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ALVES, Marco Antônio Sousa. Direito, poder e saber em Édipo Rei de Sófocles.
Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, v. 17, p. 107 - 126, 2008. Disponível
em http://ufmg.academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/Papers/472944/
Direito_poder_e_saber_em_Edipo_Rei_de_Sofocles. Acesso em: [data de acesso]
Contato: marcofilosofia@ufmg.br
Sumário
1. Introdução à tragédia de sófocles e resumo da his-
tória de édipo. 2. Breve apresentação de foucault e
de sua leitura da obra de sófocles. 3. Análise dos pro-
cedimentos jurídicos de estabelecimento da verdade
empregados por édipo. 4. Análise da relação entre o
saber e o poder político na peça édipo rei. 5. Refe-
rências bibliográficas.
Resumo
O artigo analisa a relação entre o direito, o poder e o saber, tendo
como objeto de análise a peça Édipo Rei de Sófocles. Baseando-se em
alguns especialistas em literatura grega e na cultura antiga, como Jean-
Pierre Vernant e Bernard Knox, o artigo inicia-se com uma introdução
à tragédia de Sófocles e um resumo da história mítica de Édipo. Em
um segundo momento, apresenta-se a leitura da peça realizada por Mi-
chel Foucault em sua segunda conferência proferida no Rio de Janeiro
Uma primeira versão desse trabalho foi apresentada como trabalho final da disciplina
“Fundamentos de Literatura Grega”, ministrada pelo prof. Teodoro Rennó Assunção, na
FALE/UFMG em 14 de dezembro de 2007. Posteriormente, foi transformada em palestra
e apresentada em 17 de maio de 2008 no Colóquio de Direito e Dramaturgia Grega “A
invenção da Justiça” no Serro, MG.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS NOVA LIMA N. 17 P. 107-126 2008
Abstract
This article analyzes the relationship between law, power and
knowledge, having as its object of analysis the play Oedipus the King,
by Sophocles. Based on some Greek literature and Ancient culture
scholars, such as Jean-Pierre Vernant and Bernard Knox, this article
begins with an introduction to Sophocles tragedy and a summary of
Oedipus’ mythic story. Afterwards, Michel Foucault’s reading of the
play, which appears in the second lecture delivered in Rio de Janeiro,
in 1973, and published in the book A verdade e as formas jurídicas, is
presented. His reading undertakes a historical inquiry concerning how
knowledge domains could be established from social practices. He
claims that the play Oedipus the King illustrates a shift in power and
knowledge forms in the Ancient world. Following that, Foucault’s
reading is deepened and the juridical procedures establishing the true,
which are used by Oedipus, are analyzed. The way Oedipus guides
Laius’ murder investigation, or how he manages interrogatories and
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Numa versão contada por Pausânias, a Esfinge seria uma filha bastarda de Laio.
Uma análise filológica do nome ‘Édipo’ também permite encontrar alguns significados
esclarecedores. Como observa Vernant (1970:83-4), Édipo (Oidípous) é o homem de pé
(poús) inchado (oidos), mas também o homem que sabe (oída). O próprio enigma da
Esfinge joga com essas palavras: qual é o ser que ao mesmo tempo caminha com duas
pernas (dípous), com três pernas (trípous) e com quatro pernas (tetrápous)? �������������
A resposta é
ele mesmo, Oidípous, o homem.
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ser ímpio ante os numes), ele se responsabiliza junto aos deuses e pode
ser punido por um falso juramento.
A maneira como Édipo busca a verdade claramente se distancia
dessa prática arcaica da prova da verdade, do juramento ante os deuses,
que dispensa testemunha e inquérito. Segundo Foucault (2003: 34), “é
por metades que se ajustam e se encaixam que a descoberta da verda-
de procede em Édipo”. A técnica de se chegar à verdade pela junção
de vários pedaços ou metades, que, unidas, revelam o todo, é cha-
mado por Foucault de técnica do símbolo (sýmbolon). Essa forma de
saber é também um instrumento de poder, uma técnica jurídica, po-
lítica e religiosa. O símbolo é aquilo que se relaciona à unidade, que
leva ao todo, a metade quebrada de um objeto que serve de signo de
reconhecimento. A palavra grega sýmbolon é derivada do verbo sým-
ballein, que significa juntar, colocar junto, coletar ou ainda comparar.
A técnica de Édipo consiste exatamente nisso, em coletar diversos
fragmentos, compostos pelos testemunhos humanos, e colocá-los jun-
tos, reconstituindo o todo e descobrindo a verdade.
Já Aristóteles, na Poética, havia percebido o papel de destaque
que o reconhecimento (anagnórise), definido como “a passagem do
ignorar ao conhecer” (1452a30-32), tem na tragédia. Édipo Rei de Só-
focles é citado como uma das formas mais belas de reconhecimento
ou descoberta, pois ela ocorre juntamente com a peripécia ou revés (pe-
ripeteia), que é “a mutação dos sucessos no contrário” (1452a22-33).
Ao descobrir ou reconhecer a verdade, saindo da ignorância, Édipo vê
também sua situação transformar-se catastroficamente, de rei ele pas-
sa a ser um pária exilado, o mais miserável dos homens. Ao analisar
os tipos de reconhecimentos (passagens para o conhecer), Aristóteles
(Poética, 1455a16-23) observou também que os melhores são aqueles
que derivam da própria intriga, de modo natural, sem artifícios e sinais,
como no caso de Édipo Rei de Sófocles. Talvez possamos, aproximan-
do Aristóteles de Foucault, dizer que esse encadeamento natural da in-
triga que leva ao reconhecimento, ao conhecimento da verdade, pode
ser descrito como um jogo de encaixes, em que uma metade leva a outra
até chegarmos ao reconhecimento final, quando tudo fica claro.
Mas como essa técnica da junção dos pedaços para se conhe-
cer a verdade do todo se dá na peça de Sófocles? Sabe-se, desde o
início, pois o oráculo revelou a Creonte, que o mal que atinge Tebas
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o incesto. Mas a profecia vê pelo olhar divino, que tudo vê, e a inte-
ligência de Édipo vê pelo olhar humano do testemunho, que vê um
fragmento. Além disso, o primeiro usa de uma linguagem prescritiva
e enigmática, enquanto o segundo fala claramente e no presente.
Édipo Rei leva ao palco um pouco da revolução vivenciada pela
Grécia do século V a.C.. Na época de Sófocles, inicia-se o período
humanista da filosofia antiga, o iluminismo grego, que concilia uma
difusão de novos conhecimentos e experiências com uma crise dos
antigos valores tradicionais. Sófocles trata das novas formas racionais
da prova e da demonstração, vindas da filosofia e da ciência, e do de-
senvolvimento de um novo tipo de conhecimento, por testemunho e
inquérito, típico da nova história, de Heródoto e Tucídides, e também
do direito e da medicina.
Podemos rechear essas considerações feitas por Foucault com
o estudo filológico realizado por Knox (2002: 95-113), que ressalta
como a linguagem usada por Sófocles em Édipo Rei associa a figura
do herói ao progresso triunfante do homem vivenciado nessa época.
Em suas falas, Édipo emprega continuamente palavras que caracteri-
zam o espírito científico e sua dedicação à verdade. A palavra zêtein
(procurar, investigar) é frequente na peça, tanto no sentido científico
quanto jurídico, como a investigação (zêtêma) de um crime. Bernard
Knox ressalta que a palavra zêtêma não foi usada em grego antes do
século V a.C., fazendo parte da terminologia da discussão científica
e filosófica, sendo comum, por exemplo, em Platão. Édipo encarna o
espírito crítico: ele contempla e examina (skopein), questiona e inqui-
re (historein), infere ou julga a partir de evidências (tekmairesthai).
Ainda seguindo as análises de Bernard Knox, podemos perceber as
associações dessas palavras com a nova ciência grega. Skopein (con-
templar, examinar) descreve um escrutínio calculador e crítico, sendo
um dos termos favoritos de Tucídides em sua visão histórico-cientí-
fica. Historein (fazer perguntas) é uma palavra associada ao espírito
investigativo jônico e sobretudo à historiai de Heródoto, que marca
o início do que conhecemos por história (aliás, Heródoto foi contem-
porâneo e amigo de Sófocles). Édipo, em sua obsessão por conhecer
o passado (quem matou Laio e, depois, qual a sua origem), faz várias
perguntas e age efetivamente como um historiador. E a palavra tek-
mairesthai (formar um juízo a partir de evidências) resume o novo
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tirano, que o difere do rei: o tirano não chega ao trono por uma sucessão
legítima, mas por um ato de inteligência. Mesmo amado pela cidade,
isso não permite a Édipo ser chamado de rei (basileus).
A tendência moderna de opor a tirania à democracia nos leva
em uma falsa direção, não condizente com o pensamento grego. Era
possível, portanto, ser democrático e tirano ao mesmo tempo na Gré-
cia Antiga. A democracia ateniense era, fora da cidade e mesmo den-
tro dela, vista como uma tirania, pois aqueles que exerciam o poder
não o tinham herdado legitimamente. Sófocles, em Édipo Rei, levou
aos palcos uma reflexão sobre a tirania e os limites da experiência de-
mocrática ateniense, que colidiam com as crenças religiosas da época
e com o antigo discurso de justificação do poder, provocando temores
e dúvidas próprios a uma sociedade tradicional. A Tebas de Édipo Rei
corresponde à Atenas da época de Sófocles.
Outro traço comum ao tirano é o uso da violência para chegar ao
poder. Poderíamos pensar que esse traço não está presente em Édipo,
pois ele chegou ao poder como um herói, após livrar a cidade da Esfin-
ge. Contudo, como ressalta Bernard Knox (1979: 90), Édipo chega a
Tebas “com sangue nas mãos”, pois acabou de matar, sem saber, Laio, o
rei. Assim, como é comum ao tirano, Édipo mata o rei e toma o seu tro-
no e a sua mulher. Sem saber, a violência é o seu instrumento de acesso
ao poder. Também Bollack (1995: 224) ressalta que, mesmo sem saber,
Édipo também comete a desmesura (hybris), confirmando a máxima de
que “a violência ou a desmesura engendra o tirano”. Além disso, Édipo
recorre à violência e à ameaça ao longo da peça sempre que alguém re-
siste às suas ordens e, sobretudo, sempre que alguém pretende dificultar
a descoberta da verdade, como fizeram Tirésias e o servo, recusando-se
a revelar ou testemunhar o que sabiam. Como também observa Bignot-
to (1998: 80): “tirano pela forma como chegara ao poder, ele irá revelar
sua face violenta e cruel à medida que seu poder é ameaçado, mas,
sobretudo, a partir do momento em que seu poder de cálculo é posto à
prova pelo novo enigma que deve decifrar”. Aliás, Édipo é obcecado
pela verdade e leva sua investigação até o final, afirmando sua vontade
de saber contra tudo e contra todos, ignorando uma série de tentativas
por parte dos outros (Tirésias, v. 320-321, Jocasta, v. 848 e 1060, e
pelo servo, v. 1165) de interromper a investigação. Édipo é o tirano
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uma bastardia da alma (talvez Édipo represente esse coxo, tanto fisi-
camente quanto intelectualmente, esse sofista e tirano típico do século
V a.C.).
Mesmo sem adotar a postura de Platão em defesa da filosofia e
do verdadeiro conhecimento (episteme), Sófocles parece condenar a
sofística em sua peça e defender uma visão religiosa, tomando uma
posição no debate de sua época acerca da verdade das profecias (a
validade da profecia já não era mais assumida como verdadeira na
Atenas de Péricles). Os ataques ferozes contra os profetas vinham de
todas as direções: filósofos (Protágoras), historiadores (Tucídides) e
poetas (Eurípides). Além disso, a Atenas da época era repleta de pro-
fetas profissionais degenerados, que pensavam apenas no dinheiro,
em como adequar a predição aos desejos dos clientes e estavam sem-
pre envolvidos em intrigas políticas, o que torna ainda mais compre-
ensível a furiosa reação de Édipo contra Tirésias na peça de Sófocles.
Indo além, Édipo Rei não debate apenas a verdade ou falsidade da
profecia, mas coloca em questão toda uma concepção religiosa tradi-
cional, como fica claro na fala do coro, referindo-se ao desprezo de
Édipo e Jocasta pela profecia oracular: “A voz-do-deus rejeitam: não
se perfaz o oráculo de Laio. Já não reluzem glórias apolíneas. O divi-
no declina” (Édipo Rei, 906-910). Sófocles rejeita os novos conceitos
dos filósofos e sofistas e, na peça, Édipo usa de toda a sua inteligência
para, ao final, simplesmente descobrir que a profecia estava sendo
cumprida o tempo todo. Sua descoberta racional e científica apenas
ratifica a presciência divina.
Concluindo, é importante acentuar que Foucault não assume
nem a postura de Sófocles (de defesa da religião tradicional), nem a
de Platão (de defesa do saber filosófico desinteressado, que se separa
da opinião e da política para habitar em um plano mais elevado). Para
Foucault (2003: 51):
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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