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Museu Nacional
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
FICÇÕES ECONÔMICAS E REALIDADES JURÍDICAS: UMA ETNOGRAFIA
DA POLÍTICA DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
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FICÇÕES ECONÔMICAS E REALIDADES JURÍDICAS: UMA ETNOGRAFIA
DA POLÍTICA DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL
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PPGAS/MN/UFRJ
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PPGAS/MN/UFRJ
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PPGAS/MN/UFRJ
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PPGSA/UFRJ
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PPGAS/UFRJ
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PPGAS/UFRGS
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CIP - Catalogação na Publicação
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RESUMO
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016 !
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ABSTRACT
This thesis describes how the Administrative Council for Economic Defense (CADE),
autarchy linked to the Ministry of Justice, defends competition in Brazil, at the same
time conceiving it and building it. The body responsible for competition defense policy
or antitrust policy, as it is also known, has the mission to “ensure free competition in
markets”, which in practice implies reviewing and deciding, authorizing or not,
petitions regarding mergers, acquisitions and other corporate “concentration acts”, as
well as investigating and judging harmful anticompetitive practices, such as cartels. The
analysis and investigation involved in the administrative proceedings regarding merger
reviews and anticompetitive practices implies the production of knowledge of market
relations aiming at visualizing a possible “competitive concern” or “problem”, allowing
regulators decide if a concentration can be approved or if a practice should be
administratively condemned. With the exception of the first chapter, which traces a
genealogy of the government of competition in Brazil, the rest of the ethnography
describes knowledge practices, i.e., concepts, techniques and artifacts used by antitrust
regulators to analyze, interpret, and define economic relations in specific markets. As it
is demonstrated, the visualization of a “competitive problem” or of competition itself
requires the conception and the construction of economic objects and subjects, such as
the “market” in which corporations act and the “economic agents” which compete in it.
This thesis also points to how these knowledge practices are interpreted by CADE’s
employees, putting into evidence the convergences and divergences, more or less
explicit, that emerge through the relation between legal-administrative practices and
conceptions and practices about the economy. This thesis describes how the economy is
conceived, produced and governed by the governmental body responsible for
competition or antitrust policy in Brazil.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
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AGRADECIMENTOS
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professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional
com quem tive a oportunidade de cursar disciplinas. Além dos já mencionados acima,
agradeço especialmente a Antônio Carlos de Souza Lima, Aparecida Vilaça e José
Sérgio Leite Lopes.
Não poderia deixar de agradecer minha querida ex-orientadora Ana Cristina Braga
Martes por ter me incentivado a pesquisar o tema do antitruste e por ter me ensinado,
com seu rigor característico, como fazer uma pesquisa acadêmica. Na FGV-EAESP,
agradeço também a Mário Aquino Alves que além de ter promovido a minha descoberta
de variadas possibilidades teóricas e metodológicas, lembrou-me na banca da
dissertação que a noção de “performatividade”, como formulada na sociologia
econômica, poderia e deveria ser melhor compreendida enquanto prática. A ideia de
prosseguir o doutorado no mesmo tema partiu principalmente desta advertência.
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Menezes, Andréa Freire, Fernnanda Sá e Maria Enilde Araújo. Foi principalmente
aquilo que aprendi com vocês que procuro descrever e explicar neste trabalho.
No longo percurso que resultou nesta tese, ninguém me ouviu falar mais de
antitruste que Eugênia Motta. Ela provavelmente conhece tão bem esta política pública
quanto eu. Sua amizade e seus conselhos incentivadores foram essenciais na produção
deste trabalho. Agradeço pela companhia inestimável nesse longo percurso. Agradeço
também às minhas amigas doutoras ou quase doutoras Karen Shiratori, Gabriela Toledo,
Andressa Lewandowski e Viviane Fernandes, que estão presentes neste trabalho de
diversas formas. Agradeço também a todos os meus queridos amigos do Museu
Nacional, do NuCEC e de fora do PPGAS com quem eu tive a oportunidade de
conversar sobre este trabalho, especialmente Marco Martinez, André Dumans Guedes,
Leticia Ferreira, Laura Lowenkron, Guilherme Giufrida, Louise Scoz, Patrícia Silva,
Luiz Couceiro, Rejane Valvano, Andrés Góngora, Rodrigo Cantu, Julia O’Donnell,
Bruno Guimarães, Marcos Carvalho, Lucas Freire, Everton Rangel, Iagê Miola, André
Nahoum, Victor Biagioni e Silvia Fagá.
Agradeço aos meu pais e avós que sempre me apoiaram de todas as formas
imaginárias nas várias etapas da trajetória escolar e acadêmica que resultou nesta tese.
Sem esta incrível família este trabalho não existiria.
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Por fim, agradeço ao meu companheiro de vida Caetano. Não posso imaginar o que
seria teria sido fazer esta pesquisa e este trabalho sem seu apoio e companhia. Se esse
apoio consistisse somente nas correções jurídicas, ortográficas e lógicas dos meus
escritos, já seria uma enormidade. Mas sua importância transcende qualquer forma de
ajuda e não poderia caber neste pequeno agradecimento. Por isso, dedico este trabalho a
ele.
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LISTA DE FIGURAS, TABELAS E GRÁFICOS
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AP – Averiguação Preliminar
AC – Ato de Concentração
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica
CIP – Comissão Interministerial de Preços
DOJ – Department of Justice
ICN – International Competition Network
FTC – Federal Trade Commission
HHI – Herfindahl-Hirshman Index
OI – Organização Industrial
PA – Processo Administrativo
SBDC – Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência
SDE – Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça
SEAE – Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda
SG – Superintendência-Geral do CADE
SUNAB – Superintendência Nacional de Abastecimento e Preços
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SUMÁRIO
Introdução 1
Da história às práticas 4
Entre o Estado, a economia e o direito 12
Organização da tese 19
2. Artefatos do antitruste 82
2.1. Um “momento de transição” 86
2.2. Redes pessoais e institucionais 90
2.3. Documentando a pesquisa 96
2.4. Mexendo e cuidando de processos 102
2.5. Parando, soltando e fazendo andar os processos 116
2.6. Acesso restrito 126
2.7. Governo dos papéis e governo pelos papéis 132
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Introdução
“No concept in economics – or elsewhere – is ever defined fully, in the sense that its
meaning under every conceivable circumstance is clear. […] And of course a word like
‘competition’, which is shared with the whole population, is even less likely to be
loaded with restrictions or elaborations to forestall unfelt ambiguities.”
“Ser que vincula e que, para tanto, deve sempre separar, ser que, se não separar, não
tem como vincular, o homem primeiro precisa apreender em espírito a mera existência
indiferente de duas margens como uma separação, para então vinculá-las por meio de
uma ponte. Do mesmo modo, o homem é um ser de fronteira que não conhece
fronteiras nem limites.”
Para dar cabo dessas novas atribuições, o órgão antitruste teve que se transferir
fisicamente de seu antigo e pequeno edifício no Setor Hoteleiro Norte para um maior e
mais imponente na quadra 515 da Asa Norte da capital. A nova sede poderia abrigar
muitos dos funcionários que antes exerciam funções nas mencionadas secretarias da
administração pública federal. A transferência foi possível graças a um aumento
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considerável do orçamento do CADE, que possibilitou inclusive a criação de uma
carreira no serviço público específica para a organização. Como um exemplo claro da
transformação institucional e organizacional pela qual o CADE passava, no início de
2011 havia 150 funcionários trabalhando no órgão antitruste e, ao final de 2013, 350
funcionários.
Neste mesmo ano de 2012, no qual iniciei a pesquisa que deu origem a esta tese, o
órgão criou um novo logo para acompanhar o acrônimo CADE. Nesse momento
“histórico” ou “singular”, como o presidente da autarquia Vinícius Carvalho denominou,
pelo qual passava a política antitruste nacional, o órgão passou a ser representado por
um olho estilizado na cor azul, conforme a figura 1 abaixo, que sugeriria sua atribuição,
agora fortalecida, de vigiar as atividades empresariais no país e, com isso, defender a
concorrência nos mercados.
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Utilizando essa metáfora sobre a função do CADE, esta tese parte de uma questão:
como o órgão antitruste enxerga a economia? Como os profissionais que lá trabalham
conhecem, concebem e visualizam as relações e as condutas empresariais que eles são
responsáveis por administrar? Por meio de que práticas, conceitos, técnicas e artefatos o
CADE consegue defender a “concorrência” nos mais diversos mercados do país? Mais
do que isso, o que significa defender a “concorrência”? Onde estão e quem são esses
“concorrentes”? Por fim, como, na prática, se governam os mercados a partir do ponto
de vista da defesa da concorrência? Buscando responder a tais questões, esta tese
apresenta uma etnografia das práticas de conhecimento características da política de
defesa da concorrência e do órgão que a implementa, descrevendo como os
profissionais do CADE são capazes de visualizar um “problema concorrencial” e, a
partir disso, tomar decisões relativas a concentrações empresariais e condutas
anticompetitivas no país.
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administrativas para as empresas envolvidas, caso sejam comprovadas condutas ilícitas.
No primeiro tipo de processo, a investigação é feita com o objetivo de se preverem
“potenciais danos” que uma concentração pode gerar à concorrência de um mercado no
futuro, enquanto, no segundo caso, a investigação é retrospectiva, buscando
compreender se uma determinada prática individual ou coordenada entre duas empresas,
no passado mais ou menos recente, gerou algum prejuízo à concorrência.4
Da história às práticas
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4
A distinção entre os tipos de processos (“atos de concentração” e “condutas anticompetitivas”) e os
efeitos que suas diferentes temporalidades produzem na atividade dos reguladores e nas concepções de
concorrência será objeto de descrição no capítulo 2.
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princípio que deve guiar a organização das economias nacionais.5 No Brasil, a livre
concorrência é um dos princípios constitucionais sobre os quais deve estar assentada a
“ordem econômica”.6 Além de embasar a formulação de políticas públicas diversas, a
“concorrência” também é objeto de legislações específicas que tentam fazer deste
princípio uma realidade.
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5
A manutenção da livre concorrência também justifica as ações de organizações multilaterais como a
Organização Mundial do Comércio (OMC).
6
O artigo 170 da Constituição Federal estabelece nove princípios constitucionais da ordem econômica, a
partir dos quais o Estado deve regular a economia. São eles: soberania nacional, propriedade privada,
função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente,
redução das desigualdades regionais e sociais, busca de pleno emprego e tratamento favorecido para as
empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham suas sede e administração no
país.
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Os países de língua inglesa costumam utilizar a expressão “política antitruste” ao invés de “política
concorrencial” ou de “defesa da concorrência”. Isto se deve, em parte, ao fato, como descrevo mais
detalhadamente no primeiro capítulo, de a história das legislações e das políticas concorrenciais, tentando
combater monopólios comerciais, cujos primeiros registros podem ser traçados desde o Código de
Hamurábi, ter tido uma grande inflexão com a guerra aos “trustes” (tipo forma legal em que podem se
enquadrar empresas no direito norte-americano) no final do século XIX, nos Estados Unidos. Nesse
período, novas legislações, como o Sherman Act de 1890, foram promulgadas, buscando-se combater os
cartéis formados pelos grandes “trustes” das companhias ferroviárias. A expressão antitrust como o
conjunto de medidas tomadas para combater as práticas “anticompetitivas” das grandes empresas tornou-
se comum nas campanhas presidenciais do período.
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da aceitação desta premissa por governos nacionais, entre 1980 e 2009, o número de
países com legislações concorrenciais passou de 20 para 107 (Aydin, 2010).
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Existiam pelo menos 104 órgãos de defesa da concorrência no mundo em 2009, em mais de 92
jurisdições distintas (ICN, 2009).
9
A reflexão sobre a concorrência e o modo de governá-la é objeto de duas disciplinas ou saberes cuja
relação é vista como complementar. O direito da concorrência é a área do direito que estuda o conjunto de
normas, princípios e procedimentos que limitam as práticas econômicas que “abusam do poder
econômico” e, portanto, infringem um dos princípios da ordem econômica, a “livre concorrência”. Por
outro lado, a “economia antitruste” ou “economia organização industrial”, uma subárea da
microeconomia, estuda o comportamento de empresas (ou “firmas”) e os efeitos (econômicos) sobre a
concorrência de mercado que certas práticas produzem.
10
Segundo o jurista Hely Meirelles (2010, p. 380): “Autarquias são entes administrativos autônomos,
criados por lei específica, com personalidade jurídica de Direito Público interno, patrimônio próprio e
atribuições estatais específicas […] esta administra-se a si própria, segundo as leis editadas pela entidade
que a criou”.
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2014; Onto, 2009). O CADE evitaria o “abuso do poder econômico” por parte de
empresas grandes o suficiente para controlar mercados de produtos ou serviços.
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Essa mesma perspectiva histórica e sociológica orientou as pesquisas que realizei
sobre a política antitruste brasileira nos dois mestrados que cursei. Como havia me
formado em economia e estagiado numa consultoria econômica especializada em
regulação e concorrência durante meu curso de graduação, conhecia pessoalmente dois
ex-presidentes do CADE – economistas que haviam sido fundamentais para o
desenvolvimento e a transformação da política de defesa da concorrência no Brasil a
partir dos anos 1990. Conhecendo atores relevantes da política antitruste, que poderiam
me facilitar a aproximação com outros especialistas da área, além de algo das teorias
econômicas que sustentam decisões do órgão antitruste, ingressei no mestrado em
Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo,
dedicando-me a pesquisar o ingresso dos economistas no corpo dirigente do órgão de
defesa da concorrência a partir da década de 1990 (Onto, 2009).
O órgão antitruste, desde a sua criação em 1962, era composto sobretudo por
juristas e funcionários públicos de outras carreiras. A entrada, a partir dos anos 1990, de
economistas atuantes como conselheiros e presidentes do órgão, ou seja, como
membros que instruíam e julgavam os processos, fez com que argumentos e conceitos
econômicos passassem a ser mais utilizados para justificar os julgamentos de processos
administrativos. Procurei demonstrar na dissertação de mestrado como, segundo alguns
interlocutores e entrevistados, a nomeação de economistas para a autoridade antitruste
foi um modo de tornar mais “legítima”, “racional” e “técnica” a intervenção
governamental na economia, livrando-a de supostos interesses políticos escusos.
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uma forma de governar preços da economia “a distância”, ou seja, indiretamente, por
meio da concorrência dos mercados. Essa nova característica de governar, que a
literatura associa ao movimento político e intelectual chamado “neoliberalismo”,
produziu, no caso da política antitruste brasileira, novos objetos que deveriam ser
governados: os “mercados”, como explico no terceiro capítulo.
Como percebi ao final do meu mestrado, estas perguntas não eram abordadas pelos
estudos porque elas eram irrelevantes nas perspectivas adotadas pelos trabalhos de
ciências sociais até então realizados sobre a política antitruste. Em primeiro lugar, esses
trabalhos impõem implicitamente um modelo de funcionamento a organizações estatais,
de acordo com o tipo-ideal weberiano de burocracia, que transforma o trabalho de
certos profissionais, grande parte das práticas rotineiras da administração pública e dos
artefatos produzidos e circulados nelas, meros detalhes. As pesquisas, sem exceção,
privilegiam a descrição das trajetórias, as associações políticas e acadêmicas dos
funcionários de órgãos antitruste que estão no topo da hierarquia burocrática, isto é,
conselheiros, presidentes ou chefes de departamentos, tornando apenas estas pessoas,
aquilo que eles decidem e pensam como parte da investigação sociológica. Como
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A única exceção são os relatos anedóticos escritos por economistas ou advogados sobre o processo
investigativo de casos no livro de Fox e Crane (2007).
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consequência, no caso do CADE, por exemplo, assume-se implicitamente que cerca de
outros 343 profissionais irão apenas seguir ordens e procedimentos acordados pelo topo
da hierarquia.
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bacharéis em direito ou em economia, como se poderia supor. Durante meu trabalho de
campo conheci formados em psicologia, geologia e relações internacionais, sem
formação universitária em direito ou economia da concorrência, que analisavam casos
por meio de procedimentos, técnicas e conceitos aprendidos no próprio trabalho.
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O trabalho de campo que gerou esta tese foi motivado pela percepção de certas
limitações empíricas e teóricas dos estudos históricos e sociológicos sobre o modo
como um órgão antitruste exerce sua função de “defender a concorrência”. Sendo assim,
em agosto de 2012, como explico detalhadamente no capítulo 2 desta tese, um mês
antes do cinquentenário do CADE, visando observar a forma pela qual os profissionais
da autarquia analisam e interpretam os casos com que trabalham, obtive acesso ao
gabinete de um dos conselheiros do Tribunal Administrativo e, posteriormente, em
março de 2013, à sala de uma das coordenações da SG. Além da observação do trabalho
dos funcionários desses dois setores durante um ano, de conversas e entrevistas com
eles e da atuação como “analista técnico” instruindo processos por um curto período,
acompanhei também as sessões de julgamento do Tribunal Administrativo, abertas ao
público, entre março de 2012 e agosto de 2013. Além da descrição das práticas
realizadas nesses locais, utilizo como material etnográfico também os autos públicos
dos processos administrativos e artefatos comuns às práticas de conhecimento
performatizadas pelos funcionários, como documentos, tabelas e softwares. Também
procuro, por meio de artigos, livros e trabalhos especializados das áreas de direito e
economia, contextualizar os conceitos e as práticas adotados nesta política pública,
procurando entender seus usos e efeitos particulares sobre a atividade governamental e
aquilo que ela busca governar.
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decisões do órgão antitruste. Esta tese descreve estas práticas de conhecimento que
envolvem a mobilização de teorias econômicas e conceitos jurídicos, além de
procedimentos e artefatos específicos da administração pública brasileira,13 buscando
compreender como interagem no exercício da defesa da concorrência.
Nesse sentido, esta etnografia aborda um tema clássico nas ciências sociais: o modo
como a “economia”, os “mercados” e os sujeitos econômicos (homo economicus) têm
sido historicamente construídos por meio de projetos governamentais e legais (ver, p.ex.,
Agnew, 1986; Polanyi, 1944; Weber, 1922), instituindo um sistema de produção,
distribuição e circulação de mercadorias caro à ideologia econômica moderna (Dumont,
1977; Mauss, 1920; Weber, 1920). Essa tradição clássica da antropologia ou da
sociologia argumenta, contrariamente aos pressupostos de grande parte da ciência
econômica, que tais entidades não podem ser pensadas como resultados naturais,
derivados de estruturas e disposições humanas não sociais. Pesquisas mais recentes em
antropologia da economia continuam, em grande parte, adotando uma postura crítica à
teoria econômica, seguindo a mesma linha de argumentação, embora a questão
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13
Desde meados da década de 1970 nos Estados Unidos, quando as teorias econômicas passaram a ser
mais utilizadas para basear as decisões legais de casos antitruste, a “legalidade” tornou-se uma função dos
“custos e benefícios competitivos de uma conduta econômica particular” (McChesney, 1996, p. xiv). As
agências antitruste nos Estados Unidos tornaram-se uma nova oportunidade de trabalho para economistas
que auxiliam advogados a avaliar concentrações e condutas empresariais, observando se essas operações
promovem maiores ganhos de eficiência econômica nos mercados, maior bem-estar dos consumidores ou
mais inovação empresarial. Essa “economicização” do antitruste (Onto, 2009; Davies, 2010), descrita por
economistas como a “Revolução Antitruste” (Mattos, 2003), é vista pelos profissionais do ramo como um
progresso em direção à racionalização: uma análise econômica técnica deveria supostamente livrar a
política antitruste de influências políticas indesejadas e de julgamentos qualitativos e subjetivos. Este
desenvolvimento será abordado no capítulo 1.
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predominante não seja mais se o “econômico” é uma construção social, mas sim como
se dá essa construção.
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Muitos trabalhos de antropologia e sociologia da economia, inclusive aqueles que
lidam com o governo da economia, passaram a descrever como o conhecimento
econômico (teorias, formas de cálculo ou de mensuração), materialidades (documentos,
softwares, computadores) e os profissionais da economia (Neiburg, 2007) –
especialistas que lidam com questões econômicas, sobretudo os economistas 14 –
contribuem para a produção de objetos, como “mercados” (MacKenzie, Muniesa & Siu,
2007; Pardo-Guerra, 2013), “preços estáveis” (Holmes, 2014; Neiburg, 2006) e a
própria noção de uma “economia nacional” (Mitchell, 2002). Além disso, os estudos
descrevem como são produzidas subjetividades econômicas, como versões do indivíduo
calculador e maximizador no mercado financeiro (Zaloom, 2006) ou
“microempreendedores” em periferias urbanas (Elyachar, 2005). Os trabalhos
demonstram, desta forma, como o conhecimento econômico e as práticas a ele
associadas, governamentais ou não, constroem a realidade que supostamente, de acordo
com sua própria concepção científica, ele apenas descreve ou explica.
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estudos de performatividade, que apontam a fabricação daquilo que os profissionais da
economia dizem ser dado ou natural.
Uma das limitações de grande parte dos trabalhos e das etnografias que tratam da
economia é que eles costumam deixar de lado, ou tratar apenas brevemente, do papel do
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direito ou do conhecimento jurídico na regulação econômica. Segundo Annelise Riles
(2010), a literatura que tem destacado o papel das culturas epistêmicas na concepção e
na formatação da economia lida com o conhecimento jurídico como uma simples versão
do conhecimento econômico, um “outro processo de abstração que mascara sua própria
política” (Riles, 2010, p. 796).15 Para a autora, essa postura, pouco sensível ao caráter
particular do conhecimento jurídico e a maneira pela qual ele é entendido, é reforçada
ainda mais pela literatura dos estudos sociais do direito (socio-legal studies), a
sociologia e a antropologia do direito, que não se interessaria pelo conhecimento legal
em si, limitando-se a identificar as “forças sociais” que o utilizam em seu benefício
(Riles, 2011a) – as mesmas “forças sociais”, por sinal, descritas acima nos estudos
atuais sobre antitruste: a disputa por cargos, interesses econômicos, ideologias políticas,
entre outras.16
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15
Riles cita como exemplo o trabalho de Timothy Mitchell (2002).
16
Mariana Valverde (2007, p. 78) também critica a literatura de estudos sociais do direito norte-
americana: “In many studies, the effects of sociolegal events on law itself are almost ignored to the point
that relevant court decisions and statutes sometimes remain unread. Political and social causes, interests,
and effects are sometimes assumed to be the only objects worth studying. This bias is understandable
given the minority status of law-and-society scholarship vis-à-vis the tremendous volume of strictly legal
scholarship daily generated by blackletter lawyers; but it nevertheless distorts the field in that the ‘society’
part of ‘law and society’ ends up much better researched that the ‘law’ part”.
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Nesse conjunto de autores, o trabalho da antropóloga e jurista Annelise Riles
(2010a, 2011a) sobre a regulação do mercado financeiro japonês é particularmente
importante para esta tese, pois se concentra na descrição das tecnicalidades e
materialidades contratuais que tornam possível as trocas de ativos no mercado
financeiro. Seu trabalho preocupa-se com a maneira pela qual certas técnicas (como a
analogia), conceitos (como o de “colateral”) e artefatos (documentos) específicos do
conhecimento jurídico permitem aos reguladores reconhecer, receber, rejeitar,
transformar ou traduzir outras formas de conhecimento. Descrever o direito como um
conjunto de técnicas e materialidades possibilita ao etnógrafo, segundo Riles (2005),
evidenciar a “agência das formas legais”, ou seja, aquilo que faz do direito algo
específico, com efeitos singulares, embora sempre imerso em outras práticas de
conhecimento.
Esta etnografia enfatiza a utilização dos conceitos, das técnicas e dos artefatos
jurídico-administrativos específicos das práticas de conhecimento do antitruste. Estes
últimos, os artefatos ou documentos que permeiam todos os procedimentos realizados
pelo CADE, são parte importante do material etnográfico deste trabalho, pois é
principalmente a partir deles que a produção de conhecimento econômico e a
visualização de um problema concorrencial é possível. Esta tese descreve, em primeiro
lugar, como essas práticas jurídico-administrativas, associadas à ciência econômica,
performam a realidade, defendendo e garantindo a concorrência nos mercados.
Demonstro como técnicas, conceitos e artefatos jurídico-administrativos constroem
limites, recortando aspectos da “realidade econômica” (Riles, 2011a) e produzindo
“mercados” e “agentes” de um tipo particular, tendo em vista os propósitos da
legislação e da política antitruste. Descreve-se, portanto, como o direito e o Estado
governam, na prática, a concorrência, produzindo objetos e sujeitos econômicos e
jurídicos.
Entretanto, como procuro apontar ao longo dos capítulos, a relação entre as várias
práticas de conhecimento envolvidas na política antitruste também resulta em
importantes divergências interpretativas. Embora profissionais com formações distintas
costumem exercer as mesmas práticas analíticas e investigativas na instrução de
processos de matéria concorrencial, não necessariamente suas interpretações sobre as
práticas que realizam são idênticas. No decorrer dos capítulos descrevo como conceitos,
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técnicas e artefatos podem ser interpretados distintamente: como documentos, são
pensados ora como instanciações, ora como representações da realidade à qual eles se
referem (capítulos 2 e 3); como os “mercados”, são concebidos ora como representações
econômicas, ora como técnica jurídica (capítulo 3); como as “pessoas jurídicas”, que
enviam seus requerimentos ao CADE, são consideradas ficções jurídicas e, às vezes,
coincidentemente, também agentes econômicos reais dos mercados (capítulo 4).
A tese, portanto, não busca apenas descrever o modo como a economia – neste caso,
os “mercados”, os “concorrentes” e a “concorrência” – é construída, mas sim o que
ocorre, na prática, quando o conhecimento jurídico e administrativo e suas práticas são
utilizados na produção do conhecimento econômico necessário ao governo da economia.
Como os profissionais entendem a relação entre tais práticas, conceitos e artefatos e a
realidade que eles buscam governar? Quais são as confluências e as divergências
epistemológicas inerentes a essa forma de governar a economia? Dessa maneira,
seguindo a linha traçada por antropólogos que têm estudado a regulação ou o governo
da economia em outras esferas, procura-se descrever o modo como funcionários do
órgão antitruste constroem entendimentos sobre a realidade que eles administram,
atentando para a relação entre as práticas e os conceitos jurídico-administrativos e o
conhecimento econômico.
Organização da tese
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genealogia da política de defesa da concorrência no Brasil, explicando suas
características legais, institucionais e organizacionais. Procuro demonstrar neste
capítulo como atualmente a política antitruste no Brasil e no mundo é influenciada por
correntes do pensamento econômico neoliberal, que pressupõem que a concorrência nos
mercados não é dada, mas sim construída pelo Estado e pelas leis.
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compreendido como um contexto: em parte, como uma fronteira nativa das restrições
concorrenciais enfrentadas pelas empresas, mas sobretudo como um enquadramento
legal, necessário à aplicação da lei. Como dizem os funcionários do CADE, o mercado
é, ao mesmo tempo, um “espelho” das relações econômicas e um “filtro” da lei. Explico
como essa ambiguidade do conceito de mercado na política antitruste o distingue de
concepções mais comuns na teoria econômica e de perspectivas mais recentes sobre
mercados na antropologia e na sociologia.
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Apesar de descrever práticas, conceitos e artefatos que envolvem a análise de
variados tipos de processos administrativos de matéria concorrencial, privilegio a
descrição de procedimentos realizados na instrução de casos relativos a atos de
concentração, tendo em vista que, na época em que foi realizado o trabalho de campo, a
instrução desses processos era considerada mais urgente entre os funcionários do órgão
antitruste, como explico mais profundamente no segundo capítulo. Este tipo de processo
administrativo responde pela grande maioria dos processos instruídos pelo órgão
antitruste desde o início dos anos 1990 (Miola, 2014). Nas considerações finais desta
tese demonstro mais detalhadamente como essa opção moldou minha forma de
compreender a política antitruste. Vale mencionar também que ao descrever as práticas
de conhecimento do CADE, utilizo, com poucas exceções, nomes próprios modificados,
sem sobrenomes, para preservar a identidade das pessoas, embora nenhuma das práticas
ou informações citadas sobre os processos sejam confidenciais, ilícitas ou
desconhecidas por parte dos profissionais de dentro ou fora do Estado que lidam com a
política de defesa da concorrência diariamente.
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Capítulo 1 : A justiça e a eficiência da concorrência
“Quando empresas concorrem entre si, elas buscam ofertar bens e serviços de maior
qualidade e a preços mais baixos. O resultado dessa competição é o consumidor pagar
menos para ter acesso a uma maior variedade de produtos e serviços. Competitividade
estimula a inovação e o aumento de eficiência e de produtividade, além de gerar
oportunidade para empresas entrarem em um mercado e desenvolverem seus negócios.
Esses elementos contribuem para um ambiente econômico sadio, com geração de
crescimento para o país e bem-estar para a sociedade.”
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Figura 2: Website 50 anos (Fonte: www.cade.gov.br/50Anos/. Acesso em: 20 de janeiro de 2014)
“Sabe quem ganha com uma competição assim no mercado? Você, as empresas, o
Brasil”. A concorrência nos mercados não tem perdedores, dizia o cartaz; todos seriam
beneficiados: indivíduos, sociedades e a nação. O cartaz apresenta ainda uma sequência
temporal com datas importantes para o órgão e a política antitruste no país, iniciando-se
em 1945, com aquele que foi considerado o primeiro estatuto legal antitruste, a Lei
Malaia, e finalizando no ano de 2011, quando foi aprovada a mais nova legislação sobre
a matéria no Congresso. No site era possível ainda encontrar mais informações a
respeito do que é o CADE, o que ele faz, o seu percurso ao longo do tempo e as
alterações principais com a nova legislação. Sobre a “competição no mercado”, no
entanto, sabemos apenas que ela é benéfica, mas não se esclarecem quais seriam esses
benefícios nem como eles se produziriam.
! 24
político e econômico”, fornecendo um histórico dos “episódios que construíram a
política de defesa da concorrência que temos hoje” (CADE, 2013a, p. 16).17 Além de
apresentar as “conquistas” institucionais, como maior “eficiência da política no combate
às práticas ilícitas”, e as conquistas sociais logradas pela política, como, por exemplo, a
“difusão da cultura concorrência” e maior “reconhecimento da sociedade”, que teriam
ocorrido ao longo dos seus 50 anos de existência, o livro introduz as mudanças mais
recentes provocadas pela nova legislação. Essa apresentação institucional narra uma
história de sucesso, em que “desafios” são, no decorrer dos anos, “superados” com a
adoção de novas práticas administrativas, constantes aperfeiçoamentos legais e
crescentes recursos orçamentários. Pela narrativa apresentada, o leitor compreende que,
finalmente, 50 anos após a criação do CADE, pode-se dizer que o país conta com uma
política que defende de modo eficaz a concorrência nos mercados.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Ao longo desta tese incluo como nota de rodapé, quando necessário, as trajetórias profissionais e
intelectuais de funcionários e ex-funcionários do CADE, do mesmo modo como foram expostas pelo
sociólogo Iagê Miola na sua detalhada tese de doutorado de 2014. Em seguida ao nome de cada
profissional, Miola incluiu também, como se pode ver, a idade da pessoa, de acordo com dados públicos
ou por estimativas aproximadas. “Vinicius Marques de Carvalho, 30. A law graduate from USP law
school (2001), Carvalho held a joint PhD degree obtained from USP and University of Paris I – Pantheón
Sorbonne in commercial law, supervised by Calixto Salomão Filho, a competition lawyer and law
professor, and Eros Roberto Grau, an exponent of Brazilian economic law, and justice of STF. While an
undergraduate student, Carvalho was a member of the ‘PET-CAPES Sociology of Law’ group at USP,
supervised by José Eduardo Faria, and was Faria’s teaching assistant in 2002. Between 2001 and 2006,
Carvalho served in different political appointments connected to the Worker’s Party: at the city council of
São Paulo, in the House of Representatives of the state of São Paulo, and as a legal advisor in the Federal
Senate. In 2006, he became a federal public official in the career of “Specialist in Public Policies and
Governmental Management”. Between 2006 and 2007, he was an advisor of CADE’s president, Farina,
and between 2007 and 2008, he was the Chief of Staff of the Special Secretariat for Human Rights, an
organ connected to the Presidency of the Republic. After serving as a commissioner between 2008 and
2010, Carvalho was appointed Secretary of SDE, and in 2012 he became CADE’s president” (Miola,
2014, p. 300).
! 25
crescimento econômico e de “bem-estar” social. Mais do que um valor, um princípio
constitucional, portanto, que envolveria uma noção de justiça, nessa curta explicação a
concorrência, entendida como um estado ou uma característica dos mercados, ganha
uma justificativa econômica. Essas relações de causalidade, que não precisam de
maiores detalhamentos na publicação, parecem óbvias e necessárias, provavelmente de
fácil compreensão por leitores familiarizados com o tema.
! 26
atividade ou garantir um serviço público. A concorrência era entendida como forma de
organização mais eficiente (e justa) do que as organizações monopolistas estatais, ou
seja, era componente essencial de um argumento contra a interferência estatal nas
relações econômicas. Com o surgimento de grandes corporações e trusts nos Estados
Unidos na segunda metade do século XIX, os monopólios criados por agentes privados
tornaram-se aos poucos mais preocupantes para a opinião pública e para os juristas do
que aqueles criados pelo Estado.
Como explico neste capítulo, no fim do século XIX, nos países de economia já
industrializada, iniciou-se a implementação de um conjunto de políticas públicas e
estatutos legais que visavam promover ou preservar uma condição tida como ideal ou
ótima para o funcionamento dos mercados (Forgioni, 2013, p. 36): a concorrência.19
Esta condição ideal estava ameaçada não pelo Estado, mas pelas próprias empresas que
buscavam, para crescer, eliminar seus concorrentes por meio de acordos que
prejudicavam os consumidores. A partir do século XX, após a ciência econômica ter
avançado na conceituação mais detalhada da noção de concorrência e na explicação dos
seus benefícios (Dennis, 1977),20 a linguagem dos economistas tornou-se hegemônica
na justificação das políticas de defesa da concorrência existentes nos mais diversos
países. Essa linguagem econômica, considerada mais técnica pelos juristas, pois
supostamente isenta de valores morais, ajudou a fazer com que a concorrência passasse
a ser regulamentada para o “bem-estar da sociedade” e do sistema econômico (liberal)
que a caracterizava.
! 27
transformações legais, institucionais e organizacionais. Por fim, dou especial atenção ao
modo como a política antitruste, a partir do ano 1996 pelo menos, é explicitamente
elaborada e justificada, conforme a concepção do pensamento conhecido como
neoliberal, como uma forma não apenas de defender a concorrência, mas de construí-la.
“Multitudo emptorum concurrentium plus uno tempore, q alio, & maiori aviditate, facit
pretium accrescere: emptorum vero raritas facit illud decrescere.” [Uma maior
concorrência entre compradores fará aumentar os preços, mas uma demanda mais rara
os reduzirá].
Segundo a jurista Paula Forgioni (2013), na Grécia antiga era comum a instituição
de “monopólios” públicos (ou estatais) pelas cidades-estados, visando garantir a oferta
de determinados produtos, um abastecimento de mantimentos relativamente estável nas
cidades e uma maior arrecadação de impostos.22 Monopólios privados, formados por
comerciantes, não eram necessariamente proibidos, mas certas atividades comerciais
eram regulamentadas buscando evitar a escassez de produtos de primeira necessidade,
especialmente de grãos e cereais, entre a população.23 Similarmente, na Roma antiga,
monopólios estatais também eram comuns, tais como o monopólio do sal, que garantia
boa parte da receita do Império. Havia também em Roma a tentativa de evitar que
comerciantes cometessem abusos contrários aos interesses da população em geral, como
o açambarcamento de mercadorias – a acumulação de mercadorias em grande
quantidade para provocar a sua falta nos mercados e vendê-las depois por um preço
mais elevado – ou a fixação de altos preços entre os vendedores. Essas práticas eram tão
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
Citado em De Roover (1955).
22
Forgioni (2013, p. 37), citando o economista Fritz Machlup, afirma que a palavra “monopólio” foi
utilizada pela primeira vez na obra Política, de Aristóteles, em 347 a.C., no sentido de um monopólio
privado, quando discorria no texto sobre pessoas que instituíam monopólios de lagares e de ferro, para
depois revendê-los com lucro mais elevado em tempos de alta demanda.
23
Diz-se que o comitê executivo do Senado de Atenas em 386 a.C. teria julgado aquilo que seria o
primeiro caso “antitruste” da história, decorrente de uma acusação de que comerciantes “estariam
comprando grãos e se recusando a vendê-los ao público em tempos de guerra, estocando mais do que
seria lícito e revendendo quando os preços estavam altos em tempos de paz” (Forgioni, 2013, p. 39).
! 28
frequentes que deram origem ao Édito de Zeno, do ano 483, considerado por muitos o
primeiro diploma legal a regulamentar e proibir certos acordos entre comerciantes.
As corporações de ofício criavam regras de conduta entre seus membros para que a
atividade de um não prejudicasse a de outro. Proibia-se, por exemplo, o fabrico de um
novo produto não acordado previamente, a abertura de lojas ou oficinas com distância
próxima às de outros, a publicidade e a difamação da imagem do outro vendedor e de
seu produto (Forgioni, 2013, p. 48). A vigilância e a coordenação entre seus membros,
com possíveis punições nos casos de desvios de conduta, constituíam uma
regulamentação privada da concorrência, acabando por uniformizar o preço, a
quantidade e a qualidade dos produtos vendidos. Essa atuação monopolista, em que
qualquer um que não fosse parte da corporação poderia produzir ou vender um
determinado produto, causava apreensão entre governantes de cidades como Florença,
Veneza e Verona.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
“[...] entre esses tipos de monopólios figura, em primeiro lugar, aquele de cunho da moeda, sempre
considerado uma regalia. Na Lombardia, aqueles que procuravam ouro nas areias dos rios do Vale
Padano eram obrigados a vender todo o metal à câmara real de Pavia por preço estabelecido pelo próprio
comprador, ou seja, tinha-se o autêntico monopólio de compra do produto” (Forgioni, 2013, p. 42).
! 29
categorias profissionais poderiam obter (Forgioni, 2013, p. 46). Uma das formas
encontradas para reduzir o monopólio de comerciantes foi a realização de feiras em
determinados espaços circunscritos da cidade, as “praças do mercado”, onde a compra e
venda de mercadorias era realizada num horário predeterminado e os comerciantes eram
obrigados a vender toda a sua mercadoria antes do final da feira. Isto induzia os
comerciantes a reduzir seus preços para acabar com os estoques, evitando ter seus
produtos confiscados. O conjunto dessas regulamentações também foi acompanhado
pelo início de uma reflexão mais profunda de certos pensadores sobre a “justiça nas
trocas comerciais” (Dennis, 1977).
! 30
latim) assumiu outros significados, aproximando-se do conceito jurídico de “preço
justo”.
Até o fim do século XV, o verbo competo, em latim, tinha um sentido relativamente
neutro, denotando em certas circunstâncias simultaneidade, reunião, paralelismo,
coincidência ou acordo (Agnew, 1986, p. 38), e era utilizado para caracterizar eventos,
causas, condições abstratas ou pessoas (Dennis, 1977, p. 4). Atualmente, o verbo inglês
to concur e o substantivo concurrence mantêm praticamente esse mesmo sentido
original. Mais relevante, o verbo competo, assim como o verbo concurro também eram
utilizados na prática jurídica romana para descrever o ato de peticionar uma causa legal
ou de contestar um caso, o que, segundo Dennis (1977), indica uma prática voltada à
solicitação ou ao requerimento por justiça. Tal noção pode explicar uma relação prévia
com a de “preço justo”. Essas raízes latinas foram mantidas em várias línguas
românticas, como o português, o espanhol e o francês, com pequenas variações.25 A
noção de competência, tanto nesses idiomas quanto no inglês, que compartilha a mesma
raiz da palavra competição, teria surgido posteriormente, quando tanto a palavra
concorrência quanto a palavra competição passaram a ter um sentido de associação
conflituosa ou antagonista. O competente ou o competitivo passou a ser aquele que
sobrevive à concorrência ou competição.
Como explica Dennis (1977), a partir do século XVI, na Espanha, o verbo concurro
passa a ser utilizado no sentido de “correr em conjunto”, ganhando contornos de
“oposição” ou “luta”, como exemplificado na citação que inicia esta seção. O “século de
ouro” espanhol gerou uma série de tratados sobre assuntos econômicos, promovendo
outros termos para denominar relações antagonistas nos mercados das cidades ou entre
as próprias cidades, tais como “rivalidade” ou “emulação”. Porém, essa literatura, ainda
escolástica na sua essência, não produziu nenhuma reflexão mais profunda sobre o
conceito de concorrência. O século seguinte não mudou radicalmente essa situação, mas
seus pensadores passaram a se interessar por questões que iam além das fronteiras das
praças de mercado (marketplaces) nas cidades.
! 31
Estados-nações europeus. Os tratados “mercantilistas” desse período voltavam-se à
política comercial, à troca internacional e à regulação das moedas nacionais. 26
Acreditava-se que a acumulação de metais preciosos, como o ouro e a prata, decorrente
de balanças comerciais positivas, seria responsável pela riqueza de uma nação. A
utilização de certas concessões no comércio colonial, na forma de monopólios estatais,
passou a ser uma ferramenta para a obtenção desse resultado. Segundo Dennis (1977, p. 27):
It was in this context that the status of the incorporated company, a medieval
form of business organization which had risen to prominence as a response to
the new pattern of overseas trade, came to be scrutinized as an instrument of
national economic policy. Initially set up to overcome the huge financial
hurdles of raising large sums of capital for risky ventures, and vested with
special powers and privileges by the governments which created them, they
often proved to be a lucrative source of public revenue to those selfsame
central governments, but as time wore on their status as "monopolies" with
monopoly power both at home and in markets abroad became more and more
the central issue under discussion.
! 32
“restringiam a liberdade de comércio”, o que não significa neste caso a ausência de
concorrência. Mais do que isso, nesse período, não se pode dizer que havia qualquer
associação entre as noções de liberdade (freedom e liberty) com aquela de concorrência
ou “emulação” (emulation), noção esta utilizada como sinônimo. Não havia nenhum
contraste entre monopólio e concorrência, pois eram os monopólios que possibilitavam
a força competitiva das nações.
Além disso, uma outra associação com a noção de concorrência já começava a ser
traçada no final do século XVII, livrando-a aos poucos de conotações mais negativas.
Autores como William Petty, que realizavam pesquisas empíricas, sugeriam que uma
maior variedade de produtores poderia gerar efeitos estimulantes sobre o progresso das
“artes”, no caso, as técnicas produtivas. Num estudo realizado por outro autor, Sir
Josiah Child, chegou-se à conclusão de que pescadores da costa de Newfoundland, após
terem eliminado todos os seus rivais comerciais, ficando assim “livres daquela
concorrência” (freed from that competition), logo se tornaram “preguiçosos” (lazy). A
concorrência passou a estar associada a uma situação de “eficiência econômica” ou
“eficiência produtiva”, que daria base futuramente para teorias econômicas mais
complexas sobre a relação entre características das trocas e resultados econômicos.
Como se pode ver, até o início do século XVIII a noção de concorrência, embora tenha
ganhado um sentido de rivalidade, não tinha uma definição contrastante com a ideia de
monopólio, entendida como uma forma de organização da produção econômica. Mesmo
aproximando-se de noções de justiça, tal como a de “preço justo” e de eficiência
produtiva, a concorrência era utilizada sobretudo para indicar a rivalidade entre nações e
não entre indivíduos.
! 33
1.2. A concorrência livre e natural
“C’est la concurrence qui met un prix juste aux marchandises, et qui établit les vraies
rapports entre elles.”
(Montesquieu, 1748).27
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
27
Montesquieu apud Dennis (1977).
! 34
Essas poderosas reinterpretações, que aproximavam das noções de concorrência ou
emulação certas preocupações sobre aquilo que motivava o comportamento humano, na
forma de “paixões” ou “interesses” (Hirschman, 1977), tiveram uma recepção
importante do outro lado do Canal da Mancha, após uma série de traduções dos
pensadores ingleses terem sido feitas no período. A afirmação, “c’est la concurrence qui
met un prix juste aux marchandises, et qui établit les vraies rapports entre elles”, não
muito bem contextualizada no livro de Montesquieu, mostrava a influência dos autores
ingleses no pensamento francês do período. Por causa de autores como François
Forbonnais, a França acabou dando certos contornos inovadores à história do conceito.
Entre muitas obras produzidas, Forbonnais, um importante e bem-sucedido industrial
francês, foi convidado a escrever o ensaio e o verbete Concurrence na Encyclopédie
organizada por Diderot e D’Alembert em 1753. Neste texto, que se transformou em
uma referência no período, o autor estabelece que a concorrência é a verdadeira
essência da liberdade econômica: “la concurrence est l’âme & l’aiguillon de l’industrie,
& le principe le plus actif du commerce [...] elle est la base principale de la liberté du
commerce” (citado em Dennis, 1977, p. 69). Tal relação entre as noções de liberdade e
de concorrência acabou se tornando corrente entre os vários autores franceses do
período.
! 35
A fisiocracia foi um movimento intelectual de pensadores sociais franceses que
afirmavam que a riqueza das nações provinha única e exclusivamente da renda da terra.
Apenas a produção agrícola seria, para eles, geradora de riqueza, de valor econômico, e
não a produção industrial ou as trocas comerciais. Esta teoria, promovida, entre outros,
por François Quesnay, questionava diretamente aquela proposta por autores
mercantilistas, para os quais a riqueza seria gerada por meio de metais preciosos
acumulados com uma balança comercial positiva no comércio internacional. Para os
fisiocratas, o comércio entre nações, assim como entre indivíduos, é uma troca ou
“transferência de equivalentes”, sem qualquer ganho ou perda entre as partes. Por isso,
não há justificativa para disputa conflituosa de vantagens comerciais entre os países,
como propunham os mercantilistas. O comércio livre de barreiras entre as nações era
vantajoso para todos, visto que promoveria a produção de “recursos naturais” (produtos
agrícolas), estes sim capazes de gerar riquezas.
! 36
É com base nessa extensa produção intelectual francesa e naquela produzida alguns
anos antes por Tucker, Hume e outros na Grã-Bretanha que o escocês Adam Smith
desenvolve uma grande síntese do pensamento econômico e político de sua época.
Embora Smith não tenha feito à noção de concorrência nenhuma elaboração adicional
àquela desenvolvida por estes autores, a utilização de tal noção como um “princípio
conector” (Dennis, 1977, p. 88) de todos os seus argumentos torna inevitável examinar
seu trabalho. Além disso, como demonstrou Michel Foucault (2007b), a relevância de
suas ideias, que foram fundantes do liberalismo econômico, consiste na elaboração de
novo modo de se conceberem as relações econômicas e também de governá-las. A
noção de concorrência surge, portanto, não apenas como a descrição de uma
característica da vida econômica, mas como uma noção que impõe e ilustra os limites
naturais do soberano.
Assim como os franceses, Smith também utilizou nesta obra a noção de free
competition sem que desse qualquer explicação sobre o que ele entendia como relação
entre liberdade e concorrência (Dennis, 1977). Porém, ao mesmo tempo, usou o termo
referindo-se mais explicitamente do que o faziam os fisiocratas à concorrência entre
indivíduos. Curioso é que, ao contrário do que muitos imaginam, Adam Smith não
afirmou explicitamente em seus escritos que a concorrência deveria ser tomada como
um princípio que governaria o comportamento econômico. A concorrência seria apenas
a consequência ou o efeito de um “Sistema de Liberdade Natural”, sistema este que
possibilitaria a todo indivíduo exercer o “esforço natural” de melhorar sua própria
condição. Em nenhuma ocasião, segundo Dennis (1977), a concorrência é citada em
seus textos como uma forma de lei universal, absoluta ou imutável.
! 37
Da mesma forma que os fisiocratas, Smith entende a concorrência entre indivíduos
nos mercados ou nas trocas comerciais segundo um papel equilibrante ou regulador.28
Por meio de vários exemplos na sua principal obra, Smith mostra como a concorrência
permitiria que os preços, os custos ou as rendas alcançassem seu patamar “natural”, o
que seria vantajoso para mais produtores e, por isso, para a própria nação.
Diferentemente dos fisiocratas, para Smith, a fonte da riqueza estava no trabalho. Era o
trabalho que gerava valor, fosse ele o trabalho agrícola ou não. Assim, além da
agricultura, tanto o comércio quanto a indústria podiam ser produtivos, geradores de
riqueza, pois eles também seriam capazes de promover a divisão do trabalho.29 Quanto
maior a concorrência, maior o incentivo para a especialização e, portanto, para a
geração de riqueza. Mais que uma forma de relação, na obra de Smith, a concorrência
surge como uma intensidade, um tempero, que permitiria a expressão de
comportamentos humanos direcionados à crescente eficiência produtiva.
[...] where the competition is free, the rivalship of competitors, who are all
endeavoring to justle one another out of employment, obliges every man to
endeavour to execute his work with a certain degree of exactness. […]
Rivalship and emulation render excellency (Smith, 1779, p. 421).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
O termo mercado é usado como sinônimo de comércio de mercadorias, não tendo nenhum sentido mais
específico nesse momento que mereça atenção. Sobre o desenvolvimento do conceito de mercado, ver
capítulo 3.
29
Uma das explicações para o sucesso estrondoso de sua obra é o fato de que sua teoria foi capaz de
mostrar a “produtividade” de todas as atividades econômicas de seu tempo, atividades que disputavam a
influência nas decisões políticas. Talvez a única exceção sejam os grandes empresários, as corporations
ou os monopólios, criticados diversas vezes em sua obra.
! 38
Esse caráter de coação e coerção da concorrência entre indivíduos é o que permite a
Smith explicar seus benefícios em contraste com situações de monopólio. A
concorrência tinha um efeito disciplinador e econômico, de coagir os homens a
produzirem mais e melhor, algo que monopólios sempre impediam, como Smith ilustra
dezenas de vezes nas suas obras.30 É importante frisar que os monopólios criticados por
ele e por outros liberais do período eram principalmente aqueles organizados e
regulados pelos Estados nacionais, e não monopólios essencialmente privados que só
surgiriam com maior intensidade no século seguinte. A concorrência irrestrita era vista
como um contraponto à forma de organização da produção e do comércio promovida
pelos Estados nacionais coloniais. Por isso, o conceito de concorrência, agora com um
sentido expandido e enaltecido, tornou-se uma argumento econômico poderoso contra o
pensamento mercantilista e os monopólios por eles impulsionados.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
30
“Todos os monopólios são extremamente nocivos. A riqueza de um Estado consiste nos preços baratos
das provisões e de todas as outras coisas necessárias ou que atendam às comodidades da vida, ou seja,
importa considerar qual a relação que guardam com o dinheiro que é pago por elas, tendo em vista a
quantidade de dinheiro existente no país ou, em outras palavras, aquele dinheiro com o qual podem
facilmente ser obtidas. A pobreza de um Estado, ao contrário, consiste na inacessibilidade ou dificuldade
com que são obtidas as várias coisas necessárias à existência. Ora, evidentemente todos os monopólios
tendem a promover a pobreza ou, o que é a mesma coisa, a inacessibilidade à coisa monopolizada. Assim,
por exemplo, se alguém obtiver o privilégio exclusivo para fabricar e vender toda a seda do reino, este
alguém elevará significativamente o seu preço, já que ele será o único a produzi-la. Reduzirá,
provavelmente, a uma décima parte a quantidade atualmente consumida, e elevará o preço
aproximadamente nesta mesma proporção, com o que conseguirá um grande lucro com menor gasto de
materiais e trabalho do que se muitos outros tivessem a liberdade que ele tem. É assim que se elevam os
preços das mercadorias, e ao mesmo tempo diminui a quantidade das coisas necessárias, dos ornamentos
ou comodidades, de modo que tudo se torna duplamente menos acessível do que antes. Consequências
más como estas decorrem de todo e qualquer monopólio” (Smith, 1763, p. 67).
31
Para Smith, o mercantilismo representava uma barreira artificial na convergência de “preços de
mercado” e de “preços naturais”, estes últimos gerados pela concorrência.
! 39
“mecanismos de segurança ou [...] intervenções estatais com o objetivo de assegurar a
segurança dos fenômenos naturais dos processos econômicos ou processos intrínsecos à
população”. A concorrência, como um fenômeno natural, produziria resultados
melhores se não sofresse intervenções do governo. Nesse sentido, a concorrência não é
apenas uma tendência, mas expressa uma forma mais racional e econômica de regular
ou governar, ignorada pelo mercantilismo.32
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
Burchell (1996, p. 22) explica a interpretação foucaultiana de Adam Smith desta forma: “Laissez-faire
is here both a limitation of the exercise of political sovereignty vis-à-vis the government of commercial
exchanges, and a positive justification of market freedom on the grounds that the State will benefit more
– will become richer and more powerful – by governing less”.
! 40
pressupunha e reduzia a noção a uma série de critérios lógicos e matemáticos (ver
capítulo 3).
A crítica liberal aos monopólios estatais permaneceu uma constante até meados do
século XIX. No entanto, a partir dessa época, principalmente nos Estados Unidos, o
entendimento sobre as grandes empresas que controlavam o comércio de determinados
produtos começou a se transformar. Se os monopólios eram antes criações do Estado
regulamentadas por leis, eles passam então a ser vistos como efeitos próprios dos
mercados (Barkan, 2013). A preocupação com monopólios privados, que veio a
substituir aquela anterior com os monopólios públicos, ocorreu de forma mais evidente
e radical nos Estados Unidos, dando origem a uma política pública voltada
exclusivamente para garantir a concorrência nos mercados.
Até esse momento as corporações eram formas que o Estado norte-americano tinha
de conceder à exploração privada certos serviços públicos, como serviços bancários,
construção civil, obras de saneamento e de infraestrutura de comunicação. As
corporações, que atuaram como monopólios nos mais diversos governos coloniais, eram
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
33
Senador Sherman apud Farina (1990, p. 460).
! 41
agora utilizadas para facilitar o investimento em determinadas áreas consideradas
essenciais e que só receberiam investimentos caso a empresa tivesse um controle
exclusivo sobre a atividade, isto porque seus custos eram muito altos. Essas entidades,
que eram criadas unicamente pelo Estado por meio de documentos oficiais (charters),
passaram a ser autorizadas a existir de forma independente do governo por meio de “leis
de incorporação” (incorporation laws) instituídas separadamente pelos estados da
federação. A partir de 1790 foram criadas corporações religiosas e escolares e, em 1811,
o estado de Nova York permitiu a criação de corporações de manufaturas. Até a
Primeira Guerra Mundial todos os estados norte-americanos já tinham leis similares
(Barkan, 2013).
! 42
eliminavam a concorrência entre elas. As corporações fixaram as tarifas de utilização
das ferrovias constituindo um “cartel” (Forgioni, 2013). Tais condutas empresariais
foram condenadas num caso que chegou à Suprema Corte norte-americana, criando a
necessidade de instituir formas de regulação e legislação federais para lidar com
práticas corporativas que se estendiam para além das fronteiras dos estados. Entre
algumas regulações estabelecidas estava o Interstate Commerce Act, que procurou
limitar a imposição de tarifas elevadas e tornar o preço “justo” e “razoável” (Barkan,
2013, p. 58)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
34
Forgioni (2013, p. 71) cita P.S. Atiyah: “In the mid-nineteenth century, the idea that competition was a
‘natural law’ received a powerful impetus from the writings of Charles Darwin, and the use to which they
were put by Herbert Spencer. Darwin’s Origin of Species was first published in 1859, and it was (as he
himself acknowledged) much influenced by Malthus and also by Spencer. Applying the ideas of Malthus
to the whole animal and vegetable kingdom and combining them with the concept of the social struggle
! 43
entanto, era contrária aos trustes, exigindo uma reação imediata por parte do governo
federal para que fossem retirados seus “poderes”. Intensas campanhas publicitárias
foram realizadas procurando mostrar a imoralidade dos trustes.35 Como dizem Fox e
Sullivan (1990, p. 63): “the term trust came to denote more than a specific legal device
for corporate combination. It was a catchphrase in a public debate over the course of
economic growth and the distribution of wealth”.
A opinião pública era tão contrária aos trustes que nas eleições presidenciais norte-
americanas de 1888 todos os candidatos se posicionaram igualmente a favor de medidas
que impusessem um freio a essas associações. O presidente Harisson é eleito e o projeto
de lei do senador Sherman é aprovado no ano seguinte. Surge, em 1890, o Sherman
Antitrust Act, que proibia as restrições de comércio, como a prática de cartel, e a
monopolização do comércio interestadual e exterior. Apesar de sua importância,
considerada junto com o Act of Prevention and Suppression of Combinations Formed in
Restraints of Trade, do Canadá (1889), os marcos iniciais da legislação da matéria no
mundo,36 a lei não abarcou aquilo que mais preocupava a população norte-americana: as
concentrações empresariais que, quando não monopolizavam completamente os
mercados, criavam conglomerados grandes o suficiente para reduzir a concorrência e
prejudicar pequenos empresários.37 Como conta Forgioni (2013, p. 73), a investigação
federal sobre um suposto money trust deixou a opinião pública ainda mais exaltada.
Descobriu-se que o grupo bancário Morgan “detinha trezentas e quarenta e uma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
for survival propagated by Herbert Spencer, Darwin had hit upon the theory of natural selection […] the
phrase, ‘the survival of the fittest’ which was used by Darwin was, in fact, borrowed by him from Herbert
Spencer, who had previously used it in a description of the social struggle which takes place among
mankind”.
35
A quantidade de cartoons em jornais da época que ilustram o poder dos trustes é um fator
representativo desse movimento social fortemente contrário às associações empresariais.
36
O surgimento de legislações de defesa da concorrência no mundo não foi coincidente em todos os
países, como podemos observar: (i) entre 1890 e a 2ª Guerra: Canadá, EUA e Austrália; (ii) do período
pós-2ª Guerra até o início dos anos 80: Alemanha, Comunidade Econômica Europeia (CEE), Reino
Unido, Japão, Suécia, França, Brasil, Argentina, Espanha, Chile, Colômbia, Tailândia, Índia, África do
Sul e Paquistão; (iii) nos anos 80: Quênia, Sri Lanka e Coreia; (iv) e a partir dos anos 90: Rússia, Peru,
Venezuela, México, Jamaica, República Tcheca, Eslováquia, Costa do Marfim, Bulgária, Cazaquistão,
Polônia e outros (Oliveira & Rodas, 2004).
37
A política antitruste surge nos países europeus, com exceção da Áustria, somente após a Segunda
Guerra Mundial, quando o Plano Marshall, de reestruturação econômica e financeira, promovido pelos
EUA, exigiu a implementação de legislações antitruste. Mesmo assim, a adoção de políticas antitruste na
Europa, embora cada vez mais similares às de outras partes do mundo, foi realizada de acordo com
características próprias de sua história política e econômica que implicavam uma maior intervenção
estatal na economia e uma menor restrição a fusões empresariais. A Alemanha constitui o melhor
exemplo de como essa influência sofreu adaptações na Europa, de modo que seu sistema político-
institucional de concorrência serviu de modelo tanto para os demais países europeus (inclusive a
Comissão Europeia) quanto para países como Japão, Canadá e Coreia do Sul (Monteiro, 2002).
! 44
diretorias em cento e doze companhias, cuja riqueza agregada era três vezes superior ao
valor de todas as propriedades imobiliárias e pessoais da Nova Inglaterra” (p. 73).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
38
Posteriormente, outros institutos legais foram aprovados, visando fortalecer as medidas antitruste, como
o Robinson-Patman Act (1936), que trata da discriminação de preços (cobrança variada de preços entre
compradores) e o Celler-Kefauver Act (1950), que reforça dispositivos do Clayton Act a respeito de
fusões.
39
Segundo Waller (2001), embora o Sherman Act tenha sido promulgado exatamente no mesmo ano que
o economista Alfred Marshall, professor da Universidade de Cambridge, publica o livro seminal da
economia neoclássica, Principles of Economics (1890), não se pode dizer que a ciência econômica do
final do século XIX tenha tido qualquer influência relevante sobre a formulação da lei ou sobre os
inflamados discursos populares.
40
Peritz (1996) explica que a noção de concorrência tinha conotações ao mesmo tempo positivas e
negativas nos debates congressuais que levaram à adoção de legislações antitruste.
! 45
antitruste, e mais das especificidades da “cultura industrial e política” norte-americana
(Dobbin, 1994), que via nas grandes corporações uma afronta aos pequenos
empreendimentos que seriam a sustentação da liberdade individual.
! 46
predominante nas decisões administrativas e jurídicas sobre antitruste costumava ser
aquela das práticas de administração de empresas, uma “linguagem dos negócios”
(business language), segundo Weller (2001). Essa linguagem, e não a da ciência
econômica, era a mais conhecida pelos empresários que se defendiam e pelos
advogados que os representavam nos vários casos antitruste do pós-Primeira Guerra. O
uso não muito frequente da teoria econômica nos primeiros anos de funcionamento da
política antitruste norte-americana também se deve ao fato de que os economistas do
país não estavam particularmente interessados nas questões microeconômicas, ou seja,
no estudo de mercados e do comportamento de empresas (“firmas”) singulares, e
também porque o antitruste não era considerado uma área de especialização para esses
profissionais.
A partir dos anos 20, portanto, e mais intensamente a partir da Segunda Guerra
Mundial, o estudo dos setores, das indústrias ou dos mercados feitos pelos economistas
passou a embasar o argumento tanto da ação governamental quanto das partes
envolvidas nos processos antitruste. Como alguns conceitos correlatos da teoria
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
43
Segundo o jurista Thurman Arnold, no período da crise de 1929: “The public discovered that ‘sound’
business thinking had been mostly superstition” (apud Waller, 2001).
! 47
econômica estavam inseridos no corpo dos textos legais, os juízes eventualmente
consultavam economistas para formular suas decisões. Quando se poderia intervir ou
não, seja nos trustes, seja em outras formas de associações empresariais, ou em
condutas como cartéis, passou a depender de argumentos teóricos e empíricos
desenvolvidos por economistas. Segundo Kovacic e Shapiro (2000, p. 43):
! 48
varejista. A maior ou menor presença de concorrentes, as técnicas de produção, as
características daquilo que se produzia e dos consumidores do mercado eram fatores
que deveriam ser levados em consideração, caso a caso, setor por setor, na decisão
governamental de punir ou proibir concentrações e condutas empresariais. Essa
necessidade de estudar mercados específicos, da forma mais empírica que fosse possível,
explica a dificuldade que a política antitruste e os estudos de OI tinham de utilizar
conceitos e hipóteses muito abstratos e matemáticos de algumas vertentes da teoria
econômica.
! 49
“estruturais” da concorrência, implicava decisões do órgão antitruste que tendiam
sempre a manter ou mesmo a aumentar o número de empresas concorrentes. Por isso,
suspeitava-se principalmente das fusões, das aquisições e de outras uniões contratuais
nos mercados que reduziam sempre o número de concorrentes de um mercado. Esta
vertente da economia predominou na política antitruste até o fim dos anos 1960, visto
que muitos economistas vinculados a ela passaram a trabalhar nas agências antitruste.
Esse período foi caracterizado por uma série de litígios antitruste nas cortes norte-
americanas, sendo o FTC quase sempre vitorioso no combate às fusões empresariais.
! 50
fusão empresarial. Como não era muito difícil encontrar argumentos de ganhos de
eficiência em fusões, o espaço de atuação dos órgãos antitruste se tornava, de acordo
com esta perspectiva, muito reduzido.44
American antitrust policy had been used to pursue various political and moral
goals, from defence of small businesses, to ensuring public accountability of
cartels and monopolies, to redistributing wealth, to attacking organized crime.
These were all abandoned in less than a decade, as the Chicago definition of
efficiency was recognized as the only coherent objective. The outcome of
this transformation is a virtually unchallenged authority for neo-classical
economic logic in the decision-making procedures of US antitrust authorities
and the courts.
! 51
pelos economistas e juristas que agora tinham mais influência sobre a política (Davies,
2010). O critério da eficiência era tido como isento de quaisquer fundamentos políticos
ou morais que pareciam impregnar as antigas decisões influenciadas pela Escola de
Harvard. Segundo a jurista Paula Forgioni (2013, p. 173), uma crítica dessa nova
abordagem, a escola de Chicago “baseia-se no tecnicismo”, pois entende que as
decisões tomadas a partir de seus pressupostos “derivariam de opções [...] racionais e
neutras”. Para ela, “Trata-se de ‘ofensiva de neutralidade a política’, baseada na lógica
do economicismo e na pressuposição (inegavelmente política) de que os mercados
devem ser conduzidos conforme suas próprias e irrevogáveis leis” (p. 173).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
47
Entre os professores estavam Edward Levi, Milton Friedman, Wilber Katz, Frank Knight e o austríaco
Friedrich Hayek.
48
“O modelo chicaguiano de pensamento é, acima de tudo, positivista e procura distanciar do direito
aquilo que poderia desestabilizá-lo. Para a Escola de Chicago, a certeza e segurança demandam o
afastamento dos elementos que não levam à eficiência alocativa e que comprometem o grau de
! 52
e ex-conselheiro do CADE Luiz Fernando Schuartz resumem bem o argumento a favor
da utilização da teoria econômica para dissipar incertezas e ambiguidades legais. Para ele:
! 53
que desde os anos 1990, com o início da administração Clinton, houve na prática
antitruste uma “síntese pós-Chicago” (Davies, 2010), em que tanto argumentos de
Harvard quanto de Chicago são colocados lado a lado na avaliação de concentrações e
condutas empresariais. Isto significa que critérios como o número de participantes num
mercado e a eficiência das práticas são levados em consideração por juízes, economistas,
advogados e demais funcionários das agências governamentais. Outras teorias
econômicas mais recentes, como a teoria dos jogos, a teoria dos contratos e as teorias de
custos de transação, auxiliadas por modernas técnicas econométricas (estatísticas),
também reforçaram a multiplicidade de abordagens e técnicas econômicas utilizadas no
antitruste norte-americano. Embora tenha perdido hegemonia entre os argumentos que
justificam decisões antitruste, a escola de Chicago teve um papel fundamental na
consolidação do uso do pensamento econômico na política e na inserção dos
economistas nas agências norte-americanas.
A presença necessária dos economistas, dentro e fora das agências, indica o quanto
a teoria econômica, periférica no início do século XX, passou para o centro das
justificativas da existência da própria política e para o centro dos argumentos
formulados pelas partes de um processo judicial nas cortes dos Estados Unidos. Os
economistas e alguns juristas, ao redefinirem aos poucos o antitruste como uma política
que tem o objetivo de gerar e manter a concorrência ou aumentar a eficiência
! 54
econômica, ao invés de um modo de defender o consumidor, as pequenas empresas ou
combater o poder dos trustes, acabaram por vincular essa forma de governo a
pressupostos caros à ciência econômica. A teoria econômica moderna, ao focar nos
incentivos, no comportamento das empresas, no modo como elas decidem e fazem
escolhas, propicia um amplo conjunto de argumentos para justificar as decisões
antitruste que são feitas muitas vezes prevendo futuros cenários da economia. Segundo
Schuartz (2002, p. 46):
Como explica Schuartz, atualmente, não apenas nos Estados Unidos, mas na maior
parte dos países que possuem legislações e políticas antitruste, a ciência econômica
fornece os meios de “visualização” da economia, constituindo a base dos argumentos
das decisões jurídicas ou administrativas. No Brasil não é diferente, embora a relevância
dos economistas e de suas teorias na política de defesa da concorrência também tenha se
dado mais recentemente e muito tempo após o surgimento de uma política antitruste
nacional.
! 55
Brasil os primeiros marcos legais que deram origem a esta política pública não surgiram
por vias de uma ideologia econômica muito bem delineada, em que a livre concorrência
seria tomada como o melhor caminho para a criação da justiça ou da eficiência das
relações econômicas. As condutas empresariais específicas que poderiam prejudicar
consumidores e o abastecimento da população ou, nos termos utilizados na época, as
condutas que prejudicam a “economia popular”, justificavam por si só a adoção de
regulamentos sobre as atividades do setor empresarial no país.
Em 1934, foi publicado o decreto no 24.150, que é considerado pela literatura uma
primeira medida contra o “abuso” de preços no país. O decreto intervinha na formação
de preços na economia, determinando, por exemplo, o índice de reajuste de aluguel de
imóveis e de tarifas do setor elétrico, ambos os setores privados na época (Considera &
Corrêa, 2002). A Constituição de 1937, que segundo Forgioni (2013) tem inspiração
nitidamente fascista, definiu de modo mais preciso o que se entendia pela intervenção
do Estado no domínio econômico nesse período, que poderia se dar pelo “controle”,
“estímulo” ou “gestão direta”, porém visando somente “suprir as deficiências da
iniciativa individual e coordenar os fatores de produção, de maneira a evitar ou resolver
os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos
interesses da Nação” (Forgioni, 2013, p. 99).
! 56
legislação brasileira antitruste surge buscando a “tutela da economia popular”, o que
significava a repressão ao abuso do poder econômico para a proteção da população ou
do consumidor (Forgioni, 2013, p. 100). Entre as normas explicitamente antitruste que
constam do Decreto-lei de 1938 estava a proibição de “promover ou participar de
consórcio, convênio, ajuste, aliança ou fusão de capitais, com o fim de impedir ou
dificultar, para o efeito do aumento arbitrário de lucros, a concorrência em matéria de
produção, transporte ou comércio”. Além disso, estavam proibidas práticas com “o fim
de dominar o mercado em qualquer ponto do país e provocar alta de preços”.
Contudo, apesar das normas estarem presentes e ativas, na prática o decreto serviu
como um instrumento para corrigir “disfunções no campo dos preços, artifícios e
fraudes contra os consumidores” (Forgioni, 2013, p. 102) e foi raramente aplicado para
punir ou proibir práticas como trustes, cartéis e fusões empresariais.49 Essas primeiras
medidas, portanto, eram bastante distintas da noção contemporânea de defesa da
concorrência, em que o Estado pode apenas autorizar ou punir as empresas
administrativamente. Ao contrário, de acordo com os decretos publicados nos anos
1930, o Estado poderia, quando necessário, tomar o controle direto das empresas e
determinar o preço de certos produtos ou serviços.
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49
No ano de 1938, ainda, o Decreto-lei no 431 tornou crime a artificiosa manipulação de preços de
gêneros de primeira necessidade, prevendo penas de prisão sem direito à liberdade condicional e
julgamento pelo Tribunal de Segurança Nacional para acordos e fusões que impedissem ou dificultassem
a concorrência (Salgado, 2004).
50
O nome “Lei Malaia” se deve ao fato de o Ministro da Justiça Agamemnon Magalhães, idealizador da
legislação, apresentar traços fisionômicos aparentemente “orientais”, sendo conhecido como “Malaio”.
! 57
cortes judiciais que julgarão o processo. No caso brasileiro, as práticas ilícitas constadas
em lei seriam reprimidas apenas administrativamente.
Outras duas inovações da “Lei Malaia” também foram importantes para o que veio
a ser a política concorrencial brasileira. Primeiramente, a legislação deixou de se referir
aos “crimes contra a economia popular” e passou a penalizar os “atos contrários aos
interesses da economia nacional”, ou aos "atos contrários à ordem moral e econômica",
iniciando uma lenta transição do objeto-alvo regulado pela lei, como explico mais
adiante. Em segundo lugar, a lei criou a “Comissão Administrativa de Defesa
Econômica”, C.A.D.E., precursora do atual conselho e subordinada diretamente ao
presidente da República. A Comissão, vinculada ao Poder Executivo, deveria averiguar
as práticas contrárias aos interesses da economia nacional, determinar a aplicação de
sanções e autorizar atos restritivos (Forgioni, 2013, p. 105). Contudo, o decreto de 1945
e a Comissão, criada para fazer cumpri-lo, duraram apenas três meses. Com exceção do
próprio ministro da Justiça, não havia muitos adeptos da nova legislação, que recebeu
inúmeras críticas devido ao seu conteúdo supostamente bastante “intervencionista” e
“protecionista”. Alguns membros da oposição chegaram a afirmar que a CADE era um
órgão “nazifascista” que ameaçava a economia brasileira (Forgioni, 2013, p. 106), e o
jornal carioca Correio da Manhã mencionou até mesmo a possibilidade de um teor
“apocalíptico” na lei em razão de sua numeração – Decreto-lei nº 7.666 (Cabral,
2015).51
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51
“As críticas feitas à época eram em parte pertinentes. Como diploma elaborado por governo ditatorial,
não foi precedido de discussão parlamentar, muito menos de debate com a sociedade. Foi obra da cabeça
do ministro – e Getúlio comprou a briga. Ademais, os entreveros entre Agamemnon e Assis
Chateaubriand, dono do grupo Diários Associados, fizeram com que da ‘Lei Malaia’ fosse dito que
atentava contra as empresas jornalísticas e, por conseguinte, contra a liberdade de expressão. Anote-se,
ainda, que o decreto dava à C.A.D.E. poderes de intervir e até de desapropriar, sem necessidade de
qualquer autorização judicial, empresas que praticassem atos considerados ‘contrários aos interesses da
economia nacional’” (Cabral, 2015, p. 1).
! 58
“A livre concorrência é [...] a base da economia liberal”. Por sua vez, o
poder econômico “é o que resulta da posse dos meios de produção. Quando
esses meios de produção, em certos setores da atividade são dominados por
um indivíduo ou por um grupo de indivíduos, são dominados por uma
empresa ou por um grupo de empresas, evitando que outros deles também
possam dispor, há abuso do poder econômico”. Nesse contexto, o Estado
deve “intervir para evitar ou suprimir o abuso”.
De 1962 até o final dos anos 1980, porém, tanto a lei quanto o CADE tiveram um
papel muito restrito. Até 1975, segundo Forgioni (2013, p. 117), apenas 11 processos
haviam sido julgados pelo CADE e somente em um deles a prática foi considerada
abusiva. Um dos motivos da performance modesta do órgão teria sido a atuação do
Poder Judiciário, que acabou suspendendo muitas decisões a partir de mandados de
segurança impetrados pelas empresas condenadas administrativamente. Ainda, de
acordo com um integrante da Procuradoria do CADE em 1964, o órgão, que funcionava
no subsolo do Palácio do Catete, como não era conhecido pelo público, não recebia
nenhuma denúncia de práticas empresariais que pudessem ser por ele investigadas
(CADE, 2013a).
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52
A mudança da denominação de “comissão” para a de “conselho” foi justificada pelos parlamentares
como sendo mais apropriada para garantir que os integrantes do CADE estivessem posicionados em uma
“categoria especial, inclusive com garantias e incompatibilidades de membros do Poder Judiciário”
(CADE, 2013a, p. 41).
53
Em 1951, surgem medidas governamentais mais incisivas para controlar os preços da economia, como
as Leis no 1.521 e no 1.522, que dispunham sobre os ilícitos no campo da concorrência – “crimes e
contravenções penais contra a economia popular” – e promoviam forte intervenção estatal no domínio
econômico. Tais Leis definiam como crime a transgressão de tabelas oficiais de preços para bens e
serviços considerados essenciais. O órgão responsável por inspecionar e aplicar o controle de preços era a
COFAP – Comissão Federal de Abastecimento e Preços. Em 26 de setembro de 1962, com as Leis
Delegadas no 4 e 5, a COFAP é substituída pela SUNAB – Superintendência Nacional de Abastecimento
e Preços.
! 59
Entretanto, para a maior parte dos analistas, o CADE não teve um papel relevante
durante esse período devido à incompatibilidade entre sua função legal e a direção mais
ampla que a política econômica seguiu a partir dos anos 1960. Novos órgãos estatais,
como a CIP – Comissão Interministerial de Preços – e a Sunab – Superintendência
Nacional de Abastecimento e Preços – que controlavam preços e tarifas na economia, e
a atuação de ministérios que incentivavam a fusão e a incorporação de empresas, se não
causavam um enfrentamento jurídico direto com o CADE, ao menos politicamente
pareciam ir na direção oposta. Segundo Elizabeth Farina (1990, p. 472), ex-presidente
do órgão antitruste: “a tímida atuação do CADE é absolutamente consistente com a
política econômica mais geral que protegeu nossa indústria da concorrência externa e
estabeleceu várias formas de controles setoriais que limitavam a concorrência ao invés
de estimulá-la”.54 Além disso, o CADE exercia outras incumbências administrativas que
não eram necessariamente relacionadas à sua função antitruste, servindo, assim como
outros órgãos governamentais, para controlar diretamente a atividade das empresas.
Comentando sobre o papel do CADE nesse período, o economista Luciano Coutinho
(2004, p. 6) diz: “Na realidade, pretendia-se que o CADE funcionasse como conselho
de administração e conselho fiscal de estatais, ou mesmo, como empresa de
auditoria”.55
De fato, quando o governo militar assume em 1964, adota-se uma política fiscal
ortodoxa e uma política monetária contracionista para lidar com a crise econômica no
período, restringindo crédito, gastos públicos e salários. Entretanto, contrário à
orientação mais liberal predominante no Ministério da Fazenda e no recém-criado
Banco Central, os militares preferem continuar com a adoção de uma política de
substituição de importações, investindo em empresas estatais. O segundo governo
militar aprofunda ainda mais esta política e passa a utilizar o controle estatal de preços
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
54
Para o economista Hélcio Tokeshi, ex-secretário do Ministério da Fazenda, em pronunciamento na
Câmara dos Deputados (2004, p. 13): “Nesse primeiro momento de substituição das importações,
enquanto esse modelo não era abandonado, não fazia sentido tentar pensar em defesa da concorrência,
porque o Estado era o agente coordenador e regulador dos mercados, interferindo diretamente na oferta,
nos preços e nas quantidades”.
55
Pode-se dizer que a própria lei antitruste de 1962 carregava um forte viés intervencionista. Dentre os
seus objetivos, havia o de "exercer a fiscalização da administração das empresas de economia mista e das
que constituem patrimônio nacional [empresas públicas]". Também definia que a "fiscalização se estende
à gestão econômica da empresa e seu regime de contabilidade...", e estabelecia que "o CADE examinará
anualmente os balanços e relatórios das empresas a que se refere este artigo e, em face deles e dos
resultados de sua fiscalização, proporá ao Conselho de Ministros as providências que lhe parecerem
necessárias" (BRASIL, 1962).
! 60
de mercadorias e serviços como mecanismo essencial de combate à inflação,
mecanismo este que caracterizará a política econômica até a década de 1980.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
56
28 de dezembro de 1967.
57
O aumento de preços estava sujeito a várias condições. As firmas precisavam, primeiramente, mostrar
que o aumento era proporcional ao aumento de custos que haviam tido. A CIP, que substituiu a Conep,
calculava a taxa média de retorno do capital para firmas e setores específicos para medir o aumento de
produtividade que poderia ser repassado aos preços. Segundo Considera e Corrêa (2002, p. 10): “as regras
de controle eram muito detalhadas e complexas, representando uma intervenção nos segredos de
administração das firmas inimaginável numa sociedade democrática. Quando aplicavam para um
reajustamento de preços, vários segredos industriais das firmas tinham que ser expostos aos oficiais do
governo, com pouca garantia de que não seriam disponibilizados aos seus concorrentes”.
! 61
salariais coletivos com sindicatos de trabalhadores no Ministério do Trabalho ou em
cortes trabalhistas (Considera & Corrêa, 2002).
De acordo com Considera e Corrêa (2002), a partir dos anos 1970, com o aumento
da inflação, as associações de produtores começaram a ter um papel importante também
na política microeconômica, principalmente no que se refere à política de preços. A CIP
passou a reunir funcionários públicos e representantes de produtores para organizar o
setor industrial e diversos mercados. Na prática, o Estado institucionalizava espaços que
possibilitavam o encontro de diferentes organizações para a discussão e a negociação de
preços e custos. Assim, a política econômica adotada no Brasil, ao tentar estabilizar os
preços dos produtos por meio de negociações, acabava por organizar uma estrutura para
o funcionamento de cartéis, fazendo com que os industriais brasileiros se reunissem e
conversassem sobre custos e preços (Considera & Corrêa, 2002). Com o fim do milagre
econômico, período de excepcional crescimento da economia brasileira entre 1968 e
1973, a política de preços do governo prosseguiu sem a mesma rigidez, mas o aumento
da inflação tornou a atuação da CIP claramente insuficiente. Mesmo assim, até 1984, a
CIP continuou a promover acordos entre empresas sem causar reduções nos preços, mas
mantendo-os homogeneamente altos. Nesse contexto de forte intervenção estatal nos
preços, o papel do órgão antitruste foi extremamente reduzido. Segundo um ex-
integrante do órgão, Luiz Paulo Mayer,
Com a ditadura, o CADE, que ainda não estava totalmente instituído, foi
gradativamente deixado de lado, até ser extinto por inanição e pela limitação
das suas funções. Como hoje, os mandatos dos conselheiros eram exercidos
por um prazo determinado. Com a saída de um deles, o substituto deveria ser
indicado pela Presidência da República. Como não havia interesse no
funcionamento do órgão, encerrado um mandato de conselheiro, o
governante de plantão não fazia a indicação do substituto, como lhe cabia.
Pela omissão, decretou-se a extinção do CADE (CADE, 2013, p. 44-45).
Para que o órgão pudesse ter alguma relevância, seria necessária uma
transformação substancial da política econômica nacional, algo que ocorreu apenas a
partir dos anos 1990. Tal transformação, por outro lado, requeria também uma nova
concepção da realidade que se buscava governar, uma mudança do “governo dos crimes
contra a economia popular” para o “governo das infrações à ordem econômica”, do
“controle dos preços” para a “defesa da concorrência”.
! 62
1.6. A liberalização da economia e a nova política antitruste
A Constituição Federal apontava para essa nova direção que estava sendo tomada
pela política econômica nacional ao definir, como já mencionado, a “livre concorrência”
como um princípio da “ordem econômica” (art. 170) e ao restabelecer, de acordo com
as legislações anteriores que, por meio de uma legislação complementar, se
regulamentassem os critérios de repressão ao “abuso do poder econômico que vise à
dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos
lucros” (art. 173). Uma alteração importante do texto da nova Constituição foi a de não
mais tutelar a “economia popular”, mas sim a “ordem econômica”. Como afirma
Fernando Rabossi (2013, p. 6):
! 63
passa a ser tutelada juridicamente. Nessa mudança, não é o povo, mas as
regras do sistema as que devem ser protegidas.58
! 64
que os preços se “estabilizassem” (Neiburg, 2006). O antitruste, ao invés de controlar
diretamente os preços, como o governo vinha fazendo desde 1967 pelo menos, os
controlaria indiretamente, garantindo um comportamento competitivo das empresas nos
mercados. A concorrência dos mercados e a “ordem” que ela estabeleceria fariam com
que os preços se ajustassem automaticamente ao seu “equilíbrio”, este correspondendo
àquele derivado das forças de “oferta” e “demanda” sem a interferência estatal. Nessa
época, foi a política de controle de preços adotada no período militar que se tornou
incompatível com a forma de governo adotada, pois a ordem pretendida não era mais
dada exclusivamente pela intervenção estatal, mas sobretudo pelo funcionamento dos
mercados. Como consequência, em 1990, a CIP foi extinta e, em 8 de janeiro de 1991, a
Lei no 8.158 reorganizou as normas antitruste no Brasil, de acordo com a nova
pretensão constitucional. A legislação criou a Secretaria Nacional de Direito Econômico
(SNDE), vinculada ao Ministério da Justiça, cuja função era:
! 65
se redistribuírem possíveis ganhos ao consumidor, na forma de redução de preços, para
que um processo fosse aprovado pelo conselho. Isto indicaria, segundo um economista,
um viés distributivo da lei (Lima, 1998), 62 diferenciando-a dos estatutos adotados
internacionalmente. A lei de 1991, no entanto, não produziu uma transformação tão
abrangente na política.
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62
Para o ex-conselheiro Ruy Santacruz Lima, “a legislação brasileira parece não ter capturado o sentido
da discussão que envolve o pensamento mainstream antitruste, representado pelos adeptos do modelo
estrutura-conduta-desempenho [Harvard], nem da sua crítica, na forma apresentada pela escola da
eficiência de Chicago” (Lima, 1998).
63
O material produzido pelo CADE em 2013 inclui um curioso episódio narrado pelo secretário-
executivo do Ministério da Justiça nesse período, Tércio Sampaio Ferraz Jr., quando se precisou decidir
em que local da estrutura governamental o órgão antitruste deveria se estabelecer: “Na época havia uma
grande dúvida em que ministério colocar a Funai [Fundação Nacional do Índio]. Aí a brincadeira era:
quem levar os índios leva o CADE. Fazia todo sentido que a Funai ficasse no Ministério da Justiça
porque é uma questão de direitos humanos. E aí disseram que a concorrência não tinha nada a ver com
direito. Eu disse: ‘tem sim, direito da concorrência’, que era uma expressão nova para a época” (CADE,
2013a, p. 52-53).
64
Para uma análise sociológica mais densa sobre a formulação da Lei de 1994, ver Bello (2005), Miola
(2014) e Onto (2009).
65
Conforme Oliveira e Konichi (2006, p. 4): “[...] a motivação política para a Lei 8.884 ganhou
inspiração da noção de intervenção do Estado no mercado, herdada de estágios anteriores. O presidente
Itamar Franco esperava que a lei permitisse uma rápida punição ao abuso de preços do setor farmacêutico
e demandava a aprovação do que se tornaria a nova lei de concorrência como uma condição para a
! 66
do presidente, instituiu uma comissão de especialistas para “estudar e propor, no prazo
de vinte dias, o aperfeiçoamento e a consolidação da legislação sobre defesa da
concorrência e abuso do poder econômico, visando à fixação de um novo modelo
institucional que propicie melhor ação governamental nesse campo”. Segundo o
ministro, o objetivo da lei era coibir o aumento arbitrário de preços para combater “a
cultura brasileira da inflação – aumentar preços sempre que o governo tenta combater a
inflação”.66 Em dois meses concluiu-se o trabalho e, no dia 23 de abril de 1993,
encaminhou-se ao Congresso Nacional o projeto de lei que dispunha sobre a repressão
ao abuso do poder econômico e autorizava a transformação do CADE em autarquia,
com autonomia administrativa e orçamento próprio.67
O diploma de 1994 deu maior poder para o corpo técnico do CADE, que agora se
tornava a última instância decisória sobre a legislação concorrencial na esfera
administrativa. A decisão do CADE seria dada após a emissão de pareceres técnicos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
implementação do plano de estabilização”. Segundo Ruy Coutinho (2004), ex-presidente do CADE e
presidente da comissão mencionada: “O vice-presidente, Itamar Franco, que assumiu a Presidência da
República, em várias reuniões insistia em que incluíssemos na Lei Antitruste mecanismos de controle de
preços justamente no momento em que estava em gestação o Plano Real, que não tinha nada de controle
de preços. [...] o presidente da República tentava inserir na Lei Antitruste, ao contrário do que imaginava
o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, esses mecanismos exóticos, no intuito de
ressuscitar todo aquele aparato que havia sido penosamente desmontado ao longo do tempo” (Câmara dos
Deputados, Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio, 30 de novembro de 2004).
66
Apud Bello (2005, p. 54).
67
Mensagem Presidencial n° 213 e Projeto de Lei no 3.712/93!
68
De acordo com o economista Luciano Coutinho (2004): “com a Lei nº 8.884, apesar das eventuais
impropriedades, creio que se conseguiram reduzir substancialmente as imensas discrepâncias que nos
separavam dos países desenvolvidos no campo do antitruste. Não era a legislação ideal, mas a que foi
possível para aquela época, a fim de que o país fizesse uma transição razoavelmente tranquila para a
economia de mercado” (Câmara dos Deputados, Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e
Comércio, 30 de novembro de 2004).
! 67
pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE), que substituía a
SNDE, e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda
(SEAE), criada no ano seguinte. Os três órgãos passaram a formar o chamado “Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência” (SBDC). As decisões do CADE seriam
proferidas por um colegiado composto por um presidente e seis conselheiros, nomeados
pelo presidente da República e aprovados por uma sabatina no Senado. Esses membros
do colegiado que, de acordo com a lei, devem ter “notório saber jurídico ou econômico”,
tinham um mandato de dois anos com direito a uma recondução.
Gráfico 1: Processos julgados pelo CADE (Fonte: Relatório Anual do CADE, 2007)69
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69
Em 2015, o CADE julgou 715 processos, sendo 386 atos de concentração. (www.cade.gov.br)
! 68
órgão, obrigando a transferência de sua sede de um andar no prédio anexo do Ministério
da Justiça para um edifício próprio no Setor Comercial Norte da capital.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
70
Ao se observar a comissão formada por “especialistas em defesa da concorrência” para formular a nova
Lei Antitruste em 1993, encontramos apenas um economista. Sua influência se deu por meio de
comentários ao projeto de lei em formulação. Economistas do recém-criado grupo de estudos de defesa
da concorrência do IPEA e acadêmicos voltados para a área foram consultados. No primeiro caso, o
economista Antônio Kandir e outros, como Lúcia Helena Salgado e Hélcio Tokeshi, que trabalhavam no
IPEA, deram opiniões a respeito do projeto de lei, assim como a economista e professora da USP
Elizabeth Farina, uma das primeiras pesquisadoras do tema no país (Miola, 2014).
71
Em 1996, o caso da compra da Siderúrgica Pains pelo Grupo Gerdau (Ato de Concentração no 16) foi
um dos que geraram conflitos políticos com reflexos na mídia e na esfera política. O CADE havia
determinado a desconstituição da compra da Pains pela Gerdau. Porém, contrariando o disposto no artigo
50 da Lei nº 8.884/94, que define que “nas decisões do CADE não comporta revisão no âmbito do Poder
Executivo”, o então ministro da Justiça pediu a revisão da decisão, tentando interferir politicamente na
decisão. Mesmo assim, o CADE determinou a venda da Pains para outra companhia, não seguindo o
ministro, gerando um desconforto nos conselheiros e nos funcionários do órgão em relação à sua
autonomia.
! 69
governo.72 A entrada desses especialistas, embora tenha contribuído para a reputação do
CADE como órgão técnico na imprensa, nos meios acadêmicos e na administração
pública (Miola, 2014), não acabou com as disputas jurídicas e políticas, mas fez com
que estas fossem mediadas pela linguagem da teoria econômica, aproximando a política
de defesa da concorrência brasileira daquela existente há mais tempo em outros países
(Onto, 2009).
Mais importante, para o sociólogo Iagê Miola (2014), os economistas que estavam
sendo indicados para cargos comissionados, como conselheiros e presidentes do órgão,
a partir de 1996 tinham perfis distintos daqueles profissionais com formação em
economia que tinham atuado no CADE anteriormente. Enquanto os outros tinham
carreira no funcionalismo público e haviam feito no máximo um mestrado em uma
universidade brasileira, os novos profissionais nomeados possuíam títulos de doutorado
de universidades renomadas no Brasil e no exterior. Dois integrantes do novo conselho
de 1996, por exemplo, Gesner Oliveira (ex-presidente) e Lucia Helena Salgado (ex-
conselheira), tinham PhDs pela Universidade de Berkeley, importante centro de estudos
em Organização Industrial nos Estados Unidos.73 Segundo Miola (2014), os novos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
72
Segundo Lúcia Helena Salgado, uma das economistas que entraram logo em seguida ao caso Gerdau-
Pains no cargo de conselheira do CADE, nessa época inicia-se uma busca pela “racionalidade” ou
“racionalização” da atividade do órgão antitruste brasileiro (comunicação pessoal). Para a Presidência da
República, a busca por maior “racionalidade” da atividade do órgão deveria servir para evitar os
problemas políticos que o órgão poderia gerar. De acordo com o relato da ex-conselheira, quando
nomeados, os economistas Gesner Oliveira e Lucia Helena Salgado receberam a seguinte recomendação
do presidente da República Fernando Henrique Cardoso: “Não me causem problemas!”. Como descreve o
sociólogo Carlos Bello (2005, p. 92), os ministros Pedro Malan, da Fazenda, e Nelson Jobim, da Justiça,
manifestaram-se publicamente, afirmando que os novos conselheiros deveriam ser técnicos. Um pouco
antes da data das nomeações, os dois ministros reuniram-se com o ministro José Serra e o presidente
Fernando Henrique Cardoso e chegaram ao consenso de indicar técnicos especializados, com formação
jurídica ou econômica. Para o sociólogo, o presidente estava “muito preocupado que a balcanização
política pudesse gerar novos conflitos com o CADE [...] Os economistas serviriam para bloquear o
CADE”, não para torná-lo mais eficaz.
73
“Gesner José de Oliveira Filho, 40. An economist graduated from USP, Oliveira held a master’s degree
in economics obtained at UNICAMP where he was supervised by José Serra – by then Minister of
Planning of Cardoso. In 1989, he concluded a PhD in economics at the University of California, at
Berkeley, with a thesis on liberalization policies, and the Brazilian experience with the IMF, supervised
by Albert Fishlow. Prior to his recruitment to CADE, Oliveira’s career combined academic duties,
political appointments, and activities in private practice. Between 1980 and 1984, he was a professor of
economics at PUC-SP, and since 1990 he thought at the FGV-SP. In 1990, he was a consultant at the
BNDES on privatizations, and between 1991 and 1993 he worked in the private sector, as a consultant of
the Swiss Development Cooperation, of a bank, and of a law firm. Back to government in 1993, he was
appointed Deputy-Secretary of Economic Policy of Gustavo Franco, at the Ministry of Finance. When
SPE was converted into SEAE in 1995, Oliveira became the Secretary for a few months. As a Secretary,
it is likely that his appointment to CADE was articulated by the Minister of Finance, Pedro Malan, an
economist and professor of economics at PUC-Rio, who also obtained his PhD in Berkeley, in 1973”
(Miola, 2014, p. 262). “Lucia Helena Salgado, 35. […] By 1996, Salgado had completed her PhD in
economics at UFRJ, during which she was a visiting doctoral student at the University of California, at
! 70
profissionais eram também mais jovens e vinculados a centros conhecidos da teoria
econômica ortodoxa, assim como outros economistas que naquele período também
foram nomeados para outros órgãos da administração pública. Como exemplo, entre os
17 economistas nomeados pelo CADE entre 1996 e 2012, encontramos doutores
formados pela Universidade de Chicago, Universidade de Londres, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo e Universidade de Brasília (Miola,
2014).
Conforme identificou Miola (2014, p. 316), nada menos do que oito desses
economistas tinham algum vínculo com a chamada abordagem “neoinstitucionalista” na
ciência econômica. Conhecida pelos trabalhos de autores como Douglass North, Oliver
Williamson e Ronald Coase, essa abordagem é considerada um braço intelectual do
programa político neoliberal que argumenta em função da necessidade de instituições
que garantem e produzem o funcionamento de mercados eficientes. Para Miola (2014, p.
319), a economia neoinstitucional pode ser descrita como “um conjunto de fundamentos
teóricos e receitas políticas que consolidam os resultados das reformas
macroeconômicas neoliberais”.74
Como afirmam diversos sociólogos (Babb, 2001; Montecinos & Markoff, 2009), os
economistas como grupo profissional foram muito importantes, especialmente na
América Latina, para a disseminação de políticas econômicas neoliberais nos anos 1980
e 1990. Essa relevância estava associada à sua capacidade de produzir justificativas
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Berkeley. As she maintained in an interview, in her period abroad she filled a ‘gap’ of her formation:
‘There, I attended all courses on econometrics, mathematics and industrial organization’. Her doctoral
thesis was an analysis of the incipient Brazilian antitrust regime, still under the law of 1991, focusing on
Administrative Procedures. As Salgado reported in an interview, during her visit to UCB, she ‘had the
best professors I could have at that moment’ – notably the exponents of new institutional economics, such
as Oliver E. Williamson, Carl Shapiro, and Douglass North. Besides these foreign professors, Salgado
also mentioned other people that would have been influential in her PhD formation, such as Gustavo
Franco, an economist of PUC-Rio and PhD by Harvard University who was the Secretary of Economic
Policy of the Ministry of Finance between 1993 and 1999, and later became the President of the Brazilian
Central Bank; Armando Castelar Pinheiro, also a PhD at Berkeley and supervised by Fishlow, professor
of economics at PUC-Rio, and one of the pioneers of the ‘law and economics’ approach in Brazil; and
Regis Bonelli, PhD by Berkeley with several joint publications with Winston Fritsch and Gustavo Franco.
After serving CADE, Salgado resumed her post at IPEA” (Miola, 2014, p. 263).
74
“As part of the theoretical endeavor of neoliberal economics, NIE [New Institutional Economics]
became a complementary policy program to the objectives previously pursued through structural
adjustments, privatizations, and liberalization: the production of efficient markets. Illustrative of such role
was the conversion of NIE into the theoretical basis of the ‘institutional turn’ taken by the Washington
Consensus in the late 1990s and early 2000s (e.g. as reflected in the World Bank’s famous document
‘Building institutions for markets’, of 2002). Market efficiency, as in the initial years of neoliberal
reforms, was still at the center of both theoretical efforts and policy translations of NIE. […] The primacy
of the market was only to be guaranteed by the appropriate institutions” (Miola, 2014, p. 318).
! 71
técnicas para a adoção das mais variadas reformas de governo a serem implementadas.
Parte importante da explicação da disseminação e da convergência de políticas
econômicas ao redor do mundo está numa trajetória acadêmica comum que passa pela
formação em universidades norte-americanas, centros hegemônicos da produção da
ciência econômica internacional. No caso da política antitruste, essa influência não foi
diferente. Assim como ocorreu em outros países, no Brasil a política antitruste também
foi aos poucos se apropriando de conceitos, técnicas e práticas característicos do direito
concorrencial norte-americano, muito influenciado pelas teorias econômicas de Harvard
e Chicago.
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75
Há duas únicas exceções: o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do CADE, que exige a
presença de economistas, e a Procuradoria do CADE, que exige profissionais concursados formados em
direito.
! 72
graduação ou por experiência profissional – trazendo um grande conhecimento da
tradição legal daquele país. Entre os 24 juristas nomeados desde 1996, encontramos
doutores pela Universidade de Frankfurt, Universidade de São Paulo, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e Universidade de Paris.76 Muitos trabalhavam em grandes
escritórios de advocacia brasileiros ou estrangeiros, atuando já como reconhecidos
especialistas em direito da concorrência (Miola, 2014). A maioria deles também tinha
familiaridade com as teorias econômicas adotadas na prática antitruste.
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76
O ex-presidente do CADE entre 2000 e 2004 e professor da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco, João Grandino Rodas, tornou-se, entre 2010 e 2014, reitor da Universidade de São Paulo.
77
Em 2014, o CADE voltou a ganhar esse prêmio pela mesma publicação.
! 73
estrutura do SBDC. A partir de 2012, a SEAE ficou encarregada apenas de atuar na
promoção da concorrência junto a outros órgãos da Administração Pública. A atividade
investigativa e instrutiva dos processos administrativos, antes realizada pela SDE, foi
transferida para um novo departamento, a Superintendência-Geral do CADE. O órgão
ganhou mais poderes, pois agora é responsável tanto pela instrução quanto pelo
julgamento dos processos. Tendo em vista essa unificação de atribuições na mesma
organização, o Congresso aprovou conjuntamente com a lei um reforço no orçamento
do órgão, aumentando-o de R$ 10 milhões para R$ 25 milhões em 2012.
A nova legislação modificou muito pouco a lei anterior de 1994 no que se refere às
práticas consideradas ilícitas e aos procedimentos administrativos no âmbito do CADE.
Sobre a legislação, vale apontar, neste momento, apenas o artigo 36, que tipifica, de
modo idêntico à lei de 1994, as práticas consideradas ilícitas. O texto determina que
constituem “infração à ordem econômica”
os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam
produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar,
falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre
iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar
arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição
dominante.” (Brasil, 2011)
! 74
principais, que ela denomina de “almas”: uma relativa à proteção da livre iniciativa e da
livre concorrência e outra relativa à tutela do “consumidor”, no que tange aos abusos
que podem ser cometidos contra eles ou contra outros agentes do mercado, como
fornecedores e distribuidores. Este ponto é relevante já que os responsáveis pela análise
e a investigação de casos particulares estão sempre atentos aos efeitos de condutas e
concentrações tanto em relação ao consumidor e outras empresas, participantes
específicos dos mercados, quanto à “concorrência”, definida, ou melhor, visualizada, a
partir de práticas descritas nos próximos capítulos.
É importante mencionar, finalmente, que muitas das práticas ilícitas contra a ordem
econômica, apreciadas administrativamente pelo CADE, são também passíveis de
serem apreciadas na esfera criminal e cível pelo Ministério Público, conforme
estabelecido na Lei no 8.137 de 27 de dezembro de 1990. O órgão antitruste muitas
vezes atua em coordenação com o MP na investigação de ilícitos à concorrência,
fornecendo informações ou análises, porém, não cabe ao CADE a propositura de uma
ação judicial, sendo esta função exclusiva do Ministério Público. As decisões do
conselho, por outro lado, podem ser levadas à apreciação do Poder Judiciário, que tem o
poder de revisar as decisões tomadas pela autoridade antitruste. Esta possibilidade,
garantida pela Constituição Federal, tem sido utilizada recorrentemente pelas partes
condenadas em processos administrativos visando anular as decisões do órgão antitruste.
Neste capítulo, vimos como aos poucos a noção de concorrência torna-se um valor
expressivo e legítimo ao associar-se a noções de liberdade, justiça e eficiência. O
pensamento econômico dos séculos XVIII e XIX foi responsável por dar a esse valor
um estatuto ontológico, natural, que exigiria uma nova relação entre a ação estatal e a
realidade administrada. Embora não tenham sido idealizadas com base num
conhecimento técnico do pensamento econômico, as políticas antitruste foram sendo
justificadas a partir do século XX por teorias desenvolvidas por economistas. Estes
passaram paulatinamente a assumir cargos de importância dentro de órgãos antitruste no
Brasil e no exterior e os argumentos econômicos tornaram-se, assim, essenciais para
! 75
justificar os motivos pelos quais os governos deveriam ou não agir em relação a
condutas ou concentrações empresariais. A política antitruste, que no início do século
XX em países desenvolvidos procurava garantir juridicamente a manutenção de um
valor reconhecido como fundamental por aquelas sociedades – a livre concorrência –
tornou-se cada vez mais um modo de garantir o funcionamento de uma ordem
econômica considerada ideal pelos economistas liberais.
Analysis reveals that not even radical adherents of economic liberalism could
escape the rule which makes laissez-faire inapplicable to advanced industrial
conditions; for in the critical case of trade union law and antitrust regulations
extreme liberals themselves had to call for manifold interventions of the state,
in order to secure against monopolistic compacts the preconditions for the
working of a self-regulating market. Even free trade and competition required
intervention to be workable (Polanyi, 1944, p. 156).
! 76
Como mostrou Albert Hirschman (1977), Sir James Steuart, outro pensador liberal
escocês que escreveu sua principal obra alguns anos antes de Adam Smith, já admitia
ou incluía em suas formulações a possibilidade ou mesmo a necessidade de uma
interferência estatal na economia em determinadas circunstâncias. Para ele, a
“complicada oeconomia moderna” podia ser comparada ao mecanismo de um relógio.
Por um lado, “o relógio é tão delicado que pode ser imediatamente destruído quando
[...] tocado por qualquer mão pouco gentil”. Por outro lado, os mesmos relógios “estão
continuamente deixando de funcionar corretamente, às vezes o ajuste é muito fraco ou
muito forte para a máquina [...] exigindo a mão de um profissional para corrigi-lo”.
Segundo Steuart, portanto, a “oeconomia” requer intervenções pontuais, contanto que
estas sejam feitas sem arbitrariedade ou descuido (Hirschman, 1977, p. 84-87; Gordon,
1991, p. 17). Como apontado por Hirschman e também por Foucault (2007b), a
problematização do modo e da intensidade com a qual a intervenção estatal deve ser
feita na economia é constitutiva do próprio pensamento liberal, mesmo que os críticos
mais influentes do liberalismo clássico não tenham se importado com as sutilezas e as
variações entre seus principais proponentes. Entre críticos ou mesmo entre aderentes,
ainda persiste até hoje uma caricatura do liberalismo como uma doutrina do Estado
mínimo, em geral associada ao pensamento de Adam Smith.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
78
“Early liberalism determines the questions of how to govern in relation to an object-domain which is a
kind of quasi-nature with its own specific self-regulating principles and dynamic. This natural domain is
both what has to be governed and what government must produce or, at least, maintain in the optimum
condition of what naturally it is” (Burchell, 1996, p. 25).
! 77
século XX, os mercados, a concorrência e o homo economicus “existem e somente
podem existir sobre certas condições políticas, legais e institucionais que devem ser
ativamente construídas pelo governo” (Burchell, 1996, p. 23).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
79
É interessante observar que, segundo Foucault (2007b, p. 105-106), o ordoliberalismo alemão, que
influenciou diretamente a vertente de Chicago, traz consigo a herança sociológica de Max Weber ao
aceitar, implicitamente, a crítica marxista da economia política clássica. Segundo Marx, os economistas
clássicos não levaram em conta as dimensões legais e institucionais dos mercados e do capitalismo. Para
os ordoliberais, assim como para Weber, o jurídico não é uma mera superestrutura da economia, mas um
aspecto central de sua existência (Gordon, 1991, p. 43).
80
Foucault (2007b, p. 120), ao explicar a noção de concorrência dos ordoliberais, diz: “For what in fact is
competition? It is absolutely not a given of nature. The game, mechanisms, and effects of competition
which we identify and enhance are not at all natural phenomena; competition is not the result of a natural
interplay of appetites, instincts, behavior, and so on. In reality, the effects of competition are due only to
the essence that characterizes and constitutes it. The beneficial effects of competition are not due to a pre-
existing nature, to a natural given that it brings with it. They are due to a formal privilege. Competition is
an essence. Competition is an eidos. Competition is a principle of formalization. Competition has an
internal logic; it has its own structure. Its effects are only produced if this logic is respected. It is, as it
were, a formal game between inequalities; it is not a natural game between individuals and behaviors”.
! 78
effective – is as much responsible for the decline of competition as the active
support which governments have given directly and indirectly to the growth
of monopoly. It is the first and general thesis which we shall have to consider
that competition can be made more effective and more beneficent by certain
activities of government than it would be without them (Hayek, 1948, p. 110).
Pode-se dizer que a política antitruste brasileira atual está em sintonia com essa
nova orientação liberal. A noção de que a concorrência nos mercados não é apenas
defendida, mas também produzida pelo Estado, fica clara quando observamos, por
exemplo, as narrativas sobre o autodenominado “papel educativo” do CADE. Em 1996,
ano da importante nomeação de novos conselheiros, publica-se o primeiro Relatório
Anual do CADE. O Relatório buscava “dar maior transparência para a sociedade sobre
a atividade do órgão antitruste”, proporcionando uma síntese dos processos julgados,
das decisões administrativas tomadas, além de um conjunto de estatísticas sobre a
atividade do órgão no ano. O índice do primeiro relatório divide-se em três partes, que
corresponderiam às três funções do órgão antitruste: (i) o combate às infrações de
ordem econômica, ou o papel repressivo; (ii) o controle de atos de concentração, ou o
papel preventivo; e (iii) a promoção da livre concorrência, ou o papel educativo. Um
trecho do Relatório de 1996 ilustra de forma mais clara a função do “papel educativo”:
! 79
considerando-se a trajetória histórica das formas de relação empresarial brasileira.81
Segundo Considera e Corrêa (2002, p. 3), “o clima ideológico parece não ter favorecido
a concorrência como a regra do jogo econômico; o setor privado não a entende como o
cerne da atividade econômica [...]. Pelo contrário, o clima ideológico parece ter
favorecido a ‘negociação’ entre firmas”. Para os economistas, esse “clima ideológico”
derivava da herança do período de política econômica mais desenvolvimentista ou
intervencionista. Conforme explica Elizabeth Farina (comunicação pessoal), ex-
presidente do conselho, existia na economia brasileira uma espécie de “cultura de
planilha de custos”. Essa cultura refletia-se numa prática empresarial comum desde o
período militar, em que planilhas com os custos das firmas eram repassadas de uma a
outra empresa para que todas pudessem comparar seus preços e organizar sua produção
coordenadamente. Essa prática de cartel não era entendida como ilegal ou imprópria
pelas empresas. Por isso, para a ex-conselheira Lúcia Helena Salgado:
! 80
competitivos prevalecem é uma aspiração daqueles profissionais responsáveis pela
implementação da política, juristas e economistas que assumiram, a partir dos anos
1990, cargos de conselheiros e presidentes do órgão antitruste.
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observando de forma intensa em todo o mundo no último quartel deste século e, em particular, nos países
em desenvolvimento. As agências de defesa da concorrência no plano internacional têm apresentado um
papel cada vez mais proeminente na consolidação dos processos de desregulamentação e liberalização da
economia” (CADE, 1998/1999, p. 137) Podemos compreender essa transformação da política antitruste,
portanto, como parte de um processo mais amplo de formação e transformação do Estado, um novo modo
de conceber e governar a economia.
! 81
Capítulo 2 : Artefatos do antitruste
Além de movimentos e práticas similares aos dos advogados que entram e saem
diariamente do edifício da Asa Norte da capital, minha inquietação também girava em
torno da circulação, da interpretação e do destino dos mesmos artefatos: os documentos.
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84
Leticia Barrera (2008) relata uma comparação similar em sua etnografia sobre a Suprema Corte
argentina.
85
Quando me refiro a advogados nesta tese, são os advogados representantes das partes envolvidas nos
processos administrativos, e não a bacharéis em direito que trabalham no órgão antitruste.
! 82
No caso dos advogados, a interação com o órgão consistia em convencer assessores ou
conselheiros por meio de petições que as condutas exercidas por seus clientes ou suas
solicitações de concentração empresarial não eram preocupantes do ponto de vista da
legislação concorrencial. Já meus seguidos requerimentos argumentavam que a pesquisa
idealizada não seria preocupante para o conselho em termos jurídicos ou
administrativos. Nosso objetivo mútuo, meu e dos advogados que trabalhavam para
empresas, era acompanhar e interferir, na medida do possível, na vida estatal dos
documentos, de modo que a interpretação deles não nos prejudicasse.
! 83
facilitam as tarefas de variadas maneiras de organização – sejam elas órgãos
governamentais, tribunais, empresas, prisões, departamentos policiais ou ONGs (ver
Riles, 2006a). 86 Algumas dessas etnografias, realizadas em burocracias ou órgãos
estatais (p.ex., Latour, 2002; Lewandowski, 2014; Lowenkron & Ferreira, 2014),
enfatizam que as diferentes formas materiais de documentação ou comunicação e as
práticas que envolvem essas materialidades são constitutivas de relações, subjetividades,
hierarquias, emoções e sentidos, além dos próprios objetos cuja organização procura
administrar ou governar (Hull, 2012b; Mosse, 2004). A relação dos funcionários dessas
organizações com os documentos que as permeiam fornece, portanto, uma perspectiva
particularmente favorável para se observar o modo como uma organização como o
CADE governa a concorrência e o que está envolvido nessa tarefa.
Antropólogos como Matthew Hull (2012a) e Annelise Riles (2000, 2006b) têm
descrito documentos como “artefatos”, sublinhando que sua importância para as pessoas
que com eles se relacionam não deriva apenas do seu conteúdo, mas também de sua
materialidade ou forma. Do mesmo modo, utilizo a expressão artefato, indicando
principalmente os documentos presentes nas práticas antitruste, como uma alternativa a
“texto” ou “representação” com o objetivo de enfatizar tanto os aspectos discursivos e
referenciais das formas burocráticas de documentação quanto suas características
materiais ou estéticas – como a organização do espaço gráfico, modelos de documentos,
suas qualidades sigilosas ou eletrônicas, tipos de armazenamento, entre outras. Segundo
Annelise Riles (2000, p. 186), documentos podem ser concebidos como artefatos
quando “chamam a atenção para a forma” e não apenas para seu conteúdo.87 Neste
capítulo, identifico esses artefatos em negrito quando aparecem pela primeira vez no
texto.
! 84
pode ser essencialmente descrito, de certo ponto de vista, como a produção, a
organização, o envio e o recebimento de documentos de tipos determinados, cada um
com seus efeitos e usos, produzidos e circulados diferentemente. Em sua etnografia
sobre o Conseil d’État na França, órgão superior de direito administrativo neste país,
Bruno Latour (2002) ilustra a relação entre os procedimentos e o caráter legal dos
documentos. Segundo ele, um conjunto de papéis torna-se um processo administrativo,
juridicamente produtivo, somente no momento em que entra no órgão, é amarrado com
um barbante, numerado e organizado em prateleiras. Igualmente, para que uma decisão
do CADE tenha um efeito administrativo e legal, os procedimentos devem seguir ritos
previamente definidos. Documentos devem ser escritos conforme modelos
preconcebidos, circulados conforme as regras da administração pública e
disponibilizados somente para pessoas autorizadas, conforme o “devido processo legal”.
! 85
Tribunal, enfatizando o modo como diferentes profissionais, como a secretária, os
estagiários e os assessores, “mexem” e “cuidam” desses artefatos, levando em
consideração tanto seus aspectos formais e materiais quanto seus aspectos referenciais.
Descrevo principalmente duas características desses artefatos que são particularmente
importantes para esses profissionais: sua temporalidade e sua confidencialidade. A
temporalidade de alguns tipos de processos, que podem ter seu prazo expirado, impõe
restrições à ação dos funcionários do gabinete e exigem a construção de mecanismos
para organizar ou gerir os documentos. Se a temporalidade limita a ação de quem está
dentro do órgão antitruste, por outro lado, o acesso restrito que alguns documentos
podem ter limita a possibilidade de ação de quem não faz parte do CADE. Descrevo
como a confidencialidade dos documentos é producente de uma separação entre
perspectivas de dentro e fora do CADE, não apenas pela imposição de um limite
interpretativo, mas também pela restrição da circulação das pessoas dentro do órgão.
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88
“Elizabeth Mercier Querido Farina, 51. An economist graduated from USP in 1976, with a PhD in
industrial organization obtained from the same university in 1983, Farina is often reputed as one of the
“pioneers” of antitrust economics in Brazil. She was a professor of microeconomics and industrial
! 86
decorrentes das entrevistas realizadas no meu mestrado, também facilitaram a
pesquisa.89
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organization, and dean of the department of economics of USP by the time of her appointment, and had
experience working as an economic consultant in antitrust cases presented before CADE, and in
publishing academic pieces about competition policy […] After serving as CADE’s president until 2008,
in 2012 Farina retired as a professor, and became the president of the Sugar Cane Industry Union in
Brazil (UNICA), the largest industrial association of the sectors of sugar and bioethanol production. In
2013, she was appointed a member of FIESP’s Council of Agribusiness” (Miola, 2014, p. 287).
89
Somando-se a essas relações pessoais, minha orientadora de mestrado, a professora Ana Cristina Braga
Martes, da FGV-EAESP, era casada com um ex-conselheiro do CADE, o jurista e professor da
Universidade de São Paulo, Ronaldo Porto Macedo, que participou da minha banca de qualificação de
mestrado.
! 87
Os votos e as discussões das sessões de julgamento do CADE são pouco
compreensíveis para ouvintes não muito familiarizados com o direito ou a economia da
concorrência. É comum que jornalistas, no final do julgamento de um processo,
aproximem-se dos assessores dos conselheiros ou de advogados para que estes
expliquem de forma mais simples aquilo que foi decidido pelo plenário. Não é raro
também que advogados peçam para seus pares um esclarecimento sobre algo discutido
no julgamento. Além disso, há poucas controvérsias entre os conselheiros e raros
discursos memoráveis de advogados. A maior parte dos julgamentos é decidida em
comum acordo entre os conselheiros, sem discussão entre eles. Muitos meses depois,
um assessor me explicou que essa dinâmica dos julgamentos do CADE era proposital,
um espécie de performance (como todo julgamento) que visava produzir uma imagem
de tecnicidade e unidade para o conselho. Também aprendi depois que no dia anterior a
todo julgamento público, os conselheiros, o procurador-geral do órgão e o presidente se
reúnem de portas fechadas para discutir os casos que serão apresentados e “evitar
qualquer surpresa desagradável” na sessão pública, ou seja, qualquer desacordo mais
contundente entre os conselheiros. Chama-se essa reunião de “seminário interno” ou de
“plenarinho”90.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
90
Sobre essa prática, o livro comemorativo de 50 anos da política de defesa da concorrência explica:
“uma prática iniciada nesse período, a realização do seminário interno, se mantém até hoje. Trata-se de
uma reunião, realizada na véspera da sessão pública de julgamentos, na qual os conselheiros se encontram
para discutir pontos de vista, ideias, experiências e trocar informações gerais sobre os temas que
envolvem os casos a serem julgados. Naquele final dos anos 1990, quando a prática se estabeleceu, o
Cade ainda carecia de instrumentos materiais, como apoio para pesquisas de jurisprudência, e os
seminários internos serviam para prover os conselheiros de melhores condições e respaldo técnico para
realização de suas análises e conclusões” (CADE, 2013a, p. 61)
! 88
relatores, em particular na análise antitruste restrita ao acesso do público. Acompanhar
o julgamento não parecia muito diferente para mim do que ler os votos que eram
disponibilizados no website do CADE no mesmo dia.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
91
“Fernando Magalhães Furlan, 39. Furlan held two undergraduate degrees by the time of his
appointment: in law, obtained from UnB in 1993, and in management, obtained from the State University
of Santa Catarina (UDESC), in 1990. Besides having a master’s degree in International Relations, and a
PhD in Political Science, both obtained from the University of Paris I – Pantheón Sorbonne, between
2000 and 2006, Furlan had also attended a program on management of governmental performance,
organized by Harvard University School of Government and School of Business (2005), and a program
on international economic diplomacy at Georgetown University (2004). A professor of law in Brasília
between 1995 and 1998, since the early 1990s Furlan occupied positions in government. Between 1991
and 1993, he was a legal advisor at the National Congress, first of his father’s office, a representative
elected by the PPB, and later in the office of Inocêncio Oliveira, of the PFL. In 1994, he became a public
official at the Brazilian Supreme Court (STF), and served until 1995. He also worked as an executive of
foreign relations at the Brazilian food conglomerate Sadia SA (1995-2001), and as a foreign associate of
McDermott, Will & Emery, in Chicago and Washington (1996), and of O’Connor and Company (1997)
in Brussels, in the areas of international trade and World Trade Organization (WTO). In 2001, after
participating in the internship program PinCADE, Furlan was appointed Attorney-General of the council,
and served until 2003. From 2003 to 2007, he was the Chief of Staff of the Ministry of Development,
Industry, Commerce and the Director of the Department of Economic Defence. The Minister between
2003 and 2007 was Luiz Fernando Furlan, who until then was the CEO of Sadia SA and Furlan’s cousin.
After serving as a commissioner for two years, Furlan was CADE’s president between 2010 and 2012.
Since 2013, he owns a consultancy firm on competition policy, international trade, and regulation” (Miola,
2014, p. 300).
92
“Olavo Zago Chinaglia, 33. Graduated in law from USP in 1996, Chinaglia obtained an MBA in
corporate law in 2003, and a PhD in corporate law from USP in 2008. A professor of business law since
2002, Chinaglia was a corporate and competition lawyer since graduation, working as an associate at L. O.
Baptista Advogados (1997-1999), Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados (1999-2000), and later as a
partner at Advocacia Del Chiaro (2000-2006 – founded by José Del Chiaro, former SDE between 1989
and 1991), and Velloso, Pugliese e Guidoni Advogados (2006-2008). Chinaglia was the son of Arlindo
Chinaglia, a congressman of the Worker’s Party (PT) and president of the House of Representatives by
the time of Olavo’s appointment to CADE. After leaving CADE in 2012, since 2013 Chinaglia is a
partner and coordinator of the competition law area of Veirano Advogados, and a consultant of the
International Competition Network (ICN)” (Miola, 2014, p. 301).
! 89
A professora Farina colocou-me também em contato com um funcionário da
Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE-MF), Ricardo Faria. A legislação
de 1994 estipulava que a análise econômica de atos de concentração, chamada de
“análise estrutural dos mercados”, deveria ser feita primeiramente pela SEAE, sendo
depois enviada ao CADE para julgamento ou instrução complementar. Como minha
pesquisa tinha a intenção de investigar as práticas envolvidas na análise dos processos
administrativos, a entrada e o acompanhamento da atividade da SEAE também seriam
necessários para descrever etnograficamente práticas de conhecimento antitruste.
Contudo, faltando alguns meses para a entrada em vigor da nova lei, a SEAE também
passava por uma fase de transição e a procuradoria do órgão não estava autorizando
mais a entrada de estagiários. A análise que até então era realizada na SEAE passaria a
ser feita pela Superintendência-Geral do novo CADE a partir de julho. Segundo Ricardo
Faria, alguns funcionários da SEAE já estavam ensinando a funcionários do CADE
como fazer essa análise. Não haveria mais “análise antitruste” para acompanhar dentro
desta Secretaria, cuja função ficaria restrita à “advocacia da concorrência”, realizando
estudos e pareceres para o Ministério da Fazenda, considerando aspectos concorrenciais
dos setores da economia brasileira.
! 90
contribuiu para alterar esta perspectiva. A ICN é uma organização ou uma “rede virtual”
que “proporciona a órgãos de defesa da concorrência um espaço informal para manter
contatos frequentes e endereçar preocupações práticas da política concorrencial” (ICN,
2009). Conforme explica o website da rede, a globalização crescente das empresas faz
com que casos antitruste similares sejam cada vez mais frequentes, visto que grandes
empresas fusionam-se em diversas jurisdições ao mesmo tempo. Nesse contexto, a ICN
contribuiria ao promover a adoção de “padrões e procedimentos superiores na política
concorrencial ao redor do mundo”, formulando propostas para a “convergência
procedimental e substantiva” e facilitando a cooperação internacional. A convergência
seria benéfica para “agências membros, consumidores e as economias dos países” (ICN,
2009, p. 2).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
93
A OPEP é uma organização intergovernamental permanente, sediada em Viena, Áustria, criada na
Conferência de Bagdá em 1960. Composta atualmente por 12 países, entre os maiores produtores de
petróleo do mundo, seu objetivo é unificar e coordenar as políticas de produção de petróleo entre os
! 91
entre empresas que atuam em diversos países do mundo são avaliados somente a partir
de cada jurisdição, de acordo com suas próprias legislações concorrenciais ou antitruste.
A ICN, assim como o Global Forum on Competition organizado pela OCDE,
proporciona um espaço de diálogo do qual podem surgir práticas convergentes entre os
países, embora isto não tenha resultado numa política internacional de defesa da
concorrência.94
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
países-membros, “garantindo a estabilização dos mercados de petróleo para assegurar uma oferta regular,
eficiente e econômica de petróleo aos consumidores, uma receita estável para os produtores e um retorno
justo de capital para aqueles que investem na indústria do petróleo” (http://www.opec.org/
opec_web/en/about_us/24.htm).
94
O Global Forum of Competition também funciona, como a ICN, promovendo “melhores práticas” entre
agências de defesa da concorrência por meio de eventos e workshops.
95
Sobre os interesses em jogo na construção da ICN e sobre seu papel em contribuir para a convergência
de práticas e regimes legais, ver Aydin (2010).
! 92
buscando reforçar uma imagem de solidez institucional. Conforme folhetos explicativos
em inglês, distribuídos pelo CADE durante o encontro, a lei representava um “marco
histórico e decisivo para o desenvolvimento da política de defesa da concorrência no
Brasil”.
Em março de 2012, ao descobrir que a 11a conferência anual da ICN seria no Rio
de Janeiro, fiz a inscrição pela internet sem ter certeza sobre os requisitos necessários
para participar deste evento. No dia seguinte, recebi um e-mail do mesmo Ricardo Faria
da SEAE com quem havia conversado uma semana antes. Ricardo, coincidentemente,
havia recebido meu pedido de inscrição, pois ele era um dos responsáveis pela
organização. Ele disse que tentaria me incluir na cota de participantes da SEAE como
um “NGA” (Non-Governmental Advisor) indicado pelo Ministério da Fazenda. Esta
posição me permitiria assistir a todos os workshops e conferências do evento, em geral
restrito a funcionários das agências antitruste, acadêmicos (economistas ou juristas)
renomados, advogados e consultores reconhecidamente atuantes na esfera do antitruste.
! 93
que mistura o conhecimento jurídico e o econômico”96. Não por acaso o professor
chinês era formado em direito pela Universidade de Harvard, com mestrado em
economia pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology). A facilidade com que
profissionais de diferentes países discutiam questões relativas à política antitruste só é
possível, como explicado no capítulo anterior, pelo fato de técnicas, conceitos e práticas
serem extremamente similares em diferentes jurisdições, mesmo com tradições jurídicas
ou trajetórias políticas diversas. O evento organizado pelo CADE e pela ICN
exemplificava claramente como essa linguagem comum estava consolidada.
! 94
localidades. Durante uma palestra, um advogado norte-americano de meia-idade me
disse: “Concorrência?”, perguntou ele apontando para dois conselheiros da autoridade
antitruste da Armênia, “aqueles ali ainda não têm nem mercados [...] precisam fazer
mercados antes de pensar nisso”. Parecia evidente para os profissionais do antitruste,
dado os painéis e as palestras do evento, que a política de defesa da concorrência ou
antitruste ali discutida não consistia somente em ações para prevenir ou reprimir
condutas empresariais potencialmente prejudiciais à concorrência, mas antes de tudo em
produzir a própria concorrência, incluindo aquilo que a concorrência supostamente
pressuporia, ou seja, os “mercados” e os “agentes” que neles atuam. Esta concepção
sobre os objetivos da política antitruste e sobre as próprias condições de existência da
“concorrência” acabou sendo fundamental, como ficará mais claro nos próximos
capítulos, para o meu próprio modo de observar e descrever as práticas envolvidas na
instrução de processos administrativos.
! 95
sobre o trabalho no dia a dia”. Carlos pediu-me para que eu o procurasse na próxima
sessão de julgamento para que ele se lembrasse de perguntar aos seus pares como minha
pesquisa poderia ser realizada. Se o evento havia me inserido mais profundamente no
universo das dificuldades e dos desafios dos profissionais do antitruste, minha inserção
num gabinete do Tribunal do CADE exigiria o uso de procedimentos administrativos e
seus artefatos.
Na data da sessão de julgamento realizada após o evento da ICN fui ao CADE, que
ainda estava localizado no Setor Hoteleiro Norte da capital federal, para encontrar o
conselheiro. No fim da sessão, levantei-me e fui ao plenário quando, em geral,
conselheiros costumam cumprimentar ou despedir-se de advogados. Conversei com o
conselheiro que me apresentou ao procurador-geral do CADE. Quando perguntei sobre
os procedimentos necessários à autorização para a realização da pesquisa, o procurador
disse que eu precisava protocolar um requerimento endereçado ao gabinete do
conselheiro, que então o enviaria à procuradoria do órgão para que esta elaborasse um
parecer sobre o pedido. Mostrei ao procurador uma carta que já havia sido endereçada
ao presidente do CADE, Olavo Chinaglia. O procurador disse que aquela carta não
“tinha valor”, pois teria que ser endereçada ao gabinete e “protocolada” formalmente.
Segundo ele, o documento não estava na “forma mais adequada”. Imediatamente fui ao
centro comercial mais próximo do CADE e alterei o documento para que pudesse
protocolá-lo ainda no mesmo dia. O conselheiro parecia confiante de que não haveria
nenhum empecilho para a realização da pesquisa.
Uma semana depois de protocolar o documento, voltei ao CADE para uma reunião
atendendo ao pedido da assessora e chefe de gabinete do conselheiro. A assessora e o
conselheiro me receberam na sala de reunião com um ar de decepção. Disseram que a
procuradoria autorizara minha entrada no CADE, porém eu não poderia “observar” os
autos confidenciais. Como os autos confidenciais, quando existem num processo, estão
sempre anexados conjuntamente aos autos públicos, eu teria que permanecer numa sala
separada daquela dos assessores, com horário restrito para realizar a pesquisa e
! 96
“observar” os autos. Esta opção restringiria muito as práticas que eu poderia observar e
as pessoas com as quais eu poderia me relacionar. A chefe de gabinete me disse que era
formada em ciências sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) na
mesma universidade em que eu cursava o doutorado e que, por isso, compreendia
perfeitamente a necessidade que eu tinha de “estar presente” na mesma sala que os
assessores. “Por que”, perguntou ela indignada, “alunos de graduação em economia ou
direito podem estagiar no CADE e um aluno de pós-graduação em antropologia não
pode?”. O conselheiro e a assessora sugeriram que eu obtivesse uma carta do reitor da
UFRJ endereçada diretamente ao presidente do órgão, o que, a meu ver, seria pouco
provável de conseguir.
Minha primeira reação foi então ler o tal parecer da procuradoria que
aparentemente limitava bastante minha presença no órgão. Contudo, a assessora não
permitiu que eu o lesse detalhadamente naquele momento. Segundo ela, o parecer,
agora parte de um memorando, era apenas “para circulação interna” e eu não poderia
tirar uma cópia dele naquela ocasião. Ela pediu para que eu fizesse um requerimento
solicitando cópia integral do memorando no 08700.002588/2012-01, registrando-o no
setor protocolar do órgão. No dia seguinte protocolei o pedido. A autorização me foi
dada, mas não me disponibilizaram o memorando. Quando conversei novamente com a
assessora, ela disse que ele teria sido remetido novamente à procuradoria e “logo mais”
poderia ser acessado. Decepcionado e angustiado com a possível longa espera do
retorno do documento ao gabinete, passei a refletir sobre outras possibilidades de
entrada no órgão.
! 97
documentos policiais, a imposição de incerteza e de espera é um recurso de poder eficaz
para essas organizações. Mas a espera, nesse caso, também era resultante da própria
característica de um tipo de documento, o memorando. Como a chefe do gabinete me
explicou, este documento “fica na procuradoria”. Para que fosse enviado ao gabinete,
um requerimento teria que ser feito pelo próprio gabinete.
! 98
O “termo de ciência e compromisso” que assinei na sala do chefe de gabinete da
presidência consistia em um documento de três páginas que me franqueava acesso aos
autos de processos administrativos, “COM EXCEÇÃO” (grifos no original):
! 99
como me foi dito depois por outro assessor, por que não teria sido aventado mais
prontamente?
A entrada recente do conselheiro no CADE explica parte dessa demora. Talvez por
desconhecimento ou por insegurança, a presença de um pesquisador em seu gabinete
poderia ser considerada inconsequente por outros conselheiros ou pela presidência. O
fato de o chefe do gabinete da presidência ter ele mesmo redigido o termo de
compromisso com a procuradoria conferiu à pesquisa um caráter mais institucional, que
escapa da responsabilidade exclusiva de seu gabinete. Da mesma forma, a assessora,
então chefe do gabinete, responsável pelo acompanhamento de todos os processos
administrativos e pela gestão pessoal dos outros assessores, poderia acreditar que não
fosse totalmente factível uma pesquisa deste tipo com aquele parecer da procuradoria. A
interpretação do parecer da procuradoria por parte do conselheiro e de sua assessora
dependia, portanto, de certas condições derivadas de suas posições relativas ou de
deveres no órgão antitruste.
Seguir os documentos que permitiram o acesso ao gabinete, por sua vez, constituiu
uma necessidade tanto quanto uma forma de descrever as relações que eles produzem e
os sentidos que são dados a eles. Duas considerações sobre a agência desses artefatos
merecem ser apontadas por ora. Em primeiro lugar, como exemplificado pela
recomendação do procurador do CADE, a capacidade que minha carta de requerimento
tinha de fazer agir e comandar outros procedimentos internos do órgão – o “valor” do
! 100
requerimento – dependia de uma certa característica formal do documento: de para
quem estava endereçada a carta e como ela foi entregue a alguém do conselho. Como a
carta não havia sido protocolada corretamente, ou seja, entregue no guichê de
atendimento acessado pela rua lateral ao CADE, ela não possuía valor jurídico ou
administrativo. Por outro lado, a interpretação dos documentos era igualmente relevante
para definir aquilo que poderia ser feito com eles. Conforme ilustrado com o parecer da
procuradoria, a possibilidade ou não de permanecer diariamente no gabinete do
conselheiro dependia fundamentalmente de uma interpretação que tornasse possível a
redação de um termo de compromisso para o pesquisador.
Como argumenta Matthew Hull (2012a, p. 26) em sua etnografia sobre a burocracia
paquistanesa, não é possível compreender as práticas de organizações governamentais
dando atenção apenas à circulação dos documentos e às suas características formais,
materiais ou estéticas. A interpretação do texto contido nesses documentos é igualmente
importante para seus funcionários. Por isso, podemos caracterizar grande parte das
práticas de órgãos estatais, inclusive as do CADE evidentemente, como “práticas de
documentação” (Riles, 2006b). Essa expressão torna evidente o duplo sentido do verbo
“documentar” e suas diferentes formas de ação, ao mesmo tempo a organização de
documentos (como artefatos da prática burocrática) e o registro escrito de informação
ou conhecimento. Como o dicionário Aurélio define:
! 101
2.4. Mexendo e cuidando de processos
! 102
No andar térreo do edifício estão o plenário, onde ocorrem as sessões de
julgamento e distribuição de processos, a biblioteca, uma sala da OAB, onde os
advogados podem aguardar as sessões de julgamento ou imprimir documentos e acessar
a internet, o escritório do Ministério Público Federal, que tem um representante no
CADE, e a Coordenação-Geral Processual, o “setor protocolar”, como também é
chamado, por onde devem entrar todos os documentos enviados para o órgão. O setor
protocolar possui um guichê, acessado também pela calçada da W2, no qual advogados
devem entregar petições e solicitar cópias de peças processuais.
! 103
com órgãos antitruste de outros países, a Assessoria de Comunicação Social (Asscom),
que divulga as notícias do CADE e faz a intermediação com jornalistas, a Assessoria de
Planejamento e Projetos (Assplan), que coordena eventos e as atividades entre todos os
departamentos do órgão, e a Procuradoria Federal Especializada junto ao CADE
(ProCADE).97
! 104
quarenta anos. O presidente e vice-presidente da Superintendência-Geral também
tinham aproximadamente esta idade, indicando em parte como o ganho de relevância
recente da política antitruste tem gerado um grande número de jovens profissionais
especializados em direito e economia do antitruste ou da concorrência. Sobre a
nomeação desses profissionais para o CADE, vale notar que estes costumam ser
indicados por diferentes áreas do governo que possuem mais influência sobre o órgão
antitruste. Como um assessor me explicou, “existe o conselheiro indicado pelo BNDES,
os conselheiros do ministro da Justiça, o conselheiro do ministro da Fazenda e os outros,
acadêmicos ou funcionários públicos, pra variar”.
Como ilustrado na planta abaixo (figura 4), o gabinete em que permaneci tem duas
portas, uma que dá acesso direto à sala do conselheiro, utilizada somente por ele, e outra
que abre para a sala de espera, onde ficava a secretária. As salas do gabinete estavam
então com poucos objetos decorativos devido à recente mudança para o edifício. Os
únicos objetos que havia eram cadeiras, mesas, computadores, telefones e armários em
fórmica bege. A sala de reuniões era utilizada principalmente em encontros com
advogados das partes requerentes ou representadas, e também nas reuniões internas
entre assessores e o conselheiro. A sala dos assessores tinha mesas de trabalho e
computadores para três assessores e dois estagiários. Além dos computadores e das
impressoras, era comum a presença de livros de economia ou direito e revistas
especializadas, espalhados pelas mesas ou dentro das gavetas e dos armários instalados
sob medida. A sala do conselheiro Carlos já estava um pouco mais personalizada, com
pôsteres e porta-retratos que ele havia trazido e uma estante aberta de livros, cuja
coleção incluía obras de economistas clássicos, tais como Adam Smith e David Ricardo.
! 105
SALA DE REUNIÕES
SALA DOS
ASSESSORES
SALA DE ESPERA
SALA DO
CONSELHEIRO
CORREDOR
WC
! 106
conselho pelo Partido dos Trabalhadores, muito pouco compartilhada por outros
funcionários do órgão.
Para mim, os processos pareciam ser importantes somente no sentido de que neles
estavam os requerimentos de empresas e suas justificativas. Além disso, os processos
transportavam e continham informações sobre a realidade econômica em que atuavam
as partes. Ler e interpretar seriam as principais ações a serem realizadas com esses
conjuntos de papéis. Não pensava que a atenção dada à organização e à gestão desses
artefatos, tornando explícito seus aspectos materiais, fosse algo relevante para os
funcionários do órgão antitruste. Como explica o antropólogo Matthew Hull (2012a, p.
12), a percepção de que documentos, como os processos, ficam inseridos em coisas que
realmente importam, dando acesso imediato àquilo que eles documentam, torna-os
“invisíveis”. Como descrevo no capítulo seguinte, os autos processuais têm também
essa função de produzir informações que possibilitam a análise e o julgamento de
processos. Porém, este não era certamente o motivo principal de a secretária do gabinete
se importar com eles. Procurando mostrar que “ver” os processos era importante para
compreender o trabalho do CADE, a secretária me explicou algumas de suas
características, apontando para os processos abaixo que estavam na mesa de uma das
assessoras do gabinete:
! 107
Figura 5: Autos de processos na mesa de um dos assessores
! 108
a separar volumes (e documentos) que fazem parte de um mesmo processo. Quando um
documento, uma petição, por exemplo, é colocado pela secretária na mesa de um
assessor (ou estagiário), este o insere no processo correspondente, evitando assim uma
possível mistura imprópria entre documentos de processos distintos. Uma eventual
desorganização dos documentos pode levar a uma invalidação da própria decisão do
conselho por perda de um documento relevante, a desconsideração de provas e
evidências importantes na construção de um julgamento, ou mesmo a “perda do prazo”
do processo (ver abaixo).
! 109
eram todos de revistas deste tipo, fazendo com que ele tivesse, naquele momento, um
total de 12 volumes, número considerado grande.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
99
A fita vermelha dos volumes confidenciais remonta a uma tradição do século XV, quando o governo da
Espanha começou a amarrar documentos estatais ou legais com uma fita vermelha. Utilizada
constantemente nas colônias inglesas nos séculos posteriores, o termo red tape passou a ser entendido
como o excessivo uso de formalidade burocrática em organizações estatais ou privadas. A expressão
cutting the red tape tornou-se um sinônimo de desburocratização em países de língua inglesa (ver Gupta,
2012; Hull, 2012a, p. 116).
! 110
por várias tarefas, entre elas a separação dos documentos pelos assessores do gabinete.
Quando um documento chega ao gabinete trazido por um dos funcionários do
“protocolo” nos carrinhos de rodinha que cruzam os corredores diariamente, a secretária
o redistribui para o assessor responsável pela instrução do processo correspondente. Isto
requer saber a qual processo o documento se refere, além de qual assessor “cuida”
dele.100 Ler o documento – sua primeira página pelo menos – e identificar o processo
correspondente pelo seu número protocolar ou pelo nome das partes é uma tarefa
corriqueira, exigida várias vezes por dia assim que o documento chega ao gabinete,
visto que uma nova petição das partes pode alterar o prazo de um processo ou ainda
viabilizar a elaboração de um voto do conselheiro para a próxima sessão de julgamento.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
100
Neste gabinete, a secretária havia criado sua própria base de dados no software Microsoft Access para
saber quem era o responsável pelos processos e, portanto, pelos documentos que ela estava recebendo.
! 111
Figura 6: Armários de cada assessor com os processos sobre seu cuidado
! 112
um conhecimento “mais jurídico”. No gabinete em que eu me encontrava, o conselheiro,
sendo economista de formação, preferia ter estagiários cursando direito, pois o
ajudavam a redigir e a analisar certos temas em que ele não se sentia tão seguro,
especialmente na instrução de processos do tipo PAs. O trabalho dos estagiários
costumava ser o de auxiliar os assessores na investigação dos casos. Sobre os assessores,
apenas os mais experientes trabalhavam com os dois tipos de processos. Mas mesmo
estes tinham suas preferências entre os dois tipos. Assessores que não conseguiam
instruir ambos os tipos de processos e que não faziam questão de aprender eram mal
vistos pelos outros, sendo considerados “típicos funcionários públicos”.
! 113
documento também permite às partes de um processo o acompanhamento das ações que
são realizadas com ele. Por meio do website do CADE é possível procurar o processo e
identificar quais foram os últimos documentos produzidos e anexados a ele e saber onde
ele está localizado no órgão.
A maior parte das ligações atendidas pela secretária diz respeito à circulação, à
visualização e ao conteúdo dos documentos. Alguns dias depois de iniciada minha
pesquisa no gabinete, um advogado ligou reclamando que ofícios foram enviados às
partes pedindo informações similares àquelas que ofícios anteriores já haviam solicitado.
Após passar a ligação para o assessor responsável pelo processo, a secretária explicou
que isso pode ter acontecido por um erro do gabinete ou por uma falta de resposta ao
ofício anterior. Pouco tempo depois, outro advogado ligou pedindo para que o gabinete
autorizasse a cópia de um processo ou de parte de um processo ao protocolo. Ela
explicou ao advogado, que segundo ela deveria ser um pouco inexperiente, que nesse
caso o protocolo deve enviar ao gabinete um requerimento de cópia que precisa ser
aprovado pelo gabinete, assinado e reenviado ao protocolo. O setor protocolar então
emitiria um GRU (Guia de Recolhimento da União) que deveria ser pago pelo escritório
de advocacia e depois recolhido no protocolo. Segundo a secretária, “advogados mais
espertos ‘pedem vista’ do processo e tiram foto dele, sem precisarem fazer um
requerimento de cópia”.
Nesse mesmo dia, um representante das partes, ainda estagiário em direito, entrou
no gabinete pedindo para falar com um assessor para que uma petição sua fosse deferida.
Após o advogado sair da sala, a secretária disse: “não sei como aparecem aqui”. Ela se
! 114
referia ao fato de que os advogados não poderiam subir ao terceiro andar do CADE sem
que tivessem marcado uma reunião pelo sistema do conselho ou ao menos telefonado
para o gabinete.102 O advogado aproveitou para deixar o memorial de um caso que seria
julgado no dia seguinte. Memoriais são documentos endereçados ao conselheiro que
resumem o caso a ser julgado e explicitam claramente a posição da parte interessada no
julgamento próximo. Raramente lidos pelo conselheiro-relator, sua entrega, segundo um
dos assessores, se justifica em parte como modo de se aproximar de assessores e do
conselheiro antes do julgamento, demonstrando uma consideração maior para com ele.
O memorial serviria também e principalmente para informar aos conselheiros não
relatores – que não são responsáveis pelo processo – sobre casos que irão a julgamento
mas que eles podem desconhecer.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
102
Essas incursões de advogados não são incomuns. Eles costumam ir a reuniões em outros gabinetes ou
em coordenações da SG e aproveitam a ocasião para conversar ou realizar um pedido mais informal em
outro local do CADE.
! 115
“Quem deve assinar esse ofício? Você pode deferir isso também?”. Os funcionários do
gabinete perguntavam inclusive sobre a localização do processo no próprio gabinete,
algo que incomodava muito a secretária, pois, segundo ela, se os assessores e os
estagiários “cuidassem” apropriadamente de seus processos, deveriam ao menos saber
onde eles estavam. O conselheiro, que estava há pouco tempo no cargo, afirmava que
não poderia realizar seu trabalho sem ela e que, para onde quer que fosse após o CADE,
a levaria junto.103
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
103
Dificilmente isto seria possível, na medida em que as secretárias do CADE, todas mulheres, são
terceirizadas.
! 116
exatamente como seria aplicada a nova lei e acreditando que esta poderia ser mais rígida
com as concentrações entre empresas, houve no primeiro semestre, ainda antes da
entrada em vigor da nova lei, um aumento muito grande de requerimentos de atos de
concentração que abarrotaram de papéis as salas do conselho.
Esses atos de concentração que haviam sido protocolados antes da mudança física
do órgão para o novo endereço e que teriam que ser julgados com base na legislação
anterior passaram a ser chamados de “estoque”, sendo que um dos objetivos da
presidência do CADE nesse período era “acabar” com esses processos, julgando-os o
mais rapidamente possível. Além do risco de “perder o prazo” dos processos, agora
muito mais numerosos, pretendia-se apresentar um órgão bem mais eficiente com a
nova legislação e, por isso, havia uma tentativa coordenada de “soltar” (ou seja, julgar
ou arquivar) uma quantidade grande de processos por sessão. Tornou-se comum apontar
como critérios de “produtividade” ou “eficiência” do CADE a quantidade de processos
instruídos por mês e o tempo em dias necessário para fazê-lo.
! 117
prazo” desses processos seria catastrófica para a reputação e a carreira do assessor
responsável e do conselheiro, já que a operação (fusão, aquisição etc.) sob análise acaba
sendo aprovada automaticamente. 104 Os ACs têm 60 dias para serem instruídos e
julgados, mas este prazo pode ser estendido indefinidamente, contanto que um ofício
requerendo mais informações das partes seja enviado, aumentando o prazo com os dias
estipulados no próprio documento, em geral 15 ou 30 dias para a resposta. Uma tarefa
importante do chefe de gabinete é acompanhar o “vencimento” desses ofícios, atentando
para os prazos de todos os processos do gabinete.
Para fazer isso com mais facilidade, o chefe de gabinete produziu uma tabela no
computador que pudesse auxiliar todos os assessores, os estagiários, a secretária e o
conselheiro a identificar suas prioridades no dia a dia do trabalho. Este arquivo
eletrônico, uma enorme tabela denominada “Monitoramento de Processos”, informa
dados relevantes de mais de uma centena de processos que estavam sob a
responsabilidade do gabinete. Num pequeno recorte desse arquivo apresentado na tabela
abaixo, podemos identificar as principais variáveis que mobilizavam então o trabalho
dos funcionários do gabinete e as temporalidades que deveriam ser levadas em conta.105
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
104
Durante o período em que permaneci no gabinete não houve nenhuma “perda de prazo”, embora
existissem relatos de que um antigo assessor cometeu essa falha e que, por isso, tinha sido transferido
para outro departamento.
105
A tabela apresentada abaixo altera os dados relativos dos número dos processos, dos nomes das partes,
dos mercados relevantes e das datas de protocolo, visando preservar possíveis informações confidenciais
dos processos instruídos pelo conselho. A visualização de um pequeno recorte alterado da tabela tem o
objetivo de apontar as variáveis e as opções que produziam restrições e condições para a instrução dos
processos no gabinete.
! 118
! 119
A tabela, um documento que podia ser acessado na pasta eletrônica compartilhada
do gabinete, discriminava, para cada processo, seu número, o assessor responsável, seu
“tipo” (AC, PA, AP, entre outros) e as partes envolvidas (empresas).106 Além disso, a
tabela indicava se o processo tinha ou não um parecer prévio de algum outro órgão que
compunha o SBDC: a SDE ou a SEAE. Como explicado no capítulo anterior, antes da
nova legislação, os processos administrativos eram instruídos pela SDE e a SEAE e
seguiam posteriormente para o CADE para uma instrução complementar, caso fosse
necessário, e julgamento.107 A existência ou não de pareceres desses órgãos facilita o
trabalho dos assessores e do conselheiro, principalmente quando esses pareceres são
“convergentes” em termos de análise, pois apontam para um mesmo entendimento do
caso.
A coluna referente ao prazo dos processos no CADE era a única que continha
algumas células em vermelho, indicando que o prazo de 60 dias estava quase sendo
alcançado, exigindo mais atenção quanto à “data para resposta” dos ofícios (ver adiante).
Como não há prazo nos processos que não são atos de concentração, a célula aponta que
esse critério de prazo “não se aplica” ao processo. Outro critério (e temporalidade), que
aparece como relevante, é a prioridade de julgamento de certos processos pela
presidência do órgão. Como todos os assessores e alguns conselheiros sabiam, havia
uma clara intenção do presidente do CADE, expressada em reuniões internas entre
conselheiros, de privilegiar e “fazer andar” mais rapidamente processos relativos às
áreas de “saúde” e “educação”. Como a coluna “mercado” aponta – mercado aqui num
sentido amplo de setor industrial ou conjunto de produtos e serviços relacionados – os
processos de empresas atuantes na área de “serviços médicos e de saúde” e da “indústria
farmacêutica” tinham uma prioridade maior do que os outros. Essa prioridade não
necessariamente impedia a instrução de outros processos, mas devia ser levada em
consideração pelos assessores e conselheiros.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
106
Quando o número do processo se inicia com os números “08012” significa que este foi inicialmente
criado pela SDE, ou seja, o processo será instruído de acordo com a legislação anterior. Já no caso dos
processos com a numeração “08700”, eles foram “abertos” no CADE, após a transferência da sede do
órgão e após a mudança do estatuto legal, como a data do “protocolo no CADE” indica.
107
A SEAE fazia pareceres somente nos casos de atos de concentração.
! 120
processo administrativo, quando está em outro gabinete ou na procuradoria, também
não pode ser julgado. Como o processo está em outro local, que poderá elaborar novos
pareceres ou sugerir outros caminhos de investigação, não há como o gabinete agir
sobre o processo, podendo apenas solicitar seu envio para a continuação da instrução ou
para que possa ser pautado numa futura sessão de julgamento, conforme estipulado na
última coluna da tabela.
Por último, a coluna da tabela “fundo de private equity” servia para apontar uma
das preocupações recorrentes entre conselheiros do órgão. Buscava-se identificar quais
processos envolviam empresas controladas por fundos de investimento que investem e
administram empresas. Essa preocupação dos conselheiros e as características desses
processos serão exploradas em detalhe no capítulo 4 deste trabalho.
! 121
JBS iria “vencer”, ou seja, a partir desse dia o prazo do ato de concentração iria “voltar
a correr”, dentro dos 60 dias que o processo tem para ser analisado. Nesse dia seria
recomendável que o processo tivesse sido julgado, pautado para a próxima sessão de
julgamento, ou que um novo ofício fosse produzido e enviado “parando o prazo” do
processo. Os ofícios – documentos encaminhados às empresas requerentes,
representantes ou concorrentes tendo em vista a obtenção de informações a respeito das
empresas e mercados – têm também, portanto, a função de segurar o “tempo” do
processo. A complexidade e a quantidade de perguntas nos ofícios são critérios
utilizados para se estimar o tempo de resposta das empresas e, por isso, as perguntas são
formuladas levando-se em consideração ao mesmo tempo a necessidade de certas
informações e a maior ou menor urgência de “segurar” os prazos dos processos.
! 122
Figura 7: Quadro com os prazos dos processos, identificados pelos nomes das partes. Um
elemento importante nesse quadro é a identificação do processo pelo nome mais conhecido da
requerente (Microsoft, Amil etc.), que costuma ser o modo de se referir a eles no gabinete
! 123
secretária costumam “contar o prazo” dos processos, construindo tabelas com o
indicativo de quais deles estão alcançando o prazo limite. Para isso, eles abrem os autos
e calculam, pela data de envio e recebimento de cada um dos ofícios, quanto tempo o
processo “ficou parado”, sendo esse o período crítico que faz o prazo do processo
avançar. “Ficar parado” é o tempo entre o momento em que os requerentes dos
processos enviaram uma petição ao CADE e o momento em que o órgão produziu um
novo ofício para os requerentes. O chefe do gabinete, calculando o prazo de um
processo, produziu a seguinte tabela:
Neste caso, a petição inicial das requerentes foi protocolada no dia 4 de abril (o
primeiro mês está equivocado na tabela) e apenas no dia 30 desse mês, 26 dias depois
(indicado em amarelo), o primeiro ofício foi expedido. Nesse período considera-se que
o processo “ficou parado”. Somando-se com o período entre 1o de junho e 6 de junho,
este processo está com 31 dias de prazo, não sendo ainda uma prioridade ou uma
preocupação maior do gabinete. A cor verde indicada no prazo não é um alerta para o
chefe de gabinete, que precisa estar a par do prazo de dezenas de processos do gabinete.
! 124
normalmente de 5 a 30 dias, dependendo da quantidade de informação que o assessor
esteja pedindo e da complexidade esperada de obtenção desse material. A empresa que
não responder ao ofício “tempestivamente” corre o risco de ser punida mais
severamente pelo órgão regulador, receber uma multa ou não obter um parecer
favorável no julgamento. Contudo, conforme ilustrado acima, os ofícios não produzem
apenas informações. Seus prazos funcionam como organizadores das temporalidades
internas do gabinete, definindo os processos mais urgentes e “empurrando para frente”
aqueles que não podem ser analisados no momento.
O envio do ofício, entretanto, exige que a empresa acuse seu recebimento. Caso isto
não seja feito, o prazo pode não ser “parado”. Um e-mail da empresa ou de sua
representante confirmando o recebimento geralmente é impresso e anexado ao processo,
garantindo assim uma prova de que o ofício tinha sido enviado e recebido na data
especificada. Quando as empresas não conseguem responder a tempo ao ofício, elas
costumam pedir uma “dilação de prazo” por meio de uma petição. No segundo semestre
de 2012, como a quantidade de processos era muito grande, os assessores costumavam
conceder tal dilação sem muita hesitação.!
! 125
tinha se sentido mal por ver como era tão detalhado e preciso. Afirmou que, no seu
trabalho, acabava “passando batido” por vários casos, produzindo votos e relatórios sem
qualidade. Segundo Hirokazu Miyazaki (2003), em sua etnografia sobre funcionários de
bancos japoneses, a sensação de “incongruidade temporal”, gerada quando há várias
interseções entre demandas organizacionais, jurídicas e econômicas, resulta em
ansiedades e esperanças divergentes entre os profissionais. Do mesmo modo, no CADE,
as temporalidades que atravessavam as práticas de documentação produziam também
sentimentos que qualificavam e classificavam o valor dos artefatos produzidos.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
109
Conforme a denominação da nova Lei de acesso à informação no 12.527, de 18 de novembro de 2011,
que, no art. 4o, parágrafo III, estipula: “informação sigilosa: aquela submetida temporariamente à
restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do
Estado”.
! 126
O parecer da procuradoria em resposta ao gabinete consistiu basicamente em uma
“Análise da legislação relativa às informações contidas em registros e documentos,
produzidos ou acumulados por órgãos ou entidades públicas” (CADE, 2012, fl. 4).
Neste parecer afirma-se inicialmente que, com base tanto na Lei no 9.784/1999, que
“disciplina o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal”, e
na mais recente Lei no 12.527 de 2011, que “regulamenta o direito constitucional
de acesso às informações públicas”, os cidadãos interessados têm:
Segundo o parecer, a Lei no 12.527, no artigo 21, parágrafo 1o, confere “acesso
restrito”, pelo prazo de até cem (100) anos a contar da data de sua produção, “às
informações pessoais – que dizem respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem
das pessoas – detidas pelo Poder Público”.110 De acordo com a legislação, somente os
agentes públicos legalmente autorizados, as próprias pessoas às quais as informações se
referem, e terceiros, diante de previsões legais, podem ter acesso a essas informações.
! 127
procuradoria afirmou também que, no caso de pessoas jurídicas como “sociedades
empresariais” – um tipo específico de pessoa jurídica – uma série de informações
podem ser consideradas como parte de sua “intimidade” ou “vida privada”: “trata-se de
informações cujo conhecimento coloca, sem dúvida, um empresário ou sociedade
empresária em vantagem competitiva em relação aos concorrentes que não as possuem”
(CADE, 2012, fl. 9).
a) escrituração mercantil;
b) situação econômico-financeira de empresa;
c) sigilo fiscal ou bancário;
d) segredos de empresa;
e) processo produtivo e segredos de indústria, notadamente processos
industriais e fórmulas relativas à fabricação de produtos;
f) faturamento do requerente ou do grupo a que pertença;
g) data, valor da operação e forma de pagamento;
h) documentos que formalizam o ato de concentração notificado;
i) último relatório anual elaborado para os acionistas ou quotistas,
exceto quando o documento tiver caráter público;
j) valor e quantidade de vendas e demonstrações financeiras;
k) clientes e fornecedores;
l) capacidade instalada;
m) custos de produção e despesas com pesquisa e desenvolvimento de
novos produtos e serviços. (CADE, 2012, fl. 9)
! 128
entrada na sala dos assessores do gabinete, alterou minha relação com os documentos,
tornando-a similar àquela que funcionários do gabinete têm com os documentos
confidenciais. Assim como eles, eu poderia agora ver e ler os volumes confidenciais
sem publicar ou divulgar seu conteúdo. Dessa forma, a possibilidade de “mexer” com
este tipo de documento indicava, mais do que qualquer outra coisa, a minha nova
posição no órgão antitruste, diferenciando-me daquela em que os advogados das partes
se encontravam.
! 129
A manutenção da confidencialidade não é apenas uma questão para as empresas,
que podem ter suas informações utilizadas pelos concorrentes. O tratamento
confidencial dos documentos exige constante cuidado por parte do gabinete, pois a sua
incorreta disposição é capaz de invalidar uma decisão do conselho. Colocar nos autos
públicos documentos confidenciais pode ser extremamente danoso para as empresas,
mas colocar documentos públicos em autos confidenciais poderia impossibilitar o
acesso aos autos por parte dos representantes ou requerentes, fazendo com que se
questionem juridicamente os procedimentos de instrução processual. Por isso, quando
são enviados documentos confidenciais ao CADE, é obrigatório que sejam também
enviadas versões públicas. Desse modo, o assessor, o estagiário ou a secretária do
gabinete saberá que o documento é confidencial e o colocará nos volumes devidos.
Porém, tal prática nem sempre é seguida rigorosamente pelos advogados e/ou pelas
empresas. Quando uma petição é recebida sem qualquer cópia ou especificação sobre o
sigilo de seu conteúdo, a secretária geralmente a lê e pergunta ao assessor se o
documento parece conter ou não informações confidenciais. Ela ou algum assessor
telefona para as empresas e seus representantes quando há uma dúvida sobre o caráter
público ou não das informações nos documentos.
! 130
integrantes ou apenas partes interessadas no processo, cada uma delas tem somente a
informação de suas operações e as informações públicas disponibilizadas pelas outras
partes.
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113
Como eu não sabia se era permitido o fornecimento da informação de que existia outro volume
confidencial no processo, perguntei ao coordenador responsável sobre como proceder. Segundo ele, não
havia nada que impedisse uma das partes do processo de saber sobre a existência de outro volume
confidencial. Porém, nada obrigava o analista (eu, no caso) a fornecer essa informação pelo telefone.
114
Por outro lado, a confidencialidade é, ela mesma, criadora da possibilidade de se conceberem as partes
de um processo como “agentes econômicos” (conceito utilizado no parecer da procuradoria), ou como
concorrentes de um mercado. A confidencialidade é um indicativo de que existem estratégias empresarias
em disputa e de que as informações empresariais, fiscais, bancárias, societárias ou industriais são parcela
importante dessas estratégias. Sobre a concepção dos agentes econômicos, ver capítulo 4.
! 131
também pelo fato de que pessoas não autorizadas, que não são parte do órgão antitruste,
não podem estar no mesmo local que esses artefatos. Os documentos restritos, portanto,
limitam a própria circulação de pessoas dentro do órgão, produzindo uma espacialidade
particular, também restrita.
! 132
Na terceira semana de pesquisa no CADE, o chefe de gabinete me ofereceu uma
mesa com um computador dentro da sala dos assessores, para que eu pudesse
acompanhar seus trabalhos. Passei os primeiros meses conversando com assessores,
estagiários, com a secretária e com o conselheiro, tentando compreender e descrever o
que estavam fazendo. Eu esperava encontrar no gabinete um diálogo constante entre
esses profissionais sobre possibilidades de uso de teorias econômicas, a situação de
mercados específicos e os indícios de condutas anticompetitivas praticadas pelas
empresas. Mas, para minha surpresa, esses funcionários estavam aparentemente mais
interessados em saber que ofícios precisavam ser produzidos, que processos deveriam
ser “soltos” na próxima sessão de julgamento e quais documentos poderiam ser
disponibilizados quando os advogados solicitassem uma cópia.
! 133
sujeito às temporalidades relativas aos julgamentos realizados quinzenalmente. As
práticas de documentação envolvem um conhecimento sobre como produzir, enviar,
circular diferentes formas documentais, conhecendo qual a sua eficácia administrativa e
como devem ser utilizadas. Além disso, implicam saber como lidar com diferentes
temporalidades, com formas de acesso e com a organização de vários artefatos
simultaneamente. Essas práticas, portanto, necessitam ser compreendidas tanto pelos
funcionários do órgão antitruste quanto pelas pessoas (físicas e jurídicas) que lidam com
eles, como advogados que representam partes interessadas nos processos.
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115
Na literatura antropológica mais recente sobre documentos, tais características materiais ou formais
servem como um contraponto metodológico e analítico ao que seria uma consideração exclusivamente ou
excessivamente referencial do tratamento etnográfico do material documental (ver Riles, 2006b, 2011a).
! 134
aquele e quem era o seu responsável, o que envolve uma apreciação ao mesmo tempo
da forma e do conteúdo dos documentos.
Os artefatos também estabelecem limites sobre o que é possível ser feito com eles,
produzindo diferentes posições e perspectivas. Em primeiro lugar, os documentos
sigilosos criam uma separação clara entre quem faz e quem não faz parte do CADE,
restringindo quem pode vê-los ou lê-los, mas também quais são os espaços acessíveis a
quem não é um funcionário do órgão antitruste. Os documentos sigilosos, portanto, são
limitados em sua circulação, mas também acabam por limitar a própria circulação de
pessoas. Ao fazerem isso, esses documentos, pelo seu conteúdo particular, também
estabelecem a diferença entre uma perspectiva do órgão antitruste, que tem informações
íntimas de todas as pessoas jurídicas envolvidas no processo, e uma perspectiva de cada
um dos “agentes de mercado”, que não têm as informações compiladas de todos.
! 135
localidades. O segundo sentido da expressão refere-se ao modo como as organizações
estatais governam objetos ou sujeitos por meio dos papéis, ou seja, por meio de
artefatos que, ao serem produzidos e circulados para além dos limites organizacionais,
constituem e exercem formas de controle, regulação ou governo.
! 136
empresas do mercado, ferramentas que produzem um conhecimento sobre uma
realidade considerada externa ao órgão antitruste. No próximo capítulo, explico essa
outra concepção dos documentos por meio da descrição de como os profissionais do
CADE – assessores, analistas técnicos, conselheiros ou coordenadores – fazem para
“definir mercados”.
! 137
Capítulo 3 : Definindo mercados
! 138
Por isso, a definição de mercados era, para ele, condição necessária para a análise
antitruste, garantindo decisões baseadas em “argumentos concretos” sobre o
funcionamento da economia.
A importância central dada por este conselheiro e seu gabinete às práticas que
envolvem definir as “fronteiras” de um mercado na análise de atos de concentração não
é de todo surpreendente. Outros profissionais do antitruste também compartilham da
concepção de que tais práticas são fundamentais. “Não há concorrência em geral, o que
existe é concorrência em um mercado”, me disse um assessor do CADE, formado em
direito, de outro gabinete. “Grande parte do nosso trabalho é identificar qual é este
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
117
Como profissional de carreira do Ministério da Fazenda, Carlos não pensava deixar o serviço público
ao final do mandato no CADE. Ao saírem do CADE, conselheiros que antes de serem nomeados atuavam
como acadêmicos, advogados ou consultores econômicos, costumam receber ofertas de empregos em
cargos mais altos, geralmente em escritórios de advocacia ou consultorias econômicas. Este mandato
temporário dos conselheiros acaba servindo como uma promoção na carreira profissional. A possibilidade
de trabalhar no setor privado ao final do mandato também tem o efeito de reduzir a possibilidade de
conflitos mais tensos entre o órgão antitruste e as empresas e seus representantes. Os advogados e
economistas mais respeitados que representam empresas costumam ser ex-conselheiros do órgão
antitruste.
! 139
mercado, num caso particular”, e continuou: “o problema é que a lei [de concorrência] é
horizontal e os mercados são todos diferentes [...] cada caso é um mercado e é por isso
que se faz a delimitação do mercado relevante”. No CADE como um todo, para que seja
possível apreciar a união entre duas empresas, considera-se indispensável uma
delimitação ou definição de um “mercado relevante”. Para especialistas em direito ou
economia da concorrência, essa definição é suficiente, em muitos casos, para uma
avaliação dos possíveis prejuízos à concorrência gerados com a união de duas ou mais
empresas (McChesney, 1996).
! 140
Sendo fundamental na política antitruste da imensa maioria dos países e, ainda por
cima, caracterizando o trabalho e as motivações do gabinete em que eu me encontrava,
as práticas envolvidas na definição de “mercados relevantes”, além dos conceitos e das
racionalidades que as caracterizam, tornaram-se incontornáveis na tentativa de se
compreender etnograficamente a política de defesa da concorrência. Entretanto, como
constatei logo no início, descrever essas práticas não seria algo trivial, nem mesmo para
alguém formado em economia, que já tenha dedicado horas de estudo ao funcionamento
do sistema econômico e de seus “mercados”. Embora a definição de um mercado pareça
uma tarefa habitual a um economista, este tipo de definição, em que há a necessidade de
uma especificação exata de fronteiras geográficas e de produtos comercializados, é
relativamente raro na análise econômica. Com exceção da área de marketing (ver
Araujo, Finch & Kjellberg, 2010), são poucas as ocasiões em que a definição precisa de
um mercado – de um tipo muito específico de mercado – é tão fundamental quanto no
antitruste (ver Christophers, 2014, 2015; Kjellberg, 2010).118
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118
“Market definition in that rigid sense is a notion unknown in economics more generally. True,
microeconomics works routinely with notions of markets, in both the product and geographic senses.
Outside the antitrust world, however, not even the least Austrian of economists would pretend to be able
to define the product and geographic boundaries of markets with any useful precision” (McChesney, 1996,
p. XVI)
! 141
definir o escopo de aplicação da lei, e como um recorte de relações econômicas,
permitindo visualizar as restrições concorrenciais enfrentadas pelas empresas.
Por fim, coloco essas concepções de mercado da política antitruste em paralelo com
aquelas desenvolvidas na sociologia e na antropologia da economia. Procuro
! 142
demonstrar como tais concepções se aproximam em alguns aspectos e diferem em
outros de uma série de formulações mais clássicas e mais contemporâneas a respeito
dos mercados nas ciências sociais. Mais especificamente, argumento que as abordagens
mais contemporâneas sobre mercados, em especial a chamada perspectiva sociotécnica
ou performativa dos mercados (Callon, 2007; MacKenzie, 2008), influenciada pelos
estudos sociais das ciências e da tecnologia, impossibilitam compreender a relação das
leis e do direito na concepção e na construção de mercados. Quando destacam essa
relação, tais estudos argumentam que as leis e o direito são apenas mais um dos
elementos que participam de arranjos formatadores ou performadores de mercados.
Como procuro demonstrar, essa abordagem desconsidera tanto a particularidade
epistemológica do conhecimento jurídico quanto a perspectiva de pessoas, como os
funcionários do CADE, que, mesmo construindo mercados, se consideram externos a
eles. Argumento que o mercado na política antitruste é concebido principalmente como
um recorte ou um contexto legal e econômico que tem a função de evidenciar relações e
capacidades dos agentes econômicos, permitindo ao analista visualizar um possível
problema concorrencial e, assim, definir a possibilidade de ocorrência de um ato ilícito.
! 143
eram igualmente considerados marginais, sendo a eles proibida a posse de direitos de
propriedade e a cidadania.
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119
“Early markets did not so much control space as they were controlled by spatial arrangements growing
out of the organization of other kinds of social exchange, including gift and tributary practices. These
markets were, in every possible sense of the term, situated phenomena; that is to say, they were assigned
! 144
Os mercados, como espaços bem delimitados nas cidades, eram importantes do
ponto de vista dos governantes, especialmente para evitar abusos por parte dos
comerciantes. Dentro de um espaço segregado era mais simples controlar os preços que
eram cobrados e garantir que estes seriam “estimativas comuns” (publica aetimatio),
correspondentes ao “preço justo” obtido pelo consenso e pela barganha entre
compradores e vendedores (Agnew, 1986; Braudel, 1976). Os mercados garantiam,
assim, a possibilidade de uma situação de “concorrência”, no sentido usual no século
XVI, como vimos no primeiro capítulo, de uma coincidência ou paralelismo no valor
dos preços. A relação entre o mercado e a concorrência, portanto, está intimamente
vinculada a uma configuração espacial e temporal que permite ao governante e aos
compradores “visualizarem” as pessoas e os produtos da troca mercantil. O mercado era
nesse período, segundo Agnew (1986, p. 40), um “lugar para ver” (place for seeing), o
que possibilitava obter resultados mais justos e favoráveis para todos.
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to precise sites – in space and time – in societies where the particularities of place and season were
intricately linked to the dominant patterns of meaning and feeling and where the configuration of the
landscape was itself used as a mnemonic repository of collective myth, memory, and practical wisdom”
(Agnew, 1986, p. 18).
! 145
sentido da noção de mercado passa de um local específico no tempo e no espaço para
um processo ou, ainda, um princípio regulador das trocas.120
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
120
Esses vários sentidos da noção de mercado, como local e como princípio, foram detalhadamente
descritos e utilizados pela antropologia econômica desde seu surgimento, como veremos mais adiante
neste capítulo.
121
Outros dois prêmios Nobel de economia, Ronald Coase e George Stigler, também criticaram a falta de
uma investigação mais detalhada sobre o conceito. Coase (1988, p. 7), que desenvolveu um projeto de
pesquisa sobre o tema, afirma: “in modern economic theory the market itself has an even more shadowy
role than that of the firm”. Para o George Stigler (1967, p. 291): “a teoria econômica preocupa-se com
mercados (e) é, portanto, uma fonte de constrangimento que tão pouca atenção tenha sido dada à teoria
dos mercados”.
! 146
“alocação de recursos” numa economia. A partir de então, quando economistas se
referem a mercados, eles têm em mente o que Gerowski (1998) denomina de “mercado
de troca” (trading market), cuja expressão máxima se deu com o trabalho do
matemático e economista francês Antoine Cournot, para quem:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
122
A perspectiva deste economista, vale enfatizar, não ignorava o aspecto geográfico na definição de um
mercado, mas simplesmente afirmava que esse espaço poderia se estender ilimitadamente dependendo da
forma de interação entre os agentes e, consequentemente, do comportamento dos preços. Segundo
Cournot (1971, p. 51 [1838]): “[mercado é] todo o território em que as partes são tão unidas pelas
relações de comércio irrestrito que os preços se nivelam por toda parte com facilidade e rapidez”.
123
Informação perfeita significa que todos os atores no mercado, automaticamente e sem custo algum,
possuem todas as informações sobre os concorrentes, produtos e preços praticados no mercado
(Swedberg, 1994).
! 147
Originally a market was a public place in a town where provisions and other
objects were exposed for sale; but the word has been generalized, so as to
mean any body of persons who are in intimate business relations and carry on
extensive transactions in any commodity. A great city may contain as many
markets as there as important branches of trade, and these markets may or
may not be localized. The central point of a market is the public exchange,
mart or auction rooms, where the traders agree to meet and transact business.
In London Stock Market, the Corn Market, the Sugar Market, and many
others are distinctly localized; in Manchester the Cotton Market, the Cotton
Waste Market, and others. But this distinction of locality is not necessary.
The traders may be spread over a whole town, or region or country, and yet
make a market, if they are, by means of fairs, meetings, published price lists,
the post-office or otherwise, in close communication with each other (Jevons,
1871, citado em Marshall, 1890, p. 270).
! 148
setores industriais existentes.124 Criticando a literatura anterior que, para eles, partia de
postulados irreais sobre o funcionamento dos mercados – como aquele de que preços
tenderiam à uniformidade e de que produtos teriam características similares – Edward
Chamberlin, na Universidade de Harvard, e Joan Robinson, na Universidade de
Cambridge, pesquisaram práticas e estratégias empresariais e concluíram, em obras
publicadas em 1933, que as relações de concorrência entre empresas são fundamentais
para se compreender o modo como mercados são constituídos e transformados. Se os
autores neoclássicos anteriores entendiam mercados como relações de troca, estes
procuravam concebê-los a partir das relações concorrenciais.125
! 149
diferenciar seus produtos, seria ilusório acreditar ser possível definir precisamente os
limites de um mercado, ou de uma “indústria” ou “commodity”, como ele preferia
chamá-los.128
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
128
“‘Industry’ or ‘commodity’ boundaries are a snare and a delusion – in the highest degree arbitrarily
drawn, and, wherever drawn, establishing at once wholly false implications both as to competition of
substitutes within their limits, which supposedly stops at their borders, and as to the possibility of ruling
on the presence or absence of oligopolistic forces by the simple device of counting the number of
producers included” (Chamberlin, 1950, p. 86).
129
Nessa época, economistas na Universidade de Harvard desenvolviam um grande projeto de pesquisa
sobre os mais importantes setores da economia norte-americana: petróleo, mineração, ferrovias etc. Essas
pesquisas deram origem ao chamado paradigma “Estrutura-Conduta-Desempenho”, importante base
teórica para o estudo concorrencial dos mercados e para a noção de “mercado relevante” que se
desenvolveu em seguida na jurisprudência antitruste (Baldwin, 2007).
! 150
Concluindo esta breve arqueologia, os economistas do campo de OI também
retiveram, de forma ainda mais evidente que os neoclássicos, o sentido original do
termo mercado. Sua descrição e sua definição implicavam a especificação de um espaço
geográfico preciso, onde a troca entre si de produtos ou serviços substituíveis se daria.
Contudo, segundo esses economistas, para que esta localização espacial e material (e
por vezes temporal) fosse possível, seria preciso investigar o contexto do qual
vendedores e compradores consideram fazer parte, ou seja, aquele em que as empresas
acreditam atuar e concorrer com outras efetivamente, além de se investigar a percepção
das opções de escolha que os compradores têm no mercado. Como explico adiante mais
detalhadamente neste capítulo, essa noção se aproxima do modo como antropólogos e
sociólogos têm buscado explicar mercados, pois parte de uma perspectiva nativa dos
próprios agentes de um mercado sobre o ambiente em que eles atuam.
! 151
claramente critérios para identificar uma “diminuição da concorrência” (Werden, 1992).
Essas controvérsias deram origem, dois anos depois, a um novo estatuto legal, o Celler-
Kefauver Act, que alterou o texto da seção 7 da antiga legislação, que agora proibia
“aquisições de ações ou de ativos cujo efeito possa reduzir substancialmente a
concorrência [...] em qualquer linha de comércio em qualquer seção do país”.
A partir desse momento, nos Estados Unidos, por meio de diversas decisões
judiciais, a identificação da “linha de comércio” e da “seção do país” tornou-se um pré-
requisito para a análise e o julgamento de fusões e aquisições entre empresas, ou seja,
para se decidir se uma concentração empresarial é considerada ilícita. A jurisprudência
passou a utilizar então os conceitos de “mercado relevante de produto” (product
relevant market) – também conhecido como “mercado relevante material” – e “mercado
relevante geográfico” (geographic relevant market) como substitutos respectivos das
noções de “linha de comércio” e “seção do país”. Consolidou-se, assim, uma noção de
mercado particular à política antitruste, como aquele que é relevante, no sentido de
pertinente, para a avaliação de um possível “prejuízo à concorrência” (marché pertinent,
no direito concorrencial francês).130
Vale notar que a palavra “relevante” tem uma particular conotação na língua
inglesa, conforme indica sua etimologia. No latim medieval, as palavras relevans e
relevare, significando “levantar” ou “tornar mais visível”, implicavam uma forma de
ação e não um estado ou uma qualidade do mundo. Já no século XVI, a palavra relevant
ganha, no vocabulário jurídico escocês, o sentido de “juridicamente pertinente” (Cunha,
2010; Oxford American Dictionary). A etimologia nos remete à qualidade construída da
noção de relevância ou pertinência. Relevante não é apenas aquilo que sobressai ou que
é saliente (Novo Dicionário Aurélio, 2008), mas aquilo que é tornado relevante.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
130
Ainda sobre o desenvolvimento teórico e prático desses conceitos, um economista do Departamento de
Justiça norte-americano explica: “Much of the intellectual development of the concepts relating to
antitrust market delineation took place in classrooms and seminar halls at law schools and economics
departments, in judges’ chambers and, in the offices of enforcement agencies, law firms, and economic
consultants” (Werden, 1992, p. 125). Aquilo que se pode afirmar é que o conceito de mercado relevante e
as técnicas utilizadas para defini-lo foram sendo aos poucos aperfeiçoados com base em novas teorias
econômicas, novos procedimentos estatísticos e novos casos antitruste que a autoridade norte-americana
enfrentava. A relação com a teoria econômica, em especial com a linha de Organização Industrial, era
evidente, pois a partir da década de 1930 diversos economistas passaram a atuar como experts em
julgamentos antitruste norte-americanos, produzindo pareceres para o governo ou para empresas sobre
aquilo que julgavam ser a correta delimitação do mercado (Werden, 1992).
! 152
No Brasil, em 1962, quando o CADE foi criado, inexistia o conceito de mercado
relevante nos diversos estatutos nacionais que legislavam sobre os “abusos do poder
econômico”. Como já explicado, penalizavam-se administrativamente os “atos
contrários à ordem moral e econômica”, “crimes e contravenções contra a economia
popular” e os “domínios de mercados nacionais” que tivessem como objetivo a
eliminação da concorrência (Forgioni, 2013). A partir dos anos 1990, com a
promulgação de novas legislações concorrenciais e com a presença de mais economistas
como conselheiros do órgão, o conceito passou a ser utilizado com frequência nas
decisões do órgão antitruste (Onto, 2009). O caso da aquisição da empresa Kolynos pela
Colgate, julgado pelo CADE em 1996 e de relatoria da conselheira Lucia Helena
Salgado, é considerado por muitos economistas um marco na política antitruste
brasileira por ter apresentado no voto uma explicação do conceito de mercado relevante
e por tê-lo utilizado para a análise do caso. Essa economista havia acabado de voltar de
seu doutorado na Universidade de Berkeley e buscou introduzir nas decisões do
antitruste brasileiro conceitos já comuns na prática regulatória daquele país.131 Em
relação ao conceito de mercado relevante, Salgado (CADE, 1995, fl. 2856.) afirma:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
131
Segundo Salgado, a introdução destes conceitos econômicos tinha motivos que iam além de uma
melhor decisão técnica: “Para a consolidação da autoridade antitruste e legitimidade do CADE como a
instância administrativa decisória no Brasil em defesa da concorrência, era fundamental a demonstração
da capacitação técnica do órgão para lidar com questões complexas como a representada pelo ato de
concentração [Kolynos-Colgate] [...] Estava-se diante do duplo desafio de superar a fragilidade de um
órgão recém-instituído e a desconfiança com relação a ele e o julgamento público do caso Kolynos-
Colgate, em vista de sua complexidade e repercussão, criou as condições para enfrentar tal desafio [...] O
caso Kolynos-Colgate serviu de ensejo para introduzir no antitruste brasileiro os conceitos básicos dessa
análise econômica” (Salgado, 2003, p. 29-30).
! 153
previstas no art. 36, caput, da Lei 12.529 de 2011, que caracterizam ilícitos
concorrenciais. Todas as infrações à ordem econômica instadas nesse texto – vale dizer,
(i) “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre
iniciativa”, (ii) “dominar mercado relevante de bens ou serviços”, (iii) “aumentar
arbitrariamente os lucros”, e (iv) “exercer de forma abusiva posição dominante – têm
um caráter geral e “somente existem em concreto, ou seja, se referidas a um
determinado mercado: ao mercado relevante” (Forgioni, 2013, p. 213).
Pode-se ver como o mercado relevante tornou-se essencial para a análise de fusões
e aquisições no Brasil por meio do “Guia de Análise de Concentrações Horizontais”,
publicado em 2001, em portaria conjunta da SEAE e da SDE. Este guia, baseado no
similar produzido pelas autoridades antitruste norte-americanas, define os critérios
levados em consideração em todas as etapas da análise econômica de concentrações
feitas pelos órgãos de defesa da concorrência, servindo não somente para os
funcionários responsáveis pela análise, mas também para que as requerentes e seus
representantes se familiarizem com os procedimentos do órgão. 132 O guia detalha
perguntas que devem ser respondidas pelos analistas que instruem atos de concentração
e inclui a seguinte representação:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
132
A publicação desse guia e de outros documentos pelo CADE faz parte dos esforços para cumprir
requisitos de transparência burocrática, amplamente apoiados pelo órgão desde meados dos anos 1990
(Onto, 2009).
! 154
Figura A:
As Etapas de Análise Econômica de Atos de Concentração
Horizontal
Definição do
Mercado Relevante
ETAPA I
NÃO
Há Parcela
Substancial % de mercado < 20% e C4<75% Parecer
ETAPA II de Mercado?
C4≥75% e % de mercado < 10% Favorável
SIM
Exercício de poder de
mercado é provável?
NÃO
ETAPA III (Ver detalhe na Parecer
Figura B) Favorável
SIM
ETAPA IV Eficiências
SIM
Parecer Negativo
! 155
De acordo com o guia, definido(s) o(s) produto(s) e a área geográfica que poderá
ser afetada pela concentração, ou seja, o mercado relevante, estima-se a concentração de
mercado (market shares) por meio das participações relativas das empresas no mercado
relevante, em geral pela quantidade de produtos vendidos ou pelo faturamento em
relação ao total de venda no mercado. Podem ser elaborados também índices de
concentração de mercado, como o C4 apontado acima. Essas estimativas são feitas
sempre visando a um cenário futuro do mercado no qual a fusão ou a aquisição foi
aprovada.
! 156
dos consumidores e produtores a mudanças nos preços relativos – o grau de
substituição entre os produtos ou fontes de produtores – é maior do que fora
destes limites [...] O mercado relevante se determinará em termos dos
produtos e/ou serviços (de agora em diante simplesmente produtos) que o
compõem (dimensão do produto) e da área geográfica para qual a venda
destes produtos é economicamente viável (dimensão geográfica) (SEAE/SDE,
2001, p. 9).
No caso da aquisição da empresa Mate Leão pela Coca-Cola, julgada em 2008 pelo
CADE, o mercado relevante de produto foi alvo de controvérsia entre as requerentes e o
órgão antitruste. As empresas alegaram que o mercado que deveria ser considerado para
análise era o “mercado de bebidas alcoólicas, que inclui bebidas carbonatadas à base de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
133
Como podemos ver no Ato de Concentração no 08012.002467/2008-22: "a possibilidade de secagem
do concreto antes de se chegar ao local de lançamento cria grave risco de prejuízo ao produto e ao
caminhão transportador, motivo pelo qual não se afigura viável o percurso de longas distâncias por meio
de tais betoneiras." Aliás, a constante visão, em tecido urbano, de caminhões carregando concreto e
girando-os, a fim de que não atinjam o ponto de secagem antes do destino final e, além de ocasionar a
perda da entrega, causem também a perda da própria peça do caminhão (o que, para a indústria
seguradora, durante anos, foi causa de aumento do controle, nos contratos de seguro, contra os riscos
assumidos nas garantias aos cascos de caminhões e responsabilidade civil do transportador), é um
elemento qualitativo a confortar a jurisprudência do Conselho”.
! 157
colas, outras bebidas carbonatadas, água, suco de fruta prontos para beber ou
concentrados, refrescos, chás prontos para beber, isotônicos, sucos de frutas não
concentrados” ou até “todas as bebidas comercializáveis”. Não é fácil perceber que, se
esse mercado fosse aquele considerado relevante para a análise antitruste, seria muito
difícil que as empresas não fossem autorizadas a se unir. Isto porque a compra da Mate
Leão pela Coca-Cola não afetaria as opções de escolha do consumidor que, segundo
essas empresas, entenderiam praticamente todas as bebidas comercializáveis como
produtos substitutos (Forgioni, 2013, p. 221).
O mercado relevante exige assim uma consideração específica sobre o modo como
consumidores/clientes entendem os produtos e fazem escolhas, além da forma como
essas escolhas são feitas num espaço geográfico. Nesse sentido, o conceito de mercado
no antitruste se baseia nos trabalhos do campo da Organização Industrial. Porém, o
mercado relevante vai além de uma simples conceitualização subjetiva, pois ele também
enquadra um espaço e um objeto que poderão ser prejudicados pela concentração. Sua
definição equivale a uma operação hipotética de avaliação de um possível efeito
anticompetitivo decorrente de uma fusão. Na linguagem mais técnica, a delimitação de
mercado busca revelar o espaço no qual o “poder de mercado” possa ser exercido ou, de
outra forma, o espaço onde há a probabilidade do chamado “exercício do poder de
mercado”, prejudicando consumidores e/ou concorrentes (Possas, 2002). O “exercício
do poder de mercado”:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
134
O CADE chegou a essa conclusão baseado em coleta de informações com outros concorrentes do
mercado e estudos econométricos realizados também por esses concorrentes.
135
Ato de concentração no 08012.001383/2007-91.
! 158
coordenadamente, aumentar os preços (ou reduzir quantidades), diminuir a
qualidade ou a variedade dos produtos ou serviços, ou ainda, reduzir o ritmo
de inovações com relação aos níveis que vigorariam sob condições de
concorrência irrestrita, por um período razoável de tempo, com a finalidade
de aumentar seus lucros (SEAE/SDE, 2001, p. 4).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
136
Sobre a noção de “poder de mercado”, o economista Mario Luiz Possas (2002, p. 84) afirma que se
trata de uma noção “tributária da noção ainda mais imprecisa de ‘poder econômico’, da qual é uma versão
mais delimitada [...] Ela compartilha com esta última a percepção, essencialmente correta e na tradição da
Economia Política, de que as relações econômicas são permeadas de relações de poder entre diferentes
agentes [...] Em particular, do ponto de vista jurídico, por mais indeterminada que seja a noção de poder
econômico e complexa a sua conceituação, trata-se de formar juízo sobre seu exercício supostamente
abusivo, o que impõe inexoravelmente a fixação de critérios objetivos que o demarquem com a precisão
necessária à aplicação da lei, a despeito dos prováveis constrangimentos conceituais que venha a sofrer
por isso no plano da análise econômica. Em termos desta última, entretanto, são extremamente variadas
as formas de manifestação de poder econômico, e uma simples tentativa de classificá-las aqui – mesmo
antes de organizá-las analiticamente – seria descabida. Já a noção de poder de mercado é um pouco mais
familiar e manejável na análise econômica, sendo ademais, claramente, a forma básica pela qual o poder
econômico é exercido no âmbito dos mercados”.
137
Sobre a definição de mercado, Possas (2002, p. 76) cita Werden (1992): “o que ela [a definição de
mercado] pretende é ‘realizar o simples exercício mental de determinar que tipo ou tipos de poder de
mercado poderiam ser exercidos no contexto em questão’, por meio do qual ‘se determina que mercados
precisam ser delineados’”.
! 159
Como no caso de uma fusão entre empresas produtoras de concreto, uma condição
“técnica” do produto – sua tendência a endurecer – faz com que este mercado seja
definido com um raio geográfico relativamente reduzido, pois o poder de mercado
poderá ser exercido apenas em uma distância de 50 km da fábrica de concreto. Esta
característica “estrutural” do mercado gera uma forma de relação de concorrência
específica entre os produtores de cimento e entre estes e seus consumidores. A
necessidade de observação desse conjunto de características dá à definição de mercado
relevante a denominação de “análise estrutural” dos mercados.
! 160
pelas empresas requerentes de uma concentração. Como diz Forgioni (2013, p. 228), “se
o recorte do mercado relevante implica, necessariamente, a percepção do mercado no
qual atua determinado agente econômico (ou agentes econômicos), estamos tratando do
mercado em que este concorre. Ou seja, a busca do mercado relevante passa pela
identificação das relações (concretas, ainda que potenciais) de concorrência de que
participa o agente econômico”. Contudo, como tenho argumentado nesta seção, o
conceito de mercado relevante é mais do que uma forma de representação de relações
(nativas) econômicas.139 O mercado relevante também é, como Forgioni mesma afirma,
uma “ferramenta para identificar e definir fronteiras”, ou seja, uma técnica de
enquadramento que possibilita aplicar a lei e garantir o exercício da política de defesa
da concorrência.
! 161
Constantino de Oliveira Junior, anunciou durante uma teleconferência que a marca
Webjet iria desaparecer após a aquisição da companhia pela Gol e que o programa de
milhagem Smiles seria estendido aos passageiros da adquirida. Além disso, a Gol
renovaria toda a frota da outra companhia (24 aeronaves), considerada velha, em no
máximo dois anos (Folha de São Paulo, 11/07/2011).
! 162
regularidade de voos. Tendo a Gol assinado o termo comprometendo-se a ofertar voos
suficientes, a aquisição foi aprovada.
! 163
O voto do conselheiro-relator, seguindo o rito, inicia-se com uma descrição das
características das empresas que solicitaram autorização para unificar suas operações.
De acordo com o voto, a empresa Gol Linhas Aéreas Inteligentes S/A foi criada em
2001 com uma estratégia de massificar o transporte aéreo no Brasil e na América do Sul.
O forte crescimento da empresa, resultante de uma estratégia de tarifas menores, forma
de pagamento diferenciada e publicidade agressiva, estimulou a entrada de um novo
perfil de consumidores no mercado. A compra da Varig em 2007, aprovada pelo CADE
em 2008, e o encerramento das atividades da Transbrasil contribuíram para o aumento
da sua participação no mercado de transporte aéreo de passageiros e de carga.
Diferentemente da Gol, a empresa Webjet Linhas Aéreas S.A., criada em 2005, não
tinha atuação internacional. Subsidiária do Grupo GJP, que controla agências de
turismo, viagens (CVC) e outras empresas do setor hoteleiro, a Webjet conectava os
principais destinos do Brasil utilizando aeronaves Boeing 737-300, similares àquelas da
Gol e possuía, ao final de 2008, 3,17% da participação do mercado de transporte aéreo
de passageiros no país (CADE, 2012b, fl. 1818).
Após uma breve descrição da evolução do setor de aviação civil brasileiro e de seu
acentuado crescimento recente, o conselheiro iniciou um relato sobre o funcionamento
da “indústria de transporte aéreo” no país que, segundo ele, apresenta uma “estrutura
oligopolista”.146 Apresentando tabelas com informações sobre a quantidade de horas e
quilômetros voados e de assentos oferecidos por cada empresa, entre outros dados,
concluiu-se que a indústria é “concentrada”, sendo que apenas seis concorrentes
respondem por praticamente 90% de toda a atividade no mercado interno. Um mercado
oligopolista – poucos concorrentes – é algo comum em vários países, podendo ser
considerada uma característica do setor aéreo, devido aos altos custos e riscos deste tipo
de negócio.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
146
Essa estrutura é definida a partir de um “número modesto de firmas que atuam em escala nacional, em
particular nos grandes mercados metropolitanos e regionais, possuem frotas com dezenas de aviões,
operam múltiplas rotas, têm agressivas políticas de marketing e fidelização de clientes” (CADE, 2012b,
fl.1827).
! 164
aquisição da Webjet não alteraria em nada as relações concorrenciais que a Gol mantém
com a TAM e outras empresas estrangeiras nas rotas internacionais. Assim, como
primeira delimitação analítica, o conselheiro excluiu de consideração o mercado externo.
As viagens internacionais e o mercado de passagens que as movimentam estão, portanto,
fora de consideração na análise deste caso.
Sobre o mercado interno, explicou que este possui duas empresas “líderes” – TAM
e Gol – com quase 75% de participação no mercado de passageiros transportados em
2012 – e quatro outras empresas de menor porte – Webjet, Azul, Trip e Avianca – com
aproximadamente 24% do mercado. A redução paulatina da presença de empresas
regionais como a Pantanal e a Total demonstra, segundo o conselheiro, como este setor
favorece empresas com forte presença ou abrangência nacional. A constituição de uma
grande empresa neste setor não pode ser considerada uma tarefa trivial, dado que se
“requer anos para a montagem de uma malha competitiva, além [de] elevados
investimentos” (CADE, 2012b, fl. 1831) A dificuldade que as empresas aéreas têm em
manter a rentabilidade em patamares mínimos, devido a mudanças bruscas de custos
(preço do combustível), necessidade de elevado giro dos equipamentos e
descontinuidades na demanda dos passageiros, faz com que casos de concentração e
cooperação entre as empresas neste setor sejam frequentes.147
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
147
O voto aponta vários exemplos de acordos ou uniões entre empresas aéreas internacionais (KLM e Air
France, Iberia e British Airways, Lufthansa e Swiss Air) e nacionais (TAM e LAN, US Airways e TAM,
KLM e Varig, TAP e TAM), muitas delas julgadas pelo CADE, tendo em vista realçar o caráter instável e
necessariamente oligopolista desse mercado.
! 165
Após esses “comentários iniciais”, iniciou-se a seção propriamente dita do voto
intitulada “Do Mercado Relevante”.148 Primeiramente, o conselheiro enfatizou que, de
acordo com inúmeros estudos já realizados sobre este setor, a observação das “rotas de
viagem”, ou seja, pontos de origem e destino oferecidos pelas companhias aéreas, deve
ser considerada como fundamental na determinação dos “mercados relevantes” para a
análise antitruste. Isto significa que, apesar de concorrerem em todo o território nacional,
as empresas o fazem essencialmente pela preferência dos passageiros em cada uma das
rotas de viagem disponíveis no país. A oferta de diferentes opções de rotas com horários
alternativos que empresas aéreas oferecem aos passageiros é o que caracterizaria
fundamentalmente a concorrência deste setor. A jurisprudência do órgão antitruste,
seguindo esses estudos, tem definido que cada rota – cada trecho aéreo que conecta duas
cidades ou aeroportos – configura um mercado distinto do setor de transporte aéreo de
passageiros; um provável mercado relevante. Porém, quais seriam as rotas relevantes
para a análise deste caso?
! 166
e espacial das relações de concorrência. Esses períodos específicos, que incluem toda a
sazonalidade (variação) anual pela qual uma companhia aérea organiza seus voos, são
tidos como representantes do conjunto de voos ofertados pelas requerentes no passado
recente, sendo suficientes para a análise das rotas sobrepostas.149
Contudo, embora essas rotas sejam oferecidas tanto pela Gol quanto pela Webjet,
foram utilizados outros “filtros”, como denominou o conselheiro, para definir quais
dessas rotas poderiam ser mais afetadas com a união empresarial. Os filtros usados
foram os índices numéricos C1, C4 e HHI que são adotados na prática antitruste em
diversas jurisdições para se avaliar o “grau de concentração” dos mercados. Neste caso,
os índices auxiliaram a responder quais rotas seriam ofertadas por um número tão
pequeno de empresas de modo a prejudicar as opções de escolha dos passageiros e
possibilitar um aumento indiscriminado do preço das passagens por parte das empresas
concorrentes.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
149
Forgioni (2013) afirma que um mercado relevante temporal poderia ser entendido como vários
mercados relevantes de produto. Poderíamos considerar, por exemplo, a safra de um produto agrícola
como um mercado relevante temporal específico ou considerá-la, como em geral é feito, como parte do
mercado relevante de um produto que inclui apenas uma safra, tendo em vista que este produto difere dos
outros de safras distintas.
150
“O índice C4 mede o % [porcentual] de mercado detido pelas quatro maiores empresas do mercado.
Conforme estabelece o Guia [de análises de concentrações] Horizontal [is] da SEAE, quando esta soma
for igual ou superior a 75% do mercado há fortes evidências de que tais empresas possam exercer de
forma coordenada o poder de mercado. Nestas condições, o Guia sugere que a análise do mercado em
questão seja aprofundada” (CADE, 2012b, fl. 1861).
151
Sobre o cálculo do HHI, o voto explica que: “HHI é uma medida de tamanho das empresas em relação
à indústria e um indicador do grau de concorrência entre elas. [O índice é calculado] [...] como as somas
dos quadrados das participações de mercado das 50 maiores empresas dentro da indústria, em que as
participações de mercado são expressas em números de 0 a 100. O resultado é proporcional à participação
de mercado média, ponderada pela participação de mercado individual de cada firma. [...] A grande
! 167
[...] identificar os mercados afetados pela operação e potencialmente
problemáticos, ou seja, rotas em que a participação conjunta das Requerentes
[Gol e Webjet] evidenciam um significativo incremento na concentração do
mercado com potencial impacto concorrencial (CADE, 2012b, fl. 1862).
Definidos os mercados nos quais as partes requerentes teriam grande porcentual das
vendas, a análise do conselheiro se utilizou de outros indicativos para verificar quais
dessas rotas teriam a possibilidade de serem “contestadas” por empresas concorrentes.
A investigação de “barreiras à entrada” nessas rotas consiste num novo “filtro”, uma
nova delimitação, que reduz mais ainda o número de mercados “potencialmente
problemáticos”.153 Uma análise de barreiras requer saber qual a possibilidade que uma
empresa existente e concorrente que não oferecia qualquer dessas rotas tem de vir a
oferecê-las para os consumidores no curto prazo. Também implica investigar se alguma
nova empresa ainda não existente poderia vir a ingressar nesses mercados. Como
explicado no voto, saber quais mercados serão mais concentrados, com menos empresas
ofertando certos produtos, não torna essas rotas necessariamente mais propícias ao
chamado “exercício de poder de mercado” por um dos poucos concorrentes. A
facilidade de entrada de concorrentes externos torna mais provável a contestação – uma
concorrência por preços – de um eventual aumento significativo de preços por parte dos
concorrentes atuais.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
vantagem do HHI é dar mais peso às grandes empresas em uma análise de concentração de mercado”
(idem, fl. 1862).
152
O conselheiro descartou a necessidade de restringir ainda mais os mercados relevantes utilizando
outras variáveis como, por exemplo, diferentes tipos de passageiros (passageiros business e turismo) ou
diferentes combinações das rotas (voos diretos e voos com escala).
153
Embora a “definição de mercado” ou “delimitação do mercado relevante” seja considerada uma
primeira etapa da análise, na interpretação que eu faço desta prática, considero algumas etapas posteriores,
como a análise de barreiras à entrada, como também parte dessa delimitação, pois agem como novos
“filtros” do que é preocupante de um ponto de vista concorrencial e legal.
! 168
marketing), barreiras técnicas (aeroportos com permissão limitada a tipos específicos de
aeronaves) e programas de fidelidade, que incentivam clientes a comprarem passagens
de uma única companhia. Todos estes aspectos, caso existam, podem reduzir a
probabilidade de que outra empresa passe a concorrer com as empresas fusionadas nas
rotas “concorrencialmente preocupantes”.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
154
Esta era a alegação principal das requerentes para justificar um impacto irrelevante da fusão.
155
Um ponto enfatizado no voto, previamente apontado pela Anac diz respeito à situação da
infraestrutura dos aeroportos no país. Considera-se que o maior empecilho concorrencial para a entrada
de novos concorrentes neste setor não reside nos altos custos necessários para um concorrente passar a
ofertar voos, mas sim no fato de os aeroportos não terem mais “espaços físicos e temporais para
decolagem e aterrissagem de aeronaves” que possam atender à demanda de passageiros. Esta situação
acaba beneficiando as empresas que já possuem slots e exigem das autoridades reguladoras uma atenção
particular para o seu uso eficiente.
! 169
excluído da análise, apesar de ser o aeroporto mais movimentado e menos ocioso do
país. Isto porque os slots que a Gol incorporaria com a aquisição da Webjet eram
“poucos e distribuídos nos finais de semana, quando existe ampla disponibilidade de
slots” (CADE, 2012b, fl. 1902), ou seja, a mudança concorrencial nas rotas atuais com
origem ou destino neste aeroporto seria mínima com a aquisição.
Sobre o aeroporto Santos Dumont, onde a Webjet tem parcela considerável dos
slots, o conselheiro verificou ser impossível a entrada de outra empresa nas faixas de
horário então sob o controle da Webjet. A Gol passaria a controlar mais slots de rotas
que já estão muito concentradas, sem que outra empresa pudesse ofertar essas rotas,
pois não há disponibilidade para mais pousos e decolagens neste aeroporto. Assim, as
rotas concentradas do aeroporto Santos Dumont são as únicas em que há a
“probabilidade do exercício do poder de mercado” por parte da empresa fusionada
(CADE, 2012b, fl. 1917).
A solução proposta pelo conselheiro foi aprovar a aquisição da Webjet pela Gol
condicionando-a ao cumprimento de obrigações previstas num Termo de Compromisso
de Desempenho (TCD) que possa “permitir que as estruturas obtidas pela Gol sejam
operadas com eficiência e em benefício do consumidor”. Segundo o termo, a empresa
deve utilizar todos os slots que possui no Aeroporto Santos Dumont com uma eficiência
mínima de 85%, seja para pouso, seja para decolagem. Caso a empresa não utilize os
slots com este índice de eficiência, avaliado trimestralmente pela Anac, ela terá que
devolvê-los à agência reguladora. Esse forte incentivo para ofertar voos frequentes nos
slots controlados visa gerar um uso mais eficiente da infraestrutura aeroportuária tida
como escassa e já saturada. Ainda, a necessidade de ofertar voos e de utilizar os slots
tende a impedir o aumento de preços de passagens nessas rotas já concentradas.156
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
156
Sem o TCD, a Gol poderia optar por utilizar pouco seus slots e ofertar menos voos, cobrando
passagens mais elevadas e utilizando suas aeronaves ocasionalmente.
! 170
concorrenciais que são e possivelmente serão encontradas pelas empresas se tornem
visíveis.
Nesta seção descrevo, por meio de dois relatos etnográficos, o modo como a
definição de mercado foi realizada na instrução de dois processos de ato de
concentração no gabinete do Tribunal Administrativo. Descrevo como esta definição
utiliza informações e materiais distintos e como estes são combinados e interpretados
pelos funcionários do gabinete. Como enfatizado no capítulo anterior, o trabalho de
instrução processual exige uma série de práticas de documentação. No caso do
procedimento de definição de mercado, há a necessidade da produção e do envio de
ofícios, e do recebimento de petições elaboradas por empresas oficiadas. Esses
documentos incluem perguntas, tabelas e formulários que, ao serem respondidos ou
preenchidos, possibilitam a interpretação e a visualização de características do
comportamento das empresas e dos consumidores. Descrevo também como as
definições de mercado exigem ligações telefônicas, reuniões com advogados, conversas
com outros assessores ou ainda a utilização de experiências vividas que, ao
aproximarem os mercados da vida pessoal ou conhecida dos analistas, facilitam o
entendimento das relações mercantis que devem ser administradas.
! 171
Como diz um conhecido especialista em direito da concorrência, “as relações
econômicas raramente são tão simples a ponto de autorizar a definição de mercado
relevante com exatidão e segurança. Não há para qualquer que seja o produto um
‘mercado’ real esperando para ser descoberto” (Sullivan citado em Forgioni, 2013, p.
213). As práticas descritas abaixo são os modos pelos quais os profissionais do CADE
buscam conhecer essas relações econômicas complexas e, com isso, conceber um
mercado “relevante” para a análise antitruste.
! 172
suscitando. Em geral, as questões discutidas entre os assessores e o conselheiro tinham
a ver com o tipo de informação que precisava ser demandada para a empresa requerente
ou para seus concorrentes para que uma dúvida fosse adequadamente esclarecida e,
consequentemente, para que o conselheiro, com o auxílio do assessor, elaborasse seu
voto escrito.157
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
157
Como mencionado anteriormente, nos processos relativos a atos de concentração, as empresas são
denominadas “requerentes”, pois solicitam a autorização administrativa para a realização de uma
operação, e não “representantes” ou “representadas”, como são denominadas na apuração de infrações à
ordem econômica.
158
O conceito de grupo econômico será discutido no capítulo 4.
159
A resolução lista as características que devem ser levadas em conta na definição de mercados:
“Fundamente as definições adotadas, baseando-se nos seguintes fatores, na medida em que aplicáveis: (a)
substitutabilidade sob a ótica da demanda, levando em consideração, dentre os fatores considerados
relevantes, a possibilidade de substituição frente a aumentos de preços entre marcas e/ou produtos ou
! 173
em todos os atos de concentração, a definição realizada pelos assessores e conselheiros
já parte de uma definição fornecida (obrigatoriamente) pelas empresas requerentes.
Resta ao CADE a opção de aceitá-la ou de rejeitá-la, produzindo sua própria definição
do(s) mercados(s).
Por sua vez, uma definição enviada por requerentes, estipulando, por exemplo, que
o mercado relevante para sua operação é o mercado de “leite pasteurizado tipo C no
estado de São Paulo”, pode ter como base uma definição prévia feita pelo CADE na
análise de uma operação que envolveu empresas semelhantes. Ou seja, as requerentes
podem definir o mercado relevante baseando-se na jurisprudência do órgão – no
conjunto de decisões passadas sobre uma determinada atividade produtiva ou comercial
no CADE – ou ainda se baseando na jurisprudência internacional de órgãos antitruste de
outros países. Compreende-se que uma definição passada de um julgamento
corresponde a uma forma de entendimento sobre como funciona a “dinâmica
concorrencial” num determinado setor da economia. Como o CADE já tem um grande
número de decisões, raramente é necessária uma definição de mercado que “parta do
zero”, embora seja comum que as definições passadas sejam revistas e refeitas, tendo
em vista mudanças tecnológicas, alterações de processos produtivos e outras
transformações que possam ter modificado consideravelmente uma atividade produtiva
ou comercial.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
serviços e entre outros produtos fora do mercado; (b) substitutabilidade sob a ótica da oferta, levando em
consideração, dentre outros fatores, aspectos técnico-operacionais, tecnologias, custos de instalação
(inclusive custos irrecuperáveis) e possibilidade de redirecionamento de atividades; (c) natureza e
características dos produtos e/ou serviços; (d) importância dos preços dos produtos e/ou serviços; (e)
perfil dos clientes (exemplo: renda, gênero, porte da firma etc.) e dimensionamento do mercado desses
clientes (quantidade vendida); (f) preferências dos consumidores, prestando informações sobre fidelidade
a marcas, forma e momentos de consumo, dentre outros fatores considerados relevantes; (g) custos de
distribuição/transporte; (h) diferenças nas estruturas de oferta e/ou de preços entre áreas geográficas
vizinhas; (i) possibilidade de importação; (j) jurisprudência do CADE; (k) jurisprudência internacional;
(l) outros fatores” (CADE, 2012, p. 9)
! 174
Depois de a tabela passar pela mão de todos os presentes, Hélio, o chefe de
gabinete, me perguntou: “Então, Gustavo, você que já morou em São Paulo, qual a
distância da Avenida Paulista para esse lugar aqui em São Bernardo do Campo?”. Ele
apontava para duas localizações de universidades apresentadas na tabela, perguntando
novamente: “Ah, e da Avenida Vergueiro para a Avenida Paulista?”. Eu respondi que
não podia afirmar qual era a distância exata, mas que provavelmente não levava mais de
30 minutos, sem trânsito, para se chegar da Av. Paulista a São Bernardo. O assessor
então perguntou: “Mas você, se morasse na Paulista, iria até São Bernardo estudar?”.
Disse que provavelmente não; que havia uma série de universidades mais próximas da
Av. Paulista que eram similares àquela de São Bernardo e que não imaginaria alguém
que fizesse isso.
! 175
Com a primeira pergunta o assessor poderia obter uma informação sobre algo que
os documentos enviados ao CADE não continham. Certamente essas perguntas
poderiam ser respondidas por meio de ofícios enviados aos concorrentes e à empresa
requerente. E muito provavelmente a empresa requerente foi oficiada para que
apresentasse a distância entre suas unidades no decorrer da instrução do processo. Ainda,
a distância e o tempo percorrido também poderiam ter sido calculados pelo Google
Maps, como é feito normalmente. Contudo, a resposta àquelas perguntas, naquele
momento da reunião de gabinete, possibilitava uma aproximação mais rápida de
características capazes de definir a concentração de um mercado, ou seja, a quantidade
de concorrentes numa região, facilitando a elaboração de novas perguntas e de outras
possíveis linhas de investigação.
Com as duas respostas, o assessor pôde inferir, ou ao menos suspeitar, que a relação
entre compradores e vendedores de serviços que ele estava tentando entender não
abarcaria todos aqueles centros universitários. Se um consumidor não se desloca da
Avenida Paulista para São Bernardo para estudar, como eu sugeri, estes dois centros
estão provavelmente localizados em diferentes “mercados relevantes geográficos”, ou
seja, esses centros não concorrem entre si para atrair os mesmos estudantes. Ainda, se
existem muitos outros centros universitários na região central de São Paulo, talvez, a
concorrência entre esses centros mais próximos entre si é que devesse ser o centro das
atenções na análise que se iniciava. Como explicado anteriormente, a análise antitruste
! 176
normalmente começa pela definição de uma área geográfica acompanhada da definição
de um produto ou serviço que pode ser afetado pela concentração empresarial. Com as
informações fornecidas por mim, ao menos a área geográfica desse mercado já poderia
ser estimada com mais precisão, não se afastando muito da região da Avenida Paulista.
! 177
morador da cidade de São Paulo, que acompanhava a reunião) – pode ser compreendido
como uma tentativa de reconstituição, interpretação ou definição de fenômenos
econômicos que não podem ser facilmente mensurados ou calculados (Holmes, 2009).
Numa série de artigos, Douglas Holmes e George Marcus (2005) cunharam a noção de
“para-etnografia” para denominar práticas de produção de conhecimento similares à
etnografia – embora não idênticas – que são utilizadas pelos informantes para
complementar teorias matemáticas ou estatísticas na tentativa de compreender a
economia.
Tais práticas, como definidas por Holmes e Marcus, são particularmente úteis à
análise antitruste. Como vimos, os estudos de Organização Industrial desenvolvidos
principalmente pela escola de Harvard, que foram influentes na política antitruste a
partir dos anos 1930, buscam compreender as relações de mercado, entendidas a partir
das relações de concorrência, levando em consideração as escolhas, as preferências e as
decisões de consumidores e vendedores de produtos e serviços.
! 178
ótimo que o CADE pudesse contratar antropólogos como você para estudar esses
mercados e saber como funciona a cabeça dessas pessoas”. Como isso não era possível
por diversos fatores, entre eles a necessidade de “soltar” rapidamente os processos, que
maneira melhor de saber como se comportam e pensam consumidores ou ofertantes, ou
de definir um “contexto nativo” das relações de concorrência do que tentar se colocar
no lugar deles?
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
160
As experiências geram uma distribuição social da expertise em relação a determinados mercados ou
setores dentro do órgão antitruste. Muitos assessores ou analistas acabam tornando-se especialistas em
uma determinada área da economia, como no setor de educação ou do varejo. O reconhecimento dessa
expertise faz com que este profissional trabalhe em casos dentro de seu campo de conhecimento ou seja
chamado para dar sua opinião sobre casos específicos em outro local do conselho.
161
“I realized very early on that, in my fieldwork in Kabylia, I was constantly drawing on my experience
of the Béarn society of my childhood, both to understand the practices that I was observing and to defend
myself against the interpretations that I spontaneously formed of them or that my informants gave me”
(Bourdieu, 2003, p. 288).
! 179
anedotas são importantes como ferramentas interpretativas e conceituais para visualizar,
compreender e definir mercados. Essas “práticas de conhecimento corporificadas”
(Elyachar, 2012), baseadas em suas experiências a partir dos mercados, permitem guiar
a busca por informações sobre relações de concorrência e de consumo fora do CADE,
complementando dados provenientes de documentos ou questionando-os. Os mercados
tornam-se, assim, mais do que somente um conjunto de dados representados nos
documentos ou nos seus computadores, pois são também um espaço de sensibilidades
muito pessoais.
O uso dessas práticas de conhecimento pode ser parcialmente atribuído a uma certa
percepção desses profissionais dos vários limites de sua expertise e das suas ferramentas
analíticas ou da insuficiência da informação coletada por meio de documentos no
trabalho de investigação. A incapacidade de “acompanhar”, “observar” ou
“compreender” os mercados e suas empresas gera reclamações cotidianas no órgão
administrativo. Como afirma Holmes (2009, p. 410), essas práticas para-etnográficas
são comuns entre experts que administram ou regulam a economia, dado que “esses
atores estão totalmente cientes da natureza instável dos fenômenos econômicos que eles
são encarregados de administrar e das limitações de suas ferramentas analíticas
desenvolvidas para mensurar, senão prever, suas performances”.
Os profissionais do CADE sabem que toda informação coletada por eles, seja por
meio de pesquisas na internet, ou de petições das empresas requerentes, ou de estudos
setoriais, realizados pelo IPEA, BNDES e outras associações e organizações, é sempre
insuficiente para compreender a totalidade do funcionamento de um mercado e das
empresas. Sabem que seria impossível conseguir todas as informações necessárias a
uma perspectiva global do mercado, pois seu envio depende quase integralmente das
próprias empresas interessadas no caso, que sempre acabam por omitir certas
informações que possam prejudicá-las. Além disso, esses profissionais sabem também
que, nos casos de concentração de empresas, a análise é feita sempre preventivamente,
baseando-se em possíveis cenários futuros mais ou menos imponderáveis sobre o
funcionamento das empresas, dos mercados e da economia nacional como um todo.
! 180
lado, ela também coloca em evidência o fato de que todos os participantes de mercado –
consumidores, vendedores, empresários – carregam, de certa forma, uma expertise
necessária à análise antitruste. As práticas para-etnográficas colocam em exercício uma
forma de conhecimento compartilhada provavelmente por todos os indivíduos que, de
algum modo, se relacionam com “mercados”. Como observado, muitos dos
funcionários do CADE que fazem análises antitruste não têm conhecimento
universitário em direito ou economia. Hélio, o chefe do gabinete em que eu estava, por
exemplo, formado em psicologia na Universidade Federal da Bahia, estava no CADE há
apenas um ano. Mesmo assim, sua formação não impunha um limite claro quanto à sua
habilidade para instruir processos ou, mais especificamente, para “definir mercados”.
Como ele mesmo me explicou, o antitruste implicava uma certa “forma de pensar ou,
mais ainda, um modo de colocar questões”. Assim como muitos outros, essa “forma de
pensar” foi aprendida por ele na prática, sem que houvesse nenhum treinamento formal.
! 181
da entrada em vigor da nova lei, não constavam nos autos pareceres da SEAE-MF ou da
SDE-MJ, pois as secretarias tiveram suas funções modificadas antes de terem tempo
suficiente para produzi-los. Por isso, o gabinete teria que realizar a instrução desde o
princípio, sem contar com pareceres prévios. A análise deste caso exigia uma reflexão
sobre os mercados relevantes de produto e geográfico e uma tentativa de aferir a
participação de cada concorrente nesses mercados.
! 182
os prestadores dos serviços médicos devem ter o mesmo perfil assistencial para serem
considerados como integrantes de um mesmo mercado relevante” (CADE, 2012b, fl.
22). Para comprovar esta afirmação, as requerentes citam no documento um trecho do
voto do ex-conselheiro Carlos Ragazzo no julgamento de um processo anterior:162
Conforme outras análises feitas pelo CADE sobre empresas do mesmo setor, as
diferentes formas com que o serviço médico é prestado não são equivalentes, ou seja,
não são concorrentes entre si. Isto significa que, de acordo com a jurisprudência do
órgão, na maior parte das vezes, quando um paciente procura um exame laboratorial,
por exemplo, ele não se dirige a um hospital. Os dois serviços seriam distintos e
configurariam mercados distintos. A petição cita ainda um antigo parecer da SEAE
sobre outro processo, em que se afirma que existe uma ausência de “sobreposição
horizontal” entre clínica oncológica (classificada acima na categoria “centro médico”) e
hospital-geral, levando à mesma conclusão. Essas classificações já estabelecidas em
relação aos perfis assistenciais, por outro lado, não tinham sido feitas arbitrariamente,
mas estavam baseadas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES),
produzido pelo Ministério da Saúde. Para o assessor responsável pelo caso, não havia a
necessidade de questionar essa classificação do CNES. A classificação, segundo ele,
produzia uma ideia bastante compreensiva dos tipos de serviço ofertados neste setor.
Sua função consistiria apenas em observar quais eram as categorias em que se
encaixavam as empresas requerentes.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
162
“Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, 31. Graduated in law from PUC-Rio (1999), Ragazzo obtained
an LLM in Competition and Regulation Policy from the New York University in 2002, a master’s degree
in law from UERJ, in 2005, and a PhD degree in law from UERJ in 2008. When appointed to CADE,
Ragazzo was the Coordinator-General for Competition Defence of SEAE, to which he was appointed in
2003. A public official in the career of ‘Specialist in Public Policies and Governmental Management’
since 2005, between 1997 and 2001 he was a corporate lawyer at Pinheiro Neto Advogados. In 2002, he
was a legal intern at the Federal Trade Commission, in the US, and was admitted to the New York State
Bar. By the end of 2002, he also participated in the internship program of CADE – PinCADE. After
serving for almost two mandates as a commissioner, Ragazzo was appointed to a new position created in
CADE by the recent law of 2011: general superintendent” (Miola, 2014, p. 299).
! 183
existência ou não de uma “estrutura de internação” distinguiria um estabelecimento
exclusivamente ambulatorial, como são os centros médicos, de uma característica típica
dos “hospitais-gerais”. Com o fim de sustentar este entendimento, as requerentes
citaram um Documento de Trabalho da SEAE no 46/2008, no qual a distinção entre
“centro médico” e “hospital-geral” é feita com base na existência ou não de uma
estrutura de internação de pacientes.
Se hospitais e clínicas oncológicas não concorrem entre si, o assessor não precisaria,
portanto, ficar preocupado quando uma empresa que controla apenas hospitais estivesse
adquirindo empresas que oferecem somente tratamento oncológico. Uma fusão deste
tipo não poderia provocar uma “concentração maior” em nenhum mercado de serviços
médicos como aqueles numerados acima, pois consistiria apenas numa diversificação
dos serviços prestados pela empresa adquirente, uma “entrada de mercado”, como
também é chamado este tipo de aquisição. Neste caso inexistiria a possibilidade de
“exercício de poder de mercado”. Entretanto, o Grupo Rede D’Or que controla a
CETOC, empresa que estava adquirindo a Oncologistas Associados e a IOPE, também
tinha o controle de uma empresa chamada Oncotech,
! 184
Caxias, Nova Iguaçu e Rio de Janeiro, todos no estado do Rio de Janeiro (CADE,
2012b, fl. 23).
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
163
Na definição apresentada pelas requerentes na petição inicial: “Quimioterapia é o tratamento realizado
via medicamento, consistindo, em uma descrição resumida, na manipulação e administração de drogas
para o tratamento de câncer e outras patologias benignas, como a artrite reumatoide, psoríase e outras” (CADE,
2012b, fl. 24).
! 185
CLÍNICAS*ONCOTECH*
Copacabana* Campo*Grande* Duque*de*Caxias*
ONCOLOGISTAS* Tijuca*(Soares* Nova*Iguaçu*
(Siqueira* (Augusto* (Marechal*
da*Costa,*67,* (Bernardino*
ASSOCIADOS* Campos,* Vasconcelos,* Floriano,*73,*
Rio*de*Janeiro,* Mello,*1.399,*
30/504,*Rio*de* 117,*Rio*de* Duque*de*
RJ* Nova*Iguaçu,*RJ)*
Janeiro,*RJ)* Janeiro,*RJ)* Caxias,*RJ)*
Botafogo*I*(Barão*
de*Lucena,*nº*48*–* 1#h#4min#/#56,9#
21#min#/#9,3#km# 12#min#/#4,2#km# 29#min#/#28,3#km# 44#min#/#45,1#km#
Botafogo,*Rio*de* km#
Janeiro,*RJ)*
Botafogo*II*(Barão*
de*Lucena*nº*47,*
21#min#/#9,3#km# 13#min#/#4,3#km# 1#h#4min#/#57#km# 30#min#/#28,4#km# 44#min#/#45,1#km#
Botafogo,*Rio*de*
Janeiro,*RJ)*
Barra*da*Tijuca*(Av.*
Luis*Carlos*Prestes,*
32#min#/#27,9#km# 30#min#/#22,6#km# 53#min#/43,6#km# 30#min#/#35,2#km# 45#min#/#52#km#
410,*Barra*da*Tijuca,*
Rio*de*Janeiro,*RJ)*
Tijuca*(General*
Roca,*nº*935,*Tijuca,* 6#min#/#1,9#km# 22#min#/#14,8#km# 59#min#/#53,8#km# 24#min#/#22,4#km# 39#min#/#39,1#km#
Rio*de*Janeiro,*RJ)*
Olaria*(Angélica*Mota,*
31#min#/#16,6#km# 35#min#/#25,1#km# 46#min#/#40,7#km# 14#min#/#8,9#km# 27#min#/#24,8#km#
137,*Olaria*–*RJ)*
Caxias*/*25*de*Agosto*
(Conde*de*Porto*
Alegre,*nº*119,* 23#min#/#23,5#km# 31#min#/#30,4#km# 47#min#/#40,9#km# 3#min#/#1,1#km# 27#min#/#24,2#km#
Centro,*Duque*de*
Caxias,*RJ)*
Niterói*/*Icaraí*
(Coronel*Moreira* 1#h#6#min#/#63,2#
29#min#/#21,9#km# 35#min#/#32,1#km# #34#min#/#32#km# 48#min#/#47,3#km#
Cesar,*nº*229,*Icaraí,* km#
Niterói,*RJ)*
Tabela 3: Distâncias entre Unidades da Associados e Oncotech
! 186
prévios dos órgãos de defesa da concorrência, a SDE, SEAE e próprio CADE, “não
chegam a uma conclusão precisa acerca do raio que será considerado para a análise
concorrencial de atos de concentração envolvendo estabelecimentos de saúde, que
poderia variar de uma dimensão superior à do município a um raio de apenas 10 km”
(CADE, 2012b, fl. 23).
ONCOLOGISTAS* CLÍNICAS*ONCOTECH*
ASSOCIADOS* Tijuca* Copacabana* Campo*Grande* Duque*de*Caxias* Nova*Iguaçu*
Botafogo*I* X# X# 4# X**# 4#
Botafogo*II* X# X# 4# X**# 4#
Barra*da*Tijuca* 4# 4# 4# X**# 4#
Tijuca* X# X# 4# X**# 4#
Olaria* 4# 4# 4# X**# X**#
Caxias/25*de*
4# 4# 4# X# X**#
Agosto*
Niterói/Icaraí* 4# 4# 4# 4# 4#
** Municípios diversos
! 187
cada uma das unidades, que mostrava certa dispersão dentro do município do Rio de
Janeiro. Contudo, o mapa não foi capaz de responder a como os clientes se comportam
ao buscar esse serviço médico. Como explicou no seu voto o conselheiro-relator desse
processo, algumas características do tratamento do câncer convencional, como sua alta
agressividade, levam a crer que o mercado relevante seja relativamente reduzido em
termos geográficos. Segundo ele, em outro voto sobre o mesmo setor, um conselheiro já
havia sugerido a proposta de uma limitação para o mercado geográfico para um raio de
no máximo 10 km ao redor das unidades adquiridas ou 20 minutos de deslocamento,
argumentando que:
! 188
Atendimentos*realizados*pela*unidade*em*2011*no*município*do*Rio*de*Janeiro*
Total*de*pacientes* Total*de*pacientes*
atendidos*sem*a* atendidos*com*a* Total*de*pacientes*
Bairro* Zona*
utilização*de*serviços* utilização*de*serviços*de* atendidos*
de*internação* internação*
## ## ## ##
#
## ## ## ##
#
## ## ## ##
#
Tabela 5: “Mercado Relevante Geográfico”
O envio desta tabela, assim como de outras enviadas por meio de ofícios, é comum
nos procedimentos de instrução processual do CADE. O recebimento de dados na forma
de tabelas facilita o trabalho do assessor, pois padroniza e fixa o sentido de todas as
categorias e informações de que ele precisa para analisar o processo, tornando-as
comparáveis. Para muitos, mais importante que a precisão da informação dada é a
necessidade de que todas as oficiadas enviem informações que possam ser comparadas
e organizadas conjuntamente. Sem isso, não há como fazer a análise e “soltar” o
processo. Por isso, assessores costumam passar um tempo relativamente extenso
refletindo sobre o melhor modo de criar tabelas – quais categorias as tabelas devem
incluir e como formular perguntas que não tenham ambiguidades. A forma com que os
dados são enviados para o CADE acaba sendo tão importante quanto o significado
dessas informações.164 As tabelas também são importantes porque facilitam as respostas
por parte de pessoas com diferentes formações que podem ser obrigadas a responder a
elas. Embora grande parte das empresas oficiadas tenha representantes legais com
formação em direito da concorrência e que irão responder aos ofícios, muitas delas,
como as unidades de ambulatoriais de quimioterapia, não irão contratar advogados para
fazê-lo. O próprio gerente da unidade provavelmente irá preencher as tabelas e, por isso,
elas devem ser compreensíveis, sem conceitos econômicos ou jurídicos específicos.
! 189
segundo CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde), bem como a
discriminação de todos os serviços ofertados por este nosocômio, discriminando ainda o
faturamento obtido em cada um dos procedimentos no período entre 2007 e 2011”; (iii)
“quantidade de procedimentos realizados”; (iv) “descrição detalhada de todos os
serviços ofertados por este nosocômio de modo a que possamos compreender em que
consiste cada um deles e de que modo estão articulados (complementares, substitutos
etc.)”; e (v) “no caso de eventual estrutura típica de internação detalhar minuciosamente
suas características, informando, ainda, o número de leitos disponíveis, discriminando
UTI, SUS e não SUS”. Além de permitir a verificação de quem e de quantos eram os
possíveis concorrentes, as perguntas serviam para definir, por meio do faturamento ou
do número de leitos e procedimentos, quanto cada unidade representava na oferta de
serviços médicos desse mercado que se tentava delimitar.
! 190
adquirida como mercado relevante geográfico seria mais condizente com a forma com a
qual os consumidores se comportam neste setor.165
Como fica claro através dos relatos acima, a definição de mercado passa pelo envio
e recebimento de documentos – ofícios e petições – que possibilitam a produção de um
conhecimento sobre empresas, características de produtos e serviços, e sobre o
comportamento de determinados consumidores. São principalmente as informações
provindas dessas práticas de documentação que são utilizadas para a elaboração de
relatórios e votos no gabinete. Os profissionais que fazem a análise antitruste sabem que
as intuições e as experiências dos profissionais, embora sejam úteis para elaborar
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
165
“O raio aqui é considerado em seu aspecto prático, ou seja, 10 km de caminho efetivo de deslocamento,
o que frequentemente não corresponde ao rigor do conceito geométrico de raio, a distância em linha reta
do centro até qualquer ponto da circunferência” (CADE, 2012b, fl. 1263).
! 191
perguntas e compreender determinadas informações, não servem como evidência
jurídica para a elaboração de um voto e nem como argumentos sólidos para justificar a
decisão. Somente os documentos, com suas tabelas, formulários e perguntas
padronizados, ao serem respondidos e preenchidos, possibilitam reunir e associar –
draw together, na expressão de Bruno Latour (1988) – informações que podem constar
dos votos dos conselheiros. Como explicado, esse conjunto de informações começa a
ser compilado desde o envio da petição inicial pelos requerentes, com seus anexos
correspondentes.
! 192
riram, sabendo que se tratava do conselheiro Carlos. Ele costumava referendar mais
ofícios do que todos os outros conselheiros nas sessões, às vezes mais de uma centena
deles.
! 193
concorrencial. “O que importa é encontrar o mercado”, dizia ele. A sua visão da
importância do conceito e da definição de mercado relevante colocava em evidência um
modo de concebê-lo como uma representação, uma forma de descrever uma dada
realidade de difícil compreensão. O problema do CADE, disse ele, é “conhecer
suficientemente uma realidade que não se deseja conhecer”.
Contudo, essa concepção do “mercado relevante”, explicitada pela forma que era
entendida a produção de documentos no gabinete do conselheiro Carlos, não era a mais
recorrente nas conversas e nos diálogos de que pude participar e observar no órgão
antitruste. Entre funcionários de outros gabinetes ou das coordenações da SG que
também analisavam atos de concentração, a definição de mercado relevante continuava
a ser de suma importância, mas não havia uma preocupação tão forte quanto a seu papel
representacional. A metáfora do “espelho” de uma realidade exterior seria considerada
um pouco exagerada ou ao menos incompleta, pois o mercado do antitruste, por ser
“apenas o relevante” – só pertinente de um ponto de vista legal – para a análise do caso,
não se apresenta completamente independente das materialidades e das práticas com
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
166
Hélio dizia esperar que todos os gabinetes, a SG e o Departamento de Estudos Econômicos, seguissem
uma mesma linha de análise, que implicava, antes que qualquer coisa, identificar os mercados relevantes
e, em seguida, construir uma política específica de concorrência para cada um deles, levando em conta
suas particularidades.
! 194
que é produzido. Para a maior parte dos profissionais do CADE com os quais eu convivi
e conversei, os mercados relevantes são como uma “presença espectral materializada
nos documentos”, na expressão de Veena Das (2004).167 Isto significa que, para os
responsáveis pela definição de mercados, não se pode dizer, como supõe Hull (2012a),
que os documentos são entendidos apenas como representações de algo externo a eles.
Pelo contrário, os documentos – ofícios e petições principalmente – são sobretudo
entendidos pelos profissionais como “mediadores”, conforme a noção formulada por
Bruno Latour (2005, p. 49), ou seja, como instanciações do próprio mercado relevante.
! 195
de algo externo a eles, e não como ferramentas que, ao transformarem aquilo a que elas
se referem, concebem ou produzem objetos ou fatos. Como já apontado no capítulo
anterior, Hull, baseado em Latour, afirma que esse entendimento é comum na interação
com mediadores, entre eles os documentos, pois estes seriam capazes de “desviar a
atenção de sua materialidade ou tecnicalidade redirecionando-a para aquilo que está
sendo mediado” (Hull, 2012a, p. 13), ou seja, aquilo a que eles se referem. Contudo,
como tenho descrito desde o capítulo anterior, os documentos não são “invisíveis” para
os funcionários responsáveis pela instrução processual. Como artefatos da prática
burocrática é evidente a importância dada, por exemplo, às suas organização,
temporalidade e confidencialidade. Mas como ferramentas de inscrição os documentos
são também muito “visíveis”, pois o mercado relevante de um caso só pode ser
concebido e visualizado, conforme eles dizem, por meio das práticas de envio e
recebimento de documentos.
Por isso, os “mercados relevantes” são mais do que representações contidas nos
documentos, visto que eles também são pensados como uma prática particular da
análise antitruste. Para a grande maioria dos funcionários, o objetivo da definição não é
a produção de uma descrição “precisa” do mercado “tal como ele é na realidade” – até
porque, como muitos especialistas não cansam de apontar, o mercado relevante não é
exatamente o típico mercado dos economistas (e nem dos cientistas sociais, explico
abaixo).170 O que importa para eles é a utilização do mercado como um procedimento, a
primeira etapa da análise, que permite identificar possíveis problemas concorrenciais.
Em uma das conversas que eu tive com um coordenador na SG, um bacharel em direito
que já trabalhava fazia tempo no SBDC, sobre a minha dificuldade em compreender o
conceito de mercado relevante, ele falou:
! 196
de poder de mercado. Serve pra ver onde existe um problema”. Utilizando o mesmo
termo “filtro”, recorrente no voto do conselheiro Ricardo Ruiz no caso Gol-Webjet, o
mercado relevante é também concebido como uma técnica, um conceito jurídico que
permite a identificação da possibilidade do exercício de práticas ilícitas. Radicalizando
esta perspectiva, ofícios, petições, tabelas, relatórios e votos não conteriam
representações de mercados reais, mas seriam instanciações do mercado relevante, no
sentido de que o mercado só existiria como um conjunto de práticas administrativas de
documentação que se utiliza de aspectos da realidade para construir o objeto do ilícito.
Isso não quer dizer que, neste sentido estrito, em que o mercado relevante “é só uma
metáfora, não uma descrição da realidade”, como afirma um jurista e ex-funcionário do
FTC (Rockefeller, 2007, p. 43), que ele não possa produzir efeitos práticos,
performativos na realidade econômica, como veremos na próxima seção. Mesmo
aqueles que consideram o mercado relevante uma simples “imagem mental na cabeça”
(2007, p. 43) sabem que ele é utilizado como uma ferramenta de política pública para a
administração de relações empresariais, produzindo efeitos sobre a concorrência.
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171
Segundo a jurista Paula Forgioni (2013, p. 213): “mercado relevante é aquele em que se travam as
relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado”. Já para
o jurista norte-americano Frederick Rowe (citado em Rockefeller, 2007, p. 43): “the market is metaphor,
not actuality, a mental ‘picture in our heads’. While many definitions, all circular, state attributes of what
the market is, a market is a market is a market – there is no there, there. Like the law’s concept of contract,
economics’ concept of market yields no answers for any but the blackletter textbook case. But unlike
contract, which has been objectified by precedent, historical gloss, and case-by-case interpretation, the
market has no objective content outside itself. […] Inevitably, the market entails a mix of intuition,
judgment, and choice, relative for each case and every question at hand”.
! 197
Como exemplo, o funcionário do CADE mencionou o modo como o conceito de
“mercado relevante” aparece na nova Lei no 12.529 de 2011. Segundo o artigo 36, do
diploma legal, um dos tipos de infração da ordem econômica consiste em “dominar
mercado relevante de bens ou serviços”. Para o coordenador, o texto legal propõe um
sentido ao mercado relevante como se este fosse uma realidade dada cujos agentes
econômicos buscariam dominar. Contudo, para ele, os agentes não fazem a menor ideia
do que seja o mercado relevante. A concepção confundiria tanto os agentes econômicos
que estão sendo administrados quanto alguns profissionais do órgão antitruste que não
possuem muito conhecimento das “sutilezas” do direito econômico. O mercado
relevante seria, de acordo com ele, apenas um modo de enxergar, uma ferramenta que,
embora útil, deve continuar sendo somente uma opção e não uma necessidade da análise
antitruste. Quem deveria definir a sua utilização caso a caso seriam os analistas do
CADE e não o legislador. Entretanto, como demonstrei neste capítulo,
independentemente da concepção de “mercado relevante” – como um “espelho”, uma
forma de representação de relações de troca e concorrência, ou como um “filtro”, uma
ferramenta que permite enquadrar a operação dentro de uma infração legal – na prática,
a definição de mercado é uma condição de possibilidade de identificação de um
problema concorrencial na análise de atos de concentração, sendo raramente desprezada.
Nesta seção, descrevi, com base nos entendimentos da relação das práticas de
documentação do órgão antitruste com seus referentes, a complexidade inerente ao
conceito de mercado utilizado na política de defesa da concorrência. Na próxima e
última seção, explico como este conceito, que tem como função impor um limite
interpretativo ao analista que busca compreender os impactos de uma determinada
concentração empresarial, também limita certas abordagens sociológicas e
antropológicas mais recentes dos mercados.
! 198
segunda metade do século XIX, implicaria afirmar que os mercados são formas de
organização naturais de troca, derivados de uma psicologia humana presente em todos
os indivíduos (Dalton, 1961). Segundo antropólogos, essa noção abstrata de um
mercado como um princípio regulador do “sistema econômico” não pode ser tomada
como uma ferramenta de descrição e explicação das trocas mercantis em diferentes
sociedades e culturas.172 O mercado conforme concebido pelo pensamento econômico
moderno só permitiria compreender sociedades que de algum modo foram impactadas
por transformações políticas, intelectuais e comerciais no século XVIII na Europa
(Agnew, 1986; Dumont, 1977; Polanyi, 1944), especialmente aquelas nas quais o
capitalismo é o modo de produção mais dominante (Braudel, 1976).
! 199
are almost always about the market, which inhabits the time-less and space-less realm
of economic models” (Miller, 1998, p. 204). Embora não de todo incorreta, a crítica
mais recente do “virtualismo” da ciência econômica produz a impressão de que
antropólogos estão preocupados somente com mercados “reais”, localizados, inseridos
na vida social (Granovetter, 1985), enquanto economistas estariam apenas interessados
nos modelos abstratos de mercados, descontextualizados social e culturalmente (Carrier,
1998).174
O mercado do antitruste não cabe nessa divisão estrita entre o “real”, o concreto, e
o “ideal”, o modelo, pois ele é, em si mesmo, um contexto, uma forma de recortar
aspectos da realidade baseada em teorias ou pressupostos sobre o funcionamento dos
mercados e das relações de poder que podem advir das concentrações. Por este motivo,
a abordagem relativamente recente, conhecida como abordagem “performativa” nos
estudos sociais da economia, parece ser mais apropriada para compreender a noção de
mercado do antitruste e seus efeitos, pois ela leva em conta precisamente a forma de
interação entre teorias, princípios, modelos e conceitos econômicos e as realidades que
esses modelos buscam descrever, explicar ou mesmo governar.
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174
A história da antropologia dos mercados e da economia mostra como essa impressão é equivocada.
Trabalhos etnográficos clássicos sobre mercados compreendiam que a ambiguidade do termo, como
“local específico” e “princípio da troca”, poderia ser útil para analisar padrões de comportamento e
espaços comerciais. Na coletânea Markets in Africa, os autores Paul Bohannan e George Dalton afirmam:
“To study markets in Africa it is necessary to point out clearly the distinction between the institution of
the market place and the transactional mode of market exchange. The market place is a specific site where
a group of buyers and a group of sellers meet. The market mechanism, or market principle, on the other
hand, entails the determination of prices of labour, resources, and outputs by the forces of supply and
demand regardless of the site of transactions” (1965, p. 2). Da mesma forma, nem todos os economistas,
como demonstrado neste capítulo, concordam com a utilização de modelos abstratos de mercados,
preferindo uma abordagem mais empírica.
! 200
Não é inesperado, portanto, que o único trabalho na literatura da sociologia ou da
antropologia econômica que atenta para a definição de mercados na política antitruste, o
artigo de Brett Christophers (2015), afirme que a política ou a lei de defesa da
concorrência constitui um exemplo claro de como se dá a “performatividade” da teoria
econômica. Analisando os impactos das decisões de alguns casos específicos da
Competition Commission, o órgão antitruste do Reino Unido, o autor argumenta que as
definições de mercado teriam contribuído para a criação de fronteiras ou barreiras entre
mercados “reais”, pois levaram a proibições de certas práticas empresariais.175
! 201
princípios e conceitos devem ser pensados não apenas como formas de descrever o
mundo econômico, mas principalmente como ferramentas que o formatam.
Michel Callon (1998, p. 54) ainda menciona explicitamente o tema que nos
interessa nesta tese: “a lei de concorrência [...] obviamente promove a calculabilidade
das decisões ao enquadrar ações e relações autorizadas”. De fato, as decisões tomadas
pelo órgão antitruste, baseadas na lei concorrencial, performam mercados, pois definem
limites que serão levados em consideração pelas empresas nas suas decisões futuras,
alterando o modo de funcionamento dos mercados. A definição de um “mercado
relevante geográfico de 10 km” e de um “mercado relevante de produto de oncologia”
num voto, por exemplo, pode ter impactos sobre as relações de concorrência entre as
empresas requerentes, seus concorrentes e consumidores em várias localidades,
produzindo novos mercados e transformando aqueles já existentes. Este capítulo, no
entanto, descreve com mais detalhes o modo como certas definições de mercado
relevante são capazes de performar mercados “reais”. A definição de mercado não
performa apenas em função do impacto futuro que a decisão administrativa terá sobre as
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softwares, planilhas eletrônicas, procedimentos, padrões arquitetônicos, códigos linguísticos, fórmulas,
regulamentos etc.) que possibilitam, de formas distintas, processos de valoração de bens e a sua troca por
mecanismos de preços (Çaliskan & Callon, 2010). O entendimento de como essas redes são formadas é
uma das preocupações centrais dos trabalhos sobre finanças influenciados pelos estudos sociais da ciência
(ver Beunza, Hardie & MacKenzie, 2006; Pardo-Guerra, 2013; Zaloom, 2006)
! 202
empresas, mas também por meio das próprias práticas envolvidas na definição, como o
envio e o recebimento de documentos e os preenchimentos de tabelas e anexos.
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177
As pesquisas descrevem, por exemplo, como contratos de securitização produzem mercado de
transações futuras de ações (Riles, 2010a, 2011a), como atas de reuniões e relatórios técnicos dos bancos
centrais produzem mercados (Holmes, 2009, 2014), como questionários de qualidade produzem serviços
e consumidores (Callon, 2002), como tabelas com valores estatísticos produzem preços (MacKenzie
2007); cartões (scorecards) que produzem o “risco de crédito” do consumidor (Poon, 2007) ou títulos de
propriedade que produzem “capital” (Mitchell, 2005).
! 203
que envolvem a produção, a circulação, a leitura e o preenchimento de documentos que
os princípios teóricos sobre o funcionamento dos mercados, adotados pela política
antitruste, contribuem para “ajustar” a realidade à teoria (Callon, 2007).
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178
A capacidade performativa da lei tem sido reiteradamente enfatizada de modos diversos por vários
autores, entre eles Beviláqua (2010), Bourdieu (1987), Riles (2003).
179
Dumez e Jeunemaître (2008, p. 237), em artigo incluído na importante coletânea de Callon (2008), ao
tentarem provar a performatividade da teoria econômica nas decisões antitruste norte-americanas sobre o
mercado de cimento, chegam à seguinte conclusão irrisória: “The encounter between economics and
markets is therefore channeled through legal disputes and constrained by the legal dimension”.
! 204
Dizer que a lei constitui mais um elemento dos agenciamentos mercantis parece,
portanto, tão insuficiente para o antropólogo quanto para os analistas antitruste. Para
estes, a tarefa mais importante não é enumerar os elementos necessários para se fazer
um mercado, mas sim decidir o que é preciso ser deixado de fora; aquilo que é
necessário ser “filtrado”, como diz o conselheiro.
Porém, os mercados antitruste não podem ser concebidos apenas como esse
contexto interno, nativo das relações empresariais, pois ele é sobretudo um contexto
analítico-legal, produzido a partir de práticas de documentação administrativas
consideradas externas ao mercado, filtrando aquilo que é pertinente ou relevante de ser
analisado pelo analista. A teoria da performatividade dos mercados não é capaz de
explicar o mercado relevante pois não consegue conceber nada externo à rede
sociotécnica descrita. Os mercados do antitruste não são apenas parte de redes
sociotécnicas; eles cortam essas redes (Strathern, 2014 [1996]). Como as técnicas ou os
instrumentos legais (Riles, 2003) de contextualização, o mercado relevante também não
pode ser acusado de ser uma representação abstrata de um mercado “real” (Carrier,
1998), sendo que seu propósito é exatamente o de delimitar apenas alguns aspectos
dessa realidade: as relações de concorrência potencialmente afetadas pela concentração.
Como um contexto, ele não “elimina as particularidades do mundo” (Miller, 1998, p.
196), como afirmariam os críticos do “virtualismo”, mas torna explícitas relações e
! 205
capacidades (poder de mercado), atuais ou potenciais, que podem ser punidas,
autorizadas ou desautorizadas a partir de um ponto de vista legal.180
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180
Marilyn Strathern (1999), ao comparar práticas de contextualização entre os “ocidentais” e
“melanésios”, afirma que para os primeiros, o “corte” é tido como destruidor, tendo em vista que o
mundo é compreendido como um todo que estaria sendo mutilado. Tal seria uma possível explicação da
reação de críticos das decisões necessariamente limitadas do CADE. Entre alguns “melanésios”, por outro
lado, o corte é feito com o intento de produzir relações. Nesses casos, segundo ela, “onde cortar é um ato
criativo, evidencia-se as capacidades internas das pessoas e os poderes externos dos relacionamentos”
(Strathern, 1999, p.114). Tal poderia ser comparado ao efeito da definição de mercado no antitruste.
! 206
Capítulo 4: Identificando concorrentes
“En apparence, les chemins de fer américains ne sont donc plus trustés, ils sont soumis
au régime de la libre concurrence, en apparence la Steel Trust est maintenant brisée en
40 compagnies indépendantes, et rivalisant de bonne volonté et de bon marché. Et la
Standard Oil disparue, de nombreux pipe-lines indépendants mènent aux ports et
réservoirs un pétrole dont les prix sont débattus par un libre marché. Les trusts se sont
morcelés; apparemment ce ne sont plus Rockefeller, Schwab, Armour, qui possèdent le
pétrole, l’acier, la viande conservée. Mais tout le monde sait que, sous les apparences
d’obéissance à la loi, les capitalistes américains ont maintenu l’essentiel de leurs
organisations. Ce sont leurs hommes qui administrent la totalité des nouvelles
compagnies. Les majorités d’actions appartiennent toujours aux mêmes capitalistes. Et
l’industrie américaine est de plus en plus sous le “ contrôle ” de quelques groupes de
magnats.”
! 207
afinidade, que também se expressava em uma mesma visão sobre os objetivos da
política antitruste e na utilização de técnicas parecidas de análise dos casos, gerava uma
maior proximidade entre seus assessores e assessoras, que tinham o hábito de tirar
dúvidas e solicitar auxílios entre si quando da investigação de algum caso mais difícil.
Numa tarde no final de 2012, entrei na sala dos assessores desse outro gabinete para
perguntar se alguém queria me acompanhar no almoço. Nesse momento, as três
assessoras, mulheres na faixa de 30 e poucos anos, estavam rindo e comentando sobre a
foto que uma delas, Camila, havia escolhido como fundo de tela de seu computador. A
foto mostrava um senhor na faixa dos 80 anos numa cerimônia de premiação. Perguntei
quem era e uma delas respondeu que Camila estava “obcecada” por ele, pois ele estava
“por trás” da empresa que ela investigava. Camila justificou sua obsessão explicando
que, enquanto estava instruindo um processo relativo a uma concentração na área
educacional, descobriu que esse senhor controlava várias empresas do ramo, ou melhor,
“vários pedaços” de empresas. “É esse senhorzinho que manda no mercado”, disse ela.
A decisão sobre a autorização ou não da aquisição empresarial, segundo ela, passava
por uma investigação das “relações” que o senhor Gabriel, como ele se chamava, e sua
família tinham nessas diferentes empresas.
! 208
explícita para mim a necessidade que há na política antitruste de se identificarem os
agentes que concorrem no mercado relevante para que seja possível a visualização de
um problema concorrencial.
Como explico na primeira seção deste capítulo, para que se possa decidir, por
exemplo, sobre a aprovação ou não de uma fusão, os profissionais do CADE precisam
primeiramente saber quais são todos os participantes do mercado investigado – todas as
empresas que nele concorrem, incluindo as próprias requerentes – e quanto cada um tem
de participação no mercado, ou seja, com quanto cada um responde em termos de
receita ou oferta de algum produto ou serviço (o market share de cada participante). O
cálculo da participação de mercado de cada um dos concorrentes exige que eles sejam
bem identificados e diferenciados.
Na maior parte dos casos analisados pelo CADE, a identificação dos concorrentes
não é uma questão tão proeminente ou problematizada, tendo em vista que as próprias
pessoas jurídicas, requerentes do processo, podem ser consideradas como os agentes
econômicos que concorrem nos mercados relevantes para a análise. Essa coincidência
ou correspondência entre as pessoas jurídicas e os concorrentes facilita muito o trabalho
de estimação das participações de mercado. A essas entidades, jurídicas e econômicas,
também são imputadas certas características ou qualidades humanas durante a condução
da investigação que as identificam como portadoras de moralidade, reputação,
intimidade, vontade ou poder. Simplesmente denominadas “empresas”, as entidades ao
mesmo tempo jurídicas, econômicas e também morais que são investigadas na análise
antitruste são pensadas comumente como unidades singulares e independentes, átomos
cuja relação estabelecida com outros participantes de um mercado é apenas de
concorrência.
! 209
relações de influência capazes de gerar, entre duas ou mais empresas, decisões
organizacionais comuns.
Nos processos investigados pelo CADE, essas relações que interligam várias
empresas foram detectadas em casos envolvendo fundos de investimento que
frequentemente têm participações acionárias (ou seja, parte da propriedade) de
diferentes empresas num mesmo mercado. Como indiquei numa tabela apresentada no
segundo capítulo, casos envolvendo fundos de investimento tornaram-se uma
preocupação generalizada, pois impossibilitaram saber exatamente quais empresas estão
separadas e que, portanto, concorrem entre si num mercado. A questão dos analistas,
nesses casos, pode ser descrita do seguinte modo: se para existir uma relação de
concorrência é necessário ao menos duas empresas concorrentes, ou seja, duas unidades
autônomas e independentes, como identificar um desses concorrentes quando o controle
administrativo ou a propriedade acionária está distribuído(a) ou disperso(a) por um
conjunto de pessoas físicas e jurídicas – bancos, fundos de investimento e outros
acionistas? Como definir onde uma agente econômico começa e acaba em um contexto
em que empresas estão cada vez mais vinculadas financeira, jurídica e
administrativamente?
! 210
A descrição dos procedimentos ilustra como a identificação e a visualização desses
arranjos, ou seja, dos agentes que concorrem no mercado, implica considerar as
possíveis incongruências entre formas jurídicas adotadas pelas empresas e a “realidade
econômica”, conforme denomina o conselheiro-relator do caso. Explico, na quarta e
quinta seções, como, para o conselheiro-relator e suas assessoras, as relações de
propriedade e controle são consideradas “fatos econômicos” e como, nos processos
descritos neste capítulo, a personalidade jurídica das requerentes não pode ser
considerada uma representação do agente econômico, como ocorre na maior parte das
análises de atos de concentração. Como fica claro na descrição dos procedimentos
investigativos e dos argumentos elaborados no voto, as práticas de conhecimento que
permitem a identificação dos concorrentes convergem para a abordagem
socioantropológica da teoria do ator-rede em sua consideração sobre agências
econômicas, concebendo-as como feixes de relações entre coisas e pessoas.
Em Brasília, nas muitas vezes em que tomei um táxi para o CADE mencionando
apenas o endereço – “515 Norte pela W2, por favor” – o motorista costumava indagar,
apenas confirmando sua suspeição, se eu ia na sede da OAB do Distrito Federal. Para
sua surpresa, eu dizia que ia para o CADE, que ficava ao lado da OAB. O motorista
então perguntava: “ah, aquele que decide fusões entre empresas?”. “Sim, esse mesmo”,
eu respondia, e logo o taxista proferia um longo discurso sobre como a fusão da Brahma
com a Antarctica ou do banco Itaú com o Unibanco tinham sido completamente
inconsequentes, pra dizer o mínimo. O “xerife da concorrência”, como a imprensa
! 211
denomina por vezes o CADE, era e tornou-se conhecido pelo julgamento de atos de
concentração entre estas e outras grandes empresas, amplamente vinculados pela
imprensa. Essas concentrações empresariais, como aquelas entre a Sadia e a Perdigão e
a Gol e Varig, têm grande impacto na sociedade, pois dizem ou diziam respeito a
produtos ou serviços muito consumidos e conhecidos. Mais recentemente, o órgão tem
chamado a atenção pelas investigações de condutas empresariais ilícitas, principalmente
cartéis de processos licitatórios, como o “cartel do metrô” de São Paulo ou aqueles
mencionados na “Operação Lava-Jato” da Polícia Federal.
Essa qualificação dos atos que devem ser notificados ao CADE implica, na prática,
que apenas empresas relativamente grandes enviem pedidos de aprovação de atos de
concentração. Por outro lado, no sistema econômico que caracteriza países
industrializados, não são indivíduos, mas sim sociedades empresariais aquelas
! 212
responsáveis pelas produção, distribuição e comercialização da maior parte dos
produtos e serviços consumidos pela população. As infrações à ordem econômica,
apontadas no primeiro capítulo, são cometidas, portanto, por estas sociedades, que
concorrem com outras nos mais diferentes mercados. A forma legal capaz de estruturar
empresas que exercem tais condutas ou que possuem tamanha escala de faturamento é,
na prática, aquela de uma pessoa jurídica.182
Uma breve menção a esse “agente”, e que será retomada mais para o final deste
capítulo, faz-se necessária neste momento. Se o direito se utiliza da noção de pessoa,
seja ela física ou jurídica, concedendo a quem pode ser assim definido direitos e
responsabilidades equivalentes, a teoria econômica faz uso da noção de “agente” para
denominar qualquer entidade que atua num determinado mercado produzindo ou
consumindo produtos e serviços, seja um “indivíduo” ou uma “firma” (categorias usuais
da chamada microeconomia). O uso da noção de agente implica que a atenção da teoria
econômica está precisamente voltada ao comportamento econômico das entidades, em
especial ao modo pelo qual elas tomam decisões e fazem escolhas relativas ao consumo
ou à produção.
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182
No direito brasileiro, a existência das pessoas jurídicas como sujeitos de direito se dá a partir de dois
atos distintos. Em primeiro lugar, é necessário um ato constitutivo, redigido pelos sócios, que é
denominado Estatuto ou Contrato Social. Este estatuto é uma declaração de vontade e, no caso de
sociedades e associações, geralmente se denomina “contrato constitutivo”. A segunda fase de criação da
pessoa jurídica é o registro que deve ser feito numa junta comercial ou num Cartório de Registro da
Pessoa Jurídica – CRPJ (Silva Pereira, 2011). Documentos comprovando o contrato e o registro são
obrigatoriamente enviados por todas as requerentes em qualquer petição inicial que dá surgimento a um
ato de concentração no CADE. Cada requerente corresponde, portanto, a um CNPJ específico.
! 213
Entretanto, da mesma forma que o mercado relevante, ou seja, o mercado tal como
concebido pela política antitruste, não é equivalente ao mercado tal como concebido
pela teoria econômica, seja ela neoclássica ou não, os agentes econômicos que são
concebidos pela análise antitruste possuem também uma especificidade particular. Os
analistas, conforme pude observar, não estão interessados em todas as entidades que
produzem ou consomem num determinado mercado, mas sim aquelas entidades que
estabelecem relações de concorrência entre si. No caso da política antitruste, o tipo de
agente econômico que se busca conhecer e identificar é comumente denominado
“concorrente”. Em geral, os concorrentes são facilmente identificáveis e correspondem
a uma “empresa” que constitui uma única “pessoa jurídica”. Contudo, esta não é
necessariamente uma regra, como veremos na próxima seção deste capítulo. Antes disso,
no entanto, é necessário explicar como e por que a análise antitruste requer a
identificação de distintos concorrentes de um mercado, entidades que possuem limites
claramente definidos.
! 214
produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar,
falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre-
iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III –
aumentar arbitrariamente os lucros; e IV – exercer de forma abusiva posição
dominante.
E logo abaixo:
Desta forma, para separar os mercados relevantes nos quais será provável um
exercício de poder de mercado por parte da nova empresa, é preciso saber quanto cada
concorrente, inclusive os próprios requerentes, possui em termos de participação no
mercado. A participação de cada concorrente é estimada por meio da quantidade de
produtos que cada um vende no mercado ou através do faturamento de cada um deles.
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183
Tal procedimento de determinação das participações de mercado permeia não apenas a política
antitruste brasileira há décadas, mas a imensa maioria das políticas antitruste de outros países.
! 215
Essas informações são trazidas pela própria requerente em sua petição inicial e são
confirmadas por ofícios endereçados a todos os possíveis concorrentes que o órgão
antitruste conseguiu identificar nos mercados afetados. A apresentação das
participações de mercado costuma ser feita por meio de um quadro quase sempre
similar a este apresentado no voto do conselheiro Antônio Fonseca (CADE, 1995, fl.
2945) relativo ao caso da aquisição da Kolynos pela Colgate em 1996:
! 216
o mais afetado pela concentração e que exigiria uma medida preventiva do órgão
antitruste.
A construção de uma tabela como esta, quase sempre produzida na análise de uma
concentração empresarial, pressupõe uma definição prévia e precisa de quem são os
agentes que concorrem nos mercados apontados. Cada um deve ser concebido como
uma unidade econômica separada, que age de forma independente e concorre com os
outros pela venda de cada uma das categorias de produtos mencionados; um agente
ontologicamente equiparado, conforme a assunção da teoria econômica, a um indivíduo
racional e interessado. Caso contrário, suas participações nos mercados não poderiam
ser mensuradas, nem muito menos somadas. Como se pode ver, nessa tabela não temos
nenhuma informação a respeito da composição acionária dessas empresas, se elas são
propriedade ou se são controladas por empresas jurídicas ou por pessoas físicas. Não
sabemos sequer sua forma jurídica particular: se são sociedades anônimas, abertas ou
fechadas, ou sociedades limitadas. A tabela, com o nome das empresas correspondendo
ao mesmo nome das requerentes, sugere que neste caso não houve nada que indicasse
que as pessoas jurídicas que enviaram um requerimento de fusão não pudessem ser
consideradas também e coincidentemente os agentes que concorrem nesses mercados.
Não havia dúvidas de que a “Colgate”, a “Johnson & Johnson” e a “Kolynos” eram
empresas que faziam parte de conglomerados distintos e que podiam, por isso, ser
consideradas como unidades econômicas singulares, isto é, agentes concorrentes de um
mercado.
! 217
Como descrito no segundo capítulo, quando um processo chega à mesa de um
analista, assessor ou estagiário, trazido por um funcionário do protocolo do órgão e
entregue pela secretária do setor correspondente, ele contém, já em sua capa, o nome
das pessoas jurídicas requerentes ou representantes. Em geral, analistas e demais
responsáveis pela instrução fazem referência ao processo por meio de seu número (5633
p.ex.) ou, de modo mais comum, pelo nome das representantes/representadas ou
requerentes (Sadia-Perdigão, p.ex.). Muitas dessas empresas são conhecidas pelos
funcionários, seja porque fazem parte de sua vida cotidiana – o analista pode ser um
consumidor de serviços e produtos da empresa, pode ter trabalhado ou ter conhecidos
que trabalhem nela – seja porque processos administrativos anteriores que ele analisou
envolveram também essas empresas.
! 218
Ainda em 2012, um assessor do gabinete do conselheiro Carlos, no momento em
que lia os autos processuais relativos a uma aquisição no mercado de cimento, exaltou-
se: “a Votorantim é uma filha da puta, só faz merda!”. Explicando sua reação, o
assessor disse que esta empresa costumava enviar para análise do CADE uma série de
aquisições de cimenteiras pelo país, já prevendo qual seria o mercado relevante
geográfico que seria definido para cada caso. Dessa forma, uma série de aquisições
poderia ser aprovada individualmente, se fossem analisadas por diferentes gabinetes,
sem que se levasse em conta o fato de que faziam parte de um mesmo “movimento
estratégico de controle de mercado”. Ele me explicou que, a partir do momento em que
os assessores de vários gabinetes perceberam isso, todo o processo em que a pessoa
jurídica (e agente econômico) “Votorantim Cimentos” estava envolvida passou a ser
investigado com mais cautela. Esta e outras formas de qualificação moral das entidades
administradas pelo CADE contribuem para a imputação de responsabilidades,
culpabilidade, intencionalidade e “poderes” que são úteis na interpretação dos impactos
de concentrações ou de condutas anticompetitivas.
! 219
New York Times vende outra empresa. Como o antropólogo Robert Foster (2010)
argumenta, esse modo de imputar certas subjetividades, ações ou racionalidades a
empresas não deve ser considerado menos merecedor de atenção, como se fosse uma
prática meramente irrefletida daqueles que escrevem ou falam. Segundo este autor
(2010, p. 98), estas e outras instanciações acabam “naturalizando uma certa ontologia,
um mundo no qual entidades personificadas chamadas empresas (corporations) existem
– entidades com volição, agência e julgamento moral”.
Esse modo de conceber empresas com tacos de certa personalidade, não apenas
jurídica, mas também moral, não é particular dos funcionários do CADE, podendo ser
visto em diversas situações cotidianas, na esfera jurídico-administrativa ou não, como
apontam relatos de vários antropólogos que trabalharam com práticas empresariais ou
discursos a seu respeito (Hart, 2005; Sawyer, 2006; Welker, 2010; Foster, 2010).
Suzana Sawyer denomina de “entificação” os “modos pelos quais regimes legais e
éticos produzem entidades e estabelecem seus valores, logrando-os de direitos e
obrigações específicas” (Sawyer, 2006, p. 24). Em sua pesquisa sobre os argumentos de
uma disputa judicial entre uma empresa petrolífera norte-americana e camponeses
equatorianos, a antropóloga descreve os vários momentos em que são conferidas à
empresa acusada, ChevronTexaco, qualidades humanas que tornam compreensíveis
suas ações, fazendo com que todas as subsidiárias da empresa em diversos países
constituíssem parcelas de uma entidade maior. Os representantes da ação utilizam,
inclusive, segundo a antropóloga, a segunda pessoa do singular (tu) para se referirem à
empresa. Os modos de qualificá-la, dando coerência às suas ações, possibilitaram
culpabilizá-la judicialmente pelo vazamento de petróleo numa região rural do Equador,
responsabilizando-a pelos danos causados (Sawyer, 2010, p. 36).
! 220
2014), essas pesquisas apontam para os efeitos de tais “reificações”.184 Mariana Welker
(2014) mostra, por exemplo, como certas práticas e discursos empresariais podem
transformar uma mineradora em uma empresa “social e ambientalmente responsável”.
Na política antitruste, as qualidades conferidas a empresas contribuem para imputar
certas responsabilidades, culpabilidades, intenções e poderes e, ao mesmo tempo, para
concebê-las como entidades concorrentes de um mercado, agentes econômicos que
tomam decisões racionais e interessadas e, principalmente, autônomas.
Como se pode ver, nos processos instruídos pelo CADE, costuma-se conceber
entidades que são ao mesmo tempo sujeitos de direito, as próprias pessoas jurídicas
requerentes dos processos, e agentes concorrentes do mercado, sendo que o
conhecimento prévio dessas entidades ainda as reveste de um caráter moral e humano.
No início do meu trabalho de campo, essa sobreposição de estatutos que dava coerência
às entidades não parecia ser uma questão para os profissionais responsáveis pela
instrução dos processos. A própria separação entre esses estatutos não era algo
problematizado e percebível nas práticas de conhecimento antitruste. Contudo, tais
coerência e unidade tornaram-se uma questão complexa quando conselheiros,
assessores e estagiários começaram a investigar certos setores da economia. O
conhecimento de quem concorre em um mercado deixara de ser uma questão simples,
especialmente, como veremos na próxima seção, devido ao desenvolvimento mais
recente do mercado financeiro no país. Foi somente nesse momento que se tornou
explícita para mim a necessidade que a política antitruste tem de definir, além do
mercado, as entidades que nele concorrem, como mostrado nesta seção.
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184
Vários trabalhos mencionam a história jurisprudencial norte-americana e a transformação dos direitos
dados às corporações (corporations) nos Estados Unidos, mostrando como as corporações têm adquirido
cada vez mais o estatuto jurídico dado aos humanos (ver Barkan, 2010, 2012; e Coleman, 2014).
! 221
Perguntas deste tipo passaram a ser correntes na análise de concentrações entre
empresas que ofertam serviços de educação superior privada no país.
Ao redor dessas dez pessoas na mesa, cada uma com seu computador conectado à
intranet do conselho, havia uma fileira de cadeiras onde os assessores dos gabinetes
podiam se sentar para auxiliar os conselheiros caso eles solicitassem. Em geral, apenas
um assessor de cada gabinete acompanhava o conselheiro durante a sessão. Por um
acaso relativo à ordem de nomeação dos conselheiros, nesse semestre, no plenário, os
três conselheiros economistas estavam sentados do mesmo lado da mesa em U e os três
conselheiros professores de direito, do outro. 186 Aproximadamente às 16 horas, o
presidente do CADE, que conduz as sessões de julgamento, passou a palavra ao
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
185
As sessões passaram a ser contadas novamente a partir da entrada em vigor na nova legislação em
2012.
186
Os conselheiros sentam-se alternadamente na mesa em relação à ordem em que foram nomeados, o
que, neste caso, acabou colocando do mesmo lado profissionais formados na mesma disciplina.
! 222
conselheiro Carlos, responsável pela relatoria do último processo da pauta da sessão.
Apesar do cansaço de todos os presentes, haja vista que a sessão já durava mais de seis
horas, tendo sido interrompida apenas para um breve almoço, o conselheiro leu
integralmente o voto de um processo relativo a um ato de concentração, mesmo sabendo
que este não resultava em “nenhum problema do ponto de vista concorrencial”.
Após o voto ser lido, o presidente do órgão, que conduz as sessões, perguntou se
havia comentários a serem feitos. Luiz foi o primeiro a se manifestar, algo que já era
esperado por Carlos. O jurista começou sua fala afirmando que o voto proferido tornava
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
187
A discussão relatada nesta seção ocorreu durante o julgamento do processo no 08012.001613/2012-89.
188
A página da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão do Poder Executivo vinculado ao
Ministério da Fazenda e responsável pela regulação do mercado de capitais e financeiro, define fundos de
investimento como “condomínios constituídos com o objetivo de promover a aplicação coletiva dos
recursos de seus participantes [...] Os Fundos de Investimento constituem-se num mecanismo organizado
com a finalidade de captar e investir recursos no mercado financeiro, transformando-se numa forma
coletiva de investimento, com vantagens, sobretudo, para o pequeno investidor individual. Tais Fundos de
Investimentos, através da emissão de cotas, reúnem aplicações de vários indivíduos para investimento em
carteiras de ativos disponíveis no mercado financeiro e de capitais” Disponível em:
http://www.portaldoinvestidor.gov.br/menu/Menu_Investidor/valores_mobiliarios/FundodeInvestimento4
09.html. Acesso em 24 de outubro de 2015.
! 223
claro o modo como fundos de investimento vêm adquirindo e, principalmente,
“controlando” empresas no setor de educação. Como explicado no voto, a empresa
adquirente Estácio Participações S.A., conhecida como “Grupo Estácio”, possui uma
estrutura societária com participações de cinco diferentes fundos de investimento, além
de outras pessoas físicas. Assim, tanto fundos – pessoas jurídicas – como indivíduos de
uma família – pessoas físicas – são proprietários do Grupo Estácio. Segundo Luiz,
destaca-se nos dados apresentados pelo relator o fato de que apenas um desses fundos, o
GPCP4, que possui apenas 0,52% do patrimônio do Grupo Estácio, tem “poder
decisório” nesta empresa, isto é, apenas ele pode indicar membros ao Conselho de
Administração e, por isso, tem “capacidade de influir de maneira direta tanto no que se
refere à deliberação quanto no que diz respeito às aquisições e às construções de novos
campi” (CADE, 2012c, p. 266), além da escolha dos executivos e da aprovação do
orçamento. Esse fundo GPCP4 faz parte de outro fundo ainda maior, o “GP
Investments”, que tem investimentos em vários outros setores da economia.
O conselheiro ainda criticou o CADE por não acompanhar mais de perto esse
movimento mais amplo de aquisição dos fundos de investimento:
! 224
Luiz apontou a necessidade de observar esse movimento mais amplo que poderia
afetar a concorrência nos mercados, mas também ressaltou os limites do próprio órgão
em conhecer esse fenômeno, principalmente pelas diferentes temporalidades nas quais
as empresas e o CADE atuam: “A velocidade com a qual as entidades do sistema
financeiro agem é muito rápida e a nossa percepção demora...”. Segundo ele, por este
motivo, o órgão antitruste não tem “conhecimento suficiente para fazer qualquer análise
quantitativa ou qualitativa [...] pertinente sobre os fundos de investimento e seu
comportamento nos diversos mercados da economia brasileira”. Ao final, o conselheiro
apenas “concordou com o relator” em relação ao caso julgado, tendo em vista que, para
ele, a aquisição da Estácio também não resultava numa concentração do mercado
relevante definido pela análise.
A preocupação com os fundos e com o modo com que vinham sendo tratados no
CADE gerou comentários de outros conselheiros, como o de outro professor de direito
da USP, sentado ao lado de Luiz. Primeiramente, ele procurou ressaltar que, apesar dos
“fundos de investimento estarem vindo à baila no tribunal”, o problema que eles traziam
não tinha a ver com a “natureza” deles, mas sim pelas dificuldades analíticas que eles
impunham a um órgão antitruste. Transcrevo parte de sua fala abaixo:
Sem prejuízo de concordar [com o voto do relator] [...] esse caso demonstra
como o mundo se torna mais complexo e mais difícil pra nós. Historicamente,
a economia brasileira é uma economia em que o financiamento via mercado
de capitais era inexistente ou muito precário. O papel importante dos bancos
públicos durante a crise de 2008, 2009 foi tão importante porque a nossa
indústria de capitais era e é muito precária. Este é um importante entrave ao
desenvolvimento do país. Um pouco por conta disso, tem havido um esforço
[...] do governo, da CVM, do Ministério da Fazenda, do BNDES de
desenvolver e fomentar o mercado de capitais no Brasil. É muito importante
que o conselho tenha isto em mente [...] nós estamos diante de uma
externalidade negativa de um fenômeno que é fundamentalmente bom.189
! 225
Esse sucesso [o desenvolvimento do mercado de capitais] torna
eventualmente nossas análises mais difíceis por tornar o fenômeno do
controle mais difícil de apreender [...] Um mundo em que a indústria de
capitais é desenvolvida é um mundo em que as empresas não têm dono, ou o
dono não é tão claro [...] Lidar com o tema do controle no Brasil, em que o
mercado de capitais não é desenvolvido, é [ou era] simples, porque eu olho
uma empresa, ela é fechada, [então] ela tem um dono que é uma família. O
mundo é [era] muito simples: duas empresas estão se juntando e eu quero
saber quem é o dono daquilo há 200 anos. Num mundo em que o capital
privado financia o desenvolvimento dos negócios da economia, as estruturas
de governança são mais complexas. Oitenta por cento das ações da Estácio
são ações em circulação; 20 por cento do capital é detido por um fundo que,
por sua vez, é um fundo de fundos, que é o fundo do GP (grifos meus).
Como ele explica, a progressiva abertura das empresas no mercado de capitais gera
um problema para a autoridade antitruste, que está relacionado não apenas à
propriedade do capital das empresas, mas também ao seu controle administrativo. A
dispersão acionária do capital empresarial dificulta a identificação dos “donos” das
empresas, mas principalmente a identificação de quem as controla. Na investigação da
Estácio, conhecer os proprietários não levava necessariamente a conhecer quem possuía
a efetiva administração da empresa. Os comentários dos conselheiros levaram a uma
reflexão por parte do presidente do órgão que, apesar do desconforto provocado pela
insolação da sala do plenário, estendeu ainda mais a sessão. Em sua fala:
Após o presidente enfatizar, como o conselheiro, que a menção aos fundos não
tinha “nenhuma conotação valorativa”, sendo apenas preocupante do ponto de vista
antitruste, os outros conselheiros que não haviam se manifestado pronunciaram seus
votos, sempre de acordo com o relator. O julgamento dos processos foi encerrado e a
sessão concluída.
! 226
Essa discussão, motivada pelo voto do conselheiro, expôs uma necessidade que fica
implícita nos demais casos analisados e descritos até então neste trabalho. Como já dito,
a definição de quem concorria num mercado parecia ser dada, pois as pessoas jurídicas
que enviam requerimentos para unir-se com outras podem ser consideradas, para efeito
de análise antitruste, como os mesmos agentes que concorrem nos mercados. Esta
consideração só era possível porque os proprietários e os controladores de uma empresa
não costumavam ter parcelas de outras, já que as empresas atuantes no Brasil não
estavam tão dispersas acionariamente, ou seja, tinham um dono único e facilmente
identificável. Isto resultava, como disse o presidente, numa “coincidência” entre a
propriedade da empresa e seu controle administrativo, o que significa que a propriedade
estava nas mãos das mesmas pessoas físicas ou jurídicas que as controlavam
administrativamente. Ainda hoje a grande maioria das empresas brasileiras tem como
proprietários e administradores uma família, tornando simples a reunião de empresas,
seus proprietários e administradores em uma única unidade econômica independente;
um só concorrente.
! 227
propriedade e são controladas por fundos de investimento, gerando uma “sensível
questão concorrencial”, segundo os funcionários do CADE. Caso um fundo possua
ações e o controle administrativo de mais de uma empresa em um único mercado, ele
poderia influenciá-las ao mesmo tempo, fazendo com que não concorressem entre si,
pois isto seria prejudicial aos interesses do fundo. A questão enfrentada pelos analistas é
como saber se a pessoa jurídica que enviou o requerimento de fusão concorre com as
outras empresas do mesmo mercado quando um fundo de investimento possui ações
tanto dela quanto das outras, supostamente suas concorrentes. Será que os investimentos
de um fundo, quando divididos entre várias empresas de um único mercado, pode
acabar tornando todas essas empresas parte de um mesmo grupo que agiria em comum
acordo e orientação? Se este for o caso, todas essas empresas que receberam
investimentos não poderiam ser consideradas concorrentes entre si, nem agentes
econômicos distintos, mas sim parte de um único grupo econômico.
! 228
setor de ensino superior privado, cujo crescimento era promovido pelo governo
federal.190 A preocupação com esses fundos era o que levara Camila, a assessora de
Luiz, a se tornar obcecada por um dos proprietários de uma universidade que
investigava e colocar sua foto no computador. Somente assim, acreditava ela, seria
possível identificar corretamente as entidades que concorrem nesse mercado.
! 229
concorda com a análise de Marx, identificando na tendência à diluição da propriedade,
ou seja, no surgimento das sociedades comerciais anônimas, um prelúdio à socialização
ou, em suas palavras, à nacionalização do capital (Mauss, 2013). No capítulo
denominado “Les faits économiques”, quase integralmente dedicado a uma análise da
formação e dos efeitos dos cartéis e dos trustes norte-americanos, Mauss defende as
novas “coletividades capitalistas” por seu “caráter público”, pois “non seulement la
propriété, mais encore sa gestion sont portées à la connaissance du marché, de
l’assemblée des citoyens de la nation, peuvent être jugées par leur valeur présente et
future – surtout future – et peuvent être comptées” (Mauss, 2013, p. 304).193
Outros pensadores eram muito mais céticos quanto aos benefícios dessas novas
estruturas empresariais. Em 1926, o economista institucionalista Thorstein Veblen, na
sua última obra Abstentee Ownership: Business Enterprise in Recent Times, apontava o
fato de que as modernas corporações norte-americanas não tinham mais um proprietário
bem definido, pois a propriedade estava dividida entre centenas de acionistas na Bolsa
de Valores, e profeticamente previa que isto poderia causar crises econômicas pela
excessiva orientação financeira e pouco produtiva dessas novas organizações.194 Alguns
anos depois, os juristas Adolf Berle e Gardiner Means, no clássico The Modern
Corporation and Private Property (1932), demonstraram empiricamente que a
separação entre propriedade e controle havia se tornado uma característica definidora
das empresas do período ou, mais precisamente, das corporações. O controle
administrativo estava agora a cargo de um indivíduo ou um grupo de indivíduos
selecionados para o conselho de diretores da empresa (Berle & Means, 1932, p. 66), que
podiam ser ou não proprietários. Para eles, o crescimento de tais corporações poderia
gerar concentrações econômicas excessivas nos mercados. Essas possíveis
consequências danosas para a concorrência deram origem a estatutos legais, como o já
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
193
Sua defesa dos trustes é enfática por serem, no seu ponto de vista, instrumentos de socialização do
capital e organizações benéficas economicamente: “S’il est permis à l’historien des sociétés modernes de
déjà porter un jugement, il semble que ceux qui conçurent cette nouvelle forme, ce nouveau régime du
capitalisme et de l’industrie eurent encore plus de génie que ceux qui ne firent que truster des industries
similaires. Ce dernier genre de trust s’imposait pour faire cesser les folies de la concurrence, laquelle
multiplie les crises et les à-coups, et hausse les prix de revient d’une foule de frais généraux, ajoutés à des
petites entreprises non viables. La découverte du trust n’était qu’une affaire de bon sens, que Rockefeller
et Carnegie firent et appliquèrent avec bon sens” (Mauss, 2013, p. 311).
194
Na introdução ao livro de Veblen (1996 [1926], p. IX), o sociólogo norte-americano Marion Levy Jr.
explica o que este autor pretendia captar com esse conceito, que era utilizado normalmente para
denominar certas formas de arrendamento de terra: “In the earlier days, the giants of business enterprise
had faces – Rockefeller, Vanderbilt, Ford, Edison – but they all turned into faceless bureaucracies. The
giants may not have been nice, and they weren’t noted for their empathy, but they had faces and human
traits. Absentee ownership wiped that out for the common man”.
! 230
mencionado Celler-Kefauver Antitrust Act em 1950, que proibia que uma empresa
comprasse ações de outra caso a concorrência entre as duas fosse futuramente reduzida
(Sklar, 1988).
! 231
Figura 9: Rede de relações com base na sra. Ângela Rodrigues (CADE, 2013, fl. 1896)195
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
195 Essa imagem se encontra disponível nos autos do processo no sítio eletrônico do CADE
(www.cade.gov.br) em branco e preto. Para que as cores, que são e foram tão importantes na investigação
empreendida pela assessora, fossem visualizadas, precisei recorrer ao sítio www.marketvisual.com e fazer
uma busca, gratuita e de livre acesso, pelo nome da sra. Ângela de Castro Rodrigues. O site forneceu a
mesma imagem colorida que constava do voto do conselheiro antes que uma cópia fosse digitalizada e
disponibilizada no sítio do órgão antitruste em preto e branco.
! 232
financeiro”, representada pela linha vermelha, com a “Anhembi Morumbi”, além de
outras relações que não a interessavam tanto.
Como ela explicou ao mostrar a folha impressa, Ângela Rodrigues era filha do
senhor Gabriel, aquele cuja fotografia decorava o fundo de tela de seu computador. Para
a assessora, o mapa era mais uma prova de que ela estava realmente no “caminho certo
da investigação”, que buscava provar que dois supostos concorrentes faziam, na verdade,
parte do mesmo “grupo econômico”, ou seja, suas participações de mercado teriam que
ser consideradas em conjunto. Um indício forte de que as duas empresas, Anhanguera e
Anhembi, poderiam ser consideradas um só agente no mercado era o fato de que ambas
estavam relacionadas a essa mesma pessoa física no centro da rede, a sra. Ângela.
No decorrer desse dia, acompanhei Camila em uma busca por outros gabinetes que
já tivessem utilizado tal ferramenta em suas investigações. Ela havia descoberto o
website por recomendação de uma amiga e estava curiosa e interessada nos seus
possíveis usos em investigações antitruste. A assessora, entretanto, não encontrando
ninguém que tivesse utilizado a ferramenta, dirigiu-se à Assessoria de Planejamento
(Assplan) do órgão para solicitar que o acesso ao site fosse adquirido pelo CADE e
disponibilizado aos funcionários, pois o site funcionava gratuitamente somente nas três
primeiras buscas. Como o MarketVisual não era conhecido no CADE, ela havia pago
com seu próprio cartão de crédito o acesso à ferramenta que, segundo ela,
proporcionava um conjunto valioso de informações para a investigação de “relações
empresariais”. O Department of Justice norte-americano, de acordo com ela, tinha
desenvolvido um software com uma tecnologia similar há já alguns anos para lidar com
problemas como aqueles que ela estava encontrando no caso que instruía.
O processo pelo qual Camila era responsável envolvia a aquisição das sociedades
“Instituto Grande ABC de Educação e Ensino S/C Ltda.” (IGABC) e “Novatec –
Serviços Educacionais Ltda.”, ambas pertencentes ao “Grupo Anchieta” e localizadas
na região do ABC paulista. O IGABC presta serviços na área de ensino superior e
mantém a Faculdade Anchieta e a Novatec, que atua na mesma área, mantém também a
Faculdade de Tecnologia Anchieta e o Colégio Anchieta. As duas sociedades estavam
sendo adquiridas pela “Anhanguera Educacional Ltda.”, que desenvolve, por sua vez,
uma série de atividades de prestação de serviço de ensino superior no país, sendo,
naquele ano, a “maior organização privada com fins lucrativos do setor de ensino
! 233
profissional do Brasil e a maior empresa de capital aberto do setor de Educação em
valor de mercado” (CADE, 2013, fl. 1881). A Anhanguera tinha 54 campi, 450 polos de
ensino a distância e mais de 650 centros profissionalizantes.
“Antigamente”, disse ela, “as faculdades eram razoáveis, com salas confortáveis em
locais apropriados, agora alugaram uma salinha na W2 e você vai lá embaixo e tá cheio
de garota de programa, bêbado, e lá em cima, há uma estrutura precária, com uma
televisãozinha daquelas [...]”. Ao explicar o que ela chamava da “característica” dessa
empresa, notou que a “qualidade do ensino” não era uma variável levada em conta na
análise antitruste para se tomar uma decisão sobre a concentração de mercado, visto que
a preocupação do CADE recai somente sobre a quantidade ofertada de serviços.196
Entretanto, segundo ela, “só aqueles que são ou já foram alunos sabem a diferença que a
entrada de um grande grupo como esse pode causar no mercado”. Sua experiência
tornou sua investigação uma causa pessoal e gerou um incentivo adicional para
“esmiuçar” melhor as empresas requerentes.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
196 A qualidade de ensino é regulada pelo Ministério da Educação, embora decisões do CADE possam
alterar consideravelmente os incentivos para a construção da qualidade de ensino. No momento de
realização da pesquisa, existia uma tentativa de formalização de uma cooperação entre o MEC e o CADE
para avaliar com mais precisão a rápida transformação pela qual passa o mercado de educação superior
privada.
! 234
instrução do mesmo ato de concentração. Relatando seu interesse no caso e o modo
como havia chegado ao nome de Ângela, Camila buscou reconstituir os primeiros
procedimentos de sua investigação:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
197
Como consta no voto do conselheiro, naquele momento, o Grupo Estácio era controlado pelo fundo
GP Investments; o Grupo Anhanguera, pelo banco e o fundo Pátria; a Kroton, pelo fundo Advent
Internationale; a Anhembi-Morumbi/Laureate Education, pelo fundo norte-americano KKR (Kohlberg
Kravis Roberts). Apenas a Unip não tinha um fundo de investimento como proprietário ou controlador. O
conselheiro ainda enfatizou a dimensão desses investimentos afirmando que entre as “15 maiores
empresas educacionais do país, nove possuem um fundo ou banco de investimentos na sua estrutura de
gestão e governança” (CADE, 2013, fls. 1860-1861).
! 235
Segundo a reportagem “Duas concorrentes e um professor em comum”, publicada
no jornal O Estado de São Paulo em 11 de junho de 2012 e descoberta pela assessora, o
“professor Gabriel”, como era conhecido, havia vendido o “controle” administrativo da
Anhembi-Morumbi, o equivalente a 51% da propriedade da empresa da qual fora
fundador, para uma multinacional do setor de educação, a Laureate Education Inc.
Contudo, mesmo sem o controle da universidade, que supostamente estaria nas mãos
dos acionistas majoritários, ele continuava “dando palpites na administração dos sócios”
(fl. 1883). A empresa responsável por essa reestruturação societária da Universidade
Anhembi-Morumbi era uma empresa conhecida de consultoria financeira e gestão de
fundos, Pátria Investimentos, cujos executivos eram conhecidos da filha de Gabriel,
Ângela Rodrigues que, por sua vez, trabalhava no departamento financeiro da
universidade.
! 236
considerada em conjunto, pois “atuariam como um só agente no mercado”. Camila
prosseguiu:
Quando eu descobri isso, fui falar com o conselheiro. Isso antes de descobrir
o MarketVisual. Falei: “conselheiro, eu estou com uma desconfiança de que
o dono da Anhanguera também é o dono da Anhembi. Aliás, desconfiança
não, eu tenho certeza de que o dono da Anhanguera é o dono da Anhembi, só
que eu não tenho nenhum documento público que comprove isso”. Aí ele
olhou pra mim e falou: “Camila, esses negócios de fundo de investimento e
mercado de educação... eu estava já com uma pulga atrás da orelha, porque
eu estou vendo o movimento acontecendo e ao mesmo tempo chega esse
argumento de que tudo é pulverizado, de que eles têm, cada um, um
pedacinho de participação de mercado. Investiga! Para o prazo!”. Eu recebi
com o prazo de 44 dias e não deixei passar nenhum dia.
Até esse momento Camila não havia requisitado nenhuma informação diretamente
às requerentes, a órgãos públicos ou a concorrentes por meio de ofícios. Sua
investigação se baseava apenas nos documentos enviados como parte da petição inicial
e numa pesquisa preliminar na internet. Fazendo isso, ela evitava que os passos de sua
investigação fossem percebidos pelas requerentes, pois um ofício seria, como de regra,
juntado aos autos públicos do processo e tornado de livre conhecimento do público
interessado. Além disso, as informações fornecidas pelas requerentes por meio de
ofícios dificilmente comprometeriam a aprovação de sua concentração. Como ela
explicou, “se você olhar só pro que eles [as empresas] mandam [respostas dos ofícios na
forma de petições, apresentações, tabelas de Excel], nunca vai ter a resposta certa,
nunca vamos ter sobreposição horizontal”, isto é, nunca existirá uma concentração
significativamente problemática para ser analisada pelo CADE nos mercados. Porém,
“se você for estudar mais a fundo, você verá que não é só isso”. Um dos momentos
decisivos da investigação, segundo a assessora, que serviram para “comprovar a certeza”
de que as empresas estavam vinculadas, foi uma reunião realizada com advogados das
requerentes:
A gente não tinha nenhum documento oficial que comprovasse nada ainda,
quando teve uma reunião com a Anhanguera. Na reunião estavam as
advogadas e o diretor jurídico da Anhanguera. Ninguém tinha nem
mencionado o nome de Gabriel na reunião ainda. Eles falando: “não, porque
olha, não precisa ter preocupação com isso, tal e tal...”. E o conselheiro: “mas
minha preocupação não é com isso, eu estou avaliando outros aspectos...”. E
depois falou: “E o Gabriel?”. Ele não falou sobrenome, nada, podiam ser
milhões de gabriéis que existem no mundo. Na hora, o diretor jurídico ficou
duro e as advogadas olharam pra cara dele espantadas como se ele não as
tivesse alertado sobre isso. Ele falou: “olha, pra ser bem franco, eu entrei na
empresa esse ano e eu só vi o Professor Gabriel uma vez esse ano, num
evento. Eu sei que ele tem ações, mas isso não muda a análise que vocês
! 237
estão fazendo”. Mas assim, pra mim, ele não precisou explicar nada. Quando
o conselheiro falou, “E o Gabriel?”, a reação dele mudou; o semblante dele
mudou. Depois até conversei com o conselheiro: “Tu viu a reação dele?”. Eu
falei: “esse cara é quem manda, só preciso provar isso”. Deu pra perceber que
o professor era uma figura forte lá dentro, pois não detalhamos como Gabriel
Rodrigues, Professor Gabriel, o acionista Gabriel, nada disso. Até porque o
Gabriel não está em nenhuma ata, nenhuma assembleia, não está em canto
nenhum! Ele só tá dentro das quotas, dentro do fundo que tem 10% hoje.
Então, nesse dia, a gente teve certeza de que só faltavam os documentos
mesmo, mas que o diagnóstico estava fechado.
! 238
evidência de que Ângela, assim como Gabriel, estava de alguma forma relacionada a
duas empresas supostamente concorrentes.
Após ter realizado essa ampla investigação que incluiu o envio de 46 ofícios às
requerentes e suas concorrentes, o conselheiro-relator pôde elaborar seu voto, que
abordou a crescente participação de fundos de investimento no setor de educação
privada no país. Mesmo tendo aprovado a aquisição sem restrições, por esta não
apresentar qualquer dano potencial à concorrência, seu voto ainda assim necessitou de
149 páginas para provar a existência de um “novelo de relações (ou participações)
societárias” – ou seja, um conjunto de relações de propriedade – e de um “novelo de
dirigentes” – um conjunto de relações de controle empresarial – que transpassavam a
requerente Anhanguera e a empresa Anhembi-Morumbi. Tais “novelos” ligando
empresas, fundos de investimento e pessoas físicas integrantes da “família Rodrigues”
ou executivos, levavam a uma “unificação do comando empresarial” em empresas
distintas, supostamente concorrentes. Para ilustrar algumas das inúmeras relações
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Os integrantes da “família Rodrigues”, segundo definição no voto do conselheiro-relator, são os srs.
198
Gabriel Mario Rodrigues, Ângela Regina Rodrigues de Paula Freitas, Glaucia Helena Castelo Branco
Rodrigues e Carmen Sílvia Rodrigues Maia (fls. 1895).
! 239
detalhadas no voto, utilizou-se o website MarketVisual, que gerou o seguinte
organograma para algumas pessoas físicas e jurídicas investigadas:
Figura 10: Quadro que apresenta as “ligações entre Anhanguera Educacional Participações S.A.,
Pátria Investimentos, a sra. Ângela Rodrigues e Anhembi Morumbi” (CADE, 2013, fl. 1898)
A assessora, por meio das linhas coloridas que podiam ser selecionadas no site,
procurou explicitar relações de controle empresarial, como cargos no conselho de
administração das empresas (board of directors) ou na diretoria administrativa
! 240
(executive office), além de relações de propriedade (company ownership) e outras, como
vínculos familiares (family relation) ou até mesmo a instituição na qual a pessoa física
havia estudado (education). A variedade, a multiplicidade e a densidade dessas relações,
que podiam ser depreendidas pela própria visualização das linhas, constituíam aquilo
que as assessoras denominavam de uma “influência relevante” entre as pessoas físicas e
jurídicas especialmente apontadas pelos retângulos vermelhos.
! 241
Sra.!Ângela!
Rodrigues!
12,1%!
Sra.!
Carmem!
Sr.!Gabriel! Rodrigues!
FEBR!
(Pátria)! Rodrigues!+! 12,1%!
Filhas!!
17,24%! 75,7%!
Anhanguera! Sra.!Gláucia!
Rodrigues!!
Outros! 12,1%!
82,76%!
Sr.!Gabriel!
Rodrigues!
39,4%!
Núcleo!
organizador!
real!
Sra.!Ângela!
Rodrigues!
12,1%!
Sr.!Gabriel! Sra.!
AnhembiP Rodrigues!+! Carmem!
Morumbi!/! Filhas! Rodrigues!
Laureate! 12,1%!
49%!
Sra.!Gláucia!
Rodrigues!!
12,1%!
Sr.!Gabriel!
Rodrigues!
39,4%!
Figura 11: Quadro intitulado “Novelo de Participações Societárias” (CADE, 2013, fl. 1900)
! 242
relações entre as pessoas jurídicas e físicas tornavam razoável inferir que as duas
empresas tinham conhecimento mútuo de suas ações e estratégias e que não agiriam de
forma alguma em desacordo com a outra ou para prejudicá-la.
Se todas as entidades presentes nesse arranjo, pessoas físicas e jurídicas, podem ser
consideradas “como se fossem um” concorrente para fins da política de defesa da
concorrência, devem ser somadas, segundo o conselheiro, “as participações e os
recursos conexos dos grupos Anhanguera/Anhembi-Morumbi-Laureate/Pátria” (fl.
1913), não apenas na instrução desse processo, mas sempre que houver a necessidade
de se calcular o market share dos participantes numa análise que envolver alguma
dessas empresas. A investigação realizada neste caso conseguiu provar que a requerente
Anhanguera tinha uma participação maior no mercado, tendo em vista que sua alegada
concorrente, a empresa Anhembi-Morumbi, estava relacionada de muitas formas
diferentes com ela, de modo que só poderiam constituir um mesmo “arranjo”
organizacional, agindo de modo coordenado. Portanto, não era possível considerar a
Anhanguera e a Anhembi-Morumbi como concorrentes entre si no mercado de
educação superior privada.!
Casos como este, em que os concorrentes não podem ser facilmente identificados,
são um problema central para um órgão que pretende defender a concorrência. Para
mim, esses casos tornaram explícita uma condição para a visualização de um problema
! 243
concorrencial: a necessidade de se identificarem sujeitos ou entidades distintas que
concorrem entre si. Para que sejam concorrentes, duas empresas devem não só
participar do mesmo mercado relevante, comercializando produtos e serviços
substitutos e operando em uma mesma região geográfica, mas também não terem
qualquer outra forma de relação entre elas. De um ponto de vista do antitruste, a
existência de relações de propriedade e de controle envolvendo pessoas jurídicas e
físicas similares implica que as ações de duas empresas podem ser coordenadas, no
sentido de que uma não tentará rivalizar com a outra. Além disso, esses casos expõem
um modo de se conceberem os agentes concorrentes de um mercado, unidades que
podem ser consideradas autônomas e singulares, a partir de uma análise das suas
relações. Esta concepção relacional do agente econômico de interesse para a política
antitruste era particularmente importante para o conselheiro-relator do caso Anhanguera,
como explico abaixo.
“Como agem os fundos? Precisam ter formalmente controle societário para ter a direção
econômica e estratégica? Qual o impacto, na gestão cotidiana das empresas investidas,
do fato de os fundos deterem a possibilidade de serem, sempre, “novos investidores no
mesmo negócio” ou “fontes de investimentos novos por parte de outros novos
investidores”, o chamado “efeito gravitacional do dinheiro”? Como tratar, do ponto de
vista concorrencial, esse conjunto de expectativas recíprocas, explícitas ou implícitas,
que traz um específico e determinado equilíbrio de poderes na relação entre fundo de
investimento (sujeito) e empresa investida (objeto)? E quando essa relação não é
unidirecional (fundo = sujeito/empresa investida = objeto), mas sim complexificada
pelo ativismo da empresa investida, que se utiliza dos fundos para sua própria expansão,
uma vez que é detentora do conhecimento a respeito do mercado? Quais as formas
jurídicas (estática) que as relações econômicas (dinâmica) assumem? As formas
jurídicas correspondem ao fato econômico? Quais outras formas de direção econômica
podem estar agregadas e sendo praticadas? São necessariamente participações
societárias ou, pelo contrário, podem ser expressas em contratos e/ou acordos
referenciados em participações em outros fundos e/ou rendimentos (localizados
inclusive no exterior), responsáveis pelo acerto das posições patrimoniais? Os fundos de
investimento limitam-se a uma única empresa “investida” em um único mercado ou,
pelo contrário, podem ter mais de uma e, portanto, temos dois ou mais concorrentes sob
uma mesma orientação geral? Dado que as estratégias dos fundos de investimento são
intuídas, planejadas, executadas e finalizadas em situações (como as ora analisadas),
com prazo que pode superar uma década, quais os passos que estão sendo, agora,
dados? Como são manejadas, nessas estratégias de médio/longo prazo, as variáveis
concorrencialmente sensíveis? Quais os instrumentos que devem ser desenvolvidos pela
autoridade antitruste para realizar uma política que seja minimamente eficaz, e que não
se aliene da financeirização de diversos setores?” (CADE, 2013, fl. 1878, grifos meus).
! 244
Esse longo parágrafo do voto do conselheiro Luiz ilustra como a crescente
investida dos fundos no setor de educação superior privada no Brasil criava um desafio
para a autoridade de defesa da concorrência. As perguntas que precisam ser respondidas
para que se possa solucionar um caso deste tipo são inúmeras e complexas, envolvendo
o modo como empresas e fundos agem e a maneira pela qual estão relacionadas. Entre
todas as questões, acredito que uma delas, realçada acima, parece ser a que expõe com
mais clareza e profundidade a questão imposta ao CADE nesse novo contexto
econômico, conforme o entendimento do jurista: “as formas jurídicas correspondem ao
fato econômico?”. A nova situação exige pensar a possibilidade de convergência entre
certos aspectos da técnica jurídica e da vida econômica ou, como colocado, entre
“formas jurídicas” e “fatos econômicos”.
! 245
as relações de propriedade e controle, são obviadas pelos “efeitos estéticos da forma
jurídica” (Riles, 2005) que marcam e constroem uma identidade.
A forma jurídica que mereceria maior cautela por parte dos analistas do órgão
antitruste é a própria personalidade jurídica, pois é esta a “unidade requerente”, como
ele denomina, que na maior parte das vezes é tomada como se fosse o agente econômico
de interesse para o antitruste. Como já explicado, a personalidade jurídica das empresas
confere um primeiro contorno às entidades administradas pelo CADE, pois é em nome
delas que se faz o requerimento solicitando autorização para a realização do ato de
concentração. Contudo, como visto, esse contorno formal não coincide necessariamente
com os agentes que concorrem no mercado.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
199 O conselheiro-relator cita em nota de rodapé, como referência, o conhecido artigo do sociólogo Mark
Granovetter, Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness, publicado em 1985
no American Journal of Sociology. Discuto esta referência mais abaixo neste mesmo capítulo.
! 246
2008, p. 320). Segundo Caio Mário da Silva Pereira (2011, p. 257), a partir das teorias
realistas (ou formalistas),
Nesse sentido, a noção de pessoa jurídica é o exemplo mais claro do que os juristas
chamam de uma “ficção legal” ou “ficção jurídica”, um conceito amplamente conhecido
e utilizado tanto no direito civil quanto no direito anglo-saxão. Uma ficção jurídica, na
definição mais usual, é uma afirmativa, feita por um juiz (ou jurista ou advogado), de
que algo existe ou é um fato, quando todos, inclusive o próprio juiz e sua audiência,
sabem que este fato “na verdade” não existe (Riles, 2010b, p. 3). Por esta definição, a
ficção jurídica não pode ser considerada uma falácia, pois a afirmativa que a performa
não tem qualquer pretensão de descrever a realidade, ela não é feita com o propósito de
enganar ninguém.200 Sua importância reside no fato de ela agir como uma ferramenta do
direito, produzindo efeitos jurídicos concretos. Por exemplo, afirmar a existência da
personalidade jurídica de uma empresa permite que ela seja proprietária de ativos em
seu nome, que contrate funcionários e que seus sócios proprietários não sejam
responsabilizados por eventuais dívidas contraídas por ela.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
200 Sobre a possível crítica de que este conceito é uma mera criação ou “manobra” legal, Silva Pereira
(2011, p. 257) explica: “encarando a natureza da pessoa jurídica como realidade técnica, aceitamo-la e a
sua personalidade sem qualquer artifício. E nem se poderá objetar que esta personalidade e capacidade
são fictícias em razão de provirem da lei, porque ainda neste passo é de salientar-se que a própria
personalidade jurídica do ser humano é uma criação do direito e não da natureza, reconhecida quando a
ordem legal a concede, e negada quando (escravos) o ordenamento jurídico a recusa”.
! 247
econômicas qualidades humanas na forma de reputações, intenções e racionalidades que
caracterizariam sua atuação nos mercados, nos casos de empresas abertas no mercado
de capitais, ter em conta a pessoa jurídica como um concorrente leva ao risco de se
considerar um mercado relevante como menos concentrado do que ele realmente é. Isto
poderia ter como consequência a aprovação de uma concentração que prejudica
consumidores e outras empresas.
Pensar que a forma jurídica e o fato econômico são convergentes é prático para os
funcionários do órgão de defesa da concorrência, que não têm que se dar ao trabalho
descrito na seção anterior de identificar o concorrente de um mercado. Contudo, como
diz o conselheiro, utilizar a forma como se fosse uma representação pode tornar a
análise e o julgamento “alienados da realidade”. Como, então, conceber e identificar o
concorrente de um mercado, já que a forma jurídica não ajuda nessa tarefa?
! 248
são consideradas as unidades interessadas, autônomas e concorrentes de um mercado.
Por outro lado, a visão interna das empresas que, segundo Riles, transparece de forma
mais evidente em momentos de controvérsias financeiras ou jurídicas, como, por
exemplo, em processos de falência ou de crimes corporativos, pressupõe um
entendimento dessas entidades como coisas, ou seja, propriedade de pessoas (físicas ou
jurídicas), seus acionistas, por exemplo. Essa multiplicidade da forma empresa,
dependendo da perspectiva com que ela é abordada, permite considerá-la, ao mesmo
tempo, como pessoa e coisa, sujeito e objeto, proprietária de certos ativos e propriedade
de outras pessoas (2011 p. 39). Além disso, enquanto do ponto de vista externo a
empresa é concebida como uma unidade e uma singularidade cujas fronteiras são
definidas, criando uma aparente “simplificação” de sua imagem (Riles, 2011b), do
ponto de vista interno, a empresa só pode ser entendida como um conjunto de relações
entre proprietários e coisas.
! 249
fortes para serem consideradas, jurídica e analiticamente, como produtoras do efeito
econômico de unir o comportamento de duas pessoas jurídicas distintas.
Mauss utiliza essa noção para embaralhar, como ele próprio indica, a separação
moderna entre o “direito real” e o “direito pessoal”, dando o sentido de uma
coletividade da qual coisas e pessoas, como as concebemos, fazem parte. O agente do
kula é, portanto, um coletivo de pessoas e coisas relacionadas e distinto de outros
coletivos.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
201Curioso o fato de que a expressão personne morale seja literalmente a tradução de “pessoa jurídica”
em francês, sendo esta a expressão utilizada correntemente em textos legais neste idioma. O tradutor da
mais recente versão brasileira da obra citada, entretanto, optou por manter a expressão “pessoa moral” (p.
190). Na última edição do Ensaio sobre a Dádiva para o inglês (Mauss, 2001), o tradutor usa o termo
legal entities no lugar de personne morale. Poderíamos inferir que o uso do termo personne morale por
Mauss, na falta de outro mais apropriado, poderia sugerir que o agente econômico que ele identifica no
kula melanésio, da mesma forma que o agente econômico que os analistas identificam na análise
antitruste, se aproxima de uma noção de “pessoa jurídica”, mas não se confunde com ela.
! 250
Na sociologia econômica mais contemporânea, as noções de agência também têm
sido amplamente debatidas, buscando oferecer uma crítica e um complemento para
abordagens consideradas “subsocializadas”, tanto da ciência econômica quanto da
sociologia. Por isso, não foi por acaso que o conselheiro citou em seu voto um dos
artigos mais conhecidos do sociólogo Mark Granovetter, publicado em 1985,
considerado fundante da chamada “nova sociologia econômica”, para justificar uma
interpretação das agências econômicas da política da concorrência em termos
relacionais. Este sociólogo, tanto no trabalho mencionado como em outros (Granovetter,
1973), empregou a noção de redes sociais para explicar que toda ação econômica é
necessariamente inserida (embedded) em uma rede de relações sociais.202 Tais relações
explicariam os incentivos que mobilizam agentes econômicos, como empresas e
indivíduos.
! 251
For Granovetter the only possible solution is that provided by the network;
not the network connecting entities which are already there, but a network
which configures ontologies. The agents, their dimensions, and what they are
and do, all depend on the morphology of the relations in which they are
involved […] In the social network as described by Granovetter, the agents’
identities, interests and objectives, in short, everything which might stabilize
their description and their being, are variable outcomes which fluctuate with
the form and dynamics of relations between these agents (Callon, 2008, p. 8).
Tanto Michel Callon quanto outros autores influenciados pela noção de rede, como
Donald MacKenzie (2009), têm chamado a atenção para as condições que possibilitam
conceber e construir agentes ou agências (agencements) econômicas como entidades
calculadoras ou racionais. Em concordância com Callon, afirma MacKenzie:
An economic actor is not an individual human being, nor even a human being
“embedded in institutions, conventions, personal relationships or groups”
[…] an actor is made up of human bodies but also of prostheses, tools,
equipment, technical devices, algorithms, etc. – in other words is made up of
an agencement (MacKenzie, 2009, p. 20).
De acordo com essa literatura, um agente econômico deve ser compreendido como
um arranjo, uma rede composta de humanos e não humanos, pessoas e coisas, que estão
organizados de tal forma a produzir comportamentos econômicos, mais ou menos
racionais ou calculadores. Não seria possível entender o funcionamento do mercado
financeiro, por exemplo, levando em consideração apenas a agência dos humanos, como
os traders que realizam operações financeiras. Suas ações são parte de um arranjo
sociotécnico que inclui “equipamentos” como calculadoras, softwares, algoritmos,
documentos, entre outros “actantes”, que, em conjunto, os tornam capazes de tomar
decisões econômicas.
! 252
analista mais evidência de uma suposta “influência relevante” entre as duas empresas
investigadas. Todo esse “novelo” de relações entre pessoas – jurídicas e físicas – e
coisas – suas propriedades, ou seja, as próprias empresas das quais são acionistas e
administradores – é entendido como parcela de uma “realidade econômica” a partir da
qual as decisões legais devem ser baseadas. A especificação de relações relevantes
conforma uma unidade que pode ser utilizada para o cálculo de participação de mercado
e, assim, de uma própria estimativa de concorrência do mercado.
No dia 29 de abril de 2013 saí para almoçar com Camila, a assessora que havia
realizado a investigação relatada. Naquela semana ela já estava trabalhando em outro
caso, outro ato de concentração. Fomos no seu carro até um restaurante a algumas
superquadras de distância do CADE, ainda na Asa Norte da capital. Ela estacionou seu
carro e, andando para o local, um pouco antes de chegar, passamos em frente a uma
! 253
farmácia. Nesse instante, Camila disse que precisava de um minuto, pois tinha um
trabalho a fazer na farmácia. Quando entramos no estabelecimento, Camila começou a
tirar fotos das prateleiras onde estavam os preservativos à venda (fotografia abaixo).
Achando inusitado o que estava fazendo, perguntei por que ela estava tirando aquelas
fotos.
Camila explicou que a foto estaria incluída no seu voto e que estava pedindo para
diferentes conhecidos, em todos os estados do Brasil, que enviassem fotos das
prateleiras de preservativos de farmácias ou drogarias para incluí-las também. Uma
semana depois eu enviaria uma foto da prateleira de uma farmácia em que entrei na
minha cidade, quando me lembrei do seu pedido em Brasília. A assessora estava
trabalhando numa concentração entre duas grandes empresas produtoras de
preservativos. Naquela semana ela redigia o voto que aprovaria o requerimento das
empresas. Segundo ela, a fabricação de preservativos exigia muito pouco investimento
fixo, ou seja, era muito barato para uma empresa construir uma fábrica e começar a
produzir esse produto. Mesmo que a concentração criasse um concorrente com alta
participação no mercado, o CADE não deveria, segundo ela, restringir a operação. As
baixas “barreiras à entrada” nesse mercado, ou seja, a alta possibilidade de entrada de
um novo concorrente, impediam que essa empresa com alta participação aumentasse
muito o preço de seus produtos. A operação, portanto, dificilmente seria prejudicial para
outros concorrentes ou consumidores. Mesmo com sua explicação, eu não havia
compreendido o porquê de incluir a fotografia no voto. Ela então apontou para a foto no
celular e disse enfaticamente: “Olha, isso é concorrência”:
! 254
Figura 12: “Concorrência.”
! 255
suficientemente concorrido. A fotografia ilustrava de forma precisa aquilo que ela
entendia como concorrência e que seguramente convenceria outros conselheiros de que
o mercado era competitivo. Mais do que isso, a foto tornava claro algo que parecia
permanecer constante nas diversas investigações e nos variados procedimentos que são
levados a cabo pelos responsáveis da instrução processual no CADE, em especial na
instrução de atos de concentração: o modo pelo qual a visualização da concorrência
exige a percepção de diferenças e semelhanças.
! 256
comportava uma empresa diferente, claramente visualizada pela marca e pela
embalagem que dava unidade à empresa. As marcas distintas, separadas nas prateleiras,
deixavam claro para o consumidor que essas empresas eram diferentes e que poderiam
ser consideradas concorrentes entre si. A estante funcionava praticamente como uma
tabela de Excel de participação de mercado, separando as concorrentes e indicando que
aquelas mais acima teriam um poder de mercado maior, pois estavam mais bem
localizadas nas gôndolas. As semelhanças de produtos ofertados por marca e, ao mesmo
tempo, a diferença clara entre elas estabeleciam visualmente uma distinção entre
concorrentes equivalentes de um mesmo mercado. Por último, um número não muito
pequeno de empresas identificadas (6) completava a verdadeira representação de um
mercado em que haveria “concorrência”.
! 257
Considerações finais: Os limites do antitruste
“The most fundamental problem antitrust confronts is dealing with complex market
information through institutions whose competence is limited.”
! 258
seus concorrentes estavam copiando literalmente as suas revistas, tanto em relação ao
design quanto ao conteúdo. E os juízes vinham concordando com seus argumentos,
decidindo pela retirada de circulação das revistas dos concorrentes das livrarias.
Esse processo, com 12 volumes, sendo quatro deles somente com revistas de
passatempo, era considerado complexo pelos analistas. Seria necessário não apenas
investigar se as empresas estavam mesmo copiando as revistas, o que implicava uma
série de questões relativas ao direito de propriedade intelectual, mas principalmente
verificar se as medidas judiciais adotadas pela grande empresa poderiam ser
qualificadas como uma conduta anticompetitiva. Ao tomar ciência do conteúdo do
processo, comecei a pensar sobre as possíveis questões que poderiam gerar caminhos
para a investigação. Em princípio, analisei, para que fosse considerada uma conduta
ilícita, as ações judiciais propostas pela grande editora teriam que estar direcionadas e
intencionadas para a retirada de concorrentes de um mesmo mercado relevante. Porém,
qual o mercado relevante que poderia ser definido para este caso? Seria o mercado de
“passatempos”, incluindo aí as revistas de “sudoku”, “palavras cruzadas” ou o “jogo dos
7 erros”? Ou será que cada um destes tipos de passatempo poderia ser considerado um
só mercado relevante? A pergunta era no mínimo curiosa e foi objeto de discussão
numa reunião com advogados da grande editora. Será que os consumidores, quando vão
a uma banca de jornal comprar sudoku e não encontram revistas deste tipo, comprariam
palavras cruzadas? Todas essas variedades de passatempos são substitutos entre si no
mercado? Estaria a editora tentando se livrar de algum tipo específico de revista,
visando criar um monopólio naquele mercado?
! 259
intenção de praticá-la. A questão envolve a obtenção de evidências – como depoimentos,
notas, e-mails, documentos internos de empresas – que provem um acordo colusivo
realizado entre duas ou mais empresas ou uma mera intenção de realizá-lo; um trabalho
mais policial e menos preditivo. Processos administrativos como este, relativos a
condutas anticompetitivas, estavam cada vez mais presentes no órgão antitruste, o que
levava a uma transformação da própria política e colocava em evidência seus limites.
Desde que a política antitruste brasileira ganhou mais relevância no início dos
anos 1990, a grande maioria dos processos instruídos tem como objeto atos de
concentração empresariais. A necessidade legal de o CADE aprovar concentrações gera
todo mês um grande número de novos requerimentos que ocupam a maior parte da
atividade analítica ou investigativa do órgão. Como já explicado, durante o período em
que fiz meu trabalho de campo, o órgão antitruste, incluindo o Tribunal Administrativo,
tinha um grande “estoque” de concentrações geradas pelas incertezas que as empresas
viam na transição legal de 2012. Em 2015, entretanto, o número de processos instruídos
relativos a atos de concentrações e condutas anticompetitivas começou a se igualar.
“Antes de entrar em vigor a [nova] lei, os ACs eram quase 90%. Hoje temos 54% e o
resto são condutas anticompetitivas”, disse o presidente do CADE ao Valor Econômico
em janeiro de 2016 (Valor Econômico, 21/01/2016). Essa equiparação se deve em parte
à mudança realizada nos requisitos para submissão de atos de concentração.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
203
Essa alteração dos patamares de notificação é permitida de acordo com o artigo 88 da nova Lei 12.529
de 2012: “§ 1o Os valores mencionados nos incisos I e II do caput deste artigo poderão ser adequados,
simultânea ou independentemente, por indicação do Plenário do Cade, por portaria interministerial dos
ministros de Estado da Fazenda e da Justiça”.
204
Portaria Interministerial no 994, de 30 de maio de 2012.
! 260
igual ou acima destes montantes devem solicitar autorização para que sua concentração
possa ser consumada.
Muitos profissionais com quem conversei apontam que essa alteração reflete um
movimento mais amplo, uma escolha política na qual o olhar para o futuro vai sendo
aos poucos substituído pela investigação do passado. A política econômica nacional já
vem há algum tempo privilegiando a formação de grandes grupos empresariais, os
chamados “campeões nacionais”, supondo que esses grandes conglomerados podem
concorrer internacionalmente com desempenho melhor que empresas de menor porte,
gerando mais lucros e empregos na economia brasileira. O grande aumento do
orçamento do BNDES na última década seria um exemplo dessa guinada política. Nesse
contexto, a repressão às práticas anticompetitivas existentes faria mais sentido do que a
prevenção da formação de grandes conglomerados empresariais. Criou-se inclusive o
Dia Nacional de Combate a Cartéis por meio de Decreto Oficial assinado pelo
presidente Lula em 8 de outubro de 2008. Este marco faz parte de uma campanha para
“atrair novos denunciantes de cartéis e conscientizar a população sobre a importância do
combate a essa prática contra a concorrência”, conforme explicou a assessoria de
comunicação do CADE.205
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
205
A campanha incluía a distribuição de cartilhas com informações sobre o que é um cartel, quais os
prejuízos causados diretamente aos consumidores e dicas de como denunciar essa prática. Disponível em:
http://www.cade.gov.br/Default.aspx?271ae830c157ad7581ce67f954. Acesso em: 20/01/2016
! 261
considerada equivocada pode resultar em críticas àqueles responsáveis por as terem
tomado e ao próprio órgão antitruste.
! 262
várias etapas e procedimentos buscando obter uma quantidade de informações
suficiente para estabelecer possíveis cenários futuros nos mercados? Além disso, como
realizar esta análise supostamente imparcial sobre as relações econômicas, baseada em
teorias e conceitos variados, quando a maior parcela dessas informações é fornecida
pelos próprios requerentes da concentração que não pretendem se prejudicar?
! 263
No terceiro capítulo expliquei como o conceito de mercado relevante pode ser
concebido como uma representação das relações concorrenciais conforme são
compreendidas pelas empresas e os consumidores. Entretanto, como pude perceber
pelas considerações formuladas pelos analistas, compreender a noção de mercado
somente como um “espelho” da realidade econômica tornaria a análise antitruste
limitada pelo motivo, irônico, de que ela não teria limites. Isto significa que a
construção de um espelho “limpo” do mercado seria impossível, mesmo que se
enviassem milhares de ofícios às empresas participantes de um mercado. A quantidade
de informações seria sempre insuficiente e a análise não teria um fim (Strathern, 1996).
Por isso, o mercado relevante é sobretudo um “filtro” que deixa de fora aquilo que não é
pertinente à análise, como os aeroportos do país cuja infraestrutura ainda não está
totalmente saturada, e as clínicas oncológicas cujos pacientes, pela sua própria condição
física, não estão dispostos a frequentar. Dessa forma, ele permite aferir a probabilidade
de exercício de poder de mercado e, assim, a possibilidade de a concentração gerar
prejuízos à concorrência. O contexto definido pelo mercado não reduz a capacidade de
análise do órgão antitruste, mas, pelo contrário, permite a visualização das relações de
concorrência e dos poderes de mercado da futura empresa fusionada dentre um conjunto
mais amplo de relações econômicas em que ela está inserida.
! 264
A análise antitruste, portanto, concebe e define objetos (mercados) e sujeitos
(agentes econômicos) com o propósito de restringir o conjunto de relações econômicas
tornando explícitas apenas aquelas relações tidas como concorrenciais. Os mercados e
os agentes econômicos são performados por meio de práticas e artefatos jurídico-
administrativos e teorias econômicas que “separam o que está vinculado”, utilizando a
expressão de Simmel, delimitando um espaço geográfico preciso, especificando quais
produtos ou serviços são substitutos entre si e identificando agentes econômicos
concorrentes. Essas práticas de separação são, por outro lado, o que permite a
visualização das relações de concorrência, ou seja, uma relação entre agentes
econômicos bem definidos e distintos atuando numa mesma região e vendendo produtos
ou serviços similares. Como demonstrei, a relação de concorrência é materialmente
visualizada numa tabela de participação de mercado (market share) que “vincula”, num
mesmo retângulo (o mercado), aquilo que já foi previamente separado, representado por
cada quadrado (agentes econômicos). Portanto, as práticas de documentação do órgão
antitruste possibilitam não somente conceber mercados e agentes econômicos, mas
também visualizar e governar a relação de concorrência entre eles.
! 265
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