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INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA PPGHC
Rio de Janeiro
Março de 2014
i
ii
Felipe Santos Deveza
iii
FELIPE SANTOS DEVEZA
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (Orientador)
_________________________________________
Profa. Dra. Camila Oliveira do Valle (PPGCP-UFF)
_________________________________________
Profa. Dra. Nazira Correia Camely (PPGEO - UFF)
_________________________________________
Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese (PPGHC - UFRJ)
_________________________________________
Prof. Dr. Ivo José e Aquino Coser (PPGHC - UFRJ)
iv
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que
seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução
racional na práxis humana e no compreender desta práxis.
(MARX - Teses sobre Feuerbach)
v
Dedico este trabalho a Adriana Cruz, minha companheira e
exemplo diário de solidariedade, rebeldia e amor...
vi
Agradecimentos
vii
solidariedade. Foram eles: Nuria, Marta Sofia, Juan David, Estefania, Erick e Erik.
Tive também a oportunidade de aprender muito sobre muralismo mexicano com um
estudioso e praticante desse movimento artístico, Daniel Zaynos, que me guiou e apresentou a
várias obras murais pela Cidade do México. Agradeço a equipe do CEMOS, que me ajudou na
pesquisa dos arquivos do movimento operário mexicano.
Agradeço especialmente ao amigo de longa data, Hugo Vellozo, que me ajudou a
projetar e tocar o arquivo digital Memória Vermelha.
Tenho que agradecer a diversos trabalhadores que se dedicam a organização das
bibliotecas, arquivos, bem como aos que fornecem outros suportes para o trabalho acadêmico,
seja limpando as salas, trabalhando em cantinas e cafés, além de todo tipo de trabalhos de
manutenção que a infraestrutura universitária demanda.
Agradeço aos meus companheiros de trabalho na Petrobras, que de diversas formas me
ajudaram, apoiando e se solidarizando nos momentos em que eu precisava terminar alguma
diligência acadêmica, ou parte desta tese. O convívio e a luta com os companheiros petroleiros
foi fundamental para que eu pensasse sobre diversos aspectos do movimento operário.
Agradeço especialmente ao Mauro Bonfim e ao Anderson Torres que sabem o quanto me
ajudaram.
Não posso esquecer da equipe do CEDEM, que me apresentou todo o material
disponível no arquivo, particularmente o Luis Alberto Zimbarg e o professor Antonio Celso
Ferreira.
Agradeço ao André, pelo debate e crítica, que me ajudaram a encontrar respostas para
várias hipóteses e a avançar por esse sendero complexo que é a história do movimento
comunista.
É importante, e formalmente obrigatório, registrar minha gratidão à CAPES, instituição
que me forneceu recursos para uma bolsa sanduíche no México.
E por fim, agradeço a juventude que tem resistido nas ruas à truculência terrorista do
Estado brasileiro desde junho de 2013. A experiência deste momento de rebeldia na juventude
me inspirou importantes reflexões e certamente o resultado deste trabalho teria sido muito
diferente sem essa importante influência.
viii
O MOVIMENTO COMUNISTA E AS PARTICULARIDADES DA
AMÉRICA LATINA: Um Estudo Comparado do México, Brasil e Peru (1919-1930)
ix
EL MOVIMIENTO COMUNISTA Y LAS PARTICULARIDADES DE LA
AMÉRICA LATINA: Un Estudio Comparativo de México, Brasil y Peru (1919-1930)
xi
Indice de ilustrações
xiii
Figura 77 - Retrato de Stalin em Amauta .......................................................................... 317
Figura 78 - A revista Amauta publicou notícias do Plano Quinquenal soviético. ............. 327
Figura 79 - Capa do Jornal El Machete expondo a ruptura entre comunistas e Sandino. . 349
xiv
Lista de abreviaturas e siglas
xvi
Sumário
INDICE DE ILUSTRAÇÕES .................................................................................................................... XII
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 3
xviii
Introdução
Em 1980, José Aricó publicava pela primeira vez o livro Marx y América
Latina1, a partir do exílio no México. Entre as questões que ele tratou nesse texto,
estava a tentativa de responder a uma antiga preocupação dos marxistas latino-
americanos e que mobilizava esforços do grupo que debatia marxismo em torno da
Revista Pasado y Presente2,3: onde buscar as razões do desencontro entre socialismo e
América Latina?
1
ARICÓ, José de. Marx e América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
2
A partir da revista Pasado y Presente desenvolveu-se uma série de publicações agrupadas na coleção
Cuadernos del Pasado y Presente que até os dias atuais são uma das mais importante compilação de
documentos, coleções de textos e analises acerca de Marx, do marxismo e da história do socialismo na
América Latina. Por trás dessa publicação e como principal animador desse grupo de intelectuais e
ativistas esteve José de Aricó (1931-1991). Outros nomes importantes de grupo foram: Juan Carlos
Portantiero, Oscar del Barco, Hector Schmucler, entre outros. Os Cuadernos del Pasado y Presente
tiveram 98 números e podem ser divididos em três períodos, 1968-1970 (1 ao 16), em Córdoba; o
segundo, 1970-1975 (17 ao 65) em Buenos Aires, o último, 1976-1983 (63 ao 98) no México.
3
Cf. CRESPO, Horácio. En Torno a Cuadernos de Pasado y Presente, 1968-1983, s/d. Disponível em:
<http://shial.colmex.mx/textos/crespo.pdf>. Acesso em: 17 set. 2011.
4
Referimo-nos ao PCB de Prestes, já que o PCdoB, que desde 1962 havia rompido com o PCB, estava
transferindo militantes para o campo e dirigindo a luta dos comunistas para a estratégia da Guerra Popular
Prolongada, estratégia que havia sido vitoriosa na China, na Coreia e depois seria também na luta
anticolonial em vários países, particularmente os da antiga Indochina.
5
O livro de Konder que tratou a recepção do marxismo no Brasil foi: KONDER, Leandro. A Derrota da
Dialética: A recepção das Ideias de Marx no Brasil até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus,
1988.
3
ao debate do que seria particular no Brasil e qual a relação entre especificidade regional
e marxismo.
José de Aricó estudou os textos de Marx sobre Bolívar; as edições de Pasado y
Presente, que ele dirigia, publicaram compilações sobre escritos de Marx que tratavam
da América Latina, e também escreveu uma reflexão inovadora acerca da recepção do
marxismo na América Latina, “A Hipotesis del Justo”6. Em meio às investigações sobre
a trajetória das ideias marxistas em nosso continente, Aricó chegou aonde muitos que
seguiram esse raciocínio chegaram: na obra do peruano José Carlos Mariátegui.
Mariátegui, ao longo da década de 1920, havia produzido uma interessante e
inovadora reflexão acerca da realidade peruana a partir do marxismo. Depois de sua
morte, em 1930, a obra de Mariátegui havia sido criticada pela direção do Partido
Comunista do Peru – partido que havia ajudado a fundar – e foi esquecido pelo
movimento comunista.
Somente a partir da década de 1950 a obra de Mariátegui seria retomada e, a
partir da década de 1970, estudada sistematicamente pelas correntes da esquerda latino-
americana, que buscavam uma alternativa para os modelos soviéticos de Partido
Comunista7.
Nesse contexto, Aricó descobriu Mariátegui e publicou um ensaio intitulado
“Mariátegui y los Orígenes del Marxismo Latino-americano”8, em que ressaltava o que
depois Michel Lowy9 denominaria de “heterodoxia” do pensamento de Mariátegui.
O que chamava a atenção desses autores para o pensamento de Mariátegui eram
algumas inovações conceituais que o afastavam da “ortodoxia” da Internacional
Comunista, e uma análise original da formação histórica peruana, grande parte presente
nos “Siete Ensayos”10.
6
ARICÓ, José de. La Hipótesis del Justo: Escritos sobre el Socialismo en América Latina. Buenos Aires:
Editorial Sudamericana, 1999.
7
É importante sublinhar que, quando falamos de modelo soviético, não estamos nos referindo ao modelo
leninista de PC, mas da estrutura que a partir de meados dos anos 1950 dominou a maioria dos Estados do
que ficou conhecido como “bloco socialista”. É importante verificar que a China produziu uma crítica
importante ao “modelo soviético”, bem como o chamado “guevarismo” ou “castrismo” nascido da
revolução cubana, e possuía uma importante crítica à burocracia do PCUS pós-1956. Trataremos essa
questão ao longo do texto.
8
ARICÓ, José de. “Mariátegui y los Orígenes del Marxismo Latino-americano”. In: _______. La
Hipótesis de Justo: Escritos sobre el Socialismo en América Latina, Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 1999.
9
LÖWY, Michael (Org.). O Marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais.
Tradução de C. Schilling e Luís C. Borges. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999.
10
Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana é a principal obra de José Carlos Mariátegui e
até hoje o livro mais vendido de um autor peruano no mundo. MARIÁTEGUI, J. C. Sete ensaios de
4
O que Mariátegui trazia de diferente e original era o papel das comunidades
indígenas na Revolução Socialista no Peru, a inversão da lógica “progressivista”11 da
conquista espanhola no Peru e o papel do mito para a revolução peruana, além de seu
estilo pouco programático e mais ensaísta.
Para a esquerda, um trecho de um dos textos de Mariátegui sintetizava a
percepção que se tinha da obra de José Carlos Mariátegui: “O socialismo no Peru não
será nem cópia, nem decalque, mas criação heroica”. (MARIÁTEGUI, 1994). E, sobre o
que seria essa criação, socialistas12, comunistas e até apristas têm debatido em milhares
de páginas na América Latina e no mundo.
O que Mariátegui passava a simbolizar nos debates da esquerda latino-americana
era a crítica ao espelhismo (reprodução acrítica e mecânica) do marxismo produzido em
outras experiências sociais, particularmente europeias e soviéticas, sem uma análise do
que teríamos de particular. Essa reprodução automática de fórmulas explicaria grande
parte das derrotas da esquerda latino-americana em construir uma alternativa socialista
no continente, ou, ao menos, explicava a dificuldade em fundir o socialismo às tradições
radicais do movimento popular.
interpretação da realidade peruana. Tradução de S.O. de Freitas e Caetano, prefácio de F. Fernandes. São
Paulo: Alfa-Omega, 1975.
11
Utilizamos o termo progressivista, para substituir evolucionista ou positivista, conforme trataremos nos
capítulos que seguem. Ambos os termos são insuficientes para tratarmos a corrente do marxismo que
defendeu a sucessão de modos de produção, do escravismo ao socialismo, de forma mecânica e simplista.
Evolucionismo e positivismo são correntes do pensamento liberal, e seguem outros pressupostos estranhos
ao marxismo.
12
O termo socialista tem contexto e história, e não pode ser definido com poucas palavras. Os marxistas
anteriores à Revolução Russa, em oposição às correntes anarquistas, libertárias e sindicalistas, utilizaram
dois termos para si: social-democratas ou socialistas. Ou seja, as correntes marxistas filiadas na Segunda
Internacional (1889-1914), se reconheciam pelo nome de socialistas, e em vários países denominavam
seus partidos como social-democratas. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução Russa
impõe uma cisão entre os marxistas, de forma que os “social-democratas de esquerda”, os que se
opuseram à guerra imperialista, e estiveram presentes na Conferencia de Zimmerwald (setembro de
1915), fundaram a Internacional Comunista em 1919, e resolveram denominar esses marxistas
revolucionários, como comunistas. O discurso inaugural de Lenin no Primeiro Congresso da IC deixa
claro o problema do nome e a opção por comunista. O problema é que os comunistas jamais abriram mão
do nome socialista, geralmente atacando a corrente reformista do marxismo como social-democrata, por
vezes também como socialistas, ou socialistas reformistas. Na obra de José Carlos Mariátegui, muito
próxima em tempo a essa cisão do marxismo, é utilizado o termo socialismo para definir muitas coisas
diferentes, e por isso, normalmente a palavra socialista aparece com adjetivos, como “socialismo
revolucionário”, “socialismo reformista”, “socialistas de Amsterdam” para se referir aos comunistas ou
social-democratas, afora quando socialista designa algo da economia soviética, ou mesmo uma postura
ideológica antiliberal. Enfim, socialismo não é uma palavra precisa nas fontes, sempre necessita de
contexto. Nós, em termos de definição de correntes políticas, utilizaremos apenas para tratar o marxismo
reformista, ou o que atualmente denominamos como social-democracia. Naturalmente socialismo está,
em economia e como descrição de uma sociedade, referindo-se a um sistema político, que na versão de
Lenin, presente no Estado e a Revolução (1918), trata-se da “ditadura do proletariado”, a forma de Estado
intermediário entre o capitalismo e o comunismo, este último a sociedade sem classes.
5
Esses debates acerca da particularidade da revolução na América Latina estavam
diretamente relacionados aos ecos da Revolução Cubana na esquerda. O próprio Aricó
havia militado em uma organização guevarista na Argentina, e tudo indicava que a
dificuldade em se tratar a particularidade latino-americana era um importante fator para
a explicação das dificuldades da esquerda em obter êxitos no continente.
O debate foi interrompido pelos efeitos da queda do muro em Berlin e a
fragmentação da URSS, que trouxeram novas preocupações para os estudos
acadêmicos, distanciando o marxismo e o movimento comunista das preocupações
historiográficas da década de 1990.
Foi apenas depois das consequências negativas das políticas denominadas como
“neoliberais”, a partir do início do século XXI, e a vitória eleitoral de governos que
reivindicavam, ao menos em discurso, um projeto de esquerda, como Hugo Chávez,
Evo Morales, o casal Kirchner e o governo do PT no Brasil, que Mariátegui voltou a
aparecer como o centro das preocupações de alguns estudiosos do movimento popular
latino-americano, especialmente quando se tratava da questão indígena (tema
importante para os países andinos) e das particularidades do continente latino-americano
no marxismo.
Como acontece com muitos autores importantes, Mariátegui passou a
representar muito mais que a sua própria obra. Desde sua redescoberta na década de
1950, ele foi referência para muitas lutas políticas entre os partidos peruanos e seu
pensamento tornou-se tão multifacetado que é difícil apreender sua figura histórica em
meio ao tanto que se citou, se escreveu e se reivindicou em seu nome. A obra de
Mariátegui descolou-se de sua própria trajetória política, e por muitas vezes de seus
próprios textos13.
Alberto Flores Galindo14 chamou atenção para essa perda da figura histórica de
Mariátegui e concentrou-se na tentativa de reconstruir o ambiente em que viveu
Mariátegui, suas influências e experiências políticas. Galindo buscou nos mais diversos
dados daquela realidade, como na economia peruana, na demografia, nas influências
ideológicas e até nas polêmicas entre o aprismo e a Internacional Comunista, as fontes
do pensamento de Mariátegui.
13
Ao longo do texto, demonstraremos que o que se denomina como “Obra de Mariátegui”, pode,
inclusive, ter contradições com o próprio texto escrito por Mariátegui, tamanha a importância que as
interpretações alcançaram para os estudos sobre o amauta peruano. Esse fenômeno pode ser facilmente
observado com a “Obra de Marx”, de Gramsci, entre outros.
14
FLORES GALINDO, Alberto. Obras Completas. Lima: SUR, 1994.
6
Nesse esforço por compreender o pensamento de Mariátegui, as conclusões
costumaram isolar Mariátegui de seu meio e militância política, sempre solitário e
excepcional no seu tempo. Tanto Flores Galindo15 quanto José Aricó e mesmo Michel
Löwy tenderam a isolar Mariátegui dos coletivos comunistas e a explicá-lo como
exceção ao ambiente “superficial” do movimento comunista na América Latina.
Os textos de Aricó e de Flores Galindo16 contribuíram para os estudos do
pensamento de Mariátegui e acrescentaram muitos dados na explicação das dificuldades
que as ideias socialistas encontraram para fundirem-se ao movimento popular latino-
americano. Mas ainda permanecia uma pergunta materialista: por que as condições que
propiciaram o desenvolvimento do pensamento de Mariátegui no Peru não
possibilitaram o mesmo em outros países, como Brasil, México e Argentina? Seria
mesmo Mariátegui o único exemplar do comunismo latino-americano que conseguiria
interpretar à luz do marxismo a realidade peruana ou latino-americana?
A direção de pesquisa desses autores tratou Mariátegui como um autor
excepcional, distinto de tudo o que havia no movimento comunista latino-americano da
época, e foi em busca das influências e peculiaridades que explicavam essa
excepcionalidade. Aricó escreveu:
Não é casual que em uma etapa que se coloca como tarefa inescusável
a reflexão crítica sobre toda uma tradição histórica, consolidada pela
força que se outorgou em décadas de ação teórica e política em
formações estatais emergentes, dessa luta reapareça em um plano
destacado a figura excepcional de Mariátegui. Ocorre que, igual a
outros heterodoxos pensadores marxistas, ele pertence à estirpe das
rara avis, que em uma etapa muito difícil e de cristalização dogmática
da história do movimento operário e socialista mundial se esforçam
por estabelecer uma relação inédita e original com a realidade.
(ARICÓ, 1978, p. XIII, grifos nossos).
O que houve de peculiar na vida de Mariátegui foi a sua passagem pela Europa,
particularmente pela Itália, onde pôde conhecer o pensamento de Sorel, Croce, Gobetti
e, principalmente, Lenin. Ou seja, pelo filtro de um tipo de pensamento revolucionário
socialista que explicava, do mesmo modo, a excepcionalidade de Gramsci. Em uma
15
Idem.
16
O texto de Alberto Flores Galindo que trata da relação entre Mariátegui e a Internacional Comunista
está no capítulo intitulado “La agonia de Mariátegui”. In: FLORES GALINDO, Alberto. Buscando un
inca: identidad y utopía en los Andes. México: Grijalbo, 1993.
7
recente tese de doutorado17, acerca da obra de José Carlos Mariátegui, a professora
Leila Escorsin Netto partiu de uma hipótese muito próxima ao que a historiografia havia
concluído acerca da excepcionalidade de Mariátegui. Para Escorsin, Mariátegui era não
apenas a rara avis, mas também quem havia trazido para o Peru a “modernidade”
emergente que se desenvolvia na Europa, o movimento socialista. Mariátegui era
excepcional, um sujeito de qualidades raras que havia se alimentado dos debates e
experiências políticas do que existia de mais avançado na Europa para interpretar a
realidade peruana, e também, para muitos, latino-americana.
Em um trabalho anterior18, acerca da questão indígena, identidade nacional
peruana e aprismo19 no Peru, deparamo-nos com uma série de personagens, fontes
periódicas e textos que nos permitiram perceber que, embora os textos de Mariátegui
tivessem qualidades pouco comuns, se comparadas às de outros militantes comunistas
da época, suas reflexões não se desenvolveram solitárias, nem se alimentaram apenas do
que ele aprendeu na viagem pela Itália, mas foi fruto de um período germinal e
importante do movimento comunista na América Latina. Trata-se de um período inicial
do marxismo na América Latina, em que se buscou compreender pela primeira vez a
realidade regional em suas particularidades, à luz de um projeto político internacional
de emancipação dos trabalhadores, audacioso em suas metas e que iria influenciar
diversas gerações posteriores de revolucionários.
Partimos da negação da excepcionalidade de Mariátegui20 e fomos à busca de
outros militantes que durante a década de 1920 tentaram aplicar o marxismo-
leninismo21 à realidade latino-americana. O país que reunia as condições mais
17
ESCORSIN MACHADO, Leila. J. C. Mariátegui: Marxismo, Cultura e Revolução. Rio de Janeiro:
UFRJ (Tese de Doutorado), 2004.
18
DEVEZA, Felipe. Mariátegui, A Comunidade Indígena e a Indo-américa – Mariátegui, APRA e Haya,
Rio de Janeiro: UFRJ (Dissertação de Mestrado), 2006.
19
Aprismo é a corrente nacionalista que se desenvolveu em torno de Victor Raúl Haya de La Torre,
fundada no México em 1924, mas que se desenvolveu a partir da década de 1930 no Peru como partido, o
Partido Aprista Peruano (PAP). O termo aprismo faz referência ao nome da organização Aliança Popular
Revolucionária Americana (APRA).
20
Não existiu entre os estudiosos do marxismo de José Carlos Mariátegui uma tese acerca da
excepcionalidade de Mariátegui. Existe um esforço por estudar a obra deste peruano e de valorizar seu
pensamento, contrapondo os Siete Ensayos com o que se costuma denominar genericamente como “teses
stalinistas”. Nossa crítica à ideia de excepcionalidade de Mariátegui não está dirigida a nenhum autor
específico, mas serve para apontar a falta de estudos da obra de outros teóricos comunistas do período e
seus esforços “criadores”.
21
Os comunistas, após a morte de Lenin, denominaram a sua doutrina e ideologia como marxismo-
leninismo. Como veremos no capítulo 3 deste texto, após 1924 a Internacional sistematizou o que seria
marxismo-leninismo. Utilizaremos marxismo ou leninismo separadamente quando tratarmos de questões
específicas que remetem diretamente a um ou outro desses autores, mas, principalmente, quando tratamos
8
“excepcionais” da América Latina, onde poderíamos encontrar outro “Mariátegui”, seria
o México pós-revolucionário, no qual diversas características, potencializadas pela
Revolução Mexicana e pelo nacionalismo oficial, poderiam ter impulsionado um tipo de
marxismo original, um movimento comunista preocupado com as particularidades do
México, e por consequência, da América Latina. Comparando o percurso de Mariátegui
e dos militantes em seu entorno com a experiência dos comunistas mexicanos,
poderíamos encontrar explicações, verificar se a obra de Mariátegui era excepcional em
sua época e até que ponto a compreensão de uma particularidade latino-americana, ou
mesmo nacional, nas teorias marxistas poderiam contribuir para o êxito ou o fracasso
das organizações comunistas no continente.
***
do debate mais teórico. A ideologia e doutrina do movimento comunista, ao menos até o fim da
Internacional Comunista em 1943, chama-se marxismo-leninismo.
22
Em uma interpretação marxista mais rígida, a particularidade nacional estaria associada à burguesia.
Analisaremos mais detalhadamente ao longo deste trabalho essa questão, mas importa desde já dizer que,
para o contexto latino-americano e para a Internacional Comunista, a particularidade nacional pode estar
relacionada a um país específico, como pode tratar de uma região ou sub-regiões da América Latina. Não
faremos uma distinção mais que pontual, para cada momento ao longo do texto, entre particularidade
nacional e latino-americana.
9
da economia agrícola sobre a industrial (a questão camponesa, feudal ou semifeudal);
para a maioria dos países latino-americanos, particularmente os andinos e os
mesoamericanos23, essas características específicas se somam ao complicador que
Melgar Bao denomina de questão etnoclassista, a questão de raça ou questão indígena24,
que se mistura com uma série de questões, como economia comunal, identidade étnica e
nacional, cooperativismo indígena, Ejido, Ayllu entre outras.
Grande parte da bibliografia acerca da história do movimento comunista na
América Latina tendeu a subestimar o papel que questões endêmicas da região tiveram
nas opções dos dirigentes comunistas e na própria dinâmica de inserção desses
revolucionários nos movimentos populares.
São essas características, subestimadas pela historiografia tradicional, que
pretendemos utilizar amplamente, sendo para nós uma importante fonte para a
especificidade do movimento comunista latino-americano e para o que temos
denominado como particularidades latino-americanas no movimento comunista.
Barry Carr chama a atenção para essas características que distinguem as
particularidades do movimento comunista em cada país.
23
Segundo Wagner Pinheiro Pereira, o termo Mesoamérica foi utilizado pela primeira vez pelo filósofo e
antropólogo alemão Paul Kirchhoff (1900-1972) em seu texto “Mesoamérica: seus limites geográficos,
composição étnica e caracteres culturais”, de 1943, no qual desenvolveu esse conceito com base nas
reflexões de outros estudiosos que, desde o século XIX, se dedicavam aos estudos das antigas civilizações
do México e da América Central. Trata-se de uma macrorregião cultural de grande diversidade étnica e
linguística, onde se desenvolveram as civilizações pré-colombianas consideradas as mais avançadas e
complexas, tais como a olmeca, teotihuacana, maia e asteca. Em termos territoriais, a Mesoamérica é
composta pelas áreas de agricultura estável situadas no México – ao sul dos desertos setentrionais –,
Guatemala, Belize, oeste de Honduras, sudoeste da Nicarágua, e a península de Nicoya na Costa Rica. Cf.
PEREIRA, Wagner Pinheiro. História da América Pré-Colombiana. Rio de Janeiro: Mimeo, 2010.
24
Para Melgar Bao, “é necessário avançar na aproximação e recuperação do código etnoclassista do
político e do sindical, em uma América Latina que apresenta um arraigado mosaico etnoclassista do qual
emerge um proletariado misto. Este se apresenta como principal componente de uma classe subalterna de
perfil impreciso, que a historiografia operária reivindica implicitamente como o principal enlace de seu
objeto de estudo” (MELGAR BAO, Ricardo. El Movimento Obrero Latinoamericano – Historia de una
Clase Subalterna, México: Alianza, 1988, p. 18). A questão etnoclassista inclui também a questão negra
em países como o Brasil e Cuba, mas, por ser predominantemente indígena, no Peru e no México, nos
concentraremos nesta parte do “mosaico”.
10
Executivo da Comintern. […] Uma última advertência se refere ao
perigo de aceitar sem reservas a homogeneidade internacional do
movimento comunista. Todos os Partidos, sem importar o quanto
estalinizados e servis fossem, invariavelmente assimilam muitas das
características peculiares da cultura nacional e das tradições radicais
de seu país. (CARR, 1996, p. 23).
Essas características peculiares de que nos fala Carr, base para o que os
comunistas entenderam como suas particularidades nacionais e regionais, foram pouco
exploradas pela historiografia de maneira integrada e, ainda menos, de forma
comparativa. Quando o movimento comunista latino-americano foi tema de
investigações históricas, com raras exceções, foi estudado apenas em manifestações
nacionais ou pelas experiências das seções nacionais em relação ao Comitê Executivo e
os Congressos da Internacional Comunista25.
***
A primeira hipótese que guiou essa investigação foi a de que a década de 1920
reuniu características que propiciaram uma reflexão frutífera acerca da particularidade
latino-americana entre os primeiros marxistas do continente. Entre essas características,
estiveram, principalmente, a influência de um emergente nacionalismo regional, a
crítica radical gonzález pradista e magonista (nos casos peruanos e mexicanos) e a
emergência de movimentos populares que inspirariam a reflexão de particularidades no
movimento popular latino-americano, tais como: a insurreição indígena no Peru, o
agrarismo no México, o muralismo, o nacionalismo pós-revolucionário no México e os
movimentos anti-imperialistas que se desenvolveram ao redor do Partido Comunista do
25
Utilizaremos o termo Internacional Comunista para designar a organização comunista fundada a partir
da Revolução Bolchevique de 1917. Outras opções seriam Comintern, Komintern e 3ª Internacional.
Optamos por Internacional Comunista por parecer o nome que melhor define a organização, que se
pretendeu Internacional, seguindo as Internacionais, desde a I Internacional de Marx (fundada em 1864),
somado ao termo Comunista, que acompanha o nome dos partidos, as seções nacionais: os Partido
Comunista. Internacional Comunista em português foi a forma com que os brasileiros que militaram sob
sua influência denominaram a organização. Pierre Broué, na apresentação do seu livro História da
Internacional Comunista, abre um debate sobre o nome da organização, optando por a Comintern
(BROUÉ, 2007, p. 5). Embora não seja uma questão fundamental, esse termo ajuda a reforçar a ideia de
que a Internacional Comunista era uma espécie de agência de espionagem russa, uma típica interpretação
da propaganda anticomunista da Guerra Fria. Não é por outro motivo que William Waack utiliza o termo
“agente” para se referir aos militantes dos Partidos Comunistas e membros da Internacional Comunista.
(WAACK, Willliam. Camaradas – Nos arquivos de Moscou: a história secreta da revolução brasileira de
1935, São Paulo: Companhia das Letras, 1993).
11
México, entre eles o sandinismo, o aprismo e a luta contra a intervenção norte-
americana em Cuba. No Brasil, o movimento tenentista foi revelador para a necessidade
de uma análise da situação política nacional que superasse as análises baseadas na
dicotomia simples da contradição proletariado x burguesia.
Durante a década de 1920, houve esforços para ampliar a frente composta pelas
classes oprimidas, aliadas do proletariado (ou do Partido Comunista) na estratégia da
Internacional Comunista. Isso significou, para muitos Partidos Comunistas, uma busca
pelo nacional, pelo específico e pelo característico dos povos. É possível identificar uma
tentativa de adaptar e “latino-americanizar” a doutrina, ao mesmo tempo que se tenta
conceitualizar o papel político-econômico das classes não proletárias aliadas
(camponeses pobres e pequena burguesia) para a Revolução. Esse período rico para o
marxismo latino-americano, não maior que uma década, produziu novas visões acerca
da questão indígena, agrária, colonial e do imperialismo, que podem ser bem
representadas pela obra de José Carlos Mariátegui e também pelo muralismo mexicano,
entre os anos de 1919, quando chega o leninismo na América Latina, e 1930, quando
morre Mariátegui e o PCM entra na ilegalidade26. O corte temporal desta pesquisa está
delimitado pelo início da atividade comunista na América Latina, em 1919, e o fim do
período de debates em torno da construção dos Partidos Comunistas na América Latina,
marcado pela primeira Conferência Latino-Americana de Partidos Comunistas, em
Buenos Aires no ano de 1929, onde se tentou sistematizar a estratégia e tática dos PCs
latino-americanos.
Como desdobramento imediato da hipótese acima, chegamos à segunda
hipótese, que se insere no debate acerca do lugar da teoria na atividade política,
tentando responder à seguinte questão: qual a importância que as interpretações acerca
da particularidade latino-americana tiveram na atividade política dos primeiros
comunistas latino-americanos? Como essas formulações podem ter afetado o êxito ou o
fracasso da atividade política comunista na América Latina? E até que ponto esse
elemento subjetivo da prática política condiciona, potencializa ou limita a ação social,
assim como a capacidade de mobilização das organizações políticas e a manutenção dos
vínculos com suas bases sociais? Até que ponto determinadas interpretações da
realidade condicionam a inserção dos militantes partidários e até onde as doutrinas
26
O PCM entra na ilegalidade exatamente em 1929. Diferente do caso brasileiro, a ilegalidade do PCM
foi exceção à regra, durou pouco mais do que meia década e ao contrário do PCB, teve, antes da década
de 1980, um curtíssimo período de legalidade de menos de 3 anos, logo após a 2 ª Guerra Mundial.
12
podem deslocar-se da realidade e conseguir flutuar como dogmas abstratos em
programas partidários sem sofrerem questionamentos por seus militantes?
Compartilharemos do que denominamos como a Hipótese de Aricó, de que
existe uma relação dialética entre formulação teórica com a prática política dos
movimentos populares, mas ampliamos nosso objeto de estudo para o movimento
comunista que surgiu em torno de Mariátegui, em comparação ao movimento comunista
mexicano e brasileiro durante a década de 1920, não apenas na trajetória específica de
José Carlos Mariátegui. Assim, formulamos a segunda hipótese que guia este trabalho.
Na medida em que os comunistas conseguiam perceber o que era específico da
realidade latino-americana, inclusive mobilizando artifícios simbólicos que
possibilitassem uma identidade nacional, como a questão indígena, ou a inserção em
movimentos emergentes do contexto latino-americano, como o agrarismo e a luta anti-
imperialista, ampliavam a influência e a participação no cenário político nacional.
Para testar nossas hipóteses, confrontamos o ambiente em que viveu Mariátegui
e sua obra com o movimento comunista que se desenvolveu no México, o mais rico em
experiência política, e que mais interessou à Internacional Comunista ao longo da
década de 1920, a qual atuou como organização legal, e entre os PCs latino-americanos,
alcançando maior penetração e influência nacional, embora não tenha produzido uma
sistematização teórica como a elaborada por José Carlos Mariátegui nos Siete Ensayos.
Nossa metodologia de investigação passou primeiramente pela análise e a busca
de artigos, discursos e definições programáticas que tratassem dos temas que estivessem
relacionados a uma particularidade latino-americana, como a Revolução Mexicana; a
questão indígena; temas relacionados ao anti-imperialismo na América Latina e à
questão agrária quando tratada em relação às formas específicas de propriedade da terra,
como os Ayllus, Calpullis ou Ejidos27. Através do método que se denomina como
análise dos conteúdos, buscamos alguns conceitos e temas pertinentes e chaves para
uma caracterização da “particularidade latino-americana”, ou mesmo sua ausência. A
partir dessa primeira análise, procuramos datar e contextualizar os debates com os
acontecimentos políticos nacionais, com o Movimento Comunista em uma dimensão
mais global e com os fatos importantes da situação internacional, que tiveram influência
para os militantes do PCM, do PCB e em torno do núcleo fundador do PCP (até 1930,
27
Ayllu, Calpullis e Ejidos são os nomes dados às diversas formas de propriedade comunal da terra no
Peru e no México. Trataremos em detalhes essa questão ao longo das próximas páginas.
13
Partido Socialista do Peru).
***
31
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
15
(PCM), do Partido Comunistado Brasil (PCB) e do Partido Comunista do Peru (PCP) e
melhor formular as hipóteses.
Ao encontro de nossas pretensões em história comparada, destacamos Cardoso,
citando Henri Sée e Henri Pirene, para o qual “O método comparativo seria um
instrumento capaz de transformar a história em uma ciência, ao permitir a passagem da
descrição para a explicação dos processos históricos”. (CARDOSO, 1983).
***
Até algum tempo atrás, estudar o movimento comunista na América Latina era
atividade custosa, difícil e até subversiva. Isso deveu-se a alguns fatores, entre eles a
repressão ao movimento comunista em quase todos os países do nosso continente, a
dispersão das fontes em pequenos arquivos públicos ou mesmo particulares e a falta de
estímulo e recursos disponíveis nas universidades latino-americanas. Hoje, essa
realidade mudou; a perseguição aos comunistas não ocorre como na década de 197032,
muitos pesquisadores dedicados ao movimento operário, ao longo da década de 1980 e
1990, conquistaram importantes espaços nas universidades públicas, e os arquivos se
desenvolveram com a assimilação de coleções particulares que chegaram com as
centenas de exilados que voltavam para os seus países. Hoje, a possibilidade de
digitalização de fontes facilitou o acesso aos documentos e até às traduções33.
Os estudos separados das diversas seções nacionais do movimento comunista na
América Latina, sem uma relação integrada, tenderam a elaborar uma cronologia do
movimento, em termos regionais, muito dependente dos acontecimentos na
Internacional Comunista e da URSS.
Foi comum entre os historiadores que estudaram o movimento comunista na
América Latina o estabelecimento de uma periodização que se referenciava no
movimento europeu ou mais especificamente na URSS. Nesse sentido, da mesma
cronologia que se dividiam as fases do processo histórico que tinha como centro a
União Soviética, dividiam o desenvolvimento das seções nacionais da Internacional
32
É importante destacar que, nos países em que há atividade dos partidos comunistas, há também diversas
formas de repressão política. Atualmente, há comunistas presos em diversas partes da América Latina.
33
Um importante esforço para a disponibilização de fontes sobre a atividade da Internacional Comunista
na América Latina foi iniciado pelo projeto Memória Vermelha/Roja, relacionado ao Laboratório do
Tempo Presente, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que visa a organização digital e a
disponibilização na Internet de fontes e dados sobre a atividade da Internacional Comunista na América
Latina. O Portal Memória Vermelha/Roja está disponível em www.memoriavermelha.com.
16
Comunista na América Latina. Embora fossem organizações com fortes vínculos e
referenciadas pela experiência bolchevique, o exame detido das fontes tem demonstrado
que existiu uma significativa descontinuidade entre o centro e a periferia, e, por diversos
momentos, as demandas políticas nacionais, ou até regionais, forçaram reinterpretações
e criaram situações em que as orientações da Internacional Comunista foram ignoradas
ou mal assimiladas na prática política militante, particularmente na década de 1920. É
importante também ressaltar que muitos autores superestimaram a importância que a
Internacional Comunista deu às realidades dos países periféricos e à ingerência que os
comunistas estrangeiros tiveram nos Partidos Comunistas latino-americanos34. De
maneira geral, repassavam orientações bastante gerais sobre as realidades latino-
americanas, na maioria das vezes alimentados pelos informes dos comunistas latino-
americanos. E os próprios militantes tinham muita dificuldade em digerir, quando
recebiam, as resoluções dos Congressos da Internacional.
Procuramos não nos prender a periodização que fez referência à história
soviética e europeia e que viu o movimento operário latino-americano como extensão
sem vida própria. Organizamos os capítulos desta tese em divisões, tendo como bússola
a cronologia e levando em consideração a política nacional, os desencontros e
descontinuidades entre centro e periferia do movimento comunista internacional. Além
do exposto, tivemos como eixo o desenvolvimento das formulações acerca da
particularidade latino-america, das primeiras tentativas de se formular as táticas
nacionais, até a organização de sínteses mais elaboradas, como as apresentadas na
Conferência de Partidos Comunistas de Buenos Aires (ICCLA) em 1929.
No primeiro capítulo, serão apresentados a realidade política e econômica da
América Latina e o desenvolvimento dos movimentos populares, que constarão no
espólio herdado pelos primeiros comunistas latino-americanos.
Durante o século XIX, o movimento operário foi quase inexistente e os centros
industriais que surgem no final do século carregam características distintas da Europa
Ocidental, como a origem estrangeira da classe operária e o vínculo com o campo. Para
alguns autores, essas condições foram responsáveis por características particulares na
formação da classe operária latino-americana e propiciaram o crescimento das correntes
34
Diversos episódios da história do movimento comunista latino-americano demonstram que a ingerência
do Comitê Executivo da Internacional Comunista nos países da América Latina foi muitas vezes mais um
pretexto para a repressão que uma realidade. O mito da infiltração de estrangeiros a serviço dos russos foi
repetido e exagerado a tal ponto que a própria historiografia acabou acreditando. O levante de 1935 é um
bom exemplo.
17
libertárias em detrimento à social-democracia e às correntes ligadas à 2ª Internacional e
o marxismo.
Tratamos de alguns movimentos revolucionários anteriores à Primeira Guerra
Mundial, da radicalização dos liberais e da aproximação de alguns desses com o
anarquismo, principalmente entre os dois mais importantes teóricos radicais latino-
americanos desse período, Flores Magón e González Prada, que conseguiram incluir no
projeto anarquista temas latino-americanos, particularmente a questão camponesa e
indígena no Peru e no México.
O movimento operário anterior à Revolução Russa vai se alimentar da
radicalização do liberalismo do século XIX, que se encontra com um tipo de
anarquismo bastante eclético e tem contatos com as rebeliões camponesas e indígenas.
Muitas dessas rebeliões estão identificadas com a defesa do modo de vida tradicional
nas comunidades rurais latino-americanas ameaçadas pela expansão do imperialismo na
virada do século. Assim, diferente da lógica europeia e da ordem que comumente se
utiliza para classificar a “fase” anterior ao socialismo moderno do século XX: ludismo,
jacobinismo, socialismo utópico, etc.35.
Relacionados à herança de Flores Magón e González Prada, alguns
acontecimentos na América Latina terão profunda influência no movimento popular que
conheceu a Revolução Bolchevique: a Revolução Mexicana e as rebeliões indígenas no
sul do Peru. No Brasil, o movimento operário radical não estabeleceu relações com
outros setores antioligárquico antes da década de 1920, mantendo-se restrito aos centros
urbanos e à vida nas fábricas.
O segundo capítulo pretende apresentar as primeiras tentativas de interpretação
das realidades latino-americanas no contexto de construção dos primeiros núcleos
comunistas do Peru, do México e do Brasil. Concentramo-nos nas expressões mais
importantes das primeiras interpretações marxistas latino-americanas produzidas na
década de 1920: o Agrarismo Rojo, o muralismo mexicano, a tese agrarismo e
industrialismo de Octávio Brandão e Astrojildo Pereira, e a obra de José Carlos
Mariátegui, os Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana.
O terceiro e último capítulo está dedicado ao tratamento da luta política e às
interpretações produzidas a partir de 1925, com a criação do Secretariado Sul-
35
HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes Primitivos – Estudio sobre las formas arcaicas de los movimientos
sociales en los siglos XIX y XX. Barcelona: Ariel, 1983.
18
americano da Internacional em Buenos Aires. Estabelecido esse secretariado, a
particularidade latino-americana seria tratada de forma sistemática pela Internacional
Comunista.
Avaliamos o impacto do chamado “terceiro período” da IC, a bolchevização e o
significado desse processo nas elaborações teóricas produzidas pelos comunistas acerca
da realidade da América Latina em geral, e do Brasil, Peru e México em particular.
19
1º Capítulo – O movimento radical antes dos comunistas
36
FLORES MAGÓN, Ricardo, “El Pueblo Mexicano es apto para el comunismo”, Regeneración, nº 53,
Los Angeles: 2 set. 1911.
20
A Hipótese de Aricó
37
CRESPO, Horácio. “En Torno a Cuadernos de Pasado y Presente”, 1968-1983, s.d, s/p.. Disponível em:
<http://shial.colmex.mx/textos/crespo.pdf>. Acessado em: 17 set. 2011.
38
A melhor definição do grupo foi feita por Aricó nos seguintes termos: “Em uma primeira etapa de sua
existência, Pasado y Presente foi um órgão político e cultural da esquerda cordobesa com forte prestígio
em certos meios intelectuais e vinculada ao campo ideológico do leninismo castrista. O que nos
diferenciava das demais correntes similares surgidas do partido comunista, ou de raiz católica, era nossa
filiação ‘gramsciana’. Reconhecendo a potencialidade revolucionária dos movimentos terceiro-mundistas,
castristas, fanonianos, guevaristas, etc., tratávamos de estabelecer um nexo com os processos de
recomposição do marxismo ocidental, que para nós tinha seu centro na Itália. Éramos uma mescla rara de
‘guevaristas togliattianos’. Se alguma vez essa combinação foi possível, nós a expressamos”. (ARICÓ,
1987 apud CRESPO, En Torno a Cuadernos de Pasado y Presente, s.d.).
21
problemas e nessa complexa batalha ideal houve triunfadores e
perdedores circunstanciais; enfim, que toda a história do socialismo,
em cujo interior o debate marxista encontrou significação, havia sido,
e seguia sendo um processo infinitamente mais complexo que as
simplificações bizarras de uma historiografia a serviço da política.
(ARICÓ, 1999, p. 22).
Para Aricó, importava responder onde estavam as respostas para essa dificuldade
do marxismo na América Latina. Responder essa questão estava diretamente
relacionado à estratégia que os marxistas deveriam empregar no continente. Aricó era
assumidamente um militante e buscava na teoria respostas para a conjuntura política que
39
O Cuaderno a que fazemos referência é uma coletânea traduzida pelo grupo de Pasado y Presente
diretamente do alemão e cuidadosamente editado: MARX, Karl e ENGELS, F. Materiales para La
Historia de América Latina. México: PyP, 1972.
40
Respectivamente: ARICÓ, José. La Hipótesis de Justo: Escritos sobre el Socialismo en América Latina.
Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1999; ARICÓ, José. Marx e a América Latina. Rio de Janeiro:
Terra e Paz, 1982 e ARICO, José. “Introdução”. In: Mariátegui y los origenes del marxismo en
Latinoamericano, Cuaderno 60, México: Pasado y Presente, 1978.
22
viviam os comunistas argentinos.
Sua conclusão não é simples, e procurou afastar-se dos caminhos fáceis, como o
que levava a uma conclusão de que existia um europeísmo intrínseco em Marx e Engels,
que impossibilitava a utilização do conjunto teórico dos fundadores do comunismo para
a transformação da América Latina.
Por outro lado, era inegável que a perspectiva de Marx estava impregnada de sua
própria realidade, que cobrava diversas imprecisões fruto da distância e da falta de
informação de meados do século XIX na Europa. Leopoldo Zea cita as palavras de Che
Guevara sobre os limites da análise de Marx acerca da América Latina, colocando essas
dentro do devido contexto e que representa também a percepção de Aricó sobre as
limitações da análise de Marx para a América Latina.
41
ZEA, Leopoldo. Visión de Marx sobre a América Latina, Nueva Sociedad, n. 66, México, maio/jun.
1983, p. 59-66.
42
Pedro Scaron foi um dos tradutores para o espanhol do texto de Marx intitulado Elementos
fundamentais para a Crítica da Economia política, os famosos Gründrisse de Marx.
23
progresso, que, enfim, levaria a humanidade à sociedade sem classes.
É desse período o Manifesto Comunista e, principalmente, nos escritos dessa
época que se encontram as citações que “comprovam” o “positivismo eurocêntrico” de
Marx.
Fica claro que Marx via a burguesia e o capitalismo como um fator
revolucionário de desenvolvimento econômico e social. Sua formulação, embora
carregue uma crítica à exploração capitalista, possui uma crítica ainda maior às relações
feudais. Toda a lógica histórica apresentada no Manifesto está orientada para a
superação do capitalismo, e, embora não de maneira explícita, segue uma lógica de
processo. A ideia de egoísmo, que substitui as relações feudais e idílicas, embora para
muitos soe como um juízo de valor, é a análise de um processo que contribuiria para
criar as condições de um futuro comunismo.
Esse foi o texto que a maior parte das pessoas leu. Alguns conhecem Marx
apenas por esse pequeno livro e não é difícil entender o materialismo histórico e a
questão nacional como um processo evolutivo conduzido progressivamente pelo
capitalismo até a redenção comunista.
O segundo período, de 1856 até 1864, foi quando a Marx produziu mais textos
sobre a questão nacional e sobre o mundo não europeu. Prevalece a denúncia contra o
colonialismo das grandes potências e a reivindicação dos direitos dos chineses e
indianos de resistir contra os agressores e invasores. (SCARON, 1972, p. 943).
A partir de 186444 até a morte de Marx, diversos dos seus textos demonstram que
sua percepção acerca da consequência da expansão capitalista inglesa havia mudado.
Marx passou a questionar se essa expansão colonial levaria necessariamente ao
capitalismo. O caso irlandês será o objeto de estudo para essa mudança de posição sobre
a questão nacional e colonial. Marx passou a perceber que o capitalismo inglês poderia
ter um efeito desindustrializador “ao retirar as tarifas protecionistas estabelecidas pelo
parlamento irlandês, a Inglaterra destruiu toda a vida industrial na Irlanda”45. (MARX,
1869, s.p.). Nesse período de nascimento do imperialismo, Marx percebeu o valor das
barreiras protecionistas para o desenvolvimento industrial na periferia do sistema
capitalista. (SCARON, 1972, p. 11).
A maior parte dos historiadores que se dedicou ao estudo do marxismo esteve
43
SCARON, Pedro. A modo de introducción. In: MARX, Karl; ENGELS, F. Materiales para La Historia
de América Latina. México: PyP, 1972.
44
1864 é o ano de fundação da Internacional dos Trabalhadores, a 1ª Internacional.
45
“Eis porque a Internacional deve sempre dar prioridade ao conflito entre a Inglaterra e a Irlanda,
tomando abertamente o partido desta última. A tarefa especial do Conselho Central em Londres é
despertar na classe operária inglesa a consciência de que a emancipação nacional da Irlanda não é para ela
uma abstrata questão de justiça e de humanitarismo, mas a condição primeira de sua própria emancipação
social”. In: MARX. “A Questão Irlandesa”, edição eletrônica, 2004, s.p. Disponível em:
<http://www.marxists.org/portugues/marx/1869/11/questao.htm>. Acesso em: 27 mar 2014;
25
ligado ao movimento socialista e comunista, ou se opunha ferozmente a este. O
marxismo não foi, nesse contexto, ausente de paixões e sempre houve entre os
militantes marxistas uma preocupação pela defesa dos escritos de Marx como uma
referência simbólica. Afinal, da credibilidade de Marx dependia o projeto
revolucionário. Qualquer crítica que pudesse ser retirada da obra de Marx por seus
detratores seria logo propagandeada de maneira generalizada para apontar para o
conjunto de seu pensamento como obsoleto. Esse sempre foi o ambiente de debate do
marxismo. E não podia ser diferente, já que, ao debater o marxismo, debatemos um
projeto de sociedade, um programa político que tem profundas consequências sociais.
Tamanha polarização não estimulou os marxistas a exporem, e normalmente
evitarem, a questão colonial e a questão camponesa na obra de Marx e Engels.
Preferiu-se, sobre esse tema, citar Lenin, Stalin, Mao Tsetung e criticar a posição
de Kautsky46 e outros marxistas que trataram de maneira mais concentrada o tema.
Ao crítico com dificuldades de perceber os homens em seu tempo, é fácil
encontrar trechos que exortam a Inglaterra para avançar na ampliação do império
colonial. Como todos nós, Marx não podia conhecer o que ainda não existia. Ao final de
sua vida, Marx já percebia que a expansão inglesa não trazia necessariamente o
progresso, com o sistema capitalista suplantando as formas arcaicas de produção. Para a
Irlanda, chegou a propor medidas protecionistas como forma de desenvolver o
capitalismo.
Será a partir da constatação de como se apresentou inicialmente o marxismo que
seguiremos as conclusões de Aricó na explicação da quase ausência do marxismo na
América Latina antes da Revolução Bolchevique, e também a atração de parte da
intelectualidade marginalizada pelo anarquismo e pelo movimento operário
revolucionário.
***
46
Kautsky é o autor de uma obra fundamental do debate sobre os camponeses. Até que se avançasse nesse
tema, após a Revolução Russa e a fundação da Internacional Comunista, a obra de Kautsky foi a
referência para todos os debates marxistas acerca do problema camponês. Ver: KAUTSKY, Karl. A
Questão Agrária. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
26
foi se transformando e pareceu para muitos que o caminho para a sociedade sem classes
seguiria sem violência, de maneira progressiva como consequência de um processo de
desenvolvimento civilizatório em direção ao comunismo. Depois viria a Primeira
Guerra Mundial e esse estado de espírito mudaria radicalmente. Nos últimos anos do
século XIX, a ascensão do movimento socialista e uma forte influência do liberalismo
positivista estimulavam e alimentavam essa perspectiva.
Diferente da Europa, na América Latina a classe operária nascia em um
ambiente de quase inexistente representação popular no parlamento, com liberais na
oposição e uma hegemonia da oligarquia conservadora no Estado. Diversos episódios
em que os liberais reivindicavam simples reformas democráticas foram reprimidos com
violência pelas forças do Estado. Em uma população com altos índices de
analfabetismo, de população fragmentada por um grande território em algumas dezenas
de cidades, o marxismo da 2ª Internacional47, progressivista, pacifista e parlamentar,
tinha dificuldades em conquistar adeptos. Nas palavras de Aricó:
47
É importante assinalar que a Segunda Internacional assume uma posição cada vez mais progressivista
nos últimos anos do século XIX, e principalmente na primeira década do século XX. Para acompanhar
os debates na Segunda Internacional, ver: LA SEGUNDA INTERNACIONAL y el Problema Colonial
(primera Parte) Caderno 73, México: PYP, 1978 e LA SEGUNDA INTERNACIONAL y el Problema
Colonial (segunda Parte) Caderno 74, México: PYP, 1978
27
projetos de reformas sociais e de justiça econômica, mantendo,
contudo, uma estreita vinculação com as classes operárias urbanas.
(ARICÓ, 1999, p. 33).
28
no tempo e no espaço, permitindo apenas definições parciais. No México, os liberais
levantaram a bandeira da laicidade do Estado com muito mais veemência do que os
liberais brasileiros, por exemplo48.
Por definição, os liberais estão agrupados em algumas crenças, que, inclusive, os
nomeiam. No raciocínio liberal clássico, o desenvolvimento material e o progresso da
civilização são consequências naturais da liberdade do mercado. O que está implícito
nessa concepção, e que realmente nos importa aqui, é a defesa da diminuição do Estado,
necessário apenas para a manutenção da ordem e da propriedade privada. Para os
liberais, o Estado é sinônimo de entrave, burocracia e atraso.
Córdova, ao tratar do anarquismo de Ricardo Flores Magón, que surge do
interior do movimento liberal, em oposição ao Governo Diaz, pontua a relação entre o
liberalismo radicalizado e o anarquismo em uma nota de seu livro.
***
49
Criollo foi o termo utilizado para denomiar os espanhóis nascidos nas colônias americanas. Após a
iundependência, esses criollos tornaram-se a elite dirigente dos novos Estados.
30
soldados tinham dito que “não se deixariam matar por causa dos
brancos”. (BONILLA, 1977, p.59-60 apud COTLER, 2006, p. 98).
50
A União Nacional ou o Partido Radical criado a partir do grupo literário que rodeava Prada teve vida
efêmera e pouca vocação para a militância organizada. Nas palavras de Mariátegui: “O programa do
Partido Radical, que, por outro lado, não foi elaborado por González Prada, permanece como um
exercício de prosa política de um ‘círculo literário’. Já vimos que a União Nacional, efetivamente, não
passou disso” (MARIÁTEGUI, 1975, p. 186).
51
O termo anarco-sindicalismo designa o movimento sindical radical que se baseava em certos autores
anarquistas e atuava nos sindicatos.
31
relacionamento entre eles conforma, desde então, a principal herança
intelectual que sucessivas gerações – salvo exceções – pouco
questionaram. (URIARTEL, 1998, s.p.)52.
52
URIARTEL, Montoya Urpi. Hispanismo e Indigenismo: o dualismo cultural no pensamento social
peruano (1900-1930). Revista de Antropologia, São Paulo, v. 41, n. 1, 1998.
53
O termo arielistas faz referência a obra de José Enrique Rodó, Ariel, que influenciou os que
procuraram na herança espanhola a identidade nacional para a América Latina, em oposição a um pan-
americanismo, que durante a Guerra entre Espanha e Estados Unidos passou a influenciar a emergente
intelectualidade do continente.
54
ZEA, Leopoldo. Fuentes de la Cultura Latinoamericana. México DF: Fondo de Cultura Economica,
1997. v. 1-3.
55
Vargas Llosa descreve a obra de Tello: “Levou a cabo uma extraordinária obra de investigação
arqueológica, que contribuiria de maneira decisiva para revelar ao mundo a antiguidade e a riqueza de um
passado que remontava há muitos séculos antes do Império dos Incas, e a importância das culturas pré-
incaicas da Costa, entre elas a de Paracas e seus belíssimos tecidos, que o próprio Tello descobriu”
(LLOSA, 1996, p. 57).
32
que na política.
A inserção da questão indígena no debate sobre identidade nacional surgiria pela
crítica de Manuel González Prada, que denunciou as condições de exploração do índio e
assentou nas classes dominantes a responsabilidade pela fragmentação nacional.
A crítica gonzalezpradista seguiu o caminho da radicalização crescente, do
liberalismo democrático, à descoberta das mazelas da população e da literatura radical
europeia.
Prada foi considerado o primeiro modernista peruano, e, embora tenha
contribuído com novos ares para a literatura peruana, particularmente na poesia,
inaugurando uma nova estética com elementos populares, de sentido realista e político,
não foi na literatura que repousou seu mais importante legado.
Na virada do século, González Prada reconheceu que é no regime latifundiário
que se encontravam os problemas peruanos. Como solução, apresentou uma revolução
próxima e inevitável, embora essa apareça em sua obra de forma vaga e apocalíptica.
(ANDERLE, 1985, 94).
As concepções políticas expressas em seus discursos e artigos não possuem uma
estrutura que possa representar um programa de ação, nem uma perspectiva de futuro.
Suas ideias refletem mais a solução e a perspectiva anarquista da época. A análise de
González Prada é mais uma crítica, um estado de espírito – como diz Mariátegui –
contra a política oligárquica, o latifúndio e a Igreja, do que uma análise sistemática da
realidade peruana.
Prada ajudou a romper a despolitização no movimento operário – que nos seus
primeiros anos estava hegemonizado por concepções mutualistas e por um sindicalismo
economicista56 –, contribuindo na introdução dos temas mais amplos da realidade
nacional, como as condições de vida no campo e a exploração gamonal57.
No texto mais contundente sobre o problema indígena, “Nuestros Indios”,
González Prada, conhecedor dos autores influentes da época, introduziu o tratamento da
questão indígena pela crítica as ideias pseudocientíficas do positivismo comtiano e
outras variantes, como o darwinismo social, de Spencer, bastante em voga na época.
56
Economicismo é o termo utilizado no movimento operário para designar um tipo de sindicalismo que
privilegia as lutas por melhorias econômicas e despreza a luta política.
57
Gamonal refere-se ao sistema latifundiário típico da região andina. Mariátegui (2008) afirma que o
gamonalismo não é apenas um sistema econômico, ou uma relação de produção, é um modo de produção,
com consequências políticas e superestruturais.
33
[...] Cômoda invenção da Etnologia nas mãos de alguns homens!
Admitida a divisão da Humanidade em Raças superiores e raças
inferiores, reconhecida a superioridade dos brancos e por conseguinte
seu direito de monopolizar o governo do planeta, nada mais natural
que a supressão do negro na África, de pele vermelha nos Estados
Unidos, do tálago nas Filipinas, do índio no Peru. Como na seleção ou
eliminação dos débeis e inadaptados, se realiza a suprema lei da vida,
os eliminadores ou supressores violentos não fazem mais que acelerar
a obra lenta e preguiçosa da natureza: abandonam a marcha de
tartaruga pelo galope do cavalo. Muito não o escrevem, mas deixam
ler nas entre linhas, como Person quando se refere à “solidariedade
entre os homens civilizados da raça europeia frente a Natureza e a
barbárie humana”. Onde se lê “barbárie humana” traduz-se “homem
sem pele branca”. (GONZALEZ PRADA, 1908, s.p.).
58
Tanto a corma como o cepo de campaña são instrumentos de tortura que consistem em em duas
madeiras que aprisionam membros ou a cabeça da vítima. Utilizado para criar extremo desconforto,
humilhação e imobilização.
35
mais distantes das grandes fazendas, se disfruta de mais ordem e
tranquilidade nos povos menos frequentados pelas autoridades.
Em resumo: O índio se redimirá graças ao seu próprio esforço, não
pela humanização de seus opressores. Todo branco é, mais ou menos,
um Pizarro, um valverde ou um Areche. (GONZÁLEZ PRADA, op.
cit, p. 438).
59
Classe média é um conceito vago, não define uma posição econômica na produção, não se relaciona a
uma camada política definida, mas tem um uso corrente nas análises sociais de todas as épocas.
Entendemos tratar-se de um conceito mutável que para ser usado necessita ser definido no tempo, mas
que geralmente tenta abarcar uma camada social não proletária e urbana. Na América Latina, essa
categoria assume uma importância grande ao tentar agrupar um setor politicamente significativo nos anos
1920. Seriam pertencentes à classe média os pequenos comerciantes, os intelectuais e artistas não
orgânicos ao Estado Oligárquico, os militares de patente média, funcionários públicos com baixos
salários e por vezes pequenos agricultores, mas geralmente esse termo se relaciona a uma população
urbana.
Conforme uma conceitualização aprista, o setor social que Haya de La Torre e a APRA vinculam ao termo
tem uma definição tão ampla, que chega a permitir um peculiar exagero demográfico: “[…] el pequeno
proprietario, el pequeno productor minero; el pequeno comerciante; esa clase que constituye, quizás, la
mayoria [sic] del país”. (HAYA DE LA TORRE, 2000, p. 179).
36
Mas, se por um lado, Aricó explicou a dificuldade do socialismo na América
Latina, não deu o devido valor à importância dos anarquistas latino-americanos em
agitar a crítica aos problemas estruturais em seus países, que, em muitos casos, não se
limitavam ao binômio patrões e empregados, ou propriedade privada e comunismo.
González Prada é uma boa representação dessa capacidade de utilizar a crítica
anarquista para compreender melhor a sociedade peruana.
60
Benito Juárez promungou uma série de leis de cunho liberal em meados do século XIX, como a Lei do
Matrimônio Civil, a que nacionalizava os bens eclesiásticos ou o decreto de secularização dos cemitérios.
Na História Independente do México, as diferenças entre liberais e conservadores estiveram muitas vezes
relacionadas à luta contra os privilégios da Igreja e na defesa do Estado laico.
61
Cockcroft nos conta que: “[...] [Félix Palacini] cria que a próxima revolução social do México se
iniciaria com os ‘intelectuais da classe média’ e com o 'proletariado intelectual' [...] cria que os
intelectuais do México haviam sido a principal força dinâmica de toda a história da República desde a
Guerra da Independência [...] advertia: ‘a classe média intelectual’, quando se enfrente com a ‘fome
chamando às portas’, com os salários reduzidos, com a carência de vestido, com o indecente alojamento,
com o pão caro e a carne ‘ruim e cara’, ‘será revolucionária’: ‘O proletariado intelectual iniciará sua
defesa’”. (COCKCROFT, 1981, p. 46).
37
Congresso Nacional de Agências Católicas, o bispo afirmou que no México a Igreja
havia progredido apesar das restrições impostas pelas Leis da Reforma, denunciava a
separação entre a Igreja e o Estado e que, sob o benévolo governo de Diaz e o apoio das
mulheres mexicanas, as Leis da Reforma não passavam de letra morta. (COCKCROFT,
1981, p.90; CORDOVA, 1991, p. 90).
O discurso do bispo Montes de Oca y Obregón (1840-1921) fez com que Camilo
Arraiga (1862-1945), apoiado por outros liberais de San Luis de Potosi, publicasse um
manifesto convidando os clubes liberais a reunirem-se em uma Convenção Nacional em
San Luis de Potosi, em fevereiro de 1901. (COCKCROFT, 1981, p. 90).
Camilo Arraiga era um engenheiro de minas, membro de uma das famílias mais
abastadas da região, que havia passado um período pela Europa, de onde havia trazido
muitos livros. De sua biblioteca particular liam-se muitos dos autores radicais,
principalmente anarquistas, que influenciariam todo o grupo de liberais reunidos no
entorno de Camilo62.
No manifesto de Arraiga estava definido que se discutiria e se necessitaria
decidir os meios “de levar a prática a unificação, a solidariedade e força do Partido
Liberal, a fim de conter os avanços do clericalismo e conseguir dentro da ordem e da lei
a vigência efetiva das Leis da Reforma”. (Ibidem, p. 69)63.
A reunião liberal ocorreu em fevereiro de 1900 e contou com muito mais
delegados do que estavam esperando inicialmente. Entre os delegados, estava o jovem
Ricardo Flores Magón (1874-1922), que do seu jornal Regeneración passou à oposição
ativa ao governo com denúncias e um crescente radicalismo. Inicialmente, o objetivo do
jornal era essencialmente legalista: combater e denunciar as falhas da justiça, os juízes
venais, os litigantes imorais e as autoridades arbitrárias (CÓRDOVA, 1991, p. 91).
Regeneración noticiaria no número 2664 detalhes do Congresso, e reconheceria a
liderança de Arraiga sob o movimento liberal mexicano. A transformação de um
liberalismo legalista, crente nas possibilidades de conquistar reformas políticas pelo
Estado, vai desenvolvendo-se e radicalizando o seu discurso. Esse processo é facilmente
62
“Santiago de la Veja declarou mais tarde: ‘Graças a Camilo – Camilito, como o chamávamos – toda a
biblioteca Stock de Paris fez parte de nossas bagagens de prisioneiros’ A Biblioteca Stock foi uma
proeminente casa de publicações e livraria em Paris da qual através de sua Biblioteca Anarchiste distrbuía
as obras dos líderes anarquistas europeus, e a través de sua Bibliothèque cosmopolite” oferecia as obras
de autores mundialmente conhecidos (Tolstoi, Ibsen, Hugo, Kipling e outros.)”. In: COCKCROFT, 1981,
p. 69.
63
Ibidem, p. 78.
64
REGENERACIÓN, El Gran Congreso Liberal. Regeneración, México, DF, n. 27, 15 fev. 1901.
38
acompanhado pelas páginas de Regeneración. Em 1900, pouco antes da Convenção (ou
Congresso) Nacional do movimento liberal, o periódico, antes dedicado às questões
jurídicas, avança para o tratamento de questões mais amplas. A partir do número 2065, o
jornal dos irmãos Flores Magón passou a denominar-se Reneración, Periódico
Independiente de Combate e apresentou suas proposições:
A justiça, mal administrada como tem estado até esta data, foi o que
primeiro nos induziu a fundar nosso periódico [...] Nossa luta tem sido
dura. Tem tido todas as características de uma luta de pigmeus
encarando titãs [...] Nossa luta por Justiça, não era mais que um
reflexo de nossos princípios; mas essa luta se via circuscrita a um
mesquinho raio de ação: não podíamos tratar mais que de assuntos
jurídicos. [...] Por outra parte, continuaremos tratando os assuntos
jurídicos, como até esta data, e seguiremos fazendo as críticas, quiçá
um tanto amargas, mas não por isso menos justas, dos atos dos
empregados judiciais. (REGENERACIÓN, n. 20, 31 de dez. 1900).
As críticas amargas vieram cada vez mais dirigidas a Porfírio Diaz. No número
34, dizia: “Não acredite que nos dirigimos a esta personalidade para adular [...] Nos
dirigimos ao presidente para por em manifesto o grave mal que tem ocasionado com seu
sistema político, ditatorial, absorvente, absoluto, autocrático” (REGENERACIÓN, n.
34, 15 abr. 1901, p. 1)66.
Frente ao sucesso do Congresso e ao crescimento da oposição liberal, Enrique e
Ricardo Flores Magón são presos, logo depois seria encarcerado também Antonio Diaz
Soto y Gama (1880-1967), outro importante participante do chamado grupo precursor
da Revolução Mexicana.
A ideologia de oposição ao Governo Diaz nasceu liberal e foi transformando-se
ao longo dos conflitos. Fechada qualquer via de transição política, a radicalidade
crescente de Reneración vai conquistando leitores. O jornal havia sido fundado pelos
irmãos Jesus e Ricardo Flores Magón, e depois se incorporaria o irmão mais novo,
Enrique. O destaque seria para Ricardo, mas, além dos irmãos, no círculo do jornal
teriam destaque também Práxedes Guerrero (1882-1910), Librado Rivera (1864-1932),
Antonio I. Villarreal (1879-1944) e Juan Sarabia (1882-1920).
Com Ricardo ainda preso e a fim de ampliar o movimento liberal, Arraiga e José
Maria Facha convocam o 2ª Congresso do Partido Liberal Mexicano, em que se
especificam os temas a serem debatidos, entre outros a liberdade de imprensa e a
65
Idem. Periódico independiente de combate. Regeneración, México, DF, n. 20, 31 dez. 1900.
66
Idem. Al Presidente de la República, Regeneración, México, DF, n. 34, 15 abr. 1901.
39
resolução do problema agrário.
Como González Prada havia conseguido tocar na ferida que envolvia ¾ da
população peruana, a questão indígena, os liberais em processo de definição
programática esbarravam na questão que assolava os também ¾ da população
mexicana, o problema agrário.67.
Sem condições de fazer oposição de forma legal, Ricardo Flores Magón se exila
em San Antonio, no Texas, e do território norte-americano continua a publicar
Regeneración. Em 1903, um agente de Porfírio Diaz tenta assassiná-lo, sem êxito.
A partir de 1905, forma-se uma Junta Organizadora do Partido Liberal
Mexicano, com Ricardo à cabeça. Na situação de repressão política, fechados os
caminhos institucionais, o tom legalista perdeu espaço nos clubes liberais, e os mais
radicais, que permaneceram politicamente mais ativos, foram ganhando maior
importância entre os que se opunham à ditadura de Diaz.
É nesse momento, por volta do ano de 1904, que o liberalismo radicalizado de
Regeneración vai sendo substituído pelo anarquismo, estabelecendo relações cada vez
mais fortes com os operários. Entre os dias 1 e 3 de junho de 1906, seria deflagrada uma
greve que se tornaria historicamente importante, em Cananea, por marcar a primeira
manifestação da Rebelião que conflagraria o México a partir de 1910. Os organizadores
dessa greve estavam reunidos na União Liberal Humanitária.
Os protestos por melhores salários e equiparação com os salários pagos aos
norte-americanos foram reprimidos pela força particular da empresa de mineração com
o auxílio de alguns mineiros de nacionalidade norte-americana. O dono da empresa
solicitou a intervenção de tropas norte-americanas, que atravessaram a fronteira do
México com o Arizona, e os mineiros foram atacados e reprimidos. Essa greve foi
duramente reprimida pelo Governo e descrita em um artigo de Ricardo Flores Magón,
assinado com o pseudônimo de Netzahualpilli, da seguinte maneira68:
67
Como no Peru a questão indígena, embora evidente, mantinha-se sob desinteresse dos letrados da
capital, no México a questão agrária somente havia sido tratada em favor do campesinato por Wistano
Luis Orozco, com o livro: “Legislación y jurisprudência sobre terrenos baldios” ver: OROZCO, Wistano
Luis. “Legislación y jurisprudência sobre terrenos baldios.” Disponível em:
<http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/2/940/40.pdf>. Acesso em: 27 mar 2014.
68
Netzahualpilli ou Nezahualpilli foi o tlatoani de Texcoco entre 1473 e 1515, conhecido por abolir a
pena de morte para escravos e soldados em alguns crimes.
40
que não suavam. Seis mil homens deixaram cair a ferramenta,
animado pela esperança de que, arrependidos, os amos atenderiam
suas reclamações. Vã esperança. Os amos armaram seus lacaios e
assassinaram o povo. O governo, por sua parte, mandou soldados
que fizeram o mesmo e, covarde e traidor, tolerou que foragidos
estrangeiros violassem as leis de neutralidade para exterminar aos
mineiros mexicanos.
[...] Que espantoso crime os mineiros haviam cometido para serem
caçados como bestas selvagens? Um crime realmente e muito
grande, um monstruoso crime: o de reclamar seu direito com as
mãos vazias. Esse é o crime dos povos submetidos e escravos.
[...] Os direitos não se reclamam cruzando os braços, senão com o
ferro e com o fogo. Armem-se os operários e reclamem seus direitos,
só assim se conquista a liberdade e o bem estar. (FLORES MAGÓN,
1908)69.
69
NETZAHUALPILLI (Pseudônimo de Ricardo Flores Magón), Libertad y Trabajo, Los Angeles, 30
maio 1908. Disponível em: <http://www.fte-energia.org/E80/e80-17.html> e em Memoria, México, n
245, p. 39-40, ago. 2010.
70
Lockout é o termo utilizado para definir o ato dos donos de uma empresa para impedir que os
funcionários exerçam suas funções. Como uma “greve” patronal. Essa tática é utilizada para impedir e
dificultar negociações em meio a uma greve de trabalhadores, ou a ameaça de uma. Na maioria dos
países, essa prática é proibida por lei.
71
Denominamos como magonismo o conjunto de ideias que fizeram parte do pensamento de Ricardo e
Enrique Flores Magón, bem como de seus companheiros do PLM na fase anarquista, como Práxedes
Guerrero.
41
1988, p. 179).
O avanço das minhas ideias é lógico, não tem nada de estranho nele,
nada de postiço. Primeiro acreditei na política. Eu acreditava que a lei
teria a força necessária para que houvesse justiça e liberdade. Mas vi
que em todos os países ocorria o mesmo que no México, que o povo
do México não era o único desgraçado e busquei a causa da dor de
todos os pobres da terra e a encontrei: o capital. (FLORES MAGÓN
apud CORDOVA, 1991, p. 175).
72
PARTIDO Liberal Mexicano, Programa del Partido Liberal y Manifiesto a La Nación, St. Louis, 1º jul.
1906. Disponível em: <http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/historia/programa/44.html>. Acesso
em: 27 mar 2014.
73
A proibição de imigração chinesa é um ponto do programa do PLM que depois se repetirá em outras
organizações na década de 1920, e seria combatido intensamente pelos comunistas, e particularmente
através da Liga Anti-imperialista, conforme veremos no capítulo 3 deste trabalho.
42
animaram diversas mobilizações, como a Greve de Cananea, de Orizava, em Veracruz,
uma guerrilha em 1908 em Yucatán, até que o PLM passasse à organização e defesa
aberta da revolução social através da luta armada74.
[...] en defensa de la Justicia, ultrajada sin tregua por el puñado de
bandoleros que nos oprimen, nos rebelamos contra la dictadura de
Porfirio Díaz, y no depondremos las armas que hemos empuñado con
toda justificación, hasta que en unión de todo el Partido Liberal
Mexicano, hayamos hecho triunfar el Programa promulgado el día 1°
de julio del corriente año, por la Junta Organizadora del Partido
Liberal. (PARTIDO..., 1906)75.
74
Cockcroft (1981, p. 135) “[...] também nasceu uma revolução durante 1906-1908, tanto em termos
ideológicos, como de preparação militar; o PLM aportou contribuições-chave ao desenvolvimento da
Revolução de 1910-1917. Ainda que não tivessem alcançado êxito na derrubada de Porfírio Diaz, as
revoltas do PLM ajudaram a sovacar seu regime. As ideias do Programa do PLM começam então a
receber uma ênfase mais militante em benefício da classe operária”.
75
PARTIDO Liberal Mexicano, Proclama a la nación, St. Louis, set. 1906. Disponível em:
<http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/historia/programa/45.html>. Acesso em: 27 mar 2014
76
Ricardo Flores Magón noticia, em uma carta de 28 de junho de 1911, o andamento dos combates no
norte do México. Emílio campa foi um dos que assinaram o Plano de Empacadora, conhecido como
Plano Orozquista. O trecho abaixo demonstra a relação direta entre Ricardo e as forças revolucionárias,
particularmente Pascual Orozco. “Por falta de parque se perdió Tijuana. Los bravos compañeros
lucharon ahí como leones hasta que quemaron su último cartucho. [...] Agotado el parque, los
compañeros se pasaron al lado americano. Mexicali se perdió por la traición de Rodolfo Gallegos, un
miserable que nos engaño vilmente y se vendió a los capitalistas americanos del norte de la Baja
California. Sin embargo, los pesimistas no deben desalentarse, pues sería ridículo pretender que la
Revolución Social estaba confinada en un rincón del territorio mexicano. Acabo de recibir cartas muy
interesantes de los Estados de Chihuahua y Coahuila. Una es del firme y valeroso compañero José María
Rangel, quien con el no menos firme y valeroso Inés Salazar, hacen la campaña liberal en el norte de
Chihuahua. [...] Me dice Rangel en carta del 20 de este mes, que estaba ya para unir a su columna otra
columna liberal que anda por el rumbo de San Antonio, Chihuahua. Si ya se unieron, muy pronto será
dueña la bandera roja de una gran extensión territorial del Estado de Chihuahua. [...] Como es muy
difícil la comunicación, no tenemos detalles de más operaciones de dichos compañeros.” Disponível em:
<http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/politica/reflexiones/5.html>. Acesso em: 27 mar 2014.
43
Figura 1 - "Homenagem a Posada", Leopoldo Mendez, linoleogravura s/papel, s/d..77
77
A Gravura de Leopoldo Mendez mostra uma cena hipotética, em que aparece o gravador José
Guadalupe Posada preparando uma gravura enquanto Ricardo Flores Magón prepara um número de
Regeneración. Pela janela Posada observa as tropas porfiristas reprimirem a população. Fonte: PEREIRA,
Lucésia. “A Revolução Mexicana nas gravuras do Museu de Arte de Santa Catarina: entre aparição e
nostalgia” Disponível em: <http://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00496214 > Acesso em: 23 mar
2014.
78
Ver nota 65.
44
Território de Baixa Califórnia, que alguns afirmam ser o primeiro intento de fundação
de um Estado socialista no século XX, seis anos antes dos bolcheviques tomarem o
poder na Rússia.
O Governo Diaz manteve a repressão a qualquer dissidência política e com isso
prejudicou os liberais mais moderados, que nesse contexto sucumbiam como alternativa
frente aos radicais do PLM. Sem muitas opções, os liberais que representavam a
oligarquia marginalizada no porfiriato se reuniram em torno da figura de Madero, que
única e exclusivamente propunha uma transição política e não uma transformação
revolucionária da sociedade.
O tom conciliador do liberalismo que Madero representava ficou claro em seu
livro Sucessión Presidencial79 (CORDOVA, 1991, p. 100). Espírita kardecista, Madero
imaginava-se realizando uma missão transcendental. A sua proposta de governo,
expressa no Plano de San Luis de Potosi, além da reivindicação por democracia política,
estava bem limitada em relação a uma proposta de transformação social.
Definidos os campos, Magón aprofundaria sua posição anarquista e se ligaria
mais e mais aos operários e camponeses, ao mesmo tempo que se incompatibilizava
com o maderismo.
79
MADERO, Francisco, Sucesión Presidencial, INEP AC, 1910. Disponível em:
<http://www.memoriapoliticademexico.org/Textos/6Revolucion/1910LSP.pdf>. Acesso em: 27 mar 2014
80
SAMIS, Alexandre. Apresentação. In: FLORES MAGÓN, Ricardo. A Revolução Mexicana. São Paulo:
IEL – Imaginário, 2003.
81
Embora Samis (2003, p.19) afirme que o lema Tierra y Libertad tenha sido popular entre os zapatistas,
a verdade é que essa consigna nunca fez parte de nenhum documento zapatista, que assinavam
normalmente: Reforma, Libertad, Justicia y Ley (um exemplo: o comunicado de Zapata, “Comunicado de
Emiliano Zapata a los miembros del ejercito libertador”, 13 fev. 1915. Disponível em:
<http://www.bibliotecas.tv/zapata/1915/z13feb15.htm>. Acesso em: 27 mar 2014.
45
O apoio mútuo era igualmente a regra; as casas se fabricavam em
comum; a moeda quase não era necessária, porque havia intercâmbio
de produtos, mas a Autoridade se robusteceu e os bandidos da política
e do dinheiro roubaram descaradamente as terras, os bosques, tudo.
[...] o povo mexicano está apto para chegar ao comunismo, porque o
tem praticado, ao menos em parte, desde vários séculos, e isso explica
porque embora em sua maioria seja analfabeta, compreende que,
melhor que fazer parte em farsas eleitorais para elevar verdugos, é
preferível tomar possessão da terra e a está tomando, para o grande
escândalo da ladrona burguesia. (FLORES MAGÓN, 1910, p. 1)82.
82
FLORES MAGÓN, Ricardo. El Pueblo Mexicano es apto para el comunismo. Regeneración, Los
Angeles, n. 53, 2 set. 1911.
46
Figura 2 – Botoncito do Partido Liberal Mexicano83
Aos 48 anos de idade, morreu Ricardo Flores Magón, depois de suportar mais de
13 anos de clausura em diferentes prisões nos EUA e no México. Manteve, através de
Regeneración, sua agitação, mesmo dentro das piores condições de repressão política.
A câmara dos deputados, por ocasião da morte de Ricardo em uma prisão dos
EUA, em 1922, rendeu homenagens, que foram rechaçadas pelos companheiros de
Ricardo. Por outro lado, a confederação de sindicatos ferroviários trouxe por sua própria
conta o corpo de Magón. Pelo caminho, operários lhe renderam diversas homenagens.
Ricardo Flores Magón foi o mais rebelde entre todos que lutaram na Revolução
Mexicana e, dessa maneira, é lembrado pelo povo mexicano.
O magonismo não possuía um projeto de poder político nacional, mas a negação
83
Fonte: REGENERACIÓN, Los Angeles, n. 66, 2 dez. 1911, p. 1. Abaixo da gravura, aparece o seguinte
texto: “Temos à venda botoncitos contendo a figura que reproduz a gravura. Cada botoncito vale 10
centavos ouro. Compre os botoncitos, pois tudo o que se reúna por esse meio servirá para o fomento da
propaganda. O homem que sustenta a Bandeira vermelha é um trabalhador que acaba de fazer um esforço,
tem rompido seus grilhões e se lança à luta contra o atual sistema. Na bandeira se pode ler com claridade
o lema dos liberais mexicanos: Terra e Liberdade! Essa bela bandeira é a que nesses momentos aterroriza
a burguesia e as autoridades em toda a extensão do território mexicano. O botoncito constitui um meio de
propaganda, pois ao vê-los nas blusas de nossos irmãos deserdados, muitos procuraram indagar pelo
Partido e os princípios que o defende”.
47
dos outros projetos em busca de um horizonte distante. Mais adiante, veremos que,
como Madero não solucionava a questão agrária, os zapatistas receberam influências da
prédica magonista para manter suas reivindicações pela democratização da terra e para
opor-se ao governo maderista.
No México, a oposição ao porfiriato se organiza em torno do liberalismo,
reivindicando as conquistas juaristas. Os liberais mexicanos, diferente do que ocorreu
no Peru, haviam alcançado maiores êxitos, emplacado importantes reformas e
consolidado uma tradição política entre a intelectualidade marginalizada pela ditadura
de Diaz. Essa influência liberal alcançou tamanha importância que de uma maneira ou
de outra as correntes que se insurgem durante a Revolução Mexicana (1910-1920)
reivindicam o liberalismo de Benito Juárez, ou as correntes mais populares e
radicalizadas como o zapatismo inspiram-se em ideias facilmente associáveis à agitação
anarquista, que nascem com a radicalização do programa do Partido Liberal Mexicano.
Mas, se a oposição liberal e anarquista foi mais densa no México porfirista que
no Peru civilista, a repressão do Governo Diaz foi também mais violenta, a ponto de
Ricardo Flores Magón passar parte de sua vida e atividade política entre o exílio norte-
americano e a prisão.
González Prada seria o inspirador dos primeiros movimentos operários no Peru,
foi a voz crítica ao sistema oligárquico civilista e o seu legado foi reivindicado por todas
as correntes radicais do Peru contemporâneo.
A vitória do magonismo e do gonzalezpradismo era irrealizável, mas o legado da
agitação que promoveram alimentou outros movimentos, tornando-os mais combativos,
encontrando na rebeldia dos dois anarquistas a densidade doutrinária para sustentar
projetos radicais em tempos anteriores à possibilidade de poder bolchevique, quando
toda a alternativa social era apenas um projeto irrealizável.
48
a imprensa para divulgar novas ideias e encontraram no anarquismo a saída para os
limites do liberalismo radical que reivindicavam anteriormente. As diferenças entre o
pensamento de González Prada e Flores Magón estão relacionadas às diferenças entre a
realidade política de seus países. Se por um lado o Peru esteve sempre tensionado pela
dualidade entre indígenas da Sierra e brancos da Costa, no México as contradições
entre as classes se manifestou sob outros aspectos, claramente na questão agrária e na
pressão exercida pela pesada fronteira com o vizinho do norte. É em torno da luta pela
terra que os movimentos radicais se organizarão e fundamentarão toda a rebeldia
popular, alternando momentos de nacionalismo anti-imperialista.
O movimento revolucionário dirigido por Emiliano Zapata em Morelos foi
provavelmente o movimento camponês mais bem-sucedido de toda a América Latina,
por dois motivos: primeiro, chegou junto com as tropas da Divisão Norte, comandadas
por “Pancho” Villa, ao centro do poder político. Ambos chegaram a sentar na silla84
presidencial, tomaram a capital e derrotaram as tropas federais. No caso dos zapatistas,
formulou-se o mais avançado programa de Revolução Agrária da época, o Plano de
Ayala, e o defenderam de forma intransigente e com clareza política os seus objetivos.
O segundo motivo que torna a organização político-militar liderada por Zapata tão
importante foi o seu legado para o movimento camponês mexicano posterior,
inspirando o que seria denominado como agrarismo mexicano, com várias vertentes,
mas reivindicando uma mesma origem histórica. Pela importância que o zapatismo
alcançou, a busca das origens do agrarismo se deu nas mais remotas origens:
econômicas, relacionadas à propriedade da terra em diferentes épocas, inclusive pré-
hispânicas; em conflitos regionais provocados pela política porfirista; e em uma
tradição mesoamericana de levantes agrários desde antes da Conquista.
A mais aceita explicação para a rebelião zapatista de Morelos foi econômica. Os
ejidos que sobreviveram e até conviveram como o domínio colonial espanhol se
organizaram a partir de uma derivação dos calpullis mexicas. A propriedade da terra
coletiva teria mantido uma certa autonomia política durante a administração colonial.
Quando os liberais alcançaram o poder, depois de expulsarem os franceses,
promoveram algumas reformas liberais e criaram alguns precedentes privatizadores
com a chamada Ley Lerdo, que depois seria utilizada por Porfírio Diaz para transferir as
84
Silla em espanhol tem dois significados, que em português tem nomes bastante diferentes: significa
tanto cadeira de sentar como cela para cavalos. A “silla” presidencial carregava um duplo sentido aos
críticos do Governo: era a cadeira de onde o presidente montava e oprimia o povo.
49
terras comunais à exploração de cana-de-açúcar no Estado de Morelos.
Os dados desse processo de concentração de terra são muito conhecidos pela
historiografia mexicana, e o ressentimento dessas comunidades transformadas em
peones nas lavouras de açúcar e sem-terras é uma consequência presumível. Assim teria
nascido o movimento zapatista e explodiria a rebelião agrarista.
Uma linha de pesquisa inovadora da historiografia sobre a Revolução Mexicana
foi o livro de Womack, Zapata y La Revolucion Mexicana, publicado em 1969, em que
o autor narra, a partir do contexto regional da política porfirista em Morelos, a rebelião
zapatista, renunciando a esquemas “sociológicos abstratos”, como as tentativas
frustradas de enquadrar em classes abstratas as motivações do movimento. Uma das
hipóteses de Womack é de que os camponeses se rebelaram para não mudar, e
encontraram mudanças ainda maiores, das quais fizeram parte. “Este é um livro acerca
de camponeses que não queriam mudar e que por isso mesmo, fizeram uma revolução.”
(WOMACK, 1999, p. XI).
Como na obra de Womack, foi comum na sociologia, inclusive marxista, a
associação de movimentos camponeses ao conservadorismo, às forças retrogradas que,
geralmente, quando se rebelaram, o fizeram para manter seus antigos direitos85.
Frederich Katz organizou um livro com vários autores, publicado em 1998, em
que busca novas hipóteses para a explicação da rebeldia camponesa e sua tradição de
violentos levantes. “Os camponeses mexicanos têm desempenhado um papel único na
História da América Latina. O México é o único país do continente americano em que
todas as transformações sociais têm estado vinculadas a levantamentos rurais.” (KATZ,
2008, p. 18).
Atualmente, muitos historiadores têm explorado uma influência indígena no
agrarismo de Emiliano Zapata, em uma perspectiva comunalista e autonomista. Essa
preocupação está muito relacionada à influência da perspectiva indígena insurgente
introduzida pelos membros do EZLN (Exército Zapatista de Liberação Nacional) em
Chiapas.
Em que pesem os exemplos das diferentes visões sobre o zapatismo, para nós
tanto as transformações econômicas, fruto da expansão do imperialismo norte-
85
“[...] de forma pouco clara e persistente se tem infiltrado a ideia, quase um dogma, de que os grupos
camponeses, mais estritamente a classe camponesa não pode gerar um projeto global para a
transformação da sociedade complexa” (WARMAN, Arturo. El Proyecto Político de Zapatismo. In:
KATZ, Friedrich (compilador). Revuelta, Rebelión y Revolución – La Lucha Rural en México del Siglo
XVI ao Siglo XX. México: ERA, 2008, p. 291).
50
americano durante o porfiriato, quanto o contexto da crise da oligarquia em Morelos
ajudam a explicar por que camponeses de Morelos levantaram-se em rebeldia, como
tem acontecido, particularmente no México, desde os tempos da Conquista, conforme
nos demonstra Katz. O que nos chama atenção, em todos esses estudos, é a pouca
importância que o anarquismo assume como influência para o zapatismo.
51
reformas democráticas limitadas e que não tocavam de maneira significativa na questão
agrária, exceto pelo artigo 3º no parágrafo 3 do Plano de San Luis de Potosi, em que se
dizia:
86
MADERO, Francisco. Plano de San Luis de Potosi. San Luis de Potosi, 5 out. 1910. Disponível em:
<http://es.wikisource.org/wiki/Plan_de_San_Luis_Potos%C3%AD>. Acesso em: 30 mar 2014.
87
VIVA Zapata!. Direção: Elia Kazan. EUA: Fox Filmes, 1952. 1 filme (113 min.).
52
do mesmo, semeando ideias de inconformidade e agitando a massa
trabalhadora por meio do jornal Regeneración, que publicavam nos
EUA e que era enviado pelo correio aos assinantes no México.
(HERZOG, 1988, p. 69).
88
Em 1918, o zapatismo tinha claros os meios para conquistar a terra, próximo da propagada Ação Direta
anarquista: “En cambio, la revolución ha hecho promesas concretas, y las clases humildes han
comprobado con la experiencia, que se hacen efectivos esos procedimientos. La revolución reparte
tierras a los campesinos, y procura mejorar la condición de los obreros citadinos; nadie desconoce esta
gran verdad. En la región ocupada por la revolución no existen haciendas ni latifundios, porque el
Cuartel General ha llevado a cabo su fraccionamiento en favor de los necesitados, aparte de la
devolución de sus ejidos y fundos legales, hecha a las poblaciones y demás comunidades vecinales”. In:
ZAPATA, Emiliano. Manifiesto de Zapata: Llamamiento patriótico a todos los pueblos engañados,
Tlaltizapán, 22 ago. 1918 Disponível em: <http://www.bibliotecas.tv/zapata/1918/1918.html>. Acesso
em: 27 mar 2014.
54
como forma de acumulação de forças e conquistas parciais, até a ditadura do
proletariado; a transição socialista até o comunismo. Para os comunistas, mesmo
quando defendiam meios radicais e agitaram a luta armada e a insurreição
revolucionária, apresentaram o que foi chamado de programa mínimo da revolução,
com medidas imediatas e um plano de transição até a sociedade comunista, a sociedade
sem classes.
As principais correntes anarquistas que tiveram eco no México propagaram uma
perspectiva apocalíptica e de ruptura revolucionária, em que a velha sociedade daria
lugar a nova, em todos os lugares e em todos os aspectos. Nessa perspectiva, não era
possível nenhum recuo tático, e assim, não chegando à sociedade anarquista, só
restavam a derrota e o aniquilamento.
Politicamente, essa concepção tem duas consequências bem claras, e que
estiveram presentes no zapatismo. O movimento revolucionário quando alcança
representatividade sustenta uma grande combatividade, mas, ao mesmo tempo, não
consegue constituir um programa mínimo, e, quando alcança o poder, pouco se tem a
fazer. Outras forças políticas com propostas imediatas conquistam as bases sociais do
movimento, isolam os líderes anarquistas e a resistência é eliminada com repressão.
Assim ocorreu com as forças zapatistas e villistas, que, ao chegarem à cadeira
presidencial, com o controle do território e o poder militar, não conseguiram impor um
programa, apenas mantiveram a disposição de lutar contra uma tirania que oscilava
entre abstração e personalismo. Entre os zapatistas, manteve-se sempre como fim a
Revolução Agrária. Zapata e Villa tomaram o poder sob custódia, mas não tinham
planos para a consolidação da revolução.
Nos últimos anos antes de seu assassinato, o linguajar das declarações do Estado
Maior zapatista estava tão próximo da agitação magonista que seria pouco provável,
como diria Wommack (1999, p. 397), que alguma outra facção revolucionária pudesse
aliar-se aos zapatistas que não fossem os anarquistas.
89
WARMAN, Arturo. El Proyecto Político de Zapatismo. In: KATZ, Friedrich (compilador). Revuelta,
Rebelión y Revolución – La Lucha Rural en México del Siglo XVI ao Siglo XX. México: ERA, 2008.
90
Fonte: Archivo fotográfico Casasola, “Francisco Villa em la Silla presidencial”, fundo Casasola, autor
Casasola, México, 6 dez. 1914. Disponível em:
<http://www.sinafo.inah.gob.mx/galerias/fotoperiodismo/fotoperiodismo.swf>. Acesso em:
56
às anarquistas, e cada vez menos aos antigos liberais. Esses últimos, a essa altura, já
estavam compondo o novo governo, discutindo a nova constituição e disputando
espaços no Estado que se reestruturava a partir das lutas entre facções do
constitucionalismo.
O espaço de desenvolvimento do zapatismo estava cada vez mais relacionado ao
movimento operário, e ao magonismo desses anos. Flores Magón, inclusive, só
reconheceria como verdadeiros revolucionários os que lutavam ao lado de Zapata.
Um dos mais interessantes documentos assinados por Zapata e que demonstra
com clareza a separação dele de toda a tradição liberal e seu esforço por aliar-se aos
operários está no documento dirigido aos operários, redigido desde o quartel general
zapatista, em 15 de março de 1918.
91
ZAPATA, Emiliano. A los obreros de la república, Tlaltizapán, 15 mar. 1918. Disponível em:
<http://www.bibliotecas.tv/zapata/1918/z15mar18a.html>. Acesso em: 27 mar 2014.
57
locais, no âmbito dos pueblos, longe dos “corruptos” do poder central, e carregado da
sabedoria da experiência cotidiana da vida municipal, em que todos se conheciam e
mantinham outras formas de mediação e convivência sem a necessidade da mediação
do Estado e sua burocracia administrativa.
Como temos colocado, embora o anarquismo seja peça-chave para se entender o
a ideologia zapatista, essa influência não é reconhecida pelos próprios, nem o termo
anarquia ou anarquista tem conotação positiva, como demonstra um pequeno trecho do
Plano de Ayala, em que anarquia aparece com a conotação pejorativa e sinônimo de
desordem:
92
Acreditamos que ao longo da Revolução, de 1911 até 1918, o Estado-Maior zapatista tenha modificado
sua percepção acerca do sentido da palavra anarquismo. Em nosso modo de ver, as palavras não têm um
significado único para todos os contextos. Os homens se apropriam das palavras, dando significados
diferentes no tempo e espaço. Em meio aos movimentos emancipatórios, frente às intensas lutas políticas,
uma mesma palavra pode ter um significado para um, e outro para um grupo diferente em uma mesma
época, além de ter conotações distintas em cada época e lugar. Por outro lado, o Plano de Ayala é do
início da década, e tudo leva a crer que o Estado-Maior zapatista foi se aproximando de antigos membros
do PLM, como Soto y Gama, o que nos faz pensar que, se houvesse uma “revisão” do Plano de Ayala por
Zapata nos anos de 1917-8, certamente esse trecho “horrorosa anarquia” seria suprimido. Zapata não foi
anarquista, e aqui não nos importa definir um simples rótulo, mas, acima de tudo, demonstrar como a
agitação anarquista influenciou um movimento camponês revolucionário com características particulares,
e como essa tradição política radical será retomada pelo PCM na década de 1920.
93
Utilizamos a palavra comunalista para identificar a organização comunal típica de algumas
experiências rurais na América, e também em outras regiões do mundo. Diferente de comunismo, que está
associado a uma corrente política contemporânea, marxista, e que prevê uma sociedade sem classes, pós-
capitalista e industrializada.
58
A ampla puna era para todo mundo, não havia pastos cercados por
pedras ou alambrados; a extensa puna não tinha dono. Os índios
viviam livremente onde melhor os parecia. Os mistis94 e mestiços
despertaram, então, à existência da puna: pastos, gados, índios,
estúpidos adormecidos pelo frio! Vamos, e todos juntos correram para
se apoderar da puna. Eles empreenderam a limpeza, para sempre, das
chukllas, como também das aldeias, e fizeram mais altas as cercas de
arame farpado e de pedras na puna livre. (CHEVALIER apud
ANDERLE, 1985, p. 20)95.
94
Misti é a palavra quéchua usada pelos indígenas para se referir ao branco. Pode ter significado próximo
a patrão, a chefe; ou pode ser usado pejorativamente.
95
Este trecho está em Chevalier, Imperialismo y agro peruano, sem data e sem numeração de páginas,
citado por Anderle. (1985, p. 20).
59
presidente Guillermo Billingurst (1851-1915) para investigar a situação conflituosa
entre indígenas e fazendeiros da região do altiplano. Os gamonales voltam a pedir a
destituição de Teodomiro, e, em 1914, com a queda do presidente, ele perde também o
cargo, como inclusive sua patente militar, e tem de fugir do país, inicialmente
atravessando a fronteira com a Bolívia, depois seguindo para a Argentina.
Em 1916, retorna a Puno, com um programa: “reativar a rama [...] organizar um
exército camponês e preparar um levante para o domingo de carnaval. Muda seu nome
para Rumi-Maqui [que significa mão de pedra em quéchua] e se propõe a restaurar o
Tahuatinsuyo”. (GALINDO, 1999, p. 182).
Antes do planejado, em 1º de dezembro de 1915, à frente de algumas centenas
de camponeses controla algumas fazendas, e em San José perde uma batalha para as
forças paramilitares dos gamonales, sendo preso. Em 1916, consegue fugir da prisão e
desaparece.
O importante dessa rebelião é um aspecto que acompanharia as outras rebeliões
na Sierra peruana: os camponeses opõem-se como indígenas às forças do branco e
estruturam suas reivindicações pela ideia de que as terras têm sido usurpadas pelos
brancos desde a Conquista. E, por essa razão, as terras lhes pertencem por direito e
antiguidade. Assim apareceu também o objetivo último: o restabelecimento do
Tahuantinsuyo.
Rumi-Maqui lideraria a última das rebeliões locais. Todos os outros levantes
camponeses teriam uma dimensão política mais ampla e estariam, em grande parte das
vezes, articulados com os movimentos radicais dos centros urbanos, que dariam à
reinvindicação pela terra perspectivas programáticas mais amplas.
O primeiro encontro do movimento popular com o campesinato indígena da
Sierra deu-se através de uma série de associações indigenistas com sede em Lima.
Pouco depois que González Prada escreveu Nuestros Indios, a defesa do
indígena foi sustentada por um grupo de intelectuais reunidos na Asociación Pró-
derecho Indigena, fundada em 1909 e dissolvida em 1916. Leibner, ao analisar os
documentos dessa associação, a descreveu com as seguintes palavras:
60
tratamentos de capitalistas donos de fundo, funcionários públicos”.
(LEIBNER, 1999, p. 71-72).
O curto tempo em que essa associação esteve ativa serviu para atrair militantes
anarquistas, algumas lideranças indígenas e intelectuais. Dessa iniciativa, surgiu em
1919 o Comitê Central Pró-derecho Indígena Tahuantisuyo. Dora Mayer (1868-1959),
mais tarde, descreveria esse processo com as seguintes palavras:
96
ZULEN, Pedro. ¡Destruíamos el latifúndio!, La Autonomia, Lima, n. 19, 27 nov. 1915. Cf. LEIBNER,
1999, p. 82.
97
A ideia de um ressurgimento do Império Inca combinada com a ideologia igualitária anarquista foi
frequente entre os jornais operários de Lima, como em La Protesta, o mais importante jornal anarquista
peruano da época.
61
constituição que protegiam os índios e suas comunidades. A crença nos instrumentos
legais98 como método para se atingir a emancipação indígena não estava baseada
somente em artigos constitucionais, mas também no apoio concreto do presidente
Augusto Lenguía (1863-1932) ao Comitê.
O 1º Congresso Indígena, realizado em 1921 na cidade de Lima, contou com o
apoio do mandatário no pagamento do transporte para os delegados da Sierra e suas
refeições. Não somente esse apoio material, mas a retórica do presidente, nos primeiros
anos de seu governo, também fazia crer que o Comitê poderia contar com o seu apoio.
Lenguía havia subido ao poder com um discurso que apontava para o combate
ao civilismo e o gamonalismo, anunciando reformas em benefício dos mais pobres. Ele
estabeleceu o Dia do Índio, inaugurou um monumento a Manco Capac, proclamou-se o
“novo Wiracocha” e pronunciou discursos em quéchua, dando a impressão de que era
simpático a um certo indigenismo. (ARROYO, 2004, s.p.).
Em 1922, Lenguía criou o Patronato de la Raza Indígena como uma tentativa de
vincular o crescente movimento indígena com o governo. Embora a institucionalização
do movimento indígena tenha sido recebida com certa desconfiança, o tom legalista da
declaração de princípios e o apoio à causa indígena criaram enormes expectativas entre
a maioria dos líderes regionais indígenas.
O escritório onde funcionava o Comitê era o local em que muitos índios serranos
se dirigiam para fazer denúncias contra os abusos dos gamonales e de usurpação das
terras. A própria Dora Mayer lembra, em suas memórias, como vivia cheio o pequeno
escritório de onde as pessoas solidárias ao problema indígena acolhiam as denúncias
dos índios e davam encaminhamento legal. Essa atividade filantrópica tinha limites na
própria estrutura da sociedade peruana. Os latifundiários da Sierra e os enganchadores99
98
Essa direção inicial na concepção do Comitê fica clara na declaração de princípios da organização:
“Siendo las comunidades de indígenas de la República el coeficiente de su propia existencia, los
miembros de este Comité tienen la obligación de llevar a todos los rincones del país a sus hermanos
indígenas la convicción de que es necesario exigir del Estado el respeto de su integridad territorial de
todas las comunidades del país. [...] de acuerdo con la Constitución de la República: Título I.
Comunidades de indígenas: – Artículos 207, 208. 209, 210, 211, 212, y de acuerdo también con la
Declaración de Principios de esta asociación indígena, en beneficio de los indígenas en general; por lo
que debe denunciarse los abusos cometidos por las autoridades de cualquier orden o gamonales
(hacendados) del lugar o sus agentes. En las denuncias por despojo, atropello u otros abusos, a falta de
otras personas que testifique el Comité, es suficiente testimonio para que los personeros de la asociación
indígena de ésta, o del lugar donde funcione un subcomité, tramiten inmediatamente ante las autoridades
superiores, la responsabilidad y el castigo del o de los culpables”. (AYALA apud ARROYO, 2004).
99
Enganchadores se refere a Enganche, um tipo de recrutamento de mão de obra comum no Peru, em que
alguns agentes das empresas agrícolas do litoral, necessitadas de mão de obra barata, recrutavam
camponeses em suas aldeias prometendo salários relativamente bons, mas, ao chegarem ao local de
62
não respeitavam a ação legal que vinha da capital e nem os funcionários da capital
faziam questão de aplicar algum tipo de penalidade aos latifundiários que cometiam
abusos contra os índios. Tão logo fosse percebida a ineficácia das denúncias e das
atividades de filantropia a favor dos índios, essa direção no movimento indigenista
estaria esgotada.
E assim foi. Logo no 1º Congresso Indígena, a realidade indígena parecia estar
essencialmente ligada ao problema da terra. Esse tema ocupou o centro dos debates
entre os delegados presentes. O que garantia ainda a sobrevivência da linha
filantrópica100no meio indigenista era o apoio do presidente Lenguía. O Congresso abriu
com vivas ao mandatário, contando com o apoio do emergente movimento estudantil e
do movimento operário.
O apoio e a participação de integrantes do Comitê em rebeliões indígenas101, a
crescente politização dos membros que se afastavam gradativamente da filantropia
original e a adoção de um tom cada vez mais anarco-sindicalista para a questão indígena
começaram a criar reflexos na classe gamonal. Logo que o movimento indigenista
passou a orientar-se no sentido da luta pela terra, principalmente na região de Puno, na
Sierra Sul foi fundada a Liga de Haciendados del Sur, organização de fazendeiros que
passou a fazer uma grande campanha contra o Comitê102.
Enquanto o Comitê, já sob a influência determinante do anarquismo, animava a
rebelião indígena, incitando o enfrentamento e a insurgência sob uma prédica
milenarista do retorno ao incário, os conflitos chegavam a Lima e impunham ao
governo um apoio mais resoluto aos camponeses contra os latifundiários. Nos anos de
trabalho, acabam presos, sem poderem abandonar a fazenda até que pagassem a “dívida” que contraíram
desde o transporte da aldeia, até os bens de consumo que necessitavam para sobreviver e eram obrigados
a comprar em um mercado controlado pela fazenda. Esse tipo de relação de trabalho, com características
de servidão, em que a mão de obra é aprisionada por uma dívida artificial ou outro compromisso que
nunca conseguiam quitar, foi recorrente em toda a América Latina. Conhecida com o nome de Tienda de
Raia no México, Casas Aviadoras no Ciclo da Borracha no Norte do Brasil, entre outros.
100
Utilizamos a palavra filantrópica conforme foi caracterizada por Mariátegui à direção do Comitê
Indígena nesses tempos, já que essa associação estava composta principalmente por profissionais liberais
que, por meio de medidas legais, pedagógicas e “solidárias”, buscavam romper (ou diminuir) o estado de
opressão e miséria que viviam os indígenas andinos. Uma melhor definição desta organização por
Mariátegui, Cf. MARIÁTEGUI, J.C. Mariátegui Total, Lima: T. I, Editora Amauta, 1994, p. 18-23.
101
As rebeliões camponesas e indígenas que se deram pouco antes do oncenio, até meados da década de
20, foram denominadas como a Grande Rebelião. Segundo Leibner, houve uma expectativa entre os
indígenas de que Lenguía interferiria em favor dos camponeses por uma nova repartição de terras.
Somava-se a isso o mito do retorno do Inca. O mito do Inkarri é o mais conhecido, mas outros fazem
parte da tradição andina de restauração do antigo Império. Cf. CURATOLA, Marco. “Mito y milenarismo
en los Andes: del Taki Onqoy a Inkarri. La vision de um pueblo invicto”, Allpanchis, n. 10, 1977; OSSIO,
Juan M., Ideologia mesianica del mundo andino, Lima: Ed. de Ignácio Prado Pastor, 1973.
102
Cf. LEIBNER, 1999, p. 178.
63
1922-23, na Região Sul, ocorreram diversos massacres. O que alcançou maior
repercussão foi o de Huaconé.103 Ao contrário do que alguns membros do Comitê
imaginavam, a resposta de Lenguía foi a perseguição aos dirigentes indigenistas. O ano
de 1923 foi significativo por marcar uma fronteira importante na “Nueva Patria” de
Lenguía. Ao mesmo tempo em que o Peru vivia as últimas mobilizações da onda de
lutas que animavam o movimento popular desde 1919104, o presidente passava a exercer
uma repressão generalizada contra os seus oponentes. Em busca de apoio para sua
reeleição, em 1924, encontrou a oligarquia latifundiária, a igreja e o capital norte-
americano. Essa direção no governo, mais clara depois da prisão de Haya de La Torre, e
a deportação de líderes estudantis e operários modificariam a orientação de todo o
Comitê.
Nesse ano, o movimento indigenista havia conseguido estabelecer uma ligação
coordenada entre as comunidades e o centro dirigente em Lima. Muitos dos dirigentes
como Ezequiel Urviola (1885-1925), Hipólito Salazar e Carlos Condorena, de clara
filiação anarquista, vincularam-se de tal forma às comunidades indígenas que as
atividades do Comitê pareciam realmente ameaçar o latifúndio. Os fazendeiros da
Região Sul, onde as sublevações alcançaram maior importância, as descreveram com as
seguintes palavras:
103
Após o massacre nessa região, o líder indigenista Condorema e um grupo de camponeses-índios se
encontraram com Lenguía. Ayala cita esse encontro da seguinte forma: “Carlos Condorena y un grupo de
campesinos de Wancho Lima decidieron ir hasta la capital para entrevistarse con Leguía y pedirle
justicia. Cuando llegaron al Palacio de Gobierno, el presidente los recibió, pero de inmediato expresó su
disgusto: ‘Señor Condorena – dijo – mi opinión como presidente es muy clara, yo apoyo al indio, quiero
la revolución del indio, pero lo que no puedo consentir son los actos de vandalismo que se han desatado
en la Provincia de Huancané, tengo la información, yo no voy a permitir que en nombre de las escuelas
haya gente que se está aprovechando para amenazar, liquidar, matar a la población que tiene todo el
derecho de trabajar sus tierras. Estoy profundamente disgustado…’.Cuando Leguía terminó de hablar,
Condorena inmediatamente le respondió lo siguiente: ‘Señor Presidente, lo que nosotros queremos es que
usted cumpla con su palabra, he leído sus discursos, sé todo lo que usted ha dicho, igual que Ezequiel
Urviola yo también le pido Señor Presidente que cumpla con lo que usted dice, porque mientras usted
dice una cosa, las autoridades, los gamonales hacen otra.’ Lo cierto fue que, cuando la reunión estaba
por acabar, Leguía se encontraba tan enojado que ni siquiera quería recibir el memorial que los
campesinos habían ido a dejarle. De ahí que, una vez fuera del Palacio de Gobierno, Condorena les
comentase lo siguiente a sus paisanos: ‘Ha pasado tal como yo estaba pensando, los campesinos hemos
comenzado a caminar por nuestro propio camino y Leguía ha escogido el suyo. Desde ahora habrá que
luchar sin Leguía, desde este momento estamos solos’”. In: AYALA apud ARROYO, 2004, s/p.
104
No capítulo 2, trataremos o movimento operário e estudantil de 1919, até 1923, com o exílio de Haya
de la Torre.
64
senão a Revolução Social mais espantosa o aniquilamento de todas as
instituições nacionais, a destruição de todos os poderes públicos e, por
fim, o caos. (FISANCHO PIÑEDA apud LEIBNER, 1999, p. 179).
A estas horas como dizíamos ontem, nem eles mesmo sabem o que
querem porque os agitadores os têm feito perder a noção clara de suas
reivindicações. O que pretendem é saquear as fazendas, queimar
populações, exterminar os mistis, repartir as propriedades territoriais e
os capitais ‘senovientes’ da criação de gado, destruir tudo e restaurar o
império do Tahuantinsuyo. (GALINDO, 1999, p. 183).
67
A Grande Ruptura: A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa
O jovem jornalista John Reed viajou meio mundo e eternizou em seus artigos os
três acontecimentos fundadores do século XX: a Primeira Guerra Mundial, a Revolução
Russa e, na América Latina, a Revolução Mexicana.
As proezas do general Francisco Villa ao longo da fronteira norte-americana
haviam despertado a curiosidade da população norte-americana que consumia as
notícias sobre os acontecimentos no vizinho do sul e, inclusive, assistia as batalhas que
ocorriam na cidade de Juárez nas coberturas dos prédios do lado norte-americano.
O jovem jornalista – formado em Harvard e que teria vivido sua infância em
uma confortável família norte-americana – atravessou a fronteira e foi viver com as
tropas de Pancho Villa. Escreveu vários artigos e chegou a conquistar a confiança do
general revolucionário. Seus artigos se transformaram em um livro, que, traduzido para
o português, ficou conhecido como México Rebelde105. A narrativa preocupada com os
detalhes da gente simples, entusiasmada pela rebeldia, pela cultura popular e humanista,
inovaram por contrastar com as exaltações dos grandes chefes de Estado e as biografias
pomposas em batalhas e grandes feitos. Seus artigos e livros logo o tornariam conhecido
o suficiente para que conseguisse financiamento para novas viagens. Em 1915, esteve
na frente oriental e descreveu os horrores da Guerra Mundial106. Depois assistiria a
Revolução Russa de outubro (novembro em nosso calendário) de 1917. Dessa última
viagem, nasceu o livro Dez Diaz que abalaram o Mundo107. Reed se tornaria comunista,
e seu livro se tornaria um material de propaganda da Internacional Comunista, um dos
mais conhecidos relatos da Revolução Russa, recomendado por Lenin e com prefácio de
Krupskaya, a companheira de Lenin.
A trilha que Reed seguiu é emblemática e nos ajuda a compreender a sequência
de acontecimentos internacionais em que se desenvolveu o movimento radical latino-
americano. Em primeiro lugar, temos a Guerra Mundial, as batalhas que em poucos
meses tornaram a guerra internacional, envolvendo de alguma forma quase todos os
países europeus. A Guerra foi descrita em cenas horripilantes aos que a assistiram e
significou um momento importante de inflexão, de transformação para toda uma
105
REED, John. México Rebelde. São Paulo: Civilização Brasileira, 1978.
106
REED, John. Eu vi um mundo nascer. São Paulo: Boitempo, 2001.
107
REED, John. Os Dez Dias que Abalaram o Mundo. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1982.
68
geração. O livro de Reed que trata dessa Guerra é muito claro em demonstrar o caos em
que se transformou a Europa. Diferente das narrativas mais comuns nos jornais, Reed
procurou não se limitar à descrição das movimentações dos exércitos, à biografia dos
generais e aos acontecimentos da política oficial108.
O jovem jornalista – como havia feito no México, dormindo e vivendo entre as
tropas villistas, descrevendo seus trajes, suas conversas, sofrimentos, alegrias e
motivações políticas – descreveu a Europa em Guerra que conheceu. A Europa da
Primeira Guerra Mundial estava irreconhecível. Havia morte, tifo, irracionalidades
nacionalistas, centenas de refugiados, populações destroçadas e fome, muita fome.
Hobsbawm (1995), em seu mais conhecido livro, A Era dos Extremos,
apresentou a Primeira Guerra Mundial como o marco do início do século XX,
alcançando tanta importância que até hoje na França, por exemplo, ainda é recordada
como a Grande Guerra. Essa importância é significativa quando vemos os dados
apresentados pelo próprio Hobsbawm. Fazia um século que a Europa não assistia a uma
guerra que envolvesse a maioria das potências europeias, e as guerras que existiram
foram pontuais, localizadas e rápidas. A Guerra da Crimeia já estava longe o suficiente
(1853-1856), a Guerra Franco-Prussiana não envolveu a Inglaterra, a Rússia e tampouco
o Império Austro-Húngaro, bem como também, após o seu término, tanto a Prússia não
existia como tal, já que a Alemanha terminaria unificada, quanto a França teria a
república restaurada109. A Guerra Civil Norte-Americana (1861-1865) estava longe, e
não era exatamente entre potências europeias, as outras guerras, como entre Prússia e
Áustria (1866), duraram pouco tempo, tão pouco que ficou conhecida como a Guerra
das Sete Semanas, e fez parte mais da recomposição regional das fronteiras e do
processo de unificação da Alemanha e da Itália do que um conflito de proporções
mundiais (ou europeias), como as Guerras Napoleônicas (1799-1815).
Enfim, quando começou a Primeira Guerra Mundial, a Europa não vivia um
conflito mundial fazia quase 100 anos, e ao menos desde 1871 vivia-se um período de
108
“Quando me lembro de tudo isso [as viagens em meio a guerra], parece-me que a coisa mais
importante a saber sobre a guerra é como os diferentes povos vivem. Seu meio, suas tradições e as coisas
reveladoras que fazem e dizem”. In: REED, 2001, p. 14.
109
Em Paris, o mais importante resultado político da Guerra Franco-Prussiana, ainda que brevemente, foi
a primeira importante experiência socialista europeia: a Comuna de Paris, em 1971. Serviria como um
laboratório social para Marx e Engels, e uma referência para os revolucionários como Lenin, que até a
revolução de outubro de 1917 só teriam a Comuna como referência de poder proletário. Mariátegui,
quando esteve na Europa no início da década de 1920, ainda teria a oportunidade de conhecer antigos
comunards (participantes da Comuna de Paris), que, mesmo velhos, ainda faziam agitações em meio aos
grupos revolucionários da capital francesa. Ver: ROUILLON, 1982 e VANDEN, 1975, p. 25.
69
paz e expansão econômica sem precedentes dentro do continente, com guerras distantes,
contra populações “bárbaras” e “primitivas”. “Entre 1871 e 1914, não houvera na
Europa guerra alguma em que exércitos de grandes potências cruzassem alguma
fronteira hostil [...] Não houvera, em absoluto, guerras mundiais” (HOBSBAWM, 1994,
p. 30).
A paz e a prosperidade econômica da expansão imperialista das potências
europeias possibilitaram uma riqueza até então inédita para as elites dos centros
capitalistas, enquanto para a classe operária dos centros industriais europeus sobravam
melhorias materiais110, direitos sociais e políticos, formando o que Lênin denominaria
como a aristocracia operária. (LENIN, 1973, t. 5, 145 e 161).
A expansão imperialista conseguiu proporcionar uma elevada condição material
para a população europeia, e serviria como exemplo para o mundo, que quase em sua
totalidade vivia no campo. A Europa industrializada dominava e dividia o mundo entre
as principais potências, expandia seu domínio destruindo impérios, controlando as mais
diversas populações, mas apresentava-se como o progresso, como a estrela polar que
guiaria toda a humanidade em direção à liberdade, à democracia, ao progresso
tecnológico e à elevação das condições materiais.
O mundo que as duas primeiras décadas do século XX herdou do século XIX era
profundamente europeísta. Mesmo entre os rebeldes da periferia residia, em diversos
graus, uma certeza de que o desenvolvimento da Europa Ocidental apontava o caminho
que todas as nações deveriam percorrer. A técnica e a cultura europeia, através de seus
impérios, viria civilizar os “bárbaros” do mundo.
No início do século XX, o liberalismo eurocêntrico viveu seu auge. Quando a
Europa vencia, “civilizava”, elevava a produtividade, abria estradas de ferro, inventava
novas tecnologias, como o avião, o cinematógrafo e a luz elétrica.111 Para grande parte
dos que de alguma maneira entravam em contato com as cidades europeias, o exemplo
110
“Pode-se verificar que durante o mesmo período em que o mundo dos negócios conhece, por exemplo,
na França uma verdadeira ressurreição, entre 1900 e 1914, ‘La Belle Èpoque’ e em que o salário real da
massa dos operários quase duplica entre 1890 e a guerra, o número de imposições baixa no Monte de
Piedade e nunca esta instituição registrou tantos empenhos como nas vésperas da Grande Guerra. A
difusão da imprensa, o desenvolvimento da instrução, a publicidade, criaram necessidades materiais
novas, tais como uma alimentação mais variada, vestimentas cidadãs, louças, bicicletas, etc. Além de ter
revelado a possibilidade de viver uma existência mais interessante, mais rica, mais valiosa e se sentem
com o direito imprescritível a subir na escala social.” In: FERRO, Marc. La Gran Guerra (1914-1918).
Madri: Alianza, 1968, p. 28-29.
111
O cinematógrafo, por exemplo, foi inventado no século XIX, mas no auge da expansão imperialista
europeia, no início do século XX, essas invenções chegavam aos mais distantes rincões.
70
fascinava e parecia o próprio caminho da humanidade. Contra o próprio “barbarismo”,
aos povos do mundo restava apenas seguir o modelo europeu liberal. Era a esse mundo
que a primeira Guerra Mundial colocaria fim.
112
ZIZEK, Slavov. As Portas da revolução. São Paulo: Boitempo, 2012. Edição digital.
113
Domenico Losurdo publicou em português um livro que discute o significado do liberalismo na
história. Cf. LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. São Paulo: Ideias e Letras, 2010.
71
Figura 5- Gravura de Posada representando a destruição da Primeira Guerra114
114
Fonte: Posada, 2012, p.176
72
particularmente para entendermos os movimentos radicais da periferia do capitalismo,
foi a fratura provocada na ideologia colonialista, positivista e liberal que sustentou a
expansão imperialista. Temos uma dimensão dessa mudança ideológica quando
constatamos que todos os líderes nacionalistas do chamado 3º mundo iniciaram sua
atividade anticolonialista a partir da Primeira Guerra Mundial115.
Mesmo com a repressão brutal à Comuna de Paris (1871), o socialismo havia
alcançado mais popularidade e o movimento operário deixava de ser um movimento
marginal e utópico para se apresentar em sua dimensão revolucionária (CARONE,
1989, p. 126). A expansão imperialista das últimas década do século XIX possibilitou
melhorias materiais para a classe operária das metrópoles do capitalismo, na mesma
proporção em que as organizações sindicais e os partidos operários ganhavam
maturidade e alcançavam participação política mais ampla. Mas, ao contrário de
desenvolverem seus partidos para a tomada do poder, os socialistas – ou social-
democratas, dependendo de cada país, mas fazem parte da mesma corrente nesse
período anterior à Revolução Russa de outubro de 1917 –, evoluem para um reformismo
progressivista muito esperançoso em conquistas parlamentares e colocavam a
“revolução social” em um horizonte distante116. Expressão desse reformismo era o
Partido Socialdemocrata Alemão (SPD na sigla em alemão), o mais significativo
numérica e teoricamente, contando inclusive com um dos herdeiros de Marx e Engels,
Karl Kautsky, como dirigente e teórico. O SPD havia evoluído para uma posição
reformista, e ainda para uma posição política, a qual tornou possível o abandono das
posições internacionalistas que fundaram o socialismo alemão, para o apoio ao governo
de seu país na Guerra.
Quando a Guerra estourou em 1914, a maioria dos partidos que compunham a 2ª
Internacional apoiaram seus respectivos governos na Guerra. “[...] todos os partidos
socialistas dos países beligerantes, salvo dois – o sérvio e o russo –, empunharam a
bandeira da união nacional, alardeada pela classe dirigente: tornaram-se belicosos”.
(BROUÉ, 2007, p. 15).
115
Gandhi, Ho Chi Minh, Sol Plaajte, Sun Yat Sen e outros célebres líderes anticoloniais, até a Primeira
Guerra Mundial, viveram muitos anos na Europa, foram figuras marginais no cenário político
internacional, e após a Guerra suas vozes ganharam gradativamente mais importância.
116
“Os revolucionários, minoritários no seio de uma sociedade inconsciente, esperam o despertar dos
trabalhadores e ao resto dos oprimidos, mas, com exceção dos anarquistas, não sabem ver que
organizando Sindicatos e partidos políticos, ou fundando uma Internacional, mantém de outra forma a
relação governantes-governados, inclusive dentro dos partidos e grupos revolucionários, esta relação
conserva um caráter de classe”. In: FERRO, op. cit., 1968, p. 25.
73
Na periferia do sistema, a situação não era tão convincente, e a mensagem
reformista de alternativa socialista progressiva, através de mudanças no parlamento e a
tese das mudanças pelo sufrágio universal, tinha dificuldades em angariar adeptos em
países como a Itália, Espanha e Rússia, bem como também na América Latina, que
trataremos mais adiante. Nesses países onde o sistema parlamentar demoliberal não era
desenvolvido, existiam poucos espaços de atuação política aos operários. Os
anarquistas, em suas mais variadas correntes, eram a maioria do movimento operário.117
Nos países periféricos e menos industrializados, tendo a Rússia como um caso
típico, o Estado Tzarista não permitia nenhuma oposição, nenhuma participação
operária no parlamento e inviabilizavam qualquer ilusão de transição pacífica
parlamentar, através do sufrágio, em direção a uma república socialista.
Com a guerra, o pequeno grupo de membros do Partido Socialdemocrata Russo,
com experiência em resistir à repressão do governo tzarista, muitos vivendo no exílio e
com uma percepção desde a periferia da expansão imperialista, conseguiu manter uma
oposição ideológica com a fração do Partido que, inspirada pelo Partido congênere
alemão, insistia no caminho reformista.
Perry Anderson é categórico em afirmar a importância de Lenin para a
construção do marxismo que conhecemos hoje.
117
Estamos nos referindo aos movimentos que doutrinariamente propunham alternativas mínimas ao
capitalismo. Não consideramos os sindicatos financiados pelo Estado, as associações locais mutualistas e
as organizações que não possuíam representação.
118
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o Marxismo Ocidental. Porto: Afrontamento, 1976.
74
Para compreendermos como se desenvolveu a construção do que posteriormente
será conhecido como leninismo, precisamos apontar um traço fundamental da percepção
política de Lenin e a maneira com que ele funde a teoria marxista com a prática política
do movimento operário.
Acossado pela autocracia tzarista, os marxistas russos não tinham a menor
possibilidade de manterem uma organização descentralizada e legal. Para resistir à
repressão constante, era evidente a importância do centralismo, dos métodos
conspirativos e da abnegação e disciplina para a organização partidária. Esse modelo de
partido, organizado em células, com um núcleo político de profissionais conspiradores,
atento para manterem vínculos com os trabalhadores e um jornal para a luta política e
ideológica no movimento operário, foi defendido no livro que se tornou um clássico do
movimento comunista, O Que Fazer?119, publicado em março de 1902. Essa luta por
tornar o Partido Socialdemocrata uma organização capaz de sobreviver a repressão, ao
mesmo tempo que mantinha vínculos com as organizações operárias em crescente
expansão e organização, foi fundamental120.
A primeira contribuição significativa da obra leninista foi a sistematização da
forma de organização operária, ou da vanguarda do movimento operário revolucionário
que sustentaria a resistência nas mais duras condições de repressão política e prepararia
a tomada do poder político. Se comparamos o modelo leninista com as outras
experiências do movimento radical latino-americano, como o magonismo e a
organização dirigida por eles, o Partido Liberal Mexicano, podemos perceber que, sob
certos aspectos, esse modelo de organização leninista foi aplicado a uma realidade
análoga ao regime tzarista, o porfiriato. Mesmo influenciados pelo anarquismo de
119
LENIN, V.I. Obras escogidas. Moscou: Progreso, 1973, p. 3-78. t. 2.
120
Marc Ferro sintetiza as polêmicas dos marxistas russos nos primeiros anos do século: “Mais do que
nunca, era preciso unificar suas atividades, e para demonstrá-lo Lenin escreveu Que fazer?, pequena obra
que iria determinar o futuro do movimento operário. Lenin examinava todos os problemas que a
organização de um partido revolucionário apresenta. Seria necessário aumentar os efetivos, a maneira
alemã, para conquistar uma maioria no país, e em seguida tomar o poder. Ou então, como preconizava
Lenin, constituir um partido de “revolucionários profissionais de efetivo limitado , mas manejável como
um exército de campanha, um Estado-Maior que conduziria a insurreição assim que se reunissem
condições de sucesso. Não se pode estabelecer um acordo entre os partidários de uma organização
democrática e os campeões de um partido centralizado. Estes, majoritários em 1903, constituíram-se em
formação política separada; foram chamados bolcheviques (majoritários). L. Martov e P. Axelrod
tornaram-se os líderes da minoria, ou mencheviques”. In: FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917.
São Paulo: Perspectiva, 1974.
75
Bakunin121 e Kropotkin, a única forma de organização que poderia sobreviver à
repressão seria o centralismo vertical, com características quase militares, e não o
modelo federativo e antipartido típico das correntes anarquistas dominantes em nosso
continente. A organização revolucionária precisaria ser dirigida por um núcleo de
“revolucionários profissionais” abnegados, treinados em métodos conspirativos e que,
mesmo sob a repressão, pudessem manter os vínculos com os trabalhadores e suas
organizações mais amplas, como sindicatos, clubes, associações regionais e operárias.
Lenin estava convencido de que a Revolução Social era a única alternativa para
o socialismo na Rússia, e, nas acirradas lutas políticas que desenvolveu dentro da social-
democracia, aprendeu a encontrar e desvelar teorias que encobriam o desejo dos
militantes em aliar-se, ou claudicar frente à repressão ou à cooptação do governo. Os
textos de Lenin são muito claros em buscar na prática política de seus adversários a
explicação para teorias e doutrinas que se apresentavam “inovadoras” e depois desvelá-
las parte a parte, apresentando seu caráter reformista, conciliador ou revisionista e
oportunista122, como ele mesmo denominava. Esse é um típico método de análise
política leninista: analisar as teorias políticas de trás para frente, ou seja, primeiro,
identificar quem está falando, seus interesses e suas consequências políticas; depois,
apresentar suas contradições internas e seu caráter oportunista, antimarxista e
contrarrevolucionário.
Em polêmica constante, Lenin constrói sua teoria acerca do imperialismo e
acusa Kautsky, o dirigente e teórico mais importante da Segunda Internacional, de
oportunista, traidor do marxismo e da causa do proletariado internacional. No livro de
Lenin, Imperialismo, Fase Superior do Imperialismo123, fica claro esse método de luta
política utilizado por Lenin. Em 1916, quando ele redige o texto, a 2ª Internacional
estava falida politicamente, os antigos líderes socialistas haviam sucumbido ao
121
Algumas correntes bakuninistas não se opõem à organização de Partidos, nem a uma centralização sob
certas condições.
122
Zizek explica a crítica de Lenin ao que chama de oportunismo a partir do que ele identifica como
recuos ou covardias da social-democracia em avançar em direção à Revolução: “Para Lenin, assim como
para Lacan, a questão é que a revolução nes’autorise que d’elle-même: deveríamos arriscar o ato
revolucionário sem o aval do grande Outro – o medo de tomar o poder ‘prematuramente’, a busca da
garantia, e o medo do abismo de agir. Essa é a máxima dimensão do que Lenin incessantemente denuncia
como ‘oportunismo’, e sua premissa e que ‘oportunismo’ é uma posição que, em si mesma, e
inerentemente falsa, mascarando o medo de realizar o ato com uma tela protetora de fatos, leis ou normas
‘objetivas’. Por isso, o primeiro passo para combatê-lo é anunciar claramente: ‘O que, então, se deve
fazer? Devemos aussprechen was ist (apresentar os fatos), admitir a verdade de que entre nós, no CC e
nos meios dirigentes do partido, há uma corrente, ou opinião…”(ZIZEK, 2012, p. 18-19).
123
LENIN, t. 5, 1973, p.161-211.
76
militarismo dos governos, muitos desses social-democratas chegaram a lutar no front e
os contatos estavam desfeitos. Lenin precisava fundamentar a luta político-ideológica
contra os grupos socialistas que claudicaram e legitimaram a guerra. Para isso,
precisaria encontrar na teoria produzida por esses marxistas o nó que possibilitou passar
do reformismo ao que denominou de social-chauvinismo.
Kautsky havia construído uma explicação para a expansão imperialista a qual
afirmava que em um dado momento a política dos países imperialistas havia se separado
de sua lógica econômica; se por um lado a expansão do imperialismo economicamente
caminhava em direção à unificação das nações em um governo geral da burguesia, por
outro lado, politicamente, apenas por um período, as nações ainda se mantinham
separadas e com tensões e guerras. Lenin estava atento ao significado dessa teoria para
as perspectivas do movimento socialdemocrata. Se o imperialismo tendia a um
superimperialismo econômico que unificaria todas as nações do globo, os
revolucionário deveriam esperar esse momento de hostilidades, confiar no papel
progressista do capitalismo e aguardar, para um futuro próximo, que o capitalismo
internacionalizado cessaria as diferenças políticas, e depois daria lugar ao socialismo.
Lenin denunciou essa teoria, demonstrou seu papel perverso que imobilizava toda a
social-democracia, justificava a posição em favor dos governos belicistas, mantinha
uma visão otimista em relação ao imperialismo e tornava a revolução desnecessária e,
portanto, não convocava a sua organização e defesa.
Lenin inovou ao explicar a Guerra que opunha as nações europeias pela lógica
interna do próprio capitalismo. Diferente do que os liberais apresentavam, o capitalismo
não gerava progresso e paz, mas era o responsável pela guerra, pela destruição e abria,
através de seu colapso, uma nova era para a história mundial, a Era das Revoluções
Proletárias. A tendência ao monopólio não levava a um domínio estável politicamente,
mas era a origem da formação de dois polos que se digladiavam pelo controle das fontes
de matérias-primas e mercados.
O texto primeiro estabelece o monopólio como consequência natural do
desenvolvimento do capitalismo de livre mercado, para depois marcar o vínculo natural
entre interesses da classe dirigente capitalista e os interesses dos Estados sede do
imperialismo pela partilha do mundo:
124
Utilizamos as citações de uma versão digital em português, digitalizada de: LENIN, V.I. Obras
Escolhidas. Lisboa: Progresso, 1984. t. 2. Disponível em:
<http://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/index.htm>. Acesso em: 27 mar 2014
78
socialismo, colocando o imperialismo não como um fator de desenvolvimento, mas
como fator de violência, atraso e guerra. A explicação leninista para o caráter
reacionário do imperialismo será desenvolvido mais adiante.
A posição bolchevique e a de outros revolucionários contrários à Guerra
começou a encontrar mais espaço quando a carnificina aumentou e a crise se espandiu.
Em 1916, o cansaço pela guerra transformava-se em hostilidade. Os adversários da
Guerra, antes isolados, em 1916 sentiam que falavam pela maioria. (HOBSBAMW,
1994, p. 63).
Mas a ruptura leninista com a 2ª Internacional ainda precisava avançar em mais
um aspecto para transformar o socialismo reformista em uma doutrina revolucionária
capaz de tomar o poder político e construir uma alternativa real à democracia liberal.
Esse avanço apareceu próximo à revolução de outubro de 1917, primeiro com as Teses
de Abril, em que Lenin percebeu uma oportunidade ímpar para a Revolução, depois
com a palavra de ordem, Todo Poder aos Sovietes!, em que direcionou o esforço
partidário para uma alternativa real de poder, com todas as características que os
socialistas revolucionários imaginavam para a democracia operária, conselhos
diretamente eleitos pelos operários e soldados. A definição leninista para o problema do
Estado seria finalmente sistematizada em um pequeno livro publicado poucos meses
antes da tomada do poder pelos bolcheviques.
A Refundação Leninista
125
LENIN, 1973, p. 3-46, t. 7.
126
Zizek, ao iniciar o prefácio de um livros com diversos textos de Lenin, imediatamente anteriores à
Revolução Russa de Outubro de 1917, é obrigado a justificar essa escolha, já que nos últimos anos os
textos de Lenin foram abandonados pelos estudos sociais na maior parte das universidades do mundo. “A
primeira reação pública à ideia de reatualizar Lenin é, obviamente, uma risada sarcástica. Marx, tudo bem
– hoje em dia, até mesmo em Wall Street há gente que ainda o admira: o Marx poeta das mercadorias, que
fez descrições perfeitas da dinâmica capitalista; o Marx dos estudos culturais, que retratou a alienação e a
reificação de nossas vidas cotidianas. Mas Lenin – não, você não pode estar falando sério! Lenin não é
aquele que representa justamente o fracasso na colocação em pratica do marxismo? [...] O problema desse
argumento aparentemente convincente e que ele endossa de maneira simplista a imagem herdada de Lenin
como o sábio líder revolucionário que, após formular as coordenadas básicas de seu pensamento e prática
em O que fazer?, simplesmente as aplicou, de modo implacável, a partir de então. Mas, e se houvesse
outra história a ser contada sobre Lenin? É verdade que a esquerda de hoje esta passando pela experiência
79
introdução para seguirmos a repercussão da Revolução Russa no movimento radical da
América Latina, e mais especialmente do Brasil, que nos deteremos de forma mais
concentrada nas próximas páginas, e que, a nosso ver, ilustra o impacto, o significado e
o potencial ideológico do leninismo logo após a Primeira Guerra na América Latina.
Em julho de 1917, Lenin escreveu uma carta a Kamenev, na qual solicitava o
envio de seu caderno de notas em que havia separado citações de Marx e Engels e
também de Kautsky e do social-democrata holandês Pannekoek, acerca de como o
marxismo tratava o Estado127. Esse era o material inicial com o qual Lenin escreveu O
Estado e a Revolução. Se pudéssemos determinar um ponto decisivo para que os
bolcheviques conseguissem transformar a rebelião popular em um projeto alternativo de
poder, o ponto mais importante de inflexão está sistematizado nesse texto. Como disse
Zizek (2012, p. 22): “Se algum dia uma caneta serviu como arma, esta foi a caneta com
que Lenin escreveu seus textos de 1917”.
devastadora do fim de toda uma era para o movimento progressista, uma experiência que a obriga a
reinventar as coordenadas básicas de seu projeto. Contudo, foi uma experiência exatamente homóloga que
deu origem ao leninismo”. In: ZIZEK, 2012, p. 13.
127
Esse caderno foi publicado em espanhol: LENIN, V.I. El Marxismo y el Estado – Materiales
preparatórios para el libro El Estado y la Revolución, Moscou: Progreso, s.d.
128
Fonte: ROCHFORT, 1993, p.193
80
revolução, mas pouco conseguiam formular além da destruição do Estado e da
Autoridade (segundo a linguagem comumente utilizada pelos anarquistas da época). A
prometida Revolução Social carecia de respostas para a construção da sociedade
anarquista ou comunista (alguns anarquistas utilizavam o termo comunismo de modo
muito similar à anarquia, a sociedade sem classes e sem Estado que surgiria no futuro).
Lenin, em 1917, encontrava-se entre duas correntes que pouco tinham a oferecer
para a Revolução que se desenvolvia na Rússia. Haviam elaborado a crítica à sociedade
capitalista, mas possuíam pouco para a pós-revolução129.
Com o Estado russo desabando e os conselhos operários, as organizações que
ficaram conhecidas no mundo inteiro pelo seu nome em russo, os sovietes, em ascensão,
Lenin percebeu que, para alcançar o projeto revolucionário marxista, necessitava
aprofundar-se no problema teórico do Estado.
Seguindo a mesma metodologia do livro Imperialismo, fase superior do
capitalismo, Lenin didaticamente começa caracterizando o Estado, reafirmando a
posição de Marx e Engels do Manifesto Comunista, ou seja, contrapondo-se à ideia
liberal de Estado neutro, e reafirmando o Estado como comitê gestor dos interesses das
classes dominantes. Sequer se preocupa em argumentar contra a concepção burguesa do
Estado. Seu alvo foi o debate no interior do próprio movimento socialista e
socialdemocrata, e suas palavras foram no sentido de desmascarar a posição reformista
como sendo a mesma do liberalismo burguês, e contrarrevolucionária, por
consequência.
Ficando claro que o Estado é o comitê gestor das classes dominantes, que,
segundo Marx, o Estado só existe para assegurar os interesses das classes dominantes
contra os dominados, o Estado não é geral, não é democrático e não está acima da luta
129
Sobre a posição dos anarquistas acerca da questão do Estado, Lenin disse: “Se dermos agora uma
olhada num período histórico completamente encerrado, que vai da Comuna de Paris à primeira
República Socialista Soviética, veremos delinear-se com relevo absolutamente definido e indiscutível a
posição do marxismo diante do anarquismo. Afinal de contas, o marxismo demonstrou ter razão. E se os
anarquistas assinalavam com justeza o caráter oportunista das concepções sobre o Estado que imperavam
na maioria dos partidos socialistas, é preciso observar, em primeiro lugar, que esse caráter oportunista
provinha de uma deformação e até mesmo de uma ocultação consciente das ideias de Marx a respeito do
Estado (em meu livro O Estado e a Revolução registrei que Bebel manteve no fundo de uma gaveta
durante 36 anos, de 1875 a 1911, a carta em que Engels denunciava com singular realce, vigor, franqueza
e clareza o oportunismo das concepções social-democratas em voga sobre o Estado); e, em segundo lugar,
que a retificação dessas ideias oportunistas e o reconhecimento do Poder Soviético e de sua superioridade
sobre a democracia parlamentar burguesa partiram com maior amplitude e rapidez precisamente das
tendências mais marxistas existentes no seio dos partidos socialistas da Europa e da América”. In:
LENIN, V.I “La enfermedad infantil del ‘esquerdismo’ en el comunismo.” in _____. Obras Escojidas. t.
11, Moscou: Progreso, 1973, p.3-43.
81
de classes; é apenas a expressão dessa luta e se posiciona pelo interesse de uma classe.
Assim, o Estado no capitalismo está a serviço da burguesia, é um Estado
burguês, e sua forma demoliberal não atende aos interesses de todas as classes que
disputam o seu controle. É um regime que melhor representa e legitima a dominação
burguesa sobre toda a sociedade.
130
“Marx sublinha expressamente – para que se não venha desnaturar o verdadeiro sentido da sua luta
contra o anarquismo – a ‘forma revolucionária e passageira do Estado necessário ao proletariado. O
proletariado não tem necessidade do Estado senão durante algum tempo. Não estamos de forma alguma
em desacordo com os anarquistas quanto à abolição do Estado como fim. Nós afirmamos que, para atingir
este fim, é necessário utilizar provisoriamente os instrumentos, os meios e os processos do poder de
Estado contra os exploradores, da mesma forma que, para suprimir as classes, é indispensável estabelecer
a ditadura provisória da classe oprimida. Marx escolheu a maneira mais incisiva e mais nítida de colocar a
83
sob a burguesia, a fim de destruir o poder econômico da burguesia, pois, destruindo a
burguesia, o proletariado destruía a si como classe.
A etapa de transição socialista, antes da sociedade comunista, seria da ditadura
do proletariado, o período em que o proletariado se apoiaria em uma estrutura estatal
(burocrático e militar) como instrumento de destruição do mundo burguês e da
sociedade de classes.
Os socialistas advogavam pela extinção do Estado, como um processo em que
todo o aparato opressor sumia por falta de utilidade logo após o fim das classes sociais
durante a fase de transição ao comunismo, a etapa socialista.
A forma desse Estado socialista, dessa etapa de ditadura do proletariado antes
da sociedade sem classes e sem Estado, Lenin encontrou nos conselhos operários, os
sovietes. Essa forma de organização da democracia operária aparecera como solução
política para a formação da República Socialista, a república dos Sovietes Socialistas.
As ideias de Lenin e a alternativa que os bolcheviques acabavam de criar
entusiasmou todo o movimento socialista e anarquista revolucionário, e inspiraria
tentativas de tomada do poder para a implementação do Sistema Soviético em diversos
países europeus, como a Alemanha, Hungria, além de se popularizar nos mais diversos
meios anarquistas e socialistas os termos da língua russa, como: sovietes, bolcheviques,
além dos nomes de Lenin, Gorki, Trotsky; e, mais tarde, Zinoviev, Bukarin e Stalin.
Essa experiência de poder soviético chegaria à América Latina por diversos
caminhos e de forma bastante confusa, mas com significativa importância política.
questão contra os anarquistas: devem os operários, depois de derrubar o jugo dos capitalistas, “depor as
armas” ou utilizá-las contra os capitalistas a fim de quebrar a sua resistência? Ora, se uma classe usa
sistematicamente as suas armas contra outra classe, que é isso senão uma ‘forma passageira’ de Estado?”.
In: LENIN, 1973, t. 11.
84
décadas do século XIX e primeiras do século XX trouxe mudanças econômicas no
interior rural latino-americano e possibilitou, no caso brasileiro, a partir da expansão da
cultura cafeeira e relativa disponibilização de capitais, a formação das primeiras
indústrias. (CHILCOTE, 1982, p. 43).
Influenciados pelo liberalismo da época, acreditava-se que os trabalhadores
europeus eram mais aptos que os nativos para o trabalho na indústria, e a imigração da
Europa para o Brasil foi estimulada, inicialmente, para suprir a necessidade de mão de
obra nas lavouras de café, e depois para as fábricas (DULLES, 1977, p. 17).
A principal origem desses imigrantes foi de países latinos, como Espanha,
Portugal e, principalmente, da Itália. Em 1900, cerca de 90% da força de trabalho
industrial de São Paulo era formada por estrangeiros. (DULLES, 1977, p. 20). Seria
através desses imigrantes que os ideais socialistas e, sobretudo, anarquistas fluiriam
para dentro do Brasil e inspirariam a combatividade dos militantes que fundariam os
primeiros sindicatos, jornais proletários e organizariam as primeiras greves. Em sua
maioria anarquistas, denominavam a si próprios como revolucionários. Everardo Dias,
militante anarquista dessa primeira fase, descreve bem esses precursores da crítica
radical e militante entre os operários brasileiros.
131
Tratamos o posicionamento de Aricó acerca dessa questão no subcapítulo: “A Hipótese de Aricó”.
86
(1988, p. 19):
132
A biografia de Oreste Ristori foi pesquisada por Carlo Romani. O resultado pode ser lido em:
ROMANI, Carlo. A Aventura do Anarquismo segundo Oreste Ristori. Revista de Brasileira de História, v.
17, n. 33, p.130-166, 1997 e ROMANI, Carlo. Oreste Ristori – Uma Aventura Anarquista. São Paulo:
Annablume, 2012.
87
Figura 7 - Capa do Jornal O Cosmopolita tratando os mártires de Chicago.133
133
O sindicato de empregados em Hoteis e Restaurantes do Rio de Janeiro convocando a comemoração
do Primeiro de Maio, relembrando os mártires de Chicago. Fonte: O Cosmopolita, Órgão dos empregados
em Hoteis, Restaurantes, Cafés, Bares e Conjeneres, Rio de Janeiro: 1 de maio de 1918.
88
Outros militantes anarquistas que se destacaram na última década do século XIX
e na primeira do século XX foram Florentino de Carvalho (1889-1947), Neno Vasco
(1878-1923), Everardo Dias (1883-1966), Manuel Moscoso (-1912), Edgard Leuenroth
(1881-1968) e José Mota Assunção. Esses pioneiros organizaram-se em torno dos
periódicos, na maioria das vezes com dificuldades para manterem-se, enfrentando a
repressão, o que, em diversos momentos, impossibilitava a continuidade. Mas, entre os
inúmeros periódicos editados nesse tempo, alguns conseguiram persistir, tornaram-se
núcleos de debate e divulgação dos ideais anarquistas, como La Bataglia; Amigo do
Povo, dirigido por Neno Vasco; Terra Livre, publicado por 5 anos; Avati; A Laterna; O
Trabalhador e outros.
Esses periódicos não tratavam de notícias do dia a dia e eram na maioria
voltados para as denúncias das mazelas da ordem social urbana vigente, contra o Estado
ou a Autoridade (conforme terminologia da época), e para a propaganda dos ideais
anarquistas, sem que significasse uma corrente única do movimento. Entre os autores,
estava Kropotkin, muito lido entre os militantes anarquistas134 latino-americanos.
Edgar Carone (1989, p. 27) afirma, citando inúmeros dados, que o nascente
movimento operário é de origem nacional e mantém-se com maioria numérica
brasileira, mas também fica claro que os imigrantes têm papel central na formação dos
primeiros núcleos de resistência e é através deles que o anarquismo e o socialismo
chegam em espanhol francês e italiano.
O internacionalismo está entre as características predominantes da parte mais
ativa do movimento operário, que contribuiu para que os anarquistas no Brasil se
colocassem firmemente contra a Guerra e recebessem com muito entusiasmo as notícias
da Revolução Russa. Mas também esse componente internacionalista afastou do debate
socialista, e, principalmente, anarquista as revoltas camponesas que ocorreram no Brasil
entre 1890 e 1920, particularmente as de Canudos e a Guerra do Contestado.
Não existiu qualquer conexão entre os líderes que empunharam armas contra o
Estado Brasileiro em Canudos e na divisa de Santa Catarina com o Paraná, e os
revolucionários do movimento operário.
134
Florentino afirma que foi o livro Em Defesa do Pão, de Kropotkin, o texto fundamental para a sua
conversão ao anarquismo. Esse livro teve importância para muitos anarquistas dessa geração e foi uma
das principais fontes de combatividade para esse estágio inicial do movimento anarquista, e parece ter
sido bastante difundido na América Latina, já que Ricardo Flores Magón e Astrojildo Pereira o citam
como o primeiro livro anarquista a que haviam tido acesso.
89
Ao revisar os jornais disponíveis nos centros de memória operária do Brasil,
além da bibliografia, não encontramos qualquer referência significativa às revoltas
camponesas.
Fabio da Silva (SOUZA, 2012) analisou a repercussão da Revolução Mexicana
na imprensa operária brasileira, entre os anos de 1911-1918, e, entre os diversos dados
que a pesquisa acrescenta, cabe ressaltar que, acima de tudo, o movimento anarquista
brasileiro viu, na revolta camponesa, uma espécie de revolta anarquista. Souza nos
apresenta um quadro complexo de interpretações e artigos, que reforça determinados
aspectos característicos desse movimento operário brasileiro. Destaca-se,
particularmente, o internacionalismo militante, que se expressava em campanhas de
arrecadação de fundos em solidariedade, como no acompanhamento pormenorizado dos
acontecimentos do México135.
Como vimos anteriormente, no México e no Peru as rebeliões camponesas e
indígenas se encontraram com os ideais anarquistas, e são esses ideais que conseguem
levar os movimentos camponeses a uma dimensão maior, ampliando a combatividade e
inspirando a desconfiança contra o Estado e os políticos tradicionais, fornecendo
legitimidade política e ideológica para que a luta prossiga de forma independente
radical, como foi o caso dos zapatistas em Morelos.
No Peru, os anarquistas contribuem para apontar o problema da distribuição e da
concentração da terra como sendo o inimigo geral dos camponeses e indígenas, e,
principalmente, ampliando e unificando as rebeliões – antes regionalizadas e restritas –
em organizações com perspectivas nacionais.
No Brasil, as rebeliões camponesas ocorreram paralelas às greves e ao
movimento operário e não encontramos relações diretas entre ambos. Podemos,
indiretamente, encontrar um vínculo entre movimentos urbanos de emancipação social e
Canudos através de Euclides da Cunha.
Inicialmente, vendo o movimento de Antônio Conselheiro como regressivo,
monarquista, conforme as notícias que se ventilavam na imprensa, o escritor chega a
Canudos e acompanha a Guerra como um jornalista do Estado de São Paulo, ao lado das
tropas do governo. Ao longo das batalhas, sua simpatia inclinou-se em direção aos
135
Souza (2012, p. 79-83) nos apresenta diversas notícias publicadas em jornais como A Guerra Social e
A Lanterna, em que se denuncia a prisão de Ricardo Flores Magón e Librado Rivera, o fechamento de
Regeneración em Los Angeles, bem como se organiza, através de um Comitê Pró-Revolucionários
Mexicanos, a arrecadação de fundos para ser enviado aos companheiros do México.
90
rebeldes e o resultado foi o clássico da literatura brasileira, Os Sertões.
Mais tarde, Euclides faria parte do grupo socialista Emancipação do Trabalho. E
escreveria um artigo em que se referiria a Marx e Engels136, mas sem que nenhum
desses teóricos, e nem mesmo os autores anarquistas, influenciassem interpretações
críticas da realidade brasileira de modo que pudéssemos afirmar que Euclides elaborou
uma interpretação marxista do Brasil. Podemos extrair, da própria obra Os Sertões,
diversos conceitos evolucionistas e até rascistas que foram comuns a uma sociologia
europeia ou mesmo de correntes progressivistas do socialismo do final do século XIX,
mas nada comparado às análises da sociedade mexicana e peruana que Ricardo Flores
Magón e González Prada produziram.
A partir de 1906, após um congresso que pretendeu unificar o movimento
operário brasileiro, nasceu a Confederação Operária Brasileira (COB), em 1908. Essa
organização possibilitou maior integração dos núcleos radicais do movimento operário,
maior propagação de obras e ideais anarquistas, que alimentariam um ciclo de greves
entre os anos de 1908 e 1920.
Apartados da maioria da população brasileira, restritos aos centros urbanos e
com muitos imigrantes, o movimento operário mais ativo esteve até 1922 sob influência
anarquista, tendo sido profundamente internacionalista e muito pouco preocupado com
a situação nacional. Entre os temas que aparecem nos jornais operários, estavam
denúncias sobre as condições de trabalho nas fábricas, exaltação da independência,
136
Sem que adentremos por demais na relação entre Euclides da Cunha e Marx, segue um trecho do
artigo de Denilton Azevedo de Morais. “O jornalista e escritor Euclides da Cunha (1866 – 1909), realizou
também alguns comentários importantes acerca das ideias de Marx. O autor de Os Sertões soube, como
poucos, diferenciar o pensamento de Marx dos demais socialistas. O escritor estava atento para as
‘supostas fragilidades’ dos pensadores socialistas, a esse respeito argumentou: ‘estupendas utopias de
Sant-Simon’, ‘alienações de Proudhon’, ‘tentativas bizarras de Fourier’, ‘soçobro completo da política de
Louis Blanc’. De acordo com Euclides, foi com Marx, ‘com este inflexível adversário de Proudhon que o
socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva” (CUNHA, apud
CHACON, 1981, p. 177). E cita diversos trechos de Euclides da Cunha, retirados do livro de Chacon
(1981, p. 177-178): “A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a
terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma
conclusão irredutível: a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito
dedutivo: o capital é uma espoliação. [...] A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o
trabalhador num nível inferior ao da máquina. [...] põe-se de manifesto o traço injusto da organização
econômica do nosso tempo. [...] Não se pode negar a segurança do raciocínio. [...] Revolução:
transformação. Para a conseguir, basta-lhe erguer a consciência do proletário. [...] Porque a Revolução
não é um meio, é um fim; embora às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. [...] Porque o seu triunfo é
inevitável. [...] Garantem-no as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranquilo das ciências e
das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do
espírito e do coração” (CUNHA, s.d. apud AZEVEDO, 2013, p. 203) Cf.: AZEVEDO, Denilton Novais.
A fase inicial de difusão das ideias de Marx no Brasil. Revista de Teoria da História, Universidade
Federal de Goias, Goiânia, ano 5, n. 9, jul. 2013
91
textos de famosos anarquistas europeus que denunciavam a exploração patronal, a
burguesia e o clero. Como contraponto, uma alternativa geral, apresentavam a
“Revolução Social”.
Em nada, praticamente, diferenciavam-se das organizações europeias em termos
de análise da realidade brasileira. Para os anarquistas brasileiros, avessos à política,
vendo o meio rural como um resquício ainda mais forte do atraso, a luta estava limitada
à classe operária e aos trabalhadores urbanos.
Mas se por um lado o movimento operário brasileiro mais ativo esteve distante
dos problemas camponeses e pouco preocupado em interpretar aquela realidade, não
desenvolvendo nenhuma análise acerca das “particularidades brasileiras”137, por outro
lado, o nascente movimento operário, dentre seus congêneres latino-americanos,
especialmente no Peru e no México, foi o que mais entusiasticamente recebeu as
notícias da Revolução Russa de outubro de 1917.
Após o 1º ciclo de greves e certa dispersão do movimento, a COB é reativada em
1912. Em 1913, é organizado um congresso operário. Surgiu uma nova geração 138 de
ativistas, expandiu-se o número de sindicatos e greves. Os debates amadureceram e a
COB passou a editar um periódico, A Voz do Trabalhador. Os revolucionários dessa
nova geração chegariam a enviar militantes para regiões onde a propaganda
revolucionária e a organização sindical era praticamente inexistente, como foi o caso de
Everardo Dias, enviado para Recife, sua cidade natal, a fim de organizar o movimento
na região. Futuros comunistas saíram desse esforço de construção do movimento
operário, como foi o caso de Octávio Brandão, futuro dirigente e teórico do PCB,
cooptado para o anarquismo a partir do trabalho de propaganda e organização do núcleo
fundado por Everardo Dias139, que acabou chegando até Alagoas.
O antimilitarismo desenvolveu-se como parte essencial da ideologia anarquista
137
Everardo Dias em suas memórias descreve as perspectivas dos operários estrangeiros no Brasil:
“Também não seria com gente [Dias se refere aos imigrantes] assim, com uma massa cujo pensamento
estava voltado para suas terras de origem, com ideias arraigadas de nacionalismo, às vezes até
exacerbado, deprimindo o próprio país e sua gente, onde vinha viver e ganhar a vida, apontando como
estigma as doenças tropicais, as pragas, os insetos, a insegurança pessoal; exprimindo-se mal e olhando
com desprezo para os habitantes, considerados tipos inferiores (negros, mulatos, caboclos), vadios,
indolentes, dados à embriaguez, malvestidos, mal-alimentados, sem moral, enfim”. In: DIAS, 1977, p. 39-
40.
138
Dentre as figuras mais significativas dessa geração, estão: João da Costa Pimenta, Domingos Passos,
Câncio de Souza, Manoel Campos, Astrojildo Pereira, José Oiticica, Edgard Leuenroth, Florentino de
Carvalho, Everardo Dias, Fábio Luz, Adelino de Pinho, entre outros. In: BRANDÃO, 1978, p. 170.
139
Everardo Dias foi preso em 1919, conduzido absolutamente nu a uma prisão em Santos, deixado três
dias em uma cela molhada, sem roupas, sem comida e sem água. Após esse período, recebeu 25
chibatadas e foi deportado. Cf.: BRANDÃO, 1978, p. 225.
92
no Brasil, e, em 1908, devido a uma série de provocações que afirmavam a iminência de
um conflito entre Brasil e Argentina, publica-se o folheto Não Matarás!, órgão da Liga
Antimilitarista Brasileira140.
Quando estoura a Primeira Guerra na Europa, os militantes mais ativos da COB
já se posicionavam resolutamente contra a guerra.
140
O Arquivo do CEDEM dispõe de um único número deste jornal Não Matarás!, Rio de Janeiro, ano I,
n.3, dez. 1908.
93
A Revolução Russa chegou a toda a América Latina através das agências de
notícias de países envolvidos na Guerra. E os maximalistas, como seriam chamados os
revolucionários russos nos países latinos, seriam tratados como agentes da espionagem
alemã, como bandidos arruaceiros, e algumas vezes como sonhadores utópicos e
infantis.
Até a Revista Fon-Fon, que nada tinha a ver com o movimento operário,
estamparia algumas charges, entre os anos de 1917-18, que ilustram bem sob quais
perspectivas a Revolução Russa foi recebida pela aristocracia cultural desses anos.
94
O Brasil acabava de declarar guerra à Alemanha quando começaram a surgir as
notícias sobre os maximalistas russos141. (DULLES, 1977, p. 62). As notícias
descreviam a derrota de Lenin e dos maximalistas, informava que os cossacos estavam
prestes a invadir São Petersburgo, que Kerenski, Kornilov e outros estavam liquidando
os partidários de Lenin, e, principalmente, que Lenin era um “perigoso agente alemão”.
O jornal diário de Vicente Piragipe, A Época, fazia alarde contra qualquer
“espionagem alemã”, delatava qualquer oposição com acusações de traição e
germanismo e, nessa linha, qualquer intenção de saída dos russos da guerra era obra de
agentes alemães. Kerenski era tratado como um herói 142.
Figura 9 – Charge de Fon-Fon em que um “maximalista” russo está sendo manipulado
por um mascarado em Brest-Litovski
141
Em todos os países latinos, a palavra “maximalista” foi usada, tanto pela imprensa comercial quanto
pela imprensa operária. Provavelmente, tem origem em uma tradução francesa do próprio movimento
operário, e se refere à contraposição, programa máximo (ou revolucionário) e mínimo (reformas e
conquistas parciais). Essa terminologia foi comum nos debates do movimento operário do início do
século, e podemos encontrar com facilidade essa divisão em diversos autores. Ao traduzir, entendeu-se
que bolchevique (maioria em russo) referia-se ao caráter revolucionário do programa, e por isso se
assimou esse termo com tanta facilidade. A partir de 1921-22, o termo maximalista vai desaparecer e a
palavra comunista passará a prevalecer.
142
No dia 12 de novembro de 1917, o jornal A Época noticiava: “OS ANARCHISTAS DE
PRETROGRADO A BRAÇOS COM OS COSSACOS – KERENSKI, NO QURTEÍ. GENERAL –
Noticias recebidas de Petrogrodo dizem que na noite de 10 do corrente, o sr. Kerenski conseguiu fugir da
capital numa ambulância automóvel e chegou são e salvo ao quartel general. ¦ Actnnutnente, o chefe do
governo provisório dispõe dc duzentos mil homens dedicados [...] que conseguiu escapar da censura
leninista, anuncia que os cossacos, com o auxílio dos minimalistas, estão prestes a dominar os
bolcheviques, com os quais tem travado batalha nas ruas da capital. [...] TROPAS QUE MARCHAM
SOBRE PETROGRADO) E TROPAS F1EIS AO GOVERNO PROVISÓRIO [...] o sr. Kerenski chegou
quarta-feira a sudoeste da capital. As guarnições das duas cidades declaram-se fieis ao governo
provisório. A divisão côssaca da Finlândia marcha sobre Petrogrado, afim de dar combate aos
revolucionários, a própria guarnição da capital, que a principio favorece, os maximalistas, começa estar
hesitante”.
95
Fonte: Fon-Fon, ano XII, n. 3, Rio de Janeiro: fev 1918.
144
Esse texto está reproduzido integralmente ao final desta tese, na parte dos anexos.
145
O Combate, Rio de Janeiro: 27 set. 1917.
97
significado social. O seu comentarista, Alexandre de Albuquerque, no
artigo a que deu o nome de “Salada Russa”, limitou-se a profetizar
que a História ignoraria Lênin e exaltaria Kerenski. (MONIZ
BANDEIRA, 1967, p. 105).
E, para comprovar que essa acusação era falsa, utilizou o argumento de que:
98
mesmo homem de caráter indomável e intransigente146.
Como pode, pois, entrar nos cascos de alguém que um homem destes,
precisamente quando vê seus caros ideais em marcha, a concretizar-se,
numa soberba flor ação de energia vital, vá vender-se a um governo
estrangeiro? Lenin, se quisesse vender-se algum dia, bastava esboçar o
mais leve sinal e o governo de São Petersburgo rechear-lhe-ia os
bolsos fartamente, vencendo pelo dinheiro o inimigo implacável. Não
precisava esperar, através de anos inteiros de perseguições e
sofrimentos que a revolução social dos seus sonhos se iniciasse para
entregar-se ao marco prussiano, como um vulgaríssimo trampolineiro,
como um jornalista qualquer, destes que abundam na imprensa desta
terra. (PEREIRA, 1918, s.p.).
146
No original, Astrojildo coloca a seguinte nota: A Luta, jornal burguês de Lisboa, estampou os seguintes
dados biográficos sobre Lênin: “A autocracia, talvez, por instinto, descobriu um inimigo terrível’ na
pessoa de Lênin, quando ele não contava mais de 17 anos de idade. Expulsou-o em 1867 (?) da
Universidade de Kazan, com privação do direito de admissão em qualquer outra universidade pelo motivo
de seu irmão ter sido executado como criminoso político. Lênin – cujo verdadeiro nome é Ulianov –
consagrou-se muito cedo ao estudo do desenvolvimento econômico da Rússia, e muito jovem ainda,
tornou-se um perigoso discípulo de Karl Marx. Escreveu muitos folhetos e livros; mas a sua principal
obra é um grosso volume intitulado A Evolução do Capitalismo na Rússia, editado em 1881 com o
pseudônimo de V. Iline, trabalho sobretudo acadêmico, cheio de números, todo ele apoiado em
estatísticas. Mas a atividade de Lenin não se limitou à de economista sábio, e, atraído pelo movimento
revolucionário, condenam-no a 4 anos de deportação na Sibéria. De regresso destas paragens, passou ao
estrangeiro e fêz-se chefe ativo da Social-democracia russa (Transcrito pelo Cosmopolita, 15 jan.).
147
Astrojildo Pereira cita Kropotkin para explicar a Revolução Russa. Ver anexos.
99
nas mãos da plebe, tomando uma orientação verdadeiramente popular
e libertária, – antiguerrista, antiburguesa, antiautoritária. Nada mais
lógico, nem mais justo, pois, que se declarem anulados todos os
convênios e tratados anteriormente concluídos entre os governantes da
Rússia e os governantes de outras nações. (PEREIRA, 1918, s./p.).
148
“Nicolai Lenine, o líder russo, e nesses momentos, a figura revolucionária que mais brilha no caos das
condições existentes em todo o mundo, porque se encontra à frente de um momento que tem que
provocar, querendo ou não os vaidosos, [o fim] do atual sistema de exploração e de crime, a grande
Revolução Mundial que já está chamando às portas de todos os povos; a grende Revolução Mundial que
opera transformações importantes no modo de conviver dos seres humanos”. In: REGENERACIÓN, Los
Angeles, Época IV, n. 262, 16 mar. 1918.
149
Carta de Emiliano Zapata ao General Genaro Amescua, Tlaltizapán, Morelos, em 14 de fevereiro de
101
1
O Partido Comunista do México é fundado no mesmo ano em que a
Internacional Comunista é fundada em Moscou. O primeiro Congresso da Internacional
Comunista não contou com nenhum delegado latino-americano, mas a repercussão que
alcançou no México foi imediata, embora bastante confusa e diversa. Como no Brasil, a
Revolução Russa chegava ao Peru e ao México através das mesmas agências de notícia
com sede nos países que compunham a Entente na Guerra Mundial.
Foram os anarquistas os primeiros a captar de forma crítica as confusas
informações e tentar aos poucos montar o quebra-cabeça que respondesse o que
realmente queria Lenin e o que eram os bolcheviques, “maximalistas”, e como
funcionavam os sovietes.
1918.
102
2º Capítulo – Os comunistas latino-americanos descobrem as classes não-
proletárias
103
O leninismo para a periferia.
O marxismo surgiu como uma proposta universal, mas na prática o próprio Marx
tratou mais da Europa, o centro do capitalismo, que da realidade colonial ou periférica
aos países da Europa Ocidental e dos EUA. Já fizemos um breve histórico do problema
colonial e nacional para Marx no primeiro capítulo e não pretendemos repeti-lo. Mas é
necessário retomarmos a questão colonial e nacional sob o ponto de vista da prática
politica dos comunistas que viviam na periferia do capitalismo, como era o caso da
América Latina. Marx, embora tenha tratado de diversas realidades fora da Europa,
pouco teve de se preocupar com a prática política dos revolucionários nas colônias, com
exceção para o caso da Irlanda, já narrado. Os marxistas da 2ª Internacional também
viram as revoluções no mundo extraeuropeu como uma consequência das
transformações pelas quais lutavam na Europa Ocidental. As transformações socialistas
nos países europeus seriam depois refletidas para a realidade colonial.
Quando os revolucionários bolcheviques chegaram ao poder em 1917, a
Revolução na atrasada Rússia colocava uma série de questionamentos acerca de como
se imaginou a transformação socialista. Como o socialismo era fruto do
amadurecimento do próprio capitalismo, seria natural que a Revolução Mundial
começasse pelos países mais desenvolvidos, inclusive onde a classe operária estava
mais organizada, a Alemanha. Quando é fundada a Internacional Comunista, a
expectativa era de que a Revolução na Alemanha seria iminente, e a própria Revolução
Russa era apenas uma antessala da revolução alemã.
Essa perspectiva seria gradativamente transformada, e os comunistas buscariam
explicar a partir do marxismo, ao longo dos anos seguintes, os motivos que levaram à
vitória da Revolução proletária em um país rural. A Revolução Proletária foi vitoriosa
em um dos países demograficamente menos proletários e mais camponeses da Europa.
O problema colonial seguia essa mesma lógica. Por não possuir proletariado e
ser predominantemente rural, as colônias e os países periféricos possuíam um
protagonismo secundário, e sua realidade se transformaria em função dos movimentos
revolucionários que ocorreriam no centro do capitalismo.
Demoraria alguns anos até que os países da periferia começassem a aparecer de
forma central no programa dos comunistas, e foi depois das formulações, as quais vão
surgindo a partir do 2º Congresso da Internacional Comunista, em 1920, que se
104
construiu ao longo da década de 1920 um modelo de análise e prática política para os
países coloniais e semicoloniais, como seriam denominados os países periféricos. Esse
modelo, que será desenvolvido durante a revolução chinesa e experimentado ao longo
da década de 1920, deve ser encarado como guia inicial para entendermos todo o debate
dos comunistas do Brasil, do Peru e do México nesse período.
O Primeiro Congresso da Internacional Comunista careceu de uma tradicional
representatividade formal. Sua importância não pode ser medida em um quórum
mínimo representativo dos partidos marxistas revolucionários, mas em estar sendo
fundada a partir da primeira revolução socialista vitoriosa. O Congresso fundador da
Internacional Comunista foi convocado em meio à Guerra Civil na Rússia; seus
delegados estavam compostos por revolucionários que já se encontravam no país
soviético, como foi o caso de John Reed, ou por outros que tiveram de atravessar
difíceis trajetos, em meio aos fronts que sobraram da guerra150.
O debate esteve centrado no problema que diferenciava comunistas, anarquistas
e social-democratas, a diferença entre democracia burguesa e ditadura do proletariado.
Mas, embora não tenha contado com um número significativo de partidos, a fundação
da Internacional Comunista ecoou em todo o movimento radical, e logo começaram a
surgir diversos pedidos de filiação de inúmeros partidos. Estar vinculado à Internacional
Comunista do país dos sovietes dava legitimidade às organizações que se formavam no
meio do movimento operário.
O II Congresso da Internacional precisou tratar não apenas de propagar a tese
acerca da ditadura do proletariado como forma do Estado socialista, primeira etapa para
a transição do capitalismo ao comunismo. Foi necessário criar critérios claros para a
filiação dos Partidos na nova Internacional os quais a diferenciassem da 2º Internacional
– que funcionava como uma espécie de federação – e impusesse uma centralização de
ação que impulsionasse a Revolução Proletária Mundial151. No II Congresso da IC,
ainda se mantinha uma esperança de que a Revolução Mundial pudesse, muito
brevemente, espalhar-se pelo mundo.
A derrota dos comunistas na Hungria já demonstrava que a Revolução Mundial
150
Iza Salles descreve em seu livro o trajeto difícil para se chegar à Rússia, particularmente em meio à
Guerra Civil. Ver: SALLES, Iza. Um Cadáver ao Sol. A história de um operário brasileiro que desafiou
Moscou e o PCB, Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. Há outros relatos em PORTOCARRERO, 1987, TAIBO
II, 2008 e RAVINES, 1981.
151
Cf.: LOS CUATRO congresos de la Internacional Comunista, Disponível em:
<http://grupgerminal.org/?q=system/files/cuatroprimerosICvolumen1.pdf>. Acesso em: 27 mar 2014.
105
poderia ser um processo bem mais longo. Seria no III Congresso, em 1921, que a
Internacional admitiria uma recomposição de forças da burguesia imperialista, impondo
certas mudanças táticas e alianças com outras forças políticas.
Essa mudança, a partir do III Congresso da IC, será determinante para a
elaboração da tática de alianças dos comunistas nos países coloniais e semicoloniais.
Além dos textos de Lenin, anteriores à fundação da IC 152, foram as Teses sobre o
Problema Nacional e Colonial153 que inauguraram o tratamento leninista dessa questão
para os Partidos Comunistas, e, embora seja claro que o processo formativo do modelo
que a IC utilizará para analisar a realidade dos países coloniais e semicoloniais tenha
sofrido de rupturas e lutas políticas que não fazem parte de um processo de
desenvolvimento linear, estabeleceremos uma cronologia do desenvolvimento deste
modelo leninista para o problema colonial até 1928, quando aconteceu o VI Congresso,
e o modelo de análise se tornou mais maduro e será aplicado para a análise dos PCs a
partir de conceitos mais claros.
As teses e os manifestos elaborados pelos congressos da IC foram publicados
nos idiomas oficiais da IC (russo, alemão, inglês, francês e chinês), e depois de 1926
contará com publicações diretas da IC em espanhol. Existe uma tendência bibliográfica
que explorou outras documentações, como cartas entre dirigentes, informes e relatórios
secretos que se tem encontrado recentemente nos arquivos de Moscou154, além de outras
fontes “não oficiais”, ou não publicadas pelos dirigentes das organizações comunistas
na época em que foram escritas.
Depois de uma longa temporada de estudos muito influenciados pela perspectiva
da historiografia liberal, motivada por um sentimento anticomunista, ou por um
revisionismo que partiu de pressupostos que compararam movimento comunista, com
fascismo155, é necessário resgatar a documentação mais básica, que deveria ser
obrigatória para o início de qualquer pesquisa, mas que tem sido muito pouco
152
Podemos encontrar na obra de Lenin diversos textos anteriores a 1920 em que são tratadas a questão
colonial e nacional. A síntese mais importante está na obra já tratada anteriormente, Imperialismo, fase
superior do capitalismo.
153
Ver anexos no final deste trabalho.
154
Trataremos essas fontes mais adiante.
155
Diversos autores ocidentais escreveram livros comparando fascismo com o comunismo. Não é
necessário citá-los aqui. Mas há importantes trabalhos que questionam esses pressupostos, em que se
destacam a obra de Losurdo (2011), Stalin – História crítica de uma lenda negra, além de um artigo de
Horácio Crespo. Para uma historiografia del comunismo: algunas observaciones de método. In:
CONCHEIRO, Elvira et al. (Coords.). El Comunismo: Otras miradas desde América Latina. México:
Unam, 2007.
106
consultada, e muitas vezes citada através de uma bibliografia secundária.
A historiografia liberal parte de uma visão que subestima os debates teóricos,
doutrinários e ideológicos do Movimento Comunista, pressupondo que as teses e
manifestos são apenas alegorias de uma luta pelo poder, geralmente pessoal entre
dirigentes e líderes comunistas156.
Nosso ponto de partida está em perspectiva contrária. Nossas investigações
demonstraram que o movimento comunista possui uma dinâmica diferente da maioria
dos movimentos políticos que se organizam dentro do Estado nos países capitalistas157,
onde interesses econômicos, “espaços de poder”, divisão de secretarias, ministérios e
verbas fazem parte de uma disputa política em que a parte doutrinária e as formulações
políticas representam muitas vezes apenas alegorias para a disputa de interesses
pessoais e de grupos.
Com o movimento comunista acontece uma dinâmica diferente, que alguns
autores acabaram muitas vezes associando a um “fanatismo”158, à ignorância, e até a
traumas de infância. Para muitos autores, a convicção e a decisão dos comunistas em se
aferrar a uma linha política-ideológica anti-liberal só pode ser explicada através de
conspirações de grupos em luta pelo poder; ou quando essa explicação é evidentemente
descartada, como no caso do pintor comunista David Alfaro Siqueiros, somente pode
ser explicada a partir de adjetivos como “fanatismo” e outros similares.
Nossa análise do movimento comunista pretende retomar o debate da década de
1970 e início dos anos 80, revisando com seriedade os manifestos e teses produzidas
pelos comunistas ao longo do período analisado, tratando-os como sínteses de parte
importante da luta política e ideológica que a prática revolucionária dos militantes
produziu.
Para compreendermos a formulação da IC para os países coloniais e
semicoloniais, iniciaremos pelo primeiro importante documento produzido pala IC, que
tenta colocar o mundo colonial na estratégia da Revolução Proletária Mundial. Esse
documento tem uma história interessante e se relaciona indiretamente à fundação do
157
Ver: DEVEZA, Felipe. O Conflito Sino-soviético (monografia), Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
158
A autora da biografia de Siqueiros, Irene Herner, por exemplo, trata a militância de Siqueiros,
particularmente sua adesão a corrente que reivindicou Stalin, como fanatismo. Naturalmente, nesse termo
está implícita uma ideia contrária à racionalidade, e próxima aos mitos religiosos. Ver: HENER, Irene.
Siqueiros, Del Paraíso a la Utopia. México: Secretaria de Cultura del DF, 2010.
107
Partido Comunista do México.
***
159
Detalhes do percurso de Roy, tanto em questões político-ideológicas como em suas aventuras por
vários países, podem ser encontrados em suas memórias (ROY, Manabendra Nath, M.N. Roy's Memoirs,
Bombay: Allied Publisher, 1964) ou no livro de Paco Ignácio (TAIBO II, 2008). Em relação às suas
memórias, Taibo II (2008) e Verdugo (1985) chamam a atenção para diversas inconsistências de datas,
além de uma possível ampliação de sua importância nos fatos narrados.
160
“O dominante no movimento operário da época era um sindicalismo anarquizante, antipolítico e
minoritário nos centros de trabalho, ainda que bastante unânime nos quadros militantes, nas organizações
de afinidade e nas redações dos periódicos operários.” (TAIBO II, 2008, p. 53).
108
primeiros anos, como José Allen, Viocente Ferrer Aldana, Jacinto Huitrón, entre
outros161.
Depois de uma semana de debates, foi elaborada uma declaração de princípios,
assinada por 22 delegados, em que se afirmava uma posição revolucionária, contra a
posição de Morones, sobre a “Ação Múltipla”. Decidiu-se que o objetivo da luta era a
posse e a direção comunista de todos os meios de produção, distribuição e troca.
(TAIBO II, 2008, p. 59).
Ao longo do ano, apareceria Borodin, um enviado da Internacional Comunista
ao México, a fim de apoiar a constituição de uma seção mexicana da IC, e levar
delegados para o II Congresso da IC, que se realizaria no ano seguinte.
Roy narra em suas memórias como foi o encontro de Borodin com o grupo do
Partido Socialista no Final de 1919.
161
Para conhecer melhor o período inicial do PCM: SPENSER, Daniela e ORTIZ, Rina, La Internacional
Comunista em México: Los primeros tropiezos – documentos, 1919-1922. México, DF: INEHRM, 2006;
______. El triángulo imposible: México, Rusia Soviética y Estados Unidos en los Veinte. Cidade do
México, DF.: Ciesas, 2004; GIL, Mario. México y la Revolución de octubre. México: Cultura Popular,
1978. Além de TAIBO II, 2008 e VERDUGO, 1985, já citados.
162
O trecho utilizado foi retirado de uma tradução em espanhol citada por TAIBO II, 2008, p. 75.
109
(TAIBO II, 2088, p. 179).
Uma das mais importantes colaborações da delegação mexicana seria a
participação de Roy na elaboração da tese sobre o problema nacional e colonial,
redigidas em conjunto com Lenin e aprovadas pelo congresso.
A posição da resolução sobre o problema colonial seguiu a crítica à democracia
burguesa163, presente no centro dos dois primeiros congressos da IC, e reconheceu não
apenas a necessidade de uma igualdade formal das nações defendida pelo direito
burguês, mas a igualdade real, expressa pela forma federativa de organização da União
de Repúblicas Soviéticas. Afirmou-se a necessidade de se considerar objetiva a
diferença entre as nações que vivem sob o sistema imperialista.
A resolução é extensa, e inclusive chega a tratar de casos específicos, como dos
judeus na Palestina164. A posição da IC sobre a questão colonial romperia abertamente
com os resquícios de europeísmo, com um estigma de superioridade do proletariado
europeu sobre os outros povos, sentimentos presentes na 2ª Internacional.
O congresso defendeu o nacionalismo anti-imperialista nas colônias, inclusive
para que essa questão fosse vista com paciência, já que derivavam de um odioso
preconceito racista oriundo do domínio imperialista.
163
“[...] o Partido comunista, intérprete consciente do proletariado em luta contra o jogo da burguesia,
deve considerar como formando a chave de abóbada da (questão nacional, não os princípios abstratos e
formais, mas: 1º - uma noção clara das circunstâncias históricas e econômicas; 2º - a dissociação precisa
dos interesses das classes oprimidas, dos trabalhadores, dos explorados, com rejeição à concepção geral
dos pretensos interesses nacionais, que significam, na realidade, os interesses das classes dominantes; 3º -
a divisão mais clara e precisa das nações oprimidas, dependentes, protegidas, e opressoras e exploradoras,
gozando de todos os direitos, contrariamente a hipocrisia burguesa e democrática que dissimula a
submissão (própria da época do capital financeiro e do imperialismo), pelo poder financeiro e
colonialista, da imensa maioria das populações do globo a uma minoria de ricos países capitalistas.”
RESOLUÇÕES sobre o Problema Nacional e Colonial, 1920. A resolução está nos anexos deste trabalho.
164
A resolução é critica a posição dos judeus na Palestina: “Como exemplo gritante das mentiras
praticadas com relação à classe trabalhadora nos países subjugados pelos esforços combinados do
imperialismo dos aliados e da burguesia desta ou daquela nação, podemos citar o caso dos sionistas na
Palestina, onde sob pretexto de criar um Estado judeu, num país onde os judeus são em número
insignificante, o sionismo abandonou a população de trabalhadores árabes à exploração da Inglaterra”.
(RESOLUÇÃO..., 1920, s.p.)
110
desconfiança completamente legítima. Os preconceitos só podem
desaparecer com o desaparecimento do capitalismo e do imperialismo
nos países avançados, e depois, da transformação radical da vida
econômica dos países atrasados, sua extinção será muito lenta, de
onde o dever do proletariado consciente de todos os países de se
mostrar particularmente circunspecto diante dos resíduos de
sentimento nacional dos países oprimidos durante um longo tempo, e
de fazer também algumas concessões úteis a fim de promover o
desaparecimento desses preconceitos e dessa desconfiança.
(RESOLUÇÃO..., 1920).
Por fim, aparece uma ressalva importante, que depois dará base programática
para as revoluções nos países periféricos:
112
Os comunistas além do movimento proletário
O que aconteceu realmente foi uma luta pelo poder, no qual diferentes
facções revolucionárias não contendiam unicamente contra o antigo
regime e os interesses estrangeiros, senão também, frequentemente
mais ainda, umas contra as outras, por questões tão profundas como
classe social e tão superficiais como a inveja. (WOMMACK, 1992, p.
80).
165
BETHELL, 1992, p. 80. v. 9.
113
Obregón (1920-1924) seria o início da segunda etapa, e se desenvolveria ao longo de
uma estabilidade pouco institucionalizada, dependente dos acertos entre caudilhos e da
figura de Obregón. Essa etapa foi do governo Obregón até a o Governo Calles (1924-
1928). A terceira etapa se desenvolveria ao longo do Maximato166, com a fundação do
Partido Nacional Revolucionário (PNR), em 1929, até o Governo Cárdenas, a partir de
meados da década de 1930.
Sob essa institucionalização da Revolução, a realidade política que o PCM atuou
difere dos primeiros anos de atividade dos outros grupos comunistas do continente,
como o PCB no Brasil e o grupo de Mariátegui, imersos em um sistema político
oligárquico e ainda muito bloqueado à participação política das classes sociais que não
formavam os pequenos grupos que controlavam o Estado.
Os comunistas mexicanos, desde o início da década de 1920, já possuíam
possibilidades de alianças amplas com os governos pós-revolucionários, contaram com
armamento em algumas circunstâncias e conseguiram apoio entre as diversas
instituições do Estado.
Essa relação com os caudilhos não seria simples, e por diversas vezes os
comunistas foram reprimidos, por uma ou outra facção do poder, mas o espaço de
atuação política do PCM era incomparavelmente maior que o encontrado pelos
comunistas no Brasil e no Peru.
Esse espaço de atuação e a própria aliança estiveram diretamente relacionados
com a necessidade que os caudilhos tinham em construir e ampliar a sua base social e
assim tentar manter o controle do frágil Estado pós-revolucionário, chegando a fornecer
armas aos camponeses das Ligas dirigidas pelos comunistas para lutar contra a ameaça
de um golpe por De La Huerta, no final de 1923, por exemplo.
Como forma de construir uma base social, os caudilhos não podiam ignorar os
movimentos populares que se organizavam em meio à ascensão que haviam vivido
166
O termo Maximato se refere ao período compreendido entre os governos de Emilio Portes Gil (1928-
1930), Pascual Ortis Rubio (1930-1932) e Abelardo Rodriguez (1932-1934), presidentes oficiais do
México que estiveram sob a influência direta de Calles, o “Chefe Máximo da Revolução”, daí deriva o
termo maximato.
114
desde o fim do porfirismo, e não tinham outro meio que negociar, apoiar e tentar
cooptar.
Se os caudilhos regionais e o próprio presidente precisavam buscar o movimento
popular, por outro lado, as organizações que aceitavam colaborar com os governos
sentiam a contradição que significava o espaço de atuação sendo ampliado e a ameaça
que esse apoio institucional significava para a autonomia política e ideológica das
organizações populares.
Os governantes atuavam no movimento operário e camponês de forma que
favorecessem as organizações mais comprometidas com os governos, isolando os
movimentos mais radicais. “Por outra parte, tanto Calles como Obregón se empenharam
em frear o nascimento de qualquer forma de organização autônoma”. (MONTALVO
ORTEGA, 1988, p. 5).
O processo de cooptação por parte do Estado pós-revolucionário deu início a um
processo de coorporativização dos movimentos operário e camponês e a Central
Regional Operária Mexicana seria a primeira expressão importante desse processo.
168
O Plano de Água Prieta (abril de 1920) foi proclamado após a indicação de Ignácio Bonilla para a
sucessão presidencial. Com o plano se somaram três quartos dos militares, e Adolfo de la Huerta foi
designado como presidente interino, no lugar de Carranza, morto em Tlaxcalantongo, Puebla.
Após as eleições presidenciais e a destituição de antigos porfiristas mantidos por Carranza nos cargos
executivos, foi eleito Álvaro Obregón, no final de 1920.
116
Federal, e Morones ocupando diversos cargos no governo, como o de secretário de
Indústria e Comércio no Governo Calles, cargo equivalente ao de um ministro.
169
Nos primeiros anos do PCM, a Juventude Comunista estava organizada de forma quase autônoma ao
PCM, e foi uma das bases mais importantes de ativismo comunista entre os movimentos de massas. Entre
os comunistas que se destacaram na Juventude comunista, estiveram Manuel Diaz Ramírez e Valadés,
sendo que esse último sairia do partido antes de 1924.
117
estado no lugar de onde se originavam as polêmicas, inclusive havia mantido contato
com Lenin, e trazia as últimas novidades da Revolução Russa e dos acontecimentos que
havia visto no país dos sovietes.
Foi convocada uma reunião, e Diaz Ramirez, que havia viajado como
representante da CGT, deu seu informe, recebido com curiosidade pelos sindicalistas.
Denunciou os sindicatos social-democratas e a atitude que tomaram frente à Guerra
Mundial, além da necessidade de anarquistas, comunista e sindicalistas se agruparem
contra esses traidores. Logo passou à descrição da visita à Rússia bolchevique e as
atividades do Congresso da ISV. (TAIBO II, 2008, p. 245) Quando chegou à parte em
que trataria as posições dos anarquistas na ISV, afirmou: “era natural que se produzisse
certa excitação que se traduziu em protesto por vários delegados anarquistas quando
Bukharin tratou em um mesmo plano os anarquistas presos e os bandos que seguiam o
bandido Makno”. (RAMIREZ apud TAIBO II, 2008, p. 245).
Com esse informe, a sede da CGT se transformou em um caos, entre gritos de
defesa e ataque em relação a Makno. Na outra semana, uma nova reunião foi
organizada, mas a ruptura já havia se aprofundado.
Nos meses seguintes, Diaz Ramirez continuou a aproveitar os detalhes de sua
viagem para fazer propaganda da Revolução Russa, inclusive escrevendo e publicando
artigos. Em dezembro, é constituído um comitê para reorganizar o PCM (Ibidem, p. 248
e VERDUGO, 1985, p. 51), o qual cuidaria da preparação do 1º Congresso do PCM,
que se reuniria na Cidade do México entre os dias 25 e 31 de dezembro de 1921.
O secretário geral do PCM trazia de Moscou a orientação para se buscar a frente
única operária170. O núcleo militante do PCM, ainda muito ligado à tradição anarquista,
debateria um documento escrito por José C. Valadés, denominado “Revolución Social o
Mitin Político”, em que recomendava aos trabalhadores que não tomassem nenhuma
posição frente às rebeliões e motins de grupos políticos mexicanos e preparassem suas
forças para a Revolução Social (VERDUGO, 1985, p. 53).
Diaz Ramirez chegou com a recomendação da IC para que os comunistas
participassem do pleito eleitoral. E embora essa posição fosse, segundo o próprio
secretário geral do PCM, uma recomendação de Lenin, o congresso se definiu pela não
participação naquelas eleições. (TAIBO II, 2008, p. 254).
O congresso tratou da relação entre a juventude comunista e o PCM, já que a JC
170
A evolução da política de frente única na IC será analisada no capítulo 3.
118
tinha assumido posições independentes. Essa autonomia da juventude foi vista como
uma influência anarquista, que deveria ser superada. Na resolução do Congresso, a
Juventude Comunista ficava subordinada ao PCM.
Em relação a CGT, o Congresso apontou para a frente única com todas as
organizações operárias, inclusive a CROM, pronunciando-se pela unificação e pela luta
contra a direção de ambas (TAIBO II, 2008, p. 265), a frente única pela base171.
Dentre as resoluções, duas interessam particularmente à narrativa das próximas
páginas. Uma que tratou da questão agrária, que Taibo II (2008, p. 254) afirma seguir a
“ortodoxia” comunista da época a qual indicaria uma negação do parcelamento da terra,
defendendo a coletivização.
Essa “ortodoxia” a que se refere Taibo II não aparece na resolução da Questão
Agrária do II Congresso da IC, como veremos mais adiante, mas a resolução define uma
posição que marcaria o programa agrário do PCM ao longo da década.
A segunda resolução tratava da luta contra o aumento dos aluguéis, e daria nova
vida ao Partido, com a luta dos inquilinos, a principal atividade do PCM no ano de
1922172.
173
No México, as habitações urbanas populares do início do século recebiam o nome de vencidad, que
poderia ser traduzido como vizinhança. Mas o termo que melhor expressa esse tipo de habitação no
português do Brasil seria cortiço.
174
O PCM utilizou o termo Local para se referir à organização regional do Partido. No Brasil, o PCB
costumou usar Comitê Regional.
175
Manuel Diaz Ramirez foi secretário geral do PCM nos primeiros anos da década de 1920.
120
do sindicato foram ocupados por comunistas, e pela primeira vez o PCM conseguia
hegemonia em um importante movimento de massas na capital do país.
Segundo cálculos de Taibo II (2008, p. 289), 35 mil inquilinos entraram em
greve. O movimento se expandiu para outras cidades, como Guadalajara, San Luis de
Potosi, Ciudad Juárez, Puebla, Tampico, Aguascalientes e Monterrey. (VERDUGO,
1985, p. 55).
No início de 1923, no mesmo lugar onde havia surgido a luta dos inquilinos,
surgiria a primeira organização camponesa que os comunistas conseguiriam influenciar
diretamente, a Liga de Comunidades Agrárias do Estado de Veracruz (LCAEV).
As rebeliões rurais no México tiveram um papel fundamental para a Revolução
122
Mexicana, com o surgimento do zapatismo, e alcançou um papel central na luta
revolucionária, como descrevemos nas páginas anteriores, particularmente pelo papel
programático que o movimento cumpriu.
176
FLORESCANO (2009) cita os diversos autores que procuraram identificar a composição social das
facções armadas, entre eles cita: Katz, I. Jacobs, Aguilar Carmin, Barry Carr, Jean Meyer, Womack, e
vários outros. Ver: FLORESCANO, Enrique. El Nuevo Pasado Mexicano. México: Cal y Arena, 2009.
123
No caso do zapatismo, o programa camponês se expressava no plano de Ayala, e
suas reivindicações estavam centradas na distribuição e restituição das terras aos
camponeses. O zapatismo e a própria liderança de Zapata se apegaram à aplicação desse
programa como condição de composição política e negociação com outros grupos
revolucionários.
Carranza, a fim de atrair os camponeses, criou uma comissão agrária em 1914 e
em 1915 decretou uma lei agrária que pareceu bastante radical, já que prometia a
distribuição de terras. Na própria constituição de 1917, o artigo 27 tratou do uso social
do solo, indicando a possibilidade de distribuição de terras. Mas, na prática, o governo
carrancista restituiu diversos latifúndios que haviam sido expropriados pelas forças
revolucionárias e passou a uma crescente repressão, particularmente contra as forças
zapatistas, massacradas nas campanhas do general Pablo González177 em Morelos.
Logo que assumiu a presidência, Obregón decretou uma lei agrária, a ley de
ejidos de 1921, que não alcançou uma aplicação prática devido à burocracia, mas
potencializou a criação de organizações agrárias que pudessem representar os
178
Montalvo Ortega fez uma boa apresentação de como Obregón imaginava superar o conflito no campo
através da mecanização. Cf.: MONTALVO ORTEGA, 1976, p. 7.
125
camponeses179. (DULLES, 2009, p. 96).
No início de 1923, o PNA já contava com a expressiva força, e seus militantes
eram parte importante do regime obregonista. (RIVERA DE CASTRO, 1976, p. 53).
Entre os dias 1º e 5 de maio, realizou-se o primeiro Congresso Nacional Agrarista, na
Cidade do México, do qual participariam também os comunistas.
179
A lei agrária de 1921 foi questionada pelo próprio Obregón, e o ministro da agricultura, o general
Villareal (antigo membro do PLM pré-revolucionário), foi substituído por Ramon P. Negri, o qual
substituiu a Ley de Ejidos, pela Lei de Regularização Agrária, de 1922, que alcançou efeitos mais
concretos na restituição e dotação de terras para as comunidades. Um dos latifundiários que seriam
expropriados no período Obregón seria o imenso latifúndio dos Terrazas, em Chihuahua, inimigos de
Francisco Villa, que haviam recuperado suas terras com Carranza. Para maiores detalhes: RIVERA DE
CASTRO, p. 37. In: SEMO, Enrique (coordenador). História de la Cuestión Agraria Mexicana.
Modernización, Lucha y Poder Político (1920-1930). México, Siglo XXI, 1988; DULLES, 2003, p. 95-
97.
180
REYNOSO, Irving. El agrarismo radical em México en la década de 1920 – Úrsulo Galván, Primo
Tapia y José Guadalupe Rodríguez (una biografía política). México: INHRM, 2009.
181
O plano de Galván seguia os seguintes objetivos: “1 – Estabelecer relações de solidariedade entre os
Comitês Agrários; 2 – Fundar novos Comitês nos centros de população agrícola onde existira organização
camponesa; 3 – celebrar reuniões públicas nos lugares de maior congregação camponesa; 4 – Fortalecer a
comissão inquilinária com o maior número de camponeses”. In: LEAFTER AGETRO, p. 114 apud
RIVERA CASTRO, op. cit, p. 89.
126
Como havia ocorrido com os inquilinos, Galván e Almanza acabam
direcionando os anseios dos camponeses e começaram a agrupá-los. Em meio às
possibilidades de reparto de terras, os camponeses se sentiram imediatamente atraídos.
A atividade dos comunistas em meio aos camponeses não passou despercebida. Forças
federais do 11º batalhão (Federico Zink), a serviço dos latifundiários do Estado,
prenderiam todos os membros da comissão agrarista. (REYNOSO, 2009, p. 18).
O Governador interviu e deu ordem de soltura para os camponeses, abrindo-se
um período de aliança entre o Governador Adalberto Tejeda e os agraristas,
potencializando o trabalho de organização dos camponeses em Veracruz. Tejeda, em
função da sua disputa com o Partido Cooperativista, apoiou a criação da Liga de
Comunidades Agrárias do Estado de Veracruz, que seria fundada em 23 de março de
1923, no Congresso Agrário ocorrido nessa data. (REYNOSO, 2009, p. 20).
Com a fundação da LCAEV, Úrsulo Galván foi nomeado presidente e José
Cardel e Arturo Carlón, primeiro e segundo secretários, além de Isauro Acosta como
tesoureiro. O Congresso decidiu que a Liga deveria lutar pelo melhoramento e a defesa
mútua das populações, conquistando os benefícios de todas as leis agrárias até então
existentes para o trabalhador. (RIVERA DE CASTRO, 1988, p. 90). Também definiram
quais comunidades fariam parte da organização: “sobre a denominação de núcleos de
população ou comunidades agrárias, ficam compreendidas todas os pueblos, rancheiras,
congregaciones e grupos de população que aspirem emancipar-se da servidão a que tem
estado sujeitos”. (ACTA Constitutiva da Liga de Comunidades Agrarias e Sindicatos
Campesinos del Estado de Veracruz apud RIVERA CASTRO, 1988, p. 90).
Com essa orientação, cresceram os comitês agrários e o número de petições por
terra, fermentando um tensionamento que levaria os latifundiários a se organizarem em
várias associações opostas a LCAEV.
127
LCAEV no Congresso Camponês, que fundaria a Internacional Camponesa
(Krestintern)182. E, a partir dessa viagem de Galván a Rússia, podemos dizer que o PCM
se alinhava à orientação geral da IC para a Questão Agrária.
A bibliografia mexicana183 que consultamos sobre as Ligas Camponesas dos
anos de 1920 parece ter dificuldades em definir qual era a posição da IC em relação à
questão camponesa. Taibo II, por exemplo, chega a afirmar que a IC defendia a
coletivização das terras, e identifica ao menos 3 linhas no movimento agrarista que
surgiram próximas ou sob a direção do PCM. (TAIBO II, 2008, p. 360).
A política agrária que Galván encontrou na sua viagem pela URSS nos últimos
meses de 1923 não estava definida com muito rigor em relação à distribuição das terras
aos camponeses em oposição à coletivização. O programa agrário da Internacional, que
tratou pela primeira vez as táticas dos comunistas para a questão camponesa, foi
definido no II Congresso da IC em 1920, e expressou o entendimento que os
bolcheviques produziram ao longo do processo revolucionário russo.
A tradição socialista, muito amparada na obra de Kautsky sobre a Questão
Agrária184, via o camponês (o pequeno produtor rural) como uma classe em extinção,
que, com o avanço do capitalismo, seria superada pela industrialização do campo. Aos
camponeses, mais pobres particularmente, cabia apenas aliarem-se ao proletariado em
direção ao socialismo e à coletivização dos meios de produção, e assim perecer
enquanto classe, proletarizando-se, em um sistema mais justo. Os camponeses eram um
vestígio do passado, que, como nos países europeus mais industrializados, estavam
condenados à proletarização, mesmo sob o regime capitalista.
A visão de Lenin, que combatia a perspectiva de Kautsky em relação à expansão
imperialista185, passava a explicar a expansão do capitalismo europeu a partir da divisão
entre países imperialistas e países coloniais e semicoloniais (dominados), o que
significava também afirmar que a expansão imperialista não levava o capitalismo
enquanto força de transformação revolucionária do sistema produtivo.
182
A Internacional Camponesa, ou Krestintern no acrônimo russo, foi uma organização frentista criada
pelos comunistas para aglutinar as forças camponesas relacionadas aos comunistas. Os mexicanos tiveram
uma importância destacada e representaram, inclusive simbolicamente, com seus sombreiros e
cartucheiras.
183
TAIBO II, 1986, p. 42; VERDUGO, 1985 e PELAEZ RAMOS, La Liga Nacional Campesina.
Disponível em: <www.ihblog.nuevaradio.org/b2-img/pelaez-lnc.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2014.
184
KAUTSKY, Karl. A Questão Agrária. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
185
Ver: LENIN. Imperislimo fase superior do capitalismo. Disponível em:
<http://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/oe3/lenin-obras-2-3.pdf>. Acesso em 10 mar. 2014. A
posição leninista acerca do imperialismo foi tratada no primeiro capítulo deste trabalho.
128
Figura 13 - Ilustração do livreto publicado para a Convenção Agrarista de Tamaulipas (1927)
Diego Rivera fez a ilustração de diversos materiais de divulgação das Ligas Agraristas ligadas ao PCM.
Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 131
129
Figura 14 - Ilustração interna da brochura para as ligas agraristas.
Como havia muito analfabetismo entre os camponeses, o material de divulgação das Ligas Agraristas que
estavam sob influência comunista possuíam muitas ilustrações e pouco texto. Fonte: Rivera fez a
ilustração de diversos materiais de divulgação das Ligas Agraristas ligadas ao PCM. Fonte: TIBOL,
Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p.181
130
A resolução da questão agrária nesse congresso explica da seguinte forma o
problema camponês:
186
Os populistas russos, também conhecidos como narodinikis, foram um movimento político importante
que atuou em meio aos camponeses russos no final do século XIX. Defendiam um programa de luta
131
bolchevique e consolidar a aliança operária e camponesa.
A experiência da Revolução Bolchevique estava expressa no trecho da resolução
citada acima, e não definia uma posição pela coletivização ou não das propriedades.
Quando Galván chega à URSS, os debates acerca da questão agrária haviam se
desenvolvido mais, e no último congresso da IC antes de 1923, o IV Congresso,
aprofundava ainda mais a importância da mobilização dos camponeses nos “países
atrasados do oriente”, região que servia como referência para se entender a América
Latina.
contra o latifúndio e o Tzarismo, em defesa da distribuição das terras, mas também valorizando a
propriedade comunal tradicional, mir. A tradição dos populistas influenciaria os movimentos do início do
século na Rússia, em particular em relação aos temas agrários.
132
Um aspecto do programa agrário da IC era particularmente importante para os
mexicanos, o ponto 9:
134
Figura 15 - Aliança operária e camponesa, desenho de Rivera (1924)
Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 63
187
Dulles (2008) cita discursos de Obregón que reconhecem os Ejidos como estrutura fundamental da
produção camponesa mexicana.
188
Spencer (2004) cita diversos trechos em que membros do governo mexicano se diziam bolcheviques,
como Calles, por exemplo. Na tradição política pós-revolucionária mexicana, diferente do Brasil, foi
comum ouvir de lideranças governamentais que praticavam uma política capitalista e conservadora se
afirmarem como “de esquerda”, socialistas etc.
135
interessavam ao proletariado.
189
“Sobre la revolución en América latina. Llamamento a la clase obrera de las dos Americas” In:.
L’Internacionale Communiste, n. 15, Moscou: jan. 1921, p. 3.311-14, 3321-24 apud LÖWY, 2006, p. 78.
136
lideranças ligadas ao PCM, Cardel, Caracas, Rodriguez Clara e o dirigente da CGT,
José Fernandez Oca, foram assassinados. (Ibidem, p. 24).
Quando ainda estava em Havana, em uma parada anterior ao Porto de Veracruz,
Galván ficou sabendo da rebelião delahuertista, conseguiu armas e retornou por um
barco alemão ao Porto. Chegando a Veracruz, nomeou-se Comandante-em-chefe, criou
esquadrões guerrilheiros e organizou os camponeses armados em vários pontos do
Estado de Veracruz. Ao final de janeiro, após alguns combates entre membros das Ligas
e as forças delahuertistas, os rebeldes foram derrotados nacionalmente, e se organizou
um batalhão a partir das forças camponesas, o Batalhão 86. Galván recebeu o posto de
tenente-coronel e Antonio Carlón, o de capitão. (Ibidem, p.25).
Irving Reynoso, em seu estudo sobre os Agraristas Rojos, cita diversos relatos
acerca da força real das guerrilhas camponesas, desde 50 mil a 18 mil homens, até o
número de 200 combatentes em armas. (Ibidem, p.25) Por se tratar de forças irregulares,
pode-se considerar que o significado defensivo do armamento camponês é difícil de
mensurar pela simples contagem do número de combatentes. A presença de camponeses
armados em vários locais, mesmo que não houvesse travado batalha, possuía significado
militar defensivo.
Para os comunistas, a atividade das Ligas, dirigidas por Galván (membro da
direção do PCM), ampliava o prestígio do Partido, consolidava a sua direção, e
principalmente consolidava a aliança com o obregonismo, em uma espécie de dívida, já
que o PCM havia lutado contra a ameaça delahuertista de armas na mão.
190
O Movimento cristero se opôs de armas na mão ao governo Calles, entre os anos de 1926-1928, e foi
tratado como um movimento reacionário e fanático. Rivera Castro chama a atenção para a existência de
demandas de terra que não estavam sendo solucionadas pelos governos Obregón e Calles, que ajudariam
a marcar os cristeros com o selo do atraso religioso para encobrir a insolvência de suas políticas agrárias.
(RIVERA CASTRO, 1988). Reynoso (2009) afirma que os governos manipularam as diferenças entre
cristeros e comunistas, estimulando uma oposição.
138
Frente ao problema de um governo que reparte terras em pequenas
parcelas, sem proporcionar implementos necessários, sem água e
créditos suficientes, estamos desenvolvendo um programa baseado em
um estudo das coisas concretas que os camponeses necessitam, e as
quais ainda não estejam satisfeitos e baseado também no método de
oposição desde baixo: Tomar as terras ao invés de recebê-las; tomar em
maior extensão e em melhor qualidade; e que todos os camponeses
mantenham suas armas. (EL MACHETE, nº 12, 13/03/1924).
***
Primo Tapia, como vários mexicanos michoacanos, foi buscar emprego nos
EUA, trabalhando em plantações de açúcar, na mineração, ferrovias, entre outras
atividades. Em meio aos trabalhadores, e em contato com a comunidade mexicana na
Califórnia, conheceu Ricardo Flores Magón e o anarquismo. (REYNOSO, 2009, p. 80;
RIVERA CASTRO, 1988, p. 79).
Em Nebraska, EUA, após vários anos no país, Tapia ajudaria a fundar um
sindicato que convocou um movimento grevista em 1920. A greve não alcançou os
objetivos esperados e o jovem mexicano voltou para a sua cidade natal, Naranja.
Nesta cidade, cheio de experiências na luta sindical ao lado dos operários
anarquistas e sindicalistas dos EUA, Primo Tapia e Isaac Arriaga, um professor
primário, começam a contatar os círculos radicais de Michoacán. Em 1921, ambos se
filiaram ao PCM, e, com a ajuda da local do PCM, impulsionaram a luta agrarista no
Estado. Como a LCAEV havia contado com o apoio do governador Tejeda, os agraristas
michoacanos contaram com o apoio de Francisco Mujica na solução das demandas
camponesas. O próprio Partido Socialista Michoacano, do qual o governador fazia parte,
191
Reynoso defende que o agrarismo influenciado pelos comunistas teve como característica a defesa da
autonomia política frente aos governos, e por isso seria a corrente que melhor teria seguido em frente com
as propostas e programas agrários do zapatismo. (REYNOSO, 2009).
139
tinha em seu programa a dotação dos Ejidos, o fracionamento da grande propriedade,
por expropriação e a reorganização da comissão local agrária com o objetivo de torná-la
mais eficiente na tramitação da terra para o povo; o trâmite gratuito para as petições
indígenas e a criação de escolas agrícolas. (RIVERA CASTRO, 1988, p. 78).
Devido a uma série de intrigas e da pressão dos fazendeiros locais, Mujica foi
substituído por Sidronio Sanchez Piñeda, que não proporcionou o mesmo apoio aos
agraristas.
Tapia, por meio da federação de sindicatos operários e camponeses, convocou
um congresso dos comitês agrários, formando a Liga de Comunidades e Sindicatos
Agraristas do Estado de Michoacán, que se mantinha independente da estrutura estatal
após o afastamento de Mujica. Essa forma de organização agrarista dirigida por Primo
Tapia, independente dos comitês agrários oficiais, serviu como um modelo de
organização utilizado por Galván ao formar a LCAEV. (REYNOSO, 2009, p. 84).
Após a conquista de vários hectares de terras para os camponeses e o
estabelecimento de relações com Galván, o movimento camponês michoacano se
fortaleceu, apontando para a criação de uma Liga que unificasse nacionalmente o
movimento camponês.
No final de 1925, Tapia aumentou sua oposição com o governo Calles,
acusando-o pelas agressões aos camponeses da Liga de Michoacán. Isso fez do líder
agrarista um inimigo do governo callista. Em abril de 1926, Tapia seria detido em
Naranja192, e, por ordens diretas de Calles, seria assassinado por soldados, que o
torturaram e o mutilaram com baionetas.
O jornal do PCM denunciou a morte de Primo Tapia e publicou um telegrama de
Calles decidindo a sorte do agrarista michoacano193. Pouco mais de um mês depois do
assassinato, em julho de 1926, era organizada a Primeira Conferência Nacional
Camponesa, que se posicionou pela defesa do ejido, contra a propriedade privada
(REYNOSO, 2009, p.31), e marcou a convocatória para o Congresso de Unificação
camponesa, que seria realizado entre os dias 15 e 20 de novembro de 1926, com a
participação de 158 delegados, representando mais de 310 mil camponeses. (TAIBO II,
2008, p. 502).
192
Hoje a cidade chama-se Naranja de Tapia em homenagem ao líder agrarista.
193
“Asasinato de Primo Tapia” e “Quién dió la Orden?”. El Machete, México: 3 jun. 1926, p. 2.
140
Figura 16: Primo Tapia e Úrsulo Galván em 1924
Fonte: CASTELLANOS GUERRERO e LÓPEZ RIVAS, 1991 apud REYNOSO, 2009, p.87
Com o congresso foi fundada a Liga Nacional Camponesa (LNC), que teve
como presidente Úrsulo Galván; Manuel P. Montes, como secretário; e José Guadalupe
Rofriguez Favela, como tesoureiro. Esse último seria assassinado por ordens do
Governo Emilio Portes Gil, e se tornaria um dos mais importantes mártires camponeses
comunistas mexicanos, recebendo protestos em vários países, inclusive no Brasil, onde
foi organizado um ato em frente ao consulado mexicano, acusando o governo Portes Gil
de fascista. Em A Classe Operária de 20 de julho de 1929194, apareceu a foto de Calles,
com a legenda “O traidor Calles, assassino de Guadalupe Rodríguez”, e 15 dias antes,
no número 63, apareceu na 1º página uma notícia com o título “Também no México
aumenta a reação. O Partido Comunista foi declarado ilegal, tendo sido fuzilado e
deportado seus leaders” e “El Machete foi fechado pelo governo ‘trabalhista’”. Ilustrava
o jornal dos comunistas brasileiros um desenho de Guadalupe Rodríguez feito por
Diego Rivera195.
194
A Classe Operária, n. 65, Rio de Janeiro: 20 jul. 1929.
195
A Classe Operária, n. 63, Rio de Janeiro: 7 jul. 1929.
141
Figura 17: Desenho de José Guadaalupez Rodriguez, feito por Diego Rivera, publicado
na Classe Operária
A LNC seguiu a linha da LCAEV. Entre 1926 e 1928, Úrsulo Galván, como
presidente, esteve trabalhando pela sua construção. A Liga esteve, até que os comunistas
rompessem com Tejeda, sob a direção do PCM, e foi, como afirmou Irving Reynoso
(2009), a principal expressão do agrarismo autônomo da década de 1920.
142
um critério autônomo e, sobretudo, realizou importantes contribuições
socialistas. (REYNOSO, 2009, p. 6).
143
Figura 18 - Agraristas enforcados. Detalhe do Mural do Palácio do Governo, de Diego Rivera
(1929-1930)
144
Figura 19 - Livro Fermín, divulgação agrarista ilustrada pelos muralistas.
Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 145-162
Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 145-162
145
Figura 21 – Ilustrações do livro Fermin, por Diego Rivera
Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 145-162
Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p. 145-162
146
O PCM encontra os artistas, que descobrem um motivo: A Revolução Social
147
Figura 23: A imagem da comunista Frida Kahlo em um rótulo de cerveja mexicana196.
196
Fonte: Fotografia do próprio autor. Cidade do México, 2010.
197
O termo alienação tem sido utilizado na prática política dos movimentos de esquerda como uma forma
de definir as pessoas que não compreendem a exploração e a opressão a que estão submetidas. Como uma
dificuldade em perceber o seu lugar (de explorado e oprimido) no modo de produção capitalista. Segundo
o dicionário de Bottomore, alienação é: “No sentido que lhe é dado por Marx, ação pela qual (ou estado
no qual) um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem) alheios,
estranhos, enfim alienados aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à atividade ela mesma),
e/ou à natureza na qual vivem, e /ou outros seres humanos, e – além de e através de também a si mesmos
(às suas possibilidades humanas), através dele próprio (pela sua própria atividade). E a alienação de si
mesmo não é apenas uma entre outras formas de alienação, mas a sua própria essência e estrutura básica.
[...] Marx concordava com a crítica de Feuerbach à alienação religiosa, mas ressaltava que esta é apenas
uma entre as várias formas de alienação humana. O homem não só aliena parte de si mesmo na forma de
Deus, como também aliena outros produtos de sua atividade espiritual na forma de filosofia, senso
148
são perceptíveis na forma com que hoje se trata não uma muralista exatamente, mas a
companheira de Diego Rivera, Frida Kahlo198. Embora Frida não seja conhecida por
pintar murais, esteve, junto com a fotógrafa e militante comunista Tina Modotti,
estreitamente ligada ao movimento muralista, e com as organizações que o PCM dirigia,
como os sindicatos, as Ligas camponesas, o Jornal do Partido El Machete e a Liga Anti-
imperialista da Américas.
comum, arte, moral; aliena os produtos de sua atividade econômica na forma de mercadoria, do dinheiro,
do capital; e aliena produtos de sua atividade social na forma do Estado, do direito, das instituições
sociais”. In: BOTTOMORE, Tom (Ed.). Dicionário do Pensamento Marxista (edição eletrônica para
Kindle). Rio de Janeiro: Zahar, 2013, s.p.
198
Frida Kahlo se transformou em um ícone de algo tão avesso ao que realmente fez e pintou que há
pouco tempo nada menos que a “rainha do pop”, Madonna, afirmou que sua maior inspiração provinha de
Frida Kahlo. Essa transformação pop da obra de Frida Kahlo está expressa no filme norte-americano que
tratou a vida da pintora mexicana. Com uma centralidade em sua relação com Diego Rivera, o filme se
desenrola sob uma perspectiva que pouco destaca a militância comunista de ambos, ressaltando casos
amorosos extraconjugais e uma vida boêmia entre um grupo de intelectuais. A fotógrafa e militante
comunista Tina Modotti, por exemplo, é apresentada em uma cena de tango sensual. Essa imagem, que
tem o intuito de agradar o público norte-americano, explica a reivindicação de Frida Kahlo como a maior
inspiração da vida de Madonna, bem como sua imagem em garrafas de cerveja, e outros produtos de
consumo; ao mesmo tempo que também explica a estranheza de muitos ao terem notícia da profunda e
assumida militância comunista de Frida.
149
Figura 25 - Pesadilla de Guerra y sueño de paz, Diego Rivera (1952)199
199
Rivera se posicionou a favor de Trotsky e suas ideias, mas depois da Segunda Guerra retornaria ao
PCM e faria uma autocrítica sobre o seu posicionamento em relação ao trotskismo. Esse mural demonstra
o quanto foi importante para as obras de Rivera o seu posicionamento político. Neste mural vemos o
retrato de Mao Tsetung e Stalin no canto superior esquerdo.
150
Figura 26 - Inovações técnicas de Siqueiros, o movimento no mural.200
Fonte: HERNER, Irene. Siqueiros: del paraiso a la Utopia, México: SCDF, 2010, p. 265.
***
200
Siqueiros foi o mais inventivo e inovador muralista. Experimentou muitos materiais e superfícies
diferentes. Uma das técnicas que inventou foi a de dar a sensação de movimento ao espactador, inspirado
pelo cinema. Na sequencia acima podemos ver um cavalo sob diversos ângulos, e na medida que o
espectador avança, o cavalo caminha. Fonte: HERNER, Irene. Siqueiros: del paraiso a la Utopia,
México: SCDF, 2010, p. 265.
201
Jaime (2012) ressalta dois fatores que constituem os aspectos mais importantes do contexto que
produziu o movimento muralista: a Revolução Mexicana e a influência ideológica e política da Revolução
Russa.
151
movimento muralista, este rompeu ideologicamente com a Revolução
mexicana e tratou de criar uma nova revolução, mas no âmbito
estético. Desta maneira, o marxismo não é um aspecto menor ou
superficial do muralismo mexicano, senão parte de sua essência
política e filosófica. (JAIME, 2012, p. 15).
O texto de Herner faz, como ela mesma indica acima, um esboço dos diversos
determinantes do nacionalismo mexicano antes de chegar ao Muralismo. Não vamos
repeti-lo aqui, mas cabe uma breve revisão, a fim de demonstrar a transformação que o
nacionalismo, particularmente aplicado às artes, sofreu durante a década de 1920 e
assim apresentar a transformação qualitativa que representa o movimento muralista.
Em um pequeno livro clássico que tratou Los Orígenes del Nacionalismo
Mexicano, David Brading (2004)202 descreve, desde referências coloniais até posteriores
à independência, os elementos que constituíram a identidade nacional mexicana,
reivindicada claramente desde o século XIX.
202
BRADING, David. Los Orígenes del Nacionalismo Mexicano. México: ERA, 2004.
152
De forma bastante sintética, Brading aponta para essa particularidade do
nacionalismo mexicano em relação ao resto da América hispânica, em que o regime
pós-colonial e oligárquico acostumou-se em afirmar a identidade do Estado republicano
em símbolos distantes, no passado indígena. O próprio símbolo da bandeira do México
independente, a águia sobre uma palma (Opuntia ficus) e uma cobra em seu bico é uma
direta referência ao mito originário dos mexicas.
Diferentemente das outras repúblicas latino-americanas, por oposição à
dominação espanhola, a invasão francesa (1862-1867) e até a guerra contra os EUA
(1846-1848), o Estado pós-colonial no México teve a necessidade de construir uma
identidade nacional, e assim incorporar o elemento indígena. Os próprios líderes
liberais, como Juárez, possuíam claras feições indígenas, e se em outros países, como o
Peru e Bolívia, o Estado oligárquico pôde prescindir da imagem do índio para construir
sua identidade nacional, no México isso não foi possível.
A Revolução Mexicana e os governos que seguiram depois de 1920 são
comumente apresentados como uma antítese do que foi o porfirismo. Assim, nada mais
natural que pensarmos que o porfirismo fosse avesso a um nacionalismo que se
desenvolveu a partir da década de 1920, e assim imaginar que o nacionalismo,
particularmente em relação à herança indígena, surgisse após a caída do governo de
Porfírio Diaz.
No ano de 1877, publicou-se os Anales del Museo Nacional, em que figuravam,
entre outros temas, os estudos pré-hispânicos. Esse mesmo museu lançou um edital para
se construir um monumento a Cuauhtémoc203 e criou a Inspeção Geral de Monumentos
Arqueológicos da República. Durante o governo porfirista, formulou-se a lei de
Monumentos Arqueológicos, impulsionando trabalhos de arqueologia e proteção dos
sítios arqueológicos, além de ampliar as verbas para o Museu Nacional de Arqueologia,
Etnografia e História. (HERNER, 2004, p. 49). Foi durante o último governo de Diaz
que se inaugurou a restauração do complexo de Pirâmides de Teotihuacan, dando grande
impulso à retomada da herança indígena nas novas interpretações que surgiriam da
203
Cuauhtémoc foi o último tlatoani mexica, que dirigiu a última importante resistência contra os
espanhóis. Sua resistência tem um simbolismo especial para a memória identitária mexicana, já que
significou uma derrota após um combate aguerrido. Na praça de Tlatelolco, local onde se deu essa batalha
decisiva que selou a derrota dos nahuas frente os invasores, está escrito: “Em 13 de agosto de 1521,
heroicamente defendida por Cuautemoc, caiu Tlatelolco em poder de Hernán Cortes.Não foi triunfo, nem
derrota. Foi o doloroso nascimento de um povo mestiço que é o México de hoje”.
153
identidade nacional mexicana, e inspirando, na década seguinte, diversas reflexões
sobre o componente indígena na formação do México.
Seguindo o que nos apresenta Herner, podemos então concluir que a exaltação
da nacionalidade mexicana foi também para o porfirismo uma necessidade do Estado, e
não se contrapôs ao Estado oligárquico, e muito menos ao positivismo reinante entre os
intelectuais do regime, conhecidos como científicos. Sem outro passado que o indígena
e o colonial, ao porfirismo sobrava apenas o indígena, já que o colonial era contrário ao
próprio Estado pós-independência, e o indígena, sua antítese natural. É desse Estado
porfirista que surgirá o primeiro projeto de obras murais.
Como acontecia com todos os artistas que pretendiam ingressar na carreira das
artes plásticas, e serem reconhecidos em seu meio, Gerardo Murillo (1875-1964), um
jovem pintor mexicano, teve a possibilidade de estudar na Europa, e particularmente em
Paris. Nessa época, Paris era considerada o centro absoluto das artes mundiais, uma das
capitais da “civilização”204, e o artista que quisesse aprender as técnicas e estilos da
vanguarda artística mundial precisaria fazer constar em seu currículo ao menos algum
tempo de estudo nas Academias de Artes Plásticas dessa cidade, bem como respirar por
um tempo os debates nos cafés, conhecer as novidades em vernissages e passear pelas
galerias que expunham as obras das mais novas correntes das artes mundiais. Não
existia arte na periferia.
Na virada do século surgiram diversas correntes do que ficou de forma
204
Vasconcelos afirma em suas memórias: “E era costume da época que toda pessoa de qualidade, ao se
aproximar da ‘metrópole espiritual do mundo’, se colocasse em atitude beatífica e exclamasse: ‘Paris,
Paris, ao fim, Paris’”. (VASCONCELOS, José. La Tormenta, México: Trillas, 1998, p. 37).
154
generalizante conhecido como modernismo205, e em algumas dessas correntes começou
uma valorização das artes populares, periféricas e de novos temas, como a indústria e os
trabalhadores.
Gerardo Murillo retorna da Europa em 1906, influenciado por ideias
nacionalistas que havia encontrado na Itália, e funda um centro artístico com o objetivo
de pintar paredes de prédios públicos. (HERNER, 2004, p. 50). Seu nacionalismo se
estende aos motivos de sua pintura, passa a especializar-se em temas da geografia
mexicana, particularmente os vulcões, e cria um nome artístico para si, Dr. Atl, que
inclusive será o nome que ficará conhecido no meio artístico. Atl é o nome nahuatl para
água.
Dr. Atl conseguiu o patrocínio do governo porfirista, mas o início dos primeiros
combates da Revolução impediriam que o primeiro intento de produzir o renascimento
das artes mexicanas em uma superfície mural tivesse continuidade.
Fonte: POLYFORUM Siqueiros, El Legado de dos visionarios, México: Quarta Pared, 2012.
O projeto do Dr. Atl precisava do patrocínio do Estado para se realizar, e foi a natureza
205
Segundo Capelato (2005, p. 256): “Os movimentos modernistas latino-americanos dessa época foram
tributários das experiências artísticas europeias que, a partir da primeira Guerra, introduziram elementos
novos no campo das artes. O conflito mundial provocou uma crise de consciência entre intelectuais e
artistas europeus que sentiram a necessidade de expressar suas ideias e sentimentos. Os movimentos
denominados vanguarda se ampliaram e se fizeram acompanhar de uma profusão de escritos sobre a
natureza da arte, sua finalidade e função social do artista”.
206
Esse mural faz parte do conjunto arquitetônico projetado por Siqueiros, com o nome Polyforum
Siqueiros, na Cidade do México. A Barda Mural tem sessenta metros de comprimento por sei metros de
altura, forma uma espécie de muro entre o edifício do Polyforum e a Avenida Insurgentes e a rua
Filadelfia. A partir da ordem, da esquerda para a direita, estão as 5 figuras fundantes do muralismo
mexicano, além do próprio Siqueiros, autor da obra, que não aparece: Diego Rivera, José Clemente
orozco, josé Guadalupe Posada, Leopoldo Méndez e Gerardo Murillo, o Dr. Atl. Fonte: Fotografia do
próprio autor, Cidade do México, 2013. Para maiores dados da obra, ver: POLYFORUM Siqueiros, El
Legado de dos visionarios, México: Quarta Pared, 2012.
155
do Estado um de seus determinantes, em termos estilísticos. Embora nacionalista,
reivindicando a tradição dos murais pré-hispânicos, os temas pintados relegaram aos
primeiros murais indígenas uma importância menor207. Como veremos, o que daria ao
muralismo sua identidade como corrente artística não estava limitado ao ato de pintar
em muros.
A composição das forças revolucionárias era extremamente heterogênea, sem
um plano unificado, mas, para destruir a estrutura do Estado porfirista e combater as
tropas federais, os revolucionários precisaram contar e conviver com tropas populares
que, a partir de uma forte prédica anarquista e liberal, introduziram importantes
demandas para o Estado que se institucionalizava a partir de 1917.
Os camponeses armados, os operários organizados e as próprias classes médias
que comandavam tropas revolucionárias não aceitariam depor as armas sem que muitas
de suas reivindicações fossem atendidas. Monsivais (2011, p. 57) afirma: “Com a
Revolução, e por força, a irrupção das massas amplia a órbita do simbólico (e por isso
os muralistas exaltam as origens violentas do Estado)”.
Assim, sob um clima de participação popular e da necessidade da elite que se
conformava no Estado em negociar, aprovou-se a Constituição de 1917, em que se
destacam importantes e inéditas conquistas sociais na América Latina, como os artigos
27 e 123208.
Como uma reação liberal ao porfirismo, diversas reivindicações de cunho
político foram acompanhadas por intentos democráticos no campo da cultura e da
educação, e nesse início destacou-se o advogado maderista José Vasconcelos.
Vasconcelos era um sincero liberal. Ele acreditava que através da educação se
poderia transformar o México, aproximando seu país das nações “ilustradas” europeias.
Vasconcelos, como muitos de sua geração, possuía uma visão liberal europeista e
bastante elitista do povo mexicano. Fez parte de uma geração que possuía críticas ao
imperialismo norte-americano, que nessa época já havia feito várias agressões e
invasões sobre o território latino-americano. Negava o pan-americanismo para
reivindicar as tradições espanholas, e, no caso de Vasconcelos, vangloriar o mestiço, la
raza. Essa corrente era chamada de arielistas, em referência a obra Ariel, de Rodó209, e
no México se reuniam no Ateneo da Juventude.
207
Há uma série de murais indígenas nas ruínas de Teotihuacán, além de outras ruínas. A pintura em
paredes já era praticada no México muito antes da conquista, mas os primeiros murais produzidos pelos
artistas vinculados ao Movimento Muralista tiveram pouca influência dessa tradição indígena.
208
Já tratamos a constituição mexicana, e esses artigos, no primeiro capítulo, p. 156
209
Ver: RODÓ, José Enrique. Ariel. Buenos Aires: Nuevo Mundo, 1967.
156
Figura 28 - Vasconcelos na Revista Amauta
158
indivíduo. Depois que os muralistas alcançaram fama mundial, apareceu com mais
frequência a figura do “mecenas”, alguém que desejava investir dinheiro significativo
em uma obra de arte mural.
Seria muito difícil para os artistas sem grande fama e dinheiro conseguirem
financiamento ao longo de vários anos para a realização de obras que requeriam grande
gastos de material, andaimes, ajudantes, sem falar na autorização para se pintar em
paredes públicas. O Estado, através de Vasconcelos, foi o primeiro e fundamental
impulso para a inovação que esse grupo de artistas iria produzir, em uma relação sempre
conflituosa, de alianças e unidades pouco estáveis e duradoras. A relação entre o Estado
mexicano e os muralistas é peça-chave para se entender as forças que de uma forma ou
de outra marcaram as obras murais210.
210
Siqueiros cita em suas memórias diversos conflitos entre os muralistas e o Estado. “Ao chegar Puig
Casauranc à secretaria de Educação, em substituição a Vasconcelos, considerou pertinente colocar-nos, os
pintores muralistas, a uma disjuntiva: ‘Se continuarem publicando se periódico El Machete, com uma
linha política de ataque sistemático ao governo, que é o governo da Revolução, terei que suspender seus
contratos’.” (SIQUEIROS, 1977, p. 222). Ou seja, a permissão do Estado foi algo fundamental para o
muralismo nascer, e sob esta relação (Estado x artista) se desenvolveria.
159
comprou das editoras espanholas cópias de Dom Quixote e dicionários de espanhol para
todas as escolas. (DULLES, 2003, passim).
Vasconcelos não pretendia desenvolver a nacionalidade mexicana a partir da
tradição popular e possuía fortes críticas ao indigenismo211. Dentre os livros que
publicou e comprou pela SEP, todos tinham origem europeia, e nenhum havia sido
escrito no México. E foi também nesse mesmo sentido que, ao patrocinar a renovação
artística mexicana, buscou artistas que haviam estudado na Europa.
Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle
Book, 1998, p. 20.
Um dos artistas convidados para pintar os muros com a história do México era
Diego Rivera, que vez por outra aparecia como a notícia de “um artista mexicano em
Paris” nos jornais da Cidade do México.
Pintar paredes em espaços públicos não era uma ideia original de Vasconcelos e
211
Nas memórias de Vasconcelos, fica clara a relação que o antigo secretário de educação estabelecia
entre violência, barbarismo e herança indígena ou azteca. “[...] o aztequismo que periodicamente renasce
é o elemento de crueldade que os quatro séculos de predicação cristã-hispânica não têm conseguido
destruir. O teocalli dos sacrifícios humanos é a única instituição azteca que sobrevive. Os zapatistas as
traziam com o uso da metralhadora e da pistola automática. Sugerido pela maneira como o armamento
moderno destroça corpos, os zapatistas haviam criado um termo símbolo de suas execuções e vinganças:
‘quebrar’ o inimigo... ‘quebra’ fulano... ‘já quebrei a Cicrano!’ Matar a tiros era quebrar, e nenhuma outra
palavra teve entre o zapatismo um uso mais extenso...”. (VASCONCELOS, op. cit., p. 147).
160
muito menos de Rivera. A pintura mural já existia há muito mais tempo no próprio
México. Um dos lugares que o nacionalismo emergente poderia encontrar inspiração era
nos muros dos templos pré-colombianos, cheios de decoração mural, e particularmente
nos murais de Teotihuacan, o complexo de pirâmides reformadas para as comemorações
do centenário (1910) da independência do México, que se mantinha em efetiva
evidência e interesse. Por outro lado, existiam os murais de Roma, e particularmente os
murais renascentistas, muito apreciados por Rivera em sua viagem pela Itália.
É a partir da contratação de Rivera e outros artistas para pintar o antigo Colégio
San Ildefonso (Escola Nacional Preparatória na época) que de fato nascerá o movimento
muralista mexicano. E é nesse edifício que conviverão juntos os principais expoentes do
movimento muralista: os “Três grandes”, como são conhecidos José Clemente Orozo,
Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros.
O três escreveram e publicaram suas autobiografias. Rivera escreveu sob o título
de Mi arte, Mi Vida, com a colaboração de Gladys March212, Siqueiros escreveu Me
Llamavan el Coronelazo213, e Orozco, Autobiografia214. Naturalmente, os autores
tenderam a utilizar-se do conhecimento que tinham no momento em que escreveram
suas biografias para dar significado e importância aos fatos que estavam narrando. Toda
história é parcial, e representa muito do presente de quem está escrevendo. Assim,
quando buscamos as influências que determinaram a obra desses muralistas em suas
autobiografias e escritos, precisamos levar em consideração o período em que estão
escrevendo, e suas motivações no momento, já que toda memória é seletiva, e os autores
acabaram selecionando os fatos que deram maior coerência às suas trajetórias no
momento em que as escreviam.
Diego Rivera, o mais famoso entre os três, vincula-se a diversas influências
determinantes de sua obra. Recorda-se da mulher indígena que cuidou dele, fala dos
primeiros murais que rabiscou pelas paredes da casa enquanto ainda era criança, até que
teve a oportunidade de estudar em San Carlos215, ainda na época porfirista, quando a
arte era dominada pelo classicismo, pelo academicismo elitista e europeísta.
212
RIVERA, Diego. Mi Arte, Mi Vida. México: Herrero, 1960.
213
SIQUEIROS, David Alfaro. Me llamaban El Coronelazo (memórias). México: Grijalbo, 1977.
214
OROZCO, José Clemente. Autobiografia, México: SEP 1971.
215
Academia de San Carlos era a escola de artes mexicana tradicional, hoje faz parte da UNAM.
Disponível em: <http://www.artesvisuales.unam.mx>. Acesso em: 27 mar 2014.
161
progredia nas formas acadêmicas europeias, menos eu gostava e me
sentia inclinado à velha arte mexicana. Detestava em particular ter que
copiar réplicas gravadas em moldes de gesso. (RIVERA, 1960, p. 34).
Esse primeiro estágio é apenas uma antessala para a sua viagem pela Europa,
entre os anos de 1906 e 1921, onde buscou conhecer a vanguarda216 artística mundial e
os mais novos experimentos. Ficou 14 anos na Europa, conheceu Picasso pessoalmente,
admirou Cézanne, passou pelas obras renascentistas italianas e viveu a atmosfera
artística de Paris com seus intelectuais e exilados.
Rivera viu a Europa “civilizada” se autodestruir na carnificina da Primeira
216
Citando Jorge Schwartz, Capelato afirma: “[...] a crescente politização da cultura latino-americana no
final dos anos 1920, reintroduziu a discussão sobre o uso da palavra “vanguarda”, através da clássica
oposição entre ‘arte pela arte’ e ‘arte engajada’, relacionando a uma controvérsia em torno do próprio
estatuto da arte. Como mostra o autor, inicialmente restrito ao vocabulário militar do século XIX, o termo
‘vanguarda’ acabou adquirindo na França um sentido figurado na área política.” (CAPELATO, 2005, p.
256).
162
Guerra Mundial com espanto, e, como muitos outros intelectuais e artistas, voltaria para
a América Latina entusiasmado com a sua própria terra, antes sinônimo de barbarismo
frente à civilizadora e progressista Europa. Após a Guerra, os países da América Latina
apareciam com todas as suas cores e possibilidades, vibrantes. Mas se tudo se
transformava na Europa pós-guerra, particularmente a crença na Europa como modelo
civilizacional, no México as transformações não eram menores e, inclusive, traziam o
tema que ocuparia todos os debates no período entre guerras, a denominada, na época,
Questão Social.
Retomando a ideia do projeto de muralismo do Dr. Atl, somado ao
projeto educativo de Vasconcelos, os primeiros murais seriam
concebidos com a finalidade de ensinar a história do México que
nascia da Revolução, interpretar a história nacional e aplicar as novas
tendências que influenciavam os novos artistas europeus. “escrever em
enormes murais públicos a história da gente iletrada que não pode lê-
la em livros”. (RIVERA apud MONSIVAIS, 2011, p. 96).
163
Figura 31 – Siqueiros durante o período que serviu nas forças constitucionalistas,
durante a Revolução Mexicana.
David Alfaro Siqueiros é o quinto, da esquerda para a direita. Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican
Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle Book, 1998, p.22.
217
SIQUEIROS, David Alfaro. “3 llamamientos de orientación actual a los pintores y escultores de la
nueva generación americana”. In: Vida Americana, revista norte centro y sudamericana de vanguardia,
Barcelona, n. 1, maio 1921, p. 2-3. Disponível em:
<http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/ELARCHIVO/RegistroCompleto/tabid/99/doc/801659/language/es-
164
por Ignácio L. Batiga com fundos do consulado mexicano. (HERNER, 2010, p. 81).
Além de alguns artigos, Siqueiros fazia uma convocação aos jovens artistas
americanos para unirem-se em busca de uma arte própria do continente americano,
desenvolvendo a identidade cultural latino-americana218.
Figura 32:"La Creación" de Diego Rivera, Auditório Simon Bolívar do Antíguo Colegio
San Ildefonso (1923)
Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle
Book, 1998.
índios. O Partido Socialista del Sureste, do qual fazia parte Felipe Carrillo Puerto, chegou a receber um
representante da IC em um de seus congressos, e era simpático aos bolcheviques. Vasconcelos registraria
em suas memória o seu horror frente à postura ideológica do governo do PSS, mas Rivera retornaria
decidido a marcar sua obra com as cores, a fauna, a flora e depois com os trabalhadores do México.
220
Os animais representam o tetramorfo, em que cada animal simboliza um evangelista: o leão, Marcos; o
anjo, Mateus; a águia, João; o touro, Lucas.
166
Figura 33 - Alegoria de la Virgen de Guadalupe, Fermn Revueltas (1923)
Primeiro mural de Fermín Revueltas, antes que se incorporasse ao Sindicato de Pintores. Muito similar
em relação à temática, a técnica da encáustica utilizada por Rivera em La Creación, também de 1923.
Fonte: ZURIÁN, Carla. Fermín Revueltas:Constructor de Espacios, México: RM e INBA, 2002, p. 82.
Figura 34 - Los Elementos Siqueiros (1922-23)
Los Elementos foi o primeiro mural de Siqueiros, no centro Siqueiros quis representar o “anjo da
Revolução. Fonte: HERNER, Irene. Siqueiros: del paraiso a la Utopia, México: SCDF, 2010, p. 99
167
Vários autores atribuem aos murais da Secretaria de Educação Pública (SEP), o
segundo projeto de Rivera, a partir de 1923, a inauguração do estilo, da temática e da
forma do movimento muralista mexicano.
O que fica evidente ao analisar o novo trabalho de Rivera na SEP é a introdução
do elemento que tornaria o movimento muralista mexicano diferente dos outros
movimentos artísticos modernistas que surgiram na América Latina nesse período. Esse
elemento era o impacto político ideológico da Revolução Russa.
Essa influência da Revolução Russa nas artes mexicanas é tão profunda que
marcou a temática e o estilo do muralismo, a ponto de sua ausência levantar a questão
da impossibilidade em se classificar como muralismo mexicano uma pintura que não
possua uma crítica social. O muralismo, entre outras características, deve expressar essa
crítica social explícita, e esse elemento está permeado em diversos elementos que
definem o movimento e suas singularidades.
Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle
Book, 1998, p.22.
De fato, o problema de se criar uma arte nacional incorria para eles na superação
do classicismo, do estilo barroco ou do naturalismo do século XIX. Era necessário
pintar o povo, suas cores e sua história. Existiam diversas formas de se incorporar a
herança indígena às artes, e alguns artistas já haviam feito, mas sem que significasse
uma renovação estética, uma arte nacional, limitando-se apenas em reproduzir cenas da
história indígena, da herança asteca.
Após La Creación, e mesmo no dia de sua inauguração, Rivera não estava ainda
satisfeito com o seu primeiro mural. A partir dos murais da SEP, iria incorporar
170
seguidamente, até 1930, os elementos que formariam a identidade do muralismo
mexicano. Para tornar inteligíveis esses elementos, destacamos aspectos relacionados à
estética, à execução da obra e à motivação política.
Em relação à estética, sobressaem: as figuras modernistas (as figuras gorduchas
opostas às formas helenizadas do século XIX), os motivos populares e as cores; na
execução das obras: o uso do macacão dos operários (no início do movimento muralista,
o macacão era um adereço de afirmação ideológica, tornava os artistas mais proletários),
a criação da obra artística a partir de um trabalho coletivo, a monumentalidade do
mural, o pagamento por metro quadrado, a organização e o ambiente coletivo dos
pintores e o papel do Estado; em relação à motivação política, destacam-se o
nacionalismo anti-oligárquico, a história da Revolução mexicana a partir do
protagonismo popular, a dialética alegórica, a inclusão dos elementos indígenas
relacionados ao índio vivo, a crítica social, a questão agrária e a revolução popular ou
socialista.
Figura 37 – Orozco de macação, em cima de uma escada, uma imagem típica dos
"pintores proletários" muralistas.
Fonte: ROCHFORT, Desmond. Mexican Muralist: Orozco, Rivera, Siqueiros, São Francisco: Chronicle
Book, 1998.
171
Todos esses elementos têm um profundo vínculo com a ideologia revolucionária
que os comunistas defendiam, e era a necessidade de se fazer propaganda revolucionária
entre o povo que fez dos murais “as artes para as massas populares”.
A maioria dos muralistas, como havia acontecido com outros intelectuais
marginalizados pelo Estado oligárquico latino-americano, havia vivido sem o
reconhecimento dos limitados círculos que povoavam as academias, universidades e
círculos artísticos. Para muitos, essa marginalização os aproximou da crítica liberal, e os
mais destemidos encontraram a classe operária e o movimento radical.
Esse foi o caminho de Ricardo Flores Magón, González Prada, Lima Barreto e
até Euclides da Cunha. Após a Revolução Russa, a referência revolucionária migrava do
anarquismo para a Revolução Russa e sua expressão política, o Partido Comunista e
suas seções nacionais da Internacional Comunista.
172
Figura 38- Ilustração de Rivera na capa da revista soviética Krasnaya Niva (1928)221
Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008,p. 183.
221
Rivera esteve em 1927 na URSS e foi recebido como um grande artista mundial pelo governo
bolchevique. Junto com Siqueiros e Maiakovski esteve em uma reunião com Stalin, que Siqueiros
relembra em suas memórias. “No nos fue difícil hablar con Stalin. (...) Maiakovski, naturalmente, sirvió
de intérprete, hablando com nosotros en perfecto francês (...) ‘Camarada Stalin: Estos compañeros
mexicanos, cabezas del gran movimiento muralista mexicano, que en mi concepto constitui la mejor
manifestación internacional de lo que debe ser un arte expresión del proletariado revolucionario,
consideran, como yo, que el Estado soviético, la más revolucionaria manifestación del mundo, a través
de su historia, en lo que se refiere al Estado, no puede seguir considerando en la práctica como su arte
oficial el academismo de las escuelas gubernamentales de Bellas Artes (...) Estos camaradas pintores
creen, como yo, que a la transformación revolucionaria del país en el orden de la política y de la
economía, debe corresponder una revolución igualmente trascendente en el orden de la estética, pero
que esta revolución no parece surgir aún em ninguna parte y en la menor proporción’ Stalin, que desde
el primer momento me dio la impresión, por su físico, de un general mexicano, con sus bigotes entonces
estrictamente negros, su cráneo aplastado de adelante y un poco sobresaliente de la parte de atrás, su
frente más bien reducida, su actitud silenciosa, sus modales reposados, se levantó lentamente del sillón
adonde se sentó inmediatamente después de nuestra entrada, encendió con lentitud su pipa, mientras se
veía claramente que estaba meditando su respuesta, para después decirnos lo siguiente: ‘Es indudable
que a la Revolución política del pueblo soviético deberá corresponder una equivalente revolución en el
campo de la cultural., en general, y del arte, en particular. Pero, desgraciadamente, las revoluciones
culturales o artísticas no se producen paralelamente a las revoluciones po!iticas. Y esto los ideólogos del
marxismo, nuestra doctrina fundamental, nos lo explican hablando de la superestructura de toda
sociedad. Si observamos bien lo acontecido al respecto en el mundo entero, veremos que durante un
cierto tiempo, a veces durante muchos siglos, las nuevas civilizaciones continuan bebendo en orden del
arte de las fuentes que han debido destruir. Tal es el caso del cristianismo.’” (SIQUEIROS, 1977, p.235)
173
A carteirinha de militante do PCM de Rivera tem o número 992, ingresso nos
últimos meses de 1922 (WOLFE, 1989, p. 132), e pressupõe que 991 militantes
ingressaram no PCM antes que Rivera. Esse dado não corresponde ao número de
militantes do PCM na época, já que muitos haviam se desfiliado, ou mesmo podemos
duvidar se o PCM utilizava a mesma contagem para cada local do partido, ou ainda,
podiam utilizar uma contagem errada propositalmente, a fim de contrainformar uma
possível repressão, coisa comum no movimento comunista. O fato é que 3 anos após a
fundação do Partido Comunista, os artistas que ambicionavam revolucionar as artes no
México entravam em bloco no Partido e logo fundariam um sindicato para organizar a
sua “classe”.
Desde que desembarcou de volta ao México, Rivera já havia comparecido às
comemorações do 1º de Maio que os comunistas organizavam, e também nos cafés em
Paris, onde havia convivido com exilados russos, já se mostrando simpático à
Revolução Russa. Em 1922, a partir do contato com Rosendo Gómez, Rivera entrou
para o PCM e junto com ele também Siqueiros e Xavier Guerreiro. Rosendo era um
espanhol nascido nas Ilhas Canárias, que com menos de 20 anos já havia entrado para o
PCM através da Juventude Comunista. Notabilizou-se na liderança da luta inquilinária
na Cidade do México, sendo depois eleito para o Comitê Central do Sindicato
Inquilinário. Em 1923, seria Secretário Nacional do PCM. O partido, nos primeiros anos
da década de 1920, era praticamente dirigido pela Juventude Comunista.
A entrada dos artistas no Partido modificou profundamente seu funcionamento,
trouxe prestígio e representatividade nacional. A partir desse momento, o Partido não
apenas atuava em meio aos trabalhadores proletários urbanos e jovens, mas começava a
influenciar o meio intelectual mais vibrante e inovador que despontava no México.
Como já expomos, podemos dizer que o primeiro documento que inaugura o
muralismo é o Manifesto que Siqueiros escreve ainda na Espanha, o qual poderia ser um
documento inaugural do modernismo no México, como uma proposta inovadora de
mexicanidade, que pretendia ser universal e cosmopolita, exaltando Cézanne e
criticando o academicismo, além de reivindicar uma maior aproximação das artes
antigas americanas (maias, incas e astecas), e assim construir para uma arte
genuinamente mexicana.
Esse manifesto está de acordo com todo o movimento nacionalista e modernista
174
que começava a pulular pela América Latina. O segundo passo, segundo Siqueiros, foi a
retomada do muralismo, abertamente relacionado com essa valorização das artes pré-
hispânicas, já que eram bastante conhecidos os murais que haviam sido encontrados nas
ruínas, e particularmente das ruínas de Teotihuacán. O salto fundamental para a criação
do movimento foi a criação do Sindicato de Operários, Técnicos, Pintores e Escultores
(SOTPE).
A criação do sindicato fez parte desse entusiasmo pelo movimento operário que
o contato com o PCM propiciou. Exceto Rivera e Orozco, todos os outros pintores eram
bastante jovens, e logo suas aspirações por inovar tomaram a forma de um grupo, que
em seus debates sairiam as principais características que marcariam o movimento
muralista de 1923 em diante. Quase que instintivamente reproduziram a forma de
organização mais tradicional do proletariado, o sindicato. Essa organização tinha o
papel de defender os interesses dos pintores de uma forma coletiva, o que era de se
esperar para uma organização sindical, mas, acima de tudo, servia para demonstrar a
adesão daqueles artistas ao movimento proletário, sua filiação ideológica e suas
intenções políticas.
A pintura mural foi iniciada sob muito bons auspícios. Até os erros
que cometeu foram úteis. Rompeu a rotina em que havia caído a
pintura. Acabou com muitos preconceitos e serviu para ver os
problemas sociais desde novos pontos de vista. Liquidou toda uma
época de boêmia embrutecedora, de mistificação que viviam uma vida
de zangões em sua “torre de marfim”, infecto tugúrio, alcoolizados,
com um violão nos braços e fingindo um idealismo absurdo, mendigos
de uma sociedade já muito podre e próxima de desaparecer. Os
pintores e os escultores de agora seriam agora homens de ação, fortes,
sãos e instruídos; dispostos a trabalhar como um bom operário, oito ou
dez horas diárias. Meteram-se nas oficinas, nas universidades, nos
quartéis, nas escolas, ávidos por saber e entender tudo e de ocupar o
quanto antes o seu posto na criação de um mundo novo. Vestiram
macacão e subiram nos andaimes. (OROZCO, 1971, p. 61).
175
objetivos da organização. O Manifesto do SOTPE222 foi publicado em dezembro de
1923 e se dirigia à “raça indígena humilhada durante séculos, aos soldados convertidos
em verdugo pelos pretorianos, aos operários e camponeses açoitados pela avareza dos
ricos; aos intelectuais que não estejam envelhecidos pela burguesia” (SIQUEIROS et
al., 1923, s.p.). Além disso, de forma entusiástica, declarava que os levantes militares de
Enrique Estrada e Guadalupe Sánchez deixavam clara a situação política e social do
país: “de um lado a Revolução Social mais ideologicamente organizada que nunca, e do
outro lado a burguesia armada”. (Ibidem).
Essa análise “clara” da situação política e social mexicana demonstra, por um
lado, que os pintores dominavam pouco as teorias sociais de análise da realidade
política, e, por outro, que a leitura que faziam do leninismo era ainda muito simplista e
sob o prisma do sindicalismo revolucionário e do anarquismo, que mantinha, como
demonstramos até aqui, a simples análise binária e dualista das sociedades periféricas: a
divisão entre burgueses e proletários, sem compreender o papel das classes não
proletárias no processo revolucionário. Nesse sentido, podemos também perceber que
os termos utilizados no manifesto fazem parte mais da prédica liberal antioligárquica
e/ou dos anarquistas que os conceitos utilizados pelo leninismo. Como veremos através
da obra de Diego Rivera ao longo da década de 1920, a influência do leninismo na
interpretação da história e da identidade estética mexicana se desenvolve de maneira
crescente.
222
SIQUEIROS, David Alfaro et al. Manifiesto del Sindicato de Obreros Técnicos Pintores y Escultores,
Cidade do México, 1923. Disponível em:
<http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/ELARCHIVO/RegistroCompleto/tabid/99/doc/751080/language/es-
MX/Default.aspx>. Acesso em: 27 mar. 1922.
176
O manifesto prossegue, após denunciar a movimentação militar, falando sobre a
desaparição da velha ordem e o surgimento de uma nova, erguida pelos operários,
soldados indígenas “de nossa raça como força étnica, brota [...] sua faculdade admirável
e extraordinária particular de fazer beleza: a arte do povo mexicano é a manifestação
espiritual maior e melhor que há no mundo. E sua tradição indígena é a melhor de
todas” (Ibidem, s.p.). Depois de exaltar a raça indígena, e de onde, portanto, brota a
beleza do México, explica: “e é grande porque sendo popular, é coletiva e é por isso que
vosso objetivo estético fundamental radica em socializar as manifestações artísticas
tendendo à desaparição absoluta do individualismo, por burguês”.
Sem muita coerência teórica, o manifesto já apontava temas que seguirão sempre
o movimento: a necessidade de se popularizar as artes, a inspiração nas artes populares
mexicanas, relacionando a herança dos povos que viveram no território mexicano com
os camponeses, índios e trabalhadores contemporâneos, e o combate ao individualismo
burguês nas artes. Assim elegia o que lhes parecia o oposto ao muralismo “proletário”
que pretendiam criar: a pintura “de cavalete”. Em alguns debates, a pintura de quadros
pequenos “de cavelete” foi vista como uma traição ao movimento, depois esse aspecto
mais relacionado à forma de se fazer a arte se esvaziou para dar lugar ao debate com
mais conteúdo.
Fonte: ZURIÁN, Carla. Fermín Revueltas:Constructor de Espacios, México: RM e INBA, 2002, p. 74.
178
Siqueiros ao longo de toda a sua vida seria o “teórico” do muralismo, e, dentre
os Três Grandes, o que mais produziu em termos de debate teórico acerca das artes, do
papel da ideologia e da política. Na década de 1920, seria mais atuante como dirigente
sindical no PCM do que como pintor de murais. Enquanto isso, Rivera será o mais
importante pintor do muralismo nessa fase, sendo a sua obra na SEP reconhecida no
mundo inteiro. (WOLFE, 1989, p.146)
Fermín Revuletas (1902-1935) foi um dos precursores do muralismo mexicano, teve importantes trabalho
de gravura publicados em periódicos. Morreu com apenas 34 anos de idade. Fonte: ZURIÁN, Carla.
Fermín Revueltas:Constructor de Espacios, México: RM e INBA, 2002, p.115
179
As primeiras interpretações visuais marxistas da história do México: os Murais da
SEP e de Chapingo
A partir de março de 1923, Diego Rivera começou o primeiro dos seus murais na
Secretaria de Educação Pública, uma série de 124 afrescos, nas paredes de três andares
desse prédio, que cobrem 1.548 metros quadrados, e terminou essa obra monumental
em 1929. Ao longo desses anos, o Partido Comunista Mexicano, do qual Rivera fez
parte do Comitê Central, passou por diversas transformações em sua linha política, e o
próprio Rivera se notabilizaria no mundo a partir dessas obras.
Esses murais seriam a inauguração tão celebrada do muralismo mexicano. O
180
estilo que Rivera imprimiria a esses afrescos influenciou uma geração de muralistas, e
ao longo desse trabalho Rivera aprimorou sua interpretação marxista da história e a
composição de classes do México. A datação de cada mural não é simples, já que na
maior parte não existe um registro na assinatura com a data. Por outro lado, mesmo nos
que têm um registro de data, cada mural era composto como parte de uma obra toda, e
por vezes Rivera pintava uma parte de um e logo passava para outro sem terminar o que
havia começado, e logo retornava para outro que estava pintando antes. Os murais
também são feitos de maneira demorada, sendo que a dinâmica da vida de Rivera
também interrompia os trabalhos murais, e a própria militância impedia uma
continuidade que nos possibilitasse uma datação precisa. Para estabelecer alguma lógica
no desenvolvimento desta obra de Rivera, começamos datando os rascunhos dos murais.
Rivera sempre fazia rascunhos (bocejos), antes de produzir os murais com grande
precisão e cálculo. Os que pudemos ver não tiveram mudanças em relação aos murais,
de maneira que utilizamos a data dos rascunhos como referência para organizarmos o
desenvolvimento da interpretação marxista da realidade mexicana que Rivera pretendeu
imprimir através de seus murais.
Cada número representa um mural. a superfície pintada por Rivera é impressionante: 1585,14 m².
Fonte: SECRETARIA de Educación Pública. Diego Rivera: Catálogo Geral de Obra MURAL y
Fotografía Personal, México: SEP e INBA, 1988.
181
Figura 44 - Rascunho para “La Cooperativa”, Diego Rivera, (1928)
184
Figura 49 – Coatlicue, deusa mexica
Coatlicue é a deusa mexica da fertilidade, da vida e da morte. O monólito da gravura acima foi
encontrado no século XVIII, e era uma figura conhecida na década de 1920. Provavelmente as mãos
representadas por Rivera em diversos murais, em que mescla símbolos do movimento comunista com a
mão espalmada fazem parte de uma tentativa de encontrar um símbolo do comunismo mexicano. A
gravura está em: LEÓN Y GAMA, Antonio de. Descripción histórica y cronológica de las dos piedras:
que con ocasión del empedrado que se está formando en la plaza Principal de México, se hallaron en ella
el año de 1790. Impr. de F. de Zúñiga y Ontiveros, 1792
Tina Modotti fazia parte do grupo de artistas do PCM, e produziu diversas fotografias que ilustraram o
jornal El Machete. Essa famosa fotografia faz parte de uma tentiva de representação do comunismo
mexicano a partir de uma referência tipicamente nacional, o sombreiro. Fonte: CEMOS
185
Não existem indicações exatas das datas, e, embora Rivera avançasse parede a
parede, ia também retocando, e porventura modificando alguma parte já pintada. Não há
registros desse tipo de intervenção. Em algumas assinaturas, Rivera colocou, além do
nome seguido de uma foice e martelo, a data em que concluiu o mural. Mas por essa
data não sabemos quando o painel foi pensado, indicando o momento de suas
“inspirações” político-ideológicas.
Uma forma de descobrir quando foi pensado e projetado cada mural seria através
da datação dos rascunhos que Rivera fazia antes de cada mural, e em grande parte
daqueles a que tivemos acesso, o pintor seguiu, ao menos na composição, o planejado
no rascunho (bocejo) em papel. Não são todos que estão acessíveis ou que conseguimos
encontrar, mas com os que existem publicado podemos traçar um sentido cronológico
geral da obra de Rivera na SEP, entre 1923-1928 e extrair diversas conclusões.
O prédio fica no centro da Cidade do México, em um edifício que ocupa duas
quadras e tem 3 andares, divididos em 3 partes desiguais. Cada andar Rivera dividiu em
duas partes, as quais denominou como “Pátio das Festas” e “Pátio do Trabalho”.
Em cada parte, vê-se um estilo geral diferente, além da mudança temática.
Rivera pintou do primeiro nível até o 3º. Nesse último nível, encontramos uma
expressão mais acabada de sua interpretação da realidade mexicana, além de alguns
avanços técnicos e definições estilísticas que marcariam a identidade dos seus trabalhos.
Começando pelo Pátio do Trabalho no 1º nível, percebem-se as diversas classes
que formam a sociedade mexicana, como o mineiro entrando na Mina, sendo revistado
após sair, camponeses em outro mural, o capataz controlando e subjugando os
trabalhadores, um trabalhador com roupa de operário, uma professora primária rural,
tecelões e índias tehuanas.
Na parte Pátio de Festas do 1º piso, Rivera pinta a queima de judas, o dia dos
mortos, a dança do veado, além de uma cena com os camponeses colhendo milho e
depois festejando.
Além dos motivos pintados por Rivera já serem modernistas, pois procuravam
retratar as tradições populares e as classes trabalhadoras, podemos ver nesses primeiros
murais da SEP as influências político-ideológicas que se debatiam no PCM, como o
assassinato de agraristas, em “la liberación del peón”, algumas foices e martelos
decorando espações, e um painel denominado “Reparto de la tierra o la dotación de
186
Ejidos”, em que Rivera tenta expressar o debate que o PCM estava organizando em
defesa da dotação de Ejidos, contra a partilha individual da terra, que era estimulada
pelo governo Calles.
O 2º nível foi todo pintado antes de 1925, e, embora existam claras referências
ao movimento comunista como a foice e o martelo em algumas alegorias simbólicas
representando “o trabalho” e o “produto do trabalho”, Rivera pretendeu representar
iconograficamente o “trabalho intelectual”, pintando profissões como a medicina, a
agrimensura, a geologia etc. No outro pátio do 2º andar, foram pintados os escudos dos
Estados da federação mexicana.
No 3º nível, que foi concluído em 1928, podemos encontrar uma interpretação
mais elaborada das contradições da sociedade mexicana, além da simples presença
alegórica do marxismo como em foice e martelos, para a representação narrativa da luta
de classes no contexto histórico mexicano, apontando desde as classes sociais e suas
características diretamente relacionadas ao papel de cada classe na produção até a
atuação política e as perspectivas revolucionárias.
Em 1928, Rivera já acumulava 5 anos de atividade política no PCM, inclusive
no CC, havia estado diretamente em contato com as Ligas de Comunidades Agrárias e
participava da Liga anti-imperialista da Américas, com Mella, Tina Modotti, Siqueiros,
Xavier Guerrero e Galván. Em 1927, havia visitado a URSS e assistido as
comemorações dos 10 anos da Revolução Russa. Esse ambiente produziu uma de suas
obras mais famosas, muito popular pelo sentido que assumiu para o movimento
comunista.
187
Figura 51 – “El Arsenal”, Diego Rivera, terceiro andar da SEP (1928)
Neste famoso mural, Frida Kahlo distribui armas para a revolução. Atrás aparecem camponeses com uma
bandeira da LNC, um operário segura a bandeira do Partido Comunista, no canto esquerdo aparece
Siqueiros com um chapeu, e no canto direito, Vitorio Vidali com Tina Modotti, que distribui munições. A
criança é o próprio Diego. Fonte: fotografía do autor.
188
Chapingo, os murais do problema agrário mexicano
189
No saguão do prédio principal e na escadaria, Rivera reproduziu muitos temas
que também pintou na SEP. Mas se dedicou particularmente ao movimiento agrarista, a
luta pela terra, aos pistoleiros, ao assassinato de agraristas e a unidade operária e
camponesa, simbolizada pelo camponês e pelo operário dando as mãos e um lema
escrito acima, que diz “Aquí se ensina a explorar a terra, não aos homens”. Em “El
Buen Gobierno”, pintado na escadaria, aparece um camponês armado, com suas
ferramentas de trabalho, junto de um militar revolucionário e um operário, de macacão e
um martelo na mão.
No pátio da reitoria, aparece uma cena de corte da terra entre os camponeses, em
outra, um topógrafo. E, por último, a antiga capela, que tem uma série de pinturas nas
abóbodas e demais estruturas que compõem aquela arquitetura. No centro, há a
representação da mãe terra, pintura baseada em Lupe Marín (1897-1981) grávida, sua
esposa na época, e a representação da fertilidade, os elementos como o fogo, a terra e a
água, além dos frutos da terra, o vento e outras representações da natureza e dos frutos
do trabalho do homem, como a eletricidade.
No centro da capela, há oito painéis que representam a transformação social
comparadas com as da evolução natural. O primeiro, “la formación del liderazco
revolucionário”, trata o desenvolvimento da opressão contra os camponeses e operários
pelo latifúndio e os capitalistas, e seus instrumentos de violência, como o capataz. O
segundo grupo chamou-se “tierra oprimida”, em que aparecem os opressores do
México, representado pelo “corpo-geográfico” de uma mulher (Lupe Marín) e com um
militar com uma máquina de gás e espada e pistola na mão, representando a violência.
Um gordo loiro, no canto esquerdo, representa o imperialista norte-americano. Em
“trilogía de la revolución”, aparecem os camponeses em três painéis. O primeiro se
organizando para a luta pela terra, no segundo chorando os mártires, e no terceiro o
“triunfo da revolução”, com os camponeses com comidas fartas, o apoio do operário,
em meio a crianças e mulheres.
Na parede esquerda da Capela, aparece um homem de vermelho, apontando para
uma direção, de macacão, camisa vermelha e sombreiro típicamente mexicano. Uma
alusão à classe operária mexicana apontando a direção para os outros, que cruzam a
foice e martelo mais abaixo, em representação da aliança operário e camponesa. Esse
painel chama-se “El agitador”.
Rivera depois aperfeiçoaria as suas alegorias, trabalharia de forma mais
190
complexa as composições sociais de suas obras, utilizando do artifício de caricaturas de
pessoas conhecidas da história, batalhas, gestos e outros símbolos de expressão, que
tornariam os murais uma espécie de história em quadrinhos, cheia de detalhes, de
mensagens e intenções.
Uma das primeiras formas de expresar o movimiento comunista com
características mexicanas esteve em uma figura repetida em várias obras. Uma foice e
um martelo com uma ou duas mãos espalmadas, em alusão à simbologia asteca, que
utilizava essa mão aberta em vários monolitos, e particularmente na representação da
deusa nahua da vida e da norte, Coatilicue. (figura 49) Depois Rivera abandonaria esse
tipo de composição, para dar lugar às representações da história mexicana, como a
pintura do Palácio Nacional. Tina Modoti fotografou uma representação do movimento
comunista mexicano com uma intenção parecida à de Rivera, mas, ao invés da mão
nahua, preferiu utilizar a foice e o martelo por cima de um sombrero, que representava
os agraristas mexicanos. (Figura 50)
Essa porta foi desenhada por Diego Rivera e talhada por Abraham J. Lopez y Hermanoen Fonte:
fotografía do autor
191
Figura 54 - Porta da Capilla Riveriana, desenho de Diego Rivera, Chapingo (1929)
Neste trabalho Rivera utiliza o recurso da oposição dialética: de um lado a foice e o martelo, e de outro o
capitalismo e o latifundio. Fonte: fotografía do autor.
Figura 55 - Mural de Rivera em que os trabalhadores decidem o seu destino.
Um dos muitos murais em que Diego Rivera procurou colocar entre as figuras o simbolo do comunismo.
Fonte: fotografia do autor.
193
Figura 58 – Aliança operário e camponesa, Chapingo.
195
combates na cidade de São Paulo duraram até 28 de julho, com a vitória das forças
governistas e a retirada dos rebeldes, cerca de 3000 homens, para o Paraná. No final do
ano de 1924 e início de 1925 ainda havia combates entre as forças rebeldes e
governistas, até que parte dos “tenentes” capitulou em Catanduvas. (SODRÉ, s/d,
s/p.)223
No final de 1924, após a rebelião da guarnição da região de Santo Angelo,
comandada por Luís Carlos Prestes, foi possível agrupar cerca de 1500 homens e
marchar ao encontro da Coluna Paulista. Em 14 de abril de 1925, os gaúchos
conseguem encontrar os paulistas, comandados por Miguel Costa.
A Coluna foi reorganizada e Prestes assumiu o comando como chefe do Estado-
Maior. Prestes defendeu a posição de manter a luta em território brasileiro. Com a
vitória de sua direção, supera-se as posições de alguns líderes do movimento que
pretendiam buscar exílio nos países vizinhos.
Fonte: CPDOC/FGV, retirado de: FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio. São Paulo: Record, 1925.
223
Utilizamos uma versão eletrônica de Sodré: SODRÉ, Nelson Werneck. A Coluna Prestes - Análise e
Depoimentos. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/67132855/A-Coluna-Prestes.> Acesso em: 27
mar 2014.
224
Luis Carlos Prestes está de pernas cruzadas, o terceiro sentado da esquerda para a direita.
196
Prestes passou por Goiás, Pará, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Pernambuco,
Ceará, Rio Grande do Norte ao longo de pouco mais de 2 anos, cobrindo mais de 25 mil
quilômetros.
Em uma carta de Prestes dirigida ao General Isidoro, dizia: “A guerra no Brasil,
qualquer que seja o terreno, é a guerra de movimento. Para nós revolucionários o
movimento é a vitória. A guerra de reserva é a que mais convém ao governo que tem
fábricas de munição, fábricas de dinheiro e bastantes analfabetos para jogar contra as
nossas metralhadoras” (PRESTES, 1925 apud PRESTES, 1990, p.149)
Anita Prestes (1990, p. 82) explica:
Quando Luiz Carlos Prestes, à frente da Coluna que mais tarde tomou
seu nome, inaugurou uma nova tática – a "guerra de movimento"–
até então desconhecida dos militares brasileiros, os generais a serviço
do governo ficaram perplexos, desnorteados e sem saber como agir.
Seus conhecimentos de arte militar não lhes permitiam defrontar com
êxito as novas formas das investidas rebeldes, de suas manobras e
emboscadas. Apesar da sua superioridade em armamento, efetivos
militares e apoio logístico, as forças da "legalidade" não conseguiriam
derrotar a Coluna Prestes, que partiria invicta para o exílio.
225
Não iremos nos aprofundar na “ideologia” que guiava a Coluna, já que não há um impacto dessas
concepções políticas no movimento comunista aqui estudado. Brandão e Astrojildo qualificavam os
tenentes “pequenos-burgueses” como confusos. Para conhecer os manifestos e programas gerados pela
Coluna ao longo de sua marcha, ver: PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. São Paulo:
Brasiliense, 1990. O clássico sobre a Coluna, além do livro de Anita Prestes: MOREIRA LIMA,
Lourenço. A Coluna Prestes – marchas e combates. São Paulo: Alfa-Omega, 1979.
197
(embora não apenas eleitorais) e na bolchevização dos Partidos Comunistas. Para o
PCB, significaria a necessidade de organizar o Partido e estabelecer uma análise da
sociedade brasileira que possibilitasse um programa que direcionasse as alianças
possíveis para o PCB.
As prisões e o Estado de Sítio dificultaram muito a atividade política do Partido,
mas em 1925, os comunistas conseguiram traduzir pela primeira vez no Brasil o
Manifesto Comunista, publicar uma série de livros clássicos do Movimento
Comunista226 e fundar um jornal do Partido, o “Classe Operária”227, que correspondia à
orientação do V Congresso da IC.
Em 1925, entre os dias 16, 17 e 18 de maio, Astrojildo e Octávio Brandão, os
dois principais dirigentes do PCB, começaram a elaborar a 1ª análise da realidade
nacional, que seria depois, em 1926, publicada em um livro com o nome “Agrarismo e
Industrialismo” por Octávio Brandão, mas que apareceu publicado sob o pseudônimo de
Fritz Mayer228, com “edição” em Buenos Aires para despistar a polícia229.
Agrarismo e industrialismo
Octávio Brandão não esteve entre os fundadores que se reuniram entre os dias 25
e 26 de março de 1922 para constituir o PCB. Brandão era um jovem farmacêutico
alagoano que havia entrado em contato com os grupos anarquistas após uma decisão da
COB em expandir o movimento para outros Estados. Everardo Dias foi viver em
Pernambuco e assim pudesse organizar o proletariado no nordeste.
Dessa ida, surgiram alguns contatos, particularmente Octávio Brandão e
Canellas, que depois passaram a publicar jornais para a propaganda anarquista e a
organização do proletariado.
226
“Assim, na pequena farmácia da rua General Câmara 307, a partir dos meados de 1922, pela primeira
vez na vida, li em traduções francesas os livros de Marx, Engels e Lênin – os três maiores Mestres de toda
a Humanidade. Comecei lendo O Estado e a Revolução, A Moléstia Infantil do ‘Esquerdismo’ no
Comunismo de Lênin e o Manifesto Comunista de Marx e Engels. (BRANDÃO, 1978, p. 231)
227
“A IC escreveu ao PCB, a 10 de julho de 1923, recomendando-lhe que transformasse a revista
Movimento Comunista num jornal operário de massas. Esta recomendação tornou-se uma realidade em
1925, com a fundação do jornal A Classe Operária.” (BRANDÃO, 1978, p.222)
228
Octávio Brandão utilizaria esse nome Fritz Mayer para publicar em outros órgãos da imprensa
comunista, como Correspondencia Sudamericana.
229
“No meio de grandes perigos, com precauções ainda maiores, à noite, o trabalho de composição e
impressão recomeçou na mesma tipografia. Finalmente, no Rio de Janeiro, em abril de 1926, sob o estado
de sítio, Agrarismo e Industrialismo apareceu com o pseudônimo de Fritz Mayer e a menção de ter sido
editado em Buenos Aires, a fim de desorientar a polícia.” (BRANDÃO, 1978, p.286)
198
Antes que viessem ao Rio de Janeiro integrar a direção comunista, Brandão
chegou a escrever um livro em que, com linguagem poética procurava descrever a
geologia de sua terra natal.230. Seu esforço por contribuir com as ciências nacionais e a
militância revolucionária o levaram ao Rio de Janeiro, e nesta cidade procurou
contribuir não apenas com a organização do PCB, mas também com a elaboração
teórica e com a propaganda do Partido.
Entre os anos de 1920, além dos artigos de Astrojildo, foi através da pena de
Brandão que o PCB procurarou incorporar o marxismo como método de análise da
realidade nacional. O estilo ousado, afirmativo e cheio de frases de efeito é uma
característica do comunista alagoano, e essas peculiaridades de sua personalidade, são
marcantes em “Agrarismo e Industrialismo”.
O livro começou a ser escrito logo após a segunda revolta de 5 de julho, em
1924231, concluindo um mês depois a “parte fundamental”, com a qual pode debater
com outros companheiros. Brandão escreveu em 1925 e 1926 as duas últimas partes.
O livro está centrado na identificação das causas da revolta militar e em quais
forças sociais estão em conflito. Brandão encontrou uma contradição entre “a vontade
de dominação dos grandes industriais, cujos interesses muitas vezes são desprezados
pelos grandes fazendeiros de café.” (BRANDÃO, 2004, p.27) Ou seja, o Brasil estava
dominado pelo “agrarismo”232, que significava o atraso feudal da economia rural,
marcada pelo domínio dos coronéis, particularmente pela elite cafeeira que impunha
suas demandas ao país.
Para acentuarmos ainda mais a Medievalite Nacional, vamos citar
outras manifestações. Ficará assim fora de dúvida que o Brasil ainda
é, no conjunto, um país medieval, atrasado, sob este ponto de vista,
cinco séculos no mínimo.
Manifestações econômicas: A miséria do povo. A igreja católica livre
de imposto
Manifestações políticas: O autoritarismo paterno sobre a família. Os
padres, livres do serviço militar. Os bispos como intermediários nas
lutas políticas - ver as atitudes do cardeal Sebastião Leme na
presidência Epitácio e do arcebispo de São Paulo durante a revolta. A
tendência, em Afonso Celso, para a monarquia aliada à Igreja. A
tendência, em Jackson de Figueiredo, filho espiritual dos absolutistas
230
O raríssimo livro de Brandão, Canais e Lagoas, mistura poesia com naturalismo e geologia.
231
BRANDÃO, 1978, p.284
232
A palavra agrarismo para Brandão identifica o meio rural, a atividade agrícola, em oposição a
industrial. No México, agrarista é o movimento camponês que lutava por terra, do qual Emiliano Zapata é
o mais importante ícone.
199
como José de Maistre, na França, e Pobiedonostsev, na Rússia, para a
autoridade de direito divino e para a teocracia.
(...) Manifestações psicológicas: A moralina. A veia poética para o
amor e o misticismo - ver os minnsingers, cantores místicos do amor.
A vida contemplativa, sedentária, de milhares de brasileiros. A
tendência para a rotina. O gosto pelas cores berrantes, predileção
característica de povo bárbaro.. (...)Manifestações sociais: O artesão, o
tamanqueiro. O caudilho, forma moderna do barão de presa ou rapina.
O cangaceiro, revoltado, ao mesmo tempo, degenerescência do
cavaleiro mercenário. O trabalhador rural negro, proveniente do
escravo, exatamente como o vilão-servo da Idade Média.
(BRANDÃO, 2004, p.49-50)
233
A identificação da disputa interimperialista entre Inglaterra e os EUA pelo domínio da América Latina
foi afirmada no V Congresso da IC (1924), como veremos mais a frente.
200
mas claramente se perde, dificultando a apreensão do sentido que guia a exposição do
texto como um todo.
Quase ao final da exposição, Brandão apresenta um modelo resumido de seu
raciocínio a partir do que ele entende por dialética marxista:
XVI - TESE, ANTíTESE E SíNTESE
Os que acreditam no Ser, no Absoluto, só vêem na revolta de 1924 um
motim secundário, localizado, mumificado, uma espécie de quisto
social, sem relações com o ambiente, sem significação de espécie
alguma. Nós, porém, que só admitimos o Devenir, a transformação
continua, vemos nessa revolta um processo, a elaboração de alguma
coisa nova que quer surgir sem poder ainda: a vitória do
industrialismo sobre o agrarismo; a vitória da burguesia industrial
sobre os agrários; a vitória da burguesia progressista sobre os
elementos rotineiros.
Aplicando a dialética marxista à revolta de 1924, veremos o seguinte:
Afirmação: Artur Bernardes, o grande agrário", a grande propriedade
rural.
Negação: Isidoro Dias Lopes, o pequeno-burguês, atrás do qual
manobra o grande burguês industrial.
Negação da negação: a revolução proletária, que negará Bernardes e
negará Isidoro, e que, por isso, fundirá os contrários, produzindo o
que, há milênios, o grego Heráclito chamava: uma harmonia.
Tese, antítese e síntese. Afirmação, negação e negação da negação. A
revolução proletária afirmará Bernardes porque afirmará o agrarismo,
mas numa etapa superior – o agrarismo industrial, proletário. Afirmará
Isidoro porque afirmará o industrialismo, mas numa etapa superior –
o industrialismo proletário. Negará Bernardes porque negará o
agrarismo feudal. Negará Isidoro porque negará o industrialismo
burguês. E fundirá o industrialismo com o agrarismo, como também o
operário com o camponês, a oficina com a seara, a cidade com o
campo, o martelo com a foice. Dentro da Harmonia Proletária,
desaparecerão as classes e, por conseguinte, a guerra de classes.
(BRANDÃO, 2004, p. 138-139)
201
das análises produzidas pelos comunistas até aquele momento.
Verificar inconsistências teóricas na década de 1920, quase há cem anos atrás, é
a parte mais fácil. Importa-nos estabelecer quais foram as consequências mais
importantes dessas primeiras interpretações “marxistas-leninistas” na prática política do
PCB.
Em primeiro lugar, Brandão conseguiu perceber uma disputa entre duas forças
imperialistas, entre ingleses e norte-americanos, e identificar que o capital norte-
americano estava em franca expansão, enquanto o inglês declinava. Esse movimento foi
verificado com clareza pelos dados econômicos já estudados pela bibliografia234.
Mas Brandão relacionava os “agrários” ao imperialismo inglês, enquanto que os
“industriais” estariam ao lado do capital norte-americano. Essa divisão não correspondia
a realidade, embora a argumentação de Octávio apresentasse vários dados. Esses
“industriais” estariam também por trás de Isidoro Dias Lopes, “o pequeno burguês”,
através do qual manobra o grande burguês industrial.” (BRANDÃO, 2004, p.138)
Sem exatamente explicar como, e apenas se apoiando em seu “domínio” da
dialética, Brandão acredita que a “Revolta pequeno-burguesa” levaria a Revolução
Proletária. “Progride a proletarização da pequena burguesia. Cresce sua experiência
revolucionária. Esfarelam-se muitas de suas ilusões. Avoluma-se a concentração
capitalista. Acirra-se a rivalidade entre o grande burguês industrial e o fazendeiro de
café. Brigam entre si os politiqueiros paulistas e mineiros. Aumenta a ascendência do
proletariado...” (BRANDÃO, 2004, p.139)
Os esquemas de Brandão para projetar essa vitória do proletariado não se
confirmaram e não passavam de uma projeção extremamente otimista. Em uma
comparação com o contexto russo, Brandão “comprovava” as perspectivas
revolucionárias no Brasil.
Muitos elementos da pequena-burguesia, influenciados pela
vanguarda proletária, já começam a entrever que, depois da vitória do
Isidoro atual ou do Isidoro futuro, haverá alguma coisa. Lembram-se
de que o czar Nicolau era agrário, feudal, como Bernardes. Lembram-
se de Kerensky, "democrata", pequeno-burguês, como o Isidoro atual
ou o futuro Isidoro. Lembram-se de que o pequeno-burguês Kerensky
substituiu Nicolau, o feudalista, para depois ser derrubado pela
revolução proletária... (BRANDÃO, 2004, p.144, grifo nosso.)
234
Há diversos dados dessa substituição de influência econômica na América Latina em: BETHELL,
Leslie. Historia de America Latina – economia y sociedade desde 1930, v.11, Barcelona: Crítica, 1994.
202
Diferente do que se pode crer apenas pelas aparências, a lógica de Brandão não
via nos “industriais” a força da revolução, mas na pequena burguesia revoltosa. “Não
nos iludamos, porém, com a burguesia industrial do Brasil. Após a retirada dos
revoltosos, em vez de calar-se, ela declarou apoiar a legalidade.” (BRANDÃO, 2004,
p.145)
O motivo desta posição dos “industriais” e da burguesia comercial era, portanto,
a sua origem no “agrário” e curiosamente, entre outros, cita Monteiro Lobato como
exemplo de insdustrial. “Por exemplo, Monteiro... até Juiz de Fora. (p.146)
Assim, para Brandão a contradição entre agrários e industriais é uma contradição
interburguesa, que divide os imperialistas e com essa disputa se abre uma crise que pode
ser aproveitada. “Por exemplo, Monteiro Lobato, atualmente industrial, já foi fazendeiro
de café. Teodorico de Assis, agrário mineiro, está montando uma fábrica de tecidos
dentro de sua própria fazenda de café, na estação de Retiro, perto de Juiz de Fora.”
(BRANDÃO, 2004, p.149)
De certa forma, Brandão vê os industriais como a parte progressista da
burguesia, mas incapaz de transformar a ordem política, dando prosseguimento a uma
revolução, e tendendo a conciliar com os “agrários”. O papel da pequena burguesia está
em manter a revolução e radicalizá-la. O proletariado poderia alcançar a direção do
processo e fazer a revolução proletária.
Brandão acreditava, como comunista, na industrialização, mas que não
seria levada à frente pelos industriais, mas pelo proletariado revolucionário.
Para nós, o futuro do Brasil não está no café, na lavoura feudal. Está
no petróleo do Norte, no carvão do Sul, no ferro de Minas, no
manganês de Mato Grosso, na lavoura industrializada, na maquinaria
que transformará a borracha e o algodão, nos trinta milhões de
cavalos-vapor das cachoeiras. Especialmente no ferro e no carvão. O
futuro do Brasil está na grande indústria centralizada - base objetiva
da sociedade comunista. (BRANDÃO, 2004, p.160)
E defendia:
Pelo industrialismo! Pela revolta! Pelos militares e pequeno-burgueses
revoltosos! Pelos operários, camponeses, soldados e marinheiros
coligados! Pelo funcionamento das associações! Pela reabertura dos
jornais suspensos! Pela legalidade do Partido Comunista do Brasil!
Pela restituição dos milhares de livros e folhetos confiscados ao
Partido Comunista! Pela organização e reorganização das vastas
massas operárias e camponesas!
203
Contra a reação! Contra o agrarismo! Contra a grande propriedade
rural feudal! Contra a política dos fazendeiros! Contra os estados de
sítio!
(...) Contra o imperialismo anglo-americano! Contra Rothschild,
protetor de Bernardes! Contra MacOonald, que apoiou Bernardes!
Contra a 2ª Internacional "socialista" - responsável
pelas perseguições bernardistas aos trabalhadores do Brasil!
(...) Abaixo os que hesitam entre o proletariado e a burguesia! Contra
a reação agrária, pela revolta pequeno-burguesa! Mas contra a
pequena burguesia, pela revolução proletária! (BRANDÃO, 2004,
p.160-1)
204
Figura 60 - Trecho do Jornal A Nação em que aparecem analises da direção do PCB
derivadas da tese Agrarismo x Industralismo.
Com essa ideia, o PCB, portador da teoria e da capacidade política superior aos
“confusos” tenentes, ajudariam a pequena burguesia a transformar uma provável 3ª
revolta em uma revolução pequeno-burguesa, etapa para o socialismo.
Dizer que essa tese de Brandão é etapista ou que comete o mesmo erro teórico
dos mencheviques, seria “chover no molhado”. O que importa nesta “primeira tentativa”
dos comunistas brasileiros em elaborar um “ensaio marxista-leninista sobre a Revolta
de São Paulo e a Guerra de classes no Brasil – 1924” são as suas consequências
políticas, já que esse texto não era apenas um tipo de monografia de final de curso de
Brandão, mas uma síntese de posições e interpretações políticas que eram debatidas no
interior do jovem PCB.
Ao final de 1926, com o fim do estado de sítio, foi possível aos militantes do
205
PCB, um pequeno interregno de legalidade e ampliação das possibilidades de
propaganda e organização política mais ampla, que se concretizariam na formação do
Bloco Operário e Camponês, que elegeu Octávio Brandão para vereador, conseguiu
fazer propaganda através de um jornal diário, A Nação, e a partir de 1927, daria início a
uma aproximação com Prestes e os tenentistas. Primeiro em 1927, em que Astrojildo foi
a Bolívia encontrar com Prestes. Nessa oportunidade o secretário geral do PCB deixou
vários livros de marxismo-leninismo com Prestes, e depois, através de Basbaum, o
PCB formaria um programa comum entre Prestes e o PCB, que não seria levado à
frente, e o próprio Prestes romperia com os tenentes para aderir ao movimento
comunista.
235
206
Figura 62 – "Los Sabios", Diego Rivera, SEP, México. Representa a elite intelectual
burguesa.
Figura 63 – Detalhe da imagem ao lado, com uma lista de autores liberais e positivistas
preferidos pela antiga elite intelectual porfirista
Uma mulher trabalhadora, auxiliada por uma revolucionária comunista (de vermelho) varre um
“intelectual burguês” de cabelos loiros, enquanto um jovem revolucionário o empurra com os pés. O
intelectual e artista está representado pelos seus instrumentos (a pena, um instrumento musical e uma
prancheta de pintura). A figura está curvada com uma orelha de burro. Fonte: fotografia do autor.
208
José Carlos Mariátegui e os bolcheviques
209
podemos identificar os grupos a partir do título do jornal236.
Do mesmo modo, o movimento anarquista peruano esteve nucleado em torno do
jornal La Protesta, no qual González Prada, entre outros, escrevia. Entre os movimentos
revolucionários que mais agitaram a luta contra a ditadura de Porfírio Diaz, o jornal
dirigido pelos irmãos Flores Magón, Regeneración, têm quase a mesma importância
orgânica que os Partidos antioligárquicos, como o Partido Liberal Mexicano. Na reunião
de liberais mexicanos que daria origem ao PLM, Ricardo Flores Magón compareceu
como representante do Jornal Regeneración.
Os jornais tinham o papel de divulgar a doutrina revolucionária, promover o
debate sobre o movimento operário, informar acontecimentos que interessavam aos
revolucionários, fatos que a imprensa governista calava ou deturpava, mas, acima de
tudo, eram importantes núcleos de organização política.
José Carlos Mariátegui se formou como muitos jornalistas de seu tempo, à
margem da universidade, variando entre o desprezo pelas instituições acadêmicas e o
interesse distante pela ciência. O início da carreira jornalística de Mariátegui é no nível
mais elementar do processo de composição dos jornais, como alcanzarejones (corretor
de provas) no jornal diário La Prensa. Um ano depois, ascende a ajudante de linotipista
e corretor de provas. Outro ano mais, aos 16 anos, escreve seu primeiro artigo, passando
a ajudar na classificação dos telegramas que chegavam do interior. Passou a escrever as
notas policiais e sobre a loteria, até tornar-se jornalista, redator e colaborar com artigos
em outras revistas. Aos 23 anos, conseguiu alguns prêmios pelos seus artigos.
A trajetória de Mariátegui, além da precocidade com que ascendeu na carreira,
formou-o como um jornalista completo, conhecedor de todo o processo de produção de
um jornal, desde a redação, da busca pelas notícias ordinárias, até artigos mais
analíticos, ou mais apropriados para as colunas. Aprendeu a lidar com os anunciantes,
com a impressão, a composição gráfica e o processo de distribuição. Como Astrojildo
Pereira, Ricardo Flores Magón ou Antônio Canellas, José Carlos Mariátegui dominava o
principal veículo de propaganda ideológica e de agitação política da década de 1920: o
jornal.
Os gráficos formaram uma das partes mais conscientes e organizadas entre os
236
Um bom exemplo do papel organizador do jornal foi o ato de Primeiro de Maio de 1918, no Rio de
Janeiro. Um grupo de operários e revolucionários comemorou a vitória da Revolução Russa, e no comício
falaram vários representantes dos movimentos organizadores do ato, cada um falava em nome de um
jornal.
210
trabalhadores urbanos latino-americanos desde que começaram a aparecer os sindicatos.
Muitos dirigentes do movimento operário saíram desse setor da classe operária. Uma
das primeiras organizações operárias brasileiras foi a UTG (União dos Trabalhadores
Gráficos). No Peru aconteceu o mesmo. Em 1883, uma das primeiras greves que se tem
notícia foi organizada pelos tipógrafos em Lima. (DELHOM, 2001, s.p.).
O jornal diário onde Mariátegui aprendeu seu ofício, La Prensa, possuía uma
orientação liberal, de oposição ao civilismo. Até o ano de 1918, Mariátegui escreveu
sobre tudo, mas foi se destacando na cobertura das notícias sobre o parlamento. A linha
da direção do jornal permitiu ao jovem jornalista Mariátegui desenvolver sua crítica
contra o civilismo decadente, e possibilitou que cada vez mais encontrasse novos ares e
novidades na política, particularmente nas notícias internacionais.
Por volta da metade do ano de 1916, saiu da redação de La Prensa e começou a
trabalhar em El Tiempo, devido a uma mudança de direção em La Prensa. Junto com
ele, foi seu companheiro de redação, Cesar Falcón, que passou a ser colunista de uma
seção diária chamada “Voces”, que analisava diversos temas237.
E seria em 30 de dezembro de 1917, pouco mais de um mês depois da tomada do
poder pelos bolcheviques na Rússia, que o jovem Mariátegui, com apenas 23 anos,
escreveria um artigo em que se assumia como bolchevique, respondendo a uma
acusação de Luis Miró-Quesada, diretor do jornal El Comercio:
237
“[...] começa a ter uma superior visão do mundo que o rodeia; descobre temas mais transcendentais e
os analisa, expõe com melhor critério moderno um critério mais moderno, sólido, ‘progressista’ agora;
seu estilo ágil, vivo, jornalístico, em suma, no bom sentido da palavra e do ofício. A crítica seguia sendo
seu forte. A política é agora sua paixão.” (CARNERO CHECA, 1980, p. 115).
238
Policialesca refere-se à polícia. Nesse caso, o jornal El Comercio colaborava com a identificação e a
delação de presuntos “bolcheviques”, com o intuito de colaborar com a repressão policial.
211
Chang-Rodrígues considera que o trabalho de Mariátegui em El Tiempo já estava
preocupado com a divulgação do socialismo. A transição, ou o amadurecimento das
posições políticas de Mariátegui em direção ao socialismo, como denomina Cesar
Lavano (1980, p. 28), esteve diretamente relacionado ao seu crescente contato com o
movimento operário. Mais uma vez, a comparação com o outro jornalista revolucionário
é inevitável. Ricardo Flores Magón, no México porfirista, fundou o seu jornal com
propostas liberais e democráticas em 1900, depois de entrar em contato com o
movimento operário, fator que aprofundou suas posições ideológicas e políticas,
conhecendo o anarquismo e transformando o seu jornal, Regeneración, em uma tribuna
de agitação radical e fermento para a luta proletária.
Mariátegui encontrou o movimento operário em outra época, exatamente quando
a Revolução Russa animava os mais ativos operários, e assustava as classes que
dominavam o Estado peruano. Todo movimento operário combativo era acusado de
“bolchevismo”, “maximalismo” ou “sovietista” pela imprensa ligada ao governo. Entre
1917 e 1919, devido à crise que assolou os países vinculados ao mercado mundial
controlado pelos europeus, várias greves ajudaram a remexer a ordem civilista, e em
maio de 1919 ocorreu a maior greve até então vista no Peru. A Revista Variedades
noticiava da seguinte maneira:
239
Em 17 de janeiro, pelo apoio que deu a greve dos operários em Lima, El Tiempo foi fechado até que se
terminasse o movimento paredista. O motivo: “era o temor de que El Tiempo estimulasse e solevantasse
as classes trabalhadoras e fez piada sobre as ‘tendências bolcheviques’ do periódico”. (LEVANO, 1977, p.
28).
212
curtíssima duração, Mariátegui publicou apenas 2 números240.
O jovem jornalista peruano estava em franca transformação. Renunciou às suas
preocupações anteriores, inclusive a um pseudônimo que utilizava em artigos, Juan
Croniqueur, que o havia tornado conhecido, e passou a assumir uma posição
abertamente em favor do socialismo.
O diário La Razón foi lançado em 14/05/1919, e logo abriu as páginas para os
movimentos que emergiram nesse ano: o movimento operário e os estudantes que
agitaram a Reforma Universitária. Ao longo desse ano, como eco da Revolta Estudantil
de Córdova, um movimento estudantil crítico às estruturas oligárquicas na universidade
começou uma agitação vigorosa no Peru. Foi um grito liberal, renovador, crítico à
política mesquinha que privilegiava as relações pessoais e a burocracia em detrimento
da ciência. Pela época e pela efervescência política que a Revolução Russa produziu,
esse movimento reformador entre os estudantes se encontrou com outras iniciativas de
intelectuais, que buscaram de alguma maneira se ligar à experiência da Revolução
Russa e à onda revolucionária do pós-guerra que varreu o mundo.
A referência imediata foi o grupo criado em torno de Henri Barbusse e a revista
editada em Paris, Clarté, que inspiraria a criação de uma revista similar no Peru241, e em
diversos países da América Latina. Tal como a Internacional Comunista, foi fundada em
Moscou para organizar a Revolução Proletária Mundial. Henri Barbusse (1873-1931)
falava em uma Internacional do Conhecimento, do saber, que estava representada pelos
grupos Clarté, fundados em diversos países.
240
A revista Nuestra Época era produzida nas máquinas de El Tiempo, onde trabalhavam Falcón e
Mariátegui. Devido a um artigo escrito por Mariátegui nesta revista, “Más tendências. O dever do
exército e o dever do Estado”, em que questionava a finalidade do Exército, o jovem jornalista foi
agredido por militares, após insultos, com pontapés e socos. Esse fato fez com que El Tiempo não
permitisse que Nuestra Época fosse impressa em suas oficinas, terminando a publicação de Nuestra
Época em seu segundo número. Mariátegui respondeu o ataque dos oficiais com um artigo nas páginas de
El Tiempo, e depois se retirouu da redação do diário e junto com Casar Falcón se lançou à empreitada de
construir um jornal diário independente, e de filiação socialista. “Diário que durante pouco mais de três
meses dirigimos e sustentamos em 1919, Cesar Falcón e eu e que iniciada já nossa Orientação até o
socialismo, combateu no flanco do proletariado com ânimo de simpatizante, nessa vigorosa mobilização
de massas”. Lembraria 10 anos depois ao escrever o prólogo do livro de Ricardo Martínez de La Torre.
Ver: MARTÍNEZ DE LA TORRE, Ricardo. El movimiento obrero peruano 1918-1919, Lima: CRONOS,
s/d. e _____. Apuntes para una Interpretación de la História Social del Peru, Lima: Editora Peruana,
1947.
241
Referimo-nos aqui à Revista Claridad.
213
Figura 65 – Retrato de Barbusse em Amauta
242
Referimo-nos aos militantes do Partido Aprista Peruano, fundado por Haya de La Torre.
214
jornalismo de novo tipo, em um conteúdo e meta. Juan Croniqueur – quem iria dizer –
havia deixado sua tertúlia literária e seu copo de ‘suisse’ para subir em uma tribuna de
agitador”. (Ibidem, p. 18).
La Razón deixaria de ser publicado por ordem do arcebispado de Lima, que
controlava a empresa tipográfica La Tradición, local onde se imprimia o jornal.
Esses foram os últimos acontecimentos da biografia de Mariátegui antes de uma
definição ideológica decidida, antes da viagem pela Europa, em 8 de outubro de 1919.
215
ofereceu para cada um deles uma bolsa de estudos, para que servissem de adidos da
cultura peruana no velho continente a soldo do Governo, Mariátegui na Itália, e Cesar
Falcón na Espanha. Ambos aceitaram. Mariátegui chegaria em novembro de 1919 na
Europa243.
Para muitos autores, como Paris (1981) e Löwy (1999), essa “etapa europeia”
seria o aprendizado marxista de Mariátegui, o que explicaria inclusive sua originalidade,
já que nessa experiência italiana pôde ter contato com um marxismo menos “ortodoxo”,
que inclusive explica a mesma originalidade também em Gramsci. Dentre os autores
que teriam alimentado a experiência “heterodoxa” de Mariátegui, estariam Sorel,
Gobetti, Laborde, Croce e até Gramsci.
Estamos de acordo que Mariátegui buscou em diversos autores referências que o
ajudasse a explicar a realidade, a aprofundar seu conhecimento do socialismo, mas é
necessário, para termos uma real dimensão dessas influências, avaliar o que é estrutural
na concepção de Mariátegui, e o que é acessório teórico. Ao nosso ver, há um esforço
interessado por valorizar o particular como essencial, e é nessa perspectiva que se tem
transformado Mariátegui em “gramsciniano”, “gramiscianista”, “soreliano”,
“marxiano”, “aprista” e até um tipo socialdemocrata acadêmico. Para nós, os elementos
estruturantes do aprendizado marxista de Mariátegui avançaram claramente em direção
ao leninismo, conforme demonstraremos analisando os documentos mais acessíveis
produzidos por Mariátegui ao longo de sua viagem de 3 anos pela Europa e
imediatamente após seu retorno: os artigos que o Amauta244 escreveu na Europa e as
conferências sobre situação internacional ministradas nas Universidades Populares
González Prada245.
243
Esse episódio é muito controvertido na historiografia peruana. Por muitos é tratado como uma
capitulação de Mariátegui frente ao lenguismo, e inclusive é comparado por autores apristas a um
episódio análogo em que Haya dela Torre nega um convite similar. A comparação é anacrônica, já que o
significado do governo de Lenguia em 1919, alguns meses após o seu início, é diferente de quando Haya
negou o convite, em 1923.
244
Amauta, além do título da Revista dirigida por Mariátegui, é uma palavra quéchua que quer dizer
sábio. Esse termo foi utilizado para se referir a José Carlos Mariátegui.
245
Encontramos, dentre os inúmeros autores que trataram da obra de Mariátegui, um debate acirrado
sobre suas influências e fontes, passando por tão variados adjetivos e autores que tornam o autor de Sete
ensaios um tipo tão eclético que em parte explica o uso de sua obra por um número tão variado de
correntes políticas, desde os comunistas, trotskistas, seguidores de Gramsci, social-democratas, apristas,
bolivarianos e até a Teologia da Libertação.
Ao longo desta tese, é possível encontrar diversas referências às correntes políticas estranhas ao
movimento comunistas, ou até anticomunistas, que de uma forma ou de outra reivindicam o pensamento
de José Carlos Mariátegui. Um exemplo curioso está no artigo, que encontra influências de Mariátegui no
grupo católico Teologia da Libertação. Disponível em:
<http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Papa-discretamente-recebe-o-lider-da-Teologia-da-
216
A primeira questão medular que estrutura a obra de José Carlos Mariátegui é o
tempo em que viveu o seu amadurecimento político cultural. Como temos demonstrado
até agora, a Primeira Guerra Mundial significou uma ruptura profunda com o velho
mundo herdado do século XIX. Mariátegui fazia parte do movimento crítico a todos os
elementos que compunham esse velho mundo. Em primeiro lugar, rechaçava a base
ideológica positivista, cientificista e mecanicista que caracterizou a expansão
imperialista entre a década de 1870 e o início da Primeira Guerra Mundial (1914). Sua
crítica, seu inconformismo, sua busca por renovação esteve relacionada a tudo que se
opusesse à ideologia positivista a qual legitimava a ideologia civilista que sustentava o
Estado oligárquico no Peru. Sua experiência como jornalista acompanhando a atividade
parlamentar peruana lhe inspirava desprezo, como ele afirmou seguidamente em
diversos artigos246. Quando em 1919 ocorreu o movimento dos estudantes reformistas
na Universidade de San Marcos, a identificação de Mariátegui com a juventude que
pedia renovação foi automática, e, não por outro motivo, reivindicava paixão247.
***
219
No clima de crise e pequena tradição do reformismo, se comparado à social-
democracia alemã, era razoável que em meio às ocupações de fábricas que se
espalharam pela Itália fossem as posições radicais que assumissem mais importância na
condução do movimento operário. O grupo mais alinhado às posições comunistas, que
defendia sem reservas a adoção das 21 condições para a filiação da IC, aprovada desde
o II Congresso da IC, em 1920, era a corrente de Antônio Gramsci, e do L’Ordinere
Nuovo, o jornal que nucleava a fração comunista do PSI.
Junto com Cesar Falcón, entre 1920 e início de 1921, Mariátegui foi ao norte da
Itália, no centro da insurreição operária italiana, onde ficavam as três cidades industriais
da península, e onde o movimento operário vivia os debates político-ideológicos mais
intensamente.
Como correspondente do Jornal El Tiempo, os jovens peruanos participaram do
Congresso de Livorno, o qual marcaria a saída da Fração Comunista, que fundaria o
Partido Comunista Italiano, com Bordiga, Gramsci, Terracini, Bombacci, Reposssi,
entre outros, no dia 27 de janeiro de 1921.
249
Fonte: Archivo José Carlos Mariátegui, Lima, Peru. Disponível em:
<https://www.flickr.com/photos/mariategui/4434202912/in/set-72157623616144020>. Acesso em: 27
mar. 2014.
220
Roillon marca, um pouco antes do Congresso, o momento em que Mariátegui
define-se como marxista-leninista.
250
“Por entonces Mariátegui, Falcón, Machiavello y un joven médico, Carlos Roe – quien recientemente
se había unido al grupo – poseían una convicción socialista y tenían un claro enfoque de clase sobre los
fenómenos de la vida social. Convertida Europa en lugar de paso para ellos, «se concertaron para la
acción socialista» en el Perú fundando una célula para tal propósito. Así empezó a cruzarse por la mente
de José Carlos la idea de concurrir a la creación del socialismo peruano.
‘Mariátegui y Falcón – relata Armando Bazán – solían reunirse a menudo con un cónsul peruano
(Machiavello) y con un médico chalaco (Roe). Al poco tiempo, funcionario y galeno resultaron "rojos’.
Las cosas llegaron a tanto que una noche de esas resolvieron formar los cuatro ¡la primera célula
comunista peruana!. Muy fugaz y muy exigua fue la actuación de la célula peruana, involucrada en ese
conjunto social donde los fascios adquirían cada vez más virulencia y predominio...” (ROIULLON, 1982,
s.p.).
221
jornalista o fato de Mariátegui citar um autor não significava que ele estivesse sendo
“influenciado” por ele. Por outro lado, em 1920-21,
251
Cf.: SOREL, 1992.
222
Figura 67 - Lenin na Revista Amauta
Assim, Sorel apresentava os objetivos do mito e uma crítica aos que pretendiam
fazer uma revolução apenas com a “ciência”. Para Sorel, científico ou não, o importante
era o mito, que com algo de fé movimenta os homens e pode transformar o mundo em
direção ao socialismo.
***
Pelos artigos que Mariátegui escreveu enquanto esteve na Europa, os livros que
comprou253 e depois levou em sua bagagem, fica claro que o peruano retornou ao seu
país já definido pelo socialismo revolucionário. Não podemos falar em marxismo-
leninismo antes de 1924, pois seria apenas com a morte de Lenin que os aportes teóricos
do revolucionário russo seriam sistematizados e denominados como marxismo-
leninismo254.
Logo que retorna ao Peru, Mariátegui se coloca em contato com os jovens
estudantes que animavam a Reforma Universitária, e desde 1921 haviam construído as
chamadas Universidades Populares, em que ministravam cursos para os operários,
252
MARIÁTEGUI, José Carlos. Mariátegui Total. Lima: Amauta, 1994.
253
Para conhecer a melhor lista que se dispõe da biblioteca de Mariátegui, ver: VANDEN, 1975.
254
Posteriormente, como veremos, Mariátegui já assume o marxismo com o leninismo, conforme o
próprio programa do PSP, redigido por ele. “La praxis del socialismo marxista en este período es la del
marxismo-leninismo. El marxismo-leninismo es el método revolucionario de la etapa del imperialismó, y
de los monopoilos. El Partido socialista del Perú lo adopta como método de lucha.” (PROGRAMA do
partido Socialista Peruano. Redigido por Mariátegui em outubro de 1928. Disponível em:
<https://www.marxists.org/espanol/mariateg/1928/oct/07a.htm>. Acesso em: 27 mar. 2014.
225
principalmente entre os operários mais ativos politicamente.
As Universidades Populares González Prada (UPGP), que funcionaram em
Vitarte, o bairro operário limenho, mais que servir como escola, foram um importante
espaço de organização e concentração do movimento popular, unindo o movimento dos
estudantes com o dos operários.
Dessa experiência sairia a APRA, a Aliança Popular Revolucionária Americana,
fundada no exílio de Haya de La Torre e formada principalmente por ex-professores das
UPGP255.
Quando Mariátegui retorna ao Peru, chegando em 17 de março de 1923 ao Porto
de Callao, entrou em contato com Haya de La Torre, então reitor das UPGP. Mariátegui
é convidado a ministrar uma série de conferências na UPGP, sendo apresentada no dia
15 de junho de 1923 a primeira conferência.
Propaganda da APRA em um dos primeiros números da Revista Amauta. O símbolo que depois será
usado pelo Partido Aprista Peruano na década de 1930 aparece no canto esquerdo da figura. Fonte:
Amauta, nº9, Lima: maio de 1927, p. 15.
255
Trataremos dessa experiência política mais à frente.
226
Ao todo, Mariátegui apresentou 18 conferências, que depois seriam
organizadas256 e publicadas no tomo 8 de suas obras completas populares.
Essas conferências nos dão uma excelente dimensão de como Mariátegui
retornou da Europa. O título do “curso” era História da Crise Mundial, e foi organizado
para seguir um programa publicado na Revista Claridad, o órgão das UPGP, em seu
257
número 2 , com o seguinte conteúdo: a guerra europeia, a Revolução Russa, A
Revolução Alemã, a Revolução Húngara, a paz de Versalhes, a agitação proletária na
Europa, na Itália e o fascismo, o problema das reparações, a crise da democracia e o
fascismo, a paz de Sévres, a Crise filosófica (decadência do historicismo, do
racionalismo, do positivismo, Einstein e Splengler), a Revolução Mexicana, a situação
argentina, chilena e peruana, a função do fascismo e a NEP soviética.
Retrato de Felix Edmundovich Dzerjinsky, o comunista polaco que se filiou ao Partido Bolchevique e
dirigiu a Tcheka, uma organização de repressão do Estado Soviético. A sigla significa: Tropas para a
Defesa Interna da República. Esse retrato é curioso porque na época a Tcheka já era considerada como
uma das instituições da “barbárie” bolchevique pela propaganda anticomunista ocidental. Mariátegui
tinha conhecimento do que significava uma imagem de Dzerjinsky em sua revista e que tipo de
posicionamento estava assumindo. Fonte: Amauta, nº 1, Lima: set. 1926.
256
MARIÁTEGUI, José Carlos. História de la Crisis Mundial. Lima: Amauta, 1986. t. 8.
257
CLARIDAD. Organo de la Federación Obrera y de la Juventud libre del Peru (edición fac-símile).
Lima:Amauta, 1994.
227
Os temas que Mariátegui pretendia tratar eram de interesse geral do movimento
popular, e as conferências, realizadas onde atualmente funciona o Parque de Exposições
(antes local da sede da Federação de Estudantes Peruanos), foram bastante concorridas.
O sentido dos temas é explicitamente uma leitura marxista revolucionária da
crise do pós-guerra, e estava centrado nas perspectivas revolucionárias abertas após a
Revolução Russa. A perspectiva de José Carlos fica clara na 1ª Conferência.
258
PORTOCARRERO, 1987, p. 119, 120 e 131.
228
respeito supersticioso [...] perderam sua autoridade moral.
(MARIÁTEGUI, 1975, p. 141, v. 8).
259
José Vasconcelos ficou muito popular entre os estudantes reformistas latino-americanos, e em muitas
ocasiões se referiram a ele como “El maestro de la juventud”. Essa reverência durou pouco, apenas até
meados da década de 1920.
229
ação socialista. Meus artigos dessa época marcam as estações de
minha orientação socialista. A minha volta , 1923, em reportagens,
conferências na Federação de Estudantes e a Universidade Popular,
artigos expliquei a situação europeia e iniciei meu trabalho de
investigação da realidade nacional, conforme o método marxista. Em
1924 estive, como já o tenho contado, a ponto de perder a vida Perdi
uma perna e fiquei muito frágil. Teria certamente me curado de tudo
com uma existência em repouso. Mas nem minha pobreza, nem minha
inquietude intelectual consentiram. Faz seis meses que melhoro
pouco a pouco. Não publiquei mais livros que os que você conhece.
Tenho pronto dois e outros em projeto. Aqui está minha vida em
poucas palavras. Não creio que valha a pena fazê-la notória. Mas não
posso recusar de lhe enviar os dados que pede Esquecia-me: Sou um
autodidata. Matriculei-me uma vez em Letras em Lima, mas com o
único interesse de seguir o curso de latim de um augustino erudito. E
na Europa frequentei alguns cursos livremente, mas sem nunca decidir
por perder meu caráter extra-universitário. (MARIÁTEGUI, 1984, p.
331).
261
DIÁRIOS de Motocicleta, Direção: Walter Salles: 2004, 1 Filme (125m 49s).
262
Os autores (ESCORSIN, GALINDO, ARICÓ; 2006, 1980, 1978) que narram o processo de
recuperação da obra de Mariátegui citam o artigo de Jorge Del Prado, “Mariátegui, marxista-leninista
fundador del Partido Comunista Peruano”, publicado em 16 de abril de 1943, como o início da
recuperação da obra de Mariátegui. Aricó organizou um livro em que aparecem todos os textos
importantes, até 1978, sobre o significado da obra de Mariátegui. Inclusive aparece o texto de Jorge Del
Prado na íntegra. Ver ARICÓ, José (Seleção). Mariátegui y los origenes del marxismo Latinoamericano.
México: pyp, 1978.
231
O primeiro e mais citado autor que separou Mariátegui dos comunistas foi
Robert Paris (1981), já tratado anteriormente. Depois temos Alberto Flores Galindo
(1980), com um livro dedicado em apontar essa contradição entre Mariátegui e a
Internacional Comunista, e outros, como Antônio Melis (2011) ou Chang-Rodríguez
(2007), esse último um aprista acadêmico.
Outros autores se dedicaram a apontar, por outro lado, a filiação comunista de
Mariátegui, como Jorge Falcón (1977,1978, 1979, 1980), Rouillon (1993) e Luna Vegas
(1988). Além do debate político-ideológico que permeia essa disputa pelo legado de
Mariátegui, é importante acrescentar mais um detalhe: o que era comunismo e
marxismo-leninismo quando se iniciou o debate sobre a obra de Mariátegui, entre os
últimos anos da década de 1970, e os primeiros anos da década de 1980.
O centro do debate esteve em aumentar ou diminuir a influência do marxismo-
leninismo de Mariátegui. Acadêmicos liberais e socialistas diminuem, enquanto
militantes comunistas destacavam a influência do marxismo-leninismo. Mas, embora
esse seja um importante ponto para se começar a identificar a filiação de Mariátegui,
existe um problema anterior, que é a própria definição de marxismo-leninismo, ou de
comunismo que Paris, Galindo e Melis utilizam para opor, ou analisar a obra de
Mariátegui. A ótica com que perceberam o marxismo-leninismo foi a de intelectuais
ocidentais sufocados pelos manuais soviéticos, em uma época, após a década de 1950,
em que o marxismo deixou de servir como “método de ação”, para ser canonizado em
centros de Estudos do Estado Soviético, uma disciplina obrigatória a mais, uma típica
doutrina de Estado, rígida, estática; um método sociológico estéril e oficial de um
Estado que se desmoronaria uma década depois.
Esse “marxismo-leninismo” dos manuais soviéticos é oposto ao que Mariátegui
entendeu por marxismo-leninismo, e possui semelhanças com o “marxismo” da 2ª
Internacional: positivista, reescrito a partir de um economicismo eurocêntrico, como um
método de sociologia vulgar, sem relação com a prática revolucionária263.
263
Um dos autores famosos desses manuais soviéticos foi Afanassiev (Fundamentos da Filosofia,
Moscou: Progresso, 1978) e a sua explicação da dialética, por exemplo, é esquemática, dentro dos limites
hegelianos da fórmula tese, antítese e síntese, além de possuir uma série de preceitos metafísicos. Esse
tipo de manual, publicado pela famosa Editora Progresso, na década de 1980, foi questionado por Che
Guevara, bem como, a partir da década de 1960, pelos comunistas chineses. Uma interessante referência
para se conhecer o debate entre soviéticos e chineses a partir da década de 1960 pode ser encontrada nas
denominadas “Cartas Chinesas”, documentos trocados entre URSS e a República Popular da China, em
que tratam as divergências político ideológicas. Segundo Löwy, citando as palavras de Che: “Esses
manuais – que ele chama de ‘paralelepípedos soviéticos’ – têm o inconveniente de não deixarem pensar: o
232
O marxismo-leninismo da Internacional Comunista não é a mesma coisa que o
dogma do Estado Soviético na década de 1980. O marxismo-leninismo da Internacional
Comunista era dinâmico, buscou interpretar a realidade política, em meio a acalourados
debates e lutas políticas.
Essa é a mesma perspectiva de Mariátegui, e diferente de como tratou Paris, por
exemplo, o marxismo-leninismo não se constituiu em um modelo de normas e conceitos
abstratos, ou teológicos, como chegou a afirmar: “Para quem se proponha a uma leitura
‘laica’ de Mariátegui, não se trata de recolocar a teologia ‘leninista’ por um fio condutor
estritamente soreliano”. (PARIS, 1978, p. 155). Não entraremos no debate acerca do
método marxista em geral, ou mesmo a diferença entre ideologia, ciência ou modelo
leninista. Aqui nos importa demonstrar que Paris, em polêmica contra Cesar Levano no
texto acima, tem uma interpretação particular do que é marxismo-leninismo, em que vê
semelhanças com uma espécie de teologia, aqui com um sentido depreciativo, em
oposição à ciência. Foi nesse mesmo sentido caricato que Paris entendeu o marxismo-
leninismo e que Löwy também tratou qualquer marxista ligado da Internacional
Comunista após 1924, no que denominou como “ortodoxia”, e algumas vezes como
“stalinismo”.
A caricatura do marxismo-leninismo que guiou a IC limita os autores que se
propuseram a compreender as vicissitudes que movimentaram os comunistas das
décadas anteriores à Segunda Guerra Mundial, favoreceu algumas interpretações que
vislumbraram disputas pessoais como determinantes nas lutas político-ideológicas e
dificultou a apreensão das ferramentas teóricas que Mariátegui manejou em sua
interpretação marxista do Peru.
Logo após o agravamento da saúde de José Carlos, e a consecutiva amputação
de sua perna direita, a sua intervenção política sofreu uma mudança significativa na
forma, já que estava limitado por uma cadeira de rodas.
Segundo Maria Wiesse (1945)264, que conviveu com Mariátegui, os momentos
posteriores à amputação, tão logo Mariátegui soube de sua nova condição física, foram
de profunda dor e desespero. Mariátegui encontrava-se no esplendor de sua vida, recém-
Partido já fez isso por você, e você tem de engolir”. (LÖWY, Michel. Che Guevara contra o modelo
soviético. Le Monde Diplomatique (edição eletrônica), Brasil: set. 2011. Disponível em:
<https://www.diplomatique.org.br/edicoes_especiais_artigo.php?id=61>. Acesso em: 27 mar. 2014).
Sobre as Cartas Chinesas, ver: NÚCLEO de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo. A Carta
Chinesa: a grande batalha ideológica que o Brasil não viu. Belo Horizonte: Terra, 2003.
264
WIESSE, Maria. José Carlos Mariátegui: (etapas de su vida). Lima: Hora del Hombre, 1945.
233
chegado da Europa, em meio à ascensão do movimento popular, com um crescente
reconhecimento das boas novas revolucionárias que trazia, conhecendo de perto o
movimento operário de Lima, participando e acompanhando os Congressos Indígenas,
além de ter assumido responsabilidades centrais no movimento da juventude que
animava a Universidade Popular González Prada, como diretor da Revista Claridad na
ausência de Victor Raul Haya de La Torre265.
Do leito do hospital, enquanto aguardava uma recuperação, já começou a
estruturar uma nova logística de intervenção política, que contaria com reuniões em sua
casa, inicialmente no próprio hospital, uma rede de correspondência, a fundação de uma
editora, uma Revista de divulgação cultural e, posteriormente, o Partido Socialista
Peruano e a Central Geral dos Trabalhadores. Seria ingênuo acreditar que essa logística
organizada por Mariátegui para garantir sua intervenção política e ideológica tenha sido
casual. A nosso ver, tratou-se de um plano elaborado desde que conseguiu superar o
primeiro choque após a amputação da perna, para assim dar continuidade ao seu plano
mais ambicioso: desenvolver o movimento comunista, ou o socialismo revolucionário
(como preferem alguns) no Peru. Com determinação, Mariátegui constrói os
instrumentos que lhe garantiriam abrir a luta ideológica entre a “vanguarda” do
movimento popular.
Sob uma cadeira de rodas, a primeira coisa que Mariátegui precisava evitar era a
repressão, que já o havia mantido preso. A polícia política de Leguia estava atenta a
qualquer atividade comunista, bolchevique ou que inspirasse o movimento operário em
direção ao exemplo soviético. O amauta utilizou artifícios típicos de um revolucionário
que atua legalmente com propaganda subversiva, tratando questões de fundo do debate
ideológico sem utilizar termos que chamassem a atenção da repressão. Mariátegui
defendeu o legado da Revolução Russa, seu caráter universal como perspectiva para os
povos do mundo. Isso foi dito abertamente nas conferências de 1923, e sua filiação
apareceu escancarada, mas, após a prisão, suas posições políticas aparecem em análises
mais contextualizadas, utilizando vários termos e evitando bolcheviques, comunistas e
preferindo o termo socialismo. O artigo jornalístico se presta muito bem a essa
necessidade de camuflar uma defesa de posição com uma aparente narrativa de uma
situação ou um fato da atualidade. Quando Mariátegui foi acusado de complot
265
Haya de La Torre, como outros, se encontrava no exílio desde que o Governo Lenguía passou da
tentativa de cooptação à repressão aberta contra os movimentos populares, a partir de meados de 1923.
234
comunista, em 1927, sua filiação comunista ficou evidente, pois negou em carta aberta
qualquer participação em um complot, mas, embora não afirme literalmente ser
comunista, o que o levaria diretamente de volta para a prisão266, tampouco negou. Na
resposta sobre a acusação de complot comunista, afirmou ser “marxista convicto e
confesso”. Se tivesse alguma contradição fundamental com a IC, a acusação de complot
seria uma excelente oportunidade para negar a sua filiação comunista, como tantas
vezes fez Haya de La Torre, por exemplo.
Como foi possível perceber até aqui, ser militante comunista significava colocar
a vida a serviço da Revolução, seja o esforço de jornalista e organizador do Partido,
como Astrojildo Pereira, de tradutor do manifesto comunista, como fez Otávio Brandão
em 1924, como artista, fazendo propaganda comunista nas paredes como fizeram os
muralistas mexicanos ou fotografando, como Tina Modotti. A atividade comunista era
uma atividade de toda a vida, um engajamento integral para os militantes comunistas, e
é de se supor que seria igualmente para Mariátegui também.
Logo que pôde superar o impacto de perder sua mobilidade, aos 30 anos,
Mariátegui passou a desenvolver uma logística de atuação política, e um plano de
investigação da realidade que culminaria na elaboração dos Sete Ensaios e na formação
do PSP com um núcleo clandestino comunista267.
Sete Ensaios, como o próprio título escolhido pelo autor sugere, está formado
por 7 partes (ensaios) precedidos por uma citação de Nietzsche e uma “advertência”.
Em ambos preâmbulos à obra, Mariátegui chama a atenção para o processo de produção
desse livro, e para muitos de seus intérpretes, como Antônio Melis (2011), constituiu a
primeira evidência do caráter espontâneo, “antidogmático” e heterodoxo da obra. A
citação de Nietzsche aparece em alemão mesmo, do livro Humano, demasiado Humano
(NIETZSCHE, 1986)268, em que se nega a ler um livro que tenha sido composto para
ser um livro, mas, ao contrário, prefere “apenas aqueles cujos os pensamentos
inadvertidamente se tornaram um livro”.
Em nosso contexto atual, essa citação ilustraria uma decidida opção pelo caráter
266
A melhor maneira de identificar as intenções e a filiação ideológica que movia Mariátegui, quando não
se podia afirmar com nomes próprios, é verificando se ele em algum momento chegou a criticar os
comunistas, o marxismo-leninismo ou o bolchevismo. Acompanhando toda a sua obra, vemos apenas a
busca por apreender a experiência soviética, ou defendê-la de seus detratores.
267
O núcleo dirigente clandestino comunista do PSP foi uma forma que Mariátegui encontrou para
organizar o Partido leninista em meio a um circulo mais amplo. Essa posição será criticada pela IC, e
trataremos no final do capítulo 3 deste trabalho.
268
NIETZSCHE, Frederich. Humano, demasiado Humano. México: Editores Mexicanos Unidos, 1986.
235
espontâneo e antiesquemático dos livros. Combinaria perfeitamente com a crítica aos
“modelões” teóricos, particularmente aos advindos do marxismo, conforme uma certa
crítica “culturalista” e “pós-moderna” que se tornou comum ao longo das década de
1990 e 2000. Mas uma simples análise contextualizada na obra de Mariátegui
demonstra a real intenção crítica dessa citação. O autor de Sete Ensaios está se opondo
ao academicismo escolástico que prevalecia nos estudos universitários da América
Latina. Essa cultura acadêmica favorecia os estudos desligados da prática social e do
estudo empírico dos casos, limitados à pomposidade, ao linguajar pedante e ao estilo
aristocrático269.
Na “advertência”, afirma que o livro é orgânico, e cita novamente Nietzsche:
Outra vez repito que não sou um crítico imparcial e objetivo. Meus
juízos se nutrem de minhas ideias, de meus sentimentos, de minhas
paixões. Tenho uma declarada e enérgica ambição: a de concorrer à
criação do socialismo peruano. Estou o mais distante possível da
técnica professoral e do espírito universitário” (MARIÁTEGUI, 1928,
p.32.).
269
Mariátegui reúne, no ensaio “O processo da educação pública”, uma dura crítica ao modo estéril e
pedante dos estudos na universidade peruana. O belíssimo texto “Crise de Mestres, Crise de ideias” é
particularmente claro em demonstrar como Mariátegui enxergava a atividade acadêmica fechada em si,
desligada da prática social. O revolucionário peruano era o contrário de um intelectual boêmio e afeito ao
ensaio espontâneo. Aquilo a que Mariátegui está se opondo é ao livro planejado em um gabinete, a partir
de reflexões limitadas ao conhecimento livresco, sem consequências práticas, voltados para a
especialidade e a pura erudição. Ver: MARIÁTEGUI, José Carlos. Temas de Educación (Obras
Populares). Lima: Amauta, 1986. v. 14.
236
política.
Lenin produziu uma obra monumental, toda feita a partir da luta política entre os
revolucionários russos e o movimento revolucionário mundial no sentido de interpretar
a realidade objetiva e categoricamente para dirigir o esforço consciente do Partido e se
alcançar a Revolução.
Os Ensaios foram compostos de vários artigos publicados na Revista Amauta e
na Revista Mundial, com significativas alterações e acréscimos, de modo que podemos
considerar que o conjunto da obra não é uma compilação de artigos, mas a seleção em
uma lógica única, fruto de um amadurecimento de sua investigação.
O primeiro Ensaio já apresenta a base que Mariátegui pretende estruturar a obra,
e é a chave para compreendermos os outros ensaios, com o sugestivo título “Esquema
da Evolução Econômica”270. O que fica claro no procedimento é a inovação que
Mariátegui estava promovendo.
As palavras mudam de sentido com o tempo, de acordo com as contendas de
cada época. Todo estudante de história do primeiro período aprendeu que, por volta dos
anos de 1930, surgiu um movimento renovador nos estudos históricos que questionou a
historiografia tradicional, dos grandes feitos do Estado, dos grandes homens, relegando
o povo ao esquecimento. Influenciados pelo marxismo, mas não apenas por ele, esses
historiadores propuseram, contra a “História Política”, uma história social, e também a
estrutura, e a importância do fator econômico no processo histórico. Esse movimento,
na França, inaugura uma nova corrente historiográfica, uma nova história, econômica e
social, desenvolvida em torno da famosa Revista dos Annales271. Estudar a História do
Peru a partir da economia fez parte de uma inovação teórica que não possuía
precedentes, apenas comparável ao esforço do companheiro de Mariátegui, Martínez de
La Torre, que a partir de 1928 publicou uma série de estudos sobre o movimento
operário de 1918 e 1919272.
Mariátegui parte de uma sistematização que encontramos nas análises do VI
270
Melis tenta refutar uma interpretação lógica deste início da obra de Mariátegui, que poderia colocá-lo
próximo ao economicismo vulgar de um tipo de marxismo que alguns autores insistem em identificar com
a IC, ou com Stalin (MELIS, 2011, p. IX – XIII), conforme já demonstramos anteriormente.
271
O título original da Revista, em francês, foi Annales d’histoire économique et sociale, criada em 1929
por Lucien Febvre e Marc Bloch.
272
Ver: MARTÍNEZ DE LA TORRE, Ricardo. El movimiento obrero peruano 1918-1919. Lima:
CRONOS, s.d. e MARTÍNEZ DE LA TORRE, Ricardo. Apuntes para una Interpretación de la História
Social del Peru. Lima: Editora Peruana, 1947.
237
Congresso da IC, de 1928273, em que a Conquista e o posterior regime colonial
estrangeiro representou a ruptura com uma economia nativa. “Até a conquista se
desenvolveu no Peru uma economia que brotava espontaneamente e livremente do solo
e da gente peruana.” (MARIÁTEGUI, 2008, p. 3).
Dessa constatação, que a IC denominou como “economia deformada” pela
penetração colonialista, Mariátegui opôs, do mesmo modo, a economia nativa
autossuficiente e que se desenvolvia garantindo uma produtividade e um bem-estar para
os que viviam sob o Império Inca.
273
Como poderemos ver mais detalhadamente no próximo capítulo, as resoluções do VI Congresso da IC
utilizam o mesmo modelo teórico estrutural que Mariátegui.
274
Mariátegui trata do mir russo em: MARIÁTEGUI, 2008, p. 80.
238
e religiosa obediência ao seu dever social. Os incas tiravam toda a
utilidade social possível desta virtude de seu povo, valorizavam o
vasto território do império construindo caminhos (estradas), canais,
etc. O extendiam submetendo a sua autoridade as tribos vizinhas. O
trabalho coletivo e o esforço comum eram frutiferamente empregados
nos fins sociais. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 34).
275
Mariátegui utiliza o termo caudilhismo de forma depreciativa, como um tipo de déspota militar que, na
ausência de uma classe com forças suficientes para dirigir o Estado na América Latina, assume a direção
do Estado. O termo alcança uma conotação positiva em alguns contextos políticos específicos, como no
México pós-revolucionário, em que o caudilho aparecia como um libertador da comunidade, um líder que
lutava contra a opressão de um Estado que se voltava contra a população. Mas o termo sempre se refere a
um líder, geralmente militar, que assume as funções de comando para além dos limites da
institucionalidade, acima dos limites impostos pelas leis constitucionais. O caudilho comumente é a
própria personificação do Estado, tanto localmente como muitas vezes de âmbito nacional.
242
No Peru atual coexistem elementos de três economias diferentes. Sob
o regime de economia feudal nascido da Conquista subsistem na Serra
alguns resíduos ainda vivos da economia comunista indígena. Na
Costa, sobre o solo feudal, cresce uma economia burguesa que pelo
menos em seu desenvolvimento mental, dá a impressão de ser uma
economia retardada. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 46).
276
Melis, na introdução da edição fac-símile de Sete Ensaios, não encontra muita coerência, ou sentido
para o uso do conceito de feudalismo por Mariátegui. Como demosntramos, esse conceito não é acessório,
é fundamental para a interpretação histórica produzida nos Sete Ensaios.
243
independência dos EUA e com a Revolução Francesa, que se combinou com alguns
interesses de emancipação econômica da elite criolla, sufocada pela coroa espanhola.
Mas essa independência não significou uma mudança estrutural da sociedade; manteve-
se uma ordem social que não emancipava a população indígena.
Após um período de lutas entre facções militares e caudilhos políticos, um ciclo
econômico baseado na exploração do guano e do salitre criou uma burguesia que
enriqueceu com a extração desta matéria-prima enviada à Inglaterra.
Com a Guerra do Pacífico, e a consecutiva perda das áreas de exploração desse
produto, abateu-se uma terrível crise na elite que nasceu no entorno do ciclo econômico.
Com a crise, veio o aprofundamento da condição colonial peruana frente ao
imperialismo inglês, com o Contrato Gracie277 e o estabelecimento do que ficaria
conhecido como República oligarquica.
Esse tipo de regime republicano, embora estivesse ligado ao capitalismo, à
civilização ocidental ou ao imperialismo (Mariátegui utiliza esses dois termos em um
sentido parecido), incorporou-se a partir de uma condição colonial, na qual se apoiava
em relações e em um modo de produção feudal subjacente às relações capitalistas. A
oligarquia rural perde espaço para a oligarquia que nasce atrelada à exploração
capitalista. As forças capitalistas que entram no Peru não revolucionam o país, não
modificam a estrutura econômica que existiu desde a colônia, mas se apoiam sobre elas
para desenvolver uma economia voltada aos interesses estrangeiros e imperialistas.
E é com esse sentido que Mariátegui passa para o seu segundo ensaio, sobre a
questão indígena. Primeiro o autor demarca o seu posicionamento contra o indigenismo
oficial ou a filantropia, termo utilizado para denominar aqueles que tratam o problema
indígena como uma questão educacional, jurídica, moral ou eclesiástica. Para
Mariátegui, o problema indígena é econômico-social.
277
Contrato Gracie – foi um acordo assinado entre credores ingleses e o Governo peruano, em que esse
último cedia aos ingleses o direito de explorar as ferrovias no Peru, em troca da suspensão das dívidas
públicas.
244
A questão indígena nasce de nossa economia. Tem suas raízes no
regime de propriedade da terra. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 53).
Por se tratar de uma questão estrutural da economia peruana, não poderia haver
mudanças significativas sem que se transformasse a economia. Com essa lógica,
Mariátegui está contrapondo as teses liberais do século XIX que transpunham teorias da
biologia para a análise social. Geralmente, essas teses liberais reafirmaram pressupostos
racistas ao tratar a questão indígena.
278
O autor fez questão de marcar o papel de Dora Meyer e Pedro Zulen na manutenção da Associação
Pró-indigena. Tanto Dora como Pedro tiveram seus artigos sobre a questão publicados na Revista Amauta.
Pedro Zulen morreria precocemente, em 1925, com menos de 36 anos. As edições posteriores a morte de
Mariátegui incluíram um artigo intitulado “Revisão Histórica Sumária”, que Mariátegui escreveu para
The Nation, em seu número 128, depois publicado em Labour, em novembro de 1928. Esse artigo de
Mariátegui foi incluído devido a uma nota do próprio autor indicando a inclusão em Sete Ensaios.
246
toda a alegria do índio. (Ibidem, p. 57).
247
amplitude, e como nos ensaios anteriores, primeiro pelo problema econômico. O
terceiro ensaio é a questão da terra.
279
Cf: VALCÁRCEL, Luis. Tempestad en los Andes, Lima: Amauta, 1926.
248
gamonalismo, o Ayllu, expressão tanto do campesinato indígena e sua forma de
organização coletiva como também expressão da nacionalidade incompleta que o
movimento socialista poderia inspirar.
Mariátegui encontrou na comunidade indígena a antítese tanto para o feudalismo
quanto para o imperialismo. O Ayllu seria a própria Revolução Agrária, e também o
germe, o guardião da nacionalidade peruana. As duas tarefas da revolução burguesa
(agrária e antifeudal) que não haviam sido cumpridas pela fraca burguesia peruana se
manifestavam no problema indígena peruano.
A comunidade indígena, o Ayllu, ou a propriedade camponesa comunal, para
Mariátegui, teve origem no Império Inca, que, embora autocrático, apoiou-se sob a
exploração coletiva da terra. “[...] ao comunismo incaico – que não pode ser negado
nem diminuído por ter se desenvolvido sob Regime autocrático dos Incas – designa-se
por isso mesmo como comunismo agrário.” (MARIÁTEGUI, 2008, p.71) e cita Cesar
Ugarte para definir a comunidade:
Essa economia “natural e orgânica” (Ibidem, 2008, p.72) foi desorganizada pela
conquista, mas sobreveio da incapacidade do feudalismo espanhol em suplantar o ayllu.
Mariátegui demonstra que, ao contrário do que possa parecer, a comunidade camponesa
foi comum em outros períodos, não sendo assim um fenômeno andino.
A república, com sua jurisdição aparentemente liberal, não foi capaz de destruir
o latifúndio, o feudalismo da agricultura, mas foi eficiente para atacar a comunidade. A
república opôs a propriedade individual contra a comunidade, e acabou favorecendo a
concentração da terra. Onde de fato há economia capitalista e distribuição de terra,
conforme o programa demo-liberal, a comunidade desapareceu. O feudalismo convive
com a comunidade, enquanto que o capitalismo não. Mariátegui não vê a comunidade
como uma tradição cultural, ou uma peculiaridade antropológica. Ele identifica a
comunidade como uma relação de subsistência, única possível dos camponeses frente à
organização feudal agrária. É na impossibilidade do feudalismo espanhol colonizador
em prover subsistência do campesinato que reside a vitalidade do ayllu.
Para apoiar sua tese, Mariátegui utiliza o exemplo do mir Russo:
251
Mariátegui, como marxista e materialista, acreditava que o obscurantismo
religioso é nocivo ao desenvolvimento social, e em momentos de desenvolvimento
revolucionário das forças produtivas a religião é mais “pragmática”, “empírica”, menos
“litúrgica”, menos afeita ao ritual ecumênico, mais relacionada à disciplina e à
organização “espiritual” da produção. E nessa lógica, o feudalismo espanhol carregou,
após a conquista – Mariátegui diferencia conquistadores e colonizadores espanhóis –,
todo o germe do atraso econômico espanhol na religião católica.
O catolicismo de “O vice-reinado, moleza e ócio sensual, iria trazer mais tarde
ao Peru nobres letrados e doutores escolásticos, gente já totalmente de outra Espanha, a
da inquisição e da decadência”. (Ibidem, p. 171).
Essa igreja, com sua “liturgia suntuosa”, soube adaptar a religiosidade
pragmática indígena. “O trabalho, iniciado há muitos séculos no Ocidente, de absorção
dos antigos mitos e de apropriação das datas pagãs, continuou no Peru.” (Ibidem, p.
172).
Mas, se a religião nativa era orgânica como a economia do império, e a religião
do invasor espanhol era artificial, pomposa, com ares de decadência e escolástica, a
colonização protestante dos EUA era o contrário. A religião dominante nos EUA era a
prova-real de que o catolicismo estava ligado ao atraso econômico, e de certa forma,
que o protestantismo se relacionava à pungência da economia capitalista. Sem
simplismos economicistas, Mariátegui cita Engels: “A primeira etapa da emancipação
da burguesia é, segundo Engels, a reforma protestante”. (Ibidem, p. 77).
O processo da independência peruana foi uma continuidade da estrutura
religiosa da colônia. “A revolução da independência, do mesmo modo que não tocou
nos privilégios feudais, tampouco tocou nos privilégios eclesiásticos”. (MARIÁTEGUI,
2008, p. 183).
Citando Sorel, Mariátegui garantia, certamente reafirmando o papel do mito
revolucionário “[...] a experiência histórica dos últimos lustros comprovou que os atuais
mitos revolucionários ou sociais podem ocupar a consciência dos homens com a mesma
plenitude que os antigos mitos religiosos”. (Ibidem, p. 189).
A partir do 4º ensaio, as partes “O Processo da Educação Pública”, “O Fator
Religioso”, o “Regionalismo e centralismo” e o último ensaio, “O Processo da
Literatura”, ultrapassam a economia-política tratada nos três primeiros ensaios,
252
apontando para temas que faziam parte da luta política da época, e expressavam mais a
superestrutura, que, como veremos, se relaciona à formação da nacionalidade peruana.
Mariátegui, como os revolucionários comunistas da época, não levantavam
barreiras rígidas entre economia (estrutura ou infraestrutura) e a superestrutura, ou,
ainda, entre os aspectos mais subjetivos e não estritamente econômicos do modo de
produção, e seus aspectos claramente econômicos. Mariátegui é a melhor expressão de
como o marxismo que é semeado pela Revolução Russa está em oposição ao
positivismo liberal, e rejeitam influências positivistas no marxismo, como havia
ocorrido entre os socialistas da 2ª Internacional280.
280
Conforme já demonstrado no primeiro capítulo, os últimos congressos da 2ª Internacional, antes da
guerra, estiveram muito influenciados por preconceitos tipicamente colonialistas, além da defesa rígida
das etapas do processo histórico que na Europa levaram ao capitalismo industrializado. Ver páginas 62-75
deste trabalho.
281
MELIS, Antonio. Hacia la construcción de la nacionalidade. In: MARIÁTEGUI, 7 Ensayos de
Interpretación de La Realidad Peruana, Lima: Ministério de Cultura, 2011.
282
LÖWY, 2006, passim.
283
Nos referimos aos Sete Ensaios
253
processo revolucionário. Como já foi demonstrado, foi da necessidade da prática
revolucionária que nasceram as primeiras interpretações marxistas da realidade latino-
americana, e Mariátegui, sem dúvida, será o mais significativo esforço de aplicação do
marxismo na análise de um país latino-americano na década de 1920.
O seu trabalho chegou a um ponto em que poucos conseguiram até a década de
1930. Mariátegui não apenas procurou interpretar em um sentido marxista, ou seja, a
partir do materialismo histórico e dialético, o desenvolvimento econômico da sociedade
peruana, com o fim de precisar o sentido tático da revolução no Peru, mas procurou
tratar aspectos que ele próprio denomina como superestrutura284, como a literatura.
Mariátegui, como os comunistas de seu tempo viam o modo de produção como um
conceito de totalidade. A pouca análise do desenvolvimento superestrutural das
sociedades latino-americanas pelos comunistas estava relacionada às limitações dos
próprios militantes de origem operária, perseguidos por regimes oligárquicos e com
dificuldades em estabelecer contato com os núcleos mais desenvolvidos do movimento
operário internacional. As limitações estavam mais relacionadas a esses fatores que a
aplicação de um método determinista ou economicista rígido de análise da realidade de
seus países. Tanto Brandão como Astrojildo tentaram elaborar uma análise da literatura
brasileira. Astrojildo somente conseguiu organizar alguma reflexão mais elaborada
sobre a obra de Machado de Assis285 após o seu afastamento do PCB, o que, ao
contrário de demonstrar uma contrariedade dos PCs com esses temas, demonstra que,
em meio às tarefas partidárias, foi difícil a elaboração de uma análise de temas que
demandavam tempo e não possuíam um sentido imediatamente objetivo e um caráter
estruturante para a definição das táticas necessárias para a Revolução.
Por ser tão profunda, a análise de Mariátegui e o seu modelo têm um papel
significativo na história do pensamento social latino-americano. Primeiramente, é
importante salientar que Mariátegui declara repetidas vezes sua parcialidade, sua
filiação a um pensamento e até uma rejeição à crítica literária descomprometida,
academicista e que tratava a literatura como algo descolado da realidade social.
284
Mariátegui utiliza o conceito de superestrutura em diversas passagens. “Não é possível democratizar o
ensino de um país sem democratizar sua economia e sem democratizar, finalmente, sua superestrutura
política.”
285
Uma coletânea dos textos de Astrojildo Pereira sobre Machado de Assis foi publicada em PEREIRA,
Astrijildo. Machado de Assis, ensaios e apontamentos avulsos, Brasilia: Fundação Astrojildo Pereira,
2008
254
Mas isso não quer dizer que considero o fenômeno literário ou
artístico de pontos de vista extraestéticos, mas sim que minha
concepção estética é unânime, na intimidade da minha consciência,
com minhas concepções morais, políticas e religiosas e que, sem
deixar de ser concepção estritamente estética, não pode operar
independente ou diversamente. (MARIÁTEGUI, 2008, p. 223).
No Peru não houve uma revolução liberal burguesa, ocorrendo apenas uma
invasão estrangeira que, após subjugar o índio transplantou, como uma extensão da
metrólope, a própria Espanha. “A literatura nacional é, no Peru, como a própria
nacionalidade, de inegável filiação espanhola.” (Ibidem, p. 226).
Definidas as características dessa literatura espanhola na literatura peruana,
Mariátegui segue o sentido da história peruana que deu aos outros ensaios, ou seja,
reafirmar que não houve ruptura com o surgimento da república, embora o Peru se
tornasse formalmente independente,
286
MELIS, Antonio. “Hacia la construcción de la nacionalidad” in MARIÁTEGUI, José Carlos. 7
Ensayos de Interpretacion de la Realidad Peruana (Edición facsimilar), Lima: Ministério da Cultura,
2011.
255
Seguindo, Mariátegui explica a relação da literatura (e podemos entender a arte
também) em países periféricos no sistema de dominação imperialista:
256
A debilidade, a anemia, a flacidez de nossa literatura colonial e
colonialista provêm de sua falta de raízes. A vida, como afirmava
Wilson, vem da terra. A arte tem necessidade de se alimentar da seiva
de uma tradição, de uma história, de um povo. E no Peru a literatura
não brotou da tradição, da história, do povo indígena.
Nasceu de uma importação da literatura espanhola; depois se nutriu da
imitação da mesma literatura. Um cordão umbilical doentio a manteve
ligada à metrópole.
Por isso, pouco tivemos além do barroquismo e do culteranismo de
clérigos e ouvidores, durante o período colonial; romantismo e
trovadorismo mal digeridos dos bisnetos dos mesmos ouvidores e
clérigos, durante a república. (Ibidem, p. 231).
287
Aqui fazemos uma referência ao Terceiro Estado da Revolução Francesa, uma referência clássica da
revolução burguesa, utilizada no debate dos revolucionários da década de 1920.
257
González Prada e Ricardo Palma288:
Também não cabe duvidar de sua vitalidade pelo fato de que até agora
não produziu uma obra-prima. Obra-prima não floresce a não ser em
um terreno já muito adubado por uma multidão anônima e obscura de
obras medíocres. O artista genial não é geralmente um princípio, e sim
uma conclusão. Aparece, normalmente, como o resultado de uma
vasta experiência. (Ibidem, p. 312).
Mas, se a literatura peruana ainda não havia se formado, já dava seus primeiros
passos, com César Vallejo, Magda Portal e o indigenismo.
288
Manuel Ricardo Palma Carrillo (1833-1919) foi um escritor peruano que ficou famoso por escrever
Tradiciones peruanas, uma série de contos de ficção histórica que valorizava a história popular, a
linguagem popular, uma certa informalidade, entre outros atributos renovadores na literatura peruana.
258
3º Capítulo – Tensões com os nacionalistas “pequeno-burgueses” e a
ruptura da frente única.
289
MARIÁTEGUI, José Carlos. Defensa del Marxismo – Polemica Revolucionaria, Lima: Amauta,
1976, p.72-3
259
O V Congresso da Internacional Comunista, bolchevização dos partidos
comunistas e construção de frentes únicas para ganhar as amplas massas
290
Ver o capítulo 1 deste trabalho.
291
As “21 condições de admissão na Internacional Comunista” foi um documento aprovado do II
Congresso da IC (1920), que estabelecia condições para que os partidos aderissem à organização.
260
Foi precisamente este desenvolvimento econômico de 1919-1920, que
ao suavizar o período mais agudo de finalização da guerra, assegurou
um extraordinário recrudescimento da segurança burguesa e suscitou a
questão do advento de uma nova época orgânica de desenvolvimento
capitalista. (INTERNACIONAL..., 2008, p. 226)292.
292
INTERNACIONAL COMUNISTA. Los Cuatro Primeros Congresos de la Internacional Comunista,
Izquierda Revolucionária (edição digital), 2008.
293
Em 1920, a 2ª Internacional (fundada em 1889) foi reorganizada pelos partidos social-democratas que
não estavam de acordo com a Internacional Comunista. Em 1921, alguns partidos que não estavam de
acordo com os social-democratas, mas tinham reservas com a Internacional Comunista, fundaram a União
de Partidos Socialistas para a Ação Internacional (UPSAI) em Viena. Entre 2 e 5 de abril de 1922, os
Comitês Executivos das três Internacionais se reuniram em Berlim, mas não entram em nenhum acordo
para o restabelecimento da unidade do movimento operário. Entre os dias 21 e 25 de maio de 1923, foi
fundada a Internacional Operária e Socialista em Hamburgo, que reuniria os Partidos da 2ª Internacional e
a Internacional de Viena. Dessa Internacional, deriva-se a atual Internacional Socialista, da qual faz parte
o Partido Aprista Peruano, o PDT no Brasil, SPD na Alemanha, o Fatah palestino, o PRD e o PRI no
México, a Frelimo, o CNA sul-africano, o MPLA, sociais-democratas dos países nórdicos e outras
organizações que compõem diversos governos atualmente no mundo.
261
Revolução Húngara, a questão polonesa, a Revolução na Alemanha (1919 e 1923), as
tomadas de fábrica na Itália etc.
A partir das experiências concretas e das lutas políticas em torno dos erros e
novos caminhos para a revolução, definiam-se as resoluções e as posições dos
revolucionários, ajustando planos e consignas. Nesse processo, definia-se também o
papel de cada dirigente no processo revolucionário que a IC pretendia dirigir.
O IV Congresso da IC em 1922 intensificou a posição de que a Revolução
Mundial demoraria mais do que inicialmente se havia imaginado, e a URSS teria de
conviver com os países capitalistas por um tempo. (CARR, 1975, p. 5).
A avaliação de um recuo da Revolução Proletária Mundial, uma reestruturação
da reação burguesa, colocava como necessidade a adoção de uma ampla política de
frente única para manter a influência comunista e se preparar para novas ondas
revolucionárias. A situação de recuo da Revolução aparecia politicamente para a IC em
um aumento da reação burguesa. Em novembro de 1922, essa reação havia demonstrado
que poderia assumir um nível de violência e importância política maior com a Marcha
de Mussolini sobre Roma.
O V Congresso da IC (1924) aprofundaria a avaliação de que havia uma
reestruturação do capitalismo, e que o passo da revolução seria mais lento, obrigando os
comunistas a se prepararem para um período de indefinição entre as forças burguesas e
proletárias. Na abertura do Congresso, as palavras de Zinoviev são claras ao admitir o
recuo da onda revolucionária: “Todos estamos descontentes em comprovar que a vitória
não chegou ainda e não parece ter pressa em chegar. Aguardávamos a Revolução
Alemã, e não chegou: Tudo anda com demasiada lentidão”. (V CONGRESSO..., 1975,
p. 58). Como fruto do aprofundamento dessa avaliação, o debate mais significativo do
encontro dizia respeito a como os comunistas deveriam se organizar e mobilizar as
massas – herdariam o debate acerca da frente única do IV Congresso – e aprofundariam
o entendimento de como precisariam organizar os partidos comunistas.
Lenin havia morrido em 21 de janeiro de 1924. Havia se tornado o líder
incontestável do processo revolucionário russo, figura central da Internacional
Comunista, e seu prestígio havia ajudado a unificar os comunistas ao longo das lutas
políticas que a IC viveu desde a fundação. Com a morte de Lenin, as lutas tendiam a
abrir fraturas maiores, e as posições em disputa, a assumirem contornos mais
personificados em outros líderes do movimento comunista internacional, e
262
principalmente do PC russo.
O V Congresso abria sua sessão inaugural em 17 de julho de 1924, lembrando a
perda de Lenin: “Nossa primeira recordação devemos consagrar ao grande chefe da
Revolução Mundial: Lenin”. Após reafirmar o compromisso com o caminho de Lenin,
foi tratado o problema que guiaria o debate do congresso: a derrota da “Revolução
Alemã” em outubro de 1923. Seria a partir desse debate que se aprofundariam as
diferenças entre a maioria do CC do PC da Rússia e Trotsky, e se desenvolveria a luta
política ao longo do final da década de 1920.
O diagnóstico para essa derrota foi dado pela maioria da direção do próprio PC
da Alemanha, que afirmava ser fruto de um desvio direitista “brandleriano”294 e foi
apoiado por Zinoviev e a CEIC. (CARR, 1975, p. 6).
A Alemanha era a grande referência do movimento operário mundial desde a
ruptura com a 2ª Internacional. Era o país de Rosa Luxemburgo e Karl Liebckneck,
assassinados em 1918, de uma gigantesca classe operária de um país altamente
industrializado. Os russos haviam alcançado o poder, mas ainda dirigiam um país
atrasado, em uma sociedade majoritariamente camponesa. O centro da Revolução
Mundial era por definição a Alemanha, onde o proletariado havia alcançado o maior
grau de organização, era o país do marxismo por excelência, e era natural que a quebra
de um elo fraco, a atrasada Rússia, significasse apenas uma indicação da crise do
imperialismo mundial, não o centro da Revolução Mundial. A derrota dos comunistas na
Alemanha forçava uma discussão mais profunda sobre os rumos da Revolução Mundial.
O presentes no Congresso concluíam que os alemães não haviam conquistado o
poder, com a tática de frente única que estabeleceram na Saxônia e na Turingia, porque
haviam sido traídos pelos social-democratas que impuseram a ilegalidade ao Partido
Comunista Alemão. Era a avaliação de que a aliança com os social-democratas não
daria o fruto imaginado.
Somado a essa derrota política sofrida no país em que se imaginava a próxima
revolução comunista estava o informe sobre a situação econômica por Varga, o
especialista no assunto. Ele afirmava que o capitalismo gestava uma crise,
particularmente uma crise na agricultura, e nos EUA: “Nos encontramos no começo de
uma das mais graves crises dos Estados Unidos [...] acreditamos que vamos a uma crise
mundial geral. A social-democracia rebate com toda a sua energia nossa opinião”.
294
O termo se refere a Heinrich Brandler (1881-1967), dirigente comunista alemão.
263
(VARGA. In: V CONGRESSO..., 1975, p. 97).
A análise de dados, por demais extensa para expormos aqui, apresenta uma série
de dados e estatísticas da economia mundial que apontavam para uma recuperação
econômica relativa, mas ainda com uma perspectiva de crise breve. Nesse ensejo, a
burguesia não conseguia manter seu poder como antes da guerra, não podia organizar o
Estado a partir das formas que utilizava antes, e passava a utilizar outras formas de
dominação como meio de manter-se no poder.
264
Alemanha foi avaliada como se tratando de um desvio de direita no manejo da frente
única, ou seja, na colocação de demasiada importância na formação do “governo
operário”, que significava a construção da frente única a partir da formação de coalizões
eleitorais, o debate sobre o tratamento da frente com os trabalhistas ingleses passou a
estar delimitado por uma fórmula que ficará popular no debate do movimento
comunista da época: “frentes únicas por baixo e por cima”.
Com essa consigna, o V Congresso ia reafirmando a necessidade de manter a
política de frente única, mas, devido aos erros de condução da Revolução Alemã em
1923, que colocaram muita importância na aliança “por cima”, ou seja, com os líderes
da social-democracia, que depois os trairiam, a “frente única por baixo” indicava a
necessidade de se construir uma frente a partir das bases e assim impor melhores
condições nesta aliança.
O ajuste da frente única foi um dos principais temas que conduziram a luta
política e as intervenções do V Congresso. Por um lado, debatia-se a necessidade de se
manter uma politica de frente única, e não simplesmente abandoná-la, como queria uma
parte dos contendores no Congresso. No final de 1923, a tentativa de unidade entre as
três internacionais havia falhado em Berlim, e a Internacional que agrupava alguns
partidos chamados de “esquerda da social-democracia”, que compunham a chamada
Internacional 2 e meia, havia se fundido com a 2ª Internacional. No IV Congresso da
Internacional (1922), os comunistas precisavam lidar com uma social-democracia
dividida. Já no V Congresso (1924), a social-democracia se organizava em uma mesma
internacional, e mantinha as críticas à URSS. A política de alianças se tornava mais
complexa e estreita. O debate centrava-se em recolher ensinamentos acerca de como se
deveria constituir a Frente Única.
265
Bertran Wolfe, representante do Partido Comunista do México no V Congresso
da IC, preparou um informe para o III Congresso do PCM em 1925, em que narrava as
novas posições resolvidas no Congresso295. No seu informe, Wolfe faz uma
retrospectiva dos quatro Congressos anteriores ao quinto, em que aponta o avanço da
consigna acerca do problema da frente única, a qual desde o III Congresso 296 está
marcada pela ideia de que a Frente Única é uma tática para “Ir às Massas!”. Quando
comparamos o informe de Wolfe com o informe inicial de Zinoviev, percebemos que o
delegado do PCM havia estudado as linhas gerais do CEIC, e estava tentando pensar a
situação mexicana à luz do Congresso da IC. Até a ordem de colocação das questões
segue uma ordem muito parecida.
Sobre a Frente Única, disse:
Se por um lado era importante organizar a frente única, dando sustentação pelas
massas, e não através de negociações com os líderes, que porventura pudessem trair a
unidade com os comunistas, a outra ponta da orientação política, surgida no V
Congresso, dizia respeito ao que ficaria conhecido como bolchevização dos partidos
comunistas.
295
Wolfe narrou também as peripécias que precisou enfrentar para chegar a Moscou. Com dinheiro
emprestado por Diego Rivera e outros simpatizantes, além de um empréstimo do Sindicato de Pintores
(225 pesos), chegou a Nova Iorque, onde conseguiu dinheiro emprestado, e que somado a um dinheiro
que ganhou trabalhando no barco conseguiu chegar com a sua esposa em Copenhague, e por fim a
Moscou. Conseguiu inserir o “problema da América Latina” na Ordem do dia, em meio ao tema sobre
colônias e semicolônias, e, ao que tudo indica, deu importantes colaborações para o debate sobre os países
periféricos. Ver: TERCEIRO Congresso Nacional do partido Comunista de México. Orden del Dia, 13
dez. 1924. CEMOS: Caixa 2, Pasta 8.
296
TERCEIRO Congresso Nacional do partido Comunista de México. Orden del Dia, 13 dez. 1924.
CEMOS: Caixa 2, Pasta 8.
266
Embora Lenin possuísse um enorme prestígio na Internacional Comunista, o
Partido Comunista Russo, a organização bolchevique liderada por Lenin, não era a
única referência entre os Partidos que compunham a Internacional. O Partido Comunista
da Alemanha até 1923 possuía um papel importante, herdeiro da tradição de Rosa
Luxemburgo e Karl Liebknecht, e até então o futuro líder da próxima revolução
proletária. A derrota do PCA direcionou o debate para o reconhecimento cada vez maior
de que o modelo de Partido que foi vitorioso na Rússia era um dos elementos que
conduziriam a vitória comunista em outros países. No V Congresso, surgiu a consigna
da bolchevização de todos os partidos comunistas, ou seja, a partir daquela data,
começava a ficar claro que o tipo de organização que havia conquistado o poder na
Rússia, o Partido Bolchevique, era o modelo que os comunistas deveriam seguir em
todos os países para alcançar a vitória da Revolução.
Desde o II Congresso da IC, com a aprovação das 21 Condições para o Ingresso
dos Partidos na IC, foram estipuladas algumas características obrigatórias para que os
Partidos pudessem se filiar à IC. O objetivo era claramente diferenciar a IC da 2ª
Internacional, colocando exigências que ajudassem a separar o recém-organizado
movimento comunista da herança social-democrata.
Se por um lado se reafirmava a importância de manter uma política de frente
única ampla, “por baixo e por cima”, por outro lado, a IC debatia a organização dos
comunistas, o Partido. Definir como deveria ser o PC era fundamental para a aplicação
da tática de frente única, já que se por um lado os comunistas pretendiam utilizar a
frente para influenciar uma parte do proletariado, que não estava sob direção marxista-
leninista, por outro lado existia uma tendência de os comunistas perderem as suas
características e se diluírem na Frente. Particularmente em momentos de paz e de
estabilização, os partidos comunistas corriam o risco de incorporarem as práticas e
perspectivas dos aliados, perdendo a perspectiva revolucionária e comunista.
297
O Secretariado Sul-americano (Birô Sul-americano) da Internacional Comunista (1925-1935) foi
fundado em fevereiro de 1925 por decisão do presidium do CEIC para ter sede em Buenos Aires (1925-
1930) e depois funcionaria em Montevidéu (1930-1935). (JEIFETS et al., 2004, p. 27).
268
do PC da Argentina, a seção mais antiga da IC no subcontinente. Além da estruturação
orgânica dos diversos grupos que existiam, a secretaria tinha como tarefa desenvolver o
trabalho de propaganda comunista na região, traduzindo, editando e publicando a
literatura comunista, estimulando a atividade de propaganda nas seções nacionais e
publicando uma revista do Secretariado Sul-americano da IC, que, similar ao órgão
central editado pelo CEIC, Correspondência Internacional, denominaria-se, na América
Latina, Correspondencia Sudamericana. O México e o Caribe, partes fundamentais da
América Latina, estiveram incluídos nas preocupações do Secretariado Sul-americano,
mas possuíam uma dinâmica própria, centralizados na direção do PCM.
A Correspondencia Sudamericana se encontra atualmente acessível nos arquivos
do ASMOB298 e é uma importante fonte para estudarmos a atividade de propaganda da
IC na América Latina. Comparativamente ao conteúdo dos jornais dos PCs da região,
podemos dimensionar o processo assimilação da propaganda comunista nas seções
nacionais, e a influência que essa propaganda alcançou em grupos próximos ou
simpáticos ao marxismo-leninismo, como a Revista Amauta no Peru e José Carlos
Mariátegui.
Para a direção do PCB, a importância do secretariado da IC era grande, e
nitidamente se desenvolvia em torno de uma relação orgânica e constante. O PCB se
dirigia ao secretariado como a um órgão de direção, prestando informes regulares, quase
como um relatório das atividades do partido299.
O primeiro número da Correspondencia Suadamericana, além da reprodução de
parte do texto “As três fontes constitutivas do marxismo”300, uma sistematização do
legado marxista escrito por Lenin, trazia também um artigo de Octavio Brandão, em que
buscava sintetizar a construção do PCB até então.
298
Ver a lista de arquivos do movimento operário no final deste trabalho.
299
Há diversos relatórios da atividade do PCB publicados na Correspondencia Sudamericana.
300
Correspondencia Sudamericana, Buenos Aires, ano 1, n. 1, 15 abr. 1926.
269
Após definir o governo Epitácio como agente do imperialismo ianque, afirma
que doze companheiros fundaram o grupo do Rio em 7 de novembro de 1921, que
depois se transformaria em Partido Comunista, no Primeiro Congresso em 25 de março
de 1922 (Ibidem, p. 22)301. Por se tratar do primeiro número após o mês de março, em
que se comemora o mês da mulher trabalhadora, a revista estava dedicada à participação
da mulher na luta revolucionária, e entre os temas aparecem a aplicação da política de
frente única e a busca, ao menos em termos de propaganda, da efetivação da aliança
com os camponeses, ratificada no V Congresso da IC.
301
BRANDÃO, Octavio. O Partido Comunista del Brasil. Correspondencia Sudamericana, Buenos Aires,
ano 1, n. 1, 15 abr. 1926.
270
Única, colocou-se para a IC a importância de não apenas estimular a atividade sindical,
animar as lutas dos trabalhadores, mas também em se aprofundar na compreensão da
arte de se fazer política. As sucessivas derrotas que a IC sofreu após a Revolução Russa
(Hungria, Alemanha, Polônia, Itália etc.) impunham uma reflexão sobre os instrumentos
políticos (Partido Comunista, Frente Única), que os comunistas necessitariam manejar
para romper a estabilização capitalista e a reação fascista para retomar a iniciativa e
alcançar o poder.
Além da bolchevização dos Partidos e a formação das frentes únicas para ligar
os comunistas às amplas massas, os debates avançaram para a percepção de que se
formassem melhor os quadros e dirigentes dos partidos comunistas, de maneira que
melhor manejassem o marxismo-leninismo, e pudessem analisar a realidade social de
seus países. Podemos afirmar que o ano de 1924 é um importante marco para o início de
um debate acerca da realidade nacional de cada país a que temos nos dedicado a estudar,
impulsionado pela necessidade dos comunistas em se formar frentes únicas com as
outras classes não-proletárias nos países periféricos (coloniais, semicoloniais e
dependentes302) e em romper com o isolamento urbano do qual a tradição sindicalista
centrada no proletariado impunha.
No capítulo anterior, apresentamos as primeiras e mais importantes tentativas de
análise marxista produzidas por militantes revolucionários comunistas do México,
Brasil e Peru. Em todos esses casos, a análise respondia à necessidade de se aliar às
classes não proletárias, que possuíam contradição com o regime latifundiário latino-
americano e com o imperialismo norte-americano, além das lutas urbanas dirigidas pelo
proletariado.
A partir de 1925 e 1926, a intervenção política e ideológica da IC será cada vez
mais efetiva e a Correspondencia Sudamericana demonstrará tanto o esforço por
propagandear a literatura teórica comunista como em analisar a realidade de cada país.
Inaugura-se de maneira mais sistemática as tentativas de interpretação e sistematização
da realidade nacional a partir do marxismo-leninismo, e que, como veremos adiante,
influencia diretamente as interpretações mais originais produzidas pelos comunistas do
Brasil, Peru e México, bem como as perspectivas formuladas pelos militantes desses
países influem na visão da IC acerca da América Latina, particularmente no VI
302
Como veremos mais à frente, até um certo momento se definiam alguns países como dependentes.
Depois, esse termo desapareceria, ficando apenas países coloniais e semicoloniais.
271
Congresso da IC, em 1928.
A análise desses materiais é bastante clara em demonstrar que ao invés de uma
simples transposição mecânica, imposta, de categorias importadas da URSS, houve um
esforço frutífero por compreender a realidade em que os comunistas atuavam para
organizar a revolução como parte da revolução proletária mundial, objetivo último da
IC.
No 3º número da Correspondencia Sudamericana, um artigo assinado por B.D.
(do Rio de Janeiro) tentava se debruçar na análise da realidade política após a vitória de
Washington Luís para a Presidência. O autor identifica entre as classes a oligarquia
cafeeira e os “pobres escravos” que viviam no campo, denunciando o sistema eleitoral
que garantia a sucessão dos latifundiários. O artigo se volta ao movimento operário de
São Paulo e Rio Janeiro, tratando as disputas ideológicas com o sindicalismo-anarquista
e as esperanças em se conquistar da classe operária para se derrubar a burguesia303.
O que se verifica gradualmente é o tratamento de duas questões essenciais na
periferia do capitalismo: a questão agrária ou camponesa e a luta contra o imperialismo.
Gradativamente, o secretariado tentava tratar essas duas questões que fugiam do
problema apenas proletário e podiam explicar aspectos nacionais mais amplos,
particularmente em países onde a classe operária era proporcionalmente muito pequena,
como na América Latina, e o próprio capitalismo havia seguido um desenvolvimento
distinto dos países europeus de economia mais avançada.
No nº 4, aparece um artigo assinado por Pedro Romo, “O problema camponês na
Argentina”, em que tratava o problema camponês a partir de algumas particularidades
argentinas: o cultivo extensivo e o trabalho assalariado304, que “tiram todo caráter de
indústria familiar, para rodear de muitos dos aspectos próprios da grande produção
industrial”. Mas existem diversos “tipos de produtor agrícola: proprietários de terra que
exploram a si mesmos com o auxílio do trabalho assalariado; arrendatários e ‘meeiros’,
que também apelam ao trabalho assalariado para a exploração agrícola”.
O que Romo considerava mais importante na Argentina era o arrendatário, “o
agricultor típico da Argentina”, um “pequeno capitalista”. Citando Kautsky, conclui que
essa classe estaria condenada a desaparecer devido à lógica de concentração do
capitalismo, que engole a pequena propriedade em favor da grande.
303
Carta del Brasil. Correspondencia Sudamericana, Buenos Aires, ano 1, n. 3, 15 maio 1926, p. 11 e 12.
304
ROMO, Pedro. O problema campesino em la Argentina. Correspondencia, n. 4, p. 23, 30 maio 1926,
p. 23.
272
A leitura de Kautsky305 é superficial, mas é um importante avanço para orientar a
preocupação que aparece logo depois:
A questão camponesa cada vez mais apareceria dentro das interpretações das
realidades nacionais de cada país latino-americano, e a exemplo do texto de Romo,
citado acima, o tratamento da questão agrária fazia parte de um importante processo de
superação da tradição anarquista ou sindicalista entre os militantes dos PCs latino-
americanos. Já apontamos essa diferença anteriormente, mas quando, a partir de 1924,
se inicia a construção dos PCs latino-americanos diretamente ligados à IC, as rupturas
com o sindicalismo se acentuam, e surge todo um outro universo teórico para se
compreender a realidade de cada país.
Para a prédica anarquista e sindicalista, a humanidade se dividia entre os
oprimidos e opressores, e os camponeses entravam, de acordo com o seu grau de
miséria material, dentro de um ou outro. A revolução social não continha etapas, fases
ou sentido histórico, conforme ocorria com tradição marxista. Coube ao leninismo
aprofundar a questão camponesa sob uma perspectiva revolucionária, mas também
dentro da perspectiva histórica desenvolvida pelo marxismo.
Para o leninismo, a questão camponesa aparecia relacionada à revolução
burguesa, que também se ligava diretamente à construção do Estado nacional, e, de
maneira direta, a todos elementos que possamos considerar como relativos a construção
da nacionalidade.
O fator complicador para esse modelo de marxismo utilizado pelos social-
democratas alemães e mencheviques aos quais Lenin se opôs estava centrado no papel
305
Ver no início do segundo capítulo, em que explicamos de forma sintética a tese de Kautsky sobre a
questão agrária.
273
do imperialismo e em como a expansão imperialista do capitalismo alterava as etapas
históricas que haviam marcado os processos de desenvolvimento do capitalismo na
Europa Ocidental industrializada.
A expansão do capitalismo, em sua fase imperialista, não proporcionava o
desenvolvimento de uma burguesia nativa que dirigisse o processo de construção da
nacionalidade; ao contrário, limitava o desenvolvimento nacional e, assim, também uma
parte fundamental do processo que coroou a formação dos países capitalistas europeus,
a destruição da ordem nobiliárquica e a distribuição de terras aos camponeses, programa
tradicionalmente defendido pelos liberais contra os conservadores na América Latina.
Esse modelo apontava para uma substituição da burguesia, como força
revolucionária para a construção de nacionalidade na América Latina, já que essa classe
já não era, nos países dominados, capaz de enfrentar o imperialismo. Cabia à Revolução
Proletária Mundial ajudar e impulsionar a luta anti-imperialista nos países dominados.
A luta dos comunistas assumia nos países oprimidos pelo imperialismo não apenas a
luta do proletariado contra a burguesia, mas também uma luta de libertação anti-
imperialista que tinha a tarefa de construção nacional e democratização da terra.
Dentre os três núcleos comunistas estudados neste trabalho, foi no Peru em que
esse debate teórico e a sua aplicação na interpretação da realidade se tornou mais
profundo. No México, foram os exilados e estrangeiros que dentro no PCM deram as
maiores contribuições, talvez exatamente por carregarem uma condição naturalmente
mais internacional. No Brasil, o PCB teria muita dificuldade em se desprender da
análise sindical, centrada no movimento operário, para se debruçar na realidade
nacional. A dificuldade em se compreender o tenentismo e a resistência posterior em se
incorporar Luís Carlos Prestes no PCB nos anos 1930 são algumas indicações de como
a discussão do programa revolucionário para a realidade brasileira possuía
insuficiências fundamentais em relação às discussões teóricas que já se faziam para
outras realidades da América Latina. No Brasil, a incorporação dos camponeses no
programa revolucionário comunista foi, até a década de 1930, pelo menos, formal306 e
apenas apareceu por insistência da IC.
Já a partir dos primeiros dias de 1927, o tema da luta anti-imperialista começou a
assumir um crescente protagonismo nas preocupações do secretariado sul-americano da
306
Praticamente não existiu nenhuma relação entre o PCB e os camponeses até a década de 1930. Mas o
nome Bloco Operário, criado como uma frente pelo PCB, foi alterado para Bloco Operário e Camponês,
por sugestão da IC.
274
IC em Buenos Aires, abrindo um debate que marcaria os anos seguintes, conforme
podemos acompanhar pelas páginas da Correspondencia Sudamericana, e também na
Revista Amauta, bem como no órgão informativo da Liga Anti-imperialista das
Américas, com sede na Cidade do México, El Libertador.
275
primeira escala de Haya, após o Panamá, é em Havana, onde conheceria o presidente da
Federação de Estudantes de Cuba, Julio Mella. Logo depois, Haya partiria para o
México, onde passaria a trabalhar com José Vasconcelos, então Secretário de Educação,
de tendências liberais, e discurso latino-americanista. Nesse período em que Haya
trabalhou na Secretaria de Educação, Vasconcelos estava envolto nas suas teses sobre a
raça cósmica e o latinoamericanismo. Como veremos mais adiante, as ideias de
Vasconcelos influenciaram Haya de La Torre, que em maio de 1924 organizou com
outros estudantes mexicanos uma cerimônia de “entrega da bandeira da nova geração
hispano-americana”. Essa cerimônia não propôs a organização clara da APRA, mas é
considerada pelos apristas como o evento fundador de seu movimento. Juntando à ideia
de uma “nova geração”, muito proclamada pelos estudantes reformistas com o hispano-
americanismo muito elistista307 de Vasconcelos, Haya diria:
Ao que parece, Haya buscava com esse texto informar aos revolucionários
peruanos sobre sua experiência.
Todos que iam para o país dos sovietes narravam o que viam e eram lidos com
muito interesse pelo movimento operário. Astrojildo Pereira escreveu diversos relatos
de sua viagem em 1924, e depois, em 1929 em Moscou.
Nessas crônicas, fica evidente o quanto de simpatia o jovem peruano tinha pela
URSS, o que nos oferece um excelente ponto de partida para compreendermos a
posterior ruptura entre apristas e comunistas, bem como os termos do debate.
278
URSS, e podemos considerar que Haya foi um simpatizante do comunismo nos pouco
mais de dois anos que se seguiram ao V Congresso da IC.
308
MELGAR BAO, Ricardo. El Universo Simbólico de una Revista Cominternista: Diego Rivera y El
Libertador, Convergencia, México, n. 21, jan./abr. 2000. Disponível em:
<http://ru.ffyl.unam.mx:8080/jspui/bitstream/10391/914/9/melgar_el_libertador_introduccion%20.pdf>.
Acesso em: 27 mar. 2014.
280
Figura 71 - Desenho de Rivera para o Congresso de Bruxelas (1927)309
309
Diego Rivera ilustra o número 12 de El Libertador, que iria publicar parte das resoluções do
Congresso de Bruxelas. Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera,
2008, p. 110.
310
Willi Müenzenberg (1889-1940) foi um comunista alemão conhecido pela sua capacidade em
organizar o aparato de propaganda comunista. Foi responsável pela criação de muitas iniciativas editoriais
importantes, membro do CC do PC da Alemanha e importante dirigente do movimento comunista. Em
1940 foi morto por nazistas.
281
expressão orgânica a fundação das Ligas Anti-Imperialistas Pan-Americanas (depois
mudaria de nome) em meados de 1925 na Cidade do México, organizadas diretamente
por militantes do PCM. Entre os organizadores da Liga Anti-Imperialista, estiveram
Diego Riviera, Ursulo Galván, Bertrand e Ella Wolfe, além de Siqueiros, Enrique Flores
Magón311 e comunistas estrangeiros, que viviam na Capital Mexicana, como Julio Mella
e Tina Modotti.
O primeiro número do órgão de propaganda da Liga Anti-imperialista
Americana apareceu em agosto de 1925 e denunciava a ameaça que vinha do governo
dos EUA em seu editorial:
311
Embora possua o mesmo nome, não se trata do irmão de Ricardo Flores Magón.
282
Nossos êxitos são enormes. A Primeira Internacional, a de Marx, não
tinha ousado pensar em uma relação desta com o Oriente. Se o partido
do Kuomintang, que se eleva a 400.000 membros, se esse partido que
a história levará amanhã ao poder em toda a China, está
ideologicamente solidário conosco, é já um grande êxito. [...] Se
podemos falar de novos fatores mundiais e históricos, é da união em
nossa época do movimento nacional revolucionário com o movimento
proletário. Esta fusão de duas correntes revolucionárias nos assegura a
vitória. (Correspondência Sudamericana, n. 6, 30 jun. 1926, p. 31).
285
situação política chinesa, assinando por Marcel Fourrier (1895-1966)312, com o título
“Panorama de la Revolución Mexicana”, e o subtítulo: “A liberação da China marcará a
decadência do imperialismo e abrirá a era das revoluções”, em que dizia: “simplificando
extremamente, se pode dizer que as contradições imperialistas no mundo se relacionam
com as que opõem aos EUA, a Grã-Bretanha e o Japão”313. E o artigo termina: “Será a
revolução chinesa que colocará fogo na pólvora?” (Ibidem, p. 40).
A Revolução Chinesa mereceu até uma poesia de Armando Bazán, estudante
membro do grupo de Lima que se agrupou em torno de Mariátegui para dar origem ao
Partido Comunista do Peru:
Na Ásia
as mãos amarelas
levantam bandeiras vermelhas
[...] sobre o cansaço letal de Buda
estalam como duas chicotadas
as proclamas de Lenin e Sun Yat Sem.
Explode outra vez A DINAMITE
que abre caminhos virgens:
– incêndio de novos horizontes
– A REVOLUÇÃO
E desde Cantão até Marrocos
tremem as bases do mundo
Na torre mais alta
da inquietação
se ergue a atenção do mundo
E há milhões de gritos que sacodem
as Muralhas de Pequim. (BAZAN in AMAUTA, 1927, p. 7).
A aplicação tática da frente única parecia estar dando resultados aos que
acompanhavam o desenrolar do Kuomitang. A frente anti-imperialista mundial,
animada pela Internacional Comunista, tinha um novo impulso com a organização de
um Congresso Mundial organizado em Bruxelas, que contaria com diversas
personalidades da luta anticolonial e anti-imperialista.
No nº 9/10 de El Libertador, em setembro/outubro de 1926, anunciava o
Congresso:
A Liga Internacional Ant-imperialista, que é dirigida por Barbusse, o
eminente escritor e revolucionário francês; Einstein, o grande gênio
científico da época; Kuo Meng, reitor de uma célebre universidade
chinesa; Leibeur, líder do Partido Socialista Independente da
Alemanha; Skalavala, delegado pela Índia ao Parlamento Britânico e
outros célebres revolucionários e intelectuais tem decidido organizar
312
Marcel Fourrier foi membro do PCF e editor do jornal L’Humanité.
313
FOURRIER. Panorama de la Revolución Mexicana. Amauta, Lima, n. 8, abr. 1927, p. 5.
286
uma conferência mundial que compreenda as representações de todos
países coloniais, semicoloniais e as de todas aquelas forças
revolucionárias que sintam a necessidade de lutar contra o
imperialismo mundial das grandes oligarquias financeiras. (EL
LIBERTADOR, n. 9 e 10, out. 1926, p. 10).
288
tratariam como o oposto a Sun Yat Sen314, um honrado nacionalista com o qual se
poderia ter mantido uma frente anti-imperialista e antifeudal.
Jamais a tática de frente única anti-imperialista será negada pelos comunistas
chineses, mas o significado dessa ruptura traria consequências para a compreensão que
se tinha da frente com os nacionalistas em países dominados. O aprendizado com a
derrota na China não seria incorporada imediatamente, e El Libertador, em julho, ainda
publicaria nas páginas do nº 12 elogiosas palavras ao Kuomintang: “Temos hoje no
Partido Nacionalista Chinês (Kuo Min Tang) o mais alto grau de desenvolvimento de
um movimento nacionalista revolucionário, empenhado em sua luta final”. (El
Libertador, n. 12, jun. 1927). E, embora ressalve que “o exemplo da China nos revela
também, que os países oprimidos pelo imperialismo, se encontram classes dispostas a
aliar-se à opressão imperialista, traindo a causa da libertação nacional”. (Ibidem).
No entanto, a resolução ainda afirma:
314
Sun Yat Sen foi o grande líder e fundador do Kuomitang. Foi a partir de sua liderança que os
nacionalistas chineses se aliaram com o governo soviético.
315
Possivelmente esse nome se refira à mexicana Concepción Michel. (JEIFETS, 2004, p. 212).
289
marcha vitoriosa a todo o país, arrastando para um movimento
gigantesco de emancipação não só a burguesia nacional, como
também todas as massas operárias e camponesas.
Fez-se a frente única anti-imperialista, organizando-se sob a direção
do governo de Cantão a luta contra os generais reacionários e contra o
governo de Pequim, sustentadas pelas forças unidas das potências
imperialistas.
Contudo essa frente única, conjunta de classes e camadas sociais
diferentes, alojava já em seu seio às forças motrizes essencialmente
contraditórias e opostas umas as outras. A primeira, representando os
interesses da burguesia nacional. Lutava pela destruição das
prerrogativas de que gozavam a indústria e o comércio estrangeiro, em
prejuízo do capital nacional. A segunda, operária e camponesa, luta
pela terra e a liberdade, contra uma situação de fome, de miséria e de
exploração espantosa. Marchando junto com as massas proletárias até
o norte, a burguesia nacional desempenhou um papel revolucionário,
infringindo derrotas contínuas aos exércitos de Chang Tso-Lin. Mas o
desenvolvimento da revolução empurrou as massas operárias e
camponesas até a conquista dos seus interesses, interesses próprios da
classe proletária. A revolução, em princípio essencialmente
nacionalista, se transformou em revolução social, pedindo não só a
anulação das prerrogativas estrangeiras e o estabelecimento de um
governo protetor dos interesses nacionais, senão a destruição do
sistema feudal, a repartição da terra, a supressão dos impostos
asfixiantes, a jornada de oito horas, salários justos e direitos políticos
que até agora tem sido privilégio das classes endinheiradas. A
massa proletária, cada dia mais potente e organizada, sob a direção
dos elementos avançados em poderosos sindicatos e ligas camponesas,
chegou a pôr em perigo não só os interesses do imperialismo, senão
também o capital nacional. Foi então quando Chang Kai Shek trai,
iniciando a luta contra a esquerda do Kuomintang e buscando o
entendimento com o governo de Pequim e as potências estrangeiras.
(EL LIBERTADOR, n. 13, ago. 1927, p. 14).
290
incompatível do diário La Nación316.
316
BRANDÃO, Octávio. “Progressos do Movimento Comunista Brasileiro” In: Correspondencia
Sudamericana, n. 25, Buenos Aires: jun 1927, p. 26.
317
Cf. ROIULLON, 1982, passim.
291
Ao longo do congresso, Haya apresentou uma série de posições contrárias às
teses defendidas pelos comunistas, abrindo uma polêmica particular com Júlio Antônio
Mella, o cubano exilado no México que era muito atuante nos temas relacionados à luta
anti-imperialista.
Uma parte das teses de Haya de La Torre foi aprovada318, mas ao longo do ano
de 1927 e início de 1928 se desenvolveu a ruptura definitiva entre os seguidores de
Haya de La Torre (futuros apristas) e os comunistas. Conceitualmente, os debates
seguiram em paralelo com o amadurecimento das polêmicas em torno do que ocorria na
China. A perseguição em abril de 1927 havia deixado os comunistas latino-americanos
atentos para uma possível traição da pequena burguesia nacionalista, que Haya parecia
representar. A crítica do líder da APRA questionava a hegemonia dos comunistas na
Liga Anti-imperialista, defendendo uma “autonomia” política dos não comunistas na
frente. O debate girava em torno do que seria uma frente e o que seria um partido, ao
mesmo tempo que se discutiam etapas da revolução, a diferença entre América Latina e
Europa, entre outros temas.
318
Ver: Correspondencia Sudamericana, n. 20, Buenos Aires: 15 mar. 1927.
292
Haya de La Torre apresenta a contenda de uma forma pessoal que desqualifica a
polêmica pelo temperamento de Julio Mella. Como o cubano havia ganhado um imenso
prestígio, devido ao seu assassinato covarde no México, Haya mantém um tom
amistoso, que não seria o mesmo quando se referia aos comunistas que o atacaram
através dos periódicos do México e de Buenos Aires, “Os órgãos da imprensa estalinista
de Buenos Aires e México”. (Ibidem, p. 12). Esses órgãos eram La Correspondencia
Sudamerica e El Libertador.
Um primeiro sinal da ruptura entre aprista e comunistas veio em um artigo de
julho de 1927, que abriu a capa de Correspondencia Sudamericana com o título “La
lucha antimperialista”, em que reforçava a necessidade de se reforçar as ligas como
“organizações de massas”. Sem citar a APRA, falava que:
319
Contra el Partido Comunista?, Correspondencia Sudamericana, n. 29, Buenos Aires: 31 jul. 1927.
293
O ponto que importava no debate para o Secretariado Sudamericano era a
posição de Haya de La Torre sobre as forças motrizes da revolução e o papel das classes
médias nas revoluções latino-americanas. “[...] o resultado era que os estudantes
constituiriam a vanguarda do movimento revolucionário anti-imperialista.” (Ibidem, p.
1).
Para os que pudessem imaginar que se tratava de uma questão secundária, o
artigo citava o livro “Por la emancipação de America Latina”320, em que o autor
publicava vários artigos em que defendia a necessidade de uma frente única para
agrupar várias classes que vivem a opressão da dominação imperialista, mas deixava
pouco claro qual o papel de cada classe, e sobre essa questão nascia a primeira
importante divergência que oporia comunistas e o aprismo.
Haya dava muita importância à “nova geração”, que era claramente uma
referência aos estudantes da reforma universitária. “Haya de La Torre superestima
indevidamente as forças universitárias no movimento anti-imperialista.” (Ibidem, p. 2).
E questionava: “se a APRA é uma frente anti-imperialista, por que se constitui separada
da liga anti-imperialista que realiza precisamente essa frente? Por que tem tido a
necessidade de uma organização especial?”. (Ibidem, p. 2). E logo passava para a
questão que marcaria a ruptura entre apristas e comunistas no Peru, e entre os exilados
peruanos que estavam no exterior: A diferença entre um partido revolucionário e uma
frente.
Desde o texto de 1926, “O que é a APRA?”, o estudante peruano já escrevia a
palavra Frente junto com Partido Revolucionário, aparentando uma confusão em
relação aos termos que para os comunistas representavam formas de organização muito
diferentes321.
Além disso, Haya falava de frente única e partido, fazendo inclusive paralelo
com o Kuomintang chinês: “O movimento do Kuomintang (Kuo: nacional, ming:
popular, tang: partido) representa justamente um movimento de independência de toda
sujeição usando para esse fim de todos os meios e de todas as ajudas”. (HAYA DE LA
TORRE, 1984, p. 140, v. 1).
A lógica que Haya estava começando a incorporar para justificar suas posições
320
Ver: HAYA DE LA TORRE, 1984, v. 1.
321
“A organização de luta anti-imperialista na América Latina, por meio de uma frente única internacional
de trabalhadores manuais e intelectuais (operários, estudantes, camponeses, intelectuais, etc.) com um
programa comum de ação política, isso é o APRA. [...] O APRA – que vem a ser o Partido Revolucionário
Anti-imperialista Latino-Americano.” (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 130, v. 1).
294
frente aos comunistas havia sido escrita em fevereiro de 1927, em tempos de
entusiasmo dos comunistas pelo Kuomintang. “A realidade da América Latina não é a
realidade da Europa” (Ibidem, p. 136-141), em que afirmava que “nossos
revolucionários não têm até hoje senão tratado de inventar um ambiente europeu em
uma realidade americana que jamais descobriram. [...] formam as “burocracias
revolucionárias” da América Latina.” (Ibidem, p. 137)
Afirmando a necessidade de uma teoria latino-americana revolucionária, e
também de um partido revolucionário latino-americano, o estudante peruano justificava
a sua separação da órbita da Internacional Comunista, que nesses termos passava a ser
tratado como um órgão europeu e suas soluções revolucionárias não serviriam para o
continente latino-americano.
Após a perseguição aos comunistas em abril, o modelo de frente com os
nacionalistas passaram a ser vistos com mais atenção, e certamente a traição de Chang
Kai Shek motivaria uma revisão da relação dos comunistas com a APRA, que
denominava a si como o “Kuomintang latino-americano”.
Com os acontecimentos se Shangai, houve uma tendência crescente em se
debater a composição de classe da frente única nos países coloniais e semicoloniais. O
papel do partido comunista na frente e que parte da burguesia nacional poderia se aliar
ao proletariado, ou seja, ao partido comunista, na luta anti-imperialista.
No artigo da Correspondencia Sudamericana citado, explicava que diferença
entre frente e partido é que
[...] o Partido tem uma base social precisa, homogênea, uma ideologia
única, uma concepção homogênea de todas as questões. No partido,
qualquer que seja sua procedência social, está a elite de sua classe, sua
parte mais resoluta e avançada, sua fração mais consciente.
No bloco de frente única, integrado por forças sociais distintas (nesse
caso, operários, camponeses das diversas camadas, estudantes,
profissionais, pequenos comerciantes e industriais, médios-burgueses,
grande burguesia em determinadas condições, etc.), o característico
não é a homogeneidade e função de partido, senão a concentração de
um momento de massas. (CORRESPONDENCIA..., n. 29, 15 ago.
1927).
A partir dessa definição, a pergunta que se fazia à APRA era que papel pretendia
cumprir, já que, com os mesmos objetivos, para o partido revolucionário havia o
Partido Comunista e para a frente as Ligas Anti-imperialistas. “Haya de La Torre não
pode deixar de compreender que o é indispensável esclarecer é qual a posição do APRA
295
frente ao Partido Comunista, já que, como frente única ou como partido da nova
geração, se substitui de fato, o Partido Comunista.” (Ibidem, p. 5).
E mais adiante completa com uma citação de Stalin:
296
O que é o ARPA?
Declarada essa intenção, Julio Mella redigiu o longo artigo em que demarca os
pontos que nortearam a ruptura entre Haya e os comunistas. Mas, antes de passarmos
para o conteúdo do próprio texto, que doutrinariamente é o que nos importa mais, cabe
apresentar uma manobra política de Haya que ajudou os comunistas, através do artigo
de Mella, a romper definitivamente com a APRA.
Ao que tudo indica, o esforço pela unidade com Haya havia sido buscado pelos
comunistas desde que ele havia colocado reservas para assinar a resolução do Congresso
de Bruxelas, no início de 1927323. Em tom irônico, Mella justifica:
322
¿QUÉ ES EL ARPA?. In: MELLA, Julio. Julio Antonio Mella – Selección de textos. Panamá: Ruth
Libros, s.d., p. 80-118.
323
Mella narra em episódio em que Haya havia se incomodado por não terem o convidado de maneira
especial: “Seu representante máximo não quis assistir ao Congresso de Bruxelas porque haviam
esquecido de fazer um convite especial, pessoal”. (MELLA, s.d., p. 106). Mas que depois seria superado
com algumas diligências que garantissem a presença de Haya. Mella cita isso para marcar um traço
vaidoso da personalidade do chefe da APRA, que segundo o revolucionário cubano estaria por trás da
posição dele contra os comunistas.
297
Estas reservas nunca foram explicadas. (MELLA, s.d., p. 107).
Fica estabelecido que o órgão único (que terá que realizar a revolução
libertadora do Peru) será o Partido Nacionalista Libertador do Peru,
organismo político militar revolucionário, que reconhece como
fundador e chefe supremo, em ambos, ordens de Victor Raúl Haya de
La Torre e que estará dirigido por um Comitê Central com sede
temporária no México. (PLAN de México apud Martinez de La Torre,
1974, p. 290).
324
“Em nenhuma parte aparece o princípio fundamental na luta social: A hegemonia do proletariado e a
aplicação da ditadura para a realização do socialismo. Isto é aceito, ainda que teoricamente, até pelos
partidos da Segunda Internacional, se considera demasiado revolucionário, demasiado “comunista” e um
tanto inoportuno pelos seus novos ideólogos na América Latina.” (Ibidem, p. 88).
299
O imperialismo é um fenômeno internacional e suas características
fundamentais (o imperialismo, fase superior do capitalismo, N. Lenin)
são iguais na América e na Ásia. Os povos coloniais também
apresentam traços semelhantes na Ásia e na América. Os restos das
sociedades bárbaras e feudais nos países coloniais são modificados de
maneira muito semelhante pela penetração do capitalismo
imperialista, ora seja inglês, ora ianque ou o francês. Logo a aplicação
da tática irá diferir nos detalhes e na oportunidade histórica. Mas as
generalidades (papel de classes, base da frente única, desenvolvimento
do imperialismo e do proletariado, etc.) são invariáveis à luz do
marxismo e de sua adaptação à época moderna do imperialismo: o
leninismo. [...] Mas a América não é um continente de Júpiter, senão
da terra. E é uma coisa elementar para todos os que se dizem
marxistas – como os do “Partido Revolucionário Continental Anti-
imperialista” – que a aplicação de seus princípios é universal, já que a
sociedade imperialista é também universal. (MELLA, s.d. p. 89).
325
Autores como Löwy (2006) acreditam que essa posição de Mella em relação à burguesia nacional
explicava uma possível adesão dele ao trotskismo. Apenas olhando as resoluções do VI Congresso
(1928), já sem a participação de Trotski, percebe-se que a IC não estava formulando alianças com a
burguesia nacional. Foram exatamente as dificuldades com o Kuomitang que tornariam a aliança com a
burguesia nacional em países periféricos algo complexo, que variou em relação as formulação ao longo
do tempo, da situação política e diversos outros fatores. De modo que tratar a defesa da aliança com a
burguesia nacional como algo característico do “stalinismo”, e a negação dessa aliança, o “trotskismo”, é
uma simplificação grosseira.
300
verdadeiros trabalhadores intelectuais, a quem consideram, em sua
imensa maioria, uns explorados. Mas a história dos partidos socialistas
e comunistas, assim como a da Revolução Russa, indica que aos
“trabalhadores intelectuais” lhes gosta mais uma esmola da burguesia
capitalista que ir às filas dos revolucionários”. (MELLA, s/d., p.93-
94).
E mais adiante afirma: “seu gosto por ser eternos estudantes e andar pelos
ateneus e escolas e não pelos sindicatos e oficinas, demonstra que para eles o ser
intelectual (e isto o que é?) constitui o ideal máximo da vida?” (Ibidem, p. 105)
Ao fim, Mella apresenta uma série de fatos que demonstram o oportunismo de
Haya e do ARPA, entre eles o bleff do plano do México e algumas declarações de apoio
a uma organização mexicana que defendia a deportação de chineses, que alimentava o
ódio racial em nome da defesa dos nacionais.
Mella conclui: “depois de ter terminado esta polêmica, necessária somente para
precaver aos incautos...”. Dessa forma, ficaria sem retorno a ruptura entre a APRA e a
Liga Anti-imperialista do México e o Secretariado Sulamericano da IC em Buenos
Aires. O artigo de Mella seria sucedido por uma série de artigos publicados na imprensa
sob influência comunista na América Latina, aprofundando diversos aspectos da tática
de frente única e do papel do Partido Comunista, mas seria no Peru, entre os
colaboradores da Revista Amauta que a ruptura definiria posições que depois gerariam
as duas principais correntes do movimento popular peruano, o aprismo e o comunismo.
Julio Mella havia sido torturado pelo governo Machado antes de sair exilado
para o México. Seria um dos principais organizadores das Ligas anti-imperialistas,
chegando a ser secretário-geral interino do PCM no final da década de 1920. O círculo
de revolucionários comunistas que colaboraram no final da década no México agrupava
personalidades que ficaram famosas no mundo. Entre esses militantes, estavam Xavier
Guerreiro, Diego Rivera, Frida Kahlo, Victório Vidali, David Alfaro Siqueiros, Tina
Modotti, Bertran Wolfe, Rafael Carrillo e outros comunistas que se destacariam em
diversas áreas das artes.
Julio Mella e Tina Modotti se apaixonariam, viveriam um romance em meio às
atividades partidárias, que seria interrompido pelo assassinato dele enquanto caminhava
com Tina Modotti na Avenida Abrahan Gonzalez, próximo ao centro da Cidade do
México. O crime foi executado por agentes de Machado326, mas a imprensa
326
Por mais incrível que possa parecer, alguns autores sustentam que a morte de Julio Mella foi obra de
301
anticomunista tentou relacionar o crime a Tina Modotti, que seria injuriada em uma das
campanhas de difamação mais terríveis ocorridas no México, associando a sua figura à
promiscuidade e como pivô de um crime passional.
Tina Modotti seria expulsa do México e colaboraria de forma decisiva em várias
seções do Socorro Vermelho Internacional, tendo um papel destacado na assistência às
vítimas do fascismo franquista durante a Guerra Civil Espanhola. Ficaria lembrada
pelos sobreviventes como a camarada Maria.
A Revista Amauta
Stalin. (BRUE, 2007, p. 629). O que não tem fundamento em nenhum documento ou evidência. Os
argumentos são apenas circunstanciais e colocam como uma manobra de Vitorio Vadali para eliminar um
elemento “simpático” aos trotskistas russos. Segundo Bruê, isso estaria comprovado nos textos de Mella,
que manifestariam similaridade com as posições de Trotsky. Nossa investigação revela exatamente o
contrário. Mella é um dos grandes defensores das teses que seriam aprovadas no VI Congresso da
Internacional Comunista. No verbete, “Julio Mella”, da Wikipedia em espanhol, a História do assassinato
de Mella assume contornos mais fantasiosos, supondo ter sido realizado por Vidali, e inclusive conclui
que Tina Modotti havia sido também assassinada, em 1942, e não teria morrido de ataque cardíaco.
Disponível em: <http://es.wikipedia.org/wiki/Julio_Antonio_Mella>. Acesso em: 27 mar. 2014.
302
reforma universitária com os operários de Lima, e apenas não prosseguiu com ela
devido à sua amputação da perna e à prisão de diversos ativistas das Universidades
Populares Gonzalez Prada.
A partir de 1926, já anunciava a publicação de Amauta, mas o primeiro número
só saiu em setembro de 1926. A revista abriu suas páginas para José Vasconcelos, Haya
de La Torre, para os muralistas mexicanos, poetas, intelectuais provincianos, socialistas,
figuras como Barbusse, Shaw, Chaplin, Freud, Sorel e autores soviéticos ou comunistas.
Mariátegui claramente tinha interesse em ampliar a extensão da influência da
publicação. Alguns autores interpretaram a variedade de autores da Revista Amauta
como se tratasse da expressão da “heterodoxia” de Mariátegui.
A publicação seguia mais o sentido da frente única pensada pelos comunistas
desde o IV Congresso. Embora tenhamos o depoimento de César Falcón de que
Mariátegui acompanhava a publicação das resoluções dos Congressos da IC para
comprar nos pontos de venda de L’Humanite327 enquanto esteve na França, seria leviano
afirmar que Mariátegui seguiu estritamente as resoluções da Internacional Comunista.
Vanden (1975, passim), em sua lista de livros da biblioteca de Mariátegui328, cita as
resoluções do V Congresso, inclusive com anotações de Mariátegui. Independente de
qual nível de inflexão que as resoluções da Internacional Comunista provocavam em
Mariátegui, é claro que ele se mantinha na órbita de influência da Internacional
Comunista, que desde 1922 havia superado os desvios esquerdistas e estava trabalhando
com as frentes políticas mais amplas, vide a relação com o Kuomintang e com o
trabalhismo inglês.
327
“Poco después, estando todavía en Turín, los tres amigos habrían de leer las noticias provenientes de
Rusia Soviética sobre el desarrollo y las resoluciones del Segundo Congreso de la III Internacional,
realizado en Moscú (del 19 de julio al 7 de agosto de 1920), publicadas por el semanario «L'Ordine
Nuovo» con fecha 21 de agosto de ese mismo año.” (ROUILLON, 1993, p. 51, v. 3) e também: “Y los dos
amigos inseparables se reunieron esta vez, en París. Ahí, antes de materializar sus audaces sueños uno y
otro compañero, fueron a aprovisionarse de publicaciones marxistas – vertidas al francés – en las
librerías del Partido y, también, en las que se hallaban ubicadas a lo largo de las riberas del Sena. La
curiosidad de ambos jóvenes se volcaba pues, por esos días, sobre toda la documentación que les
ofreciera una versión auténtica acerca del movimiento revolucionario de posguerra, caracterizado –
según las conclusiones del III Congreso del Comintern de 1921 – por la presión espontánea de las masas,
por la deformidad de los métodos y objetivos y por el pánico de las clases gobernantes (que parecía
haber terminado en medida considerable).” (Ibidem, p. 81).
328
Ver: VANDEN, 1975.
303
Figura 74 - Capa da Revista Amauta, com uma gravura indigenista de Sabogal.
329
Já citamos anteriormente esse fato.
304
governo no exterior.
A Revista Amauta foi fechada, e Mariátegui ficou preso. Esse fato não ficou
imperceptível, e inclusive foi denunciado em vários órgãos democráticos no mundo.
Segundo Portocarrero (1987), o grupo de Mariátegui estabeleceria uma relação
orgânica com a IC após a ida de Miguel Coutreras a Lima, com um convite para que
enviassem delegados peruanos ao Congresso da Internacional Sindical Vermelha.
“Mariátegui me deu o contato para eu encontrar com Contreras, o enviado da Argentina,
e me daria um sinal de como ia aparecer: com a lapela levantada, ou um lenço.”
(PORTOCARRERO, 1987, p. 137).
Após uma conferida com outros companheiros de Portocarrero, sobre a sua
atuação no movimento operário, o jovem peruano embarcaria rumo à Rússia, junto com
Armando Baizán. Ambos faziam parte do pequeno grupo mais próximo de José Carlos
Mariátegui, que depois fundaria o Partido Socialista Peruano, futuro PCP.
No caminho para Moscou, Portocarrero e Bazán encontram em Paris o grupo da
APRA de daquela cidade, e os estudantes exilados, Heysen e Ravines. Com Ravines,
preparam o informe que iriam apresentar no IV Congresso da ISV. As memórias de
Portocarrero são ricas em descrever a Rússia, os teatros, a neve e a sua impressão de
tudo aquilo, mas muito pobres em termos do debate político-ideológico330 .
Após uma viagem pela Rússia, houve a Conferência Sindical dos Latino-
americanos, que reuniu pela primeira vez um contingente expressivo de latino-
americanos em um evento ligado à Internacional Comunista. O trabalho de organização
dos comunistas latino-americanos, iniciado pelos primeiros emissários, nos primeiros
anos da Internacional Comunista, teve um impulso significativo com a organização do
secretariado sul-americano. O primeiro resultado seria a reunião de vários latino-
americanos em uma conferência que deiberou a organização da 1ª Conferência Sindical
Latino-americana, que ocorreria em maio de 1929, em Montevidéu.
330
Os fatos do Congresso que mais foram recordados por Portocarrero dizem respeito a um documento
que pretendiam ler contra André Nin e Tomsky. Portocarrero “não se lembra bem do conteúdo, mas era
para tirá-los” da direção da ISV. Portocarrero estava mais concentrado na forma com que procediam, e,
sem compreender o conteúdo, negou-se a ratificar o documento. Essa negativa chegaria a Losovsky (líder
da ISV), movimentaria outros delegados, e Portocarrero assinaria uma declaração de solidariedade com os
trabalhadores russos, sem intervir na polêmica com André Nin. O balanço do Congresso é muito
amistoso, e diria: “tudo isso me serviu para conhecer coisas que eu não teria oportunidade de ver e
aprender antes. Por isso que ao termino do Congresso recolhi os materiais. Mas com esses materiais não
pude estudar, nem tampouco trazê-los. Sabia como ia ser o meu regresso: não iam permitir que os
materiais entrassem no Peru. Eu não trouxe nenhum documento do Congresso. Esses documentos
chegaram ao conhecimento de Mariátegui certamente através do Comitê que se formou para organizar a
Confederação Sindical Latino-americana”. (PORTOCARRERO, 1987, p. 150).
305
Nessa conferência em Moscou, estavam Rivera, Siqueiros, Orozco, Rafael
Carrillo, o famoso equatoriano331 Paredes, entre vários outros latino-americanos.
E, em uma reunião dessa Conferência, Portocarrero ficou sabendo das diferenças
da IC com Haya de La Torre, após o rompimento com o Kuomintang:
331
Esse delegado equatoriano questionaria as fórmulas de países coloniais e semicoloniais, além das
táticas de revolução nos países periféricos formulados pela maioria da IC no VI Congresso, e seria muito
citado pela bibliografia como se tratando de um dissidente.
306
imediata foi um questionamento por parte dos outros grupos que compunham a APRA.
O grupo de Lima escreveu uma carta em 16 de abril de 1928, “aos companheiros
da célula México”, após esperar em vão que Haya lhes comunicasse a transformação da
APRA em partido. (LUNA VEGAS,1988, p. 57).
A carta do grupo de Lima demorou para ser respondida, mas selou a ruptura
entre a APRA e Mariátegui. Nessa carta, em tom de ironia, Haya de La Torre formulou
alguns dos argumentos que utilizaria para justificar a sua ruptura com os comunistas,
que já havia ensaiado em alguns artigos ao longo do ano de 1927. O eixo da linha de
Victor Raul Haya de La Torre é a defesa de que deveria haver uma teoria revolucionária
para uma realidade não europeia, como a América Latina. Segundo seus argumentos, o
marxismo da Internacional Comunista era uma teoria europeia, e necessitava ser
adaptada à América Latina.
A operação teórica que Haya tentava construir era nitidamente uma
argumentação retórica, a qual escondia uma tendência oportunista, que, vendo seu papel
ficando secundário na estrutura dos partidos comunistas e até pela proeminência de
outros dirigentes melhor capacitados, iniciou a construção de uma teoria sui generis.
A partir da “constatação” de que a Internacional está imbuída de um “mal
europeísta”, lançou a APRA como a solução revolucionária para a América Latina.
Como necessitava justificar suas ações para o grupo de “apristas” que gravitavam sob a
sua influência, buscou desde o Congresso de Bruxelas uma explicação que justificasse a
sua separação das ligas anti-imperialistas e da URSS.
Haya de La Torre desenvolveria uma arte de adaptação teórico-política de
332
MARIÁTEGUI, 1928 apud LUNA VEGAS, 1988, p. 58.
307
criatividade inigualável, capaz de justificar com malabarismos teóricos dos mais
variados os mais diversos tipos de aliança e estratégias, de modo que encontrar um
sentido lógico e uma estrutura de pensamento no aprismo é quase impossível.
A carta enviada para Mariátegui contém elementos da argumentação que ajudam
a esclarecer, em alguma medida, alguns pressupostos que guiaram a ruptura entre
comunistas e apristas.
Haya ainda desenvolveria mais suas teses. Esses argumentos são apenas iniciais,
e, curiosamente, ele estava tão influenciado pelas ferramentas teóricas que se
desenvolviam a partir da experiência soviética que a partir da “negativa” do europeísmo
do movimento comunista Haya vai desenvolver uma teoria própria. Em primeiro lugar,
vai aplicar a crítica antipositivista muito comum após a primeira guerra ao marxismo-
leninismo. O marxismo-leninismo não seria uma teoria universal que poderia ser
aplicada na análise das realidades não europeias. Na carta para Mariátegui, apenas nega
o “europeísmo” de maneira vaga, mas anos depois, com a publicação de O anti-
imperialismo e o APRA334, Haya tentaria desenvolver alguns questionamentos teóricos
colocados por Mella, feitos meia década antes. Todas justificativas estavam baseadas na
premissa de que na realidade latino-americana não se podia utilizar o marxismo-
leninismo da URSS, uma teoria e prática que servia apenas para aquela realidade.
O debate sobre partido e frente única expressa bem a típica forma de
333
Refere-se ao ato organizado pelos estudantes peruanos em 1923, que seria o motivo da prisão de Haya
de la Torre, meses depois.
334
Ver: HAYA DE LA TORRE, 1984, v. 1.
308
argumentação de Haya, e, ao menos enquanto teoria política, nunca foi encarada com
seriedade fora da área de influência política de Haya de La Torre, o próprio Peru335.
Para responder às objeções sobre partido e frente única, Haya escreve:
Se não podia ser o capitalismo o exemplo para a APRA, já que estava tentando
convencer os revolucionários com ideias socialistas, tampouco podia ser o comunismo.
Para criar sua teoria, Haya elabora uma tese, que, dizendo-se crítica ao “marxismo
europeísta”, reproduzia a maior manifestação de europeísmo no marxismo, que é a
argumentação sob a lógica de um determinismo típico da argumentação menchevique na
Rússia. O socialismo não era possível na América Latina, porque, diferentemente da
realidade europeia, na indoamérica, como gostava de denominar o subcontinente, ainda
não havíamos passado pela etapa capitalista.
Em resumo, a APRA se tornava o partido-frente de diversas classes, dirigidas
pela classe média, para se realizar uma revolução anti-imperialista, e construir um
capitalismo de Estado, com alguma perspectiva socializante abstrata. A III Internacional
defendia o contrário. Mais tarde, os apristas desenvolveriam outras questões, como uma
“tese do espaço-tempo histórico”, que dava suporte à sua premissa (até então, sem uma
base de argumentação razoável) de que cada lugar geográfico precisava de sua própria
estrutura teórica revolucionária, e qualquer pretensão teórica universal não passava de
uma tentativa de escamotear um “europeísmo”. Para isso, Haya de La Torre mistura
Einsten, com Lenin, Marx, Splenger e outros teóricos que lhe servissem.
Haya de La Torre, depois da 2ª Guerra Mundial, encontrou excelentes “modelos
ideais” de sociedade nos países nórdicos e utilizou-os para poder formar sua
argumentação contra o adversário do momento. O lugar que melhor poderíamos
encaixar Haya de La Torre é como expressão de um tipo de partido, que em alguns
países comporia os Estados latino-americanos, e foi por muitos denominado com o
335
Conforme podemos perceber ao revisar os textos teóricos de Haya, o termo “ortodoxia” comunista,
muito utilizado pela bibliografia que tratou Mariátegui para se referir à Internacional Comunista, foi
também muito utilizado por Haya, apresentando uma possível origem para o termo, e muitas vezes um
coincidente sentido crítico também. “A Carta de Lozowsky era, pois, bastante vaga e repetia conhecidas
frases feitas da ortodoxia marxista.” (HAYA DE LA TORRE, 1984, p. 84, v. 4).
309
termo “populista”.
Haya de La Torre seria um líder que pretendia ocupar esse papel no Peru, foi
exímio “malabarista” teórico, sempre criando soluções teóricas para justificar seus
acordos. Foi uma figura central na política peruana, sempre disputando o movimento de
massas com os comunistas, mas não alcançou a presidência. Seus adversários sempre
utilizaram o seu passado no movimento comunista para dificultarem seu acesso à
direção do Estado e o cargo mais alto que ocupou foi o da presidência da Constituinte,
em 1978, morrendo um ano depois. A APRA elegeria Alan Garcia para presidente,
responsável pelo massacre de prisioneiros comunistas em El Frontón, Lurigancho y
Santa Bárbara, no ano de 1986, talvez o maior massacre de comunistas presos após a
Guerra Mundial.
Para o grupo de Lima, em resposta à carta ofensiva de Haya de La Torre, foi
enviada uma carta coletiva, em que tentavam manter a unidade com a célula do México.
Como referência para que se mantivesse a unidade, o grupo de Lima afirmava:
Estava assinada a ruptura e Mariátegui teria apenas pouco mais de 2 anos para
continuar a sua obra, que teria como fruto a organização do Partido Comunista do Peru,
a partir do PSP, e a organização do núcleo de operários que daria ânimo à fundação da
Central Geral dos Trabalhadores. Mariátegui ajudaria a fundamentar os programas e a
direcionar o embrionário movimento comunista peruano, nascido a partir de suas
conferências, em um sistemático trabalho de organização e elaboração teórica.
312
Bukharin que a IC havia “descoberto a América Latina”336.
O motivo para esse entusiasmo foi o significativo número de latino-americanos
presentes no Congresso. Mas embora uma parte significativa da bibliografia marque
nesse congresso, e nas palavras de Bukharin, o início da relação entre IC e os Partidos e
grupos comunistas da América Latina, o número de latino-americanos no Congresso é
fruto de um trabalho sistemático que teve origem orgânica a partir do V Congresso da
IC337.
Propostas de Rivera para se criar uma estética que expressasse a nacionalidade russa. Fonte: RIVERA, 2007, p. 153.
336
Ver: V CONGRESO DE LA INTERNACIONAL Comunista. Cuaderno 55 e 56. México: PyP, 1975.
337
O V Congresso impulsiona a formação dos PCs, a formação das Ligas anti-imperialistas, camponesas,
publicação de jornais de propaganda e a formação do Secretariado Sul-americano em Buenos Aires.
313
trabalho dos militantes do secretariado, especi338almente os comunistas argentinos,
Codovilla e Contreras, foram juntando as pontas em diversos grupos no sentido de
organizar partidos comunistas e ligá-los a Internacional Comunista.
Por um lado, estimulavam a organização das frentes únicas, e, por outro, a
organização dos partidos comunistas, na forma leninista, com a consigna de
Bolchevização dos Partidos Comunistas”. Não se tratava de um trabalho de organização
apenas conspirativo, mas de definição política e ideológica. Codovilla, dirigente do
PCA, foi quem conduziu o processo de organização política e de transformação dos
“grupos de propaganda”339, em partidos comunistas na forma política e ideológica que
adquiriram ao longo das década de 1930, 40 e 50.
Uma das formas que a CEIC utilizou amplamente para aproximar simpatizantes
da Revolução Russa foi convidando-os para Participar de Congressos e eventos na
URSS. Dessa forma, imersos no debate comunista, dentro da URSS, os jovens
simpatizantes poderiam aprofundar os vínculos com a IC e colaborar de forma efetiva
na construção dos PCs. Como já narramos até aqui, os vínculos foram crescendo, desde
o “Cometa de Manchester”, a viagem de Borodin e outros encontros com emissários
que apareceram na América Latina.
Na América do Sul, o contato entre a IC e os outros partidos e grupos de
simpatizantes se deu através do PCA, enquanto na América Central e no México foi o
PCM que intermediou o contato entre latino-americanos e a IC.
Com a Revista La Correspondencia Sudamericana, a partir de 1926,
desenvolveu-se a propaganda ideológica sistemática da IC, e a organização e
progressiva centralização dos grupos latino-americanos.
Em 1927, diversos líderes do movimento operário foram convidados a participar
do Congresso da Internacional Sindical Vermelha, em Moscou, e das comemorações do
10º aniversário da Revolução Russa em novembro de 1927. Podemos afirmar que o ano
de 1927 foi a concretização do trabalho de organização iniciado em 1925 pelo
Secretariado Sulamericano, e mobilizaria uma grande delegação latino-americana para
338
Diferente do que parece para uma parte da bibliografia que viu no Secretariado Sulamericano uma
espécie de estrutura de “espionagem” ou de “agentes da IC”, a organização dos partidos comunistas
seguia a diretriz do V Congresso.
339
No V Congresso, debateu-se a transformação dos “grupos de propaganda” em “verdadeiros Partidos
comunistas”. Essa era parte da orientação acerca da bolchevização nos Partidos pequenos, como os da
América Latina. Ver: V CONGRESO DE LA INTERNACIONAL Comunista, Informes (segunda parte).
Caderno 55. México: PyP, 1975.
314
o VI Congresso que ocorreu em 1928.
Fonte: TIBOL, Raquel. Diego Rivera. Gran Ilustrador, México: RM/Galera, 2008, p.162
340
Autores que trataram o VI Congresso da IC: ANTUNES; GALINDO; CARONE; LÖWY; CRESPO;
DEL ROIO; 1995, 1994, 1989, 2006, 2007, 1990.
315
A organização da Internacional Comunista e do Partidos tinha como objetivo
organizar a Revolução Mundial. Os bolcheviques foram opostos à constituinte e à
formação de governos liberais. A Revolução Russa, que cada vez mais se tornou a
referência para todo o movimento comunista, não defendeu uma “democracia
participativa”; sequer utilizava esse termo “democracia”.
Mariátegui, por exemplo, utilizava o termo “democracia” para se referir ao
Estado liberal-burguês. A forma política que o capitalismo assumia era a antítese do
socialismo. Dessa maneira, o movimento comunista nasceu como o oposto ao Estado
liberal em crise na Primeira Guerra Mundial. Toda estrutura erguida para expandir a
Revolução Proletária Mundial era uma negação da democracia liberal. Isso também não
significa que defendessem a imposição de politicas a partir do centro comunista. Na
verdade, o problema da representatividade, para os comunistas, não estava relacionado a
um debate típico da democracia como expressão da liberdade política e individual, mas
à capacidade do movimento comunista em alcançar influência e adeptos, e assim
alcançar a ditadura do proletariado, e, futuramente, o comunismo.
A democracia enquanto sistema representativo de Estado não era um fim, como
aparece em teorias liberais clássicas. A democracia era uma necessidade para que
houvesse legitimidade do programa comunista entre massas populares. O objetivo era a
sociedade sem classes, e, a curto prazo, a Revolução. A democracia real seria alcançada
na sociedade sem classes. Até lá, a democracia era apenas uma forma de se fazer
representar simpatizantes ou de organizar possíveis divergências entre os próprios
comunistas.
Com o VI Congresso da IC e depois do X pleno, o Partido Comunista se tornou
a estrutura política que serviria como uma espécie de Estado Maior da Revolução em
cada país, o centro ideológico que coordenaria a atividade comunista no sentido da
derrubada do capitalismo, e, portanto, da democracia burguesa.
O VI Congresso reafirmou a necessidade de se organizar partidos comunistas
bolchevizados, conforme o V Congresso da IC, mas introduziu uma questão como
centro do debate acerca do problema do Partido Comunista, que já havia sido defendido
em outras oportunidades, mas que após os acontecimentos de Shangai haviam se
tornado central: a hegemonia do proletariado na frente única.
316
Figura 77 - Retrato de Stalin em Amauta341
341
Retrato de Stalin na Revista Amauta, com o retrato de Lenin no fundo. Diferente do que se tem dito,
Mariátegui se posicionou com simpatias por Stalin enquanto acompanhava a luta política de Stalin e
Trotsky. Acreditava que Stalin seria importante em um momento em que se deveria consolidar o poder
soviético.“Pero, hasta este momento, los hechos no dan la razón al trotskismo desde el punto de vista de
su aptitud para reemplazar a Stalin en el poder, con mayor capacidad objetiva de realización del
programa marxista. La parte esencial de la plataforma de la oposición trotskista es su parte crítica. Pero
en la estimación de los elementos que pueden insidiar la política soviética, ni Stalin ni Bukharin andan
muy lejos de suscribir la mayor parte de los conceptos fundamentales de Trotsky y sus adeptos. Las
proposiciones, las soluciones trotskistas no tienen, en cambio, la misma solidez. En la mayor parte de lo
que concierne a la política agraria e industrial, a la lucha contra el burocratismo y el espíritu Nep, el
trotskismo sabe de un radicalismo teórico que no logra condensarse en fórmulas concretas y precisas. En
este terreno, Stalin y la mayoría, junto con la responsabilidad de la administración, poseen un sentido
más real de las posibilidades. (...)El partido bolchevique, por tanto, no es ni puede ser una apacible y
unánime academia. Lenin le impuso hasta poco antes de su muerte su dirección genial; pero ni aún bajo
la inmensa y única autoridad de este jefe extraordinario, escasearon dentro del partido los debates
violentos. Lenin ganó su autoridad con sus propias fuerzas; la mantuvo, luego, con la superioridad y
clarividencia de su pensamiento. Sus puntos de vista prevalecían siempre por ser los que mejor
correspondían a la realidad.. (...)Pero con Trotsky en el puesto de comando, la oposición en poco tiempo
ha tomado un tono insurreccional y combativo al cual la mayoría y el gobierno no podían ser indife-
rentes. Trotsky, por otra parte, es un hombre de cosmópolis. Zinoviev lo acusaba en otro tiempo, en un
congreso comunista, de ignorar y negligir demasiado al campesino. Tiene, en todo caso, un sentido
internacional de la revolución socialista. Sus notables escritos sobre la transitoria estabilización del
capitalismo, lo colocan entre los más alertas y sagaces críticos de la época. Pero este mismo sentido
internacional de la revolución, que le otorga tanto prestigio en la escena mundial, le quita fuerza
momentáneamente en la práctica de la política rusa. La revolución rusa está en un período de organiza-
ción nacional. No se trata, por el momento, de establecer el socialismo en el mundo, sino de realizarlo en
una nación que, aunque es una nación de ciento treinta millones de habitantes que se desbordan sobre
dos continentes, no deja de constituir por eso, geográfica e históricamente, una unidad. Es lógico que en
esta etapa, la revolución rusa esté representada por los hombres que más hondamente siente su carácter
y sus problemas nacionales. Stalin, eslavo puro, es de estos hombres. Pertenece a una falanje de
revolucionarios que se mantuvo siempre arraigada al suelo ruso. Mientras tanto Trotsky, como Radek,
como Rakovsky, pertenece a una falanje que pasó la mayor parte de su vida en el destierro.” Mariátegui,
J.C.”El exílio de Trotsky” in Variedades, Lima: 23 fev. 1929
317
O VI Congresso partia de uma importante derrota na China e de um rompimento
na relação inicialmente amistosa com o trabalhismo inglês, dois fatores que animaram a
política de frente única que havia apontado o V Congresso (1924).
A historiografia em geral ressalta outro aspecto do VI Congresso da IC, além da
intensificação da “bolchevização”, que marcaram os debates: “Contudo, pode-se dizer
que nenhum desses motivos [não os cita quais] pode por si provocar uma mudança tão
séria. Um dos mais importantes foi o fato, já lembrado, de que a política de frente única
não deu os frutos que esperava a Comintern”. (HAYEK, 1975, p.7)
A 2ª Internacional havia se dirigido a uma política de direita. O PPS (Partido
Socialista Polonês) havia colaborado com o governo Pilsudski, o qual havia reprimido
violentamente os comunistas. Em maio de 1927, o governo britânico rompeu relação
com a URSS; na Itália, a ditadura fascista havia dissolvido todos os partidos
antifascistas; em Viena, em junho de 1927, ocorreram várias repressões sangrentas, e a
social-democracia austríaca se retirou da luta. Enfim, a tática de aliança com os líderes
da social-democracia europeia e com os nacionalistas nos países periféricos – mesmo
com a ressalva do V Congresso da IC, com a frente única por baixo e por cima – não
havia produzido bons resultados e precisaria ser reajustada. A social-democracia
europeia, quando não estava em governos que reprimiam comunistas, na oposição não
era capaz de esboçar resistência, de maneira que fazia da aliança com os líderes da
social-democracia, algo cada vez mais dispensável. A avaliação do V Congresso da IC,
em que se afirmava que a social-democracia, era o “braço esquerdo” da burguesia,
enquanto o fascismo seria o braço direito, daria lugar à avaliação de que ambas as forças
estavam do mesmo lado, ou de que a social-democracia atuava como os fascistas, e, a
partir de 1929, surgiria o termo social-fascismo342, para se referir aos partidos social-
democratas que utilizavam a repressão política como forma de manter a ordem.
O longo informe de Bukharin é claro em relação ao entendimento da social-
democracia:
342
O termo social-fascismo é tratado por alguns autores, especialmente os que têm uma leitura trotskysta
da história soviética, como uma clara demonstração do sectarismo do período posterior a 1928, e o
motivo da ruptura entre comunistas e socialistas que abriria espaço para a vitória do nazismo,
particularmente na Alemanha. Essa é uma simplificação, já que os comunistas haviam buscado aliança
com os socialistas, até pelo menos 1927. Seria uma série de medidas repressivas contra os comunistas,
dirigidas por governos “socialistas”, que imporia uma série de debates acerca do significado da social-
democracia e da aliança com governos “socialistas”. É absurdo culpar os comunistas pela ascensão do
nazismo, já que foram os que mais os combateram. O termo teria um uso maior a partir de 1929, até pelo
menos 1935, quando a tática das alianças antifascistas do VII Congresso procura fortalecer as alianças
com todos os setores antifascistas, inclusive parte da social-democracia.
318
Habitualmente colocamos o problema das raízes do oportunismo em
conexão com o problema das colônias, dos superlucros extraídos das
colônias pelos capitalistas, lucros que permitem à burguesia corromper
os setores superiores da classe operária.
Mas a situação em que se encontrava o mundo, de estabilização
relativa, o superlucro derivado de novas técnicas, como o fordismo,
alimentava a base social da social-democracia no movimento operário.
(BUKHARIN in VI CONGRESSO, 1976, p.29)
343
Zizek, em um texto recente, debate a perspectiva que se tem da tolerância associada ao pluralismo.
Ver: ZIZEK, Slavov. En defensa de la intolerancia. Buenos Aires: Sequitur, 2008.
320
nas colônias e semicolônias seguiu um debate significativo, com informes e
intervenções dos delegados latino-americanos.
Marcos Del Roio, em um dos poucos trabalhos de pesquisa em que são
consideradas as formulações teóricas da IC como algo constituído de sentido e como
umafonte significativa para se compreender o movimento comunista, ressalta o avanço
da IC em relação ao entendimento do problema colonial, se comparada à 2ª
Internacional. Mas, na sua avaliação, a IC ainda persistia em um certo “eurocentrismo”.
(DEL ROIO, 1990, p. 87).
Esse “certo eurocentrismo”, embora não esteja explícito, refere-se à centralidade
que a IC dava à Europa. Para os críticos, espelhava de alguma maneira a própria visão
imperialista. Se esse raciocínio serve para percebemos resquícios colonialistas no
marxismo positivista da 2ª Internacional, ele não pode ser estendido para a IC. De fato,
a IC entendia que a Europa estava no centro do mundo e, até que Mao Tsé-Tung
formulasse a estratégia do “campo cerca a cidade” para um espectro maior na estratégia
da Revolução Mundial, os comunistas perceberam a Europa como o centro mundial.
Não se tratava de admitir a superioridade da “civilização europeia”, mas, ao
contrário, de incorporar a tese sobre o “imperialismo, fase superior do capitalismo”,
como fator analítico das realidades periféricas.
Para os comunistas, o processo de expansão do capitalismo no mundo havia
atingido uma fase monopolista, utilizando os Estados nacionais como força beligerante
a serviço da burguesia dos países imperialistas. Até a Primeira Guerra Mundial, todos os
países haviam entrado neste sistema mundial, mas diferente do que imaginavam os
marxistas da 2ª Internacional, o capitalismo monopolista não levava à civilização, mas
apenas impunha aos países periféricos uma relação de submissão aos interesses
econômicos do imperialismo, que na maioria das vezes interrompia ou desorganizava
qualquer desenvolvimento nacional para dar lugar aos interesses específicos da
produção capitalista. Essa invasão imperialista se associava às classes dominantes
locais, ao invés de promover transformações sociais em direção a uma típica relação
capitalista de produção.
Del Roio subestima essa interpretação e denomina as análises das classes nos
países coloniais e semicoloniais como uma visão “dogmática e instrumentalista” (DEL
ROIO, 1990, p. 93). Mas, se nos aprofundarmos no sentido desse “europeísmo”,
percebemos que, ao menos em seu sentido pejorativo, denomina uma forma de
321
interpretar a história que reconhece haver na Europa superioridade. O que os comunistas
reconheciam não era uma superioridade europeia, mas a existência de relações desiguais
entre Estados, em que a Europa industrializada ocupava o centro de um sistema
produtivo global, enquanto que os outros Estados, independente do grau de autonomia
formal, estavam em uma relação de submissão.
Ao contrário de um “europeísmo”, o reconhecimento da questão econômica
como fator central de explicação das relações desiguais entre Estados negava qualquer
possibilidade de explicar o desenvolvimento industrial (e a capacidade técnica) de um
país a partir de preconceitos de raça ou cultura.
Mas, se para os que viviam na periferia do capitalismo era fácil identificar a
agressão imperialista, não era simples o reconhecimento da situação de submissão
política dos Estados periféricos. Uma das grandes controvérsias que existe na
bibliografia que tratou do movimento comunista esteve relacionada a questões derivadas
dessa perspectiva.
Podemos perceber até aqui que os anarquistas desenvolveram pouco acerca da
dominação imperialista e a questão colonial. Para eles, a burguesia era uma mesma
coisa, igualmente opressiva, e, do mesmo modo, o inimigo a ser abatido. Não há
diferenças entre latifundiários ou industriais. Todos são opressores inimigos dos
oprimidos.
Se na Europa industrializada essa formulação oferecia instrumentos de análise
da realidade, na própria Rússia a existência de uma burguesia em contradição com a
autocracia tzarista com aspirações liberais forçava debates mais complexos sobre o
papel dessa burguesia na Revolução, e, como já apontamos, foi tema da luta política que
dividiu bolcheviques e mencheviques no Partido Socialdemocrata Russo.
Ao assumir que existiam relações desiguais entre Estados e uma transformação
no capitalismo, para uma fase imperialista, admitia-se também que as classes em cada
país não se comportavam da mesma maneira, e o imperialismo europeu, depois também
o norte-americano e depois o japonês, tinha um papel fundamental no desenvolvimento
de cada país.
Muito se falou da uniformidade que a formulação da IC acabou impondo às
diversidades nacionais, com um modelo teórico rígido que ajudava na interpretação das
realidades nacionais. Nossa pesquisa tem demonstrado um sentido contrário. No VI
Congresso, definitivamente a IC se voltava aos países periféricos. Antes os comunistas
322
já haviam percebido a existência de setores não-proletários (camponeses pobres e
pequena burguesia, principalmente), que poderiam se tornar aliados do movimento
comunista na luta contra o imperialismo. Seguiram-se as teses do Problema Colonial do
II Congresso da IC, que já abria diversas questões que superavam a dicotomia
“burguesia x proletariado” para as realidades coloniais.
O VI Congresso da IC se debruçou sobre a questão colonial de maneira inédita, e
definiu alguns conceitos que serviriam de modelo analítico. A primeira questão é
reafirmar que o mundo se encontra dominado por Estados imperialistas, e essa
dominação gera dois tipos de relação colonial: as colônias e as semicolônias. Essa
divisão diz respeito tanto à dominação política quanto à econômica. As semicolônias
eram politicamente ou formalmente independentes, embora economicamente
dependentes. O VI Congresso não reconhecia a independência real denenhum país que
não estivesse entre os Estados sede do imperialismo.
Essa era uma premissa compartilhada por Lenin, como também por Mariátegui.
Em sua análise da ocupação do Ruhr, o Amauta peruano falava em situação
semicolonial imposta à Alemanha após a Guerra.
Essa relação imperialismo x periferia impunha um ordenamento das classes
sociais desses países e sobre essa composição de classes passava-se a debater as
políticas de cada PC em cada realidade específica.
A nosso ver, seria a partir desses debates acerca da composição de classes em
cada realidade nacional, e sua relação com o mundo, que se dariam as primeiras
interpretações marxistas das realidades não europeias, e seria nesse esteio que se
produziria uma tradição marxista no pensamento social latino-americano. Ao contrário
de “esquematismos” e abstrações teóricas, o VI Congresso da IC trouxe para os partidos
comunistas latino-americanos instrumentos teóricos preciosos, que superavam conceitos
ainda insuficientes, como “esquerda” e “direita”: Bukharin, em seu informe, questiona o
uso desses conceitos:
323
“direita” e “esquerda”, para associar a uma classe, fração de classe e uma determinada
linha política que se expressasse em um programa. Não é por outro motivo que o
primeiro importante texto de Mao Tsé-Tung, Análise das Classes na Sociedade
Chinesa344, publicado em 1926, e, como seria corrente em outros lugares, os comunistas
procurariam identificar as classes em cada país, estabelecer um programa adequado às
forças de classe de cada realidade e identificar quais dessas forças poderiam estar ao
lado do proletariado, elaborando, assim, táticas que possibilitassem alianças efetivas e
programáticas do proletariado com as outras classes que nos países periféricos são a
imensa maioria, e sem as quais não haveria possibilidade de o proletariado (o Partido
Comunista) chegar ao poder. A classe social se define a partir desse referencial, e se
expressa no programa que cada partido defende e trabalha para aplicar na realidade345.
Após o informe de Bukharin sobre a situação internacional, em que expôs os
elementos que norteariam os debates, parte expostos acima, abre-se para que as
delegações pudessem intervir, e, entre os latino-americanos, Lacerda (Brasil), Carrillo
(México) e Sala (Uruguai) intervêm.
As primeiras frases de Lacerda foram discordando de parte do informe de
Bukharin, sobre a afirmativa de que o movimento comunista chegava pela primeira vez
na América Latina. “Camaradas, isso não é muito exato. Não é o movimento comunista
que chegou pela primeira vez na América Latina, é a Internacional Comunista que pela
primeira vez se interessou pelo movimento comunista na América Latina” (VI
CONGRESSO da IC, 1978, p. 82).
O próprio Lacerda, após a crítica, assinala o motivo que trazia importância para
a América Latina. Os EUA passavam a ter um papel central entre os países
imperialistas, e na América Latina seria o hinterland:
344
MAO TSETUNG. Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Tomo I, Pequim: 1975, p. 1-18. Disponível em:
<http://www.marxists.org/portugues/mao/1926/03/classes.htm>. Acesso em: 14 mar. 2014.
345
Bukharin, em seu informe, dizia: “Mas isto nos impõe a tarefa essencial de agrupar as massas a fim de
privar progressivamente o inimigo da possibilidade de destruir fisicamente nosso exército proletário [...]
exige do Partido abandonar a posição favorável à realização imediata da insurreição para adotar uma
preparação das massas”. (BUKHARIN, 1976, p. 38).
324
A intervenção do delegado mexicano, entre outras coisas, chamou a atenção para
a questão agrária.
A partir dessa conferência, embora não apenas como resultado dela, grande parte
dos PCs sofreram mudanças bruscas, tanto em suas diretrizes como entre os militantes
que compunham as direções partidárias. A ICCLA aconteceu em meio às mudanças do
“terceiro período” da Internacional Comunista e a chamada política de “classes contra
327
classes” definidas no VI Congresso da Internacional Comunista. Analisando os
documentos relativos à ICCLA e ao VI Congresso da IC (1928), tornou-se possível
constatar qual foi a dinâmica dos debates que orientaram a luta política nos PP CC da
América Latina. Esse “modelo” esteve associado aos conceitos de colônia, semicolônia,
feudalismo, economia nacional “deformada” pelo imperialismo, burguesia nacional,
entre outros. Imaginamos ser esse debate sobre o “problema de tática” a chave para
compreendermos como se expressou, no plano da interpretação teórica, a luta política
no interior das sessões nacionais da IC na América Latina logo após o ICCLA, e
também a dinâmica dos debates ocorridos nesse conclave.
Uma das teses mais conhecidas entre as que foram apresentadas na ICCLA, e
geralmente a única divulgada, foi o informe da delegação peruana escrito por José
Carlos Mariátegui (1994-1930) e Hugo Pesce346 (1900-1969) e intitulado “El Problema
de las Razas en America Latina”347. A ICCLA costuma figurar na historiografia a partir
de abordagens que trataram desse documento e, muitas vezes, esse texto é apresentado
como se tratasse de uma evidência das posições contraditórias entre a delegação
peruana, Mariátegui e as posições dos dirigentes da IC. Nessa perspectiva, a tese
peruana estaria em desacordo com a linha que a IC pretendia impor, ou, além,
apresentava elementos muito originais e “heterodoxos” em relação às teses em voga na
IC. Encontramos no que concerne à estrutura dessa tese peruana uma adesão explícita
às resoluções aprovadas no VI Congresso da IC, conforme demonstraremos adiante.
Utilizamos as transcrições dos debates e resoluções do VI Congresso da IC348,
349
; os números da Revista La Correspondência Sudamericana, publicados em 1929,
pelo Secretariado Sudamericano da Internacional Comunista (SSA da IC), em que
foram publicadas a convocação da ICCLA a “Ordem do Dia”, as teses que seriam
debatidas e, finalmente, as resoluções e atas taquigrafadas da ICCLA. Essas atas foram
346
O Médico Hugo Pesce teve participação importante no Partido Comunista do Peru entre os anos de
1928 e 1939. Em 1952, Pesce encontrou Ernesto “Che” Guevara quando o guerrilheiro argentino fez a sua
viagem juvenil pela selva peruana. (JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor; HUBER, Peter. La Internacional
Comunista y América Latina, 1919-1943 – Diccionário Biográfico. Moscou/Genebra: Instituto de
Latinoamérica de la Academia de las Ciencias e Institut pour l’histoire du Communism, 2004, p. 259).
347
MARIÁTEGUI, José Carlos. Obras Completas. Lima: Minerva, 1994. Disponível em:
<http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/Ideologia%20y%20Politica/index.html>.
Acesso em: 25 abr. 2012.
348
Todos os documentos citados nessa comunicação, exceto a bibliografia e as resoluções e debates do V
e VI Congressos da IC que foram publicados pelas edições Pasado y Presente, estão disponíveis no portal
Memória Vermelha/Roja. Disponível em: <http://www.memoriavermelha.com>. Acesso em: 23 mar
2014.
349
VI CONGRESSO DE LA INTERNACIONAL COMUNISTA. Primera Parte. Cuadernos de Pasado y
Presente. México: Pasado y Presente, 1977. v. 66.
328
publicadas em formato de livro, que depois seria distribuído pelo SSA350 entre as seções
da IC na América Latina para serem estudadas e debatidas.
350
O Secretariado Sul-americano da Internacional Comunista foi fundado em fevereiro de 1925, com sede
em Buenos Aires, e a partir de 1930 foi transferido para Montevidéu até 1935. (JEIFETS, Lazar;
JEIFETS, Victor; HUBER, Peter. La Internacional Comunista y América Latina, 1919-1943 –
Diccionário Biográfico. Moscou/Genebra: Instituto de Latinoamérica de la Academia de las Ciencias e
Institut pour l’histoire du Communism, 2004, p. 27).
351
“Os mencheviques acreditavam que sua missão consistia em estruturar as ações da classe operária
russa de modo tal que as fizesse aceitáveis para a burguesia, enquanto consideravam esta como o único
fundamento possível de um futuro desenvolvimento do país, ainda subdesenvolvido. Por assim dizer, se
devia obrigar a burguesia a realização de seu próprio programa de classe. Com esta concepção os
mencheviques impediram o pleno desenvolvimento da Revolução de 1905 e naufragaram logo, quando
passada a Revolução de fevereiro, a burguesia se aliou a reação; é por esse motivo que a maioria da classe
operária seguiu a direção bolchevique.” (SCHILESINGLER, Rudolf. La Internacional Comunista y el
Problema Colonial. Cuadernos de Pasado y Presente, México, n. 52, Pasado y Presente, 1977, p. 37).
329
Revolução Proletária Mundial, até que a derrota das insurreições alemã e húngara e o
crescimento do movimento revolucionário na China impusessem o problema colonial de
forma significativa na estratégia da Revolução Mundial.
A América Latina demorou para surgir na pauta dos congressos da IC. Foi
apenas em 1926352 que o subcontinente passou a ser um ponto específico a ser tratado
pela direção da IC e, como outros países periféricos, foi tratado dentro do problema
colonial e semicolonial. A preocupação crescente do CEIC (Comitê Executivo da
Internacional Comunista) com a América Latina foi expressa organicamente com a
iniciativa de criar um Secretariado Sul-americano, que, com sede em um dos países da
região, no caso Buenos Aires, pudesse coordenar a atividade comunista e fortalecer os
laços dos jovens partidos comunistas com a direção da IC.
A partir do V Congresso da IC (1924) e principalmente após o VI Congresso
(1928), a realidade latino-americana foi sistematicamente enquadrada em um “modelo”
de análise da realidade colonial, na qual a interpretação das alianças da frente única (o
problema da tática) cumpre um papel-chave para compreendermos a política comunista
desse período.
Em primeiro lugar, era importante convencer os militantes comunistas latino-
americanos de que viviam em países coloniais ou semicoloniais dependentes (ou
dominados) pelo imperialismo inglês ou do norte-americano. Isso não era uma tarefa
difícil, já que pululavam evidências da influência inglesa ou norte-americana nos países
latino-americanos, e encontrar dados econômicos e políticos que comprovassem essa
situação foi ainda mais fácil. A Revista La Correspondência Sudamericana, órgão do
SSA (Secretariado Sul-americano da Internacional Comunista), apresentou diversos
desses dados. A própria invasão da Nicarágua e a situação de Cuba já eram fatos
imponentes para a comprovação da situação colonial ou semicolonial. A resistência
recaía sobre a situação de alguns casos específicos como o do México, que, pela
participação de elementos pequeno-burgueses com discurso nacionalista no governo
pós-revolucionário, pareciam praticar uma política soberana, embora todos destacassem
352
Carone cita a Reunião Ampliada do CE da IC de fevereiro e março de 1926 como uma das primeiras
manifestações de interesse da IC pela América Latina. (CARONE, Edgar. Classes Sociais e Movimento
Operário, São Paulo: Ática, 1989, p. 243). Na introdução do dicionário elaborado por Jeifets e Huber,
existe uma ressalva a esta datação de Carone, citando Mothes e partindo dos arquivos acessíveis desde
1992 em Moscou. Os autores afirmam que a preocupação da IC com a América Latina foi significativa
desde princípio da década de 1920. (JEIFETS, Lazar; JEIFETS, Victor; HUBER, Peter. La Internacional
Comunista y América Latina, 1919-1943 – Diccionário Biográfico, Moscou/Genebra: Instituto de
Latinoamérica de la Academia de las Ciencias e Institut pour l’histoire du Communism, 2004, p. 11-12).
330
a influência econômica dos EUA.
353
O debate sobre tática e revolução democrático-burguesa era tão importante que, após a conquista do
poder pelo Partido Comunista da China em 1949, a bandeira oficial da República Popular da China
representaria a frente única de classes revolucionárias nas cinco estrelas amarelas. A maior representa o
Partido Comunista da China que dirige a frente única revolucionária, e as outras quatro as classes que
compõem a frente única: os operários, os camponeses, a pequena burguesia e a burguesia nacional.
331
contemplar os interesses de classes não proletárias com as quais os comunistas
(representando o proletariado) pretendiam se aliar.
Humbert-Droz, o dirigente da IC na ICCLA, não opunha o caráter democrático-
burguês ao socialista, mas via que na América Latina “a revolução democrático-
burguesa não alcançará plenamente seus objetivos (distribuição de terras aos
camponeses, liberação do imperialismo) enquanto não se transforme em revolução
socialista sob a hegemonia do proletariado”.354 (VI CONGRESSO DE LA
INTERNCIONAL COMUNISTA, 1978, p. 315).
Não se tratava de colocar uma etapa capitalista antes da revolução socialista,
mas de construir um programa de frente única capaz de mobilizar as massas que
compunham a maioria da população nos países coloniais e semicoloniais: os
camponeses e parte da pequena burguesia ou da burguesia nacional355 em aliança com o
proletariado. As propostas de tese para a ICCLA foram publicadas para um debate
prévio em La Correspondência Sudamericana, nº 26, em maio de 1929, e definia o
programa democrático-burguês do governo de operários e camponeses com os seguintes
termos:
354
Durante esse Congresso, foi apresentada por Travin (Codinome de Serguei Ivanovich Gusev) uma
fórmula alternativa para a classificação do caráter da revolução na América Latina, questionando os
aspectos do sustentado por Droz. “Ao invés de aplicar a estes movimentos fórmulas já existentes, tais
como ‘revolução democrático-burguesa’, ou ‘revolução socialista’, melhor seria considerar esses
movimentos em seu verdadeiro aspecto. Mas qual é atualmente este aspecto? Em minha tese eu descrevo
circunstancialmente estes movimentos baseando-me na experiência da revolução mexicana. [...] esses
movimentos revolucionários começam como movimentos camponeses ‘democrático-burgueses’ para
obter terras, mas por causa das relações de classe existentes no interior desses países, por efeito também
do caráter colonial da América Latina, estes movimentos adquirem desde o início traços que não são
absolutamente democrático-burgueses, senão que os aproximam mais da revolução socialista. [...] me
limito a descrever o movimento tal como se produz. Se querem que lhe dê uma definição, lhes direi que
se trata de um ‘movimento espontâneo dos operários e camponeses, de natureza socialista’ [...] Já indiquei
que na América Latina não existirá propriedade privada. Muito pelo contrário, existem tradições bastante
fortes de comunismo primitivo na economia rural. Os camponeses mexicanos não procuravam repartir as
terras entre eles e transformá-la em propriedade privada: se apoderam da terra para transformá-la em
propriedade coletiva e cultivá-la em comum.” (VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL
COMUNISTA. Informes y Discusiones. Cuadernos de Pasado y Presente, México, Pasado y Presente,
1978, p. 333. v. 67).
355
Em outros momentos na “frente única de classes revolucionárias” aparece a burguesia nacional. A
pequena burguesia pode fazer parte da burguesia nacional, ou aparecer separada. Isso dependeu de como
os comunistas viram a aliança com uma dessas classes. Se não acreditavam ser possível uma aliança com
a burguesia nacional, como nas resoluções do VI Congresso, a pequena burguesia aparecia como aliada e
a burguesia nacional como inimiga da revolução democrático-burguesa. Quando a burguesia nacional
apareceu como aliada do proletariado, a separação entre pequena burguesia e burguesia nacional não foi
necessária, e por muitas vezes a pequena burguesia apareceu como parte integrante da burguesia nacional.
332
coletivo do solo. Nas grandes plantações, nos latifúndios, entrega da
terra em usufruto aos camponeses, aos colonos, onde o trabalho da
terra se faça sob regime de trabalho individual. 2) Confiscação e
nacionalização das empresas estrangeiras (minas, transporte, empresas
industriais, bancos, etc.). 3) Anulação das dividas de Estado e de toda
forma de controle do país pelo imperialismo. 4) Jornada de 8 horas e
supressão das condições semiescravistas de trabalho, seguro social. 5)
Armamento dos camponeses e transformação do exército em uma
milícia operária e camponesa. 6) Abolição do poder dos grandes
latifundiários e da Igreja e organização do poder dos conselhos de
operários, camponeses e soldados. (LA CORRESPONDENCIA
SUDAMERICANA, 1929, ns. 12,13 e 14, p. 13).
356
O caráter da revolução, se socialista ou democrático-burguesa, esteve intimamente ligado ao problema
da tática, a necessidade em se formar uma frente única. A frente única nasceu no “refluxo” do movimento
operário europeu, quando as derrotas dos comunistas alemães demonstraram o fim de uma onda
revolucionária aberta desde 1917 e que obrigava os comunistas a fazer alianças para resistir a
contrarrevolução. A frente única estava relacionada à necessidade de “ir às massas” e ampliar o raio de
influencia comunista, conforme as consignas do III Congresso da IC (1921). (LOS QUATRO
PRIMEIROS CONGRESSOS DE LA INTERNACIONAL COMUNISTA, Izquierda Revolucionária,
2008, p. 375 Disponível em: <www.marxismo.org>. Acesso em: 25 abr. 2012).
357
Como veremos mais adiante, Codovilla e Humbert-Droz, esse último um destacado dirigente da IC,
foram os responsáveis por convencer os PP CC latino-americanos das posições do VI Congresso da IC.
333
participassem dos movimentos de massas de seus países (particularmente entre os
camponeses e os pequeno-burgueses anti-imperialistas), ao mesmo tempo em que
garantiam a hegemonia comunista nas organizações populares e até no interior dos
próprios PP CC. Essa hegemonia era constantemente ameaçada pela influência de
elementos que os comunistas identificavam como pequeno-burgueses, como o líder
aprista Victor Raul Haya de La Torre (1895-1979) e o governador Adalberto Tejeda
(1883-1960), por exemplo. Como conclusão dos debates desse período, produziram-se
inúmeras rupturas. Em alguns momentos, essas rupturas se deram em meio a
organizações com influência real, e até armada, no movimento de massas. Foi o caso da
ruptura do PCM com a LNC e Úrsulo Galván. Em outras circunstâncias, o entendimento
da hegemonia do proletariado na frente única e a proletarização dos PP CC significaram
afastar os elementos de origem pequeno-burguesa das direções partidárias, colocando
em seus lugares militantes de origem operária. Esse foi o caso do PCB, onde quase toda
a direção partidária foi substituída358.
A convocação da ICCLA foi feita para junho de 1929 e devia coincidir com a
Conferência Sindical Latino-americana, onde se reuniriam os delegados que
representavam as mais diversas organizações sindicais da América Latina para formar a
Central Sindical Latino-americana. Os comunistas dirigiam diretamente várias dessas
organizações e atuavam como fração comunista359 nessa frente sindical latino-
americana. Essa organização de frente única no continente estava projetada para
funcionar conforme o modelo aprovado pelo VI Congresso da IC, frente única pelas
bases360, agrupando organizações de massas e não partidos organizados. A Conferência
358
Carone explica a “política obrerista” que marcará o PCB nos anos posteriores a 1930 como
consequência da má interpretação do VI Congresso da IC. Como consequência, toda a direção partidária,
inclusive Astrojildo Pereira, será afastada. (CARONE, op. cit., p. 280).
359
Os comunistas, de forma organizada pelo PP CC, atuavam em bloco dentro dos sindicatos, ligas
camponesas, ligas anti-imperialistas e demais organizações que compunham a frente única. Esse grupo
partidário era denominado pelos comunistas como a fração vermelha ou fração comunista. Era através
desse grupo organizado que os comunistas procuravam a hegemonia na organização de massa.
360
Durante o VI Congresso da IC, foi debatido o tema frente única sob o impacto de derrotas importantes
para a atuação dos comunistas nestas frentes. Um desses fatos esteve ligado à vitória dos trabalhistas na
Inglaterra, mas, para os países coloniais e semicoloniais, o fato mais importante havia sido a perseguição
do Kuomitang ao Partido Comunista da China, sinalizando limites para as alianças com governos
334
Sindical Latino-Americana seria realizada em maio de 1929 e a ICCLA seria realizada
logo depois, em junho.
A ICCLA seguiria uma lógica clara, do geral ao particular, como era o costume
das reuniões da IC. Os temas da “Orden del dia” estavam divididos em nove tópicos,
começando pela situação internacional, indicando um informe de Victorio Codovilla. O
segundo ponto tratava da luta anti-imperialista e os problemas de tática dos PPCC da
América Latina. Por tática estava implícito o problema das alianças com outras classes,
a questão da frente única. Mas, para que não houvesse dúvidas, as linhas abaixo do
título do tópico explicavam o tema que seria tratado: “O caráter da Revolução; Bloco
Operário e Camponês; aliados do proletariado”. Dentre todos os tópicos citados, apenas
esse segundo ponto, que tratava dos “problemas de tática” aparecia com uma “nota
explicativa”. O tópico estava planejado para ser apresentado por Rodolfo J. Ghioldi do
Partido Comunista da Argentina, junto com dois coinformantes, um do México e outro
da Colômbia. Durante a ICCLA, o informe seria mudado e o tópico seria apresentado
por Humbert-Droz, sob o codinome de Luis, o mais experimentado dentre os
comunistas presentes. A mudança de informante e a “nota explicativa” demonstram a
importância que essa questão adquiria para os dirigentes da IC. Esses dois primeiros
tópicos, situação internacional e os problemas da tática, estruturaram a forma com que a
IC via a revolução na América Latina. Os outros tópicos estariam subordinados à lógica
apresentada nos dois primeiros e poderiam ser recheados pelas particularidades da
região e as peculiaridades do desenvolvimento político de cada país.
No terceiro tópico, aparecia a questão camponesa. A experiência camponesa
mais rica naquele momento havia sido indiscutivelmente a mexicana e o informe,
portanto, estava sob responsabilidade do PCM, com o Brasil e a Argentina como
coinformantes.
O quarto ponto foi incluído pouco antes, por solicitação de Humbert-Droz, e
trataria do “problema das raças na América Latina”. Como informante, aparecia o Peru;
Brasil e Cuba figuravam como coinformantes. Conforme as memórias de Eudócio
Ravines, que esteve em Moscou durante o ano de 1929, Humbert-Droz e até Zinoviev
pequeno-burgueses e nacionalistas. Desde o V Congresso, havia começado a surgir a tese da frente única
pelas bases, o que significava não fazer alianças com os líderes de outras correntes políticas e somente
permitir “massas” nos sindicatos em que os comunistas atuavam. Assim, as organizações de massas
estavam compostas por “massas” (trabalhadores sem partido) e a fração vermelha, o grupo comunista que
procurava manter a direção das organizações.
335
haviam manifestado muita simpatia por José Carlos Mariátegui361. É difícil afirmar até
que ponto o relato de Ravines foi verdadeiro, mas, pela importância que Humbert-Droz
dedicou a esse tema, é de se supor que apreciasse e tenha lido com interesse alguns
números da Revista Amauta que Mariátegui dirigia, e que tratava com importância
significativa o problema indígena na América Latina. Não é por outro motivo que
Mariátegui seria convidado, conforme carta enviada ao peruano por Codovilla362, para
elaborar um informe sobre a questão de raças na América Latina. Os outros dois
coinformantes, Brasil e Cuba, foram escolhidos por representarem outros dois países
onde a “questão de raças” se apresentava especialmente problemática, nesses dois
últimos casos em relação à questão negra.
Nos outros tópicos, apareciam: o trabalho da liga anti-imperialista, com informe
da delegação mexicana e coinforme da Argentina; depois a questão sindical, o
movimento da juventude comunista, questões de organização e, por último, o tópico IX,
trabalho do SSA com um informe de Victorio Codovilla.
Logo após a fundação da Confederação Sindical Latino-Americana em
Montevidéu, os vários representantes dos grupos e partidos comunistas latino-
americanos cruzaram o Rio da Prata e desembarcaram em Buenos Aires. Entre eles,
estava o conhecido fundador do muralismo mexicano, David Alfaro Siqueiros. Embora
não se conheça a identidade de todos os participantes da Conferência, os que
conhecemos indicam que os enviados para essa ICCLA eram jovens, como as
organizações que representavam. O delegado brasileiro, Leôncio Basbaum, líder da
delegação brasileira e responsável pelo coinforme sobre a “Questão de Raças na
América Latina” tinha apenas 21 anos363. A delegação peruana, com Julio Portocarrero e
o médico Hugo Pesce, possuíam ambos, menos de 30 anos e o próprio Codovilla tinha
35 anos. Embora jovens, muitos dos presentes já haviam organizado importantes
movimentos em seus países e traziam dessa experiência diversos elementos que seriam
debatidos ao longo dos 12 dias que durou a ICCLA.
361
RAVINES, Eudócio. La penetración Del Kremlin en Iberoamerica. México: Diana, 1981, p. 148-52.
362
Em uma carta de Victório Codovilla enviada a Mariátegui, datada em 29 de março de 1929, o dirigente
da SSA pedia para que Mariátegui participasse da Conferência e apresentasse um documento para o
debate sobre a situação indígena. (BECKER, Marc. “Mariátegui y el problema de las Razas en América
Latina”, Revista Andina, Lima, n. 35, jul. 2002, p. 201).
363
Basbaum, com 21, anos não era apenas o responsável pela delegação do PCB; ele também tinha a
missão de contatar Luis Carlos Prestes durante os dias que permaneceu em Buenos Aires, e assim
estabelecer parâmetros programáticos de unidade entre o PCB e a Coluna Prestes. O encontro entre
Prestes e Basbaum foi narrado em suas memórias. In: BASBAUM, Leôncio, uma vida em seis tempos.
São Paulo: Alfa Omega, 1976, p. 70.
336
Abertos os trabalhos da Conferência no dia 1° de junho, cantou-se a
Internacional e foram lembrados os comunistas assassinados, Júlio Mella e José
Guadalupe Rodríguez. Seguindo a linha do VI Congresso da IC e as teses publicadas em
La Correspondencia Sudamericana364, Codovilla apresentou, representando o SSA, uma
longa explicação sobre a situação internacional.
Em síntese, Codovilla explicaria que o capitalismo passava por um momento de
agravamento das contradições interimperialistas, fruto da crise de superprodução que a
“racionalização” (que conhecemos como fordismo) estaria provocando. A disputa
interimperialista por mercados e matéria-prima levava ao acirramento das contradições
que conduziam inevitavelmente à guerra. A importância da América Latina estava
exatamente em estar no centro de um dos cenários de disputa interimperialista, em que
se chocavam o imperialismo inglês e o norte-americano. Hoje nós sabemos que os EUA
e a Inglaterra não entraram em guerra na América Latina, mas também sabemos que a
influência inglesa foi gradativamente sendo substituída pelos capitais norte-americanos
durante a 1ª metade do século XX e, portanto, embora com prognósticos errados, os
dados apresentados nas publicações comunistas sobre a substituição da influência
inglesa pela norte-americana estavam corretos.
Expressões da iminência dessa “guerra inevitável entre os imperialistas norte-
americanos e ingleses” se manifestavam no conflito entre Bolívia e Paraguai, na greve
bananeira na Colômbia, no conflito pela possessão do petróleo colombiano, nas ações
armadas no México, Nicarágua e as greves no Brasil, Argentina. (EL MOVIMIENTO...,
1929, p. 7-31)365.
O aprofundamento da disputa interimperialista criaria instabilidades políticas as
quais poderiam servir aos comunistas para organizar as frentes anti-imperialistas, que
transformariam a guerra imperialista em uma guerra civil revolucionária. O informe
insistia na inevitabilidade da guerra interimperialista e na necessidade de os comunistas
oporem-se à guerra, através da fórmula internacionalista utilizada na Primeira Guerra
pelos bolcheviques, em que o internacionalismo proletário sobrepõe-se ao nacionalismo
chauvinista.
Essa era uma tese facilmente aceita pelos presentes, exceto quando se tratava de
364
LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA. Revista Quincenal editada por el Secretariado
Sudamericano de la Internacional Comunista, Buenos Aires, n. 9, maio 1929.
365
EL MOVIMIENTO REVOLUCIONARIO LATINO AMERICANO. Versiones de la Primera
Conferencia Comunista Latinoamericana. Buenos Aires: Editorial Sudan, 1929.
337
questões políticas objetivas como a questão de Tacna e Arica, em que a crítica aos
comunistas peruanos pela não intervenção junto a um plebiscito abriu um debate acerca
do significado deste fato para as massas peruanas. (Ibidem, p. 52).
Esse avanço do imperialismo norte-americano não gerava um desenvolvimento
ou representava uma força progressista, “senão que tem servido para deformar a vida
econômica destes países; não tem desenvolvido as relações capitalistas, mantendo a
exploração semifeudal e semiescravista das massas trabalhadoras”. (Ibidem, p. 21).
Essa parte é significativa, pois é o elo que liga a penetração imperialista com o
atraso das relações não capitalistas. É a partir dessa conclusão que o informe de
Codovilla irá definir o caráter da revolução como democrático-burguesa.
366
Carone reproduz o balanço de Droz sobre os problemas do BOC (CARONE, op. cit. p. 272). Droz, em
seu informe, afirmaria que: “O perigo não é unicamente de uma degenerescência parlamentária da qual
temos tido manifestações evidentes no Brasil, mas, também, de uma transformação do Bloco em um
partido político ligado a esta degenerescência parlamentária e que se produzirá se o Partido Comunista
cessa sua ação própria, se limita a desenvolver-se como uma espécie de facção ilegal do Bloco”. (EL
MOVIMIENTO REVOLUCIONARIO LATINO AMERICANO. Versiones de la Primera Conferencia
Comunista Latinoamericana. Buenos Aires: Editorial Sudan, 1929, p. 101).
367
Enquanto ocorria a ICCLA, Úrsulo Galván rompia relações com o PCM e era oficialmente expulso da
Internacional Camponesa (Krestintern). (REINOSO, Irving. El Agrarismo Radical em México en la
Década de 20 – Ursulo Galván, Primo Tapia y José Guadalupe Rodríguez (Una Biografía Política).
México: Edição digital, 2009, p. 35).
338
Comunista na revolução.
A posição de Siqueiros é interessante, pois revela uma contrariedade pelo debate
teórico nos moldes que a direção da IC pretendia tratar.
368
Cf.: EL MOVIMIENTO REVOLUCIONARIO LATINOAMERICANO. Versiones de la Primera
Conferencia Comunista Latinoamericana. Buenos Aires: Editorial Sudan, 1929.
339
Siqueiros iniciaria sua apresentação sobre a “questão camponesa” com um fato
já exposto nas outras intervenções: o problema camponês não estava sendo tratado pelos
PP CC da América Latina. Esse era um problema bastante pertinente, já que PCs como o
do Brasil sequer podiam dizer que possuíam trabalho político entre os camponeses e o
próprio Basbaum em suas memórias, ao tratar da ICCLA, relembra esse problema.
369
Löwy defende a ideia de que existiu uma oposição entre uma linha “europeísta” e outra “latino-
americana” entre os primeiros comunistas da América Latina. Os “europeístas” estariam associados ao
“stalinismo” da IC pós-VI Congresso e à tese da revolução democrático-burguesa. O que justificaria o
qualificativo “europeísta” seria exatamente a incorporação de conceitos como feudalismo e
semifeudalismo, que fariam referência a uma realidade medieval europeia. No outro polo, entre os
“latino-americanos”, estariam Mariátegui e Mella. (LÖWY, 2006, p. 18-23).
340
para o fato de serem “verdadeiras empresas industrializadas” e citava a United Fruit na
Colômbia como exemplo. A penetração dessas empresas criava uma série de mudanças
e, como havia sido informado por Droz, ao invés de trazer o progresso e o
desenvolvimento para as economias latino-americanas, significava uma deformação das
economias latino-americanas.
Os trabalhadores dessas empresas eram muitas vezes assalariados e, portanto,
“operários agrícolas”, o que exigia que se colocasse na agitação e na propaganda
reivindicações típicas do movimento operário. Mas, por essas empresas recrutarem
trabalhadores entre os camponeses despojados de suas terras, as restituições das antigas
propriedades deveriam figurar nas consignas que pretendiam mobilizar os trabalhadores
deste setor. O informe de Droz via na relação entre o operário agrícola e sua antiga
situação de camponês pobre a consumação da aliança operário-camponesa na América
Latina.
A penetração imperialista, através das empresas, pressionava as relações de
propriedade da terra e estava diretamente ligada aos arrendatários “camponeses que
perderam” suas terras e necessitavam arrendar em “espécie ou em dinheiro (sic)”. (EL
MOVIMENTO..., 1929, p. 235).
O informe seguia analisando a categoria de “parceiros”, que seriam uma espécie
de assalariados agrícolas e geralmente pagavam metade da colheita ao patrão. A
categoria não está muito clara no informe e termina muito próxima da definição de
arrendatário, já que ele define como um tipo de “meeiro”. Parece uma confusão do
próprio Siqueiros, pois no informe de Droz as características dos operários agrícolas
eram principalmente receberem salários. Nas resoluções da ICCLA, as categorias
ficaram mais bem definidas: “há que entender por camponês o pequeno proprietário da
terra ou ao arrendatário, e por operário agrícola o assalariado em suas diversas formas,
não colocando este último na denominação de camponês, como se tem feito até o
presente”. (Ibidem, p. 235). Os camponeses estavam enquadrados não pela relação
salarial, mas em relação às formas de apropriação e arrendamento da terra. Por serem,
ou almejarem se tornar proprietários, os camponeses estavam sob disputa, ora tendiam
ao burguês, ora ao proletariado. Os proprietários mais pobres eram os aliados do
proletariado. Os operários agrícolas eram proletários e, portanto, não eram aliados, mas
a própria classe operária no meio rural. Por último, as comunidades indígenas, para as
quais Siqueiros chama a atenção pela pouca importância dada a essa categoria pelos PP
341
CC. Ele fala sobre a opressão do Governo Diaz contra os Yakes e a luta dos índios que
seguiram desde a conquista em defesa de suas terras. Chama a atenção para o papel
importante que as comunidades indígenas representaram para a Revolução democrático-
burguesa no México370 (assim definiu a Revolução Mexicana de 1910).
Depois da intervenção de Siqueiros, seguiu o informe de Romo pelo PCA em
que detalhou as particularidades do campo argentino e uruguaio, com inúmeros dados
da penetração imperialista na indústria frigorífica, o histórico dessa penetração, a
produção de gado e o trabalho de propaganda no campo.
Após os informes, houve um debate em que ainda foram apresentadas algumas
particularidades para outras realidades, como no caso do Equador, com as categorias:
trabalhador arrendatário, semeador e pequeno produtor. Foi lida uma carta sobre a luta
dos camponeses guatemaltecos reprimidos e torturados barbaramente.
O outro delegado do PCM presente era um dos militantes da Liga de
Comunidades Agrárias de Veracruz, a mais importante base do agrarismo que esteve sob
influência comunista, e sua intervenção tratou de forma específica e breve dos
problemas que ele vivia imediatamente. Sua intervenção tratou da aplicação do artigo
23 da constituição mexicana, que dizia respeito à reforma agrária. Siqueiros ainda
interviria novamente para reforçar a importância da luta pela “devolução das terras
roubadas e confiscadas”. Essa era a reivindicação que havia mobilizado os camponeses
mexicanos durante a Revolução de 1910 e era parte importante do Plano de Ayala de
Emiliano Zapata.
A décima quarta seção, em que ocorreram os debates citados acima, terminou
com o problema dos imigrantes. Os trabalhadores chineses, ou mesmo de outros países
latino-americanos, como Haiti e Jamaica, estavam sendo usados como mão de obra
ainda mais barata fora de seus países. O governo mexicano, para “defender” os
trabalhadores nacionais, havia iniciado uma política de restrição aos imigrantes. Era
uma posição que encontrava apoio entre os trabalhadores mexicanos, mas os comunistas
370
Existiu uma posição minoritária sobre a caracterização da Revolução no México, expressa na
intervenção de Travin durante o VI Congresso, mas na ICCLA a caracterização aceita por todos os
participantes era a de que a Revolução Mexicana havia sido uma revolução democrático-burguesa, e
estava sendo dirigida pela pequena burguesia, que alternava entre os interesses nacionais aos interesses do
imperialismo. “O governo pequeno-burguês do México passa do nacional-reformismo ao nacional-
fascismo.” (Ibidem, p. 22). A partir do Pleno do CC do PCM em julho de 1929, essa definição irá mudar e
a direção pequeno-burguesa do governo terá avançado para se tornar um governo fascista e servir ao
imperialismo. (Cf.: LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA. Revista Quincenal editada por el
Secretariado Sudamericano de la Internacional Comunista, Buenos Aires, n. 21, 20 nov. 1929).
342
mantinham uma posição internacionalista e tentavam fazer oposição a tais medidas. Pela
dificuldade em se defender a posição internacionalista entre os trabalhadores
mexicanos, o tema ainda voltaria na próxima sessão sobre a questão de raças.
371
Vários autores opõem Mariátegui a IC. Entre os trabalhos em que se pode encontrar essa interpretação:
LÖWY, Michael (Org.). O Marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais.
Tradução de C. Schilling e Luís C. Borges. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999; FLORES
GALINDO, Alberto. La agonia de Mariátegui. In:_______. Obras Completas. Lima: SUR, 1994; MARC
BECKER, Mariátegui y el problema de las razas en América Latina, Revista Andina, Lima, n. 35, jul.
2002, p. 191-22.
343
Pesce relaciona o problema da “inferioridade” de alguns povos com a necessidade dos
colonialistas e imperialistas de justificarem a sua dominação. E completa: “a exploração
dos indígenas na América Latina trata também de justificar-se com o pretexto de que
serve a redenção cultural e moral das raças oprimidas” (MOVIMENTO..., 1929, p.
163).
Como o informe de Siqueiros sobre a questão camponesa e os próprios
debatedores do VI Congresso, os peruanos rejeitaram a ideia do progressivismo e
analisaram a conquista e o domínio imperialista como um retrocesso. Nos Sete
Ensaios372, Mariátegui fala claramente que o feudalismo espanhol havia significado um
retrocesso, uma interrupção do desenvolvimento do Peru nativo. As teses apresentadas
por Codovilla e Humbert-Droz comungavam de uma perspectiva similar, e utilizavam a
palavra “deformação” para qualificar a penetração imperialista. Por “deformação”,
ficava implícita a ideia de que as economias nativas haviam sido interrompidas e
“deformadas” pela intervenção estrangeira, não sendo possível seguir pelo caminho
“clássico” que o capitalismo havia trilhado nos países da Europa Ocidental. A revolução
democrático-burguesa, dirigida pelo proletariado, fazia parte de um programa mínimo,
imediato, que mobilizaria as massas camponesas (e indígenas) em aliança com setores
radicalizados da pequena burguesia, para se alcançar o socialismo. Não eram duas
revoluções, mas uma que começava com reivindicações democrático-burguesas
(liquidação do feudalismo e libertação do imperialismo) e logo passava para as medidas
de transformação socialista373.
Alguns autores que trataram a obra de José Carlos Mariátegui confundiram a
perspectiva progressivista e o tratamento eurocêntrico que alguns membros da II
Internacional desenvolveram em relação ao tema colonial, com a tese da revolução
democrático-burguesa expressa pela Internacional Comunista374. Para esses autores, a
simples existência do termo feudalismo ou servidão automaticamente relaciona a uma
372
MARIÁTEGUI. Siete Ensayos de Interpretación de La Realidad Peruana. In: _______. Mariátegui
Total. Lima: Minerva, 1994.
373
Nas resoluções do VI Congresso da IC, estão publicados alguns fatores necessários para a transição da
fase democrático-burguesa para a socialista na revolução em países coloniais e semicoloniais: “A
transição da revolução à fase socialista requer a existência de um mínimo de pressupostos, como, por
exemplo, certo nível de desenvolvimento industrial do país, de desenvolvimento sindical do proletariado e
um forte PC” (VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL COMUNISTA, 1977, p. 206).
374
Löwy cita na introdução de seu livro Marxismo na América Latina, que no final dos anos 20 as “teses
stalinistas”, “evolucionistas” e “etapistas” estavam começando a se disseminar na América Latina, e que,
por outro lado, Mariátegui “insistia implicitamente na fusão histórica entre as tarefas socialistas e
democráticas no Peru”. (LÖWY, 2006, p. 19).
344
perspectiva “etapista”, positivista e evolucionista da história, em que os modos de
produção seguem uma lógica simplista, rígida e estática, na sequência: escravismo,
feudalismo e capitalismo375.
Como Mariátegui, a IC chegava ao final da década de 1920 com a ideia de que o
imperialismo representava o atraso, aliava-se às classes mais retrógradas (o feudalismo)
dos países coloniais e semicoloniais, e “deformavam” o desenvolvimento das
sociedades periféricas com empresas (rurais ou urbanas) que, embora se relacionassem
com o mercado capitalista internacional, reproduziam formas de trabalho retrógradas,
servis e ainda mais opressivas que as existentes nas colônias antes da chegada dos
europeus. No informe de Siqueiros, anteriormente tratado neste texto, essas empresas
eram denominadas como a “Gran Hacienda” e foram tratadas sob a mesma lógica que a
delegação peruana.
No informe de Hugo Pesce, o problema indígena se relacionava ao problema
feudal do altiplano andino. “Chamamos problema indígena a exploração feudal dos
nativos na grande propriedade agrária.” (MOVIMENTO..., 1929, p. 267). Por ser a
questão racial e indígena um problema que se relacionava à condição de classe dos
camponeses (ou servos) da grande fazenda (gamonal) feudal, a solução estava pautada
pelo mesmo programa que atendia a questão camponesa, a revolução agrária (ou seja, a
liquidação do feudalismo), parte da revolução democrático-burguesa, nos moldes do IV
Congresso da IC. O papel importante que as comunidades indígenas poderiam cumprir
para avançar mais rapidamente ao socialismo é retirado do VI Congresso, segundo
Pesce.
375
Para muitos autores, a equação constando: socialismo peruano revolução democrático-burguesa, Ayllu
andino e feudalismo gamonal foram imprecisões e resquícios de diversas influências, sem uma relação
plena e estrutural no pensamento de José Carlos Mariátegui. Esse tema precisa ser mais bem explorado
pela historiografia, já que existem muitas confusões acerca do que Mariátegui entendia por revolução
democrático-burguesa e revolução socialista.
345
O informe apresentado pela delegação peruana refletia também a luta política
que o grupo do Partido Socialista Peruano (futuro PCP) enfrentava no Peru. Por manter
muitos vínculos com intelectuais, participarem dos congressos indigenistas e terem se
originado em meio a APRA, o debate em torno da questão indígena precisava marcar
seu aspecto classista em oposição às soluções liberais, institucionais (filantrópicas,
como denominava Mariátegui) ou de valorização folclórica da cultura indígena. Esse era
um debate particular dos peruanos com os intelectuais democráticos de seu país.
Mariátegui insistia com a posição de que o problema dos índios, e também da população
negra que vivia na pobreza em outros países, era uma questão de classe, fruto da
opressão feudal e capitalista, sobre as classes trabalhadoras, que em determinadas
condições assumia aparência de raça. O informe seguia descrevendo e diferenciando o
problema de raças em algumas categorias, como índios “incásicos e astecas”,
“silvícolas”, “negros” e concluía afirmando que “os indígenas e negros estão, em sua
grande maioria, incluídos na classe dos operários e camponeses explorados, e formam
quase a totalidade da mesma.” (Ibidem, p. 269).
Não vamos tratar o conjunto dos informes em seus detalhes, que são muito
longos e estenderia demasiadamente este trabalho, mas cabe destacar que o restante do
tratou de uma análise histórica da formação do problema das raças no subcontinente,
detalhando a situação econômica dos indígenas negros e mestiços e o caráter desta luta.
Ao fim, conclui e aponta as tarefas para o movimento comunista latino-americano.
O informe destaca que a questão indígena se relaciona ao problema da terra e
que no caso das comunidades “os índios têm arraigado hábitos de cooperação, mesmo
que da propriedade comunitária se passe à propriedade individual”. (EL
MOVIMIENTO, 1929, p. 263). O destaque para o papel socializador das comunidades
indígenas não era uma novidade dos peruanos. A crença de que a prática comunal de
algumas populações camponesas e/ou indígenas podia ajudar e inspirar o socialismo
pode ser encontrada em Marx, Rosa Luxemburgo, Ricardo Flores Magón, mas também
no VI Congresso da IC, em que foi destacada essa possibilidade de se aproveitar as
tradições comunais na passagem da revolução democrático-burguesa ao socialismo376.
As resoluções da ICCLA destacaram a possibilidade de se aproveitar o espírito coletivo
dos camponeses e indígenas para a sociedade socialista.
376
A intervenção da delegação latino-americana e a de Humbert-Droz trataram do comunalismo agrário
dos camponeses e indígenas latino-americanos no VI Congresso. Cf.: VI CONGRESSO DE LA
INTERNCIONAL COMUNISTA, 1978.
346
[...] existe muito arraigado um hábito de trabalho e a repartição em
comum dos produtos. É essa, repetimos, uma condição favorável e
nossa propaganda deve encaminhar-se a estender o sentimento de
exploração coletiva todas às camadas camponesas, já que essa será a
forma que deverá influenciar a exploração agrícola dentro de um
regime proletário. (LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA,
ago. 1929, p. 21).
347
A posição dos peruanos não foi contra, por princípio, à luta dos indígenas por
sua autodeterminação, desde que estivessem dentro de um desenvolvimento histórico e
em uma real unidade nacional, que para eles não seria o caso dos indígenas da Sierra
peruana. (Ibidem, p. 313).
Por outro lado, não encontramos nas resoluções do VI Congresso da IC nenhuma
tese que aponte, categoricamente, para a questão indígena na América Latina como
questão nacional. Embora, como na questão negra nos EUA e na África do Sul, as
resoluções admitam que se lute por autodeterminação e até pela formação de um Estado
negro independente377.
O Informe de Hugo Pesce contou com adendos do delegado brasileiro (Leôncio
Basbaum), que reproduziu um erro comum entre os movimentos da esquerda brasileira
até a década de 1980: subestimar o racismo contra os negros como se tratasse de uma
questão de classe, apenas378. Humbert-Droz, percebendo as dificuldades em se
estabelecer uma linha clara para o problema de raças, sendo essa questão tratada pela
primeira vez nessa conferência, propôs que não se votasse uma resolução definitiva, e se
publicassem as teses em La Correspondência Sudamericana e assim continuassem o
debate.
A tese da delegação peruana foi publicada em La Correspondencia
Sudamericana379, e nas resoluções da ICLA foi elaborado um texto, assinado por Droz,
em que apresentava a questão de raças sem opor nenhuma das posições debatidas
durante a ICCLA. “Devido à carência de estudo prévio da maioria dos PCs sobre o
problema das raças, não foi possível elaborar uma tese de caráter continental com a
amplitude e precisão que tão fundamental problema requer.” A partir do pressuposto de
que o problema racial se assentava na condição semicolonial e feudal dos países latino-
377
Cf. VI CONGRESSO DE LA INTERNCIONAL COMUNISTA. Informes y Discusiones, Cuadernos
de Pasado y Presente. México: Pasado y Presente, 1978. v. 67; VI CONGRESSO DE LA
INTERNCIONAL COMUNISTA. Primera Parte. Cuadernos de Pasado y Presente. México: Pasado y
Presente, 1977. v. 66.
378
Essa subestimação sempre esteve fundamentada pela comparação com o racismo ostensivo
estadunidense ou sul-africano, em que existiam leis e medidas oficiais de segregação. De fato, no Brasil
não existiram desde a tardia “abolição” da escravidão, em 1888, leis de segregação. Mas todos nós,
brasileiros, sabemos que até que se popularizassem as leis antirracistas e que as manifestações de racismo
explícito fossem criminalizadas, já no século XXI, zeladores dos prédios das áreas nobres da cidade do
Rio de Janeiro indicavam o elevador de serviço aos negros, bem como foi comum xingarem negros com
palavras como macaco e coisas do gênero. Até hoje, o cabelo crespo dos negros é o “cabelo ruim” e segue
sendo alisado com agressivos produtos químicos baseados em formol.
379
LA CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA. Revista Quincenal editada por el Secretariado
Sudamericano de la Internacional Comunista: Buenos Aires. nº 15, Ago 1929. Disponível em:
<www.memoriavermelha.com>. Acesso em: 25 fev. 2012.
348
americanos, seguia colocando o problema dentro da tática para os países coloniais e
semicoloniais:
380
HUMEBERT-DROZ, Jules. Proyecto de Tesis sobre el problema de las razas. LA
CORRESPONDENCIA SUDAMERICANA, Quincenal editada por el Secretariado Sudamericano de la
Internacional Comunista, 2ª época, Buenos Aires, n. 15, ago. 1929, p. 26.
349
Conclusão
381
Temos pleno conhecimento da produção de Manuel Bonfim, de Juan Justo, ou mesmo de outros
socialistas latino-americanos, mas consideramos que, embora sejam considerados como primeiros
marxistas na América Latina, seus trabalhos não se perduraram ou influenciaram as gerações posteriores
em relação ao conteúdo, propriamente dito.
350
XXI ao menos, contamos com a possibilidade de digitalização e compartilhamento de
muitos materiais antes restritos às grandes empreitadas, financiadas com bolsas quase
inacessíveis para o pesquisador comum, ou bastante restritas. Buscamos dominar todo o
processo de digitalização, entramos em contato com diversos centros de memória
operária em diversos países. Fomos à Holanda, no Instituto de História Social, passamos
pela Rússia, ficamos vários meses no México, estivemos por três vezes no Peru,
particularmente na Casa Museu Mariátegui, e por diversos centros de memória operária
do Brasil, como o AMORJ, o CEDEM e o Arquivo Edgard Leuenroth em Campinas.
Com esse trabalho com as fontes, começamos a organizar as fontes cronologicamente e
por assunto, de forma que, a partir desse material, pudéssemos encontrar algum modelo
explicativo para tornar o contexto de produção das primeiras interpretações da realidade
latino-americana inteligível.
Inicialmente, Löwy, Aricó, Paris, Verdugo, Del Roio e outros autores conhecidos
por tratarem do tema Comunismo na América Latina figuraram como nossas principais
referências para a estruturação de um modelo que explicasse como se construíram as
primeiras interpretações marxistas da América Latina, centradas no Brasil, México e
especialmente no Peru de José Carlos Mariátegui. Obviamente, diversos textos desses
autores nos serviram de base para nos situar nas fontes, na cronologia e assim conseguir
organizar a imensidão de materiais que havíamos recolhido, e, ao longo do processo de
análise das fontes, diversas hipóteses foram se confirmando, outras, caindo por terra,
apontando dúvidas e questionamentos sobre os modelos explicativos utilizados pela
historiografia citada acima.
A primeira questão fundamental que nossa tese precisava resolver era explicar os
antecedentes dessas primeiras interpretações marxistas. Primeiramente, tentamos
encontrar a “originalidade”, particularmente de Mariátegui, em autores indigenistas, em
tradições camponesas, quéchuas, astecas, aimarás etc. O muralismo parecia conter esse
mesmo elemento cultural “original” que elevava a importância da obra de Mariátegui na
bibliografia consultada. Esse elemento “nativo” da América Latina era uma sedutora
explicação para as particularidades latino-americanas entre os primeiros marxistas da
década de 1920. Essa interpretação de Mariátegui, e também do muralismo, estava
muito na moda quando começamos a pesquisa, e nos debruçamos sobre a história
peruana e mexicana para encontrar os laços que uniam marxismo com tradições nativas.
Encontramos muito pouco, e as próprias propostas de análise nesse sentido não eram
351
consistentes em explicar a partir de um elemento cultural ou das tradições a
particularidade do marxismo latino-americano. Embora fosse possível perceber uma
estética indigenista nas ilustrações de Amauta, ou mesmo um conjunto simbólico
surgido com o agrarismo mexicano presente nas fotos de Tina Modotti, ou mesmo nos
murais de Diego Rivera, os elementos culturais não possibilitavam a construção de um
modelo explicativo para aquele conjunto de interpretações marxistas da realidade latino-
americana.
Uma das possibilidades que poderiam demonstrar um forte aspecto particular
latino-americano era um típico e resistente comunalismo latino-americano, o ayllu nos
Andes, e o ejido no México. Parecia estar aí o elemento de singularidade que uniria
essas primeiras interpretações marxistas da América Latina, e ambas as formas
comunais de organização dos camponeses tinham relações de hereditariedade com um
tipo de comunalismo pré-colombiano, que daria toda uma lógica antieurocêntrica para a
“heterodoxia” que Löwy, Paris, Aricó e Galindo tanto identificavam em Mariátegui.
Esse caminho latino-americano do marxismo era muito sedutor, uma possibilidade
muito estimulada pela nova “esquerda”, que na primeira década do século XXI crescia
na América do Sul e, particularmente, no Brasil, após a chegada do PT na presidência.
A tese do comunalismo tradicional já possuía alguns intérpretes que exploravam
o movimento revolucionário liderado por Zapata em Morelos, a partir da defesa da
comunidade, da propriedade ejidal, tradicional e indígena, como motivador da rebelião.
Womack (1999)382, um dos mais importantes autores que trataram do tema Zapata em
Morelos, inicia o seu livro com um trecho que nos indica a defesa do passado como
motivador inicial da rebelião.
Ao ler o conteúdo do livro, vai se percebendo que, embora Womack encontre na
situação política regional de Morelos o estopim da rebelião zapatista, seu texto está
longe de relacionar o zapatismo com os Calpullis ou com os Ejidos. Mas existiram
outros artigos, que embalados pelo que entendiam sobre o fenômeno zapatista em
Chiapas, relacionavam Emiliano Zapata com indigenismo, defesa da propriedade
comunal, o ejido383. Não era absolutamente falsa essa linha de explicação, já que o
próprio agrarismo mexicano oficial foi um grande promotor da ideia do ejido como
382
WOMACK JR., John. Zapata y la Revolución Mexicana. México DF: Siglo Veintiuno, 1999.
383
Uma informação pouco citada pelos que veem na questão agrária latino-americana um tradicionalismo
indígena e relacionam rebelião camponesa com herança indígena: o ejido é um termo espanhol, e não
mesoamericano, e, mesmo que ressignificado na América, a existência do termo demonstra que o
comunalismo foi comum durante o período medieval-moderno espanhol.
352
forma de propriedade camponesa revolucionária. No Peru, o retorno ao Império Inca
também animou muitas das lutas camponesas anteriores ao movimento comunista,
colocando a defesa da terra comunal, os indígenas e o Ayllu como um elemento muito
interessante para se pensar uma possível originalidade para as primeiras interpretações
do marxismo latino-americano, algo bastante “heterodoxo”, e que confrontado com as
teses exportadas da Europa valorizariam nossos primeiros marxistas latino-americanos,
trazendo à tona a origem do estupendo valor de suas teses, particularmente do Amauta
peruano, José Carlos Mariátegui.
Embora parecesse promissor encontrar uma prática “comunista” entre os
indígenas latino-americanos, e logo perceber que os primeiros marxistas do continente
se ligaram a essa tradição comunal como fonte de inspiração para as suas primeiras
interpretações marxistas da realidade latino-americana, as fontes negavam essa
premissa.
Quanto mais líamos e relíamos os textos “ortodoxos” do movimento comunista,
as orientações da Internacional Comunista, as interpretações que gradativamente foram
formuladas nos partidos comunistas, mais similaridades encontrávamos com os mais
“heterodoxos” marxistas latino-americanos, particularmente os agraristas vermelhos da
Liga Nacional Camponesa, os murais de Diego Rivera e Siqueiros, e, principalmente, a
obra de Mariátegui.
Cada vez mais nos parecia que a bibliografia em que estávamos nos baseando
estava mais envolvida em rechaçar o que ela imaginava como sendo a “ortodoxia
stalinista”, mais preocupada em opor Mariátegui, Rivera, Tina Modotti ou Julio Mella
aos “burocratas da Comintern” que em compreender o debate no movimento comunista
e o conteúdo teórico produzido por esses primeiros marxistas latino-americanos.
Enquanto avançávamos na pesquisa, tornava-se mais claro que existiam
pouquíssimos estudos comparativos entre duas ou mais seções da Internacional
Comunista. Cada autor estudava seu país, ou um país a sua escolha, e geralmente estava
envolvido com alguma posição na esquerda, que naturalmente o levava a realçar alguns
aspectos do processo de formação dos partidos comunistas latino-americanos384.
384
Verdugo (1985), por exemplo, foi dirigente durante anos do PCM, e ao final da década de 1970 o PCM
estava promovendo alianças amplas com os partidos que compunham o Estado mexicano. O seu livro,
História do comunismo mexicano, encontrava um aliado estratégico importante para os comunistas, que
ele denominava com o conceito de “democratas-revolucionários”, que agruparia, por exemplo, Adalberto
Tejeda, o governador de Veracruz, um dos motivos de ruptura entre Galván e a direção do PCM que
seguiu a linha da Internacional Comunista. Verdugo, antes de publicar esse livro, era secretário-geral do
353
Desse modo, nossa pesquisa se voltou novamente para o movimento comunista e
o modelo que se utilizava para explicar a sociedade latino-americana. Muitos artigos
simplesmente taxavam a “ortodoxia”, o “sectarismo”, o “positivismo” e o
“eurocentrismo” destas formulações, de modo que, sem se compreender exatamente a
lógica do modelo “stalinista” da Internacional Comunista, já se afastava qualquer
possibilidade de que houvesse uma relação entre teoria e prática comunista, e essa
relação fosse uma importante fonte para se explicar a dinâmica dos partidos comunistas.
Fazendo um caminho distinto da bibliografia mais conhecida e citada,
procuramos as fontes primárias mais básicas do movimento comunista, as teses e os
textos clássicos do marxismo-leninismo, os que eram divulgados na América Latina, as
resoluções, debates, análises e programas dos Congressos da IC e os documentos da IC
dirigidos aos partidos comunistas latino-americanos, entre 1919 e 1930.
Para a nossa surpresa, essas fontes haviam sido muito pouco exploradas com
seriedade. Ao começar a organizar a cronologia do movimento comunista, organizando
as lutas políticas, o significado dos conceitos e os fatos, diversos autores muito citados
erravam grosseiramente. Um bom exemplo é o tradicional conceito de burguesia
nacional, conceito fundamental no movimento comunista para explicar as táticas em
países periféricos. Não se pode citar uma declaração de Prestes em 1946 sobre a aliança
com a burguesia nacional e sua composição social e compará-la com a análise de
burguesia nacional que se fez durante a perseguição de comunistas em Shangai em
1927. Tanto a realidade nacional chinesa é diferente da brasileira como os contextos são
diferentes, e a própria Internacional Comunista fez diversas retificações ao longo do
tempo em relação ao conceito de burguesia nacional. Enfim, os conceitos são
dinâmicos e fazem parte de uma luta política circunscrita a determinadas situações. Se
não tratarmos com seriedade os debates do movimento comunista, corremos o risco de
enormes erros de anacronismo. E o anacronismo foi muito comum, particularmente
pelos autores que procuraram estudar o movimento comunista imbuídos de uma
motivação ideológica típica da época da Guerra Fria, e que tratava a atividade
comunista como espionagem russa. Não é por outro motivo que alguns autores, como
William Waack, denominem os comunistas como “agentes da Comintern”385 e sempre
vida de Luiz Carlos Prestes. Nesse documentário, ele utiliza a expressão “agentes” seguidamente, para se
referir aos comunistas. A Doutrina de Segurança Nacional criada pela Ditadura Militar no Brasil
costumou utilizar esse termo, “agentes” do comunismo, para justificar a repressão política. Waack foi
recentemente apontado em alguns cables publicados pelo Wikileeks como um contato importante do
governo dos EUA no Brasil. Ver: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: 27 out. 2011. Disponível em:
<http://www.jb.com.br/informe-jb/noticias/2011/10/27/wikileaks-william-waack-da-globo-e-citado-tres-
vezes-como-informante-dos-eua.> Acesso em: 23 mar. 2014 e também SOUZA, Hugo. “WikiLeaks
mostra mídia brasileira a serviço do USA” In A Nova Democracia, ano X, nº80, Rio de Janeiro: ago 2011.
Disponível em <http://www.anovademocracia.com.br/no-80/3596-wikileaks-mostra-midia-brasileira-a-
servico-do-usa> Acesso em 27 mar. 2014,
386
Ricardo Antunes, em um artigo, utiliza o termo “staliniano”, junto com “stalinista”, sem apresentar
alguma justificativa para essa diferenciação. Supomos que stalinista se refira ao próprio Stalin, e
staliniano aos seus seguidores. Ver: ANTUNES, Ricardo. “Os comunistas no Brasil: as repercussões do
VI Congresso da Internacional Comunista e a Primeira inflexão stalinista no Partido Comunista do Brasil
(PCB)” In Cadernos do AEL, nº2, Campinas: 1995.
355
comunista. Essa perspectiva é tão forte na historiografia latino-americana que a
investigação sobre a lógica doutrinária do movimento comunista acabou ficando em um
plano secundário para qualquer modelo explicativo.
Nossa pesquisa foi gradativamente se libertando desse pressuposto de que havia
disputas pessoais que determinavam o debate no interior do movimento comunista, e
nos debruçamos cada vez mais sobre os modelos teóricos que os comunistas manejavam
em cada momento, levando a sério seu esforço de compreensão da realidade que
procuravam transformar. E, a cada vez que uma peça do quebra-cabeça ia se
encaixando, percebíamos que embora fosse uma peça grande, disponível entre as outras,
parecia esquecida em um canto pela historiografia que tratou do movimento comunista e
que dominava o tema nas universidades ocidentais desde a década de 1980.
Decidimos trilhar por um caminho que outros já haviam trilhado, mas um
caminho que desde a queda do muro de Berlin e o fim da URSS havia sido abandonado
pela historiografia. Não iríamos repetir qualquer história política limitada pela crítica à
propaganda soviética da década de 1980.
Logo no primeiro capítulo, introduzimos uma premissa um pouco diferente da
historiografia dos partidos comunistas do Brasil, Peru e México, ao negar qualquer
busca de hereditariedade entre o movimento comunista latino-americano e a 2ª
Internacional, ou, genericamente, o socialismo. Comparando os três países, ficou claro
que a hipótese muito repetida na historiografia brasileira, de que a formação do PCB
havia sido diferente da experiência de formação dos PCs em outros países latino-
americanos pela influência do anarquismo e do sindicalismo estava incompleta e não
explicava-se.
Os três países estudados haviam passado por uma experiência muito parecida em
relação à formação inicial do Partido Comunista. No Brasil, era claro que os primeiros
comunistas provinham de um movimento operário muito influenciado pela agitação
sindicalista e anarquista, bastante eclético, é verdade, mas não poderíamos afirmar que
os mais entusiasmados com a Revolução Russa provinham do movimento socialista.
Como afirma em suas memórias Everardo Dias387, diziam-se revolucionários, e, naquele
período, revolucionário era uma amálgama de influências da agitação anarquista, e não
socialista.
No Peru, os grandes animadores das lutas do movimento operário eram
387
DIAS, 1977, p. 34-5
356
anarquistas, muitos influenciados pelas ideias propagadas no jornal anarquista La
Protesta. No México, onde a estrutura inicial havia sido organizada a partir de um
Congresso Socialista, que havia sido convocado pelo Partido Socialista, tinha-se tudo
para apresentar um processo distinto do PCB e do PCP, ou seja, ao menos no México
haviam sido os socialistas que teriam criado o PCM.
Quando nos aprofundamos um pouco mais, percebemos que a dinâmica de
organização, mobilização e a forma com que receberam a Revolução Russa não tinha
nenhuma relação com o socialismo da 2ª Internacional, mas expressava as organizações
com as mesmas perspectivas que animavam os anarquistas fluminenses da COB, ou o
movimento operário de Lima. Foi então que passamos a compreender as diferenças
entre anarquistas (ou revolucionários, como se autodenominavam os ativistas da COB
no Rio de Janeiro) e os socialistas. E Aricó nos fornecia a explicação mais lúcida para
essa proeminência do anarquismo em detrimento do socialismo na América Latina.
Denominamos como “A hipótese de Aricó”, ou seja, a predominância do anarquismo se
explicava pela estrutura oligárquica dos Estados latino-americanos, que,
impossibilitando qualquer acesso ou participação política das classes populares, acabava
favorecendo os anarquistas em detrimento dos reformistas no movimento operário,
particularmente em momentos de crise e entre os mais ativos trabalhadores. O
socialismo pré-leninista388 se limitou a uma parte da intelectualidade de maneira restrita
a uma atividade sociológica e quase limitada a um tipo acadêmico. Como doutrina
antioligárquica e moderna, prevaleceu desde o principio do século o liberalismo, e,
através dos imigrantes e do movimento operário, chegou-se ao anarquismo de
inspiração em autores como Kropotkin e Bakunin389.
A partir da primeira década do século XX, começam a aparecer importantes
rebeliões na América Latina, que foram tratadas com termos pejorativos pela
historiografia dominante (“milenaristas”, “fanáticos” etc.). Tratavam-se de rebeliões
rurais, geralmente de caráter local e guiadas por um apelo religioso forte. No Brasil,
foram guiadas por líderes religiosos, como Antônio Conselheiro (Canudos) e José Maria
(Contestado). Essas rebeliões rurais latino-americanas foram tratadas pela obra de Rui
388
Aqui nos referimos a realidade latino-americana. Dentro da 2ª Internacional existiam marxistas
revolucionários, como Rosa Luxemburgo e os que fundaram o KPD alemão, e particularmente os
bolcheviques.
389
É importante salientar que muitos anarquistas bakunisnistas e prodhonistas veem Kropotkin como um
anarquista revisionista e não consideram o anarco-sindicalismo como uma corrente genuinamente
anarquista.
357
Facó390 como uma resistência à desorganização social promovida a partir do impacto
econômico, fruto da expansão do imperialismo, ou seja, a exploração de produtos como
a borracha, madeira, café e a construção da infraestrutura necessária para o escoamento
dessas mercadorias. No Peru e no México, ocorreram rebeliões rurais similares, e foram
tratados como antimodernas, arcaicas e medievais pelos contemporâneos urbanos que
faziam oposição aos governos oligárquicos desde uma perspectiva liberal. Os
camponeses pobres latino-americanos não podiam encontrar alento nos críticos liberais,
já que o discurso dessa oposição costumava se relacionar mais à crítica à falta de
liberdades políticas que à transformação econômica da realidade de miséria dos
camponeses. Os liberais que trataram do problema agrário geralmente defendiam a
distribuição e o parcelamento das terras, ou o desenvolvimento técnico da produção
agrícola como solução para o problema agrário, e, no caso mexicano, havia sido a
própria legislação liberal utilizada para parcelar as propriedades tradicionais e favorecer
a concentração de terras391. A modernização da expansão do capitalismo europeu
chegou à América Latina desorganizando antigas formas de produção, legitimando-se a
partir do discurso do “moderno” e do “progresso”, e encubando rebeliões rurais que,
sem aliados entre os grupos marginalizados das cidades, se expressaram através de
símbolos e demandas “tradicionalistas”. No Brasil, Conselheiro defendeu a monarquia e
a Igreja contra a república, no Peru ressurgiu a busca pelo retorno dos Incas, e no
México os investimentos eram maiores e o Estado Oligárquico mais forte. A rebelião
camponesa somou diversas derrotas e repressões, até que explodisse na Revolução
Mexicana, tornando os pequenos camponeses ou sem-terras um elemento central na
situação política nacional, e no Estado pós-revolucionário.
Apoiamo-nos em diversos estudos que relacionam expansão imperialista
europeia e dos EUA com o Estado Oligárquico392 latino-americano, a desorganização do
campo e as rebeliões rurais “milenaristas”.
A partir do início do século XX, com o funcionamento das primeiras indústrias
latino-americanas, começa a formação dos primeiros núcleos da classe operária
390
FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Gênese e lutas, Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
391
No caso do Estado de Morelos, o desenvolvimento da produção açucareira no período porfirista foi
detalhadamente estudado por Horácio Crespo, e nos fornece uma importante análise das transformações
econômicas dessa indústria, que somam-se a outras análises da situação política morelense, como a obra
de Woomack e Katz, que nos ajudam a explicar a rebelião zapatista a partir de 1910. Ver: CRESPO,
Horácio. Modernización y Conflicto Social. La Hacienda Azucarera em el Estaado de Morelos, 1880-
1913. México: INEHRM, 2009.
392
Para a definição de Estado Oligárquico, entre outros, nos utilizamos de Cotler (2006) e Ansaldi (1992).
358
industrial nas principais cidades do subcontinente. Com o predomínio de trabalhadores
imigrantes, muitos italianos, espanhóis, portugueses, poloneses e alemães chegam
também, de maneira mais significativa, às ideologias que animavam a luta da classe
operária europeia. O anarquismo ganharia parte da intelectualidade marginalizada nas
repúblicas latino-americanas, potencializando a crítica e a agitação revolucionária em
meio aos diversos setores descontentes destas sociedades.
O proletariado latino-americano e urbano careceu de uma identidade regional,
como todo o movimento operário. Seria do encontro entre anarquismo e o movimento
camponês rebelado que surgiriam reflexões críticas acerca da realidade social no
México e no Peru. Nossa investigação acerca das primeiras reflexões acerca da
realidade mexicana e peruana a partir de uma crítica revolucionária do domínio
oligárquico chegou aos dois primeiros críticos da ordem oligárquica, Ricardo Flores
Magón, e, principalmente, Manuel González Prada, com o texto “Nuestros Indios”393.
Embora imbuídos de um internacionalismo característico da tradição anarquista,
foi a posição crítica radical desses dois anarquistas que possibilitou a primeira análise
moderna do problema indígena no Peru associado ao problema nacional, e o tratamento
do Estado Oligárquico e sua estrutura agrária como essenciais para a compreensão dos
problemas nacionais mexicanos.
No Brasil, os grupos anarquistas não tiveram nenhuma relação com as rebeliões
rurais; no caso do Contestado, que aconteceu já na década de 1910, sequer encontramos
alguma referência nos inúmeros periódicos do movimento operário. Em geral, o
movimento operário radical brasileiro, antes da década de 1930, desprezou o campo e os
camponeses, e sempre enxergou nessa população o atraso. Para um movimento
extremamente anticlerical, nada mais atrasado que o campo brasileiro. Essa visão
demoraria para ser superada.
As ideologias radicais modernas aparecem na cidade, mas logo alcançam a luta
camponesa e animam as rebeliões indígenas no Peru, bem como podem vincular-se, em
termos gerais, à combatividade zapatista, particularmente em relação ao seu
antiestatismo e autonomismo. Desenvolvemos essa ideia em relação à forma com que o
Exército Libertador do Sul se relacionou com as várias esferas do Estado, e com sua
desconfiança constante em relação ao poder, seu caráter corruptor e opressor.
Quando as primeiras notícias da Revolução Russa chegam à América Latina, são
393
No primeiro capítulo, apresentamos todas as referências desse texto e González Prada.
359
recebidas de forma muito parecida. Primeiro com uma desinformação interessada
através das agências de notícias europeias e norte-americanas, que noticiavam a queda
do Tzar como uma revolução de cunho liberal, muito elogiosa à figura de Kerenski, e
logo começaria a surgir o nome de Lenin, como um agente alemão. Por uma tradução
francesa da época, os bolcheviques serão conhecidos nos países de língua latina como
“maximalistas”, e começam a aparecer grupos e uniões de “maximalistas” por todas as
partes. No Brasil, embalados pela ideia da tomada do poder, os revolucionários da COB
que organizaram as greves de 1917, conspiram um “assalto ao poder”, que fracassa, e
muitos são presos.
A partir de 1921, os anarquistas vão se tornando cada vez mais críticos ao
governo bolchevique, forçando definições no movimento operário, separando
simpatizantes da Revolução Russa e críticos da ditadura do proletariado. Formam-se os
primeiros partidos comunistas, a partir das 21 condições definidas no II Congresso da
IC, as primeiras obras marxistas vão aparecendo no movimento operário, e o
movimento operário vai vivendo momentos de descenso, enquanto trava batalhas
ideológicas em torno de temas como “ditadura do proletariado”, participação no
parlamento, formação de partidos comunistas etc. A partir de 1922 e principalmente
1924, há uma abertura política da política da IC em direção à formação de frentes
únicas, que na América Latina iria se expressar não apenas na frente única no
movimento operário, mas também na frente única com setores não proletários,
principalmente os camponeses pobres e sem-terra e os setores médios da população
(intelectuais, profissionais liberais, pequenos comerciantes, funcionários públicos e
militares de baixa patente), que representavam a maioria da população na América
Latina.
Essa perspectiva frentista trazia para o jovem movimento comunista uma série
de questões que ampliavam o universo analítico que se propunham a entender, e
colocavam em uma perspectiva nacional a Revolução Social. Essa revolução não dizia
respeito apenas à luta entre oprimidos contra os opressores, mas precisava compreender
a realidade nacional, a composição das classes em cada realidade, as possibilidades de
aliança, a um programa mínimo (que depois seria denominado como tática394).
Em um primeiro momento, os primeiros comunistas latino-americanos se
394
Ao longo da década de 1920 os termos programa mínimo e programa máximo, se transformarão em
tática e estratégia. Ou seja, o programa mínimo seria a tática e o programa máximo a estratégia na
terminologia dos PCs.
360
preocuparam muito com a forma política das organizações que estavam criando. A
primeira medida de definição do PCB, por exemplo, foi criar um estatuto para
normatizar a vida do Partido. Mais tarde, com a superação do tradição anarquista de
seus militantes, seriam aprovados os primeiros programas, e desses programas surgiriam
as primeiras interpretações da história de cada país à luz do marxismo.
Como é conhecido na historiografia, os textos de Marx apareceram muito tarde
no Brasil, em português. A divulgação seria obra do próprio PCB. O Manifesto
Comunista seria traduzido apenas em 1924. No México, as obras marxistas em espanhol
estavam mais disponíveis, e o próprio Capital apareceria antes mesmo da virada do
século395.
De fato, o marxismo chegaria a partir da Revolução Russa, e seriam os próprios
militantes comunistas os principais divulgadores da literatura marxista na América
Latina e os primeiros a tentar utilizar o marxismo como método de análise da situação
nacional e internacional. Essas interpretações não seguiram a trajetória dos estudos
acadêmicos e foram sendo sistematizadas em meio à luta política que se dava no
movimento operário internacional e às lutas que a própria dinâmica de construção dos
grupos e partidos comunistas impunham. A luta por organizar o movimento comunista e
lidar com os movimentos de massas foi impondo temas, debates, rupturas e expulsões.
Em meio a essa tensa dinâmica política, que se desenvolve em um movimento de
agrupamento e rupturas, produziram-se algumas das primeiras sínteses de interpretação
das “particularidades latino-americanas”, e se analisou pela primeira vez a história
latino-americana sob o prisma do marxismo.
O segundo capítulo deste trabalho tratou destas interpretações da realidade
mexicana nos contextos em que elas foram produzidas, primeiramente as duas
principais experiências para além do proletariado no México, o movimento camponês
influenciado pelos comunistas, denominado como Agrarismo Rojo (Vermelho), e o
Movimento Muralista, a mais importante expressão artística modernista da América
Latina, ao menos no período anterior à Segunda Guerra. Com a atuação nas Ligas
395
A primeira tradução em espanhol do Primeiro volume do Capital de Marx data de 1886, por Pablo
Correa y Zafrilla, na Espanha. Essa tradução é pouco conhecida. Na América Latina, Juan Justo traduziria
o Capital para o espanhol, e essa versão seria mais comum durante muitos anos. Um artigo de Pedro
Ribas, “La primera tradicccion castellana de El Capital (1886-1887)”, esclarece a história do capital em
espanhol.
Disponível em:
<http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/24684955335572617422202/210290_0057.pdf>.
Acesso em: 27 fev. 2014.
361
Camponesas, os comunistas precisaram tratar o problema agrário de uma forma mais
detalhada; não seria apenas uma luta contra os opressores em aliança com os operários
da cidade. Os comunistas precisavam formular um programa para a questão camponesa,
e em meio aos primeiros governos pós-revolucionários. No México, a política
comunista para os camponeses era particularmente complexa.
Procuramos analisar os programas, contextualizá-los e explicar a dinâmica dos
comunistas em meio a Liga Nacional Camponesa, e assim apresentar como foram sendo
construídas as primeiras formulações marxistas acerca da realidade mexicana.
Foram produzidos muitos textos que tentaram definir a complexidade da
situação política nacional mexicana, mas não se produziu uma “obra síntese”, como
aconteceria no Peru, com Mariátegui.
Nesse sentido, foi criada a primeira interpretação artística modernista
diretamente influenciada pela interpretação marxista da história, com a obra de Diego
Rivera, na Secretaria de Educação Pública (SEP), entre os anos de 1923-1928, além das
pinturas na Universidade de Chapingo e parte do plano da Obra do Palácio do Governo.
A obra de outros muralistas, particularmente de Siqueiros e das irmãs Greenwood,
poderiam servir como importantes fontes para analisarmos a interpretação marxista da
história mexicana, mas foram produzidas na década de 1930, e por esse motivo nos
limitamos aos murais de Diego Rivera produzidos entre 1922 a 1930, corte temporal
deste trabalho.
No Brasil, os dois principais dirigentes do PCB nos anos 1920, Octávio Brandão
e Astrojildo Pereira, escreveram o programa do PCB para o II Congresso, em 1925, e
grande parte dessas teses foi sistematizada no livro de Octávio Brandão, Agrarismo e
Industrialismo, com diversas limitações em relação ao manejo dos conceitos marxistas,
reproduzindo superadas versões hegelianas da dialética marxista, mas o primeiro
esforço de interpretação marxista da realidade brasileira. Com essa tese do agrarismo e
industrialismo, o PCB começou a estabelecer as bases de sua aliança com os setores não
proletários, mas que lutavam contra o estado oligárquico brasileiro. Os comunistas
procurariam contato com o tenentismo, encontrando com Prestes por duas vezes antes
da chamada “Revolução” de 30, que seria o primeiro passo para a cooptação desse que
seria o principal líder comunista do Brasil, até ao menos a década de 1960.
A comparação do movimento comunista mexicano e peruano com o brasileiro é
interessante para demonstrar como o persistente obreirismo influenciou a direção
362
política do PCB, e como a aplicação de uma política de frente única com as classes não
proletárias havia sido tentada sem que um programa claro para o conjunto do país
pudesse colocar o PCB como uma alternativa para todas as classes marginalizadas pelo
Estado Oligárquico.
No Peru, procuramos compreender a trajetória de formação político-ideológica
de Mariátegui, que trouxe o marxismo-leninismo ao Peru e que nos anos 1920 é
responsável pela mais importante interpretação marxista da história de um país latino-
americano. Procuramos identificar o modelo interpretativo usado por Mariátegui em sua
mais importante obra, Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana,
publicado em 1928, e que pode ser considerada a primeira síntese elaborada pelo autor,
posteriormente desenvolvida em dois textos que foram enviados para a I Conferência
Comunista Latino-Americana, realizada em Buenos Aires, em 1929.
A partir desses três eixos que podem ser considerados as primeiras interpretações
marxistas no Brasil, no Peru e no México, estabelecemos algumas bases para
compreendermos o debate mais complexo, que se deu no final da década de 1920, e
marcou a intervenção mais efetiva da IC nas seções latino-americanas, e as rupturas que
essa intervenção derivou.
Esse processo foi, como já apontamos acima, simplificado com pejorativos
anticomunistas, ou sob a explicação “da burocracia stalinista”, e a lógica doutrinária,
minimizada, como se tratasse de uma simples imposição de esquemas e fórmulas
retiradas de uma realidade europeia (ou russa), aplicada de maneira dogmática e
mecânica, cheia de simplificações e imposições autoritárias.
Procuramos compreender o significado dos V e VI Congressos da IC no que se
refere à interpretação da realidade latino-americana, seu significado político, e desse
entendimento procuramos identificar a natureza das rupturas dos anos 1928-30. A
APRA de Haya de La Torre é o caso mais significativo, porque acabou tratando de
questões de fundo pouco elucidadas pela historiografia, particularmente no Brasil.
Confunde-se a tese de frente única com frente de partidos de “esquerda”, e frente com a
social-democracia (que era uma questão europeia). Por outro lado, mistura-se o
significado político do termo burguesia nacional antes de 1950, e depois, quando esse
termo serviu para justificar alianças com os mais variados governos. Tentamos retomar
as investigações que levavam a sério as polêmicas do movimento comunista, e
particularmente o impacto da traição de Chang Kai Chek, em 1927, para o movimento
363
comunista e a forma com que compreendia suas alianças com os revolucionários
nacionalistas dos países periféricos.
Nossa pesquisa buscou compreender a dinâmica dos debates em torno da
influência da IC, identificando o seu sentido e a forma com que cada seção latino-
americana estudada interpretou as “novidades” que chegavam pelos militantes latino-
americanos que desde 1927 participavam de encontros, congressos e eventos na URSS.
É inegável que houve uma transformação radical nos partidos comunistas de
todos os países a partir de 1929-30, que se consolidaria ao longo da década de 1930.
Como referência, tivemos o próprio projeto do movimento comunista, ou seja,
até que ponto o interferência da IC nos jovens PCs latino-americanos contribuíram com
o desenvolvimento da Revolução Proletária Mundial no continente, e até que ponto
significou uma política isolada, ineficaz e incorreta. Insistimos com essa referência, já
que o teor das análises existentes na bibliografia geralmente julga negativamente esse
período, mas muitas vezes esquece de determinar quais critérios estão sendo utilizados
para julgar a política da IC.
Deve-se colocar como referência a eficácia desses partido, o objetivos desses
comunistas, e não o projeto e a concepção política do autor que escreve a história dos
comunistas.
Pode parecer secundário, mas sem termos claro que os comunistas não
acreditavam na “democracia burguesa”, não tinham como objetivo a “aliança das
esquerdas”, e queriam conquistar o poder para implantar a ditadura do proletariado,
podemos estabelecer avaliações confusas acerca de diversos aspectos da História do
Movimento Comunista.
O que nos pareceu mais significativo em relação às dificuldades que os
comunistas encontraram em seu caminho por conquistar o poder, estabelecer a ditadura
do proletariado e colaborar com a Revolução Proletária Mundial – na seção nacional em
que atuavam os comunistas peruanos, brasileiros e mexicanos – foi não conseguirem
compreender a reestruturação dos Estados latino-americanos ao longo da década de
1920, no México, e ao longo das décadas de 1930, no Brasil e no Peru.
Desde o surgimento dos primeiros Partidos Comunista da região, até 1930, há
uma significativa mudança no Estado latino-americano e nas formas de organização da
dominação política e da representatividade. O Estado mexicano é o primeiro a sofrer
uma reestruturação, incorporando demandas populares, ao mesmo tempo em que os
364
caudilhos administravam o sistema de cooptação, corporativização e repressão,
consolidando o poder e a institucionalização.
Não foi raro, por isso, que os comunistas oscilassem, ora em uma política de
ruptura com o Estado, ora em uma política de participação nas eleições e aliança com
grupos das mais variadas matizes, a fim de ganhar espaço para a aplicação de um
programa socializante.
Toda conclusão de um trabalho, que nesse caso nos tomou quase 5 anos de
reflexões e pesquisas, deve não apenas apresentar uma explicação conclusiva do
assunto, mas também deve apontar para novas perguntas, e trazer novos desafios para
futuras pesquisas. A nosso ver, o que de mais intrigante pode surgir desta tese para
inspirar novas investigações é o problema da reestruturação dos Estados latino-
americanos a partir da década de 1920, e como os comunistas avaliaram a sua
composição de classe, as possibilidades de aliança e disputa da hegemonia, e
principalmente com quais ferramentas teóricas os marxistas contaram para compreender
a nova realidade política que se abria nesse início do século.
A Era Vargas, o Maximato e o Cardenismo, além do oncênio e os governo de
Sanchez Cerro e Benavides traziam novas formas de dominação política, novas
maneiras de lidar e controlar o movimento operário, e compreender essa nova realidade
política seria chave para os comunistas alcançarem êxito.
365
Cronologia396:
1914
1915
1917
5 de fevereiro – Aprovação da Constituição do México (artigos 3, 27 e 123 são de conteúdo
social inédito na América Latina)
8-12 de março – Choque nas ruas de Petrogrado entre operários e a polícia.
12 de março – Nasce o Soviete de Operários e Camponeses de Petrogrado.
15 de março - Abdicação do Tzar na Rússia.
16 de abril – Lenin retorna a Petrogrado e publica as Teses de Abril.
396
Essa cronologia foi composta a partir de outras cronologias encontradas na bibliografia, além da
pesquisa em fontes primárias. Entre as referências utilizadas, destacam-se: BROUÉ, Pierre. História da
Internacional Comunista (1919-1943), T.I e II, trad. Fernando Ferrone, São Paulo: Sundermann, 2007;
CARONE, Edgard. Movimento Operário no Brasil (1877-1944), São Paulo: Difel,1984; _____. Classes
Sociais e Movimento Operário, São Paulo: Ática, 1989; MARQUEZ FUENTES, Manuel e RODRÍGUEZ
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México: Cabalito, 1973; MCKENZIE, Kermit E. Comintern and World Revolution, 1928-1943: The
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Latinoamericano – Historia de una Clase Subalterna, México: Alianza, 1988; MONIZ BANDEIRA, Luiz
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Narrativa del Origen del Comunismo en México. México: Ediciones B, 2008; VANDEN, Harry E.
Mariátegui, Influencias en su formación ideológica. Lima: Amauta, 1975.
366
6 de maio – EUA entra na Primeira Guerra Mundial.
10 de junho - Começa em São Paulo a grande greve de 1917. Ela nasce numa fábrica na
Mooca, espalha-se pela cidade e pelo Estado de São Paulo, e se estende depois pelos
principais centros industriais brasileiros.
16-17 de julho – Manifestação armada contra o Governo Provisório em Petrogrado, em favor
de “todo poder aos sovietes”
13 de agosto – Manifestações em Turim, Itália em solidariedade aos sovietes.
15-18 de agosto – Greve Geral na Espanha.
7 de setembro – Levante do General Kornilov.
22 de setembro – Os Bolcheviques tem maioria no soviete de Petrogrado.
25 de outubro – O Soviete de Petrogrado cria o seu Comitê Militar Revolucionário
7 de novembro – Insurreição dirigida pelo CMR, apoiado pelo Soviete de Petrogrado.
Revolucionários dirigidos pelos bolcheviques tomam o Palácio de Inverno e o Governo
Provisório foge.
8-16 de novembro – Decreto do governo revolucionário russo sobre a democratização do
acesso à terra.
26 de novembro – Decreto do governo revolucionário russo estabelece a jornada máxima de
8 horas e a criação de uma milícia operária (Guarda Vermelha).
27 de novembro – Aprovado no México a Lei de Juntas, Conciliação e Arbitragem.
28 de novembro – Declaração dos direitos do povos trabalhadores pelo governo
revolucionário russo.
7 de dezembro – Manifestação contra a guerra em Viena.
17 de dezembro – Assinatura dos tratados de armistício de Brest-Litovsk
30 de dezembro - Mariátegui publica um artigo no jornal El Tiempo criticando Luis Miro
Quesada por acusar os jornalistas do jornal de “bolchevismo”.
1918
1919
1920
Janeiro – Início de uma série de greves na Itália.
369
13 de janeiro – Manifestação operária no Reichtag alemão reivindica as leis sobre os
Conselhos Operários. 42 manifestantes são mortos.
Fevereiro – Greve de mineiros na África do Sul se coloca contra a discriminação racial.
Abril – Crise econômica nos EUA. Aumentaram as greves e a repressão.
Abril – Greve em Sonora, México reprimida por Carranza.
Abril – Voitinsky, Yang Mingzhai e Gogonovkin estabelecem contatos com Li Dazhao e
Chen Duxiu.
5-7 de abril – Greve Geral na Irlanda consegue a libertação de cem prisioneiros.
16 de abril – Fundação do Partido Comunista Operário Espanhol, em Madri.
23 de abril – Fundação do Partido Comunista da Indonésia.
23 de abril – Plano de Agua Prieta. Levante contra Carranza, em duas semanas de luta vence
o triunvirato de Sonora. (Obregón-De La Huerta-Calles).
25-30 de abril – Saudação ao proletariado russo e a III Internacional no 3º Congresso da
Confederação Operária Brasileira (COB)
5 de maio – Prisão dos anarquistas Sacco e Vanzetti.
8 de maio – Poloneses entram em Kiev, na Ucrânia. Retiram-se no dia 13 de junho.
20 de maio – Marinheiros britânicos descobrem armas e munição para a Polônia. Estivadores
entram em greve e inicia a campanha: Tirem as mãos da Rússia soviética!
20 de maio – Proclamada a República soviética da Pérsia, em Ghilan.
21 de maio – Carranza é assassinado em Tlaxcalatongo.
1º de junho – De la Huerta presidente interino até novembro. José Vasconcelos é designado
reitor da Universidade de México.
13 de junho. – Criado o Partido Nacional Agrarista, dirigido por Soto y Gama, Rodríguez
Gómez, Felipe Santibañez e Octávio Paz.
6 de junho – Wrangel lança uma ofensiva contra o governo soviético na Criméia, apoiado e
armado pelo exército francês.
22 de junho – Fundação do Partido Comunista iraniano. No dia 30 os iranianos se levantam
contra o domínio colonial inglês.
15 de julho – Fundação da Liga da Juventude Comunista na China.
17 de julho a 7 de agosto. – Segundo Congresso da IC (Petrogrado e Moscou)
28 de julho – Francisco Villa depõe as armas.
20 de agosto – Sun Yat Sen envia uma mensagem a Tchitcherin de apoio a Revolução Russa.
1º a 7 de setembro – Congresso dos Povos do Oriente, em Baku.
10 de setembro – Fundação do Partido Comunista Turco.
19 de setembro – Assembleia constitutiva da FCPM (Federación Comunista del Proletariado
Mexicano)
26 de setembro. – Manifestação na Cidade do México contra a carestia. Foi chamada pelos
jornais de “Manifestação Bolchevique”. Falaram ante o Presidente De La Huerta: Diaz Soto y
Gama, Carrillo Puerto (com palavras contra o governo e o clero) e Morones. Morones
chamou o povo para fazer barricadas na rua. Hastearam uma bandeira vermelha no Palácio
Nacional. A FCPM não participou, fez um ato à parte.
1º-14 de setembro – Ocupações de Fábrica pelos operários em greve na Itália.
Outubro – Mariátegui retorna a Roma após uma viagem pelas cidades italianas de Florença
370
(junho e julho), Gênova (agosto), Veneza (setembro)
12 de outubro – Armistício Russo-Polonês após derrota do Exército Vermelho na Polônia.
Novembro – Membros do Partido Socialista de Yucatán e das Ligas de Resistência tem
choques armados contra membros do PLC. Calles ordena a distribuição de armas às Ligas.
Vencem os socialistas. O PLC representava os latifundiários.
7 de novembro – O PCM comemora pela primeira vez o aniversário da Revolução Russa de
1917, no Teatro Hidalgo.
1º dezembro – Obregón assume a Presidência, e Adalberto Tejeda assume o governo de
Veracruz.
Dezembro – Chen Duxiu cria o Grupo Comunista de Shangai.
14 de dezembro – A derrota dos exércitos de Wrangel na Criméia marca o fim da Guerra
Civil na Rússia.
1921
1922
1923
Janeiro – PCM dirige a greve de motoristas do DF junto com a CGT. A CROM condena a
greve e organizou “esquiroles”. Celestino Gasca, Governador do DF enviou o exército para
reprimir o movimento.
Fevereiro – Úrsulo Galván e outros dirigentes camponeses são presos por forças federais e o
Governador Adalberto Tejeda os coloca em liberdade.
11 de fevereiro – Mariátegui embarca no navio Negada em Amberes em direção ao Peru, a
viagem duraria 34 dias, contando as paradas em portos intermediários. Chega
Março – Mariátegui viaja de regresso ao Peru
9 de março – Constitui-se a Agrupação Comunista de Havana, Cuba.
17 de março – Mariátegui chega ao porto de Callao, no Peru.
23 de março – Nasce a Liga de Comunidade Agrária do Estado de Veracruz, sob a direção de
Manuel Almanza e Úrsulo Galván, membros do PCM.
Abril – Mariátegui estabelece contato com Haya de La Torre e as Universidades Populares
González Prada, por intermédio de Fausto Posadas, antigo redator de assuntos operários do
jornal La Razón.
Abril – 2º Congresso do PCM. Rivera, Manuel Diaz Ramírez, Rosendo Gómez Lorenzo,
Úrsulo Galván e Carlos Palácios são os dirigentes eleitos.
Maio – Conferências de Bucareli, no México, que tiveram como resultado a redação da Lei
do Petróleo em benefício das empresas estrangeiras.
23 de maio – Manifestação em Lima contra a Consagração do Peru ao Coração de Jesus
(Essa consagração simbolizava um ataque do governo lenguista ao Estado laico)
1º de maio – Primeiro Congresso Nacional Agrarista, na Cidade do México. Obregón fez o
discurso final.
2 de maio – Tejeda publica a Lei do Inquilinato, como resultado da greve. Obregón foi
contra, mas a lei permaneceu até 1937. Os presos são soltos e o Sindicato de Inquilinos ganha
um outro local para funcionar.
Maio – É publicado o primeiro número da Revista Claridad no Peru.
16 de maio – Úrsulo Galván solicita armas para os ejidatários de Paso de Ovejas, que
necessitam se defender dos latifundiários e guardas brancas.
374
Junho – Lenin publica: “Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”.
Junho – Mariátegui inicia suas exposições na Universidade Popular González Prada. Serão
18 Conferências, intituladas “História da Vida Mundial”. Terminarão em janeiro de 1924,
com uma última conferência dedicada a Lenin.
8 de junho – Golpe de Estado na Bulgária.
12 de junho – 3º Pleno ampliado da CEIC.
15 de junho – Mariátegui apresenta a Primeira de suas conferências sobre a “Crise Mundial”
Essas conferências foram organizadas em um tomo de suas obras populares.
Julho – reorganização do Comitê Nacional do PCM.
20 de julho – Francisco Pancho Villa morre crivado de balas em Hidalgo del Parral,
Chihuahua. Muitos atribuem o assassinato a Obregón.
26 de julho – Chang Kaichek vai para Moscou em uma estadia que durou seis meses.
9 de agosto – Se inicia a greve de trabalhadores eletricistas do Porto de Veracruz
30 de agosto – Greve na Escola Nacional Preparatória, onde os pintores faziam os primeiros
murais do movimento muralista.
31 de agosto – Os EUA reconhecem o Governo de Obregón, depois de assinados os tratados
de Bucareli.
Setembro – Mariátegui inicia sua coluna na Revista Variedades, sob o nome de “Figuras e
aspectos da Vida Mundial”
9 de setembro – O PCM declara que apoiará a candidatura que reúna a maioria das
corporações camponesas e operária.
12 de setembro – Polícia prende mais de 2 mil comunistas na Bulgária. Os comunistas
decidem organizar a insurreição e no dia 28 a resistência comunista é derrotada e o Comitê
Revolucionário atravessa a fronteira.
20 de setembro – A CROM, na V Conferência Nacional aprova uma resolução para a
expulsão de comunistas, por se tratarem de “elementos subordinados ao governo russo”.
2 de Outubro – Haya de La Torre é preso, e após uma greve de fome é deportado pelo
Governo Lenguia. Oscar Herrera assume a reitoria da UPGP, e Mariátegui a direção da
Revista Claridad, da órgão das UPGP. Após passar por Cuba, Haya de La Torre alcança a
Cidade do México
Outubro – Constituição da Internacional Camponesa. Úrsulo Galván participa como
delegado das Ligas de Comunidades Agrárias do Estado de Veracruz.
8 de outubro – O PC alemão convoca a população para substituir o poder do Reichtag, pelo
governo soviético alemão. São violentamente reprimidos.
10-16 de Outubro – Congresso de fundação da Internacional Sindical Vermelha (Profintern),
em Moscou.
23-24 de outubro – Insurreição em Hamburgo.
Novembro – Mariátegui e Félix Del Valle anunciam o lançamento de uma revista com o
nome de Vanguarda “Revista Semanal de Renovação Ideológica. Voz dos Novos Tempos”.
9 de novembro – Hitler fracassa no golpe em Munique.
12 de novembro – Diaz Ramírez convoca o PCM a recolher fundos para um periódico
oficial, que depois será El Machete.
Dezembro – Tem início a luta política entre Stalin e Trotsky no seio do PCUS.
375
06 de dezembro –Tem início a insurreição de Adolfo De la Huerta no porto de Veracruz.
Camponeses das Ligas organizam guerrilhas para combater às tropas delahuertistas. Os
delahuertistas assassinam muitos comunistas. Úrsulo Galvan chega de Moscou e lidera os
camponeses, morreram 7 mil homens nos combates.
21 de dezembro – Juan Escudeiro é assassinado por tropas delahuertistas.
1924
1925
1926
Janeiro – O PCB lança a Revista Proletária, órgão teórico do Partido.
7 de janeiro – Arcebispo do México, Mora Del Rio, declara que empreenderá uma campanha
contra qualquer intenção de aplicar artigos constitucionais lesivos aos interesses da igreja.
Fevereiro – Chega como exilado político ao México, Julio Antonio Mella, com 23 anos.
7 de fevereiro - VI Pleno Ampliado da IC. Ser afirma a tática de Frente Única.
Abril – Aparece o livro de Octávio Brandão, Agrarismo e industrialismo, sob o pseudônimo
de Fritz Mayer.
27 de Abril – O dirigente Camponês de Michoacán Primo Tápia é assassinado.
4 de maio – Greve geral na Inglaterra. Chegaram a participar do movimento, 4 milhões de
operários.
12 de maio – Golpe de Pilsudski, na Polônia.
21-27 de maio – VI Congresso do PCM.
3 de junho – Camponeses das Ligas de Comunidades Agrárias do Estado de Veracruz são
baleados e mortos em Paso Bobo, Veracruz.
14 de junho – Calles aprova uma Lei Anticlerical.
20 de junho – Julio Mella, Olivia Zaldívar, Susana González, Rosálio Blackwell e Carlos
Becerra são presos em uma manifestação pela Liberdade de Sacco e Vanzetti.
4 de julho – Nova Manifestação em prol da liberdade de Sacco e Vanzetti, na Cidade do
México. Essas manifestações cresceriam em 30 de julho e 10 de agosto.
Setembro – Grupos Católicos levantam-se em armas no México. Ficaram conhecidos como
Cristeros, e mantiveram-se armados até 1929.
15-20 de novembro – I Congresso de Unificação das Organizações Camponesas da
República. 158 delegados presentes, representando 30 mil camponeses. Funda-se a Liga
Nacional Camponesa. (LNC)
25 de outubro – O presidium do CEIC retira Zinoviev da direção e Bukharin passa a atuar na
direção da IC.
Novembro – Marines dos EUA desembarcam na Nicarágua para combater Sandino. O
presidente mexicano, Calles, envia duas expedições a Nicarágua para apoiar os liberais.
Retornam após acordos com os norte-americanos, que tinham Manágua sitiada.
8 de novembro – Antônio Gramsci, dirigente comunista do PCI e da IC é preso na Itália.
Morreria em abril de 1937, pouco antes da data em que seria solto.
10 de novembro – Acontece o III Congresso de Ferroviários do México, que consegue
construir uma Confederação de trabalhadores dos transportes e das comunicações.
22 de novembro – VII Pleno Ampliado da IC: Condenação da oposição trotskista. Destituem
Zinoviev da CEIC.
19 de dezembro – o Senado mexicano aprova a reforma da Constituição para retirar o
princípio de não-reeleição.
378
1927
1928
1929
1930
1931
Janeiro – Heitor Ferreira Lima é eleito Secretário Geral do PCB.
12 de março – Prestes de declara comunista em carta escrita desde o exílio no Uruguai.
Maio – Arthur Ewert encontra Prestes no Uruguai.
Junho – Fernando Lacerda substitui Heitor Ferreira Lima na direção do PCB, que é
transferido para o nordeste.
Junho – Octávio Brandão e sua família são deportados para Alemanha.
1º de outubro – Luis Carlos Prestes viaja para Moscou.
383
Arquivos e bibliotecas consultadas:
Fontes
Periódicos consultados
384
Autocrítica. Tribuna de Debates do 3. ° Congresso do PCB.
La Correspondecia Sudamericana – Órgão do Secretariado Sul-americano da
Internacional Comunista
El Comunista – Órgão do PCM (1919-1920)
El Libertador – Órgão da Liga Antimperialista Latino-americana
El Machete – Organo del Partido Comunista de México
El Soviet - Órgão do Grupo Hermanos Rojos (1919)
Gale 's Magazine – Cidade do México. (1918-1921)
La Correspondence Internacionale – Órgão da Internacional Comunista em francês
Movimento Comunista – Mensário de Doutrina e Informação Internacional.
Revista Claridad – Organo de la Juventud Libre del Peru
Revista Nuestra Época – Revista Política e Literária
Spartacus. Semanário anarquista do Rio de Janeiro
Voz Cosmopolita – Órgão dos trabalhadores em hotéis, restaurantes, cafés e
Voz do Povo – Órgão da Confederação Operária Brasileira. Rio de Janeiro.
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408
Anexos
397
Traduzido do espanhol por Felipe Deveza de: FLORES MAGÓN, Ricardo, “El Pueblo Mexicano es
apto para el comunismo”, Regeneración, nº 53, Los Angeles: 2 set. 1911.
398
Juan Sarabia foi um dos fundadores do PLM (Partido Liberal Mexicano), conhecido como um dos
“precursores” da Revolução Mexicana, como são denominados os componentes do núcleo inicial do PLM
pela historiografia que trata a Revolução Mexicana. O PLM se dividiria entre os que abraçariam o
anarquismo e radicalizariam a luta, como Ricardo Flores Magón e os que depois se aliariam a Francisco
Madero, e vislumbravam apenas reformas liberais, como Juan Sarabia.
399
Gendarme aqui se refere a polícia, a força de repressão do Estado, mas tem uma conotação política, já
que está em francês, que em 1911 era a principal referência em termos de Revolução, tanto por causa da
Revolução Francesa, como pela Comuna de Paris (1871).
409
antipatia e desprezo; que toda pessoa que não ganha o sustento com o trabalho de suas
mãos é odiada.
Isto já é suficiente para uma revolução social de caráter econômico e
antiautoritário, mas existe mais. No México vivem quatro milhões de índios que até
vinte ou vinte cinco anos viviam em comunidades possuindo em comum as terras, as
águas e os bosques. O apoio mútuo era a regra nessas comunidades em que a
Autoridade só era sentida quando o agente da arrecadação de rendas fazia sua aparição
periódica ou quando os rurales400 chegavam em busca de varões para fazê-los ingressar
pela força no Exército. Nessas comunidades não havia juízes, nem alcaides401, nem
carcereiros, nem nenhuma porcaria402 dessa classe. Todos tinham direito à terra, à água
para a irrigação e ao bosque para a lenha e a madeira para construir os jacales403.
Os arados andavam de mão em mão, assim como as juntas de bois. Cada família
lavrava a extensão de terreno que calculava ser suficiente para produzir o necessário, o
trabalho de semeadura e colheitas se fazia em comum, reunindo-se toda a comunidade,
hoje para fazer a colheita de Pedro, amanhã para colher a de João e assim
sucessivamente. Para fabricar um jacal, colocavam mãos à obra todos os membros da
comunidade.
Estes simples costumes duraram até que, forte a Autoridade pela pacificação
completa do país, pôde garantir à burguesia a prosperidade de seus negócios. Os
generais das revoltas políticas receberam grandes extensões de terrenos; os fazendeiros
alargaram os limites dos seus feudos, os mais vis polítiqueiros404 obtinham terrenos
imensos como baldios, e os aventureiros estrangeiros obtiveram concessões de terras,
bosques, águas, de tudo, em fim, ficando nossos irmãos índios sem um palmo de terra,
sem direito a pegar do bosque nem o menor galho de uma árvore, na miséria mais
abjeta, despojados de tudo o que era deles.
Enquanto a população mestiça, que é a que forma a maioria dos habitantes da
400
Rurales é o nome popular da polícia rural durante o Governo de Porfírio Diaz, odiada pelos
camponeses e geralmente à serviço dos latifundiários da região em que atuava.
401
Alcaides é um cargo público comum em toda a América Latina espanhola, similar ao prefeito.
402
O termo original utilizado por Magón foi polilla, no dicionário refere-se a traça, mariposa, traduzimos
para porcaria, que não necessariamente refere-se a envelhecido, como poderia parecer se relacionássemos
a traça.
403
Jacal provém do nahuátl, xahcalli. Refere-se a casa simples, popular. “jacal. m. Vivienda pequeña
generalmente de un solo cuarto, construida con adobe, carrizos u otros materiales semejantes, y con techo
de paja. Xah-calli. De xámitl, adobe, calli, casa.” MONTEMAYOR, Carlos. Diccionario del Náhuatl en
Español del México. México: UNAM, 2009, p.76.
404
Originalmente politicastros em espanhol.
410
República Mexicana, com exceção da que habitava as grandes cidades e os povoados de
alguma importância, contava igualmente com terras comunais, bosques e águas livres da
mesma maneira que a população indígena. O apoio mútuo era igualmente a regra; as
casas se fabricavam em comum; a moeda quase não era necessária, porque havia
intercambio de produtos; mas se fez a paz, a Autoridade se robusteceu e os bandidos da
política e do dinheiro roubaram descaradamente as terras, os bosques, tudo.
Não faz quatro anos ainda podia-se ver nos jornais de oposição que o americano
X ou o alemão Y ou o espanhol Z haviam fechado a população inteira nos limites de
“sua” propriedade com a ajuda da Autoridade.
Vê-se, pois, que o povo mexicano é apto para chegar ao comunismo, porque o
tem praticado, ao menos em parte, desde faz séculos, e isso explica porque até quando
na sua maioria é analfabeta, compreende que melhor que fazer parte em farsas eleitorais
para elevar verdugos, é preferível tomar posse da terra, e a está tomando com grande
escândalo da ladrona burguesia.
Agora, só resta que o operário tome posse da fábrica, da oficina, da mina da
fundição, da estrada de ferro, do barco, de tudo, em uma palavra; que não se
reconheçam amos de nenhuma classe e esse será o final do presente movimento.
Adiante, Camaradas!
Ricardo Flores Magón
411
2º) Em conformidade com seu objetivo essencial - a luta contra a democracia
burguesa, na qual se trata de desmascarar a hipocrisia - o Partido comunista, intérprete
consciente do proletariado em luta contra o jogo da burguesia, deve considerar como
formando a chave de abóbada da (questão nacional, não os princípios abstratos e
formais, mas: 1º - uma noção clara das circunstâncias históricas e econômicas; 2º - a
dissociação precisa dos interesses das classes oprimidas, dos trabalhadores, dos
explorados, com rejeição à concepção geral dos pretensos interesses nacionais, que
significam, na realidade, os interesses das classes dominantes; 3º - a divisão mais clara e
precisa das nações oprimidas, dependentes, protegidas, e opressoras e exploradoras,
gozando de todos os direitos, contrariamente a hipocrisia burguesa e democrática que
dissimula a submissão (própria da época do capital financeiro e do imperialismo), pelo
poder financeiro e colonialista, da imensa maioria das populações do globo a uma
minoria de ricos países capitalistas.
3º) A guerra imperialista de 1914-1918 colocou em evidência diante de todas as
nações e todas as classes oprimidas do mundo a falsidade dos fraseados democráticos e
burgueses - o tratado de Versalhes, ditado pelas famosas democracias ocidentais,
sancionou, em relação às nações fracas, as violências mais covardes e mais cínicas do
que aquelas dos junkers e do kaiser em Brest-Litowsk. A Liga das Nações e a política da
Entente em seu conjunto apenas confirmam este fato e põem em andamento a ação
revolucionária do proletariado dos países avançados e das massas laboriosas dos países
coloniais ou dominados, levando assim à bancarrota as ilusões nacionais da pequena
burguesia quanto à possibilidade de uma vizinhança pacífica de uma igualdade
verdadeira das nações sob o regime capitalista;
4º) Resulta do que precede que a pedra angular da política da Internacional
Comunista, nas questões colonial e nacional, deve ser a reaproximação dos proletários e
trabalhadores de todas as nações e de todos os países para a luta comum contra os
proprietários e a burguesia. Pois essa reaproximação é a única garantia de nossa vitória
sobre o capitalismo, sem a qual não podem ser abolidas nem a opressão nacional, nem a
desigualdade;
5º) A atual conjuntura política mundial coloca na ordem do dia a ditadura do
proletariado; e todos os eventos da política mundial se concentram inevitavelmente em
torno de um centro de gravidade: a luta da burguesia internacional contra a República
dos Sovietes, que deve agrupar ao redor de si, de uma parte, os movimentos sovietistas
412
dos trabalhadores avançados de todos os países e, de outro lado, todos os movimentos
de emancipação nacional das colônias e das nacionalidades oprimidas que uma dura
experiência convenceu que não é saudável para elas ficarem fora de uma aliança com o
proletariado revolucionário e com o poder sovietista vitorioso sobre o imperialismo
mundial;
6º) Não se pode mais deixar de reconhecer ou proclamar a aproximação dos
trabalhadores de todos os países. Doravante é necessário perseguir a realização da união
mais estreita de todos os movimentos emancipatórios nacionais e coloniais com a
Rússia dos Sovietes, dando a esta união as formas correspondentes ao grau de evolução
do movimento proletário de cada pus, OU do movimento de emancipação democrático-
burguês entre os operários e os camponeses dos países atrasados ou das nacionalidades
atrasadas;
7º) O princípio federativo aparece para nós como uma forma transitória em
direção à unidade completa dos trabalhadores de todos os países. O princípio federativo
já mostrou praticamente sua conformidade com o objetivo perseguido, tanto no curso
das relações entre a República Socialista Federativa dos Sovietes russos e as outras
repúblicas dos Sovietes (Hungria, Finlândia, Letônia, no passado; Azerbaidjão e
Ucrânia, atualmente), como no próprio seio da República russa, em relação à
nacionalidade que não tinham antes nem Estado, nem existência autônoma (exemplo: as
repúblicas autônomas dos Bashkirs e dos Tártaros, criadas na Rússia soviética em 1919
e 1920);
8º) A tarefa da Internacional Comunista é estudar e verificar a experiência (e o
desenvolvimento ulterior) dessas novas federações baseadas na forma sovietista e sobre
o movimento sovietista. Considerando a federação como uma forma transitória em
direção à unidade completa, é necessário para nós buscar uma união federativa cada vez
mais estreita, levando em conta: 1º - a impossibilidade de defender, sem a mais estreita
união entre elas, as repúblicas soviéticas cercadas de inimigos imperialistas
infinitamente superiores por seu poderio militar; 2º - a necessidade de uma estreita
união econômica das repúblicas soviéticas, sem a qual a reedificação das forças
produtivas destruídas pelo imperialismo, a segurança e o bem-estar dos trabalhadores
não podem ser assegurados; 3º - a tendência à realização de um plano econômico
universal cuja aplicação regular será controlada pelo proletariado de todos os países,
tendência que se manifestou com evidência sob o regime capitalista e certamente deve
413
continuar seu desenvolvimento e chegar à perfeição no regime socialista;
9º) No domínio das relações sociais no interior dos Estados constituídos, a
Internacional Comunista não pode fazer o reconhecimento formal, puramente oficial e
sem consequências práticas, da igualdade das nações, com o que se contentam os
democratas burgueses que se intitulam socialistas.
Não é suficiente denunciar incansavelmente em toda propaganda a agitação dos
Partidos Comunistas - e do alto da tribuna parlamentar e fora dela -, as violações
constantes do princípio da igualdade das nacionalidades e dos direitos das minorias
nacionais, em todos os Estados capitalistas (a despeito de suas "constituições
democráticas) e necessário também demonstrar incessantemente que o governo dos
Sovietes só pode realizar a igualdade das nacionalidades, primeiro unindo os proletários
depois, o conjunto dos trabalhadores na luta contra a burguesia é necessário também
demonstrar que o regime dos sovietes assegura uma colaboração direta, por intermédio
do Partido Comunista a todos os movimentos revolucionários dos países dependentes ou
lesados em seus direitos (por exemplo, a Irlanda, os negros da América etc...) e as
colônias.
Sem esta condição particularmente importante da luta contra a opressão dos
países escravizados ou colonizados, o reconhecimento oficial de seu direito à autonomia
é apenas uma mentira, como vimos na 2ª Internacional.
10º) É a prática habitual não apenas dos partidos do centro da 2ª Internacional,
mas também dos que abandonaram esta Internacional para reconhecer o
internacionalismo em palavras e para substitui-lo, na realidade, na propaganda, na
agitação e na prática, pelo nacionalismo e pelo pacifismo pequeno-burgueses. Isto se
verifica também entre os partidos que hoje se intitulam comunistas. A luta contra este
mal e contra os preconceitos pequeno-burgueses mais profundamente consolidados (que
se manifestam sob formas variadas, tais como a diferença entre as raças, o antagonismo
nacional e o antissemitismo) adquire uma importância cada vez maior no problema da
transformação da ditadura proletária nacional que não existe apenas num país e que, por
consequência, é incapaz de exercer uma influência sobre a política mundial) em
ditadura proletária internacional (aquela que realizarão vários países avançados e que
serão capazes de exercer unia influência decisiva sobre a política mundial) se torna cada
vez mais atual. O nacionalismo pequeno-burguês restringe o internacionalismo ao
reconhecimento do princípio da igualdade das nações e (sem insistir sobre seu caráter
414
puramente verbal conserva intacto o egoísmo nacional, ao passo que o
internacionalismo proletário exige:
1º - A subordinação dos interesses da luta proletária em um pais ao interesse
desta luta no mundo inteiro;
2º - Da parte das nações que venceram a burguesia, o consentimento para os
maiores sacrifícios nacionais em função da derrubada do capital internacional. No país
onde o capitalismo já se desenvolveu completamente, onde existem partidos operários
formando a vanguarda do proletariado, a luta contra as deformações oportunistas e
pacifistas do internacionalismo, pela pequena burguesia, é também um dever imediato
dos mais importantes;
11º) Com relação aos Estados e países mais atrasados onde predominam
instituições feudais ou patriarcais-rurais, convém ter em vista:
1º - A necessidade da colaboração de todos os partidos comunistas com os
movimentos revolucionários de emancipação nesses países, colaboração que deve ser
verdadeiramente ativa e cuja forma deve ser determinada pelo partido comunista do
país, se ele existe no país em questão. A obrigação de sustentar ativamente esse
movimento cabe naturalmente, em primeiro lugar, aos trabalhadores da metrópole ou do
país em cuja dependência financeira se encontra o povo em questão;
2º - A necessidade de combater a influência reacionária e medieval do clero, das
missões Cristãs e outros elementos;
3º - É também necessário combater o pan-islamismo, o pan-asiatismo e outros
movimentos similares que tratam de utilizar a luta de emancipação contra o
imperialismo europeu e americano para tornar mais forte o poder dos imperialistas
turcos e japoneses, da nobreza, dos grandes proprietários de terras, do clero etc.;
4º - E de uma importância toda especial sustentar o movimento camponês nos
países atrasados contra os proprietários rurais, contra os resquícios OU manifestações
do espírito feudal; deve-se, antes de tudo, fazer um esforço para dar ao movimento
camponês um caráter revolucionário, para organizar, em todos os lugares onde seja
possível, os camponeses, e todos os oprimidos, em Sovietes e assim criar uma ligação
bastante estreita do proletariado comunista europeu com o movimento revolucionário
camponês do Oriente, das colônias e dos países atrasados em geral;
5º - É necessário combater energicamente as tentativas feitas pelos movimentos
emancipatórios que não são na realidade comunistas, nem revolucionários, para agitar
415
as bandeiras comunistas a Internacional Comunista deve sustentar os movimentos
revolucionários nas colônias e países atrasados apenas com a condição de que os
elementos mais puros dos partidos comunistas – comunistas de fato – sejam agrupados e
instruídos sobre suas tarefas particulares, isto é, sobre sua missão de combater o
movimento burguês e democrático. A Internacional Comunista deve estabelecer relações
temporárias e formar também uniões com os movimentos revolucionários nas colônias e
países atrasados, Sem todavia fundir-se com eles, e conservando sempre o caráter
independente de movimento proletário ainda que em sua forma embrionária;
6º - É necessário desmascarar-se para as massas laboriosas todos os países, e
sobretudo dos países e nações atrasadas a mentira organizada pelas potências
imperialistas, com a ajuda das classes privilegiadas - nos países oprimidos as quais
sempre apelam para a existência dos Estados politicamente independentes que, na
realidade, são vassalos -, do ponto de vista econômico, financeiro e militar. Como
exemplo gritante das mentiras praticadas com relação a classe trabalhadora nos países
subjugados pelos esforços combinados do imperialismo dos aliados e da burguesia desta
ou daquela nação, podemos citar o caso dos sionistas na Palestina, onde sob pretexto de
criar um Estado judeu, num país onde os judeus são em número insignificante, o
sionismo abandonou a população de trabalhadores árabes à exploração da Inglaterra. Na
conjuntura internacional atual não há saída possível para os povos fracos e subjugados
fora da federação das repúblicas soviéticas.
12º) A oposição secular das pequenas nações e das colônias às potências
imperialistas fez nascer, entre as massas trabalhadoras dos países oprimidos, não
somente um sentimento de rancor para com as nações opressoras cm geral, mas também
um sentimento de desconfiança em relação ao proletariado dos países opressores. A
infame traição dos chefes oficiais da maioria socialista em 1914-1919, quando o
socialismo chauvinista qualificou de "defesa nacional" a defesa dos "direitos" de "sua
burguesia", a submissão das colônias e dos países financeiramente dependentes, só pode
tornar essa desconfiança completamente legítima. Os preconceitos só podem
desaparecer com o desaparecimento do capitalismo e do imperialismo nos países
avançados, e depois da transformação radical da vida econômica dos países atrasados,
sua extinção será muito lenta, de onde o dever do proletariado consciente de todos os
países de se mostrar particularmente circunspecto diante dos resíduos de sentimento
nacional dos países oprimidos durante um longo tempo, e de fazer também algumas
416
concessões úteis a fim de promover o desaparecimento desses preconceitos e dessa
desconfiança. A vitória sobre o capitalismo está condicionada pela boa vontade de
entendimento do proletariado cm primeiro lugar, e depois das massas laboriosas de
todos os países do mundo e de todas as nações.
B - Tese Suplementares
1º) A fixação exata das relações da Internacional Comunista com o movimento
revolucionário nos países que são dominados pelo imperialismo capitalista, em
particular da China, é uma das questões mais importantes para o 2º Congresso da
Internacional Comunista. A revolução mundial entra num período para o qual é
necessário um conhecimento exato dessas relações. A grande guerra europeia e seus
resultados mostraram muito claramente que as massas dos países subjugados fora da
Europa estão ligadas de uma maneira absoluta ao movimento proletário da Europa, e
isto é unia consequência inevitável do capitalismo mundial centralizado;
2º) As colônias constituem uma das principais fontes de força do capitalismo
europeu.
Sem a possessão dos grandes mercados e dos grandes territórios de exploração
nas colônias, as potências capitalistas da Europa não poderão se manter por longo
tempo.
A Inglaterra, fortaleza do imperialismo, sofre de superprodução há mais de um
século. Apenas conquistando territórios coloniais, mercados suplementares para a venda
da superprodução e fontes de matérias-primas para sua indústria crescente, a Inglaterra
consegue manter, apesar dos problemas, seu regime capitalista.
É pela escravidão de centenas de milhões de habitantes da Ásia e da África que o
imperialismo inglês chegou a manter até o presente momento o proletariado britânico
sob a dominação burguesa.
3º) A mais-valia obtida pela exploração das colônias é um dos apoios do
capitalismo moderno. Durante muito tempo essa fonte de benefícios não será suprimida,
e será difícil para a classe operária vencer o capitalismo.
Graças à possibilidade de explorar intensamente a mão-de-obra e as fontes
naturais de matérias-primas das colônias, as nações capitalistas da Europa procuraram,
não sem sucesso, evitar por esses meios sua bancarrota iminente.
O imperialismo europeu conseguiu em seus próprios países fazer concessões
417
sempre maiores a aristocracia operária. Procurando sempre, de um lado, manter as
condições de vida dos operários nos países subjugados a um nível muito baixo, ele não
recua diante de nenhum sacrifício e consente em sacrificar a mais-valia em seu próprio
país; os trabalhadores das colônias podem esperar.
4º) A supressão pela revolução proletária do poderio colonial da Europa
derrotará o capitalismo europeu. A revolução proletária e a revolução das colônias
devem concorrer, em certa medida, para o resultado vitorioso da luta.
A Internacional Comunista deve então estender o círculo de sua atividade. Ela
deve nutrir relações com as forças revolucionárias que lutam pela destruição do
imperialismo nos países econômica e politicamente dominados;
5º) A Internacional Comunista concentra a vontade do proletariado
revolucionário mundial. Sua tarefa é organizar a classe operária do mundo inteiro para a
derrubada da ordem capitalista e o estabelecimento do comunismo.
A Internacional Comunista é um instrumento de luta que tem por tarefa agrupar
todas as forças revolucionárias do mundo.
A 2ª Internacional, dirigida por um grupo de políticos e penetrada de concepções
burguesas, não dá nenhuma importância à questão colonial. O mundo não existe para
além dos limites da Europa. Ela não viu a necessidade de unir o movimento
revolucionário dos outros continentes. Em vez de prestar ajuda material e moral ao
movimento revolucionário das colônias, os membros da 2º Internacional se tornaram
imperialistas.
6º) O imperialismo estrangeiro que pesa sobre os povos orientais impede-os de
se desenvolverem social e economicamente, simultaneamente com as classes da Europa
e da América.
Graças à política imperialista que entravou o desenvolvimento industrial das
colônias, uma classe proletária no sentido próprio da palavra não pôde surgir, ainda que
nos últimos tempos os teares hindus tenham destruído pela concorrência os produtos das
indústrias centralizadas dos países imperialistas.
A consequência disso foi que a grande maioria do povo retornou para o campo e
foi obrigada a se consagrar ao trabalho agrícola e à produção de matérias-primas para
exportação.
Outra consequência foi uma rápida concentração da propriedade agraria nas
mãos de grandes proprietários rurais ou do Estado. Desta maneira, se criou uma massa
418
poderosa de camponeses sem terra. E a grande massa da população se mantém na
ignorância.
O resultado desta política é que, nesses países onde o espírito revolucionário se
manifesta, ele encontra expressão apenas na classe média culta.
A dominação estrangeira impede o livre desenvolvimento das forças
econômicas. Por isso, sua destruição é o primeiro passo da revolução nas colônias e,
portanto, a ajuda prestada à destruição da dominação estrangeira nas colônias não é, na
realidade, uma ajuda prestada ao movimento nacionalista da burguesia hindu, mas a
abertura de caminhos para o proletariado oprimido.
7º) Nos países oprimidos existem dois movimentos que, a cada dia, se separaram
mais: o primeiro é o movimento burguês democrático nacionalista que tem um
programa de independência política e de ordem burguesa; o outro é aquele dos
camponeses e dos operários ignorantes e pobres por sua emancipação de toda espécie de
exploração.
O primeiro tenta dirigir o segundo e nisso tem sucesso em certa medida. Mas a
Internacional Comunista e os partidos que a ela pertencem devem combater esta
tendência e procurar desenvolver o sentimento de classe independente nas massas
operárias das colônias.
Uma das maiores tareias para atingir esse fim é a formação de Partidos
Comunistas que organizem os operários e os camponeses e os conduzam à revolução e
ao estabelecimento da República sovietista.
8º) As forças do movimento de emancipação nas colônias não estão limitadas ao
pequeno círculo do nacionalismo burguês democrático. Na maioria das colônias já
existe um movimento social-revolucionário ou dos partidos comunistas em estreita
relação com as massas operárias. As relações da Internacional Comunista com o
movimento revolucionário das colônias devem servir a esses partidos ou grupos, pois
eles são a vanguarda da classe operária. Se eles são frágeis hoje, eles representam,
contudo, a vontade das massas e as massas os seguirão no caminho revolucionário. Os
partidos comunistas dos diferentes países imperialistas devem trabalhar em contato com
esses partidos proletários das colônias e prestar-lhes ajuda material e moral.
9º) A revolução nas colônias, em seu primeiro estágio, não pode ser uma
revolução comunista, mas se desde o seu início a direção estiver nas mãos de uma
vanguarda comunista, as massas não estarão dispersas e, nos diferentes períodos do
419
movimento, sua experiência revolucionária só fará crescer.
Seria certamente um grande erro desejar aplicar imediatamente nos países
orientais os princípios comunistas à questão agrária. Em seu primeiro estágio, a
revolução nas colônias deve ter um programa que comporte reformas pequeno-
burguesas, tais como a divisão das terras. Mas não decorre necessariamente que a
direção da revolução deva ser abandonada à democracia burguesa. O partido proletário
deve, ao contrário, desenvolver unia propaganda poderosa e sistemática em favor dos
Sovietes e organizar Sovietes de camponeses e operários. Esses Sovietes deverão
trabalhar em estreita colaboração com as repúblicas sovietistas dos países capitalistas
avançados para chegar à vitória final sobre o capitalismo no mundo inteiro.
Também as massas dos países atrasados, conduzidas pelo proletariado consciente
dos países capitalistas desenvolvidos, chegarão ao comunismo sem passar pelos
diferentes estágios do desenvolvimento capitalista.
420