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Arte bem temperada:

Notas sobre o papel das artes gráficas no mundo da arte contemporâneo

Mariana Nascimento

Índice:

0. Nota introdutória sobre o papel das artes gráficas no mundo da arte


contemporâneo………………………………………………………………………..p.2

1. A ambiguidade política do termo vanguarda……………..……………………..p.3

1.1 A Hierarquização da vanguarda……………….………………………………


p.3
1.2 A politização das vanguardas
artísticas………………………………………...p.4
1.3 As especificidades do cartaz…………………………………………………...p.5

2. A inscrição das práticas artísticas no espaço urbano…….


……………………….p.7

2 2.1 A democratização do acesso à arte…...………………………………………..p.7


3 2.2 O conceito art modeste…..…………………………………………………….p.9
4 2.3 O estatuto de artista………………………………………...………………...p.9

3. Estudo de caso: Raia tráfico de edições…………………………………………p.12

4. Conclusão: O Retorno à arte bem temperada….…..


…………………………….p.15

5. Bibliografia…......…………………………………………………………………p.16

1
Nota introdutória sobre o papel das artes gráficas no mundo da arte
contemporâneo

O conjunto infindo e ineditamente variado de objectos e imagens que constituem


o espaço visual que compartilhamos obriga-nos a repensar o mundo da arte
contemporâneo, atentando no percurso que a linguagem pictural preservou e actualizou
na sucessão de continuidades e rupturas que uma análise historicista do património
denuncia.

Apropriamo-nos de um termo de Júlio Henriques que talvez possa contribuir


para interpretar esta tendência da Arte Contemporânea: a ideia da arte bem temperada.
Com isto, procuramos entre as imagens da indústria cultural massificada uma prática
artística diferente, que oscilando entre a consciência e inconsciência colectiva escape ao
filtro institucional que regra tanto a arte contemporânea de luxo, como a indústria da
cultura de massas.

São precisamente estas imagens e artefactos artísticos que interessaram também


a Júlio Henriques, a par dos contextos e artistas específicos que os produziram. Assim a
“arte bem temperada” exige um novo tipo de “engajamento” artístico, por um lado
alicerçado numa responsabilidade do artista sobre o seu próprio meio artístico, por outro
na responsabilidade dos artistas face ao paradigma social que os integra.

Talvez seja por essa mesma ambiguidade face ao objecto da responsabilidade


artística que escolhemos a serigrafia, e derivadamente o estudo dos cartazes, escopo
primeiro da nossa pesquisa.

Para tal, organizámos o trabalho em três partes a primeira dedicada à


ambiguidade política do termo avant-garde, a segunda dedicada à relação entre a
imagem e a cidade, uma terceira parte dedicada ao estudo das associações artísticas
ligadas à serigrafia, gravura, tipografia e pequena edição.

2
I - A ambiguidade política do termo vanguarda

Entrecruzando duas visões distintas sobre a noção de vanguarda,


necessariamente leremos lado a lado duas concepções diferentes da responsabilidade
artística. Escolhemos para tal duas obras cuja distância temporal não impede, contudo,
uma interpretação conjunta. Refiro-me assim aos textos críticos de Clemente Greenberg
e ao catálogo da exposição Images en lutte: la culture visuelle de l'extrême-gauche en
France, organizado por Philippe Artiéres e Èric de Chassey.

A Hierarquização da vanguarda

Clement Greenberg propôs um sistema crítico de interpretação da arte moderna


através de uma análise da História da arte segundo relações de causalidade, mobilizando
a ideia de confusão das artes a par do conceito hegeliano de género artístico
predominante. A arte de vanguarda funcionaria assim como uma resposta a esta
confusão das artes: uma defesa da identidade de cada forma arte, pela diferenciação dos
diferentes géneros. Num esforço por restaurar a sua identidade, cada género artístico
vira-se para o próprio médium, aceitando voluntariamente as limitações e resistência do
mesmo e reconhecendo a sua opacidade. Deste sistema crítico, surgia um código
valorativo das obras de arte, aplicável a cada obra individual.

Greenberg reconhece assim a tendência autocrítica do modernismo – “The


essence of Modernism lies, as I see it, in the use of the characteristic methods of a
discipline to criticize the discipline itself, not in order to subvert it but in order to
entrench it more firmly in its area of competence.” 1 – esta intenção autocrítica traduz a
procura daquilo que seria único e irredutível em cada arte, que teria de determinar pelos
seus próprios meios os efeitos exclusivos a si mesma. Assim estreitava a sua área de
competência, correspondente àquilo que é próprio e único de cada arte, coincidindo com
o que é único na natureza do seu médium.

“The task of self-criticism became to eliminate from the specific effects of each art any and
every effect that might conceivably be borrowed from or by the medium of any other art. Thus
would each art be rendered “pure” and in its “purity” find the guarantee of its standards of
quality as well as of its independence. Purity meant self-definition, and the enterprise of self-
criticism in the arts became one of self-definition with a vengeance.”2

1
GREENBERG, Clement, The collected essays and criticism, edited by Jonh O’Brian,Chicago,
University of Chicago Press, p. 85
2
GREENBERG, Clement, The collected essays and criticism, edited by Jonh O’Brian,Chicago,
University of Chicago Press, p. 86

3
Por fim, Greenberg concebe a história da arte segundo uma lógica evolutiva: a arte está
em constante movimento e a arte de vanguarda constitui o último termo numa sequência
lógica de relações de causa-efeito num longo processo evolutivo. De facto, o imperativo
viria da História – da época conjugada com um momento particular, numa tradição
artística específica.

Numa concepção hierarquizada e historicista Greenberg defende a


responsabilidade autocrítica do artista dentro do seu próprio médium, o valor de uma
obra de arte verte-se na sua auto-reflexividade, de que o expressionismo abstracto, no
caso da pintura, toma vanguarda. Renunciando-se a qualquer responsabilidade face à
inteligibilidade da obra pelo grande público, efectua-se uma dissociação entre a arte e a
sociedade em redor. A arte responde e desenvolve-se dentro do mundo da arte: que
prossegue segundo uma lógica evolutiva independente, mas interpenetrável.

Greenberg encerra a responsabilidade moral do artista dentro do mundo da arte,


ou mesmo dentro da forma de arte própria que o implica. Cingida apenas ao trabalho
sobre a especificidade própria do seu meio artístico, a responsabilidade do artista seria
apenas manter a arte em movimento numa lógica evolutiva dos diversos movimentos
artísticos. Ao agir sobre o seu próprio meio, o artista agiria indirectamente sobre o
mundo. Qualquer tipo de prática desviante do progresso evolutivo da forma de arte
trabalhada, seria assim imoral, ou no mínimo falha de valor estético. A pressuposição do
expressionismo abstracto, como último termo na vasta cadeia evolutiva de movimentos
artísticos, transforma a figuração numa regressão artística contrária ao engajamento
efectivo do artista com a pintura (forma artista de onde parte a reflexão mais
aprofundada do autor sobre o caminho a seguir pela arte contemporânea).

A politização das vanguardas artísticas

Artiéres problematiza de uma forma diferente a relação entre história, história de


arte e crítica de arte, forçando-nos a sair da limpidez linear da teoria de Greenberg
apoiada sobre a pintura, arte maior e reconhecida como tal. O contexto específico do
Atelier Popular de 1968, transporta-nos finalmente para o campo difuso da arte de
periferia, do cartaz. A problematização da responsabilidade do artista ganha
evidentemente contornos particulares durante os eventos do maio de 68, que modificam
também a historicidade dos objectos artísticos criados, se o atelier popular consistiu na

4
transformação histórica, imbuída de carga política, da escola de belas artes de Paris num
sistema de propaganda, politizado e de esquerda. A própria especificidade do meio
artístico em que se produz: o cartaz, implica desde logo uma forma diferente de
engajamento artístico diversa da pintura.

« En outre, fruit des regards croisés de deux disciplines souvent opposées, l’histoire d’art et
l’histoire, cette exposition assume pleinement la tension qui la traverse, et qui a fait reposer nos
choix sur le croisement de la signification historique et de la qualité visuelle, afin qu’elle puisse
se donner d’abord à voir, et pas d’abord à lire. Elle est une lecture documentée de ce moment
particulier de l’histoire contemporaine où l’art et le politique, la création et les luttes sociales et
politiques furent intimement mêlés, étroitement entrelacés : oú les images n’ont pas seulement
été les témoins des luttes mais leurs lieux et leurs armes. Elle est structurée par une chronologie
qui mêle volontairement des événements de natures très différentes, sociaux, politiques,
artistiques, certains très locaux, certains mondiaux. Car ce qui est apparu sous nos yeux
progressivement nous a déplacés. Ainsi la notion de « contexte », si chère aux historiens, a
disparu au profit de celle de « contemporanéité » ; tandis que, pour l’historien de l’art, la notion
d’ « ouvre » s’est effacée derrière ce que en 1968, Michel Foucault nomma «l’archive. » 3

O Atelier Popular faz assim convergir as ideias de vanguarda artística e vanguarda


política: as imagens criadas em 68 não são apenas imagens, nem materialidade, não são
apenas testemunhas de luta, mas o seu lugar e as suas armas. Chassey estabelece mesmo
um silogismo que caracterizaria o movimento estético do Atelier Populaire: “esthétique
= éthique, éthique = politique, ergo, esthétique = politique”.

A especificidade do cartaz

Assim se Greenberg exigia para a vanguarda, o reviramento autocrítico de uma arte


sobre si mesma, o Atelier Populaire obriga os seus produtos artísticos a uma função bem
clara, mas que simultaneamente se integra na especificidade do seu meio artístico: o
cartaz tem essencialmente uma função comunicativa mesmo que se insira, como a
pintura no âmbito artístico de uma estética pictórica. Por outro lado, os próprios meios
de produção das obras, colectivamente e amadoramente, são exibidos no cartaz e têm
uma importância extrema na reconfiguração do estatuto da obra enquanto objecto e
espaço de luta política, não é só um intuito comunicativo (ou narrativo) que caracteriza

3
ARTIÈRES, Philippe et DE CHASSEY, Eric, catálogo da exposição Images en lutte la culture visuelle
de l'extrême-gauche en France, 1968-1974 [exposição no Palais des Beaux-Arts, Paris, de 21 de
Fevereiro a 20 de Maio 2018] organização Philippe Artières e Eric de Chassey [prefácio de Jean-Marc
Bustamante], p. 10

5
os cartazes desta época, mas também um modo de produção diferente: colectivo e não
autoral.

« Le fonctionnement même de l’Atelier Populaire, abolissant le droit d’auteur et la signature


individuelle en même temps que soumettant l’initiative subjective aux décisions collectives,
signalait qu’une nouvelle manière de faire de l’art, de produire des images, était possible, qui,
non sans contradictions et conflits, ne devait pas grand-chose aux systèmes de l’art mis en place
depuis la Renaissance et exacerbés par le modernisme, pas plus qu’au régime de la propriété que
le capitalisme présentait comme inéluctable (et qui semblait depuis l’être redevenu, puisque
nombre de créateurs de ces affiches et de leurs historiens, quoique, pas tous, revendiquent ou
établissent aujourd’hui la paternité de telle ou telle image). »4

Talvez seja isso o que distingue também a pintura mural do cartaz, o cartaz é efémero,
não é assinado e é muitas vezes uma obra colectiva ao passo que a pintura mural se
torna frequentemente um gesto autoral, autográfico. A apropriação do cartaz e da
pintura mural pela indústria de consumo cultural massivo, opõe-se assim ao cartaz
artesanal, produto de uma prática, com um ponto de vista artístico. Esta ambiguidade
que se torna evidente no cartaz político também, problematiza ainda a viabilidade de
uma apreciação estética valorativa dos vários cartazes, que talvez se torne mais clara
aquando do estudo de caso das associações.

4
ARTIÈRES, Philippe et DE CHASSEY, Eric, catálogo da exposição Images en lutte la culture visuelle
de l'extrême-gauche en France, 1968-1974 [exposição no Palais des Beaux-Arts, Paris, de 21 de
Fevereiro a 20 de Maio 2018] organização Philippe Artières e Eric de Chassey [prefácio de Jean-Marc
Bustamante], p. 34

6
A inscrição das práticas artísticas no espaço urbano

O direito à arte

As obras de arte apropriadas pela lógica de consumo capitalista são concebidas


ora como objectos sacralizados, ora como produtos de luxo: o seu espaço de circulação
é sempre uma interioridade fechada ora nos museus ora nas galerias. Assim sendo, as
obras são pensadas apenas dentro de um circuito estrito entre a escola de arte, o museu e
a galeria, estabelecendo-se um fosso avassalador entre a cidade real e a cidade do
mundo da arte. Este isolamento do mundo artístico nega à população o verdadeiro
contacto com a prática artística, sobrelevando-se uma lógica museológica de margem de
lucro, à lógica necessária de preservação de um património.

Assim, a ocupação da escola de Belas Artes de Paris para a sua transformação


em Atelier Populaire, e a focalização específica da maioria da produção artística na
prática serigráfica e tipográfica da produção massiva de cartazes, ganha um tom
simbólico na subversão do contexto específico do mundo artístico que anteriormente
expusemos. O mundo da arte deixa de ser fechado sobre si mesmo e é aberto à cidade,
já que a ocupação da escola é concretizada não apenas pelos artistas e estudantes de
belas artes, mas também pelos operários e representantes e militantes dos vários
movimentos de ativismo político de esquerda, que são integrados na produção artística
dos cartazes

Podemos assim partir do Atelier para uma análise mais alargada da relação própria do
cartaz e com a cidade, integrando mais firmemente os cartazes produzidos nos seus
campos de acção, produção e relação social e artística. Regressando ao binómio
dicotómico entre arte do cartaz e a pintura tradicional, repensemos a especificidade do
cartaz como forma artística urbana: o cartaz serve para ser afixado, nas ruas. De facto,
tanto o cartaz como a pintura mural são formas de apropriação do espaço público em
graus diversos de marginalidade, mas que reivindicam o direito à cidade com Lefebvre
já antes pensara na sua obra “Le Droit au Ville”:

L'être humain a aussi le besoin d'accumuler des énergies et celui de les dépenser, et même de les
gaspiller dans le jeu. Il a besoin de voir, d'entendre, de toucher, de goûter, et le besoin de réunir
ces perceptions en un « monde ». A ces besoins anthropologiques élaborés socialement (c'est-à-
dire tantôt séparés, tantôt réunis, ici comprimés et là hypertrophiés) s'ajoutent des besoins
spécifiques, que ne satisfont pas les équipements commerciaux et réels plus ou moins
parcimonieusement pris en considération par les urbanistes. Il s'agit du besoin d'activité créatrice,

7
d'œuvre (pas seulement de produits et de biens matériels consommables), des besoins
d'information, de symbolisme, d'imaginaire, d'activités ludiques. A travers ces besoins spécifiés
vit et survit un désir fondamental, dont le jeu, la sexualité, les actes corporels comme le sport,
l'activité créatrice, l'art et la connaissance sont des manifestations particulières et des moments,
surmontant plus ou moins la division parcellaire des travaux. 5

O urbanismo que pensa a museologia e a arte como algo fechado sobre si


mesmo, separado do homem que habita as cidades por um fosso gigantesco, nega a
instituição de uma necessidade antropológica primária: a necessidade de obra, de
actividade criativa. Esta recusa da arte à população das cidades é, no entanto, contestada
pela inscrição mural e pela afixação dos cartazes, mas principalmente no Atelier
Populaire pela devolução à população de um método e espaço de expressão artística
conjunta, de aprendizagem artística simultaneamente, e de discussão política.

A criação a partir dos anos 60 de vários ateliers que recuperam e devolvem a


prática artística ao povo, que desde a revolução industrial com o fim do artesanato e da
produção individual e criativa se viu privado destas necessidades inerentes que a
produção cultural de massas consegue apenas mascarar. Os ateliers que juntam
estudantes de artes e o publico geral, ao implicar a criação de um objecto final artístico,
significam ainda uma nova inteiração da população no mundo da arte.

“L’écriture murale, ce mode qui n’est d’inscription ni d’élocution, les tracts distribués
hâtivement dans la rue et qui sont la manifestation de la hâte de la rue, les affiches qui n’ont pas
besoin d’être lues mais qui sont là comme un défi à la toute loi, les mots de désordre. »6

Assim, estes artefactos que invadem as ruas interessam principalmente pela sua
carga política: como um acto de desafio, uma presença artística, que vale por isso
mesmo, por estar presente, ocupar um espaço ilícito e por o reivindicar como seu. A não
assinatura do cartaz torna este acto de reivindicação um acto colectivo, uma questão de
classe. Se a pintura fechada nas galerias é uma interacção restrita, o cartaz, e a pintura
mural estabelecem uma interacção obrigatória com o público, ao se pôr na rua, embora
convenha não esquecer que há uma tendência autográfica na pintura mural, do graffiti
que acaba também por se desviar do tipo de engajamento social que o artista estabelece
com o público, e com a cidade. Finalmente, o cartaz apresenta-se habitualmente como
obra de arte efémera destinada à deterioração ou ao arrancamento.

O conceito art modeste


5
Lefebvre Henri. « Le droit à la ville », in: L'Homme et la société, N. 6, 1967. pp. 29
6
BLANCHOT, Maurice, Écrits politiques, 1953-1993, Paris, Gallimard, 2008, p.157

8
Talvez seja exactamente por este caracter efémero e marginal do cartaz que podemos
pensar o conceito de Arte Modesta, proposto por Hervé di Rosa, na verdade a própria
ideia de conceito é desmontada desde logo pelo autor, em cujo manifesto lemos:

“L’art modeste n’est ni un concept ni un mouvement. C’est un regard ; Il montre ce que l’on ne
regarde pas. »

Assim Hervé di Rosa procura descobrir a zona oculta e periférica da arte, e


desconstruir pouco a pouco uma concepção hierárquica das artes ao expor e incluir no
mundo da arte todos os seus produtos excluídos. Esta zona periférica e oculta é
precisamente o espaço artístico que sobra entre a produção industrial de imagens de
consumo de massas, a arte de luxo, e a arte sacralizada encerrada nos museus. E o
propósito contemplativo de mostrar o que não se mostra, mas que está presente por todo
o lado, atribui um novo estatuto aos objectos artísticos que não se inserindo nos moldes
habituais não deixam naturalmente de ser arte.

Por outro lado, há uma reconceptualização da prática artística enquanto trabalho,


enquanto produto, mas em relação com a população. Inserem-se aqui todas as formas de
arte das feiras, o artesanato, e também os cartazes. O mercado da arte deixa de ser uma
coisa isolada, e assim todo o mundo da arte também para ser inserido mais firmemente
na cidade, na população, e considerado como um trabalho.

Ainda assim este olhar que seria a arte modesta põe em questão uma séria de
problemas, o próprio termo modéstia, do latim “modestia, modestus, modus” que
significaria modo, medida, sentido de honra, mesura moderada: torna ambíguo o valor
artístico concedido à obras visadas por este olhar.

Talvez na verdade com o termo modéstia Hervé di Rosa não se dirija às formas
de arte, objecto do seu olhar, mas sim ao próprio olhar do colecionador, do museólogo,
da perspectiva a adoptar pelos museus de arte e pelos colecionadores: em vez do
faraónico mediático e da autoridade pseudo-especializada, Hervé di Rosa propõe uma
colecção mais singela mas ao mesmo tempo menos canónica.

O Estatuto de artista

Retomando a problemática do museu reprendemos agora o termo “art worker”


para pensar a relação entre os artistas, a crítica e a curadoria, após os eventos do Maio
de 68, prestando particular atenção ao movimento “Art workers coalliation” formado

9
em Nova Iorque em 69. Este movimento visaria desvia a arte de uma concepção
formalista virada em torno da descrição dos métodos artísticos e explicitação de padrões
estéticos, impondo uma nova ideia de prática artística, que concedesse aos artistas a
condição de trabalhador passível de se organizar colectivamente e engajado
politicamente contra a proeminência capitalista do mercado de arte.

« In 1969 an anonymous letter circulated in the New York art world, declaring, "We must
support the Revolution by bringing down our part of the system and dearing the way for change.
This action implies total dissociation of art making from capitalism." It was signed, simply, "An
art worker."' A nameless, self-described art worker issues a utopian call, implying that how art is
made and circulated is of consequence within the political sphere. The urgent plea suggests that
art work is no longer confined to describing aesthetic methods, acts of making, or art objects—
the traditional referents of the term—but is implicated in artists' collective working conditions,
the demolition of the capitalist art market, and even revolution. » 7

Se a origem do termo antecede a associação, torna-se necessário explicar o


evento catalisador que originou a organização de vários artistas, críticos, estudantes e
operários que orientados pelos princípios anteriormente enunciados visariam romper
com o mercado de arte capitalista, numa lógica de condições de trabalho artístico
colectivas. A retirada da peça Tele-sculture do New Yorks Museum of Moder Art pelo
artista Vassilakis Takis e o consequente apoio e mobilização em torno da defesa do
artista, criou o contexto propício para a formação da associação, concebendo-a também
como uma oposição primeira dos artistas aos museus.

It all started with a kidnapping. On January 3, 1969, the artist Vassilakis Takis marched into
New York’s Museum of Modern Art, unplugged his kinetic piece Tele-sculpture (1960), and
retreated to the MoMA garden with the piece in his hand. (…) Takis, who had witnessed first-
hand the student/worker revolt in Paris in May 1968, the individual discontent to a larger, shared

perception of artists’ collective disenfranchisement in respect to art museums.8

O objectivo da AWC seria reunir artistas e cientistas, estudantes e trabalhadores para


desconstruir a estagnação da percepção e pratica artística encetada pelos museus,
criando novas estruturas de propagação artísticas centros de formação e informação

7
BRYAN WILSON, Julia, Art Workers, Radical Practice in the Vietnam War Era, University of
California Press, Calofornia, 2009, p.1
8
BRYAN WILSON, Julia, Art Workers, Radical Practice in the Vietnam War Era, University of
California Press, Calofornia, 2009, p.13

10
artística, que realmente envolvessem a população no mundo da arte, reenviando os
objectos artísticos para a cidade:

"the first in a series of acts against the stagnant policies of art museums all over the world. Let us
unite, artists with scientists, students with workers, to change these anachronistic situations into
information centres for artistic activities."9

A ideia de uma modificação na aprendizagem da arte, que os centros de formação


artística propõem ao unir estudantes, artistas, cientistas e trabalhadores, torna-se um dos
pontos centrais da organização. Mas a coligação entre os artistas acaba por falhar numa
problematização efectiva da questão da autoria e do trabalho colectivo, embora não
deixe nunca de pensar num plano político a relação entre os artistas e a população.
Categorizando-se como trabalhadores, este grupo ganha um papel importante no
activismo político de esquerda, que nos interessa sobretudo pelo questionamento da
forma habitual pela qual o museu determina a relação do público com a arte.

Embora a AWC simbolize efectivamente uma forma vanguardista de engajamento


artístico com a população, vários destes artistas seguem os moldes conceptuais da A.C.
um minimalismo conceptual que reside na ideia e não na prática artística concreta.

Por outro lado, somos obrigados a pensar o valor estético dos artefactos artísticos,
organizados na perspectiva, não só da AWC, mas dos vários colectivos de produção
artística que surgiram um pouco por toda a parte, a partir dos anos 70, bem como o seu
grau efectivo de acesso à população. Efectivamente estes "colectivos", muitas vezes,
foram, e continuam a ser, compostos, pelo menos parcialmente, por pessoas com
formação artística e universitária, que desempenham já papeis de renome dentro das
próprias instituições. Mesmo a visibilidade que as associações autodidatas de produção
de cartazes, adquirem passa frequentemente por laços institucionais.

De resto, os circuitos alternativos muitas vezes usam ou mimetizam procedimentos de


autoria, distinções estilísticas e técnicas, reputações, e até patrocínios institucionais e
mecenatos; comércio e mercado). E mesmo que não mimetizem não são por isso
melhores, ou ideais. O modo DIY, por exemplo, pode ser bastante auto complacente. Do

9
BRYAN WILSON, Julia, Art Workers, Radical Practice in the Vietnam War Era, University of
California Press, Calofornia, 2009, p.14

11
mesmo modo, a "arte bruta" ou "outsider art", muitas vezes se sedia na repetição dos
efeitos de formas já repetidas, perdendo o interesse estético inicial.

III – Estudo de Caso – Raia: Tráfico de Edições

Um dos exemplos mais flagrantes do esforço contínuo por transportar a arte para a
cidade, será sem dúvida o festival “Raia: Tráfico de Edições e Afins” que reúne
editores, artistas gráficos, impressores e artesão para dar a conhecer e vender edições
literárias, discos, artefactos gráficos e enfim cartazes. O festival “conjuga a tradicional
feira de edição e a arte gráfica” estimulando diálogo entre o público os artistas e os
editores, a quem as obras produzidas são adquiridas directamente. Desde logo há um
mote que enuncia o propósito do festival: “A Raia é dos pequenos editores e dos artistas
gráficos, sem intermediários ou apoios institucionais.” Compreendemos assim a
importância de uma feira que visa pôr o grande público a par do que se passa no mundo
da pequena edição de objectos de natureza gráfica e literária.

A raia é fronteira, linha de divisão ou limite. É por isso lugar de risco, de transposição, de
desafio. É limiar e é margem. É um espaço de possibilidades. Os livros aqui apresentados
aproximam-se dos limites da condição de livro. De serem livros, por permitirem o desempenho
da função básica de ver/ler o que está inscrito nas suas superfícies. De não serem livros, por tal
função básica não existir, e não passarem de referências a livros.10

Raia por si só é desde logo um nome significativo, jargão para a fonteira, zona, por
onde durante a ditadura se saltava ao muro, por onde passava o contrabando, e por onde
fugiam os exilados políticos, sociais, económicos. Assim o festival mesmo inserindo os
cartazes numa óptica de mercado “aqui mesmo de mercado popular”, não deixa de
conter uma carga política forte, que as actividade circundantes (leituras, lançamentos,
exposições e concertos) não deixam escapar, como projecto feito pela população para a
população.

Sobre a última edição, de dezembro de 2018, Júlio Henriques escreveu um texto que
talvez explicite por fim a relação que se estabelece nos tempos que correm entre artista
e população e simultaneamente a relação ética (ou moral) que se defende, tanto na
prática artística como na integração dos seus objectos no mercado.

10
FIGUEIREDO CARDOSO, Catarina, Apresentação da exposição Se Isto É Um Livro in, Raia - Tráfico
de edições, Outubro de 2017.

12
Júlio Henriques começa por tratar, a cada vez mais estranha percepção do público geral
contemporâneo a arte contemporânea e da percepção artística.

O conceito de Arte Contemporânea é assim pensado como uma continuação do


gigantismo capitalista, proveniente de instâncias estatais ou empresariais e recuperando
as palavras de Aude de Kerros na obra “L’imposture de l’art contemporain, Júlio
Henrique procura explicar uma origem falsa, fora dos próprios meios da arte, do
conceito que por sinal se torna hegemónico a partir dos anos 60 como uma oposição ao
termo vanguarda, associado à esquerda europeia.

« Le concept « d’art contemporain » s’impose au début des années 1970 à la place du mot «

avant-garde », mot qui appartenait alors à l’un des adversaires de la guerre froide en cours, la

gauche communiste. Il ne signifie pas « tout l’art d’aujourd’hui » mais désigne une théorie

donnant l’avantage au concept sur la forme. »11

Assim as formas de arte que se mantém como continuação de um processo formal de


construção da obra: todo o trabalho manual das competências ligadas à “dimensão
artesanal da prática artística”, são tomadas tomado por artesanato (termo cunhado de
uma pesada carga depreciativa. O artesanato é posto fora do plano da arte: reciclado
para a periferia, identificado como algo de artesanal decorativo, a representação pictural
derivado dos próprios processos artísticos de produção é classificada sob o conceito,
carregado desde já de uma carga memorativa de artesanato.

Retomando o texto de Aude de Kerros a arte contemporânea impõe-se assim como o


mote que faz mover a arte, embora na verdade seja apenas um dos indícios da
estagnação institucional do mundo e mercado artístico: a imposição do conceito como
“protocolo intelectual” afasta o trabalho artístico efectivo do domínio da Arte
subvertendo-a ao mero conceito dominado pelo mote « créer c’est détruire, déconstruire
et transgresser ».

L’Art contemporain se veut au contraire salvateur, pur « concept », protocole intellectuel. La


réalisation de l’œuvre est menée à bien par des mercenaires. Un créateur digne de ce nom ne se
salit pas les mains. Ainsi, Maurizio Castellan se vante de ne pas avoir d’atelier mais seulement
un téléphone. Cette création conceptuelle a pour principe : « créer c’est détruire, déconstruire et
transgresser ». C’est une activité de champignon saprophyte, très utile au recyclage naturel des
déchets. Ses moyens sont le détournement et la présentation de la « réalité » telle quelle, sans
aucun travail de transposition. Celle-ci est cependant sortie de son contexte et mise dans un autre
11
KEROS, Aude, L’Imposture de l’art contemporain. Une utopie financière, Eyrolles, Paris, 2016, p. 15

13
contexte, afin d’en changer le sens, de désorienter le « regardeur ». La caractéristique de l’AC est
de n’avoir aucune limite ! Absolument tout peut devenir de l’AC, selon la formule
duchampienne : « est de l’art ce que l’artiste déclare tel ». Tout, excepté l’Art. La quête de la
beauté et de l’harmonie a, selon les théoriciens, l’inconvénient de provoquer blessures
narcissiques et inégalité. Les critères esthétiques ne s’appliquent pas à l’œuvre d’AC. (…) Ni
même les critères liés à l’essentialité, la pérennité, la présence ou l’aura. 12

Júlio Henriques apoiando-se no texto de Kerros justifica assim um estatuto novo que o
artista da ARTE CONTEMPORÂNEA® reclama para sim mesmo, o artista da AC diz-
se artista plástico, nunca pintor, escultor ou gravador”, a obra, pintura ou escultura
transforma-se em peça. Os objectos produzidos pela ARTE CONTEMPORÂNEA®
integram-se rapidamente nos processos financeiros do sistema capitalista naquilo que
Júlio Henriques caracteriza como “Financial Art” arte especulativa e monetária com
cotização na bolsa virada para um público elitizado. Deste modo, o caracter chocante
aparentemente subversivo dos objecto da ARTE CONTEMPORÂNEA®, torna-se um
sucedâneo do mercado artístico capitalista que desprovendo os objectos da sua carga
política, interioriza o grotesco e chocante como legitimação desse mesmo mercado, ao
exibir a crítica conceptual no mercado capitalista esta torna-se desprovida de
significação servindo apenas a manutenção desse mesmo sistema. Júlio Henriques
reprende ainda uma outra citação do artista plástico Damian Hirst: “As pessoas podem
gozar com a arte, mas não podem gozar com o mercado. Todos os mercados são
sérios.”.

Os critérios de avaliação da arte contemporânea são a eficácia sensacionalista de


produção de “choc” et de « dérangement », efeito concebido como uma experiencia
catártica. Se à primeira vista este critério parece significar uma extrapolação dos
critérios morais de percepção artística, no fundo, segundo Aude de Kerros, os critérios
que regem a sua categorização são critérios de pertinência, e assim critérios morais,
instrutivos.

Finalmente em defesa das correntes artísticas que se distanciam deste modelo de suposta
regressão cultural, revirando-se também para os objectos da exposição/feira “Raia:
tráfico de edições”, Júlio Henriques cria um termo novo para designar o conjunto de
objectos sediados ainda na prática oficinal, do trabalho manual. Sustentando a sua tese
numa orientação própria da História da arte que se estabelece numa linguagem sensível
e elaborada: e onda a obra de arte deve persegui o domínio da linguagem visual e da
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KERROS, Aude, L’Imposture de l’art contemporain. Une utopie financière, Eyrolles, Paris, 2016, P. 16

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prática autónoma da criação manual artística que implicaria simultaneamente o
reconhecimento de um património anterior.

O expansionismo novo-rico da arte contemporânea® e o seu transbordante parasitismo


estrutural, a par de regressões culturais entretanto ocorridos nas sociedades «desenvolvidas» e
que têm conduzido a uma alegre interiorização do grotesco, impuseram a quase invisibilidade
das correntes artísticas que se situam na continuidade «arcaica» da história da arte e cuja
orientação parte de uma linguagem sensível e muito elaborada. Nestas correntes mantém-se a
exigência da realização esta forma para transmitir sentido, não pondo em primeiro plano a
expressão por si mesma, o gesto compulsivo, procurando um domínio da linguagem visual,
numa indagação que implica profundidade. Coisa que não pode fazer-se sem competências
próprias, sem habilidade de mãos, sem conhecimentos e o reconhecimento de um património
anterior, exigindo do artista autonomia e liberdade. 13

O Retorno à arte bem temperada

Em suma, salientamos a emergência de um novo paradigma na filosofia da arte


mobilizando a oposição marcada por Júlio Henriques entre os conceitos: arte bem
temperada e arte contemporânea®. De facto, a divisão do mundo artístico entre
objectos de luxo, ou sacralizados, e o conjunto avassalador de imagens da cultura de
massas é desafiada por práticas artísticas diversas que se inteiram fora dos moldes de
consumo capitalistas e que o tempo proposto por Júlio Henrique tão bem defina.

A integração destas práticas no discurso académico sobre a História e Filosofia na arte


implica assim uma reconceptualização da ideia de vanguarda artística bem como a
inversão de uma concepção historicista ou evolutiva da arte.

Não esquecemos ainda a importância da relação entre os objectos artísticos e o espaço


social que os encerra, reconhecendo-se a importância do espaço público da cidade como
plano de difusão artística e partilha cultural, considerando-se como experiência artística
quer a fruição dos objectos artístico no espaço publico quer o acesso às práticas e
aprendizagem artísticas.

O caracter social das associações que difundem estas práticas pressente assim uma
necessidade popular de expressão criativa, bem como assegura o acesso à livre fruição

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HENRIQUES, Júlio, apresentação da exposição é novo mas nada fica: Louvor do artesanato em arte,
in Raia - Tráfico de edições, dezembro de 2018

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artística. Compreendemos assim uma outra forma de valorização da arte, particular no
campo da edição artesanal e da produção de cartazes.

Bibliografia :

ARTIÈRES, Philippe et DE CHASSEY, Eric, catálogo da exposição Images en lutte la


culture visuelle de l'extrême-gauche en France, 1968-1974 [exposição no Palais des
Beaux-Arts, Paris, de 21 de fevereiro a 20 de maio de 2018,] organização de Philippe
Artières et Eric de Chassey [prefácio de Jean-Marc Bustamante]

BLANCHOT, Maurice, Écrits politiques, 1953-1993. Édité par Éric Hoppenot. Paris,
Gallimard, 2008

DE KERROS, Aude, L’Imposture de l’art contemporain. Une utopie financière,


Eyrolles, Paris, 2016

BRYAN WILSON, Julia, Art Workers, Radical Practice in the Vietnam War Era,
University of California Press, Calofornia, 2009

FIGUEIREDO CARDOSO, Catarina, apresentação da exposição Se Isto É Um Livro in,


Raia - Tráfico de edições, Ottobre de 2017.

GREENBERG, Clement, The collected essays and criticism, edited by Jonh


O’Brian,Chicago, University of Chicago Press

GREENBERG, Clement, Art and Culture, Beacon Press, Boston, 1961

HENRIQUES, Júlio, apresentação da exposição Tudo é novo mas nada fica: Louvor do
artesanato em arte, in Raia - Tráfico de edições, dezembro de 2018

Hervé Di Rosa, L’Art modeste, Ed. Jannink, 2011

LEFEBVRE, Henri, « Le droit à la ville », in L'Homme et la société, n. 6, 1967

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