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EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 47, jul./dez. 2014
Editores:
Deborah Nagel Pinho e Marisa Terezinha Garcia de Oliveira
Comissão Editorial:
Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Glaucia Escalier Braga, Joana Horst,
Maria Ângela Bulhões, Mariana Hollweg Dias e Otávio Augusto Winck Nunes
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria linguística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem
por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos
teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas
e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa,
a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições
científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http://
www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em outubro 2015. Tiragem 500 exemplares.
Corpo à mostra:
ecos do dizer no corpo
Body exposed: echoes of saying in the body
Manuela Lanius ................................. 112
Não seria esta a maior herança freudiana, permitir que sua práxis psica-
nalítica seja reinventada a cada analisante, e dessa forma relançar a cadên-
cia de abertura e de fechamento do inconsciente?
Os trabalhos aqui publicados se propõem a avançar na articulação entre
o sintoma e o gozo, atrelados ao discurso social, conduzindo-nos a pensar no
sexual, no feminino, e nos transbordamentos do corpo daquilo que excede ao
registro simbólico.
Nesse sentido, a atualidade da psicanálise torna-se causa e consequên-
cia de nossas interrogações.
TEXTOS
INIBIÇÃO E COMPULSÃO:
DUAS FACES DO EXCESSO1
Ana Costa2
1
Trabalho apresentado na Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e Discurso em Psicanálise, no-
vembro de 2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA; Pro-
fessora do PPG em Psicanálise da UERJ. Autora de diversos livros: A ficção de si mesmo (Cia.
De Freud, 1998); Corpo e escrita (Relume-Dumará, 2001); Tatuagens e marcas corporais (Casa
do Psicólogo, 2003); Sonhos ( Jorge Zahar, 2003); Clinicando ( APPOA, 2008); Litorais da psica-
nálise (Escuta, 2015). E-mail: medeirosdacostaanamaria@gmail.com
11
ção bastante aproximativa e serve somente como forma de indicar que temos
formações clínicas que não articulam o corpolinguagem ao corpodiscurso,
muitas vezes sobrepondo e confundindo esses termos, como na psicose. O
campo de negociações em que esses termos são articulados é o corpo, de
uma maneira muito interessante, pelo pulo da ilusão que o imaginário permi-
te. Do lado do imaginário temos todo um campo de construções, em que o
amor e as identificações ordenam. O que acontece se o amor entra em pane?
Do lado da psicose, o sujeito põe o corpo a trabalhar, na tentativa de reconsti-
tuição do baque especular. Posso dar um exemplo que acho interessante: um
paciente trabalhava o corpo incessantemente, num giro de caminhar com-
pulsivo em volta do estádio do Maracanã3. Por meio desse giro, ele refazia o
furo que está no centro do estádio, ao mesmo tempo em que ele ia destruindo
alucinatoriamente as versões fálicas da cidade: o Cristo Redentor, o Pão de
Açúcar, etc. A cada giro, um deles era destruído.
Feitas essas distinções, quero voltar à inibição e seu surgimento na ado-
lescência. Já temos trabalhos suficientes com o tema da adolescência, que
situam a necessidade da reconstituição do espelho pela entrada em causa
da referência sexuada, o que implica o reposicionamento da versão fálica. A
referência sexuada diz respeito não somente à sexualidade polimórfica da in-
fância, mas à entrada em causa de uma escolha, em que está implicada essa
binaridade ilusória do ser, como homem ou mulher. Sabemos que existem
muitas versões que escapam dessa binaridade, reconstituindo um polimor-
fismo, mas isso não significa que escapem do efeito implicado – enquanto
corpodiscurso – da posição sexuada como uma escolha. Situo, aqui, a esco-
lha sexuada como correlativa da escolha do sintoma: é uma escolha forçada.
Assim, a inibição na adolescência diz respeito a essa retração no movi-
mento, como efeito do afetamento do corpo. É uma forma de lidar com o ex-
cesso num momento de ruptura do espelho enquanto suporte representacio-
nal. Sabemos da importância do amor dos iguais nesse momento. É quando
se dá a reconstituição de um corpodiscurso e a possibilidade da produção –
ao mesmo tempo em que se dá seu velamento – do furo pelo recorte de suas
bordas. Digamos que rituais, tatuagens, vestes, academia, hábitos alimen-
3
Este exemplo foi trabalhado por Regina Cibele Jacinto, na tese Corpo e psicose: impasses e
sustentações, em 2014.
12
4
Zentropa Entertainments (Produtora) &Vontrier, L. (diretor), (2014). Ninfomaíaca. Alemanha,
França, Dinamarca, Belgica.
13
tação. Esses são dois impossíveis, bem assinalados por Lacan ([1963]1998)
em Kant com Sade.
Tomando elementos de uma clínica do sintoma, podemos situar que a
clivagem amor/sexo é atuada no encontro dos personagens: o assexuado
Seligman, que tinha renunciado ao sexo; e o corpo escravo do sexo, na im-
possibilidade de amar, em Joe. Digamos que Joe padece da passagem do
pai ao mestre – a busca de um gozo do corpo pela fustigação – no momento
em que goza do pai morto. É nesse ponto – do enlace do gozo com a morte
do pai – que se dá o encontro sexo/morte, e que seu exercício sexual fica
submetido a esse encontro. O reencontro do prazer somente na fustigação é
completamente convergente com esse momento. Assim, para a não resposta
à duplicidade da demanda de Joe, Seligman teria de situar-se não somen-
te na abstinência do sexo, mas também na abstinência incidindo sobre seu
saber: a necessidade da produção de um furo no saber e não um saber de
mestre.
Este exemplo me leva a voltar à indagação sobre como se dá a cons-
tituição da interdição, o que implica fazer a pergunta sobre o que é inces-
to; pergunta necessária para a constituição corpodiscurso, corpolinguagem.
Lembro, aqui, uma passagem dos quatro discursos, em que Lacan ([1969-
1970]1992) coloca:
15
17
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
FREUD, S. Inibición, sintoma y angustia (1925[1926]). In: ______. Obras completas.
Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.
FREUD, S. Totem y tabu [1912]. In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nue-
va, 1973.
FREUD, S. Tres ensayos para una teoria sexual [1905]. In: ______. Obras completas.
Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.
LACAN, J. O seminário, Livro 10: A angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LACAN, J. O seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janei-
ro: Zahar, 1992.
LACAN, J. Kant com Sade [1963]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Recebido em 29/03/2015
Aceito em 29/06/2015
Revisado por Cristian Giles
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TEXTOS
AS APARÊNCIAS ENGANAM?1
Resumo: O presente texto trabalha, a partir das obras de Freud e Lacan, três
momentos distintos, mas não excludentes, das proposições psicanalíticas sobre
o corpo em sua relação com os registros imaginário, simbólico e real. Apresenta
uma vinheta clínica para ilustrar a articulação dos registros.
Palavras-chave: corpo, real, simbólico, imaginário.
1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Discursos à flor da pele, abril de
2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Insti-
tuto APPOA; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento/UFRGS; Mestre em Psicanálise e Psi-
copatologia/Université Paris 7. E-mail: otavioaugustowincknunes@gmail.com
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Do engano
3
“As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam, porque o amor e o ódio se irmanam
na fogueira das paixões”, cantou Elis Regina, na bela e conhecidíssima canção de Tunai e Sergio
Natureza. Tomar alguma coisa por outra, substituir um elemento, ou um objeto, por outro, não
chega a ser privilégio ou prerrogativa de ninguém. Melhor seria dizer que estamos cotidianamen-
te envolvidos pelas aparências e somos, por elas, enganados.
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ra. Mas, não só o tomamos como exemplo. Para lembrar. Inventamos uma
parafernália de coisas como forma de transpor as fronteiras do corpo, seja
para potencializá-lo ou para poupá-lo. Numa medida, tomamos nosso corpo
como modelo, para, noutra, estendê-lo ao mundo. O corpo, por assim dizer,
funciona como organizador. Não é isso que interroga? Em que medida nos
enganamos com o corpo? Ou somos por ele enganados?
Então, sabemos bem que a dimensão do corpo está presente no engano
da aparência que, aliás, o corpo se presta para um sem número de questões.
Estamos sempre às voltas com ele, numa relação em nada pacífica. Assim,
se tem procedência que o laço social espetaculariza a vida, o corpo tem sido
o protagonista desse espetáculo, nele revela-se em muito o nosso mal-estar.
O corpo está presente desde sempre na psicanálise. Não só em função
da histeria, mesmo que tenha sido com ela que ficou mais evidente. Na ver-
dade, na escuta clínica atribui-se ao corpo um lugar central. Mas, com o pas-
sar do tempo, talvez se tenha dado pouca relevância conceitual, parecendo
um primo pobre e distante, de quem temos vagas notícias, mas sobre o qual
temos, ainda, muito a produzir.
Dores, inibições, impotência, enxaquecas, insônia, bulimia, anorexia, to-
xicomania, cortes, fobias, enfim, quais sintomas prescindem do corpo?
Mas, de que corpo falamos em psicanálise?
Para abordar questões relativas ao corpo recorro, então, a três momen-
tos da obra de Lacan, em sua releitura de Freud, no que ele contribuiu para
nos auxiliar nessa elaboração. Se não encontramos em Freud, com relação
ao corpo, uma precisão conceitual, mesmo que ele se preocupasse com o
que lhe dizia respeito, Lacan foi mais contundente nesse aspecto, fazendo
referências bem precisas.
Tomarei três momentos da obra de Lacan que podem nos ajudar a
pensar nas questões acerca do corpo: o primeiro momento do corpo é re-
lativo ao estádio do espelho (Lacan, [1949]1998); o segundo, num desdo-
bramento do estádio do espelho, aponta o que Lacan ([1962-1963]2005)
trabalha no seminário A angústia, em que o corpo aparece, também, como
elemento fundamental; o terceiro momento, sem dispensar os anteriores,
destaca o que Lacan desenvolve principalmente em seus últimos seminá-
rios, fundamentalmente no O sinthoma ([1975-1976]2007), resultando no
que vou retomar da conhecida frase freudiana: a anatomia é destino.
21
22
23
25
Anatomia é destino
4
A colega Cristian Gilles trabalhou esse texto na Jornada de Abertura da APPOA: Quatro ensios
sobre o sexo, 2013, em Porto Alegre. Trabalho publicado na Revista da APPOA, n°43/44 – O
amor e a erótica, com o título O que os faz falar, homens e mulheres? p.81-87.
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tado pela fala, que a linguagem corpsificava. É a vida que está na linguagem
que se instala no corpo próprio.
Assim, a relação que estabelecemos entre corpo e linguagem através
do significante é tal que, mesmo que morra o corpo, não podemos matar o
significante. Para lembrar, conseguimos recalcá-lo, forcluí-lo ou desmenti-lo.
Essas são as operações relativas à castração que, como falantes, estão a
nosso alcance. Depois de marcados pelo significante, não nos resta alterna-
tiva, a não ser operar com ele.
Diz Lacan:
Quem sabe o que se passa no seu corpo? Eis aí alguma coisa ex-
traordinariamente sugestiva. Para alguns, chega a ser o sentido que
dão ao inconsciente. Entretanto, se há uma coisa que tenho articu-
lado desde o princípio com cuidado, é que o inconsciente nada tem
a ver com o fato de um monte ser ignorado quanto a seu próprio cor-
po. Quanto ao que se sabe ele é de natureza bem diferente mesmo.
Sabe-se um monte de coisas provenientes do significante (Lacan,
[1975-1976]2007, p.145).
Dizer que o corpo, seu corpo ele o tem. Dizer seu já é dizer que ele
o possui, como se fosse, naturalmente, um móvel. Isso nada tem
a ver com qualquer coisa que permita definir estritamente o sujeito
que, por sua vez, só se define de modo correto na medida em que
é representado por um significante junto a outro significante (Lacan,
[1975-1976]2007, p.150).
27
Esquerda Direita
Então, o desenho é muito interessante, pois evidencia uma questão que La-
can trabalha desde o início dos seus seminários. Malala toma o seu corpo como
real. A inversão que a imagem promoveria, quando recoberta pelo simbólico,
promovendo a separação dos homogêneos real e imaginário, não ocorre. Não
há a inclusão da dimensão dialética, que faria que o real pudesse ser mostrado
através do imaginário. Os registros do imaginário e do real não se separam.
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REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Inibição sintoma e angústia [1926]. In: ______. Obras completas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2014. v. 17.
LACAN, JACQUES. O estádio do espelho como formador da função do eu [1949]. In:
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.96-103.
______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro; Jorge Zahar,
2005.
______. Radiofonia [1970]. In: _____Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
______. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.
Recebido em 27/03/2015
Aceito em 01/06/2015
Revisado por Glaucia Escalier Braga
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TEXTOS
A IMPOSSIBILIDADE DE HABITAR1
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Escritas do sexual, outubro de 2013,
em Porto Alegre. É parte da dissertação de Mestrado em Psicologia Social da UFRGS, intitulada
Percepção e Significante na Construção do Espaço, Porto Alegre, 2013.
2
Fernanda Pereira Breda, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA), mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, psicóloga do ambulatório
Melanie Klein – Hospital Psiquiátrico São Pedro. E-mail: fpbreda@gmail.com
30
M anoel de Barros nos encanta com essa imagem das pássaras que, ena-
moradas em suas árvores, geram flores perfumadas. Nos faz acreditar
que um encontro com o próximo não só é possível, mas fecundo. O poeta nos
embala em um canto cheio de musicalidade e parece nos dizer: sim, o Um
acontece na poesia e seu perfume está no ar!
Estamos na primavera e há perfumes no ar. A cidade está florida. As
árvores enfeitam o espaço público, nos convidando a circular pelas ruas. Os
jacarandás da praça da Alfândega aguardam a feira do livro para nos condu-
zirem por um labirinto de tapetes perfumados. A praça fica colorida e se en-
che de gente de todos os tipos. Mas, por vezes, a multidão nos sufoca e nos
força a nos debruçarmos nas janelas das bancas em busca de um ar fresco,
ou ainda a nos enfiarmos em uma orelha – de um livro – à procura de uma
margem de história.
Nem sempre o outro nos oferece um bom encontro.
Vamos falar aqui de espaços e o espaço exige ao menos três dimen-
sões: o eu, o outro e, ainda, o que pode vir a regular essa distância: o falo.
No entanto, esse terceiro elemento que demarca um traçado ou uma margem
por vezes não se coloca de forma efetiva, fazendo com que o espaço tenda
a se instabilizar ou mesmo a não se inscrever. É quando entramos na clínica
de poucas margens, digo, a clínica da psicose.
Antes nossa circulação no mundo fosse só de encontros fecundos, ou
mesmo de encontros possíveis. Freud, em Mal-estar na cultura já nos alertava
para a “hostilidade primária dos homens entre si” ([1930]2010, p.125), indican-
do a cultura como o que estabelece limites aos impulsos agressivos. A psico-
se também coloca em cena essa tendência primária, evocando proximidades
mortíferas ou mesmo invasões corporais violentas.
O que nos leva às perguntas: qual o espaço mínimo suficiente entre
nós e o outro para nos sentirmos seguros ou mesmo confortáveis? Qual o
31
tâneo ao que está por vir. Maria recolhe no que ouve as sonoridades para
compor uma significação estabelecida a priori – o que Lacan ([1955-56]1988)
denominou, no seminário As psicoses, de “automatismo da função do discur-
so”. Ouvir sem poder operar a escuta: o que ouve é o discurso de um Outro
sem enigma, compacto em sua significação.
Ouve diariamente barulhos que a vizinha faz com o propósito de impedi-
la de descansar. Portanto, é impossível dormir em sua casa – até mesmo à
tarde. Maria acredita ser necessário estar sempre acordada (e com os sen-
tidos aguçados, totalmente abertos), mantendo atenção permanente ao que
se passa ao redor. Não há obstáculos, falhas ou descontinuidades que pos-
sam servir de anteparo à invasão do gozo do Outro sobre seu corpo. Portan-
to, desde a eclosão da psicose, passou a mudar de residência, a dormir em
casa de conhecidos ou a passar noites em seu carro. Com o corpo exces-
sivamente presente, Maria, a cada vez que se vê ameaçada, decide “tirar o
corpo fora”.
Mesmo sem habitar efetivamente sua casa, a mantém com muito zelo:
um ambiente asséptico, higienizado, onde não é permitido fumar, levar ami-
gos ou algum namorado. A limpeza de seus pertences é extrema. A cada
mudança de residência, passa vários dias até deixar a casa bem organizada
e equipada. A cada mudança, uma grande esperança de encontrar um lugar
possível para viver toma conta de seus pensamentos. A cada mudança, Ma-
ria reencontra a confirmação de seu delírio.
A escolha de novas casas, por vezes, é feita impulsivamente; outras,
o faz com muitos critérios. A repetição, com frequência, se dá na chegada:
basta se instalar e começam as invasões da vizinhança. Já aconteceu, no en-
tanto, de passar muitas semanas desenvolvendo aproximações cuidadosas,
amigáveis com o entorno. Como se o fato de se apresentar e conhecer “quem
é o outro” pudesse deter sua face ameaçadora. De fato, essa política de boa
vizinhança teve efeitos benéficos, porém provisórios e insuficientes.
Atribui a essa perseguição uma justificativa associada a “inveja”, em
geral de uma mulher. A inveja incide sobre seu corpo: por ela ter um corpo tão
jovem e por não precisar trabalhar – evoca a expressão “vida fácil”. Associa
também ao olhar de um homem (marido ou filho dessa mulher), que toma
seu corpo como alvo de cobiça. Sempre aparece a ideia de interesse sexual.
Maria questiona: “O que eu tenho em meu corpo que desperta o desejo nos
homens?” – pergunta que formula em plena angústia, sem dúvida de que há,
de fato, algo marcado do qual ela não tem conhecimento. Corpo que não por-
ta o enigma da sexuação, mas a certeza de ser: ser aquela que tem em seu
corpo algo que provoca cobiça. Um corpo aquém da sexuação, marcado de
forma sígnica, em que não há espaço para a dúvida ou para o semblante – o
33
35
Se lhes falei do dia e da noite, é para lhes fazer sentir que o dia,
a própria noção do dia, a palavra dia, a noção da vinda do dia, é
alguma coisa, propriamente falando, de inapreensível em alguma
realidade. A oposição do dia e da noite é uma oposição significante,
que ultrapassa infinitamente todas as significações que ela pode
acabar por recobrir, e mesmo qualquer espécie de significação (La-
can, [1955-56]1988, p.226).
Para Maria, as bordas que definem diferentes polos ainda não se es-
tabilizaram, justamente por não estarem referidas a esse inapreensível. Por
vezes, se invertem ou passam de uma a outra sem solução de continuidade.
Assim, os remédios podem passar a venenos – como em sua infância ao fa-
zer uso de aspirinas com o propósito de adoecer; ou mesmo no uso prescrito
de medicações psicotrópicas que produzem um efeito de envenenamento. O
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que é “mau” pode estar fora e, em um momento seguinte, pode estar encar-
nado em seu corpo – como o demônio.
A lógica que rege a sexuação é uma lógica ternária – há o referente fá-
lico, que ordena e distribui os gozos. Sendo o falo o significante da diferença
sexual é o referente a partir do qual homens e mulheres irão se situar. A partir
desse referente, entra no imaginário a diferença sexual como binária: ter ou
não ter o pênis.
Por não contar com o referente fálico, Maria parece tentar inscrever uma
diferença binária, o que a coloca em um campo imaginário instável, exigindo
um esforço imenso em duplicá-lo, já que na psicose a ameaça de fazer Um
com o outro é absolutamente aniquiladora.
Na construção dessa narrativa mínima não estaria colocada em cena a
repetição de uma outra cena, primordial? O delírio buscando inscrever algo
que pudesse fazer as vezes de um mito original? A repetição incessante des-
se argumento – que para a paciente era uma realidade inquestionável – fun-
cionava, de certa forma, como um ordenador de lugares.
Nesse caso é possível pensarmos em termos de uma psicopatologia re-
lativa à construção do espaço? Para avançarmos, movidos por essa questão,
revisitar a noção de lugar na psicanálise pode ser útil.
No capítulo VII da Interpretação dos sonhos, Freud ([1999-2000]1981),
na tentativa de sistematizar o um aparelho psíquico, oferece uma analogia
ótica, advertindo o leitor que pretende evitar a tentação de apontar a loca-
lização do psiquismo a partir de parâmetros anatômicos. Não é disso que
se trata, nos diz, fazendo esforço para apresentar um aparelho, seguindo
um modelo ótico, que não seria tangível, localizável.
Para Freud, a noção de lugar psíquico esteve em causa desde o início.
Mesmo que o que tenha chamado de sistema psi não seja equivalente ao
conceito de lugar psíquico enquanto um lugar em que se possa circunscrever
o sujeito, encontramos aqui certa proximidade conceitual. Nesse momento de
sua teoria, Freud ([1999-2000]1981) propõe terminologias espaçotemporais:
fala em “instâncias psíquicas” e “sistemas (inconsciente e pré-consciente/
consciente)” – em que as representações, traços mnêmicos e percepções se
associam em sucessão temporal determinada. Freud parece estar às voltas
com a formalização de um aparelho psíquico cuja base seria inapreensível,
uma morada do sujeito que comportasse um lugar intangível.
Em seu livro Estâncias (2007), Giorgio Agamben propõe o tema da es-
tância a partir da poesia do século XII e XIII. No italiano, stanza se coloca
como conceito desde Dante Alighieri, designando o núcleo essencial do poe-
ma. Nessa perspectiva, o essencial era justamente aquilo que não era possí-
vel apreender. Agamben propõe uma tradução do termo stanza no sentido de
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REFERÊNCIAS:
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Ho-
rizonte: UFMG, 2007.
BARROS, Manoel de. Ensaios Fotográficos. Rio De Janeiro. Record. 2007.
FREUD, Sigmund. Lo siniestro [1919]. In: ______. Obras completas. Tomo III. Madrid:
Biblioteca Nueva, 1981.
______. O mal-estar na cultura [1930]. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010.
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Recebido em 01/07/2014
Aceito em24/05/2015
Revisado por Clarice Sampaio Roberto
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SÓ QUE NÃO:
TEXTOS
do impossível ao interdito1
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas APPOA: Corpo e discurso em psicanálise, em
novembro de 2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Insti-
tuto APPOA, psicóloga do ambulatório Melanie Klein do Hospital Psiquiátrico São Pedro.
E-mail: mariaangelabulhoes@gmail.com
41
43
uma não inscrição. Todos ou nenhum não produz qualquer marca de diferen-
ça, encontram-se apenas num discurso retórico, numa fala vazia.
Freud, no texto A negativa ([1925]1980), trata sobre o juízo de atribuição
como aquele que considera se algo é bom ou ruim e se deve ser incorporado
ou rechaçado. Isto é: isso deve estar em mim ou fora de mim. É necessário
o rechaço que constitua um fora, para que o movimento de retorno constitua
um dentro.
Em seu livro Qué es lo real? (2005), Pommier esclarece o conceito de
real, ao apresentá-lo como o que se constitui a partir do rechaço, que funda
a parte incompreensível e que, desde esse momento então, vem desde fora.
Ele diz:
um dado sujeito que, no final das contas, não esconde nada” ([1971]2009,
p.118). A falta da barra cria uma inexistência.
A operação de interpretação e corte que apresentei no recorte clínico
foi realizada a partir da escuta, e sustentada na transferência. Ele pôde sair
tranquilo do consultório e na semana seguinte chegou dizendo que tinha tido,
naquela semana, o dia mais tranquilo do ano (menos vozes). Marcar uma di-
ferença, ali onde apenas encontrava-se o imperativo, pôde produzir um pou-
co de paz em relação à invasão. Filho de pastor, esse paciente faz questão
de dizer que o seu Deus é o Deus do impossível. Na ideia de que ele pode
estar acima de qualquer limite (seu Deus e ele próprio). Só que não, pois
paga literalmente com o preço da escravidão.
A construção do impossível faz parte da operação do recalque e opera
no discurso. O real é um conceito, um operador, assim como o simbólico e
o imaginário. Portanto, não existe o mesmo real para todos, pois ele estará
constituído singularmente para um sujeito, e sustentado no laço social tam-
bém pelos interditos. Afinal, o real é sempre demasiadamente incestuoso e
se articulará às proibições do incesto. A operação simbólica funda ao mesmo
tempo o simbólico, o real e o imaginário. Portanto, inscrever o não faz parte
do processo de subjetivação, e não é apenas uma experiência vivida como
frustração, apesar de relacionar-se com ela. Abrir mão do gozo absoluto pode
parecer mesmo uma pena, só que não. Pois, mais do que uma pena (puni-
ção) é uma dívida (constituinte simbólico).
Escuto outro paciente, que faz constantemente concursos públicos sem
nunca abrir um livro, e que na hora da prova compõe o delírio de que vai
acertar todas as questões (ficava com dificuldades inclusive para ler a prova).
Ele nunca passa nos concursos. Este paciente também compara o time de
futebol de sua cidade do interior com os times grandes da capital e diz que
ainda quer ver o time de sua cidade ser campeão em Tóquio (onde se define
o campeão do mundo). Isso, provavelmente, não vai acontecer. Perguntei a
ele se teria de parar de torcer pelo time pequeno de sua cidade do interior,
pelo fato de esse time não ter condições de disputar o campeonato em Tó-
quio. Considerando seu histórico futebolístico, até que esse time vai bem!
Assim como esse rapaz. Hoje, esse paciente está fazendo um curso que se
apresentou como possível para ele. E por enquanto está conseguindo deixar
de prestar os concursos da forma que fazia. Inclusive conseguiu verdadei-
ramente ampliar sua rede social. Buscando alcançar um impossível através
da imaginação, (esse paciente não ouve vozes) ele conseguia apenas viver
algumas situações faz de conta. Encontrar o que é possível, sem considerar
isso uma grande falência fálica, passa por suportar o encontro com a parcia-
lidade. E essa parcialidade é o que mantém o impossível como impossível.
45
estar só. Portanto, Só que não: do impossível ao interdito, que é o título deste
texto, traduz o que considero o percurso de existencialização da cria humana.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. A negativa [1925]. In:______.Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1980. v. XIX.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicaná-
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VEGH, Isidoro. A lógica do ato na experiência da análise. Revista da APPOA, Porto
Alegre, n.39, jul/dez, 2010, p.20-29.
Recebido em 07/03/2015
Aceito em 15/07/2015
Revisado por Mariana Hollweg Dias
47
TEXTOS
LOL V. STEIN:
do deslumbramento à devastação1
Vanessa Brassier2
Resumo: A autora propõe uma articulação entre a histeria e a devastação nas re-
lações mãe-filha como obstáculo ao acesso da filha à feminilidade. O fio condutor
da elaboração é a feminilidade como imagem (semblant), validada pelo olhar e o
desejo masculino e a figura mítica da mulher (no caso, a mãe) que deslumbraria
este olhar e este desejo, deixando a filha destituída de sua própria imagem de
mulher. Como paradigma, o texto coloca em relevo a protagonista do romance
O deslumbramento de Lol V. Stein, de Marguerite Duras, e também a noção de
devastação introduzida por Lacan em 1972.
Palavras-chave: deslumbramento, devastação mãe-filha, histeria.
1
Texto traduzido pelo cartel de estudos Amor e devastação na clínica (a partir de Marguerite Du-
ras, Lacan e Freud): Ana Cristina Teixeira, Maria Rosane Pereira, Marisa T.G. de Oliveira e Nilena
Naime Silva. Revisão: Maria Rosane Pereira. E-mail: rosane.pereira57@gmail.com
2
Psicanalista; Membro da Société de Psychanalyse Freudienne-SPF-Paris; Doutora em psica-
nálise pela Université Paris VII. Sua tese sobre a devastação materna, sob a direção de Paul-
Laurent Assoun, deu origem a seu livro Le ravage du lien maternel, Paris: l´Harmattan, 2013. O
presente artigo foi extraído de sua dissertação de maitrise, em que ela iniciou suas pesquisas
sobre o tema da clínica com mulheres.
48
3
O termo “devastação”(ravage) foi empregado pela primeira vez por Lacan em 1972, em sua
conferência “O aturdito”(l´´Etourdit), para criticar a abordagem freudiana sobre a sexualidade
feminina, tentando ir além da noção freudiana da “inveja do pênis”, cara a Freud para pensar a
clínica da histeria e os impasses da feminilidade: ‘’ [...] a elocubração freudiana do complexo de
Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit),
contrasta dolorosamente com o fato de devastação que constitui na mulher, em sua maioria, a
relação com a mãe[...]. (Cfe. Lacan, J. O aturdito. In Outros escritos, Rio de Janeiro: J. Zahar,
p. 465). A expressão “fato de devastação”, que no texto original é “fait de ravage” aparece, na
tradução da Zahar como “realidade de devastação”. Nossa compreensão do texto de Lacan,
assim como a da autora que aqui traduzimos, nos impede de manter essa escolha, uma vez
que é justamente uma produção fantasmática que está em jogo no fenômeno psíquico tal qual
Lacan nos propõe pensá-lo. Parece-nos impossível articular “devastação” com “realidade” sem
converter o texto de Lacan em alguma teoria psicológica (NT).
4
Os tradutores deste texto de Lacan optaram pelo termo “arrebatamento” para traduzir o termo
francês ravissement. Efetivamente a tradução é adequada, porém o termo “deslumbramento”,
escolhido pelos tradutores da obra de M. Duras, contém nele a ideia de “arrebatamento” e vai
além dela, pois permite explorar mais amplamente o fenômeno psíquico que está em jogo. Por
isso, na maior parte do tempo, optamos por empregá-lo para traduzir o que Vanessa Brassier
propõe como reflexão sobre o termo ravissement em seu texto (NT).
5
Interno. NT.
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6
No momento em que Lacan emprega pela primeira vez o termo “devastação”, e que ele critica
Freud em sua conferência “O aturdito” com relação à inveja do pênis, (cfe. nota 3) ele vai, na
mesma frase, se referir ao “mais de subsistência” que uma filha espera de uma mãe, como o
fator desencadeante da devastação. O pai, diz Lacan, não dá conta desta situação por ser o
segundo nesta devastação. (NT).
7
(trad. nossa).
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8
“O estranho inquietante”. A autora citada faz referência, com o uso deste termo, aos desenvol-
vimentos de Freud em seu livro com este título (NT).
9
Nessa mesma página, ela esclarece com precisão que: “A devastação sobrevém quando uma
menina cresce e que se desenham em seu corpo os signos da feminilidade” (trad. nossa).
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10
la robe se traduz por “o vestido” (NT).
11
Jogo homofônico da autora com se mettre que quer dizer “vestir-se com uma roupa”, seja ela
um casaco, uma saia, um vestido, etc., ou mesmo um acessório. Do mesmo modo, se mettre in-
dica também “colocar-se” em algum lugar físico, alguma posição, ou em algum estado subjetivo.
No jogo homofônico, o verbo être (ser) se encontra em evidência, a forma pronominal redobrada
“se me” acentuando o caráter forjado do ser feminino que o termo “vestir-se” traz consigo (NT).
53
tindo disso, para uma mulher, sua feminilidade não é jamais verdadeiramente
conquistada. Suspensa no desejo e no amor do homem, lhe é necessário
incessantemente colocar-se à prova.
A clínica do deslumbramento nos convoca neste lugar. Com efeito, é o
ponto de articulação entre o sujeito feminino e sua imagem que se encontra
comprometido na experiência do deslumbramento, na medida em que ele
vem designar este desfalque da imagem. Ou seja, este instante em que o
sujeito rompe com seu corpo e com sua feminilidade.
Depois dessas palavras introdutórias sobre a imagem feminina em
jogo na experiência do deslumbramento, abordemos agora o texto de
Duras, que conseguiu traçar na personagem de Lol um retrato da figura
exemplar de feminilidade devastada pela experiência do deslumbramen-
to. “Evocamos a alma e é a beleza que opera”, nos indicou Lacan. O que
aprendemos então em Duras sobre esta “operação da beleza”, própria do
deslumbramento?
A fim de apreendermos o que está em jogo nesta operação, nos é ne-
cessário voltar, antes de mais nada, à cena inaugural, ao “acontecimento
traumático”, do qual o romance, “em sua íntegra, não é mais do que a reme-
moração” (Lacan, 2003, p.191). Esta cena nos dá a ver o surgimento brutal,
inopinado, de uma feminilidade cumprida, plena dela mesma, de um corpo de
mulher eminentemente desejável, sob os olhos de uma jovem: Lol, uma ado-
lescente aparentemente inexperiente em matéria de sexualidade. A aparição
intempestiva de Anne-Marie Stretter no salão de baile vem como um arrom-
bamento, um assalto. Trata-se de uma mãe encarnando a figura da mulher
fatal, exibindo um corpo revestido de todas as insígnias da feminilidade, em
particular “um vestido preto com dupla superposição de tule igualmente preto,
bem decotado” (Duras, [1964]1986, p.10). Lol fica “tomada de imobilidade”
diante do avançar majestoso e erótico dessa mulher supremamente dese-
jável, “saturada dos signos da feminilidade”. O deslumbramento opera no
instante mesmo em que Lol sofre o rapto de seu noivo por “aquela que não
precisou mais do que aparecer de repente” (Lacan, 2003, p.199). Com efeito,
a partir do momento da entrada de Anne-Marie Stretter, acontece o apaixo-
namento fulminante (coup de foudre). Richardson fica transportado, deslum-
brado ao ponto em que “nenhuma palavra, nenhuma violência no mundo teria
custado aquela sua transformação” (Duras, [1964]1986, p.11). Entrevistada
para a televisão em 1964 por Pierre Dumayet, Duras vai dizer desse instante
que “isso foi imediato entre Michael Richardson e esta mulher” (Duras, 1999,
p.12), e que Lol compreendeu “na fulgurância, que era aquela, a mulher que
seria o amor de seu noivo”. Notemos aqui que existe simultaneidade entre o
deslumbramento do homem por esta mulher desejável e, para Lol, o arreba-
54
12
É importante salientar que a concepção da autora não se refere a uma perspectiva de gênero.
A posição feminina, na sua concepção lacaniana, está referida como Outro sexo. E de fato, La-
can anuncia isso desde 1958, em seu texto Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade
feminina, dizendo que “o homem serve [...] de conector para que uma mulher se torne esse Outro
para ela mesma, como o é para ele”. LACAN, J. Algumas diretrizes para um congresso sobre a
sexualidade feminina, in: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, p.741.
55
57
13
Tatiana é personagem do romance, amiga de infância de Lol. É ela quem está ao lado de Lol
na noite do baile. É também uma das vozes da narrativa (NT).
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59
61
seu noivo por aquela que só precisou aparecer subitamente”. Este primeiro
tempo, o da experiência da devastação, quando Lol vê sua imagem e sua
identidade feminina roubadas por uma mãe encarnando A mulher completa,
madura sexualmente e captadora do desejo masculino, corresponde à entra-
da na devastação.
Tempo 2: o momento da devastação como drama da “impessoalidade”,
para retomar um termo de Duras ([1964]1986)14. Depois do evento traumá-
tico, Lol entra em um período de isolamento, de prostração e se casa, sem
nem ao menos ter querido. Depois, ela desaparece da cidade, se subtrai aos
olhares e se instala com o marido em uma casa em U.Bridge, onde esta-
belece uma ordem rigorosa, na qual o menor desarranjo produziria, ao que
parece, o seu afundamento. Ela também se torna mãe. Terá Lol esquecido?
Ela vive silenciosamente em um estado de indiferença e de perpétuo apa-
gamento. Ela leva uma vida de aparência normal, na verdade, uma vida de
pura imitação: “Lol imitava, mas quem? Os outros, todos os outros, o maior
número possível de outras pessoas” (Duras, [1964]1986, p.24). Então veio a
morte de sua mãe. Apenas evocado, este evento entretanto não deixa de ser
um momento importante na história, um ponto de virada na vida de Lol, ainda
que a deixe indiferente: “a morte de sua mãe – ela havia desejado revê-la
o menos possível, após o casamento – a deixa sem uma lágrima” (Duras,
[1964]1986, p.25). Se a mãe de Lol é um personagem extremamente discreto
no romance, ela, no entanto, é figura de extrema eficácia em seu poder des-
trutivo. Detenhamo-nos um instante sobre este personagem.
Afirmamos existir, no deslumbramento de Lol V Stein, um desdobramen-
to da figura materna que corresponde à clivagem entre feminilidade e mater-
nidade. De uma parte, Anne-Marie Stretter, a raptora de imagem, encarna a
feminilidade por excelência, a mulher desejada, desejável, detentora e fami-
liar a um gozo indizível. Este é o polo da Mulher. De outra parte, a mãe de Lol,
mãe possessiva, raptora de criança, que se encontra igualmente implicada
na devastação, presentifica o polo da mãe arcaica, maternal. Sua presença,
muito discreta no romance, entretanto é eficaz: todas as suas aparições, to-
das as suas intervenções contribuem para manter a sua filha em posição de
criança, para manter um controle total sobre ela. Com efeito, até a morte de
sua mãe, Lol permanecerá um objeto entre suas mãos. Esta mãe surgiu pela
14
À pergunta feita por Pierre Dumayet sobre O deslumbramento de Lol V. Stein: “É o romance do
quê?”, Marguerite Duras havia respondido: “Da “des-pessoa”, ou, se você preferir, da impesso-
alidade”, in Dits à la télévision, (1999).
62
primeira vez no final do baile para recuperar “sua criança”. “Ela se precipita
sobre sua criança” (Duras, [1964]1986, p.15), se interpõe entre ela e o casal
formado por Anne-Marie Stretter e Richardson, fazendo um anteparo, servin-
do de obstáculo ao deslumbramento de sua filha. Em seguida, ela favorece o
isolamento e a prostração de Lol, dizendo que é para protegê-la de qualquer
reminiscência do evento traumático, mas de fato para mantê-la sob seu co-
mando. Foi, com efeito, por intermédio desta mãe que “Lol foi casada sem ter
querido” (Duras, [1964]1986, p.22) e é “sob a demanda de sua mãe”, que ela
deixará S. Tahla, lugar do drama, após seu casamento. Lol se deixa ir, sem
opor nenhuma resistência. Ela continua a ser um objeto nas mãos de sua
mãe, que, pelo silêncio que instala em torno de Lol para protegê-la, a mantém
assim na devastação, neste estado de impessoalidade, de não subjetividade
que relembra, reitera este estado de dependência primordial de toda criança
pequena em relação ao Outro materno. E Lol, passiva, indiferente, se aban-
dona a essa sujeição, reencontrando este primeiro gozo de estar entregue às
mãos da mãe pré-edípica. A este respeito, Lessana fala mesmo de “conspira-
ção do silêncio”, de “complô” orquestrado pela mãe de Lol para anestesiar o
baile, exigindo que nunca se evoque o evento, casando-a e fazendo-a mudar
de cidade. Para sua mãe, “Lol é mantida isolada do evento que a concerne”,
e sua mãe encontra em John Bedford um aliado. Ele ama o que chama de “a
doçura de sua esposa”, seu “apagamento contínuo” (Lessana, 2000, p.264).
Lol passará das mãos de sua mãe às mãos de seu marido.
Talvez nos seja necessário colocar alguma nuance sobre o termo “com-
plô”, proposto por Lessana (2000), porque ele tende aqui a objetivar o caráter
perseguidor, destruidor, devastador do Outro materno. Seria um erro pensar
que a mãe é, em si mesma, um agente nocivo. É mais psicanalítico que nos
situemos do ponto de vista da filha, que nos interessemos em saber qual é o
peso da figura da mãe no seu fantasma de filha. Ora, o fantasma fundamental
de toda mulher, de toda filha, não é sem relação com o que sucedeu na sua
ligação arcaica com sua mãe, ligação de amor fusional e sem saída, e com
este gozo primordial, despedaçador e mortífero de ocupar a posição de obje-
to do Outro materno onipotente.
Em seus textos sobre a sexualidade feminina, Freud, como vimos an-
teriormente, havia enfatizado a importância da fase pré-edipiana da menina.
A dependência da mulher em relação a sua mãe, por conseguinte, deve ser
considerada à luz desta ligação arcaica, deste intenso apego primordial da
menina à mãe que, nos diz Freud, não desaparece jamais, realmente. En-
volta em mistério, essa relação permanecerá obscuramente ativa, embora
inacessível à análise. “Tudo o que toca o domínio desta primeira ligação à
mãe pareceu-me difícil de apreender analiticamente, branqueado pelos anos,
63
parecendo uma sombra pouco capaz de reviver, como se tivesse sido subme-
tido a uma repressão particularmente inexorável”, disse Freud ([1931]2010).
Ora, é precisamente esta zona de obscuridade específica das análises das
mulheres e que Freud chamou de “continente negro” que está em jogo na
relação devastadora entre uma mãe e sua filha.
Tempo 3: Após a morte de sua mãe, Lol retorna aos lugares de sua infân-
cia, e retoma a casa de seus pais. Neste lugar, Lol é descrita pela autora como
vagando em uma espécie de errância pela cidade. Ocorre, então, um aconteci-
mento decisivo, uma virada na devastação: Lol percebe um casal se beijando.
Neles ela reconhece Tatiana, sua amiga de infância, outrora testemunha do
acontecimento do baile e de seu deslumbramento. Lol se engaja então em
uma busca secreta: ver o final do baile do qual ela foi privada pela irrupção de
sua mãe e pela partida do casal. Agora que sua mãe está morta, ela quer ver o
gesto erótico que restou inacabado, o arrancar do vestido, o desnudamento de
Anne-Marie Stretter, sempre em suspensão em sua memória.
Deitada em um campo de centeio, perto do hotel onde se encontram os
amantes, Lol passará tardes e noites espiando o corpo de uma bela mulher,
Tatiana. Este gesto que ela não pode ver, o do desnudamento, e que ela su-
põe, poderia substituir a radical ausência de palavra. Este é mais um ternário
que se coloca, um cenário a três, vindo reproduzir aquele do baile. Nesta po-
sição de observadora, à qual Lol muitas vezes retornará, “um nó se refaz”, diz
Lacan (2003, p.199). Com efeito, ao centro deste trio estabelecido por Lol, há
sempre apenas um corpo de mulher desejante e desejável, o de Tatiana “nua
sob seus cabelos negros” (Lacan, 2003, p.202), enquanto que o corpo de
Lol resta inerte, sem peso ou contorno, “as mãos enfermas”, os “traços que
se afundam”, “uma palidez cinzenta”, os “cabelos [que] têm o mesmo cheiro
que a mão, de objeto sem uso”. O corpo de Lol é reduzido a uma carne não
fálica, privada de brilho que somente Outra mulher detém. “Você já reparou
na postura, no corpo de Lol, ao lado do meu, como ele é morto, como ele não
diz nada?” Perguntou um dia Tatiana a seu amante. Lol não tem corpo. Seu
corpo lhe foi roubado, foi substituído pelo de Anne-Marie Stretter na noite
do baile. E dez anos depois, Lol, ainda deslumbrada, não encontrará outra
saída para esta perda senão a de colocar seu corpo no de Tatiana, amiga de
infância reencontrada.
O movimento do deslumbramento, como sublinhamos, implica o corpo
e a imagem, corresponde a essa “operação da beleza” da qual falamos, uma
operação de substituição que, segundo a álgebra lacaniana, poderia ser es-
crita da seguinte maneira: i(a)/a.
Isto quer dizer que, ao mesmo tempo em que aparece a imagem bela,
i(a), a imagem de Outra mulher, do corpo de Outra mulher, o corpo de Lol
64
65
outra parte, existe o gozo suplementar, o gozo específico da mulher, que não
a identifica como tal, um gozo em que o significante é foracluído e que a deixa
sem lugar, sem identidade. Mas como uma mulher pode se contentar com tal
inconsistência? Para remediar essa deserção de se encontrar experimentan-
do um gozo não subjetivável, a mulher se apoia então sobre a exigência de
um amor que a identifique. Não podendo ser A Mulher, que não existe, resta-
lhe ser ao menos uma mulher, a mulher de um homem, para ser um sujeito
especificado sexualmente.
Referindo-se a Lacan, Colette Soler (1994) escreve a este propósito
que a ausência de significante do gozo feminino “tem por resultado acentuar
entre elas [as mulheres] o esforço de se identificar pelo amor” (Soler,1994,
p.68). Dizendo de outra forma, Lacan funda a exigência de exclusividade do
amor para uma mulher sobre o fato de que seu gozo a ultrapassa. O amor
tem, portanto, um estatuto todo particular na problemática feminina. Se a
posição feminina consiste em ser não toda assujeitada à lei fálica, o des-
tino de uma mulher é assim de ser não toda sujeito. Resta uma parte não
subjetivável, que escapa à significação, um vazio, uma falta a ser. Ora, para
uma mulher, é desta falha que parte a demanda de amor, demanda de um
suplemento de ser, endereçada ao homem.
A posição feminina permanece então suspensa ao desejo e ao amor de
um homem. Com efeito, “é pelo que ela não é que ela entende ser amada ao
mesmo tempo que desejada”, nos diz Lacan (1998, p.694). Ora, Lol, a mulher
devastada, é incapaz de assumir sua posição sexual, que seria de se deixar
desejar, de ser objeto causa do desejo de um homem. Ela não é o objeto que
completa o desejo masculino, como é o caso para uma mulher na relação se-
xual mas, como olhar, ela é o objeto que completa o casal. Além disso, sem
textura, indiferente, fechada nela mesma, ela não faz apelo ao amor de identi-
ficação, ela não espera de um homem o amor que ela quereria exclusivo. Para
Lol, o homem é um instrumento a serviço do gozo de Outra mulher. Não existe
endereçamento à Outra. A demanda de amor de Lol é devastada, foracluída.
Em Lol, os efeitos devastadores de sua ligação com a mãe serão então
observáveis aquém de um conflito manifesto, barulhento. Não existe, com
efeito, nenhum corpo a corpo conflitual, nem explosão de raiva, nem reivin-
dicação agressiva. O sofrimento é inexistente. Está ausente, igualmente, a
figura um pouco caricata da mãe monstruosa, devoradora. A devastação, em
Lol, se manifesta principalmente na impossibilidade de assumir uma posição
subjetiva feminina em função de uma fixação à mãe, cuja figura é aqui des-
dobrada como já mostramos. Durante a cena do baile, a aparição em flash
do corpo erótico da mãe feminina, que deslumbra, parasita Lol e recoloca em
causa sua feminilidade. O deslumbramento faz vacilar sua identidade sexual
66
e a joga na ligação regressiva à sua mãe, que surge na sala de baile para
recuperar “sua criança” (tempo 1). A ligação primordial à mãe faz então retor-
no e assujeita Lol a essa dependência arcaica, que exclui sua feminilidade
(tempo 2). Lol, então roubada de sua imagem e de sua feminilidade, fica
deslocada, sem lugar, sem corpo. Essa perda corporal assina a não inscrição
de seu corpo no desejo do Outro, no desejo de um homem que virá qualificar
sua feminilidade (tempo 3).
Conclusão
Foi ao mesmo tempo o livro que eu mais quis fazer e o mais difícil”,
diz ela ao Lettres françaises. A Pierre Dumayet, ela dirá em uma
entrevista na televisão: “Eu não poderia ter ido mais longe na minha
lucidez pessoal. Enquanto que nos outros livros, eu trapaceei...um
pouco (Duras, Dumayet, Lessana, p.20).
67
REFERÊNCIAS
BROUSSE, Marie-Hélène. Une difficulté dans l´analyse des femmes: les rapports à la
mère. Ornicar?. Paris: Seuil, n. 50, 2003.
DURAS, Marguerite. Le ravissement de Lol V.Stein. Paris: éditions Gallimard, Folio n°
810, 1964.
DURAS, Marguerite. La vie matérielle. Paris: Gallimard, collection Folio (n. 2623),
1994.
DURAS, Marguerite. O deslumbramento [1964]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
68
Recebido em 24/03/2015
Aceito em 04/05/2015
Revisado por Gláucia Escalier Braga
69
1
Poeta; Psicanalista e psiquiatra; Doutora em Psicanálise pela UERJ com doutorado sanduíche
na Université Paris XIII e pesquisadora da rede internacional de pesquisa Escritas da Experiên-
cia; Professora adjunto da Universidade do Estado do Pará (UEPA); Supervisora clínica do Am-
bulatório de Saúde Mental do Centro de Ensino Superior do Pará (Cesupa), onde também com-
põe o corpo docente do Mestrado em Educação Médica. Autora dos livros Entre (Verve, 2014)
e Os tempos da escrita na obra de Clarice Lispector – no litoral entre a literatura e a psicanálise
(Cia de Freud, 2014). É componente do núcleo editorial da Revista de literatura Polichinello.
E-mail: lucianabrandaocarreira@gmail.com
70
Ana parecia ter descoberto que tudo na vida era passível de ser aper-
feiçoado. A conquista de um lar assim organizado lhe dera a solidez da “raiz
firme das coisas”(p.20), além de amparo e proteção diante das perturbadoras
incertezas da existência.
Mas nem sempre fora assim.
Antes de ter um lar, Ana experimentava um sentimento diferente, uma
“exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insupor-
tável” (p.20). Quando se casou, a estranheza desse tipo de felicidade deu lu-
gar a “algo enfim compreensível” (p.20), na virtude de um lar que lhe permitiu
passar a viver “uma vida de adulto”(p.21), quando os objetos e fatos ganham
sentido e lugar.
A realidade tranquila de uma vida assim domesticada se pretendia ina-
balável, pois Ana pacificava a vida esforçando-se continuamente “para que
esta não explodisse” (p.22). Mantendo a felicidade nos limites do suportável,
a serenidade da rotina doméstica, previsível e estável, garantia-lhe a harmo-
nia de um cotidiano pautado no amor fusional, expoente da função narcísica
71
Quem visse Ana olhando o cego teria a impressão de que ela sentia ódio.
Afinal, lembremos que ódio e amor são dois afetos de ligação e que, com fre-
quência, a positividade do amor cede a vez à negatividade do ódio. Pois, se o
amor visa à fusão narcísica (justamente porque o amor é cego ao que é dife-
rente no outro), o ódio, por seu turno, aponta em cheio a alteridade do Outro.
É nessa direção que Lacan ([1972-1973]1985, p.116) fala da experiência de
enamoramento, referindo-se a ela como l’hainamoration, conjugando, em sua
língua materna, os afetos raiva e amor em um mesmo significante.
Mas apesar do ódio emergente, Ana continuava olhando o cego que
mastigava os chicletes. De súbito, o bonde dá uma arrancada brusca do pon-
to onde o cego estava − para logo depois também bruscamente parar, pro-
vocando olhares assustados entre os passageiros. O saco de tricô cai. Os
ovos se quebram. Ana empalidece. Ela é incapaz de reaver suas compras
tombadas ao chão. O menino, vendedor de jornais, lhe devolve o pacote com
os ovos, completamente quebrados no interior do embrulho.
Ana nada compreende.
Nesse ponto da narrativa, a pungência dessa ruptura: os ovos que se
arrebentaram tornam a rede de tricô desnecessária, inútil, sem nenhum signi-
ficado. Estar ali era como um fio partido, Ana revela, num desdobramento que
equivalemos à ruptura imaginária que revestia os seus dias tão domesticados
e tranquilos. A falta está descoberta. Quando o bonde recomeça a andar,
imediatamente depois desse instante de espanto e surpresa, o mundo ao seu
redor reinicia tal como quando se reinicia uma música estranha na vitrola.
Esse mundo novo, aberto aos olhos de Ana, é visto com deslumbramento
e perplexidade. Nele, as pessoas estavam tão livres que não sabiam mais
aonde ir e muito menos o que deveriam fazer. Essa experiência – a crise –
provoca um misto de prazer e sofrimento, a um só tempo.
73
75
tente entre ela e um ponto no infinito: ponto do objeto olhar, o qual ela não
pode domar, sequer esconder.
Há um tempo em que a criança não consegue visualizar o seu corpo
como uma unidade. Ele é percebido como fragmentado pelas pulsões par-
ciais, autoeróticas. Mas, num dado momento, as pulsões autoeróticas con-
vergem para a imagem do corpo, inicialmente tomado por um outro. Esse
tempo da constituição do eu no estádio do espelho, em que o corpo é tomado
como objeto da pulsão, corresponde ao conceito de narcisismo cunhado por
Freud. Ao partir de uma alienação primordial, na guinada de uma assunção
jubilatória, o infans vivencia a ilusão da unidade corporal, antecipando, a par-
tir da imagem que lhe chega do espelho, a imagem que ele terá de si.
Mas para que essa passagem se efetive é necessário um olhar de assen-
timento, sem o qual a criança não se certifica de sua imagem no momento em
que ela vacila diante do espelho. Voltando-se ativamente à procura da mãe,
a criança busca ler no olhar do Outro algum reconhecimento, em que se veja
amada pelos seus pais. Situado num “ponto infinito do amor”, o ser falante aí
alojará os traços desse olhar que faz furo, na guinada de uma operação que
opera a inscrição do amor e da morte a um só tempo. As pulsões autoeróticas –
já dispostas num corpo fragmentado e sem unidade – realizam uma passagem
ao narcisismo através do eu ideal. Através dessa imagem ideal, o corpo ganha
unidade imaginária na medida em que uma superposição temporal se impuser,
engajando-o nas vicissitudes do amor fusional, efeito da identificação imaginá-
ria. É nesse viés que o amor é tomado como uma referência simbólica crucial,
designando a matriz do ideal do eu, cerne da identificação simbólica. Trata-se
do amor que é lido no olhar, cujo vértice aponta a inexistência da relação sexu-
al, visto que ela jamais se escreve. Entre o mundo de quem olha e o de quem é
olhado, esse olhar frente ao furo se revela fugaz e peremptório, pois ele surge
na fração temporal do instante de ver, que é, ao mesmo tempo, o índice de um
lugar, da criação de um ponto de cegueira. Ele emerge através de uma imagem
que dele retém seus traços, acionando, a partir de um maravilhamento fascina-
tório, o ir e vir dos movimentos do circuito da pulsão escópica.
Esse ponto é a própria expressão de Eros como potência renovadora,
ligada à vida e à criação, tradução possível do sopro divino que inspira todo
artista. No conto, Ana expressa o divino através do estado de graça que ex-
perimenta quando atravessa a porta de entrada que dá acesso ao Jardim
Botânico, relatando uma modalidade de amor que simplesmente se dirige a
toda forma de vida que faça parte da natureza, sem limites, tal como o amor
da mística. Mas essa experiência tem a fugacidade da eternidade fascina-
tória. É nessa medida que Ana, pouco a pouco, vai recobrar a consciência
doméstica de sua vida “anterior”, agarrando-se ao filho quando finalmente
76
voltar para a sua casa, onde todos já a estariam aguardando para o jantar. Já
de volta a sua casa, mais uma vez o amor se retorce. Agora, Ana já não mais
odiava o cego. Com os olhos marejados, ela pensa, ao contrário, no quanto
o amava. O que lhe fora por ele revelado a atraiu ao Jardim Botânico. E isso
era perigoso. Mas em seu lar, no ambiente doméstico, Ana estaria protegida
desse gozo desmedido.
Nada mais seria como antes.
Eis que o caráter apaziguador do amor por seu marido entra em cena, o
que a protege, ao menos por ora, daquela imponderável falta de sentido em
que o cego a havia jogado. Nesse conto a protagonista Ana está encurralada
entre duas modalidades de amor. De um lado o amor domesticado pelos la-
ços familiares, que obtura imaginariamente a falta. Do outro, o amor divino,
que liberta o ser das amarras imaginárias, desvelando a falta e o remetendo,
num átimo, à solidão e à falta de sentido.
Essa solidão tão radical está ligada à divisão do sujeito, à sua dessubje-
tivação, experimentada quando o Outro se lhe mostra furado, impossibilitado
de lhe dar qualquer garantia, ou seja, indicando que a completude do um nos
laços familiares é impossível, pois não há reciprocidade que se sustente por
muito tempo. Essa solidão é a condição para que haja pensamento, para
que o ser se torne falante; para que haja desejo. Nesse limite, há uma perda
de gozo, experimentada como gozo feminino, expresso muitas vezes numa
experiência mística, tal como a personagem Ana revela.
O circuito do olhar acionado pela visão do cego mascando chicletes leva
Ana a penetrar num espaço quase virtual, ilustrado no conto pela sua entrada
no Jardim Botânico. Ao elaborar a expressão entre-duas-mortes, no seminá-
rio da Ética da psicanálise ([1959-1960]1997), Lacan se inspira no pedaço de
terra chamado entre-deux-mers2, situado entre os rios Garonne e Gironde,
existente na região francesa de Bordeaux (bord-eaux). E, se aqui fazemos
alusão ao tema da borda, é para indicarmos a existência desse espaço vir-
tual, situado entre a morte simbólica e a morte real, lugar do furo provocado
pelo objeto olhar. Algo que também nos faz pensar num litoral, no limite que
se abre entre saber e gozo − entre o visível e o invisível − na hiância que se
mostra quando uma letra pontua o encontro de dois registros distintos: real
e simbólico. Esse espaço indica uma suspensão da realidade, circunscrita
e encarnada em duas margens. Uma dessas margens corresponde à morte
simbólica, que diz respeito à abolição do sujeito enquanto elemento de uma
2
Entre dois mares ou Entre duas marés.
77
desejo e pela morte. As margens delineadas entre essas duas mortes situam
o tempo e o lugar dessa experiência de reconhecimento. Em um tempo de
suspensão e no lugar em que a realidade psíquica se forja para o falante.
Podemos dizer que é nesse tempo em suspensão, aberto no espaço da
enunciação, que a ética do bem dizer sobre o seu gozo pode ser situada para
o ser falante em suas origens. E se, por meio dessa experiência que implica a
morte algo se escreve, o seu testemunho toca em fundamentos que estão na
base da transmissão de um impossível, por via de um escrito.
No seminário A transferência ([1960-1961]2010), Lacan lança mão do
discurso de Sócrates, no Banquete platônico, para demarcar a especificidade
do amor que opera na análise. Esse amor, que se articula à função do desejo
do analista, é o que permite que uma análise aconteça. Na passagem da
posição amorosa de amado à amante, Lacan também indica o ponto crucial
da modalidade amorosa implicada na transmissão, sustentando que a ética
analítica é inspirada por uma estética, por uma poiésis, por uma poética.
A respeito do erotismo, o Banquete é o texto mais antigo do qual se tem
notícias, escrito há mais de dois mil anos, entre 384 e 379 a.C. Ao passo dis-
so, a narrativa de Apolodoro sobre o que teria se passado na casa de Agatão
ocorreu no ano de 400 a.C. Essa diacronia é fundamental para apreendermos
a complexidade do texto, pois entre a narrativa e a redação do que teria se pas-
sado há uma subversão temporal, sobrepostas a partir da lembrança erótica
dos discípulos de Sócrates (Platão, 2011, p. 35)3.
Tal evento ocorreu “no momento do último sopro da cultura ateniense”,
quando Atenas estava prestes a cair, em 416 a.C4. O Banquete correspon-
3
O diálogo platônico foi escrito entre 384 e 379 a.C.; a narração de Apolodoro acerca do duelo
erótico entre Sócrates, Alcibíades e Agatão teria ocorrido em torno de 400ª.C; a morte de Sócra-
tes, em 399 a.C.; a saída de Agatão de Atenas, entre 408 e 407 a.C.; e o banquete propriamente
dito, que festejava a vitória de Agatão no concurso de tragédia, teria acontecido em 416 a.C.
4
A cidade estava prestes a iniciar uma grande expedição militar que visava conquistar a Sicília.
Este ambicioso projeto imperial era liderado pelo seu mentor, Alcibíades, que preparou uma
armação naval de proporções inéditas. Todavia, o povo ateniense não confiava em Alcibíades,
motivo determinante para o fracasso da expedição e para a decadência da pólis ateniense.
Afinal, Alcibídes os traiu. Depois que seus conterrâneos consentiram que ele voltasse à sua
cidade natal, após o fracasso de tal expedição, Alcibíades retira-se para Esparta e aconselha
os inimigos de Atenas contra Atenas, confraternizando com os persas, um dos responsáveis
pela ruína política da cidade. O caráter volúvel de Alcibíades será refletido no seu discurso no
Banquete (quanto ao temperamento de Alcibíades, recomenda-se a leitura das páginas 67 e 175
do Banquete platônico).
79
por Homero, a quem segue de modo diferente do que praticam os seus pró-
prios discípulos. Ou seja,
81
5
Segundo ele, Eros é um daimon, ou seja, um intermediário entre homens e deuses, entre mor-
tais e imortais.
82
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, M. L’espace littéraire. Paris: Éditions Gallimard, 2009.
BRANCO, L.C.; BRANDÃO, R.S. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina Editora,
2004.
JORGE, M.A. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. v. 2 – A clínica da fan-
tasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1997.
6
Essa famosa frase foi cunhada por Lacan durante o Seminário A Transferência, em 1960 (2010,
p.41) e retomada por ele dez anos depois, no contexto do seminário O avesso da psicanálise
([1969-1970]1992, p.49).
83
Recebido em 13/10/2013
Aceito em 18/03/2014
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
84
Denise Maurano2
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Escritas do sexual, outubro de 2013,
em Porto Alegre.
2
Psicanalista. Membro do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro;
Professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), atuando
no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e no Centro de Ciências Jurídicas, Políticas
e Sociais; Doutora em Filosofia pela Universidade de Paris XII e PUC/RJ; Pós-doutorado em
Letras, pela PUC/RJ. É autora, dentre outros livros, de Para que serve a psicanálise? (Jorge
Zahar ed.), A transferência (Jorge Zahar ed.), Histeria: o princípio de tudo (Ed. Civilização Bra-
sileira), e Torções: a psicanálise, o barroco e o Brasil Edita o periódico eletrônico Psicanálise e
Barroco em Revista, disponível em www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista. E-mail: dmaurano@
corpo freudiano.com
85
87
Isso, porque ela é irredutível, como revela o fracasso dos obturadores ima-
ginários que tentam suprimi-la. Toca-se aí a questão da transmissão de uma
dimensão real da experiência, que em nosso caso é a experiência analítica.
É nessa perspectiva que o que fazemos como analista na clínica não é hete-
rogêneo à transmissão da psicanálise em outros âmbitos.
Vista a dificuldade de sustentação dessa função, cabe que nos pergun-
temos, enquanto analistas, em que medida estamos em déficit no que diz res-
peito ao desejo do analista. Cabe que, enquanto “um” analista que somos, nos
indaguemos sobre o modo pelo qual estamos sustentando o desejo “do” ana-
lista. Nesse sentido, creio que o artigo definido “o” para definir o analista, seja
barrado, tal qual foi proposto barrar o artigo definido “a”, para designar A mu-
lher. Ou seja, nada atesta a existência de O analista, da mesma forma em que
A Mulher não existe, no sentido de que ninguém é mulher em sua totalidade. O
que, entretanto, não impede a presença efetiva do feminino em nossas vidas, e
nem que os efeitos de fecundidade do desejo do psicanalista apareçam como
resultado do processo sustentado por um analista. Eis aí a afinidade entre Ⱥ
Mulher e ϕ Analista.
No caso do feminino, isso não coloca grandes problemas, já que o fe-
minino não se faz ofício. Porém, no caso do analista, fica a questão de como
autenticá-lo, ou seja, como reconhecer um analista, dado que, como vimos,
não são títulos, diplomas, cumprimento burocrático de regras, que atestam
que alguém está apto a sustentar essa função. Configuram-se portanto, dois
planos de questões cruciais para a sustentação e o desenvolvimento da
psicanálise. Um diz respeito a sua transmissão, ou seja, ao modo de fazer
passar a outros, não apenas o que pode ser ensinável, via o entendimento
teórico-prático, mas sobretudo o mais difícil, a dimensão real da experiência
psicanalítica. O outro se refere aos meios pelos quais se pode reconhecer
que alguém está apto para a função de analista, podendo portanto ter, de
algum modo, sua formação autenticada. Dediquei-me, neste trabalho, ao pri-
meiro plano de questões. Ainda que este tenha repercussões para a abor-
dagem de questões relativas ao segundo plano, não se tratou, de qualquer
forma, de desenvolvê-las aqui.
Nesta perspectiva, focalizando a transmissão da ética da psicanálise
como eixo central de sustentação do rigor e da originalidade da proposta
freudiana, e reconhecendo sua dificuldade, busquei lançar mão de certas
expressões estéticas que melhor nos sensibilizam para acolher essa ética.
A arte trágica anteriormente, e a expressão barroca por mim abordada como
uma alavanca metodológica em vários momentos no meu percurso, foram
grandes achados. Não me ative a relações de analogias, embora algumas
delas sejam ilustrativas, mas, sobretudo, à averiguação de uma afinidade
89
3
Representa um período da linha do tempo desde o presente até a formação da Terra. A história
do planeta é dividida em eons na geologia.
90
4
Esta metáfora, lembrada por Michel Maffesoli, em No fundo das aparências, Vozes, 1996,
p.216, foi utilizada na Baviera Meridional, e refere-se à designação do barroco para sublinhar a
ligação que ele promove entre o exterior e o interior do corpo.
91
93
95
tais como estas são elaboradas por Freud em sua metapsicologia (Freud
[1915],1988).
Algumas destas aproximações coincidem com as encontradas na in-
vestigação dos princípios constitutivos da arte trágica. Por exemplo, a no-
ção barroca da dissolução da exclusão dos contrários, na qual se enfatiza a
permeabilidade dos opostos, conduz à ideia de paradoxo, tão presente nas
tragédias quanto no inconsciente, onde valores heterogêneos são afirmados
sem que sejam excludentes.
A lógica hiperbólica, que é peculiar à arte trágica, e é proposta por
Hölderlin como o que revela o equilíbrio instável entre os dois princípios in-
separáveis: o aórgico e o orgânico, – o estado desprovido de lei e o estado
regido pela lei (Dastur, 1994, p.199), encontra também destacada função nas
produções do barroco (Dubois, 1993, p.113). A problematização das fron-
teiras entre ilusão e realidade, o divino e o humano, o sagrado e o profano, o
excesso, a desproporção, que são constantes no barroquismo, encontram
um parentesco próximo nas produções trágicas e nos processos do incon-
sciente. Da interlocução que pode ser empreendida entre esses diferentes
campos colho meios de melhor explicitar a intervenção dessas expressões
na cultura e sua afinidade com a perspectiva psicanalítica de abordagem do
sujeito, e da condução da proposta clínica dela decorrente.
Penso que por essa via percebe-se o caráter topológico dessa abor-
dagem do heterogêneo. Aguçar recursos para abordar o heterogêneo, creio
ser tarefa fundamental demarcada pela arte trágica, pela expressão barroca
e, por que não dizer, pelo desejo do analista, enquanto desejo de pura dife-
rença, desejo de demarcação do significante de comando na investigação
da subjetividade, e dos modos de gozo que operam no sujeito. Estamos aí
num plano bastante diferente daquele que se dedica a afirmar identidades.
É justamente com a insipiência da suposta identidade aquilo com que traba-
lhamos.
Sublinho que o trágico e o barroco, em afinidade com a psicanálise, re-
velam que se pode pensar, não pela via do antagonismo, mas na perspectiva
do paradoxo. O pensamento trágico é este tipo de pensamento que acolhe
a ausência do não no inconsciente. A ênfase nisso dimensiona, a meu ver,
a grandeza do passo de Freud, para além do cartesianismo, na invenção da
psicanálise, e a pertinência da contribuição de Lacan, tanto em sua forma de
ampliar a teoria e a clínica freudiana, como no estilo, e nos recursos sugeri-
dos para a sua transmissão.
Parece ter sido justamente esse passo para além do cartesianismo que
favoreceu o desenvolvimento do barroco no chamado Mundo Novo, com des-
taque especial para a América ibero-espanhola, local onde essa expressão
96
artística foi favorecida pelo viés da modernidade que se expandiu no veio das
transformações e da conjugação de fragmentos, numa mestiçagem que, pro-
cedendo por uma particular conjugação, marcou a originalidade do barroco
aqui produzido.
No caso do Brasil, valeu destacar a exuberância desse estilo, que aca-
bou por cunhar a marca da relação de um povo com a cultura que o cons-
tituiu, e que foi constituída por ele, trazendo consequências para a própria
maneira pela qual a psicanálise entrou e foi assimilada nesse país. Essa
orgia da aparência, essa exuberância visual que caracteriza o Brasil e, como
diz Maffesoli [1996], o destina a “laboratório da pós-modernidade”, nos apro-
xima do saber trágico sobre o vazio, que o véu da beleza barroca encobre,
ao mesmo tempo que deixa ver. Nele, a visão ordenada e autoritária da vida,
tão cara ao Renascimento, é convocada a traduzir-se na curvas da natureza
humana e a incorporar sua selvageria, dando-lhe forma bela.
Esse barroco, que inventou este país, recicla-se incessantemente no
que aqui se produz, traçando conexões de Aleijadinho a Niemeyer, de Gre-
gório de Matos a Caetano Veloso, do Padre Antônio Vieira a Guimarães
Rosa, matizadas por um fundo musical barrocamente entoado por Villa Lo-
bos e muitos outros, e é apontado por modernistas, críticos da brasilidade,
como Mário e Oswald de Andrade. E isso tudo sem falar do nosso carnaval,
que, operando uma torção do sagrado ao profano, faz entoar o cântico dos
cânticos, que reúne na solenidade da alegria e da embriaguez, o luxo da
peculiar harmonia de cores, de corpos e de movimentos, que em puro des-
perdício esbanjam a arte, a vitalidade e a força do nosso homo viator bar-
roco, que usa o chão para levantar voo com seu samba no pé, contagiando
quem quer que chegue perto. Realmente, não é à toa que, no ano de 2004,
a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, tendo como enredo de
seu desfile a redescoberta da Estrada Real, trouxe para a avenida o altar
de uma igreja barroca como carro alegórico de Deus, ao som de um samba
que tem uma estrofe que diz assim:
5
Samba da Mangueira do Carnaval de 2004, composto por Cadu, Gabriel, Almyr e Guilherme.
97
REFERÊNCIAS
CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade, Col. Estudos. São Paulo: Perspectiva,
1998.
DASTUR, Françoise. Tragédia e modernidade. In: HÖLDERLIN, Friedrich. Reflexões.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p.145-214.
DUBOIS, Claude-Gilbert. Le baroque, profondeur e apparence. Bordeaux: Presses
Universitaire de Bordeaux, 1993.
FREUD, S: Lo inconciente [1915] In: ______. Obras completas. Buenos Aires: Amor-
rortu, 1988.
LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.
98
Recebido em 20/03/2015
Aceito em 06/06/2015
Revisado por Maria Ângela Buhões
99
TEXTOS
IDEOGRAMISTERIA 1
IDEOGRAMISTERY
Abstract: Letter gradually established itself in Lacan’s lessons in order to encom-
pass the effects of writing on treatment and to study the effectiveness of fiction in
the constructions in analysis: to lituraterre. Lacan refers to the ideogram in order
to acutely reveal the function of language in the Unconscious where, as in the His-
tory of Writing, the words do not have referents of objects. While Lacan highlights
the importance of metaphors in the Subject reinvention, he also points out to a
barrier to the jouissance.
Keywords: letter, real, writing.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: A escrita do sexual, outubro de 2013,
em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Cam-
po Psicanalítico de Salvador. Pós-graduação em Clínica da Dor, UNIFACS, Salvador, 2000. Mes-
trado em História, Ensino e Filosofia da Ciência, 2007, UFBA. E-mail: elainefoguel@terra.com.br
100
Em outras palavras, o sujeito é dividido pela linguagem como em toda a parte, mas um
de seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro com a fala.
(Lacan, 2003, p.24)
Introdução
101
Parte I
Letra no ensino de Lacan possui pelo menos três acepções não es-
tanques, nenhuma delas obsoleta: letra é o suporte material do significante,
remete aos fonemas, à fala, ao que se diz, ao ato falho. É também uma epís-
tola, por equivocidade em francês, remete ao conteúdo deslocado por obra
da censura, conteúdo recalcado que produz efeitos de formação do incons-
ciente; é o cifrar do inconsciente e sempre chega ao seu destino. Em terceiro
lugar, a letra é uma formação de linguagem escrita no real. Nessa dimensão,
ela não cessa de se remeter a si mesma.
Na terceira lição do seminário 18, De um discurso que não fosse do
semblante ([1971]2009), Lacan critica o linguista André Martinet, o qual, em
1960, ao propor a dupla articulação da linguagem, dividira a cadeia dos sig-
nos linguísticos em dois níveis. A divisão de Martinet não recobre a de Saus-
sure: no que denomina a primeira articulação, Martinet coloca a sucessão de
unidades dotadas de forma vocal e sentido, o que corresponderia ao signo
saussuriano.
tico, no qual se apoiara nos anos 50, não fosse mais tomado como ciência,
mas como metáfora do funcionamento do inconsciente. Ele precisava ir mais
além do que a linguística estrutural já lhe presenteara, e por isso buscava arti-
cular a letra escrita e seus amplos efeitos reais em pelo menos três aspectos.
Primeiro, nas formações do inconsciente; segundo, naquilo que se processa
em uma psicanálise e terceiro, na transmissão da psicanálise.
O que se escreve nas formações do inconsciente − e que moveu a gran-
de guinada de Lacan em direção aos nós borromeus − é o sintoma incrustado
na dimensão real, sintoma que insiste em se repetir, e não cessa de não se
escrever no real. O sintoma é letra? “[...] não há nada a defender do recal-
cado, visto que o próprio recalcado procura se alojar na referência à letra”
(Lacan, [1971]2014, p.2).
“No que se processa em uma psicanálise, Freud indicou “Onde estava
o id, ali estará o eu. É uma obra de cultura − não diferente da drenagem do
Zuider Zee” (Freud, [1933]1974, p.84)3. Lacan pede aos analistas que apos-
tem que o literal funda o litoral, também tomando metáforas semelhantes,
misturando a água e a terra, para aludir aos efeitos da análise, ganhar terras,
lituraterrizar. A noção que passa a nortear a transmissão da psicanálise a
partir de lituraterre (Lacan, [1971]2014) é que a letra é o literal que funda
um litoral. Ora, o litoral não é uma fronteira. Então, o que está em jogo? Na
fronteira há terra dos dois lados, é só construir uma cerca; mas não é o que
ocorre nos paradoxos da pulsão, que se metaforiza melhor como uma linha
do litoral que se move com as fases da lua; influenciando as marés das on-
das pulsonais, o litoral se desloca eternamente, misturando água e areia.
Maré cheia, maré baixa, maré seca, maré morta. A proposta de lituraterre é
“A letra... não é litoral propriamente dita, seja figurando que um domínio in-
teiro faz fronteira ao outro, no que são estrangeiros, até não ser recíprocos?
A borda do furo no saber não é isso que ela desenha?” (Lacan, [1971]2014
p.2-3). Lituraterrar é a função da letra, tanto na psicanálise, quanto na escrita
ficcional, a literatura: um aterro entre o gozo e o saber. Insistindo um pouco
neste ponto, pois se refere à clínica, Lacan enfatiza que “Pois não há nada
mais distinto do vazio cavado pela escrita do que o semblante” (Lacan, [1971]
2014, p.6) apontando que, na direção da cura, a escrita não preenche a falta,
mas busca circunscrever uma borda ao gozo que insiste: uma psicanálise
tem como efeito exatamente o oposto, construir a falta, bordar com letras em
torno do buraco onde isso goza.
3
As barragens construídas pelos holandeses para ganhar terras aos mares.
103
Parte II
4
As palavras voam, a escrita permanece.
104
toda a escrita tem caráter fonético. Calvet esclarece ainda que, na origem da
escrita, não se tratava de imitar a fala, e que o alfabeto fonético foi um desen-
volvimento precedido de muita sofisticação civilizatória.
Nas escritas pictográficas, a representação fonética não está em jogo.
As primeiras escrituras se referiam à picturalidade, e à gestualidade: o gesto,
a dança, os sinais de fumaça, a linguagem dos tambores, os pictogramas, as
tatuagens, as pinturas parietais pré-históricas, a maquiagem, as vestimentas
entre outros. A gestualidade é a expressão fugaz, a picturalidade perdura, re-
siste ao tempo, pode se locomover através do espaço. O gestual tem o tempo
do aqui e agora, o pictural, é marca (la trace):
Parte III
105
primeiro sistema pictográfico que se conhece, que contava no início com dois
mil pictogramas.
107
Parte IV
109
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2007.
CALVET, Louis-Jean. Histoire de l’ecriture. Paris: Hachette, 1996.
FENOLOSA, E.; POUND, E. El carácter de la escritura china como medio poético.
Madri: Visor Libros, 1977.
FREUD, Sigmund. Conferência XXXI, A dissecção da personalidade psíquica [1933].
In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v.22, p.63-84.
JEAN, Georges. La escritura memoria de la humanidad. Barcelona: Ediciones B, 1998.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante
[1971]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
LACAN, Jacques. Lituraterra. Disponível em: <http://www.campopsicanalitico.com.br/
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LACAN, Jacques. Lituraterra [1971]. In:______. Outros escritos, Rio de Janeiro: J.
Zahar, 2003.
MARTINET, André. Elementos de linguística general. Madrid: Editorial Gredos, 1968.
MILNER, Jean-Claude. A obra clara – Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1996.
110
ROBERTS, J.M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de janeiro: Ediouro, 2000.
TITIEV, Misha. Introdução à antropologia cultural. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
bekian, 1969.
Recebido em 29/03/2015
Aceito em 05/06/2015
Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira
111