Sei sulla pagina 1di 111

ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


n. 47, jul./dez. 2014

CLÍNICA À FLOR DA PELE

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


Porto Alegre

Revista 47.indd 1 28/10/2015 14:15:05


ISSN 1516-9162
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 47, jul./dez. 2014

Título deste número:


CLÍNICA À FLOR DA PELE

Editores:
Deborah Nagel Pinho e Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

Comissão Editorial:
Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Glaucia Escalier Braga, Joana Horst,
Maria Ângela Bulhões, Mariana Hollweg Dias e Otávio Augusto Winck Nunes

Colaboradores deste número:


Álvaro Olmedo, Ana Maria Gageiro, Luis Fernando Lofrano de Oliveira,
Maria Lúcia Muller Stein e Comissão de Aperiódicos

Editoração:
Jaqueline M. Nascente

Consultoria linguística:
Dino del Pino

Capa:
Clóvis Borba

Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem
por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos
teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas
e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa,
a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições
científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

Associação Psicanalítica de Porto Alegre


Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS
Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922
E-mail: appoa@appoa.com.br - Home-page: www.appoa.com.br

R454

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação


Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -

Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http://
www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em outubro 2015. Tiragem 500 exemplares.

Revista 47.indd 2 28/10/2015 14:15:05


CLÍNICA À FLOR DA PELE

Revista 47.indd 3 28/10/2015 14:15:06


Revista 47.indd 4 28/10/2015 14:15:06
SUMÁRIO

EDITORIAL .................................... 07 Amor ao pai


Love to the father
TEXTOS Gerson Smiech Pinho .................. 123
Inibição e compulsão:
duas faces do excesso Jogadores vorazes
Inibition and compulsion: two faces of excess Hungry Gamers
Ana Costa ............................................ 09 Paulo Gleich ................................ 136
As aparências enganam? O atendimento de uma família:
Can looks be deceiving? da privatização do dano à
Otávio Augusto Winck Nunes .............. 19 palavra e ao efeito da escrita
Care of a family: from damage privatization
A impossibilidade de habitar to the word and the effect of the writing
The impossibility of dwelling Jorge Broide ................................ 148
Fernanda Pereira Breda ...................... 30

Só que não: do impossível ao interdito ENTREVISTA


Except that not: from the impossible to the interdicted Freud, nova versão
Maria Ângela Bulhões ...................... 41 Freud, new version
Elisabeth Roudinesco ................. 155
Lol V. Stein: do deslumbramento
à devastação
Lol V. Stein: from ravishing to devastation
RECORDAR, REPETIR,
Vanessa Brassier ................................. 48 ELABORAR
Introdução do narcisismo
Ana, Antígona e Diotima: Introduction to narcissism
três mulheres entre dois amores Sigmund Freud ................................ 172
Ana, Antigone and Diotima:
three women between two loves
Luciana Brandão Carreira ................... 70
VARIAÇÕES
O despertar do feminino Os números imaginários de Lacan
The imaginary numbers of Lacan
no enredo analítico
The female awakening in the analytical plot
Ligia Gomes Víctora .................... 194
Denise Maurano .................................. 85
Freud na tabacaria
Ideogramisteria Freud at the tobacconist
Ideogramistery Michael Plastow ........................... 203
Elaine Starosta Foguel ...................... 100

Corpo à mostra:
ecos do dizer no corpo
Body exposed: echoes of saying in the body
Manuela Lanius ................................. 112

Revista 47.indd 5 28/10/2015 14:15:06


Revista 47.indd 6 28/10/2015 14:15:06
EDITORIAL

F reud a partir de sua prática clínica, em suas primeiras formulações, se


interrogava sobre o sintoma, assinalando o corpo como lugar privilegiado
de apresentação do sofrimento psíquico. Propunha que corpo e psiquismo
encontravam-se unidos de tal forma que não seria possível estabelecer uma
clara fronteira entre eles. Temos assim essa estranha conjunção/disjunção
entre campos heterogêneos, corpo e discurso, mobilizados pelo desejo.
Jacques Lacan, a partir dos anos 50, retomou as elaborações freudianas
e propôs sensíveis e marcantes avanços a elas. Ao formular que o “inconscien-
te é estruturado como uma linguagem”, sustentado num discurso, reorientou
a prática psicanalítica, que encontrava-se marcada pela clínica das relações
de objeto, para a clínica do significante. É aí que se especifica a posição ética
da psicanálise, na qual o corpo, tomado no campo dos significantes, difere do
orgânico para dizer da relação singular do sujeito com o desejo e o gozo.
Tanto Freud quanto Lacan nos deixaram, como legado, a articulação
dos campos do sujeito e do Outro. Então, como na clínica psicanalítica ope-
ramos com essas articulações? Na medida em que, atualmente, somos con-
frontados com uma lógica que cada vez mais tenta minimizar a dimensão
psíquica do sofrimento e da singularidade subjetiva?
A clínica psicanalítica, apoiada na livre associação, vai na contracorren-
te da massificação de soluções generalistas preconizadas pelo discurso so-
cial. A associação livre foi o preceito fundamental, encontrado por Freud, para
chegar a essa formulação. Dar livre curso à fala é uma forma de se abster de
prescrever soluções preconcebidas aos sintomas, na medida em que coloca
em causa a ética do desejo.

Revista 47.indd 7 28/10/2015 14:15:06


Editorial

Não seria esta a maior herança freudiana, permitir que sua práxis psica-
nalítica seja reinventada a cada analisante, e dessa forma relançar a cadên-
cia de abertura e de fechamento do inconsciente?
Os trabalhos aqui publicados se propõem a avançar na articulação entre
o sintoma e o gozo, atrelados ao discurso social, conduzindo-nos a pensar no
sexual, no feminino, e nos transbordamentos do corpo daquilo que excede ao
registro simbólico.
Nesse sentido, a atualidade da psicanálise torna-se causa e consequên-
cia de nossas interrogações.

Revista 47.indd 8 28/10/2015 14:15:06


Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.09-18, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS
INIBIÇÃO E COMPULSÃO:
DUAS FACES DO EXCESSO1

Ana Costa2

Resumo: Este artigo busca atualizar as leituras freudiana e lacaniana a propósito


das formações clínicas de inibição, angústia e gozo. Situa esses elementos na
constituição do corpo a partir da referência aos discursos. Traz contribuições de
Giorgio Agamben, para ampliar a leitura que a psicanálise faz do laço social.
Palavras-chave: inibição, compulsão, angústia, corpo, discurso.

INHIBITION AND COMPULSION: TWO FACES OF EXCESS


Abstract: This article searches an update of Freud and Lacan readings, about
the clinical formations of inhibition, anguish and joy. Situate those elements in the
constitution of the body, in its reference of the speeches. Brings an contribution of
Giorgio Agamben, to expand the psychoanalysis reading of the social bond.
Keywords: inhibition, compulsion, anguish, body, speeches.

1
Trabalho apresentado na Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e Discurso em Psicanálise, no-
vembro de 2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA; Pro-
fessora do PPG em Psicanálise da UERJ. Autora de diversos livros: A ficção de si mesmo (Cia.
De Freud, 1998); Corpo e escrita (Relume-Dumará, 2001); Tatuagens e marcas corporais (Casa
do Psicólogo, 2003); Sonhos ( Jorge Zahar, 2003); Clinicando ( APPOA, 2008); Litorais da psica-
nálise (Escuta, 2015). E-mail: medeirosdacostaanamaria@gmail.com

Revista 47.indd 9 28/10/2015 14:15:06


Ana Costa

P arto do princípio que situa uma junção corpo/discurso. Nesse sentido, o


discurso, como laço social, afeta a formação de sintomas. Mas não é pos-
sível fazer uma relação causal entre esses termos: discurso e formação de
sintoma. A causa é sempre perdida, como diria Lacan. Logo, as abordagens
que fazemos do laço social não seguem o princípio de uma busca de rela-
ções causais. Outro elemento que me interessa destacar neste preâmbulo
diz respeito à constituição de novos sintomas. Continuo pensando, numa via
freudiana e lacaniana, que a neurose obsessiva foi a última novidade clínica
até aqui. Isso não significa dizer que as apresentações dos sintomas neuró-
ticos – por exemplo – não sofram os efeitos das distintas formações discursi-
vas, que inscrevem os valores de circulação social, resultantes da inscrição
do significante fálico. Dito isso, quero me deter em algumas facetas da clínica
contemporânea. É desde esses princípios que me proponho a abordar o tema
deste trabalho.
Inibição e compulsão são duas formações clínicas em que podemos re-
conhecer o excesso. Já em Freud ([1925]1926/1973) surge a relação com
a inibição em termos de excesso de excitação. O excesso também é reco-
nhecível na compulsão, mas seu efeito é oposto em termos do movimento.
Evoco, aqui, um eixo proposto por Lacan ([1962-63]2005) no seminário da
angústia, no qual ele compunha uma relação entre os termos “dificuldade” e
“movimento”.

Nessa composição, a inibição situa-se no ponto zero, de menor dificul-


dade e movimento. Já a angústia ocupa o outro extremo, o que coloca uma
relação direta com as diferentes atuações, entre elas a compulsão. Esses
eixos articulam os três termos – inibição, sintoma e angústia – situando suas
especificidades, aproximações e diferenças.
10

Revista 47.indd 10 28/10/2015 14:15:06


Inibição e compulsão: duas faces do excesso

Algo que chama a atenção no texto freudiano, Inibição, sintoma e an-


gústia Freud ([1925]1926/1973), é a dificuldade que ele tem em diferenciar
inibição e sintoma. Temos sua clássica colocação de que a inibição não é
resultante do recalque, portanto não compõe uma formação substitutiva (um
sintoma), sendo uma restrição de uma função do eu. Já Lacan tem uma colo-
cação ao mesmo tempo interessante e enigmática: a inibição é o sintoma no
museu. O que faz o museu é retirar o objeto de circulação, numa preservação
do objeto do gasto que a circulação no discurso provoca. Já voltarei a essas
questões.
Se tomarmos esses eixos, reconheceremos que inibição e angústia si-
tuam dois extremos, que talvez possam ser pensados como os limites do
sintoma. Neste caso, eles se constituem como limites de arranjos estruturais.
Dizendo rapidamente: se, nas estruturas neuróticas, a formação do sintoma
é uma forma de inscrição singular do referente fálico, inibição e angústia for-
çam os limites desse arranjo, situando os extremos das estruturas. Assim,
entraríamos na suposição de que, de alguma maneira, eles se expressam em
momentos de crise, e que desarranjam a sustentação que o sintoma busca
constituir. Em que momentos privilegiados de crise a inibição aparece? Ela
surge em momentos de interpelações fálicas, o que implica o movimento. Ou
seja, quando o sujeito precisa bancar a relação entre valor e linguagem, num
ponto em que encontra o furo da estrutura, onde precisa se situar por relação
à castração. Destaco principalmente a passagem adolescente, em que ve-
mos mais claramente essa relação entre o corpo e a restrição do movimento,
própria da inibição. Assim, os extremos inibição/compulsão nos trazem di-
retamente ao tema que estamos tratando na jornada, que implica os efeitos
corporais dos limites dos discursos. Para tratar disso, quero inicialmente fazer
uma distinção que me ajuda, entre corpodiscurso e corpolinguagem:
– corpodiscurso: a forma como se constitui o semblante – a partir do sig-
nificante fálico – no laço discursivo. Isso quer dizer, como se constituem e se
movimentam os valores nos laços discursivos, o que vai implicar o que temos
à disposição como alimento para a fantasia. Nesta via, lidamos diretamente
com o âmbito do laço social;
- corpolinguagem: aqui temos a singularização do significante fálico na
constituição do sintoma. Ou seja, os efeitos da transmissão da linguagem,
na sua singularidade, a cada um, no afetamento do corpo, pela forma como
o mesmo é tocado pulsionalmente na sua constituição, que implica voz,
olhar, etc. – o campo dos objetos pulsionais – bem como a relação singular
ao traço unário, que implica as formações do inconsciente.
Essa distinção me interessa porque diz como se articulam sintoma e for-
mações do inconsciente nas diferentes estruturas discursivas. É uma separa-

11

Revista 47.indd 11 28/10/2015 14:15:06


Ana Costa

ção bastante aproximativa e serve somente como forma de indicar que temos
formações clínicas que não articulam o corpolinguagem ao corpodiscurso,
muitas vezes sobrepondo e confundindo esses termos, como na psicose. O
campo de negociações em que esses termos são articulados é o corpo, de
uma maneira muito interessante, pelo pulo da ilusão que o imaginário permi-
te. Do lado do imaginário temos todo um campo de construções, em que o
amor e as identificações ordenam. O que acontece se o amor entra em pane?
Do lado da psicose, o sujeito põe o corpo a trabalhar, na tentativa de reconsti-
tuição do baque especular. Posso dar um exemplo que acho interessante: um
paciente trabalhava o corpo incessantemente, num giro de caminhar com-
pulsivo em volta do estádio do Maracanã3. Por meio desse giro, ele refazia o
furo que está no centro do estádio, ao mesmo tempo em que ele ia destruindo
alucinatoriamente as versões fálicas da cidade: o Cristo Redentor, o Pão de
Açúcar, etc. A cada giro, um deles era destruído.
Feitas essas distinções, quero voltar à inibição e seu surgimento na ado-
lescência. Já temos trabalhos suficientes com o tema da adolescência, que
situam a necessidade da reconstituição do espelho pela entrada em causa
da referência sexuada, o que implica o reposicionamento da versão fálica. A
referência sexuada diz respeito não somente à sexualidade polimórfica da in-
fância, mas à entrada em causa de uma escolha, em que está implicada essa
binaridade ilusória do ser, como homem ou mulher. Sabemos que existem
muitas versões que escapam dessa binaridade, reconstituindo um polimor-
fismo, mas isso não significa que escapem do efeito implicado – enquanto
corpodiscurso – da posição sexuada como uma escolha. Situo, aqui, a esco-
lha sexuada como correlativa da escolha do sintoma: é uma escolha forçada.
Assim, a inibição na adolescência diz respeito a essa retração no movi-
mento, como efeito do afetamento do corpo. É uma forma de lidar com o ex-
cesso num momento de ruptura do espelho enquanto suporte representacio-
nal. Sabemos da importância do amor dos iguais nesse momento. É quando
se dá a reconstituição de um corpodiscurso e a possibilidade da produção –
ao mesmo tempo em que se dá seu velamento – do furo pelo recorte de suas
bordas. Digamos que rituais, tatuagens, vestes, academia, hábitos alimen-

3
Este exemplo foi trabalhado por Regina Cibele Jacinto, na tese Corpo e psicose: impasses e
sustentações, em 2014.

12

Revista 47.indd 12 28/10/2015 14:15:06


Inibição e compulsão: duas faces do excesso

tares fazem a função de correr em volta do Maracanã, situado no exemplo


anterior. Temos tanto esses elementos externos, que sustentam/constrangem
os excessos corporais, bem como efeitos inibitórios sintomáticos, que Freud
denominou de diques contra o incesto. No texto Tres ensayos para una teoria
sexual, Freud ([1905]1973) nomeia como diques tanto a náusea e a frigidez
histéricas, quanto os rituais defensivos obsessivos.
Aqui entra uma discussão importante implicada na passagem adoles-
cente – que tenta articular corpolinguagem/corpodiscurso – no que diz res-
peito à indagação que precisamos fazer sobre o que podemos denominar
interdição do incesto nos nossos laços contemporâneos. Sabemos que tanto
a antropologia, quanto a proposição freudiana de Totem y tabu ([1912]1973),
não situam o incesto no campo das relações ditas naturais, e, sim, relativo
ao campo da interdição; interdição que não se confunde com as legislações
e construção de leis, mas nos efeitos de manutenção da castração simbólica:
esse furo estrutural. Assim, a inibição na adolescência é efeito no sujeito de
ele ter chegado na borda do discurso e não ter dispositivos para cruzá-lo,
para velar o furo com a sustentação do sintoma. Logo, o sintoma no museu
me parece ser relativo a isso: uma retração do corpo em relação às possibili-
dades de circulação fálica – um dique – pela condição iminente de realização
do fantasma. O que significa de o sujeito ver-se confrontado muito diretamen-
te com a condição de objeto no fantasma originário, que diz de uma posição
incestuosa, relativa ao prolongamento corpo/Outro. Incesto, neste sentido,
diz respeito ao sujeito não conseguir se valer de um traço que o situe no cam-
po dos valores, produzindo um retorno ao corpo.
Quanto ao tema da compulsão, quero apresentá-lo trazendo o exem-
plo de um filme, que permite uma apresentação interessante da questão,
situando a compulsão na atividade sexual. Trata-se de Ninfomaníaca4, que
considero o melhor filme de Lars von Trier. Nele, a personagem se vê inter-
pelada a um desenfreamento da atividade sexual. Em exemplos semelhantes
se reconhecem dois elementos básicos: quase sempre a passagem direta do
prazer à dor, sendo que o prazer não põe um ponto, o que faz com que o ór-
gão esteja sempre em ereção (no caso masculino), ou mesmo em excitação,
no caso da mulher. Outro elemento importante é a impossibilidade de uma
relação de amor.

4
Zentropa Entertainments (Produtora) &Vontrier, L. (diretor), (2014). Ninfomaíaca. Alemanha,
França, Dinamarca, Belgica.

13

Revista 47.indd 13 28/10/2015 14:15:06


Ana Costa

Acompanhemos um pouco a personagem de Ninfomaníaca. Ela me ser-


ve para pensar no tema da clivagem, que conhecemos desde Freud como
a convivência de representações contraditórias, sem que tenha efeito uma
sobre a outra. No caso da personagem, a clivagem situou: de um lado o
amor excessivo ao pai e, de outro, o gozo sexual. Desde a adolescência, a
personagem atuava as buscas de sexo, mas espelhada em uma amiga. Até
que encontra o amor, mas perde o gozo sexual. Na maturidade, sua busca
se dirige ao gozo da flagelação, em que reencontra o prazer, mas perde o
enlace amoroso, incluindo a relação ao filho que teve com o homem com o
qual buscou o amor.
Trago este exemplo porque parece que explicita um dos destinos da
questão de uma compulsão, quando ela surge e se estabelece a partir da
adolescência. Em primeiro lugar, poderia perguntar-se por que o amor ao pai
– da personagem do filme – não a levou a uma histeria, na medida em que
era companheira de seu pai. Podemos pensar que essa posição deriva do
momento em que ela tem um orgasmo olhando seu pai morto. Ali se processa
um curto-circuito entre traço de identificação e objeto pulsional. A eleição pelo
gozo na flagelação advém desse momento.
Reconhecemos, nas questões desenvolvidas aqui, a insistência de al-
guns elementos que parecem resultar dos efeitos contemporâneos da produ-
ção corpodiscurso. Particularmente, o exemplo de Ninfomaníaca me parece
paradigmático, na reunião de elementos que clinicamente podemos encontrar
na constituição de uma neurose obsessiva, situando a perversão em seu ho-
rizonte. O ponto principal incide na clivagem sexo/amor, que vai importar so-
bremaneira na dupla demanda que a personagem (Joe) faz a seu interlocutor
(Seligman): de início a demanda de censura, que corresponde ao pedido de
ser batida, no gozo masoquista; de outro lado, a demanda de amor cortês,
de que o corpo se suporte das letras de um saber deserotizado, como toda
a apresentação de saber enciclopédico de Seligman. E aqui sublinho uma
questão sutil que me parece necessária para compor essa análise. Será que
quando Seligman minimiza as experiências de Joe, interpretando-as do lado
de um saber enciclopédico, ele se posiciona num lugar diferente de corres-
ponder à demanda? Com esta colocação adianto uma questão importante,
que faz parte da dificuldade situada na demanda implicada na fala da per-
sonagem Joe. Seligman se posiciona, inicialmente, do lado de um saber de
mestre, dando sentido enciclopédico às construções de Joe. Isso não se di-
ferencia da posição que ele assume ao final, em que a assedia sexualmente.
São dois polos igualmente implicados na demanda, responsável pela cliva-
gem relativa ao saber de mestre, que traz em si dois impossíveis: ou bem a
letra enciclopédica sem corpo, ou bem o puro gozo corporal fora da represen-
14

Revista 47.indd 14 28/10/2015 14:15:06


Inibição e compulsão: duas faces do excesso

tação. Esses são dois impossíveis, bem assinalados por Lacan ([1963]1998)
em Kant com Sade.
Tomando elementos de uma clínica do sintoma, podemos situar que a
clivagem amor/sexo é atuada no encontro dos personagens: o assexuado
Seligman, que tinha renunciado ao sexo; e o corpo escravo do sexo, na im-
possibilidade de amar, em Joe. Digamos que Joe padece da passagem do
pai ao mestre – a busca de um gozo do corpo pela fustigação – no momento
em que goza do pai morto. É nesse ponto – do enlace do gozo com a morte
do pai – que se dá o encontro sexo/morte, e que seu exercício sexual fica
submetido a esse encontro. O reencontro do prazer somente na fustigação é
completamente convergente com esse momento. Assim, para a não resposta
à duplicidade da demanda de Joe, Seligman teria de situar-se não somen-
te na abstinência do sexo, mas também na abstinência incidindo sobre seu
saber: a necessidade da produção de um furo no saber e não um saber de
mestre.
Este exemplo me leva a voltar à indagação sobre como se dá a cons-
tituição da interdição, o que implica fazer a pergunta sobre o que é inces-
to; pergunta necessária para a constituição corpodiscurso, corpolinguagem.
Lembro, aqui, uma passagem dos quatro discursos, em que Lacan ([1969-
1970]1992) coloca:

[...] há algo de completamente radical – é a associação, no que está


na base, na própria raiz da fantasia, dessa glória, se é que posso
me exprimir assim, da marca. Falo da marca sobre a pele, onde se
inspira, nessa fantasia, o que nada mais é que um sujeito que se
identifica como sendo objeto de gozo. Na prática erótica que estou
evocando, a flagelação, ...o gozar assume a própria ambiguidade
pela qual é seu plano, e em nenhum outro, que se percebe a equi-
valência entre o gesto que marca e o corpo, objeto de gozo. (p.51)

Logo, temos, aqui, a relação entre a produção da marca no corpo e o
que comemora “uma irrupção de gozo”, na referência feita por Lacan nes-
se seminário. Encontramos no tema da compulsão algo que o autor definiu
como entropia, na abordagem dos discursos. Ou seja, na relação ao discurso
do mestre, a perda de gozo se expressa como insistência de um mais de
gozar, na medida em que o gozo é relançado numa insistência ao infinito sem
pausa, como extensão do corpo.
Essa passagem do ensino de Lacan nos leva a situar algumas questões
relacionadas a outras disciplinas. No tema dos discursos, interessa a posição
do mestre como agente no laço social e isso, no que nos concerne, diz res-

15

Revista 47.indd 15 28/10/2015 14:15:06


Ana Costa

peito à relação entre ciência e capitalismo. Destacaremos um breve trânsito


nos a priori desse tema.
A inscrição do referente fálico no laço social situa uma perda de gozo que
já foi conceituada de diferentes formas, desde a psicanálise até a antropologia.
Nesta última, encontramos a referência à interdição do incesto como o elemen-
to limite, que arranca o humano do campo da natureza. Tanto Freud quanto
Lacan se interessaram pela questão da interdição do incesto, num diálogo com
a antropologia, respondendo a determinadas questões de seus tempos. No
campo da psicanálise, podemos reconhecer como aparece o corpo do discur-
so, na medida em que seus efeitos se expressam na invenção necessária dos
suportes corporais, para dar conta de sua desnaturação pela linguagem. Como
situar essas questões na atualidade?
Aqui, vale a pena trazer outro elemento que pode parecer extemporâ-
neo, mas que diz respeito às condições nas quais se processa o trabalho de
marcar o corpo: a questão do sagrado, como uma das faces da interdição.
Nas mais distintas referências religiosas, esse tema se desdobra em rituais
de purgação e sacrifício. Evoco uma referência freudiana, situando a neuro-
se obsessiva como uma religião privada, o que nos dá uma indicação que
pode nos orientar, sobre uma determinada inflexão do discurso, que guinda
essa construção ao centro de formações sintomáticas. Assim, destaco dois
elementos que fazem parte dessa clínica e que podem nos ajudar a pensar:
de um lado, o obsessivo não sabe brincar, ele leva o gozo muito a sério. De
outro, a clivagem amor/sexo como correlativa da separação sagrado/profano,
mantendo a condição de purgação e sacrifício em diferentes rituais privados:
rituais sem sentido de que as expressões da obsessão se alimentam.
O tema do sagrado é interessante. Originalmente, ele faz um trânsito
moebiano entre o puro e o impuro, entre o elevado e o degradado. Surge
como uma linguagem que tenta interpretar a interdição do incesto – essa
perda originária de gozo que destacamos antes. O sagrado tentava inserir
um limite entre o humano e o domínio dos deuses, instaurando a dimensão
do sacrifício como possibilidade de representar esse limite. As mudanças nos
laços discursivos deram outros contornos a esse tema. No entanto, tal como
Freud desenvolveu em Totem y tabu ([1912]1973), como também testemu-
nham os sintomas na clínica contemporânea, o tabu do contato, os rituais,
dimensões inusitadas do sacrifício, não desapareceram. Ou seja, os estabe-
lecimentos de funções simbólicas e contratos sociais não foram suficientes
para substituir a necessidade de sacrifício e da produção de marcas no cor-
po, em qualquer laço discursivo.
Estas reflexões se aproximam da proposição de Giorgio Agamben
(2007) sobre o “homo sacer”, que contém essa duplicidade de sagrado e
16

Revista 47.indd 16 28/10/2015 14:15:06


Inibição e compulsão: duas faces do excesso

maldito, que Freud também abordou. Aqui referimos rapidamente as propo-


sições, trabalhadas pelo autor, no tema da profanação, servindo para situar
outra leitura da interdição do incesto, que pode ser colocada em causa hoje.
Esse autor – do campo da filosofia política – trabalha essa questão a partir da
proposta de Walter Benjamin, sobre o capitalismo como uma religião. Assim,
ele propõe que historicamente a esfera do sagrado é o estabelecimento de
uma separação pela via do sacrifício, questões que se mantêm até hoje e que
fazem retorno, a partir dos efeitos do discurso capitalista. O sacrifício faz pas-
sar um elemento de uma esfera a outra – do profano ao sagrado – mantendo
uma separação necessária entre os dois campos. Se o que foi separado per-
manece na circulação entre os humanos, ele pode produzir contágio.
Do ponto de vista da psicanálise, é possível situar que se trata de uma
forma de representação social do que seria uma separação, de algo que
sai do corpo: as condições em que se estabelece a representação de uma
perda de gozo. Encontramo-nos, aqui, também, com a proposição de Lacan
constante do seminário A angústia ([1962-1963]2005), na relação ao objeto
a que cai, fundando o corpo numa possibilidade de circulação. Sabemos
que para que o corpo se suporte como elemento de circulação – corpodis-
curso – o sujeito precisa fazer algo com a marca, com a irrupção de gozo
que, como Lacan propõe, se comemora a partir do traço. Desse lado, temos
a colocação do autor de que o traço unário se marca como tatuagem: um
elemento diferencial, mas que pode permanecer na ordem do signo.
Agamben propõe que é preciso a profanação para que o objeto se si-
tue na circulação entre os humanos, ou seja, a separação do sagrado. Aqui
podemos nomear o sagrado como algo do corpo, que as religiões tratam de
interditar. Assim, se não se processarem as representações sociais de uma
separação – uma interdição –, essa referência ao objeto não o singulariza. Na
produção capitalista, o consumo do objeto o naturaliza, não diz de um objeto
separado do sagrado – podemos acrescentar: separado do corpo. O consu-
mo destrói o objeto, sem verdadeiramente situá-lo numa relação diferencial.
Agamben propõe que a profanação faz do objeto um elemento de circulação
simbólica, e dá o exemplo do jogo infantil para interpretar o que seria uma
profanação. O jogo desnaturaliza a função social do objeto, tomando seu
traço para fazer outra coisa: de uma caneta, um avião, por exemplo. E diz: a
profanação do improfanável – situada no objeto de consumo – é uma tarefa
política.
Penso que não é de qualquer maneira que se procede ao jogo, como
esse elemento de circulação imaginário/simbólico fundado na infância: é na
constituição de um novo amor. A condição de que o jogo – o brincar – não
recoloque o objeto no museu está diretamente ligada à constituição do amor,

17

Revista 47.indd 17 28/10/2015 14:15:06


Ana Costa

naquilo que este pode construir as condições de um endereçamento. A lite-


ratura faz isso maravilhosamente porque, ao ficcionalizar, produz uma nova
forma de amor, na demanda de leitura. Bem, talvez a psicanálise, confiando
que a transferência funda o inconsciente, possa posicionar-se também aí.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
FREUD, S. Inibición, sintoma y angustia (1925[1926]). In: ______. Obras completas.
Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.
FREUD, S. Totem y tabu [1912]. In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nue-
va, 1973.
FREUD, S. Tres ensayos para una teoria sexual [1905]. In: ______. Obras completas.
Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.
LACAN, J. O seminário, Livro 10: A angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LACAN, J. O seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janei-
ro: Zahar, 1992.
LACAN, J. Kant com Sade [1963]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Recebido em 29/03/2015
Aceito em 29/06/2015
Revisado por Cristian Giles

18

Revista 47.indd 18 28/10/2015 14:15:06


Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.19-29, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS
AS APARÊNCIAS ENGANAM?1

Otávio Augusto Winck Nunes2

Resumo: O presente texto trabalha, a partir das obras de Freud e Lacan, três
momentos distintos, mas não excludentes, das proposições psicanalíticas sobre
o corpo em sua relação com os registros imaginário, simbólico e real. Apresenta
uma vinheta clínica para ilustrar a articulação dos registros.
Palavras-chave: corpo, real, simbólico, imaginário.

CAN LOOKS BE DECEIVING?


Abstract: This text Works, from the writtings of Freud and Lacan, the three different
times, different but not excludents, of psychoanalytic propositions on the body
in its relationship with the imaginary symbolic and real registers. It presents a clini-
cal vignette to illustrate the articulation of registers.
Keywords: body, real, simbolic, imaginary.

1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: Discursos à flor da pele, abril de
2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Insti-
tuto APPOA; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento/UFRGS; Mestre em Psicanálise e Psi-
copatologia/Université Paris 7. E-mail: otavioaugustowincknunes@gmail.com

19

Revista 47.indd 19 28/10/2015 14:15:06


Otávio Augusto Winck Nunes

“- Pô meu, ficou com um cara ontem?


- E aí, o que é que tem?
- Como o que que tem? É um cara!
- E aí, é que nem mulher, só que é
homem!”

Do engano

C omeço a partir da seguinte constatação: antes de tudo, o engano é uma


condição de todos nós. Então, no campo da psicanálise, como trabalha-
mos com o que engana, com o que nos enganamos? E de que aparência
tratamos?
Se seguirmos a pista freudiana, grosso modo, poderíamos dizer que
o sintoma é um engano, na medida em que é um recurso encontrado para
solucionar um conflito. Além dessa pista, as expressões que utilizamos for-
muladas por Freud já indicam de algum modo o engano: formação de com-
promisso, psicologia das profundezas, tornar consciente o inconsciente. Ou
mesmo, a divisão proposta por Lacan entre enunciado e enunciação, já indi-
ca, como as anteriores, formas encontradas para dizer que estamos tomando
uma coisa por outra, que há, de alguma maneira, uma substituição. Com isso
dizemos: a verdade está em outro lugar, a verdade está na outra cena. Então,
o que aparece, o que engana, é sustentado pelo que não é e não está ao
alcance dos olhos e, por vezes, nem dos ouvidos.
Tal como Narciso, nos enganamos com a imagem que vemos no lago/
espelho que é o mundo. É uma chave interpretativa frequentemente utilizada
com que recobrimos através do amor ou do ódio, como diz a canção3, a apa-
rência que nos leva ao engano. Pode não ser a única, mas é difícil dispensá-
la.
Ainda uma breve consideração. Não fazemos, como humanos, inúme-
ras coisas tendo o corpo como modelo? Os apetrechos, ferramentas, utensí-
lios, brinquedos que construímos têm como modelo nosso corpo. Inspiramos-
nos no mecanismo do seu funcionamento, nas percepções, nas articulações.
Não prescindimos do corpo, e nos utilizamos dele como modelo a toda ter-

3
“As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam, porque o amor e o ódio se irmanam
na fogueira das paixões”, cantou Elis Regina, na bela e conhecidíssima canção de Tunai e Sergio
Natureza. Tomar alguma coisa por outra, substituir um elemento, ou um objeto, por outro, não
chega a ser privilégio ou prerrogativa de ninguém. Melhor seria dizer que estamos cotidianamen-
te envolvidos pelas aparências e somos, por elas, enganados.

20

Revista 47.indd 20 28/10/2015 14:15:06


As aparências enganam?

ra. Mas, não só o tomamos como exemplo. Para lembrar. Inventamos uma
parafernália de coisas como forma de transpor as fronteiras do corpo, seja
para potencializá-lo ou para poupá-lo. Numa medida, tomamos nosso corpo
como modelo, para, noutra, estendê-lo ao mundo. O corpo, por assim dizer,
funciona como organizador. Não é isso que interroga? Em que medida nos
enganamos com o corpo? Ou somos por ele enganados?
Então, sabemos bem que a dimensão do corpo está presente no engano
da aparência que, aliás, o corpo se presta para um sem número de questões.
Estamos sempre às voltas com ele, numa relação em nada pacífica. Assim,
se tem procedência que o laço social espetaculariza a vida, o corpo tem sido
o protagonista desse espetáculo, nele revela-se em muito o nosso mal-estar.
O corpo está presente desde sempre na psicanálise. Não só em função
da histeria, mesmo que tenha sido com ela que ficou mais evidente. Na ver-
dade, na escuta clínica atribui-se ao corpo um lugar central. Mas, com o pas-
sar do tempo, talvez se tenha dado pouca relevância conceitual, parecendo
um primo pobre e distante, de quem temos vagas notícias, mas sobre o qual
temos, ainda, muito a produzir.
Dores, inibições, impotência, enxaquecas, insônia, bulimia, anorexia, to-
xicomania, cortes, fobias, enfim, quais sintomas prescindem do corpo?
Mas, de que corpo falamos em psicanálise?
Para abordar questões relativas ao corpo recorro, então, a três momen-
tos da obra de Lacan, em sua releitura de Freud, no que ele contribuiu para
nos auxiliar nessa elaboração. Se não encontramos em Freud, com relação
ao corpo, uma precisão conceitual, mesmo que ele se preocupasse com o
que lhe dizia respeito, Lacan foi mais contundente nesse aspecto, fazendo
referências bem precisas.
Tomarei três momentos da obra de Lacan que podem nos ajudar a
pensar nas questões acerca do corpo: o primeiro momento do corpo é re-
lativo ao estádio do espelho (Lacan, [1949]1998); o segundo, num desdo-
bramento do estádio do espelho, aponta o que Lacan ([1962-1963]2005)
trabalha no seminário A angústia, em que o corpo aparece, também, como
elemento fundamental; o terceiro momento, sem dispensar os anteriores,
destaca o que Lacan desenvolve principalmente em seus últimos seminá-
rios, fundamentalmente no O sinthoma ([1975-1976]2007), resultando no
que vou retomar da conhecida frase freudiana: a anatomia é destino.

O corpo no estádio do espelho



O estádio do espelho é um momento fundamental da constituição sub-
jetiva. É próprio ao momento de sua formação que uma antecipação psí-

21

Revista 47.indd 21 28/10/2015 14:15:06


Otávio Augusto Winck Nunes

quica ocorra, produzindo, então, a aquisição pelo infans da unidade corpo-


ral. O infans, a criança ainda sem utilizar a linguagem, como refere Lacan
([1949]1998), ao passar por essa experiência, será capaz de, através da
imagem produzida no espelho plano, o campo do Outro, jubilar-se por não
se ver espedaçada. Trata-se, portanto, de uma operação extremamente im-
portante. É por meio da captura dessa imagem no espelho que a criança se
aliena a uma imagem unificada, mesmo que prematuramente.
Ocorre que a constituição da imagem não se faz sem que o registro sim-
bólico interceda. O Outro não serve apenas como suporte especular. O Outro
primordial, a mãe, oferecerá também os elementos significantes necessários
para que esse momento inicial da constituição subjetiva aconteça.
A erotização do corpo, ou o mapeamento pulsional, serve, entre outras
coisas, para reunir os elementos necessários para se deixar de ser de um
Outro corpo, para se ter um corpo próprio, representado. Basta lembrarmos
expressões que ̶ cada vez que ouvimos alguém enunciar ̶ nos proporciona
uma nostálgica lembrança ― De quem é esse pezinho? De quem é essa
perninha? E essa barriguinha? São perguntas/afirmações que dispensam
respostas, pois situam, justamente, uma báscula.
O corpo narcísico se constitui propriamente da articulação entre o sim-
bólico e o imaginário. Podemos dizer, rapidamente, então, que esse corpo se
constitui pela relação do sujeito com o Outro. Isso foi um grande avanço da
teorização psicanalítica. O narcisismo é decorrente e se sustenta na relação
do sujeito com o Outro. Junto à constituição narcísica atrela-se, também, a
formação do eu. Vale lembrar uma conhecida passagem freudiana:

Assim, o Eu é sobretudo um Eu corporal, mas ele não é somente
um ente de superfície: é também, ele mesmo, a projeção de uma
superfície. Caso procuremos por uma analogia na anatomia, po-
demos equipará-lo ao “homúnculo cortical” dos anatomistas, que
se encontra de ponta-cabeça no córtex cerebral, os calcanhares
esticados para cima, olhando para trás e, conforme já se sabe,
tendo a área da fala ao lado esquerdo (Freud, [1923]2007, p.38-
39).

A vizinha do homúnculo, do eu, é a fala. A precisão de Freud é con-


tundente. Na nota de rodapé, diz Freud:

Isto é, em última instância, o Eu deriva de sensações corporais,


basicamente daquelas que afloram da superfície do corpo. Ele
pode ser considerado, então, como uma projeção mental da su-

22

Revista 47.indd 22 28/10/2015 14:15:06


As aparências enganam?

perfície do corpo, além de representar a superfície do aparelho


mental, conforme vimos acima (Freud, [1923] 2007, p.83).

Essa é a matriz segundo a qual o corpo inscreve o registro imaginário.


Mas, também, é certo que nesse momento o campo simbólico organiza, dá
os contornos. Imagem especular que sustenta o corpo, mas que é delimitada
pelo simbólico.
De um golpe só se atinge, ao menos, dois alvos: a construção do eu e
a delimitação do campo do Outro. Então, dois campos que são interdepen-
dentes.

A experiência do espelho é também portadora da identificação imagi-


nária, na medida em que o sujeito assume uma imagem que tem poder for-
mador/unificador. Então, nesse momento já está presente a possibilidade do
engano, o sujeito se transforma em sua imagem refletida, que o faz ser outro.
E, nesse aspecto, a irmandade do amor e do ódio se tornam mais evi-
dentes. Pois, o olhar da criança não é único na construção do narcisismo. É o
seu olhar que, ao passar pelo campo do Outro, lhe retorna. Então, o narcisis-
mo funda a imagem do corpo. Narcisismo infantil respondendo ao narcisis-
mo do Outro, dos pais. Ou seja, experiência carregada de fortes emoções,
permeada pelo tempero do amor e/ou do ódio. Experiências fundadoras e
fundamentais para a apreensão do chamado corpo próprio.
Uma ressalva: não nos enganemos com a aparente resolução a que
a experiência do estádio do espelho pode aludir. No campo da constituição
subjetiva estamos num primeiro momento em que tomamos o corpo como
representação.

23

Revista 47.indd 23 28/10/2015 14:15:06


Otávio Augusto Winck Nunes

O corpo no seminário A angústia

O seminário da Angústia ([1962-1963]2005) é momento privilegia-


do por Lacan, em sua obra, para trabalhar o objeto a, objeto causa de
desejo, em seus diversos aspectos, inclusive no que diz respeito ao
corpo.
Quando acompanhamos a leitura do seminário, já em suas primei-
ras aulas, Lacan apresenta uma pequena matriz de dupla entrada. Numa
delas, está o eixo do movimento e, na outra, o eixo da dificuldade. Situa,
então, o resultado do entrecruzamento dessas duas entradas, o efeito
que a angústia produz no corpo, seja o impedimento, o embaraço, o
acting-out, a passagem ao ato, entre outros. Em todos eles o corpo está
colocado. O movimento do corpo, de acordo com a maior ou menor di-
ficuldade, o colocará em causa, para tentar responder ao que produz a
angústia.
Mas, é verdade que neste seminário Lacan retoma questões de-
senvolvidas por Freud em Inibição, sintoma e angústia ([1926]2014).
Nesse texto, Freud apresenta algumas questões, mas centra especial
interesse no modelo de angústia frente à ameaça da castração, ou seja,
frente a uma perda. A angústia da castração levará, então, cada um a
se posicionar de forma diferente, produzindo os tipos de neurose como
fobia, histeria ou neurose obsessiva. É uma das vertentes do texto freu-
diano.
Mesmo que possa se evocar a castração como metáfora ao que ocorre
no corpo, está longe de ser nele efetivamente que a castração acontece, mas
obviamente o corpo sofrerá os efeitos da castração a que se refere Freud,
a castração simbólica. A angústia frente à ameaça de castração, poderia,
então, produzir um espedaçamento corporal, que romperia com a unidade
que a antecipação produziu no estádio do espelho, na medida em que coloca
em causa o Eu como garantia da unidade corporal, como se expressa muitas
vezes nas crises de pânico.
Outra vertente, que não exclui a anterior, diz respeito à angústia
como energia desligada. Neste caso, pode-se fazer uma retomada do
estádio do espelho. O fundamental que Lacan retira do estádio do es-
pelho é que nem todo investimento libidinal passa pela imagem especu-
lar; assim, nem todo corpo é libidinizado, ou representado. O que não
foi libidinizado não é representado, não é ligado, é situado como “- φ”
(menos phi, ver figura 2), uma falta, que, por incidir na imagem virtual,
no espelho plano que é campo do Outro, refere-se a uma castração
imaginária.
24

Revista 47.indd 24 28/10/2015 14:15:06


As aparências enganam?

Então, o “– φ” constitui-se como falta no campo imaginário, mesmo que


dessa falta não se tenha uma imagem correspondente no campo do Outro.
Assim, se algum dos objetos parciais (seio, fezes, voz, olhar) aparece para
preencher essa falta, há o prenúncio da angústia. Na expressão de Lacan:
“a falta vem a faltar” (Lacan, [1962-1963]2005, p.52). O recobrimento da
falta, por um objeto relativo ao corpo, é produtor de angústia.
Cabe notar que os objetos pulsionais/corporais que estão presentes nos
momentos de angústia são, no dizer de Lacan ([1962-1963]2005, p.257), am-
boceptores, ou seja, o sujeito e o Outro compartilham do mesmo objeto pul-
sional. O seio é da mãe e da criança. Quem larga o peito? O bebê ou a mãe?
Então essa presença do Outro no sujeito confere aos momentos de angústia
um caráter incestuoso, a presença do corpo do Outro no sujeito.
A angústia é energia não ligada e alusiva à falta de representação, in-
dicando um limite ao processo de imaginarização que incide sobre o corpo.
O significante, o representante da representação, não consegue fazer um
recobrimento tal que totalize o corpo. A angústia aparece como excedendo
ao significante. E se é verdade que a angústia excita o corpo, vale perguntar
se essa excitação é relativa a uma erotização ou não.
Se, no espelho, a imaginarização do corpo pode produzir engano, a an-
gústia não engana; pelo contrário, esgana o corpo. Assim, a busca por um
representante da representação, um significante, encontra não o representante
e, sim, um objeto, como resposta ao que se interpretaria como sendo a deman-
da do Outro, e com isso se produz gozo. A angústia não faz corpo representa-
do, mas deixa marcas sobre ele. Se, potencialmente, o momento do espelho
dá uma forma ao corpo, a angústia justamente coloca essa forma em causa.
Nesse sentido, me ocorreu a pergunta: seria o modelo que aparece nas
chamadas neuroses narcísicas (toxicomanias, bulimia, anorexia, border, etc.)
que colocam o corpo em causa, não é falho quanto ao diagnóstico justamente
por considerar que a questão envolvida se restringiria a um arranjo entre o
sujeito e o Outro para amenizar o impacto que a angústia produz? Não se-
ria precipitar-se em uma decisão diagnóstica quando há muito trabalho pela
frente ainda?

25

Revista 47.indd 25 28/10/2015 14:15:06


Otávio Augusto Winck Nunes

Anatomia é destino

A conhecida assertiva freudiana se prestou para inúmeras leituras. A que


recorro aqui diz respeito à que Lacan ([1975-1976]2007) faz referência no se-
minário O sinthoma. Nele, Lacan toma a anatomia não pelo que se interpreta
do corpo como unidade biológica, levando a distinção clássica entre homem
e mulher. Mas sustenta a anatomia pela vertente etimológica, em que ana é
“parte” e tome “cortar”. Assim, Lacan faz referência a são Tomás de Aquino
(por quem James Joyce babava, segundo Lacan, referência fundamental no
seminário referido) e nesse caso anatomia é corte, incisão. Nesse aspecto,
o instrumento que temos como analistas para cortar o corpo é o significante.
Então, retorna a pergunta: que corpo cortamos com a palavra?
Antes de chegar ao seminário O sinthoma, Lacan faz referência ao cor-
po no texto que ficou conhecido como Radiofonia ([1970]2003) decorrente
de uma entrevista4 que Lacan dá a uma rádio belga; ao responder sobre o
corpo diz:

Volto primeiro ao corpo simbólico, que convém entender como ne-


nhuma metáfora. Prova disso é que nada senão ele isola o cor-
po, a ser tomado no sentido ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o
ser que nele se apoia não sabe que é a linguagem que lho confe-
re, a tal ponto que ele não existiria, se não pudesse falar (Lacan,
[1970]2003, p.406).

O ser só passa a ter corpo próprio se o registro simbólico o isola e
nele se incorpora dando-lhe função. O fato de o corpo existir é por ser dito,
efeito de discurso. Como bem sabemos, o fato discursivo é que constrói a
realidade. Nesse aspecto, a ligação entre simbólico e imaginário, em que
encontramos o gozo do sentido, é necessária e revela sua importância.
Lacan é bem provocativo na sequência desse texto, dizendo que, quan-
to ao corpo, é secundário que ele esteja morto ou vivo; interessa, nesse caso,
o que dele fica. O simbólico é o incorpóreo que corporifica o imaginário. Mes-
mo que mortos, como cadáveres, permanecemos como corpse, corpo habi-

4
A colega Cristian Gilles trabalhou esse texto na Jornada de Abertura da APPOA: Quatro ensios
sobre o sexo, 2013, em Porto Alegre. Trabalho publicado na Revista da APPOA, n°43/44 – O
amor e a erótica, com o título O que os faz falar, homens e mulheres? p.81-87.

26

Revista 47.indd 26 28/10/2015 14:15:06


As aparências enganam?

tado pela fala, que a linguagem corpsificava. É a vida que está na linguagem
que se instala no corpo próprio.
Assim, a relação que estabelecemos entre corpo e linguagem através
do significante é tal que, mesmo que morra o corpo, não podemos matar o
significante. Para lembrar, conseguimos recalcá-lo, forcluí-lo ou desmenti-lo.
Essas são as operações relativas à castração que, como falantes, estão a
nosso alcance. Depois de marcados pelo significante, não nos resta alterna-
tiva, a não ser operar com ele.
Diz Lacan:

Quem sabe o que se passa no seu corpo? Eis aí alguma coisa ex-
traordinariamente sugestiva. Para alguns, chega a ser o sentido que
dão ao inconsciente. Entretanto, se há uma coisa que tenho articu-
lado desde o princípio com cuidado, é que o inconsciente nada tem
a ver com o fato de um monte ser ignorado quanto a seu próprio cor-
po. Quanto ao que se sabe ele é de natureza bem diferente mesmo.
Sabe-se um monte de coisas provenientes do significante (Lacan,
[1975-1976]2007, p.145).

Separtição falava Lacan no seminário da Angústia ([1962-1963]2005) ―


separação de uma parte ―, poderíamos dizer, objetos cedíveis. Separação
é perda, e não substituição, como nos referimos ao que nos enganamos to-
mando um objeto por outro. Precisamos nos separar dos elementos do corpo.
É a partir de uma perda necessária do sujeito em relação ao Outro que se
pode falar na constituição do corpo.
Lacan insiste:

Dizer que o corpo, seu corpo ele o tem. Dizer seu já é dizer que ele
o possui, como se fosse, naturalmente, um móvel. Isso nada tem
a ver com qualquer coisa que permita definir estritamente o sujeito
que, por sua vez, só se define de modo correto na medida em que
é representado por um significante junto a outro significante (Lacan,
[1975-1976]2007, p.150).

Utilizando-se dessa lógica, Lacan diz que estabelecemos uma relação


de exterioridade com o corpo, pois dizemos que temos um corpo. O verbo é
“ter”, o que dá, em relação ao sujeito do inconsciente, uma posição estran-
geira ao próprio corpo.
Então, nessa perspectiva, gostaria de trabalhar uma vinheta clínica que
foi muito ilustrativa da questão com o corpo.

27

Revista 47.indd 27 28/10/2015 14:15:06


Otávio Augusto Winck Nunes

Uma jovem menina de 16 anos, que chamo de Malala. Há três anos


começou a apresentar algumas dificuldades quando da passagem da puber-
dade para a adolescência, momento em que fica, pela primeira vez, com um
menino. Um beijo e depois daquele beijo, nada mais foi o mesmo.
É levada à análise por seu pai, pois ela acha que está ficando “louca”.
Se sente muito angustiada, seus pensamentos não param de condená-la.
Na aula, não consegue prestar atenção no que os professores dizem: “pare-
ce que eles falam outra língua: enquanto eu penso numa língua, eles falam
noutra, pensar noutra língua me deixa fora do que estão dizendo”. Malala é
estrangeira. Explica que, durante as aulas, fica pensando na outra língua, na
sua língua materna. Fala perfeitamente bem em português, praticamente sem
sotaque. A mãe está no país de origem. Os pais são separados. Na verdade,
ao longo de todo casamento, pouco viveram juntos, mas, após uma traição
do marido, a esposa oficializa a separação; desde então vivem em lugares
diferentes e distantes. Malala mora com o pai e com um irmão um pouco mais
velho, com quem não tem uma relação muito próxima. Fala muitas vezes de
como se sente duplicada: uma língua em cada “corpo”, se poderia dizer. Tem
um corpo fora, que fala outra língua. Um dia, na tentativa de especificar o
que sente, faz um desenho do seu corpo, fora dela, o corpo duplicado. Então,
ela se desenha, com muita destreza e precisão, e assinala veementemente
a lateralidade corporal, como mostra a imagem. Quando ela me mostra o
desenho fico muito surpreso, pois ela havia escrito esquerda e direita, sem
considerar a inversão que a imagem no espelho oferece. Pergunto como é
isso. Malala é vaga, imprecisa.

Esquerda Direita

Então, o desenho é muito interessante, pois evidencia uma questão que La-
can trabalha desde o início dos seus seminários. Malala toma o seu corpo como
real. A inversão que a imagem promoveria, quando recoberta pelo simbólico,
promovendo a separação dos homogêneos real e imaginário, não ocorre. Não
há a inclusão da dimensão dialética, que faria que o real pudesse ser mostrado
através do imaginário. Os registros do imaginário e do real não se separam.
28

Revista 47.indd 28 28/10/2015 14:15:06


As aparências enganam?

Então, Lacan diz que, nesses casos, só resta ao imaginário se despren-


der, cair fora, pois a imaginarização não funciona. O imaginário escapa, não
se enoda ao real e ao inconsciente/simbólico. Há um limite necessário que
impede que fique distinto o que aparece de homogêneo entre o real e o ima-
ginário. Se o inconsciente permite, não cumpre com sua função simbólica, o
imaginário cai fora.Para concluir, a conversa que contei no início, na virtuali-
dade da rua, evidencia duas vertentes. Podemos pensar que a resposta do
rapaz, “o que que tem?”, tenha uma vertente defensiva. Mas, talvez, possa-
mos pensar também que a mínima diferença entre os sexos está no corte
dado pelo significante, que dá um outro destino à anatomia.
Ingenuidade, otimismo, aposta, pode ser, mas quem não se engana
com as aparências?

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Inibição sintoma e angústia [1926]. In: ______. Obras completas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2014. v. 17.
LACAN, JACQUES. O estádio do espelho como formador da função do eu [1949]. In:
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.96-103.
______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro; Jorge Zahar,
2005.
______. Radiofonia [1970]. In: _____Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
______. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.

Recebido em 27/03/2015
Aceito em 01/06/2015
Revisado por Glaucia Escalier Braga

29

Revista 47.indd 29 28/10/2015 14:15:06


Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.30-40, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS
A IMPOSSIBILIDADE DE HABITAR1

Fernanda Pereira Breda2

Resumo: Este artigo aborda a temática do lugar psíquico enquanto operação de


linguagem necessária e anterior à construção de referentes espaçotemporais. A
partir de um caso de psicose, discute as implicações na delimitação de territórios
sociais quando há precariedade de referentes simbólicos na constituição do su-
jeito.
Palavras-chave: psicose, gozo do Outro, delírio, errância psicótica, espaço.

THE IMPOSSIBILITY OF DWELLING


Abstract: This article addresses the matter of the psychic space as an operation
of language necessary and previous to the construction of time-space referrals.
Starting from a case of psychosis , it discusses the implications in the delimita-
tion of social territories when there are precariousness of symbolic referrals in the
constitution of a subject.
Keywords: psychosis, jouissance of the other, delusion, psychotic wandering,
space.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Escritas do sexual, outubro de 2013,
em Porto Alegre. É parte da dissertação de Mestrado em Psicologia Social da UFRGS, intitulada
Percepção e Significante na Construção do Espaço, Porto Alegre, 2013.
2
Fernanda Pereira Breda, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA), mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, psicóloga do ambulatório
Melanie Klein – Hospital Psiquiátrico São Pedro. E-mail: fpbreda@gmail.com

30

Revista 47.indd 30 28/10/2015 14:15:06


A impossibilidade de habitar

Gorgeio é mais bonito do que canto porque nele se


inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorgeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
Manoel de Barros

M anoel de Barros nos encanta com essa imagem das pássaras que, ena-
moradas em suas árvores, geram flores perfumadas. Nos faz acreditar
que um encontro com o próximo não só é possível, mas fecundo. O poeta nos
embala em um canto cheio de musicalidade e parece nos dizer: sim, o Um
acontece na poesia e seu perfume está no ar!
Estamos na primavera e há perfumes no ar. A cidade está florida. As
árvores enfeitam o espaço público, nos convidando a circular pelas ruas. Os
jacarandás da praça da Alfândega aguardam a feira do livro para nos condu-
zirem por um labirinto de tapetes perfumados. A praça fica colorida e se en-
che de gente de todos os tipos. Mas, por vezes, a multidão nos sufoca e nos
força a nos debruçarmos nas janelas das bancas em busca de um ar fresco,
ou ainda a nos enfiarmos em uma orelha – de um livro – à procura de uma
margem de história.
Nem sempre o outro nos oferece um bom encontro.
Vamos falar aqui de espaços e o espaço exige ao menos três dimen-
sões: o eu, o outro e, ainda, o que pode vir a regular essa distância: o falo.
No entanto, esse terceiro elemento que demarca um traçado ou uma margem
por vezes não se coloca de forma efetiva, fazendo com que o espaço tenda
a se instabilizar ou mesmo a não se inscrever. É quando entramos na clínica
de poucas margens, digo, a clínica da psicose.
Antes nossa circulação no mundo fosse só de encontros fecundos, ou
mesmo de encontros possíveis. Freud, em Mal-estar na cultura já nos alertava
para a “hostilidade primária dos homens entre si” ([1930]2010, p.125), indican-
do a cultura como o que estabelece limites aos impulsos agressivos. A psico-
se também coloca em cena essa tendência primária, evocando proximidades
mortíferas ou mesmo invasões corporais violentas.
O que nos leva às perguntas: qual o espaço mínimo suficiente entre
nós e o outro para nos sentirmos seguros ou mesmo confortáveis? Qual o

31

Revista 47.indd 31 28/10/2015 14:15:07


Fernanda Pereira Breda

tempo necessário para esquecermos que o outro pode estar à espreita em


sua face violenta? Qual a distância que avaliamos como suportável ao nosso
semelhante? Uma cortina basta em uma janela indiscreta? Um muro? Uma
muralha? Uma faixa?
As demarcações de territórios constroem a história da civilização. Mar-
cam ritmos de entradas e saídas, de presenças e ausências, em um espa-
ço que nos é comum. As zonas de fronteiras são muitas vezes verdadeiros
campos de guerra. Definem, seja por oposição ou contiguidade, referências,
identidades, comportando ideais distintos.
No espaço urbano, moramos cada vez mais próximos aos vizinhos. As
janelas se abrem para outras janelas. Estamos inesperadamente sujeitos a
esbarrar no outro acidentalmente, expostos nas ruas que transitamos, nos
deslocamentos cotidianos. Por vezes, o espaço é abolido e somos invadidos
pelo outro. Entramos na rota de colisão. Somos abordados ou abordamos
com violência.
Falamos inicialmente dos perfumes, dos bons fluidos que emanam de
bons encontros. Posso dizer também que o caso Maria – de que vou começar
a falar aqui – também foi um bom encontro. Embora ela justamente venha me
falar de um tempo de distâncias abolidas.
Recebo Maria em atendimento após catorze mudanças de residência
efetuadas em menos de dois anos. Um tempo em que em sua casa não era
possível de habitar. Esse tempo eclodiu após a morte de sua avó materna, no
ano seguinte à morte de sua mãe. Uma sequência de duas perdas importan-
tes e o advento da crise psicótica.
As ideias persecutórias estão presentes desde o início do trabalho analí-
tico. Ao longo de dois anos de atendimento é possível reconhecer certa cons-
tância na repetição dessas ideias: a cada mudança de residência, a paciente
encontra na vizinhança uma pessoa – em geral uma mulher que, ao descobrir
sobre seu passado (de maconheira, bêbada e amante de um homem casa-
do, conforme sua fala), começa a persegui-la até expulsá-la da casa. Isso,
segundo ela, é realizado através do uso de substâncias tóxicas lançadas “ao
ar” e que, aos poucos, a vão enfraquecendo (causando inapetência, dores
de cabeça, insônia) a ponto de tornar impossível sua permanência em casa.
Essas ideias por vezes são acompanhadas de alucinações auditivas: Maria
ouve a vizinha dizer “ela é uma maconheira”, assim como expressões de
insulto: “como ela é feia!”.
Estamos em cheio no tempo das distâncias abolidas. As vozes inva-
dem seu espaço e, muitas vezes, anunciam toda e qualquer movimentação
que faça em casa – como, por exemplo: “está indo ao banheiro”, “agora vai
dormir”. Por vezes, trata-se de falas antecipatórias, um anunciar quase simul-
32

Revista 47.indd 32 28/10/2015 14:15:07


A impossibilidade de habitar

tâneo ao que está por vir. Maria recolhe no que ouve as sonoridades para
compor uma significação estabelecida a priori – o que Lacan ([1955-56]1988)
denominou, no seminário As psicoses, de “automatismo da função do discur-
so”. Ouvir sem poder operar a escuta: o que ouve é o discurso de um Outro
sem enigma, compacto em sua significação.
Ouve diariamente barulhos que a vizinha faz com o propósito de impedi-
la de descansar. Portanto, é impossível dormir em sua casa – até mesmo à
tarde. Maria acredita ser necessário estar sempre acordada (e com os sen-
tidos aguçados, totalmente abertos), mantendo atenção permanente ao que
se passa ao redor. Não há obstáculos, falhas ou descontinuidades que pos-
sam servir de anteparo à invasão do gozo do Outro sobre seu corpo. Portan-
to, desde a eclosão da psicose, passou a mudar de residência, a dormir em
casa de conhecidos ou a passar noites em seu carro. Com o corpo exces-
sivamente presente, Maria, a cada vez que se vê ameaçada, decide “tirar o
corpo fora”.
Mesmo sem habitar efetivamente sua casa, a mantém com muito zelo:
um ambiente asséptico, higienizado, onde não é permitido fumar, levar ami-
gos ou algum namorado. A limpeza de seus pertences é extrema. A cada
mudança de residência, passa vários dias até deixar a casa bem organizada
e equipada. A cada mudança, uma grande esperança de encontrar um lugar
possível para viver toma conta de seus pensamentos. A cada mudança, Ma-
ria reencontra a confirmação de seu delírio.
A escolha de novas casas, por vezes, é feita impulsivamente; outras,
o faz com muitos critérios. A repetição, com frequência, se dá na chegada:
basta se instalar e começam as invasões da vizinhança. Já aconteceu, no en-
tanto, de passar muitas semanas desenvolvendo aproximações cuidadosas,
amigáveis com o entorno. Como se o fato de se apresentar e conhecer “quem
é o outro” pudesse deter sua face ameaçadora. De fato, essa política de boa
vizinhança teve efeitos benéficos, porém provisórios e insuficientes.
Atribui a essa perseguição uma justificativa associada a “inveja”, em
geral de uma mulher. A inveja incide sobre seu corpo: por ela ter um corpo tão
jovem e por não precisar trabalhar – evoca a expressão “vida fácil”. Associa
também ao olhar de um homem (marido ou filho dessa mulher), que toma
seu corpo como alvo de cobiça. Sempre aparece a ideia de interesse sexual.
Maria questiona: “O que eu tenho em meu corpo que desperta o desejo nos
homens?” – pergunta que formula em plena angústia, sem dúvida de que há,
de fato, algo marcado do qual ela não tem conhecimento. Corpo que não por-
ta o enigma da sexuação, mas a certeza de ser: ser aquela que tem em seu
corpo algo que provoca cobiça. Um corpo aquém da sexuação, marcado de
forma sígnica, em que não há espaço para a dúvida ou para o semblante – o

33

Revista 47.indd 33 28/10/2015 14:15:07


Fernanda Pereira Breda

que abriria caminho a outras significações. Trata-se de uma escrita sígnica


no corpo.
Uma das substâncias a partir da qual acredita estar sendo envenenada
é o narcótico chamado “boa noite cinderela” (conhecido como rape drug
– substância de forte poder hipnótico e capacidade de produzir amnésia,
associada em nossa cultura a abuso sexual da vítima). Como veremos, o
tema do abuso e de um gozo em excesso sobre o corpo faz parte da história
de Maria.
Reconhecemos em sua fala a presença de uma trama mínima que se
repete: uma triangulação amorosa imaginária, em que ocupa com frequência
o vértice de “intrusa”, aquela que – por ciúme ou por inveja – coloca em risco
a relação dual que antes ali havia. Perguntamos: em seu enredo, o que é isso
que se intromete? Podemos dizer que o intruso é aquele que se apresenta
sem ser convidado – o que vem como excedente e sem lugar. Diz respeito
àquilo que ainda não tem nome, a um Real não enlaçado à ordem simbó-
lica. Paradoxalmente, no entanto, nesse caso vem também em direção à
constituição de uma defesa. Lacan ([1958]1998, p.540), em De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose, retoma esse tema: “[...] o
sentimento de intrusão, desenvolvido em um delírio de observação, é apenas
o desenvolvimento da defesa própria de um binário afetivo aberto como tal a
qualquer alienação”.
Como recurso de defesa, estabelece um trânsito alternado entre três
casas: do irmão, de seu ex-marido e de uma amiga. Sendo a casa de seu
ex-marido bastante isolada, é eleita – durante períodos mais longos (uma
semana) – como um lugar possível de viver. É onde Maria se permite fumar
maconha, beber e transar. O tema do contágio, da ausência de bordas entre
as casas/corpos, também aparece. Quando deixa a casa do ex, se vê con-
taminada por uma infinidade de doenças venéreas. Maria faz um inventário
de DSTs: reconhecendo seus sintomas, seus nomes e seus remédios – sa-
ber que se apropria como consequência de anos de consultas médicas nas
emergências da cidade. O reconhecimento de algumas doenças tem efeito
apaziguador – a nomeação a insere em um laço comum onde ela encontra,
provisoriamente, alguma borda.
Há um excesso de mobilidade tanto em seus deslocamentos no espaço
social como nos deslocamentos das doenças em seu corpo – que pode ser
tomado como índice da não instauração do recalque originário, cujo efeito
justamente é o mapeamento de territórios e a ordenação de gozos. A territo-
rialidade dos espaços a partir de marcas simbólicas organizadoras, no caso
de Maria, é bastante incipiente, repercutindo na busca incessante por um
lugar que não se encontre ameaçado de se desfazer.
34

Revista 47.indd 34 28/10/2015 14:15:07


A impossibilidade de habitar

A classificação de elementos faz parte das estratégias defensivas, trata-


se de um saber metonímico que lhe oferece algum alento: faz inventários de
cheiros de venenos (e seus antídotos), bem como inventários das doenças
(e seus remédios). A prescrição de medicamentos psicotrópicos sempre foi
muito difícil, já que não tolera os efeitos – o haloperidol, por exemplo, é re-
ferido como capaz de provocar fechamento das narinas, impossibilitando a
respiração. Há uma extrema permeabilidade nas trocas que realiza com o
exterior, embora seu contrário, a extrema impermeabilidade torna-se um re-
verso sempre presente.
Sobre sua história, só era possível falar nos curtos períodos de calmaria.
Seu pai “saiu de casa” logo que nasceu, tendo sido criada na casa de sua avó
materna com sua mãe, um tio e uma tia. Sua mãe trabalhava, enquanto Maria
ficava aos cuidados da avó. Lembra que sua tia saía com frequência para “fa-
zer programas”. Muitas vezes Maria permanecia em casa com o tio – de de-
zoito anos – e a avó. Em função de sua ocupação com o trabalho doméstico,
segundo a paciente, a avó deixava de ver as situações de abuso sexual por
parte do tio. Situa esse momento em torno de 5 anos – e que só teria come-
çado a se defender, agredindo ou tentando fugir, depois de um certo tempo.
Quando sua mãe soube do que se passava, enviou Maria para um internato
de meninas, onde viveu durante oito anos; tempo em que as lembranças
giram em torno dos ensinamentos que recebeu, bem como das situações
que inventava com a intenção de visitar a mãe antes das férias – simulava
doenças e fazia uso de algumas medicações para ver se, dessa forma, fica-
va mesmo doente. Assim, era liberada para passar os finais de semana em
casa. O abuso na história de Maria é vivência de uma cena precoce de inva-
são de gozo de um Outro não barrado. As associações entre sua história e a
construção defensiva delirante não tomavam a consistência necessária para
provocar um efeito de inscrição de um lugar singular. O trabalho analítico con-
sistia tanto em acompanhá-la na construção de estratégias defensivas, como
em convidá-la a falar de sua história, na aposta de uma organização narrativa
que lhe oferecesse outros nomes possíveis, que pudessem fazer suplência
ao Nome-do-Pai e ter como consequência, uma maior estabilização de sua
posição.
O que parece estar na gênese dos movimentos de abandono da casa?
Primeiro movimento: a saída do pai. Referimos essa ausência enquanto au-
sência do que pode ser capaz de inscrever um lugar. Na falta do pai biológico,
parece também claudicar no lado materno a condição de evocação do pai
enquanto função. Há, de saída, a ausência de um suporte simbólico, uma lei
que funcionasse como interdito da criança ao corpo materno e ao universo
familiar. Segundo movimento: a saída para o internato. Aqui, na ausência da

35

Revista 47.indd 35 28/10/2015 14:15:07


Fernanda Pereira Breda

lei do pai, o deslocamento real se coloca como alternativa de proteção. Os


demais movimentos tomaremos como repetições do mesmo: na busca por
instituir um lugar Outro, colocava em ato a distância simbólica que, quando
inscrito, um interdito estabelece. Tentativas sempre fracassadas de produção
de um traço passível de sustentar uma borda no gozo do Outro. O tema da
expulsão joga com o traumático, com o que não faz série e que se repete.
No que diz respeito à posição psíquica de Maria, se reedita a cada vez a
necessidade de produzir em ato uma expulsão, uma saída. Não faz série por
não haver um primeiro “fora”, uma primeira inscrição – onde freudianamente
poderíamos reconhecer a posteriori como Prägung, cunhagem – algo do re-
calcamento originário, para que, a partir dessa perda inaugural, a série possa
se referenciar.
O delírio constitui um mapeamento mínimo de territórios transitáveis em
oposição a territórios impedidos; uma carta de orientação elementar, em que
o significante casa se repete como um ordenador privilegiado. A duplicação
do espaço é efeito da posição subjetiva: Maria constitui um outro/mesmo es-
paço com o deslocamento de seu corpo. Há um movimento pendular impor-
tante: uma organização do território pela oscilação entre dois polos: exterior/
interior, limpeza/sujeira, remédio/veneno. A duplicação põe em cena oposi-
ções elementares: o sagrado (a casa, o corpo materno) e o profano (o fora
da casa, a casa do outro, o para além da mãe). Polaridades que jogam com
Maria no campo das oposições básicas da linguagem, quando o signo ainda
não adquiriu plenamente seu caráter significante. No seminário As psicoses,
Lacan refere que a linguagem inicia por oposições – como o dia e a noite –
oposições que guardariam em si algo do inapreensível. Diz Lacan:

Se lhes falei do dia e da noite, é para lhes fazer sentir que o dia,
a própria noção do dia, a palavra dia, a noção da vinda do dia, é
alguma coisa, propriamente falando, de inapreensível em alguma
realidade. A oposição do dia e da noite é uma oposição significante,
que ultrapassa infinitamente todas as significações que ela pode
acabar por recobrir, e mesmo qualquer espécie de significação (La-
can, [1955-56]1988, p.226).

Para Maria, as bordas que definem diferentes polos ainda não se es-
tabilizaram, justamente por não estarem referidas a esse inapreensível. Por
vezes, se invertem ou passam de uma a outra sem solução de continuidade.
Assim, os remédios podem passar a venenos – como em sua infância ao fa-
zer uso de aspirinas com o propósito de adoecer; ou mesmo no uso prescrito
de medicações psicotrópicas que produzem um efeito de envenenamento. O
36

Revista 47.indd 36 28/10/2015 14:15:07


A impossibilidade de habitar

que é “mau” pode estar fora e, em um momento seguinte, pode estar encar-
nado em seu corpo – como o demônio.
A lógica que rege a sexuação é uma lógica ternária – há o referente fá-
lico, que ordena e distribui os gozos. Sendo o falo o significante da diferença
sexual é o referente a partir do qual homens e mulheres irão se situar. A partir
desse referente, entra no imaginário a diferença sexual como binária: ter ou
não ter o pênis.
Por não contar com o referente fálico, Maria parece tentar inscrever uma
diferença binária, o que a coloca em um campo imaginário instável, exigindo
um esforço imenso em duplicá-lo, já que na psicose a ameaça de fazer Um
com o outro é absolutamente aniquiladora.
Na construção dessa narrativa mínima não estaria colocada em cena a
repetição de uma outra cena, primordial? O delírio buscando inscrever algo
que pudesse fazer as vezes de um mito original? A repetição incessante des-
se argumento – que para a paciente era uma realidade inquestionável – fun-
cionava, de certa forma, como um ordenador de lugares.
Nesse caso é possível pensarmos em termos de uma psicopatologia re-
lativa à construção do espaço? Para avançarmos, movidos por essa questão,
revisitar a noção de lugar na psicanálise pode ser útil.
No capítulo VII da Interpretação dos sonhos, Freud ([1999-2000]1981),
na tentativa de sistematizar o um aparelho psíquico, oferece uma analogia
ótica, advertindo o leitor que pretende evitar a tentação de apontar a loca-
lização do psiquismo a partir de parâmetros anatômicos. Não é disso que
se trata, nos diz, fazendo esforço para apresentar um aparelho, seguindo
um modelo ótico, que não seria tangível, localizável.
Para Freud, a noção de lugar psíquico esteve em causa desde o início.
Mesmo que o que tenha chamado de sistema psi não seja equivalente ao
conceito de lugar psíquico enquanto um lugar em que se possa circunscrever
o sujeito, encontramos aqui certa proximidade conceitual. Nesse momento de
sua teoria, Freud ([1999-2000]1981) propõe terminologias espaçotemporais:
fala em “instâncias psíquicas” e “sistemas (inconsciente e pré-consciente/
consciente)” – em que as representações, traços mnêmicos e percepções se
associam em sucessão temporal determinada. Freud parece estar às voltas
com a formalização de um aparelho psíquico cuja base seria inapreensível,
uma morada do sujeito que comportasse um lugar intangível.
Em seu livro Estâncias (2007), Giorgio Agamben propõe o tema da es-
tância a partir da poesia do século XII e XIII. No italiano, stanza se coloca
como conceito desde Dante Alighieri, designando o núcleo essencial do poe-
ma. Nessa perspectiva, o essencial era justamente aquilo que não era possí-
vel apreender. Agamben propõe uma tradução do termo stanza no sentido de

37

Revista 47.indd 37 28/10/2015 14:15:07


Fernanda Pereira Breda

receptáculo ou ainda cômodo. Para além do significado na literatura, resgata,


na palavra, o sentido de lugar de estar e quarto de dormir. Utiliza esse concei-
to para propor uma topologia do gozo, da “estância através da qual o espírito
humano responde à impossível tarefa de se apropriar daquilo que deve, de
qualquer modo, continuar inapreensível”. Há o inapreensível na origem de
um lugar, o que faz com que Agamben venha a falar em topologia do irreal,
situando o lugar da Esfinge, do enigma, como aquele que daria origem a lu-
gares possíveis. Diz Agamben:

Ainda devemos habituar-nos a pensar o “lugar não como algo espa-


cial, mas como algo mais originário que o espaço; talvez, de acordo
com a sugestão de Platão, como pura diferença, a que corresponde
o poder de fazer com que algo que não é, de certa forma, seja,
e aquilo que é, por sua vez, de algum modo não seja (Agamben,
2007, p.15).

Por comportar um paradoxo em sua origem, Agamben (2007) irá dizer


que a topologia ficaria orientada sob a luz da utopia, e que só é possível apro-
priarmos em alguma medida da realidade se formos capazes de entrar em
relação com a irrealidade e com o inapreensível. Portanto, tomarmos a noção
de lugar como anterior a qualquer construção do espaço é levar em conta a
necessidade da presença do inapreensível na origem.
Lacan ([1957]1998) faz uso do termo instância, propondo uma topologia,
no texto A instância da letra no inconsciente. Indica que é na letra que cai,
e que deixa um espaço vazio, que vai se constituir um limite, uma borda. O
lugar do sujeito se constitui bordeando esse espaço deixado pela queda da
letra. O que organiza a libido é, portanto, uma operação de linguagem. A letra
sempre indica o recalque que incidiu sobre o gozo do corpo, produzindo a
polissemia do significante.
Em Maria, a errância no espaço é efeito de um colapso dessa operação
linguageira, o que ouve do exterior é compacto, fechado em sua significação.
Um lugar é função da linguagem, não se sobrepondo ao conceito de espaço
e de tempo, mas sendo condição necessária. Um lugar é efeito de reconhe-
cimento do sujeito a partir de um Outro e de sua nomeação, mas é sempre
vazio, indeterminado. É ausência. E é justamente em torno dessa falta fun-
damental que irão se tramar as relações mais elementares de espaço-tempo.
Lacan ([1959-60]1991) forja o termo “extimidade” justamente para designar
essa relação dentro/fora, essa exterioridade íntima que caracteriza o lugar
do sujeito. Esse interior excluído onde habitamos é efeito do recalcamento
originário e constitui suas bordas de linguagem em torno do inapreensível.
38

Revista 47.indd 38 28/10/2015 14:15:07


A impossibilidade de habitar

No seminário A angústia, Lacan ([1962-63]2005) desenvolve a noção


de lugar enquanto falta na estrutura. A partir do texto freudiano O sinistro
([1919]1981), propõe tomarmos o Heim (presente na palavra Unheimlich, re-
lativo a casa) como esse lugar privilegiado do sujeito; um lugar que repre-
senta a ausência em que estamos. Um pouco na direção da célebre frase
de Freud: Wo es war, sol Ich werden – onde estava o Isso o Eu deve advir.
Em que há a indicação topológica na linguagem: a referência a um lugar que
deve ser ocupado.
Lacan ([1972-73]2010), nas primeiras lições do seminário 20 vai nos fa-
lar dos gozos, nomeando claramente o gozo do Outro e o gozo fálico; o gozo
fálico como efeito do interdito ao gozo do Outro, demarcador de territórios e
das posições sexuadas. No gozo fálico, o que está em cena é o gozo de um
corpo significante, um gozo sempre parcial. A metáfora paterna inscreve os
sujeitos em um gozo fálico em relação ao saber do pai; um saber que nos
protege, que nos oferece um abrigo. É o campo do significante mestre que
organiza esse saber, que é sempre parcial e incide sobre o corpo. Talvez
tenhamos no horizonte o Um – uma ideia romântica do amor como plenitude
no encontro –, por termos encoberto pelo recalque essa condição original
de impossibilidade da relação sexual. Mas Lacan ([1972-73]2010, p.15) nos
adverte: “[...] O gozo do Outro, do corpo do outro que O (aqui também com
maiúscula) que O simboliza, não é o signo do amor” – e, sim, evoca uma
entrega sacrificial, um oferecimento de um corpo não abrigado pelos signifi-
cantes paternos.
Maria, após mais uma mudança de residência e um par de dias para tor-
nar o ambiente impecável, chega à sessão e anuncia: “minha casa tem tudo”.
A casa está pronta, mas para habitar é necessário, para além da construção,
uma inscrição simbólica. É necessário um “habite-se”. Uma certidão obtida
de uma autoridade competente que autoriza o início da utilização efetiva da
morada; um registro que inscreva a condição social de habitação do imóvel.
Lacan ([1955-56]1988) nos diz que o habitat natural do neurótico é a lin-
guagem, e que o psicótico é habitado, possuído, pela linguagem. Ninguém
melhor que Maria para testemunhar essa condição. Passa muito tempo a cons-
tituir um lar, embora resulte em uma casa impossível de habitar.

REFERÊNCIAS:
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Ho-
rizonte: UFMG, 2007.
BARROS, Manoel de. Ensaios Fotográficos. Rio De Janeiro. Record. 2007.
FREUD, Sigmund. Lo siniestro [1919]. In: ______. Obras completas. Tomo III. Madrid:
Biblioteca Nueva, 1981.
______. O mal-estar na cultura [1930]. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010.

39

Revista 47.indd 39 28/10/2015 14:15:07


Fernanda Pereira Breda

______. La interpretacion de los sueños [1899-1900]. In: ______. Obras completas.


Tomo I. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
LACAN, Jaques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud [1957].
In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. O seminário, O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise [1954-55].
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
______. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-56]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1988.
______. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose [1958]. In:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_______. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-60]. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1991.
_______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
_______. O seminário, Encore [1972-73]. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana,
edição não comercial, 2010.

Recebido em 01/07/2014
Aceito em24/05/2015
Revisado por Clarice Sampaio Roberto

40

Revista 47.indd 40 28/10/2015 14:15:07


Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.41-47, jul. 2014/dez. 2014

SÓ QUE NÃO:
TEXTOS
do impossível ao interdito1

Maria Ângela Bulhões2

Resumo: Partindo da apresentação de recortes clínicos, o presente trabalho bus-


ca tratar do tema da negativa na psicanálise. Apresenta alguns aspectos da teoria
da lógica em Lacan e trabalha o não na perspectiva do operador, que possibilita o
corte entre os espaços do eu e do outro, assim como o dentro e o fora. Limite que
irá produzir o real, o impossível, e lançará o sujeito na engrenagem dos interditos
sociais que constitui sua condição de circulação numa realidade compartilhada.
Palavras-chaves: clínica, negativa, real, psicose, lógica.

EXCEPT THAT NOT: from the impossible to the interdicted


Abstract: Starting from the presentation of clinical clippings, the current work
aims to discuss about the subject of the Negative in psychoanalysis. It presents
some aspects of the theory of logic in Lacan and it works the no in the perspecti-
ve of the operator that makes it possible the cut between the spaces of I and the
other, as well as the inside and the outside. Limit that will produce the real, the im-
possible and launch the subject in the gear of the social interdicted that constitute
its condition of circulation in a shared reality.
Keywords: clinic, negative, real, pshycosis, logic.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas APPOA: Corpo e discurso em psicanálise, em
novembro de 2014, em Porto Alegre.
2
Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Insti-
tuto APPOA, psicóloga do ambulatório Melanie Klein do Hospital Psiquiátrico São Pedro.
E-mail: mariaangelabulhoes@gmail.com

41

Revista 47.indd 41 28/10/2015 14:15:07


Maria Ângela Bulhões

A companho um paciente psicótico para quem ter todas as mulheres pare-


ceria algo natural. As vozes o fazem crer que todas as mulheres estão
a seu dispor. O grande problema nessa situação é que ter todas as mulhe-
res acaba por incluir nesse conjunto sua mãe e suas irmãs. Isso o maltrata.
Quando as vozes falam de toda a disponibilidade que ele poderia ter das
mulheres, ele gosta, mas quando incluem sua mãe e sua irmã, ele fica mui-
to incomodado. Afinal, isso é incestuoso e não pode acontecer. O problema
é que não há parcialização. Todas são todas, ou ele tem todas ou ele não
tem nenhuma. Ele vive esse dilema. Fica claro, nesse caso, a condição de
totalização existente. Ele está sem saída. Houve uma sessão em que me
perguntou como eu ia ajudá-lo com sua libido. Como assim? – interroguei-o.
Clareou-me dizendo que estava se sentindo atraído por mim (situação que
nunca havia sido falada por ele antes) e queria um abraço, pois estava muito
carente. Chegou a levantar-se da cadeira. Consegui fazê-lo retornar a sua
poltrona, pois eu não daria o abraço, ainda mais para resolver o problema de
sua libido. Eu pensava sobre como intervir mais efetivamente nessa situação.
Dizer que não, eu já estava dizendo, mas isso somente não estava resolven-
do a situação. Ele estava claramente perturbado. Pensei no que eu havia lhe
dito (em outra ocasião), quando ele falou do medo de fazer algum mal para
a irmã em função do que as vozes lhe diziam (as vozes diziam que sua irmã
era a última mulher do mundo e sua única chance de procriação). Disse-lhe,
então, que não parecia que ele realmente quisesse ter algum contato mais
íntimo comigo, assim como também acontecia com a irmã; mas parecia que
ele era obrigado a querer algo que não era possível. Nesse momento ele
mudou. Começou a falar de todas as alucinações que estava tendo em casa
com a irmã. E disse que, no trajeto para o consultório, pensava que ali encon-
traria seu pai e teria que fazer sexo com ele. A interpretação incidiu sobre a
diferença entre desejo e obrigação, e só foi possível, porque a analista estava
situada a partir da operação da castração, e escutava o que ali não estava
operando do lado do paciente.
Partindo da escuta clínica, o presente trabalho busca tratar sobre o tema
da negativa na psicanálise, considerando o não na perspectiva do operador
que possibilita a delimitação entre os espaços do eu e do outro, assim como o
dentro e o fora; limite que irá produzir o real, o impossível, e lançará o sujeito
na engrenagem dos interditos.
Freud, ao longo de seu ensino, nos disse sobre a existência do não,
da negativa na condição de subjetivação. Também Lacan construiu sua
teoria considerando que partimos de uma negatividade primordial.
Marcado por sua época, Lacan ([1971]2009) produziu a formalização de
seu ensino, utilizando-se da lógica formal de Aristóteles e baseou-se nas ca-
42

Revista 47.indd 42 28/10/2015 14:15:07


Só que não: do impossível ao interdito

tegorias proposicionais deste, para nos apresentar algumas de suas formu-


lações. Como traço comum à sua produção, mais uma vez Lacan usou dos
conceitos de outro campo do conhecimento para transformá-los, distorcê-los
e integrá-los ao seu ensino. Para Lacan, a categoria do universal só adquire
sentido e valor denotativo por um elemento que fica de fora de sua lei. A uni-
versal afirmativa inscreve um universal da lei. Todos os homens são mortais.
A particular negativa, afirma sobre a existência de um elemento simbólico que
está em desacordo com essa lei simbólica. Existe um que não. Dessa forma,
ele vai construir na sua teoria o ao menos um não castrado, que introduz a lei
de significação fálica, instaurando, assim, o pai simbólico. Escreve o incons-
ciente na lógica da incompletude. Deve haver pelo menos um elemento fora
do conjunto para que esse conjunto se constitua como conjunto.
Vegh (2010) nos diz: “esse significante que ao estar fora do conjunto,
passa a ser o significante da falta no Outro é o falo simbólico” (p.27). Lacan
utiliza o termo "f" (falo simbólico) para falar dessa operação de negatividade
que institui o elemento fora. O falo simbólico é efeito de uma operação e não
terá representação. Só podemos falar da castração através do “-j” que é a
castração imaginária, mas que vai nos remeter à castração simbólica.
Abordamos aqui o processo de subjetivação e é de recusa em ser o falo
da mãe que se trata. A condição prévia para essa subjetivação é o reconhe-
cimento, por parte do Outro (nesse primeiro momento a mãe) da castração,
reconhecimento que constitui o mais precioso de seus dons. Essa mãe vai
estar presente na vida de seu filho, tendo passado ela também por esse pro-
cesso quando bebê, de ter sido um sujeito pedindo ajuda a alguém aos gritos
e mesmo assim dizendo não a qualquer ajuda. Dessa forma, ela poderá falar
a sua língua e vir a acalmá-lo, já que também viveu o desencontro necessário
com o Outro. Ela precisa conseguir suportar o desentendimento sem desistir
do filho, sem desampará-lo. O não, a recusa, existe como elemento de ins-
crição de vida. Esse não, de alguma forma, instaura o impossível. A mãe não
tem como saber tudo sobre de que seu filho precisa. E o filho fica dividido en-
tre aquilo que deveria ser (o conjunto de determinismos) e o fato de não po-
der cumprir com isto. Abre-se, assim, o espaço para o desejo. Essa inscrição
do não não acontece de forma definitiva, ela se reatualizará ao longo da vida.
A psicanálise surge a partir da escuta de Freud de suas pacientes histé-
ricas, e quando Lacan avança em sua teoria, também o faz a partir da escuta
de seus analisantes. Muitas vezes a leitura do texto de Lacan parece distan-
ciar-se da clínica ao transitar por caminhos nos quais os conceitos tornam-se
matemáticos. Entretanto, é na clínica que podemos fazer operar com maior
rigor o ensino que Lacan nos legou. Assim, escuto alguns pacientes, que
considero se apresentarem numa lógica da completude e percebo nessa fala

43

Revista 47.indd 43 28/10/2015 14:15:07


Maria Ângela Bulhões

uma não inscrição. Todos ou nenhum não produz qualquer marca de diferen-
ça, encontram-se apenas num discurso retórico, numa fala vazia.
Freud, no texto A negativa ([1925]1980), trata sobre o juízo de atribuição
como aquele que considera se algo é bom ou ruim e se deve ser incorporado
ou rechaçado. Isto é: isso deve estar em mim ou fora de mim. É necessário
o rechaço que constitua um fora, para que o movimento de retorno constitua
um dentro.
Em seu livro Qué es lo real? (2005), Pommier esclarece o conceito de
real, ao apresentá-lo como o que se constitui a partir do rechaço, que funda
a parte incompreensível e que, desde esse momento então, vem desde fora.
Ele diz:

Transformada em seu contrário, a Coisa – com maiúscula – se me-


tamorfoseia fora em coisas: se expande no universo da materialida-
de, com exclusão de um ponto virtual: o sujeito. O sujeito se divide
no momento dessa divisão da Coisa: seu nascimento é também seu
exílio a respeito do qual ama, exílio que não compreende (Pommier,
2005, p.33).

A partir daí, a construção linguageira da realidade psíquica trabalhará na


tarefa constante de manter o real barrado. O véu que protege o sujeito do en-
contro com esse real é tecido pelos significantes; trabalho árduo de subjetivar
a ameaça que se mantém de objetificação.
Lacan vai chamar “o real de impossível” ([1964]1985, p.159), e apre-
senta como necessária a operação fálica (operação do Nome do Pai) para
produzir a existência como possibilidade, criando assim, a condição contin-
gente do falo, que abrirá para o desejo. Tratando-se de lógica, ele vai propor
que o enunciado “todos os homens são mortais” está apenas dizendo que
todos os homens possíveis são mortais. A existência é sempre apenas uma
possibilidade. A parcialização encontra-se claramente destacada na obra
de Lacan.
Para Pommier (2005) esse real insiste para fazer-se representar na re-
alidade psíquica, porque segue sendo angustiante. Nesse sentido, o impos-
sível não é a modalidade do que corresponderia considerar como o mais
periférico na experiência, senão mais exatamente aquilo que vem a centrá-la.
A clínica da psicose faz pensar na necessidade de o paciente fazer o
impossível. Ele vai ao encontro de um rascunho de castração através dessa
busca? Ele busca um limite? Uma tentativa mínima de constituir a barra que
se encontra inexistente entre o mundo privado e o público? Afinal, a invasão
vem sempre de fora. Lacan já nos disse: “nada comunica menos de si do que
44

Revista 47.indd 44 28/10/2015 14:15:07


Só que não: do impossível ao interdito

um dado sujeito que, no final das contas, não esconde nada” ([1971]2009,
p.118). A falta da barra cria uma inexistência.
A operação de interpretação e corte que apresentei no recorte clínico
foi realizada a partir da escuta, e sustentada na transferência. Ele pôde sair
tranquilo do consultório e na semana seguinte chegou dizendo que tinha tido,
naquela semana, o dia mais tranquilo do ano (menos vozes). Marcar uma di-
ferença, ali onde apenas encontrava-se o imperativo, pôde produzir um pou-
co de paz em relação à invasão. Filho de pastor, esse paciente faz questão
de dizer que o seu Deus é o Deus do impossível. Na ideia de que ele pode
estar acima de qualquer limite (seu Deus e ele próprio). Só que não, pois
paga literalmente com o preço da escravidão.
A construção do impossível faz parte da operação do recalque e opera
no discurso. O real é um conceito, um operador, assim como o simbólico e
o imaginário. Portanto, não existe o mesmo real para todos, pois ele estará
constituído singularmente para um sujeito, e sustentado no laço social tam-
bém pelos interditos. Afinal, o real é sempre demasiadamente incestuoso e
se articulará às proibições do incesto. A operação simbólica funda ao mesmo
tempo o simbólico, o real e o imaginário. Portanto, inscrever o não faz parte
do processo de subjetivação, e não é apenas uma experiência vivida como
frustração, apesar de relacionar-se com ela. Abrir mão do gozo absoluto pode
parecer mesmo uma pena, só que não. Pois, mais do que uma pena (puni-
ção) é uma dívida (constituinte simbólico).
Escuto outro paciente, que faz constantemente concursos públicos sem
nunca abrir um livro, e que na hora da prova compõe o delírio de que vai
acertar todas as questões (ficava com dificuldades inclusive para ler a prova).
Ele nunca passa nos concursos. Este paciente também compara o time de
futebol de sua cidade do interior com os times grandes da capital e diz que
ainda quer ver o time de sua cidade ser campeão em Tóquio (onde se define
o campeão do mundo). Isso, provavelmente, não vai acontecer. Perguntei a
ele se teria de parar de torcer pelo time pequeno de sua cidade do interior,
pelo fato de esse time não ter condições de disputar o campeonato em Tó-
quio. Considerando seu histórico futebolístico, até que esse time vai bem!
Assim como esse rapaz. Hoje, esse paciente está fazendo um curso que se
apresentou como possível para ele. E por enquanto está conseguindo deixar
de prestar os concursos da forma que fazia. Inclusive conseguiu verdadei-
ramente ampliar sua rede social. Buscando alcançar um impossível através
da imaginação, (esse paciente não ouve vozes) ele conseguia apenas viver
algumas situações faz de conta. Encontrar o que é possível, sem considerar
isso uma grande falência fálica, passa por suportar o encontro com a parcia-
lidade. E essa parcialidade é o que mantém o impossível como impossível.

45

Revista 47.indd 45 28/10/2015 14:15:07


Maria Ângela Bulhões

Em mais um exemplo clínico, escutei um paciente adulto jovem, que


está dormindo na cama de sua mãe. Ao falar disso, diz que a cama é de
casal, e que então ele estaria substituindo o pai, que já morreu. Na mesma
hora ele diz: mas isso é proibido, né?! Fico em silêncio. Dormir na cama da
mãe será angustiante e proibido na medida em que, a partir desse fato, ele
esteja paralisando o tempo, ocupando o lugar de um pai morto, mantendo-
se o bebê da mãe. Pode? Ou é impossível? Imaginariamente ele pode. Mas
pagará um preço alto por isso. É isso o que ele quer? Talvez não. Mas é ele
quem tem de poder enunciar esse não. Vou tentar ajudá-lo a constituir isso
como possível.
Claro que todo paciente corre o risco de um mestre de plantão achar que
a solução para esse problema é a produção de um pai forte, que saiba sub-
meter o sujeito a um não de autoridade. Esse seria um trabalho de ortopedia
e que, por vezes, até pode acontecer na forma de uma proteção necessária
num momento de crise. Mas é por outra via que o analista propõe ao paciente
que este dê voz aos conflitos, e ele, analista, ofereça os seus ouvidos para
que ali se produza a operação de sujeito; sujeito que poderá se apresentar,
talvez, dividido pela dúvida.
A lei simbólica apresentada na teoria de Lacan não está destinada a
regulamentações morais, já que a moral é histórica e modifica-se de acordo
com os comportamentos sociais definidos em cada época. A lei da qual nos
fala Lacan está relacionada à condição de alienação à linguagem, e implica a
perda de gozo, necessária para que o sujeito consiga aceder à condição de
desalienação do lugar de objeto de gozo do Outro.
Quando a lei falha, como organizadora, a ameaça surge com o risco de
desintegração do mundo, da língua e do corpo. O estranho surge ameaçador,
a angústia transborda e, sem bordas, o conteúdo se esvai. Ao corpo resto,
resta ser reconstituído. Uma dúvida mínima sobre a certeza desorganizadora
pode indicar o caminho.
A psicanálise articula teoria e prática fundando uma ética que está ba-
seada na lei, na lei do desejo, como fundamento da condição humana. Como
pude ilustrar através de recortes clínicos, quando a lei perde eficácia como
forma de constituição do impossível, não produz a liberdade, como alguns
poderiam supor, mas produz uma forma de aprisionamento que cobra seu
preço.
Neste texto propus trabalhar o não como um conceito operador na teoria
psicanalítica. O não como a partícula que produz a primeira separação entre
o eu e o Outro, criando assim a dimensão subjetiva da existência; existência
que se articula no nível social ao interdito do incesto, que é o princípio básico
da perda de gozo necessária para entrada no grupo e que possibilita o não
46

Revista 47.indd 46 28/10/2015 14:15:07


Só que não: do impossível ao interdito

estar só. Portanto, Só que não: do impossível ao interdito, que é o título deste
texto, traduz o que considero o percurso de existencialização da cria humana.

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. A negativa [1925]. In:______.Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1980. v. XIX.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicaná-
lise [1964]. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.
______ . O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante [1971]. Rio
de Janeiro: J. Zahar, 2009.
POMMIER, Gérard. Qué es lo real? Ensayo psicoanalítico. Buenos Aires: Nueva Vi-
sión, 2005.
VEGH, Isidoro. A lógica do ato na experiência da análise. Revista da APPOA, Porto
Alegre, n.39, jul/dez, 2010, p.20-29.

Recebido em 07/03/2015
Aceito em 15/07/2015
Revisado por Mariana Hollweg Dias

47

Revista 47.indd 47 28/10/2015 14:15:07


Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.48-69, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS
LOL V. STEIN:
do deslumbramento à devastação1

Vanessa Brassier2

Resumo: A autora propõe uma articulação entre a histeria e a devastação nas re-
lações mãe-filha como obstáculo ao acesso da filha à feminilidade. O fio condutor
da elaboração é a feminilidade como imagem (semblant), validada pelo olhar e o
desejo masculino e a figura mítica da mulher (no caso, a mãe) que deslumbraria
este olhar e este desejo, deixando a filha destituída de sua própria imagem de
mulher. Como paradigma, o texto coloca em relevo a protagonista do romance
O deslumbramento de Lol V. Stein, de Marguerite Duras, e também a noção de
devastação introduzida por Lacan em 1972.
Palavras-chave: deslumbramento, devastação mãe-filha, histeria.

LOL V. STEIN: from ravishing to devastation


Abstract: The author proposes a link between hysteria and the devastation in the
mother-daughter relationship as an obstacle to the child’s access to femininity.
The thread of development is femininity as image (semblance), validated by the
look and the male desire and the mythical figure of the Woman (in this case the
mother) that dazzle this look and this desire, making the daughter dismissed of
her own image of woman. As a paradigm, the text sheds light on the protagonist of
the novel ‘’The ravishing of Lol V. Stein’’ of Marguerite Duras, and also the notion
of devastation introduced by Lacan in 1972.
Keywords: ravishing, mother-daughter devastation, hysteria.

1
Texto traduzido pelo cartel de estudos Amor e devastação na clínica (a partir de Marguerite Du-
ras, Lacan e Freud): Ana Cristina Teixeira, Maria Rosane Pereira, Marisa T.G. de Oliveira e Nilena
Naime Silva. Revisão: Maria Rosane Pereira. E-mail: rosane.pereira57@gmail.com
2
Psicanalista; Membro da Société de Psychanalyse Freudienne-SPF-Paris; Doutora em psica-
nálise pela Université Paris VII. Sua tese sobre a devastação materna, sob a direção de Paul-
Laurent Assoun, deu origem a seu livro Le ravage du lien maternel, Paris: l´Harmattan, 2013. O
presente artigo foi extraído de sua dissertação de maitrise, em que ela iniciou suas pesquisas
sobre o tema da clínica com mulheres.

48

Revista 47.indd 48 28/10/2015 14:15:07


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

O célebre romance de Marguerite Duras publicado em 1964, O deslum-


bramento de Lol V. Stein, nos servirá de referência para ilustrar a noção
de “devastação” (ravage)3 em uma de suas modalidades clínicas, através da
figura romanesca de Lol, jovem fascinada pela beleza de uma mulher mais
velha, Anne-Marie Stretter, figura da mãe ideal que viria encarnar “A mulher”
em seu gozo enigmático.
Em seu texto Homenagem a Marguerite Duras pelo Arrebatamento de
Lol V. Stein4, Lacan (2003) vai, aliás, tomar emprestado da escritora o ter-
mo ravissement (arrebatamento), para explorá-lo como fenômeno clínico e
extrair dele sua estrutura. Lacan vai transformar este termo quase em um
conceito psicanalítico que, em nosso entendimento, declina um aspecto da
devastação (ravage) no feminino.
O parentesco etimológico justifica essa aproximação. Com efeito, o di-
cionário histórico da língua francesa (Le Robert, 1998) precisa que ravisse-
ment (deslumbramento) e ravage (devastação) são originários do latim popu-
lar rapire, alteração do latim clássico rapere, que significa “tomar à força ou
de surpresa”, “pegar rapidamente”, de onde “saquear”, “roubar”. A palavra
passou para o francês mantendo o sentido do latim, e em seguida passou a
significar “retirar alguém da afeição dos seus”. A partir do século XII, o acento
se desloca para a noção psicológica de “transporte”, e ravir (deslumbrar) cor-
responde então a “fazer experimentar um movimento (interno)5 de exaltação,

3
O termo “devastação”(ravage) foi empregado pela primeira vez por Lacan em 1972, em sua
conferência “O aturdito”(l´´Etourdit), para criticar a abordagem freudiana sobre a sexualidade
feminina, tentando ir além da noção freudiana da “inveja do pênis”, cara a Freud para pensar a
clínica da histeria e os impasses da feminilidade: ‘’ [...] a elocubração freudiana do complexo de
Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit),
contrasta dolorosamente com o fato de devastação que constitui na mulher, em sua maioria, a
relação com a mãe[...]. (Cfe. Lacan, J. O aturdito. In Outros escritos, Rio de Janeiro: J. Zahar,
p. 465). A expressão “fato de devastação”, que no texto original é “fait de ravage” aparece, na
tradução da Zahar como “realidade de devastação”. Nossa compreensão do texto de Lacan,
assim como a da autora que aqui traduzimos, nos impede de manter essa escolha, uma vez
que é justamente uma produção fantasmática que está em jogo no fenômeno psíquico tal qual
Lacan nos propõe pensá-lo. Parece-nos impossível articular “devastação” com “realidade” sem
converter o texto de Lacan em alguma teoria psicológica (NT).
4
Os tradutores deste texto de Lacan optaram pelo termo “arrebatamento” para traduzir o termo
francês ravissement. Efetivamente a tradução é adequada, porém o termo “deslumbramento”,
escolhido pelos tradutores da obra de M. Duras, contém nele a ideia de “arrebatamento” e vai
além dela, pois permite explorar mais amplamente o fenômeno psíquico que está em jogo. Por
isso, na maior parte do tempo, optamos por empregá-lo para traduzir o que Vanessa Brassier
propõe como reflexão sobre o termo ravissement em seu texto (NT).
5
Interno. NT.

49

Revista 47.indd 49 28/10/2015 14:15:07


Vanessa Brassier

um forte sentimento de admiração”. Tendo aparecido no final do século XII,


o termo ravissement (deslumbramento) exprimiu, até o período clássico, o
fato de “levar alguém à força”, hoje em dia significando o rapto e, na língua
corrente, o sequestro. Na mística cristã, a palavra designa uma forma de
êxtase no qual a alma se sente tomada por Deus em forma de uma força
superior à qual ela não consegue resistir. A palavra se expandiu no uso do
senso comum com o sentido enfraquecido de “estado de uma pessoa trans-
portada de admiração e de alegria” (verificado em torno de 1553). Por outro
lado, ravage (devastação), que também vem de rapere e que começou por
significar “saqueamento” e, por analogia, “o que as águas arrastam com
elas”, designa, por metonímia, um dano importante causado com violência
e rapidez pelo homem. A partir do período clássico, ravages (devastações),
se diz abstratamente dos desgastes causados pelo tempo, pela doença,
pela preocupação. A língua familiar o emprega hoje em dia com certo sen-
tido figurado na locução faire des ravages (fazer devastações), ou seja, “se
fazer amar e fazer sofrer” (verificado em 1830). Ravage serviu para formar
ravager (devastar), antigamente empregado na agricultura para significar
“arrancar parreiras”, e depois para significar “saquear”. Hoje em dia serve
para significar “danificar gravemente devastando”, primeiramente falando
dos fluxos naturais e, no sentido figurado, “trazer a alguém graves perturba-
ções psíquicas ou morais”.
O particípio passado ravagé (devastado) traz consigo a mesma evolu-
ção, e devemos considerar ainda que em torno de 1950 ele passou, na língua
familiar, a ter o sentido de “louco”.

Entre mãe e filha:


do deslumbramento (ravissement) da imagem à devastação (ravage)

Se fazemos do deslumbramento uma declinação da devastação, res-


ta-nos determinar qual é a especificidade dessa declinação. Lol, deslum-
brada. Partamos do texto de Lacan, que nos diz, em sua Homenagem a
Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein: “evocamos a alma,
e é a beleza que opera” (Lacan, 2003, p.198), onde aparece que uma
clínica do deslumbramento não poderia ser pensada sem subvertermos
a acepção mística do termo. Fundado sobre uma crítica da alma, este
aspecto do deslumbramento inscreve no centro de seu processo o lugar
do corpo da mulher e de sua imagem, que é o lugar da beleza e da forma
e, simultaneamente, a função do desejo, privilegiadamente o desejo do
homem, cujo olhar arrebatado dá consistência à feminilidade aleatória da
mulher.
50

Revista 47.indd 50 28/10/2015 14:15:07


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

Assim, a clínica do deslumbramento, da qual o romance é exemplar,


explora a forma como o sujeito feminino habita seu corpo, se faz um corpo,
diríamos, graças à declaração do desejo masculino.
Retivemos este fio para explicitar uma das modalidades da devastação.
Em nosso contexto, o da devastação entre mãe e filha, nos propomos
a fazer uma aproximação estreita do campo do deslumbramento com o da
imagem feminina, quando ela concerne a duas mulheres ligadas por esta fi-
liação. Efetivamente, como toda mulher, mães e filhas são confrontadas com
a imagem mítica do feminino encarnando este lugar enigmático do gozo que
questiona cada uma delas.
Essa imagem mítica se especifica por um afastamento irredutível em
relação à sua própria feminilidade, que jamais é adquirida de uma vez por
todas. Mas de mãe para filha, a questão é também a da transmissão, da iden-
tificação imaginária, da espera da filha por uma resposta sobre o feminino,
de um saber materno sobre o gozo feminino, de um “mais de subsistência”6,
segundo a fórmula de Lacan. A esse respeito, Jacques-Alain Miller preferiu
o termo “substância” (Lacan, 2003, p.465) em lugar de “subsistência”, inicial-
mente empregado por Lacan, provavelmente com a intenção de colocar o
acento sobre esta busca ontológica de toda mulher de uma essência femini-
na. Se optamos pelo termo “substância”, isto significaria que a mulher espera
“mais de ser” (plus d´être) de seu laço com sua mãe, e que se este “mais de
ser” vem a faltar, dá lugar a essa famosa “devastação” (ravage) descrita por
Lacan.
A propósito da transmissão do feminino, nos referimos à tese de Marie-
Magdeleine Lessana, que desenvolve a reflexão sobre a devastação mãe-
filha a partir da questão da imagem do corpo que se perfila no lugar do “con-
tinente negro”. Em seu texto sobre a devastação, ela escreve que

No centro dos rebuliços entre mãe e filha existe uma imagem de


corpo de mulher fascinante e eminentemente desejável. A imagem
de um corpo que traz em sua fulgurância a promessa de um gozo
impossível de conhecer (Lessana, 2000, p.11).7

6
No momento em que Lacan emprega pela primeira vez o termo “devastação”, e que ele critica
Freud em sua conferência “O aturdito” com relação à inveja do pênis, (cfe. nota 3) ele vai, na
mesma frase, se referir ao “mais de subsistência” que uma filha espera de uma mãe, como o
fator desencadeante da devastação. O pai, diz Lacan, não dá conta desta situação por ser o
segundo nesta devastação. (NT).
7
(trad. nossa).

51

Revista 47.indd 51 28/10/2015 14:15:07


Vanessa Brassier

A similitude de corpos entre mãe e filha as une em uma familiaridade


perturbadora, e mesmo incômoda que pode tomar acentos de Unheinlichkeit
([1919]1976)8, principalmente no momento da puberdade da menina, em que
suas primeiras interrogações sobre o feminino a invadem. Para a filha, traba-
lhada pela metamorfose de seu próprio corpo, o corpo da mãe pode aparecer
ao mesmo tempo como o lugar do fascinante e do obsceno. Quanto à mãe,
que vê sua filha tornar-se mulher, “quando ela vê subir nela a luz do desejá-
vel” (Lessana, 2000, p.14)9, um sentimento de Unheimlichkeit pode invadi-la.
Esta imagem feminina, a belle image que vem se interpor entre a mãe
e a filha, quanto mais ela é, quanto mais ela se resume a um véu destina-
do a recobrir uma vacuidade, que é a ausência de uma identidade feminina
assegurada, mais ela aparece como desejada, obscena, fascinante, devas-
tadora. Com efeito, a imagem suportada por uma mulher não vem defini-la,
identificá-la, mas apenas recobrir um buraco, suprir uma falta de significante
da feminilidade e fazer consistir o insignificável. Se o protótipo do feminino é
um enigma, se a mulher não tem identificação, então o papel da imagem é
dar corpo a este gozo indizível, específico do feminino. E “a feminilidade se
resume à apresentação dessa ornamentação do vazio, na qual ela própria
inexiste” (Pommier, 1985, p.50). Insignificável, o feminino não pode então
apresentar outros traços que não sejam a fantasia, a máscara, a aparência,
e uma mulher não tem outra escolha senão entregar-se à mascarada, para
dar consistência à causa do desejo que ela é para o homem, e colocar em
cena imaginariamente o gozo que a ultrapassa. “É para ser o falo, quer dizer,
o significante do desejo do Outro que a mulher vai rejeitar uma parte essen-
cial de sua feminilidade, na verdade todos os seus atributos, na adesão à
mascarada”, escreve Lacan (1998, p.694). E realmente, a feminilidade não
pode alcançar-se ou designar-se senão pelo viés do semblante, o que equi-
vale a dizer que uma mulher não pode afirmar-se senão no artifício. Dito de
outro modo, ser mulher é fingir (faire semblant de) ser mulher. É o que Joan
Rivière ([1929]1994, p.203) conseguiu destacar pela primeira vez no campo
freudiano, com seu artigo “A feminilidade como mascarada”: “O leitor pode

8
“O estranho inquietante”. A autora citada faz referência, com o uso deste termo, aos desenvol-
vimentos de Freud em seu livro com este título (NT).
9
Nessa mesma página, ela esclarece com precisão que: “A devastação sobrevém quando uma
menina cresce e que se desenham em seu corpo os signos da feminilidade” (trad. nossa).

52

Revista 47.indd 52 28/10/2015 14:15:07


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

se perguntar como é que eu faço a distinção entre a verdadeira feminilidade


e o disfarce. Na verdade eu não sustento que uma tal distinção exista”. Com
efeito, frequentemente o feminino é atrelado a artifícios, como a roupa, o pen-
teado, as bijuterias e mesmo a essas noções fluídas de gestos ou de atitudes
ditas femininas, ou seja, indícios do feminino que, na verdade, mascaram a
ausência de traço de identificação. Em La robe10, Eugènie Lémoine (1983)
fala da “dor de se vestir” para uma mulher, o que se compreende quando
precisamente os artifícios têm lugar de traços de identificação. Aliás, quantas
vezes uma mulher não tem nada para vestir-se (se m´être)11. É com expressa
intenção que escrevemos assim, já que vestir uma roupa pode fazer as ve-
zes de ser mulher. O sujeito feminino é, com efeito, privado de um traço que
garantiria sua qualidade de mulher. A potência do simbólico fracassa para
defini-la e a imagem vem então se alojar ali, onde as tentativas de fixar sua
identidade sexual não vêm.
Em outras palavras, se a experiência do deslumbramento concerne par-
ticularmente às mulheres, é provavelmente por causa dessa estranheza radi-
cal que especifica, para uma mulher, a relação entre si e sua imagem, enve-
lope de vacuidade. O vestuário do feminino suportado pela imagem tentaria
então, para uma mulher, trazer uma resposta à sua falta de ser radical. Assim,
a falta de identificação feminina encontraria sua proteção e sua ostentação
no investimento de uma imagem que, quando ela suscita o desejo e o amor
do homem, permitiria ao sujeito feminino que se posicionasse como mulher.
Mas se a imagem mítica do feminino está sempre colocada em jogo no de-
sejo que um homem experimenta por uma mulher, esta última, entretanto,
resta sempre de certo modo separada, estranha a essa imagem que detém o
mistério da feminilidade e que contudo não a define propriamente enquanto
mulher. Seria como uma imagem flutuante, que somente o desejo masculino
poderia fixar sobre seu corpo, mas que também poderia fixar sobre o corpo
de qualquer outra mulher olhada e desejada em seu lugar. Quer dizer que a
imagem pode ser deslumbrante, mas que ela é também deslumbrável. Par-

10
la robe se traduz por “o vestido” (NT).
11
Jogo homofônico da autora com se mettre que quer dizer “vestir-se com uma roupa”, seja ela
um casaco, uma saia, um vestido, etc., ou mesmo um acessório. Do mesmo modo, se mettre in-
dica também “colocar-se” em algum lugar físico, alguma posição, ou em algum estado subjetivo.
No jogo homofônico, o verbo être (ser) se encontra em evidência, a forma pronominal redobrada
“se me” acentuando o caráter forjado do ser feminino que o termo “vestir-se” traz consigo (NT).

53

Revista 47.indd 53 28/10/2015 14:15:07


Vanessa Brassier

tindo disso, para uma mulher, sua feminilidade não é jamais verdadeiramente
conquistada. Suspensa no desejo e no amor do homem, lhe é necessário
incessantemente colocar-se à prova.
A clínica do deslumbramento nos convoca neste lugar. Com efeito, é o
ponto de articulação entre o sujeito feminino e sua imagem que se encontra
comprometido na experiência do deslumbramento, na medida em que ele
vem designar este desfalque da imagem. Ou seja, este instante em que o
sujeito rompe com seu corpo e com sua feminilidade.
Depois dessas palavras introdutórias sobre a imagem feminina em
jogo na experiência do deslumbramento, abordemos agora o texto de
Duras, que conseguiu traçar na personagem de Lol um retrato da figura
exemplar de feminilidade devastada pela experiência do deslumbramen-
to. “Evocamos a alma e é a beleza que opera”, nos indicou Lacan. O que
aprendemos então em Duras sobre esta “operação da beleza”, própria do
deslumbramento?
A fim de apreendermos o que está em jogo nesta operação, nos é ne-
cessário voltar, antes de mais nada, à cena inaugural, ao “acontecimento
traumático”, do qual o romance, “em sua íntegra, não é mais do que a reme-
moração” (Lacan, 2003, p.191). Esta cena nos dá a ver o surgimento brutal,
inopinado, de uma feminilidade cumprida, plena dela mesma, de um corpo de
mulher eminentemente desejável, sob os olhos de uma jovem: Lol, uma ado-
lescente aparentemente inexperiente em matéria de sexualidade. A aparição
intempestiva de Anne-Marie Stretter no salão de baile vem como um arrom-
bamento, um assalto. Trata-se de uma mãe encarnando a figura da mulher
fatal, exibindo um corpo revestido de todas as insígnias da feminilidade, em
particular “um vestido preto com dupla superposição de tule igualmente preto,
bem decotado” (Duras, [1964]1986, p.10). Lol fica “tomada de imobilidade”
diante do avançar majestoso e erótico dessa mulher supremamente dese-
jável, “saturada dos signos da feminilidade”. O deslumbramento opera no
instante mesmo em que Lol sofre o rapto de seu noivo por “aquela que não
precisou mais do que aparecer de repente” (Lacan, 2003, p.199). Com efeito,
a partir do momento da entrada de Anne-Marie Stretter, acontece o apaixo-
namento fulminante (coup de foudre). Richardson fica transportado, deslum-
brado ao ponto em que “nenhuma palavra, nenhuma violência no mundo teria
custado aquela sua transformação” (Duras, [1964]1986, p.11). Entrevistada
para a televisão em 1964 por Pierre Dumayet, Duras vai dizer desse instante
que “isso foi imediato entre Michael Richardson e esta mulher” (Duras, 1999,
p.12), e que Lol compreendeu “na fulgurância, que era aquela, a mulher que
seria o amor de seu noivo”. Notemos aqui que existe simultaneidade entre o
deslumbramento do homem por esta mulher desejável e, para Lol, o arreba-
54

Revista 47.indd 54 28/10/2015 14:15:07


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

tamento (ravissement-rapto) de sua imagem, de sua feminilidade. Quer dizer


que Anne-Marie Stretter, unicamente por sua aparição repentina, intempesti-
va, deslumbra (ravit) em um mesmo movimento e de maneira indissociável,
o olhar de Richardson e a imagem de Lol, a feminilidade de Lol que assiste,
impotente, ao deslumbramento de seu noivo por essa mulher, às suas cus-
tas. Lol se encontra subitamente espoliada de sua feminilidade, desfalcada
dela mesma, diante da aparição de uma mulher, uma mãe que presentifica
a imagem fascinante do corpo da Outra mulher desejada pelo homem. Um
corpo visto como magnífico, idealizado, que capta tudo o que há de desejo.
Sua própria imagem de mulher lhe é então arrancada.
Mas este duplo arrancamento, da imagem e da feminilidade, supõe ain-
da outro: o arrancamento, a retirada, o desvio do desejo; no caso, o desejo
de Richardson. Nós evocávamos acima este laço completamente particular
entre uma mulher e sua imagem. Efetivamente, a imagem feminina é, por
assim dizer, suspensa no desejo do homem e não pode subsistir indepen-
dentemente de seu olhar, que lhe dá consistência. Sem o olhar desejante
do homem, a imagem se desvanece e a mulher que dele se ornamentava se
eclipsa então, sofre uma queda em sua inconsistência essencial. A imagem
feminina é, assim, aquela que suscita o desejo de um homem, do qual uma
mulher necessita para se fazer um corpo, para habitar um corpo de mulher12.
Para uma mulher, com efeito, “a imagem de si da qual o outro reveste você
e que veste você” (Lacan, 2003, p.201) é o que dá ao corpo sua forma, seus
contornos, sua silhueta e sobretudo sua feminilidade; imagem “que deixa
você quando você é desvestida, desfalcada dela” (Lacan, 2003, p.194), ima-
gem cativante, captadora do desejo, mas da qual a mulher pode muito bem
se encontrar igualmente arrebatada, roubada. É disso que Lol sofre e do qual
ela jamais vai se recuperar.
O deslumbramento coloca então em cena três personagens: uma jo-
vem com a feminilidade balbuciante, uma mãe que estampa a vontade de
seduzir, e um homem atravessado por este elemento necessário ao processo

12
É importante salientar que a concepção da autora não se refere a uma perspectiva de gênero.
A posição feminina, na sua concepção lacaniana, está referida como Outro sexo. E de fato, La-
can anuncia isso desde 1958, em seu texto Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade
feminina, dizendo que “o homem serve [...] de conector para que uma mulher se torne esse Outro
para ela mesma, como o é para ele”. LACAN, J. Algumas diretrizes para um congresso sobre a
sexualidade feminina, in: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, p.741.

55

Revista 47.indd 55 28/10/2015 14:15:07


Vanessa Brassier

de deslumbramento: o desejo, a circulação do desejo veiculada pelo olhar,


sua captação pela bela imagem. Com efeito, se Anne-Marie Stretter aparece
aos olhos de Lol como a encarnação da mulher desejável, se essa imagem
fascinante a despossui de sua própria feminilidade é apenas através do olhar
cativado, fascinado de Richardson, seu noivo. Lol vê em Anne-Marie Stretter
a mulher que capta o desejo do homem. Sua simples aparição vem efetiva-
mente lhe arrebatar seu noivo, o olhar de seu noivo, seu desejo e seu amor,
que a qualificava, a ela, como mulher.
A imagem feminina, por mais bela que ela seja, efetivamente se desva-
nece sem o olhar desejante do homem para revesti-la desse desejo. Dizía-
mos acima que se nenhum significante pode definir o que quer dizer “mulher”,
a imagem é o que vem então velar essa falta. A ornamentação, o disfarce,
a máscara, a imagem oferecida, vem recobrir o nada. São elementos que
suportam esta vacuidade, mas igualmente o oco no qual o desejo do homem
vem se alojar. A mulher pode vir então presentificar o falo do homem. Ela
banca A mulher na mascarada e se empresta ao fantasma do homem, em
encarnando o objeto causa de seu desejo. É por isso que uma mulher dá
tanto valor à castração do homem: é efetivamente o que faz sua subjetividade
de mulher.
Mas, então, por que uma adequação ao ser do falo não poderia trazer
sua solução ao problema da identidade feminina (Pommier, 1985, p.50)?
Por que o fato de encarnar o falo e de ser a ocasião do desejo e do amor de
um homem não poderia vir definir o ser feminino? Porque, como acabamos
de lembrar, esta identificação ao objeto causa de desejo não pode subsistir
sem o olhar de outro; uma mulher não pode ser o falo do homem se não na
medida em que ela entra no fantasma dele, em que ela é tomada no desejo
dele. Assim, “a imagem do corpo feminino é frágil porque ela só subsiste
na dependência deste desejo”, nos diz Gérard Pommier (1985, p.51). É
por isso que a relação de uma mulher com sua imagem é tão problemática,
incerta, flutuante. O desvio pelo olhar do homem, por seu amor também, é
necessário para fazer existir uma identidade em si indefinível. Por este fato,
“ser vista”, para uma mulher, ou seja, ser a causa do desejo de um homem
representa o que vem lhe dar um suplemento de ser: “alguém que é visto
pode se beneficiar deste a mais, deste excesso, por pouco que ele se em-
preste ao fantasma de outrem” (Pommier, 1985, p.81). Todavia esta solução
guarda um lado precário e reenvia a identidade feminina à sua instabilidade
estrutural.
Voltemos ao texto de Duras, no momento do deslumbramento, quer
dizer, da aparição de Anne-Marie Stretter. É importante sublinhar que esta
mulher, deslumbrante (ravisseuse) raptora de desejo, e deslumbrante (ra-
56

Revista 47.indd 56 28/10/2015 14:15:07


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

visseuse) raptora de imagem, é uma figura da mãe. Ela entra no salão de


baile acompanhada por sua filha, e podemos considerar que a jovem Lol
é identificada à filha neste quadro mãe-filha. A filha de Anne-Marie Stretter
se encontra, como Lol, completamente eclipsada pela feminilidade de sua
mãe. Com efeito, se a cumplicidade as une no início “[ Anne-Marie Streetter]
se havia virado sorridente em direção à jovem que a acompanhava” (Duras
[1964]1986, p.9) se existe entre elas uma similitude física “Ambas eram es-
guias, moldadas da mesma forma” (Duras [1964]1986, p.10) se esta proximi-
dade corporal e afetiva parece torná-las inseparáveis “o caminhar compas-
sado das duas as levava juntas onde quer que fossem” (Duras, [1964]1986,
p.10), a elegância inquietante da mãe, sua “graça abandonada, encurvada
de pássaro morto” (Duras [1964]1986, p.10) pela fascinação que ela exerce,
capta todos os olhares e ejeta com o mesmo golpe a filha do campo da femi-
nilidade, reenviando-a à sua falta de jeito. Também a semelhança física das
duas acentua de fato o lado mulher da mãe às custas da filha. O desengonço
gestual da menina que se acomoda “ainda de maneira desajeitada àquela
estatura alta, àquele arcabouço um pouco duro” vem realçar por contraste a
beleza da mãe, “a ossatura admirável de seu corpo e de seu rosto” (Duras
[1964]1986, p.10).
A filha de Anne-Marie Stretter, em seguida não vai mais ser questão,
senão de maneira alusiva algumas páginas adiante, para significar sua au-
sência, aliás passada despercebida por sua mãe: “Fazia muito tempo que a
filha de Anne-Marie-Stretter havia fugido. Parecia que a mãe não tinha notado
nem sua partida nem sua ausência” (Duras [1964]1986, p.14).
Na presença discreta, apagada, de sua filha, aliás sem nome no roman-
ce, nessa inconsistência subjetiva e nessa feminilidade sufocada, não pode-
ríamos ver o desdobramento ou o redobramento da figura de Lol? No instante
do deslumbramento, a imagem da mulher desejada é arrancada de Lol, atra-
vés do olhar de Richardson, e se encontra desde então suportada de maneira
essencial e exclusiva pela mãe: “[ Anne-Marie Stretter] se queria assim feita
e vestida e ela estava, segundo seu querer, irrevogavelmente”, e “da mesma
maneira que apareceria, dali por diante morreria, com seu corpo desejado”
(Duras, [1964]1986, p.10). O corpo dessa mãe, fascinante, desejável, capta
todo o desejo e reenvia Lol à sua infância. Brutalmente despojada de sua
posição feminina por esse rapto de imagem, Lol vai ficar então ao longo do
romance inteiro esta eterna jovem, paralisada em uma “infância interminável”
(Duras, 1964, p.147). Duras descreve efetivamente assim seu “corpo longo
e belo, muito reto, rigidamente alinhado pela observação de um apagamento
constante, de um alinhamento sobre um certo modo aprendido na infância,
um corpo de menina de internato crescida” (Duras, 1964, p.114). Mais adian-

57

Revista 47.indd 57 28/10/2015 14:15:08


Vanessa Brassier

te, ela evoca “o vestido de Lol, [que] ao inverso do de Tatiana13, se ajusta ao


seu corpo de muito perto e lhe dá mais ainda essa sábia rigidez de menina
de internato crescida” (Duras, 1964, p.110). Ao passo que o vestido de Anne-
Marie Stretter sublinhava a beleza de seu corpo e afixava sua vontade de
seduzir, o de Lol não está ali como ornamento, como signo de uma feminili-
dade, procurando captar o desejo masculino, mas, sim, acentuando seu lado
criança, sua juventude imutável. Existe realmente alguma coisa de imóvel,
de paralisado em Lol. O tempo, parado, fixado nesse instante traumático de
dessubjetivação, não a atinge e ela fica prisioneira de um corpo anacrônico, o
corpo assexuado de sua infância. Lol é desertada pela feminilidade: a devas-
tação (ravage), nela, marca a impossibilidade de habitar um corpo de mulher.
Definido como efeito da “beleza que opera”, o deslumbramento inscreve
a questão da devastação em sua dimensão imaginária: na cena do baile,
existe um imediatismo da captura pela imagem. Há então um deserto de
afetos, uma ausência de emoção, uma “abolição do sentimento”. Lol, como
diz Duras, “esquece” de sofrer. Os sentimentos amorosos, odiosos, doloro-
sos, são inexistentes: “ela não sofreu absolutamente por amor” (Duras, 1999,
p.18). Tudo se reduz a uma questão de imagem, de corpo, de jogo de olhares.
A devastação parece aqui se situar para além do ciúme, quer dizer, para além
de uma simples rivalidade imaginária. A cena do baile, quando seu noivo é
raptado por essa mãe deslumbrante, não é vivida no drama do ciúme. Lol não
é absolutamente ciumenta, o que em si a situa à margem da feminilidade, na
medida em que o ciúme, segundo Freud, deriva do Penisneid e é uma das
marcas específicas da sexualidade feminina.
Na cena do baile, não há então corpo a corpo, confrontação entre duas
mulheres que comparariam sua imagem em um contexto de rivalidade nar-
císica. Não há relação dual em espelho, não há reciprocidade possível. Não
há duas imagens, mas apenas uma, ofuscante, fascinante, a imagem mítica
da Mulher, não especularizável, que vem se interpor entre uma mãe e uma
filha. A “operação da beleza”, o deslumbramento, exclui a conflitualidade. Ele
designa antes um arrancamento da imagem e a supressão dos afetos que
logicamente disso decorreriam. É interessante notar aqui que Lessana (2000)
propõe falar de devastação quando “a dominação erótica materna” fica preg-
nante, e que o desprendimento necessário da filha em relação ao corpo ma-

13
Tatiana é personagem do romance, amiga de infância de Lol. É ela quem está ao lado de Lol
na noite do baile. É também uma das vozes da narrativa (NT).

58

Revista 47.indd 58 28/10/2015 14:15:08


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

terno e da fascinação que ele exerce não se cumpre e então “a imagem de


um corpo luminoso de mulher fica enganchada no lado da mãe [...]. A filha se
vê então privada desta luz para ela própria”, (Lessana, 2000, p.12), pois ela
fica fascinada por essa imagem feminina idealizada da qual, aos seus olhos,
somente a mãe pode manter o monopólio.
Poderíamos dizer, acerca do deslumbramento, que a devastação impli-
ca, neste caso preciso, a colocação em jogo de certa obscenidade: a erótica
materna se exibe, colocando-se à frente na cena. Uma sexualidade concluí-
da, a de uma mãe, se impõe à filha na ostentação da bela imagem que vem,
no mesmo golpe, destituí-la de sua própria feminilidade. Ora, essa imagem
ofuscante é devastadora na medida em que ela não está disponível ao pro-
cesso da identificação. Com efeito, ela não tem reflexo no espelho, pois se
situa para além, lá onde não há transmissão possível, onde não há definição
revelável da feminilidade. “A imagem fascinante de um corpo de mulher de-
sejável se edifica no lugar onde não há nem identidade sexual, nem trans-
missão de traços femininos de mãe para filha” (Lessana, 2000, p.11). Esta
imagem feminina, da qual a mãe se reveste, se impõe à filha, sem com isso
oferecer uma identificação resolutiva: a de uma experiência do espelho na
puberdade que diria “tu és mulher”, e que daria à filha um eu-mulher. Ao con-
trário, sua mostração, que fere e que é impudica, exclui ipso facto a filha do
campo da feminilidade.
Com Lol, o deslumbramento veio designar este momento de despoja-
mento de si mesma, de seu corpo, este rapto da imagem feminina e pela ima-
gem feminina. O deslumbramento provoca uma cisão entre o sujeito e seu
corpo: Lol, desvestida e desfalcada de sua imagem, se vê simultaneamente
expulsa de seu corpo e ejetada do campo do desejo e da feminilidade. Esta
experiência de dessubjetivação, que tem lugar no momento mesmo da apa-
rição de uma bela mulher, uma mãe encarnando o desejável por excelência,
nos confronta com a questão da Outra mulher, que pode ser a mãe, com o
perigo que representa a Outra mulher quando a mãe se retira. É o que nós
qualificamos de “obscenidade materna”. Segundo Marie-Hélène Brousse, a
devastação emergiria “no ponto do gozo enigmático percebido em sua mãe
pela filha, gozo não limitado pelo falo” (Brousse, 2003, p.101), um gozo que,
por escapar à linguagem e à significação, deixa a filha sem pontos de refe-
rência, às voltas com o enigma do feminino que essa Outra mulher faz refletir
misteriosamente no espelho.
Ora, se não há imagem que serviria à identificação, nem palavra para
definir o que quer dizer “mulher”, o deslumbramento é a própria experiência
disso, na medida em que ele provoca uma vacilação: a vacilação da imagem
e dos semblantes e, também, na medida em que ele confronta a filha com

59

Revista 47.indd 59 28/10/2015 14:15:08


Vanessa Brassier

este real insuportável, o da ausência de significante da feminilidade. Aliás, em


seu artigo sobre a devastação, Brousse define o acontecimento da devasta-
ção como lugar eletivo da vacilação dos semblantes.
Assim, poderíamos definir a obscenidade materna como a confrontação
da filha com um gozo desconhecido, indefinível, presentificado pelo corpo da
mãe. Ou seja, a confrontação com a ausência de significante da feminilidade,
“ausência percebida pelo sujeito quando ele tem contato com aquilo que,
em sua mãe [...], vem de uma ausência de limite” (Brousse, 2003, p.102). A
devastação, segundo Brousse “concerne, para o sujeito feminino, o real fora
do sexo. Quer dizer, um ponto de gozo não redutível à significação fálica”
(Brousse, p.102). Neste ponto de gozo indizível em que nada da feminilidade
é transmissível, trata-se também para uma mulher, na experiência da obs-
cenidade materna, da confrontação com a impossível subjetivação de seu
corpo próprio.
A exemplo disso, Lol aparece em um movimento de expulsão para fora
dela mesma. Ou seja, Lol se encontra, ao mesmo tempo, desfalcada de sua
imagem e de toda identidade simbólica; privada de imagem e de corpo, ela
é também toda inteira privada de lugar e de palavra, inteiramente em um
movimento de expulsão “para fora de”. O deslumbramento deixa Lol em “uma
identidade instável, de natureza indecisa, que poderia se nomear com nomes
indefinidamente diferentes” (Duras, 1964, p.41). No fundo, o rapto de sua
imagem confronta Lol com a falta radical, com a impossibilidade de significar
a feminilidade, com essa vacuidade, com essa inconsistência de ser que a
imagem viria velar.

“A mulher não existe”

Há de fato apenas um significante da sexuação, o falo (Φ). Em outras pala-


vras, ao nível do inconsciente, a mulher não recebe o fundamento de seu ser.
O gozo feminino não pode ser dito. Há ali então, um vácuo, uma inconsistên-
cia à qual faz eco o significante S (Ⱥ). Duras descreve muito bem esta falta,
no reencontro de Lol deslumbrada com o fracasso da significância para dizer
o ser feminino no seu reencontro com “a palavra ausente, a palavra buraco,
perfurada em seu centro por um buraco, um buraco onde todas as outras
palavras teriam sido enterradas” (Duras, [1964]1986, p.35).
Falamos acima sobre o perigo representado pelo Outro materno, quan-
do a mãe se retira para dar lugar à Mulher, quando a mãe desaparece como
mãe e se oferece como mulher, ao olhar desejante do homem, raptando tudo
o que há de feminilidade. Este descentramento, este deslizamento da mãe
à Mulher pode desorientar a filha, confrontada ao enigma do feminino que
60

Revista 47.indd 60 28/10/2015 14:15:08


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

a mãe vem repentinamente presentificar. Mas, então, não se trata apenas


do que havíamos evocado em termos de obscenidade materna ou ainda de
monopólio da feminilidade o que manteria no fantasma da filha a mãe como
privadora de sua feminilidade. Isso também está ligado a algo que, vindo
se colocar em termos de desejo – aquele que o corpo feminino suscita nos
homens e que, do lado feminino, tem a ver com a sua posição feminina, reco-
loca em causa a relação arcaica do amor fusional entre mãe e filha.
Surgindo como Mulher, a mãe é perigosa em dois níveis. Com efeito,
despojada de sua imagem e de sua feminilidade pela obscenidade mater-
na, a filha é também, e principalmente, despossuída de sua mãe, quando o
desejo do homem vem roubá-la dela. Ou seja, a posição feminina ocupada
pela mãe ameaça a ligação precoce de amor exclusivo ao qual a filha sempre
aspira.
Acrescentemos que este perigo que representa para a filha a feminili-
dade da mãe pode encontrar seu contraponto do lado da mãe, quando ela
é confrontada com a feminilidade de sua filha. A devastação pode, portanto,
ocorrer tanto do lado mãe quanto do lado da filha, quando a imagem da Mu-
lher deslumbrante e desejável está interposta entre elas duas. Em outras
palavras, quando o desejo de um homem por uma ou por outra introduz um
terceiro entre elas, colocando em causa a ligação de amor primordial que as
mantinha coladas uma à outra, e à qual ou uma ou outra, ou mesmo as duas,
se recusam a renunciar.

Os três tempos da devastação

Voltemos à questão da relação mãe/filha no romance de Duras, para


mostrar em que o deslumbramento vem designar um dos aspectos da de-
vastação que nós definimos como aquilo que, da ligação fusional à mãe, vem
fazer fracassar a feminilidade da filha. Se a devastação toma seu relevo cli-
nicamente pela dificuldade, ou mesmo a impossibilidade para a filha assumir
uma posição subjetiva feminina, de criar espaço psíquico próprio, de habitar
um corpo feminino, de viver por sua conta, Lol é uma figura exemplar.
Retomemos o percurso de Lol, do evento traumático ao afundamento
na loucura. Podemos distinguir três momentos do romance, que poderiam
corresponder a três etapas, três tempos da devastação.
Tempo 1: o momento inaugural, da cena do baile, quando Lol faz a ex-
periência do deslumbramento. É importante notar que se trata de um cenário
a três, onde o olhar desempenha um papel essencial. Lacan (2003, p.199)
descreve a cena do baile como “o arrebatamento de dois numa dança que
os solda, sob o olhar de Lol, terceira com todo o baile, sofrendo aí o rapto de

61

Revista 47.indd 61 28/10/2015 14:15:08


Vanessa Brassier

seu noivo por aquela que só precisou aparecer subitamente”. Este primeiro
tempo, o da experiência da devastação, quando Lol vê sua imagem e sua
identidade feminina roubadas por uma mãe encarnando A mulher completa,
madura sexualmente e captadora do desejo masculino, corresponde à entra-
da na devastação.
Tempo 2: o momento da devastação como drama da “impessoalidade”,
para retomar um termo de Duras ([1964]1986)14. Depois do evento traumá-
tico, Lol entra em um período de isolamento, de prostração e se casa, sem
nem ao menos ter querido. Depois, ela desaparece da cidade, se subtrai aos
olhares e se instala com o marido em uma casa em U.Bridge, onde esta-
belece uma ordem rigorosa, na qual o menor desarranjo produziria, ao que
parece, o seu afundamento. Ela também se torna mãe. Terá Lol esquecido?
Ela vive silenciosamente em um estado de indiferença e de perpétuo apa-
gamento. Ela leva uma vida de aparência normal, na verdade, uma vida de
pura imitação: “Lol imitava, mas quem? Os outros, todos os outros, o maior
número possível de outras pessoas” (Duras, [1964]1986, p.24). Então veio a
morte de sua mãe. Apenas evocado, este evento entretanto não deixa de ser
um momento importante na história, um ponto de virada na vida de Lol, ainda
que a deixe indiferente: “a morte de sua mãe – ela havia desejado revê-la
o menos possível, após o casamento – a deixa sem uma lágrima” (Duras,
[1964]1986, p.25). Se a mãe de Lol é um personagem extremamente discreto
no romance, ela, no entanto, é figura de extrema eficácia em seu poder des-
trutivo. Detenhamo-nos um instante sobre este personagem.
Afirmamos existir, no deslumbramento de Lol V Stein, um desdobramen-
to da figura materna que corresponde à clivagem entre feminilidade e mater-
nidade. De uma parte, Anne-Marie Stretter, a raptora de imagem, encarna a
feminilidade por excelência, a mulher desejada, desejável, detentora e fami-
liar a um gozo indizível. Este é o polo da Mulher. De outra parte, a mãe de Lol,
mãe possessiva, raptora de criança, que se encontra igualmente implicada
na devastação, presentifica o polo da mãe arcaica, maternal. Sua presença,
muito discreta no romance, entretanto é eficaz: todas as suas aparições, to-
das as suas intervenções contribuem para manter a sua filha em posição de
criança, para manter um controle total sobre ela. Com efeito, até a morte de
sua mãe, Lol permanecerá um objeto entre suas mãos. Esta mãe surgiu pela

14
À pergunta feita por Pierre Dumayet sobre O deslumbramento de Lol V. Stein: “É o romance do
quê?”, Marguerite Duras havia respondido: “Da “des-pessoa”, ou, se você preferir, da impesso-
alidade”, in Dits à la télévision, (1999).

62

Revista 47.indd 62 28/10/2015 14:15:08


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

primeira vez no final do baile para recuperar “sua criança”. “Ela se precipita
sobre sua criança” (Duras, [1964]1986, p.15), se interpõe entre ela e o casal
formado por Anne-Marie Stretter e Richardson, fazendo um anteparo, servin-
do de obstáculo ao deslumbramento de sua filha. Em seguida, ela favorece o
isolamento e a prostração de Lol, dizendo que é para protegê-la de qualquer
reminiscência do evento traumático, mas de fato para mantê-la sob seu co-
mando. Foi, com efeito, por intermédio desta mãe que “Lol foi casada sem ter
querido” (Duras, [1964]1986, p.22) e é “sob a demanda de sua mãe”, que ela
deixará S. Tahla, lugar do drama, após seu casamento. Lol se deixa ir, sem
opor nenhuma resistência. Ela continua a ser um objeto nas mãos de sua
mãe, que, pelo silêncio que instala em torno de Lol para protegê-la, a mantém
assim na devastação, neste estado de impessoalidade, de não subjetividade
que relembra, reitera este estado de dependência primordial de toda criança
pequena em relação ao Outro materno. E Lol, passiva, indiferente, se aban-
dona a essa sujeição, reencontrando este primeiro gozo de estar entregue às
mãos da mãe pré-edípica. A este respeito, Lessana fala mesmo de “conspira-
ção do silêncio”, de “complô” orquestrado pela mãe de Lol para anestesiar o
baile, exigindo que nunca se evoque o evento, casando-a e fazendo-a mudar
de cidade. Para sua mãe, “Lol é mantida isolada do evento que a concerne”,
e sua mãe encontra em John Bedford um aliado. Ele ama o que chama de “a
doçura de sua esposa”, seu “apagamento contínuo” (Lessana, 2000, p.264).
Lol passará das mãos de sua mãe às mãos de seu marido.
Talvez nos seja necessário colocar alguma nuance sobre o termo “com-
plô”, proposto por Lessana (2000), porque ele tende aqui a objetivar o caráter
perseguidor, destruidor, devastador do Outro materno. Seria um erro pensar
que a mãe é, em si mesma, um agente nocivo. É mais psicanalítico que nos
situemos do ponto de vista da filha, que nos interessemos em saber qual é o
peso da figura da mãe no seu fantasma de filha. Ora, o fantasma fundamental
de toda mulher, de toda filha, não é sem relação com o que sucedeu na sua
ligação arcaica com sua mãe, ligação de amor fusional e sem saída, e com
este gozo primordial, despedaçador e mortífero de ocupar a posição de obje-
to do Outro materno onipotente.
Em seus textos sobre a sexualidade feminina, Freud, como vimos an-
teriormente, havia enfatizado a importância da fase pré-edipiana da menina.
A dependência da mulher em relação a sua mãe, por conseguinte, deve ser
considerada à luz desta ligação arcaica, deste intenso apego primordial da
menina à mãe que, nos diz Freud, não desaparece jamais, realmente. En-
volta em mistério, essa relação permanecerá obscuramente ativa, embora
inacessível à análise. “Tudo o que toca o domínio desta primeira ligação à
mãe pareceu-me difícil de apreender analiticamente, branqueado pelos anos,

63

Revista 47.indd 63 28/10/2015 14:15:08


Vanessa Brassier

parecendo uma sombra pouco capaz de reviver, como se tivesse sido subme-
tido a uma repressão particularmente inexorável”, disse Freud ([1931]2010).
Ora, é precisamente esta zona de obscuridade específica das análises das
mulheres e que Freud chamou de “continente negro” que está em jogo na
relação devastadora entre uma mãe e sua filha.
Tempo 3: Após a morte de sua mãe, Lol retorna aos lugares de sua infân-
cia, e retoma a casa de seus pais. Neste lugar, Lol é descrita pela autora como
vagando em uma espécie de errância pela cidade. Ocorre, então, um aconteci-
mento decisivo, uma virada na devastação: Lol percebe um casal se beijando.
Neles ela reconhece Tatiana, sua amiga de infância, outrora testemunha do
acontecimento do baile e de seu deslumbramento. Lol se engaja então em
uma busca secreta: ver o final do baile do qual ela foi privada pela irrupção de
sua mãe e pela partida do casal. Agora que sua mãe está morta, ela quer ver o
gesto erótico que restou inacabado, o arrancar do vestido, o desnudamento de
Anne-Marie Stretter, sempre em suspensão em sua memória.
Deitada em um campo de centeio, perto do hotel onde se encontram os
amantes, Lol passará tardes e noites espiando o corpo de uma bela mulher,
Tatiana. Este gesto que ela não pode ver, o do desnudamento, e que ela su-
põe, poderia substituir a radical ausência de palavra. Este é mais um ternário
que se coloca, um cenário a três, vindo reproduzir aquele do baile. Nesta po-
sição de observadora, à qual Lol muitas vezes retornará, “um nó se refaz”, diz
Lacan (2003, p.199). Com efeito, ao centro deste trio estabelecido por Lol, há
sempre apenas um corpo de mulher desejante e desejável, o de Tatiana “nua
sob seus cabelos negros” (Lacan, 2003, p.202), enquanto que o corpo de
Lol resta inerte, sem peso ou contorno, “as mãos enfermas”, os “traços que
se afundam”, “uma palidez cinzenta”, os “cabelos [que] têm o mesmo cheiro
que a mão, de objeto sem uso”. O corpo de Lol é reduzido a uma carne não
fálica, privada de brilho que somente Outra mulher detém. “Você já reparou
na postura, no corpo de Lol, ao lado do meu, como ele é morto, como ele não
diz nada?” Perguntou um dia Tatiana a seu amante. Lol não tem corpo. Seu
corpo lhe foi roubado, foi substituído pelo de Anne-Marie Stretter na noite
do baile. E dez anos depois, Lol, ainda deslumbrada, não encontrará outra
saída para esta perda senão a de colocar seu corpo no de Tatiana, amiga de
infância reencontrada.
O movimento do deslumbramento, como sublinhamos, implica o corpo
e a imagem, corresponde a essa “operação da beleza” da qual falamos, uma
operação de substituição que, segundo a álgebra lacaniana, poderia ser es-
crita da seguinte maneira: i(a)/a.
Isto quer dizer que, ao mesmo tempo em que aparece a imagem bela,
i(a), a imagem de Outra mulher, do corpo de Outra mulher, o corpo de Lol
64

Revista 47.indd 64 28/10/2015 14:15:08


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

desaparece, tomba sob a barra de substituição. O corpo da bela mulher vem


substituir o de Lol. Esta perda corporal a reduz então ao dejeto, ao nada: o
objeto a é o corpo de Lol privado da imagem da qual ele se vestiria.
Ser deslumbrada, arrebatada, é ser descompletada de seu corpo, des-
vestida e roubada de sua imagem. É ser nada mais do que um corpo, um
corpo desertado pela libido, um corpo não localizado, um corpo em sofrimen-
to que, por existir, deve procurar se alojar no corpo da Outra mulher. É por
isso que Lol precisa, por uma parte, de Tatiana, do corpo vivo da mulher que
anima o desejo do homem e, de outra parte, de Jacques Hold, deste amante
que a deseja, para ver a realização a seu termo, do gesto erótico do qual ela
foi privada. Para ela, isto é vital: a sua identidade, sua subsistência/substân-
cia a ser realizada, detém a visão deste gesto. Lol não é voyeuriste, nos diz
Lacan, mas “o que acontece a realiza” (Lacan, 2003, p.202). No trio, ela está
no lugar do olhar, em posição de objeto realizado que complementa o casal.
Mas sem Tatiana, não há mais corpo nenhum. A devastação em Lol
afeta, portanto, essencialmente o corpo, a esta impossibilidade de habitar um
corpo de mulher, de viver por sua conta e de ocupar pessoalmente o lugar
do objeto sexual do homem. Também, quando o gesto erótico for finalmente
realizado sobre seu corpo desertificado, abandonado pela libido, é a loucura
quem vai invadi-la. No fim do romance, no momento em que, no quarto de
hotel, Jacques Hold coloca a mão sobre seu corpo, o fantasma de Lol explo-
de e voa em pedaços. A imagem do corpo da amante desaparece e Lol se
vê “abandonada ao silêncio de seu corpo apagado” (Lessana, 1995, p.66). O
desencadeamento ocorre porque Lol não é mais sustentada pelo fantasma,
pela visão da bela imagem do corpo desejado da Outra mulher. Lol deslum-
brada é este ser enrijecido, imobilizado na aspiração pela imagem do não
significável. Sem a visão desta imagem suportada por Outra mulher e da qual
ela própria está desprovida, Lol não existe mais.
A busca de Lol parece confundir-se com a busca de conhecimento sobre
A mulher e de uma resposta para o enigma do gozo feminino. Segundo ela,
a visão do gesto, da revelação do Outro feminino viria substituir a ausência
radical de significante da feminilidade. Mas Lol permanece deslocada e seu
corpo em sofrimento. O fracasso da feminilidade em Lol é o fato de que essa
perda corporal, acompanhada de uma deserção subjetiva, se manifesta de
uma parte na falência do amor, e de outra parte na impossibilidade de se
deixar desejar por um homem, de estar na posição de objeto sexual para ele.
A posição sexuada da mulher é, com efeito, duplamente especificada
em Lacan; de uma parte, a mulher se inscreve na relação sexual como objeto
a complementar do desejo do homem, o que supõe que ela se deixe desejar,
que ela consinta em ser transformada em passiva, em posição de objeto. De

65

Revista 47.indd 65 28/10/2015 14:15:08


Vanessa Brassier

outra parte, existe o gozo suplementar, o gozo específico da mulher, que não
a identifica como tal, um gozo em que o significante é foracluído e que a deixa
sem lugar, sem identidade. Mas como uma mulher pode se contentar com tal
inconsistência? Para remediar essa deserção de se encontrar experimentan-
do um gozo não subjetivável, a mulher se apoia então sobre a exigência de
um amor que a identifique. Não podendo ser A Mulher, que não existe, resta-
lhe ser ao menos uma mulher, a mulher de um homem, para ser um sujeito
especificado sexualmente.
Referindo-se a Lacan, Colette Soler (1994) escreve a este propósito
que a ausência de significante do gozo feminino “tem por resultado acentuar
entre elas [as mulheres] o esforço de se identificar pelo amor” (Soler,1994,
p.68). Dizendo de outra forma, Lacan funda a exigência de exclusividade do
amor para uma mulher sobre o fato de que seu gozo a ultrapassa. O amor
tem, portanto, um estatuto todo particular na problemática feminina. Se a
posição feminina consiste em ser não toda assujeitada à lei fálica, o des-
tino de uma mulher é assim de ser não toda sujeito. Resta uma parte não
subjetivável, que escapa à significação, um vazio, uma falta a ser. Ora, para
uma mulher, é desta falha que parte a demanda de amor, demanda de um
suplemento de ser, endereçada ao homem.
A posição feminina permanece então suspensa ao desejo e ao amor de
um homem. Com efeito, “é pelo que ela não é que ela entende ser amada ao
mesmo tempo que desejada”, nos diz Lacan (1998, p.694). Ora, Lol, a mulher
devastada, é incapaz de assumir sua posição sexual, que seria de se deixar
desejar, de ser objeto causa do desejo de um homem. Ela não é o objeto que
completa o desejo masculino, como é o caso para uma mulher na relação se-
xual mas, como olhar, ela é o objeto que completa o casal. Além disso, sem
textura, indiferente, fechada nela mesma, ela não faz apelo ao amor de identi-
ficação, ela não espera de um homem o amor que ela quereria exclusivo. Para
Lol, o homem é um instrumento a serviço do gozo de Outra mulher. Não existe
endereçamento à Outra. A demanda de amor de Lol é devastada, foracluída.
Em Lol, os efeitos devastadores de sua ligação com a mãe serão então
observáveis aquém de um conflito manifesto, barulhento. Não existe, com
efeito, nenhum corpo a corpo conflitual, nem explosão de raiva, nem reivin-
dicação agressiva. O sofrimento é inexistente. Está ausente, igualmente, a
figura um pouco caricata da mãe monstruosa, devoradora. A devastação, em
Lol, se manifesta principalmente na impossibilidade de assumir uma posição
subjetiva feminina em função de uma fixação à mãe, cuja figura é aqui des-
dobrada como já mostramos. Durante a cena do baile, a aparição em flash
do corpo erótico da mãe feminina, que deslumbra, parasita Lol e recoloca em
causa sua feminilidade. O deslumbramento faz vacilar sua identidade sexual
66

Revista 47.indd 66 28/10/2015 14:15:08


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

e a joga na ligação regressiva à sua mãe, que surge na sala de baile para
recuperar “sua criança” (tempo 1). A ligação primordial à mãe faz então retor-
no e assujeita Lol a essa dependência arcaica, que exclui sua feminilidade
(tempo 2). Lol, então roubada de sua imagem e de sua feminilidade, fica
deslocada, sem lugar, sem corpo. Essa perda corporal assina a não inscrição
de seu corpo no desejo do Outro, no desejo de um homem que virá qualificar
sua feminilidade (tempo 3).

Conclusão

Uma das faces da devastação se produz no arrebatamento da imagem


e do corpo, e se encontra ligada a esta impossibilidade de simbolizar o gozo
feminino, um gozo que não poderia se originar de um saber transmissível de
mãe para filha e que, portanto, pode se deixar apreender como “obscenidade
materna”.
Com efeito, é impossível de se “fazer patrimônio do feminino” (Lessana,
2000, p.401). Mas se a filha fica persuadida que a mãe detém este saber
sobre a feminilidade e se ela espera que a mãe o entregue a ela, ou se ela
pensa que a mãe o guarda orgulhosamente para privá-la dele, existe devas-
tação, explosão da obscenidade materna no que se refere ao gozo arcaico
não limitado pelo falo. A filha fica então aprisionada no fantasma dominado
pela onipotência da figura materna.
A zona da devastação se situa assim no lugar do “continente negro”,
do mistério da feminilidade articulado, no caso do deslumbramento, em uma
imagem um pouco mítica da Mulher que viria se interpor entre mãe e filha.
Lol é aspirada pela imagem, encantada e deslumbrada pelo corpo de Outra
mulher. Esta fascinação, esta aspiração pela imagem que assina sua captura
em um gozo destrutivo, lhe barra o acesso à sua posição feminina e ao seu
próprio gozo sexual com um homem. A devastação, neste caso, se manifesta
na incapacidade da filha de se prestar, de colocar em jogo seu corpo na troca
simbólica, na relação sexual e na maternidade. O que resta é uma fascinação
e a captação devastadora da imagem.

Marguerite Duras e Lol

Foi ao mesmo tempo o livro que eu mais quis fazer e o mais difícil”,
diz ela ao Lettres françaises. A Pierre Dumayet, ela dirá em uma
entrevista na televisão: “Eu não poderia ter ido mais longe na minha
lucidez pessoal. Enquanto que nos outros livros, eu trapaceei...um
pouco (Duras, Dumayet, Lessana, p.20).

67

Revista 47.indd 67 28/10/2015 14:15:08


Vanessa Brassier

O deslumbramento de Lol V. Stein foi concluído durante o verão de


1963, em Trouville, de frente para o mar. Foi ao sair de sua primeira cura de
desintoxicação alcoólica que Duras terminou a nona e última versão deste
romance. Depois de ter escrito todos os seus livros anteriores à noite, sob a
influência do álcool, neste, ela se encontra de repente cara a cara consigo
mesma, com suas angústias. Ela dirá, no ano seguinte, a Pierre Dumayet que
“a loucura finalmente se tornou mais familiar sem o álcool” (Duras, Dumayet,
Lessana, p.11).
Quanto à figura de Lol, foi o encontro de uma jovem mulher louca, du-
rante um baile dado no hospital psiquiátrico, que deu a ideia do personagem
a Marguerite Duras. Jacques Lacan perguntou-lhe depois da publicação do
Deslumbramento, de onde veio Lol, e Duras respondeu que não sabia. De
qualquer forma, Lol é mais do que um personagem, uma vez que Duras es-
creveu em La vie matérielle, que “todas as mulheres de [seus] livros, qualquer
que seja a idade, derivam de Lol V.Stein” (Duras, 1994, p.232). Além disso,
em uma entrevista com Pierre Dumayet em 1992, Duras evocará o luto que
ela carregou toda a sua vida, o de não ser Lol V.Stein: “de poder conceber
a coisa, descrevê-la, dizê-la, mas jamais tê-la vivido”. Ela acrescenta: “É um
lamento sim, mas Lol jamais teria escrito” (Duras, 1994, p.25).
Escrita e deslumbramento parecem intimamente ligados, mas em uma
relação antinômica: Duras não é Lol, mas ela escreveu e sua escrita conse-
guiu servir de barragem contra a devastação materna. “A mãe representa a
loucura. Ela resta a pessoa mais estranha, mais louca que se tenha encontra-
do” escreve Duras (1994, p.56), no final de sua vida. A mãe termina por ser,
com efeito, o tema obsedante de sua obra, e Duras reconhece que a escrita
se impôs a ela como a única coisa que foi mais forte do que sua própria mãe.
A escrita para ela viria assim barrar, conter a invasão da loucura e do descon-
trole materno.
A transformação da realidade pela ficção parece ter permitido a travessia
da devastação, sua transmutação pela escrita: “o livro faz este milagre”, diz
Marguerite Duras. “Muito rapidamente, o que foi escrito foi vivido. O que está
escrito substituiu o que foi vivido” (Duras, Dumayet, Lessana, 1999, p.49).

REFERÊNCIAS
BROUSSE, Marie-Hélène. Une difficulté dans l´analyse des femmes: les rapports à la
mère. Ornicar?. Paris: Seuil, n. 50, 2003.
DURAS, Marguerite. Le ravissement de Lol V.Stein. Paris: éditions Gallimard, Folio n°
810, 1964.
DURAS, Marguerite. La vie matérielle. Paris: Gallimard, collection Folio (n. 2623),
1994.
DURAS, Marguerite. O deslumbramento [1964]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

68

Revista 47.indd 68 28/10/2015 14:15:08


LOL V. STEIN: do deslumbramento à devastação

DURAS, Marguerite; DUMAYET, P.; LESSANA, Marie-Magdeleine. Dits à la télévision:


entretiens avec Pierre Dumayet. Paris: E.P.E.L, 1999.
FREUD, Sigmund. O estranho [1919]. In: ______. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas, v. XVII. Rio de janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina [1931]. In: ______. Obras completas
v. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, Jacques. Scilicet 6. Éditions du Seuil, 1973.
LACAN, Jacques. A significação do falo. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1998.
LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V.
Stein. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.
LACAN, Jacques. O Aturdito. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.
LE ROBERT. Dictionnaire historique de la langue française. Paris: éditions Robert,
1998, t. 3, p.3102-3103. 
LEMOINE, Éugénie. La robe-essai psychanalytique sur le vêtement. Paris: Éditions
du Seuil, 1983.
LESSANA, Marie-Magdeleine.  La raison de Lol. In: Dits à la télévision. Atelier/E.P.E.L.,
avril 1995.
LESSANA, Marie-Magdeleine. Entre mère et fille: un ravage. Paris: éditions Pauvert,
2000.
POMMIER, Gerard. L’exception féminine, Paris: Point Hors Ligne, 1985.
RIVIERE, Joan.  La féminité comme mascarade [1929]. In: Féminité mascarade. Étu-
des psychanalytiques réunies par Marie-Christine Hamon. Paris: éditions du Seuil,
avril 1994.
SOLER, Colette. L’hystérique et La femme: clinique différentielle. Préliminaire n°6 -
Des enfants en institution. Bruxelles: Champ Freudien en Belgique, 1994.

Recebido em 24/03/2015
Aceito em 04/05/2015
Revisado por Gláucia Escalier Braga

69

Revista 47.indd 69 28/10/2015 14:15:08


Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.70-84, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS ANA, ANTÍGONA E DIOTIMA:


três mulheres e dois amores

Luciana Brandão Carreira1

Resumo: A especificidade do amor que opera na análise se articula à função de-


sejo do analista, implicada na transmissão. No texto, indicaremos que a estética
trágica está intimamente relacionada a tal experiência e, a partir do conto lispec-
teriano Amor, indicaremos a posição subjetiva de uma mulher entre duas modali-
dades amorosas: o amor domesticado pelos laços familiares e o amor divino que
liberta das amarras imaginárias e remete à divisão do sujeito, pois a completude
nos laços familiares é impossível.
Palavras-chave: feminino, amor, gozo, transmissão, poiésis.

ANA, ANTIGONE AND DIOTIMA: three women between two loves


Abstract: The specificity of the love that operates in analysis is articulated with
the function of the desire of the analyst, implicated in transmission. In this text,
we will follow asserting that the tragic aesthetic is intimately related to such an
experience and from Lispector’s story Amor, we will indicate the subjective posi-
tion of a woman who is confined between two modalities of love: on the one hand
domesticated love which imaginarily obturates lack; on the other divine love that
liberates being from imaginary ties.
Keywords: feminine, love, jouissance, transmission, poiesis.

1
Poeta; Psicanalista e psiquiatra; Doutora em Psicanálise pela UERJ com doutorado sanduíche
na Université Paris XIII e pesquisadora da rede internacional de pesquisa Escritas da Experiên-
cia; Professora adjunto da Universidade do Estado do Pará (UEPA); Supervisora clínica do Am-
bulatório de Saúde Mental do Centro de Ensino Superior do Pará (Cesupa), onde também com-
põe o corpo docente do Mestrado em Educação Médica. Autora dos livros Entre (Verve, 2014)
e Os tempos da escrita na obra de Clarice Lispector – no litoral entre a literatura e a psicanálise
(Cia de Freud, 2014). É componente do núcleo editorial da Revista de literatura Polichinello.
E-mail: lucianabrandaocarreira@gmail.com 

70

Revista 47.indd 70 28/10/2015 14:15:08


Ana, Antígona e Diotima...

P ara falar sobre o amor buscaremos a voz de três personagens femininas,


concebidas, respectivamente, por Clarice Lispector, Sófocles e Platão.
Seus nomes: Ana, Antígona e Diotima.
Ana é a protagonista do conto Amor, publicado pela primeira vez em
1952, para vinte anos mais tarde ressurgir parcialmente modificado na crôni-
ca O ato gratuito, publicada no Jornal do Brasil, em 8 de abril de 1972. Nesse
meio tempo, ele também integrou o livro Laços de família (1998), lançado em
1960.
Atada ao amor fusional pelos laços familiares, Ana é uma dona de casa
exemplar. Mãe e esposa prestimosa, sua rotina é preenchida pelos cuidados
com o lar, a manutenção da harmonia doméstica da realidade que ali habita.
A atenção aos filhos e ao marido reveste de significado a sua existência, con-
fortavelmente pacata e previsível. Às voltas com a limpeza dos móveis e com
o preparo das refeições, ela apazigua a vida com a banalidade do cotidiano
que a cerca, mantendo a sua existência em “serena compreensão”, imagina-
riamente plena de significado.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta [...]


E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador
de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos,
crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e
sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício”
(Lispector, 1998, p.19).

Ana parecia ter descoberto que tudo na vida era passível de ser aper-
feiçoado. A conquista de um lar assim organizado lhe dera a solidez da “raiz
firme das coisas”(p.20), além de amparo e proteção diante das perturbadoras
incertezas da existência.
Mas nem sempre fora assim.
Antes de ter um lar, Ana experimentava um sentimento diferente, uma
“exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insupor-
tável” (p.20). Quando se casou, a estranheza desse tipo de felicidade deu lu-
gar a “algo enfim compreensível” (p.20), na virtude de um lar que lhe permitiu
passar a viver “uma vida de adulto”(p.21), quando os objetos e fatos ganham
sentido e lugar.
A realidade tranquila de uma vida assim domesticada se pretendia ina-
balável, pois Ana pacificava a vida esforçando-se continuamente “para que
esta não explodisse” (p.22). Mantendo a felicidade nos limites do suportável,
a serenidade da rotina doméstica, previsível e estável, garantia-lhe a harmo-
nia de um cotidiano pautado no amor fusional, expoente da função narcísica

71

Revista 47.indd 71 28/10/2015 14:15:08


Luciana Brandão Carreira

do amor, que protege o falante da explosão do sentido a qual o confronto com


o real provoca.
Contudo, apesar de todo esse esforço de “arrumação harmoniosa”
(p.22), havia uma “certa hora da tarde” (p.22) que “era mais perigosa” (p.22).
Essa hora chegava quando “a casa estava vazia” (p.23), quando todos os
membros da família estavam ocupados, longe dali. Nesse momento, Ana ex-
perimentava uma inquietude feroz. Ao olhar os móveis limpos, “seu coração
se apertava um pouco em espanto” (p.23), embora o espanto não tivesse vez
na calmaria em que buscava manter a sua vida.
Ana precisava tomar precaução com essa ‘hora perigosa da tarde’. Por
isso tentava abafá-la com a mesma habilidade que cuidava de seus afaze-
res domésticos, saindo para fazer compras ou levando objetos para con-
sertar, de tal sorte que logo “chegaria a noite com a sua tranquila vibração”
(p.23) para que lhe sucedesse uma nova manhã “aureolada pelos calmos
deveres” (p.23) rotineiros. Entre o final da manhã e o momento de dormir
havia a tarde inteira a ser percorrida, e, com ela, o atravessamento da hora
mais instável do dia.
A tarde chegou e a casa está vazia.
Ana decide sair para comprar mantimentos. No caminho de volta,
um pouco cansada e “com as compras deformando o novo saco de tricô”
(p.23), Ana sobe no bonde, recostando-se num banco à procura de confor-
to. O bonde entra em ruas largas, arrastando-se a cada estacada. É nesse
instante que Ana volta a sua cabeça para o lado e olha para um homem
parado; parado no ponto de ônibus. Essa imagem a arrebata. O que ela
vê, subitamente, a atordoa: o tal homem era cego e mascava chicletes.
Mas qual a dimensão dessa imagem senão aquela de indicar um ponto na
narrativa por onde o olhar se revela? A partir de então, Ana é jogada numa
outra dimensão de amor, distinta do amor fusional, reenviando-nos, a nós
leitores, diretamente à dimensão do olhar tal como Lacan o propõe (Lacan,
[1964]1998).
Ao invés de apaziguar, tal visão aciona “alguma coisa intranquila” (p.23),
e o que Ana “chamava de crise viera afinal” (p.23). Atônita, Ana percebia que
um cego mascando goma despedaçava a harmonia que ela preservou com
tanto esforço ao manter a rotina dos cuidados com o lar. O cego a lançava
num turbilhão de sensações inexplicáveis. Ana o olha, “como se olha o que
não se vê” (p.23), como quem, ao se ver no outro, encontra desde aí o seu
próprio ponto de cegueira. O que Ana vê é um ponto opaco de onde jorra um
gozo infinito − ponto real e incognoscível, que provoca a ruptura do sentido
que imaginariamente recobria o furo inerente à falta radical de um nome para
nomear o outro sexo.
72

Revista 47.indd 72 28/10/2015 14:15:08


Ana, Antígona e Diotima...

Esse ponto de cegueira é o sítio de emergência do objeto olhar, que,


ao ser acionado pela imagem do cego, acaba provocando uma báscula na
narrativa, constrangendo Ana em seu limite fascinatório, confrontando-a com
a fatídica “impossibilidade de não ver”, para utilizarmos aqui uma expressão
de Maurice Blanchot (2009):

O fascínio é o olhar da solidão, olhar do incessante e do interminá-


vel, em que a cegueira ainda é visão, visão que já não é possibi-
lidade de ver mas a impossibilidade de não ver, a impossibilidade
que se faz ver, que persevera – sempre e sempre – numa visão que
não finda: olhar morto, olhar convertido no fantasma de uma visão
eterna (p.29, tradução livre da autora).

Quem visse Ana olhando o cego teria a impressão de que ela sentia ódio.
Afinal, lembremos que ódio e amor são dois afetos de ligação e que, com fre-
quência, a positividade do amor cede a vez à negatividade do ódio. Pois, se o
amor visa à fusão narcísica (justamente porque o amor é cego ao que é dife-
rente no outro), o ódio, por seu turno, aponta em cheio a alteridade do Outro.
É nessa direção que Lacan ([1972-1973]1985, p.116) fala da experiência de
enamoramento, referindo-se a ela como l’hainamoration, conjugando, em sua
língua materna, os afetos raiva e amor em um mesmo significante.
Mas apesar do ódio emergente, Ana continuava olhando o cego que
mastigava os chicletes. De súbito, o bonde dá uma arrancada brusca do pon-
to onde o cego estava − para logo depois também bruscamente parar, pro-
vocando olhares assustados entre os passageiros. O saco de tricô cai. Os
ovos se quebram. Ana empalidece. Ela é incapaz de reaver suas compras
tombadas ao chão. O menino, vendedor de jornais, lhe devolve o pacote com
os ovos, completamente quebrados no interior do embrulho.
Ana nada compreende.
Nesse ponto da narrativa, a pungência dessa ruptura: os ovos que se
arrebentaram tornam a rede de tricô desnecessária, inútil, sem nenhum signi-
ficado. Estar ali era como um fio partido, Ana revela, num desdobramento que
equivalemos à ruptura imaginária que revestia os seus dias tão domesticados
e tranquilos. A falta está descoberta. Quando o bonde recomeça a andar,
imediatamente depois desse instante de espanto e surpresa, o mundo ao seu
redor reinicia tal como quando se reinicia uma música estranha na vitrola.
Esse mundo novo, aberto aos olhos de Ana, é visto com deslumbramento
e perplexidade. Nele, as pessoas estavam tão livres que não sabiam mais
aonde ir e muito menos o que deveriam fazer. Essa experiência – a crise –
provoca um misto de prazer e sofrimento, a um só tempo.

73

Revista 47.indd 73 28/10/2015 14:15:08


Luciana Brandão Carreira

Mas os ovos se haviam quebrado num embrulho de jornal. Gemas


amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego inter-
rompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando
inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado
fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do con-
dutor, o bonde deu a nova arrancada de partida. Poucos instantes
depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o
cego mascando goma ficará atrás para sempre. Mas o mal estava
feito. A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como
quando tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era
um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E
como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal
estava feito. Por quê? [...] O mundo se tornara de novo um mal-
estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa
de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram
periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona
da escuridão – e por um momento a falta de sentido deixava-as tão
livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência
de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como
se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser rever-
tidas com a mesma calma com que não o eram (Lispector, 1998,
p.22-23).

Atordoada por essa experiência, de repente Ana percebe que já havia


passado do seu ponto de descida, no caminho que a levaria de volta para
casa. É quando ela desce do bonde, segurando o tricô sujo pelos ovos que-
brados. Está desorientada. Suas pernas, trêmulas. O coração muito acele-
rado. Caminhando, ela dá de encontro a um muro. Finalmente se localiza:
está no Jardim Botânico, lugar onde intempestivamente entra. Absolutamente
só, Ana experimenta um sentimento de vastidão, aliado ao silêncio. Está em
transe, em franca síntese com a natureza.
A imagem do “cego mascando chicletes” quebra a narrativa e a redi-
mensiona, conduzindo a protagonista a uma experiência de cunho místico, a
uma revelação instantânea da desordem, isto é, ao que bordeja o simbólico
quando esse se choca com o real. Trata-se de um ponto de epifania, uma
re-velação em que o “velado se revela (se declara), tornando a velar-se, in-
cessantemente” (Branco, 2004, p.193), efeito de um momento no qual a tela
da fantasia se coloca em suspensão.
Antepondo-se ao real pulsional, a tela da fantasia permite que o mundo
se torne inteligível ao falante, forjando-lhe uma realidade. Tecida pelos laços
74

Revista 47.indd 74 28/10/2015 14:15:08


Ana, Antígona e Diotima...

familiares, a fantasia recobre o objeto a olhar e protege o ser falante da opaci-


dade mortífera de um gozo sem limites, desempenhando, nesse ponto, uma
função de anteparo, de amortecimento, para que haja a construção de algum
sentido capaz de modular a existência do ser falante. Isso possibilita que o
falante vivencie um encontro com o real de maneira mediada, apaziguada.
Situada entre o sujeito e o objeto a, a fantasia impede o acesso direto ao real,
barrando-o do campo visual e evidenciando uma modalidade de amor enco-
bridora da falta. Afinal, é na contemporaneidade da escrita da fantasia que se
abre, ao ser falante, a via para o estabelecimento de seus laços familiares,
primeiros laços sociais aos quais ele é assujeitado.
Embora também ligada à dimensão do olhar, a epifania obedece a ou-
tras leis, contrárias à função desempenhada pela rede da fantasia. Ao invés
de encobrir o real, tal como a fantasia o faz, a epifania o manifesta sem
mediações, revelando o que antes estava velado, dando a ver o que já não
é mais possível ocultar. Trata-se do momento em que o ser experimenta o
amor na dimensão dos místicos, quando a tela da fantasia está suspensa
e momentaneamente o imaginário se revela um “fio partido”. O ser, no mo-
mento dessa experiência, confunde-se com a invisibilidade que o causa,
perdendo momentaneamente as suas bordas corporais, irrompendo-se no
instante mesmo de sua divisão, lá onde localiza o seu ponto de fuga e ce-
gueira. É nesse sentido que a narrativa empreendida por Clarice Lispector
testemunha a experiência do despertar, “passando a exercitá-la no seio do
mais banal cotidiano, cuja realidade harmoniosa defende e protege o sujei-
to de se deparar com o real. Tal realidade passa a ser pulverizada” (Jorge,
2010, p.222).
Sabemos que o visível do mundo sensível é amplamente diferente do
olhar enquanto objeto da pulsão, embora a ele seja permeável. O olhar é
da ordem da mancha, indicando aquilo que resta impossível de ser visto no
campo representacional do Outro. Ele diz respeito ao ponto cego no qual o
furo do Outro se desvela ao infans, atestando a sua inconsistência. Definiti-
vamente escondido da visão direta, o infans só pode descobri-lo através do
espelho do Outro. Contudo, como tantas vezes sublinhou Lacan, o objeto
a é um ponto no infinito, que não tem imagem no espelho. No lugar onde a
sua imagem haveria de se situar aparece imaginariamente uma falta, uma
imagem que é da ordem do “-φ”, suporte da castração imaginária, inerente
à identificação narcísica ao objeto. Eis que a imagem do cego mascando
chicletes se coloca como sendo da ordem do “-φ”, encobrindo e ao mesmo
tempo mostrando o furo.
Acionando o circuito da pulsão, a imagem do cego que mastiga (e aqui
também aludimos a algo da pulsão oral) joga Ana no intervalo solitário, exis-

75

Revista 47.indd 75 28/10/2015 14:15:08


Luciana Brandão Carreira

tente entre ela e um ponto no infinito: ponto do objeto olhar, o qual ela não
pode domar, sequer esconder.
Há um tempo em que a criança não consegue visualizar o seu corpo
como uma unidade. Ele é percebido como fragmentado pelas pulsões par-
ciais, autoeróticas. Mas, num dado momento, as pulsões autoeróticas con-
vergem para a imagem do corpo, inicialmente tomado por um outro. Esse
tempo da constituição do eu no estádio do espelho, em que o corpo é tomado
como objeto da pulsão, corresponde ao conceito de narcisismo cunhado por
Freud. Ao partir de uma alienação primordial, na guinada de uma assunção
jubilatória, o infans vivencia a ilusão da unidade corporal, antecipando, a par-
tir da imagem que lhe chega do espelho, a imagem que ele terá de si.
Mas para que essa passagem se efetive é necessário um olhar de assen-
timento, sem o qual a criança não se certifica de sua imagem no momento em
que ela vacila diante do espelho. Voltando-se ativamente à procura da mãe,
a criança busca ler no olhar do Outro algum reconhecimento, em que se veja
amada pelos seus pais. Situado num “ponto infinito do amor”, o ser falante aí
alojará os traços desse olhar que faz furo, na guinada de uma operação que
opera a inscrição do amor e da morte a um só tempo. As pulsões autoeróticas –
já dispostas num corpo fragmentado e sem unidade – realizam uma passagem
ao narcisismo através do eu ideal. Através dessa imagem ideal, o corpo ganha
unidade imaginária na medida em que uma superposição temporal se impuser,
engajando-o nas vicissitudes do amor fusional, efeito da identificação imaginá-
ria. É nesse viés que o amor é tomado como uma referência simbólica crucial,
designando a matriz do ideal do eu, cerne da identificação simbólica. Trata-se
do amor que é lido no olhar, cujo vértice aponta a inexistência da relação sexu-
al, visto que ela jamais se escreve. Entre o mundo de quem olha e o de quem é
olhado, esse olhar frente ao furo se revela fugaz e peremptório, pois ele surge
na fração temporal do instante de ver, que é, ao mesmo tempo, o índice de um
lugar, da criação de um ponto de cegueira. Ele emerge através de uma imagem
que dele retém seus traços, acionando, a partir de um maravilhamento fascina-
tório, o ir e vir dos movimentos do circuito da pulsão escópica.
Esse ponto é a própria expressão de Eros como potência renovadora,
ligada à vida e à criação, tradução possível do sopro divino que inspira todo
artista. No conto, Ana expressa o divino através do estado de graça que ex-
perimenta quando atravessa a porta de entrada que dá acesso ao Jardim
Botânico, relatando uma modalidade de amor que simplesmente se dirige a
toda forma de vida que faça parte da natureza, sem limites, tal como o amor
da mística. Mas essa experiência tem a fugacidade da eternidade fascina-
tória. É nessa medida que Ana, pouco a pouco, vai recobrar a consciência
doméstica de sua vida “anterior”, agarrando-se ao filho quando finalmente
76

Revista 47.indd 76 28/10/2015 14:15:08


Ana, Antígona e Diotima...

voltar para a sua casa, onde todos já a estariam aguardando para o jantar. Já
de volta a sua casa, mais uma vez o amor se retorce. Agora, Ana já não mais
odiava o cego. Com os olhos marejados, ela pensa, ao contrário, no quanto
o amava. O que lhe fora por ele revelado a atraiu ao Jardim Botânico. E isso
era perigoso. Mas em seu lar, no ambiente doméstico, Ana estaria protegida
desse gozo desmedido.
Nada mais seria como antes.
Eis que o caráter apaziguador do amor por seu marido entra em cena, o
que a protege, ao menos por ora, daquela imponderável falta de sentido em
que o cego a havia jogado. Nesse conto a protagonista Ana está encurralada
entre duas modalidades de amor. De um lado o amor domesticado pelos la-
ços familiares, que obtura imaginariamente a falta. Do outro, o amor divino,
que liberta o ser das amarras imaginárias, desvelando a falta e o remetendo,
num átimo, à solidão e à falta de sentido.
Essa solidão tão radical está ligada à divisão do sujeito, à sua dessubje-
tivação, experimentada quando o Outro se lhe mostra furado, impossibilitado
de lhe dar qualquer garantia, ou seja, indicando que a completude do um nos
laços familiares é impossível, pois não há reciprocidade que se sustente por
muito tempo. Essa solidão é a condição para que haja pensamento, para
que o ser se torne falante; para que haja desejo. Nesse limite, há uma perda
de gozo, experimentada como gozo feminino, expresso muitas vezes numa
experiência mística, tal como a personagem Ana revela.
O circuito do olhar acionado pela visão do cego mascando chicletes leva
Ana a penetrar num espaço quase virtual, ilustrado no conto pela sua entrada
no Jardim Botânico. Ao elaborar a expressão entre-duas-mortes, no seminá-
rio da Ética da psicanálise ([1959-1960]1997), Lacan se inspira no pedaço de
terra chamado entre-deux-mers2, situado entre os rios Garonne e Gironde,
existente na região francesa de Bordeaux (bord-eaux). E, se aqui fazemos
alusão ao tema da borda, é para indicarmos a existência desse espaço vir-
tual, situado entre a morte simbólica e a morte real, lugar do furo provocado
pelo objeto olhar. Algo que também nos faz pensar num litoral, no limite que
se abre entre saber e gozo − entre o visível e o invisível − na hiância que se
mostra quando uma letra pontua o encontro de dois registros distintos: real
e simbólico. Esse espaço indica uma suspensão da realidade, circunscrita
e encarnada em duas margens. Uma dessas margens corresponde à morte
simbólica, que diz respeito à abolição do sujeito enquanto elemento de uma

2
Entre dois mares ou Entre duas marés.

77

Revista 47.indd 77 28/10/2015 14:15:08


Luciana Brandão Carreira

comunidade, ao rompimento dos laços sociais que o constituem como um


ser em relação, inserido numa discursividade. O lugar originário da escrita
da inexistência da relação sexual é um pedaço de terra entre dois registros:
na borda entre dois mares, onde se localiza o furo que aloja o ponto infinito
de amor.
No seminário da Ética da psicanálise ([1959-1960]1997), Lacan afirmou
que a tragédia está intimamente relacionada à experiência analítica, seguin-
do, nesse seminário, os passos de Antígona. Ele assim o fez para situar o que
ele nomeou de segunda morte, que indica a extinção do ser de linguagem,
diferindo da morte real do organismo biológico.
Na tragédia de Sófocles (1999), Polinices morre. Porém, por determi-
nação de Creonte, ele não pode ser enterrado. Cabe a Antígona realizar as
honras fúnebres de seu irmão, enfrentando o poder de Creonte, ainda que
isso lhe custe a vida. Isto, porque o que Antígona não pode suportar é a
possibilidade da existência de seu irmão ser apagada, sem deixar vestígios,
caso ele não seja enterrado como lhe é devido. É nesse domínio que está a
questão em que Lacan se apoia para apontar o que seria a segunda morte, a
qual Antígona pretende impedir, nem que seu ato a leve a morrer. No fundo,
Antígona persiste no desejo de enterrar o seu irmão porque conclui que ele é
único, insubstituível, assim como ela o é, apesar ou justamente por causa das
decisões e dos atos cometidos ao longo de sua existência.
Tais atos, uma vez não reduzidos a julgamentos de valor, determinam
o sujeito enquanto consequência de suas escolhas. Regida pelas leis do de-
sejo, Antígona está, nesse ponto de seu destino e maldição, também falando
sobre a sua própria condição, pois a morte simbólica de seu irmão igualmente
seria a dela. Ela poderia escolher abandonar o corpo de seu irmão, como
fizera sua irmã Ismênia. Entretanto, a heroína toma a sua decisão ao concluir
que haveria algo além desse conformismo, guiada por uma lei diferente das
leis do Estado. Haveria algo além da vida biológica, que dignifica a existência
ao singularizá-la. Antígona se dá conta de que ela poderia se casar novamen-
te caso perdesse um marido; assim como poderia conceber outros filhos se
perdesse a sua prole. Mas o seu irmão, por ter nascido do mesmo pai e da
mesma mãe que os seus, compartilhando com ela a mesma origem crimino-
sa, seu irmão é quem ele é. Único como ela. (Lacan, [1959-1960]1997).
Logo, a expressão entre-duas-mortes implica o tempo de um impasse
em cujo horizonte está a morte. A experiência de Antígona é trágica porque,
qualquer que fosse a escolha da heroína, a morte estaria em seu horizonte.
Se escolhesse não enterrar seu irmão, a morte simbólica era certa. Se esco-
lhesse o contrário, a morte biológica seria o preço. Trata-se de uma decisão
forçada, gerada no limite que determina o sujeito ser quem ele é, regida pelo
78

Revista 47.indd 78 28/10/2015 14:15:08


Ana, Antígona e Diotima...

desejo e pela morte. As margens delineadas entre essas duas mortes situam
o tempo e o lugar dessa experiência de reconhecimento. Em um tempo de
suspensão e no lugar em que a realidade psíquica se forja para o falante.
Podemos dizer que é nesse tempo em suspensão, aberto no espaço da
enunciação, que a ética do bem dizer sobre o seu gozo pode ser situada para
o ser falante em suas origens. E se, por meio dessa experiência que implica a
morte algo se escreve, o seu testemunho toca em fundamentos que estão na
base da transmissão de um impossível, por via de um escrito.
No seminário A transferência ([1960-1961]2010), Lacan lança mão do
discurso de Sócrates, no Banquete platônico, para demarcar a especificidade
do amor que opera na análise. Esse amor, que se articula à função do desejo
do analista, é o que permite que uma análise aconteça. Na passagem da
posição amorosa de amado à amante, Lacan também indica o ponto crucial
da modalidade amorosa implicada na transmissão, sustentando que a ética
analítica é inspirada por uma estética, por uma poiésis, por uma poética.
A respeito do erotismo, o Banquete é o texto mais antigo do qual se tem
notícias, escrito há mais de dois mil anos, entre 384 e 379 a.C. Ao passo dis-
so, a narrativa de Apolodoro sobre o que teria se passado na casa de Agatão
ocorreu no ano de 400 a.C. Essa diacronia é fundamental para apreendermos
a complexidade do texto, pois entre a narrativa e a redação do que teria se pas-
sado há uma subversão temporal, sobrepostas a partir da lembrança erótica
dos discípulos de Sócrates (Platão, 2011, p. 35)3.
Tal evento ocorreu “no momento do último sopro da cultura ateniense”,
quando Atenas estava prestes a cair, em 416 a.C4. O Banquete correspon-

3
O diálogo platônico foi escrito entre 384 e 379 a.C.; a narração de Apolodoro acerca do duelo
erótico entre Sócrates, Alcibíades e Agatão teria ocorrido em torno de 400ª.C; a morte de Sócra-
tes, em 399 a.C.; a saída de Agatão de Atenas, entre 408 e 407 a.C.; e o banquete propriamente
dito, que festejava a vitória de Agatão no concurso de tragédia, teria acontecido em 416 a.C.
4
A cidade estava prestes a iniciar uma grande expedição militar que visava conquistar a Sicília.
Este ambicioso projeto imperial era liderado pelo seu mentor, Alcibíades, que preparou uma
armação naval de proporções inéditas. Todavia, o povo ateniense não confiava em Alcibíades,
motivo determinante para o fracasso da expedição e para a decadência da pólis ateniense.
Afinal, Alcibídes os traiu. Depois que seus conterrâneos consentiram que ele voltasse à sua
cidade natal, após o fracasso de tal expedição, Alcibíades retira-se para Esparta e aconselha
os inimigos de Atenas contra Atenas, confraternizando com os persas, um dos responsáveis
pela ruína política da cidade. O caráter volúvel de Alcibíades será refletido no seu discurso no
Banquete (quanto ao temperamento de Alcibíades, recomenda-se a leitura das páginas 67 e 175
do Banquete platônico).

79

Revista 47.indd 79 28/10/2015 14:15:08


Luciana Brandão Carreira

de ao terceiro momento de uma celebração dionisíaca, um ritual em que se


comemorava a vitória de Agatão numa competição entre poetas trágicos. A
tradição recomendava que, a cada ano, esse momento dramático fosse cele-
brado com uma outra competição; uma competição discursiva sobre o amor.
Assim foi feito. Agatão vence e celebra. Ele abre a sua casa para esse novo
duelo, parte da celebração, tendo como seus convidados Fedro, Pausânias,
Eurixímaco, Aristófanes, Sócrates e Alcibíades.
A vitória do jovem Agatão no festival o coloca numa posição de muito
prestígio, próximo a poetas da envergadura de Ésquilo, Sófocles e Eurípe-
des. E a celebração desse feito acirra o combate entre Sócrates, Alcibíades
e Agatão (Platão, 2011, p.42).
Do que se trata na transmissão do que se passou nesse banquete?
Trata-se de uma narrativa baseada numa memória; na memória erótica de
um entusiasmado amante de Sócrates, que não estava presente na festa,
Apolodoro (Platão, 2011, p.32).
Como não estava presente no banquete, Apolodoro memorizou o que
lhe contou Aristodemo, amante inseparável de Sócrates. Apolodoro contou
o que escutou a Glauco; que conheceu a história por intermédio de alguém
que a soube através de Fênix; que também a escutou por via de Aristodemo,
o único dentre eles que esteve no banquete, “pois o Banquete é antes uma
ficção histórica de dimensão mítica: distanciando-se dos Apolodoros e Aristo-
demos, a forma que Platão encontrou de ser fiel a Sócrates é reinventando-o.
Rememorá-lo é uma forma de amá-lo, recriá-lo” (Platão, 2011, p.34-35). Essa
dimensão diacrônica permite elevar a verdade histórica ao estatuto de ver-
dade mítica. Nesse sentido, o Banquete é uma invocação do passado, mas
não num sentido histórico; o evento que a obra reconta torna-se uma lenda,
um mito.
Todos amam Sócrates, inclusive Agatão. Agatão faz par amoroso com
Pausânias, o político. Aristodemo é o exemplo do discípulo resignado ao
mestre, que se contenta a imitá-lo, sem nenhuma criatividade, memorizan-
do o que puder dos seus discursos. Apolodoro é descrito como arrogante,
um maníaco. Aristófanes, o comediógrafo, é um dos principais responsáveis
pelas acusações que levaram Sócrates à morte. A sua presença entre os
convidados de Agatão causa surpresa, pois, como o autor da comédia “Só
para mulheres” (thesmophoriazúsai), Aristófanes se encarregou de humilhar
Agatão, ridicularizando-o pelo seu jeito afeminado ao representá-lo como um
extravagante travesti asiático (Platão, 2011, p.39). Alcibíades, por sua vez, é
um homem traiçoeiro, incapaz de praticar as virtudes que lhe ensina o mestre.
Em atitude radicalmente oposta à dos discípulos, Sócrates está sempre
em transformação, ao ponto de interferir criativamente num provérbio citado
80

Revista 47.indd 80 28/10/2015 14:15:08


Ana, Antígona e Diotima...

por Homero, a quem segue de modo diferente do que praticam os seus pró-
prios discípulos. Ou seja,

[...] não no servilismo zeloso de um discípulo que reproduz fielmente


o seu mestre, mas na fidelidade da originalidade, pois o grande po-
eta épico teria, ele mesmo, alterado o provérbio a seu modo. Platão
apresenta duas sombras socráticas que passivamente seguem os
passos de seu mestre sem acompanhá-lo nos caminhos interiores
de seu pensamento. Sua filosofia memorizada é contraposta à fi-
losofia viva do verdadeiro filósofo, Sócrates, que apresenta outra
camada narrativa, a dialógica (Platão, 2011, p.33. Os grifos são da
autora).

Lacan, ao trabalhar o texto platônico, se esmera para estabelecer a ló-


gica implicada no circuito das falas dos convidados de Agatão, na disputa
travada pelo melhor elogio ao amor. Ele parte da dialética da falta, indicando
que Sócrates jamais pretendeu saber coisa alguma além de algo sobre Eros.
É por estar no lugar de sujeito suposto saber sobre o desejo que o discurso
de Alcebíades se dirige a ele. Contudo, Sócrates diz a Alcebíades que não é
a ele quem Alcebíades ama, e, sim, Agatão. Trata-se de um dispositivo que
põe em jogo um lugar Outro, e também um saber inerente ao gozo relativo
à posição feminina, uma vez que Lacan sustenta a existência de um gozo
Outro, não referido aos limites do falo. Um gozo que aponta ao sem limite, à
infinitude. É nesta perspectiva que Lacan propõe uma dualidade de gozos: o
gozo fálico; e por sua insuficiência de satisfação, um gozo Outro, suposto à
posição feminina.
Nessa perspectiva, o feminino indica a existência de algo que está fora
do sexo, fora da divisão sexual, o continente negro como designou Freud. O
feminino ocupa-se do amor, em suplência à impossibilidade de complementa-
ridade sexual, da relação recíproca entre sujeito e objeto. Nessa perspectiva,
o amor viabiliza uma outra modalidade de gozo, tocando no campo da místi-
ca, tal como a personagem Ana, do conto Amor, nos indicou.
O analista, no início de uma análise, é colocado pelo analisando na po-
sição de amado, daquele que tem um saber acerca do sofrimento. O analista
renuncia a esse lugar, tanto quanto ao lugar de amante. Sua função é susten-
tar o desejo do analista, ou seja, o desejo de conduzir a cura, não encarnando
o lugar de sujeito suposto saber.
Cabe ao analista sustentar a experiência da falta, e para isso ele deve
estar prevenido quanto à ilusão de plenitude. Isso faz dele um trágico, no
sentido artístico do termo (e o amor é trágico porque o amor, enquanto fusão,

81

Revista 47.indd 81 28/10/2015 14:15:08


Luciana Brandão Carreira

é impossível). A psicanálise se orienta por uma ética que se sustenta nessa


estética própria à tragédia, numa lógica que permite que se opere, para o
analisando, uma passagem do amor ao desejo. Isto significa sair do lugar de
amado e passar a ocupar o lugar de amante, daquele que vai em busca do
que lhe faz falta, embora o encontro com o que se busca jamais se concreti-
ze. Uma busca movida pelo desejo que a sustenta.
É assim que esse objeto de amor revela a sua inconsistência. Quando
a fantasia que atrela o sujeito a esse objeto se desfaz, há um efeito de tra-
vessia, de atravessamento da fantasia. Esse é o trabalho a ser empreendido
numa análise. Por isso é que se espera que o desejo do analista convoque
um campo relativo ao desejo de fazer, de criar, um savoir-y-faire. Uma inven-
tividade que se mantenha fiel à originalidade, tal como nos ensina Sócrates
ao reinventar o provérbio homérico e Lacan ao reler Freud. Este savoir-y-faire
é o saber próprio ao desejo do analista, o único capaz de provocar efeitos de
transmissão.
No banquete, todos os participantes se referem ao amor como um deus,
ou como algo pleno em si mesmo. Todos, menos Sócrates. Sócrates é a
exceção. E quando chega a vez de Sócrates se pronunciar na disputa sobre
Eros, ele refuta Agatão. Ele indica que Eros não é um deus5, restringindo-se
a transmitir o que uma mulher estrangeira, vinda de Mantinea, certa vez lhe
disse. O nome dessa mulher é Diotima, uma sacerdotisa vinda de fora, do
exterior, de um lugar Outro que não Atenas. É nesse lugar cedido ao feminino
que começa a sua argumentação.
E o que lhe conta Diotima? Ela começa por mostrar que o amor sofreu
algo similar ao que houve com a poiésis – palavra grega que significa a ação
de fazer, de produzir, de criar, engendrar o novo.
Segundo Diotima, todos os elogios sobre o amor estiveram até então
vinculados ao desejo de se unir ao que é bom e nos faz felizes, restritos a
indicar a busca da metade que complemente aquele que padece por algo que
lhe falta, suposto no ser amado.
Essa ideia de amor complementar, em que ocorre a fusão do amante ao
ser amado, fica evidente na trama platônica através do discurso de Aristófa-
nes, que se ampara no mito dos seres inteiriços, os andrógenos, correlacio-
nando a origem dos humanos à origem do amor. Os andrógenos, por serem

5
Segundo ele, Eros é um daimon, ou seja, um intermediário entre homens e deuses, entre mor-
tais e imortais.

82

Revista 47.indd 82 28/10/2015 14:15:08


Ana, Antígona e Diotima...

muito ágeis e extremamente ousados (em função de suas quatro pernas,


quatro braços, uma cabeça com duas faces e dois sexos), foram castiga-
dos por Zeus e cortados ao meio como sardinhas. Desde então, tornaram-se
ávidos pelo reencontro das suas metades perdidas. Logo, a transferência é
a maneira pela qual o amor faz operar a poiésis psicanalítica, que tem uma
ética própria. O discurso de Diotima tem a ver com esse empuxo, que indica
um outro destino para a pulsão que não é a dessexualização, tampouco o
recalcamento.
Ao definir o amor, Lacan recorre à parábola bíblica mencionada nos
evangelhos de Marcos e Lucas, em que a viúva pobre oferece o que não tem,
pois “amar é dar o que não se tem” ([1960-1961]2010, p.41)6. O amor que
inspira o desejo do analista baseia-se justamente numa troca em que se dá o
que não se tem. Pois dar o que não se tem é dar a falta. E nessa partilha, o
que se produz é a transmissão de uma dimensão real da experiência analíti-
ca, ou seja, a perda do objeto desde sempre faltante. Uma partilha que impli-
ca uma expansão, a possibilidade de algo ser feito com a falta. Uma criação,
porque a falta é irredutível.
Se o que se transmite através da escrita é o estilo, podemos dizer que
essa transmissão implica, fundamentalmente, uma operação de leitura; algo
que se passa na mais completa solidão, quando o amor prevalece na força
de um traço de escritura, passível de ser lido enquanto o que há de mais ir-
redutível para um falante. Quando o que se compartilha é nada mais do que
a falta, dando-se o que não se tem. Afinal, “[...] amor será dar de presente
um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de
si”; escreveu certa vez Clarice Lispector em sua crônica intitulada Presente
(Lispector, 1999, p.418).

REFERÊNCIAS
BLANCHOT, M. L’espace littéraire. Paris: Éditions Gallimard, 2009.
BRANCO, L.C.; BRANDÃO, R.S. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina Editora,
2004.
JORGE, M.A. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. v. 2 – A clínica da fan-
tasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1997.

6
Essa famosa frase foi cunhada por Lacan durante o Seminário A Transferência, em 1960 (2010,
p.41) e retomada por ele dez anos depois, no contexto do seminário O avesso da psicanálise
([1969-1970]1992, p.49).

83

Revista 47.indd 83 28/10/2015 14:15:09


Luciana Brandão Carreira

______. O seminário, livro 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,


2010.
______. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964].
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1992.
______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.
LISPECTOR, C. Amor. In. ______. Laços de família. . Rio de Janeiro: Rocco, 1998,
p.19-29.
______. Presente. In. ______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999,
p.418.
PLATÃO. O banquete. Edição bilíngue; tradução Carlos Alberto Nunes. Organização
Benedito Nunes e Victor Sales Pinheiro. 3. ed. Belém: Ed. Ufpa, 2011.
SÓFLOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM pocket, 1999.

Recebido em 13/10/2013
Aceito em 18/03/2014
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

84

Revista 47.indd 84 28/10/2015 14:15:09


Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.85-99, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS O DESPERTAR DO FEMININO


NO ENREDO ANALÍTICO1

Denise Maurano2

Resumo: Neste trabalho busco mostrar que a dimensão feminina da expressão


barroca, tomada como herdeira do pensamento trágico, nos serve de alavanca
metodológica para situar questões cruciais da ética que rege o desejo do psica-
nalista, orienta a sua prática e sustenta seu discurso. Também foi abordada a es-
pecificidade da inserção da psicanálise no contexto barroco da cultura brasileira.
Palavras-chave: feminino, psicanálise, barroco, tragédia, discurso.

THE FEMALE AWAKENING IN THE ANALYTICAL PLOT 


Abstract: In this paper tried to show that the feminine dimension of Baroque ex-
pression taken as heir to the tragic thought, serves us as a methodological lever
to place crucial issues of ethics governing the desire of the psychoanalyst, guides
their practice and maintains his discourse. The specificity of psychoanalysis inser-
tion in the Baroque context of Brazilian culture was also discussed.
Keywords: feminine, psychoanalysis, baroque, tragedy, discourse.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Escritas do sexual, outubro de 2013,
em Porto Alegre.
2
Psicanalista. Membro do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro;
Professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), atuando
no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e no Centro de Ciências Jurídicas, Políticas
e Sociais; Doutora em Filosofia pela Universidade de Paris XII e PUC/RJ; Pós-doutorado em
Letras, pela PUC/RJ. É autora, dentre outros livros, de Para que serve a psicanálise? (Jorge
Zahar ed.), A transferência (Jorge Zahar ed.), Histeria: o princípio de tudo (Ed. Civilização Bra-
sileira), e Torções: a psicanálise, o barroco e o Brasil Edita o periódico eletrônico Psicanálise e
Barroco em Revista, disponível em www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista. E-mail: dmaurano@
corpo freudiano.com

85

Revista 47.indd 85 28/10/2015 14:15:09


Denise Maurano

A psicanálise surge a partir de uma investigação do sujeito. Como o aborda


na condição de sujeito do desejo, o que ela vai encontrar na matriz desse
desejo é o Outro, frente ao qual o sujeito humano, em sua prematuridade,
se referenda. Os ideais de autenticidade, independência, já se revelam fu-
rados a partir daí. Porém, o processo de subjetivar-se não implica uma sim-
ples alienação ao desejo do Outro. Se assim o fosse, se diria que o sujeito
é absolutamente determinado, e, por consequência, que a psicanálise teria
uma visão absolutamente determinista do sujeito. Essas duas afirmações são
equivocadas. Isso, porque o processo de subjetivação, tal qual proposto pela
psicanálise, inclui simultaneamente uma outra operação, além da alienação.
Aquela pela qual o sujeito, por um reviramento próprio, constitui o seu próprio
desejo frente ao desejo do Outro. Ou seja, inscreve seu desejo demarcando
uma separação do desejo do Outro, embora esteja apenso a este. O desejo
encontra-se para o sujeito como que elevado à segunda potência. É nesta
perspectiva que, para a psicanálise, o sujeito é tão livre quanto determinado.
Nesse contexto, o conceito de desejo do analista, tal como proposto por
Lacan, será neste momento esclarecedor. Se o surgimento de um psicanalis-
ta está condicionado ao resultado possível do processo psicanalítico, o que
inclusive justifica que nenhum curso, nenhum certificado possa atestar que
alguém esteja apto para sustentar a função de analista, então encontraremos
no desejo do psicanalista, ou seja, no desejo deste que é fruto desse proces-
so, a indicação do que se espera de um processo psicanalítico, ainda que
este processo não resulte, necessariamente, no surgimento de um analista.
Jacques-Alain Miller, aludindo ao fato de que, via o recalcamento, opera
em nós um desejo de não saber, um desejo de dormir, tal como Freud men-
ciona na Interpretação dos sonhos, dá uma interessante formulação ao de-
sejo do analista, situando-o como uma exceção a esse desejo de dormir. Ele
diz: “Seria o desejo de despertar, não apenas despertar-se e, sim, despertar
o Outro. É um desejo de despertar-se do desejo, enquanto desejo do Outro”
(Miller, 1991, p.22).
A ideia aqui referida vincula-se ao fato de que, se, por um lado, é com
uma fantasia fundamental de si mesmo que um sujeito veste sua falta-a-ser,
constituindo assim sua subjetividade, via a emergência de um desejo, que
marca um estilo próprio de ele se haver com o desejo do Outro, salvando-se
da absoluta inconsistência e da confrontação insuportável com o real, por
outro lado, a travessia da fantasia, processo visado no tratamento analítico,
virá configurar que esta “nada mais é do que um modo de dizer o desejo de
despertar do desejo” (Miller, 1991, p.22). Antes de qualquer coisa, é impor-
tante que fique claro que tal travessia não é de forma alguma dissolução da
fantasia, como se fala em dissolução do Édipo, até porque não há sujeito que
86

Revista 47.indd 86 28/10/2015 14:15:09


O despertar do feminino no enredo analítico

sobreviva a tal dissolução, dado que é o vazio da falta-a-ser que obscena-


mente viria à luz, anulando o sujeito aí subsumido pela crueza do real. A ideia
de travessia implica tanto a manutenção de algo, quanto a possibilidade de
se ir além, atravessar.
Assim, se o Outro do desejo vige imperioso no sujeito, escravo da fan-
tasia, para o seu melhor e para o seu pior, e ocorre ao sujeito o imperativo
de deslocar-se dessa posição, em função de algum mal-estar insuportável,
o processo analítico apresenta-se como estratagema. Por este, o sujeito,
convocado a dar um passo para além do Outro e, portanto, a ultrapassá-lo,
encontra, sim, turbulência e insegurança, tocando uma dimensão de dessub-
jetivação; porém, a rede que sustenta esse processo, que não deixa de ser
melindroso, encontra no amor, como dom ativo, o fundamento do desejo do
analista.
Quando Lacan, no seminário A transferência ([1960-1]1992), lança mão
do discurso de Sócrates no Banquete de Platão, para demarcar a maneira
própria do amor operar no processo analítico pela função do desejo do ana-
lista, ele nos oferece uma chave preciosa de articulação entre a estética e a
ética. No discurso, Sócrates diz nada saber do amor, senão o que escutou de
uma mulher. Nesse lugar curioso cedido ao feminino, a argumentação, que
visa situar o que é o amor, começa por mostrar que a palavra poiésis significa
em geral a ação de fazer, de produzir, a causa que faz “passar o que quer que
seja do não ser ao ser” (Platão, 1949, p.139), acabou por ficar mais particu-
larmente ligada à ação de fazer versos ou música. Com o amor aconteceu o
mesmo, ele que estaria vinculado em sentido amplo ao desejo do que é bom
e nos faz felizes, “grande sedutor inato em todos os corações” (Platão, 1949,
p.139), ficou restrito a indicar a busca da metade de si mesmo. E acrescenta,
se o amor se refere a perseguir com ardor o bom, qual o ato particular no
qual fazer isso toma o nome de amor? Ou seja, que “bom” é esse que está
em jogo no amor? E Diotima responde: “– É a produção da beleza, seja pelo
corpo, ou seja pela alma” (Platão,1949, p.140). Ela explica que chega uma
certa idade em que somos incitados a produzir, e é a proximidade do belo
que incita a produção. A feiúra não convoca a produção. O amor busca a
beleza porque esta implica engendramento. Junto a ela, o ser fecundante “se
dilata, engendra e produz” (Platão,1949, p.140). Ela não é o objetivo do amor,
mas é a via pela qual o homem se faz criador, modo pelo qual sua natureza
mortal quer participar do imortal, como lhe for possível. Assim, a beleza se
harmoniza com o que é da ordem do divino, coloca-se, eu diria, como meio de
transporte que faz essa comunicação. Faz-se simultaneamente acolhimento
do precário e expressão de expansão. O amor que interessa é o que inspira
a criação.

87

Revista 47.indd 87 28/10/2015 14:15:09


Denise Maurano

Agora vocês poderiam perguntar: – E o que o analista tem a ver com


isso? Eu diria o analista tem tudo a ver com isso. Essa abordagem do amor
que o desloca da colagem ao objeto, sem, entretanto, tirá-lo de causa, des-
cortina um universo bem mais amplo de possibilidades. Quando o objeto, ou
melhor, a fantasia que atrela o sujeito ao objeto revela-se em sua inconsis-
tência – o que é efeito da travessia acima mencionada –, espera-se que o de-
sejo do analista convoque um campo relativo ao desejo de fazer, ou melhor,
opere na direção na qual o saber encontra-se vinculado a um saber-fazer, um
savoir-faire. Este é o saber que distingue o desejo do analista, e o faz operar
em sua direção. Esse saber não tem nada a ver com nenhum tipo de erudi-
ção, ou acúmulo de informação, mas refere-se à possibilidade de se tocar “o
espírito da Coisa”, como eu costumo dizer nos meus seminários.
A transferência vem a ser a maneira pela qual na poiésis psicanalítica,
nesta forma peculiar de produção que se sustenta no desejo do analista,
trata-se, tal como aparece no discurso de Diotima, de operar com o amor en-
quanto meio de transporte do que quer que seja do não ser ao ser, ainda que
esse ser não seja senão fruto de ato de criação, e portanto, contorno e não
supressão de um vazio insuturável, mas frente ao qual se pode fazer alguma
coisa. É a dimensão fecundante da beleza o que opera no amor que interessa
ao desejo do analista.
Assim, é esperado que o analista intervenha, não a partir do sujeito que
ele é, mas da função que ele sustenta. O que revela que não basta uma mera
abstenção subjetiva, mas, sim, trata-se da implicação de uma experiência
de dessubjetivação que é fruto de sua própria análise. Para isso, é preciso
que ele faça um percurso que venha lhe possibilitar, tanto uma queda do
Outro enquanto assegurador do ideal da verdade, quanto um certo luto do
objeto, com o qual tentamos obturar nossa falta a ser. O analista, intervindo
do lugar de semblante do objeto, que é causa de desejo para sujeito que
ele escuta, busca que algo deste desejo possa ser demarcado em análise.
Quero sublinhar que sua capacidade de intervir a partir desse objeto a é algo
que constitui efeito da própria análise do analista. Ou seja, é a partir da pró-
pria experiência do analista com esse curioso objeto a, em sua análise, esse
objeto que se afigura como polo de atração de toda demanda e de condição
absoluta para a existência do desejo, que uma interrogação sobre o desejo
pode produzir essa exceção que, sendo um desejo, não é desejo do Outro.
Nesse sentido, cabe ao amor analítico a definição a que aludiu Lacan,
referida à citação de uma parábola bíblica, na qual é dito que “amar é dar o
que não se tem”. Dar o que não se tem é dar a falta. Mas, obviamente, isso
só é indício de amor na medida em que dar a falta for oferecer possibilidades
de operar com ela. Trata-se, portanto, de produzir a partir mesmo dessa falta.
88

Revista 47.indd 88 28/10/2015 14:15:09


O despertar do feminino no enredo analítico

Isso, porque ela é irredutível, como revela o fracasso dos obturadores ima-
ginários que tentam suprimi-la. Toca-se aí a questão da transmissão de uma
dimensão real da experiência, que em nosso caso é a experiência analítica.
É nessa perspectiva que o que fazemos como analista na clínica não é hete-
rogêneo à transmissão da psicanálise em outros âmbitos.
Vista a dificuldade de sustentação dessa função, cabe que nos pergun-
temos, enquanto analistas, em que medida estamos em déficit no que diz res-
peito ao desejo do analista. Cabe que, enquanto “um” analista que somos, nos
indaguemos sobre o modo pelo qual estamos sustentando o desejo “do” ana-
lista. Nesse sentido, creio que o artigo definido “o” para definir o analista, seja
barrado, tal qual foi proposto barrar o artigo definido “a”, para designar A mu-
lher. Ou seja, nada atesta a existência de O analista, da mesma forma em que
A Mulher não existe, no sentido de que ninguém é mulher em sua totalidade. O
que, entretanto, não impede a presença efetiva do feminino em nossas vidas, e
nem que os efeitos de fecundidade do desejo do psicanalista apareçam como
resultado do processo sustentado por um analista. Eis aí a afinidade entre Ⱥ
Mulher e ϕ Analista.
No caso do feminino, isso não coloca grandes problemas, já que o fe-
minino não se faz ofício. Porém, no caso do analista, fica a questão de como
autenticá-lo, ou seja, como reconhecer um analista, dado que, como vimos,
não são títulos, diplomas, cumprimento burocrático de regras, que atestam
que alguém está apto a sustentar essa função. Configuram-se portanto, dois
planos de questões cruciais para a sustentação e o desenvolvimento da
psicanálise. Um diz respeito a sua transmissão, ou seja, ao modo de fazer
passar a outros, não apenas o que pode ser ensinável, via o entendimento
teórico-prático, mas sobretudo o mais difícil, a dimensão real da experiência
psicanalítica. O outro se refere aos meios pelos quais se pode reconhecer
que alguém está apto para a função de analista, podendo portanto ter, de
algum modo, sua formação autenticada. Dediquei-me, neste trabalho, ao pri-
meiro plano de questões. Ainda que este tenha repercussões para a abor-
dagem de questões relativas ao segundo plano, não se tratou, de qualquer
forma, de desenvolvê-las aqui.
Nesta perspectiva, focalizando a transmissão da ética da psicanálise
como eixo central de sustentação do rigor e da originalidade da proposta
freudiana, e reconhecendo sua dificuldade, busquei lançar mão de certas
expressões estéticas que melhor nos sensibilizam para acolher essa ética.
A arte trágica anteriormente, e a expressão barroca por mim abordada como
uma alavanca metodológica em vários momentos no meu percurso, foram
grandes achados. Não me ative a relações de analogias, embora algumas
delas sejam ilustrativas, mas, sobretudo, à averiguação de uma afinidade

89

Revista 47.indd 89 28/10/2015 14:15:09


Denise Maurano

estrutural pertinente a esses campos. Um trabalho escrito por Sarduy, consi-


derado um dos teóricos mais afinados com as novas expressões do barroco,
o que Irlemar Chiampi denominou como uma interpretação psicanalítica com
enfoque semiológico do trabalho de Isidoro Ducasse – o conde de Lautréa-
mont –, traz uma contribuição que julguei interessante. Embora o enfoque
semiológico não seja o nosso, vale conferir o que o autor sugere.
Em “Lautreamont e o barroco”, apêndice do livro Lautréamont austral,
Severo Sarduy (1995), leitor assíduo de Lacan, vale-se de conceitos desse
autor em sua análise. Atribui ao nome que Ducasse escolheu para seu con-
de apócrifo, Lautréamont, a marca de uma divisão subjetiva que se presenti-
fica em l’autre, presente no nome. Localiza aí, a inscrição da americanidade
barroca secreta desse conde, habitante da Paris do século XIX.
Nessa linha de raciocínio, relaciona três períodos simbólicos: classicis-
mo, romantismo e barroco, ao predomínio relativo a um movimento estético
que poderia ser expresso, prevalentemente, por um significante lacaniano.
O classicismo corresponderia ao predomínio do Outro, tomado como um ho-
rizonte de referência. O romantismo privilegiaria o sujeito barrado, dividido,
($), que coincidiria com a figura do herói romântico. O barroco estaria mais
bem referido pelo objeto a, objeto posto entre parênteses, inarticulável em
definitivo por ser relativo ao objeto perdido no surgimento da função desejan-
te; objeto que, por evocar gozo, funciona como causa de desejo. Tal objeto,
imantado pelo desejo, permanece como resíduo do grande Outro, constitui-se
como o que dele caiu.
Nessa leitura, Sarduy reinterpreta a rota de Ducasse como o herói ro-
mântico que, tendo deixado em Montevidéu o grande código do classicismo,
apreendido pela retórica clássica de seu mestre Hermosella, deambulou físi-
ca e imaginariamente na direção do barroco, aportando em Paris o ouro des-
viado da América. O que Sarduy identifica como modus operandi do barroco é
“o fenômeno do deslocamento de um dado território a outro do discurso para
ganhar um ‘suplemento de significação’, ‘um excesso energético’. O barroco
é um processo que retrabalha depósitos de linguagem, torna-os citações...
(Chiampi, 1998, p.62).
Assim, tomando o barroco nem propriamente como estilo de época, nem
como eon temporal3, o aborda mais especificamente como “modo de dinami-

3
Representa um período da linha do tempo desde o presente até a formação da Terra. A história
do planeta é dividida em eons na geologia.

90

Revista 47.indd 90 28/10/2015 14:15:09


O despertar do feminino no enredo analítico

zar esteticamente o amontoado inútil dos saberes acumulados, [...] reciclan-


do-os” (Chiampi, 1998, p.62). Chiampi reconhece neste ponto a afinidade de
Sarduy com Walter Benjamin, que, tomando o barroco como origem, frag-
mento liberado do processo histórico e do encadeamento causal que “emer-
ge do vir-a-ser da extinção” (Benjamin, 1925, p.67-68, apud Chiampi, 1998,
p.63), vê no barroco o espaço da alegoria e do manejo de fragmentos, em
que há uma recusa de formar uma imagem global. Sarduy, segundo Chiampi,
vê na relação da topologia que maneja sujeito, Outro e objeto, a estrutur da
obra barroca como manejo de fragmentos, esclarecendo que

o barroco predomina o pequeno a, fragmento do grande Outro (o


classicismo): é este o objeto sempre postergado e evanescente –
porque o sujeito $, que só existe em função do objeto do desejo, só
pode também manejá-lo por fragmentos, retalhos de discursos, sig-
nificantes que não oferecem jamais uma imagem total (do mundo)
(Chiampi,1998, p.63).

A fecundidade da proposta de Sarduy, de relacionar a obra barroca ao


objeto a, facilita, eu creio, o estabelecimento de sua relação ao que Lacan
propôs formular como discurso analítico, em sua teoria dos discursos. Nela,
trata-se da questão de que entre sujeito ($) e objeto (a) existe um fosso, que
será preenchido pela linguagem, por significantes: (S1), significante de co-
mando na constituição do sujeito, e (S2), todo o saber que se agrega incons-
cientemente ao significante de comando. Esses quatro elementos ($, S1, S2,
a) estariam conjugados em todas as modalidades de discurso, que são de
fato, modalidades de laço social. O discurso psicanalítico implica uma mo-
dalidade muito peculiar de laço social que, a meu ver, pode ser reconhecida
como tendo a mesma natureza da que é promovida pela obra barroca, que
com toda pertinência caracterizou o “estilo da orelha”4, maneira pela qual,
conforme mencionei, o barroco foi designado na Baviera Meridional.
Os discursos enquanto estruturados condicionam as palavras que por
eles possam se produzir. São expressões da forma como o sujeito maneja a
linguagem em seus elementos significantes, para se haver com o objeto que

4
Esta metáfora, lembrada por Michel Maffesoli, em No fundo das aparências, Vozes, 1996,
p.216, foi utilizada na Baviera Meridional, e refere-se à designação do barroco para sublinhar a
ligação que ele promove entre o exterior e o interior do corpo.

91

Revista 47.indd 91 28/10/2015 14:15:09


Denise Maurano

lhe falta. E é porque esse objeto interessa que as modalidades de discursos


estão sempre ligadas aos interesses do sujeito, ou seja, revela modo de gozo.
O barroco, referido não meramente como o estilo de um período, mas
como uma estrutura, parece revelar que essa modalidade de expressão pode
ser pensada como sustentada sobre esse tipo de laço social que, inspirado
pela dimensão enigmática do saber, enquanto saber inconsciente, e dirigin-
do-se ao Outro, tomando-o como sujeito dividido, intervém como causa-de-
desejo, incitando no sujeito a produção do que o comanda. Ou seja, produ-
zindo, de certa forma, efeitos de subversão desse comando.
Para a psicanálise, o sujeito é o que advém onde alguma coisa falta.
Não se trata de negar a questão do vazio ontológico, cara a certos campos
da filosofia; porém, o vazio enquanto tal não é operativo. Para a psicanálise
interessa operar com a falta, saber fazer com ela. O sujeito de que se trata
aqui não é, nem psicológico, nem ontológico, nem biológico, ou o que quer
que seja que poderia fazê-lo consistir a partir de algo. O sujeito é um efeito
do desejo, referido enquanto desejo inconsciente, conforme já vimos. Não há
sujeito senão por referência ao que é designado com o termo da castração.
Já no seminário 3, As Psicoses, Lacan havia advertido que “o subjetivo não
está do lado daquele que fala. É algo que reencontramos no real” (Lacan,
[1955-56]1985, p.213). Nesse sentido é que Lacan dirá que o sujeito serve-se
do significante, não para significar algo, mas para enganar sobre o que tem
de significar. A simbolização, ou seja, o que abre o campo da eficácia da lei,
desempenha um papel balizador frente ao enigma radical da vida e de tudo o
que ela implica, mas o sujeito não se reduz a isso. Anteriormente, ainda nes-
se mesmo seminário, Lacan já havia indicado o que quer dizer o complexo de
Édipo: “a Lei está justamente ali desde o início, desde sempre, e a sexualida-
de humana deve se realizar por meio e através dela” (Lacan, [1955-56]1985,
p.100), e acrescenta mais adiante:

Não há outra definição científica da subjetividade senão a partir da


possibilidade de manejar o significante com fins puramente signifi-
cantes, e não significativos, isto é, não exprimindo nenhuma relação
direta que seja da ordem do apetite (Lacan, [1955-56]1985, p. 216).

Dentro dessa ótica, a simbolização que coloca no centro da cena a fun-


ção mesma do significante como tendo suas leis próprias, independentes do
significado, revela que o sentido da descoberta de Freud situa-se bem além
do ter encontrado significações, ainda que sejam sempre as significações
que aparecem no primeiro plano da análise pelo seu efeito de sedução. O
sentido afinal, parece dar consistência ao ser, parece dar o peso mesmo da
92

Revista 47.indd 92 28/10/2015 14:15:09


O despertar do feminino no enredo analítico

existência, sua ancoragem. Vale lembrar que o significante tem um papel


mediador primordial, sendo o elemento-guia no mapeamento da relação do
sujeito ao desejo que o inaugura.

O que se exprime no interior do aparelho e do jogo significante é


algo ue sai do fundo do sujeito, que pode chamar-se de seu desejo.
Desde o momento em que esse desejo é preso no significante, é um
desejo significado. E então todos nós ficamos fascinados pela sig-
nificação desse desejo. E nós, nos esquecemos, apesar dos lem-
bretes de Freud, o aparelho do significante (Lacan, [1955-56]1985,
p.270 ).

O aparelho significante inscreve-se como apelo a uma garantia possí-


vel. “O simbólico dá uma forma na qual se insere o sujeito no nível de seu
ser. É a partir do significante que o sujeito se reconhece como sendo isto ou
aquilo” (Lacan, [1955-56]1985, p.205). O homem, esse ser que fala, que é o
suporte do verbo, deve também garantir o verbo. Nesse sentido, “o homem
se tornou refém do Verbo porque disse a si, ou também para que dissesse a
si, que Deus está morto” (Lacan, [1960-61]1992, p.296). Com isso, a hiância
que nesse ponto se abre remete à dimensão de recusa, de negação daquilo
em que se crê, fazendo emergir o não senso, que dá a “medida” da dimensão
trágica. O que nela está perdida é a noção de Deus como “abonador do ser”
(Lacan, [1955-56]1985, p.119), expressão cunhada por Lacan no seminário
3, As psicoses.
Portanto, a trama simbólica, a rede de significantes, não consegue pro-
piciar todos os elementos de sustentação para a existência. O fato de um ser
nascer de outro, a procriação mesma, resta como um enigma imenso. Isso
justifica a afirmação: “no simbólico, nada explica a criação” (Lacan, [1955-
56]1985, p.205). Tal ponto tange o limite do que é possível ser assimilado
pelo significante. A ideia de uma existência singular, que abriga questões
como – De onde vim? Com que finalidade? Para onde vou? –, torna o sig-
nificante impotente para responder, pelo fato de colocar antecipadamente o
sujeito para além da morte, ou seja, já considerá-lo morto, substituído por
esses traços que paradoxalmente o imortalizam por essência (Lacan, [1955-
56]1985).
Tenho defendido a ideia de que não é casual que a contemporaneidade
seja o momento do surgimento da psicanálise. Ela surge buscando responder
a certos impasses que, por mais que tenham suas incidências ao longo da
história, são peculiares de nossos tempos, fazem parte de nosso universo
de indagação e do modo que encontramos de operar com ele. Se os apelos

93

Revista 47.indd 93 28/10/2015 14:15:09


Denise Maurano

à razão ou à lei continuassem acenando, como podendo oferecer respostas


definitivas para os impasses da vida, não creio que teríamos, no decorrer da
história, nos deslocado para o apelo à libido, ou seja, ao que gira em torno
das preocupações com o amor e o sexo, e a reboque a economia, como men-
cionei acima, que caracterizam o sujeito contemporâneo. Tal sujeito, frente ao
fracasso da libido para sustentar tudo que ele espera da vida, encontra-se às
voltas com uma exigência de gozo que demarca o rombo da sua insatisfação.
Esse apelo à libido é o que, segundo penso, justifica o surgimento da psica-
nálise, que o acolhe para manejá-lo através de uma ética bastante peculiar.
Bastante depois de ter apresentado o seminário 7, A ética da psicaná-
lise ([1959-60]1988), Lacan percebe, na crítica que ali tinha feito a propósito
do bem visado de diferentes formas pela ética filosófica, que faltou explicitar
a questão do gozo aí implicada. Assim, retoma doze anos depois, no seu o
seminário 20 ([1972-73]1982), o tema da ética para revisá-lo, e para analisar
as diferentes funções do gozo e do amor na economia psíquica, e suas con-
sequências nas ações humanas. É nesse momento que focaliza a mulher em
referência a uma possibilidade de gozo Outro, sempre visado, que escaparia
à referência fálica, às determinações do órgão ou dos sexos; um gozo que
fruiria de um mais além da linguagem, e por isso se avizinharia da mística.
Tal gozo “a mais” seria suposto próprio à Ⱥ Mulher. De forma que os
sujeitos, mais do que marcados pela divisão implicada pela bissexualidade
humana, seriam cindidos por uma outra dualidade – a dualidade de gozos: o
gozo fálico e um gozo Outro, suposto, sempre visado. Um gozo que, pode-
mos pressupô-lo não como relativo ao sujeito, mas como relativo à dessub-
jetivação. É nesse momento de sua obra que Lacan declara que se alinha
do lado do barroco ([1972-73]1982). Entretanto, não desenvolve essa ideia,
ainda que ela venha a permear todo o resto de seu trabalho.
A Idade Moderna, com o apelo aos valores da razão, traz em seu bojo a
própria tematização da subjetividade com toda a problemática que lhe é ine-
rente. Neste período, que é caracterizado nas artes como período Renascen-
tista, e portanto de retorno aos valores clássicos, surge a tridimensionalidade
da perspectiva, derrubando as muralhas medievais e conduzindo até mesmo
a um novo planejamento urbano. Aqui, não apenas o modo de ser, mas tam-
bém o modo de viver dos sujeitos, sofre transformações.
Com a emergência do que só posteriormente foi designado como es-
tilo barroco, novas alterações se evidenciam, e, como diz Miller, ainda que
muito en passant, “aparece o caráter incompleto, barroco, do eu” (Miller,
1991, p.37). As obras criadas dão testemunho disso. A perspectiva simé-
trica renascentista desvirtua-se, as proporções tornam-se mais expressio-
nistas, o olho do pintor, ou do artista, parece aí acolher um certo estado
94

Revista 47.indd 94 28/10/2015 14:15:09


O despertar do feminino no enredo analítico

alucinatório. O que certamente será bastante explorado nas artes subse-


quentes, vide o que surgirá mais tarde como expressionismo, cubismo,
surrealismo, etc. Como diz Sant’Anna, “o espelho barroco, então, ao invés
de simetria, passa a reproduzir tortuosidades; ao invés da objetividade,
subjetividades. O espelho se converte em lente” (Sant’Anna, 2000, p.43.)
A subjetividade entra em cena não como o lugar do erro, não para ser
criticada, ou neutralizada, mas como aquilo do que não se pode escapar em
se tratando de abordar o humano na sua relação dinâmica com a vida. Exa-
tidão e objetividade transformam-se em incerteza e subjetividade, revelando
o que as tragédias do período moderno já anunciavam, e é por isso mesmo
que intervinham como rupturas com o pensamento vigente. Aqui, por exem-
plo, o olho do pintor, que não é mais ordenador do universo, não está mais
no centro do quadro, mas, sim, se encontra numa perspectiva giratória, que
como diz Sant’Anna, pode causar tonteira na alma. Nada é mais expressivo
deste contexto que os efeitos de ilusão de ótica tão usuais na arte barroca,
conforme comentei anteriormente.
Tais alterações, tais propostas, são decorrentes de novas inquietações
trazidas pelos novos contextos da cultura. Apresentam-se como expressão
de novos modos de subjetivação, que têm como efeito a produção de novi-
dades, tanto no campo do pensamento como no campo das artes.
Nas interpretações sobre o barroco, encontramos frequentemente a ên-
fase na relação deste com a imagem de um mais além, que, surpreendendo
os sentidos, provoca o fervor das multidões – o que foi muito bem aproveitado
pela Igreja Católica na Contra-Reforma, para fazer retornar os fiéis que esta-
vam debandando para o protestantismo. Essa aspiração ou apelo à evasão,
e também a abordagem do corpo na produção barroca, que não escapou
às observações de Lacan, incitou que se averiguasse sua relação ao gozo,
conforme mencionado acima.
Disso decorre que os modos de subjetivação incitados pela cultura tra-
zem implicações para a maneira como o sujeito vai se haver com seus mo-
dos de gozo. E, no rastro disso, podemos ainda situar consequências para a
maneira como a remissão ao feminino se coloca, para esse sujeito, na via de
seu acolhimento ou repulsa. Nesse contexto, é toda a questão da dualidade
de gozos – um fálico, viril e outro suposto, referido ao inefável, e ao enigma
do feminino, conforme apresentei acima – que está em jogo.
Obviamente um entrecruzamento entre a expressão trágica e a ex-
pressão barroca, no que se refere à suas aproximações à psicanálise, foi
uma decorrência natural deste trabalho. As artes barrocas apresentam diver-
sas constantes bastante bem trabalhadas por Wölfflin (1985) e, em muitas
das quais, é possível encontrar aproximações com as leis do inconsciente,

95

Revista 47.indd 95 28/10/2015 14:15:09


Denise Maurano

tais como estas são elaboradas por Freud em sua metapsicologia (Freud
[1915],1988).
Algumas destas aproximações coincidem com as encontradas na in-
vestigação dos princípios constitutivos da arte trágica. Por exemplo, a no-
ção barroca da dissolução da exclusão dos contrários, na qual se enfatiza a
permeabilidade dos opostos, conduz à ideia de paradoxo, tão presente nas
tragédias quanto no inconsciente, onde valores heterogêneos são afirmados
sem que sejam excludentes.
A lógica hiperbólica, que é peculiar à arte trágica, e é proposta por
Hölderlin como o que revela o equilíbrio instável entre os dois princípios in-
separáveis: o aórgico e o orgânico, – o estado desprovido de lei e o estado
regido pela lei (Dastur, 1994, p.199), encontra também destacada função nas
produções do barroco (Dubois, 1993, p.113). A problematização das fron-
teiras entre ilusão e realidade, o divino e o humano, o sagrado e o profano, o
excesso, a desproporção, que são constantes no barroquismo, encontram
um parentesco próximo nas produções trágicas e nos processos do incon-
sciente. Da interlocução que pode ser empreendida entre esses diferentes
campos colho meios de melhor explicitar a intervenção dessas expressões
na cultura e sua afinidade com a perspectiva psicanalítica de abordagem do
sujeito, e da condução da proposta clínica dela decorrente.
Penso que por essa via percebe-se o caráter topológico dessa abor-
dagem do heterogêneo. Aguçar recursos para abordar o heterogêneo, creio
ser tarefa fundamental demarcada pela arte trágica, pela expressão barroca
e, por que não dizer, pelo desejo do analista, enquanto desejo de pura dife-
rença, desejo de demarcação do significante de comando na investigação
da subjetividade, e dos modos de gozo que operam no sujeito. Estamos aí
num plano bastante diferente daquele que se dedica a afirmar identidades.
É justamente com a insipiência da suposta identidade aquilo com que traba-
lhamos.
Sublinho que o trágico e o barroco, em afinidade com a psicanálise, re-
velam que se pode pensar, não pela via do antagonismo, mas na perspectiva
do paradoxo. O pensamento trágico é este tipo de pensamento que acolhe
a ausência do não no inconsciente. A ênfase nisso dimensiona, a meu ver,
a grandeza do passo de Freud, para além do cartesianismo, na invenção da
psicanálise, e a pertinência da contribuição de Lacan, tanto em sua forma de
ampliar a teoria e a clínica freudiana, como no estilo, e nos recursos sugeri-
dos para a sua transmissão.
Parece ter sido justamente esse passo para além do cartesianismo que
favoreceu o desenvolvimento do barroco no chamado Mundo Novo, com des-
taque especial para a América ibero-espanhola, local onde essa expressão
96

Revista 47.indd 96 28/10/2015 14:15:09


O despertar do feminino no enredo analítico

artística foi favorecida pelo viés da modernidade que se expandiu no veio das
transformações e da conjugação de fragmentos, numa mestiçagem que, pro-
cedendo por uma particular conjugação, marcou a originalidade do barroco
aqui produzido.
No caso do Brasil, valeu destacar a exuberância desse estilo, que aca-
bou por cunhar a marca da relação de um povo com a cultura que o cons-
tituiu, e que foi constituída por ele, trazendo consequências para a própria
maneira pela qual a psicanálise entrou e foi assimilada nesse país. Essa
orgia da aparência, essa exuberância visual que caracteriza o Brasil e, como
diz Maffesoli [1996], o destina a “laboratório da pós-modernidade”, nos apro-
xima do saber trágico sobre o vazio, que o véu da beleza barroca encobre,
ao mesmo tempo que deixa ver. Nele, a visão ordenada e autoritária da vida,
tão cara ao Renascimento, é convocada a traduzir-se na curvas da natureza
humana e a incorporar sua selvageria, dando-lhe forma bela.
Esse barroco, que inventou este país, recicla-se incessantemente no
que aqui se produz, traçando conexões de Aleijadinho a Niemeyer, de Gre-
gório de Matos a Caetano Veloso, do Padre Antônio Vieira a Guimarães
Rosa, matizadas por um fundo musical barrocamente entoado por Villa Lo-
bos e muitos outros, e é apontado por modernistas, críticos da brasilidade,
como Mário e Oswald de Andrade. E isso tudo sem falar do nosso carnaval,
que, operando uma torção do sagrado ao profano, faz entoar o cântico dos
cânticos, que reúne na solenidade da alegria e da embriaguez, o luxo da
peculiar harmonia de cores, de corpos e de movimentos, que em puro des-
perdício esbanjam a arte, a vitalidade e a força do nosso homo viator bar-
roco, que usa o chão para levantar voo com seu samba no pé, contagiando
quem quer que chegue perto. Realmente, não é à toa que, no ano de 2004,
a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, tendo como enredo de
seu desfile a redescoberta da Estrada Real, trouxe para a avenida o altar
de uma igreja barroca como carro alegórico de Deus, ao som de um samba
que tem uma estrofe que diz assim:

eu vi obras que o gênio esculpiu,


igrejas,
o barroco emoldura o Brasil5

5
Samba da Mangueira do Carnaval de 2004, composto por Cadu, Gabriel, Almyr e Guilherme.

97

Revista 47.indd 97 28/10/2015 14:15:09


Denise Maurano

A revaloração de nosso barroco, um dos grandes méritos do conjunto de


eventos que marcou na virada do século as comemorações dos quinhentos
anos da descoberta do Brasil, talvez possa nos fazer reconhecer e melhor ex-
plorar essa nossa natureza, que, se vista pelo prisma da ordenação clássica,
é mera selvageria, mas se abordada pela maneira própria de nossa organiza-
ção, revela o humor, a musicalidade, a criatividade, e o jogo de cintura, que
faz com que, mesmo por vezes em condições inóspitas, este país não perca
seu entusiasmo e promova, com sua renovada festa barroca, a homeopatia
da barbárie como via de fortalecimento de nossa civilidade. O que essa festa
promove é a expressão de uma abordagem da natureza humana, de onde a
psicanálise extraiu sua concepção de sujeito, e seu modo próprio de clinicá-
lo. Não se trata absolutamente nem de psicanálise barroca, nem de barroco
psicanalítico, mas de psicanálise e barroco, numa operação que se marca
pelo aditivo, tal como esses que se colocam no combustível do automóvel
para aumentar a potência da transmissão.
Se a dimensão feminina da expressão barroca nos serve tanto, é porque
nela encontra-se a possibilidade de fazer valer um outro modo de operar na
clínica analítica. O saber de que nela se trata é o “saber-fazer”, savoir-faire,
saber implicado na ação, que não é senão ação da vida. Saber transmitido
por algo de vivo, que tange o limite da representação, saber irrepresentável,
mas nem por isso impossível de ser experienciado, dado que se dá pela apre-
sentação, pelos efeitos que provoca em nós. Sua qualificação de feminino
bem se acomoda à expressão francesa “sage-femme” para designar “partei-
ra”, e também ao chamado sexto sentido, atribuído justa e injustamente às
mulheres, dado que nem sempre gozamos da posição feminina. O feminino
que nos interessa não é o que se opõe ao masculino, mas o “hors-sexe”, fora
do sexo vinculado a um certo acolhimento do mistério, acolhimento de um
vazio prenhe de fecundidade, com o qual se tece a função do analista.

REFERÊNCIAS
CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade, Col. Estudos. São Paulo: Perspectiva,
1998.
DASTUR, Françoise. Tragédia e modernidade. In: HÖLDERLIN, Friedrich. Reflexões.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p.145-214.
DUBOIS, Claude-Gilbert. Le baroque, profondeur e apparence. Bordeaux: Presses
Universitaire de Bordeaux, 1993.
FREUD, S: Lo inconciente [1915] In: ______. Obras completas. Buenos Aires: Amor-
rortu, 1988.
LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.

98

Revista 47.indd 98 28/10/2015 14:15:09


O despertar do feminino no enredo analítico

______. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro, Jorge


Zahar, 1988.
______. O seminário, livro 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1992.
______. O seminário, livro 20: mais ainda [1972-73]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1982.
MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.
MILLER, Jacques-Alain. O desejo de Lacan. Salvador, Publicação do III Encontro do
Campo Freudiano no Brasil, 1991.
PLATÃO. O banquete. In: ______. Diálogos. Buenos Aires Coleccion Austral, 1949.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Barroco, do quadrado à elipse. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.
SARDUY, Severo Lautreamont e o barroco. In: RODRIGUEZ MONEGAL, E.; MOISÉS
Leila Perrone. Lautréamont austral. Montevidéu: La Brecha, 1995.
WÖLFFLIN, Heinrich. Renaissance et baroque. Brionne: Gérard Monfort, 1985.

Recebido em 20/03/2015
Aceito em 06/06/2015
Revisado por Maria Ângela Buhões

99

Revista 47.indd 99 28/10/2015 14:15:09


Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.100-111, jul. 2014/dez. 2014

TEXTOS
IDEOGRAMISTERIA 1

Elaine Starosta Foguel2

Resumo: A letra impôs-se gradativamente no ensino de Lacan para circunscre-


ver os efeitos de escrita no tratamento e estudar a eficácia da ficção na constru-
ção em análise: lituraterrar. Lacan alude ao ideograma para revelar com rigor o
funcionamento da linguagem no inconsciente, no qual, como na história da es-
crita, as palavras não possuem referentes de coisa. Ao tempo em que sublinha a
importância da metáfora na reinvenção do sujeito, Lacan aponta para uma barra
ao gozo, o literal no litoral.
Palavras-chave: letra, real, escrita.

IDEOGRAMISTERY
Abstract: Letter gradually established itself in Lacan’s lessons in order to encom-
pass the effects of writing on treatment and to study the effectiveness of fiction in
the constructions in analysis: to lituraterre. Lacan refers to the ideogram in order
to acutely reveal the function of language in the Unconscious where, as in the His-
tory of Writing, the words do not have referents of objects. While Lacan highlights
the importance of metaphors in the Subject reinvention, he also points out to a
barrier to the jouissance.
Keywords: letter, real, writing.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: A escrita do sexual, outubro de 2013,
em Porto Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Cam-
po Psicanalítico de Salvador. Pós-graduação em Clínica da Dor, UNIFACS, Salvador, 2000. Mes-
trado em História, Ensino e Filosofia da Ciência, 2007, UFBA. E-mail: elainefoguel@terra.com.br

100

Revista 47.indd 100 28/10/2015 14:15:09


Ideogramisteria

(Barthes, 2007, p.9)

Em outras palavras, o sujeito é dividido pela linguagem como em toda a parte, mas um
de seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro com a fala.
(Lacan, 2003, p.24)

Introdução

A castração marca um hiato na relação sexual, escrevendo o significante


falo (Φ) na economia libidinal. Esse hiato, que é o campo privilegiado da
linguagem, condiciona e estabelece duas posições em relação à castração:
ou ter o falo, já o tendo perdido na operação de privação imposta pelo pai,
ou ser o falo diante do desejo masculino, tendo abdicado de acreditar que
um dia o terá; posições masculina e feminina respectivamente. Em ambas as
posições, o que regula as disposições libidinais é a lei. Qual lei? No hiato de
relação sexual a lei sexual se instaura, orquestrando uma sinfonia dissonante
entre o desejo e a interdição do gozo: dissonâncias do não há.
No dispositivo analítico, no espaço deste hiato, há efeitos de linguagem
tais que a estrutura de ficção tem efeito de verdade para o sujeito. Além disso,
o tratamento psicanalítico propicia, pela construção do fantasma e através
do corte na sessão, que as operações do complexo de castração, e o hiato
acima referido, se reatualizem.
O que se chama aqui de hiato na estrutura da relação é o recorte deste
trabalho. Pode-se afirmar que a falta é axioma no edifício construído por La-
can, cuja pedra fundamental, o matema S(Ⱥ), se lê não há Outro do Outro,
não há metalinguagem, não há relação sexual: não há garantia de verdade
no Outro, não há o sentido do sentido, e a solidão, o desamparo do ser,
não tem cura, nem complemento. Qual a função da linguagem no tratamento
diante da inexorabilidade da falta?

101

Revista 47.indd 101 28/10/2015 14:15:09


Elaine Starosta Foguel

Na medida em que Lacan formalizava o objeto a como sua invenção


e o campo do gozo como campo lacaniano, impôs-se gradativamente ao
seu ensino outra abordagem da palavra na análise: a letra-no-real. Trata-se
daqueles significantes, palavras, interpretações, construções que não fun-
cionam no seu exercício costumeiro simbólico-imaginário de significação,
nem de representação do sujeito, mas que exercem uma função de conter
o gozo, de submeter o G(A) a uma castração reconstruída, de estancar o
sentido imaginário; efeitos de escrita, efeitos de letra no tratamento analíti-
co, garantia da eficácia da ficção na reconstrução de uma história.

Parte I

Letra no ensino de Lacan possui pelo menos três acepções não es-
tanques, nenhuma delas obsoleta: letra é o suporte material do significante,
remete aos fonemas, à fala, ao que se diz, ao ato falho. É também uma epís-
tola, por equivocidade em francês, remete ao conteúdo deslocado por obra
da censura, conteúdo recalcado que produz efeitos de formação do incons-
ciente; é o cifrar do inconsciente e sempre chega ao seu destino. Em terceiro
lugar, a letra é uma formação de linguagem escrita no real. Nessa dimensão,
ela não cessa de se remeter a si mesma.
Na terceira lição do seminário 18, De um discurso que não fosse do
semblante ([1971]2009), Lacan critica o linguista André Martinet, o qual, em
1960, ao propor a dupla articulação da linguagem, dividira a cadeia dos sig-
nos linguísticos em dois níveis. A divisão de Martinet não recobre a de Saus-
sure: no que denomina a primeira articulação, Martinet coloca a sucessão de
unidades dotadas de forma vocal e sentido, o que corresponderia ao signo
saussuriano.

A primeira articulação é a maneira segundo a qual se dispõe a expe-


riência comum a todos os membros de uma comunidade linguística
determinada [...]. Cada uma destas unidades da primeira articula-
ção apresenta um sentido e uma forma vocal (ou fônica) (Martinet,
1968, p.20).

Na segunda articulação, estão os fonemas que se “combinam para obter


a forma vocálica das unidades da primeira articulação” (Martinet, 1968 p.20-
21).
A partir da crítica feita a essa concepção, Lacan introduz a função da es-
crita no tratamento, referendando o ideograma chinês como modelo de sim-
bolização perpétua de toda linguagem. Propõe que o estruturalismo linguís-
102

Revista 47.indd 102 28/10/2015 14:15:09


Ideogramisteria

tico, no qual se apoiara nos anos 50, não fosse mais tomado como ciência,
mas como metáfora do funcionamento do inconsciente. Ele precisava ir mais
além do que a linguística estrutural já lhe presenteara, e por isso buscava arti-
cular a letra escrita e seus amplos efeitos reais em pelo menos três aspectos.
Primeiro, nas formações do inconsciente; segundo, naquilo que se processa
em uma psicanálise e terceiro, na transmissão da psicanálise.
O que se escreve nas formações do inconsciente − e que moveu a gran-
de guinada de Lacan em direção aos nós borromeus − é o sintoma incrustado
na dimensão real, sintoma que insiste em se repetir, e não cessa de não se
escrever no real. O sintoma é letra? “[...] não há nada a defender do recal-
cado, visto que o próprio recalcado procura se alojar na referência à letra”
(Lacan, [1971]2014, p.2).
“No que se processa em uma psicanálise, Freud indicou “Onde estava
o id, ali estará o eu. É uma obra de cultura − não diferente da drenagem do
Zuider Zee” (Freud, [1933]1974, p.84)3. Lacan pede aos analistas que apos-
tem que o literal funda o litoral, também tomando metáforas semelhantes,
misturando a água e a terra, para aludir aos efeitos da análise, ganhar terras,
lituraterrizar. A noção que passa a nortear a transmissão da psicanálise a
partir de lituraterre (Lacan, [1971]2014) é que a letra é o literal que funda
um litoral. Ora, o litoral não é uma fronteira. Então, o que está em jogo? Na
fronteira há terra dos dois lados, é só construir uma cerca; mas não é o que
ocorre nos paradoxos da pulsão, que se metaforiza melhor como uma linha
do litoral que se move com as fases da lua; influenciando as marés das on-
das pulsonais, o litoral se desloca eternamente, misturando água e areia.
Maré cheia, maré baixa, maré seca, maré morta. A proposta de lituraterre é
“A letra... não é litoral propriamente dita, seja figurando que um domínio in-
teiro faz fronteira ao outro, no que são estrangeiros, até não ser recíprocos?
A borda do furo no saber não é isso que ela desenha?” (Lacan, [1971]2014
p.2-3). Lituraterrar é a função da letra, tanto na psicanálise, quanto na escrita
ficcional, a literatura: um aterro entre o gozo e o saber. Insistindo um pouco
neste ponto, pois se refere à clínica, Lacan enfatiza que “Pois não há nada
mais distinto do vazio cavado pela escrita do que o semblante” (Lacan, [1971]
2014, p.6) apontando que, na direção da cura, a escrita não preenche a falta,
mas busca circunscrever uma borda ao gozo que insiste: uma psicanálise
tem como efeito exatamente o oposto, construir a falta, bordar com letras em
torno do buraco onde isso goza.

3
As barragens construídas pelos holandeses para ganhar terras aos mares.

103

Revista 47.indd 103 28/10/2015 14:15:09


Elaine Starosta Foguel

Na transmissão da psicanálise, o desenho e a aplicação clínica dos


grafos de Freud e Lacan, desde aqueles expostos nas cartas a Fliess, as
duas tópicas; os matemas, a lógica da sexuação, os quatro discursos, a
topologia das superfícies, a teoria dos nós e a escrita do caso clínico com
seus exemplos, naquilo que estas letras registram de uma experiência
que tem efeito real. Mas principalmente no uso de letrinhas, na álgebra
psicanalítica, que aponta para o rigor na transmissão, mesmo quando o
matema falta: faltam letras para formalizar a proporção sexual, um gozo
que não se escreve, não há um matema da relação sexual, não há fra-
ções, proporções, razões, equações que a escrevam.

Parte II

Há 55 milhões de anos existiram duas espécies principais de mamíferos:


a dos roedores permaneceu no chão e a outra se refugiou nas árvores; essa
última é hoje classificada de prossímio, o ancestral dos primatas; “Entre os
que prosperaram (em termos genéticos) estavam algumas espécies munidas
de longos dígitos, os quais evoluíram para os dedos, com o polegar separa-
do, o que facilitava agarrar um galho e, mais tarde uma ferramenta”. (Robert,
2000, p.39-40). Os ancestrais primatas, habitantes das copas das árvores,
de galho em galho, faziam evoluir uma das maiores adaptações biológicas
em direção à escrita: a capacidade preênsil dos dedos, o polegar oponível,
o punho giratório. As mãos, sem garras, com unhas planas, sustentavam o
corpo que se locomovia aos saltos. As patas traseiras e dianteiras se diferen-
ciavam em forma e função, em direção à postura ereta. Utilizavam as patas
dianteiras para se locomover e para agarrar os alimentos e os filhotes (Titiev,
1969). Saltos ancestrais que garantiram a possibilidade de que, um belo dia,
o neto do prossímio pudesse escrever.
Louis-Jean Calvet (1996) introduz sua Histoire de l’ecriture, retificando a
ideia do senso comum que pensa ser a escrita um modo de reter a fala, muito
de acordo com o dito latino, verbavolant, scripta manent4. Esse mesmo ponto
de vista criticado permite derivar que a escrita subordina-se à fala, e que sua
única função é reter e prolongar a mensagem de um locutor ausente. Além
disso, dessa crença errônea decorrem duas outras ideias também equivoca-
das: primeira, que a palavra precede historicamente a escrita e, segunda, que

4
As palavras voam, a escrita permanece.

104

Revista 47.indd 104 28/10/2015 14:15:09


Ideogramisteria

toda a escrita tem caráter fonético. Calvet esclarece ainda que, na origem da
escrita, não se tratava de imitar a fala, e que o alfabeto fonético foi um desen-
volvimento precedido de muita sofisticação civilizatória.
Nas escritas pictográficas, a representação fonética não está em jogo.
As primeiras escrituras se referiam à picturalidade, e à gestualidade: o gesto,
a dança, os sinais de fumaça, a linguagem dos tambores, os pictogramas, as
tatuagens, as pinturas parietais pré-históricas, a maquiagem, as vestimentas
entre outros. A gestualidade é a expressão fugaz, a picturalidade perdura, re-
siste ao tempo, pode se locomover através do espaço. O gestual tem o tempo
do aqui e agora, o pictural, é marca (la trace):

O pictural é o produto de uma cultura, de uma sociedade, exata-


mente como a língua, mas eles não mantêm, na origem, nenhuma
relação de necessidade [...] A picturalidade, da qual a escrita é so-
mente uma parte, pôde, desde seus primórdios, ser a notação de
coisas, mas não uma tentativa de reproduzir o som das palavras
(Calvet, 1996, p.17).

São artefatos da linguagem.

Parte III

Para rebater a descrição de Martinet e mostrar o efeito da escrita, Lacan


recorre, na lição de 10 de Fevereiro de 1971, ao caractere chinês no qual a
dupla articulação não se verifica (Lacan [1971]2009, p.45). Neste, a produção
de sentido não passa pelo significante e nem pelos fonemas que o consti-
tuem, uma vez que o conjunto dos ideogramas não constitui um alfabeto.
Ideogramas são pictogramas constituídos em sistema e um pictograma
é um desenho que representa uma ideia ou imagem. A primeira escrita pic-
tográfica conhecida e decifrada foi inventada ao longo do IV milênio a. C., na
Mesopotâmia, entre os sumérios, na margem esquerda do Rio Eufrates, na
cidade de Uruk (Jean, 1998, p.12). Os estudiosos da história da escritura são
unânimes em atribuir a invenção da escrita mesopotâmica às necessidades
comerciais urbanas que já eram bem evoluídas; havia, além das vendas,
os empréstimos, as consignações, os contratos, as entregas. As primeiras
formas de manter essa contabilidade, os calculi, bolinhas feitas em barro,
possuíam uma relação 1/1 com os objetos comercializados. Eram colocadas
em uma esfera oca, também de barro, munida de orifício. Logo surgiu a ne-
cessidade de se imprimir nessa esfera o desenho da mercadoria negociada:
carneiros, bois, sacas de cereal. São esses desenhinhos que vão originar o

105

Revista 47.indd 105 28/10/2015 14:15:10


Elaine Starosta Foguel

primeiro sistema pictográfico que se conhece, que contava no início com dois
mil pictogramas.

O sistema de pictogramas sumérios constituiu então uma escritura


de coisas que não está ligada a uma língua particular, mas que tes-
temunha, no entanto, uma determinada cultura [...] (Calvet, 1996,
p.47).

Essa escritura das coisas evoluiu técnica e funcionalmente para permitir


o registro de textos religiosos, literários e do direito. A grande evolução técnica
foi o uso do caniço (no latim calamus, i) talhado em ponta, para facilitar o de-
senho no barro molhado. A forma desse instrumento condicionou a forma dos
desenhos, que ganham por isso o nome de cuneiforme. O recurso técnico do
prolongamento da mão através de instrumentos construídos desencadeia e
acelera a complexidade simbólica da escrita, através da rapidez e acuidade.
O cuneiforme expande-se, evolui, torna-se cada vez mais distante de
ser uma escritura das coisas através do processo denominado de desmoti-
vação. Esse processo vai apagando aos poucos a ligação do desenho com o
objeto: a representação da coisa sofre modificações, o sentido metaforiza-se.
O ideograma lentamente assume uma forma abstrata e perde sua relação
com o referente de origem. Os cuneiformes perduram por três milênios, evo-
luindo para um sistema fonético, e finalmente para um sistema alfabético.
Calvet relata que os cuneiformes irão servir a línguas diversas, em regiões
distantes, para depois “[...] dar lugar ao nascimento dos diversos alfabetos do
mundo” (1996, p.45). O processo de desmotivação é comum a todas as escri-
tas, mesmo as que permanecem ideográficas até hoje. As escritas tornam-se
assim grandes sistemas simbólicos de produção metafórica.
Enquanto os cuneiformes se estendem por toda a Mesopotâmia, outros
sistemas de escrita surgem e se desenvolvem no Egito e na China. Tal como
os cuneiformes, são representações de ideias, sem ligação com a represen-
tação fonética da fala. Os ideogramas fazem falar de outro modo. A escrita
chinesa tem importância especial no ensino de Lacan, como segue abaixo.
Como funciona o caractere chinês? De que modo seu funcionamento
ilumina a questão da lituraterre na psicanálise? Há uma relação entre o ideo-
grama e a proposta lacaniana de letra no real?
A escritura chinesa desenvolveu-se a partir do II milênio a. C.e, como
todo sistema de escrita, sofreu modificações e simplificações. A lenda des-
ses ideogramas não remonta a uma atividade comercial, mas, sim, a práti-
cas religiosas, de oráculo. Em 1898 foram descobertas, nas águas do Rio
Amarelo, os mais antigos registros da escrita chinesa: cascos de tartaruga
106

Revista 47.indd 106 28/10/2015 14:15:10


Ideogramisteria

e omoplatas de cervos com inscrições gravadas: os sacerdotes inscreviam


pictogramas em um lado do casco, aproximavam-no do fogo e obtinham a
resposta interpretando as rachaduras que o calor produzia.
No sistema ideogramático chinês tradicional, cada ideograma corres-
ponde a uma palavra, e esses caracteres combinam-se em um texto. As pa-
lavras são monossilábicas. Há combinações muito simples como:

(Calvet, 1996, p.95)

O ideograma possui três dimensões: o desenho, o nome do desenho,


isto é o nome do pictograma, e o significado do desenho. O nome do picto-
grama é diferente do seu significado. É apenas o nome daquele desenho. O
significado é uma metáfora do caractere, dependente do conjunto de outros
caracteres no qual está inserido, logo um sistema em mutação interpretativa
constante.

(Calvet, 1996, p.96)

O ideograma acima mostra: (a) o desenho, (b) o nome do desenho,


e (c), o significado básico do ideograma, que pode mudar completamente de
acordo com o contexto de outros ideogramas no qual ele vai estar escrito.
No exemplo da combinação do ideograma “mulher” com outros ideogra-
mas, Calvet (1996, p.93) exemplifica a derivação metafórica dos ideogramas:

107

Revista 47.indd 107 28/10/2015 14:15:10


Elaine Starosta Foguel

As combinações gráficas não implicam combinações fônicas: os carac-


teres, ao se combinarem, combinam ideias, sentidos, mas não os sons, como
mostra o exemplo da melancolia:

qiu + xin = chou


outono + coração = melancolia
(Calvet, 1996, p.93)

A ideia de um sentimento de outono, de queda e morte, leva à ideia


de “melancolia”.
O outono, por sua vez, é formado por dois ideogramas:
cereal + fogo = outono

O outono é a época em que os cereais adquirem as cores do fogo.


De um modo geral, não há laço entre o significante gráfico e o fônico, e
mesmo para cada ideograma há diferentes pronúncias possíveis, de acordo
com cada dialeto. Temos um signo ternário, no qual a terceira dimensão,
108

Revista 47.indd 108 28/10/2015 14:15:10


Ideogramisteria

não saussuriana, é a escrita do ideograma. Isso funciona de tal forma que


teoricamente se pode “ler” a mensagem poética dos ideogramas sem que
se saiba seus nomes, e nem mesmo uma só palavra de chinês, para isso
basta aprender suas representações e suas combinações.

Parte IV

O que Lacan ensina sobre a função ideogramática, no início de seu


seminário De um discurso que não fosse do semblante ([1971]2009), fica
mais bem esclarecido na sétima aula, lituraterre, na sequência do mesmo
seminário, aula de 12 de maio de 1971: a escrita produz verdade no sujeito,
afeta o real.
Há pelo menos três fontes interligadas que alimentam o uso alusivo do
ideograma para melhor caracterizar os desenvolvimentos sobre letra-no-real.
Primeiro, é um pictograma cuja forma não tem referente. O referente
original não era idêntico ao pictograma atual, e seu uso através dos milênios
apagou o vínculo. Logo, atende à ética freudiana da perda irrecuperável do
objeto de gozo original e do significado na estrutura do inconsciente. Se-
gundo, é óbvio, mas precisa ser dito, ele só tem efeito porque está escrito;
neste sentido, é totalmente diferente do fonema, que é pura diferença na fala.
Terceiro, a leitura do texto ideogramático tradicional é necessariamente me-
tafórica. No estudo de Fenollosa e Pound, El carácter de la escritura china
como medio poético, lê-se que:

[...] a língua chinesa, com seus materiais peculiares, passou do visí-


vel ao invisível através do mesmo procedimento que foi utilizado por
todos os povos antigos. Este procedimento é a metáfora, o emprego
de imagens materiais para sugerir relações imateriais. Toda a deli-
cada substancia da linguagem está construída sobre os cimentos
da metáfora (Fenollosa; Pound, 1977, p.50).

Tal funcionamento ideogramático revela com rigor o funcionamento da


linguagem no inconsciente; logo, por necessidade lógica do discurso do ana-
lista, na transferência.
O advento de lituraterre alavancou a retomada do inconsciente estrutu-
rado como linguagem na dimensão de escrita no real, a letra. O significante
representa um $ para outro significante, ele se move metonimicamente numa
sucessão de metáforas. Um sonho representa o $ para outro sonho, ou para
seu sintoma, é o inconsciente cifrando permanentemente, em busca de um
sentido imaginário. Se a análise segue o livre curso destas produções, afas-

109

Revista 47.indd 109 28/10/2015 14:15:10


Elaine Starosta Foguel

ta- se da causa real, podendo conduzir à inflação imaginária, à alienação na


transferência, ao extravio do tratamento, ao abuso da interpretação contra-
transferencial, ao pior. A letra-no-real força o analista a pensar o tratamento
como uma construção em direção às causas reais.
Não deixa então de aparecer um distanciamento nas acepções de sig-
nificante e letra. O primeiro, possuindo função simbólica, é pura diferença.
E a letra, com este funcionamento específico no real, seria ela idêntica a si
mesma?
Jean Claude Milner, em A obra clara, defendia que o significante, sendo
pura diferença, é sem qualidade, mas que “a letra é qualificada, [ela tem uma
fisionomia, um suporte sensível, um referente, etc.]” (Milner, 1996, p.104).
Ora, nem significante nem letra carregam uma qualidade a priori, que seria
sustentada por um referente. Isso não se verifica na epistemologia freudiana
e, como se viu, também não se verifica nas escritas ideogramática e alfabé-
ticas, que perdem os referentes ao longo do tempo e funcionam como regis-
tros do simbólico, do real, e do imaginário. Fica então aqui indicada a estreita
relação da materialidade do inconsciente com a história da escrita, ambos só
se sustentam por se organizarem em torno de uma perda, de uma desmoti-
vação. Ambos têm efeito simbólico, imaginário e real por serem aparelhos de
metáfora, cujas construções ficcionais são a garantia dos efeitos reais, isso
é, da verdade, que se apresenta no sintoma e na travessia do fantasma. O
inconsciente se estrutura como ideogramisteria.

REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2007.
CALVET, Louis-Jean. Histoire de l’ecriture. Paris: Hachette, 1996.
FENOLOSA, E.; POUND, E. El carácter de la escritura china como medio poético.
Madri: Visor Libros, 1977.
FREUD, Sigmund. Conferência XXXI, A dissecção da personalidade psíquica [1933].
In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v.22, p.63-84.
JEAN, Georges. La escritura memoria de la humanidad. Barcelona: Ediciones B, 1998.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante
[1971]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
LACAN, Jacques. Lituraterra. Disponível em: <http://www.campopsicanalitico.com.br/
media/1106/lituraterra.pdf> . Acesso em: 26 de setembro, 2014.
LACAN, Jacques. Lituraterra [1971]. In:______. Outros escritos, Rio de Janeiro: J.
Zahar, 2003.
MARTINET, André. Elementos de linguística general. Madrid: Editorial Gredos, 1968.
MILNER, Jean-Claude. A obra clara – Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1996.

110

Revista 47.indd 110 28/10/2015 14:15:10


Ideogramisteria

ROBERTS, J.M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de janeiro: Ediouro, 2000.
TITIEV, Misha. Introdução à antropologia cultural. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
bekian, 1969.

Recebido em 29/03/2015
Aceito em 05/06/2015
Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

111

Revista 47.indd 111 28/10/2015 14:15:10

Potrebbero piacerti anche