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A vulgarização
do saber (1931)
Miguel Osório de Almeida
Um dos pioneiros da fisiologia no Brasil, Miguel Osório de Almeida foi
pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz durante vários anos e presidente da
Academia Brasileira de Ciências, entre 1929 e 1931. Escreveu muitos textos
de divulgação científica, diversos deles reunidos nos livros Homens e coisas
de ciência e A vulgarização do saber. Texto publicado no livro A vulgarização
do saber. Rio de Janeiro: Ariel Editora Ltda., 1931. pp. 229-240.
A
s coleções de livros de vulgari- Difícil seria responder de um modo
zação científica se multiplicam. cabal a todas essas perguntas. Esses pro-
As conferências e os cursos pú- blemas já têm sido discutidos por sábios
blicos sobre as questões mais ár- e filósofos e as conclusões são, em geral,
duas e difíceis, destinadas a pôr contraditórias. Alguns não escondem o
ao alcance de todo o mundo noções ou seu ceticismo e não crêem na possibili-
conhecimentos que eram o apanágio de dade de reduzir a termos suficientemente
grupos limitados de especialistas, secun- elementares os resultados complexos de
dam e completam a tarefa que visam a pesquisas científicas, para a compreensão
executar as edições populares. dos quais é necessária uma longa prepa-
ração.
Tudo isso demonstra que o público
em geral tem sua atenção despertada É esse ceticismo que, conquanto não
para as coisas do saber e aspira partici- expressamente declarado, transparece do
par do movimento incessante das idéias prefácio escrito por E. Meyerson para a
e compreender, pelo menos em suas li- Collection Fontenelle, dirigida por Salo-
nhas essenciais, as bases dos grandes fa- mon Reinach e Georges Urbain, que se
tos científicos e a essência das principais iniciou recentemente com um volume in-
leis naturais. Essa aspiração é, sem dúvi- titulado Deux heures de mathématiques. O
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da, nobilitante. Será ela útil? Poderá ela grande público conhece de sobra o nome
ser satisfeita? Que resultados advirão de de Salomon Reinach, historiador, arque-
uma cultura popular mais extensa e, o ólogo, crítico de arte e filólogo. Georges
que é fundamental, até que ponto pode- Urbain, menos conhecido, é uma figura
rão os homens de ciência corresponder a interessante e complexa de sábio, que, a
esse apelo coletivo? Enfim, terá a ciência uma competência das mais especializadas
alguma coisa a ganhar com esse movi- em alguns ramos da química, acrescenta
mento? uma vasta erudição científica e uma sóli-
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da cultura artística. Os que admiram suas Urbain não se limita a estudos teóricos
pesquisas aprofundadas sobre os comple- sobre música, mas compõe ele próprio.
xos não ficariam pouco surpreendidos ao
saberem que é dele um livro Le tombeau Emille Meyerson é hoje dos mais
d’Aristoxène, em que é analisada toda a autorizados e profundos pensadores da
estrutura da música, desde a Antigüidade França. Seus volumes sobre a explica-
até os nossos dias e no qual ele mostra ção das ciências, A dedução relativista e
como certos modos musicais, ainda dei- Identidade e realidade, revelam esforço de
xados de lado, constituem reservas quase erudição e capacidade de meditação ab-
inesgotáveis para essa arte, que atravessa, solutamente raros. O ideal dos homens de
agora, uma crise de renovação. Mais ad- ciência em todas as épocas, as tendências
mirados ainda ficariam se soubessem que de cada escola, desde os grandes filóso-
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fos da Grécia, até os físicos relativistas e do tempo. Isso não importava. A ame-
atuais, foram por ele postos em evidên- aça contra esses conceitos despertava
cia em um trabalho longo e penetrante. um interesse análogo ao que haveria se
Certamente, a soma de conhecimentos se propalasse que as pirâmides do Egito
por ele adquirida, a possibilidade de ter estavam em vésperas de desabar. Os que
presente à memória uma tão larga massa nunca viram as pirâmides e muito pou-
de resultados e a necessidade essencial ca probabilidade teriam de vê-las um dia
de seu espírito de ver além dos fatos e sem dúvida se mostrariam mais apreen-
leis das ciências positivas os métodos sivos que os demais.
empregados para descobri-los e as ten-
tativas abortadas ou perdidas, feitas sem Diante desse anseio geral por saber
sucesso, tudo isso concorre para a atitude como se criava a nova ordem de idéias,
de ceticismo a que acima nos referíamos. de todos os lados se tentou esse tour de
force: expor a relatividade na linguagem
Aliás, em um de seus volumes an- mais simples compreensível à massa dos
teriores (A dedução relativista), Meyer- homens de instrução média. Uma revista
son tinha apresentado idéias semelhan- chegou a pôr o tema em concurso. Nada
tes, ao verificar o insucesso de todas as foi possível fazer e, na opinião de todos,
tentativas feitas para expor a teoria da os trabalhos escritos com esse fim, inclu-
relatividade ao alcance de todos. Quan- sive o do próprio Einstein, falharam por
do se anunciou que Einstein havia re- completo. Esse insucesso, entretanto, tem
volucionado as concepções clássicas do sua explicação fácil. A teoria da relati-
espaço e do tempo, houve uma emoção vidade exige, para ser compreendida, a
muito maior nos meios não-científicos posse de noções muito elevadas de ma-
que entre os físicos de profissão. Pou- temática, por vezes mesmo inteiramente
cas pessoas, dentre as que mais curiosas fora da cultura clássica dos matemáticos
se mostravam das novas idéias, seriam de profissão. É impossível, quase sem-
capazes de dizer o que havia de essen- pre, apresentar em linguagem profana
cial nas concepções clássicas do espaço um raciocínio que só pode ser assimilado
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com o auxílio de um simbolismo próprio. umas de outras pelo modo por que elas
Meyerson soube pôr esse ponto bem em são estudadas. Se algumas põem em tra-
evidência. A linguagem comum, a que é balho as capacidades superiores do ra-
utilizada para a vida de todos os dias, tem ciocínio e se para abordá-las com pro-
suas raízes profundas no senso comum. veito é preciso desenvolver ao mais alto
grau o poder de abstração, afastando-se,
A matemática, como a filosofia, re- como observou Meyerson, do senso co-
corre a conceitos, dependentes, em certos mum, outras não exigem mais do que as
casos, de uma espécie de senso diferente qualidades bem equilibradas dos homens
e que assim não se adaptam às condições médios. Os seus resultados podem muitas
precárias da língua habitual. Dá-se aqui, vezes ser isolados, expostos de um modo
segundo Meyerson, o que se observa em suficientemente claro, em palavras sim-
um grau muito menor com as traduções ples de uma linguagem muito próxima
literais. A passagem de certas expressões, da linguagem cotidiana. Além disso, é
que correspondem à mentalidade profun- indispensável distinguir aqui o trabalho
da peculiar a um povo, e que representam do homem de ciência que porfia por des-
exatamente o seu modo de sentir, não cobrir fatos novos, do esforço relativa-
pode ser feita convenientemente para ou- mente pequeno daquele que apenas quer
tras línguas, que se mostram assim defi- compreender o essencial de um fenôme-
cientes. A tradução em linguagem vulgar no. Chegar a evidenciar fenômenos até
de concepções matemáticas encontra dian- então desconhecidos, ou demonstrar re-
te de si uma dificuldade desse gênero, mas lações até então não suspeitadas de fenô-
em proporções muito maiores. Ela terá que menos já anteriormente descritos, é sem-
ser forçosamente incompleta e defeituosa. pre tarefa complexa, ao alcance só dos
Para bem compreender a literatura de um espíritos preparados por dons naturais e
povo, é necessário conhecer a sua língua. por uma cultura especializada. Em muitos
casos, porém, uma vez descobertos esses
Um dos argumentos fundamentais fenômenos, nenhuma dificuldade existe
dos partidários do estudo do grego e do em expô-los.
latim é mesmo esse, que a essência do
pensamento dos gregos e dos romanos, As ciências naturais apresentam inú-
formando a origem de nossa cultura, só meras questões que estão nesses casos.
pode ser assimilada por quem seja capaz Mesmo algumas das grandes concepções
de lê-los nos textos originais. Para bem orientadoras que se encontram na base
acompanhar os raciocínios dos matemá- dessas ciências podem ser explicadas
ticos, é, a fortiori, indispensável compre- com sucesso a profanos. Todo o mundo
ender a linguagem que eles empregam. compreende em seus pontos essenciais a
teoria da evolução ou a natureza micro-
Sem dúvida, nesse ponto particular, biana das doenças infecciosas. Ao leigo
o acordo não será difícil. As matemáticas não interessa, nem é necessário saber, a
e todas as questões científicas com que minúcia técnica, e sim apenas as grandes
elas têm relações muito íntimas, como a linhas essenciais de um conjunto impor-
maior parte das teorias da física e da cos- tante de conhecimentos.
mogonia, parecem condenadas a perma-
necerem por muito tempo ainda em um A utilidade de pôr o grande público a
certo isolamento. Elas só serão acessíveis par do movimento científico tem parecido
a certos iniciados e a certos privilegiados. duvidosa a muitos espíritos. O receio dos
perigos que oferece a “meia ciência” é
As ciências, porém, distinguem-se uma das principais objeções levantadas.
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dir conhecimentos isolados. No dia em ca, assim praticada, não me parece, pois,
que a maioria dos homens estiver im- discutível. É fato que alguns inconve-
pregnada da verdadeira significação dos nientes podem resultar de uma difusão
fins da ciência e tiver compreendido um larga da ciência. Muitas vezes criam-se
pouco da essência dos métodos científicos mal entendidos penosos. A ciência pro-
e, em um passo mais adiantado ainda, gride e evolui constantemente. Os conhe-
souber se aproveitar um pouco das van- cimentos alargam-se e modificam-se. A
tagens que a cultura científica confere, um conhecimento com um determinado
pela precisão que empresta ao raciocínio grau de aproximação substitui-se outro
e pelo respeito à verdade, além de ou- mais aproximado ainda, quando o aper-
tras qualidades morais que desenvolve, a feiçoamento da técnica de pesquisa o
humanidade terá dado um grande passo. permite. As descobertas de fatos novos
obrigam a modificar as concepções gerais
A utilidade da vulgarização científi- orientadoras do pensamento. Isso tudo
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