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Citar:

ALVES, Marco Antônio Sousa. Direito, poder e saber em Édipo Rei de Sófocles.
Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, v. 17, p. 107 - 126, 2008. Disponível
em http://ufmg.academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/Papers/472944/
Direito_poder_e_saber_em_Edipo_Rei_de_Sofocles. Acesso em: [data de acesso]
Contato: marcofilosofia@ufmg.br

DIREITO, PODER E SABER EM ÉDIPO REI DE SÓFOCLES

MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES

Sumário
1. Introdução à tragédia de sófocles e resumo da his-
tória de édipo. 2. Breve apresentação de foucault e
de sua leitura da obra de sófocles. 3. Análise dos pro-
cedimentos jurídicos de estabelecimento da verdade
empregados por édipo. 4. Análise da relação entre o
saber e o poder político na peça édipo rei. 5. Refe-
rências bibliográficas.

Resumo
O artigo analisa a relação entre o direito, o poder e o saber, tendo
como objeto de análise a peça Édipo Rei de Sófocles. Baseando-se em
alguns especialistas em literatura grega e na cultura antiga, como Jean-
Pierre Vernant e Bernard Knox, o artigo inicia-se com uma introdução
à tragédia de Sófocles e um resumo da história mítica de Édipo. Em
um segundo momento, apresenta-se a leitura da peça realizada por Mi-
chel Foucault em sua segunda conferência proferida no Rio de Janeiro


Uma primeira versão desse trabalho foi apresentada como trabalho final da disciplina
“Fundamentos de Literatura Grega”, ministrada pelo prof. Teodoro Rennó Assunção, na
FALE/UFMG em 14 de dezembro de 2007. Posteriormente, foi transformada em palestra
e apresentada em 17 de maio de 2008 no Colóquio de Direito e Dramaturgia Grega “A
invenção da Justiça” no Serro, MG.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS NOVA LIMA N. 17 P. 107-126 2008

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em 1973 e publicada no obra A verdade e as formas jurídicas, em que


se empreende uma pesquisa histórica sobre como se puderam formar
domínios de saber a partir de práticas sociais, sustentando que a peça
Édipo Rei ilustra uma mudança nas formas de poder e de saber da An-
tiguidade. Em seguida, o artigo aprofunda a interpretação foucaultiana,
analisando os procedimentos judiciários de estabelecimento da verdade
empregados por Édipo. A maneira como a investigação sobre a morte
de Laio é conduzida, os interrogatórios e a importância concedida ao
testemunho humano, contrastam claramente com as formas arcaicas de
descobrimento da verdade, baseadas no juramento e na presciência di-
vina. O direito participa de uma grande revolução no saber que marcou
o século V a.C., e Édipo, o investigador incansável, ilustra plenamente
os novos avanços da ciência do tempo de Sófocles. Por fim, a última
parte do artigo realiza um estudo da relação entre saber e poder, tendo
como ponto de partida a peça Édipo Rei. Édipo encarna o saber cientí-
fico, o saber autocrático do tirano, do homem da techné, do profissional
do poder político e do saber que se crê capaz de pilotar a cidade e, mes-
mo ameaçado, mantém a confiança em seu próprio poder e saber.
Palavras-chave: Direito. Poder. Saber. Édipo.

Abstract
This article analyzes the relationship between law, power and
knowledge, having as its object of analysis the play Oedipus the King,
by Sophocles. Based on some Greek literature and Ancient culture
scholars, such as Jean-Pierre Vernant and Bernard Knox, this article
begins with an introduction to Sophocles tragedy and a summary of
Oedipus’ mythic story. Afterwards, Michel Foucault’s reading of the
play, which appears in the second lecture delivered in Rio de Janeiro,
in 1973, and published in the book A verdade e as formas jurídicas, is
presented. His reading undertakes a historical inquiry concerning how
knowledge domains could be established from social practices. He
claims that the play Oedipus the King illustrates a shift in power and
knowledge forms in the Ancient world. Following that, Foucault’s
reading is deepened and the juridical procedures establishing the true,
which are used by Oedipus, are analyzed. The way Oedipus guides
Laius’ murder investigation, or how he manages interrogatories and
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values human testimony, clearly contrasts with archaic forms of


searching the true, which were based upon oath and divine foresight.
Law takes part in the huge knowledge revolution that characterizes
V b.C. century, and Oedipus, the tireless investigator, fully illustrates
the new steps of science at Sophocles time. Finally, the last part of
this article studies the relationship between knowledge and power,
having as its start point the play Oedipus the King. Oedipus embodies
scientific knowledge, the autocratic knowledge of a tyrant, the man of
techne, the professional in political power and knowledge that finds
oneself capable of driving the city, and that, even if threatened, keeps
confident in his own power and knowledge.
Keywords: Law. Power. Knowledge. Edipus.

I INTRODUÇÃO À TRAGÉDIA DE SÓFOCLES E RESUMO


DA HISTÓRIA DE ÉDIPO

Sófocles é um dramaturgo grego do século V a.C. que viveu


cerca de 90 anos e gozou de grande reputação, vencendo por 20 vezes
o concurso de teatro em Atenas e nunca ficando em terceiro lugar.
Sabe-se inclusive de um decreto segundo o qual os atenienses decidi-
ram fazer um sacrifício anual a Sófocles. Escreveu 123 peças (segun-
do um lexicógrafo bizantino), das quais apenas sete chegaram até nós,
dentre elas a famosa trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, e
Antígona. Essas peças nos contam algumas passagens da história da
família dos Labdácias, que convém conhecer um pouco melhor.
Antes de tudo, é importante ter em mente a origem da história
de Édipo. Ela não foi inventada por Sófocles. Trata-se de uma histó-
ria mítica, de épocas imemoriais, das mais remotas de nossa cultura
ocidental (cf. Garcia, 1984). O chamado ciclo tebano da mitologia
grega (que narra a vida de Édipo e seus filhos) foi contado de diversas
maneiras, em diferentes épocas e por vários poetas: em poesias épicas
da Grécia Arcaica, dos séculos VII e VIII a.C. (como a Edipoidia, a
Tebaída e Os Epígonos, das quais temos apenas fragmentos), e so-
bretudo nas tragédias gregas do século V a.C. (que sobreviveram ao
tempo), que são, além da trilogia tebana de Sófocles, Os Sete contra
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Tebas de Ésquilo e As suplicantes e As fenícias de Eurípides. Várias


outras peças inspiradas no mito dos Labdácias foram escritas ainda na
Antiguidade, mas infelizmente não chegaram até nós. Por exemplo,
tanto Ésquilo quanto Eurípides escreveram versões de Édipo. Eurípi-
des escreveu ainda uma peça sobre Laio (pai de Édipo) e outra sobre
a Esfinge, além de outra versão de Antígona. Também os romanos,
cuja literatura culta nasce imitando os gregos, recontaram esses mitos.
Júlio César, em seus arroubos literários juvenis, também compôs um
Édipo, mas a representação dessa peça foi proibida por Augusto e o
texto acabou por desaparecer. Também Sêneca, já no século I d.C.,
escreveu seu Édipo, além de outras tragédias. E se avançarmos ainda
mais no tempo, essa lista se torna quase infinita (cf. Perozim, 1984;
Cardoso, 1984).
O que encontramos na peça Édipo Rei (Oidípous Tyrannos) de
Sófocles, é, portanto, uma versão da história de Édipo. E uma versão
que, apesar de inspirada na tradição mítica, é fruto da criação artística
de Sófocles e inclui muitos elementos do momento e do lugar em que
foi escrita e encenada (a Atenas de 420 a.C.). Apesar de buscar seus
temas nas lendas de heróis, a tragédia assume um distanciamento em
relação aos mitos em que se inspira. As primeiras versões do mito de
Édipo, por exemplo, não apresentam tantos traços trágicos como nos
conta Sófocles e Ésquilo: Édipo morre tranquilamente instalado no
trono de Tebas, sem exílio e sem furar os olhos (cf. versão homérica
na Od. XI, 275-276).
Aristóteles, na Poética, referindo-se à tragédia, observa que “os
mitos tradicionais não devem ser alterados (...). Contudo o poeta deve
achar e usar artisticamente os dados da tradição” (1453b21). O esta-
girita ressalta o fato de o mito ser o princípio e a alma da tragédia.
Mas, ao contrário da história, que narra como as coisas sucederam, “a
poesia é algo mais filosófico e mais sério que a história” (1451b), pois
refere-se ao universal. Sendo assim, o que encontramos na tragédia de
Sófocles não são apenas histórias míticas da Grécia Arcaica, mas uma
recriação artística, uma reflexão filosófica da condição humana (que
ainda não recebeu a forma que no século seguinte Platão e Aristóteles
criarão para a expressão do pensamento, dando origem à tradição filo-
sófica). Como ressalta Nietzsche (2006: 68), “a reflexão deve ter seu
lugar na tragédia (a tragédia, que representa o mais profundo conflito
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entre a vida e o pensar, não pode impedir a reflexão)”. A tragédia traz


à cena um mundo lendário, que constitui o passado da cidade, e sobre
essa base reflete e questiona, confrontando a riqueza mítica com as no-
vas formas de pensamento jurídico e político e, indo além, interrogando
a própria condição humana. O fim da tragédia ocorre exatamente no
momento em que esse liame com a tradição se perde, como acontece
nas peças de Agatão (contemporâneo de Eurípides e Sócrates), em que
a intriga é inteiramente criação sua, perdendo-se de vista o vínculo com
o passado heróico. Sintetizando, cito Vernant (1979: 215):

A tragédia tem, como matéria, a lenda heróica. Não inventa nem as


personagens nem a intriga de suas peças. Encontra-as no saber co-
mum dos gregos, naquilo que eles acreditam ser seu passado, o ho-
rizonte longínquo dos homens de outrora. Mas, no espaço do palco
e no quadro da representação trágica, o herói deixa de se apresentar
como modelo, como era na epopéia e na poesia lírica: ele se tornou
problema. O que era contado como ideal de valor, pedra de toque
da excelência, acha-se, no decorrer da ação e através do jogo dos
diálogos, questionado diante do público; o debate, a interrogação de
que o herói é doravante o objeto atingem, através de sua pessoa, o
espectador do século V, o cidadão da Atenas democrática.

Convém, antes de focalizar a peça Édipo Rei, conhecer um
pouco melhor a história da família dos Labdácias, o que será feito
com base nos estudos realizados por Vernant (1981). O rei Lábdaco,
o coxo, morre quando seu filho Laio é ainda um bebê, sem poder,
portanto, assumir o trono. Lico, um estranho, assume o trono e afasta
Laio de Tebas. Refugiado junto a Pélops, Laio, o canhestro, mostra-se
desequilibrado e com uma homossexualidade excessiva (mesmo para
os padrões gregos). Laio é violento e faz Crisipo (filho de Pélops)
sofrer, levando-o ao suicídio. Assim, Laio rompe as regras de simetria
entre os amantes e também as de hospitalidade (uma vez que era hós-
pede de Pélops). Pélops lança contra Laio uma maldição que condena
sua raça ao esgotamento (Laio não deveria ter filhos). Voltando a Te-
bas e assumindo o trono, Laio casa-se com Jocasta e é advertido pelo
oráculo de que não deveria ter filhos. Se desobedecer, esse filho o des-
truirá e dormirá com sua mãe. Laio, então, mantém com Jocasta uma
relação desviada, de tipo homossexual, para não ter filhos. Mas, numa
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noite de embriaguez, não toma o devido cuidado. O filho, ao nascer, é


entregue a um servo e pastor para que ele o mate (a criança foi ferida
no pé, de modo a não poder se mover, e deveria ser deixada no monte
Citerón). Este, com pena do bebê, decide por entregá-lo, em segredo,
a um mensageiro de Corinto para que este o levasse para bem longe.
Em Corinto, Édipo é criado pelo rei Pólibo e sua esposa Meréope,
que não tinham filhos. Enquanto Édipo crescia, ouvia comentários
sobre não ser filho legítimo de Pólibo, apesar deste lhe assegurar o
contrário. Curioso, Édipo decidiu-se finalmente a viajar para Delfos
e consultar o oráculo, que lhe revelou que ele estava condenado a
matar o próprio pai e casar com sua mãe. Aterrorizado, Édipo tenta fu-
gir desse destino cruel, decidindo nunca mais voltar a Corinto. Nessa
fuga, Édipo encontra em uma encruzilhada com uma carruagem que
rudemente ordena que saia do caminho. Irritado, Édipo agride e mata
esses desconhecidos, dentre eles Laio, o rei de Tebas e seu próprio
pai. Édipo continua seu caminho até Tebas e encontra uma cidade
amedrontada pela Esfinge, um monstro metade leão alado, metade
mulher, que propunha enigmas e matava os homens que não venciam
seu desafio. Quando a morte de Laio se tornou conhecida em Tebas,
o trono e a mão da rainha Jocasta foram oferecidos ao homem que
pudesse solucionar o enigma e livrar Tebas da terrível Esfinge. Édipo
aceita o desafio e vence a Esfinge. Feito rei, Édipo esposa sua própria
mãe, Jocasta, realizando o vaticínio oracular e tornando-se parricida
e incestuoso. Ele tem com ela quatro filhos: Etéocles, Polínices, An-
tígona e Ismênia. Considerado um bom rei, Édipo começa a enfren-
tar um grave problema que demanda toda sua inteligência e destreza
como governante: salvar Tebas de uma terrível peste.
É nesse ponto que a peça Édipo Rei de Sófocles começa sua
história. Édipo, buscando livrar a cidade da peste, envia Creonte, o
irmão de Jocasta, ao oráculo de Delfos, que revelou que a maldição


Numa versão contada por Pausânias, a Esfinge seria uma filha bastarda de Laio.

Uma análise filológica do nome ‘Édipo’ também permite encontrar alguns significados
esclarecedores. Como observa Vernant (1970:83-4), Édipo (Oidípous) é o homem de pé
(poús) inchado (oidos), mas também o homem que sabe (oída). O próprio enigma da
Esfinge joga com essas palavras: qual é o ser que ao mesmo tempo caminha com duas
pernas (dípous), com três pernas (trípous) e com quatro pernas (tetrápous)? �������������
A resposta é
ele mesmo, Oidípous, o homem.
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só passaria se se descobrisse quem matou Laio e se fizesse justiça.


Édipo, então, inicia uma investigação para saber quem matou Laio
e chama Tirésias, o adivinho, que reluta inicialmente em revelar a
identidade do assassino. Depois de ameaçado e irritado por Édipo, o
profeta cego Tirésias acaba revelando que Édipo é o autor do crime.
Este, furioso, acusa Tirésias de ser um falso vidente e de tramar com
Creonte um golpe político. Ao longo da peça, Édipo vai conduzindo
sua investigação: ouve Jocasta (que conta que Laio foi morto em uma
encruzilhada), fica sabendo pelo mensageiro de Corinto que não era
filho de Pólibo e Meréope e, por fim, escuta do velho servo e pastor
que a criança entregue ao mensageiro era filho de Laio e Jocasta. A
verdade vem à tona. Jocasta, que já havia descoberto tudo desde o
testemunho do mensageiro, tenta em vão dissuadir Édipo de continuar
a investigação e, sem obter resultado, desespera-se e se enforca. Édi-
po, encontrando Jocasta morta, arranca os broches de ouro do vestido
dela e golpeia seguidamente seus olhos até ficar cego. A história nar-
rada em Édipo Rei termina aqui, mas o ciclo tebano ainda nos mostra
o exílio de Édipo e o trágico futuro de seus filhos.

2 BREVE APRESENTAÇÃO DE FOUCAULT E DE SUA


LEITURA DA OBRA DE SÓFOCLES

Édipo Rei de Sófocles, como foi visto, já é uma leitura artística


e filosófica do mito grego arcaico de Édipo. Na sequência, será feita
uma análise da peça de Sófocles a partir das considerações feitas por
Michel Foucault em A verdade e as formas jurídicas. Sendo assim,
esse texto é uma leitura da leitura da leitura, ou seja, uma leitura de
Foucault, que leu Sófocles, que por sua vez leu o mito grego arcaico.
Antes de tratar do ponto central (a relação entre saber e poder em Édi-
po Rei), convém apresentar sucintamente o pensamento de Foucault e
sua leitura da peça de Sófocles.
Michel Foucault é um filósofo que expõe sempre sua metodo-
logia, seus interesses e suas estratégias de abordagem, o que faz da
leitura de seus textos uma boa aula de como conduzir uma investiga-
ção, de como pensar um problema. Aliás, creio ser justamente isso
que aprendemos com os grandes filósofos. Não vemos respostas, mas
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seguimos um exemplo e somos forçados a pensar por conta própria e


a ver com os próprios olhos.
É importante, então, apresentar, ainda que em linhas muito ge-
rais, o projeto foucaultiano, que permite situar sua análise da obra
Édipo Rei no conjunto de seu pensamento e compreender melhor seu
olhar e, por consequência, os resultados obtidos. A interpretação que
Foucault faz da peça de Sófocles insere-se claramente em seu projeto
filosófico e pretende ilustrar uma certa relação entre poder e saber,
típica da Grécia do século V a.C. Foucault pretende desenvolver uma
pesquisa histórica sobre como se puderam formar domínios de saber
a partir de práticas sociais. O ponto de partida da pesquisa está na
tese de que a própria verdade tem uma história, que o saber do ho-
mem nasce de práticas sociais. Foucault desenvolve, inspirando-se
em Nietzsche, uma história política do conhecimento e do sujeito do
conhecimento. Como esclarece Foucault (2003: 23):

Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele


é, apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos apro-
ximar, não dos filósofos mas dos políticos, devemos compreender
quais são as relações de luta e de poder. E é somente nessas rela-
ções de luta e de poder (...) que compreendemos em que consiste
o conhecimento.

O interesse pelas práticas jurídicas vem dessa aposta, de que


elas estão na origem de certas formas de verdade. Para Foucault, o
inquérito (enquête), que nasceu no pensamento grego (zêtêma), é uma
forma bem característica da verdade em nossas sociedades, sendo uti-
lizada na ordem científica e na reflexão filosófica. É com o objetivo
de compreender essa forma de verdade que Foucault analisa a história
de Édipo, que é um importante testemunho das práticas judiciárias
gregas e, para Foucault (2003: 13), um “episódio bastante curioso da
história do saber e ponto de emergência do inquérito”.
Essa via de entrada ao texto proposta por Foucault vai descorti-
nar muitas coisas, mas também irá deixar várias na sombra. Foucault
lê o texto com um olhar e um interesse bem específicos que, se é
verdade que podem limitar a complexidade da obra, por outro lado
permitem que se abram novas perspectivas de leituras. Aliás, Foucault
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(2003: 7) alerta que suas conferências foram apresentadas a título de


hipótese de trabalho, reconhecendo que elas são “provavelmente ine-
xatas, falsas, errôneas”. Sem retirar o mérito das leituras mais ima-
nentes, fiéis e detalhistas dos especialistas (que aprofundam nosso
conhecimento e corrigem possíveis incorreções e exageros em nos-
sas leituras), creio que a leitura mais livre e “interessada” do filósofo
(como a de Foucault) tem o poder de ampliar nosso olhar sobre uma
obra e permitir novas conexões. Além de seguir alguns insights de
Foucault, o presente artigo irá também rechear suas observações com
algumas considerações de especialistas em Sófocles e na literatura
grega, como Bernard Knox (1979, 2002), Jean Bollack (1995), Jean-
Pierre Vernant (1970, 1979, 1981) e Pierre Vidal-Naquet (1973).

3 ANÁLISE DOS PROCEDIMENTOS JURÍDICOS DE


ESTABELECIMENTO DA VERDADE EMPREGADOS
POR ÉDIPO

Foucault tem razão ao ressaltar que a tragédia de Édipo é a his-


tória de uma pesquisa da verdade. Édipo, para salvar a cidade, precisa,
seguindo a indicação do oráculo (em revelação feita a Creonte), des-
cobrir quem matou Laio. Mas, como pergunta Édipo, “onde buscare-
mos pegadas foscas de um delito antigo?” (Édipo Rei, 108-109).
Para Foucault, a pesquisa judiciária empreendida por Édipo nos
mostra uma nova forma de estabelecer a verdade, se comparada com
o procedimento judiciário grego que encontramos na Ilíada. Foucault
analisa a passagem da Ilíada em que Menelau contesta a vitória de
Antíloco na corrida de carros, nos jogos que se realizaram na ocasião
da morte de Pátroclo. Para estabelecer a verdade e saber se houve ou
não irregularidade não se apela a nenhuma testemunha. A maneira
de produzir a verdade jurídica baseia-se em uma espécie de jogo, de
prova, de desafio, que obriga o adversário a fazer um juramento. Diz
Menelau (Ilíada. XXXIII, 580-585): “Antíloco, progênie-de-Zeus,
cumpre o costume: diante dos cavalos e da biga, o chicote vibrável à
mão, toca os corcéis e jura pelo circuntérreo Treme-terra que não por
má fé me abalroaste o carro”. Se o adversário aceita o desafio (como
Antíloco, que pede a Menelau para aplacar seu coração e não deseja
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ser ímpio ante os numes), ele se responsabiliza junto aos deuses e pode
ser punido por um falso juramento.
A maneira como Édipo busca a verdade claramente se distancia
dessa prática arcaica da prova da verdade, do juramento ante os deuses,
que dispensa testemunha e inquérito. Segundo Foucault (2003: 34), “é
por metades que se ajustam e se encaixam que a descoberta da verda-
de procede em Édipo”. A técnica de se chegar à verdade pela junção
de vários pedaços ou metades, que, unidas, revelam o todo, é cha-
mado por Foucault de técnica do símbolo (sýmbolon). Essa forma de
saber é também um instrumento de poder, uma técnica jurídica, po-
lítica e religiosa. O símbolo é aquilo que se relaciona à unidade, que
leva ao todo, a metade quebrada de um objeto que serve de signo de
reconhecimento. A palavra grega sýmbolon é derivada do verbo sým-
ballein, que significa juntar, colocar junto, coletar ou ainda comparar.
A técnica de Édipo consiste exatamente nisso, em coletar diversos
fragmentos, compostos pelos testemunhos humanos, e colocá-los jun-
tos, reconstituindo o todo e descobrindo a verdade.
Já Aristóteles, na Poética, havia percebido o papel de destaque
que o reconhecimento (anagnórise), definido como “a passagem do
ignorar ao conhecer” (1452a30-32), tem na tragédia. Édipo Rei de Só-
focles é citado como uma das formas mais belas de reconhecimento
ou descoberta, pois ela ocorre juntamente com a peripécia ou revés (pe-
ripeteia), que é “a mutação dos sucessos no contrário” (1452a22-33).
Ao descobrir ou reconhecer a verdade, saindo da ignorância, Édipo vê
também sua situação transformar-se catastroficamente, de rei ele pas-
sa a ser um pária exilado, o mais miserável dos homens. Ao analisar
os tipos de reconhecimentos (passagens para o conhecer), Aristóteles
(Poética, 1455a16-23) observou também que os melhores são aqueles
que derivam da própria intriga, de modo natural, sem artifícios e sinais,
como no caso de Édipo Rei de Sófocles. Talvez possamos, aproximan-
do Aristóteles de Foucault, dizer que esse encadeamento natural da in-
triga que leva ao reconhecimento, ao conhecimento da verdade, pode
ser descrito como um jogo de encaixes, em que uma metade leva a outra
até chegarmos ao reconhecimento final, quando tudo fica claro.
Mas como essa técnica da junção dos pedaços para se conhe-
cer a verdade do todo se dá na peça de Sófocles? Sabe-se, desde o
início, pois o oráculo revelou a Creonte, que o mal que atinge Tebas
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deve-se a um assassinato. Mas quem matou quem? O oráculo revela a


primeira metade da questão: Laio foi morto. Mas e o assassino? Cha-
ma-se Tirésias, o divino adivinho, e, apesar de resistir, ele termina por
revelar a verdade: Édipo matou Laio. Nesse momento da peça, toda
a verdade já está revelada. Mas a revelação não basta. Como ressal-
ta Foucault, temos uma verdade na forma prescritiva, oracular, pelo
“olhar mágico-religioso”. Ela não satisfaz o espírito investigador de
Édipo. Sobre esse ponto, cito Knox (2002: 14):

A obstinação por conhecimento e clareza totais é característica de


sua inteligência. Édipo exige uma fundamentação racional para a
sua existência: não admite mistérios, meias-verdades, meias-me-
didas. Jamais se contentará com menos que a verdade plena (...).
Mesmo no momento mais terrível de sua vida, ele deve ter em
suas mãos a história completa, sem nenhum traço de obscuridade.
Deve complementar o processo investigativo, remover até a últi-
ma ambigüidade. Sua compreensão do que lhe ocorreu deve ser
uma estrutura racional plena.

Édipo quer ver com os próprios olhos. Duvida-se da presciência


divina. O instrumento da investigação de Édipo é a inteligência huma-
na (gnômê), que é uma função da mente (nous). Essa inteligência ativa
é entendida em contraposição à percepção inspirada e não científica
do profeta. Apenas com o testemunho do mensageiro de Corinto, de
Jocasta e do servo é que o ciclo se fecha e Édipo chega, por sua pró-
pria inteligência, à verdade. É o olhar humano que garante a verdade.
Um olhar que, diferentemente do “grande olhar eterno”, não vê tudo.
O olhar do testemunho vê apenas um fragmento, uma parte, e cabe ao
investigador juntar os pedaços e reconstituir o todo. Como diz Édipo,
“o um será matriz do múltiplo” (Édipo Rei, 120).
Em Édipo Rei, assistimos a um deslocamento que nos leva do
discurso profético, da presciência divina, ao discurso da ciência hu-
mana, empírico. Os dois chegam à verdade, mas de maneira comple-
tamente diferente. Segundo Foucault (2003: 40): “eles dizem a mes-
ma coisa, eles vêem a mesma coisa, mas não na mesma linguagem
nem com os mesmos olhos”. Tanto a revelação divina quanto o saber
obtido pelo esforço da inteligência humana chegam à verdade. Tanto
o oráculo e Tirésias quanto Édipo chegam à verdade: o parricídio e
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o incesto. Mas a profecia vê pelo olhar divino, que tudo vê, e a inte-
ligência de Édipo vê pelo olhar humano do testemunho, que vê um
fragmento. Além disso, o primeiro usa de uma linguagem prescritiva
e enigmática, enquanto o segundo fala claramente e no presente.
Édipo Rei leva ao palco um pouco da revolução vivenciada pela
Grécia do século V a.C.. Na época de Sófocles, inicia-se o período
humanista da filosofia antiga, o iluminismo grego, que concilia uma
difusão de novos conhecimentos e experiências com uma crise dos
antigos valores tradicionais. Sófocles trata das novas formas racionais
da prova e da demonstração, vindas da filosofia e da ciência, e do de-
senvolvimento de um novo tipo de conhecimento, por testemunho e
inquérito, típico da nova história, de Heródoto e Tucídides, e também
do direito e da medicina.
Podemos rechear essas considerações feitas por Foucault com
o estudo filológico realizado por Knox (2002: 95-113), que ressalta
como a linguagem usada por Sófocles em Édipo Rei associa a figura
do herói ao progresso triunfante do homem vivenciado nessa época.
Em suas falas, Édipo emprega continuamente palavras que caracteri-
zam o espírito científico e sua dedicação à verdade. A palavra zêtein
(procurar, investigar) é frequente na peça, tanto no sentido científico
quanto jurídico, como a investigação (zêtêma) de um crime. Bernard
Knox ressalta que a palavra zêtêma não foi usada em grego antes do
século V a.C., fazendo parte da terminologia da discussão científica
e filosófica, sendo comum, por exemplo, em Platão. Édipo encarna o
espírito crítico: ele contempla e examina (skopein), questiona e inqui-
re (historein), infere ou julga a partir de evidências (tekmairesthai).
Ainda seguindo as análises de Bernard Knox, podemos perceber as
associações dessas palavras com a nova ciência grega. Skopein (con-
templar, examinar) descreve um escrutínio calculador e crítico, sendo
um dos termos favoritos de Tucídides em sua visão histórico-cientí-
fica. Historein (fazer perguntas) é uma palavra associada ao espírito
investigativo jônico e sobretudo à historiai de Heródoto, que marca
o início do que conhecemos por história (aliás, Heródoto foi contem-
porâneo e amigo de Sófocles). Édipo, em sua obsessão por conhecer
o passado (quem matou Laio e, depois, qual a sua origem), faz várias
perguntas e age efetivamente como um historiador. E a palavra tek-
mairesthai (formar um juízo a partir de evidências) resume o novo
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direito, poder e saber em édipo rei de sófocles

espírito científico e é um termo largamente utilizado pela nova ciência,


sendo o vocábulo usado pelos escritores hipocráticos para descrever o
prognóstico, o processo de inferir o futuro curso da doença a partir dos
sintomas atuais. Alcméon de Cróton, famoso médico grego, dizia que
“os deuses têm certeza, para o homem existe a inferência”. Reforçando
a relação com a medicina, percebemos que Édipo inicia sua investiga-
ção na busca de um remédio para o flagelo que aflige a cidade. Édipo
é o homem que, fazendo uso de sua inteligência, descobre, encontra,
revela, esclarece a verdade. A palavra usada para encontrar, heurein, é
também associada à descoberta científica (quem não se lembra do grito
de Arquimedes: eurêka!), sendo usada por Tucídides para descrever o
resultado do método histórico: a descoberta do passado.
Enfim, Édipo é o historiador, o médico e o matemático, o in-
vestigador incansável, encarnando plenamente os novos avanços da
ciência de seu tempo. Ele, como um historiador, descobre o passado,
como um médico, identifica a doença, como um matemático, resol-
ve uma equação, e como jurista ele leva adiante uma investigação
criminal e encontra e condena o criminoso. Para Foucault, o direito
participa dessa revolução, impondo uma nova forma de descoberta
judiciária da verdade, servindo inclusive de matriz ou modelo para os
saberes filosóficos, retóricos e empíricos.
A idéia de uma revolução no saber, contudo, não deve ser vista
como um simples progresso da racionalidade. É preciso manter a dimen-
são política que a palavra “revolução” traz. O inquérito é antes de tudo
uma forma de o poder se exercer e não, como se crê ingenuamente, o
resultado natural de uma razão que atua sobre si mesma. Para Foucault
(2003: 72-73), “não foi racionalizando os procedimentos judiciários que
se chegou ao procedimento do inquérito. Foi toda uma transformação
política, uma nova estrutura política que tornou não só possível, mas ne-
cessária a utilização desse procedimento no domínio judiciário”.

4 ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE O SABER E O PODER


POLÍTICO NA PEÇA ÉDIPO REI

Édipo é o homem do poder e do saber. Foucault ressalta que


o tema do poder atravessa toda a peça. Édipo quer sempre manter
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a realeza, que conquistou ao desvendar o enigma da Esfinge. Assim


como ascendeu ao poder por sua inteligência, ele pretende valer-se
dela para permanecer no governo. O interesse por salvar a cidade da
peste justifica-se como uma estratégia para manter o poder. Essa preo-
cupação política de Édipo fica bastante evidente na discussão que tem
com Tirésias, quando duvida da revelação do adivinho e o acusa de
tramar juntamente com Creonte a sua queda. Segundo Vidal-Naquet
(1973: 282): “Diante de Creonte, de volta de Delfos, Édipo raciocina
como técnico da coisa política. Pensa descobrir entre o adivinho e
seu cunhado um complô destinado a expulsá-lo do poder. Pois, para
Édipo, saber e poder caminham lado a lado”. Édipo transforma tudo
em política, vê apenas relações de poder e, como observa Foucault
(2003: 42), talvez com um certo exagero: “ele não se assusta com a
idéia de que poderia ter matado o pai ou o rei. O que o assusta é perder
o próprio poder”.
Um elemento que sempre provocou grande discussão na peça de
Sófocles diz respeito ao termo que aparece no título da obra: týrannos.
É difícil traduzir essa palavra, pois ela não significa exatamente rei,
ou basileu (basileus), que recebe o poder legitimamente, mas também
não é propriamente tirano, pelo menos não no sentido pejorativo que a
esse termo se agregou. Édipo é descrito como um bom rei, com traços
democráticos, que ouve o povo e se dirige a ele diretamente. Ele não
mantém seu poder pelo terror. Ao invés de temido, ele é amado. Édipo
se mostra preocupado com o bem da cidade, disposto a ir até o fim na
descoberta da verdade, que viria livrar a cidade da peste que a assola,
ainda que isso venha a lhe custar muito caro. Esses traços, é claro,
afastam Édipo de um sentido simplesmente pejorativo do tirano.
Contudo, ainda assim, Édipo pode ser tido como um tirano, pois
encontramos também nele vários elementos característicos dessa figura
política comum no mundo grego dos séculos VI e V a.C.. Édipo encar-
na o típico herói lendário épico, que perdeu sua cidadania e sua pátria
e, depois de muito penar, reencontra a glória. Édipo abandona Corinto,
que acreditava ser sua pátria, na fuga mata Laio, o rei, e, chegando a
Tebas, desvenda o enigma da Esfinge, livrando a cidade desse mal e
tornando-se rei e herói. Édipo não é, pelo que se sabia no início da peça,
o herdeiro do trono de Tebas, mas um estrangeiro que, mesmo sem
origem real, chega ao poder. Essa é uma importante característica do
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direito, poder e saber em édipo rei de sófocles

tirano, que o difere do rei: o tirano não chega ao trono por uma sucessão
legítima, mas por um ato de inteligência. Mesmo amado pela cidade,
isso não permite a Édipo ser chamado de rei (basileus).
A tendência moderna de opor a tirania à democracia nos leva
em uma falsa direção, não condizente com o pensamento grego. Era
possível, portanto, ser democrático e tirano ao mesmo tempo na Gré-
cia Antiga. A democracia ateniense era, fora da cidade e mesmo den-
tro dela, vista como uma tirania, pois aqueles que exerciam o poder
não o tinham herdado legitimamente. Sófocles, em Édipo Rei, levou
aos palcos uma reflexão sobre a tirania e os limites da experiência de-
mocrática ateniense, que colidiam com as crenças religiosas da época
e com o antigo discurso de justificação do poder, provocando temores
e dúvidas próprios a uma sociedade tradicional. A Tebas de Édipo Rei
corresponde à Atenas da época de Sófocles.
Outro traço comum ao tirano é o uso da violência para chegar ao
poder. Poderíamos pensar que esse traço não está presente em Édipo,
pois ele chegou ao poder como um herói, após livrar a cidade da Esfin-
ge. Contudo, como ressalta Bernard Knox (1979: 90), Édipo chega a
Tebas “com sangue nas mãos”, pois acabou de matar, sem saber, Laio, o
rei. Assim, como é comum ao tirano, Édipo mata o rei e toma o seu tro-
no e a sua mulher. Sem saber, a violência é o seu instrumento de acesso
ao poder. Também Bollack (1995: 224) ressalta que, mesmo sem saber,
Édipo também comete a desmesura (hybris), confirmando a máxima de
que “a violência ou a desmesura engendra o tirano”. Além disso, Édipo
recorre à violência e à ameaça ao longo da peça sempre que alguém re-
siste às suas ordens e, sobretudo, sempre que alguém pretende dificultar
a descoberta da verdade, como fizeram Tirésias e o servo, recusando-se
a revelar ou testemunhar o que sabiam. Como também observa Bignot-
to (1998: 80): “tirano pela forma como chegara ao poder, ele irá revelar
sua face violenta e cruel à medida que seu poder é ameaçado, mas,
sobretudo, a partir do momento em que seu poder de cálculo é posto à
prova pelo novo enigma que deve decifrar”. Aliás, Édipo é obcecado
pela verdade e leva sua investigação até o final, afirmando sua vontade
de saber contra tudo e contra todos, ignorando uma série de tentativas
por parte dos outros (Tirésias, v. 320-321, Jocasta, v. 848 e 1060, e
pelo servo, v. 1165) de interromper a investigação. Édipo é o tirano
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que segue sua vontade de saber, por cima de todos e, paradoxalmente,


levando-o à sua própria destruição.
Foucault compara o que ocorre com Édipo na peça com algumas
figuras históricas de tiranos da antiguidade grega. Assim como Édipo,
que reergueu a cidade, também Sólon se vangloriava de ter reerguido
Atenas no fim do século VI por meio de leis justas. Da mesma forma,
Cípselo em Corinto teria tido esse papel, por meio de uma distribuição
econômica justa. Além desses traços positivos, Édipo também comun-
ga dos traços negativos dos tiranos. Creonte chega a acusar Édipo de
crer que a cidade é só dele. Aqui temos um traço comum aos tiranos:
eles se crêem donos da cidade. Heródoto dizia sobre Cípselo de Corinto
que ele julgava possuir a cidade. Édipo também desconhece as leis e
despreza a justiça, substituindo-as por suas vontades e ordens. Além
disso, o tirano é aquele que chega ao poder e vê-se sempre ameaçado
de perdê-lo. Enfim, Foucault (2003: 46) não hesita em afirmar: “é preci-
so, portanto, reconhecer em Édipo um personagem historicamente bem
definido, assinalado, catalogado, caracterizado pelo pensamento grego
do século V: o tirano”.
Relacionando essa questão do poder com o saber, Foucault é
bastante claro ao dizer que o tirano caracteriza-se não apenas pelo po-
der, mas também por um certo tipo de saber. O tirano tomava o poder
porque detinha um certo saber superior, mais eficaz. Édipo é aquele
que desvendou, por sua própria inteligência, o enigma da Esfinge (cf.
Édipo Rei, 396-398). Ele é capaz, apenas por meio da inteligência, de
derrotar os profissionais em seu próprio jogo. Jogando com as pala-
vras, Édipo (Oidípous) é aquele que possui o saber (oida). Segundo
Knox (2002: 41):

Édipo representa tudo que é inteligente, vigoroso, corajoso e cria-


tivo no ser humano. Em sua perseguição implacável da verdade,
demonstra sua grandeza autêntica: todos os poderes do intelecto e
da energia que fazem dele um herói são exibidos em seu progresso
solitário e obstinado rumo ao conhecimento.

O saber de Édipo é o saber científico, solitário, que vê com os


próprios olhos, o saber autocrático do tirano, auto-confiante, que se
crê capaz de pilotar a cidade. Ele desafia o poder de Tirésias e, mesmo
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direito, poder e saber em édipo rei de sófocles

ameaçado, mantém a confiança em seu próprio poder e saber. Édipo


representa exatamente o “saber-e-poder, poder-e-saber”.
Por trás de Édipo, o tirano que sabe, podemos, segundo a su-
gestão de Foucault, ver o sofista, o profissional do poder político e
do saber, o homem da techné. Assim como os cientistas e filósofos da
época, também Édipo é chamado de “libertador” e “salvador”. O tira-
no, sofista, é o homem que domina tanto pelo poder quanto pelo saber
que possuía. Aliás, poder e saber se identificam no pensamento sofís-
tico. A retórica une claramente essas duas habilidades, pois a forma de
se chegar à verdade é igual a de se chegar ao poder: é argumentando,
oferecendo razões e persuadindo o auditório. Quem domina essa arte,
de convencer os outros, tem poder, pois usa essa mesma técnica para
vencer nos tribunais e nas assembléias políticas. Como revela a máxi-
ma de Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas”, o único
critério do verdadeiro e do falso. O sábio, na perspectiva sofística,
é aquele que conhece o relativo mais útil, mais conveniente e mais
oportuno, sabendo convencer os outros e por em prática sua opinião.
Como deixa claro Foucault (2003: 49): “saber e poder eram exata-
mente correspondentes, correlativos, superpostos. Não podia haver
saber sem poder. E não podia haver poder político sem a detenção de
um certo saber especial”.
Essa unidade entre saber e poder caracterizou os tiranos gregos
e também os sofistas. É justamente essa união que se desmantela na
época de Sófocles, o século V a.C.. Após Platão, a verdade obtida
empiricamente, pelo testemunho da visão humana, não passa de uma
opinião (doxa) presa ao plano sensível, um saber apenas das sombras
e das aparências. Esse saber propriamente humano, típico dos sofis-
tas, é desvalorizado em favor de um saber de nível superior, dialético,
filosófico, que ascende ao plano inteligível e contempla a idéia pura,
a verdade sem a mancha do jogo de poder, sem a contaminação da
retórica e da mera opinião humana. De um lado, temos o filósofo e o
adivinho, em contato com as verdades eternas, e de outro o povo, a
mera opinião. No Banquete, por exemplo, tanto Agatão como Aris-
tófanes (ambos dramaturgos) devem se inclinar diante de Sócrates,
o filósofo. Talvez não seja por acaso que Platão, na República (VII,
536d), distinga as almas bem-nascidas (feitas para a filosofia) daque-
las que são “estropiadas e coxas”, relacionando o coxear intelectual a
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uma bastardia da alma (talvez Édipo represente esse coxo, tanto fisi-
camente quanto intelectualmente, esse sofista e tirano típico do século
V a.C.).
Mesmo sem adotar a postura de Platão em defesa da filosofia e
do verdadeiro conhecimento (episteme), Sófocles parece condenar a
sofística em sua peça e defender uma visão religiosa, tomando uma
posição no debate de sua época acerca da verdade das profecias (a
validade da profecia já não era mais assumida como verdadeira na
Atenas de Péricles). Os ataques ferozes contra os profetas vinham de
todas as direções: filósofos (Protágoras), historiadores (Tucídides) e
poetas (Eurípides). Além disso, a Atenas da época era repleta de pro-
fetas profissionais degenerados, que pensavam apenas no dinheiro,
em como adequar a predição aos desejos dos clientes e estavam sem-
pre envolvidos em intrigas políticas, o que torna ainda mais compre-
ensível a furiosa reação de Édipo contra Tirésias na peça de Sófocles.
Indo além, Édipo Rei não debate apenas a verdade ou falsidade da
profecia, mas coloca em questão toda uma concepção religiosa tradi-
cional, como fica claro na fala do coro, referindo-se ao desprezo de
Édipo e Jocasta pela profecia oracular: “A voz-do-deus rejeitam: não
se perfaz o oráculo de Laio. Já não reluzem glórias apolíneas. O divi-
no declina” (Édipo Rei, 906-910). Sófocles rejeita os novos conceitos
dos filósofos e sofistas e, na peça, Édipo usa de toda a sua inteligência
para, ao final, simplesmente descobrir que a profecia estava sendo
cumprida o tempo todo. Sua descoberta racional e científica apenas
ratifica a presciência divina.
Concluindo, é importante acentuar que Foucault não assume
nem a postura de Sófocles (de defesa da religião tradicional), nem a
de Platão (de defesa do saber filosófico desinteressado, que se separa
da opinião e da política para habitar em um plano mais elevado). Para
Foucault (2003: 51):

O Ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade


nunca pertence ao jogo político, de que o poder político é cego, de
que o verdadeiro saber é o que se possui quando se está em contato
com os deuses ou nos recordamos das coisas, quando olhamos o
grande sol eterno ou abrimos os olhos para o que se passou. Com
Platão se inicia o grande mito ocidental: o de que há antinomia
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direito, poder e saber em édipo rei de sófocles

entre saber e poder. Se há o saber, é preciso que ele renuncie ao


poder. Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura, não
pode mais haver poder político.

É justamente esse mito que Foucault, seguindo as pegadas de


Nietzsche, pretende demolir, afirmando que todo saber é também um
poder, e vice-versa. Em Édipo Rei, Édipo encarna exatamente o per-
sonagem do tirano, do sofista, daquele que sabe e, por isso, tem poder.
Ou ainda daquele que tem poder, e seu poder é uma forma de saber.

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