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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.112-122, jul. 2014/dez.

2014

CORPO À MOSTRA:
TEXTOS
ecos do dizer no corpo1

Manuela Lanius2

Resumo: O presente artigo busca trazer para debate um aprofundamento teórico


e clínico sobre as consequências da relação corpo/discurso em psicanálise. Os
eventos de corpo são estudados a partir de fragmentos de um estudo de caso e
debatemos as vias possíveis de intervenção na clínica psicanalítica.
Palavras-chave: corpo, linguagem, sintoma.

BODY EXPOSED: ECHOES OF SAYING IN THE BODY


Abstract: This article comprises a theoretical and clinical approach to the conse-
quences of the body/discourse relation in Psychoanalysis. The events of the body
are studied from fragments of a case study and the possible ways of interventions
in the Psychoanalytical Clinic are regarded
Keywords: body, language, symptom.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e discurso em psicanálise,
novembro de 2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Doutoranda em
Psicanálise: Clínica e Pesquisa (UERJ) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
E-mail: manuelalanius@gmail.com
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E ntendemos que o sintoma como evento que ressoa no corpo é efeito de


um advento de discurso que encontra neste o escoamento da pulsão.
Definido por Lacan como superfície privilegiada do gozo, o corpo do falasser
funciona por relação com a linguagem. É pelo encontro com a voz materna
que será fundada a existência do falasser e suas inscrições simbólicas, en-
contro que fará molde à relação do sujeito com os objetos, como preâmbulo
da relação imaginária. Por esta via é que a palavra anima o corpo, o desna-
turaliza, retirando-o da condição de pura carne. Todavia, da incidência da
incorporação do significante restam vestígios no corpo de um gozo, de um
lugar vazio no significante (Lacan, [1972-1973]1985).
A linguagem, para Lacan, na sua ordenação nos quatro discursos, é
uma estrutura que permite que algo se comunique no laço social, na me-
dida em que não há possibilidade de fala sem que se esteja banhado pelo
sentido e sem desfilar os semblantes sob o apito do fantasma – realidade
única de cada falasser. Diria Borges que “ninguém pode articular uma sílaba
que não esteja cheia de ternuras e temores” ([1941]2007, p.77). Todavia, a
alíngua não está submetida a uma organização que serviria para um diálogo
entre dois falantes, pois, é uma matéria sonora que corre paralela à estrutura
([1972-1973]1985).
Restam, também, indícios da incidência do olhar, cuja captura é quase
inevitável, visto seu poder de empuxo. São resquícios do efeito da alienação
ao Outro, que vêm a se depositar no corpo monumento da histérica – mas
que pode ser um corpo mausoléu, ornamentado com os símbolos dos ante-
passados, como podemos ver nos casos em que se apresentam fenômenos
psicossomáticos. Conforme Lacan ([1972-1973] 1985), a alíngua seria o que
primordialmente afeta o ser falante nas suas mais arcaicas percepções, pois
transmite consigo os afetos, numa dimensão inacessível à fala enunciativa.
Deste modo, não poderemos dispensar esta hipótese conceitual de Lacan
para nos apropriarmos com rigor da clínica psicanalítica dos eventos do cor-
po.
O termo alíngua foi apresentado por Lacan pela primeira vez em seu
seminário O saber do psicanalista. Ao expor seu neologismo, disse: “o in-
consciente tem a ver de início com a gramática, também tem um pouco a ver,
muito a ver, tudo a ver, com a repetição, isto é, com a vertente inteiramente
contrária ao que serve no dicionário” ([1971-1972]1997, p.15).
Seria, talvez, possível, a apreensão do instante do inconsciente atra-
vés de uma estratégia que chamaríamos de uma jogada poética, como en-
tendeu Soler (2012), em que o significado rateia, manca, troca uma pa-
lavra por outra, e torna o sujeito um evento de discurso, cujo corpo é de
linguagem, tal como um poema que se escreve, “apesar de ter jeito de ser

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sujeito” (Lacan, [1976]2003, p.568). A jogada poética vislumbra o despoja-


mento da nomeação, mantendo a imprecisão do significante – que jamais
serve sozinho como representante de um sujeito – nos remetendo à falta,
justamente por denunciar a falha do signo na sua pretensão de fechar-se
como absoluto.
A partir de nossa leitura, entendemos que Lacan nomeou de alíngua
o que se diz-a-mais ([1971-1972]2003). É o som do fonema, desconfigura-
do de sentido, mas que, por seu tom e ritmo, sua musicalidade, marca um
compasso de presença e ausência, produzindo a inscrição da memória da
coisa subtraída como traço no falasser, pela peculiaridade da contingência
com que foi ouvido. De acordo com a leitura de Soler (2012) a alíngua é o
que afeta o falasser, seu efeito é justamente afetar o gozo.
Importante nos atermos às palavras usadas por Lacan ao conceituar o
inconsciente. Ele nos alerta para que o inconsciente subverte a gramática,
desrespeita os significados e que se faz notar pela sua insistência, na re-
petição. Nos remete, pois, ao seu escrito de 1957, A instância da letra ou a
razão desde Freud (1998), no qual discorre sobre a autoridade da letra e sua
persistência na cadeia significante.
Neste momento do ensino de Lacan, a acepção da letra está intimamen-
te ligada ao significante, carregada por este e aparente no que faz repetição
como sintoma ou traço, no sentido freudiano do conceito de repetição. Se,
como pudemos entender, as letras estão todas colocadas desde o começo,
elas muitas vezes não se dão a ler, mesmo que à mostra aos olhos de to-
dos. Analista e analisante seriam, pois, os hábeis investigadores e leitores,
capazes não apenas de reconhecê-las, mas de ler as letras que se mantêm
suspensas, fixas, sem circular, sem fazer uso de seus poderes, ou seja, não
funcionam como cartas. Se lidas, as letras retornam a circular como signifi-
cantes de uma cadeia geracional, desvirando-se de sua “face de Medusa”
petrificadora (Lacan, [1956]1998).
Lacan estava seguro de que, para efeitos de transmissão da psicaná-
lise e da formação que ambicionava, era imprescindível que veiculasse seu
ensino através da palavra falada e do escrito. Deste modo, discorreu sua fala
em seus seminários, mas também se ocupou de seus escritos, cada qual
com sua função. Para Lacan, um psicanalista deve estar atento à leitura na
homofonia da fala das disjunções entre a gramática e o que se comunica,
no que se escuta para além do sentido explícito, como a produção de uma
espécie de conjunção fonemática que amplia a decifração de um texto, bem
como pode levar à ruptura do sentido. Em nosso entender é o que há de mais
relevante na prática clínica: a leitura, ou melhor, o que se lê do que está por
entre as linhas, no que se ouve do que se diz, e o que se pode ler do texto na

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sua literalidade (Lacan, 1957). O enlace destas duas modalidades de trans-


missão produziu tanto um efeito de saber, como um efeito de furo.
Trabalhamos com a hipótese lacaniana de que alíngua seria a alu-
vião da linguagem recebida pelo sujeito através da matéria sonora e que
repercute numa escrita própria, marcando com profundidade caminhos sin-
gulares para a passagem dos significantes que irão uns aos outros se enca-
deando, e que ressoará nas variadas formações do inconsciente e demais
formações psicopatológicas (Lacan, [1972-1973]1985). O que é incorpora-
do ao simbólico, do corpo, fará suporte ao sujeito como rede de significan-
tes, e retornará como representante deste em suas manifestações. São
estas marcas que compilarão a memória histórica de cada um.
Deste modo, seremos fidedignos ao que Lacan nos expôs, na aná-
lise das lembranças encobridoras, da arquitetura corporal, das inscrições
no muro do corpo, e do estoque de cada falasser, de onde este retira o
material-palavra, matéria-prima, primordial, para representar-se a si mesmo
e ao mundo.

O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um


branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas
a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita
em outro lugar. Qual seja:
nos monumentos: e esse é o meu corpo, isto é, o núcleo histérico
da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma
linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida,
pode ser destruída sem perda grave;
nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembran-
ças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não
lhes conheço a procedência;
na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acep-
ções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de
minha vida e a meu caráter;
nas tradições também, ou seja, nas lendas que sob forma heroiciza-
da veiculam minha história;
nos vestígios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções
exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o
enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá. (Lacan,
[1953]1998, p.260-261).

Operando com a fala, a psicanálise não se faz sem o sujeito encarnado,


o que reprova a ideia de que a psicanálise não se ocupa do corpo. Sim, se

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ocupa do padecimento do corpo marcado pelos efeitos da linguagem, e mais


ainda, ocupa-se do saber em xeque naquilo que se perpetua, como uma
figura em abismo na instância de algo do significante que não encontra vias
de inscrição e que se deflagra na imago corporal. Corpo que ora se liga à
gramática significante, ora cede aos avanços do gozo, deixando dele, suas
cicatrizes.
Como consequência do encontro do falasser com o impossível de dizer
da não relação sexual, o sujeito engendra um sintoma como resposta pos-
sível ao enigmático. O sintoma por si só seduz ali onde a sedução desejada
fica suspensa. Não deixa de ser, portanto, uma carta que declara o amor na
suplência da não relação sexual (Pommier, 1996).
No intuito de pensarmos o trabalho analítico das consequências clínicas
da relação corpo/discurso, traremos fragmentos do caso Olinda, e deixare-
mos que o caso nos promova o acesso à teoria.
Para nós, o valor da narrativa é de reafirmação de uma experiência sin-
gular, que passa a existir como fato ao encontrar na escuta do Outro uma
autenticação do que se produziu. É o presente vivo que retorna e contorce
o tempo, criando condições de mudanças subjetivas a partir da produção
discursiva. A narrativa é um acontecimento que de algum modo transforma
e “transtorna” a relação do sujeito com seu passado. Blanchot nos contou
sobre sua experiência:

Sempre ainda por vir, sempre já passado, sempre presente num


começo tão abrupto que nos corta a respiração [...] tal é o acon-
tecimento do qual a narrativa é a aproximação. Esse aconteci-
mento transtorna as relações do tempo, porém afirma o tempo,
um modo particular de realização do tempo, tempo próprio da
narrativa que se introduz na duração do narrador de uma maneira
que a transforma, tempo das metamorfoses em que coincidem,
numa simultaneidade imaginária e sob a forma do espaço que a
arte busca realizar, as diferentes estases temporais (Blanchot,
2013, p.13).

Olinda foi uma paciente que buscou tratamento para as crises de angús-
tia que vinham lhe ocorrendo e que a levava às emergências de hospitais a
cada semana. No momento inicial de seu tratamento, Olinda dedicava-se à
descrição das crises acometidas no corpo, e que findavam com a perda dos
sentidos. Foi após o estabelecimento da transferência e a entrada na livre as-
sociação ou, em outros termos, no giro do discurso do mestre para o discurso
da histérica, no qual um sujeito dividido causado pelo desejo interroga o que

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o constitui, e produz um saber acerca de seu sintoma, que Olinda trouxe para
a sessão o seguinte sonho:

Ela narra:

“Sonho que estou pelada. Eu não gosto que me vejam pelada há


muito tempo, desde os 14 anos. Meu sonho é que eu tomo banho
e a porta está sempre aberta, não tem porta e as pessoas passam
mas ninguém para pra me olhar, como se fosse normal. E a cortina
é curta e eu tento me tapar. Não era nenhuma novidade me ver
pelada.
Ela associa:
Olinda: Antes eu era normal. Meus sintomas começaram quando
minha sobrinha foi atropelada, isso já faz uns 7 anos.
Lhe digo: Atro pelada.
Olinda: Faz expressão de surpresa. [Ri] – Tô Pelada? O que quer
dizer com isso?
Lhe digo: Diga você.
Olinda: Ai, o que esta me vindo à cabeça é quando eu morava na
casa da minha tia, onde meu pai nos deixou, para ir embora pra Ser-
ra Pelada, pro garimpo. Eu não tinha roupas, meu pai dava dinheiro
para minha tia, mas ela usava para as filhas dela e nos dizia que ele
não dava nada. Eu ficava pelada.
Eu: Hum...
Olinda: [Ri muito]...Sem dinheiro, pelada e pelada mesmo, eu lembro
que tinha que usar saia como vestido porque não tinha roupas. Quan-
do meus peitos cresceram, o marido da minha tia colocava a mão no
meu peito e apertava, falando: olha os peitinhos dela... e todos co-
meçavam a rir. Tudo o que acontecia comigo todo mundo tinha que
saber. Quando eu fiquei menstruada, minha tia contou pra todo mun-
do e todos riam. Eu tinha vergonha de mim, vergonha do meu corpo.
Meu tio que disse que estava na hora de eu usar um sutiã. Eu estava
com uma blusa transparente, e dava pra ver meus peitos. Ele obrigou
minha tia a comprar. Quando eu usei todos riram e eu deixei de usar,
fiquei sem usar mesmo.
Eu: que idade você tinha quando foi levada pra casa de sua tia?
Olinda: ah, uns 7 anos...
Eu: E ficou por quanto tempo?
Olinda: Até uns 14 anos”.

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Como aponta Lacan, é importante na análise partirmos de um sinto-


ma que é dado como elemento relevant3, essencial para o sujeito, e é em
sua interpretação que progrediremos até sua solução, ou melhor, “é do valor
de guia do detalhe relevant”, do detalhe pertinente, revelador, que se tra-
ta ([1958-1959]2002, p.424). O detalhe que “salta aos olhos” ou, “salta aos
ouvidos”, de quem pode ouvir por trás do que se diz, como uma leitura da
inscrição no inconsciente.
Prestando atenção ao detalhe que retorna – o medo de ser atropelada
– contornamos o significante que constituía o sintoma de Olinda – pelada. O
lapso escutado pela paciente promoveu um efeito de reviramento, que tem
a importância de um ponto de parada do gozo, e pelo qual os sentidos rea-
pareceram em outro lugar: na fala. O que escutou, lhe garantiu um efeito de
surpresa e chistoso. Do gozo ao riso, Olinda percorre um caminho de pas-
sagem de sentido que abre espaço para uma produção narrativa, que pode
libertá-la de um efeito paralisante que o sentido único provoca, um fascínio
capaz de esvaecer.
Ela passa a narrar-se enquanto sobrinha de 7 anos, pelada, cujo cor-
po estava completamente à mostra ao olhar do Outro, que, pelo excesso, a
capturava no campo da visão. O atropelamento da sobrinha levantou o cará-
ter traumático de suas experiências infantojuvenis, descortinando a ameaça
incestuosa insuportável que era suplantada pelo sintoma, agora derrubado
de sua função de delinear o medo e prevenir algo de seu próprio desejo. O
seu atropelamento seria a sua “hora da (de) estrela”4, sem dúvida, mas seria
melhor não ousar tanto.
Outrossim, as manifestações de angústia de Olinda ecoavam o real do
objeto olhar desmedido e gozoso sobre seu corpo, bem como sua contrapar-

3
“Relevant: pertinente. Mas também, em Eissler: o detalhe ‘revelador’ no sentido do lapso reve-
lador” (Lacan, [1958-1959]2002, p. 424).
4
Alusão ao título da obra de Clarice Lispector: A hora da estrela, na qual a personagem principal,
Macabéa, tem seu principal evento da vida, justamente quando atropelada – sua morte. Previa
mais que a cartomante a quem consultava: “Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim
que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho
um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa? […] Quero
antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a
tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão”. É que “que sou
eu?” provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto”
(Lispector, p.15-16, 1998).

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tida, o olho que não lhe devolve uma imagem de si, um excesso de nada.
Freud ([1926]2010) em Inhibición, síntoma y angustia, anunciou que a an-
gústia é originada por uma invasão abrupta da carga pulsional, desvincula-
da de quaisquer redes representacionais que poderiam contê-la e que, por
esse fato, se manifesta em sua face mais avassaladora, o afeto é mantido,
enquanto a ideia subjaz recalcada. Deixou evidente que o corpo reage a um
sinal de perigo iminente através da angústia. Aqui, a angústia é descrita como
signo de que o eu está ameaçado, seja por exigências internas ou externas.
A angústia é, pois, potencializada pela pulsão escópica. O sujeito é ar-
rebatado por um espetáculo que o ilude acerca do desejo que imagina pro-
vocar no Outro. O que o sujeito, na alcova de espelhos, pode enxergar é que
é desejado, resplandece-se com esta fascinante imagem, ao que de súbito
está capturado pelo olhar que não vê; ignora para onde mira o olhar do Outro.
Sem enxergar seu reflexo reluzente aos olhos do Outro, o sujeito sucumbe
à angústia. Sua posição, aliás, deixa de ser a de sujeito, mas a de objeto a
(Lacan, [1962-1963]2005).
De acordo com os estudos de Costa, o corpo recoberto pela linguagem
é o que confere a ele o erotismo, uma vez que a linguagem faz operar uma
função de velamento que constrói uma erótica. “Quando esta função de vela-
mento não acontece, o Real provoca angústia” (2012, p.67).
Olinda perde os sentidos ao se deparar com o Outro, que lhe invade o
corpo, quando não há mais portas e cortinas de anteparo ao olhar. Contudo,
há um ponto ambíguo que se revela no sonho: esse corpo à mostra não é
visto, e por não ser visto é atropelado. Há, pois, a solicitação de um olhar que
a localize numa posição subjetiva, que lhe devolva uma imagem de quem é.
O evento corporal, a crise de angústia, desencadeia-se com o episódio
da sobrinha, mobilizando uma correspondência ainda ilegível para Olinda;
correspondência que foi remetida à escuta/leitura de quem supunha como
leitor, enquanto alteridade. Foi esta suposição que permitiu que o Isso se
lesse, se escutasse no lapso.
A cena que se revela no sintoma é a cena fantasmática montada no
registro escópico. A imagem de um pai que sai em busca da extração do ouro
da Serra Pelada, a deixa desprovida de recursos para resguardar o que lhe
era precioso: seu corpo, sua sexualidade, caindo lograda do que pode lhe
dar um pai. A função de interdição do pai se mostra precária e a objetalização
de seu corpo denuncia a inconsistência da interdição, deixando-a desampa-
rada perante o enigma do desejo do Outro. Seu corpo, assim, dissolve-se na
angústia. Se a angústia é um afeto que não engana, ela demarca o limite do
significante, este que engana, se faz passar por outro, submete-se à dialética
e coloca em cena algo da verdade subjetiva.

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Dito de outro modo, entendemos que a angústia é o Real ilimitado e


inominável de um gozo que não obedece às ordens do falo. Não há sujeito
na angústia, que é fala calada, sem predicados, pleno vazio do Real que dá
corpo ao gozo. Em sua construção narrativa, Olinda reforça a barreira fálica.
O sonho e a seguida escuta do lapso anunciam um tempo de inscrição do
significante que castra, e concede a Olinda o passo para fora da prisão da
angústia.
Aprendemos com Lacan que “é unicamente o equívoco que temos como
arma contra o sintoma. É preciso que haja alguma coisa no significante que
ressoe. [...] E para isso, é preciso um corpo que lhe seja sensível. É um fato
que ele o é” ([1975-1976]2007, p.18-19). Algo do significante ancorado no
corpo ressoou no equívoco por Olinda evocado, que corta o significante e faz
obstáculo ao gozo do corpo, cujo efeito é o apaziguamento da angústia sem
comportas.
Como a poesia e o chiste, a escuta analítica joga com a sonoridade das
palavras, recorta sentidos, que, no encontro com a alteridade, recua ao sem-
sentido, reduzindo-o, ao mesmo tempo que avança sua marcha, numa nova
ordenação discursiva. Olinda, ao escutar seu equívoco, cai no riso, e o efeito
de surpresa do lapso escutado é gratuito e espontâneo, pega pelo rabo do
desejo tal como a “poesia é também um pouco ser pego de surpresa pelas
palavras”, aprendeu Manoel de Barros.
O tempo da leitura do lapso é o mesmo que o tempo do dito espirituo-
so: é rápido num movimento de abertura e fechamento do inconsciente, do
qual resvala o sentido, faz rir, encontra laço no riso do outro, e se confirma
como legítimo, nos ensinou Lacan em As formações do inconsciente ([1957-
1958]1999). Não é para compreender, é para incorporar, produzindo um re-
arranjo na cadeia de representações do sujeito. Neste fragmento clínico, o
corte analítico não se dá pelo corte da sessão, ou citação de uma fala do
paciente, ou então um enigma, mas pela instauração de um intervalo que
interrompe a continuação de um sentido e esse se desfaz. Este intervalo na
equivocação do lapso também funciona como pontuação. Assim é possível o
arejamento do significante, que se abre para novas relações.
O lapso de Olinda brinca com o suporte material do significante “ah,
tô pelada?”, desconectando o gozo do sentido, que se vai com o riso solto.
Ao analista cabe, neste momento, sancionar sua fala, pois ela já é em si
sua interpretação. Os equívocos que permitem a ultrapassagem de senti-
do, ou até mesmo sua anulação de significações consolidadas, podem ser
conferidos principalmente nas homofonias ou em tropeços gramaticais, ou
então nos equívocos lógicos, como as contradições. Tal qual a carta do conto
de Poe, referida por Lacan ([1956]1998), o sintoma de Olinda escondia-se

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num local tão evidente que mostrava-se a todos, sem que isso pudesse ser
reconhecido.O lapso, como entendeu Lacan, confere um efeito de verdade
para aquele que o faz e/ou o escuta. Apresenta efeito de verdade, ou seja, a
ele é atribuído um valor de verdade, visto que a verdade jamais consegue ser
dita, fica sempre semidita. De acordo com Soler, o lapso é privilegiado como
porta de entrada do inconsciente. “O riso arrancado de surpresa, indica que a
combinatória dos uns de alíngua – digamos: a cifração do humorista – abriu
a porta do inconsciente” (Soler, 2012, p.67).
Pereira (2008) em O conto machadiano, uma experiência de vertigem,
trabalhou o efeito de revelação do sujeito e a passagem que o chiste coloca
em exercício. Pereira recordou o deslocamento e o esgotamento do sentido
exposto por Lacan ([1957-1958]1999), quando ele trouxe este viés pela ho-
mofonia em francês com o “pas-de-sens”, escutado ao mesmo tempo como
sem sentido e como passo de sentido.
Lacan situou o lugar do analista como o que não responde à demanda
imaginária de compreensão, uma vez que não é disso que se trata numa
análise, mas de manter-se no caminho da incompreensão do senso comum,
suspensão de um saber a priori. Deste modo, possibilita-se que o sujeito ve-
nha a interrogar seu sintoma no que isto quer lhe dizer. O passo a mais mo-
vimenta o desejo e ultrapassa o repetido gozo. Em nosso trabalho de escuta,
as ressonâncias verbais e o rumor das palavras dominam o semântico, como
diria Manoel de Barros (2010).

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PEREIRA, Lucia Serrano. O conto machadiano: uma experiência de vertigem. Ficção
e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008.
POMMIER, Gerard. Do bom uso erótico da cólera e algumas de suas consequências.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
SOLER, Colette. Lacan, o inconsciente reinventado. Rio de Janeiro: Cia. de Freud,
2012.

Recebido em 28/03/2015
Aceito em 05/06/2015
Revisado por Deborah Nagel Pinho

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.123-135, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS
AMOR AO PAI1

Gerson Smiech Pinho2

Resumo: O texto procura trabalhar a articulação entre paternidade e posição


sexual, a partir das fórmulas da sexuação, tal como foram propostas por Lacan
no seminário Mais, ainda (1972-1973).
Palavras-chave: paternidade, função paterna, sexuação.

LOVE TO THE FATHER


Abstract: The article aims to discuss the articulation between fatherhood and
sexual position, from the formulas of sexualization, such as proposed by Lacan in
the seminar Mais,ainda (1972-1973).
Keywords: fatherhood, father role, sexualization.

1
Trabalho apresentado na Jornadas Clínicas da APPOA: A escrita do sexual, em outubro de
2013, Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Mmbro do Institito
APPOA; Membro da equipe do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre; Mestre em Psicologia Social
e Institucional pela UFRGS. E-mail: gersonsmiech@gmail.com
123

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Gerson Smiech Pinho

A interrogação sobre o que é um pai? sempre esteve no cerne da experiên-


cia de Freud. Presente desde o início, na figura do pai sedutor da teoria
do trauma, permaneceu até o final, em seu escrito derradeiro, Moisés e o mo-
noteísmo (Freud, [1939]1987). Passando pelo complexo de Édipo, pela horda
primeva de Totem e tabu (Freud, [1913]1987) e pela fantasia de Bate-se em
uma criança (Freud, [1919]1987), a presença insistente do pai nos textos de
Freud não cessa de nos fazer lembrar o lugar central que este tem na consti-
tuição da realidade psíquica. Lacan chega a afirmar que:

Toda a interrogação freudiana se resume nisso: o que é ser um pai?


Foi para ele o problema central, o ponto fecundo a partir do qual
toda a sua pesquisa está verdadeiramente orientada (Lacan, [1956-
1957]1992, p.122).

Por sua vez, Lacan introduziu desdobramentos fundamentais em rela-


ção ao lugar do pai, ao estabelecer o significante Nome-do-Pai e o ternário
pai real, pai imaginário e pai simbólico como elementos de sua teoria (Porge,
1998).
Mas, o que se passa com um homem quando assume esse lugar e en-
carna o ofício de pai em sua vida? O que implica ser designado como “pai”?
Desde a notícia da gestação até a vida adulta dos filhos, o extenso per-
curso trilhado pelo homem que se torna pai é certamente acompanhado de
muitas questões e pode estar associado a diversas formas de mal-estar. Para
muitos, tornar-se pai pode ser um problema difícil de transpor ou até mesmo
impossível de sustentar. Neste trabalho, abordo o tema da paternidade para
pensar sobre as condições em relação à sexuação, que permitem ao homem
encarnar a função de pai, pressupondo que não é desde qualquer posição
que esse lugar pode ser ocupado.
Além do trabalho analítico com homens que se interrogam pela sua
condição de pai ou pelo desejo de se tornar pai, este escrito foi inspirado
pela leitura do seminário XX, Mais, ainda (Lacan, [1972-1973]1985), em
que Lacan aborda o tema da sexuação, demarcando o modo como ho-
mens e mulheres se situam em relação à economia do gozo.
Mas antes de chegar ao Mais, ainda, vou tomar como ponto de partida
um momento bem anterior da produção de Lacan, o seminário IV, intitulado A
relação de objeto e as estruturas freudianas (Lacan, [1956-1957]1992). Mais
especificamente, as considerações que Lacan tece ali a respeito da “pater-
nidade imaginária” do Pequeno Hans, o mais jovem dos pacientes de Freud
([1909]1987).

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Amor ao pai

Os filhos de Hans

Ao final de seu tratamento, quando parecia já estar próximo de uma reso-


lução para sua fobia, Hans encontrava-se às voltas com filhos imaginários. Nos
relatos de seu pai, este observava que o menino constantemente fantasiava
sobre “seus filhos”, com os quais travava longas conversas.
Em uma das últimas comunicações do tratamento endereçadas a Freud
([1909]1987), o pai de Hans escreve o seguinte:

Vendo Hans brincar com seus filhos imaginários de novo, eu lhe dis-
se ‘Alô, seus filhos imaginários ainda estão vivos? Você sabe muito
bem que um menino não pode ter filhos’.
Hans: ‘Eu sei. Antes eu era a mamãe deles, agora eu sou o papai
deles’.
Eu: ‘E quem é a mamãe das crianças?’
Hans: ‘Ora, a mamãe, e você é o vovô delas’.
Eu: ‘Então você gostaria de ser do meu tamanho, e de ser casado
com a mamãe, e então você gostaria que ela tivesse filhos.’
Hans: ‘Sim, é disso que eu gostaria, e então a minha vovó de Lainz
será a vovó deles’ (Freud, [1909]1987, p.104).

Frente a esse relato, Freud julga que o tratamento de Hans encaminha-


va-se para um desfecho satisfatório. Segundo ele, o “pequeno Édipo” havia
encontrado uma solução mais feliz do que a prescrita pelo destino. Ao invés
de colocar seu pai fora do caminho, permitiu a ele uma felicidade similar a
sua própria, ao transformá-lo em um avô casado com sua própria mãe. Freud
parece considerar com entusiasmo a saída encontrada por Hans, ao apostar
que este estaria a sonhar com filhos imaginários a partir de uma identificação
com seu pai (Freud, [1909]1987).
No extenso comentário que faz a respeito desse caso de Freud, Lacan
([1956-1957]1992) é bem mais reservado em relação ao encaminhamento
dessa questão. Questiona até que ponto o menino havia encontrado uma saí-
da em relação à integração edípica quando diz “agora, eu sou o papai”, já que
deixa a cada um, a ele próprio e a seu pai, ligados a suas respectivas mães.
Em suas considerações, Lacan ([1956-1957]1992) irá destacar a impor-
tância da personagem representada pela avó paterna na história de Hans.
Segundo ele, ao final do processo, observamos um desdobramento da figura
materna, entre a própria mãe e a avó, o que permite estabelecer uma forma
de triangulação pouco convencional. O lugar terceiro, que não é encontrado
junto ao pai, é ocupado pela avó. Com isso, e apesar da presença insistente

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Gerson Smiech Pinho

do pai, o menino se inscreve em uma espécie de linhagem matriarcal ou de


duplicação materna.
Por trás da mãe, Hans adiciona mais outra, a mãe de seu pai, o que o
leva a instaurar uma “paternidade” imaginária, que, na verdade, mais do que
uma identificação ao pai, representa um desdobramento do lugar materno.
Com isso, Hans substitui a mãe e se ocupa de seus filhos imaginários da
mesma maneira que ela, ou seja, ao modo do falo materno.
Na medida em que a situação se resolve por uma identificação ao dese-
jo materno, Hans torna-se algo como um objeto fetiche no que diz respeito à
sua posição em relação ao objeto amoroso. Daqui para diante, irá colocar-se
numa posição de passividade frente às mulheres.
Lacan ([1956-1957]1992) afirma que o caminho que Hans percorreu no
Édipo para chegar até este ponto é um caminho não usual, efeito da carência
do pai. O relato do caso mostra insistentemente os desfalecimentos do pai
sublinhados a todo o instante pelas chamadas que o próprio Hans lhe ende-
reça. Assim, não haveria nada de extraordinário em constatar que a carência
do pai marque a resolução edípica do menino de um modo absolutamente
atípico, cuja saída se faz pela identificação ao ideal materno.
É possível pensar que os efeitos dessa carência paterna colocam em
questão pelo menos dois aspectos para esse sujeito. O primeiro deles diz
respeito à posição desde a qual ele poderá endereçar-se ao objeto amoroso.
Como diz Lacan ([1956-1957]1992), é somente em um lugar de passividade
frente às mulheres que ele irá se colocar.
O segundo, que me interessa destacar aqui, se refere à condição de
operar a função de pai. Se, no momento da observação de Freud, Hans ain-
da se encontrava a uma boa distância de poder ocupar este lugar de fato, já
esboça o que seria sua posição em relação ao mesmo quando brincava de
ser o “pai” de seus filhos imaginários, muito mais identificado a sua mãe do
que ao próprio pai.
Sem que isso implique qualquer antecipação sobre seu destino na vida
adulta, esse caso nos faz lembrar que o lugar desde o qual um sujeito poderá
vir a ocupar a função de pai é, juntamente com tantas outras questões, um
precipitado do complexo de Édipo. Uma herança daquilo que ali pôde se
experimentar e que, no caso de Hans, parece estar muito mais do lado da
carência dessa função.
A partir do que foi dito, gostaria de propor, ainda, outra questão. Que
articulação se pode estabelecer entre os dois aspectos recém-mencionados?
Ou seja, qual a relação entre a posição desde a qual um homem aborda o
objeto amoroso e aquela desde a qual pode vir a se situar como pai? Esta
é uma pergunta importante no encaminhamento que pretendo dar ao tema

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Amor ao pai

trabalhado aqui. Mas mantenhamos esta questão guardada por um instante


para ser retomada daqui a pouco.
Deixemos, agora, os impasses do caso Hans em relação à função pa-
terna para pensarmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que se coloca em
jogo no exercício dessa função, através dos caminhos trilhados no complexo
de Édipo e no complexo de castração e os deslocamentos que esta função
opera na distribuição do gozo ao longo dos mesmos.

Função paterna, Édipo e castração

Logo que chega ao mundo, a criança se vê frente ao vazio aberto pelo


Outro materno. Como resposta ao recobrimento dessa falta inicial, encontra
o falo como objeto ao qual se identifica com a totalidade de seu corpo. Esta
operação incide também sobre a mãe, já que a criança-falo transforma a ela
em uma mãe fálica. Do vazio desse primeiro tempo, desponta o gozo do Ou-
tro, que tende ao apagamento do sujeito e sua redução à condição de objeto
(Pommier, 1987).
É a atração da mãe por um homem que pode retirar o sujeito dessa posi-
ção inicial. Quando a mãe manifesta seu desejo por um homem ou, de forma
genérica, por alguém ou algo diferente do próprio filho, isso representa um
alívio para a criança. O falo passa a estar situado nesse terceiro personagem
e o filho deixa de ter a incumbência de encarnar a representação de objeto
do gozo materno. Com isso, a mãe possibilita a este terceiro elemento operar
como agente da castração e aceder à condição de pai. A potência fálica com
que é investido é a principal característica do rival paterno do menino. Como
afirma Pommier (1987), ele é falóforo antes de ser pai, bastando que seja
portador do falo e, nessa condição, desejado pela mãe.
O limite ao gozo proporcionado pela função paterna desempenhada por
este terceiro elemento traz um apaziguamento da angústia ligada ao tempo
inicial da relação ao Outro primordial, que está na origem do amor por esse
pai portador do falo. O amor ao pai não é nem um amor de reparação pela
fantasia de assassinato dirigida a ele, nem um amor pela pessoa dele ante-
rior à castração. “Poderíamos chamá-lo ‘amor pela castração’. O sentimento
nutrido por aquele que alivia da demanda materna diz respeito unicamente
a sua função” (Pommier, 1987, p.76). É um amor acompanhado também do
desejo de morte e da fantasia de assassinato, que buscariam anular esse pai
em sua função de proibição.
Mas a função do pai não se restringe a essa posição. Ela ganha um
desdobramento entre essa figura do pai sexual, portador do falo, e o pai de
nome, cuja função permite à criança assumir o nome do pai e aspirar a ter o

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Gerson Smiech Pinho

falo, pelo traço comum. É o que torna possível a transmissão da potência viril
através da linguagem (Pommier, 1987).
A referência ao lugar simbólico e nomeante do pai é atribuída por La-
can ([1955-1956]1988) ao significante Nome-do-Pai. No seminário sobre As
psicoses, Lacan afirma “que a função de ser pai não é absolutamente pen-
sável na experiência humana sem a categoria do significante” (Lacan, [1955-
1956]1988, p.329). O Nome-do-Pai indica um lugar de enunciação que intro-
duz em sua linha de conta a procriação, a interdição do incesto, a relação do
significante à lei, a função de nomear, e a ordenação na linhagem e na série
das gerações.
As conotações significantes do pai estão longe de se confundir com as
do genital e da potência fálica. Seu acento não está colocado na sua potên-
cia, mas no meio de assumir subjetivamente esta potência. Com isto, não se
trata de assumir a realidade sexual da concepção, mas do que permite ao
sujeito reconhecer esta realidade como sua.
A origem do termo Nome-do-Pai reporta à religião. Como a paternida-
de de Deus é espiritual e não carnal, a noção de Nome-do-Pai não se situa
no plano da potência falófora, mas num plano puramente simbólico, mar-
cando uma diferença em relação ao pai freudiano de Totem e tabu (Freud,
[1913]1987), que gozava com todas as mulheres.
Porge (1998) assinala uma diferença entre o modo como Freud e Lacan
articulam a relação entre o pai e a religião na psicanálise. Enquanto Freud
interpreta a existência de Deus como substituto do pai da horda primeva,
Lacan faz o inverso e importa um termo religioso para analisar o Édipo a
partir dele. Nesse sentido, o Nome-do-Pai está mais próximo de Deus do que
do pai da horda primitiva. Ele permite dessexualizar o pai, de modo que sua
função significante permita que o recurso estruturante na potência paterna
intervenha como uma sublimação. E, desde esta condição sublimatória, é
possível enlaçar a noção de pai à civilização como um todo, mais do que à
religião propriamente dita.
Segundo Porge (1998), ao mesmo tempo em que introduz o significante
Nome-do-Pai como elemento teórico da psicanálise, Lacan desdobra o lugar
paterno a partir da referência aos três registros, formulando as noções de pai
real, pai simbólico e pai imaginário. Estes dois eixos teóricos para referenciar
a função paterna se farão presentes em seu ensino, simultaneamente, sem
estarem totalmente separados ou unificados entre si e sem que um absorva
o outro em sua formulação. Esta questão repercutirá em seus últimos semi-
nários sobre a articulação entre o plural, nomes do pai, e o singular Nome-do-
Pai, os quais irão se manter.

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Amor ao pai

Função paterna e paternidade

São estas diversas funções e instâncias paternas que os homens que


se tornam pais são convidados a sustentar e a encarnar como agentes. O
modo como cada um irá colocar em cena as questões evocadas por esta
convocatória irá depender dos caminhos pelos quais atravessou o complexo
de Édipo e a posição sexuada desde a qual venha a se situar em relação ao
falo e à castração.
De Neuter (2004) afirma que são raros os escritos dos psicanalistas
que se ocupam das dificuldades encontradas pelos pais da realidade em seu
ofício de pai, com exceção das já bem examinadas descompensações psicó-
ticas decorrentes da chegada de um filho. Isso contrasta com as numerosas
publicações sobre as dificuldades das mulheres que se tornam mães e com
tudo o que os psicanalistas puderam dizer e escrever sobre os desejos mor-
tíferos das mães com relação a seus filhos.
Segundo este mesmo autor, uma série de expressões sintomáticas po-
dem se associar à paternidade, desde crises psicóticas, até manifestações
psicossomáticas e neuróticas, as quais costumam ser muito mais frequentes
do que se costuma supor. Porém, em geral, esses sintomas não são associa-
dos de forma direta à paternidade por aqueles que deles padecem. Esta liga-
ção costuma se manter latente, até ser desvelada pelo trabalho de análise.
Ainda de acordo com De Neuter (2004), no âmbito da neurose, encon-
tramos a curiosa síndrome da couvade, a qual pode ser definida como o con-
junto de sintomas que ocorre nos companheiros de mulheres grávidas e que
estão cronologicamente relacionados à gravidez, a seu término, ao momento
do parto ou ainda ao período pós-parto. Alguns sintomas comuns são as os-
cilações de peso, náuseas, dores nas costas, dores de cabeça, alterações
do sono, ansiedade, cansaço extremo, labilidade emocional e irritabilidade.
Em termos de distribuição geográfica, alguns autores referem que a sín-
drome de couvade ocorre somente nas sociedades em que os rituais de cou-
vade não são praticados. Estes rituais são característicos de certas culturas
pré-industriais e incluem o conjunto de interdições e de ritos que um homem
está obrigado a realizar durante a gravidez, o parto e após o nascimento de
um filho.
Entre os índios tupinambás, por exemplo, o homem participa do parto,
comprimindo o ventre da companheira e cortando o cordão umbilical com os
dentes. Após ser lavado, o bebê vai para os braços do pai, que deita em uma
rede e fica de resguardo, ingerindo uma dieta especial até a queda do cordão
umbilical. É o pai quem recebe as visitas e os cumprimentos pelo nascimento
do filho, enquanto a mulher retoma a rotina diária (Thomas, 2014).

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As interpretações dadas a esses rituais são diversas. Além de destacar


a importância dada à paternidade por esses povos, em muitos casos têm
uma função mística, de proteção ao bebê. Mas, além de tudo, parecem servir
para demarcar a paternidade sobre a criança, desfazendo qualquer dúvida
sobre quem é o pai.
Nessa direção, Freud ([1908]1987) faz um comentário sobre a couvade
em seu texto sobre as teorias sexuais infantis. Ali, afirma que a couvade, “é
um costume generalizado entre alguns povos, e cuja finalidade era prova-
velmente desfazer as dúvidas quanto à paternidade, que nunca podem ser
totalmente afastadas” (Freud, [1908]1987, p.226).
No seminário sobre As psicoses, Lacan ([1955-1956]1988) também co-
menta a respeito da couvade, dizendo o seguinte.

A experiência da couvade, por mais problemática que nos pareça,


pode ser situada como uma assimilação incerta, incompleta da fun-
ção ser pai. Ela responde com efeito a uma necessidade de realizar
imaginariamente – ou ritualmente, ou de outra forma – a segunda
parte do caminho (Lacan, [1955-1956]1988, p.330).

Aqui, a segunda parte do caminho é aquela para que a função de ser


pai seja realizada.
Assim, tanto para Freud quanto para Lacan, a significação desses rituais
está ligada à incerteza da paternidade, que reporta ao princípio da lei romana
mater certissima, pater semper incertus.
Outra questão que De Neuter (2004) destaca como se interpondo no ca-
minho daqueles que se tornam pais é a reativação do complexo de intrusão,
com o surgimento do ciúme do pai em relação ao filho. A chegada de uma
criança ao interior de um casal é a chegada de um rival que frustra o homem
de sua mulher, a qual orientará toda a sua libido para o recém-nascido ou que
sentirá dificuldades quanto à relação sexual. O fato de muitas mulheres se re-
ferirem a seus maridos como um segundo filho também justifica o surgimento
desse ciúme com caráter fraterno.
Nesse contexto, a hostilidade é dificilmente evitável, a qual será dirigida
tanto à mulher levada pela criança, quanto à criança raptora de sua com-
panheira. O retorno dessa agressividade aparece no temor de fazer mal à
criança ou à mãe, na angústia de que algo de mal lhes aconteça, em sonhos
agressivos ou infanticidas, na perda do desejo sexual em relação à mulher,
na impotência, e em fugas para fora do laço conjugal: para o trabalho, em
relações extraconjugais, em saídas, no alcoolismo, ou até na separação ou
no abandono.

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Amor ao pai

Vale acrescentar que a agressividade paterna não tem nada de extraor-


dinário, já que o amor sempre traz consigo alguma hostilidade, mesmo que
inconsciente, com respeito àqueles que se ama.
Para De Neuter (2004), uma forma de resolução para o ciúme fraterno
entre um pai e seu filho está na possibilidade de compartilhar o significante fi-
lho de, sem confundir as gerações. Ou seja, que um homem possa renunciar
à sua condição de filho para garanti-la a seu próprio filho, ao mesmo tempo
em que a conserva com relação a seu pai, mas em outra posição. A dificulda-
de de renunciar ao lugar de filho também está em suportar o confronto com
a morte, que se põe em evidencia por ele nada mais ser do que um elo na
cadeia das gerações que se sucedem.
Ainda segundo De Neuter (2004), um outro aspecto também já muito
destacado desde Freud é a identificação que um homem pode fazer de
sua mulher com a mãe. A divisão, tipicamente masculina, entre a corren-
te terna e a corrente sensual tende a reaparecer no momento em que o
homem torna-se pai. Por esta via, pode ser interpretada a diminuição do
desejo, que não é raro encontrar no homem que se torna pai. Não sur-
preende a impossibilidade de desejar e de sentir gozo sexual com uma
parceira que é confundida inconscientemente com um objeto de amor in-
cestuoso. A falta do desejo do homem pode levar a mulher a reforçar o
vínculo sensual com seu filho, o que coloca mais obstáculo à realização
da castração simbólica.
Em seu texto sobre Leonardo da Vinci, Freud ([1910]1987) coloca
que:

No seu amor pelo filho, a pobre mãe abandonada procurava dar


expansão à lembrança de todas as carícias recebidas e à sua ânsia
por outras mais. Tinha necessidade de fazê-lo, não só para con-
solar-se de não ter marido mas também para compensar junto ao
filho a ausência de um pai para acarinhá-lo. Assim, como todas as
mães frustradas, substituiu o marido pelo filho pequeno, e pelo pre-
coce amadurecimento de seu erotismo privou-o de uma parte de
sua masculinidade (Freud[1910]1987, p.105).

Aqui se abre a oportunidade para retomar a questão que eu havia as-


sinalado no início deste trabalho. Que ligação poderíamos tecer entre a po-
sição desde a qual um homem se dirige ao objeto sexual e aquela desde a
qual pode vir a se colocar enquanto pai? Gostaria de trabalhar essa questão
a partir da leitura das fórmulas da sexuação, propostas por Lacan ([1972-
1973]1985) em seu seminário Mais, ainda.

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Paternidade e sexuação

Nas fórmulas da sexuação, são demarcados dois lados – um masculino


e um feminino – nos quais todo sujeito pode vir a se inscrever, independente
de seu sexo biológico. Nessa formulação, Lacan ([1972-1973]1985) segue a
tradição de Freud, ao considerar que a posição sexuada se organiza a partir
de uma mesma referência para ambos os sexos, a função fálica, escrita como
Φx, em relação à qual cada um dos lados irá se situar.

Do lado esquerdo do quadro, estão aqueles que se inscrevem do lado


masculino e que estão inteiramente submetidos à função fálica. Todos os ho-
mens se encontram marcados pela castração. Para todos eles vale a função
“Φx”, o que se escreve como "∀x Φx”.
Uma condição é necessária para definir uma classe enquanto totalida-
de: a existência de uma exceção. No caso do homem, em que há um con-
junto no qual todos são castrados, é necessário supor que há ao menos um
que escapa à castração. Nessa representação de uma figura masculina não
submetida à castração, podemos reconhecer o pai da horda primitiva, retra-
tado por Freud em Totem e tabu ([1913]1987), déspota detentor de todas as
mulheres. Há ao menos um ao qual a função fálica não se aplica, o que Lacan
escreve como ∃x Φx. Com isso, podemos, então, falar do homem ou dos ho-
mens, enquanto elementos que pertencem a uma mesma classe, definida a
partir de uma propriedade comum, ou seja, a de ser castrado (Laznik, 2003).
Lacan ([1972-1973]1985) não emprega outra função para definir o lado
feminino, que também está organizado com referência à função fálica. A par-
ticularidade do lado da mulher está no fato de que ali não está inteiramente
submetida a essa função. Uma mulher não é toda submetida à função fálica,
ou seja, ∀x Φx. Com esta escritura, Lacan cria a categoria do não todo, que
não faz parte da lógica aristotélica, mas é específica da lógica do inconscien-
te (Laznik, 2003).

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Amor ao pai

Nessas fórmulas, quem se alinha do lado mulher fica sem poder perten-
cer a uma classe fechada, pois não há um traço comum que as especifique.
Em função disso, não se poderia escrever A mulher ou As mulheres. Por isso,
Lacan escreve A mulher, barrando o Ⱥ. Como não há delimitação de um con-
junto fechado, deixa de existir o motivo para a suposição da exceção, ou seja,
de ao menos um ou uma que não esteja marcado pela castração, que escape
à função fálica. O que se escreve com uma dupla negação: ∃x Φx.
Passemos, agora, à parte inferior do quadro das fórmulas da sexuação,
proposto por Lacan ([1972-1973]1985). Do lado masculino, vemos que o su-
jeito barrado ($), marcado pela castração, tem como ponto de mira o objeto
causa de seu desejo, o objeto a, no campo da parceira feminina do outro lado
da barra vertical. O homem se endereça a um recorte no corpo da compa-
nheira: cabelos, voz, pernas, seios ou outra coisa qualquer. Para que possa
visar ao objeto causa de seu desejo, é preciso que ele possa se apoiar no falo
do seu lado, que constitui sua base de sustentação, “Φ”.
Se o falo só se apresenta enquanto falta para um sujeito, “– φ”, um ho-
mem só pode encontrar esta sustentação a partir do olhar do Outro, de sua
companheira do outro sexo. É ela quem vai garantir que uma das formas de
representação imaginária do falo está no campo dele. Para tanto, é neces-
sário que uma mulher suporte visar ao falo no campo de seu parceiro, o que
supõe que ela própria se reconheça faltante (Laznik, 2003). Por este motivo,
também podemos observar uma seta que parte do lado feminino em direção
ao falo, Φ, do lado masculino.
Para representar que uma mulher não está toda no gozo fálico, Lacan
([1972-1973]1985) traça duas flechas que partem de A mulher. Uma delas
visa o falo e atravessa a barra que separa o lado feminino do lado mascu-
lino. A outra aponta para S(Ⱥ), o significante da falta no Outro.
Laznik (2003) assinala duas condições do desejo masculino para se erigir.
Primeiro, para se sustentar em sua falicidade é preciso que o homem possa
ver no olhar dela que ele tem, ou seja, que ela o admira. Em segundo, para
que possa sustentar, com seu órgão, seu desejo por uma mulher, visar nela um
objeto que cause o seu desejo e com isso operar um recorte no corpo feminino.
A partir do que foi colocado a respeito das fórmulas da sexuação, pro-
ponho retomar as interrogações que vínhamos examinando a respeito das
questões em jogo no momento em que um homem se candidate a ocupar o
posto de pai.
No seminário XXII, RSI, Lacan propõe o seguinte:

Un padre no tiene derecho al respeto, si no al amor, más que si el


dicho, el dicho amor, el dicho respeto está – no van a creerle a sus

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orejas – père-versement orientado, es decir hace de una mujer ob-


jeto a minúscula que causa su deseo (Lacan, 1974-1975).

Lacan coloca como pré-condição para que um pai seja investido de


amor e de respeito, que este faça de uma mulher objeto a, causa de seu de-
sejo. Isto significa que o vetor que sai de $, do lado do homem, possa cruzar
para o outro lado, incidindo em a, do lado da mulher.
Flessler (2008), ao comentar este trecho do seminário XXII (Lacan,
1974-1975), afirma que um pai necessita estar em condição desejante,
ou seja, ser fisgado pelo desejo que lhe provoca sua parceira, de modo a
dirigir-se a ela restituindo-lhe sua feminilidade, após tornar-se mãe. Com
isso, ela pode passar a ser não-toda mãe, reassegurando sua condição
feminina.
Mais ainda. Se, como mencionei antes, um homem só pode encontrar o
falo a partir do olhar de sua companheira, é na medida em que ele a interpele
no lugar de objeto causa de desejo que ela poderá lhe indicar que o falo está
no campo dele. Assim, a possibilidade de se sustentar como pai só é viável
diante de sua posição de sujeito barrado, marcado pela castração e, por isso,
desejante. Do lado da mulher, esta operação lhe permite reorientar a busca
do falo do lado do homem, retirando do filho a condição de objeto que preen-
che a falta materna.
Estamos habituados a sublinhar o papel da palavra da mãe na efetu-
ação ou não da metáfora do Nome-do-Pai. Isso é bastante verdadeiro na
clínica. Mas, a partir da citação de Lacan, coloco aqui a questão a respeito
da posição desde a qual o pai/homem interpela sua parceira, pensando que
esta também é fundamental naquilo que poderá vir a operar. Caso contrário,
o lugar do homem fica reduzido à condição passiva de quem aguarda por um
lugar que sua companheira lhe dá ou não lhe dá. Trata-se de um lugar do
qual um homem pode vir a tomar posse, ativamente, desde que sua condição
desejante assim o oriente. Nesse sentido, é necessário que todo o pai seja
também um conquistador de seu lugar e de sua condição.
Flessler (2008) evoca o duplo sentido que a expressão desejo dos pais
pode adquirir. Esta expressão é comumente utilizada para fazer referência ao
desejo dos pais em direção a um filho. Esta autora propõe que escutemos aí
também as incidências do desejo dos pais um pelo outro. Assim, o desejo dos
pais é revelador tanto do desejo dos pais pelo filho quanto daquele entre eles,
enquanto homem e mulher desejantes.
Ainda segundo Flessler (2008), somente nessas condições a palavra
do pai adquire valor performativo, ou seja, valor de ato. Por aí, sua palavra
passa a ter efeitos.

134

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Amor ao pai

A função nomeante do pai introduz uma restrição ao gozo na estrutura


em que ele próprio está incluído, tanto no laço mãe-filho como no gozo que
ele próprio experimenta. Possibilita a proibição e limita o gozo em vários sen-
tidos: ao filho, ao indicar-lhe que há uma mulher com a qual não alcançará
satisfação; à mãe, ao desejá-la como mulher, e fazê-la não-toda mãe; e a si
mesmo, ao recordar que seu lugar de pai é devedor de um nome.

REFERÊNCIAS
DE NEUTER, Patrick. Mal-estar na paternidade. Revista da Associação Psicanalítica
de Porto Alegre, Porto Alegre, n.27, p.57-77, set. 2004.
FLESSLER, Alba. El niño en análisis y el lugar de lós padres. Buenos Aires: Paidós, 2008.
FREUD, Sigmund. Sobre as teorias sexuais das crianças [1908]. In:______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Ja-
neiro: Imago, 1987, v.9.
______. Análise de uma fobia de um menino de cinco anos [1909]. In:______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Ja-
neiro: Imago, 1987, v.10.
______. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância [1910]. In:______. Edi-
ção standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago , 1987, v.11.
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gicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago 1987, v.13.
______. ‘Uma criança é espancada’: uma contribuição ao estudo da origem das per-
versões sexuais [1919]. In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987, v.17.
______. Moisés e o monoteísmo: três ensaios [1939]. In:______. Edição standard bra-
sileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1987, v.23.
LACAN, Jacques. O seminário 3: As psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1988.
______. O seminário 4: A relação de objeto e as estruturas freudianas [1956-1957].
Publicação para circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto
Alegre, 1992.
______. O seminário 20: Mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
______. O seminário 22: R.S.I. [1974-1975]. Inédito (CDROM – Obra de Jacques
Lacan).
LAZNIK, Marie Christine. O complexo de Jocasta. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 2003. 
POMMIER, Gérard. A ordem sexual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
PORGE, Erik. Os Nomes do Pai em Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 1998.
THOMAS, Jèrome. As crianças tupinambás e sua educação no século XVI: ternura,
dor, obediência. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR, v.14, n.1
(34), p.23-47, jan./abr. 2014.

Recebido em 29/03/2015
Aceito em 20/06/2015
Revisado por Maria Ângela Bulhões

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.136-147, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS
JOGADORES VORAZES1

Paulo Gleich2

Resumo: O texto faz uma breve apresentação do universo dos jogos eletrônicos,
conhecidos como videogames, muito presentes na cultura contemporânea, mas
pouco nos escritos de psicanalistas. Parte de um fato recorrente na clínica – o
uso massivo que pacientes, especialmente adolescentes, fazem desses jogos –
para interrogar sua possível função na passagem adolescente. Para isso, toma
como caso a narrativa da série de jogos Assassin’s Creed, muito popular entre
adolescentes, na qual se desdobram temas como a castração, a filiação e a trans-
missão.
Palavras-chave: videogame, adolescência, filiação, castração.

HUNGRY GAMERS
Abstract: The present text brings a short introduction to the universe of electronic
games, also known as video-games, very popular in contemporary culture, but not
so much in psychoanalytic writings. Starting from a recurring fact in the clinic – the
massive use by many patients, especially teenagers, of these games –, it intends
to interrogate its possible function in the adolescent passage. For that matter, it
takes as a case the narrative of the game series Assassin’s Creed, very popular
amongst teenagers, in which themes such as castration, filiation and transmission
are unfolded.
Keywords: video-game, adolescence, filiation, castration.

1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Discursos a flor da pele, abril de
2014, em Porto Alegre.
2
Jornalista e psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); colu-
nista do caderno PrOA do jornal Zero Hora. E-mail: p_gleich@yahoo.com
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Jogadores vorazes

E m 2013, um fato marcou a indústria do entretenimento: pela primeira vez,


um jogo de videogame faturou mais no primeiro dia de vendas que qual-
quer filme ou disco na história. Trata-se de Grand Theft Auto V, mais conheci-
do como GTA, do qual muitos certamente já ouviram falar, seja na mídia, nos
consultórios, ou mesmo por filhos, netos e sobrinhos. É um famoso e con-
troverso jogo no qual os protagonistas são bandidos e as missões, roubos,
assassinatos e outros crimes. É também a maior superprodução da história
dos games, e apenas um filme de Hollywood até agora superou os custos de
GTA V. Mas não são apenas as cifras econômicas que impressionam: nos
Estados Unidos, em dois terços dos lares já se joga algum jogo eletrônico.
Entre crianças e adolescentes entre 2 e 17 anos, são 90% os que jogam. Não
existem muitos dados a respeito sobre o Brasil, mas podemos intuir, pelo
domínio norte-americano na indústria cultural – e a amostragem à qual cada
um tem acesso – que, mesmo não sendo números idênticos, este não é um
fenômeno irrelevante.
Os videogames se tornaram mundialmente populares no final da década
de 70. Naqueles tempos eram jogos simples, tanto em termos visuais como
narrativos: simuladores de pingue-pongue, naves que precisavam destruir
alienígenas, heróis que resgatavam a mocinha. A história era o de menos no
jogo, embora a fantasia do jogador pudesse torná-la mais atraente. O que
contava mesmo era a habilidade do jogador: era um passatempo repetitivo,
meio masturbatório, que testava a destreza e precisão em manejar seu joys-
tick – traduzindo literalmente, o “pau da alegria”... Essa característica segue
presente nos games até os dias de hoje, mas a grande transformação, ao
longo das várias gerações de jogos, se deu no que tange às narrativas: tanto
no que apresentam visualmente, quanto na complexidade das histórias.
A narrativa se deslocou de acessório que ambientava o jogo para ser
um componente central de muitos games atuais. O avanço da tecnologia tem
permitido a criação de histórias cada vez menos repetitivas e lineares, com
desdobramentos a partir das ações dos jogadores ao longo do jogo. Cada
vez mais são incorporados aos games elementos da narrativa cinematográfi-
ca, com uma grande diferença: a participação do jogador é mais ativa que a
do espectador; a história só se desenrola à medida que este jogar.
O público também mudou desde o surgimento dos games. Passou de
um passatempo de crianças e adolescentes, sobretudo meninos – e alguns
poucos adultos nerds –, para uma atividade praticada por pessoas de todos
os sexos e faixas etárias. Hoje, a idade média de quem joga videogames é de
35 anos; grande parte deles se iniciaram na infância ou adolescência nos ga-
mes. Os jogos também não são mais exclusividade de consoles e computa-
dores, estão também nos tablets e aparelhos celulares. As mulheres também

137

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Paulo Gleich

estão mais presentes nesse universo, embora ainda em menor proporção:


nos Estados Unidos, elas já são 40% dos gamers.
Mesmo sendo cada vez mais frequentado por sujeitos de ambos os se-
xos, este ainda é um universo masculino. Um estudo recente mostrou que
70% das mulheres que participam de jogos on-line criam avatares masculi-
nos como forma de se movimentar nesse universo de machos hiperbólicos
– guerreiros, lutadores, justiceiros. A maioria dos jogos simula campeonatos
de futebol, corridas, guerras, lutas, resolução de mistérios... Há um aspecto
comum à maioria desses jogos, a disputa fálica: trata-se de vencer, ser o mais
rápido, derrotar os oponentes, seja em jogos solitários ou multiplayer. Mas
esse é apenas um dos aspectos, talvez o mais evidente, porque é caracterís-
tica de quase todos os jogos, não só os eletrônicos. A principal diferença des-
tes são as narrativas que se desenrolam no espaço, entre o início do jogo e a
vitória, que tratam de questões menos simples que o mero ganhar ou perder
– que, por si só, como bem o sabemos da clínica, já é toda uma questão em
si. Entram em jogo nessas histórias questões como a filiação, a fraternidade,
a negociação, o compromisso – enfim, outros desdobramentos da castração.
Muitos já consideram os games uma forma de arte. Há cursos univer-
sitários de desenvolvimento de jogos e pesquisadores dedicados aos game
studies. O que antes era, no melhor dos casos, só uma brincadeira tola, quan-
do não uma ameaça à infância e juventude, pelo seu “potencial de viciar”,
passou a ser uma produção cultural reconhecida e um meio de transmissão
de narrativas que capturam milhões, e nesse sentido isso diz respeito à psi-
canálise. Os games adentram nossos consultórios sobretudo nas palavras
dos adolescentes, que dedicam a eles muitas horas de seu tempo. Também
na fala dos pais, muitas vezes desconcertados pela forma como seus filhos
submergem nesse universo lúdico virtual. Culpam-se os games pelas difi-
culdades na escola, pelos (muitas vezes apenas supostos) impasses nas
relações sociais dos filhos, pela falta de convivência familiar. O videogame
aparece como um dos avatares contemporâneos do sempre revivido temor a
uma geração perdida, que fracassará chegada a hora de tomar as rédeas de
suas vidas e do mundo.
Evidentemente não é possível subscrever essa posição alarmista, mas
também não podemos virar as costas para isso, afinal de contas jogos e
histórias são coisas muito sérias para nós. É importante nos aproximarmos
desse universo para tentar entender um pouco melhor o que acontece nessas
telas que capturam tantos sujeitos. Pouco ainda se falou desde a psicanálise
sobre games, e o viés no qual geralmente se centram as leituras é o mais
patológico: a adicção aos jogos, ponto de aproximação com a toxicomania.
Esse é sem dúvida um aspecto importante e muito atual, inclusive há toda

138

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Jogadores vorazes

uma categoria de jogos que se vale, assim como os jogos de azar, das fra-
quezas humanas para capitalizar. Mas não é sobre esse aspecto que gostaria
de me debruçar neste momento, e, sim, deslocar a análise para o conteúdo
dos jogos. Como é um universo muito amplo, gostaria de tomar como recorte,
a partir de um jogo como caso, uma interrogação sobre o papel dos jogos na
cada vez mais prolongada travessia da adolescência.
A adolescência tem essa característica de ser igual e diferente a cada
geração. Igual em termos da operação subjetiva que nela se opera, diferen-
te nas roupagens que ela assume. Trata-se de um período de necessária
ruptura com o heimlich, que, para o adolescente, passa a ser cada vez mais
unheimlich2. São frequentes as queixas dos pais sobre “essa adolescência
de hoje”, que não entendem, esquecendo-se de que é essa justamente uma
das marcas da adolescência: fazer-se não ser entendido por eles, habitar um
universo estrangeiro, procurar significantes que os representem para outros
significantes que não os familiares.
A queixa dos pais sobre o que os filhos fazem – por exemplo, ficar tran-
cado no quarto, jogando videogames – comporta a nostalgia da própria ado-
lescência, carregada de tintas mais brilhantes graças ao recalque, mas tam-
bém a ferida narcísica, por seus filhos não fazerem o que faziam ou, no mais
das vezes, aquilo que gostariam de ter feito em sua própria adolescência.
Por que não encontram mais os seus amigos na rua? Por que não vão mais
a festas e eventos sociais, por que não lêem mais, por que não se dedicam
a algo criativo e produtivo? Enfim, a pergunta de muitos pais é a tradução de
sua inconformidade com o fato de seus filhos não gozarem segundo suas ex-
pectativas. Dificilmente um pai vai se queixar de seu filho por ele passar muito
tempo lendo ou praticando esportes, mesmo que essas atividades ocupem
as mesmas horas que os jogos. Há um desconhecido nesse mundo habita-
do pelo filho que produz um estranhamento, que dentro do heim introduz o
estranho.
Mas o que será que os adolescentes encontram nesse universo ao qual
se dedicam com tanto afinco? Não podemos nos contentar em simplesmente
colocar o videogame na série dos gadgets da lógica capitalista para positivar

2
Heimlich em alemão significa caseiro, familiar; unheimlich, seu contrário: estranho, estrangeiro.
Esse último termo, conforme Freud trabalha em O estranho ([1919]1982), comporta também seu
contrário, sendo portanto um estranho familiar.

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o objeto e com isso tamponar a falta e a angústia que ela evoca. Penso que
ambas as dimensões dos videogames, por um lado o jogo, por outro a narra-
tiva, são elementos importantes na passagem adolescente.
Lembremos alguns elementos disso que se convencionou chamar ado-
lescência. Contardo Calligaris (2001) resgata, em seu livro sobre a adoles-
cência, o termo “moratória”, de Erik Erikson. Os adolescentes são prisioneiros
desse limbo entre infância e vida adulta, sem que nem eles, nem seus pais
saibam como e quando conseguirão sair dele. Por um lado, os pais esperam
que seus filhos tenham sucesso e sejam autônomos, por outro, têm cada vez
mais dificuldades em sustentar os ensaios – e frustrações – necessários para
que isso seja possível. Dizem “vai”, mas mantêm a rédea curta, seja com res-
trições, seja com a sedução do conforto de permanecer mais um pouquinho
no quentinho do lar. Exigem crescimento e independência, mas demandam
que as coisas não mudem muito, gozam com a condição de dependência dos
filhos (e sua própria destes, claro). Assim, a saída de casa, real ou metafori-
camente, vai se estendendo ad infinitum, às vezes fazendo com que pais e
filhos saiam da casinha. Ninguém sabe muito bem quando termina essa mo-
ratória, não há regras ou rituais que estabeleçam um momento de “virada”. O
trabalho de produzir a passagem à adultez recai sobre o adolescente, perdido
entre a nostalgia da infância, sustentada também pelos pais, e pelo ideal de
realização – profissional, amorosa – que talvez lhe garantiria a condição de
“adulto independente”.
Já não são mais considerados crianças, ainda não têm os direitos dos
adultos, e não sabem muito bem quando de fato isso acontecerá. Enquanto
isso, tentam desdobrar as questões que esse tempo lhes coloca: o que é ser
homem ou mulher? Quais são os limites e possibilidades desse corpo dife-
rente e dessa condição que começa a se inaugurar com o fim da infância?
Enfim, se recolocam a pergunta sobre a castração – essa mesma pergunta
que, antes, na infância, as crianças vão tentar, também na brincadeira e na
fantasia, desdobrar. Porém, não valem mais as respostas dos pais ou de
quem até então ocupava lugar de saber. Vão procurá-las em novos ideais,
nas identificações com seus pares, nas tribos, nos livros, jogos, músicas e...
nos videogames. Não à toa são jogadores tão vorazes – mas não apenas
jogadores: também leitores, espectadores, navegadores, namoradores. Ten-
tam construir com aquilo a que têm acesso ficções que lhes darão suporte
para entender e ingressar na tal “vida adulta”, já que ninguém responde satis-
fatoriamente a essa pergunta, e que as respostas familiares vêm carregadas
com o peso das paixões edípicas e narcísicas que ambientam o lar.
Junto com a reedição do complexo de Édipo, o adolescente também
reedita o movimento exploratório da primeira infância, quando os bebês ad-

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quirem autonomia para se deslocar. Essa nova autonomia, mesmo que re-
lativa, aliada à necessidade de explorar outros cômodos que não os bem
conhecidos do Heim3, os leva a percorrer caminhos até então desconhecidos,
caminhos estrangeiros aos da família, não raramente produzindo nos pais o
mesmo assombro que provocam os bebês que se aproximam de lugares “pe-
rigosos” da casa ou do entorno. Essa exploração não se restringe, evidente-
mente, ao espaço físico. O afã exploratório encontra um de seus lugares nos
jogos: em muitos é possível explorar mundos, mais ou menos fantásticos,
sem necessariamente seguir uma missão ou linha narrativa preestabelecida.
São os universos virtuais chamados “mundo aberto” ou “caixa de areia” –
uma alusão à possibilidade de criação de pequenos mundos da infância. O
GTA V, que citei no início, é um deles: reproduz uma versão fictícia de Los
Angeles, com vários bairros – dos mais ricos aos mais pobres –, nos quais
é possível circular livremente, interagir com os transeuntes, observar cenas
cotidianas que se desenrolam ao redor.
Explorar a cidade e suas possibilidades de encontro, seus perigos e
novidades é cada vez atividade mais restrita, quando não impossibilitada nos
centros urbanos, não só do Brasil. A ameaça da violência ligada ao imaginário
paranoico em torno do espaço comum restringe cada vez mais sua circulação
aos espaços vigiados, de certa forma ainda sob o olhar dos pais – o clube, o
shopping, as festas às quais são levados e trazidos. Não que isso seja cau-
sa da afinidade à exploração de universos virtuais; além disso, é importante
situar que esses são geralmente mais diversos, mais fantásticos que as vizi-
nhanças às quais teriam acesso. Em alguns jogos com essa característica,
é possível inclusive fazer contato com outros jogadores, trocar estratégias e
recursos, encontros e desencontros, fazer amigos. O mundo virtual – e aqui
não apenas os games – oferece uma certa solução de compromisso entre as
demandas de pais e seus filhos: o adolescente segue sob o olhar dos pais
(para tranquilidade destes), mas também longe, porque eles não sabem mui-
to bem o que seu filho está fazendo ali.
A adolescência entra pelos olhos, como lembra Ricardo Rodulfo (2004),
o que aponta para a preponderância do imaginário nesta época de tantas
reedições – do Édipo, do estádio do espelho, da relação com o Outro. O

3
“Lar”, em alemão. Ver nota anterior.

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semblante está em jogo de uma forma inédita, o que se evidencia pelas al-
terações na forma do vestir, do falar, do comportamento... Daí a voracidade
dos adolescentes por tudo que é da ordem das aparências, para revestir a
fragilidade simbólica e órfã do Outro familiar, enquanto buscam avidamente
novos discursos, que lhes deem sustentação após a queda que sofreram.
Mas não é só de rupturas que tratam os games: eles também põem em
cena a continuidade, já que esses jogos não são deixados para trás com os
outros brinquedos da infância. Assim como filmes e músicas, também os ga-
mes são apreciados desde os primórdios: mudam os estilos e os gostos, mas
segue-se jogando. Há adolescentes que pertencem a uma segunda geração
de gamers, para os quais jogar não está em descontinuidade com o familiar,
pelo contrário: é um elo lúdico entre gerações, assim como tradicionalmente
são os esportes, como o futebol ou outra atividade cultural da qual se com-
partilha, como um certo traço de pertença. Um paciente que decide tornar-se
desenvolvedor de jogos diz que teve contato com o videogame “no colo do
pai”...
Enfim, esses são só alguns elementos para pensar a complexidade
das relações possíveis entre adolescentes e videogames. Para adentrar
um pouco mais nesse território, trago como “caso” Assassin’s Creed, uma
popular série de jogos que conta com vários títulos, e que também se es-
tendeu para outras mídias: existem livros e quadrinhos, curtas-metragens
de animação, há um filme em estado de produção. A saga foi desenvolvida
para o público adulto, mas acabou se tornando muito popular entre adoles-
centes. São histórias que se passam simultaneamente em dois tempos, no
presente e no passado, porém com vistas ao futuro: há uma missão a ser
cumprida, nada menos que o futuro da humanidade está em jogo.
A série narra a luta milenar entre duas ordens adversárias: de um lado
os “assassinos”, do outro os “templários”. O personagem principal da saga
pertence à ordem dos assassinos, originária da união dos deuses com huma-
nos – como os pais idealizados da infância, semi-deuses. Os assassinos – os
“mocinhos” – são defensores da liberdade dos humanos, já os templários
lutam pelo controle dos sujeitos através da dominação e da opressão. Os
templários são, no mundo moderno, dirigentes políticos e de grandes corpo-
rações, elemento bem afim às narrativas contemporâneas.
O personagem principal, presente em todos os jogos da saga, é Des-
mond Miles, um descendente dos assassinos que vive nos dias de hoje. Des-
mond foi criado em uma fazenda isolada do resto do mundo, treinado para
seguir o destino familiar de lutar contra os templários. Aos 16 anos, porém, se
rebela contra a situação em que vive: crê que aquilo tudo é uma bobagem,
considera seus pais paranoicos, quer ver como é o mundo “de verdade”.

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Jogadores vorazes

Abandona o lar e se muda para Nova Yorque, esse lugar onde “ninguém me
conhece, posso ser o que quiser”. Mas o sossego do desgarramento não é
duradouro: alguns anos depois, é obrigado a se reencontrar com suas ori-
gens quando é capturado por templários. Estes querem obter, através da
“memória genética” de Desmond, informações sobre como obter as “peças
do Éden”, artefatos criados pelos deuses, que têm o poder de controlar a
humanidade – enfim, o próprio falo materializado. É esse o objeto da disputa
entre ambas as ordens ao longo de toda a história. Quem o detém, pode fazer
uso dele para sua causa, seja ela a defesa das liberdades individuais ou a
dominação dos sujeitos.
Nas mãos dos templários, Desmond é conectado a uma máquina cha-
mada Animus, como vocês sabem, “alma” em latim. Esse dispositivo per-
mite acessar informações de seus ancestrais, que estão gravadas em seu
DNA. Mas não são meros dados genéticos que ele contém, é a história dos
antepassados que está gravada, de forma indelével, no corpo dele. Através
do Animus, Desmond pode reviver essas histórias, experienciá-las. No início
tem medo de revivê-las, as bloqueia. Mas ao longo do processo vai também
voltando a se conectar com seu passado, com a história que havia renegado
ao deixar para trás a família.
A maior parte do jogo é justamente dedicada à revivescência dessas
memórias: o jogador encarna, em cada título da série, um antepassado de
Desmond, na época histórica em que aquele viveu. Depois de iniciado o pro-
cesso, acessar e reviver as memórias passa a não ser mais apenas para
obedecer a seus captores, e com isso manter-se vivo. Desmond se vê toma-
do pelas lembranças, que pouco a pouco se confundem com sua vida atual e
reescrevem sua história. Passa a querer se apropriar da história de seus an-
tepassados, para poder libertar-se dessa “carga” que corre em seu sangue,
mesmo contra sua vontade. Já não há volta atrás para o estado de tranquila
ignorância que vivia quando deixou a casa dos pais.
Será a semelhança com uma análise mera coincidência? A máquina
com a qual ele acessa suas memórias é, inclusive, semelhante a um divã.
Enquanto mergulha em suas revivescências, é acompanhado por uma com-
panheira que monitora silenciosamente o resgate de suas memórias, apenas
ocasionalmente fazendo-se ouvir para o ajudar a entender aquilo que ele está
acessando.
A narrativa de Desmond se reduplica na narrativa de seus antepas-
sados, ambos – Desmond e seu ancestral – passam por um processo de
apropriação de sua história. Penso que essa estrutura é paradigmática da
passagem adolescente: vai de um primeiro momento em que os persona-
gens vivem uma determinada relação com a casa, a família, a cidade, para

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Paulo Gleich

então descobrir que haviam sido “enganados”: o que se apresentava até


então como verdade era apenas semblante. Trata-se, nesse momento, de
abandonar apenas as questões pessoais e familiares para inscrever-se em
uma “causa maior que eu mesmo”. Não à toa são os adolescentes/jovens os
alvos de organizações políticas, muitas vezes à margem da lei: a fragilização
do Outro familiar os joga em uma busca de outro Outro, que lhe dê respos-
tas mais consistentes. Na busca de um discurso que não fosse semblante,
brincam – muito a sério – com os semblantes.
O credo dos assassinos consiste em uma frase repetida várias vezes
ao longo dos jogos: “nada é verdade, tudo é permitido”. Nada mais adoles-
cente, quando o sujeito se depara com o “engano” do semblante sustentado
pelos pais: as verdades que enunciavam não são absolutas, não têm valor
universal. A suposta verdade revela sua face de semblante e abre para uma
pergunta: o que é então verdadeiro? Daí também os flertes com a transgres-
são, com o teste de limites para além daqueles que até então vigoravam.
Podemos lembrar aí da pergunta que atinge a todos, em alguma medida, em
nossos tempos “adolescentes”; o esgarçamento do Outro no mundo ociden-
tal deixa todos mais ou menos órfãos de respostas, e o sucesso das saídas
fundamentalistas corrobora isso.
Em uma passagem do jogo, um personagem explica esse credo como
uma “observação sobre a realidade”. “Nada é verdade” diria da fragilidade da
fundação da sociedade – em outras palavras, da matriz simbólica que orga-
niza a realidade compartilhada. “Tudo é permitido” diria respeito à responsa-
bilidade em relação às ações; também o que é proibido pela lei é permitido
do ponto de vista da ação individual, mas vive-se com as consequências das
próprias ações e escolhas. Impasse que, como vimos, os adolescentes fre-
quentemente desdobram em seus testes com seus “limites”.
Na saga de Desmond, ele acaba fugindo dos templários que o haviam
capturado e se juntando com outros jovens assassinos de sua idade. Segue
investigando suas memórias, mas para garantir que os templários não terão
acesso às “peças do Éden”. Reencontra-se com seu pai, agora com ajuda
de iguais – poderíamos dizer, irmãos –, e este se junta a Desmond e seus
companheiros. Parece ser este também um mote dos jogos da série: o luto
pela (necessária) morte do pai imaginário, a busca pelo pai simbólico. Não
apenas os personagens se vêem órfãos desse pai – seja por abandoná-lo ou
porque este morreu –, mas muitos dos adolescentes que comandam esses
personagens. O reencontro com o pai se dá após sua morte, e já em outra
posição: compartilham de uma mesma condição, são castrados. Lembremos
que a nostalgia do pai não é só uma questão adolescente: vivemos em um
mundo órfão de um pai que garanta lugares determinados, divididos entre a

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Jogadores vorazes

nostalgia de tempos mais “paternos” e o delírio individualista no qual não há


história nem pai algum.
A ilusão de um discurso que não fosse semblante é o que nos anima,
como neuróticos, a seguir falando: acreditamos poder chegar a um encer-
ramento do real através do simbólico e do imaginário, construir um sentido
definitivo da realidade. Lacan ([1971] 2009), logo no início do seminário 18,
responde à pergunta que dá nome ao estudo daquele ano com um balde de
água fria em nossas pretensões neuróticas: não há discurso que não seja
semblante, porque discurso é semblante. Impossibilitados do gozo da coisa,
nos resta o gozo do semblante, esse gozo meia-boca, “paródia” do gozo “de
verdade”, mas que nos permanece alheio, é impossível. É da nossa condi-
ção um contínuo reencontro com a castração e com o luto da ilusão sempre
novamente sustentada pelo semblante. Luto esse, conforme vimos, particu-
larmente intenso na adolescência, com a queda do como ideal que ainda
sustentava a criança em uma certeza de que as aparências correspondem
aos fatos.
Se aquilo que até então se sustentava como verdade é desnudado em
sua dimensão de semblante, o que se coloca em causa é justamente a dimen-
são do semblante como fato. Podemos pensar a forma como os adolescentes
se apegam ao semblante como uma defesa ante o buraco que se anuncia: se
aquilo que era verdade é apenas semblante, então talvez toda a “realidade”
seja, ela mesma, também semblante. Lembremos aqui, novamente, o credo
dos assassinos: nada é verdade, posto que a verdade escapa à apreensão
pretendida pelo semblante/discurso. Porém, o que joga em uma condição de
desamparo também abre a possibilidade da escolha, no hiperbólico “tudo é
permitido”. Se aquilo que até então se apresentava como lei inquestionável
não o é mais, o que vale então? Podemos pensar os jogos da adolescência
como uma tentativa de responder, de voltar a dar contorno a esse “tudo é per-
mitido” que se abre, pois é com a dimensão da castração que se dão esses
jogos. Isso não apenas na narrativa, mas também no ganhar/perder, morrer,
nos limites impostos pelas condições de jogo. Vale lembrar os jogos de regras
que as crianças às voltas com a castração tão insistentemente jogam, numa
tentativa de apreender aquilo que estão elaborando. Na adolescência, esses
jogos se dão em outro âmbito, mas a questão talvez não seja tão diferente.
O que pode e o que não pode? Que consequências têm meus atos e minhas
palavras frente ao outro? Até onde meu corpo aguenta? O que vai acontecer
se fizer aquilo que até então tomava como impossível?
Não à toa, a saga de Desmond convoca os adolescentes: é uma ficção
sobre a morte do pai imaginário, mas também da inevitabilidade de se haver
com o luto por essa morte para aceder à condição adulta, que é a consta-

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Paulo Gleich

tação de que, lamentavelmente, todos são castrados. Como consequência,


outra posição em relação ao pai real, de uma certa solidariedade fraterna, e
um reposicionamento frente aos significantes paternos.
Mas pensar os games não nos leva apenas a interrogar o luto do ado-
lescente. Também merece atenção a posição dos adultos – pais, educadores,
por que não, os psicanalistas? – frente a essa nova forma que os adolescen-
tes encontram também para desdobrar o luto pelo fim da infância. Lembremo-
nos aqui sobretudo das queixas e acusações de “fuga da realidade”, na qual
os adolescentes se colocariam ao imergir no universo dos jogos, alheios aos
pedidos para que tenham mais interação com o “mundo real”.
Convoco aqui uma passagem de Agamben, em Infância e história, acer-
ca da nostalgia dos adultos na transmissão às novas gerações.

Não é certamente sinal de saúde que uma sociedade seja tão ob-
cecada pelos significantes do próprio passado, preferindo exorcizá-
los e mantê-los indefinidamente vivos como fantasmas, a dar-lhes
sepultura, e que ela tenha tanto medo dos significantes instáveis do
presente a ponto de não conseguir enxergá-los senão como porta-
dores da desordem e da subversão. […] por isso, os adultos que se
servem dos fantasmas do passado apenas como espantalho para
impedir que as próprias crianças se tornem adultos, e que se ser-
vem das crianças apenas como álibi para encobrir a própria incapa-
cidade de enterrar os fantasmas do passado, é preciso lembrar que
a regra fundamental no jogo da história é que os significantes da
continuidade aceitem trocar de lugar com os significantes da des-
continuidade, e que a transmissão da função significante é mais
importante que os próprios significados (Agamben, 2008, p.106).

Agamben (2008) aponta aqui para o impasse na realização do luto do


lado dos adultos, presos a fantasias nostálgicas e a seu narcisismo, que in-
sistem em colar sobre as gerações seguintes, para se haverem com o mesmo
fato com o qual os adolescentes têm de se haver: a dita “realidade” é ape-
nas... semblante! Privados do acesso ao real, a realidade à qual temos de
fato acesso é apenas a realidade psíquica, essa atravessada de cabo a rabo
pela função significante, que nos priva de um acesso à verdade sobre o gozo.
Restam-nos as aparências com as quais o semblante a reveste, e o gozo à
“meia boca”, ao qual a perda do gozo “de fato” nos condena.
Os significados são sempre relativos ao falo imaginário, e este assu-
me diferentes roupagens ao sabor das épocas. Não seria essa nostalgia de
tempos melhores, mais “verdadeiros”, uma impossibilidade de fazer o luto de

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Jogadores vorazes

significações anteriores, em outras palavras, o luto da perda do falo imaginá-


rio? Esse que as gerações seguintes, especialmente na adolescência, vêm
justamente apontar: as significações de vocês já não bastam.
Interessante a escolha de palavras de Agamben: “regra fundamental do
jogo da história”. Ela evoca outra regra fundamental, a da análise, esse jogo
peculiar no qual se joga, na transferência, o luto de significações fixas e já
caducas; associação que produz um encontro – ou desencontro – com o en-
godo do semblante, mas também a sua inevitabilidade, pois a verdade sem-
pre escapa ao discurso. É também um encontro com a dimensão radical que
nos estrutura: o significante enquanto função, com isso nunca plenamente
significável – embora se acredite que sim, deve haver um discurso que não
seja semblante! Por outro lado, é com o vazio de sentido que lhe é inerente
que podemos jogar, construir e reconstruir histórias – e realidades – em torno
de uma verdade para sempre perdida e inacessível.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e sobre o jogo.
In:_______. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo
Horizonte, UFMG: 2008.
CALLIGARIS, Contardo. Adolescência. São Paulo, Publifolha: 2001.
FREUD, Sigmund. Das Unheimliche [1919]. In:______. Studienausgabe, Bd. IV. Psy-
chologische Schriften. Frankfurt am Main: Fischer, 1982.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante
[1971]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor: 2009.
RODULFO, Ricardo. El psicoanálisis de nuevo. Buenos Aires, Eudeba: 2004.

Recebido em 30/03/2015
Aceito em 24/07/2015
Revisado por Joana Horst

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.148-154, jul. 2014/dez. 2014

O ATENDIMENTO DE UMA
TEXTOS FAMÍLIA: da privatização do dano
à palavra e ao efeito da escrita1

Jorge Broide2

Resumo: Este trabalho relata o atendimento a um paciente psicótico e sua fa-


mília, que teve um filho assassinado pelo aparelho repressivo da ditadura militar
brasileira (1964 – 1985). A partir do processo analítico a família entrou com pro-
cesso na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para a anistia política ao
filho assassinado. O texto percorre o caminho desde a supressão do luto e da
palavra, pela repressão política que causa a privatização do dano, até o efeito da
escrita e a elaboração social do luto.
Palavra-chaves: ditadura, anistia, palavra, luto, psicanálise.

CARE OF A FAMILY: from damage privatization


to the word and the effect of the writing
Abstract: This paper reports the care of a psychotic patient and his family, in
which a son had been murdered by the repressive apparatus of the Brazilian mili-
tary dictatorship (1964-1985). Some time into the psychoanalytical process, the
family filed a lawsuit in the Amnesty Commission of the Ministry of Justice for the
political amnesty to the murdered son. The text makes its way through the sup-
pression of the mourning and the word by the political repression, whose effect is
the privatization of damage, until the effect of the writing and social elaboration of
the mourning.
Keywords: dictatorship, amnesty, word, grief, psychoanalysis.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e discurso em psicanálise, em
novembro de 2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista, analista institucional, membro da APPOA, professor do Curso de Psicologia da
PUC/SP, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e do Centro de Estudos Psicanalíticos.
Mestre em Psicologia Clínica pela PUC de Campinas e Doutor em Psicologia Social pela PUC
de São Paulo. Autor de Psicanálise nas situações sociais críticas: violência, juventude e periferia.
Uma abordagem grupal (Juruá Editora Psicologia), entre vários artigos publicados em diferentes
livros e revistas. Coordenador da Coleção Biblioteca Juruá Práxis Psicanalítica da Juruá Editora
Psicologia. E-mail jorgebro@uol.com.br
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O atendimento de uma família...

I Introdução

C “ ena 9 – Ler, escrever, contar, falar. Nazira (avó de Nawal) está morrendo.
Nazira: Nawal! (Nawal, de 16 anos, vem correndo)
Segura minha mão! Nawal!
Nawal, tem coisas que a gente tem vontade de dizer no momento da
morte. Coisas que a gente gostaria de dizer às pessoas que a gente amou,
que nos amaram... dizer a elas... para ajudá-las uma última vez... armá-las
para a felicidade!... Faz um ano já, uma criança saiu do teu ventre e desde
então você anda com a cabeça nas nuvens. Não caia, Nawal, não diga sim.
Diga não. Recusa. Teu amor foi embora, tua criança foi embora. Ele fez um
ano. há apenas alguns dias. Não aceita Nawal, não aceita nunca. Mas para
recusar é preciso saber falar. Então se arma de coragem e trabalha duro! Es-
cuta o que uma velha mulher que vai morrer tem pra te dizer: aprende a ler,
aprende a escrever, aprende a conta, aprende a falar. Aprende. É a tua única
chance de não se parecer conosco. Promete isso pra mim.
Nawal Te prometo.
Nazira: Vão me enterrar daqui a dois dias. Vão me colocar na terra, com
a cara virada pro céu, sobre o meu corpo eles vão lançar um balde d’água,
mas eles não vão marcar nada sobre a pedra, pois nenhum deles sabe es-
crever. Você, Nawal, quando você souber, volta e grava meu nome sobre
a pedra: “Nazira”. Grava meu nome, pois eu cumpri as minhas promessas.
Estou indo embora Nawal. Para mim, está terminando.
Nós todas, nossa família, as mulheres de nossa família, estamos presas
numa teia de raiva há tanto tempo: eu estava com raiva da tua mãe e tua
mãe estava com raiva de mim e também de você, você está com raiva da tua
mãe. Você também vai deixar pra tua filha a raiva como herança. É preciso
quebrar o fio. Então aprende. Depois vai embora. Pega a tua juventude e
toda a felicidade possível e deixa a aldeia. Você é o sexo deste vale, Nawal.
Você é a sensualidade dele e o cheiro dele. Leva com você e te extirpa disso
aqui como a gente é extirpada do ventre da mãe. Aprende a ler, a escrever, a
contar, a falar: aprende a pensar. Nawal. Aprende!” (Mouawad, 2013)

II O caso

Trata-se de um paciente psicótico que chega encaminhado por outro


analista. O paciente se indispusera com ele, negava-se ao atendimento e o
insultava. Fui contatado pela família, que pagava sua análise. É um sujeito
de aproximadamente 50 anos, que vive quase como morador de rua, come
nas “bocas de rango” e perambula pela cidade durante todo o dia. É formado

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Jorge Broide

em mecatrônica, e filho de um imigrante da Europa Oriental. Este viera ini-


cialmente para outro país da América Latina após a II Guerra Mundial, onde
havia sido Tenente Aviador. O exército de seu país havia lutado ao lado dos
alemães, mas ele não entrara em combate, pois fora incorporado já no final
da Guerra. Nesse novo país latino-americano conheceu a esposa e nasceu
o primeiro filho do casal. Após um ano, quando o bebê tinha dois meses, imi-
graram para o Brasil.
Inicialmente, o analisante relata que está rompido com a família. Além
da mãe, tem duas irmãs que o sustentam. O pai havia morrido há cerca de 8
anos e tinha sido um pequeno e próspero empresário que havia se separado,
casando-se novamente com uma mulher que havia tirado todo o seu dinheiro
e levado a empresa à falência. Uma irmã é profissional liberal, casada com
um médico bem-sucedido e tem três filhos. A outra é engenheira, divorcia-
da, não tem filhos, mora no interior do estado e é gerente industrial de uma
grande indústria.
Seu aspecto chama a atenção: barba por fazer, malvestido, com as-
pecto semelhante ao de uma pessoa em situação de rua. Ataca todos, diz-se
injustiçado e roubado pela família. Nega-se a tomar remédios. Diz que não
está doente, que não é louco, mas, sim, um injustiçado. Diz que o Brasil é
um país horrível, que deveria haver a supremacia branca, despreza negros
e nordestinos e se apresenta como um admirador de Hitler. É bastante culto.
Ao longo da análise foi possível promover alguns encontros com a famí-
lia. Sua mãe tem medo de sua violência. Já havia morado com a mãe, já
quebrou coisas no apartamento dela. A família lhe comprou um apartamento
onde mora agora. Fazia escândalos no prédio da mãe, bem como em frente
da casa da irmã. Relatou de passagem em uma sessão que teve um irmão
morto na época da ditadura pelas forças da repressão. Não quis se estender
no caso.
Além do atendimento individual, passo a atender a mãe e a irmã, juntas
ou separadamente e, eventualmente, consigo atender a todos juntos. Iniciam
um diálogo que há anos não tinham, no consultório.
O paciente tinha fortes crises paranoicas, durante as quais atacava o
analista e todos ao seu redor. Uma vez disse, inclusive, que eu “era a única
pessoa da minha raça que ele respeitava”. Começou a trabalhar algumas
vezes como operário metalúrgico, auxiliar de pedreiro e, em suas crises,
abandonava o trabalho. Eu o atendi diretamente durante aproximadamente
dois anos e meio. De tempos em tempos, quando entrava em crise, saía do
consultório em fúria e dizia que não voltaria mais. Como não tinha telefone,
a única maneira com que eu conseguia fazer contato com ele era através de
telegramas. Algumas vezes ele retornou à análise, até que em uma de suas

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O atendimento de uma família...

crises disse-me que não voltaria mais, e não voltou. Segui atendendo a mãe
e a irmã, que mora em São Paulo, e esporadicamente, outros membros da
família.

III O assassinato e a anistia

A mãe relata que o filho mais velho havia sido morto pela polícia (pela
equipe do DOI CODI, de Sérgio Paranhos Fleury), numa emboscada, no
período da ditadura. A família não falava do crime. Tinham muito medo, até
pelo fato de serem estrangeiros. Quando seu filho foi assassinado no meio
da rua com dezessete tiros, desarmado e com o corpo jogado no porta-malas
de um carro, seu filho menor (meu analisante) tinha cinco anos. O mais velho
era adorado por ele. Nunca falaram sobre o caso. No dia da morte, quando
apareceu a foto do irmão na televisão anunciando que haviam matado um
“terrorista”, o pai o levou ao quarto e disse: “dorme”.
A mãe começa a falar sobre seu filho morto: “Doutor, o senhor está me
fazendo falar e me fazendo chorar depois de 40 anos...” Fala da injustiça e do
que a família passou quanto a humilhação e acusações. Diz que tinha muito
medo, eram vigiados. A filha maior (na época com 14 anos) relata nas ses-
sões como era seguida no ônibus todos os dias, quando ia para a escola. A
mãe queria preservar os filhos. Traz à consulta, inclusive, uma carta de des-
pedida do filho quando este estava na clandestinidade, dizendo que tentaria
sair do país indo para algum país da América Latina. Os outros filhos e netos
souberam somente agora da existência dessa carta. Pergunto a ela se quer
justiça. Ela quer, e o processo se inicia. Ela relata que havia recebido uma
indenização por parte do Estado a partir de uma ação que o ex-marido havia
ganho, quando do início do processo de reparação dos crimes da ditadura.
Havia recebido uma quantia em dinheiro.
Ligo para Paulo Vannuchi, ex-ministro de Direitos Humanos do Gov-
erno Lula. Ele imediatamente acolhe o caso e recebe algumas vezes a mãe.
Inicia-se um lento caminho de elaboração, até que ele propõe que se realize
no consultório um encontro entre a família e os companheiros sobreviventes.
Surpreendentemente, ele havia sido da mesma célula que o rapaz (ele e mais
dois que ficaram presos por muitos anos). Do encontro participaram a mãe,
as duas filhas e o filho de uma delas. Um dos resultados do encontro é a
decisão da família, por sugestão de Paulo Vanucchi, de entrar com o pedido
de anistia política, sem reparação financeira, junto à Comissão de Anistia do
Ministério de Justiça.
A cerimônia se deu há cerca de um ano, no auditório da Faculdade de
Educação da USP, com a presença do Reitor, do ex-diretor do Colégio de

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Jorge Broide

Aplicação – onde o menino estudara –, da diretora da Faculdade de Educa-


ção e de uma líder do Movimento Estudantil, entre outros.
Essas cerimônias são chamadas de Caravanas da Anistia, pois se des-
locam pelo país e constituem tribunais volantes para o julgamento de crimes
de direitos humanos cometidos pelo Estado. O tribunal se estabelece no lo-
cal, no caso, na Faculdade de Educação da USP, são lidos dois pareceres
e toma-se publicamente a decisão. Nessa tocante sessão pública, em que
inclusive uma das pareceristas teve uma crise de choro ao ler seu voto, o
Estado Brasileiro reconheceu o crime contra a vítima e sua família e pediu
desculpas publicamente à mãe e aos familiares. A cerimônia foi transmitida
pela Internet. As pessoas foram convidadas através de um convite da família
explicando o que havia ocorrido, com uma foto do filho assassinado com meu
paciente em seus ombros e a outra irmã menor ou lado. Junto a esse texto,
seguiu uma carta da mãe, escrita a mão, relatando tudo o que havia ocorrido.
O convite foi enviado a todas as pessoas significativas para a família, tanto
no Brasil quanto no exterior.
O caso segue sendo atendido (a mãe e a irmã mais velha, e eventual-
mente o neto que participou de várias sessões e do encontro no consultório
e ajudou muito em toda a preparação do processo de anistia). O paciente
não foi à cerimônia da anistia e não vem mais ao consultório, mas estamos
todos de acordo que ele segue em análise através do trabalho realizado com
a família.

IV A força da teoria

Um caso como este nos remete a uma produção muito interessante de


Vera Vital Brasil (2009), em seu trabalho no Grupo Tortura Nunca Mais, na
Comissão da Verdade, na Clínica do Testemunho do Rio de Janeiro e na
Comissão de Anistia. Ela coloca que há uma “[...] limitação do dispositivo
clínico se não houver uma responsabilização pública dos danos causados
pelo Estado. Sem isto haverá a privatização do dano” (p.254). Essa repara-
ção pública é a única forma possível de articulação do luto, que só encontra
passagem através do trânsito entre a memória pessoal e a familiar com a
memória social.
Podemos observar, neste caso, como a privatização do dano leva à que-
bra da intimidade familiar, impede a palavra e fratura os laços. O paciente psi-
cótico é porta-voz do não dito familiar. Podemos dizer que o silenciamento do
crime e a ausência da palavra na família, em função do terrorismo de estado
e de sua própria dinâmica, fez com que o analisante, apaixonado que era por
seu irmão 14 anos mais velho, ficasse impedido de elaborar o luto e o medo.

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O atendimento de uma família...

A hipótese aqui é de que, como nos diz Freud ([1917]1986), na impossibilida-


de de elaborar o luto, houve uma forte identificação com o irmão morto, morto
insepulto, fora da palavra e da cultura. Por isso, vaga pelas ruas e cheira mal.
É o cadáver insepulto do irmão que denuncia o crime e o silêncio familiar
através de sua loucura.
Outro aspecto a ser levantado é de que o crime de estado destruiu a
função paterna e todos os homens da família. O relato das sobreviventes é
de que, após a morte do filho amado, o pai afastou-se de todos e passou a
relacionar-se de forma fria e formal. Começou a beber, ficou paranoico (tinha
quatro armas em casa e dormia com uma embaixo do travesseiro), finalmen-
te separou-se para se casar com sua segunda mulher, que, segundo o meu
analisante, batia no marido quando este já estava imobilizado em cadeira de
rodas.
Vale uma citação de Lacan ([1971]2009), quando este aborda a relação
entre a letra, a palavra e a escrita que possibilitam ao sujeito a inserção na
cultura e no discurso. Ele coloca em Um discurso que não fosse semblante:

Quando penso naqueles senhores e, num futuro próximo, naqueles


senhores e senhoras que passearam num lugar absolutamente su-
blime, que por certo é uma das encarnações do objeto sexual – a
lua –, quando penso que eles vão até lá, simplesmente carregados
por um escrito, isso me dá muita esperança. Até no campo em que
isso poderia nos servir, isto é o do desejo (p.78).

O documento da anistia é o papel que nos leva à lua. É o resultado do


ato analítico.

V Concluindo

Quando a mãe do jovem assassinado foi falar com o psicólogo que aten-
dia a família, ele disse que era melhor não comentar sobre o caso com o en-
tão menino, agora paciente. O padre lhe dissera que ela não deixava o filho ir
embora. A psicanálise nos diz que é através do ato analítico que o luto pode
ser elaborado, e que, nesse caso, o luto tem que ser público e na letra da lei,
na escrita, que faz litoral entre o íntimo e o público. Anistia é a palavra escrita
na lápide de Nazira. Nawal, agora uma velha senhora de 80 anos, com a letra
da anistia inscrita na lápide de seu filho, coloca a si e a sua família na cultura.
Agora o morto pode ir embora.

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Jorge Broide

REFERÊNCIAS
BRASIL, V. Vital. Dano e reparação no contexto da Comissão da Verdade: a questão
do testemunho. Revista anistia política e justiça de transição. Governo Federal. Minis-
tério da Justiça, jan.-jun. 2009.
FREUD, S. Duelo y melancolia [1917]. In ______. Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu Editores, 1986, Vol. XIV.
LACAN, J. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante [1971]. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
MOUAWAD, W. Incêndios. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: Cobogó,
2013.

Recebido em03/04/2015
Aceito em 09/05/2015
Revisado por Clarice Sampaio Roberto

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.155-171, jul. 2014/dez. 2014

ENTREVISTA
FREUD, NOVA VERSÃO1

Elisabeth Roudinesco

Elisabeth Roudinesco, psicanalista, historiadora, pesquisadora na Universidade


de Paris – VII, autora de diversos livros, dentre os quais se destacam A história da
psicanálise na França (1994, Zahar), Jacques Lacan,esboço de uma vida, história
de um sistema de pensamento (1994, Cia. das Letras) e o Dicion����������������
ário de psicaná-
lise (1998, Zahar, com Michel Plon) nos apresenta, através desta entrevista uma
nova biografia sobre Freud.
Enquanto conversávamos numa manhã ensolarada de outubro de 2014, de Porto
Alegre, em Paris estava estampado em todos os jornais o lançamento do livro
Sigmund Freud en son temps et dans le nôtre, Seuil (2014), a primeira biografia
francesa de Freud.
Traduzid���������������������������������������������������������������������
as para cinquenta l������������������������������������������������
nguas, as obras de Freud ca����������������������
��������������������
ram em dom�����������
ínio pú����
bli-
co em 2010�������������������������������������������������������������������
, o que possibilitou o acesso aos���������������������������������
arquivos������������������������
preservados������������
no departa-
mento de manuscritos da Livraria do Congresso de Washington (a biblioteca do
Congresso), bem como a diversos documentos encontrados no Museu Freud de
Viena.�����������������������������������������������������������������������
Essa
����������������������������������������������������������������������
abertura impulsionou Roudinesco a ���������������������������������
pesquisar nos������������������
arquivos e manus-
critos, fazendo emergir sua leitura de Freud.

1
Tradução da entrevista: Patricia C. Ramos Reulliard, professora da UFRGS.
155
155

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Elisabeth Roudinesco

Sua linha de pesquisa foi desinterpretá-lo completamente


�������������������������������������
das interpreta���������
ções psi-
canal������������������������������������������������������������������������������
����������������������������������������������������������������������������
ticas������������������������������������������������������������������������
já feitas. Fez emergir a evid������������������������������������������
����������������������������������������
ncia do����������������������������������
que Freud acreditou ter descober-
to – a produção do inconsciente – como fruto de uma sociedade, de um ambiente
familiar e de uma situação política, o que ele interpretou magistralmente.
Mostra-nos o homem e a obra imersos no tempo da história, na longa duração de
uma narrativa em que se misturam pequenos e grandes eventos, vida privada e
pública. Loucura, amor, amizades, esgotamento e melancolia, tragédia da morte
e da guerra, exílio, enfim, um futuro sempre incerto, sempre a reinventar.

APPOA: Qual foi o método de trabalho que você utilizou para esta
biografia?
Roudinesco: Na verdade, eu decidi, por assim dizer, “desinterpretar”
completamente todas as interpretações psicanalíticas sobre Freud.
Isso porque, de um lado, havia a representação de um monstro feita
pelos antifreudianos radicais. Para eles, Freud tinha se tornado um nazista,
um incestuoso, que dormia com sua irmã, um marido horrível, um fascista.
Enfim, é esse o tipo de imagem fabricada nesse discurso e no Livro negro da
psicanálise, de Catherine Meyer. Em quinze anos de batalha freudiana, aca-
baram por fabricar um estereótipo totalmente negativo de Freud, totalmente
inexistente. E, do outro lado, os psicanalistas contrapunham a isso uma visão
completamente engessada de Freud, que continuava sendo o Freud da ju-
ventude deles, o de Jones.
A isso se adicionam todas as interpretações das escolas analíticas. Há
uma visão ferencziana de Freud, uma kleiniana, uma lacaniana, seja de sua
vida ou de sua obra. Os lacanianos, por exemplo, têm uma tendência a ver
nele e a lhe atribuir os conceitos lacanianos. Assim como os kleinianos ten-
dem a considerar que Freud teve uma infância terrível, ou seja, uma infância
kleiniana. Eles são pré-edipianos. Eles forçaram... Eu diria que eles têm uma
visão a-histórica de Freud.
Na verdade, essa é a característica comum a todas essas correntes:
elas têm uma visão a-histórica de Freud, uma visão psicanalítica, e interpre-
tam sua obra e sua vida em função da perspectiva psicanalítica que adotam.
Por exemplo, os partidários de Ferenczi estão convictos de que Freud foi
molestado em sua infância por sua avó. Digo mais: algumas revisões foram
feitas pelas escolas analíticas, que adoram Freud, mas que interpretam sua
vida e obra em função dessas representações.
Viu-se isso também com os grandes pacientes de Freud. Existe, para
o homem dos lobos, uma interpretação kleiniana de que ele era psicótico,

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uma neofreudiana de que era neurótico, uma lacaniana, e assim por diante.
E ninguém sabe quem é o verdadeiro homem dos lobos. Não sabem quem é
Serguei Pankejeff. Interpretam-se os casos e repetem-se há anos os grandes
casos de Freud, mas os outros continuam desconhecidos.
Tampouco se conhece a vida de Freud. Os psicanalistas não conhecem
nada: eles apenas repetem as coisas já conhecidas. E reproduzem boatos.
Por exemplo, até hoje, há psicanalistas certos de que, chegando aos Estados
Unidos, Freud disse: “Eles não sabem que lhes trazemos a peste”. Isso foi
inventado por Lacan! Pode ser engraçado, mas ao mesmo tempo é grave,
pois por essa mesma lógica também disseram que, ao deixar a Áustria, Freud
teria declarado: “Eu recomendo a Gestapo a todos!” Ele jamais escreveu tal
coisa, isso é impossível: assinar um papel e zombar da Gestapo não é Freud.
Esse boato se espalhou. Há também outros rumores. Sobre sua cunhada,
por exemplo. Os psicanalistas dizem que não é relevante saber se Freud teve
ou não um caso com a cunhada. Por que não é relevante? Claro que é! Se
Freud mentiu sobre sua sexualidade, isso é perturbador! Ora, ele não mentiu:
basta ler sua correspondência para saber.
E, no mais, os psicanalistas não leram, ou leram muito pouco, a corres-
pondência de Freud. Eles vão buscar nessa correspondência o que confirma
suas ideias. Ao invés de ler Freud com um novo olhar – procurar saber quem
era, como agiu, etc. –, lê-se a sua obra a partir de uma perspectiva psicana-
lítica preestabelecida. Então, por exemplo, isso também leva à ideia de que
“Freud fez uma autoanálise”. Mas não! O próprio Freud diz “minha autoaná-
lise com Fliess”. Quando lemos as cartas, não há autoanálise: Freud explora
as teorias de Fliess, e depois as deixa de lado.
Existem ainda lendas psicanalíticas sobre o malvado Breuer, que não
compreendeu nada da sexualidade, e o Freud bonzinho, que compreendeu
tudo. Em que mundo?! Breuer compreendeu perfeitamente bem, porém não
tinha a mesma concepção de Freud.
E para tudo é assim. Outro exemplo são as discussões sobre a gênese
da pulsão de morte. Ela viria da guerra? Viria da morte de sua filha? Freud
já tinha respondido que ela não veio de nada disso, mas que era algo que
estava no ar. Porém, cada escola psicanalítica explica: sua filha morreu, logo,
a pulsão de morte. Houve a guerra, logo, a pulsão de morte. Não, não e não!
A pulsão de morte foi progressiva: era uma teoria que já existia e Freud gra-
dativamente elaborou essa noção a partir dos anos 1913-14, em um debate
com Sabina Spielrein. Não foi por acaso.
Tudo é percebido assim entre os psicanalistas: em dado momento,
Freud inventa algo do nada. Foi assim com a homossexualidade. Freud não
tem absolutamente nenhuma teoria da homossexualidade. Ele muda cons-

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tantemente de opinião. Primeiro, considera a natureza da homossexualida-


de masculina diferente da feminina – no que, por sinal, estava certo –, mas
depois muda de ideia. Às vezes, a homossexualidade é uma defesa contra
a paranoia, às vezes a paranoia é uma defesa contra a homossexualidade.
E, então, mesmo as grandes abordagens clínicas foram transformadas por
dogmas psicanalíticos.
Portanto, meu objetivo foi desconstruir tudo, contar quem é Freud, como
ele elabora sua doutrina e como a época de Freud deve ser compreendida
hoje. Ademais, Freud acreditava que o que ele encontrava no inconsciente
se realizava na história dos homens. Mas eu inverti essa proposta: considero
que o que ele encontrou no inconsciente foi o que a sua época lhe permitiu
encontrar. Em outras palavras, penso que Freud é o produto de uma época.
Então, o que resta da genialidade de Freud? O ponto mais forte de
Freud não é a revolução. Mas uma revolução simbólica. Quer dizer, em uma
época na qual a pesquisa se voltava para a fisiologia, para a sexologia... Por
exemplo, todo mundo falava de sexualidade infantil. Freud não foi o primeiro.
Numa época em que tudo é científico, sexológico, neural – problemas do
humano – Freud inventa um mito. Ele inventou um saber mítico: reduz cada
neurótico moderno a Édipo, a Hamlet. E isso é genial. Ao invés de ser um
doente que vai para um sanatório, o neurótico diz: “Mas eu sou príncipe, eu
sou Hamlet”. É muito mais interessante do que ser um sujeito em um sana-
tório. E isso funciona. Freud explica ao mundo inteiro que somos o produto,
no fundo, de uma tragédia ancestral. É algo extraordinário, que seduz todo
mundo, inclusive seus pacientes.
Vejamos Serguei Pankejeff, o homem dos lobos. Ele diz: “Bom, com
certeza Freud inventou a cena primitiva”. Hoje sabemos que sim. Os psica-
nalistas gastam seu tempo dizendo “existe uma cena primitiva”. Não! Freud
a inventou. Mas Serguei Pankejeff diz para si mesmo que “É tão genial ter
inventado uma cena primitiva ao invés de me enviar para um sanatório, eu
aceito! Eu aceito!” Salvo o problema de que, às vezes, Freud afirma que há
uma cena primitiva quando não há; às vezes, ele diz que há e de fato há.
Portanto, isso não é uma ciência, é uma mitologia, é uma teoria racional da
consciência, uma revolução simbólica. Ele traz algo novo ao sujeito moder-
no.
Eu deixei bem claro que havia diferentes etapas na vida e obra de Freud.
Antes de 1914 é a Belle Époque. É um período no qual a grande burguesia
se questiona sobre si mesma, preocupa-se consigo. Freud atende apenas
pacientes da grande burguesia europeia do pré-guerra: são pessoas ociosas,
ricas, interessadas nelas mesmas, parecidas com personagens de Proust, e
isso é muito interessante. Além disso, Freud escreve textos magníficos.

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Por exemplo, quando ele escreve um livro sobre Leonardo da Vinci,


equivoca-se completamente. O livro é discutido, ele se engana. Totalmente.
Todo mundo sabe. Ele afirma que da Vinci era fixado em sua mãe, que tinha
uma sexualidade infantil. No entanto, não é verdade. Ele era um sodomita
ativo, esteve a ponto de ser queimado na fogueira por isso. Viveu toda a sua
vida com companheiros. E o que dizer das interpretações de Freud sobre o
abutre? Mas isso gera discussão. É algo novo, é interessante. Freud tem uma
admiração pela cultura da Renascença, por Leonardo da Vinci, ele inventa
algo.
Então depois, evidentemente, os antifreudianos vão se aproveitar para
dizer: “mas ele inventou...” Mas não importa! Isso dá consistência de ver-
dade a algo. Uma ressalva é que hoje não se pode continuar reafirmando a
veracidade disso. É preciso mostrar qual era o verdadeiro Leonardo da Vinci
historicamente, e não aquele de Freud. É necessário mostrar como esse pin-
tor genial foi compreendido na história da pintura e como Freud fez dele um
personagem freudiano. Aí está. É assim que eu faço.
Portanto, eu reconto com detalhes o que Freud construiu em nossa mo-
dernidade para nos fazer pensar. A organização do livro se baseou um pouco
no de Jacques Le Goff, a quem presto homenagem; é um dos grandes histo-
riadores franceses, autor de uma biografia de São Luís, que ele estudou sob
diferentes facetas. É um modelo de biografia baseado no tempo estrutural.
Retomei um pouco essa modalidade: cada parte do meu livro trata de um
aspecto de Freud.
Começo em 1848, durante a Primavera dos Povos, os avós de Freud
da Galícia, a cultura alemã e austríaca de Freud; enfim, ele está verdadeira-
mente mergulhado em sua história. Também trato de toda a história de sua
judeidade e sua relação complicada, com ela e com o judaísmo, e vou até
a morte de Lucian Freud. A seguir, mostro como foi a vida dos seus filhos e
netos. Depois abordo duas grandes épocas: a da Primeira Guerra Mundial,
que destrói o primeiro movimento psicanalítico, e a época da segunda des-
truição do movimento pelo nazismo, com a emigração dos psicanalistas para
os Estados Unidos.
Trato, naturalmente, da ligação de Freud com Jung. Não há o bom Jung
e o mau Freud, nem tampouco há o mau Jung e o bom Freud. Mostro essa
relação dialética. Eu compartilho o que Peter Gay tinha observado tão bem
e que o próprio Freud reconhece (afinal, também parti do que Freud escre-
veu): “Sempre na minha vida tive necessidade de transformar um amigo em
inimigo. Não consigo me impedir de fazê-lo”. Portanto, demonstro como, na
opinião do próprio Freud e na sua história, há uma espécie de dialética per-
manente, uma dualidade que o relaciona, aliás, a Goethe, ou seja, a Fausto

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e a Mefisto. Quero dizer que ele é ao mesmo tempo Fausto e Mefisto. Na


Bíblia, ele é ao mesmo tempo o anjo e Jacó. Ele luta todas as noites contra
os deuses e os demônios.
Freud é um personagem duplo, que luta permanentemente contra sua
própria irracionalidade; que se liga às ciências irracionais de sua época e que
as deixa de lado, que transforma amigos em inimigos, que elabora esta ideia
inacreditável do assassinato do pai, mas que constrói um movimento político
com discípulos que eu revalorizei, pois todos eles têm um espaço. Todos são
muito interessantes.
Um movimento político e apolítico, na verdade. Ele encara a psica-
nálise como uma doutrina que deve ser sustentada por um movimento,
que ela basta a si mesma. Ela não precisa ser ensinada na universidade;
deve ser ensinada por psicanalistas. Ele tem todo tipo de teorias, algumas
boas, outras não. Assim, eu estudo todos esses aspectos de Freud.
Depois, inspirando-me certamente em Anne Berger, abordei os pacien-
tes não conhecidos de Freud. São cerca de 120 pacientes identificados, mas
há outros. Estudei os pacientes ainda não identificados como vidas parale-
las, ou seja, há a vida ilustre de Freud e seus discípulos e há vidas paralelas
de seus pacientes anônimos. Por trás de cada caso, sejam os mais conhe-
cidos, como o homem dos ratos e o homem dos lobos, estão os nomes
verdadeiros – pelos quais eu os chamo –, e mostro a diferença entre a vida
real do paciente e o caso descrito, dois registros de narratividade totalmente
contraditórios.

APPOA: É uma nova abordagem?


Roudinesco: Exatamente. São dois modos de narração. O que não sig-
nifica que Freud diz uma bobagem qualquer quando ele ou Breuer inventam
Bertha Pappenheim em Anna O. Isso não tem nada a ver – ou tem muito
pouco – com a vida de Bertha Pappenheim. Porém, penso se tratar de duas
modalidades de narrativa diferentes: os pacientes estão nos arquivos e eu
os faço falar, graças a Kurt Eissler, que, em 1950, fez centenas, até mesmo
milhares, de entrevistas com as gerações posteriores, com os parentes dos
pacientes, com os próprios pacientes. Assim, tem-se um material por meio do
qual os pacientes falam.
Utilizei muito os depoimentos dos pacientes, conhecidos ou não conhe-
cidos, para mostrar como eles narram seu tratamento: ou nos tratamentos
publicados por Freud, ou nos vestígios de julgamento de Freud em suas cor-
respondências, ou nas narrativas dos próprios pacientes, que se tornaram
ou não psicanalistas. Então, mostro tudo isso. É algo muito interessante de
observar. Ainda mais que atualmente se têm quase todos os arquivos.

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O primeiro aspecto instigante é que Freud era certamente um clínico


muito bom. Porém, hoje em dia se diria que alguns de seus pacientes eram
mais psicóticos do que neuróticos. Não todos, mas alguns casos mais gra-
ves. Por exemplo, Carl Liebman e Bruno Veneziani, o cunhado de Ítalo Sve-
vo, são casos muito difíceis – casos de toxicômanos e suicidas – e Freud não
tinha muita saída.
No entanto, não se deve dizer que Freud foi um péssimo clínico só por-
que ele não curou pacientes que ninguém mais curou, pois eram incuráveis. A
psicanálise melhorou a vida deles? Sim! Ela os estimulou. Eles se curaram?
Não. Houve casos de pacientes em que Freud se enganou completamente?
Penso em Horace Frink, que se tornou psicanalista e era psicótico. Sim, há
de tudo. Há tratamentos surpreendentemente bem-sucedidos com neuróti-
cos, tratamentos que não funcionaram, mas em nenhum momento sequer
se pode afirmar que Freud era um charlatão, um impostor. Definitivamente,
não se pode dizer isso. Ele se esforçou muito; por vezes, cometeu erros.
Ademais, é interessante observar a discussão dos casos em sua correspon-
dência. Portanto, faço uma descrição da maneira como Freud analisava. É
muito surpreendente. Em seguida, mostro que quanto mais os pacientes, se-
jam psicanalistas ou não (no fundo, o problema é o mesmo), interessavam-se
pela própria psicanálise, mais eles se curavam. Por exemplo, Marie Bona-
parte, que fez uma psicanálise brilhante com Freud, com certeza teria se
suicidado se não o tivesse encontrado.
Pode-se dizer também que Freud apenas criava essa dualidade de
um amigo que passava a ser inimigo com os homens, porque com eles ti-
nha o sentimento de que era o pai ou o alter ego. Jamais com as mulheres.
Ele nunca transformou uma amiga em inimiga. Isso é muito fascinante. Ele
cultivava amizades femininas, verdadeiras amizades femininas e estava
sempre rodeado de mulheres. Por causa disso, acusaram-no de ser lúbri-
co. Na realidade, ele praticava a abstinência sexual. Isso está dito e escri-
to. Não vejo então, considerando a maneira como descreve os sofrimentos
ligados à abstinência em sua vida, por que não se acreditaria nele. Esse
fato não era destinado a ser publicado: “ele pratica a abstinência”. Freud
optou pela abstinência quando noivou com Martha, noivado que dura cinco
anos, acredito. Não se sabe nada sobre a vida sexual de Freud antes de
conhecer Martha. O que se sabe, de qualquer forma, é que na época as
jovens deviam continuar virgens até o casamento; os rapazes eram frus-
trados. Eles tinham relações sexuais com mulheres casadas ou iam aos
bordéis. Quando jovens, não podiam desenvolver sua sexualidade com
suas noivas. Era a regra geral. Na geração posterior a Freud, aí sim, houve
uma mudança.

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Porém, Freud pertencia a uma geração em que não se fazia isso, o


que ele respeitou. Apesar de não ser religioso, ele desposou Martha, criada
em uma família religiosa; enfim, ele respeitou isso. Então, depois de ter tido
seis filhos, Martha não queria mais conceber e tampouco Freud. Assim, ele
optou pela abstinência. Ele poderia ter feito outra coisa; na época, já existiam
métodos contraceptivos, mas ele não os utilizou. Seus filhos, ao contrário,
já viveram de outra forma. Eles não tiveram tantos filhos, os tempos haviam
mudado. No mais, Freud era a favor dos contraceptivos e, mesmo que muito
tardiamente, do aborto, já que quando Sophie morreu, o verdadeiro problema
de Freud não era de maneira alguma a invenção da pulsão de morte, mas,
sim, que Sophie estava grávida. E ela não queria. Então Freud, vendo a gra-
videz da filha, tentou convencê-la a aceitá-la. Em seguida, Sophie contraiu
a gripe espanhola. Não foi por causa da gravidez: vinte milhões de pessoas
morreram de gripe espanhola e qualquer um podia contraí-la. Porém, naque-
le momento, Freud pensou que a imunidade de Sophie estava baixa, que ela
estava em dificuldades, que era mais suscetível ao vírus da gripe. Então ele
afirma numa carta: “Eu me enganei, minha filha não queria um terceiro filho”.
E recomenda – o que é muito difícil de dizer na época – a prática do aborto.
Ele compreende que, quando as mulheres não querem ter filhos, é preciso...
É o ano de 1920. É claro que já existem movimentos feministas reivindicando
a legalização do aborto. No entanto, ele é proibido em toda a Europa. Deve-
se compreender a época.

APPOA: Para os dias de hoje, qual o aporte de Freud no âmbito sexual?


Roudinesco: Em sua época, por exemplo, ele dá uma nova abordagem
à sexualidade infantil. Ao invés de descrever permanentemente a masturba-
ção das crianças, como é preciso impedi-las, etc., ele parte das representa-
ções. Freud escreveu um livro sobre as teorias sexuais das próprias crianças,
ele sai do registro da observação para tentar mostrar como as crianças se
representam. Ignora-se isso com frequência, mas isso é algo novo. E conse-
quentemente ele é emancipador. Na época em que escreve isso, em 1905,
Freud estava perfeitamente ciente de que impediam as crianças de se mas-
turbarem, colocavam aparelhos horríveis para impedi-las; a masturbação in-
fantil era considerada mais do que um pecado, era uma doença orgânica que
ia perturbar o cérebro. Faziam-se circuncisões nos menininhos para impedi-
los de se masturbar e, nas menininhas, praticava-se a mutilação genital. Você
já viu o filme A fita branca, de Michael Haneke? Era o que se chamava de
pedagogia negra.
Freud, portanto, era contra todas essas práticas. Ele afirmava que a
patologia surgia quando havia excesso de masturbação, mas acreditava ser

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normal que uma criança fosse um perverso polimorfo. Foi principalmente isso
que causou polêmica. E quando se afirma que ele foi o primeiro a discutir
a sexualidade infantil... Bom, existem mil livros sobre a sexualidade infantil
contemporâneos a Freud. Há psicanalistas que creem que ele foi o primeiro.
Mas não! Ele apenas fala diferente. Aliás, ele fala de tudo de forma diferente.
Porém, ele fala do que se falava em sua época. De toda forma, é interessan-
te. É verdade que essas histórias são fascinantes. Com efeito, mostro que,
a partir dos anos 1920, o freudismo clássico é questionado pelas teorias
kleinianas, mas também mostro como Freud se defende, como participa das
discussões. Ele pode ser dogmático outras vezes, mas, nesse caso, ele se
opõe a Melanie Klein com argumentos – e não apenas para defender sua
filha. Ele diz: “não se pode analisar as crianças na primeira infância, porque
seu inconsciente não está formado; portanto, é perigoso”. Ele não estava
errado. No entanto, não ganhou essa batalha. Em outras palavras, as teo-
rias kleinianas se impuseram para analisar as crianças na primeira infância
com a técnica da massa de modelar, entre outras. Nessa fase, ao invés de
analisar diretamente as crianças, Freud acreditava ser necessário fazê-lo
por intermédio dos pais. O caso do pequeno Hans, por exemplo, mas não
apenas este.
Todos analisavam os próprios filhos na época. Eles se questionavam
muito. Jones fez seus filhos serem analisados por Melanie Klein, os filhos de
Melanie Klein foram analisados pela própria. É preciso dizer isso e é o que
eu faço. E, na verdade, havia um questionamento geral. Hoje, o que se her-
dou disso? Para mim, tanto Freud quanto Melanie Klein tinham razão. Hoje
sabemos que o inconsciente das crianças não está formado, não se deve
fazer interpretações a qualquer custo. Nisso Freud estava certo. Não se pode
identificar o autismo aos três meses de idade, não é algo evidente. Porém,
ao mesmo tempo, a genialidade de Melanie Klein foi dizer: “Atenção, é pre-
ciso tratar das crianças o mais cedo possível, não se deve esperar”. Então,
atualmente, deve-se tanto a Anna Freud – com suas nurserys, suas clínicas
para as crianças – quanto a Melanie Klein, que considerava ainda assim que
a mãe era perigosa. Em outras palavras, em 1920, abandona-se o assassi-
nato do pai pela onipotência da mãe. Essa não é a posição de Freud, mas
as duas são interessantesPortanto, eu exponho que se herda uma dialética
permanente de combate no interior do movimento psicanalítico, e que não se
deve ser dogmático. Eu narro a fundo esses anos que são muito envolventes.
Depois, em seguida, trato do período nazista, de como Freud não previu
o perigo para a Áustria, como ele não queria ver. Ele não acreditava na ane-
xação da Áustria pela Alemanha. Durante muito tempo, negou essa possibi-
lidade. Pensava que a Igreja católica e que o governo austríaco iam resistir.

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APPOA: Seria correto afirmar que você é mais apaixonada por


Freud do que por Lacan?
Roudinesco: Não, cada coisa a seu tempo. Quando escrevi a biografia
de Lacan, ele me interessava. De alguma forma, pode-se até dizer que es-
crever uma vida de Lacan sem arquivos, a partir de fontes orais, reconstituir
a vida de um homem transgressivo, com uma família horrível, modos surrea-
listas, similares aos de Salvador Dalí, um grande moderno, é muito mais in-
teressante do que fazer uma biografia clássica. Freud era um clássico. E um
clássico se escreve assim, muito simplesmente. Freud não é Lacan. Portanto,
são dois registros de escrita muito diferentes.
Lacan é mais problemático: praticava a sessão curta, era transgressivo.
Ele mentiu constantemente sobre sua vida. Ele era genial. Mas, além disso,
Lacan se interessava muito mais pela psicose. Há aí uma grande diferença.
Freud era um homem da neurose. Não se interessava muito pelos psicóticos,
acreditava que eles não eram analisáveis. Lacan psicotizou a neurose freu-
diana. Foram Jung e Abraham que o levaram ao âmbito da psiquiatria. Toda-
via, no início, a clínica de Freud era para neuróticos, para perversos, mas não
para psicóticos. Ele teve dificuldades, mas foi levando, estava satisfeito, com
certeza. Não adianta, Freud é o homem da neurose, do assassinato do pai,
dos mitos edipianos.
Mas há algo a mais: ao contrário de Lacan e de Melanie Klein, Freud não
entendeu nada da literatura de sua época. Considerava Proust tremenda-
mente tedioso, não compreendeu nada de Ítalo Svevo, tampouco dos surrea-
listas que o seguiam. Freud admirou muito tempo Thomas Mann, lia Goethe,
os romancistas do século XIX. Ele não gostava nem um pouco da modernida-
de, sequer a via; ele ficava lisonjeado que... enfim, ele era inteligente, então
percebia claramente que Stephan Zweig se interessava por ele. Não compre-
endia muito bem e, além disso, tinha uma tendência horrorosa de interpretar
tudo a partir do complexo de Édipo. Bom, já chega disso.
Também nisso me atenho longamente. Não existe sequer um artigo de
Freud sobre o complexo de Édipo. Existe um sobre o seu declínio. Ele não
trata do complexo de Édipo, mas de seu declínio. Não escreveu um artigo
canônico sobre o tema. Então, perguntei-me por quê, já que o complexo de
Édipo está em todas as partes. Eu mostro que ele psicologizou, de forma
terrível, sua própria teoria da tragédia edipiana.
Não parou de aplicar seu modelo edipiano à literatura, a tudo, a Leonar-
do da Vinci, a Totem e tabu... No entanto, continuam sendo livros bastante
extraordinários, a despeito dessa falha. Mas ele psicologizou um pouco além
da conta. Então, era inevitável. Não o julgo, apenas mostro quais são, evi-
dentemente, os erros.

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Freud, nova versão

Politicamente, ele é instigante. É conservador, esclarecido, rebelde, dis-


sidente, contrário às grandes doutrinas de sua época. É um anticomunista;
respeita, mas é anticomunista. Não gosta da revolução comunista. Tampouco
gosta da Revolução Francesa. Não participa da revolução feminista. É clara-
mente antissionista: acredita que não se deve criar um estado na Palestina.
Aliás, ele diz isso. É profundamente judeu, de diáspora. Ele acredita que a
força dos judeus está claramente na diáspora. Isso é muito forte. Em 1930,
ele diz que caso se crie um estado na Palestina, a situação se tornará horrí-
vel. Porém, ao mesmo tempo, ele apoia Arthur Balfour, apoia a criação das
colônias.
O seu modelo político ideal é a monarquia constitucional tipicamente
inglesa. É por isso, ademais, que os grandes biógrafos são ingleses. Há algo
inglês em Freud, é Shakespeare. Quer dizer, para ele, o ser humano é Sófo-
cles, a Grécia, Roma; a arqueologia é a da Europa antes do século XIV e é
Hamlet, príncipe cristão. Então, nos mitos, Freud coloca toda a arqueologia,
Totem e tabu, todos os grandes mitos ocidentais, até os faraós; ele inclui
Moisés e a cultura judaico-cristã. E seu modelo político, no fundo, ele admira
Cromwell, é a monarquia. Portanto, qual é a tese de Freud? É preciso cortar
a cabeça dos reis para recolocar os reis no poder. Isso não é nem um pou-
co francês! Ele faz julgamentos muito severos sobre a Revolução Francesa.
Considera a França um lugar perigoso, onde se corta a cabeça dos reis e não
se coloca nada em seu lugar.
Ele, um homem do império austro-húngaro, pensa que a humanidade
deve ser comandada por elites. Nesse sentido, é muito platônico. É democra-
ta, com certeza, mas acredita que as elites são necessárias para impedir as
multidões, as massas, de cometerem tolices. Portanto, é platônico, monar-
quista constitucional, favorável ao controle dos pobres. Sonha com clínicas
sociais, mas a monarquia constitucional lhe convém muito bem.
No momento em que deixa a Áustria, não existia mais monarquia cons-
titucional. Assim, ele vai para Londres. Ele é muito inglês. Trata-se de um
homem do império austro-húngaro profundamente imperial, profundamente
austríaco, de cultura alemã, herdeiro de Goethe, do romantismo, não muito
da filosofia alemã, partidário das ciências de Darwin, e inglês. Existem diva-
gações muito estranhas de Freud sobre Shakespeare. Mas ele é fascinado
pela Inglaterra, porque este equilíbrio entre o assassinato do pai e o retorno
do pai ao trono é ele. Então, ele é assim. É muito interessante.
E todos os arquivos que podem ser consultados agora são apaixonan-
tes, ainda mais porque abordei também a vida cotidiana de Freud: que tipo
de pai ele era, como vivia, o que comia, do que gostava, que livros lia, como
se comportava com as mulheres, com as crianças; seu vício por fumo, seu

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amor pelos animais, seu consumo de cocaína durante um longo período. Ele
é muito fascinante.
Atualmente se conhece quase tudo sobre sua vida, então fiz uma esco-
lha e me dei conta, antes de escrever o livro, de que mais ninguém conhecia
Freud, que ele estava recoberto de camadas e que ninguém o conhecia re-
almente. Que ninguém conheça a vida de Lacan, isso é aceitável. Não havia
nada, a minha biografia foi a primeira. Mas que ninguém conheça a vida de
Freud em 2010... Era preciso voltar a ele novamente. É isso. Portanto, não
posso afirmar que prefiro Freud a Lacan. É mais fácil, é um clássico. E quan-
do converso com historiadores, Freud está no panteão da cultura ocidental
para as pessoas sérias, e não Lacan. São casos muito diferentes: Lacan é
um moderno; Freud, um clássico.

APPOA: Freud vivia com mulheres em sua casa?


Roudinesco: Ele foi criado em uma família grande, com vários empre-
gados, e não conseguia viver sozinho. Precisava de uma casa cheia. E, além
do mais, quando casa com Martha, ele prevê o número de filhos, como eles
devem viver, qual será seu lugar na casa. Ela é a mulher ideal para ele; ainda
mais porque ela adora tudo isso. É uma dona de casa, dedica-se exclusiva-
mente ao lar, a única coisa que a interessa. E, como lhe era habitual, Freud,
que sempre precisou de um amigo e de um inimigo, também nas mulheres
buscava os dois. Quando tem 16 anos e se apaixona por Gisela Fluss, apai-
xona-se também pela mãe. Não acontece nada de mais. Mas, na filha, ele
vê a mãe. Quando cai de amores por Martha, ele se interessa também pela
irmã e pela mãe. Então, ele toma a mãe, que era terrível, uma religiosa extre-
mamente rígida, como inimiga. Em contrapartida, torna-se amigo de Minna,
irmã de Martha, a ponto de lhe arranjar casamento com um amigo seu. Freud
queria que vivessem os quatro juntos. Se pudesse, viveria em dez, ficaria
contente (desde que cada um tivesse seu espaço). Em sua correspondência
com Minna, publicada em alemão, cuja tradução para o francês organizei, ele
a chama de “minha querida irmã” e é uma correspondência cruzada. É Mar-
tha quem ocupa, de fato, o lugar do objeto desejado, fisicamente desejado, e
Minna é a cúmplice, que casará com outro homem. Manter uma relação sexu-
al com ela é inconcebível para ele. De maneira alguma se trata disso. Ela é a
cúmplice, com quem ele pode viajar. O drama é que o noivo de Minna morre
de tuberculose. Freud diz claramente para ela: “Você vai viver conosco”. Mas
ela não pode viver com eles; a princípio, ela cuida da mãe. Em todas as fa-
mílias, uma mulher ficava solteira e cuidava dos pais. Então, Minna vai cuidar
da mãe em Berlim, etc. Quando a mãe morrer, ela vem morar... É um arranjo
muito clássico. Como ele tem seis filhos, tem três empregadas.

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Freud, nova versão

Deste modo, na casa há três domésticas, Minna, Martha, muita gente.


Ele também gosta de cachorros. Existe outra família: a canina. Há, ainda, os
pacientes. Então, a casa em Berggasse tem vários andares, e tudo ali é muito
bem organizado. No livro, mostrei a organização da vida cotidiana, que é mui-
to bem-feita. Depois, é claro, em um determinado momento, quando Anna...
Anna tinha apenas dois desejos em sua vida: ter filhos, sem um homem, e ser
discípula do pai. Quando ela é bem jovem, seu pai quer casá-la, de preferên-
cia não com um de seus discípulos. Ele nunca quis casar as filhas com seus
discípulos, pois percebeu que isso não funcionaria.

APPOA: Ele não queria que Anna casasse com Jones?


Roudinesco: Não, ele até temia. Na época, Jones vivia com Loe Kann,
paciente de Freud. Este sabia que Jones era um sedutor. Então, quando
Anna, com 18 ou 19 anos, entre 1913-1914, vai a Londres e se hospeda na
casa de Jones, Freud a alerta: “Se você quer casar com alguém, não deve
dormir com Jones”. Ele tinha medo. A isso, Jones responde que “Não é nada
disso!”
Todos se gostavam. Jones gostava de Anna, também gostava muito de
Freud. Mas notou que Anna se sentia atraída por Loe Kann e não por ho-
mens. Jones viu. Ele conhecia bem a sexualidade. Assim, ele dá a entender
que talvez Freud se engane sobre a orientação sexual da filha; não isso diz
abertamente, mas sugere. Depois tem a guerra. Em Viena, Anna é cortejada
pelos discípulos de Freud, mas não quer saber deles. Não é Freud que impe-
de. Então, os psicanalistas imaginaram que, pelo complexo de Édipo, o pai
onipresente... Absolutamente, de maneira alguma! Tudo isso é ridículo. Anna
não queria casar, não queria ter o destino da irmã, de uma esposa. Ela não
queria isso. Desejava ser a filha de seu pai. Na época, a conjuntura das
mulheres era tal que elas não continuavam os estudos. Elas não podiam
se tornar... Freud vai enfrentar esse problema a partir de 1918. Minna já
era sua discípula, mesmo sem praticar... e agora Anna quer estudar. Freud
começa a analisá-la para entender o que é essa história, por que ela não
quer casar. Na análise, ele descobre que Anna tem tendências homossexu-
ais. Então, ele fica claramente preocupado, e mais ainda porque vê que ela
quer ter filhos... Finalmente, Anna consegue se tornar discípula do pai. Ela
se integra ao círculo e atende crianças.
A partir de 1914, Dorothy Burlingham chega a Viena. Essa americana
tem quatro filhos muito doentes, neuróticos graves, e seu marido é um maní-
aco-depressivo. Enquanto Anna analisa as crianças, Freud analisa Dorothy,
que passa a morar na casa em Berggasse, em outro andar. Essa informação
é crucial para compreender bem a situação. Dorothy vai alugar um dos anda-

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Elisabeth Roudinesco

res e ter uma relação amorosa com Anna. Elas vivem juntas a vida inteira
e Anna cria os filhos de Dorothy. E o que Freud diz disso? Diz que é uma
família a mais então. Há também a família ampliada de seus discípulos, e
a grande amiga de Freud, Lou-Andreas Salomé. Existe uma linda troca de
cartas entre ela e Anna. Nelas, Anna conta as dificuldades que enfrenta em
sua análise. Enfim, hoje em dia tudo isso é conhecido e é o que precisa ser
reavivado.

APPOA: Mas o que se passa na casa de Freud se parece um pouco


com o que acontecia na famosa rua de Lille, não? Pacientes, pessoas
circulando?
Roudinesco: Não mesmo. Ali era apenas um consultório.

APPOA: Então, ninguém morava lá?


Roudinesco: Lacan vivia no nº 3 da rua de Lille, sozinho com sua espo-
sa. Não havia uma família ampliada. Ele é moderno. É uma estrutura familiar
do século XX. Ele se divorciou. Tinha duas famílias. Jamais viveu no meio
de uma família. Lacan morou ali com Sylvia e a filha. É uma família recom-
posta. Freud, ao contrário, vivia com todos os filhos, mais a cunhada. Jamais
Lacan hospedou sua irmã, nunca! No consultório da rua de Lille, mesmo que
houvesse uma circulação significativa de pacientes, ninguém morava lá. De
forma alguma. Não tem comparação. A estrutura familiar é diferente. Freud
tinha até três empregadas. A última delas, que foi para o exílio com ele, es-
creveu memórias nas quais conta o cotidiano da casa. Havia muitas pessoas
em Berggasse.

APPOA: O prédio tinha quatro andares?


Roudinesco: Três. Tinha o de Dorothy, o do apartamento de Freud e o
do consultório, embaixo. Realmente, havia muita gente.

APPOA: E você narra todo o cotidiano da casa?


Roudinesco: Exatamente. Conto quem cozinhava, o que eles comiam.
Jacques Le Goff havia me dito: “Quero saber como Freud vivia!”.
Por exemplo, quando ele viaja, se preocupa mais com suas roupas. Em
sua ida aos Estados Unidos, em 1909, com Jung – que é muito mais conhe-
cido que ele, Freud miúdo, 1,70 de altura, cheio de complexos, e Jung, muito
alto, elegante, bonito. Freud não é bonito e não tem condições de comprar
um guarda-roupa refinado para ir a Nova Iorque. Enquanto Jung está na pri-
meira classe, para Freud é difícil. Então, é preciso, ao menos, que suas rou-
pas estejam bem dobradas.

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Freud, nova versão

Também descrevo a seguir a chegada ao Novo Mundo e como Freud é


incrivelmente impactante: Jones sugere que fale em inglês, e Stanley Hall e
os que chegam dizem que ele deve falar em alemão. Todos falam alemão.
Os intelectuais pedem a ele que fale em alemão, Jones lhe diz para falar
inglês porque se compreenderá melhor. Não, de jeito nenhum, Freud falará
alemão, porque lhe pediram. Jones o aconselha a não falar da sexualidade
com os puritanos. Freud fala apenas de sexualidade. Jones recomenda que
as conferências estejam bem preparadas; Freud chega sem anotações. Ele
faz cinco conferências de improviso. Isso é impactante. É nisso que reside o
triunfo. Ele domina muito, muito bem seus assuntos. É apaixonante.

APPOA: Em uma entrevista dada ao Jornal O Globo, você evocou


o traumatismo dos franceses em relação às histórias, porque não há
histórias em...
Roudinesco: É a primeira biografia escrita por um autor francês.

APPOA: Você também tratou da ideologia francesa como a-histórica.


Roudinesco: Ah! Sim. É terrível. O mundo anglófono não é a-histórico.
Os psicanalistas ingleses sabem e, em geral, conhecem muito mais a vida
de Freud. A escola histórica, John Forrester, todos os trabalhos são ingleses,
americanos. Os franceses, não. Eles têm uma visão estrutural – e eu venho do
estruturalismo – e estudam os textos sem considerar sua história. Sim, eles são
a-históricos. Muito mais do que outros psicanalistas. É uma tendência geral do
movimento psicanalítico não conhecer sua história. E essa tendência é muito
mais forte na França do que em outros lugares.

APPOA: Essa situação pode mudar?


Roudinesco: Acredito que, caso os psicanalistas franceses continuem
sem vontade de conhecer a história de Freud, assim como eles não dese-
jaram conhecer bem a história de Lacan – ainda que agora, 21 anos de-
pois, meu livro1 tenha se tornado um clássico –, e caso persistam em repetir
comentários de textos sobre Freud sem conhecer a história de Freud, eles
desaparecerão. Não vão desaparecer clinicamente, mas se tornarão psicote-
rapeutas. Não serão nem mais capazes de refletir sobre a história da clínica.
Espero que eles entendam isso. Uma comunidade não pode sobreviver sem
conhecer sua história. Isso também vale para o Brasil. Ontem à noite mesmo,
havia psicanalistas que não sabiam que Amílcar Lobo colaborou ativamente
com a ditadura... Alô?!
Podem dizer: isso não é psicanálise. Talvez não seja, mas mesmo quan-
do não se conhece a história, ela se impõe para as pessoas de qualquer

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Elisabeth Roudinesco

forma... É impossível não conhecer a própria história. Então, é preciso se


acostumar a essa ideia.
Fiquei surpresa – pela primeira vez, aliás – com o sucesso do livro. Em
quinze dias, foram vendidos dez mil livros, e as vendas continuam. Muitos
contratos... E, sobretudo, pela primeira vez, a recepção positiva de toda a
imprensa. É a primeira vez que vivo algo assim. Uma unanimidade do jornal
socialista L’humanité à revista semanal Valeurs actuelles. As pessoas não
querem mais ouvir falar do filósofo Michel Onfray... Elas estão saturadas, não
querem mais o Freud dos psicanalistas nem dos antifreudianos... O livro foi
unanimemente aplaudido pela crítica, o que eu não esperava. É um verda-
deiro sucesso.

APPOA: Poderíamos dizer, então, que uma historiadora conhece


mais sobre Freud do que uma psicanalista?
Roudinesco: Mas é a mesma coisa, uma historiadora e uma psicana-
lista. Não compreendem isso, não compreendem nada. Sou capaz de fazer
supervisões num dia e falar de história no outro. É parecido. Sou contra a
interpretação psicanalítica da história. Porém, não sou apenas psicanalista.
Enfim, não acho que seja contraditório. Quando me questionam: “mas
você faz história e não psicanálise”. Os dois! Os dois! E são duas formas
de interpretação diferentes. Eu faço os dois. É um defeito dos psicanalistas
acreditarem que, quando se faz história, não se faz... Bem, se faz de tudo! O
mesmo que quando se ė psicanalista, há a ideia de que se deve tratar de todos.
Bom. Primeiro, recebem-se as pessoas, depois se vê.

APPOA: No livro, a senhora examina o método de Freud sob todos


os aspectos...
Roudinesco: Todos os aspectos. Há facetas das quais não tratei. Não
tem como fazê-lo em seiscentas páginas, mas de qualquer forma... Mostro a
evolução da doutrina de Freud.

APPOA: A senhora aborda um pouco a relação de Freud com Jung?


Roudinesco: Sim, e como! A ruptura é horrível para os dois. É dramá-
tica para ambos. Jung cai em depressão e Freud fica infeliz. Ele vai a Roma
e, depois, vem a guerra. Em seguida, a guerra é entre os dois. Jung tem um
carinho imenso por Freud e nunca mais vive algo assim.

APPOA: No filme Sigmund Freud: a invenção da psicanálise, Jung


afirma em dado momento: “Bom, com Freud era terrível”.
Roudinesco: Sim. Em seguida, Jung caiu no esoterismo. E, depois, ele

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Freud, nova versão

sofre por isso, pois... enfim. Então, logo após, apoiou o nazismo. Bem, ele
era antissemita, mas não de maneira perceptível. Freud havia notado que
Jung era antissemita, mas não se preocupa muito antes de 1914. Discorro
longamente sobre isso. Depois isso se torna impossível. No entanto, Freud
queria sair do gueto vienense, do gueto judeu. Seu sonho era que um não
judeu encabeçasse o movimento.
Quem ocupa o lugar de Jung é Jones, que será o discípulo mais político
de Freud. Ele mantém uma distância: na verdade, Jones serve muito mais a
uma causa do que a um homem. Dessa forma, ele é capaz de criticar Freud.
Diversas vezes aponta seus erros. Por exemplo, a respeito do nazismo, Jo-
nes é muito mais lúcido. Ele colabora, mas é muito mais consciente. Ele está
convencido de que a Áustria será anexada. Tem certeza, em 1914, de que os
aliados ganharão a Guerra e Freud duvida disso, convencido de que os impé-
rios são eternos. Em 1915, a coisa piora. Jones diz que o futuro da psicaná-
lise será na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Freud diz que não é verdade.
Jones é pragmático, político; ele se envolve muito com o movimento. É muito
mais eficaz do que Jung.
Há, ainda, Ferenczi e Rank, que são os dois filhos queridos. Freud gosta
muito deles. Ele gosta de todo mundo. Existia muito carinho entre eles. É uma
linda história.
Já Lacan não tem nada a ver. Ele não é nem um pouco parecido. São
outros quinhentos. Realmente, é a querela dos antigos e modernos. De certa
forma, podemos dizer que a vida de Lacan se parece muito mais com a de
Marguerite Duras.
É isso!

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.172-193, jul. 2014/dez. 2014

RECORDAR,
REPETIR, INTRODUÇÃO DO NARCISISMO1
ELABORAR

Sigmund Freud

Clássicos a gente lê e relê. Isso é coisa para quem talvez esteja num
momento de se dirigir a referências de base ou numa posição que não é bem
a mesma de outrora. É também, como neste caso, para quem de início sen-
tiu falta de fundamentação nas mal traçadas linhas em que Freud anuncia o
principal da paranoia a Fliess, ou gente que não esperava que Jung botasse
em suas mãos o livro de Schreber e o levasse a incubar por alguns anos a
escrita que ia se tornar, desde 1914, um marco em sua obra.
Como clássico, Zur Einführung des Narzissmus, de S. Freud, insta a
leitura. Se o leitor de língua portuguesa, instigado por este clássico, resolve
não seguir Lacan e decide, portanto, não ler este texto em alemão, quais
alternativas tem? A primeira é partir para uma versão em português. Qual
cuidado requer então a apresentação de tal versão deste texto de Freud? O
de que ela passe pela prevalência de uma espécie de antídoto a rompantes
narcísicos: o enquadre institucional.
Cerca de cem anos depois de ter sido escrito, Introdução do narcisismo
vem a público através da APPOA, em português. No quadro desta instituição,
três tradutores dirigiram seu olhar à literalidade deste escrito: uma alemã,
um bilíngue e um brasileiro. Criaram-se, nesse meio de cultura, as condições

1
Texto originalmente publicado em 1914. Título original: Zur Einfürhung des Narzissmus. Tra-
dução de Luís Fernando Lofrano de Oliveira, Max de Araujo Götze e Sofia Schneider, publicado
pela APPOA em 1995.

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Introdução do narcisismo

para que esta tradução fosse realizada. Associados ao pé da letra, entre ca-
fés, tensões e risadas, estes tradutores revezaram-se no que precisava e
persistiram em reunir olhares heterogêneos para fazer o texto em português
prevalecer a diversidades, desencontros e pequenas diferenças. O resultado
de tal associação é o texto que se segue.

O termo narcisismo provém da descrição clínica e foi escolhido por P.


Näcke – 1899 – para a designação daquela conduta pela qual um indivíduo
trata o próprio corpo de maneira semelhante ao modo como, em outras ve-
zes, o corpo de um objeto sexual; portanto, o contempla, afaga, acaricia com
agrado sexual, até que alcance através destes procedimentos a plena satis-
fação. Nesta formação o narcisismo tem a significação de uma perversão, a
qual absorveu toda a vida sexual da pessoa e por isto também submete-se
às mesmas expectativas com as quais nos acercamos do estudo de todas as
perversões.
Chamou então a atenção da observação psicanalítica que traços isola-
dos da conduta narcísica são encontrados em muitas pessoas acometidas
de outras perturbações, assim como, segundo Sadger, em homossexuais, e
finalmente aproximava-se a suposição de que uma colocação da libido assi-
nalada como narcisismo poderia ser considerada em abrangência muito mais
ampla e exigir um lugar no desenvolvimento sexual regular do ser humano2. À
mesma suposição chegava-se a partir das dificuldades do trabalho psicana-
lítico junto a neuróticos, pois parecia como se uma tal conduta narcísica dos
mesmos constituísse um dos limites de sua influenciabilidade. Narcisismo
neste sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal para
o egoísmo da pulsão de autoconservação, da qual justamente uma parte é
atribuída a cada ser vivo.
Um motivo premente para ocupar-se com a representação de um narci-
sismo primário e normal deu-se quando foi feita a tentativa de colocar a com-
preensão da demência precoce (Kraepelin) ou esquizofrenia (Bleurer) sob
o pressuposto da teoria da libido. Tais doentes, que propus designar como

2
O. Rank (1911).

173

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Sigmund Freud

parafrênicos, mostram dois traços de caráter fundamentais: a megalomania


e o desvio de seu interesse do mundo externo (pessoas e coisas). Em con-
sequência da última alteração, eles subtraem-se à influência da psicanálise,
tornam-se incuráveis frente a nossos esforços. O desvio pelo parafrênico do
mundo externo necessita porém de uma demarcação mais exata. Também
o histérico e neurótico obsessivo desistiu da relação com a realidade, até
onde sua doença abrange. A análise mostra, porém, que ele de modo algum
suspendeu a relação erótica com pessoas e coisas. Ele agarra-se ainda à
fantasia, quer dizer, por um lado substituiu os objetos reais pelos imaginários
de sua reminiscência ou mesclou estes com aqueles, por outro lado desistiu
de iniciar as ações motoras para o alcance de seus fins nesses objetos. So-
mente para este estado da libido dever-se-ia admitir a expressão usada sem
diferenciação por Jung: introversão da libido. Outro é o caso do parafrênico.
Este parece ter realmente retirado sua libido das pessoas e coisas do mun-
do externo, sem substituí-las por outras em sua fantasia. Quando isto então
acontece, parece ser secundário e fazer parte de uma tentativa de cura que
quer conduzir de volta a libido para o objeto3.
Surge a questão: qual é o destino da libido subtraída dos objetos na es-
quizofrenia? A megalomania destes estados indica aqui o caminho. Ela deve
ter surgido às custas da libido de objeto. A libido subtraída do mundo externo
foi conduzida ao eu, de modo que surgia uma conduta que podemos cha-
mar de narcisismo. A própria megalomania não é, porém, uma criação nova,
mas, como sabemos, o aumento e a elucidação de um estado que já existira
anteriormente. Com isto, somos levados a compreender como secundário o
narcisismo que surge através da inclusão dos investimentos de objeto, o qual
se constrói sobre um narcisismo primário obscurecido por várias influências.
Observo mais uma vez que não quero trazer aqui um esclarecimento ou
aprofundamento do problema da esquizofrenia, mas apenas reunir o que já
foi dito em outro lugar para justificar uma introdução do narcisismo.
Uma terceira afluência para este, segundo me parece, legítimo aper-
feiçoamento da teoria da libido, provém de nossas observações e compre-
ensões da vida psíquica de crianças e de povos primitivos. Nestes últimos,

3
Verifique, para estas exposições, a discussão do “fim do mundo” na análise do senador Schre-
ber.

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Introdução do narcisismo

encontramos traços que, se estivessem isolados, poderiam ser incluídos na


megalomania: uma superestimação do poder de seus desejos e atos psíqui-
cos, a “onipotência dos pensamentos”, uma crença no poder mágico das pa-
lavras e uma técnica contra o mundo externo, a “magia”, a qual aparece como
uso consequente desses pressupostos megalomaníacos4. Esperamos um
posicionamento inteiramente análogo para com o mundo externo na criança
de nosso tempo, cujo desenvolvimento é, para nós, muito menos transparen-
te5. Formamos assim a representação de um originário investimento libidinal
do eu, o qual mais tarde será cedido aos objetos, mas que fundamentalmente
permanece e comporta-se em relação aos investimentos de objeto como o
corpo de um microrganismo protoplasmático em relação aos pseudópodos
que emitiu. Esta parte da colocação da libido precisava permanecer primeira-
mente velada para nossa pesquisa proveniente dos sintomas neuróticos. So-
mente as emanações desta libido, os investimentos de objeto que podem ser
emitidos e novamente recolhidos, nos chamaram a atenção. Vemos, a grosso
modo, uma oposição entre a libido do eu e a libido de objeto. Quanto mais
uma gasta, mais a outra empobrece. O estado da paixão aparece-nos como a
fase mais elevada de desenvolvimento a que a libido de objeto leva; tal esta-
do apresenta-se a nós como uma desistência da própria personalidade frente
ao investimento de objeto e encontra sua oposição na fantasia (ou autoper-
cepção) de fim do mundo própria dos paranoicos6. Concluímos finalmente, a
respeito da diferenciação das energias psíquicas, que estão primeiramente
juntas no estado do narcisismo e são indiferenciáveis para nossa análise tos-
ca, e que apenas com o investimento de objeto será possível diferenciar uma
energia sexual, a libido, de uma energia das pulsões do eu.
Antes de ir adiante, devo tocar em duas questões que conduzem ao
cerne das dificuldades do tema. Primeiro: como se relaciona o narcisismo,
que tratamos agora, com o autoerotismo, que descrevemos como um estado
prematuro da libido? Segundo: se atribuímos ao eu um investimento primário
com libido, para que afinal é ainda necessário separar uma libido sexual de

4
Vide os parágrafos correspondentes em meu livro Totem e tabu
5
Vide Ferenzci (1913a)
6
Há dois mecanismos deste fim do mundo: quando todo o investimento de libido flui sobre o
objeto amado e quando todo investimento reflui ao eu.

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Sigmund Freud

uma energia não sexual das pulsões do eu? A fundamentação de uma ener-
gia psíquica unitária não economizaria todas as dificuldades da separação
de energia pulsional do eu e libido do eu, libido do eu e libido de objeto? So-
bre a primeira questão observo: é uma suposição necessária a de que uma
unidade comparável ao eu não existe de início no indivíduo; o eu deve ser
desenvolvido. Mas as pulsões autoeróticas são primordiais; algo deve então
acrescentar-se ao autoerotismo, uma ação psíquica nova, para configurar o
narcisismo.
A convocação a responder à segunda pergunta de maneira resoluta
deve despertar em cada psicanalista um notável mal-estar. Defendemo-nos
contra o sentimento de abandonar a observação por querelas teóricas es-
téreis, porém não podemos nos subtrair da tentativa de um esclarecimento.
Certamente representações como a de uma libido do eu, energia pulsional do
eu e assim por diante não são nem especialmente apreensíveis de maneira
clara, nem suficientemente ricas em conteúdo; uma teoria especulativa das
relações em questão quereria antes de tudo obter um conceito precisamente
circunscrito para sua fundamentação. Apenas suponho que isto é justamente
a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência construída sobre a
interpretação da empiria. A última não invejará da especulação o privilégio
de uma fundamentação lisa, logicamente incontestável, porém de bom grado
contentar-se-á com pensamentos básicos pouco representáveis, que desa-
parecem nebulosamente, os quais ela espera apreender mais claramente no
curso de seu desenvolvimento e, eventualmente, também está pronta para
trocá-los por outros. Estas ideias não são pois o fundamento da ciência, so-
bre o qual tudo repousa; este é, antes de tudo, somente a observação. Tais
ideias não são o alicerce, mas a parte superior de toda construção, e podem
sem dano ser substituídas e desmontadas. Vivenciamos o mesmo em nossos
dias novamente na física, cujas concepções básicas sobre matéria, centros
de força, atração e assim por diante são pouco menos precárias do que os
correspondentes da psicanálise.
O valor dos conceitos de libido do eu e libido de objeto está em que
provêm da laboração dos caracteres íntimos de processos neuróticos e psi-
cóticos. A separação da libido em uma própria do eu e uma atrelada aos
objetos é uma continuação indispensável de uma primeira suposição que
separou pulsões sexuais de pulsões do eu. Ao menos a análise das neuroses
de transferência puras (histeria e compulsão) me obrigou a isto, e sei apenas
que todas as tentativas de dar conta destes fenômenos por outros meios fun-
damentalmente fracassaram.
Na falta total de uma teoria da pulsão que, de algum modo, oriente, é
permitido, ou melhor, indicado primeiramente submeter qualquer suposição

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Introdução do narcisismo

à prova, de maneira consequente, até que ela falhe ou se comprove. Várias


coisas falam agora a favor da suposição de uma separação originária de
pulsões sexuais e outras, pulsões do eu, além de sua utilidade para a aná-
lise das neuroses de transferência. Admito que este fator isoladamente não
seria inequívoco, pois poderia tratar-se de energia psíquica indiferente, que
apenas se torna libido através do ato do investimento de objeto. Mas primei-
ramente esta divisão conceitual corresponde à distinção popular tão corrente
entre fome e amor. Em segundo lugar, considerações biológicas se mostram
a favor desta. O indivíduo leva realmente uma existência dupla, como um fim
em si mesmo e como elo em uma corrente à qual é servil, contra ou, de todo
modo, sem sua vontade. Ele considera mesmo a sexualidade como uma de
suas intenções, enquanto uma outra observação mostra que ele é apenas
um apêndice do seu plasma germinal, ao qual ele coloca à disposição suas
forças, em troca de um prêmio de prazer; o portador mortal de uma subs-
tância – talvez – imortal, assim como um morgado é apenas o proprietário
temporário de uma instituição mais duradoura do que ele. A separação das
pulsões sexuais das pulsões do eu apenas espelharia esta função dupla do
indivíduo. Em terceiro lugar, deve-se lembrar que todas as nossas proviso-
riedades psicológicas devem um dia ser situadas no terreno dos suportes
orgânicos. Tornar-se-á então provável que se trate de matérias específicas
e processos químicos, que levam a efeito a sexualidade e intermediam a
continuação da vida individual da espécie. Levamos em conta esta probabi-
lidade ao substituirmos matérias químicas específicas por forças psíquicas
específicas.
Precisamente porque nos demais casos estou empenhado em manter
afastado da psicologia todo pensamento de outra ordem, mesmo o biológico,
quero confessar expressamente neste lugar que a suposição de pulsões do
eu e sexuais separadas, ou seja, a teoria da libido, repousa minimamente em
base psicológica, está em essência apoiada biologicamente. Portanto, serei
também suficientemente consequente para abandonar esta suposição se do
próprio trabalho psicanalítico uma outra pressuposição sobre as pulsões se
evidenciar como a melhor aproveitável. Este não foi o caso até aqui. Pode ser
então que a energia sexual, a libido – na mais acentuada profundidade e −
extensão −, seja apenas um produto da diferenciação da energia que, senão,
atua na psique. Mas uma tal afirmação não é relevante. Ela relaciona-se com
coisas que já estão tão afastadas dos problemas de nossa observação e tem
tão pouco conteúdo de conhecimento que é tão ocioso contestá-la quanto
validá-la; possivelmente esta identidade originária tem tão pouco a ver com
nossos interesses analíticos quanto o parentesco originário de todas as ra-
ças humanas tem a ver com a prova, exigida pelos serviços de herança, de

177

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Sigmund Freud

parentesco com o testador. Com todas estas especulações não chegamos a


nada; uma vez que não podemos esperar até que nos sejam oferecidas por
uma outra ciência as resoluções da teoria da pulsão, é bem mais adequado
averiguar que luz pode ser lançada por uma síntese dos fenômenos psico-
lógicos sobre aqueles enigmas biológicos fundamentais. Familiarizemo-nos
com a possibilidade do erro, mas não nos deixemos deter no prosseguimen-
to, de maneira consequente, da suposição primeiramente escolhida de uma
oposição entre pulsões do eu e pulsões sexuais, que se impôs a nós através
da análise das neuroses de transferência, se ela se deixa desenvolver frutí-
fera e livre de contradição, e também se deixa aplicar a outras afecções, por
exemplo, a esquizofrenia.
Naturalmente seria outra coisa se fosse apresentada a prova de que a
teoria da libido já malogrou na elucidação da doença por último menciona-
da. C. G. Jung apresentou esta afirmação (1912) e me obrigou, com isto, às
ultimas exposições, das quais eu teria de bom grado me poupado. Eu teria
preferido percorrer até o fim o caminho trilhado na análise do caso Schreber,
calando sobre suas pressuposições. A afirmação de Jung é, porém, no míni-
mo uma precipitação. Suas fundamentações são escassas. Ele recorre pri-
meiramente ao meu próprio testemunho: eu mesmo teria me visto obrigado a
estender, em face das dificuldades da análise-Schreber, o conceito da libido,
quer dizer, desistir de seu conteúdo sexual, deixar coincidir libido com inte-
resse psíquico em geral. Ferenczi (1913b) já expôs o que deve ser dito para a
retificação desta interpretação errônea em uma crítica aprofundada do traba-
lho junguiano. Posso apenas dar razão ao crítico e repetir que não expressei
semelhante renúncia à teoria da libido. Um argumento seguinte de Jung, ou
seja, não seria de se supor que a perda da função normal do real poderia ser
causada só pela retirada da libido, não é argumento, mas, sim, um decreto;
it begs the question, antecipa a decisão e poupa a discussão, pois deveria
mesmo ser investigado, se isto é possível e como. Em seu grande trabalho
seguinte, Jung (1913) passou próximo da solução há muito por mim indica-
da: “Quanto a isso, então, certamente ainda merece atenção – ao que aliás
Freud se refere em seu trabalho no caso schreberiano – que a introversão
da libido sexualis conduz a um investimento do ‘eu’, pelo qual possivelmente
é trazido à tona aquele efeito de perda de realidade. É de fato uma possibi-
lidade atraente explicar desta maneira a psicologia da perda de realidade”.
Mas Jung não se envolve muito mais com esta possibilidade. Poucas linhas
depois ele a desfaz com a observação de que desta condição “resultaria a
psicologia de um anacoreta ascético, mas não uma demência precoce”. A
observação de que um anacoreta tal, que “está empenhado em exterminar
qualquer vestígio de interesse sexual” (mas apenas no sentido popular da

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Introdução do narcisismo

palavra “sexual”), nem sequer precisa apresentar uma colocação patógena


da libido, pode ensinar quão pouco esta comparação imprópria consegue
levar a uma decisão. Ele pode ter desviado totalmente seu interesse sexual
das pessoas, e pode ainda tê-lo sublimado em interesse intensificado pelo
divino, pelo natural, pelo animal, sem cair em uma introversão de sua libido
a suas fantasias, ou em um retorno da mesma para seu eu. Parece que esta
comparação desde o princípio descuida a diferenciação possível entre o in-
teresse de fontes eróticas e o de outras fontes. Lembremo-nos, além disso,
que as investigações da escola suíça, apesar de todo o seu mérito, trouxeram
apenas esclarecimento sobre dois pontos no quadro da demência precoce:
sobre a existência dos conhecidos complexos, tanto de sadios quanto de
neuróticos, e sobre a semelhança de suas formações de fantasia com os
mitos dos povos; mas, como não puderam lançar mais nenhuma luz sobre o
mecanismo do adoecimento, poderemos refutar a afirmação de Jung de que
a teoria da libido tenha malogrado na dominação da demência precoce e,
com isto, esteja também liquidada para as outras neuroses.

II

Um estudo direto do narcisismo parece-me ser impedido por dificulda-


des específicas. A principal via de acesso a isto continuará sendo mesmo a
análise das parafrenias. Como as neuroses de transferência possibilitaram-
nos o rastreamento das moções pulsionais libidinais, também a demência
precoce e a paranoia nos permitirão o entendimento da psicologia do eu.
Novamente deveremos conjeturar a aparente simplicidade do normal desde
as distorções e embrutecimentos do patológico. Ainda assim, ficam abertos
alguns outros caminhos para aproximarmo-nos do conhecimento do narcisis-
mo, caminhos que quero agora descrever na seguinte ordem: a consideração
da doença orgânica, da hipocondria e da vida amorosa dos sexos.
Com a apreciação da influência da doença orgânica sobre a distribuição
da libido, sigo uma sugestão verbal de S. Ferenczi. É em geral conhecido e
nos parece óbvio que aquele que padece de dor orgânica e sensações desa-
gradáveis abdica do interesse pelas coisas do mundo externo, na medida em
que não concernem ao seu sofrimento. Uma observação mais exata ensina
que ele também retira o interesse libidinal de seus objetos de amor, para de
amar enquanto sofre. A banalidade deste fato não precisa nos dissuadir de
dar-lhe uma tradução no modo de expressão da teoria da libido. Diríamos
então: o doente retira seus investimentos de libido para seu eu, a fim de
enviá-los novamente depois da cura. “Unicamente na estreita cavidade do
molar concentra-se a alma” diz W. Busch do poeta com dor de dente. Libido

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Sigmund Freud

e interesse do eu têm nisto o mesmo destino e novamente não são diferenci-


áveis entre si. O conhecido egoísmo dos doentes encobre ambos. Achamos
tal egoísmo tão óbvio porque estamos certos de comportarmo-nos do mesmo
modo em caso idêntico. A dissipação da disposição amorosa, ainda que mui-
to intensa, por perturbações corporais, e a substituição súbita da mesma por
indiferença total encontram devido aproveitamento na comicidade.
De modo semelhante à doença, o estado de sono significa também uma
retirada narcísica das posições da libido para a própria pessoa, mais exata-
mente para o desejo único de dormir. O egoísmo dos sonhos insere-se bem
neste contexto. Em ambos os casos vemos, se não outras coisas, exemplo
de alterações da distribuição da libido em consequência de alteração do eu.
A hipocondria exterioriza-se, assim como o estado de doença orgânico,
por sensações corporais penosas e dolorosas, e coincide também com este
no efeito sobre a distribuição da libido. O hipocondríaco retira interesse, bem
como libido – a última de modo especialmente nítido – dos objetos do mundo
externo, e concentra ambos sobre o órgão que o ocupa. Adianta-se agora
uma diferença entre hipocondria e doença orgânica: no último caso, as sen-
sações penosas estão baseadas em alterações [orgânicas] comprováveis;
no primeiro caso, não. Seria, porém, integralmente adequado ao quadro de
toda a nossa compreensão dos processos de neurose, se nos decidíssemos
a dizer: a hipocondria deve ter razão, as alterações de órgão também não
devem faltar nela. Agora, em que consistiriam? Deixemo-nos determinar pela
experiência de que sensações corporais de tipo desprazível, comparáveis
às hipocondríacas, também não faltam nas outras neuroses. Já expressei
anteriormente a inclinação a colocar a hipocondria como terceira neurose
atual, ao lado da neurastenia e da neurose da angústia. Provavelmente não
nos afastaríamos muito se apresentássemos o tema como se regularmente
um pedacinho de hipocondria fosse também constituído nas outras neuroses.
Vê-se isto do mais belo modo na neurose de angústia e na histeria construída
sobre ela. Assim, o modelo por nós conhecido do órgão dolorosamente sen-
sível, de algum modo alterado e ainda assim não doente no sentido habitual,
é o genital em seus estados de excitação. Ele torna-se então irrigado de san-
gue, inchado, umedecido e sede de sensações múltiplas. Se denominamos
a atividade de um lugar do corpo, de enviar à vida psíquica estímulos sexu-
almente excitantes, sua erogeneidade, e pensamos que estamos há tempo
habituados, através de considerações da teoria sexual, à concepção de que
certos outros lugares do corpo – as zonas erógenas – poderiam representar
os genitais e comportar-se analogamente a eles, então temos aqui apenas
um passo mais a ousar. Podemos decidir-nos a ver a erogeneidade como
propriedade geral de todos órgãos e temos então o direito de falar do au-

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Introdução do narcisismo

mento ou redução da mesma em uma parte determinada do corpo. A cada


tal alteração da erogeneidade nos órgãos poderia andar paralelamente uma
alteração do investimento de libido no eu. Em tais fatores teríamos que pro-
curar em que fundamentamos a hipocondria e o que pode ter o mesmo efeito
sobre a distribuição da libido que o adoecimento material dos órgãos.
Notamos, ao prosseguirmos nesta linha de pensamento, que vamos ao
encontro do problema não só da hipocondria como também das outras neu-
roses atuais, da neurastenia e da neurose de angústia. Detenhamo-nos por
isto neste ponto; não está na intenção de uma investigação psicológica pura
ultrapassar tanto a fronteira para a área da pesquisa fisiológica. Seja apenas
mencionado que, a partir daqui, pode-se supor que a hipocondria estaria,
numa relação com a parafrenia, análoga à das outras neuroses atuais com
a histeria e a neurose obsessiva, dependeria pois da libido do eu como as
outras da libido de objeto; do lado da libido do eu, a angústia hipocondríaca
seria a contrapartida da angústia neurótica. Além disso: se já estamos familia-
rizados com a ideia de enlaçar o mecanismo do adoecimento e da formação
de sintoma nas neuroses de transferência – e o progresso da introversão à
regressão – a um represamento da libido de objeto7, podemos então também
aproximarmo-nos da ideia de um represamento da libido do eu e relacioná-la
com os fenômenos da hipocondria e da parafrenia.
Naturalmente, nosso desejo de saber levantará aqui a questão de por
que um tal represamento da libido no eu deve ser sentido como desprazível.
Gostaria de contentar-me com a resposta de que desprazer é em geral a ex-
pressão da tensão mais alta, de que, portanto, é uma quantidade da ordem
do acontecer material, quantidade que aqui, como em outra parte, transfor-
ma-se na qualidade psíquica do desprazer; todavia, para o desenvolvimento
do desprazer não seria então decisiva a grandeza absoluta daquele processo
material, senão antes uma certa função desta grandeza absoluta. A partir da-
qui, pode-se mesmo ousar aproximar-se da questão: de onde provém afinal
a coação sobre a vida psíquica no sentido de ir além das fronteiras do nar-
cisismo e de colocar a libido em objetos? A resposta consequente de nossa
linha de pensamento novamente diria que esta coação se daria quando o
investimento do eu com libido ultrapassasse uma certa medida. Um egoísmo
forte protege do adoecimento, mas, enfim, deve-se começar a amar para não

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Conforme Sobre os tipos de adoecimento neurótico (1912c)

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Sigmund Freud

ficar doente, e deve-se adoecer quando não se pode amar em consequência


de frustração. Aproximadamente como o modelo segundo o qual H. Heine
imagina a psicogênese da criação do mundo:

“Doença deve ter sido a última razão


De todo ímpeto criador;
Criando pude sarar,
Criando tornei-me são”

Reconhecemos em nosso aparelho psíquico, antes de tudo, um meio


para o qual é transferida a dominação de excitações que, de outro modo,
seriam sentidas penosamente ou atuariam de forma patógena. A elaboração
psíquica proporciona algo extraordinário para o desvio interno de excitações
que não são capazes de uma descarga externa imediata, ou das excitações
para as quais uma tal descarga não seria, de momento, desejável. No entan-
to, para um tal processamento interno, é num primeiro momento indiferente
se ele acontece em objetos reais ou imaginados. A diferença só se mostra
mais tarde, se a volta da libido para os objetos irreais (introversão) conduziu
a um represamento da libido. A megalomania permite no parafrênico um aná-
logo processamento interno da libido que retornou ao eu; talvez apenas após
a falha da megalomania o represamento da libido no eu torne-se patógeno e
estimule o processo de cura que se impõe a nós como doença.
Tento neste ponto adentrar alguns pequenos passos no mecanismo
da parafrenia e agrupo as concepções que hoje já me aparecem como dig-
nas de atenção. Coloco a diferença entre estas afecções e as neuroses de
transferência na situação de que a libido tornada livre por frustração não
permanece em objetos na fantasia, mas se retira para o eu; a megalomania
corresponde, pois, à dominação psíquica desta quantidade de libido, ou
seja, à introversão para as formações de fantasia nas neuroses de trans-
ferência; da falha deste empreendimento psíquico nasce a hipocondria da
parafrenia, que é homóloga à angústia das neuroses de transferência. Sa-
bemos que esta angústia é passível de desprendimento por elaborações
psíquicas posteriores, isto é, por conversão, formação reativa, formação de
proteção (fobia). Nas parafrenias, ocupa esta posição a tentativa de resti-
tuição, à qual devemos as manifestações chamativas da doença. Já que a
parafrenia traz consigo frequentemente – se não na maioria das vezes – um
desprendimento apenas parcial da libido em relação aos objetos, separar-
se-iam assim em seu quadro três grupos de manifestações: 1) as da norma-
lidade mantida ou neurose (manifestações restantes), 2) as do processo de
doença (o desprendimento da libido em relação aos objetos e, além disso,

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Introdução do narcisismo

a megalomania, a hipocondria, a perturbação afetiva, todas as regressões),


3) as da restituição, que prende novamente a libido aos objetos segundo o
modo de uma histeria (demência precoce, parafrenia propriamente dita) ou
segundo o de uma neurose obsessiva (paranoia). Este novo investimento
de libido acontece a partir de um outro nível, sob outras condições que não
a primeira. A diferença entre as neuroses de transferência criadas neste e
as correspondentes formações do eu normal deveria poder mediar o mais
profundo entendimento da estrutura de nosso aparelho psíquico.
A vida amorosa dos seres humanos, em sua diferenciação heterogênea
no homem e na mulher, permite um terceiro acesso ao estudo do narcisismo.
De modo análogo a como a libido de objeto primeiramente encobriu, para
nossa observação, a libido do eu, notamos também primeiramente na eleição
de objeto da criança (e adolescente), que ela tira seus objetos sexuais de
suas vivências de satisfação. As primeiras satisfações sexuais autoeróticas
são vivenciadas em conexão com funções vitais que servem à autoconser-
vação. As pulsões sexuais apoiam-se inicialmente na satisfação das pulsões
do eu, somente mais tarde fazem-se independentes das últimas; mas o apoio
mostra-se ainda no fato de que as pessoas que lidam com a alimentação, o
cuidado, a proteção da criança tornam-se os primeiros objetos sexuais, isto
é, inicialmente a mãe ou seu substituto. Ao lado deste tipo e desta fonte da
eleição de objeto, ao qual pode-se chamar de tipo de apoio, a pesquisa ana-
lítica fez-nos porém conhecer um segundo, que não estávamos preparados
para encontrar. Descobrimos, especialmente nítido em pessoas cujo desen-
volvimento da libido experimentou uma perturbação, como em perversos e
homossexuais, que elas não elegem seu posterior objeto de amor segundo
o modelo da mãe, mas segundo o da sua própria pessoa. Procuram noto-
riamente a si mesmos como objetos de amor, mostram o tipo de eleição de
objeto a ser chamado de narcísico. Nesta observação deve ser reconhecido
o motivo mais forte que nos coagiu à suposição do narcisismo.
Não concluímos, entretanto, que os seres humanos dividem-se em dois
grupos marcadamente separados, conforme eles tenham o tipo de apoio da
eleição de objeto ou o tipo narcísico, porém preferimos a suposição de que a
cada ser humano estão abertos ambos os caminhos para a eleição de objeto,
onde um ou outro pode ser preferido. Dizemos que o ser humano teria dois
objetos sexuais originários: ele mesmo e a mulher que dele cuida, e pressu-
pomos nisto o narcisismo primário de cada ser humano, o qual eventualmen-
te pode vir a expressar-se de modo dominante em sua eleição de objeto.
A comparação entre homem e mulher mostra pois que, em sua relação
com o tipo da eleição de objeto, dão-se diferenças fundamentais, ainda que
naturalmente não regulares. O amor de objeto pleno segundo o tipo de apoio

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Sigmund Freud

é propriamente característico para o homem. Tal amor mostra a acentuada


superestimação sexual, a qual provém provavelmente do narcisismo originá-
rio da criança e corresponde assim a uma transferência deste ao objeto se-
xual. Esta superestimação sexual permite o surgimento do estado particular
da paixão que lembra a compulsão neurótica, o qual reconduz então a um
empobrecimento do eu, em termos de libido, em favor do objeto. O desenvol-
vimento configura-se de outro modo no mais frequente, provavelmente mais
puro e mais autêntico tipo de mulher. Aqui parece, com o desenvolvimento
da puberdade através da formação dos órgãos sexuais femininos até então
latentes, surgir um aumento do narcisismo originário, que é desfavorável à
configuração de um amor de objeto regular dotado de superestimação sexu-
al. Produz-se, especialmente no caso do desenvolvimento em direção à be-
leza, uma autossuficiência da mulher, que compensa a mulher pela liberdade
da eleição sexual, para ela socialmente atrofiada. Tais mulheres amam, em
rigor, apenas a si mesmas com intensidade semelhante a como o homem
as ama. Sua necessidade também não vai na direção de amar, mas na de
serem amadas, e elas admitem o homem que preenche esta condição. A sig-
nificação deste tipo de mulher para a vida amorosa dos seres humanos deve
ser altamente estimada. Tais mulheres exercem o maior encanto sobre os
homens, não apenas por razões estéticas, porque elas habitualmente são as
mais belas, mas também em consequência de constelações psicológicas in-
teressantes. Parece, pois, nitidamente reconhecível que o narcisismo de uma
pessoa desencadeia uma grande atração sobre aquelas outras que abdica-
ram da extensão plena de seu próprio narcisismo e se encontram no cortejo
do amor de objeto; o encanto da criança assenta-se em boa parte sobre seu
narcisismo, sua autossuficiência e inacessibilidade, do mesmo modo que o
encanto de certos animais que parecem não atentar para nós, como os gatos
e grandes feras, e mesmo o grande criminoso e o humorista forçam nosso
interesse, na sua apresentação poética, mediante a coerência narcísica com
a qual sabem manter afastado de si tudo que minora seu eu. É como se os
invejássemos pela manutenção de um estado psíquico bem-aventurado, por
uma posição libidinal inatacável, da qual nós mesmos há tempos desistimos.
Ao grande encanto da mulher narcisista não falta porém o reverso. Uma boa
parte da insatisfação do homem apaixonado, das dúvidas sobre o amor da
mulher, das queixas sobre os enigmas no ser desta, tem sua raiz nessa in-
congruência dos tipos de eleição de objeto.
Talvez não seja supérfluo assegurar que, nesta descrição da vida amo-
rosa feminina, está longe de mim qualquer tendência à depreciação da mu-
lher. Apesar do fato de que tendências em si ficam afastadas de mim, sei
também que estas formações em direções distintas correspondem à diferen-

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Introdução do narcisismo

ciação de funções num contexto biológico altamente complicado; além disso,


estou pronto para admitir que há inúmeras mulheres que amam segundo o
tipo masculino e também que desencadeiam a supervalorização sexual per-
tinente a este.
Também para as mulheres que permaneceram narcisistas e frias frente
ao homem, há um caminho que conduz ao pleno amor de objeto. Às mulhe-
res que dão à luz opõe-se, na criança, uma parte do próprio corpo como um
objeto alheio, a quem elas podem então oferecer o pleno amor de objeto a
partir do narcisismo. Ainda outras mulheres não precisam esperar pela crian-
ça para darem o passo no desenvolvimento do narcisismo (secundário) para
o amor de objeto. Elas sentiram-se masculinas mesmo antes da puberdade e
desenvolveram-se masculinamente um tanto adiante; após esta aspiração ter
sido rompida com o surgimento da maturidade feminina, resta-lhes a capaci-
dade de ansiar por um ideal masculino que é propriamente a continuação do
ser arrapazado que elas mesmas uma vez foram.
Uma breve vista geral dos caminhos para a eleição de objeto deve con-
cluir estas observações alusivas. Uma pessoa ama:

Segundo o tipo narcisista:


O que ela mesma é (a si mesma),
O que ela mesma era,
O que ela mesma gostaria de ser,
A pessoa que era uma parte dela própria.
Segundo o tipo de apoio:
A mulher nutriz,
O homem protetor.

E as pessoas substitutas que em série delas provêm. O caso c) do pri-


meiro tipo pode somente ser justificado através de exposições que seguirão
posteriormente.
A significação da eleição narcisista de objeto para a homossexualidade
do homem fica para ser apreciada em outro contexto.
O narcisismo primário da criança por nós suposto, que contém uma das
premissas de nossas teorias da libido, é menos facilmente apreensível atra-
vés de observação direta do que confirmável através de conclusão a partir de
um outro ponto. Se se considera a atitude de pais carinhosos com relação a
seus filhos, tem-se que reconhecê-la como revivificação e reprodução do nar-
cisismo próprio há muito abandonado. O bom sinal da superestimação, que
já apreciamos na eleição de objeto como estigma narcisista, domina, como é
conhecido por todos, esta relação sentimental. Existe então uma compulsão

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Sigmund Freud

a atribuir à criança todas as perfeições, para o que a observação sensata não


encontraria motivo algum, e a encobrir e esquecer todas as suas faltas, com
o que está relacionada, pois, a recusa da sexualidade infantil. Há, porém,
também, a tendência de as pessoas suspenderem, frente à criança, todas as
aquisições culturais cujo reconhecimento tiraram à força do narcisismo delas
mesmas, e a renovaram junto a esta as exigências de privilégios há muito
abandonados. A criança deve sair-se melhor do que seus pais, não tem que
estar submetida às necessidades que se reconhecem dominantes na vida.
Doença, morte, renúncia ao gozo, restrição da vontade própria não devem
valer para a criança, as leis tanto da natureza quanto da sociedade detêm-se
diante dela, em realidade ela deve ser novamente ponto central e núcleo da
criação. His Majesty the Baby, como nós mesmos nos acreditamos outrora.
Ela tem que cumprir os sonhos de desejo irrealizados dos pais, tornar-se um
grande homem e herói em lugar do pai, esposar um príncipe para a compen-
sação tardia da mãe. O ponto mais delicado do sistema narcísico, a imor-
talidade do eu duramente acossada pela realidade, ganhou sua segurança
refugiando-se na criança. O comovedor, no fundo tão infantil, amor parental
não é outra coisa que o narcisismo renascido dos pais, o qual, em sua trans-
formação em amor de objeto, revela inconfundivelmente sua antiga essência.

III

A quais perturbações está exposto o narcisismo originário da criança e


com quais reações ele se defende das mesmas, assim como por quais vias
é impulsionado neste caso, é o que eu gostaria de deixar de lado como um
importante material de trabalho que ainda espera ser executado; a parte mais
significativa deste pode-se destacar como “complexo de castração” (angústia
pelo pênis no menino, inveja do pênis na menina) e tratar em relação à in-
fluencia da intimidação sexual precoce. A investigação psicanalítica, que aliás
nos permitiu acompanhar os destinos das pulsões libidinais quando, isoladas
das pulsões do eu, se encontram em oposição a estas, permite-nos, nesta
área, conclusões sobre uma época e uma situação psíquica em que ambas
as pulsões ainda apresentam-se atuantes, unidas em mescla inseparável,
como interesses narcísicos. A. Adler extraiu deste contexto seu “protesto
masculino”, o qual ele eleva à condição de quase única força pulsional da
formação, tanto de caráter como de neurose, ao passo que não o fundamen-
ta numa aspiração narcisista, portanto ainda libidinal, mas numa valoração
social. Do ponto de vista da pesquisa psicanalítica, é reconhecida, desde o
princípio, a existência e significação do “protesto masculino”, mas, contra Ad-
ler, foi sustentada sua natureza narcisista e sua origem a partir do complexo

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Introdução do narcisismo

de castração. Ele pertence à formação do caráter, em cuja gênese entra ao


lado de muitos outros fatores, e é totalmente inadequado para o esclareci-
mento dos problemas das neuroses, em relação aos quais Adler não quer
observar nada senão o modo como eles servem ao interesse do eu. Acho in-
teiramente impossível colocar a gênese da neurose sobre a estreita base do
complexo de castração, por potente que este possa também evidenciar-se,
em homens, entre as resistências à cura da neurose. Conheço, finalmente,
também casos de neuroses nos quais o “protesto masculino”, ou, em nosso
sentido, o complexo de castração, não desempenha nenhum papel patógeno
ou não aparece de modo algum.
A observação do adulto normal mostra atenuada sua antiga megaloma-
nia e não claramente visíveis os caracteres psíquicos dos quais deduzimos
seu narcisismo infantil. O que veio a ser de sua libido do eu? Devemos supor
que seu montante ficou absorvido em investimentos de objeto? Esta possibi-
lidade evidentemente contradiz toda a linha de nossas discussões; podemos,
entretanto, extrair também da psicologia do recalcamento uma indicação de
outra resposta à questão.
Aprendemos que moções pulsionais libidinais sucumbem ao destino do
recalcamento patógeno quando entram em conflito com as representações
culturais e éticas do indivíduo. Sob esta condição, nunca se entende que a
pessoa teria um conhecimento meramente intelectual da existência destas
representações, mas sempre entende-se que ela reconheceria as mesmas
como normativas, submeter-se-ia às exigências delas decorrentes. O recalca-
mento, como dissemos, parte do eu; poderíamos precisar: do apreço do eu por
si mesmo. As mesmas impressões, vivências, impulsos, moções de desejo que
uma pessoa permite dentro de si, ou pelo menos processa conscientemente,
são rechaçadas por uma outra pessoa com total indignação, ou já sufocadas
antes de tornarem-se conscientes. Porém, a diferença entre ambas, a qual
contém a condição do recalcamento, deixa-se formular facilmente em expres-
sões que possibilitam um domínio através da teoria da libido. Podemos dizer
que uma pessoa teria erigido dentro de si um ideal em relação ao qual mede
seu eu atual, enquanto para a outra faltaria uma tal formação de ideal. A forma-
ção de ideal seria, por parte do eu, a condição do recalcamento.
Para este eu ideal vale, então, o amor por si mesmo, amor de que o eu
real gozava na infância. O narcisismo aparece deslocado sobre este novo
eu ideal que se encontra, como o infantil, em posse de todas as valiosas
perfeições. O ser humano mostrou-se incapaz aqui, como todas as vezes
no âmbito da libido, de resistir da satisfação uma vez gozada. Ele não quer
carecer da perfeição narcísica de sua infância e, se não conseguiu mantê-la,
perturbado por admoestações em seu período de crescimento e despertado

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Sigmund Freud

em seu juízo, procura reconquistá-la na forma nova do ideal do eu. O que ele
projeta à sua frente como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido
de sua infância, na qual ele era seu próprio ideal.
É natural investigar as relações desta formação de ideal com a subli-
mação. A sublimação é um processo concernente à libido de objeto e con-
siste em que a pulsão se lança sobre um outro alvo, afastado da satisfação
sexual; nisto, o acento repousa sobre o desvio do sexual. A idealização é
um processo com o objeto, através do qual este é, sem alteração da sua
natureza, engrandecido e psiquicamente elevado. A idealização é possível
tanto no âmbito da libido do eu como também no da libido de objeto. Assim,
por exemplo, a superestimação sexual do objeto é uma idealização do mes-
mo. Por conseguinte, enquanto a sublimação descreve algo que ocorre com
a pulsão, e a idealização descreve algo que ocorre junto ao objeto, ambos
devem ser mantidos separados conceitualmente.
A formação do ideal do eu é frequentemente confundida com a sublima-
ção da pulsão, prejudicando a compreensão. Quem trocou seu narcisismo
pela veneração de um elevado ideal do eu não precisa, por isto, ter consegui-
do a sublimação de suas pulsões libidinais. Com efeito, o ideal do eu exige tal
sublimação, mas não pode obrigá-la; a sublimação permanece um processo
particular, cuja indução pode ser estimulada pelo ideal, mas cuja execução
permanece absolutamente independente de tal estimulação. Encontram-se
justamente nos neuróticos as maiores diferenças de tensão entre a formação
do ideal do eu e a dimensão da sublimação das suas pulsões libidinais primi-
tivas, e torna-se geralmente muito mais difícil convencer o idealista do para-
deiro inconveniente de sua libido do que a pessoa simples, que permaneceu
modesta em suas aspirações. A relação da formação do ideal e da sublima-
ção com a causação da neurose é também uma relação totalmente diferente.
A formação do ideal aumenta, como já ouvimos, as exigências do eu, e é o fa-
vorecimento mais intenso do recalcamento; a sublimação apresenta a saída
através da qual a exigência pode ser cumprida sem levar ao recalcamento.
Não seria de admirar se achássemos uma instância psíquica particular
que cumpre a tarefa de vigiar a garantia da satisfação narcísica que pro-
vém do ideal do eu, e nesta intenção, observa incessantemente o eu atual e
mede-o com o ideal. Se uma tal instância existe, pode ser-nos impossibilitado
descobri-la; podemos apenas discerni-la como tal e temos o direito de dizer
que o que chamamos de nossa consciência moral cumpre esta caracterís-
tica. O reconhecimento desta instância possibilita-nos a compreensão do
chamado delírio de atenção ou mais, corretamente, de observação, o qual
se destaca tão nitidamente na sintomatologia dos adoecimentos paranoi-
des, e talvez possa também acontecer disperso em uma neurose de trans-

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Introdução do narcisismo

ferência ou como adoecimento isolado. Os doentes queixam-se, então, de


que se conhecem todos os seus pensamentos, observam-se e supervisio-
nam-se suas ações; são informados do domínio desta instância através de
vozes, que caracteristicamente lhes falam em terceira pessoa (“agora ela
pensa novamente nisso”; “agora ela vai embora”). Esta queixa é justa, ela
descreve a verdade; um tal poder, que observa, toma conhecimento e critica
todas as nossas intenções, existe realmente, e aliás em todos nós, na vida
normal. O delírio de observação apresenta este poder em forma regressiva
e, nisto, desvenda a gênese de tal poder e a razão pela qual o sujeito ado-
ecido rebela-se contra ele.
A estimulação para a formação do ideal do eu, cuja vigilância é enco-
mendada à consciência moral, partia mesmo da influência crítica dos pais,
mediada através da voz, aos quais, no correr do tempo, associaram-se os
educadores, professores e, como multidão ilimitável e indefinível, todas as
outras pessoas do meio (as que são próximas, a opinião pública.)
Grandes montantes de libido essencialmente homossexual foram assim
convocadas para a formação do ideal do eu narcísico e encontram derivação
e satisfação na conservação do mesmo. No fundo, a instituição da consciên-
cia moral foi uma corporificação, primeiro da crítica parental e, mais adiante,
da crítica da sociedade, um processo como o que se repete no surgimento
de uma tendência ao recalcamento de uma proibição ou impedimento primei-
ramente externos. As vozes, assim como a multidão que se deixa indefinida,
são então trazidas à luz pela doença, e, com isto, a história do desenvolvi-
mento da consciência moral é reproduzida regressivamente. A rebeldia contra
esta instância censora provém, porém, de que a pessoa, correspondendo ao
caráter fundamental da doença, quer desligar-se de todas estas influências,
a começar pela parental, e retira delas a libido homossexual. Sua consciência
moral lhe faz frente, então, hostilmente, em apresentação regressiva, como
atuação desde o exterior.
A queixa da paranoia mostra, também, que a autocrítica da consciência
moral no fundo coincide com a auto-observação sobre a qual está construída.
A mesma atividade psíquica, que assumiu a função da consciência, também
colocou-se, portanto, a serviço da pesquisa interior, que fornece à filosofia o
material para suas operações de pensamento. Isto pode não ser indiferente
para o impulso à formação especulativa de sistema, o qual marca a paranoia8.

8
Apenas como conjetura, acrescento que a formação e fortalecimento desta instância observa-
dora poderia abranger também o surgimento tardio da memória (subjetiva) e do fator temporal, o
qual não é válido para os processos inconscientes.

189

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Sigmund Freud

Certamente será significativo para nós se pudermos reconhecer os in-


dícios da atividade desta instância crítica observadora – elevada a consciên-
cia moral e a introspecção filosófica – ainda em outras áreas. Recorro aqui
ao que H. Silberer descreveu como o “fenômeno funcional”, um dos poucos
acréscimos à teoria do sonho cujo valor é indiscutível. Silberer conhecida-
mente mostrou que, em estados entre o dormir e a vigília, pode-se obser-
var diretamente a transposição de pensamentos em imagens visuais, mas
que, sob tais condições, frequentemente não sobrevém uma apresentação
do conteúdo do pensamento, mas do estado (de boa disposição, fadiga, etc.)
no qual se encontra a pessoa que luta contra o sono. Do mesmo modo, ele
mostrou que alguns finais de sonhos e alguns trechos dentro do conteúdo
do sonho não significam outra coisa que não a autopercepção do dormir e
despertar. Ele comprovou, portanto, a quota da auto-observação – no sentido
do delírio paranoico de observação – na formação do sonho. Esta participa-
ção é inconstante; eu provavelmente a não notei porque, nos meus próprios
sonhos, ela não desempenha um grande papel; em pessoas filosoficamente
dotadas, habituadas à introspecção, ela pode ser muito nítida.
Lembramo-nos ter descoberto que a formação do sonho surge sob o
domínio de uma censura, a qual coage os pensamentos do sonho à desfi-
guração. Porém, não imaginávamos esta censura como um poder particular,
mas elegíamos esta expressão para o lado, voltado para os pensamentos do
sonho, das tendências que dominam o eu e são recalcadoras. Se nos aden-
tramos mais na estrutura do eu, poderemos reconhecer, no ideal do eu e nas
manifestações dinâmicas da consciência moral, também o censor do sonho.
Se este censor estiver um pouco atento, mesmo durante o sono, compreen-
deremos que a premissa de sua atividade, a auto-observação e a autocrítica,
proporciona uma contribuição ao conteúdo do sonho, com conteúdos como,
“agora ele está sonolento demais para pensar” – “agora ele desperta”9.
A partir daqui, podemos tentar a discussão do sentimento de si no nor-
mal e no neurótico.
O sentimento de si aparece-nos principalmente como expressão da
grandeza do eu, cuja composição não mais entrará em consideração. Tudo o
que se possui ou alcançou, cada resto do sentimento de onipotência primiti-

9
Não posso aqui decidir se a separação desta instância censora em relação ao restante do eu
está apta para fundamentar psicologicamente a divisão filosófica entre uma consciência e uma
consciência de si.

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Introdução do narcisismo

vo, confirmado através da experiência, ajuda a aumentar o sentimento de si.


Se introduzirmos nossa diferenciação entre pulsões sexuais e pulsões
do eu, precisamos atribuir ao sentimento de si uma dependência particular-
mente íntima da libido narcísica. Apoiamo-nos, aqui, nestes dois fatos funda-
mentais: nas parafrenias, o sentimento de si está aumentado; nas neuroses
de transferência, está diminuído; e, na vida amorosa, o não ser amado rebai-
xa o sentimento de si, enquanto o ser amado o eleva. Já indicamos que ser
amado constitui o alvo e a satisfação na eleição de objeto narcísica.
Além disso, é fácil observar que o investimento libidinal dos objetos não
eleva o sentimento de si. A dependência com relação ao objeto amado atua
como redutora; quem está apaixonado é humilde. Quem ama perdeu, por
assim dizer, uma parte de seu narcisismo, e somente pode tê-la restituída
mediante ser amado. Em todas estas relações, o sentimento de si parece
permanecer relacionado com o componente narcísico da vida amorosa.
A percepção da impotência, da própria incapacidade de amar, em con-
sequência de perturbações psíquicas ou corporais, atua em alto grau como
redutora sobre o sentimento de si. Segundo minha avaliação, deve-se pro-
curar aqui uma das fontes dos tão prontamente manifestos sentimentos de
inferioridade dos neuróticos de transferência. A fonte principal destes senti-
mentos é, porém, o empobrecimento do eu, que resulta dos investimentos
libidinais extraordinariamente grandes, retirados do eu, ou seja, o dano do eu
pelos anseios sexuais não mais submetidos ao controle.
A. Adler, com razão, validou que a percepção das próprias inferioridades
de órgão atua como incitadora sobre uma vida psíquica habilitada ao desem-
penho e provoca, por meio de supercompensação, um aumento de desem-
penho. Seria, no entanto, um total exagero se se quisesse, em conformidade
com o seu processo, reconduzir todo bom desempenho a esta condição da
inferioridade de órgão originária. Nem todos os pintores são acometidos de
defeitos nos olhos, nem todos os oradores foram, a princípio, gagos. Há tam-
bém abundantes desempenhos excelentes baseados em uma primorosa do-
tação orgânica. Para a etiologia da neurose, inferioridade e atrofia orgânicas
desempenham um papel mínimo, aproximadamente o mesmo que o mate-
rial de percepção atual para a formação do sonho. A neurose serve-se disto
como pretexto, do mesmo modo como se serve de todos os outros fatores
próprios para tanto. Se acabamos de acreditar, de uma paciente neurótica,
que ela tinha que se tornar doente por ser feia, deformada, sem graça, de
modo que ninguém poderia amá-la, seremos então melhor ensinados pela
neurótica seguinte, que persiste na neurose e na repulsa sexual, embora
pareça mais cobiçável e seja mais cobiçada do que a média. As mulheres
histéricas pertencem em sua maioria às representantes do seu sexo atraen-

191

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Sigmund Freud

tes e mesmo belas; e, por outro lado, o acúmulo de feiuras, atrofias de órgão
e defeitos, nas classes inferiores de nossa sociedade, não contribui em nada
para a frequência de adoecimentos neuróticos em seu meio.
As relações do sentimento de si com o erotismo (com os investimentos
libidinais de objeto) deixam-se apresentar formalizadas da seguinte maneira:
precisa-se diferenciar dois casos – se os investimentos amorosos são ade-
quados ao eu ou, ao contrário, experienciaram um recalcamento. No primeiro
caso (no emprego da libido adequado ao eu), o amar é avaliado como qual-
quer outra atividade do eu. O amar em si, como ansiar, carecer, reduz o senti-
mento de si; ser amado, encontrar correspondência no amor, possuir o objeto
amado, torna a elevá-lo. No caso da libido recalcada, o investimento amoroso
é sentido como grave diminuição do eu, é impossível a satisfação amorosa,
e o novo enriquecimento do eu somente será possível através da retirada da
libido dos objetos. O retorno da libido de objeto ao eu, a sua transformação
em narcisismo, apresenta, por assim dizer, novamente um amor feliz, e, por
outro lado, também um amor feliz real corresponde ao estado originário, no
qual libido de objeto e libido do eu não são diferenciáveis entre si.
A importância do assunto e a impossibilidade de alcançar-se uma visão
geral do mesmo justificariam, então, o acréscimo de algumas outras proposi-
ções sem ordenamento determinado:
O desenvolvimento do eu consiste num afastamento do narcisismo pri-
mário e gera uma intensa aspiração no sentido de reconquistá-lo. Este afas-
tamento acontece por meio do deslocamento da libido para um ideal do eu
imposto de fora, a satisfação acontece através do cumprimento deste ideal.
Simultaneamente, o eu emitiu os investimentos libidinais de objeto. Ele
fica empobrecido em favor destes investimentos, assim como do ideal do
eu, e enriquece-se novamente através das satisfações de objeto, bem como
através do cumprimento do ideal.
Um componente do sentimento de si é primário, o resto do narcisismo
infantil; uma outra parte provém da onipotência confirmada pela experiência
(o cumprimento do ideal do eu); e, uma terceira, da satisfação da libido de ob-
jeto. O ideal do eu impôs difíceis condições à satisfação libidinal nos objetos,
rechaçando, por meio de seu censor, uma parte da mesma como incompatí-
vel. Lá onde não se desenvolveu um ideal assim, o anseio sexual correspon-
dente ingressa inalterado na personalidade como perversão. Ser novamente
seu próprio ideal, também no que concerne aos anseios sexuais, como na
infância, é o que os seres humanos querem alcançar como a sua felicidade.
A paixão consiste num transbordamento da libido do eu sobre o objeto.
Ela tem a força de suspender recalcamentos e restabelecer perversões. Ela
eleva o objeto sexual ao ideal sexual. Já que sucede, no tipo de objeto ou de

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Introdução do narcisismo

apoio, com base no cumprimento das condições amorosas infantis, pode-se


dizer: o que cumpre esta condição amorosa vem a ser idealizado.
O ideal sexual pode entrar em uma interessante relação de auxílio com o
ideal do eu. Onde a satisfação narcísica se depara com obstáculos reais, o ide-
al sexual pode ser empregado como satisfação substituta. Ama-se, portanto,
segundo o tipo de eleição de objeto narcísica, o que se foi se perdeu, ou o que
possui as prerrogativas que efetivamente não se tem (conforme acima, ponto
c). A fórmula paralela a esta é do seguinte teor: vem a ser amado o que possui
as prerrogativas que faltam ao eu para o ideal. Este caso do auxílio tem uma
significação especial para o neurótico que, em função de seus investimentos
de objeto excessivos, empobrece no seu eu e não tem condições de cumprir
seu ideal do eu. Ele busca então, desde o seu desperdício de libido junto aos
objetos, o caminho de retorno ao narcisismo, elegendo um ideal sexual segun-
do o tipo narcísico, ideal que possui as prerrogativas inalcançáveis para ele.
Esta é a cura através do amor, a qual o neurótico, via de regra, prefere à analí-
tica. Ele bem pode não acreditar num outro mecanismo de cura, e, na maioria
das vezes, traz consigo no tratamento a esperança no mesmo mecanismo e
dirige-a sobre a pessoa do médico que dele trata. Naturalmente, a incapacida-
de para amar do doente, em consequência de seus extensos recalcamentos,
obstaculiza o caminho deste plano de cura. Se então, através do tratamento,
removeu-se até um certo grau esta incapacidade, vivencia-se com frequência
o resultado não tencionado de que o doente se afasta então do tratamento
posterior para encontrar uma eleição amorosa e confiar o avanço de seu resta-
belecimento à vida conjunta com a pessoa amada. Poder-se-ia ficar feliz com
este desenlace, se ele não trouxesse consigo todos os perigos da oprimente
dependência diante deste salvador.
Do ideal do eu parte um caminho significativo para a compreensão da
psicologia das massas. Este ideal tem, além de seu componente individual,
um componente social, ele é também o ideal comum de uma família, de uma
classe, de uma nação. Ligou, além da libido narcísica, um grande montante
da libido homossexual de uma pessoa, montante que, neste caminho, re-
tornou ao eu. A insatisfação através do não cumprimento deste ideal torna
livre a libido homossexual, libido que se transforma em consciência de culpa
(angústia social). A consciência de culpa foi originariamente angústia ante o
castigo dos pais, melhor dito: ante a perda do amor destes; no lugar dos pais
é colocada a indefinida multidão dos companheiros. A causação frequente
da paranoia através de agravo ao eu, frustração da satisfação no âmbito do
ideal do eu, torna-se assim mais compreensível, como também o encontro de
formação de ideal e sublimação no ideal do eu, a involução das sublimações
e a recomposição eventual dos ideais nos adoecimentos parafrênicos.

193

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.194-202, jul. 2014/dez. 2014

VARIAÇÕES
OS NÚMEROS
IMAGINÁRIOS DE LACAN

Ligia Gomes Víctora1

E ste é o terceiro e último texto da série sobre a teoria dos números em


Lacan. O primeiro deles foi Os números irracionais de Lacan – parte 1 (o
número fi na obra de Freud e na de Lacan) – publicado na revista n. 43/44,
O amor e a erótica. O segundo foi Os números irracionais de Lacan – parte 2
(as transmutações do fi), publicado na revista seguinte, n. 45/46, Desamparo
e vulnerabilidades.
Como já vimos, alguns números foram verdadeiros tabus na história das
matemáticas. Misteriosos, polêmicos, eles contêm em si questões insolúveis,
sendo, por isso, vítimas de preconceitos e evitados a todo custo pelos cien-
tistas religiosos, embora não parassem de se apresentar em suas contas.
Dentre esses, já estudamos, em outros textos, o zero [Víctora, 2013 (1)] e o
infinito [Víctora, 2013 (2 e 3)] – que, aos poucos, foram tratados como núme-
ros, embora não o sendo. Hoje vamos ver os números complexos – que não
se encontram na reta dos reais, ou seja: não existem na natureza, mas parti-
cipam em equações e até são passíveis de cálculos. Como diria Lacan em Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964, Lição XVI, 27/05/1964,
p.1779): o fato de ser irreal não impede algo de encarnar-se.

1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Asso-
ciation Lacanienne Internationale (ALI). Responsável pelos seminários e oficinas de To-
pologia da APPOA. Autora do livro Topologia e clínica psicanalítica (Redes Editora, 2013).
E-mail: ligia@victora.com.br

194

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Os números imaginários de Lacan

Lacan, durante seus seminários, se refere aos números complexos


como imaginários – nomenclatura atribuída a Descartes; irreais – porque es-
tão fora do campo do real; e, às vezes, equivocadamente, de irracionais.
Sobre isso, ver, por exemplo, o seminário O desejo e sua interpretação (Lição
XVIII, 22/04/1959, p.968-969) e o seminário O objeto da psicanálise (Lição III,
15/12/1965, p.1914).
Os chamados números complexos são múltiplos de (√-1) – raiz quadra-
da de menos um – logo são impossíveis. Por que são impossíveis? Simples-
mente porque não há número ao quadrado que seja negativo. Assim como
dois nãos se anulam – eu não quero não ir significa que eu quero ir sim –
também menos vezes menos é como retirar a negativação: torna o negativo
positivo! Outro exemplo seria a célebre expressão: Não cessa de não se
inscrever, atribuída ao impossível, que deixa de existir o tempo todo, e que
aparece no seminário Los incautos no yerran (Lacan, 1973-74. Lição VIII,
19/02/1974, p. 2875).
Em outras palavras, a impossibilidade da existência no mundo real de
números complexos se baseia no simples fato de que nenhum número nega-
tivo, se elevado ao quadrado, pode ser negativo. Logo, um número negativo
não pode ter raiz quadrada!
Isso foi regulamentado desde as primeiras leis da aritmética, que já da-
vam conta de que todo número negativo multiplicado por outro negativo se
transforma em positivo:

(-1)2 = (-1 X -1) = 1


(-2)2 = (-2 X -2) = 4

Os números ditos hipercomplexos são extensões dos números comple-


xos construídos por meio da álgebra abstrata. São eles: quaterniões, co-qua-
terniões, tessarinos, octoniões, split-octoniões, bi-quaternions e sedeniões.

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Ligia Gomes Víctora

A equação na fórmula “1” é chamada de número complexo de n-ésima


ordem. Cada multiplicação de duas bases “ia” e “ib” é necessariamente um
elemento do conjunto do número hipercomplexo que está sendo definido.
Em outras palavras, dados dois números inteiros (de 1 a “n”) a e b, e núme-
ros reais p0 até pn podemos definir uma multiplicação tal que:

Logo, para números hipercomplexos de n-ésima ordem,


, números de tais constantes devem ser definidos
para se determinar sua forma algébrica.
Exemplos: números reais (ordem 0) não requerem nenhum índice; nú-
meros complexos (1ª ordem) requerem 2; números quaternários (3ª ordem)
requerem no total 36 números2. [Fonte: Wikipedia].

Apesar de sua impossibilidade, os números com raízes negativas já


eram célebres desde a antiguidade: apareciam há pelo menos 4000 anos em
escritos babilônios, em trinômios e quadrinômios, mas apenas não havia um
símbolo para eles. Descartes (1637) foi o primeiro a desprezá-los publica-
mente, propondo um nome pejorativo: imaginários. Daí o símbolo i.
Outra forma de escrever um número complexo é a expressão [z = x +
y i], onde x e y são números reais e i representa (√-1). Logo, é um número
composto por uma parte real e uma parte imaginária. O mesmo número, com
a parte imaginária com sinal contrário [(-yi) no lugar de (+yi)], diz-se que é o
complexo conjugado do número anterior.
Popularizados pela equação de II° Grau ou equação quadrática, con-
hecida no Brasil como Fórmula de Bhaskara (o matemático Bhaskara Akaria
II viveu no século XII, na Índia; não confundir com o filósofo Bhaskara I, que
viveu no século VI, também na Índia). Conforme esta equação, que determina
uma curva parabólica, dependendo dos valores de a, b e c, têm como resul-
tado um valor positivo e um negativo [ ± (√ -x)]. Ou seja:

2
http://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%BAmero_hipercomplexo (Consulta em:
04/04/2015)

196

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Os números imaginários de Lacan

Quando o número for negativo, ou seja, menor que zero (x < 0), então a
equação não tem raízes reais. (x = ± √-n).
Bem, Lacan em diferentes ocasiões serve-se desses números para
tratar da identificação do sujeito com o seu nome próprio. Vamos ver o
porquê.
A função de nomeação foi atribuída historicamente a Deus, quem, con-
forme a Bíblia teria dado nome a todas as coisas. Nomear é tradicionalmen-
te função do pai, embora pouco a pouco a tendência jurídica seja de que
os pais – ou somente a mãe, na falta daqueles – escolham o sobrenome
do filho. Conforme Lacan (1961-62), no seminário A identificação, a nome-
ação – “função simbólica universal do nome do pai” (lição VIII, 17/01/1962,
p.1415) está ligada ao chamado significante do Nome-do-pai – que vem a
ser o organizador de toda rede de significantes. Ela estaria na base das
identificações e seria fundamental para o nascimento do futuro sujeito no
campo simbólico.
Durante todo o seminário A identificação, Lacan (1961-62) se baseia na
organização sugerida por Freud ([1921]1997, p.133) na obra Psicologia de
grupo e análise do ego (capítulo VII, intitulado também Identificação). Con-
forme a lógica freudiana a “mais remota expressão de um laço com outra
pessoa” poderia ser dividida em três fases, resumidamente:
1) identificação com o pai, do tipo anaclítico, por incorporação.
2) identificação por regressão, copiando um traço do Outro, tomado
como objeto.
3) identificação por infecção mental, ou pelo desejo de colocar-se na
mesma situação que o outro.
No seminário A identificação Lacan (1961-62, lição VII, 10/01/62, p.1402)
retoma a partir do dito segundo “tipo” – melhor seria dizer “tempo” – já que
estes se sucedem, e até coexistem no mesmo sujeito.

Falei do nome-próprio, na medida em que o encontramos em nosso


caminho da identificação do sujeito, segundo tipo de identificação
regressiva ao traço unário do Outro [...] – O que é o nome-próprio?
Parece que a coisa não se entrega no primeiro exame, mas, ten-
tando resolver esta questão, tivemos a surpresa de encontrar aí a
função do Significante, sem dúvida em estado puro. Nesta via que o
linguista mesmo nos conduz: um nome próprio é algo que vale pela
função distintiva de seu material sonoro [...] Premissas mesmo da
análise saussuriana da linguagem, a saber: que é o traço distintivo
– o fonema como acoplado a um conjunto de uma certa bateria, na
medida em que não é o que são os outros, que o encontramos aqui

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Ligia Gomes Víctora

como devendo designar o traço especial, o uso de uma função-


sujeito na linguagem: a de nomear por seu nome próprio3.

Embora anuncie que tratará do segundo “tipo” de identificação em


Freud, vemos na leitura deste seu seminário que não se trata bem disto, pois
Lacan fala de um outro tipo de operação – aquilo que constituiria uma função-
sujeito: a identificação do sujeito consigo mesmo ao ser nomeado – então,
não se refere a roubar um traço do outro, mas de se moldar ao nome que lhe
foi doado.
Em Freud ([1921]1997) a segunda identificação seria a um “traço único
escolhido do outro”, cujo exemplo clássico seria buscar uma característica
em alguém, seja ele amado ou odiado, admirado, enfim, um traço que con-
dense o outro, para tentar se transformar neste outro. Na psicologia das mas-
sas (Freud, ([1921]1997)) esta identificação estaria na base da glorificação
do líder.
Esta operação, em Lacan, compreenderia: 1) o ato da nomeação; 2)
a assimilação do nome próprio pelo sujeito. Afinal, o que acontece quando
alguém é nomeado? Seria um momento inaugural do sujeito, ou, ao menos,
da possibilidade de vir a ser um sujeito único, de marcar a diferença com um
nome exclusivamente seu. Então, se perguntarmos a alguém – Quem tu és?
A resposta é – Eu sou o Fulano de Tal – ou seja, eu sou meu nome-próprio.
Ao ato mesmo da nomeação não temos acesso. O próprio ato seria
a cena primária e é suprimido, indelevelmente. Ficam seus efeitos. Sobre
isso, no seminário O desejo e sua interpretação, Lacan (1958-59, lição V,
10/12/1958, p.871) dá o exemplo do romance Robinson Crusoe (Defoe,
[1719]1999). Quando Robinson se depara com a pegada de Sexta-feira na
areia da sua ilha, tida como deserta – prova de que alguém passou por ali – o
que ele faz? Ele a apaga, instintivamente. O rastro de Sexta-feira não é um
significante, mas um signo de que há alguém mais ali. A passagem de Sexta
ninguém viu, Robinson quer negá-la, tenta recusar sua existência, mas ficou
a pegada, e nada mais será o mesmo para Robinson. A nomeação é como a
pegada de Sexta-feira na areia da ilha de Robinson: a pegada do pai no corpo
da mãe. Lacan disse, em francês: trace du pas, “pegada do passo”, que tam-
bém pode ser entendido como “o traço do não”. Este nunca será visto, e suas
marcas podem ser apagadas. O segundo tempo seria “nada de traço ou nada
de pegada (em francês: pas de trace). Mas, se há um nome próprio, significa

3
Tradução e grifos da autora.

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Os números imaginários de Lacan

que houve uma marca, dada pelo pai. Esta pode servir como interdição ao
corpo da mãe (seria um não, dito pelo pai ao filho).
E quando o sujeito se dá conta de que é Um? Para demonstrar essa
assimilação do nome próprio, Lacan (1961-62, p.1408) parte do Cogito car-
tesiano. Utiliza-se da operação – Cogito, ergo sum. Diz ele que, se o cogito
representa o nascimento da ciência enquanto método, ele atesta, também,
sobre o nascimento do sujeito como coisa pensante, pois é um raciocínio
que ocorre quando alguém passa a pensar em si mesmo como ser – ou Um
diferente dos outros.
Descartes ([1637]1973), em O discurso do método, dividia o sujeito em
duas partes: Res cogitans, a mente ou o intelecto, e Res extensa – a parte
material do corpo humano. O cogito tem a ver com essa divisão mente-corpo.
Daí Penso, logo sou. Lacan inverte essa premissa porque, segundo ele, só
depois de pensar em si mesmo como sendo Um é que o Ser se estabelece
après-coup. O eu sou já estava ali, para algo poder pensar!
Então, quando eu penso, me dou conta de que eu já era antes de poder
pensar. Seria como o olhar do simbólico, que fixa o real preexistente a pos-
teriori. É a mesma lógica do nó borromeano de Lacan: o simbólico abre um
buraco no campo do real, fixando-o só então como já existente. Assim:

Pode ser lido “eu sou, logo penso, logo sou, logo penso...” Onde a con-
junção “logo” equivale na equação ao sinal de adição (+). Vamos estabelecer
no final do terceiro termo um ponto-limite nesta sequência, que poderia ser
infinita.
Como escrever isso matematicamente? Lacan propõe que se dêem va-
lores para as expressões:
Eu penso = 1
Equivaleria a dizer: – Eu penso em mim como sendo Um: uma unidade
de ser.
E qual seria o valor atribuído ao ser anterior à nomeação? Poderia ser
(-1), já que se refere a uma falta de ser? Ou um zero, um vir-a-ser – se é que

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Ligia Gomes Víctora

se pode pensar um ser antes de ter sido nomeado. Porém, a falta de que
se trata aqui é uma falta absoluta – algo inacessível como o Zero absoluto.
Então, Lacan propõe: [i = (√ -1)] (raiz quadrada de menos um). Onde (i) é a
unidade imaginária. (Lacan, 1961-62, p.1409). Lembrando que não dá para
levar ao pé da letra, ou ao pé do número: este é mais um arranjo da álgebra
lacaniana. O logo (ergo), que seria uma implicação (=>), fica notado por La-
can como uma adição (+).
Eu sou = i

Tomem i, fazendo-me confiança, com o valor que tem exata-


mente na teoria dos números, na qual se denomina imaginá-
rio – isto não é uma homonímia, que por si só me pareça aqui
justificar esta extrapolação metódica, este pequeno momento
de salto e de confiança que lhes peço fazer – este valor imagi-
nário é: raiz quadrada de menos um. (Lacan, 1961-62, p.1408).

Reescrevendo isso matematicamente, teremos:

Assim, Lacan transforma o cogito em uma série matemática.


As noções de sequência e de séries, nas matemáticas em geral, impli-
cam o infinito: a partir de um ou de alguns elementos, pode-se determinar o
seguinte, à exaustão. As sequências de números inteiros, dos pares, ou dos
primos, por exemplo, são infinitas, mas, às vezes, os matemáticos se depa-
ram com problemas que exigem que se efetue a soma de todos os termos de
uma sequência, mesmo as infinitas. Podem, assim, lidar com conjuntos do
tipo Alefs: ‫א‬0, ‫ א‬1, 2 ‫א‬o .
Não é estranho? Pois, embora o número de seus termos seja infinito, o
resultado pode ser finito! Estes casos, em que se necessitam cálculos para
deduzir os termos, chamamos de séries. As séries podem ser finitas ou infini-
tas, podem envolver todo tipo de números e podem ser convergentes (a cada
intervalo retornam ao mesmo valor).

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Os números imaginários de Lacan

A série acima é: 1) complexa (porque contém números complexos); 2)


convergente (porque a cada três termos retorna à unidade). O que a torna no
mínimo misteriosa, pois, embora seja infinita e contenha números complexos
(irreais), ela tem um resultado finito e exato, pois a cada três termos, “x” volta
a ser igual a um (x = 1).
No seminário A identificação, Lacan (1961-62, lição VII, p.1409) não re-
solve a equação, apenas pede um voto de confiança aos ouvintes. Temos,
então:
1º termo = i + 1
Equivale ao futuro sujeito, que, antes de ser nomeado, estava na morte4.
(Lacan, 1953, p.279). Ao qual se acrescenta o nome-próprio (+1).

Representa a divisão inaugural do sujeito, ao ser nomeado: Eu simbó-


lico (je) / Eu imaginário (moi). Esta série poderia se pensada também para a
clivagem, ou splitting (die spaltung) freudiana.

O interessante desta fórmula que Lacan encontrou (com ajuda de seus


alunos matemáticos, com certeza) é que ela justifica exatamente aquilo que
ele buscava formalizar: com a nomeação pelo significante do Nome-do-pai, o
sujeito primeiramente se divide em dois. O mais fantástico é que, em seguida,
quando ele se pensa como sujeito, volta ser Um! Sinal de que o Outro já está
instituído e que houve a entrada no mundo simbólico.

O terceiro valor, isto é, quando detém ali o término da série, será 1,


simplesmente. O que pode ter para nós, bem entendido, o valor de
uma espécie de confirmação, de fechamento, que se dá no terceiro
tempo – coisa curiosa – tempo para o qual nenhuma meditação

4
Relatório do Congresso de Roma Fonction et champ de la parole et du langage.

201

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Ligia Gomes Víctora

filosófica nos levou especialmente a nos deter: no tempo do “eu


penso”, enquanto que é também objeto do pensamento e que se
toma como objeto. É neste momento que cremos chegar a alcançar
esta famosa unidade... (Lacan, 1961-62, lição VII, p.1409)

Assim, com um número complexo – raiz de menos um (√ -1) – podemos


simbolizar o sujeito em seus primórdios, bruto, anterior à nomeação, e de-
pois, seus desdobramentos, ao receber um nome – significante do nome do
pai – feito de forma genial por Lacan.

REFERÊNCIAS
DEFOE, Daniel. Robinson Crusoe: A aventura de um náufrago numa ilha deserta
[1719]. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
DESCARTES, René. Discurso do método [1637]. Rio de Janeiro: Editora Abril, 1973.
FREUD, Sigmund. Obras completas [CD-R]. São Paulo: Ed. Imago, 1a Edição [1997].
LACAN, J.-M. Obras completas e Escritos [CD-R] Buenos Aires: Escola Freudiana de
Buenos Aires, 1a Edição, [s. d.].
VÍCTORA, Ligia Gomes. O ser e o Zero. Correio da APPOA. Porto Alegre, n..221,
p.39-52, mar. 2013.
VÍCTORA, Ligia Gomes. O infinito na psicanálise, parte 1: o infinito dos filósofos. Cor-
reio da APPOA. Porto Alegre, n. 221, p.67-76, mar. 2013.
VÍCTORA, Ligia Gomes. O infinito na Psicanálise, parte 2: os novos infinitos nas ma-
temáticas. Correio da APPOA, Da formalização da psicanálise através das matemáti-
cas. Porto Alegre, n. 221, p.77-98. Março, 2013.

Recebido em 29/03/2015
Aceito em 06/06/2015
Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.212-219, jul. 2014/dez. 2014

VARIAÇÕES
FREUD NA TABACARIA

Michael Plastow1

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Fernando Pessoa

A ssim começa “Tabacaria”, poema escrito por Fernando Pessoa. Na ver-


dade, por um de seus semi-heterônimos, Álvaro de Campos. Nesse po-
ema, a rejeição de uma metafísica é, ao mesmo tempo, a recusa do gozo da
domesticidade. Isto revela uma inclinação em direção à morte que eu gosta-
ria de mencionar aqui, tanto em referência a Pessoa quanto a Freud.
Freud, em sua discussão sobre as relações entre os sexos, permitiu que
a esse respeito uma questão permanecesse aberta, contribuindo para que o
enigma da esfinge continuasse sem decifração e que, mais tarde, Lacan e
outros o elaborassem em termos lógicos. Afinal, quem poderia desvendá-lo,

1
Analista de escola: Membro da The Freudian School of Melbourne, School of Lacanian Psycho-
analysis; Psiquiatra infantil; chefe do setor de Psiquiatria Infantil no Alfred Child and Youth Mental
Health Service, em Melbourne, Austrália; Autor de inúmeros artigos no campo da literatura psica-
nalítica, psiquiátrica e acadêmica, também publicou em 2014 o livro What is a Child? Childhood,
Psychoanalysis, and Discourse (O que é uma criança? Infância, Psicanálise e Discurso). Há sete
anos co-dirige em Melbourne o seminário A psicanálise e a criança. Email: plastow@internode.
on.net

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Michael Plastow

se esse enigma é mortal, tal como indicado pelo destino daqueles que não o
conseguiram revelar?
Deixemos então que este poema nos conduza, guiados até o enigma
apontado pelo próprio poeta:

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões que ninguém sabe quem é
E se soubessem quem é, o que saberiam?
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos
homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada
(Pessoa, [1928]1986, p.960).

A morte é tanto desconhecidamente certa quanto impossivelmente real.


Geralmente estamos empenhados em preencher a lacuna por ela aberta e,
para este fim, utilizamo-nos dos ideais de perfeição os mais diversos, dentre
os quais, o de um relacionamento harmonioso, bem como o de uma prática
clínica holística com a tão sonhada melhora contínua da qualidade de vida,
até mesmo a crença em Deus ou o engajamento em alguma espiritualidade
da qual possamos participar.
Sobre isso é que Lacan demonstra a lógica da sexuação por meio de
suas fórmulas quânticas, parecendo, entretanto, ser obrigado a realizar um
trabalho de elaboração por meio do significante, uma vez que também é le-
vado, nesse ponto, a falar a respeito de tais fórmulas, além de demonstrá-
las. Ao longo desse caminho, Lacan faz uso dos poetas, lançando mão, por
exemplo, dos versos de Antoine Tudal: “Entre um homem e uma mulher há o
amor” (Lacan, [1971-1972]2008, p.53), e assim por diante.
Para Freud, os grandes desconhecidos são “a morte e a sexualidade”.
Nossa tendência é tentarmos solucionar estes enigmas tornando-os ques-
tões metafísicas: como deveríamos ser? Todavia, é precisamente esta meta-
física que Pessoa rejeita. Ali onde Freud faz uso das narrativas em suas for-
mas tanto literárias quanto clínicas, Lacan se utiliza do trabalho dos poetas,
privilegiando estilo sobre conteúdo. Foi assim que Lacan procedeu até bem
tarde em seu ensino, muitos anos após Encore, sustentando que “a verdade
é especificada por ser poética” (Lacan, [1976-1977]1998, p.119). Isto porque,
para Lacan, a poesia não é um embelezamento, e tem ela um papel de es-

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Freud na tabacaria

truturação em sua elaboração da psicanálise. Podemos acrescentar que o


poético de Lacan é diretamente ligado ao seu estilo, um estilo que foi crucial
ao seu ensino e intimamente ligado à sua noção de transmissibilidade da
psicanálise.
Mas se a rua de Pessoa − inacessível para todos os pensamentos −
está imbuída pela umidade da morte, para Lacan este percurso, este discurso
sem palavras, também atravessa o desfiladeiro do sexo. Ora, se o Destino
conduz a carroça que suporta o peso de tudo, do todo, em direção ao nada,
então há uma pulsão em jogo.
Mais uma vez, o poeta:

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo


À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
(Pessoa, [1928]1986, p.961).

Estamos acostumados a escutar que Freud teria dito que “às vezes um
charuto é só um charuto”; mas será que ele o disse mesmo? Esta citação
só apareceu nos anos 1970, e somente em inglês. E parece pouco provável
que Freud tenha usado essa expressão pela primeira vez nos anos 1970! De
todo modo, pouco importa se Freud a disse ou não, já que ele falou de tantas
outras formas sobre a exceção. Afinal, a proposição “às vezes um charuto é
só um charuto” articula ambos, tanto a regra universal quanto a sua exceção,
proveniente, talvez, de uma corrupção da seguinte frase de Rudyard Kipling:
“E uma mulher é só uma mulher, mas um bom charuto é uma Fumada” (Ki-
pling, [1885]1983, p.15).
Afora a relação recíproca entre um homem e uma mulher, e a satisfação
sexual que desse encontro pode ser obtida, há outra coisa, uma outra dimen-
são que é articulada como uma Fumada. No entanto, se um bom charuto é
uma Fumada, é bem sabido que também é mais um prego no caixão.
Outro mito psicanalítico é de que Freud manteve relações sexuais com Min-
na Bernays, que o acompanhava com frequência em suas viagens. Elisabeth
Roudinesco (2005), em sua introdução a um volume da correspondência de via-
gem de Freud intitulada Nosso coração se inclina em direção ao sul, relata que:

Carl Gustav Jung, que adorava histórias apimentadas e nunca se


conteve em inventar anedotas, e frequentemente de maneira talen-
tosa, sobre a vida privada de seus contemporâneos […] foi o primei-
ro a deixar entender que Freud talvez tivesse sido o amante de sua
cunhada (Roudinesco, 2005, p.30-31).

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Michael Plastow

O americano Peter Swales deu a este suposto caso um prestígio de


verdade histórica, baseando-se em um segredo pessoal de Jung (Roudines-
co, 2005, p.31). Seu relato, mais tarde, decorou a história com essa ideia de
que Freud até engravidou Minna e a forçou a realizar um aborto. Infelizmente
não há nada para confirmar esta suculenta fofoquinha. Não obstante, o que
importa aqui é que o status de pai primal, a exceção, é, todavia, imputada a
Freud. Seja como for, em uma viagem para a Itália com Minna, Freud escre-
veu as seguintes palavras para Martha2:

...nosso coração... se inclina em direção ao sul, em direção dos


figos, das castanhas, do louro, os ciprestes, das casas decoradas
com varandas, vendedores de antiguidades, e assim por diante
(Freud, [1900]2005, p.130-131).

É esse “e assim por diante” que nos interessa, enquanto “alguma outra
coisa”, um supérfluo que desafia a enumeração. O coração de Freud se in-
clinava em direção do calor do sul, e assim por diante. Também se inclinava
em direção a uma “corrida e irregularidade” em sua batida; nomeando tal
irregularidade como “uma afeição severa do coração” (Jones, 1953, p.309),
especialmente quando estava fumando 20 charutos por dia, sua concessão
habitual. Foi nessa época que Fliess lhe aconselhou a abstinência de fumar
e, por um tempo, Freud “se comprometeu” fumando apenas um charuto por
semana – toda quinta para comemorar o que ele se refere como “A proibição
semanal de Fliess” (Jones, 1953, p.311)! No dia 19 de abril de 1894 ele es-
creve para Fliess:

Os distúrbios orgânicos diminuíram nos últimos dois dias: o humor


hipomaníaco continua, mas foi bom o suficiente para relaxar subita-
mente e para fazer de mim um homem que acredita que ele viverá
uma longa vida com um inalterado prazer em fumar (Jones, 1953,
p.309).

Freud fala dessa impossibilidade de uma longa vida com um inalterado


prazer, não sem uma certa ironia. Um “Tal prazer”, tal como Samuel Beckett
([1938]1973, p.6) escreveu sobre Murphy, “que prazer não era a palavra”.

2
Trata-se de uma carta a Martha Freud, escrita em 1 de setembro de 1900.

206

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Freud na tabacaria

Qual então deve ser a palavra? Bem, seja ela qual for, é algo Além do
princípio do prazer.
Jung e Swales, e sem dúvida todos nós, empenhamo-nos em domes-
ticar o nosso próprio “e assim por diante”, este excesso que nos assola. O
sexual, empenhado em prover este excesso com um objeto, tenta dar-lhe
um significado. Todavia, por mais que se tente traduzi-lo em um êxtase
doméstico, por mais amantes que se tenha, alguma coisa permanece. Um
impulso e um enigma permanecem. O que fazer com eles? Pessoa, nova-
mente:

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível (Pessoa, [1928]1986, p.963).

Um pórtico de entrada impossível. No ponto limite um pedaço de texto


pode ser produzido, ou talvez uma obra de arte. Permanece a caligrafia das
linhas escritas; elas se tornam caligráficas na medida em que as palavras
são incapazes de alcançar o seu alvo. Elas nos restam, deixando-nos com a
beleza de suas linhas.
Se a verdade é especificada por ser poética, ela assim o é na medida
em que existe a possibilidade de uma poiésis, ou seja, o exercício de uma
criatividade frente a isto que resta enquanto excesso, de tal forma que ele
possa se tornar um objeto de beleza.
Freud escreveu, Lacan escreveu. Escrevemos e falhamos na captura da
sensualidade de um momento que nunca aconteceu, que nunca foi. Trata-se
de um momento impossível que já se partiu. Mas que, apesar disso, continu-
amos a escrever, empenhados que estamos em apreendê-lo.
Pessoa não se casou, ele não sucumbiu à domesticação de seus impul-
sos. Talvez por esse motivo ele tenha escrito no dia 29 de novembro de 1920
as seguintes linhas para a sua amante Ophelia, rompendo a relação que
tinham, para se dedicar à sua escrita:

O meu destino pertence à outra Lei, de cuja existência a Opheli-


nha nem sabe, e está subordinado cada vez mais a obediência a
Mestres que não permitem nem perdoam. Não é necessário que
compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lem-
brança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha” (Pes-
soa, [1920]2006, p.254).

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Michael Plastow

Por outro lado, há uma reciprocidade da relação sexual, no outro, o


destino que pertence a outro lugar, que se inclina em direção ao reino da
morte. Pessoa se dedica à escrita, uma escrita bem regada, dizem, à bebi-
da e ao fumo. Neste mesmo ano, Freud escreve em Além do princípio do
prazer:

Se nós mesmos temos que morrer, e antes perder aqueles que nós
amamos, é mais fácil se submeter a uma lei sem remorsos da na-
tureza, ao sublime Άνάγκη [Necessidade], do que uma chance que
pode talvez ter escapado (Freud, [1920]1955, p.45).

Mas assim seria mais fácil? Nós nos rebelamos contra isso, pois nada
parece natural em relação à morte, da qual tentamos fugir com sistemas arti-
ficiais de suporte à vida. Pessoa sucumbe, mas com a finalidade de produzir
alguma coisa, para escrever. De novo o poeta:

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)


E a realidade plausível cai de repente em cima de mim
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los


E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar
mal disposto (Pessoa, [1928]1986, p.965).

Freud permite que uma tal rota de fumaça perdure. Escondido atrás des-
ta trilha de fumaça de charuto − uma tela ou cortina de fumaça, talvez uma
recordação encobridora −, há uma rota que o leva até um reino dos sentidos,
da sensualidade. A sensualidade do Sul, e assim por diante. Sete palmos ao
sul, talvez.

Depois deito-me para trás na cadeira


E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Pessoa, [1928]1986, p.965).

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Freud na tabacaria

Hoje são acrescidas encantadoras imagens de carcinomas fúngicos nos


maços de charutos e cigarros, o que sem dúvidas provoca maravilhas quanto
ao aumento de vendas. Essas imagens são descaradamente pornográficas:
um charuto não é mais uma Fumada, uma vez que ele é reduzido a uma ima-
gem carnal, sexualizado para a apreciação da carne.
Freud continuou fumando até onde o destino permitiu. Pessoa escre-
ve, e aqui em parênteses: “(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)” (Pessoa, [1928]1986, p.965).
Mas com os parênteses, ele se distancia da domesticidade das famílias,
da lavagem e da procura da felicidade. A cena doméstica harmoniosa, sem
dúvida levaria, inevitavelmente, ao que hoje é chamado de “doméstico”. Fora
da relação recíproca proporcionada pela alma gêmea, há uma inclinação em
direção à morte, uma inclinação que não conhece medida. O único limite é o
da morte.
Ele continua:

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.


O homem saiu da Tabacaria (meteno troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria
sorriu. (Pessoa, [1928]1986, p.965-966).

Adeus Esteves. Mas o adeus ao familiar dá para uma rua diferente. Ade-
����
us Sigmund, adeus…

REFERÊNCIAS
BECKETT, Samuel. Murphy [1938]. London: Picador, 1973.
FREUD, Sigmund. Beyond the Pleasure Principle [1920]. In: ______. The standard
edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. London: Hogarth,
1955, v.18.
______. Notre cœur tend vers le Sud: Correspondance de voyage, 1895-1923. Paris:
Fayard, 2005.
KIPLING, Rudyard. The Betrothed [1885]. In: _______. Selected Poems. London:
Penguin, 1983.
JONES, Ernest. Sigmund Freud Life and Work, Volume One: The Young Freud 1856-
1900. New York: Basic Books, 1953.
LACAN, Jacques. Le Savoir du psychanalyste. Séminaire 1971-1972. Paris: Éditions
de l’Association Lacanienne Internationale (Publication hors commerce), 2008.

209

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Michael Plastow

______. L’insu que sait de l’une-bévue s’aile a mourre. Séminaire 1976-1977. Pa-
ris: Éditions de l’Association Lacanienne internationale (Publication hors commerce),
1998.
PESSOA, Fernando. Carta a Ophélia Queiroz, 29-XI-1920 [1920]. In: ______. Obra
poética e em prosa, Volume II. Porto: Lello & Irmão, 2006.
______. Tabacaria [1928]. In: _______. Obra poética e em prosa, Volume I. Porto:
Lello & Irmão, 1986.
ROUDINESCO, Elisabeth. Préface à l’édition française: Voyager avec Freud. In:
FREUD, S. Notre cœur tend vers le Sud: Correspondance de voyage, 1895-1923.
Paris: Fayard, 2005.

Recebido em 13/10/2013
Aceito em 15/05/2015
Revisado por Joana Horst

210

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V REFERÊNCIAS

Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem alfa-
bética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo. Quando forem citadas
mais de uma obra de um mesmo autor, essas deverão estar ordenadas por ano de
publicação de forma crescente.

OBRA NA TOTALIDADE

BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo: estudo sobre a enunciação e a gramática


inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-
1958]. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer [1920]. In: _____. Edição stan-
dard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1995, v.18.

PARTE DE OBRA

CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O


laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994, p.11-24.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo. São
Paulo: Comp. das Letras, 1993, p.21-9.

ARTIGO DE PERIÓDICO

CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA, Porto Ale-


gre, n.71, p.12-20, ago., 1999.
HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da Asso-
ciação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n.14, p.43-53, mar., 1998.

ARTIGO DE JORNAL

CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Ma-


ria Rita Kehl. Zero Hora, Porto Alegre, 5 dez., 1998. Caderno Cultura, p.4-5.

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a cegueira”,


de J. Saramago, 2003, 179 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Faculdade
de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

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TESE DE DOUTORADO

SETTINERI, Francisco Franke. Quando falar é tratar: o funcionamento da lin-


guagem nas intervenções do psicanalista, 2001, 144 f. Tese (Doutorado em Lingüísti-
ca Aplicada). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2001.

DOCUMENTO ELETRÔNICO

VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Disponível em:


<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff01102003 23.htm>. Acesso em: 25 fev.,
2003.

FREUD, Sigmund. Obras completas [CD-R]. São Paulo: Imago. 1ª edição [1997].

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