por todos os interessados, mas não pretende descrever o processo pelo
qual essas informações foram coletadas e o raciocínio implícito no processo.

Nesta seção descrevo, por meio de dois relatos etnográficos, o modo como a
definição de mercado foi realizada na instrução de dois processos de ato de
concentração no gabinete do Tribunal Administrativo. Descrevo como esta definição
utiliza informações e materiais distintos e como estes são combinados e interpretados
pelos funcionários do gabinete. Como enfatizado no capítulo anterior, o trabalho de
instrução processual exige uma série de práticas de documentação. No caso do
procedimento de definição de mercado, há a necessidade da produção e do envio de
ofícios, e do recebimento de petições elaboradas por empresas oficiadas. Esses
documentos incluem perguntas, tabelas e formulários que, ao serem respondidos ou
preenchidos, possibilitam a interpretação e a visualização de características do
comportamento das empresas e dos consumidores. Descrevo também como as
definições de mercado exigem ligações telefônicas, reuniões com advogados, conversas
com outros assessores ou ainda a utilização de experiências vividas que, ao
aproximarem os mercados da vida pessoal ou conhecida dos analistas, facilitam o
entendimento das relações mercantis que devem ser administradas.

! 171
Como diz um conhecido especialista em direito da concorrência, “as relações
econômicas raramente são tão simples a ponto de autorizar a definição de mercado
relevante com exatidão e segurança. Não há para qualquer que seja o produto um
‘mercado’ real esperando para ser descoberto” (Sullivan citado em Forgioni, 2013, p.
213). As práticas descritas abaixo são os modos pelos quais os profissionais do CADE
buscam conhecer essas relações econômicas complexas e, com isso, conceber um
mercado “relevante” para a análise antitruste.

3.4.1. Experiências vividas ou pessoais

Como descrito no capítulo anterior, no CADE, o trabalho de instrução processual


no gabinete parece residir apenas dentro da tela dos computadores e nos documentos
soltos ou afixados nos autos. Assessores, conselheiros e estagiários do gabinete passam
o dia escrevendo votos, ofícios e relatórios, lendo petições e artigos, construindo
planilhas e tabelas, enviando e-mails ou ofícios. Algumas ligações telefônicas e
reuniões também são comuns, ora entre assessores e advogados, buscando obter
informações para a análise dos casos, ora entre funcionários do próprio CADE, visando
formular caminhos para sua investigação. No primeiro semestre de realização do
trabalho de campo, a discussão entre assessores, estagiários e conselheiros a respeito
das particularidades dos casos era bastante reduzida devido ao tempo escasso para
analisar a grande quantidade de casos. Os momentos de conversas ou reuniões sobre os
processos instruídos, mesmo raros, foram particularmente reveladores das dificuldades
e das questões que envolvem a definição de mercado.

No gabinete em que eu fazia pesquisa, os assessores e o conselheiro costumavam se


reunir quinzenalmente para discutir a instrução de processos que estavam sob sua
responsabilidade. Os processos eram postos sobre a mesa de reuniões do gabinete e
eram abertos um a um para que fossem discutidas as possíveis formas de
encaminhamento da investigação. Um dos assessores abria um dos processos e lia as
primeiras páginas em voz alta para que os outros soubessem do que se tratava e
procurassem entender qual era o “problema concorrencial” que o caso poderia estar

! 172
suscitando. Em geral, as questões discutidas entre os assessores e o conselheiro tinham
a ver com o tipo de informação que precisava ser demandada para a empresa requerente
ou para seus concorrentes para que uma dúvida fosse adequadamente esclarecida e,
consequentemente, para que o conselheiro, com o auxílio do assessor, elaborasse seu
voto escrito.157

Em uma reunião do conselheiro com dois assessores, em outubro de 2012, as


atenções do grupo se voltaram para uma tabela que cobria toda uma página do anexo de
uma petição, contendo os nomes e a localização de uma série de centros universitários
privados. A localização dos centros era dada pelo endereço completo, sendo que a
grande maioria deles estava localizada na Grande São Paulo. A tabela havia sido
enviada pelas requerentes do ato de concentração para enumerar o conjunto completo de
centros universitários que seriam parte do mesmo “grupo econômico”, caso o ato fosse
aprovado pelo CADE. O apontamento e a localização das unidades eram uma
obrigatoriedade do pedido de aprovação de um ato de concentração com tais
características: duas empresas privadas, controladoras de universidades, centros
universitários e faculdades, estavam se fusionando e constituindo um só “grupo
econômico”.158 Como dito anteriormente, processos relativos aos setores de educação e
saúde tinham prioridade para serem “soltos”, fazendo com que fossem os primeiros a
serem selecionados das pilhas de documentos em cima da mesa de reunião.

De acordo com a Resolução no 2 do CADE, de 29 de maio de 2012, documento que


“disciplina a notificação” de atos de concentração, as requerentes que desejam se
fusionar devem apresentar ao CADE, em conjunto com a petição inicial que não
costuma ultrapassar cinco páginas, um formulário anexo preenchido com diversas
informações correspondentes às empresas envolvidas, aos concorrentes e às
características dos mercados em que atuam. Entre o conjunto relativamente extenso de
informações necessárias a serem preenchidas, o formulário solicita ao requerente que
“defina o(s) mercado(s) relevante(s)” nas dimensões produto e geográfica”.159 Assim,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
157
Como mencionado anteriormente, nos processos relativos a atos de concentração, as empresas são
denominadas “requerentes”, pois solicitam a autorização administrativa para a realização de uma
operação, e não “representantes” ou “representadas”, como são denominadas na apuração de infrações à
ordem econômica.
158
O conceito de grupo econômico será discutido no capítulo 4.
159
A resolução lista as características que devem ser levadas em conta na definição de mercados:
“Fundamente as definições adotadas, baseando-se nos seguintes fatores, na medida em que aplicáveis: (a)
substitutabilidade sob a ótica da demanda, levando em consideração, dentre os fatores considerados
relevantes, a possibilidade de substituição frente a aumentos de preços entre marcas e/ou produtos ou

! 173
em todos os atos de concentração, a definição realizada pelos assessores e conselheiros
já parte de uma definição fornecida (obrigatoriamente) pelas empresas requerentes.
Resta ao CADE a opção de aceitá-la ou de rejeitá-la, produzindo sua própria definição
do(s) mercados(s).

Por sua vez, uma definição enviada por requerentes, estipulando, por exemplo, que
o mercado relevante para sua operação é o mercado de “leite pasteurizado tipo C no
estado de São Paulo”, pode ter como base uma definição prévia feita pelo CADE na
análise de uma operação que envolveu empresas semelhantes. Ou seja, as requerentes
podem definir o mercado relevante baseando-se na jurisprudência do órgão – no
conjunto de decisões passadas sobre uma determinada atividade produtiva ou comercial
no CADE – ou ainda se baseando na jurisprudência internacional de órgãos antitruste de
outros países. Compreende-se que uma definição passada de um julgamento
corresponde a uma forma de entendimento sobre como funciona a “dinâmica
concorrencial” num determinado setor da economia. Como o CADE já tem um grande
número de decisões, raramente é necessária uma definição de mercado que “parta do
zero”, embora seja comum que as definições passadas sejam revistas e refeitas, tendo
em vista mudanças tecnológicas, alterações de processos produtivos e outras
transformações que possam ter modificado consideravelmente uma atividade produtiva
ou comercial.

No caso em análise, a definição do mercado relevante geográfico proposta pelos


grupos que ofereciam “serviços de educação” era todo o estado de São Paulo, seguindo
a jurisprudência recente do Conselho. Como o conselheiro e seus assessores
acreditavam que aquela definição não poderia mais ser utilizada, pois não “representava
fielmente a realidade”, detiveram-se demoradamente nas informações das requerentes.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
serviços e entre outros produtos fora do mercado; (b) substitutabilidade sob a ótica da oferta, levando em
consideração, dentre outros fatores, aspectos técnico-operacionais, tecnologias, custos de instalação
(inclusive custos irrecuperáveis) e possibilidade de redirecionamento de atividades; (c) natureza e
características dos produtos e/ou serviços; (d) importância dos preços dos produtos e/ou serviços; (e)
perfil dos clientes (exemplo: renda, gênero, porte da firma etc.) e dimensionamento do mercado desses
clientes (quantidade vendida); (f) preferências dos consumidores, prestando informações sobre fidelidade
a marcas, forma e momentos de consumo, dentre outros fatores considerados relevantes; (g) custos de
distribuição/transporte; (h) diferenças nas estruturas de oferta e/ou de preços entre áreas geográficas
vizinhas; (i) possibilidade de importação; (j) jurisprudência do CADE; (k) jurisprudência internacional;
(l) outros fatores” (CADE, 2012, p. 9)

! 174
Depois de a tabela passar pela mão de todos os presentes, Hélio, o chefe de
gabinete, me perguntou: “Então, Gustavo, você que já morou em São Paulo, qual a
distância da Avenida Paulista para esse lugar aqui em São Bernardo do Campo?”. Ele
apontava para duas localizações de universidades apresentadas na tabela, perguntando
novamente: “Ah, e da Avenida Vergueiro para a Avenida Paulista?”. Eu respondi que
não podia afirmar qual era a distância exata, mas que provavelmente não levava mais de
30 minutos, sem trânsito, para se chegar da Av. Paulista a São Bernardo. O assessor
então perguntou: “Mas você, se morasse na Paulista, iria até São Bernardo estudar?”.
Disse que provavelmente não; que havia uma série de universidades mais próximas da
Av. Paulista que eram similares àquela de São Bernardo e que não imaginaria alguém
que fizesse isso.

As perguntas do assessor consistiam numa tentativa de compreender como as


informações da tabela poderiam levar a uma definição de mercado relevante distinta
daquela fornecida pelas requerentes e, possivelmente, apontar um “problema
concorrencial” ainda não identificado. A primeira pergunta, que se refere às distâncias
entre os centros universitários, procurava identificar a concentração das unidades em
uma dimensão espacial, geográfica, ou seja, essas unidades apresentadas pela requerente
estão concentradas em uma determinada região? Em caso afirmativo, qual seria o
tamanho dessa suposta região? Como eu já compreendia, nesse momento da pesquisa de
campo, a razão pela qual o assessor estava interessado na distância entre as unidades, eu
respondi tendo em vista uma outra informação: o tempo estimado de deslocamento
entre as duas.

Essa resposta proporcionava outra estimativa da distância entre as unidades, desta


vez uma estimativa de deslocamento, algo que, a partir da minha experiência pessoal,
era mais simples de ser calculado. Não me lembrava de já ter percorrido de carro esse
trajeto específico, mas certamente já tinha andado suficientemente de carro na cidade de
São Paulo para poder melhor calcular uma estimativa de tempo despendido entre os
dois locais. Na resposta à primeira pergunta, as variáveis distância e tempo despendido
indicavam características que poderiam ser traduzidas num vocabulário da teoria
econômica como características do “lado da oferta”, que indicariam a disponibilidade de
serviços numa determinada região. A questão que me era colocada dizia respeito à
minha experiência como morador de São Paulo, alguém que conhece geograficamente a
cidade, suas distâncias e, além disso, o trânsito.

! 175
Com a primeira pergunta o assessor poderia obter uma informação sobre algo que
os documentos enviados ao CADE não continham. Certamente essas perguntas
poderiam ser respondidas por meio de ofícios enviados aos concorrentes e à empresa
requerente. E muito provavelmente a empresa requerente foi oficiada para que
apresentasse a distância entre suas unidades no decorrer da instrução do processo. Ainda,
a distância e o tempo percorrido também poderiam ter sido calculados pelo Google
Maps, como é feito normalmente. Contudo, a resposta àquelas perguntas, naquele
momento da reunião de gabinete, possibilitava uma aproximação mais rápida de
características capazes de definir a concentração de um mercado, ou seja, a quantidade
de concorrentes numa região, facilitando a elaboração de novas perguntas e de outras
possíveis linhas de investigação.

A questão elaborada em seguida pelo assessor levava em consideração diferentes


variáveis, que poderiam resultar em uma melhor estimativa da área geográfica que ele
buscava identificar. A pergunta “se (você) morasse na Paulista, (você) iria até São
Bernardo estudar?” me colocava na situação de um potencial consumidor de “serviços
educacionais” que morava próximo à Av. Paulista e teria uma decisão a tomar quando
fosse estudar. O que eu (ou alguém como eu) faria nessa situação? – pensou o assessor.
Como complemento à primeira pergunta, o assessor tinha interesse em compreender
agora o “lado da demanda” desse mercado, ou seja, como se comportava um
consumidor de serviços educacionais, morador da região central de São Paulo. Na
resposta, acrescentei uma outra informação relativa à “oferta” nessa região específica:
disse que havia potenciais concorrentes na região da Avenida Paulista. Portanto, não era
necessário e nem razoável que se pudesse supor o deslocamento de um consumidor da
Paulista até São Bernardo.

Com as duas respostas, o assessor pôde inferir, ou ao menos suspeitar, que a relação
entre compradores e vendedores de serviços que ele estava tentando entender não
abarcaria todos aqueles centros universitários. Se um consumidor não se desloca da
Avenida Paulista para São Bernardo para estudar, como eu sugeri, estes dois centros
estão provavelmente localizados em diferentes “mercados relevantes geográficos”, ou
seja, esses centros não concorrem entre si para atrair os mesmos estudantes. Ainda, se
existem muitos outros centros universitários na região central de São Paulo, talvez, a
concorrência entre esses centros mais próximos entre si é que devesse ser o centro das
atenções na análise que se iniciava. Como explicado anteriormente, a análise antitruste

! 176
normalmente começa pela definição de uma área geográfica acompanhada da definição
de um produto ou serviço que pode ser afetado pela concentração empresarial. Com as
informações fornecidas por mim, ao menos a área geográfica desse mercado já poderia
ser estimada com mais precisão, não se afastando muito da região da Avenida Paulista.

Minha experiência pessoal tornava possível, para o assessor, um certo


entendimento sobre o modo de funcionamento do mercado de serviços educacionais na
cidade de São Paulo. Mais especificamente, ela possibilitava uma aproximação com a
racionalidade de um consumidor típico desses serviços. Podendo inferir características
dos consumidores e do tempo de deslocamento, além de observar, ainda que não
conclusivamente, a presença ou não de concorrentes, o assessor seria capaz de elaborar
novas perguntas para as empresas fusionadas e para suas possíveis concorrentes no
mercado. As relações entre esses centros começavam a ganhar certos contornos e
características que possibilitavam precisar os limites de um mercado, um espaço onde a
relação de concorrência e o poder de mercado seriam prováveis. Com isso, seria
possível avaliar se a fusão notificada geraria algum dano à “ordem econômica”.

Essa utilização de experiências pessoais na investigação de casos por parte de


analistas antitruste, em particular na análise e na definição de mercados, para ajudá-los a
inferir a respeito das características do comportamento de consumidores, vendedores ou
sobre particularidades dos setores ou das empresas, não é incomum. Nota-se, em breves
conversas paralelas, nas poucas reuniões do gabinete ou nas explicações resumidas dos
processos, como recurso constante na construção de entendimentos sobre os casos, o
uso de considerações e ponderações a respeito de características do mercado investigado
que não provêm de informações contidas nos documentos enviados pelas requerentes
nem de casos da jurisprudência do órgão, mas que tocam e mobilizam experiências
vividas. Essas experiências, que podem ser próprias do analista ou de conhecidos
próximos a ele, servem como ferramentas interpretativas e conceituais das relações de
concorrência e apontam para uma forma de expertise mais fluida, ambígua e contextual
que permeia a prática da administração da concorrência, além de outras formas de
regulação da economia – como é destacado nos trabalhos de Annelise Riles (2010a) e
Douglas Holmes (2014).

O uso de formas de conhecimento – tais como a intuição, a anedota, a memória e a


experiência vivida ou conhecida (no caso relatado, a experiência do etnógrafo, ex-

! 177
morador da cidade de São Paulo, que acompanhava a reunião) – pode ser compreendido
como uma tentativa de reconstituição, interpretação ou definição de fenômenos
econômicos que não podem ser facilmente mensurados ou calculados (Holmes, 2009).
Numa série de artigos, Douglas Holmes e George Marcus (2005) cunharam a noção de
“para-etnografia” para denominar práticas de produção de conhecimento similares à
etnografia – embora não idênticas – que são utilizadas pelos informantes para
complementar teorias matemáticas ou estatísticas na tentativa de compreender a
economia.

Nos seus estudos, os antropólogos dão como exemplo de procedimentos para-


etnográficos as ligações e as conversas que o presidente do Banco Central norte-
americano Alan Greenspan fazia frequentemente para “sentir” a economia. Segundo
eles, de acordo com o próprio presidente, o conhecimento obtido por meio dessas
“conversas paralelas” era mais relevante para compreender as “expectativas do mercado”
e os vários possíveis cenários econômicos do que os índices estatísticos (econométricos)
oficiais produzidos pelo próprio Banco Central. A “para-etnografia” constituiria,
portanto, um “gênero de compreensão crítico e reflexivo”, uma “variedade da
tradicional preocupação interpretativa com pontos de vista nativos” (Holmes & Marcus,
2005, p. 247).

Tais práticas, como definidas por Holmes e Marcus, são particularmente úteis à
análise antitruste. Como vimos, os estudos de Organização Industrial desenvolvidos
principalmente pela escola de Harvard, que foram influentes na política antitruste a
partir dos anos 1930, buscam compreender as relações de mercado, entendidas a partir
das relações de concorrência, levando em consideração as escolhas, as preferências e as
decisões de consumidores e vendedores de produtos e serviços.

Assim, para poder definir um mercado na prática antitruste, tornou-se fundamental


conhecer o comportamento dos consumidores: quais produtos são por eles considerados
similares e até onde eles estão dispostos a se locomover para adquirir um produto ou
serviço. O conhecimento do comportamento e da racionalidade implícita do vendedor é
igualmente indispensável, pois estes estão a todo momento buscando qualificar ou
requalificar seus produtos (Callon, Méadel & Rabeharisoa, 2002), diferenciando-os
daqueles de seus concorrentes e atraindo outros ou distintos compradores, isto é,
criando novos mercados. Como me disse um analista da Superintendência-Geral, “seria

! 178
ótimo que o CADE pudesse contratar antropólogos como você para estudar esses
mercados e saber como funciona a cabeça dessas pessoas”. Como isso não era possível
por diversos fatores, entre eles a necessidade de “soltar” rapidamente os processos, que
maneira melhor de saber como se comportam e pensam consumidores ou ofertantes, ou
de definir um “contexto nativo” das relações de concorrência do que tentar se colocar
no lugar deles?

Esse modo de compreensão das relações de troca, consumo e venda de produtos e


serviços torna-se um artifício frequente já que os mercados não são apenas objetos
administrados, mas são, simultaneamente, parte da vida dos funcionários do CADE.
Assessores, analistas técnicos, conselheiros e estagiários são também consumidores,
residentes em determinadas localizações, têm experiências profissionais variadas ou
simplesmente conhecem pessoas que são familiarizadas com certos setores da economia
e as empresas que nelas atuam. 160 Esses profissionais estão sujeitos, portanto, a
experiências e relações similares ou idênticas que a análise governamental necessita
conhecer. Durante a instrução de processos são recorrentes conversas sobre marcas,
produtos e serviços, sobre o modo como eles são produzidos e vendidos ou como sua
publicidade é feita. Considerações sobre o funcionamento de empresas, suas histórias
recentes e reputações empresariais também são temas frequentes. Essas considerações
são baseadas em relatos da rotina ou da experiência desses funcionários: a ida ao
supermercado, o funcionamento de uma fábrica ou o tipo de trabalho de um amigo.

Dessa forma, profissionais do CADE procuram definir mercados, colocando-se,


quando possível, na posição de sujeitos participantes deles – p.ex., consumidores,
empresários e comerciantes. Essas práticas, que acionam “experiências vividas” ou
“pessoais”, conforme denominam os profissionais do órgão, são análogas àquelas da
prática etnográfica, no sentido de que o pesquisador ou a pesquisadora coloca-se no
lugar dos sujeitos estudados para, em seguida, objetificar suas relações com eles
(Bourdieu, 2003). 161 Os profissionais do CADE sabem que experiências, intuições,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
160
As experiências geram uma distribuição social da expertise em relação a determinados mercados ou
setores dentro do órgão antitruste. Muitos assessores ou analistas acabam tornando-se especialistas em
uma determinada área da economia, como no setor de educação ou do varejo. O reconhecimento dessa
expertise faz com que este profissional trabalhe em casos dentro de seu campo de conhecimento ou seja
chamado para dar sua opinião sobre casos específicos em outro local do conselho.
161
“I realized very early on that, in my fieldwork in Kabylia, I was constantly drawing on my experience
of the Béarn society of my childhood, both to understand the practices that I was observing and to defend
myself against the interpretations that I spontaneously formed of them or that my informants gave me”
(Bourdieu, 2003, p. 288).

! 179
anedotas são importantes como ferramentas interpretativas e conceituais para visualizar,
compreender e definir mercados. Essas “práticas de conhecimento corporificadas”
(Elyachar, 2012), baseadas em suas experiências a partir dos mercados, permitem guiar
a busca por informações sobre relações de concorrência e de consumo fora do CADE,
complementando dados provenientes de documentos ou questionando-os. Os mercados
tornam-se, assim, mais do que somente um conjunto de dados representados nos
documentos ou nos seus computadores, pois são também um espaço de sensibilidades
muito pessoais.

O uso dessas práticas de conhecimento pode ser parcialmente atribuído a uma certa
percepção desses profissionais dos vários limites de sua expertise e das suas ferramentas
analíticas ou da insuficiência da informação coletada por meio de documentos no
trabalho de investigação. A incapacidade de “acompanhar”, “observar” ou
“compreender” os mercados e suas empresas gera reclamações cotidianas no órgão
administrativo. Como afirma Holmes (2009, p. 410), essas práticas para-etnográficas
são comuns entre experts que administram ou regulam a economia, dado que “esses
atores estão totalmente cientes da natureza instável dos fenômenos econômicos que eles
são encarregados de administrar e das limitações de suas ferramentas analíticas
desenvolvidas para mensurar, senão prever, suas performances”.

Os profissionais do CADE sabem que toda informação coletada por eles, seja por
meio de pesquisas na internet, ou de petições das empresas requerentes, ou de estudos
setoriais, realizados pelo IPEA, BNDES e outras associações e organizações, é sempre
insuficiente para compreender a totalidade do funcionamento de um mercado e das
empresas. Sabem que seria impossível conseguir todas as informações necessárias a
uma perspectiva global do mercado, pois seu envio depende quase integralmente das
próprias empresas interessadas no caso, que sempre acabam por omitir certas
informações que possam prejudicá-las. Além disso, esses profissionais sabem também
que, nos casos de concentração de empresas, a análise é feita sempre preventivamente,
baseando-se em possíveis cenários futuros mais ou menos imponderáveis sobre o
funcionamento das empresas, dos mercados e da economia nacional como um todo.

Entretanto, se a utilização da experiência vivida pelos funcionários explicita uma


alternativa para certos limites das práticas mais formais, administrativamente
regulamentadas ou tecnicamente consagradas, de produção de conhecimento, por outro

! 180
lado, ela também coloca em evidência o fato de que todos os participantes de mercado –
consumidores, vendedores, empresários – carregam, de certa forma, uma expertise
necessária à análise antitruste. As práticas para-etnográficas colocam em exercício uma
forma de conhecimento compartilhada provavelmente por todos os indivíduos que, de
algum modo, se relacionam com “mercados”. Como observado, muitos dos
funcionários do CADE que fazem análises antitruste não têm conhecimento
universitário em direito ou economia. Hélio, o chefe do gabinete em que eu estava, por
exemplo, formado em psicologia na Universidade Federal da Bahia, estava no CADE há
apenas um ano. Mesmo assim, sua formação não impunha um limite claro quanto à sua
habilidade para instruir processos ou, mais especificamente, para “definir mercados”.
Como ele mesmo me explicou, o antitruste implicava uma certa “forma de pensar ou,
mais ainda, um modo de colocar questões”. Assim como muitos outros, essa “forma de
pensar” foi aprendida por ele na prática, sem que houvesse nenhum treinamento formal.

Esse conhecimento empírico dos mercados permitiu, portanto, uma aproximação


intuitiva com os procedimentos de definição de mercado, que podia ser compreendida
mesmo por um etnógrafo recém-chegado ao órgão antitruste. As perguntas formuladas
pelo assessor me indicavam que o raciocínio necessário para identificar possíveis
problemas concorrenciais poderia partir da minha própria experiência. Como Hélio
explicou em outra ocasião: “aqui cada mercado é um caso e as pessoas conhecem
diferentemente cada um deles. Se a pessoa que está sentada tem experiência no mercado,
ela não precisa ir atrás de muita informação sobre ele”. Porém, se a experiência vivida
proporciona um modo de visualizar o contexto nativo em que concorrentes e
consumidores desse mercado concebem suas ações, a definição de mercados nunca
prescinde de informações que são obtidas por meio de práticas que envolvem os
artefatos mais comuns da prática burocrática: os documentos.

3.4.2. Dos ofícios, petições, perguntas e tabelas

Alguns meses depois de analisar esse processo sobre centros universitários, o


gabinete iniciou a instrução de um processo relativo ao setor de saúde, também parte do
“estoque” deixado pela transição legal. Tendo sido encaminhado ao CADE pouco antes

! 181
da entrada em vigor da nova lei, não constavam nos autos pareceres da SEAE-MF ou da
SDE-MJ, pois as secretarias tiveram suas funções modificadas antes de terem tempo
suficiente para produzi-los. Por isso, o gabinete teria que realizar a instrução desde o
princípio, sem contar com pareceres prévios. A análise deste caso exigia uma reflexão
sobre os mercados relevantes de produto e geográfico e uma tentativa de aferir a
participação de cada concorrente nesses mercados.

O processo em questão tratava-se de um ato de concentração em que a empresa


CETOC (Centro de Tratamento em Oncologia S.A.) – controlada em parte pelo Grupo
Rede D’Or que administra uma série de hospitais e outros centros médicos – adquiria
75,5% do capital social da empresa Oncologistas Associados Serviços Médicos Ltda. e
aproximadamente 49% do capital social do IOPE (Instituto Oncológico de Pernambuco
Ltda.). Uma das empresas que se tentava adquirir, a Oncologistas Associados, era
especializada em serviços médicos relacionados a tratamentos oncológicos
ambulatoriais, sem estrutura para internação, e mantinha clínicas nos municípios do Rio
de Janeiro, Duque de Caxias e Niterói. A outra empresa, IOPE, possui uma única clínica,
também de tratamento oncológico, no município de Recife, Pernambuco.

O chefe de gabinete, Hélio, responsável por esse processo, já há algum tempo se


interessava por atos de concentração relativos ao setor de saúde, tendo decidido cursar
um mestrado na área de “economia da saúde” numa faculdade particular de Brasília.
Explicando como ele costuma proceder na análise dos casos, o assessor disse que sua
primeira tarefa é sempre analisar a petição inicial e os anexos correspondentes, enviados
pelas requerentes. Trata-se de observar se o argumento formulado pelas empresas
parece razoável. Tendo em vista, segundo ele, que os representantes legais das empresas,
que costumam elaborar essas petições, procuram ressaltar os aspectos positivos da fusão,
ou seja, demonstrar que a concentração não será prejudicial à concorrência, ele disse
que é necessário sempre “suspeitar dos advogados e de suas palavras”, por mais claras e
coerentes que sejam suas petições. Este caso, no entanto, não parecia gerar muitas
dúvidas, apenas a necessidade de conferir as informações enviadas por meio da petição.

No caso analisado, as requerentes argumentaram que a definição de “mercado


relevante de produto” era um problema menor. Segundo seus representantes, advogados
do conhecido escritório de advocacia Barbosa, Müssnich e Aragão (BMA), “o
entendimento das autoridades brasileiras de defesa da concorrência é no sentido de que

! 182
os prestadores dos serviços médicos devem ter o mesmo perfil assistencial para serem
considerados como integrantes de um mesmo mercado relevante” (CADE, 2012b, fl.
22). Para comprovar esta afirmação, as requerentes citam no documento um trecho do
voto do ex-conselheiro Carlos Ragazzo no julgamento de um processo anterior:162

[...] os mercados relevantes na dimensão produto nesse setor são os


seguintes: (i) Hospital-Geral; (ii) Centro Médico; (iii) Exames de Medicina
Laboratorial – Análises Clínicas; (iv) Exames de Medicina Laboratorial –
Anatomia Patológica e Citopatologia; e (v) Apoio a outros laboratórios –
Anatomia Patológica e Citopatologia.

Conforme outras análises feitas pelo CADE sobre empresas do mesmo setor, as
diferentes formas com que o serviço médico é prestado não são equivalentes, ou seja,
não são concorrentes entre si. Isto significa que, de acordo com a jurisprudência do
órgão, na maior parte das vezes, quando um paciente procura um exame laboratorial,
por exemplo, ele não se dirige a um hospital. Os dois serviços seriam distintos e
configurariam mercados distintos. A petição cita ainda um antigo parecer da SEAE
sobre outro processo, em que se afirma que existe uma ausência de “sobreposição
horizontal” entre clínica oncológica (classificada acima na categoria “centro médico”) e
hospital-geral, levando à mesma conclusão. Essas classificações já estabelecidas em
relação aos perfis assistenciais, por outro lado, não tinham sido feitas arbitrariamente,
mas estavam baseadas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES),
produzido pelo Ministério da Saúde. Para o assessor responsável pelo caso, não havia a
necessidade de questionar essa classificação do CNES. A classificação, segundo ele,
produzia uma ideia bastante compreensiva dos tipos de serviço ofertados neste setor.
Sua função consistiria apenas em observar quais eram as categorias em que se
encaixavam as empresas requerentes.

Estas empresas acrescentaram que, além do “perfil assistencial” das clínicas


oncológicas, que as colocam num mercado distinto daquele dos “hospitais-gerais”, a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
162
“Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, 31. Graduated in law from PUC-Rio (1999), Ragazzo obtained
an LLM in Competition and Regulation Policy from the New York University in 2002, a master’s degree
in law from UERJ, in 2005, and a PhD degree in law from UERJ in 2008. When appointed to CADE,
Ragazzo was the Coordinator-General for Competition Defence of SEAE, to which he was appointed in
2003. A public official in the career of ‘Specialist in Public Policies and Governmental Management’
since 2005, between 1997 and 2001 he was a corporate lawyer at Pinheiro Neto Advogados. In 2002, he
was a legal intern at the Federal Trade Commission, in the US, and was admitted to the New York State
Bar. By the end of 2002, he also participated in the internship program of CADE – PinCADE. After
serving for almost two mandates as a commissioner, Ragazzo was appointed to a new position created in
CADE by the recent law of 2011: general superintendent” (Miola, 2014, p. 299).

! 183
existência ou não de uma “estrutura de internação” distinguiria um estabelecimento
exclusivamente ambulatorial, como são os centros médicos, de uma característica típica
dos “hospitais-gerais”. Com o fim de sustentar este entendimento, as requerentes
citaram um Documento de Trabalho da SEAE no 46/2008, no qual a distinção entre
“centro médico” e “hospital-geral” é feita com base na existência ou não de uma
estrutura de internação de pacientes.

O chefe de gabinete me explicava, com peculiar fascinação, essas diferenças entre


“perfis assistenciais” e “estruturas de internação” quando a assessora ao seu lado, que
escutava a conversa, disse: “nesse mercado, com base na minha própria experiência, sei
que as clínicas provavelmente não concorrem com hospitais”. Perguntei como ela
poderia saber a respeito desta informação tão específica. Ela explicou que há alguns
anos atrás seu pai tinha sido diagnosticado com um câncer e que ela se lembrava, como
se fosse hoje, que seu pai não precisara ir ao hospital para fazer sessões quimioterápicas.
Isto se devia a um novo tratamento que não exigia a visita do paciente à clínica
diariamente. O tratamento envolvia um implante colocado sob o peito que liberava a
medicação ao longo do dia. Segundo ela, isto significava que “talvez não haja
concentração horizontal entre hospitais e clínicas”, pois seu pai não precisava visitar
hospitais, mas somente uma clínica de vez em quando. Por isso, logicamente, para a
assessora, “clínicas” e “hospitais” não concorriam no mesmo mercado, já que o serviço
que eles oferecem é diferente.

Se hospitais e clínicas oncológicas não concorrem entre si, o assessor não precisaria,
portanto, ficar preocupado quando uma empresa que controla apenas hospitais estivesse
adquirindo empresas que oferecem somente tratamento oncológico. Uma fusão deste
tipo não poderia provocar uma “concentração maior” em nenhum mercado de serviços
médicos como aqueles numerados acima, pois consistiria apenas numa diversificação
dos serviços prestados pela empresa adquirente, uma “entrada de mercado”, como
também é chamado este tipo de aquisição. Neste caso inexistiria a possibilidade de
“exercício de poder de mercado”. Entretanto, o Grupo Rede D’Or que controla a
CETOC, empresa que estava adquirindo a Oncologistas Associados e a IOPE, também
tinha o controle de uma empresa chamada Oncotech,

[uma] sociedade especializada em oncologia que oferece o serviço de clínica


ambulatorial, incluindo atendimento clínico, de quimioterapia e de
radioterapia, por meio de unidades espalhadas pelos municípios de Duque de

! 184
Caxias, Nova Iguaçu e Rio de Janeiro, todos no estado do Rio de Janeiro (CADE,
2012b, fl. 23).

Como os grupos adquiridos, o Oncologistas Associados e o IOPE, realizam apenas


atendimento clínico e tratamento de quimioterapia ambulatorial e não de radioterapia, a
única atividade comum entre a empresa adquirente e a empresa adquirida é a
quimioterapia. Por isso, esse serviço médico é o único que apresentaria uma
“sobreposição horizontal”, ou seja, que poderá sofrer alguma concentração de mercado,
ou diminuição da concorrência (do número de concorrentes) com esta aquisição. A
quimioterapia ambulatorial é, portanto, o mercado de produto relevante para a análise
antitruste deste caso, pois é somente no contexto da oferta desse serviço que alguma
modificação poderá ser percebida.163 Contudo, o quanto a oferta desse serviço (ou
produto) será reduzida dependerá fundamentalmente da delimitação geográfica do
mercado.

Tendo o assessor entendido que o “mercado relevante de produto” estava


suficientemente bem definido na petição inicial trazida pelas requerentes, voltou-se aos
argumentos apresentados na petição inicial a respeito do “mercado relevante
geográfico”. Sobre este ponto, as requerentes apresentaram uma tabela com as unidades
que prestam serviços de quimioterapia no município do Rio de Janeiro, tanto aquelas
pertencentes à empresa Oncotech (que já fazia parte do Grupo Rede D’Or) quanto
aquelas da empresa que seria adquirida e atuava no Rio de Janeiro, a Oncologistas
Associados. A tabela continha o endereço de todas essas unidades e as suas respectivas
distâncias relativas e estimativas de tempo de deslocamento de uma unidade para as
outras, calculadas com a ferramenta “rota” do Google Maps para “deslocamento em
automóvel”. Reproduzo a tabela exatamente conforme incluída na petição inicial (CADE,
2012b, fl. 25):

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
163
Na definição apresentada pelas requerentes na petição inicial: “Quimioterapia é o tratamento realizado
via medicamento, consistindo, em uma descrição resumida, na manipulação e administração de drogas
para o tratamento de câncer e outras patologias benignas, como a artrite reumatoide, psoríase e outras” (CADE,
2012b, fl. 24).

! 185
CLÍNICAS*ONCOTECH*
Copacabana* Campo*Grande* Duque*de*Caxias*
ONCOLOGISTAS* Tijuca*(Soares* Nova*Iguaçu*
(Siqueira* (Augusto* (Marechal*
da*Costa,*67,* (Bernardino*
ASSOCIADOS* Campos,* Vasconcelos,* Floriano,*73,*
Rio*de*Janeiro,* Mello,*1.399,*
30/504,*Rio*de* 117,*Rio*de* Duque*de*
RJ* Nova*Iguaçu,*RJ)*
Janeiro,*RJ)* Janeiro,*RJ)* Caxias,*RJ)*
Botafogo*I*(Barão*
de*Lucena,*nº*48*–* 1#h#4min#/#56,9#
21#min#/#9,3#km# 12#min#/#4,2#km# 29#min#/#28,3#km# 44#min#/#45,1#km#
Botafogo,*Rio*de* km#
Janeiro,*RJ)*
Botafogo*II*(Barão*
de*Lucena*nº*47,*
21#min#/#9,3#km# 13#min#/#4,3#km# 1#h#4min#/#57#km# 30#min#/#28,4#km# 44#min#/#45,1#km#
Botafogo,*Rio*de*
Janeiro,*RJ)*
Barra*da*Tijuca*(Av.*
Luis*Carlos*Prestes,*
32#min#/#27,9#km# 30#min#/#22,6#km# 53#min#/43,6#km# 30#min#/#35,2#km# 45#min#/#52#km#
410,*Barra*da*Tijuca,*
Rio*de*Janeiro,*RJ)*
Tijuca*(General*
Roca,*nº*935,*Tijuca,* 6#min#/#1,9#km# 22#min#/#14,8#km# 59#min#/#53,8#km# 24#min#/#22,4#km# 39#min#/#39,1#km#
Rio*de*Janeiro,*RJ)*
Olaria*(Angélica*Mota,*
31#min#/#16,6#km# 35#min#/#25,1#km# 46#min#/#40,7#km# 14#min#/#8,9#km# 27#min#/#24,8#km#
137,*Olaria*–*RJ)*
Caxias*/*25*de*Agosto*
(Conde*de*Porto*
Alegre,*nº*119,* 23#min#/#23,5#km# 31#min#/#30,4#km# 47#min#/#40,9#km# 3#min#/#1,1#km# 27#min#/#24,2#km#
Centro,*Duque*de*
Caxias,*RJ)*
Niterói*/*Icaraí*
(Coronel*Moreira* 1#h#6#min#/#63,2#
29#min#/#21,9#km# 35#min#/#32,1#km# #34#min#/#32#km# 48#min#/#47,3#km#
Cesar,*nº*229,*Icaraí,* km#
Niterói,*RJ)*
Tabela 3: Distâncias entre Unidades da Associados e Oncotech

Com a aquisição da Oncologistas Associados, todas essas unidades pertenceriam à


mesma empresa, CETOC, controlada pelo Grupo Rede D’Or. Como me disse Hélio, a
questão que ele precisava responder era: nesse mercado relevante de serviços de
quimioterapia ambulatorial, quanto os clientes estão dispostos a percorrer para serem
atendidos ou receberem tratamento? Podemos considerar todas essas unidades do
município do Rio de Janeiro (que farão parte do mesmo grupo caso a concentração seja
aprovada) e ainda as outras concorrentes que também oferecem serviços de
quimioterapia ambulatorial nesse município como fazendo parte de um mesmo mercado
concorrendo entre si? Ou será que devemos estabelecer um limite de distância entre as
unidades, ou tempo despendido menor que caracterize mais precisamente as relações de
concorrência que existem nesse mercado? Um paciente que vive em Botafogo, por
exemplo, considera, em suas opções, a ida a um centro clínico em Campo Grande para
realizar seu tratamento? Sobre isto as requerentes afirmaram que os entendimentos

! 186
prévios dos órgãos de defesa da concorrência, a SDE, SEAE e próprio CADE, “não
chegam a uma conclusão precisa acerca do raio que será considerado para a análise
concorrencial de atos de concentração envolvendo estabelecimentos de saúde, que
poderia variar de uma dimensão superior à do município a um raio de apenas 10 km”
(CADE, 2012b, fl. 23).

Segundo as informações apresentadas no anexo da petição inicial, as autoridades


antitruste costumam adotar uma entre três diferentes possibilidades para limitar o
mercado relevante geográfico deste setor: a distância ou tempo percorrido entre as
unidades até o limite de (i) 30 km ou 40 minutos, (ii) 20 km ou 30 minutos, ou (iii) 10
km ou 20 minutos. Cada uma destas delimitações geraria um tipo de concentração de
mercado distinta, pois dentro do raio de 30 km existem concorrentes que não estão num
mercado com o raio de 10 km. A tabela abaixo, enviada pela requerente, apresenta quais
unidades, tanto da empresa adquirida quanto da adquirente, estariam no mesmo
mercado caso este seja definido geograficamente num raio de 20 km ou 30 min de
descolamento a partir de cada uma das unidades adquiridas. Quanto maior a distância
ou o tempo de deslocamento escolhido, ou seja, quanto maior o mercado relevante
geográfico, mais marcada com “xs” estaria a tabela, ou seja, mais concorrentes haveria
no mercado. Quanto mais concorrentes, menos concentrado ele seria.

ONCOLOGISTAS* CLÍNICAS*ONCOTECH*
ASSOCIADOS* Tijuca* Copacabana* Campo*Grande* Duque*de*Caxias* Nova*Iguaçu*
Botafogo*I* X# X# 4# X**# 4#
Botafogo*II* X# X# 4# X**# 4#

Barra*da*Tijuca* 4# 4# 4# X**# 4#

Tijuca* X# X# 4# X**# 4#
Olaria* 4# 4# 4# X**# X**#
Caxias/25*de*
4# 4# 4# X# X**#
Agosto*

Niterói/Icaraí* 4# 4# 4# 4# 4#

** Municípios diversos

Tabela 4: Sobreposição – mercado geográfico 20 km ou 30 min (CADE, 2012b, fl. 26).

Tentando visualizar essas unidades de serviço quimioterápico, os assessores


produziram um mapa utilizando a ferramenta Google Maps, indicando a localização de

! 187
cada uma das unidades, que mostrava certa dispersão dentro do município do Rio de
Janeiro. Contudo, o mapa não foi capaz de responder a como os clientes se comportam
ao buscar esse serviço médico. Como explicou no seu voto o conselheiro-relator desse
processo, algumas características do tratamento do câncer convencional, como sua alta
agressividade, levam a crer que o mercado relevante seja relativamente reduzido em
termos geográficos. Segundo ele, em outro voto sobre o mesmo setor, um conselheiro já
havia sugerido a proposta de uma limitação para o mercado geográfico para um raio de
no máximo 10 km ao redor das unidades adquiridas ou 20 minutos de deslocamento,
argumentando que:

A razão de ser do serviço de oncologia ambulatorial é a preservação da


qualidade de vida do paciente pela manutenção de sua rotina normal [...] Do
ponto de vista da demanda (e ainda que se trate de um serviço médico
especializado), os clientes (pacientes) não apresentam, via de regra,
grande disposição psíquica ou física de deslocamento nos grandes
centros urbanos, em linhas gerais. Além disso, um tratamento ambulatorial
de câncer implica múltiplas sessões, com certo grau de regularidade,
reforçando o desconforto com longos deslocamentos [...] (CADE, 2012b,
fl. 1262, grifos no voto).

Com base nessas informações e definições trazidas pelas requerentes, Hélio


acreditou que ainda seria necessária uma investigação mais profunda para conseguir, em
primeiro lugar, delimitar com precisão o mercado relevante geográfico e, em segundo
lugar, descobrir a participação de mercado de cada uma das unidades, tanto essas que
seriam parte do Grupo D’Or quanto aquelas que seriam suas concorrentes. Somente
assim seria possível avaliar o impacto da aquisição na concorrência do mercado. O
chefe de gabinete preparou então mais de 30 ofícios, de quatro páginas cada um, para
envio a todas as empresas indicadas pelas requerentes e para todas as possíveis
concorrentes que ele havia encontrado no município do Rio de Janeiro. Para obter uma
aproximação do mercado relevante geográfico, o assessor pediu no ofício que as
empresas enviassem o “endereço (bairro) de todos os usuários atendidos neste
nosocômio no ano de 2011, de acordo com a tabela em anexo”. Com o endereço de
todos os pacientes atendidos por cada unidade, o assessor conseguiria verificar
estatisticamente a distância que pacientes estão dispostos a enfrentar para se
locomoverem. A tabela denominada “Mercado Relevante Geográfico”, enviada como
anexo ao ofício para ser preenchida, era como a seguinte:

! 188
Atendimentos*realizados*pela*unidade*em*2011*no*município*do*Rio*de*Janeiro*

Total*de*pacientes* Total*de*pacientes*
atendidos*sem*a* atendidos*com*a* Total*de*pacientes*
Bairro* Zona*
utilização*de*serviços* utilização*de*serviços*de* atendidos*
de*internação* internação*

## ## ## ##
#
## ## ## ##
#
## ## ## ##
#
Tabela 5: “Mercado Relevante Geográfico”

O envio desta tabela, assim como de outras enviadas por meio de ofícios, é comum
nos procedimentos de instrução processual do CADE. O recebimento de dados na forma
de tabelas facilita o trabalho do assessor, pois padroniza e fixa o sentido de todas as
categorias e informações de que ele precisa para analisar o processo, tornando-as
comparáveis. Para muitos, mais importante que a precisão da informação dada é a
necessidade de que todas as oficiadas enviem informações que possam ser comparadas
e organizadas conjuntamente. Sem isso, não há como fazer a análise e “soltar” o
processo. Por isso, assessores costumam passar um tempo relativamente extenso
refletindo sobre o melhor modo de criar tabelas – quais categorias as tabelas devem
incluir e como formular perguntas que não tenham ambiguidades. A forma com que os
dados são enviados para o CADE acaba sendo tão importante quanto o significado
dessas informações.164 As tabelas também são importantes porque facilitam as respostas
por parte de pessoas com diferentes formações que podem ser obrigadas a responder a
elas. Embora grande parte das empresas oficiadas tenha representantes legais com
formação em direito da concorrência e que irão responder aos ofícios, muitas delas,
como as unidades de ambulatoriais de quimioterapia, não irão contratar advogados para
fazê-lo. O próprio gerente da unidade provavelmente irá preencher as tabelas e, por isso,
elas devem ser compreensíveis, sem conceitos econômicos ou jurídicos específicos.

No caso analisado das clínicas, além da elaboração e do preenchimento dessas


tabelas, era necessário obter uma série de informações sobre as atividades de cada uma
das unidades e dos possíveis concorrentes para que fosse possível calcular um índice de
concentração dos mercados. Entre as informações requeridas pelos ofícios estavam: (i)
“discriminar quais os principais concorrentes deste nosocômio”; (ii) “classificação,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
164
Como vem afirmando Annelise Riles em uma série de trabalhos (2006a, 2010, 2011a), as tabelas
impõem um modo de agência diferente àqueles que as recebem, pois exigem, principalmente, não sua
leitura ou interpretação, mas apenas seu preenchimento (form-filling).

! 189
segundo CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde), bem como a
discriminação de todos os serviços ofertados por este nosocômio, discriminando ainda o
faturamento obtido em cada um dos procedimentos no período entre 2007 e 2011”; (iii)
“quantidade de procedimentos realizados”; (iv) “descrição detalhada de todos os
serviços ofertados por este nosocômio de modo a que possamos compreender em que
consiste cada um deles e de que modo estão articulados (complementares, substitutos
etc.)”; e (v) “no caso de eventual estrutura típica de internação detalhar minuciosamente
suas características, informando, ainda, o número de leitos disponíveis, discriminando
UTI, SUS e não SUS”. Além de permitir a verificação de quem e de quantos eram os
possíveis concorrentes, as perguntas serviam para definir, por meio do faturamento ou
do número de leitos e procedimentos, quanto cada unidade representava na oferta de
serviços médicos desse mercado que se tentava delimitar.

As informações requeridas para cada clínica de oncologia não eram simples de


serem organizadas e enviadas ao CADE. A grande maioria das clínicas protocolou um
requerimento de “dilação de prazo” para que fosse estendido para mais de 20 dias o
tempo exigido para o envio das informações. A dilação foi dada também porque o
processo estava com o prazo de dias um pouco acima do limite confortável e não podia
se correr o risco de deixá-lo parado no gabinete, com o prazo correndo. Os assessores,
de outro lado, também concluíram que o tratamento estatístico do banco de endereços
dos pacientes seria extremamente oneroso e difícil. Para cada unidade que recebeu o
ofício, o assessor teria que construir um indicador que estimasse a distância média da
residência de seus clientes. Cada uma dessas médias daria uma aproximação do
mercado relevante geográfico no qual a clínica concorria. Mas os dados de endereço dos
pacientes eram pouco confiáveis e podiam resultar numa estimativa incorreta desses
mercados.

Buscando suplantar as dificuldades das oficiadas e do próprio gabinete, o assessor


optou por enviar novos ofícios indagando aos diversos ofertantes desse serviço nessas
regiões acerca da abrangência geográfica de seus clientes. O ofício exigia apenas:
“informar, dentre uma das categorias a seguir, a que abrange a maior parte da clientela
desta prestadora de serviços de atenção à saúde: (i) raio de 10 km de cada
clínica/estabelecimento, (ii) raio de 20 km de cada clínica/estabelecimento, (iii)
Município, (iv) Estado, (v) outra – especificar”. As respostas ao ofício simplificaram a
decisão e indicaram que a utilização de um raio de 10 km ao redor de cada unidade

! 190
adquirida como mercado relevante geográfico seria mais condizente com a forma com a
qual os consumidores se comportam neste setor.165

Em suma, o assessor concluiu em relação ao mercado relevante de produto que o


entendimento da jurisprudência já estava suficientemente preciso, não necessitando de
uma alteração mais substancial para utilizá-lo como referência para este caso. O
mercado foi definido como o de clínicas oncológicas ambulatoriais, um tipo de “centro
médico”, que não concorre com hospitais. Sobre o mercado relevante geográfico,
confirmou-se por meio de dezenas de ofícios enviados e petições recebidas que
pacientes não estão dispostos a viajar mais de 10 km para receber tratamento, devido às
próprias características da enfermidade. Assim, o assessor delimitou as áreas nas quais a
concentração empresarial poderia gerar efeitos prejudiciais à concorrência como aquelas
correspondentes a um raio de 10 km ao redor das unidades adquiridas e da adquirente.
Mesmo considerando esse raio reduzido, em nenhuma das regiões identificadas houve
uma concentração excessiva do poder de mercado das empresas, visto que havia uma
série de outros concorrentes ao redor de cada uma das unidades da nova empresa, cada
um deles com uma parcela pequena da oferta do serviço médico. Com base na análise
do assessor, o conselheiro considerou que não havia motivos para “preocupações
concorrenciais” que pudessem advir desta aquisição e votou pela aprovação da operação,
sendo seguido por seus pares.

3.4.3. O espelho e o filtro

Como fica claro através dos relatos acima, a definição de mercado passa pelo envio
e recebimento de documentos – ofícios e petições – que possibilitam a produção de um
conhecimento sobre empresas, características de produtos e serviços, e sobre o
comportamento de determinados consumidores. São principalmente as informações
provindas dessas práticas de documentação que são utilizadas para a elaboração de
relatórios e votos no gabinete. Os profissionais que fazem a análise antitruste sabem que
as intuições e as experiências dos profissionais, embora sejam úteis para elaborar
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
165
“O raio aqui é considerado em seu aspecto prático, ou seja, 10 km de caminho efetivo de deslocamento,
o que frequentemente não corresponde ao rigor do conceito geométrico de raio, a distância em linha reta
do centro até qualquer ponto da circunferência” (CADE, 2012b, fl. 1263).

! 191
perguntas e compreender determinadas informações, não servem como evidência
jurídica para a elaboração de um voto e nem como argumentos sólidos para justificar a
decisão. Somente os documentos, com suas tabelas, formulários e perguntas
padronizados, ao serem respondidos e preenchidos, possibilitam reunir e associar –
draw together, na expressão de Bruno Latour (1988) – informações que podem constar
dos votos dos conselheiros. Como explicado, esse conjunto de informações começa a
ser compilado desde o envio da petição inicial pelos requerentes, com seus anexos
correspondentes.

Se o envio de ofícios produzidos pelo CADE e o recebimento de petições


produzidas pelas requerentes e seus representantes são as principais práticas que
possibilitam definir o mercado relevante, podemos nos questionar, conforme apontado
em outras etnografias, sobre o modo com que os documentos se relacionam com seus
referentes (Hull, 2012), neste caso, com os mercados relevantes. Ou, de forma mais
precisa, como os profissionais do CADE que, envolvidos em práticas de documentação
necessárias para a definição de mercado, concebem o modo com que os artefatos
(ofícios, petições e outras formas de documentos) se relacionam com seus referentes.
Para o antropólogo Matthew Hull (2012a, p. 25): “Tanto na autocompreensão dos
burocratas quanto nas abordagens clássicas sobre a burocracia [produzidas por cientistas
sociais], os documentos representam ou lidam com entidades autônomas, realidades ‘no
mundo’, independentes dos processos pelos quais elas são produzidas”. Esta perspectiva,
na qual os documentos apenas representam realidades externas, certamente estava
presente entre os funcionários do CADE, especialmente no gabinete em que realizei
meu trabalho de campo, como se pode notar ao observar a particular fixação pela
produção de ofícios.

Nos momentos finais das sessões de julgamento quinzenais do órgão, os membros


do plenário, ao terminarem de julgar os processos indicados na pauta, referendam
também despachos e ofícios que enviaram desde a última sessão. Esse referendo
consiste, na prática, apenas no pronunciamento do número desses documentos que
foram enviados durante as últimas duas semanas. Quando necessário ou requisitado por
outro conselheiro, faz-se um pequeno resumo do conteúdo de um despacho. Ao final de
uma das sessões ao término do ano 2012, o presidente do CADE fez um comentário: se
os conselheiros estivessem competindo para ver quem conseguia produzir mais ofícios,
não haveria muito dúvida de quem sairia vencedor. Nesse instante todos os conselheiros

! 192
riram, sabendo que se tratava do conselheiro Carlos. Ele costumava referendar mais
ofícios do que todos os outros conselheiros nas sessões, às vezes mais de uma centena
deles.

O conselheiro também comentou, ao final dessa sessão, já em seu gabinete, que


esperava que essa alta produtividade fosse entendida como um esforço para instruir
melhor os processos e, como já era sua “marca”, para definir com mais “precisão” os
mercados. Entretanto, ele sabia que a quantidade de ofícios não era sempre bem vista e
tomava as brincadeiras de seus pares com certo receio. Um grande número de
documentos poderia significar também um maior tempo de análise e, por isso, uma
menor quantidade de processos julgados. Como a prioridade do órgão, naquele semestre,
era “soltar” o maior número possível de processos, os ofícios poderiam ser vistos como
um empecilho aos objetivos do CADE. O gabinete do conselheiro poderia estar
trabalhando de modo não muito favorável aos interesses mais amplos traçados pela
presidência.

Se esta fosse a interpretação dos outros conselheiros, ou de alguns, que acharam


graça de sua alta produção de documentos, sua recondução ao cargo poderia estar
ameaçada no início do próximo ano, já que ela dependeria do apoio deles. Sabendo
disso, o conselheiro exigia dos seus assessores e estagiários um grande esforço para
soltar o máximo de processos, mesmo que cada um deles implicasse a produção e o
envio de um grande número de ofícios. Uma das soluções encontradas para cumprir
com estes dois objetivos era elaborar ofícios contendo perguntas mais simples e solicitar
um prazo mais curto para a resposta das oficiadas, como foi realizado no caso das
clínicas oncológicas. Assim, a instrução processual poderia ser feita com mais
celeridade.

A possibilidade de o gabinete reduzir o número de ofícios produzidos era remota,


pois eles eram considerados pelo conselheiro as principais ferramentas para a realização
da análise antitruste, que implicava, acima de tudo, a definição dos mercados. “Eu
penso assim”, disse ele, “primeiro preciso fazer o market test; perguntar para os
concorrentes, enviar uma série de ofícios. Depois disso, definido o mercado e tendo o
market share [estimativa da participação dos concorrentes no mercado], aí eu passo pra
outras etapas”. Os ofícios eram condição necessária para se definir o mercado, e a
definição de mercado, uma condição para toda a análise de um possível problema

! 193
concorrencial. “O que importa é encontrar o mercado”, dizia ele. A sua visão da
importância do conceito e da definição de mercado relevante colocava em evidência um
modo de concebê-lo como uma representação, uma forma de descrever uma dada
realidade de difícil compreensão. O problema do CADE, disse ele, é “conhecer
suficientemente uma realidade que não se deseja conhecer”.

Esta concepção do mercado relevante como uma representação das relações de


concorrência enfrentadas pelas empresas, já apontada neste capítulo, era compartilhada
por todo o seu gabinete, que havia aprendido com ele o modo como se realizava a
análise antitruste e o que ela significava. Hélio, seu chefe de gabinete, ao falar de sua
dificuldade para realizar a definição de mercado, explica: “a gente pega um mercado
distorcido, um espelho sujo e tentamos limpar um pouco esse espelho, mas as empresas
tentam sujá-lo”.166 O problema para Hélio e para os outros assessores e estagiários
consistia em produzir um “espelho” o mais “limpo” possível, levando em consideração
que as requerentes sempre tentarão fazer com que esse espelho reflita uma imagem mais
favorável a elas. Como a delimitação do mercado era compreendida sobretudo como um
problema epistemológico, ficava mais fácil entender o enorme número de ofícios
produzidos neste gabinete. Cada ofício enviado, tanto para as requerentes quanto para
seus concorrentes, muitos dos quais eram contrários à concentração, gerava petições
com novas e divergentes informações que, ao serem reunidas e comparadas, tornavam
mais provável uma representação fiel ou “limpa” do mercado.

Contudo, essa concepção do “mercado relevante”, explicitada pela forma que era
entendida a produção de documentos no gabinete do conselheiro Carlos, não era a mais
recorrente nas conversas e nos diálogos de que pude participar e observar no órgão
antitruste. Entre funcionários de outros gabinetes ou das coordenações da SG que
também analisavam atos de concentração, a definição de mercado relevante continuava
a ser de suma importância, mas não havia uma preocupação tão forte quanto a seu papel
representacional. A metáfora do “espelho” de uma realidade exterior seria considerada
um pouco exagerada ou ao menos incompleta, pois o mercado do antitruste, por ser
“apenas o relevante” – só pertinente de um ponto de vista legal – para a análise do caso,
não se apresenta completamente independente das materialidades e das práticas com
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
166
Hélio dizia esperar que todos os gabinetes, a SG e o Departamento de Estudos Econômicos, seguissem
uma mesma linha de análise, que implicava, antes que qualquer coisa, identificar os mercados relevantes
e, em seguida, construir uma política específica de concorrência para cada um deles, levando em conta
suas particularidades.

! 194
que é produzido. Para a maior parte dos profissionais do CADE com os quais eu convivi
e conversei, os mercados relevantes são como uma “presença espectral materializada
nos documentos”, na expressão de Veena Das (2004).167 Isto significa que, para os
responsáveis pela definição de mercados, não se pode dizer, como supõe Hull (2012a),
que os documentos são entendidos apenas como representações de algo externo a eles.
Pelo contrário, os documentos – ofícios e petições principalmente – são sobretudo
entendidos pelos profissionais como “mediadores”, conforme a noção formulada por
Bruno Latour (2005, p. 49), ou seja, como instanciações do próprio mercado relevante.

Segundo Bruno Latour (1976), há um hiato entre as práticas usuais da atividade


científica e o modo como elas são interpretadas pelos cientistas. Em diferentes relatos
etnográficos, Latour (1999) descreve a produção de conhecimento científico acima de
tudo como um trabalho de construção de ferramentas que possibilitam traduzir e
transportar a realidade investigada. De acordo com ele, para que fatos, verdades
epistemológicas, sejam construídos, há a necessidade do uso de “ferramentas de
inscrição” (inscription devices), que concedem imutabilidade e transportabilidade à
realidade, fazendo com que fatos possam ser visualizados e comparados entre si (Latour,
1989). Os documentos seriam os melhores exemplos dessas ferramentas, tanto na
prática científica como na prática jurídica (Latour, 2002) devido ao seu caráter “móvel”,
porém também “imutável” e “combinável”, podendo ser lidos e apresentados em locais
e tempos diferentes.168 Cada anotação feita, cada passagem de informações para o papel
seria em si uma nova tradução ou transformação do anterior, ou seja, uma mediação e
não um simples transporte de informação. Por isso, documentos são “mediadores”,
materialidades que transformam e produzem aquilo que está neles inscrito, algo
essencialmente novo e diferente daquilo a que eles se referem.169

Entretanto, para Latour (2005), os cientistas interpretam essas ferramentas de


inscrição como meros “intermediadores”, apenas transportando formas de representação
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
167
Segundo Veena Das (2004, p. 250-51), o Estado é “como uma presença espectral materializada nos
documentos”.
168
Em resenha sobre a etnografia de Bruno Latour no Conseil d’État francês, Levi e Valverde (2008, p.
818) explicam que, para o autor, o direito é um: “process of drawing textual links and associations –
fusing together a documentary footbridge between the library and the dossier […] so that the work of
jurists is one of mediating (often creatively) between these documents for each case. Law is largely a
documentary network through which the social is arranged and assembled”.
169
Segundo Alain Pottage (2008, p. 168), a noção de materialidade, tão cara à antropologia de Bruno
Latour, é por ele compreendida “not (as) the simple materiality of these things – their mass, density, or
spatial definition – but rather ‘materiality’ as a kind of agency that is afforded by, elicited from, or
ascribed to them. Indeed, material agency is not an innate quality of these artefacts”.

! 195
de algo externo a eles, e não como ferramentas que, ao transformarem aquilo a que elas
se referem, concebem ou produzem objetos ou fatos. Como já apontado no capítulo
anterior, Hull, baseado em Latour, afirma que esse entendimento é comum na interação
com mediadores, entre eles os documentos, pois estes seriam capazes de “desviar a
atenção de sua materialidade ou tecnicalidade redirecionando-a para aquilo que está
sendo mediado” (Hull, 2012a, p. 13), ou seja, aquilo a que eles se referem. Contudo,
como tenho descrito desde o capítulo anterior, os documentos não são “invisíveis” para
os funcionários responsáveis pela instrução processual. Como artefatos da prática
burocrática é evidente a importância dada, por exemplo, às suas organização,
temporalidade e confidencialidade. Mas como ferramentas de inscrição os documentos
são também muito “visíveis”, pois o mercado relevante de um caso só pode ser
concebido e visualizado, conforme eles dizem, por meio das práticas de envio e
recebimento de documentos.

Por isso, os “mercados relevantes” são mais do que representações contidas nos
documentos, visto que eles também são pensados como uma prática particular da
análise antitruste. Para a grande maioria dos funcionários, o objetivo da definição não é
a produção de uma descrição “precisa” do mercado “tal como ele é na realidade” – até
porque, como muitos especialistas não cansam de apontar, o mercado relevante não é
exatamente o típico mercado dos economistas (e nem dos cientistas sociais, explico
abaixo).170 O que importa para eles é a utilização do mercado como um procedimento, a
primeira etapa da análise, que permite identificar possíveis problemas concorrenciais.
Em uma das conversas que eu tive com um coordenador na SG, um bacharel em direito
que já trabalhava fazia tempo no SBDC, sobre a minha dificuldade em compreender o
conceito de mercado relevante, ele falou:

Há no antitruste uma certa confusão sobre o mercado relevante [...] o


conceito é utilizado como se fosse uma realidade empiricamente observável.
Não é nada disso! O mercado relevante é uma técnica, só uma ferramenta da
política de concorrência.

Um outro funcionário do CADE, também formado em direito, criticando aqueles


que pensavam que o mercado tinha que ser investigado no mais mínimo detalhe, disse:
“o mercado no antitruste é somente um filtro para visualizar a possibilidade de exercício
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
170
Como me explicou a economista e ex-presidente do CADE, Elizabeth Farina, ainda antes do início da
minha pesquisa de campo: “Lembre-se que o mercado relevante não é o mercado da teoria econômica,
mas apenas o mercado do antitruste” (conversa pessoal).

! 196
de poder de mercado. Serve pra ver onde existe um problema”. Utilizando o mesmo
termo “filtro”, recorrente no voto do conselheiro Ricardo Ruiz no caso Gol-Webjet, o
mercado relevante é também concebido como uma técnica, um conceito jurídico que
permite a identificação da possibilidade do exercício de práticas ilícitas. Radicalizando
esta perspectiva, ofícios, petições, tabelas, relatórios e votos não conteriam
representações de mercados reais, mas seriam instanciações do mercado relevante, no
sentido de que o mercado só existiria como um conjunto de práticas administrativas de
documentação que se utiliza de aspectos da realidade para construir o objeto do ilícito.
Isso não quer dizer que, neste sentido estrito, em que o mercado relevante “é só uma
metáfora, não uma descrição da realidade”, como afirma um jurista e ex-funcionário do
FTC (Rockefeller, 2007, p. 43), que ele não possa produzir efeitos práticos,
performativos na realidade econômica, como veremos na próxima seção. Mesmo
aqueles que consideram o mercado relevante uma simples “imagem mental na cabeça”
(2007, p. 43) sabem que ele é utilizado como uma ferramenta de política pública para a
administração de relações empresariais, produzindo efeitos sobre a concorrência.

A divergência descrita nesta seção entre estas duas concepções do mercado


relevante não é algo que divida claramente funcionários do órgão antitruste ou marque
posições determinadas. Como já apontado neste capítulo, as duas formas de
compreensão do conceito são utilizadas simultaneamente. Do mesmo modo, não se
pode dizer também que uma delas está relacionada à perspectiva dos economistas e a
outra à dos juristas, pois ambos acionam as duas concepções alternadamente quando
necessário. Segundo o coordenador da SG que entrevistei, a importância dessa diferença
é que ela expõe uma incoerência inerente ao direito concorrencial, uma “diferença
ontológica”, em suas palavras, do estatuto do mercado no antitruste. Mesmo na
literatura especializada de direito ou economia da concorrência estas duas concepções
são encontradas.171 A questão mais essencial, para ele, é que essa diferença acaba por
complicar o entendimento e a aplicação da política e da legislação concorrencial.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
171
Segundo a jurista Paula Forgioni (2013, p. 213): “mercado relevante é aquele em que se travam as
relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado”. Já para
o jurista norte-americano Frederick Rowe (citado em Rockefeller, 2007, p. 43): “the market is metaphor,
not actuality, a mental ‘picture in our heads’. While many definitions, all circular, state attributes of what
the market is, a market is a market is a market – there is no there, there. Like the law’s concept of contract,
economics’ concept of market yields no answers for any but the blackletter textbook case. But unlike
contract, which has been objectified by precedent, historical gloss, and case-by-case interpretation, the
market has no objective content outside itself. […] Inevitably, the market entails a mix of intuition,
judgment, and choice, relative for each case and every question at hand”.

! 197
Como exemplo, o funcionário do CADE mencionou o modo como o conceito de
“mercado relevante” aparece na nova Lei no 12.529 de 2011. Segundo o artigo 36, do
diploma legal, um dos tipos de infração da ordem econômica consiste em “dominar
mercado relevante de bens ou serviços”. Para o coordenador, o texto legal propõe um
sentido ao mercado relevante como se este fosse uma realidade dada cujos agentes
econômicos buscariam dominar. Contudo, para ele, os agentes não fazem a menor ideia
do que seja o mercado relevante. A concepção confundiria tanto os agentes econômicos
que estão sendo administrados quanto alguns profissionais do órgão antitruste que não
possuem muito conhecimento das “sutilezas” do direito econômico. O mercado
relevante seria, de acordo com ele, apenas um modo de enxergar, uma ferramenta que,
embora útil, deve continuar sendo somente uma opção e não uma necessidade da análise
antitruste. Quem deveria definir a sua utilização caso a caso seriam os analistas do
CADE e não o legislador. Entretanto, como demonstrei neste capítulo,
independentemente da concepção de “mercado relevante” – como um “espelho”, uma
forma de representação de relações de troca e concorrência, ou como um “filtro”, uma
ferramenta que permite enquadrar a operação dentro de uma infração legal – na prática,
a definição de mercado é uma condição de possibilidade de identificação de um
problema concorrencial na análise de atos de concentração, sendo raramente desprezada.

Nesta seção, descrevi, com base nos entendimentos da relação das práticas de
documentação do órgão antitruste com seus referentes, a complexidade inerente ao
conceito de mercado utilizado na política de defesa da concorrência. Na próxima e
última seção, explico como este conceito, que tem como função impor um limite
interpretativo ao analista que busca compreender os impactos de uma determinada
concentração empresarial, também limita certas abordagens sociológicas e
antropológicas mais recentes dos mercados.

3.5. O mercado como um contexto

Desde o surgimento da obra mais famosa de Karl Polanyi (1944), a antropologia da


economia costuma adotar uma postura crítica em relação à noção de mercado mais
usual na teoria econômica. Tal noção, proposta pelos economistas neoclássicos da

! 198
segunda metade do século XIX, implicaria afirmar que os mercados são formas de
organização naturais de troca, derivados de uma psicologia humana presente em todos
os indivíduos (Dalton, 1961). Segundo antropólogos, essa noção abstrata de um
mercado como um princípio regulador do “sistema econômico” não pode ser tomada
como uma ferramenta de descrição e explicação das trocas mercantis em diferentes
sociedades e culturas.172 O mercado conforme concebido pelo pensamento econômico
moderno só permitiria compreender sociedades que de algum modo foram impactadas
por transformações políticas, intelectuais e comerciais no século XVIII na Europa
(Agnew, 1986; Dumont, 1977; Polanyi, 1944), especialmente aquelas nas quais o
capitalismo é o modo de produção mais dominante (Braudel, 1976).

Por outro lado, segundo antropólogos, os mercados, entendidos como espaços


segregados de práticas comerciais ou marketplaces, proliferam em sociedades as mais
distintas (Braudel, 1976; Polanyi, Arensberg & Pearson, 1957). Não por acaso, são
esses mercados, localizados no tempo e no espaço, que se tornaram objetos de estudo
dos cientistas sociais, seja por meio do uso de análise de redes sociais, relatos
etnográficos ou pesquisa historiográfica minuciosa. 173 Nesses trabalhos, procura-se
explicar o contexto e o modo com que as trocas comerciais ocorrem, tanto em
sociedades ditas “tradicionais” quanto “modernas” (Bohannan & Dalton, 1965;
Bourdieu, 2005). A enorme literatura de antropologia e sociologia dos mercados coloca
em evidência características das relações mercantis que não são levadas em
consideração pela ciência econômica, como as formas de poder envolvidas nas trocas,
as práticas de valoração das mercadorias, as relações familiares, as formas de trabalho e
produção que envolvem remunerações não monetárias, entre várias outras.

Ao longo do século XX, a ciência econômica – ou pelo menos a parcela mais


hegemônica da produção intelectual em economia – parece ter se tornado cada vez mais
alheia a essas características concretas dos mercados devido ao enorme crescimento da
utilização de modelos matemáticos entre economistas acadêmicos. Alguns antropólogos
têm criticado a ciência econômica, como fazia Polanyi, pelo seu excessivo “virtualismo”
(Miller, 1998), inclusive em relação à sua noção de mercado: “Books that used to be
about capitalism, a phenomenon imagined as being in a certain time and space, today
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
172
A própria noção de “sistema econômico” tem sua origem no trabalho dos fisiocratas franceses e
filósofos iluministas escoceses (Dumont, 1977).
173
Ver, por exemplo, Bourdieu (2005), Granovetter & McGuire (1998), Garcia-Parpet (1986) e Rabossi
(2004).

! 199
are almost always about the market, which inhabits the time-less and space-less realm
of economic models” (Miller, 1998, p. 204). Embora não de todo incorreta, a crítica
mais recente do “virtualismo” da ciência econômica produz a impressão de que
antropólogos estão preocupados somente com mercados “reais”, localizados, inseridos
na vida social (Granovetter, 1985), enquanto economistas estariam apenas interessados
nos modelos abstratos de mercados, descontextualizados social e culturalmente (Carrier,
1998).174

Nesse sentido, a definição de mercado na política antitruste coloca essa impressão


em xeque, na medida em que o mercado relevante não está inserido nas relações sociais
e culturais como se fosse uma pura descrição etnográfica, nem não inserido em tais
relações como se fosse um modelo puramente abstrato que não leva em conta
especificidades espaciais e temporais. De modo similar aos mercados descritos por
cientistas sociais, os mercados do antitruste também estão localizados num tempo e
num espaço bem definidos, mas dificilmente seríamos capazes de caminhar entre uma
variedade de lojas e acompanhar a “colorida e frequentemente agressiva barganha”
(Geertz, 1963, p. 32) que caracteriza as trocas comerciais de um “mercado relevante”.

O mercado do antitruste não cabe nessa divisão estrita entre o “real”, o concreto, e
o “ideal”, o modelo, pois ele é, em si mesmo, um contexto, uma forma de recortar
aspectos da realidade baseada em teorias ou pressupostos sobre o funcionamento dos
mercados e das relações de poder que podem advir das concentrações. Por este motivo,
a abordagem relativamente recente, conhecida como abordagem “performativa” nos
estudos sociais da economia, parece ser mais apropriada para compreender a noção de
mercado do antitruste e seus efeitos, pois ela leva em conta precisamente a forma de
interação entre teorias, princípios, modelos e conceitos econômicos e as realidades que
esses modelos buscam descrever, explicar ou mesmo governar.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
174
A história da antropologia dos mercados e da economia mostra como essa impressão é equivocada.
Trabalhos etnográficos clássicos sobre mercados compreendiam que a ambiguidade do termo, como
“local específico” e “princípio da troca”, poderia ser útil para analisar padrões de comportamento e
espaços comerciais. Na coletânea Markets in Africa, os autores Paul Bohannan e George Dalton afirmam:
“To study markets in Africa it is necessary to point out clearly the distinction between the institution of
the market place and the transactional mode of market exchange. The market place is a specific site where
a group of buyers and a group of sellers meet. The market mechanism, or market principle, on the other
hand, entails the determination of prices of labour, resources, and outputs by the forces of supply and
demand regardless of the site of transactions” (1965, p. 2). Da mesma forma, nem todos os economistas,
como demonstrado neste capítulo, concordam com a utilização de modelos abstratos de mercados,
preferindo uma abordagem mais empírica.

! 200
Não é inesperado, portanto, que o único trabalho na literatura da sociologia ou da
antropologia econômica que atenta para a definição de mercados na política antitruste, o
artigo de Brett Christophers (2015), afirme que a política ou a lei de defesa da
concorrência constitui um exemplo claro de como se dá a “performatividade” da teoria
econômica. Analisando os impactos das decisões de alguns casos específicos da
Competition Commission, o órgão antitruste do Reino Unido, o autor argumenta que as
definições de mercado teriam contribuído para a criação de fronteiras ou barreiras entre
mercados “reais”, pois levaram a proibições de certas práticas empresariais.175

The drawing of conceptual boundaries is active and material, leading to the


redrawing of lived boundaries – boundaries between what is and is not legal
in actual economic practice, between those on the wrong and right sides of
legality (Christophers, 2015, p. 12).

Assim, segundo o autor, o mercado relevante ou a definição de mercado performa,


transforma ou modifica mercados, pois impõe limites à ação empresarial, com base em
teorias sobre o melhor funcionamento dos mercados desenvolvidas em Harvard e
Chicago, principalmente.

Os trabalhos que enfatizam a performatividade, influenciados, no caso da


antropologia econômica, pelos estudos sociais das ciências, têm entre seus méritos
problematizar a separação desmedida entre mercado como “princípio” e mercados como
“espaços localizados”, mostrando como os dois sentidos do termo se constituem
mutuamente naquilo que analiticamente pode ser descrito como uma mesma “rede” ou
“agenciamento sociotécnico” (MacKenzie, 2009), conforme a denominação dada pela
“teoria do ator-rede”. Ao invés de simplesmente constatar que mercados funcionam de
um modo distinto daquele que economistas afirmam (Carrier, 1997; Miller, 2002), esses
estudos atentam para a maneira como certos profissionais (sejam eles economistas,
administradores, contadores ou outros) e suas teorias e práticas financeiras, contábeis ou
organizacionais são fundamentais para “ajustar” a realidade dos mercados aos modelos
construídos para explicá-los (MacKenzie, 2006; Callon, 2007), tornando-os mais
“eficientes” ou “competitivos”. 176 A teoria econômica, portanto, seus modelos,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
175
Türem (2011) e Dobbin e Dowd (2000), utilizando outras referências teóricas, têm argumentos
semelhantes sobre o modo como as políticas antitruste turca e norte-americana, respectivamente,
performam mercados.
176
Etnografias ou estudos históricos em bolsas de valores, bancos ou fundos de investimento mostraram
como mercados podem ser descritos como redes formadas por humanos (estatísticos, economistas,
engenheiros etc.) e não humanos (documentos, calculadoras, sistemas de mensuração, computadores,

! 201
princípios e conceitos devem ser pensados não apenas como formas de descrever o
mundo econômico, mas principalmente como ferramentas que o formatam.

Nessa literatura, argumenta-se, conforme a antropologia econômica clássica, que o


surgimento e o desenvolvimento de mercados não é de modo algum processo natural,
contudo, mercados poderiam sim se tornar cada vez mais similares àqueles descritos
pelos economistas graças ao papel que certos profissionais, dispositivos de cálculo,
teorias econômicas e materialidades organizacionais desempenham na produção de
comportamentos calculadores e na qualificação e valorização de objetos (Callon, Millo
& Muniesa, 2007). Nesse conjunto de elementos que performatizam mercados –
agencements (Callon, 2007) – a lei aparece como fundamental. Na introdução seminal
ao livro que editou, Callon (1998, p. 28) afirma:

Among those mediators which bind economics to economy while


constituting each as an independent entity, law, together with accounting
metrology and marketing management, is well situated. Of course it provides
a powerful tool for framing, or more precisely for enacting, calculative
agencies. But what we wish to emphasize here is that it is an essential link, an
irreplaceable coupling device between theoretical work and economic
practices, for it organizes real experiments.

Michel Callon (1998, p. 54) ainda menciona explicitamente o tema que nos
interessa nesta tese: “a lei de concorrência [...] obviamente promove a calculabilidade
das decisões ao enquadrar ações e relações autorizadas”. De fato, as decisões tomadas
pelo órgão antitruste, baseadas na lei concorrencial, performam mercados, pois definem
limites que serão levados em consideração pelas empresas nas suas decisões futuras,
alterando o modo de funcionamento dos mercados. A definição de um “mercado
relevante geográfico de 10 km” e de um “mercado relevante de produto de oncologia”
num voto, por exemplo, pode ter impactos sobre as relações de concorrência entre as
empresas requerentes, seus concorrentes e consumidores em várias localidades,
produzindo novos mercados e transformando aqueles já existentes. Este capítulo, no
entanto, descreve com mais detalhes o modo como certas definições de mercado
relevante são capazes de performar mercados “reais”. A definição de mercado não
performa apenas em função do impacto futuro que a decisão administrativa terá sobre as
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
softwares, planilhas eletrônicas, procedimentos, padrões arquitetônicos, códigos linguísticos, fórmulas,
regulamentos etc.) que possibilitam, de formas distintas, processos de valoração de bens e a sua troca por
mecanismos de preços (Çaliskan & Callon, 2010). O entendimento de como essas redes são formadas é
uma das preocupações centrais dos trabalhos sobre finanças influenciados pelos estudos sociais da ciência
(ver Beunza, Hardie & MacKenzie, 2006; Pardo-Guerra, 2013; Zaloom, 2006)

! 202
empresas, mas também por meio das próprias práticas envolvidas na definição, como o
envio e o recebimento de documentos e os preenchimentos de tabelas e anexos.

Na antropologia da economia, alguns trabalhos vêm apontando o modo como


práticas de documentação e suas materialidades são imprescindíveis à construção de
objetos, sujeitos ou organizações econômicas como mercados. 177 Na etnografia de
Annelise Riles (2010a, 2011a) sobre os aspectos legais das transações no mercado
financeiro japonês, a antropóloga descreve como os contratos de securitização de
compras e vendas de ações, que aparentemente consistem em meros detalhes técnicos,
marginais ao mercado, são essenciais para toda a existência de produtos financeiros e
sua comercialização. Segundo Riles, esses documentos jurídicos que garantem um
seguro monetário no caso de uma das partes não cumprir seu acordo financeiro “são
tecnologias cruciais [...] para formatar e padronizar o mercado por causa de sua
habilidade única de viajar através de fronteiras – fronteiras culturais, formas de
expertise, instituições, distâncias físicas pela virtude de sua forma material ou estética.
[...] [a] padronização, nesse sentido, é tanto um projeto conceitual quanto um projeto
material” (Riles, 2011a, p. 59).

Nesse mesmo sentido, no CADE, os ofícios, as petições e seus anexos contribuem


para performar mercados não apenas por meio das definições que eles carregam em seu
texto, mas também pela coordenação de perspectivas e atividades que eles promovem
ao serem circulados (Hull, 2012b). A definição ou a construção de um mercado
relevante é feita na circulação e produção de documentos, que é acompanhada da
circulação de pessoas, representantes das partes e consultores econômicos que vão ao
CADE entregar petições, pareceres ou se reunir com assessores e conselheiros para
explicar seus argumentos, tirar dúvidas ou tentar entender a posição dos funcionários do
governo. Os documentos que circulam e são produzidos entre burocracias, escritórios de
advocacia e empresas formatam e padronizam representações do mercado, formas de
conhecimento sobre setores, empresas e consumidores, construindo entendimentos
compartilhados sobre esses objetos e sujeitos. É principalmente por meio das práticas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
177
As pesquisas descrevem, por exemplo, como contratos de securitização produzem mercado de
transações futuras de ações (Riles, 2010a, 2011a), como atas de reuniões e relatórios técnicos dos bancos
centrais produzem mercados (Holmes, 2009, 2014), como questionários de qualidade produzem serviços
e consumidores (Callon, 2002), como tabelas com valores estatísticos produzem preços (MacKenzie
2007); cartões (scorecards) que produzem o “risco de crédito” do consumidor (Poon, 2007) ou títulos de
propriedade que produzem “capital” (Mitchell, 2005).

! 203
que envolvem a produção, a circulação, a leitura e o preenchimento de documentos que
os princípios teóricos sobre o funcionamento dos mercados, adotados pela política
antitruste, contribuem para “ajustar” a realidade à teoria (Callon, 2007).

Porém, se o papel da lei de concorrência e do órgão que a implementa consiste em


punir práticas anticompetitivas garantindo certas formas estruturais e ideais do mercado,
é evidente ou óbvio não somente para sociólogos e antropólogos, mas também para
analistas, conselheiros, estagiários e assessores do CADE que a lei performa mercados,
formatando-os a partir de certos ideais de eficiência, competitividade e justiça.178 Este é
o verdadeiro propósito de uma política pública que pretende administrar a economia.
Uma política, como mostrei no primeiro capítulo, cujos responsáveis pela sua
implementação têm consciência de que aquilo que eles procuram defender deve também
ser criado. Afirmar que a lei performa mercados, como determina a abordagem mais
contemporânea dos estudos sociais da economia, sem nem mesmo descrever como isso
ocorre, é o mesmo que dizer que a lei existe.179 O que a abordagem performativa não é
capaz de responder neste caso é o que são mercados a partir de um órgão estatal, ou seja,
no que consiste um mercado relevante para analistas ou organizações que se dizem
“fora” dos mercados, já que mercados são aquilo que eles mesmos definem.
Demasiadamente preocupados em descrever e enumerar todos os agenciamentos que
produzem mercados, os autores da literatura da performatividade esquecem que este
termo possui sentidos muito diferentes, inclusive entre os próprios economistas.

Num artigo de 1996, Marilyn Strathern questiona a noção analítica de redes


conforme utilizada pelos teóricos da actor-network-theory (ANT), noção esta que
embasa os estudos da performatividade nos mercados. Segundo ela, o poder do uso da
metáfora da rede é também o seu problema, pois “teoricamente, elas não têm limites”
(Strathern, 2014 [1996], p. 305). E continua:

Se elementos diversos compõem uma descrição, eles parecem tão extensíveis


ou intrincados quanto é extensível ou intrincada a própria análise [...] E no
entanto a análise, assim como a interpretação, deve ter um fim; deve se
realizar como lugar de parada (p. 305).

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178
A capacidade performativa da lei tem sido reiteradamente enfatizada de modos diversos por vários
autores, entre eles Beviláqua (2010), Bourdieu (1987), Riles (2003).
179
Dumez e Jeunemaître (2008, p. 237), em artigo incluído na importante coletânea de Callon (2008), ao
tentarem provar a performatividade da teoria econômica nas decisões antitruste norte-americanas sobre o
mercado de cimento, chegam à seguinte conclusão irrisória: “The encounter between economics and
markets is therefore channeled through legal disputes and constrained by the legal dimension”.

! 204
Dizer que a lei constitui mais um elemento dos agenciamentos mercantis parece,
portanto, tão insuficiente para o antropólogo quanto para os analistas antitruste. Para
estes, a tarefa mais importante não é enumerar os elementos necessários para se fazer
um mercado, mas sim decidir o que é preciso ser deixado de fora; aquilo que é
necessário ser “filtrado”, como diz o conselheiro.

Se o mercado relevante fosse somente uma forma de representação de um mercado


“real”, um espelho, cuja definição se daria por meio de experiências vividas, como
descrito acima, poderíamos apreendê-lo, de acordo com a abordagem performativa,
como ferramentas que performam a realidade econômica. O sociólogo Michel Callon
(1998), por exemplo, seguindo Chamberlin, um dos mais importantes economistas de
Organização Industrial, procura entender os mercados de modo similar a todos os
assessores do CADE, ou seja, a partir do modo como empresas buscam definir suas
relações com outras e com seus consumidores, enquadrando (framing) ou diferenciando
seus produtos. Como expliquei neste capítulo, a definição de mercados envolve
precisamente traçar as fronteiras nativas nas quais as empresas acreditam concorrer
entre si e nas quais consumidores fazem suas escolhas de compra.

Porém, os mercados antitruste não podem ser concebidos apenas como esse
contexto interno, nativo das relações empresariais, pois ele é sobretudo um contexto
analítico-legal, produzido a partir de práticas de documentação administrativas
consideradas externas ao mercado, filtrando aquilo que é pertinente ou relevante de ser
analisado pelo analista. A teoria da performatividade dos mercados não é capaz de
explicar o mercado relevante pois não consegue conceber nada externo à rede
sociotécnica descrita. Os mercados do antitruste não são apenas parte de redes
sociotécnicas; eles cortam essas redes (Strathern, 2014 [1996]). Como as técnicas ou os
instrumentos legais (Riles, 2003) de contextualização, o mercado relevante também não
pode ser acusado de ser uma representação abstrata de um mercado “real” (Carrier,
1998), sendo que seu propósito é exatamente o de delimitar apenas alguns aspectos
dessa realidade: as relações de concorrência potencialmente afetadas pela concentração.
Como um contexto, ele não “elimina as particularidades do mundo” (Miller, 1998, p.
196), como afirmariam os críticos do “virtualismo”, mas torna explícitas relações e

! 205
capacidades (poder de mercado), atuais ou potenciais, que podem ser punidas,
autorizadas ou desautorizadas a partir de um ponto de vista legal.180

Este capítulo descreveu o modo como os profissionais do CADE realizam a


definição de mercado relevante e como entendem suas práticas e seus efeitos. Assim
como o conceito original de mercado na Idade Média, o mercado relevante é um “lugar
para ver”, como denomina Agnew (1986). As praças de mercado daquele período
tinham um propósito estritamente jurídico e político, assim como o mercado relevante
do antitruste. O marketplace e o “mercado relevante” permitem o governo dos mercados
definindo limites que possibilitam compreender as restrições das empresas e de
consumidores. É a partir desse contexto nativo tornado explícito pela muradas da praça
de mercado ou pela definição de mercado que é possível governar a relação entre
vendedores e compradores, isto é, a concorrência.

O mercado relevante é, portanto, um contexto analítico-legal, produzido a partir de


uma contextualização das relações de concorrência, considerado uma condição
necessária para a visualização de um “problema concorrencial”. Contudo, além de saber
onde e quais produtos ou serviços poderão ser afetados por uma concentração
empresarial, é preciso, para que se possa visualizar um possível problema, saber quem
são aqueles que concorrem nos mercados já definidos. Esse será o objeto do próximo
capítulo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
180
Marilyn Strathern (1999), ao comparar práticas de contextualização entre os “ocidentais” e
“melanésios”, afirma que para os primeiros, o “corte” é tido como destruidor, tendo em vista que o
mundo é compreendido como um todo que estaria sendo mutilado. Tal seria uma possível explicação da
reação de críticos das decisões necessariamente limitadas do CADE. Entre alguns “melanésios”, por outro
lado, o corte é feito com o intento de produzir relações. Nesses casos, segundo ela, “onde cortar é um ato
criativo, evidencia-se as capacidades internas das pessoas e os poderes externos dos relacionamentos”
(Strathern, 1999, p.114). Tal poderia ser comparado ao efeito da definição de mercado no antitruste.

! 206
Capítulo 4: Identificando concorrentes

“En apparence, les chemins de fer américains ne sont donc plus trustés, ils sont soumis
au régime de la libre concurrence, en apparence la Steel Trust est maintenant brisée en
40 compagnies indépendantes, et rivalisant de bonne volonté et de bon marché. Et la
Standard Oil disparue, de nombreux pipe-lines indépendants mènent aux ports et
réservoirs un pétrole dont les prix sont débattus par un libre marché. Les trusts se sont
morcelés; apparemment ce ne sont plus Rockefeller, Schwab, Armour, qui possèdent le
pétrole, l’acier, la viande conservée. Mais tout le monde sait que, sous les apparences
d’obéissance à la loi, les capitalistes américains ont maintenu l’essentiel de leurs
organisations. Ce sont leurs hommes qui administrent la totalité des nouvelles
compagnies. Les majorités d’actions appartiennent toujours aux mêmes capitalistes. Et
l’industrie américaine est de plus en plus sous le “ contrôle ” de quelques groupes de
magnats.”

(Marcel Mauss, La Nation, 1920)

Ao longo do trabalho de campo, durante o período em que permaneci no gabinete


do conselheiro Carlos ou mesmo na sala de uma das coordenações da SG, conheci
funcionários do CADE que trabalhavam em outros setores ou departamentos do órgão.
Na medida em que ia conhecendo essas pessoas, passei a me sentir confortável para
circular por outros locais do edifício, o que me possibilitou observar o trabalho de mais
assessores, conversar com eles ou ainda participar das reuniões do Departamento
Administrativo do órgão antitruste. Aos poucos pude captar as características,
semelhanças e diferenças de diferentes setores do órgão antitruste e, principalmente,
acompanhar a instrução de processos realizada em outros locais. Como a variedade de
tipos de processos administrativos e das questões antitruste com que lidam os assessores
era enorme, acreditava que a conversa com esses outros profissionais poderia trazer uma
melhor compreensão das atividades e das dificuldades envolvidas na prática de defender
a concorrência no país.

Em particular, no terceiro andar do órgão antitruste havia o gabinete de um


conselheiro que eu costumava visitar com mais frequência. Este conselheiro, Luiz,
professor de direito da Universidade de São Paulo, era considerado pelos seus
assessores um “aliado” do conselheiro Carlos, sendo comuns as conversas e os almoços
entre eles e entre os assessores dos dois. O fato de eles serem aliados significava que
eles compartilhavam de uma mesma interpretação quanto aos casos, o que costumava
resultar em decisões quase sempre convergentes nos julgamentos do plenário. Essa

! 207
afinidade, que também se expressava em uma mesma visão sobre os objetivos da
política antitruste e na utilização de técnicas parecidas de análise dos casos, gerava uma
maior proximidade entre seus assessores e assessoras, que tinham o hábito de tirar
dúvidas e solicitar auxílios entre si quando da investigação de algum caso mais difícil.

Numa tarde no final de 2012, entrei na sala dos assessores desse outro gabinete para
perguntar se alguém queria me acompanhar no almoço. Nesse momento, as três
assessoras, mulheres na faixa de 30 e poucos anos, estavam rindo e comentando sobre a
foto que uma delas, Camila, havia escolhido como fundo de tela de seu computador. A
foto mostrava um senhor na faixa dos 80 anos numa cerimônia de premiação. Perguntei
quem era e uma delas respondeu que Camila estava “obcecada” por ele, pois ele estava
“por trás” da empresa que ela investigava. Camila justificou sua obsessão explicando
que, enquanto estava instruindo um processo relativo a uma concentração na área
educacional, descobriu que esse senhor controlava várias empresas do ramo, ou melhor,
“vários pedaços” de empresas. “É esse senhorzinho que manda no mercado”, disse ela.
A decisão sobre a autorização ou não da aquisição empresarial, segundo ela, passava
por uma investigação das “relações” que o senhor Gabriel, como ele se chamava, e sua
família tinham nessas diferentes empresas.

Nessa época do trabalho de campo, eu já havia acompanhado a instrução de uma


grande variedade de processos administrativos, mas ainda não tinha observado um
interesse, muito menos uma “obsessão”, nos indivíduos ou nas “pessoas físicas” que
possuíam a propriedade ou controlavam administrativamente as empresas cujas ações o
CADE buscava regular. Até então pensava que essa informação era irrelevante para a
análise dos processos. Sabia que a notificação de um ato de concentração ao órgão
antitruste requeria o envio de informações relativas a todas as “pessoas físicas ou
jurídicas” envolvidas na concentração, porém essas pessoas físicas ainda não tinham se
mostrado como um problema ou um foco da análise antitruste nos casos de que tinha
tomado conhecimento.181 Casos como este, cada vez mais frequentes no CADE, em que
a investigação parece ir além das pessoas jurídicas que estão referidas na capa dos
processos administrativos, davam origem a questões e dificuldades que tornavam
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
181
De acordo com a Resolução no 9, de 1o de outubro de 2014, que disciplina a notificação dos atos de
que trata o artigo 88 da Lei no 12.529, exige-se de cada requerente, entre muitas outras informações, que:
“Indique os grupos econômicos a que pertencem as partes diretamente envolvidas na operação e forneça
uma lista de todas as pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado pertencentes aos grupos
econômicos, com atividades no território nacional”.

! 208
explícita para mim a necessidade que há na política antitruste de se identificarem os
agentes que concorrem no mercado relevante para que seja possível a visualização de
um problema concorrencial.

Como explico na primeira seção deste capítulo, para que se possa decidir, por
exemplo, sobre a aprovação ou não de uma fusão, os profissionais do CADE precisam
primeiramente saber quais são todos os participantes do mercado investigado – todas as
empresas que nele concorrem, incluindo as próprias requerentes – e quanto cada um tem
de participação no mercado, ou seja, com quanto cada um responde em termos de
receita ou oferta de algum produto ou serviço (o market share de cada participante). O
cálculo da participação de mercado de cada um dos concorrentes exige que eles sejam
bem identificados e diferenciados.

Na maior parte dos casos analisados pelo CADE, a identificação dos concorrentes
não é uma questão tão proeminente ou problematizada, tendo em vista que as próprias
pessoas jurídicas, requerentes do processo, podem ser consideradas como os agentes
econômicos que concorrem nos mercados relevantes para a análise. Essa coincidência
ou correspondência entre as pessoas jurídicas e os concorrentes facilita muito o trabalho
de estimação das participações de mercado. A essas entidades, jurídicas e econômicas,
também são imputadas certas características ou qualidades humanas durante a condução
da investigação que as identificam como portadoras de moralidade, reputação,
intimidade, vontade ou poder. Simplesmente denominadas “empresas”, as entidades ao
mesmo tempo jurídicas, econômicas e também morais que são investigadas na análise
antitruste são pensadas comumente como unidades singulares e independentes, átomos
cuja relação estabelecida com outros participantes de um mercado é apenas de
concorrência.

Contudo, o caso do sr. Gabriel explicita como a identificação do concorrente de um


mercado tem se tornado um desafio para a política antitruste. Como descrevo na
segunda seção deste capítulo, tal problema tem se tornado mais comum devido ao
desenvolvimento do mercado financeiro no país, pois cada vez mais as empresas de
diversos setores abrem seu capital na Bolsa de Valores, vendendo suas ações para vários
compradores que se tornam proprietários e, por vezes, administradores dessas empresas.
Nesse contexto, as relações de propriedade e de controle administrativo que constituem
uma empresa podem também constituir outras, conectando-as de forma a produzir

! 209
relações de influência capazes de gerar, entre duas ou mais empresas, decisões
organizacionais comuns.

Nos processos investigados pelo CADE, essas relações que interligam várias
empresas foram detectadas em casos envolvendo fundos de investimento que
frequentemente têm participações acionárias (ou seja, parte da propriedade) de
diferentes empresas num mesmo mercado. Como indiquei numa tabela apresentada no
segundo capítulo, casos envolvendo fundos de investimento tornaram-se uma
preocupação generalizada, pois impossibilitaram saber exatamente quais empresas estão
separadas e que, portanto, concorrem entre si num mercado. A questão dos analistas,
nesses casos, pode ser descrita do seguinte modo: se para existir uma relação de
concorrência é necessário ao menos duas empresas concorrentes, ou seja, duas unidades
autônomas e independentes, como identificar um desses concorrentes quando o controle
administrativo ou a propriedade acionária está distribuído(a) ou disperso(a) por um
conjunto de pessoas físicas e jurídicas – bancos, fundos de investimento e outros
acionistas? Como definir onde uma agente econômico começa e acaba em um contexto
em que empresas estão cada vez mais vinculadas financeira, jurídica e
administrativamente?

Na terceira seção do capítulo, utilizando como material etnográfico os


procedimentos de investigação de uma aquisição no setor de educação superior privada
realizados pelos profissionais do CADE, descrevo como se identificou um agente
concorrente do mercado. Tal identificação exigiu investigar as pessoas físicas e
jurídicas que possuem ações da empresa e que a controlam administrativamente.
Descrevo como o agente, também denominado de “arranjo”, “novelo”, ou “núcleo
organizador central”, foi definido a partir de relações de propriedade, administrativas e
familiares que vinculavam dois grandes grupos educacionais do país e como estas
relações atravessavam mais de uma empresa ou pessoa jurídica, além das pessoas
físicas que as integram. As assessoras responsáveis pela investigação utilizaram uma
série de informações para identificar o concorrente e as relações que o constituíam,
obtidas por meio de pesquisas em revistas e jornais, reuniões com advogados, envio e
recebimento de documentos e através do uso fundamental de organogramas e de redes
sociais que revelaram os vínculos entre várias entidades.

! 210
A descrição dos procedimentos ilustra como a identificação e a visualização desses
arranjos, ou seja, dos agentes que concorrem no mercado, implica considerar as
possíveis incongruências entre formas jurídicas adotadas pelas empresas e a “realidade
econômica”, conforme denomina o conselheiro-relator do caso. Explico, na quarta e
quinta seções, como, para o conselheiro-relator e suas assessoras, as relações de
propriedade e controle são consideradas “fatos econômicos” e como, nos processos
descritos neste capítulo, a personalidade jurídica das requerentes não pode ser
considerada uma representação do agente econômico, como ocorre na maior parte das
análises de atos de concentração. Como fica claro na descrição dos procedimentos
investigativos e dos argumentos elaborados no voto, as práticas de conhecimento que
permitem a identificação dos concorrentes convergem para a abordagem
socioantropológica da teoria do ator-rede em sua consideração sobre agências
econômicas, concebendo-as como feixes de relações entre coisas e pessoas.

No capítulo anterior, descrevi como a visualização de um problema concorrencial


exige a especificação de um objeto (produto ou serviço) a que se concorre e um espaço
onde ocorre essa concorrência: o mercado relevante. Neste capítulo, focalizando as
dificuldades envolvidas nas análises de alguns processos do Tribunal Administrativo,
aponto outra condição dessa visualização: a identificação do agente que concorre no
mercado. Tendo descrito essas práticas de conhecimento, procuro, por fim, argumentar
como a concorrência é concebida a partir da visualização de relações de diferenças e
semelhanças entre produtos e empresas construídas pela própria análise antitruste.

4.1. Pessoas jurídicas, agentes econômicos e concorrentes do mercado

Em Brasília, nas muitas vezes em que tomei um táxi para o CADE mencionando
apenas o endereço – “515 Norte pela W2, por favor” – o motorista costumava indagar,
apenas confirmando sua suspeição, se eu ia na sede da OAB do Distrito Federal. Para
sua surpresa, eu dizia que ia para o CADE, que ficava ao lado da OAB. O motorista
então perguntava: “ah, aquele que decide fusões entre empresas?”. “Sim, esse mesmo”,
eu respondia, e logo o taxista proferia um longo discurso sobre como a fusão da Brahma
com a Antarctica ou do banco Itaú com o Unibanco tinham sido completamente
inconsequentes, pra dizer o mínimo. O “xerife da concorrência”, como a imprensa

! 211
denomina por vezes o CADE, era e tornou-se conhecido pelo julgamento de atos de
concentração entre estas e outras grandes empresas, amplamente vinculados pela
imprensa. Essas concentrações empresariais, como aquelas entre a Sadia e a Perdigão e
a Gol e Varig, têm grande impacto na sociedade, pois dizem ou diziam respeito a
produtos ou serviços muito consumidos e conhecidos. Mais recentemente, o órgão tem
chamado a atenção pelas investigações de condutas empresariais ilícitas, principalmente
cartéis de processos licitatórios, como o “cartel do metrô” de São Paulo ou aqueles
mencionados na “Operação Lava-Jato” da Polícia Federal.

A legislação concorrencial, entretanto, não restringe seu escopo apenas a certas


empresas de tamanho suficientemente grande para serem largamente conhecidas do
público. A lei sequer define um tipo específico de personalidade jurídica sobre a qual
ela deve ser exercida. Conforme o artigo 31:

Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado,


bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de
fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade
jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal
(Brasil, 2011).

O “sujeito da Lei Antitruste”, como o denomina a jurista Paula Forgioni (2013, p.


145), é “qualquer um que possa praticar ato restritivo da concorrência” (grifos meus).
No entanto, esses tipos de ato são ou costumam ser cometidos apenas por entidades cuja
forma legal tende a ser uma pessoa jurídica, devido às tipificações legais de tais atos.
Em relação aos atos de concentração, diz a lei, no artigo 88, que:

serão submetidos ao Cade pelas partes envolvidas na operação os atos de


concentração econômica em que, cumulativamente: I - pelo menos um dos
grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço,
faturamento bruto anual ou volume de negócios total no país, no ano anterior
à operação, equivalente ou superior a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos
milhões de reais); e II - pelo menos um outro grupo envolvido na operação
tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de
negócios total no país, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a
R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais).

Essa qualificação dos atos que devem ser notificados ao CADE implica, na prática,
que apenas empresas relativamente grandes enviem pedidos de aprovação de atos de
concentração. Por outro lado, no sistema econômico que caracteriza países
industrializados, não são indivíduos, mas sim sociedades empresariais aquelas

! 212
responsáveis pelas produção, distribuição e comercialização da maior parte dos
produtos e serviços consumidos pela população. As infrações à ordem econômica,
apontadas no primeiro capítulo, são cometidas, portanto, por estas sociedades, que
concorrem com outras nos mais diferentes mercados. A forma legal capaz de estruturar
empresas que exercem tais condutas ou que possuem tamanha escala de faturamento é,
na prática, aquela de uma pessoa jurídica.182

De fato, as sociedades comerciais, as pessoas jurídicas de direito privado que visam


ao exercício de atividade econômica constituem a imensa maioria dos requerentes ou
dos representantes dos processos administrativos instruídos pelo CADE. As petições
iniciais dos processos de concentração, redigidas por advogados em nome dessas
pessoas jurídicas, buscam justificar a razão para uma união contratual e o porquê de esta
união não ser prejudicial à concorrência nos mercados em que atuam. Na grande
maioria dos processos instruídos pelo CADE, os responsáveis pela análise normalmente
consideram que as pessoas jurídicas que enviaram o requerimento de concentração são
também os agentes econômicos de um mercado ou, mais precisamente, as entidades que
concorrem entre si nos mercados analisados. Esta consideração das entidades jurídicas
como se fossem agentes de um mercado permite compreender suas condutas,
racionalidades e seus processos de decisão com base em uma perspectiva econômica.

Uma breve menção a esse “agente”, e que será retomada mais para o final deste
capítulo, faz-se necessária neste momento. Se o direito se utiliza da noção de pessoa,
seja ela física ou jurídica, concedendo a quem pode ser assim definido direitos e
responsabilidades equivalentes, a teoria econômica faz uso da noção de “agente” para
denominar qualquer entidade que atua num determinado mercado produzindo ou
consumindo produtos e serviços, seja um “indivíduo” ou uma “firma” (categorias usuais
da chamada microeconomia). O uso da noção de agente implica que a atenção da teoria
econômica está precisamente voltada ao comportamento econômico das entidades, em
especial ao modo pelo qual elas tomam decisões e fazem escolhas relativas ao consumo
ou à produção.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
182
No direito brasileiro, a existência das pessoas jurídicas como sujeitos de direito se dá a partir de dois
atos distintos. Em primeiro lugar, é necessário um ato constitutivo, redigido pelos sócios, que é
denominado Estatuto ou Contrato Social. Este estatuto é uma declaração de vontade e, no caso de
sociedades e associações, geralmente se denomina “contrato constitutivo”. A segunda fase de criação da
pessoa jurídica é o registro que deve ser feito numa junta comercial ou num Cartório de Registro da
Pessoa Jurídica – CRPJ (Silva Pereira, 2011). Documentos comprovando o contrato e o registro são
obrigatoriamente enviados por todas as requerentes em qualquer petição inicial que dá surgimento a um
ato de concentração no CADE. Cada requerente corresponde, portanto, a um CNPJ específico.

! 213
Entretanto, da mesma forma que o mercado relevante, ou seja, o mercado tal como
concebido pela política antitruste, não é equivalente ao mercado tal como concebido
pela teoria econômica, seja ela neoclássica ou não, os agentes econômicos que são
concebidos pela análise antitruste possuem também uma especificidade particular. Os
analistas, conforme pude observar, não estão interessados em todas as entidades que
produzem ou consomem num determinado mercado, mas sim aquelas entidades que
estabelecem relações de concorrência entre si. No caso da política antitruste, o tipo de
agente econômico que se busca conhecer e identificar é comumente denominado
“concorrente”. Em geral, os concorrentes são facilmente identificáveis e correspondem
a uma “empresa” que constitui uma única “pessoa jurídica”. Contudo, esta não é
necessariamente uma regra, como veremos na próxima seção deste capítulo. Antes disso,
no entanto, é necessário explicar como e por que a análise antitruste requer a
identificação de distintos concorrentes de um mercado, entidades que possuem limites
claramente definidos.

Como explicado acima, não existe uma especificação da personalidade jurídica do


sujeito administrado pela legislação concorrencial, podendo este ser “qualquer um” que
pratique um ato restritivo à concorrência. Essa indefinição não deve ser entendida como
uma falha do legislador, mas sobretudo como uma característica da própria política
antitruste, que baseia suas decisões em análises econômicas sobre o funcionamento dos
mercados e das empresas. Nessas análises, as formas jurídicas nas quais as partes
envolvidas em uma fusão se estruturam – seja na forma de sociedades anônimas, abertas
ou fechadas, seja na forma de sociedades limitadas, pessoas físicas, entre outras – são
menos relevantes que o modo como essas partes agem e se relacionam com outros
participantes do mercado, ou seja, é a definição de quem concorre num mercado, quem
é o agente econômico, qualquer que seja sua personalidade jurídica, que importa na
análise do órgão antitruste.

Ao receber um requerimento de concentração empresarial enviado por duas pessoas


jurídicas, o papel do CADE, como já dito, é verificar se essa união será prejudicial para
outros concorrentes ou para os consumidores dos mercados afetados pela fusão. Esse
prejuízo à concorrência tem como base o capítulo II, artigo 36, da legislação
concorrencial, que especifica:

Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os


atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou que possam

! 214
produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar,
falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre-
iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III –
aumentar arbitrariamente os lucros; e IV – exercer de forma abusiva posição
dominante.

E logo abaixo:

§ 2o Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de


empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de
mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado
relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores
específicos da economia.

A legislação fornece, portanto, alguns requisitos ou indicativos para balizar a


análise e a investigação antitruste referente a atos de concentração. Segundo o texto da
lei, os atos que buscam “dominar um mercado” constituem “infrações à ordem
econômica”. Contudo, a caracterização do “domínio” do mercado e da possibilidade de
seu “abuso” por parte das requerentes faz uso de um critério de “participação” nos
mercados afetados, também conhecido como market shares.183 Este critério numérico
fornece aos analistas um indício da possibilidade de existência de uma infração, isto é,
da já explicada possibilidade de “exercício de poder de mercado”. No caso brasileiro, se
a futura nova empresa, que resultará da união de duas ou mais requerentes, tiver uma
participação superior a 20% em algum dos mercados relevantes, os analistas do CADE
podem suspeitar que a fusão será prejudicial à concorrência do mercado, ou seja,
prejudicial para outros concorrentes ou consumidores. Como vimos no capítulo anterior,
na aquisição da Webjet pela Gol o relator utilizou índices de concentração de mercado,
como o HHI e o C4, para excluir certas rotas aéreas onde havia mais concorrentes.
Esses índices são basicamente reelaborações estatísticas de estimativas de participação
de mercado. Os mercados (rotas) nos quais a empresa Gol-Webjet teria alta participação,
alto market share, foram alvo de maior preocupação.

Desta forma, para separar os mercados relevantes nos quais será provável um
exercício de poder de mercado por parte da nova empresa, é preciso saber quanto cada
concorrente, inclusive os próprios requerentes, possui em termos de participação no
mercado. A participação de cada concorrente é estimada por meio da quantidade de
produtos que cada um vende no mercado ou através do faturamento de cada um deles.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
183
Tal procedimento de determinação das participações de mercado permeia não apenas a política
antitruste brasileira há décadas, mas a imensa maioria das políticas antitruste de outros países.

! 215
Essas informações são trazidas pela própria requerente em sua petição inicial e são
confirmadas por ofícios endereçados a todos os possíveis concorrentes que o órgão
antitruste conseguiu identificar nos mercados afetados. A apresentação das
participações de mercado costuma ser feita por meio de um quadro quase sempre
similar a este apresentado no voto do conselheiro Antônio Fonseca (CADE, 1995, fl.
2945) relativo ao caso da aquisição da Kolynos pela Colgate em 1996:

Volume*Físico* Creme*Dental* Escova*Dental* Fio*Dental* Enxaguante*Bucal*

Kolynos* 50,9%# 26,7%# 7,9%# 4#


Colgate* 26,6%# 8,4%# 2,3%# 14,5%#
Kolynos*+*Colgate* 78,5%# 35,1%# 10,2%# 14,5%#
GessygLever* 22,4%# 2,6%# 4# 4#
Johnson*&*Johnson* 4# 25,8%# 56,3%# 5,4%#
Augusto*Klimmek* 4# 16.9%# 4# 4#
Merrel*Lepetit* 4# 4# 4# 39,4%#
Oral*B*(Gillete)* 4# 9,5%# 12,8%# 2,5%#
Tabela 6: Participação de mercado dos concorrentes dos mercados relevantes definidos no caso Kolynos-
Colgate (em termos de volume físico vendido)

Neste caso, julgado em 1996, a empresa Colgate-Palmolive Company adquiriu a


empresa brasileira Kolynos do Brasil S.A. por US$ 760 milhões. O CADE, em sua
investigação que levou à aprovação condicionada da união, concluiu que quatro
mercados seriam afetados pela concentração – creme dental, escova dental, fio dental e
enxaguante bucal – cada um indicado numa coluna da tabela acima. Definiu-se, em
seguida, a participação, em termos de volume físico vendido nos mercados, de cada um
dos agentes participantes desses mercados. Na quarta linha, a tabela indica quanto de
participação o novo agente decorrente da fusão obteria caso esta fosse aprovada, que
resultava simplesmente da soma da participação das duas empresas requerentes. Com
base no critério legal, o CADE precisou investigar mais a fundo os mercados de creme e
escova dental, pois nestes a participação da futura empresa superaria a marca de 20%
(Salgado, 2003). A decisão da conselheira-relatora acabou sugerindo que a Colgate
suspendesse o uso da marca Kolynos por no mínimo quatro anos, tendo em vista
possibilitar principalmente a entrada de novos concorrentes de cremes dentais. A análise
da participação dos concorrentes de um mercado permitiu, neste caso, indicar qual seria

! 216
o mais afetado pela concentração e que exigiria uma medida preventiva do órgão
antitruste.

A construção de uma tabela como esta, quase sempre produzida na análise de uma
concentração empresarial, pressupõe uma definição prévia e precisa de quem são os
agentes que concorrem nos mercados apontados. Cada um deve ser concebido como
uma unidade econômica separada, que age de forma independente e concorre com os
outros pela venda de cada uma das categorias de produtos mencionados; um agente
ontologicamente equiparado, conforme a assunção da teoria econômica, a um indivíduo
racional e interessado. Caso contrário, suas participações nos mercados não poderiam
ser mensuradas, nem muito menos somadas. Como se pode ver, nessa tabela não temos
nenhuma informação a respeito da composição acionária dessas empresas, se elas são
propriedade ou se são controladas por empresas jurídicas ou por pessoas físicas. Não
sabemos sequer sua forma jurídica particular: se são sociedades anônimas, abertas ou
fechadas, ou sociedades limitadas. A tabela, com o nome das empresas correspondendo
ao mesmo nome das requerentes, sugere que neste caso não houve nada que indicasse
que as pessoas jurídicas que enviaram um requerimento de fusão não pudessem ser
consideradas também e coincidentemente os agentes que concorrem nesses mercados.
Não havia dúvidas de que a “Colgate”, a “Johnson & Johnson” e a “Kolynos” eram
empresas que faziam parte de conglomerados distintos e que podiam, por isso, ser
consideradas como unidades econômicas singulares, isto é, agentes concorrentes de um
mercado.

Dessa forma, ao serem plotados numa tabela como a de acima, os requerentes de


um processo assumem também o estatuto de concorrentes, não só porque são
efetivamente sociedades comerciais que exercem algum tipo de atividade econômica –
agentes econômicos quaisquer – mas principalmente porque constituem entidades cujo
comportamento nos mercados corresponde a interesses singulares e autônomos,
essencialmente distintos dos outros com os quais eles, por definição, só podem
concorrer. A tabela pressupõe uma forma de relação entre as requerentes que as
dissociam por completo umas das outras. Essas entidades, com personalidade jurídica e
comportamentos econômicos independentes, também costumam ser qualificadas e
revestidas, nas práticas rotineiras de instrução processual, de características mais
humanas – como portadoras de intenções, valores e reputações – que contribuem para
tomá-las como sujeitos morais.

! 217
Como descrito no segundo capítulo, quando um processo chega à mesa de um
analista, assessor ou estagiário, trazido por um funcionário do protocolo do órgão e
entregue pela secretária do setor correspondente, ele contém, já em sua capa, o nome
das pessoas jurídicas requerentes ou representantes. Em geral, analistas e demais
responsáveis pela instrução fazem referência ao processo por meio de seu número (5633
p.ex.) ou, de modo mais comum, pelo nome das representantes/representadas ou
requerentes (Sadia-Perdigão, p.ex.). Muitas dessas empresas são conhecidas pelos
funcionários, seja porque fazem parte de sua vida cotidiana – o analista pode ser um
consumidor de serviços e produtos da empresa, pode ter trabalhado ou ter conhecidos
que trabalhem nela – seja porque processos administrativos anteriores que ele analisou
envolveram também essas empresas.

As últimas décadas de atividade mais intensa do órgão antitruste criaram um


passado jurisprudencial considerável, tendo sido analisadas e investigadas
concentrações e condutas das maiores empresas do país nos mais diversos setores. Por
isso, as pessoas jurídicas requerentes e representantes não costumam ser completas
desconhecidas, quase sempre têm uma reputação provinda das informações coletadas
em processos instruídos anteriormente ou apenas pela sua quantidade. Um grande
número de atos de concentração envolvendo a mesma empresa pode significar, por
exemplo, uma estratégia concorrencial de longo prazo que tem como objetivo controlar
uma grande parcela do mercado.

Os tipos de práticas empresariais frequentemente observadas pelos analistas


também indicam uma intenção mais ou menos explícita de algumas empresas, e acabam
gerando uma atenção maior na análise de futuros casos. Esse passado jurisprudencial
ajuda a construir e a consolidar reputações empresariais não apenas pelas ações que
essas empresas têm estabelecido nos mercados em que atuam, mas também pela própria
relação que criaram com o órgão antitruste. Por exemplo, a flexibilidade e a
disponibilidade que as empresas, ou seus advogados contratados, demonstram nas
reuniões com o CADE e a presteza com que respondem a solicitações ou
questionamentos do órgão contam muito para a construção de uma imagem do modo
como a empresa se comporta. Os representantes legais acabam se tornando portadores
das qualidades da empresa representada.

! 218
Ainda em 2012, um assessor do gabinete do conselheiro Carlos, no momento em
que lia os autos processuais relativos a uma aquisição no mercado de cimento, exaltou-
se: “a Votorantim é uma filha da puta, só faz merda!”. Explicando sua reação, o
assessor disse que esta empresa costumava enviar para análise do CADE uma série de
aquisições de cimenteiras pelo país, já prevendo qual seria o mercado relevante
geográfico que seria definido para cada caso. Dessa forma, uma série de aquisições
poderia ser aprovada individualmente, se fossem analisadas por diferentes gabinetes,
sem que se levasse em conta o fato de que faziam parte de um mesmo “movimento
estratégico de controle de mercado”. Ele me explicou que, a partir do momento em que
os assessores de vários gabinetes perceberam isso, todo o processo em que a pessoa
jurídica (e agente econômico) “Votorantim Cimentos” estava envolvida passou a ser
investigado com mais cautela. Esta e outras formas de qualificação moral das entidades
administradas pelo CADE contribuem para a imputação de responsabilidades,
culpabilidade, intencionalidade e “poderes” que são úteis na interpretação dos impactos
de concentrações ou de condutas anticompetitivas.

Quando iniciei, a partir de março de 2013, meu período de trabalho de campo na


coordenação da Superintendência-Geral, passei a ter acesso à intranet do órgão por meio
do computador, além de um ramal telefônico pessoal e de um e-mail de trabalho
(gustavo.onto@cade.gov.br). Este e-mail era utilizado para enviar mensagens para
outros funcionários e para representantes das partes ou para funcionários das empresas
requerentes. Além disso, todo dia pela manhã recebia um clipping de notícias com
informações sobre o CADE veiculadas na imprensa e outras informações que pudessem
interessar a algum funcionário. Boa parte das notícias tratava de grandes empresas do
Brasil e do mundo que poderiam ou não estar sendo objeto de algum processo
administrativo no órgão. Numa segunda-feira de agosto desse ano, entre as dezenas de
notícias incluídas no e-mail apareciam: “Siemens nega ter fornecido informações sobre
cartel em SP e DF – PORTAL TERRA – CIDADES”, “OGX e Petrobras são intimadas
a prestar esclarecimentos ao Cade – CBN – ECONOMIA”, e “New York Times vende
jornal Boston Globe a dono do time de beisebol Red Sox – REUTERS – NEGÓCIOS”.

Nessas chamadas de notícias, assim como em muitos comentários de assessores,


analistas ou conselheiros em investigações, as empresas são entendidas como entidades
singulares que têm características humanas, agindo de acordo com certos objetivos,
racionalidades e vontades: a Siemens nega, a Petrobras deve prestar esclarecimentos e o

! 219
New York Times vende outra empresa. Como o antropólogo Robert Foster (2010)
argumenta, esse modo de imputar certas subjetividades, ações ou racionalidades a
empresas não deve ser considerado menos merecedor de atenção, como se fosse uma
prática meramente irrefletida daqueles que escrevem ou falam. Segundo este autor
(2010, p. 98), estas e outras instanciações acabam “naturalizando uma certa ontologia,
um mundo no qual entidades personificadas chamadas empresas (corporations) existem
– entidades com volição, agência e julgamento moral”.

Esse modo de conceber empresas com tacos de certa personalidade, não apenas
jurídica, mas também moral, não é particular dos funcionários do CADE, podendo ser
visto em diversas situações cotidianas, na esfera jurídico-administrativa ou não, como
apontam relatos de vários antropólogos que trabalharam com práticas empresariais ou
discursos a seu respeito (Hart, 2005; Sawyer, 2006; Welker, 2010; Foster, 2010).
Suzana Sawyer denomina de “entificação” os “modos pelos quais regimes legais e
éticos produzem entidades e estabelecem seus valores, logrando-os de direitos e
obrigações específicas” (Sawyer, 2006, p. 24). Em sua pesquisa sobre os argumentos de
uma disputa judicial entre uma empresa petrolífera norte-americana e camponeses
equatorianos, a antropóloga descreve os vários momentos em que são conferidas à
empresa acusada, ChevronTexaco, qualidades humanas que tornam compreensíveis
suas ações, fazendo com que todas as subsidiárias da empresa em diversos países
constituíssem parcelas de uma entidade maior. Os representantes da ação utilizam,
inclusive, segundo a antropóloga, a segunda pessoa do singular (tu) para se referirem à
empresa. Os modos de qualificá-la, dando coerência às suas ações, possibilitaram
culpabilizá-la judicialmente pelo vazamento de petróleo numa região rural do Equador,
responsabilizando-a pelos danos causados (Sawyer, 2010, p. 36).

Este e outros trabalhos recentes que se autodenominam estudos de “antropologia


das corporações” têm chamado a atenção para os modos de “personificação” ou
“reificação” que constroem empresas (corporations) como “entidades coerentes,
unificadas e intencionadas” (Welker, 2010, p. 1). Além de descreverem a maneira como
uma concepção “coerente” ou “unificada” das entidades é efetivada (enacted) por meio
de práticas cotidianas dentro das empresas (Welker, 2014) ou através de
desenvolvimentos jurisprudenciais e doutrinários do direito (Barkan, 2010; Coleman,

! 220
2014), essas pesquisas apontam para os efeitos de tais “reificações”.184 Mariana Welker
(2014) mostra, por exemplo, como certas práticas e discursos empresariais podem
transformar uma mineradora em uma empresa “social e ambientalmente responsável”.
Na política antitruste, as qualidades conferidas a empresas contribuem para imputar
certas responsabilidades, culpabilidades, intenções e poderes e, ao mesmo tempo, para
concebê-las como entidades concorrentes de um mercado, agentes econômicos que
tomam decisões racionais e interessadas e, principalmente, autônomas.

Como se pode ver, nos processos instruídos pelo CADE, costuma-se conceber
entidades que são ao mesmo tempo sujeitos de direito, as próprias pessoas jurídicas
requerentes dos processos, e agentes concorrentes do mercado, sendo que o
conhecimento prévio dessas entidades ainda as reveste de um caráter moral e humano.
No início do meu trabalho de campo, essa sobreposição de estatutos que dava coerência
às entidades não parecia ser uma questão para os profissionais responsáveis pela
instrução dos processos. A própria separação entre esses estatutos não era algo
problematizado e percebível nas práticas de conhecimento antitruste. Contudo, tais
coerência e unidade tornaram-se uma questão complexa quando conselheiros,
assessores e estagiários começaram a investigar certos setores da economia. O
conhecimento de quem concorre em um mercado deixara de ser uma questão simples,
especialmente, como veremos na próxima seção, devido ao desenvolvimento mais
recente do mercado financeiro no país. Foi somente nesse momento que se tornou
explícita para mim a necessidade que a política antitruste tem de definir, além do
mercado, as entidades que nele concorrem, como mostrado nesta seção.

Com o surgimento cada vez maior de casos envolvendo o setor financeiro, a


identificação de uma pessoa jurídica e moral com certos agentes de um mercado tornou-
se um problema, pois os próprios limites desses agentes, ou melhor dizendo, dos
concorrentes de um mercado, ultrapassavam aqueles definidos pelas formas jurídicas
adotadas pelas empresas requerentes. Utilizando como exemplo o ato de concentração
descrito acima, o que aconteceria se a Colgate-Palmolive fosse controlada por uma
outra pessoa jurídica que também tivesse ações da Johnson & Johnson? Será que as
duas poderiam ser consideradas concorrentes entre si nos mercados onde atuam?

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
184
Vários trabalhos mencionam a história jurisprudencial norte-americana e a transformação dos direitos
dados às corporações (corporations) nos Estados Unidos, mostrando como as corporações têm adquirido
cada vez mais o estatuto jurídico dado aos humanos (ver Barkan, 2010, 2012; e Coleman, 2014).

! 221
Perguntas deste tipo passaram a ser correntes na análise de concentrações entre
empresas que ofertam serviços de educação superior privada no país.

4.2. Quem manda quando não tem dono?

No dia 21 de novembro de 2012, na sala do plenário do CADE, o ar-condicionado


não conseguia amenizar o calor que fazia na capital. No andar térreo do edifício, mesmo
com cortinas blackout fechando as janelas, a luz do sol entrava pelas frestas e
incomodava os participantes da 11a sessão de julgamento do órgão antitruste.185 Nas
poltronas estofadas voltadas ao público estavam sentados aproximadamente 15
advogados e estagiários de direito, além de três economistas, dois jornalistas e eu. A
maioria de homens, sem exceção, usava ternos e as mulheres, todas advogadas, vestiam
tailleurs, tão discretos quanto os trajes masculinos. Como o CADE havia se transferido
há menos de seis meses para a nova sede, a mesa onde se sentavam os conselheiros e o
presidente ainda não era a definitiva, pois a licitação e a compra desta não haviam sido
concluídas. Numa mesa improvisada de marcenaria em formato de U, cuja abertura se
voltava para o público, sentavam-se três conselheiros de um lado e três do outro. Além
disso, ao lado do presidente, que se sentava no centro da curva, estavam o secretário do
plenário – que produz a ata da sessão e auxilia os seus integrantes quando necessário – e
o procurador-geral do CADE. Ao lado de três dos conselheiros estava também o
representante do Ministério Público Federal, sempre presente nas sessões.

Ao redor dessas dez pessoas na mesa, cada uma com seu computador conectado à
intranet do conselho, havia uma fileira de cadeiras onde os assessores dos gabinetes
podiam se sentar para auxiliar os conselheiros caso eles solicitassem. Em geral, apenas
um assessor de cada gabinete acompanhava o conselheiro durante a sessão. Por um
acaso relativo à ordem de nomeação dos conselheiros, nesse semestre, no plenário, os
três conselheiros economistas estavam sentados do mesmo lado da mesa em U e os três
conselheiros professores de direito, do outro. 186 Aproximadamente às 16 horas, o
presidente do CADE, que conduz as sessões de julgamento, passou a palavra ao

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
185
As sessões passaram a ser contadas novamente a partir da entrada em vigor na nova legislação em
2012.
186
Os conselheiros sentam-se alternadamente na mesa em relação à ordem em que foram nomeados, o
que, neste caso, acabou colocando do mesmo lado profissionais formados na mesma disciplina.

! 222
conselheiro Carlos, responsável pela relatoria do último processo da pauta da sessão.
Apesar do cansaço de todos os presentes, haja vista que a sessão já durava mais de seis
horas, tendo sido interrompida apenas para um breve almoço, o conselheiro leu
integralmente o voto de um processo relativo a um ato de concentração, mesmo sabendo
que este não resultava em “nenhum problema do ponto de vista concorrencial”.

Antes da leitura, o conselheiro pensou ser necessário justificá-la. Segundo ele, o


caso em julgamento, em que a requerente, vinculada ao Grupo Estácio, solicitava
aprovação para a aquisição de uma faculdade no Amapá, exemplificava um “fenômeno”
mais geral que estava ocorrendo na economia brasileira e, em especial, no setor
educacional do país.187 Esse importante fenômeno consistia na participação societária
cada vez maior de fundos de investimento em empresas privadas de educação.188 Nesses
casos, segundo o conselheiro, a autoridade antitruste poderia acabar subestimando as
participações de mercado de certas empresas, não observando o modo como elas podem
estar relacionadas a outras por meio dos fundos, ou seja, uma empresa como a Estácio,
requerente do processo, poderia ser parte de um conglomerado muito maior de empresas
em um mesmo mercado controladas por um fundo comum que, em conjunto, teria uma
participação de mercado elevada, gerando uma concentração econômica excessiva.
Alguns dias depois, Carlos me explicou que a leitura do voto procurava apenas
“levantar a bola” para a discussão e a reflexão mais profunda sobre esses fundos que
tanto ele quanto seu amigo Luiz, sentado do outro lado da mesa, acreditavam ser
preocupantes na análise de certas operações. Seu voto, que “aprovou sem restrições” a
aquisição da faculdade amapaense, consistiu quase inteiramente numa análise sobre a
identificação dos proprietários e administradores do Grupo Estácio.

Após o voto ser lido, o presidente do órgão, que conduz as sessões, perguntou se
havia comentários a serem feitos. Luiz foi o primeiro a se manifestar, algo que já era
esperado por Carlos. O jurista começou sua fala afirmando que o voto proferido tornava
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
187
A discussão relatada nesta seção ocorreu durante o julgamento do processo no 08012.001613/2012-89.
188
A página da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão do Poder Executivo vinculado ao
Ministério da Fazenda e responsável pela regulação do mercado de capitais e financeiro, define fundos de
investimento como “condomínios constituídos com o objetivo de promover a aplicação coletiva dos
recursos de seus participantes [...] Os Fundos de Investimento constituem-se num mecanismo organizado
com a finalidade de captar e investir recursos no mercado financeiro, transformando-se numa forma
coletiva de investimento, com vantagens, sobretudo, para o pequeno investidor individual. Tais Fundos de
Investimentos, através da emissão de cotas, reúnem aplicações de vários indivíduos para investimento em
carteiras de ativos disponíveis no mercado financeiro e de capitais” Disponível em:
http://www.portaldoinvestidor.gov.br/menu/Menu_Investidor/valores_mobiliarios/FundodeInvestimento4
09.html. Acesso em 24 de outubro de 2015.

! 223
claro o modo como fundos de investimento vêm adquirindo e, principalmente,
“controlando” empresas no setor de educação. Como explicado no voto, a empresa
adquirente Estácio Participações S.A., conhecida como “Grupo Estácio”, possui uma
estrutura societária com participações de cinco diferentes fundos de investimento, além
de outras pessoas físicas. Assim, tanto fundos – pessoas jurídicas – como indivíduos de
uma família – pessoas físicas – são proprietários do Grupo Estácio. Segundo Luiz,
destaca-se nos dados apresentados pelo relator o fato de que apenas um desses fundos, o
GPCP4, que possui apenas 0,52% do patrimônio do Grupo Estácio, tem “poder
decisório” nesta empresa, isto é, apenas ele pode indicar membros ao Conselho de
Administração e, por isso, tem “capacidade de influir de maneira direta tanto no que se
refere à deliberação quanto no que diz respeito às aquisições e às construções de novos
campi” (CADE, 2012c, p. 266), além da escolha dos executivos e da aprovação do
orçamento. Esse fundo GPCP4 faz parte de outro fundo ainda maior, o “GP
Investments”, que tem investimentos em vários outros setores da economia.

Para o jurista, esses dados comprovam que a informação de quem são os


proprietários das empresas, sejam eles pessoas jurídicas ou físicas, não é suficiente para
entender quem as “controla”. O fundo com participação mínima é, na realidade, aquele
que tem “poder de mando” no Grupo Estácio. O “poder exercido não está
necessariamente na participação acionária”, disse ele, ou seja, a administração da
empresa não corresponde neste caso ao acionista com maiores cotas da sociedade. A
possibilidade de indicar um membro para o conselho de administração, a de esse
membro votar no conselho, de decidir estratégias empresariais e financeiras – todos
poderes contratuais que o fundo possui, segundo o conselheiro – indicam sua
“influência” sobre a empresa mencionada. No caso do Grupo Estácio, três dos sete
membros do conselho de administração são sócios ou são indicados pelo GP
Investments e, por isso, esse fundo é capaz de efetivamente controlar
administrativamente as operações desta empresa.

O conselheiro ainda criticou o CADE por não acompanhar mais de perto esse
movimento mais amplo de aquisição dos fundos de investimento:

Se pegarmos as decisões do CADE de 2008 pra cá, todas ignoram


completamente essa realidade econômica, o que significa que aqui a
autoridade teve que correr atrás da realidade muitos anos depois [...] Essa
reportagem [...] e o nosso total silêncio durante mais de cinco anos sobre isso
me parece que é um dado eloquente da nossa falta de dados para a realização
de quaisquer decisões ou soluções muito rápidas [nesses casos].

! 224
Luiz apontou a necessidade de observar esse movimento mais amplo que poderia
afetar a concorrência nos mercados, mas também ressaltou os limites do próprio órgão
em conhecer esse fenômeno, principalmente pelas diferentes temporalidades nas quais
as empresas e o CADE atuam: “A velocidade com a qual as entidades do sistema
financeiro agem é muito rápida e a nossa percepção demora...”. Segundo ele, por este
motivo, o órgão antitruste não tem “conhecimento suficiente para fazer qualquer análise
quantitativa ou qualitativa [...] pertinente sobre os fundos de investimento e seu
comportamento nos diversos mercados da economia brasileira”. Ao final, o conselheiro
apenas “concordou com o relator” em relação ao caso julgado, tendo em vista que, para
ele, a aquisição da Estácio também não resultava numa concentração do mercado
relevante definido pela análise.

A preocupação com os fundos e com o modo com que vinham sendo tratados no
CADE gerou comentários de outros conselheiros, como o de outro professor de direito
da USP, sentado ao lado de Luiz. Primeiramente, ele procurou ressaltar que, apesar dos
“fundos de investimento estarem vindo à baila no tribunal”, o problema que eles traziam
não tinha a ver com a “natureza” deles, mas sim pelas dificuldades analíticas que eles
impunham a um órgão antitruste. Transcrevo parte de sua fala abaixo:

Sem prejuízo de concordar [com o voto do relator] [...] esse caso demonstra
como o mundo se torna mais complexo e mais difícil pra nós. Historicamente,
a economia brasileira é uma economia em que o financiamento via mercado
de capitais era inexistente ou muito precário. O papel importante dos bancos
públicos durante a crise de 2008, 2009 foi tão importante porque a nossa
indústria de capitais era e é muito precária. Este é um importante entrave ao
desenvolvimento do país. Um pouco por conta disso, tem havido um esforço
[...] do governo, da CVM, do Ministério da Fazenda, do BNDES de
desenvolver e fomentar o mercado de capitais no Brasil. É muito importante
que o conselho tenha isto em mente [...] nós estamos diante de uma
externalidade negativa de um fenômeno que é fundamentalmente bom.189

Ao ressaltar a importância do mercado de capitais no Brasil como mecanismo de


captação de maiores recursos financeiros para diversos setores da economia, o
conselheiro explicou a dificuldade que isto traz para a análise antitruste:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
189
O conselheiro também salientou uma outra questão possível que, segundo ele, não caberia ao órgão
antitruste decidir. Esta seria a decisão sobre se os serviços de educação e saúde deviam ser explorados
pelo “setor comercial” ou não, ou seja, pela iniciativa privada. Essas áreas receberam investimentos
privados, segundo ele, pois tinham potencial de crescimento, perspectiva de lucros e clientes. Porém, a
decisão sobre a privatização ou não desses serviços não é de responsabilidade do CADE, mas sim uma
decisão de política pública mais ampla.

! 225
Esse sucesso [o desenvolvimento do mercado de capitais] torna
eventualmente nossas análises mais difíceis por tornar o fenômeno do
controle mais difícil de apreender [...] Um mundo em que a indústria de
capitais é desenvolvida é um mundo em que as empresas não têm dono, ou o
dono não é tão claro [...] Lidar com o tema do controle no Brasil, em que o
mercado de capitais não é desenvolvido, é [ou era] simples, porque eu olho
uma empresa, ela é fechada, [então] ela tem um dono que é uma família. O
mundo é [era] muito simples: duas empresas estão se juntando e eu quero
saber quem é o dono daquilo há 200 anos. Num mundo em que o capital
privado financia o desenvolvimento dos negócios da economia, as estruturas
de governança são mais complexas. Oitenta por cento das ações da Estácio
são ações em circulação; 20 por cento do capital é detido por um fundo que,
por sua vez, é um fundo de fundos, que é o fundo do GP (grifos meus).

Como ele explica, a progressiva abertura das empresas no mercado de capitais gera
um problema para a autoridade antitruste, que está relacionado não apenas à
propriedade do capital das empresas, mas também ao seu controle administrativo. A
dispersão acionária do capital empresarial dificulta a identificação dos “donos” das
empresas, mas principalmente a identificação de quem as controla. Na investigação da
Estácio, conhecer os proprietários não levava necessariamente a conhecer quem possuía
a efetiva administração da empresa. Os comentários dos conselheiros levaram a uma
reflexão por parte do presidente do órgão que, apesar do desconforto provocado pela
insolação da sala do plenário, estendeu ainda mais a sessão. Em sua fala:

Como tudo o que acontece na economia brasileira, que passa por


transformações, o novo convive com o antigo. A gente tem uma economia
em que você tem empresas nas quais a propriedade do capital coincide com o
controle sobre a gestão da empresa [...] e a gente está começando a conviver
com algumas situações em que a análise fica mais complexa porque você não
está mais lidando com situações [como essas] de controle majoritário
[controle administrativo pelos maiores acionistas] [...], mas [sim situações
de] controle gerencial [controle administrativo não especificado
simplesmente pela propriedade do capital]. E essa situação [...] nunca foi
problematizada porque, em geral, sempre coincidiu, do ponto de vista da
análise antitruste [...], a propriedade com o controle. Como [agora] há essa
dissociação, [...] a questão que remanesce é: nós nos preocupamos com a
propriedade ou nos preocupamos com o controle? Ou com os dois? E se for
com os dois, em que dimensão? [...] É um debate do direito corporativo que
invade o mundo da concorrência [...], então é sempre importante ressaltar
essa questão, essa questão de fundo (grifos meus).

Após o presidente enfatizar, como o conselheiro, que a menção aos fundos não
tinha “nenhuma conotação valorativa”, sendo apenas preocupante do ponto de vista
antitruste, os outros conselheiros que não haviam se manifestado pronunciaram seus
votos, sempre de acordo com o relator. O julgamento dos processos foi encerrado e a
sessão concluída.

! 226
Essa discussão, motivada pelo voto do conselheiro, expôs uma necessidade que fica
implícita nos demais casos analisados e descritos até então neste trabalho. Como já dito,
a definição de quem concorria num mercado parecia ser dada, pois as pessoas jurídicas
que enviam requerimentos para unir-se com outras podem ser consideradas, para efeito
de análise antitruste, como os mesmos agentes que concorrem nos mercados. Esta
consideração só era possível porque os proprietários e os controladores de uma empresa
não costumavam ter parcelas de outras, já que as empresas atuantes no Brasil não
estavam tão dispersas acionariamente, ou seja, tinham um dono único e facilmente
identificável. Isto resultava, como disse o presidente, numa “coincidência” entre a
propriedade da empresa e seu controle administrativo, o que significa que a propriedade
estava nas mãos das mesmas pessoas físicas ou jurídicas que as controlavam
administrativamente. Ainda hoje a grande maioria das empresas brasileiras tem como
proprietários e administradores uma família, tornando simples a reunião de empresas,
seus proprietários e administradores em uma única unidade econômica independente;
um só concorrente.

Porém, como o conselheiro-relator quis chamar a atenção, o desenvolvimento do


mercado de capitais e, principalmente, o crescimento dos fundos de investimento
impossibilitam essa equiparação tão rápida e fácil entre pessoas jurídicas e os
concorrentes do mercado. O recente desenvolvimento do mercado de capitais tem
promovido a abertura das empresas, ou seja, a dispersão da propriedade, ao possibilitar
a posse de títulos e ações empresariais por qualquer interessado que esteja disposto a
adquiri-los. Se a propriedade de uma empresa e, consequentemente, sua administração
podem ser distribuídas entre um grande número de pessoas físicas e/ou jurídicas, torna-
se mais difícil saber onde estão as fronteiras entre uma empresa e outra; quais são seus
limites. Cada vez mais, as empresas estão relacionadas por meio de proprietários ou
administradores em comum, o que confunde o trabalho de um órgão que precisa definir
claramente, como exposto na seção anterior, os agentes que concorrem nos mercados,
visando obter uma estimativa de sua participação. Como precisar quem são os agentes
autônomos e independentes de um mercado quando, no fundo (e geralmente pelos
fundos), as pessoas jurídicas e físicas que têm a propriedade acionária e o controle
administrativo de várias empresas estão relacionadas?

Na recente jurisprudência do órgão, esse problema tem sido mais frequente em


casos, como o discutido, em que as requerentes de um ato de concentração são

! 227
propriedade e são controladas por fundos de investimento, gerando uma “sensível
questão concorrencial”, segundo os funcionários do CADE. Caso um fundo possua
ações e o controle administrativo de mais de uma empresa em um único mercado, ele
poderia influenciá-las ao mesmo tempo, fazendo com que não concorressem entre si,
pois isto seria prejudicial aos interesses do fundo. A questão enfrentada pelos analistas é
como saber se a pessoa jurídica que enviou o requerimento de fusão concorre com as
outras empresas do mesmo mercado quando um fundo de investimento possui ações
tanto dela quanto das outras, supostamente suas concorrentes. Será que os investimentos
de um fundo, quando divididos entre várias empresas de um único mercado, pode
acabar tornando todas essas empresas parte de um mesmo grupo que agiria em comum
acordo e orientação? Se este for o caso, todas essas empresas que receberam
investimentos não poderiam ser consideradas concorrentes entre si, nem agentes
econômicos distintos, mas sim parte de um único grupo econômico.

Segundo o conselheiro-relator, os responsáveis pela análise precisam estar atentos


em verificar se um concorrente é apenas uma única pessoa jurídica ou um conjunto
delas cujos interesses estão de tal forma relacionados e direcionados para o mesmo
objetivo a ponto de poderem ser consideradas como parte de uma unidade econômica
singular. Se as empresas podem fazer parte de um coletivo mais extenso, este coletivo é
o agente que deve ser levado em conta na análise, pois todas as empresas integrantes
desse coletivo, relacionadas de algum modo, poderão agir cooperativamente e não
concorrencialmente, devendo ser consideradas, em conjunto, como um só agente. A
questão, portanto, envolve o entendimento, por parte do analista, da relação entre esses
fundos e as empresas nas quais eles investem. Essa relação poderia revelar a própria
forma de relação entre as empresas.

A questão dos fundos de investimento tornou-se uma preocupação central do órgão


antitruste brasileiro. Em uma entrevista para o caderno “Negócios” do jornal O Estado
em São Paulo, em 21 de janeiro de 2013, o presidente do CADE, Vinícius Carvalho,
afirmou que as prioridades do órgão naquele ano eram julgar grandes casos pendentes
da legislação anterior, o conhecido “estoque” de processos, e “fechar o cerco contra
fundos que investem em empresas de um mesmo setor”. Segundo ele, “temos muito
claro hoje que os fundos de investimento interferem na gestão de empresas. E, se
participam da gestão de duas ou mais empresas no mercado, isto pode ter um efeito
competitivo”. O setor no qual os fundos estavam investindo mais intensamente era o

! 228
setor de ensino superior privado, cujo crescimento era promovido pelo governo
federal.190 A preocupação com esses fundos era o que levara Camila, a assessora de
Luiz, a se tornar obcecada por um dos proprietários de uma universidade que
investigava e colocar sua foto no computador. Somente assim, acreditava ela, seria
possível identificar corretamente as entidades que concorrem nesse mercado.

Embora relativamente recente no Brasil, tal dificuldade de identificar os


concorrentes já era comum há muito tempo em países com mercados de capitais
desenvolvidos, como os Estados Unidos. Como vimos no primeiro capítulo, o próprio
surgimento da política antitruste neste país estava relacionado ao combate a grandes
empresas, muitas delas formando conglomerados atuantes em vários setores da
economia. No final do século XIX, as corporations, empresas organizadas
juridicamente para permitir e incentivar mais facilmente a dispersão acionária, 191
expandiam-se enormemente no país. Nessa época, a chamada separação, ou
“dissociação”, da propriedade acionária e do controle administrativo passou a ser
considerada uma questão econômica, jurídica e social relevante (Barrionuevo Filho,
1987).

Entre os pensadores sociais que tinham interesse particular nessa separação da


propriedade e do controle produzida pela forma corporativa das empresas pode se
mencionar Karl Marx e Marcel Mauss. Para os dois autores, as corporações, por serem
caracterizadas por formas coletivas de propriedade, prenunciavam uma socialização do
capital por vir.192 As “empresas públicas” (public companies), como são chamadas as
empresas abertas no mercado de ações norte-americano, eram consideradas por Marx
“the abolition of the capitalist mode of production within the capitalist mode of
production itself, and hence a self-abolishing contradiction, which presents itself prima
facie as a mere point of transition to a new form of production” (Marx, Capital, citado
em Barkan, 2012, p. 193). Marcel Mauss, em seus manuscritos recentemente reeditados,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
190
Em 1999, o governo federal criou o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) que financia cursos de
graduação para estudantes de baixa renda no país, gerando um crescimento exponencial de alunos em
universidades privadas no Brasil. Essa demanda por ensino superior provocou o interesse de fundos de
investimento que buscavam fontes alternativas de renda. O crescimento do setor resultou inclusive no
surgimento, segundo a revista semanal Exame, da “maior empresa de educação do mundo”, a Kroton, que
se uniu com a ex-concorrente Anhanguera em julho de 2014.
191
Não há um equivalente exato no direito brasileiro para a figura jurídica da “corporação” (corporation)
norte-americana. A figura mais próxima seria uma “sociedade anônima por ações”.
192
Marx se referia às corporações inglesas da metade do século XIX, em geral instituídas pelo poder
público, enquanto Mauss se referia às corporações norte-americanas privadas, em especial os trustes da
virada do século XIX para o XX.

! 229
concorda com a análise de Marx, identificando na tendência à diluição da propriedade,
ou seja, no surgimento das sociedades comerciais anônimas, um prelúdio à socialização
ou, em suas palavras, à nacionalização do capital (Mauss, 2013). No capítulo
denominado “Les faits économiques”, quase integralmente dedicado a uma análise da
formação e dos efeitos dos cartéis e dos trustes norte-americanos, Mauss defende as
novas “coletividades capitalistas” por seu “caráter público”, pois “non seulement la
propriété, mais encore sa gestion sont portées à la connaissance du marché, de
l’assemblée des citoyens de la nation, peuvent être jugées par leur valeur présente et
future – surtout future – et peuvent être comptées” (Mauss, 2013, p. 304).193

Outros pensadores eram muito mais céticos quanto aos benefícios dessas novas
estruturas empresariais. Em 1926, o economista institucionalista Thorstein Veblen, na
sua última obra Abstentee Ownership: Business Enterprise in Recent Times, apontava o
fato de que as modernas corporações norte-americanas não tinham mais um proprietário
bem definido, pois a propriedade estava dividida entre centenas de acionistas na Bolsa
de Valores, e profeticamente previa que isto poderia causar crises econômicas pela
excessiva orientação financeira e pouco produtiva dessas novas organizações.194 Alguns
anos depois, os juristas Adolf Berle e Gardiner Means, no clássico The Modern
Corporation and Private Property (1932), demonstraram empiricamente que a
separação entre propriedade e controle havia se tornado uma característica definidora
das empresas do período ou, mais precisamente, das corporações. O controle
administrativo estava agora a cargo de um indivíduo ou um grupo de indivíduos
selecionados para o conselho de diretores da empresa (Berle & Means, 1932, p. 66), que
podiam ser ou não proprietários. Para eles, o crescimento de tais corporações poderia
gerar concentrações econômicas excessivas nos mercados. Essas possíveis
consequências danosas para a concorrência deram origem a estatutos legais, como o já
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
193
Sua defesa dos trustes é enfática por serem, no seu ponto de vista, instrumentos de socialização do
capital e organizações benéficas economicamente: “S’il est permis à l’historien des sociétés modernes de
déjà porter un jugement, il semble que ceux qui conçurent cette nouvelle forme, ce nouveau régime du
capitalisme et de l’industrie eurent encore plus de génie que ceux qui ne firent que truster des industries
similaires. Ce dernier genre de trust s’imposait pour faire cesser les folies de la concurrence, laquelle
multiplie les crises et les à-coups, et hausse les prix de revient d’une foule de frais généraux, ajoutés à des
petites entreprises non viables. La découverte du trust n’était qu’une affaire de bon sens, que Rockefeller
et Carnegie firent et appliquèrent avec bon sens” (Mauss, 2013, p. 311).
194
Na introdução ao livro de Veblen (1996 [1926], p. IX), o sociólogo norte-americano Marion Levy Jr.
explica o que este autor pretendia captar com esse conceito, que era utilizado normalmente para
denominar certas formas de arrendamento de terra: “In the earlier days, the giants of business enterprise
had faces – Rockefeller, Vanderbilt, Ford, Edison – but they all turned into faceless bureaucracies. The
giants may not have been nice, and they weren’t noted for their empathy, but they had faces and human
traits. Absentee ownership wiped that out for the common man”.

! 230
mencionado Celler-Kefauver Antitrust Act em 1950, que proibia que uma empresa
comprasse ações de outra caso a concorrência entre as duas fosse futuramente reduzida
(Sklar, 1988).

No Brasil, essas “coletividades capitalistas”, para usar o termo de Mauss, cresceram


exponencialmente somente no período mais recente, exigindo uma resposta por parte
dos analistas encarregados da instrução de processos de concentração empresarial.
Como definir um concorrente quando diferentes empresas atuantes nos mercados
relevantes analisados estão vinculadas por meio de relações de propriedade e controle?
Na próxima seção descrevo como assessores de um gabinete identificaram o
concorrente de um mercado num ato de concentração buscando reunir e visualizar as
relações que o atravessavam e o constituíam.

4.3. Duas concorrentes e um professor

Numa manhã de novembro de 2012, acompanhava o trabalho de assessores no


gabinete do conselheiro Carlos, quando a assessora Camila, a mesma do gabinete do
outro lado do corredor que há dias atrás descobrira estar obcecada pelo tal sr. Gabriel,
entrou na sala em que estávamos. Ela perguntou para mim e para os quatro funcionários,
três assessores e um estagiário se alguém já havia utilizado as ferramentas de um
website da internet de nome MarketVisual. Como nenhum de nós havia ouvido falar
desse website, ela explicou para que o estava utilizando, mostrando, em uma folha
impressa, a imagem abaixo:

! 231
Figura 9: Rede de relações com base na sra. Ângela Rodrigues (CADE, 2013, fl. 1896)195

Segundo a assessora, o website colecionava informações públicas de sociedades


abertas no Brasil e no exterior, informações estas obrigatoriamente disponibilizadas
conforme instrução da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O MarketVisual reúne
informações relativas à estrutura societária, financeira e administrativa das empresas e
as disponibiliza por meio de tabelas ou imagens na forma de organogramas ou redes.
Tais tabelas ou imagens identificam diferentes tipos de relações entre pessoas físicas e
jurídicas. Na sua investigação, a assessora Camila buscou na ferramenta o nome da sra.
Ângela Rodrigues verificou que ela tinha uma “ligação de caráter administrativo” com a
empresa “Anhanguera”, representada pela linha azul, e uma “ligação de caráter

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195 Essa imagem se encontra disponível nos autos do processo no sítio eletrônico do CADE

(www.cade.gov.br) em branco e preto. Para que as cores, que são e foram tão importantes na investigação
empreendida pela assessora, fossem visualizadas, precisei recorrer ao sítio www.marketvisual.com e fazer
uma busca, gratuita e de livre acesso, pelo nome da sra. Ângela de Castro Rodrigues. O site forneceu a
mesma imagem colorida que constava do voto do conselheiro antes que uma cópia fosse digitalizada e
disponibilizada no sítio do órgão antitruste em preto e branco.

! 232
financeiro”, representada pela linha vermelha, com a “Anhembi Morumbi”, além de
outras relações que não a interessavam tanto.

Como ela explicou ao mostrar a folha impressa, Ângela Rodrigues era filha do
senhor Gabriel, aquele cuja fotografia decorava o fundo de tela de seu computador. Para
a assessora, o mapa era mais uma prova de que ela estava realmente no “caminho certo
da investigação”, que buscava provar que dois supostos concorrentes faziam, na verdade,
parte do mesmo “grupo econômico”, ou seja, suas participações de mercado teriam que
ser consideradas em conjunto. Um indício forte de que as duas empresas, Anhanguera e
Anhembi, poderiam ser consideradas um só agente no mercado era o fato de que ambas
estavam relacionadas a essa mesma pessoa física no centro da rede, a sra. Ângela.

No decorrer desse dia, acompanhei Camila em uma busca por outros gabinetes que
já tivessem utilizado tal ferramenta em suas investigações. Ela havia descoberto o
website por recomendação de uma amiga e estava curiosa e interessada nos seus
possíveis usos em investigações antitruste. A assessora, entretanto, não encontrando
ninguém que tivesse utilizado a ferramenta, dirigiu-se à Assessoria de Planejamento
(Assplan) do órgão para solicitar que o acesso ao site fosse adquirido pelo CADE e
disponibilizado aos funcionários, pois o site funcionava gratuitamente somente nas três
primeiras buscas. Como o MarketVisual não era conhecido no CADE, ela havia pago
com seu próprio cartão de crédito o acesso à ferramenta que, segundo ela,
proporcionava um conjunto valioso de informações para a investigação de “relações
empresariais”. O Department of Justice norte-americano, de acordo com ela, tinha
desenvolvido um software com uma tecnologia similar há já alguns anos para lidar com
problemas como aqueles que ela estava encontrando no caso que instruía.

O processo pelo qual Camila era responsável envolvia a aquisição das sociedades
“Instituto Grande ABC de Educação e Ensino S/C Ltda.” (IGABC) e “Novatec –
Serviços Educacionais Ltda.”, ambas pertencentes ao “Grupo Anchieta” e localizadas
na região do ABC paulista. O IGABC presta serviços na área de ensino superior e
mantém a Faculdade Anchieta e a Novatec, que atua na mesma área, mantém também a
Faculdade de Tecnologia Anchieta e o Colégio Anchieta. As duas sociedades estavam
sendo adquiridas pela “Anhanguera Educacional Ltda.”, que desenvolve, por sua vez,
uma série de atividades de prestação de serviço de ensino superior no país, sendo,
naquele ano, a “maior organização privada com fins lucrativos do setor de ensino

! 233
profissional do Brasil e a maior empresa de capital aberto do setor de Educação em
valor de mercado” (CADE, 2013, fl. 1881). A Anhanguera tinha 54 campi, 450 polos de
ensino a distância e mais de 650 centros profissionalizantes.

A investigação extremamente minuciosa que a assessora conduzia sobre essa


aquisição gerava comentários por parte de outros assessores e estagiários. Diziam que
Camila estava “doida”, pois se esforçava muito para se aprofundar na análise de uma
concentração que todos sabiam que não geraria qualquer tipo de preocupação do ponto
de vista concorrencial. O mercado de educação superior na região do ABC paulista era
grande e diversificado, sendo altamente improvável que a aquisição resultasse numa alta
concentração do mercado. Mesmo sabendo disso, Camila argumentava que aquele caso
lhe interessava particularmente, pois já havia estudado em uma faculdade em Natal que
havia sido comprada pela mesma empresa que agora comprava unidades no ABC.
Segundo ela, a faculdade de ensino a distância do Rio Grande do Norte e outras no
Distrito Federal, onde amigos seus haviam estudado, tinham uma “qualidade boa” até
serem adquiridas pela Anhanguera.

“Antigamente”, disse ela, “as faculdades eram razoáveis, com salas confortáveis em
locais apropriados, agora alugaram uma salinha na W2 e você vai lá embaixo e tá cheio
de garota de programa, bêbado, e lá em cima, há uma estrutura precária, com uma
televisãozinha daquelas [...]”. Ao explicar o que ela chamava da “característica” dessa
empresa, notou que a “qualidade do ensino” não era uma variável levada em conta na
análise antitruste para se tomar uma decisão sobre a concentração de mercado, visto que
a preocupação do CADE recai somente sobre a quantidade ofertada de serviços.196
Entretanto, segundo ela, “só aqueles que são ou já foram alunos sabem a diferença que a
entrada de um grande grupo como esse pode causar no mercado”. Sua experiência
tornou sua investigação uma causa pessoal e gerou um incentivo adicional para
“esmiuçar” melhor as empresas requerentes.

Por alguns meses, acompanhei a investigação de Camila e da estagiária do gabinete,


Luísa, estudante de direito da Universidade de Brasília que também trabalhava na

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
196 A qualidade de ensino é regulada pelo Ministério da Educação, embora decisões do CADE possam
alterar consideravelmente os incentivos para a construção da qualidade de ensino. No momento de
realização da pesquisa, existia uma tentativa de formalização de uma cooperação entre o MEC e o CADE
para avaliar com mais precisão a rápida transformação pela qual passa o mercado de educação superior
privada.

! 234
instrução do mesmo ato de concentração. Relatando seu interesse no caso e o modo
como havia chegado ao nome de Ângela, Camila buscou reconstituir os primeiros
procedimentos de sua investigação:

Eu parto do princípio, assim, de que quando uma operação é num mercado


desses de campanha política, tipo educação, saúde, infraestrutura, rola muita
“treta” por trás disso. Como eu vi esse negócio da massificação da educação,
eu fui fazer uma pesquisa normal [...], Google mesmo: “Anhanguera
compra...”. Aí eu vi várias matérias dizendo que eles demitem professores,
vários alunos reclamando que se perde qualidade, [alunos dizendo:] “pô, me
matriculei na faculdade tal e vou terminar com diploma da Anhanguera” etc.
E numa dessas eu vi que tinha uma matéria chamada “Dois concorrentes e
um professor”. Aí eu falei: “opa, a chance”. Eu descobri que esse professor,
que era o fundador da Anhembi-Morumbi [uma outra empresa do mercado],
era um cara super bem relacionado politicamente, tinha trânsito no MEC.
Ainda, quem arrumou a entrada dele na Anhanguera foi o Paulo Renato, ex-
ministro da Educação. Pensei: “vou enfiar o dedo nesse buraco”. Comecei a
desconfiar e fui atrás da certeza. Comecei a pesquisar especificamente o
Gabriel [o professor] e vi que ele estava na Anhanguera através do fundo [...]
Descobri pela internet, em reportagem, entrevistas do próprio Gabriel [...].

Na sua investigação pela internet, através de reportagens em revistas e jornais, a


assessora descobriu algo que estava sendo fonte de preocupação de alguns conselheiros
do CADE. Como descrito na seção anterior, os conselheiros apontavam uma crescente
aquisição de participações societárias por parte de fundos de investimento em empresas
que atuavam no mercado brasileiro de educação superior privada. De acordo com o voto
do conselheiro Luiz nesse processo da Anhanguera, a formação de grandes grupos
privados de educação no país é um processo “sem precedentes na história mundial”
(CADE, 2013, fl. 1859). Dos cinco maiores grupos educacionais brasileiros, quatro são
comandados por empresas do setor financeiro (fl. 1861).197 Confirmando essa tendência,
Camila descobriu que duas empresas do mercado de educação superior privada, a
Anhanguera, a empresa adquirente requerente do processo, e a Anhembi-Morumbi, uma
outra suposta concorrente do mercado, tinham alguma forma de relação por meio de
fundos de investimento que envolviam o sr. Gabriel.

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197
Como consta no voto do conselheiro, naquele momento, o Grupo Estácio era controlado pelo fundo
GP Investments; o Grupo Anhanguera, pelo banco e o fundo Pátria; a Kroton, pelo fundo Advent
Internationale; a Anhembi-Morumbi/Laureate Education, pelo fundo norte-americano KKR (Kohlberg
Kravis Roberts). Apenas a Unip não tinha um fundo de investimento como proprietário ou controlador. O
conselheiro ainda enfatizou a dimensão desses investimentos afirmando que entre as “15 maiores
empresas educacionais do país, nove possuem um fundo ou banco de investimentos na sua estrutura de
gestão e governança” (CADE, 2013, fls. 1860-1861).

! 235
Segundo a reportagem “Duas concorrentes e um professor em comum”, publicada
no jornal O Estado de São Paulo em 11 de junho de 2012 e descoberta pela assessora, o
“professor Gabriel”, como era conhecido, havia vendido o “controle” administrativo da
Anhembi-Morumbi, o equivalente a 51% da propriedade da empresa da qual fora
fundador, para uma multinacional do setor de educação, a Laureate Education Inc.
Contudo, mesmo sem o controle da universidade, que supostamente estaria nas mãos
dos acionistas majoritários, ele continuava “dando palpites na administração dos sócios”
(fl. 1883). A empresa responsável por essa reestruturação societária da Universidade
Anhembi-Morumbi era uma empresa conhecida de consultoria financeira e gestão de
fundos, Pátria Investimentos, cujos executivos eram conhecidos da filha de Gabriel,
Ângela Rodrigues que, por sua vez, trabalhava no departamento financeiro da
universidade.

Para a assessora, a questão “começa a se complicar” quando, de acordo com a


reportagem, dois anos depois da venda parcial da Anhembi-Morumbi, o Pátria foi
responsável também pela abertura de capital da Anhanguera. Para isso, o Pátria criou
um fundo específico, o FEBR (Fundo de Educação para o Brasil), que comprou 17%
das ações da Anhanguera, sendo que a “família Rodrigues”, proprietária da Anhembi-
Morumbi, garantiu, por meio de uma negociação, 70% de participação nesse fundo.
Mesmo com apenas 17% das ações, o FEBR, uma pessoa jurídica, tornou-se a acionista
controladora da Anhanguera, segundo a reportagem. Camila descobrira, portanto, que o
fundador da Universidade Anhembi-Morumbi, o sr. Gabriel Rodrigues, que continuava
influente nas decisões de sua empresa, era também um dos acionistas de um fundo que,
por sua vez, tinha ações e controlava a Anhanguera.

Como a assessora explicou, a “questão Gabriel” gerava uma dificuldade prática


para a análise do mercado de educação superior privada, no ABC e em todo o país, que
exigia determinar a participação de mercado da requerente Anhanguera. Para Camila,
mesmo que o caso dissesse respeito à aquisição de faculdades de uma terceira empresa,
Anchieta, era necessário saber quanto a Anhanguera possuía de participação de mercado
e qual era o tipo de relação entre esta e uma suposta grande concorrente, a Anhembi-
Morumbi. Caso a presença comum do Gabriel impusesse as duas empresas um
comportamento tal que inviabilizasse a concorrência entre elas, a participação de
mercado das duas empresas, Anhanguera e Anhembi-Morumbi, teria que ser

! 236
considerada em conjunto, pois “atuariam como um só agente no mercado”. Camila
prosseguiu:

Quando eu descobri isso, fui falar com o conselheiro. Isso antes de descobrir
o MarketVisual. Falei: “conselheiro, eu estou com uma desconfiança de que
o dono da Anhanguera também é o dono da Anhembi. Aliás, desconfiança
não, eu tenho certeza de que o dono da Anhanguera é o dono da Anhembi, só
que eu não tenho nenhum documento público que comprove isso”. Aí ele
olhou pra mim e falou: “Camila, esses negócios de fundo de investimento e
mercado de educação... eu estava já com uma pulga atrás da orelha, porque
eu estou vendo o movimento acontecendo e ao mesmo tempo chega esse
argumento de que tudo é pulverizado, de que eles têm, cada um, um
pedacinho de participação de mercado. Investiga! Para o prazo!”. Eu recebi
com o prazo de 44 dias e não deixei passar nenhum dia.

Até esse momento Camila não havia requisitado nenhuma informação diretamente
às requerentes, a órgãos públicos ou a concorrentes por meio de ofícios. Sua
investigação se baseava apenas nos documentos enviados como parte da petição inicial
e numa pesquisa preliminar na internet. Fazendo isso, ela evitava que os passos de sua
investigação fossem percebidos pelas requerentes, pois um ofício seria, como de regra,
juntado aos autos públicos do processo e tornado de livre conhecimento do público
interessado. Além disso, as informações fornecidas pelas requerentes por meio de
ofícios dificilmente comprometeriam a aprovação de sua concentração. Como ela
explicou, “se você olhar só pro que eles [as empresas] mandam [respostas dos ofícios na
forma de petições, apresentações, tabelas de Excel], nunca vai ter a resposta certa,
nunca vamos ter sobreposição horizontal”, isto é, nunca existirá uma concentração
significativamente problemática para ser analisada pelo CADE nos mercados. Porém,
“se você for estudar mais a fundo, você verá que não é só isso”. Um dos momentos
decisivos da investigação, segundo a assessora, que serviram para “comprovar a certeza”
de que as empresas estavam vinculadas, foi uma reunião realizada com advogados das
requerentes:

A gente não tinha nenhum documento oficial que comprovasse nada ainda,
quando teve uma reunião com a Anhanguera. Na reunião estavam as
advogadas e o diretor jurídico da Anhanguera. Ninguém tinha nem
mencionado o nome de Gabriel na reunião ainda. Eles falando: “não, porque
olha, não precisa ter preocupação com isso, tal e tal...”. E o conselheiro: “mas
minha preocupação não é com isso, eu estou avaliando outros aspectos...”. E
depois falou: “E o Gabriel?”. Ele não falou sobrenome, nada, podiam ser
milhões de gabriéis que existem no mundo. Na hora, o diretor jurídico ficou
duro e as advogadas olharam pra cara dele espantadas como se ele não as
tivesse alertado sobre isso. Ele falou: “olha, pra ser bem franco, eu entrei na
empresa esse ano e eu só vi o Professor Gabriel uma vez esse ano, num
evento. Eu sei que ele tem ações, mas isso não muda a análise que vocês

! 237
estão fazendo”. Mas assim, pra mim, ele não precisou explicar nada. Quando
o conselheiro falou, “E o Gabriel?”, a reação dele mudou; o semblante dele
mudou. Depois até conversei com o conselheiro: “Tu viu a reação dele?”. Eu
falei: “esse cara é quem manda, só preciso provar isso”. Deu pra perceber que
o professor era uma figura forte lá dentro, pois não detalhamos como Gabriel
Rodrigues, Professor Gabriel, o acionista Gabriel, nada disso. Até porque o
Gabriel não está em nenhuma ata, nenhuma assembleia, não está em canto
nenhum! Ele só tá dentro das quotas, dentro do fundo que tem 10% hoje.
Então, nesse dia, a gente teve certeza de que só faltavam os documentos
mesmo, mas que o diagnóstico estava fechado.

Segundo a estagiária que também participou da reunião, em geral, “no CADE, a


gente sabe qual é o problema e só quer provar [...], nesse caso havia vários indícios e a
gente só precisava provar”. A reação hesitante e surpresa do diretor jurídico da
Anhanguera foi o último dos indícios antes que a assessora e a estagiária começassem a
enviar ofícios diretamente às requerentes e a outras empresas do mercado solicitando
mais informações sobre seus acionistas e controladores. Somando-se aos ofícios, a
assessora procurou por informações relevantes em registros das juntas comerciais do
Distrito Federal, dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que são
acessíveis pelos seus respectivos sítios eletrônicos.

As informações coletadas nesses estabelecimentos colocaram em dúvida a


declaração prestada pela requerente Anhanguera na petição inicial, na qual afirmava que
nenhum membro da diretoria ou do conselho do grupo educacional exercia função de
conselheiro ou de diretor em empresas atuantes no mesmo setor. Segundo constava da
Ata da Reunião do Conselho de Administração da Anhanguera de 15 de setembro de
2010, documento enviado ao CADE pela requerente, a sra. Ângela Regina Rodrigues de
Paula Freitas, filha de Gabriel Rodrigues, era membro do Conselho de Administração
da empresa. A assessora encontrou, entretanto, um registro na Jucesp (Junta Comercial
do Estado de São Paulo) que apontava Ângela também como diretora da ISCP, a
sociedade mantenedora da Universidade Anhembi-Morumbi/Laureate (fl. 1888).
Ângela também tinha outras relações comerciais e societárias que a uniam às duas
supostas concorrentes. Por exemplo, de acordo com a Ata da Assembleia Geral
Extraordinária da Anhanguera, de 29 de outubro de 2010, Ângela Rodrigues tem
escritório na Rua Casa do Ator, no 99, no bairro da Vila Olímpia, em São Paulo. Porém,
conforme a consulta realizada na Jucesp, esse mesmo endereço coincidia com o de um
dos campi da Universidade Anhembi-Morumbi/Laureate (fl. 1889). A utilização do
software MarketVisual e da rede produzida por esse meio apenas produziu mais uma

! 238
evidência de que Ângela, assim como Gabriel, estava de alguma forma relacionada a
duas empresas supostamente concorrentes.

As funcionárias encontraram ainda divergências nos próprios documentos enviados


pela requerente da concentração que confirmaram a “influência da família Rodrigues” e
do fundo gerido pelo Pátria, o FEBR, no qual os familiares têm participações, na
definição das políticas estratégicas e na gestão da Anhanguera. 198 A requerente
afirmava na petição inicial que não havia nenhum acordo entre seus acionistas ou
cotistas que incluísse regras para a administração da empresa, tendo em vista que o
FEBR tem apenas 17,24% da propriedade da Anhanguera. No regulamento da
assembleia geral de cotistas, entretanto, enviada como resposta a um ofício produzido
pela assessora, afirma-se que o fundo FEBR tem garantida a indicação de membros para
o conselho de administração da empresa e a “titularidade das ações que compõem o
bloco de controle” (fl. 1890). O próprio Gabriel havia afirmado, em petição ao CADE,
que na Anhanguera era “apenas acionista”, tendo junto com a família somente 7,5% do
FEBR. Mas, em contradição com esta afirmação, um documento enviado pelos próprios
advogados atestava que essa participação era nada menos que dez vez maior (75,7%), o
que dava à “família Rodrigues” a direção do FEBR e, por consequência, a direção da
Anhanguera.

Após ter realizado essa ampla investigação que incluiu o envio de 46 ofícios às
requerentes e suas concorrentes, o conselheiro-relator pôde elaborar seu voto, que
abordou a crescente participação de fundos de investimento no setor de educação
privada no país. Mesmo tendo aprovado a aquisição sem restrições, por esta não
apresentar qualquer dano potencial à concorrência, seu voto ainda assim necessitou de
149 páginas para provar a existência de um “novelo de relações (ou participações)
societárias” – ou seja, um conjunto de relações de propriedade – e de um “novelo de
dirigentes” – um conjunto de relações de controle empresarial – que transpassavam a
requerente Anhanguera e a empresa Anhembi-Morumbi. Tais “novelos” ligando
empresas, fundos de investimento e pessoas físicas integrantes da “família Rodrigues”
ou executivos, levavam a uma “unificação do comando empresarial” em empresas
distintas, supostamente concorrentes. Para ilustrar algumas das inúmeras relações

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Os integrantes da “família Rodrigues”, segundo definição no voto do conselheiro-relator, são os srs.
198

Gabriel Mario Rodrigues, Ângela Regina Rodrigues de Paula Freitas, Glaucia Helena Castelo Branco
Rodrigues e Carmen Sílvia Rodrigues Maia (fls. 1895).

! 239
detalhadas no voto, utilizou-se o website MarketVisual, que gerou o seguinte
organograma para algumas pessoas físicas e jurídicas investigadas:

Figura 10: Quadro que apresenta as “ligações entre Anhanguera Educacional Participações S.A.,
Pátria Investimentos, a sra. Ângela Rodrigues e Anhembi Morumbi” (CADE, 2013, fl. 1898)

A assessora, por meio das linhas coloridas que podiam ser selecionadas no site,
procurou explicitar relações de controle empresarial, como cargos no conselho de
administração das empresas (board of directors) ou na diretoria administrativa

! 240
(executive office), além de relações de propriedade (company ownership) e outras, como
vínculos familiares (family relation) ou até mesmo a instituição na qual a pessoa física
havia estudado (education). A variedade, a multiplicidade e a densidade dessas relações,
que podiam ser depreendidas pela própria visualização das linhas, constituíam aquilo
que as assessoras denominavam de uma “influência relevante” entre as pessoas físicas e
jurídicas especialmente apontadas pelos retângulos vermelhos.

Segundo o conselheiro-relator, tais relações apontadas e descobertas na instrução


do processo revelam o “verdadeiro organizador central das decisões, o Punctum saliens
empresarial: o arranjo comandado pelo sr. Gabriel Rodrigues e família [suas filhas],
com o auxílio do Pátria, que submete duas concorrentes, Anhanguera e Anhembi-
Morumbi/Laureate, às suas estratégias, tornando incidente a definição lexical do
vocábulo ‘sinergia’; ‘ato ou esforço de diversos órgãos na realização de uma função’”
(fl. 1895). Num diagrama que consta do voto, o conselheiro-relator tentou tornar mais
visível esse “novelo”, “núcleo organizador central” ou “arranjo”, como ele
alternadamente denominou, baseando-se nas participações societárias das duas
empresas:

! 241
Sra.!Ângela!
Rodrigues!
12,1%!

Sra.!
Carmem!
Sr.!Gabriel! Rodrigues!
FEBR!
(Pátria)! Rodrigues!+! 12,1%!
Filhas!!
17,24%! 75,7%!
Anhanguera! Sra.!Gláucia!
Rodrigues!!
Outros! 12,1%!
82,76%!
Sr.!Gabriel!
Rodrigues!
39,4%!
Núcleo!
organizador!
real!
Sra.!Ângela!
Rodrigues!
12,1%!

Sr.!Gabriel! Sra.!
AnhembiP Rodrigues!+! Carmem!
Morumbi!/! Filhas! Rodrigues!
Laureate! 12,1%!
49%!

Sra.!Gláucia!
Rodrigues!!
12,1%!

Sr.!Gabriel!
Rodrigues!
39,4%!

Figura 11: Quadro intitulado “Novelo de Participações Societárias” (CADE, 2013, fl. 1900)

O “núcleo organizador real”, mais uma denominação para o mesmo “arranjo”,


reúne as duas empresas, os fundos de investimento que as controlam e as pessoas físicas,
integrantes da família Rodrigues, que possuem parte da propriedade e o controle dos
fundos. Para o relator, citando um voto anterior do conselheiro Carlos Ragazzo, esse
núcleo pode ser qualificado como o direito econômico denomina de “grupo econômico”,
que existe quando há uma “orientação concorrencial central, definida na cúpula do
referido grupo, seja qual for sua forma de constituição, da qual se espera o cumprimento
pelos demais integrantes” (fl. 1908). Para o conselheiro-relator, as participações e as

! 242
relações entre as pessoas jurídicas e físicas tornavam razoável inferir que as duas
empresas tinham conhecimento mútuo de suas ações e estratégias e que não agiriam de
forma alguma em desacordo com a outra ou para prejudicá-la.

Se todas as entidades presentes nesse arranjo, pessoas físicas e jurídicas, podem ser
consideradas “como se fossem um” concorrente para fins da política de defesa da
concorrência, devem ser somadas, segundo o conselheiro, “as participações e os
recursos conexos dos grupos Anhanguera/Anhembi-Morumbi-Laureate/Pátria” (fl.
1913), não apenas na instrução desse processo, mas sempre que houver a necessidade
de se calcular o market share dos participantes numa análise que envolver alguma
dessas empresas. A investigação realizada neste caso conseguiu provar que a requerente
Anhanguera tinha uma participação maior no mercado, tendo em vista que sua alegada
concorrente, a empresa Anhembi-Morumbi, estava relacionada de muitas formas
diferentes com ela, de modo que só poderiam constituir um mesmo “arranjo”
organizacional, agindo de modo coordenado. Portanto, não era possível considerar a
Anhanguera e a Anhembi-Morumbi como concorrentes entre si no mercado de
educação superior privada.!

A maior participação da requerente no mercado, distinta daquela que a mesma


havia proposto em sua petição inicial e argumentado durante a instrução, não gerou um
resultado contrário à sua solicitação. O tribunal entendeu, de forma unânime, que a
concorrência nos mercados afetados na região do Grande ABC paulista não seria
substancialmente reduzida com a aquisição, mesmo que considerassem Anhanguera e
sua suposta concorrente, Anhembi-Morumbi, como parte do mesmo grupo. No entanto,
as descobertas decorrentes da investigação, que enfatizaram a importância de uma
análise detalhada de concentrações que envolvem fundos de investimento, construíram
uma nova jurisprudência para casos no setor de educação superior privada no Brasil. A
assessora Camila, muito elogiada pelo conselheiro Luiz durante o pronunciamento do
voto, sentiu-se realizada, pois havia sido capaz de revelar relações propositadamente
obviadas entre empresas desse mercado, relações estas que poderiam, em casos futuros,
gerar sérios prejuízos a outras empresas e a consumidores de serviços educacionais.

Casos como este, em que os concorrentes não podem ser facilmente identificados,
são um problema central para um órgão que pretende defender a concorrência. Para
mim, esses casos tornaram explícita uma condição para a visualização de um problema

! 243
concorrencial: a necessidade de se identificarem sujeitos ou entidades distintas que
concorrem entre si. Para que sejam concorrentes, duas empresas devem não só
participar do mesmo mercado relevante, comercializando produtos e serviços
substitutos e operando em uma mesma região geográfica, mas também não terem
qualquer outra forma de relação entre elas. De um ponto de vista do antitruste, a
existência de relações de propriedade e de controle envolvendo pessoas jurídicas e
físicas similares implica que as ações de duas empresas podem ser coordenadas, no
sentido de que uma não tentará rivalizar com a outra. Além disso, esses casos expõem
um modo de se conceberem os agentes concorrentes de um mercado, unidades que
podem ser consideradas autônomas e singulares, a partir de uma análise das suas
relações. Esta concepção relacional do agente econômico de interesse para a política
antitruste era particularmente importante para o conselheiro-relator do caso Anhanguera,
como explico abaixo.

4.4. Ficções jurídicas e realidades econômicas

“Como agem os fundos? Precisam ter formalmente controle societário para ter a direção
econômica e estratégica? Qual o impacto, na gestão cotidiana das empresas investidas,
do fato de os fundos deterem a possibilidade de serem, sempre, “novos investidores no
mesmo negócio” ou “fontes de investimentos novos por parte de outros novos
investidores”, o chamado “efeito gravitacional do dinheiro”? Como tratar, do ponto de
vista concorrencial, esse conjunto de expectativas recíprocas, explícitas ou implícitas,
que traz um específico e determinado equilíbrio de poderes na relação entre fundo de
investimento (sujeito) e empresa investida (objeto)? E quando essa relação não é
unidirecional (fundo = sujeito/empresa investida = objeto), mas sim complexificada
pelo ativismo da empresa investida, que se utiliza dos fundos para sua própria expansão,
uma vez que é detentora do conhecimento a respeito do mercado? Quais as formas
jurídicas (estática) que as relações econômicas (dinâmica) assumem? As formas
jurídicas correspondem ao fato econômico? Quais outras formas de direção econômica
podem estar agregadas e sendo praticadas? São necessariamente participações
societárias ou, pelo contrário, podem ser expressas em contratos e/ou acordos
referenciados em participações em outros fundos e/ou rendimentos (localizados
inclusive no exterior), responsáveis pelo acerto das posições patrimoniais? Os fundos de
investimento limitam-se a uma única empresa “investida” em um único mercado ou,
pelo contrário, podem ter mais de uma e, portanto, temos dois ou mais concorrentes sob
uma mesma orientação geral? Dado que as estratégias dos fundos de investimento são
intuídas, planejadas, executadas e finalizadas em situações (como as ora analisadas),
com prazo que pode superar uma década, quais os passos que estão sendo, agora,
dados? Como são manejadas, nessas estratégias de médio/longo prazo, as variáveis
concorrencialmente sensíveis? Quais os instrumentos que devem ser desenvolvidos pela
autoridade antitruste para realizar uma política que seja minimamente eficaz, e que não
se aliene da financeirização de diversos setores?” (CADE, 2013, fl. 1878, grifos meus).

! 244
Esse longo parágrafo do voto do conselheiro Luiz ilustra como a crescente
investida dos fundos no setor de educação superior privada no Brasil criava um desafio
para a autoridade de defesa da concorrência. As perguntas que precisam ser respondidas
para que se possa solucionar um caso deste tipo são inúmeras e complexas, envolvendo
o modo como empresas e fundos agem e a maneira pela qual estão relacionadas. Entre
todas as questões, acredito que uma delas, realçada acima, parece ser a que expõe com
mais clareza e profundidade a questão imposta ao CADE nesse novo contexto
econômico, conforme o entendimento do jurista: “as formas jurídicas correspondem ao
fato econômico?”. A nova situação exige pensar a possibilidade de convergência entre
certos aspectos da técnica jurídica e da vida econômica ou, como colocado, entre
“formas jurídicas” e “fatos econômicos”.

Tal questão foi explicitamente abordada no voto do ato de concentração julgado.


Ao justificar seus procedimentos investigativos, o conselheiro-relator afirmou que a
análise realizada por ele e por seus assessores consagra uma “hermenêutica [jurídica]
realista”, que busca investigar os “conteúdos, para além das formas, os efeitos concretos,
para além das declarações e pretensões retóricas, as articulações fáticas, e não as formas
jurídicas que são os invólucros dos negócios, os centros de comando real, para além da
arquitetura societária que lhe sirva de fantasia” (fl. 1902). Como ele enfatiza, a análise
de seu gabinete, se “viesse a analisar somente a requerente Anhanguera e nos termos
exatos trazidos aos autos pelas requerentes, simplesmente restaria alienada da
realidade” (grifos do voto, fl. 1882). Neste caso, portanto, as formas jurídicas
claramente não correspondiam aos fatos econômicos, pois as pessoas jurídicas que
atuavam como requerentes do processo não podiam ser consideradas as concorrentes do
mercado ou, como ele denomina, o “núcleo organizador real”.

Mais do que simplesmente uma questão de correspondência, as formas jurídicas


podem, em alguns casos como neste analisado, acabar ocultando o verdadeiro agente
que a política antitruste necessita identificar. Em um artigo sobre as falências
empresariais geradas pela crise financeira de 2008, Annelise Riles (2011b) explica que a
personalidade jurídica é capaz de produzir um efeito de “opacidade” (opacity) que pode
ser propositadamente promovido pelas empresas. Elas se beneficiariam do estatuto de
personalidade jurídica para impedir a responsabilização de sócios que estariam “por trás
da empresa” em eventuais condutas ilegais desta. Todas as técnicas e relações por meio
das quais as pessoas jurídicas são produzidas e mantidas em funcionamento, inclusive

! 245
as relações de propriedade e controle, são obviadas pelos “efeitos estéticos da forma
jurídica” (Riles, 2005) que marcam e constroem uma identidade.

A insistência que a requerente e pessoa jurídica Anhanguera tinha de ser


considerada a concorrente do mercado torna explícita a tentativa de utilização da forma
jurídica como uma unidade autossuficiente para a análise antitruste. Essa utilização
seria certamente benéfica para a Anhanguera, pois reduziria sua participação de
mercado. Sabendo exatamente das consequências que a utilização das formas oficiais
como critério analítico poderia gerar, fossem elas formas administrativas ou jurídicas, o
conselheiro-relator, no voto, alertou:

como sugere Mark Granovetter [sociólogo norte-americano], aqueles que


acreditam que a estrutura da empresa reside no seu organograma oficial ou
nas estruturas societárias formais “não passam de bebês perdidos na floresta
da sociologia”, pois a organização “formal” (e, em muitos casos, também a
“informal”) da sociedade empresária não são suficientes para a análise
antitruste (CADE, 2013, fl. 1917).199

A forma jurídica que mereceria maior cautela por parte dos analistas do órgão
antitruste é a própria personalidade jurídica, pois é esta a “unidade requerente”, como
ele denomina, que na maior parte das vezes é tomada como se fosse o agente econômico
de interesse para o antitruste. Como já explicado, a personalidade jurídica das empresas
confere um primeiro contorno às entidades administradas pelo CADE, pois é em nome
delas que se faz o requerimento solicitando autorização para a realização do ato de
concentração. Contudo, como visto, esse contorno formal não coincide necessariamente
com os agentes que concorrem no mercado.

Na doutrina jurídica predomina a interpretação de que o conceito de pessoa jurídica


estabelece a “realidade do ente coletivo”, não no sentido de uma “realidade objetiva
(organicismo)”, mas sim no sentido de uma “realidade técnica ou realidade jurídica”
(Silva Pereira, 2011, p. 256). A pessoa jurídica, nessa interpretação, é uma realidade,
embora produto da ordem jurídica. Como argumenta o jurista Francisco Amaral: “sendo
a personalidade um produto da técnica jurídica, sua essência não consiste no ser em si,
mas em uma forma jurídica, pelo qual se considera tal concepção formalista” (Amaral,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
199 O conselheiro-relator cita em nota de rodapé, como referência, o conhecido artigo do sociólogo Mark

Granovetter, Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness, publicado em 1985
no American Journal of Sociology. Discuto esta referência mais abaixo neste mesmo capítulo.

! 246
2008, p. 320). Segundo Caio Mário da Silva Pereira (2011, p. 257), a partir das teorias
realistas (ou formalistas),

[...] advém a conveniência de aceitar o jurista a personalidade real destes


seres criados para atuar no campo do direito, e admitir que são dotados de
personalidade e providos de capacidade e de existência independente, em
inteira semelhança com a pessoa natural, como esta vivendo e procedendo,
como esta sujeito ativo ou passivo das relações jurídicas.

Nesse sentido, a noção de pessoa jurídica é o exemplo mais claro do que os juristas
chamam de uma “ficção legal” ou “ficção jurídica”, um conceito amplamente conhecido
e utilizado tanto no direito civil quanto no direito anglo-saxão. Uma ficção jurídica, na
definição mais usual, é uma afirmativa, feita por um juiz (ou jurista ou advogado), de
que algo existe ou é um fato, quando todos, inclusive o próprio juiz e sua audiência,
sabem que este fato “na verdade” não existe (Riles, 2010b, p. 3). Por esta definição, a
ficção jurídica não pode ser considerada uma falácia, pois a afirmativa que a performa
não tem qualquer pretensão de descrever a realidade, ela não é feita com o propósito de
enganar ninguém.200 Sua importância reside no fato de ela agir como uma ferramenta do
direito, produzindo efeitos jurídicos concretos. Por exemplo, afirmar a existência da
personalidade jurídica de uma empresa permite que ela seja proprietária de ativos em
seu nome, que contrate funcionários e que seus sócios proprietários não sejam
responsabilizados por eventuais dívidas contraídas por ela.

Nos casos em que estão envolvidos fundos de investimento, a crítica do conselheiro


às formas jurídicas não questiona de modo algum a natureza ou as teorias da
personalidade jurídica das empresas. Seu argumento implica que, dentro de uma
pretensão de se alcançar a “realidade econômica”, as formas pelas quais as empresas se
estruturam juridicamente não podem ser consideradas nem mesmo uma aproximação do
que seriam os verdadeiros ou “reais” agentes concorrentes de um mercado. Se na grande
maioria dos casos que passa pelo CADE podemos utilizar as unidades das pessoas
jurídicas não apenas como uma realidade jurídica, mas também como uma
representação da realidade econômica, inclusive dando a essas entidades jurídico-

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
200 Sobre a possível crítica de que este conceito é uma mera criação ou “manobra” legal, Silva Pereira

(2011, p. 257) explica: “encarando a natureza da pessoa jurídica como realidade técnica, aceitamo-la e a
sua personalidade sem qualquer artifício. E nem se poderá objetar que esta personalidade e capacidade
são fictícias em razão de provirem da lei, porque ainda neste passo é de salientar-se que a própria
personalidade jurídica do ser humano é uma criação do direito e não da natureza, reconhecida quando a
ordem legal a concede, e negada quando (escravos) o ordenamento jurídico a recusa”.

! 247
econômicas qualidades humanas na forma de reputações, intenções e racionalidades que
caracterizariam sua atuação nos mercados, nos casos de empresas abertas no mercado
de capitais, ter em conta a pessoa jurídica como um concorrente leva ao risco de se
considerar um mercado relevante como menos concentrado do que ele realmente é. Isto
poderia ter como consequência a aprovação de uma concentração que prejudica
consumidores e outras empresas.

Pensar que a forma jurídica e o fato econômico são convergentes é prático para os
funcionários do órgão de defesa da concorrência, que não têm que se dar ao trabalho
descrito na seção anterior de identificar o concorrente de um mercado. Contudo, como
diz o conselheiro, utilizar a forma como se fosse uma representação pode tornar a
análise e o julgamento “alienados da realidade”. Como, então, conceber e identificar o
concorrente de um mercado, já que a forma jurídica não ajuda nessa tarefa?

4.5. Agentes econômicos e suas relações

Os procedimentos levados a cabo pelos profissionais do CADE quando a forma


jurídica não corresponde ao fato econômico revelam uma concepção de agência
econômica que é produzida e visualizada fundamentalmente por meio de relações,
relações estas que não se limitam a indivíduos, mas incluem um “arranjo” entre coisas e
pessoas. Por outro lado, a concepção dessa agência também torna explícito, como
resultante, o modo como se concebe outra forma de relação: a relação de concorrência
entre agentes econômicos na política antitruste.

Baseando-se no trabalho do economista japonês Katsuhito Iwai e da antropóloga


Marilyn Strathern, Annelise Riles (2011b) afirma que as empresas (corporations)
podem ser sempre observadas e concebidas a partir de dois pontos de vista, um interno e
outro externo. A visão externa pressupõe uma perspectiva das empresas enquanto
pessoa, tanto no sentido jurídico, possuidora de direitos, obrigações e propriedades
quanto no sentido moral, com intenções, reputações e outras características. Como
vimos, é a partir deste ponto de vista que grande parte das empresas é concebida e
visualizada durante as práticas investigativas do conselho, principalmente quando elas

! 248
são consideradas as unidades interessadas, autônomas e concorrentes de um mercado.
Por outro lado, a visão interna das empresas que, segundo Riles, transparece de forma
mais evidente em momentos de controvérsias financeiras ou jurídicas, como, por
exemplo, em processos de falência ou de crimes corporativos, pressupõe um
entendimento dessas entidades como coisas, ou seja, propriedade de pessoas (físicas ou
jurídicas), seus acionistas, por exemplo. Essa multiplicidade da forma empresa,
dependendo da perspectiva com que ela é abordada, permite considerá-la, ao mesmo
tempo, como pessoa e coisa, sujeito e objeto, proprietária de certos ativos e propriedade
de outras pessoas (2011 p. 39). Além disso, enquanto do ponto de vista externo a
empresa é concebida como uma unidade e uma singularidade cujas fronteiras são
definidas, criando uma aparente “simplificação” de sua imagem (Riles, 2011b), do
ponto de vista interno, a empresa só pode ser entendida como um conjunto de relações
entre proprietários e coisas.

Como sugere o voto do conselheiro, observar as empresas de um ponto de vista


interno seria mais “real”, para os propósitos da política antitruste, do que do outro modo.
O agente pertinente à análise antitruste nem sempre se limita aos contornos de sua
personalidade jurídica, pois as relações (internas) entre pessoas jurídicas e físicas, que
constituem a própria pessoa jurídica de uma empresa – relações de propriedade e
controle empresarial – podem ser constitutivas de outras pessoas jurídicas que também
atuam no mesmo mercado. Se acionistas, mesmo que minoritários, possuem ações em
várias empresas, ou se funcionários e dirigentes trabalham e administram mais de uma
empresa (a conhecida interlocking directorates estudada pelos sociólogos
organizacionais), eles podem influenciar e comandar um conjunto de entidades mais
amplo que age coordenadamente, ou seja, um só concorrente.

Além de observar as empresas “a partir de dentro”, tornando explícitas as relações


que as constituem, os assessores precisaram descrever, ilustrar e definir quais dessas
relações são influentes ou fortes o bastante a ponto de formarem o que ele chamou
alternadamente de “novelo”, “organizador central das decisões”, “núcleo organizador
real”, “grupo econômico” ou “arranjo”. Essa agência econômica da política de defesa da
concorrência, que parece ser de difícil denominação até mesmo para o conselheiro e que
extrapola as formas jurídicas nas quais empresas se constituem e se apresentam ou
escapa delas, deve ser definida caso a caso, julgando quais relações são suficientemente

! 249
fortes para serem consideradas, jurídica e analiticamente, como produtoras do efeito
econômico de unir o comportamento de duas pessoas jurídicas distintas.

Esse modo de pensar as agências ou agenciamentos econômicos (Callon, 2013) tem


paralelos na sociologia e na antropologia. Nesses casos, as descrições e as concepções
buscam criticar aquilo que supostamente o pensamento econômico ocidental considera
como a unidade central de agência econômica, ou seja, o indivíduo racional
maximizador de escolhas entre custos e benefícios, o homo economicus. A literatura
antropológica vem apontando desde suas origens concepções de agências econômicas
distintas daquelas mais correntes no pensamento econômico ocidental. Marcel Mauss
(1905), para ficar com um exemplo clássico, ao tentar descrever o agente da troca nas
relações, também comerciais, do kula melanésio, utilizou o conceito de personne
morale para explicar as coletividades não individuais (clãs, tribos, famílias) que
participam do que ele chama de “sistemas de prestações totais”. “Pessoas morais”
seriam os coletivos híbridos de pessoas e coisas sobre os quais recaem obrigações de
dar, receber e retribuir dádivas.201 Como ele diz:

Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, nunca se constatam,


por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas e de produtos num
mercado estabelecido entre os indivíduos. Em primeiro lugar, não são
indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e
contratam; as pessoas presentes nos contratos são pessoas morais: clãs, tribos,
famílias, que se enfrentam e se opõem seja em grupos frente a frente num
terreno, seja por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras
ao mesmo tempo (Mauss, 1923-24, p. 190).

Mauss utiliza essa noção para embaralhar, como ele próprio indica, a separação
moderna entre o “direito real” e o “direito pessoal”, dando o sentido de uma
coletividade da qual coisas e pessoas, como as concebemos, fazem parte. O agente do
kula é, portanto, um coletivo de pessoas e coisas relacionadas e distinto de outros
coletivos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
201Curioso o fato de que a expressão personne morale seja literalmente a tradução de “pessoa jurídica”
em francês, sendo esta a expressão utilizada correntemente em textos legais neste idioma. O tradutor da
mais recente versão brasileira da obra citada, entretanto, optou por manter a expressão “pessoa moral” (p.
190). Na última edição do Ensaio sobre a Dádiva para o inglês (Mauss, 2001), o tradutor usa o termo
legal entities no lugar de personne morale. Poderíamos inferir que o uso do termo personne morale por
Mauss, na falta de outro mais apropriado, poderia sugerir que o agente econômico que ele identifica no
kula melanésio, da mesma forma que o agente econômico que os analistas identificam na análise
antitruste, se aproxima de uma noção de “pessoa jurídica”, mas não se confunde com ela.

! 250
Na sociologia econômica mais contemporânea, as noções de agência também têm
sido amplamente debatidas, buscando oferecer uma crítica e um complemento para
abordagens consideradas “subsocializadas”, tanto da ciência econômica quanto da
sociologia. Por isso, não foi por acaso que o conselheiro citou em seu voto um dos
artigos mais conhecidos do sociólogo Mark Granovetter, publicado em 1985,
considerado fundante da chamada “nova sociologia econômica”, para justificar uma
interpretação das agências econômicas da política da concorrência em termos
relacionais. Este sociólogo, tanto no trabalho mencionado como em outros (Granovetter,
1973), empregou a noção de redes sociais para explicar que toda ação econômica é
necessariamente inserida (embedded) em uma rede de relações sociais.202 Tais relações
explicariam os incentivos que mobilizam agentes econômicos, como empresas e
indivíduos.

Parte considerável da sociologia organizacional e econômica norte-americana, a


partir dos anos 1980, baseou-se nessas pesquisas procurando explicar especificamente o
comportamento empresarial e de outras formas organizacionais em um ambiente em que
as corporações estão inseridas em um conjunto de relações mais ou menos formais com
outras (ver Burt, 1983; Mintz & Schwartz, 1985). Tendo em vista que a propriedade
dessas organizações estava distribuída entre muitos acionistas, entre eles famílias,
companhias de seguro, bancos, fundos de pensão e de investimento, e que sua
administração poderia ser direcionada tanto por esses proprietários quanto por gerentes,
membros de conselhos e diretores das empresas, pesquisadores tentaram determinar
quais eram os fatores mais influentes na formulação das decisões e dos objetivos
empresariais e como as ações empresariais podem estar interligadas e, por vezes,
direcionadas para o mesmo objetivo.

O conselheiro e os assessores conheciam os argumentos desses sociólogos e


utilizavam técnicas de investigação similares, como a análise de redes sociais
disponibilizada pelo MarketVisual, para explicar as formas de relações e as influências
sobre entidades jurídicas (sejam estas pessoas físicas ou jurídicas). Entretanto, a noção
de agência empregada parece mais similar àquela de outro sociólogo, Michel Callon,
que em sua particular interpretação do trabalho de Granovetter desenvolveu a noção de
“ator-rede”. Segundo este autor:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
202 Granovetter (1985) se apropria da noção de embeddedness utilizada por Karl Polanyi (1944), dando a
ela um caráter menos institucionalista e mais microssociológico.

! 251
For Granovetter the only possible solution is that provided by the network;
not the network connecting entities which are already there, but a network
which configures ontologies. The agents, their dimensions, and what they are
and do, all depend on the morphology of the relations in which they are
involved […] In the social network as described by Granovetter, the agents’
identities, interests and objectives, in short, everything which might stabilize
their description and their being, are variable outcomes which fluctuate with
the form and dynamics of relations between these agents (Callon, 2008, p. 8).

Tanto Michel Callon quanto outros autores influenciados pela noção de rede, como
Donald MacKenzie (2009), têm chamado a atenção para as condições que possibilitam
conceber e construir agentes ou agências (agencements) econômicas como entidades
calculadoras ou racionais. Em concordância com Callon, afirma MacKenzie:

An economic actor is not an individual human being, nor even a human being
“embedded in institutions, conventions, personal relationships or groups”
[…] an actor is made up of human bodies but also of prostheses, tools,
equipment, technical devices, algorithms, etc. – in other words is made up of
an agencement (MacKenzie, 2009, p. 20).

De acordo com essa literatura, um agente econômico deve ser compreendido como
um arranjo, uma rede composta de humanos e não humanos, pessoas e coisas, que estão
organizados de tal forma a produzir comportamentos econômicos, mais ou menos
racionais ou calculadores. Não seria possível entender o funcionamento do mercado
financeiro, por exemplo, levando em consideração apenas a agência dos humanos, como
os traders que realizam operações financeiras. Suas ações são parte de um arranjo
sociotécnico que inclui “equipamentos” como calculadoras, softwares, algoritmos,
documentos, entre outros “actantes”, que, em conjunto, os tornam capazes de tomar
decisões econômicas.

A descrição de como os profissionais do CADE definiram um agente concorrente


do mercado, unindo as empresas Anhanguera e Anhembi-Morumbi, ilustra como a
política antitruste não está tão distante dessas perspectivas socioantropológicas. A
definição dos concorrentes passa, como vimos, pela identificação de relações,
principalmente relações de propriedade e controle empresariais entre pessoas e coisas,
que indicam, mais do que qualquer outro tipo de relação, a possibilidade de que exista
um arranjo empresarial coordenado e orientado para um só objetivo. As relações de
parentesco (família Rodrigues), as trajetórias educacionais e as redes sociais de pessoas
físicas atravessam essas relações, dando a elas ainda mais densidade e fornecendo ao

! 252
analista mais evidência de uma suposta “influência relevante” entre as duas empresas
investigadas. Todo esse “novelo” de relações entre pessoas – jurídicas e físicas – e
coisas – suas propriedades, ou seja, as próprias empresas das quais são acionistas e
administradores – é entendido como parcela de uma “realidade econômica” a partir da
qual as decisões legais devem ser baseadas. A especificação de relações relevantes
conforma uma unidade que pode ser utilizada para o cálculo de participação de mercado
e, assim, de uma própria estimativa de concorrência do mercado.

Essa concepção relacional do agente que concorre em um mercado acaba revelando,


por outro lado, a possibilidade de uma relação de concorrência entre os agentes. A
relação concorrencial, conforme podemos inferir das práticas de conhecimento descritas,
existe quando duas empresas atuam no mesmo mercado relevante – produzindo e
comercializando produtos ou serviços considerados substitutos pelos consumidores
numa mesma região geográfica – porém sem que elas estejam de alguma forma
vinculadas às mesmas pessoas jurídicas ou físicas, seja por meio de suas estruturas
societárias, seja por meio de seus corpos dirigentes. Somente quando se identifica essa
forma de relação é possível preencher uma tabela de participação de mercado, na qual
cada quadrado representa a parcela que um concorrente possui das vendas ou do
faturamento em um mercado relevante. A tabela de market share, tão utilizada na
análise antitruste, pressupõe, antes de tudo, o conhecimento, como explicado neste
capítulo e no anterior, do objeto (produto ou serviço) comercializado que será afetado
pela concentração (mercado relevante de produto) do local impactado onde esse objeto
é comercializado (mercado relevante geográfico) e dos agentes que concorrem, nesse
mesmo local, pela venda desses objetos. Ao definir tais questões, torna-se possível
prever os possíveis prejuízos causados à concorrência em um mercado.

4.6. Sobre a concorrência

No dia 29 de abril de 2013 saí para almoçar com Camila, a assessora que havia
realizado a investigação relatada. Naquela semana ela já estava trabalhando em outro
caso, outro ato de concentração. Fomos no seu carro até um restaurante a algumas
superquadras de distância do CADE, ainda na Asa Norte da capital. Ela estacionou seu
carro e, andando para o local, um pouco antes de chegar, passamos em frente a uma

! 253
farmácia. Nesse instante, Camila disse que precisava de um minuto, pois tinha um
trabalho a fazer na farmácia. Quando entramos no estabelecimento, Camila começou a
tirar fotos das prateleiras onde estavam os preservativos à venda (fotografia abaixo).
Achando inusitado o que estava fazendo, perguntei por que ela estava tirando aquelas
fotos.

Como eu sabia, durante as investigações, analistas, assessores ou até mesmo


conselheiros costumam visitar estabelecimentos que estão investigando. Dependendo do
produto ou do serviço vendido pelos envolvidos num processo, a visita ao local de
venda pode facilitar o entendimento de quais são os concorrentes, de como se vendem
os produtos, de como eles são distribuídos e consumidos. Durante a investigação de um
processo que eu ajudei a instruir, relacionado a editoras de passatempos e palavras-
cruzadas, lembro que costumava entrar e sair de livrarias e revistarias nos aeroportos do
Rio de Janeiro e de Brasília somente com o intuito de ver quais eram as marcas de
revistas de passatempo distribuídas pelas lojas. A ação parecia me aproximar daquilo
que estava escrito nas centenas de páginas do processo correspondente que ficava na
minha mesa. No entanto, nunca havia pensado em tirar uma fotografia daquelas revistas.

Camila explicou que a foto estaria incluída no seu voto e que estava pedindo para
diferentes conhecidos, em todos os estados do Brasil, que enviassem fotos das
prateleiras de preservativos de farmácias ou drogarias para incluí-las também. Uma
semana depois eu enviaria uma foto da prateleira de uma farmácia em que entrei na
minha cidade, quando me lembrei do seu pedido em Brasília. A assessora estava
trabalhando numa concentração entre duas grandes empresas produtoras de
preservativos. Naquela semana ela redigia o voto que aprovaria o requerimento das
empresas. Segundo ela, a fabricação de preservativos exigia muito pouco investimento
fixo, ou seja, era muito barato para uma empresa construir uma fábrica e começar a
produzir esse produto. Mesmo que a concentração criasse um concorrente com alta
participação no mercado, o CADE não deveria, segundo ela, restringir a operação. As
baixas “barreiras à entrada” nesse mercado, ou seja, a alta possibilidade de entrada de
um novo concorrente, impediam que essa empresa com alta participação aumentasse
muito o preço de seus produtos. A operação, portanto, dificilmente seria prejudicial para
outros concorrentes ou consumidores. Mesmo com sua explicação, eu não havia
compreendido o porquê de incluir a fotografia no voto. Ela então apontou para a foto no
celular e disse enfaticamente: “Olha, isso é concorrência”:

! 254
Figura 12: “Concorrência.”

O principal argumento que justificaria a decisão do conselheiro e que resultaria na


aprovação da operação era aquele que ela havia explicado, ou seja, a facilidade de
entrada de um outro concorrente nesse mercado. Entretanto, Camila também queria
provar que, mesmo com a união das empresas requerentes, o mercado continuaria

! 255
suficientemente concorrido. A fotografia ilustrava de forma precisa aquilo que ela
entendia como concorrência e que seguramente convenceria outros conselheiros de que
o mercado era competitivo. Mais do que isso, a foto tornava claro algo que parecia
permanecer constante nas diversas investigações e nos variados procedimentos que são
levados a cabo pelos responsáveis da instrução processual no CADE, em especial na
instrução de atos de concentração: o modo pelo qual a visualização da concorrência
exige a percepção de diferenças e semelhanças.

A prateleira de preservativos ressalta aspectos envolvidos tanto em práticas de


definição de mercados quanto em práticas de identificação de concorrentes. Segundo a
assessora, ela estava solicitando fotografias de todos os estados brasileiros porque todas
as empresas produtoras de preservativos vendem seus produtos em todos os estados do
Brasil e, portanto, a concentração em análise afetaria todos igualmente. As fotografias
semelhantes tiradas em vários estados do Brasil comprovariam a correta definição de
mercado relevante geográfico proposta para a operação como o “mercado nacional”.
Além da semelhança entre as marcas/empresas que atuariam no país todo, a disposição
da estante ilustra uma diferenciação de um tipo de produto, no caso os preservativos
masculinos, que estão separados e organizados em prateleiras de uma das pontas da
gôndola. Essa segregação espacial dentro dos pontos de venda, independente do motivo
pelo qual seja feita, definiria um tipo de produto específico que não concorre com
outros. O mercado relevante de produto, portanto, parece ser o de “preservativos
masculinos”.

Mesmo assim, perguntei se não poderiam ser considerados os tipos variados de


preservativos, entre tamanhos, sabores ou texturas, como diferentes mercados relevantes
de produto. Como a assessora explicou, essa especificação não seria necessária, tendo
em vista que todas as empresas produzem variações mais ou menos equivalentes, ou
seja, produtos muito semelhantes. A concentração de duas empresas alteraria toda a
gama de produtos ofertada e, por este motivo, a definição de produto deveria considerar
a categoria mais geral de “preservativos masculinos”.

Todas essas semelhanças e diferenças permitiam a visualização do mercado


relevante da análise, mas ainda não comprovavam que nesse mercado haveria
“concorrência”. As cores, as marcas e a disposição dos produtos de cada empresa nas
prateleiras ajudavam a chegar a esta conclusão. Como explicou Camila, cada prateleira

! 256
comportava uma empresa diferente, claramente visualizada pela marca e pela
embalagem que dava unidade à empresa. As marcas distintas, separadas nas prateleiras,
deixavam claro para o consumidor que essas empresas eram diferentes e que poderiam
ser consideradas concorrentes entre si. A estante funcionava praticamente como uma
tabela de Excel de participação de mercado, separando as concorrentes e indicando que
aquelas mais acima teriam um poder de mercado maior, pois estavam mais bem
localizadas nas gôndolas. As semelhanças de produtos ofertados por marca e, ao mesmo
tempo, a diferença clara entre elas estabeleciam visualmente uma distinção entre
concorrentes equivalentes de um mesmo mercado. Por último, um número não muito
pequeno de empresas identificadas (6) completava a verdadeira representação de um
mercado em que haveria “concorrência”.

Como busquei apontar neste capítulo e no anterior, as práticas de conhecimento que


envolvem a definição de mercados e a identificação dos concorrentes, construindo
simultaneamente o contexto no qual os concorrentes atuam e as próprias agências
atuantes neste contexto, podem ser descritas como práticas de conhecimento que
implicam a visualização de diferenças e semelhanças de uma série de características da
vida econômica. Seja por meio de experiências pessoais, fotografias, websites, ligações
telefônicas, reuniões, reportagens de revista, seja pelo envio e recebimento de
documentos, assessores, estagiários, coordenadores e conselheiros do CADE procuram
diferenciar e agrupar produtos e serviços, delimitar e separar regiões geográficas e
identificar os concorrentes de um mercado, tendo em vista construir uma representação
das relações de concorrência que serão mais afetadas pela concentração empresarial. A
concorrência ou, o que é mais comum, o “problema concorrencial” só é possível de ser
visualizado a partir da definição de mercado e da identificação dos agentes que nele
concorrem.

! 257
Considerações finais: Os limites do antitruste

“The most fundamental problem antitrust confronts is dealing with complex market
information through institutions whose competence is limited.”

(Hovenkamp, 2005, p. 11)

“Diante da natureza, apenas ao homem é dado unir e separar, e isso de um modo


próprio, em que um é sempre a precondição do outro. Na medida em que, ao sabor do
acaso, retiramos duas coisas de seu repouso sereno na natureza para designá-las como
‘separadas’, já estabelecemos em nossa consciência uma relação entre elas e as
destacamos, juntas, do que há entre uma e outra. E vice-versa: percebemos como
vinculado apenas aquilo que inicialmente isolamos de algum modo; as coisas precisam
primeiro estar dissociadas para estar unidas [...] No sentido imediato como no
simbólico, no sentido material como no espiritual, somos aqueles que sempre separam o
que está vinculado e vinculam o que está separado.”

(Simmel, 1909, p. 70)

Em março de 2013 pedi autorização para que pudesse acompanhar os trabalhos


realizados pela Superintendência-Geral do CADE. Tendo ficado mais de seis meses no
gabinete de um conselheiro do Tribunal, no terceiro andar do edifício, acreditava ser
importante compreender como funcionava o dia a dia na SG, mesmo sabendo, por meio
de conversas com os “analistas técnicos” e “coordenadores” que lá trabalhavam que os
procedimentos de instrução de processos eram idênticos aos realizados no gabinete.
Quando conversei com o vice-superintendente sobre a possibilidade de ir para a SG, ele
me disse que seria melhor para eles, caso tivesse interesse, se eu pudesse trabalhar em
uma das coordenações, já que estavam com uma falta de analistas naquele momento.
Neste caso, portanto, eu não apenas observaria o trabalho deles, como eu já fazia no
gabinete do tribunal, mas os auxiliaria na instrução dos processos, como se fosse um
estagiário. Acreditando já estar suficientemente familiarizado com as práticas, as
técnicas e os conceitos utilizados para analisar casos, concordei com a proposta.

Entre os três processos dos quais fiquei encarregado de auxiliar na instrução, um


deles era particularmente interessante e curioso. Ele dizia respeito à acusação de uma
prática ilícita por parte da maior empresa editora de revistas de “passatempos” no país.
Segundo a empresa que entrou com uma representação no CADE, a grande editora
vinha há muitos anos se utilizando de medidas judiciais para impedir a venda de revistas
por empresas concorrentes do mercado. A editora costumava ir à Justiça alegando que

! 258
seus concorrentes estavam copiando literalmente as suas revistas, tanto em relação ao
design quanto ao conteúdo. E os juízes vinham concordando com seus argumentos,
decidindo pela retirada de circulação das revistas dos concorrentes das livrarias.

Esse processo, com 12 volumes, sendo quatro deles somente com revistas de
passatempo, era considerado complexo pelos analistas. Seria necessário não apenas
investigar se as empresas estavam mesmo copiando as revistas, o que implicava uma
série de questões relativas ao direito de propriedade intelectual, mas principalmente
verificar se as medidas judiciais adotadas pela grande empresa poderiam ser
qualificadas como uma conduta anticompetitiva. Ao tomar ciência do conteúdo do
processo, comecei a pensar sobre as possíveis questões que poderiam gerar caminhos
para a investigação. Em princípio, analisei, para que fosse considerada uma conduta
ilícita, as ações judiciais propostas pela grande editora teriam que estar direcionadas e
intencionadas para a retirada de concorrentes de um mesmo mercado relevante. Porém,
qual o mercado relevante que poderia ser definido para este caso? Seria o mercado de
“passatempos”, incluindo aí as revistas de “sudoku”, “palavras cruzadas” ou o “jogo dos
7 erros”? Ou será que cada um destes tipos de passatempo poderia ser considerado um
só mercado relevante? A pergunta era no mínimo curiosa e foi objeto de discussão
numa reunião com advogados da grande editora. Será que os consumidores, quando vão
a uma banca de jornal comprar sudoku e não encontram revistas deste tipo, comprariam
palavras cruzadas? Todas essas variedades de passatempos são substitutos entre si no
mercado? Estaria a editora tentando se livrar de algum tipo específico de revista,
visando criar um monopólio naquele mercado?

Embora à primeira vista a definição de mercado relevante parecesse ser uma


questão importante para a decisão deste caso, ela era apenas um mero detalhe para o
coordenador que acompanhava o processo e para os advogados das partes, que não viam
também muita preocupação com a definição adotada. Talvez por ter ficado tanto tempo
observando análises e investigações de atos de concentração, eu imaginasse que a
definição de mercado e também a identificação dos agentes que nele concorrem seriam
igualmente importantes na instrução de todos os tipos processuais do CADE. Contudo,
como logo compreendi, processos relativos a condutas anticompetitivas nem sempre
exigem uma análise econômica tão densa como a apresentada ao longo do terceiro e
quarto capítulos, em que descrevi a análise realizada para atos de concentração. Para
que uma prática ilícita seja condenada, basta comprovar que ela ocorreu ou que houve a

! 259
intenção de praticá-la. A questão envolve a obtenção de evidências – como depoimentos,
notas, e-mails, documentos internos de empresas – que provem um acordo colusivo
realizado entre duas ou mais empresas ou uma mera intenção de realizá-lo; um trabalho
mais policial e menos preditivo. Processos administrativos como este, relativos a
condutas anticompetitivas, estavam cada vez mais presentes no órgão antitruste, o que
levava a uma transformação da própria política e colocava em evidência seus limites.

Desde que a política antitruste brasileira ganhou mais relevância no início dos
anos 1990, a grande maioria dos processos instruídos tem como objeto atos de
concentração empresariais. A necessidade legal de o CADE aprovar concentrações gera
todo mês um grande número de novos requerimentos que ocupam a maior parte da
atividade analítica ou investigativa do órgão. Como já explicado, durante o período em
que fiz meu trabalho de campo, o órgão antitruste, incluindo o Tribunal Administrativo,
tinha um grande “estoque” de concentrações geradas pelas incertezas que as empresas
viam na transição legal de 2012. Em 2015, entretanto, o número de processos instruídos
relativos a atos de concentrações e condutas anticompetitivas começou a se igualar.
“Antes de entrar em vigor a [nova] lei, os ACs eram quase 90%. Hoje temos 54% e o
resto são condutas anticompetitivas”, disse o presidente do CADE ao Valor Econômico
em janeiro de 2016 (Valor Econômico, 21/01/2016). Essa equiparação se deve em parte
à mudança realizada nos requisitos para submissão de atos de concentração.

Em 30 de maio de 2012, uma portaria interministerial aumentou os valores


mínimos de faturamento ou volume de negócios que as empresas devem ter para
notificarem ao CADE seus atos de concentração. 203 Para que seja necessário um
requerimento de concentração, pelo menos um dos grupos envolvidos precisa ter
registrado no último balanço faturamento bruto anual ou volume de negócios total no
país equivalente ou superior a R$ 750 milhões. Anteriormente esse valor era de R$ 400
milhões, como explicado no último capítulo. O valor de faturamento ou volume de
negócios de um segundo grupo envolvido também passou de R$ 30 milhões para R$ 75
milhões.204 Na prática, isso gerou uma redução na quantidade de requerimentos de atos
de concentração enviados ao CADE. Atualmente, apenas empresas com faturamento

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
203
Essa alteração dos patamares de notificação é permitida de acordo com o artigo 88 da nova Lei 12.529
de 2012: “§ 1o Os valores mencionados nos incisos I e II do caput deste artigo poderão ser adequados,
simultânea ou independentemente, por indicação do Plenário do Cade, por portaria interministerial dos
ministros de Estado da Fazenda e da Justiça”.
204
Portaria Interministerial no 994, de 30 de maio de 2012.

! 260
igual ou acima destes montantes devem solicitar autorização para que sua concentração
possa ser consumada.

Muitos profissionais com quem conversei apontam que essa alteração reflete um
movimento mais amplo, uma escolha política na qual o olhar para o futuro vai sendo
aos poucos substituído pela investigação do passado. A política econômica nacional já
vem há algum tempo privilegiando a formação de grandes grupos empresariais, os
chamados “campeões nacionais”, supondo que esses grandes conglomerados podem
concorrer internacionalmente com desempenho melhor que empresas de menor porte,
gerando mais lucros e empregos na economia brasileira. O grande aumento do
orçamento do BNDES na última década seria um exemplo dessa guinada política. Nesse
contexto, a repressão às práticas anticompetitivas existentes faria mais sentido do que a
prevenção da formação de grandes conglomerados empresariais. Criou-se inclusive o
Dia Nacional de Combate a Cartéis por meio de Decreto Oficial assinado pelo
presidente Lula em 8 de outubro de 2008. Este marco faz parte de uma campanha para
“atrair novos denunciantes de cartéis e conscientizar a população sobre a importância do
combate a essa prática contra a concorrência”, conforme explicou a assessoria de
comunicação do CADE.205

O empenho no combate aos cartéis e outras condutas estão provavelmente


relacionados a esses objetivos mais amplos de política econômica e, sem dúvida, a um
esforço legítimo do órgão antitruste para impedir os prejuízos inegáveis que estas
práticas geram aos consumidores. Entretanto, pode-se dizer também que este relativo
ganho de importância da investigação de condutas anticompetitivas está ligado a uma
estratégia de “redução de riscos” da política antitruste, como me descreveu uma
assessora do CADE. Segundo ela, a análise de atos de concentração, mais usual no
conselho, tem um nível de dificuldade maior e é sempre “limitada”, pois implica uma
decisão baseada em um conjunto variado de informações e nem sempre preciso sobre o
funcionamento da economia no momento da análise e no futuro próximo. Essa
limitação produz riscos econômicos, vinculados a consequências imprevisíveis das
decisões administrativas sobre as empresas, e riscos políticos, já que uma decisão

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
205
A campanha incluía a distribuição de cartilhas com informações sobre o que é um cartel, quais os
prejuízos causados diretamente aos consumidores e dicas de como denunciar essa prática. Disponível em:
http://www.cade.gov.br/Default.aspx?271ae830c157ad7581ce67f954. Acesso em: 20/01/2016

! 261
considerada equivocada pode resultar em críticas àqueles responsáveis por as terem
tomado e ao próprio órgão antitruste.

No caso da investigação de práticas anticompetitivas, este risco seria


praticamente inexistente. A investigação, neste caso, não requer uma consideração sobre
um possível cenário futuro das relações de um mercado como a análise de
concentrações, mas meramente a obtenção de provas, quase sempre materiais, que
demonstrem o ilícito. Um simples e-mail entre dois diretores de empresas atuantes num
mesmo mercado discutindo a precificação de seus produtos ou serviços é suficiente para
aplicar multas severas às empresas. Neste caso, um “problema concorrencial” é
simplesmente a existência de práticas – em geral a troca de informações entre empresas,
como nos casos recentes de licitações de obras públicas – que pretendem suprimir a
concorrência. Por outro lado, como descrevi ao longo da tese, na análise de atos de
concentração, o que está em jogo é a possibilidade de existência de uma prática – o
exercício do poder de mercado – numa situação futura em que as requerentes estariam
unidas. Essa possibilidade só é estimável caso se compreenda e se visualize como se
dão as relações de concorrência nos mercados. É portanto a necessidade de
compreender essas relações, nem sempre explícitas e, ainda por cima, supor o que
ocorrerá com elas num momento pós-concentração empresarial que faz com que a
análise de fusões e aquisições seja mais limitada e, por isso, mais incerta e arriscada que
as análises de condutas anticompetitivas. Os ACs também exigem um esforço maior,
pois, diferentemente dos outros PAs, eles não podem “esperar”.

Como demonstrado no segundo capítulo, a temporalidade dos processos de atos


de concentração demandava uma extrema atenção por parte dos profissionais do
gabinete. Levando em conta que os prazos podiam expirar, os autos dos processos eram
armazenados na própria sala dos assessores. Para que fosse possível acompanhar seus
prazos, eram utilizadas tabelas no computador, quadros pendurados na sala e um
rigoroso cálculo dos dias em que ainda seria possível deixá-los “parados”. Mas os atos
de concentração, como uma solicitação de empresas atuantes naquele momento em
determinados mercados, estavam também sujeitos a uma “temporalidade econômica”,
exigindo uma resposta rápida por parte dos analistas. Uma demora seria prejudicial às
empresas e aos próprios objetivos da política de defesa da concorrência, que é garantir a
concorrência e, por consequência, a eficiência dos mercados. Mas como “soltar”
rapidamente os processos quando a análise necessária para tomar uma decisão exige

! 262
várias etapas e procedimentos buscando obter uma quantidade de informações
suficiente para estabelecer possíveis cenários futuros nos mercados? Além disso, como
realizar esta análise supostamente imparcial sobre as relações econômicas, baseada em
teorias e conceitos variados, quando a maior parcela dessas informações é fornecida
pelos próprios requerentes da concentração que não pretendem se prejudicar?

A definição de mercados ilustra claramente esta dificuldade. Como descrito, os


analistas buscam definir os possíveis mercados afetados pela concentração, o espaço
geográfico e os objetos ali comercializados enviando uma série de ofícios tanto para as
requerentes quanto para seus concorrentes. Contudo, segundo esses profissionais, os
únicos que conhecem com profundidade como funcionam os mercados são as próprias
empresas que desejam se fusionar. São elas que produzem ou comercializam bens e
serviços, que sabem quem são seus consumidores, seus fornecedores e como são as
estratégias de seus concorrentes. Como demonstrei, uma solução encontrada para se
apropriar ou se aproximar desse conhecimento das relações de mercado é utilizar as
experiências vividas, pessoais e conhecidas que permitam compreender como os
consumidores se comportam e quais são as características daquele setor. Mesmo assim,
a dificuldade da análise de relações econômicas em setores variados da economia do
país continua sendo enorme para esse pequeno grupo de analistas localizado em um
edifício em Brasília, que podem utilizar apenas determinadas práticas de conhecimento
jurídico-administrativas – práticas de documentação, pesquisas na internet, reuniões,
conversas e experiências pessoais. Como é possível conhecer em profundidade o
mercado de serviços de concretagem e ao mesmo tempo o mercado de revistas de
passatempo? Ou o mercado de educação superior privada no Amapá e também em São
Bernardo do Campo?

Esta tese demonstrou como a concorrência é concebida, visualizada e governada


pelo órgão antitruste apesar dos limites inerentes à análise de concentrações – os limites
interpretativos gerados pela diversidade de tipos de informação sobre a economia, sua
escassez e sua parcialidade, e os limites temporais em que a análise do órgão antitruste
está enquadrada. Pode-se dizer que esses limites são contornados por meio de práticas
de conhecimento – teorias, conceitos, técnicas e artefatos inter-relacionados – que
selecionam somente as relações entre empresas, consumidores, proprietários e
administradores que importam para detectar a possibilidade da existência de um
problema concorrencial.

! 263
No terceiro capítulo expliquei como o conceito de mercado relevante pode ser
concebido como uma representação das relações concorrenciais conforme são
compreendidas pelas empresas e os consumidores. Entretanto, como pude perceber
pelas considerações formuladas pelos analistas, compreender a noção de mercado
somente como um “espelho” da realidade econômica tornaria a análise antitruste
limitada pelo motivo, irônico, de que ela não teria limites. Isto significa que a
construção de um espelho “limpo” do mercado seria impossível, mesmo que se
enviassem milhares de ofícios às empresas participantes de um mercado. A quantidade
de informações seria sempre insuficiente e a análise não teria um fim (Strathern, 1996).
Por isso, o mercado relevante é sobretudo um “filtro” que deixa de fora aquilo que não é
pertinente à análise, como os aeroportos do país cuja infraestrutura ainda não está
totalmente saturada, e as clínicas oncológicas cujos pacientes, pela sua própria condição
física, não estão dispostos a frequentar. Dessa forma, ele permite aferir a probabilidade
de exercício de poder de mercado e, assim, a possibilidade de a concentração gerar
prejuízos à concorrência. O contexto definido pelo mercado não reduz a capacidade de
análise do órgão antitruste, mas, pelo contrário, permite a visualização das relações de
concorrência e dos poderes de mercado da futura empresa fusionada dentre um conjunto
mais amplo de relações econômicas em que ela está inserida.

O quarto capítulo desta tese descreve como os analistas do órgão definem os


agentes que concorrem num determinado mercado quando eles estão imersos em um
conjunto de relações de propriedade e controle empresarial. Essas relações nem sempre
explícitas e cada vez mais frequentes devido à maior abertura das empresas no mercado
de capitais complicam a tarefa dos analistas, que precisam saber quem e quantos são os
agentes econômicos que concorrem para estimar suas participações relativas. O que
torna ainda mais difícil essa identificação dos concorrentes é o fato de as empresas
estarem separadas em diferentes personalidades jurídicas. A questão gerada pela análise
antitruste é saber se esta separação jurídica pode ser considerada representativa dos
agentes econômicos que concorrem nos mercados. Na análise descrita de uma aquisição
do mercado de educação superior privada, as pessoas jurídicas não podiam ser
consideradas as concorrentes do mercado. Essa impossibilidade levou os analistas a
identificarem o concorrente por meio de uma série de relações societárias,
administrativas, pessoais e familiares; um arranjo que unia, por meio de fundos de
investimento, duas pessoas jurídicas distintas que atuavam no mercado.

! 264
A análise antitruste, portanto, concebe e define objetos (mercados) e sujeitos
(agentes econômicos) com o propósito de restringir o conjunto de relações econômicas
tornando explícitas apenas aquelas relações tidas como concorrenciais. Os mercados e
os agentes econômicos são performados por meio de práticas e artefatos jurídico-
administrativos e teorias econômicas que “separam o que está vinculado”, utilizando a
expressão de Simmel, delimitando um espaço geográfico preciso, especificando quais
produtos ou serviços são substitutos entre si e identificando agentes econômicos
concorrentes. Essas práticas de separação são, por outro lado, o que permite a
visualização das relações de concorrência, ou seja, uma relação entre agentes
econômicos bem definidos e distintos atuando numa mesma região e vendendo produtos
ou serviços similares. Como demonstrei, a relação de concorrência é materialmente
visualizada numa tabela de participação de mercado (market share) que “vincula”, num
mesmo retângulo (o mercado), aquilo que já foi previamente separado, representado por
cada quadrado (agentes econômicos). Portanto, as práticas de documentação do órgão
antitruste possibilitam não somente conceber mercados e agentes econômicos, mas
também visualizar e governar a relação de concorrência entre eles.

Nesta etnografia privilegiei, em função da minha própria experiência de campo, a


descrição de práticas de conhecimento envolvidas na instrução de atos de concentração.
A análise desses processos, como demonstrei, é entendida como mais “limitada” e
“arriscada”, pois se baseia num exame de relações de difícil compreensão e cuja decisão
pode ter impactos imprevisíveis, como a alta inesperada de preços ou a falência de
certas indústrias. Porém, essas dificuldades inerentes à análise de concentrações são
especialmente produtivas, pois evidenciam o modo como a defesa e o governo da
concorrência envolve a produção de objetos e sujeitos econômicos que tornam
visualmente apreensíveis as relações de concorrência nos mercados. Além disso,
demonstram como a construção da concorrência envolve uma relação nem sempre óbvia
entre o conhecimento econômico e os artefatos e conceitos jurídicos e administrativos.
Esta tese, portanto, buscou contribuir para uma antropologia da economia por meio da
descrição de como o econômico – no caso as relações entre concorrentes em um
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