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III Encontro Nacional de Estudos da Imagem

03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

A REBECCA, O REBECO E A RABECA:


SÁTIRA E CARICATURA DE VARGAS NA REVISTA CARETA (1946-50)

Wagner Cabral da COSTA


Departamento de História / UFMA
Doutorando em História Social / UFC
wagner-cabral@uol.com.br

Palavras-chave: Getúlio (Rebeco) Vargas, revista Careta, cultura política udenista.

1. Uma charge, uma interpretação e algumas dúvidas


Num interessante artigo sobre as representações cômicas da República, Elio Chaves
FLORES analisa, numa passagem, a “permanência da imagem getuliana” no pós-1945 por
meio de uma charge do cartunista Théo, publicada em agosto de 1947 (figura 1). Segundo o
historiador, as imagens de Getúlio Vargas “perseguem” o então presidente Dutra em todos os
locais, tanto públicos quanto privados, sugerindo uma “leitura privatista do devir
republicano”, a “Reprivata”, numa paródia característica da “comicidade brasileira”, que
desvenda a presença do público no privado. Complementando esta idéia, o autor afirma:
O último quadro da caricatura parece-me por demais sugestivo das relações que
firmaram a expressão “pai dos pobres”: Jeca, alcunha do homem pobre e sem
instrução, vê-se refletido no espelho do lavabo de Dutra, na imagem de Getúlio.
Então, o homem pergunta ao “friorento” presidente: “– Mas até aqui, neste lugar
solitário, ‘tem’ o retrato do Rebeco?!” E Dutra responde: “– Nem por um minuto,
Jeca, devo perdê-lo de vista...”. A própria familiaridade de tratamento do homem do
povo para com Getúlio, o apelido Rebeco, a imagem espelhar de um no outro seria
retrabalhada na memória do caricaturista pela jocosidade intimista. O autor deixa-se
levar para um passado quente e recente – quinze anos de República em mãos
getulistas –, quando parece ter se afirmado no imaginário popular a figura de Getúlio
como o grande guia da República brasileira... O intimismo da última cena sugere,
pois, uma aproximação com a ideologia estadonovista.1

Contudo, ao analisarmos atentamente a charge, algumas questões surgiram, suscitando


ambigüidades e colocando em dúvida a interpretação proposta por FLORES. Em primeiro
lugar, o apelido: por quê, afinal de contas, Vargas é chamado de Rebeco? Elio FLORES não
fornece nenhuma indicação da origem do apodo, além de interpretá-lo como sinal de
intimidade do Jeca em relação ao “pai dos pobres”, bem como de aproximação com a
“ideologia estadonovista” (o trabalhismo).2 Em segundo lugar, o texto da charge, pois Dutra
afirma a necessidade de nunca perder Vargas de vista, em consonância com o próprio título
(Remember – lembrar, recordar), o que parece se contrapor à idéia de que as imagens de
Vargas “perseguem” o presidente. Em terceiro lugar, a imagem em si provoca dúvidas,

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especialmente o último quadro da narrativa visual, pois, por um lado, nada indica que a
imagem de Getúlio espelha a imagem do Jeca (ao contrário, é mais uma imagem de Vargas,
aliás, “a” imagem), e, por outro lado, na seqüência interna da charge, esta é uma imagem
diferente de Vargas: com boné e máscara (semelhante às duas caricaturas que emolduram o
título), ambos remetendo à convenção imagética de representação de bandidos nas revistas em
quadrinhos da época.

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Assim, com essas dúvidas em mente, confrontamos a interpretação de FLORES com


os dados de nossa própria pesquisa sobre os usos e funções da sátira e da caricatura na cultura
política brasileira do pós-guerra, especificamente com o levantamento sistemático das charges
e caricaturas da revista Careta.3

2. Um apelido e a imigração de imagens


A primeira dúvida desfeita foi quanto ao apelido (até então desconhecido por nós). Em
artigo sobre a trajetória do político e jornalista Carlos Lacerda, um dos fundadores e
dirigentes da UDN (União Democrática Nacional), o também jornalista Sebastião JORGE
destaca a capacidade de Lacerda de cunhar “apelidos e expressões maliciosas” para criticar e
ridicularizar seus adversários, a exemplo do PCB, cujos jornais Folha do Povo e Tribuna
Popular, alcunhou de "Rolha do Povo" e "Mentira Popular". Numa referência ao filme
Rebecca, a mulher inesquecível (Alfred Hitchcock, 1940), Carlos Lacerda chamava Getúlio
Vargas de Rebeco, o ditador inesquecível, cujos adeptos eram os rebequistas.4
Ora, na película (ganhadora do Oscar de Melhor Filme em 1940) conta-se a estória de
uma jovem (a bela Joan Fontaine, no papel da 2ª Mrs. de Winter) que é assombrada pelo
espectro da 1a esposa do marido (Rebecca, uma personagem maléfica e impostora), a qual é
onipresente ao longo da trama de morte e mistério. Numa sequência crucial da narrativa, antes
de um baile à fantasia, a jovem Mrs. de Winter é enganada e levada pela governanta a copiar
o vestido de uma ancestral da família (Lady Caroline de Winter), o qual, depois descobre-se,
fora usado por Rebecca numa festa anterior, provocando um sério conflito entre o casal.
A cena (figura 2) evoca o “poder do figurativo e do figural”, que relaciona imagem e
pensamento, imagem e idealidade (no caso, o poder e a tradição familiar) e desvela a
“potência da imagem”. Nas palavras de Jacques AUMONT, “trata-se de atribuir um lugar
justo, na imagem, ao poder da idéia”, porque “a imagem é o que é por condensar o
pensamento humano” e tornar “visível o pensamento”. Assim, segundo o autor, “as imagens
migram também, principalmente ou unicamente, em virtude de uma força que lhes pertence”,
de “um poder da ordem do figural”, cuja capacidade de disseminação “liga interminavelmente
os filmes..., incluindo a sua base literária, a toda a cultura do mundo”.5
Uma vez difundida, a imagem hitchcockiana passa a fazer parte de um “fundo
imagético a pilhar” (AUMONT, 1996, p.137), sendo tomada de empréstimo e ressignificada,
sofrendo um deslocamento do plano fílmico e ficcional (pessoal, psicológico, dramático) para
o plano histórico e político, em que se destaca a onipresença e negatividade do legado
autoritário de Vargas (a “herança maldita” do ditador inesquecível).

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Dessa maneira, no artigo que deu origem ao apelido (redigido como uma carta-
exortação ao presidente Dutra), o jornalista Carlos Lacerda reconta o filme (exibido há poucos
anos e, portanto, ainda vivo na memória social), afirmando que, na mansão de Winter, por
toda parte encontra-se a marca da falecida esposa e “uma governanta odiosa rasteja pelos
cantos a sua vil presença, atropelando a felicidade da jovem, da ingênua segunda esposa”. Tal
recordação serve para estabelecer um paralelo entre o drama-suspense de Hitchcock e a
experiência do general Dutra na mansão do Catete (sede da Presidência da República):
Veja V. Exa. que singular identidade existe entre a situação psicológica do governo de
V. Exa. e a da família de Winter. V. Exa. matou Rebeco, o ditador. Alguns dizem que
V. Exa. matou sozinho. O PSD garante que V. Exa. não matou, apenas aleijou. O fato,
porém, incontestável, é que V. Exa. participou do massacre simbólico de 29 de
outubro [data da deposição de Vargas, com a queda do Estado Novo]... Convocou
núpcias, então, com a Democracia. E lá vai V. Exa., tan bien que mal, convivendo
com a Democracia. Não tem V. Exa. apenas uma, mas várias governantas sinistras
[antigos auxiliares da ditadura]... E assim o senador Rebeco se faz presente, a cada
momento, nos atos de V. Exa. Descuidoso e lírico na súbita paixão de que V. Exa. se
tomou pela adolescente Democracia, não crê V. Exa. que a pobrezinha sofre o cerco
de Rebeco, da marca inapagável de Rebeco, o ditador inesquecível... As governantas
da mansão... [querem] fazer, afinal, com que por sugestões da lembrança do antigo
ditador, V. Exa. modifique o enredo [da Constituinte], ressuscitando Rebeco em seus
métodos e práticas, para trucidar a nova, a descuidosa, a frágil menina que V. Exa.,
quase pela força, mas com promessas calorosas, desposou a 2 de dezembro [de 1945 -
dia das eleições presidenciais]. Cuide-se V. Exa., senhor general. Livre-se dos seus
inimigos íntimos... Exorcize o fantasma de Rebeco. Afaste tudo o que do Inesquecível
existe ainda no palácio do Catete e na consciência de V. Exa.6

Uma vez migrado do cinema e apropriado por Carlos Lacerda, o apodo de Rebeco
passou a ser compartilhado pela cultura política da época, espalhando-se na forma de outros

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artigos, de boatos, piadas e chistes maldosos, num tom nitidamente anti-varguista, a evocar
criticamente a continuidade do Estado Novo, seja por meio da presença de antigos expoentes
da ditadura no governo Dutra (as “governantas”), seja através da persistência das pretensões
autoritárias de Getúlio. O apelido, no interior da cultura política, cumpria a função de
estabelecer uma leitura do passado recente do país (o período 1930-45) na perspectiva do
liberalismo udenista.7 Tratava-se, assim, de uma idéia-imagem de combate e de intervenção
no debate político, e não sinal de intimidade, familiaridade e identidade. Portanto, Rebeco, o
ditador inesquecível, era o signo pelo avesso do mito getulista, um contraponto imagético ao
pai dos pobres, elaborado pelo imaginário trabalhista.8

3. A problemática, a série e o Inesquecível


Contudo, se no filme de Hitchcock a personagem Rebecca não foi representada (sua
onipresença ausente apenas se imiscuiu visualmente na imagem alegórica do quadro de Lady
Caroline de Winter, bem como no vestido de festa de Joan Fontaine); já em terras brasileiras,
o personagem Rebeco logo ganhou feição e expressão nas charges do caricaturista Théo.
Segundo o Jornal da ABI, “foi no traço inconfundível de Théo” que Getúlio Vargas “ganhou
contornos de personagem de tiras cômicas. Não raro, o desenhista inseria Getúlio - que era
seu alvo preferido - em pequenas historietas que satirizavam determinado momento político”.9
Na avaliação de Rodrigo MOTTA, Théo foi “um dos grandes nomes do desenho
cômico no Brasil”, com um estilo em que “os políticos aparecem trajados de modo sóbrio,
quase sempre usando ternos ou fraques, e o cenário e a composição lembram a piada de salão,
inclusive pela linguagem comedida e o humor sutil e moderado” (como veremos, toda regra
tem sua exceção...).10 O próprio Carlos Lacerda não escapou da pena dos caricaturistas, sendo
representado na sua própria pessoa ou ainda na figura do Corvo (figura 3), ave agourenta e de
mau presságio na cultura popular, uma das imagens possíveis para quem vivia a cabalar
conspirações contra presidentes da República.11
Colaborador ativo da revista Careta durante o período em foco, quase sempre
assinando as capas do semanário humorístico, Théo produziu regularmente, a partir do 2º
semestre de 1946, algumas dezenas de charges do personagem Rebeco (às vezes, Senador
Rebeco, cargo para o qual foi eleito nas eleições constituintes de 1946), permitindo a
formação e análise de uma série imagética. A metodologia de análise de séries é destacada por
Ulpiano MENESES, que adverte, porém, para a necessidade de se conjugar o estudo das
séries com a construção de problemáticas históricas, a serem pesquisadas com o recurso a
todo e qualquer tipo de fonte pertinente (e não somente a fonte visual): “As séries

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iconográficas não devem constituir objetos de investigação em si, mas vetores para a
investigação de aspectos relevantes na organização, funcionamento e transformação de uma
sociedade”.12

Em nosso caso, a problemática foi construída em torno da análise dos múltiplos usos,
funções e significados da sátira e da caricatura na política brasileira do pós-guerra, em sua
vinculação com as disputas eleitorais e a cultura política liberal-udenista. Trata-se, portanto,
de pensar a “ação” (agency) das imagens, sua intervenção nas lutas simbólicas pelo poder, em
conjugação com todo o circuito de produção, circulação, migração e recepção / apropriação
dessas mesmas imagens (MENESES, 2003, p.15). Nossa pesquisa busca interpretar as
charges e caricaturas como um ato político, um ato de imagem (acte d´image), na expressão
de Georges DIDI-HUBERMAN, imagens cujo poder e potência foram sensivelmente
aumentados com a modernidade, a partir dos séculos XIX e XX.13
Em conseqüência, a pesquisa procura escapar das armadilhas de utilização das
imagens como simples ilustração ou informação, sem a produção de conhecimento histórico
efetivamente novo. Daí a preocupação de “não se limitar à procura do sentido essencial de
uma imagem ou de seus sentidos originais, subordinados às motivações subjetivas do autor...
É necessário tomar a imagem como um enunciado, que só se apreende na fala, na situação”
(MENESES, 2003, p.28). Nesse sentido, a noção de intencionalidade, embora importante, não
esgota as possibilidades analíticas, devendo ser redimensionada, segundo Michael
BAXANDALL, para a noção de “interesse visual intencional”, em que a “intenção não é um
estado de espírito [do autor] reconstruído”, nem “um estado psicológico”, mas sim “uma

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relação entre o objeto [o quadro, a charge] e suas circunstâncias”, “uma relação entre o objeto
e as condições em que foi produzido”.14
No caso da série de imagens do Rebeco, podemos afirmar que sua intencionalidade é
cruzada, situando-se na convergência, entrechoque e relacionamento de múltiplos atores,
desde a apropriação / migração inicial operada por Carlos Lacerda, a atuação da UDN, a
disseminação e recepção do apelido pela opinião pública, as inclinações pessoais do
caricaturista Théo (ao se reapropriar, por seu turno, do apelido-imagem e renomear sua forma
caricatural), além da política editorial da revista Careta, com um nítido posicionamento
contra Vargas e a herança autoritária e negativa do Estado Novo, assumindo (com algumas
reservas críticas) a defesa do udenismo, a exemplo da candidatura do Brigadeiro Eduardo
Gomes à Presidência da República em 1945.

Aliás, não custa mencionar que um dos slogans de campanha do Brigadeiro era
“Lembrai-vos de 1937” (figura 4), tendo a UDN organizado inclusive um “concurso popular
para cartazes” (com prêmio de 3.000 cruzeiros), dando como sugestão de cartaz um homem
de boca e olhos vendados (FERREIRA, 2005, p. 70).15 Por meio da representação da mordaça
e da censura impostas pelo Estado Novo através do DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda) – cuja contraparte foi a intensa construção do mito varguista –, a campanha da
UDN propunha aos cidadãos brasileiros um imperativo ético-político, o dever de recordar, a

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tarefa de não esquecer, numa disputa pela memória social, pensada como um requisito
fundamental do processo de (re)democratização, com a afirmação dos princípios liberais.
Dessa inesquecibilidade da ditadura do Estado Novo, bem como do ditador, se
encarregou, dentre outros sujeitos políticos, o caricaturista Théo (e, por conseguinte, a revista
Careta), produzindo a série iconográfica do Rebeco, com uma obrigação quase compulsiva e
obsessiva a partir de julho de 1946 (vale ressaltar: pouco mais de um ano antes da charge
Remember), estando o personagem presente na maior parte das edições do semanário
humorístico. Trata-se, portanto, de um ato de imagem, de uma intervenção política, mas
também de uma convenção de representação, com a qual o público se familiarizou a partir de
então, compartilhando os mesmos códigos culturais e constituindo uma “comunidade de
leitores” específica,16 para a qual não haveria estranhamento algum do Rebeco, cujas
visibilidade, legibilidade e significação estavam inscritas no pertencimento à série.

4. A descrição da série
Como a explicação e a descrição de um quadro (ou de uma charge) são, em larga
medida, representações do que pensamos a respeito do quadro ou da charge (BAXANDALL,
2006, p. 31-7), passemos à análise de alguns elementos da série Rebeco.

Em primeiro lugar, é importante salientar a conjugação entre o visível e o dizível,


entre legibilidade e visibilidade, presente na maioria das charges, colocando a necessidade de
uma dupla leitura, que evoca a fórmula elaborada pelo pintor Nicolas Poussin: “Leia a história
e o quadro”. Proposta que o historiador Louis MARIN afirma ter “a força de programa teórico
e prático relativo à pintura”,17 em que o texto muitas vezes procura instruir a leitura da

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imagem e vice-versa, numa interação recíproca que compreende ainda o extra-textual (hors-
texte), o tempo do acontecimento, seja ele uma crise de abastecimento de trigo (figura 5 – a
primeira aparição de Rebeco, salvo engano) ou uma reunião de rebequistas (figura 6),
selecionando “os momentos significantes do acontecimento tendo em vista sua montagem no
espaço de um único quadro”, operando, portanto, uma “síntese temporal”.18
Em algumas charges, a representação do tempo é efetuada por meio da
seqüencialidade (figura 1), capturando uma sucessão de instantes de modo a configurar uma
narrativa visual, num “vínculo quase automático entre série, sucessão e narração”, que
produziria, na perspectiva de Jacques AUMONT (2004, p. 94-5), um “efeito de diferença: um
efeito cognitivo, quase consciente, que consiste na reconstrução, pelo espectador, daquilo que
‘falta’ entre as imagens” (grifos do autor).
No caso da seqüência de imagens da figura 1, o efeito de diferença é construído de
duas maneiras: a) na passagem do espaço público (o gabinete presidencial, a reunião com um
embaixador estrangeiro, a festa social) para o espaço privado (a sala de jantar, o quarto, o
banheiro); e b) no último quadro, pela interação de três elementos, da ordem tanto do visual
quanto do textual: a mudança do estatuto da imagem de Vargas (para o gângster); a presença
“invasora” e disruptiva do Jeca (surgido do nada e sem qualquer razão aparente, vindo de
“fora do quadro”); o diálogo incitado pelo Jeca, inquirindo as razões de “ter” um retrato de
Rebeco até no espaço mais íntimo e solitário da privacidade presidencial.
Aliás, o Jeca não pode ser simplesmente visto como um ingênuo “homem do povo”
(“pobre e sem instrução”), pois o personagem também possui sua própria série iconográfica,
sua própria história. Ao analisar as diferentes versões do Jeca, Márcio MALTA destaca que a
representação do personagem foi ambígua: ás vezes, surgia “um Jeca submisso e passivo”,
mas, em outras ocasiões, as charges “carregam uma forte crítica social e normalmente vem
acompanhada de perguntas, a princípio ingênuas, mas que carregam em seu conteúdo a
insatisfação com o fato político em questão” (grifo nosso).19 A “invasão” do espaço da
representação pelo Jeca e a pergunta efetuada nada têm de inocentes...
Um segundo aspecto relevante da série é a composição do personagem Rebeco no
traço caricatural de Théo. Na maioria das charges, o rosto de Rebeco é representado como na
figura 7: cabeça relativamente grande, testa larga, cabelos ralos, sobrancelhas grossas, nariz
adunco, bochechas redondas, queixo proeminente, com óculos e o indefectível charuto na
boca. Aliás, abrindo um breve parêntese, a metamorfose de Rebeca a Rebeco, ao resgatar o
vínculo matriz com a imagem figural de Hitchcock, consistiu numa elegante solução artística
para a questão do irrepresentado (aquilo que não foi representado, que nunca foi visto). Na

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ausência de um referente visual para a personagem Rebecca (que não aparece em momento
algum do filme), o caricaturista utilizou o recurso da proximidade fônica (Rebecca  rabeca)
para elaborar sua metamorfose a partir do instrumento, em dupla leitura musical. [E que
inspirou, ademais, o trava-língua de nosso título...]

Quanto ao corpo de Rebeco, este é atarracado, baixo e gordo, vestindo-se de “modo


sóbrio”, com terno e gravata (figuras 5 e 6). Em uma caricatura, o corpo é de um animal, um
gafanhoto, “uma praga de prestígio universal”, conforme a legenda. Já em outras, a
vestimenta pode variar, conforme as circunstâncias próprias do contexto da charge. Assim, o
Senador Rebeco pode aparecer vestido como um gaúcho (com o traje completo, chamado de
pilcha: botas, bombacha, lenço no pescoço, chapéu, pala), ou de calção e camiseta (remando
num bote ou pescando), ou apenas de calção, ou como um palhaço de circo.

5. O Rebeco gângster e o “instante pregnante” da caricatura


Contudo, a metamorfose mais significativa no interior da série iconográfica foi o
surgimento do Rebeco gângster (figura 8), em todas as edições de julho e na edição de 02 de
agosto de 1947 (quando foi publicada a charge Remember), constituindo uma subsérie
específica. A indagação acerca das razões dessa mutação nos permite pensar e agregar mais
um “nível de legibilidade” das charges (MARIN, 2001, p. 131).
Uma pista (chave de leitura) importante é fornecida pela própria revista Careta, na
mesma edição em que apareceu pela primeira vez o Rebeco gângster (figura 9). Na coluna “A
comédia infinita”, assinada pelo sarcástico e irônico “espírito de porco”, se faz uma avaliação
dos últimos movimentos políticos de Getúlio:
O EX-USURPADOR Rebeco Vargas é grande amigo e admirador do presidente
Dutra, seu ex-ministro da guerra durante grande parte do curto período de 15 anos. De
acordo com as declarações que fez em seu último discurso, Rebeco lhe dedica a maior
estima, admiração e lealdade (principalmente lealdade...). Como prova irrecusável dos
nobres propósitos que o animam, Rebeco Vargas promoveu o último levante de
sargentos na Vila Militar, que, ao contrário do que ficou apurado em inquérito, não

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tinha por finalidade depor o atual chefe do governo, pelo contrário, seu escopo era
outro, era impedir que o atual presidente fosse derrubado do poder... Foi com a mesma
finalidade que Rebeco uniu-se aos extremistas no Rio Grande do Sul e em mais outros
cinco Estados, forçando a inclusão de dispositivos parlamentaristas nas constituições
desses Estados, com o visível intuito de criar o “empeachment”. Como salta aos olhos
de qualquer um, Rebeco está muito bem intencionado... Diante de tantas provas de
lealdade, amizade e interesse, o general Dutra deve pensar com os seus botões: Livrai-
me, oh Deus, dos meus amigos que dos inimigos me livrarei eu próprio! 20

Assim, o aparecimento do Rebeco gângster precisa ser pensado à luz das


circunstâncias históricas específicas daquele momento, das relações de força entre os
diferentes sujeitos políticos naquela conjuntura de crise político-militar do governo Dutra
(julho e agosto de 1947), em que a fragilidade da recém-instaurada democracia e de suas
instituições é motivo de preocupação constante, e o risco de um retrocesso, com a volta do
autoritarismo, converteu-se em dado da experiência social (pelo menos um grupo político, os
comunistas, já tinha plena consciência da reviravolta da conjuntura nacional e internacional,
com o início da Guerra Fria e a posterior decretação da ilegalidade do PC, em abril de 1947).
Em sua caracterização, o Rebeco conspirador incorporou duas convenções usuais na
representação de bandidos, a máscara e o boné xadrez (presente também na imagem
estereotipada e racista do ladrão negro, pobre e analfabeto, com um revólver numa mão e um
saco de furtos na outra, num contraponto entre “criminosos comuns” e “criminosos de alta
patente” – figura 8). Mas o detalhe crucial do Rebeco gângster é a bomba nas mãos e o
charuto aceso na boca, afirmando sua disposição de, a qualquer momento, e seja em aliança

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com quem for (a Aliança Liberal, o Integralismo dos “verdes”, o “queremismo”, os militares),
“explodir” o governo constituído e promover o “assalto ao poder” (figura 9).

Contudo, na representação do tempo por meio da seqüencialidade não existe um efeito


de diferença, mas, ao contrário, um efeito de crescendo, continuidade e intensificação do
golpismo, das guerras de bastidores, da ausência de escrúpulos, das deslealdades e rasteiras
nos aliados (“pescados” como “pirarucus”). Efeito de crescendo que se prolonga tanto no
tempo (caso vivesse 100 anos), quanto no espaço imaginário das “profundas do Averno”

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(possivelmente com Rebeco de asas a conspirar com anjos e demônios), reafirmando a


obrigação de não esquecer, o imperativo ético-político da recordação: Lembrai-vos de 1930,
1934, 1937, 1945, 1947...
O continuum temporal representado na caricatura articula passado, presente e futuro
numa idéia-imagem: “Se Vargas agiu assim antes, vai agir assim no futuro. Ou melhor, está
conspirando um golpe agora, nesse exato momento”. A faceta de Getúlio Vargas que adquire
relevo na charge não é a do “político populista”, que ilude e manipula as “massas populares”
em favor de seu projeto de poder (mesmo que a citação do movimento “queremista” possa
conduzir a essa imagem), mas, ao contrário, a faceta em destaque é a do “político elitista e
autoritário”, que age nos bastidores, articula e conspira “pelo alto” a tomada do poder.
Essas duas faces negativas de Vargas conviviam na cultura política udenista, no
entanto, a personagem do Rebeco (e, em especial, o Rebeco gângster) remete principalmente
ao passado. A representação de Vargas em agosto de 1947 não é exatamente a mesma, nem
pode ser confundida com a imagem da crise de agosto de 1954, quando a faceta populista (de
falso e manipulador “pai dos pobres”) assumiu a primazia.21 Qual Janus (deus romano de
duas cabeças), a contra-imagem udenista de Getúlio Vargas combinou e oscilou entre esses
dois pólos, a balança pendendo para um ou outro lado a depender das relações de força
historicamente constituídas a cada momento, a cada conjuntura.
Com esse novo nível de legibilidade (do tempo curto da crise de julho-agosto de
1947), podemos tentar fechar, provisoriamente, o círculo hermenêutico em torno da charge
Remember (figura 1), interpretada como um ato de imagem, uma condensação do tempo
histórico, convertido em “instante pregnante” pela “escolha de um instante... no interior do
acontecimento que ele quer representar, com o melhor instante, o mais significativo, mais
típico, mais pregnante [fecundo]”, em que “a representação do instante leva à caricatura”
(AUMONT, 2004, p. 81-4).
Assim, o instante fugaz capturado no traço do caricaturista Théo não é o da
contemplação feliz e intimista da imagem do “pai dos pobres” por parte de seu “povo amado”,
mas, ao contrário, é o instante cruel e atroz do temor do golpe, dos olhos ansiosos e
esbugalhados de Dutra, do medo da bomba que espreita, escondida nas mãos (não vistas) do
Rebeco gângster. Medo onipresente – uma sensação emanada do retrato / busto de Vargas
(imagem figural) –, num efeito de crescendo que não deixa dormir, que provoca tensão,
insônia e angústia, e que só é verbalizado (pela entrada inesperada e disruptora do Jeca –
vindo de “fora do quadro”, de fora da imagem) no mais recôndito dos lugares, no mais íntimo
do íntimo, momento em que a caricatura potencializa a imagem e a sensação.

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Nessa chave de leitura, o efeito cômico da charge está relacionado à curiosa e (quase)
surpreendente inversão de papéis históricos. Pois o golpista general-presidente Dutra (ex-
baluarte da ditadura do Estado Novo, mas depois “enamorado” da “frágil e adolescente”
Democracia do 29 de outubro) agora via-se às voltas com a possibilidade de ser deposto por
outro golpe protagonizado por Rebeco Vargas. Assim, no jogo do “derruba-derruba” que
marcou a experiência brasileira do pós-1945 (ou melhor, desde os primórdios da República), a
charge de Théo satiriza e ridiculariza o temor presidencial, fazendo rir do medo alheio.
Conforme essa lógica, governar é, por um lado, minimizar os riscos de golpe de Estado, e, por
outro lado, maximizar as próprias possibilidades de sustentação no poder, num jogo em que
todos (ou quase todos) os atores políticos relevantes têm um compromisso apenas
instrumental (e não ideológico ou axiológico) com a “linda menina” chamada Democracia.
A análise da série iconográfica de Rebeco, portanto, demonstra as potencialidades da
charge e da caricatura para captar as tensões e disputas, os sentimentos e ressentimentos
vivenciados numa determinada época, transfigurando e expressando-os por meio do poder das
imagens.
Medo que dá medo do medo que dá...22
JECA – Mas até aqui, neste lugar solitário, “tem” o retrato do Rebeco?!
DUTRA – Nem por um minuto, Jeca, devo perdê-lo de vista”.

1
FLORES, Elio Chaves. Representações cômicas da República no contexto do Getulismo. Revista Brasileira de
História. São Paulo: v. 21, no 40, p.139-140, 2001.
2
Equívoco similar se verifica na pesquisa de Isabel LUSTOSA, que reproduz duas charges de Rebeco Vargas
sem indagar acerca das razões do apelido. Conferir: LUSTOSA, Isabel. Histórias de presidentes: a República no
Catete (1897-1960). Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 178 e 185 (ver figura 9).
3
A revista semanal e humorística Careta foi criada por Jorge Schmidt em 1908, circulando até 1960. Contou
com alguns dos maiores caricaturistas do país, como Raul, J. Carlos e Théo. Seu acervo foi digitalizado pela
Biblioteca Nacional. Em algumas das charges utilizadas neste artigo, substituímos as legendas originais, em
razão das dificuldades de visualização, mantendo, contudo, a ortografia original. Conferir: CARETA. Disponível
em <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/careta/careta_anos.htm>, acesso em 06/12/2010.
4
JORGE, Sebastião. As muitas faces de Carlos Lacerda. Observatório da Imprensa, 20/02/2006. Disponível em
<http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=369MCH001>, acesso em 06/12/2010.
5
AUMONT, Jacques. Migrações. Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa: Edições Cosmos, p. 140-3,
1996.
6
LACERDA, Carlos. Constituição e reconstituição (Rebeco, ou o ditador inesquecível) – Segunda carta ao
general Eurico Gaspar Dutra. In: LACERDA, Carlos. Na Tribuna da Imprensa: crônicas sobre a Constituinte de
1946. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 384-6. [Publicação original: Tribuna da Imprensa. Correio da
Manhã. Rio de Janeiro: 29/05/1946, p.2.]
7
Sobre o conceito de cultura política, consultar: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na
apropriação de cultura política pela historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na
história: novos estudos. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009, p. 13-37. Segundo o autor, a cultura política

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III Encontro Nacional de Estudos da Imagem
03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
15

pode ser definida como “conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por
determinado grupo, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como
fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro” mobilizando utopias, mitos, esperanças e
sentimentos. Em nossa pesquisa, buscamos ampliar o conceito para além das práticas e representações formais e
institucionalizadas (Estado, partidos, sindicatos e discursos), de maneira a incluir as práticas e representações
informais, provenientes das margens e bordas, a exemplo da sátira, da caricatura, do apelido e do
mexerico, procurando perceber seus usos e modos de funcionamento nas experiências dos sujeitos sociais.
8
Sobre a invenção do trabalhismo, consultar: GOMES, Ângela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo.
São Paulo: Vértice; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988. E ainda: FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista:
getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
9
Théo (Djalma Pires Ferreira, 1901-1980). Natural de Salvador (BA), colaborou, dentre outras publicações, com
O Malho, Careta e O Globo. Consultar: O GETÚLIO DE THÉO. Jornal da ABI – 170 anos da caricatura no
Brasil. Rio de Janeiro: no 322 (edição extra), p.12, outubro de 2007. Disponível em
<http://www.abi.org.br/jornaldaabi/Suplemento_Especial_Caricatura-2007.pdf>, acesso em 17/01/2011.
10
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 33.
11
O apelido-imagem do Corvo foi usado pela primeira vez no jornal Última Hora, em desenho do caricaturista
italiano Lan, feito por sugestão do jornalista Samuel Wainer (edição de 25/05/1954). A charge referia-se aos
usos políticos do assassinato do jornalista Nestor Moreira, vítima de brutalidade policial. Conferir: ROSE, R. S.
Uma das coisas esquecidas: Getúlio Vargas e controle social no Brasil (1930-1954). São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p. 206 e figura 60.
12
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório,
propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo: v. 23, no 45, p.27-8, 2003.
13
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions du Minuit, 2003, p. 41.
14
BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção – a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006, p. 81.
15
A fotografia foi tirada por Thomas D. Macvoy (arquivo da Life), no site “Rio de Fotos”. Disponível em
<http://fotolog.terra.com.br/nder:1081>, acesso em 06/12/2010.
16
Sobre códigos culturais compartilhados na leitura de imagens, consultar: BAXANDALL, Michael. O Olhar
renascente – pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p.45-48.
Sobre “comunidade de leitores”: CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na
Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora da UnB, 1994, p. 11-31.
17
MARIN, Louis. Ler um quadro – uma carta de Poussin em 1639. In: CHARTIER, Roger (dir.). Práticas da
Leitura. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 120.
18
AUMONT, Jacques. O olho interminável – pintura e cinema. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 83.
19
MALTA, Márcio José Melo. Jeca na Careta, charges e identidade nacional. Dissertação de Mestrado em
Ciência Política – IFCS / UFRJ, Rio de Janeiro, 2007, p. 96-7.
20
A COMÉDIA INFINITA. Careta. Rio de Janeiro: ano XL, no 2036, 05/07/1947.
21
Sobre o imaginário da crise de agosto de 1954, encerrada com o suicídio de Vargas e a onda de manifestações
populares de luto e revolta, consultar: FERREIRA, Jorge. O carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de
agosto. In: GOMES, Ângela Maria de Castro (org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994.
22
Trecho da música “Miedo”, composição de Pedro Guerra, Lenine e Robney Assis.

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