UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS CURSO DE FILOSOFIA
História da Filosofia Medieval - UAB-04
Professor Dr. Lucas Duarte Silva
2018 Nota do Autor
A produção deste material é exclusivamente
para fins didáticos. Unidade II- Razão e Fé: introdução do tema e posições na Patrística Índice I- Os conceitos II- Posições na Patrística III- Referências I- Os conceitos Um dos temas importantes no Medievo foi a relação entre razão e fé, entre Filosofia e Religião. Esse é um tema que perpassa a tradição filosófica, seja na sua possibilidade de conciliação, seja na sua negação. A primeira vista, razão (Filosofia) e fé (Religião) parecem ser inconciliáveis. Por um lado, geralmente associamos “razão” aos conhecimentos científicos e filosóficos, os quais utilizam uma linguagem racional, pautados pelo rigor de um encadeamento lógico e causal, podendo ser demostrado na natureza. Por outro lado, “fé” e religião, a grosso modo, são tomados como algo que está além da razão e da natureza, algo supersticioso e místico, podendo ser uma experiência apenas interna, isto é: subjetiva. Se a Religião (as monoteístas em geral) acredita e se contenta com autoridade escrita, a verdade revelada (seja no Velho ou Novo Testamento, ou no Alcorão), e com a experiência subjetiva, a Filosofia busca compreender racionalmente a nossa realidade, a estrutura do nosso saber e agir, utilizando apenas juízos racionais de uma “razão responsável em si e para si” (Zilles, 2005, p.457). Assim, na Filosofia tudo que está em jogo pode e deve ser discutido/fundamentado. Essa exigência da Filosofia parece ser uma afronta aos dogmas religiosos que não devem ser questionados, apenas observados. No entanto existe pelo menos três pontos de encontro entre Filosofia e Religião, entre razão e fé. Primeiro, a busca de fundamentação. Tanto a Filosofia como a Religião (nesse caso em especial o Cristianismo) buscam depurar conceitos e ideias afim de fundamentar sua teoria ou crença. Segundo, existem temas em comum, caros tanto da Filosofia como da Religião, a saber: o Ser Supremo ou a natureza divina. Terceiro, a transcendência. Ambas parece ter como característica o fato de transcender o dado físico e material. Nesses três aspectos Filosofia e Religião dialogam, de tal forma que podemos falar de uma Filosofia da Religião. A Filosofia da Religião é diferente da Ciência da Religião. Enquanto que a última leva em consideração outras áreas do saber (como a perspectiva histórica, antropológica, sociológica e filosófica) a Filosofia Religião é o estudo dos conceitos e das teorias que dão suporte aos credo religiosos. Nessa perspectiva, Filosofia da Religião é uma área relativamente nova, surgida no século XVIII. Uma abordagem filosófica de objetos da Religião também não é o mesmo que Teologia. Etimologicamente falando Teologia é a ciência ou estudo de Deus (Theós, Deus +logia, ciência). Hoje podemos falar de diversas Teologias (a Teologia Cristã, Islâmica, Protestante). Contudo, o estudo sobre o divino sempre fez parte da tradição filosófica. Na antiguidade, por exemplo, Platão aborda o divino e supra-sensível. Aristóteles chega a apresentar a Metafísica como a investigação sobre a substância supra-sensível. Na Modernidade, Descartes apresenta a ideia de Deus como uma ideia inata no homem. II- Posições na Patrística A questão de fundo parece ser a seguinte: os objetos da fé podem ser discutidos filosoficamente? Ou dito de outro modo, a fé (ou a crença religiosa) pode ser racional (ou razoável)? As distintas posições dos autores medievais estão associadas com a forma com que cada um respondeu a essa pergunta. Por um lado, aqueles que negaram uma possibilidade de conciliação entre fé e a filosofia grega-latina. Por outro, aqueles que utilizaram elementos da filosofia considerada pagã para a compreensão da fé. Na História das Ideias a posição que conciliava razão e fé, filosofia e religião apareceu com mais frequência que as demais. Na Patrística, período onde os primeiros cristãos convertidos tiveram que justificar a sua fé e defende- la de ataques, encontramos as duas posições que refletem à posição de Paulo de Tarso, descrito nos Atos do Apóstolos e na 1ª carta aos Corintos. Autores como Tertuliano (c.155-235) negaram que a filosofia poderia auxiliar nas questões da fé. Para ele, seria perigoso utilizar o pensamento pagão para tratar a Verdade revelada. Imagem atribuída a Tertuliano retirada da Internet. Fonte desconhecida. “Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igreja? Ou os hereges com os cristãos? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estóico, platônico e dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer” (BOEHNER; GILSON, 1988, p.138). Na Escola de Alexandria, autores como Clemente (150-212) via à Filosofia Grega como uma espécie de revelação da Verdade Cristã, uma antecipação ainda que parcial da Verdade. Nas suas obras, o conceito grego logos desempenha Imagem atribuída a um papel fundamental. Clemente de Alexandria. Autor desconhecido. O discípulo de Clemente, Orígenes (185 - 254) também se utilizou de conceitos filosóficos em suas obras.
Ele colocou Deus e a
trindade como objetos centrais de seu pensamento. Segundo ele, Deus só pode ser compreendido como realidade intelectual e espiritual e não como corpo.
Imagem atribuída a Orígenes. Fonte:
http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=40 “Em sua realidade, Deus é incompreensível e inescrutável. Com efeito, podemos pensar e compreender qualquer coisa de Deus, mas devemos crer que ele é amplamente superior àquilo que dele pensamos” (REALE, 1990, p.413). Outra posição favorável a relação fé e Razão encontramos em Agostinho de Hipona. Já falamos como despertou em Agostinho a procura pelo conhecimento e como ele encontrou no neoplatonismo elementos para compreender e desenvolver diversos temas da fé. Essa procura de Agostinho é uma investigação racional, mas que tem como ponto de partida a fé. A célebre frase: “compreende para crer, crê para compreender” (intellige ut credas, crede ut intelligas) é a marca do seu empreendimento intelectual. Para Agostinho, a sabedoria só se encontra em Deus. Contudo, Ele não pode ser alcançado apenas pela razão, embora ela seja uma parte importantíssima na natureza humana, mas pela elevação e purificação da alma, pois Deus se revela na alma humana. A procura pelo conhecimento em Agostinho é uma espécie de procura socrática, na qual o homem volta a si mesmo, para a sua interioridade. “Com efeito, se crer não fosse uma coisa e compreender outra, e se não devêssemos, primeiramente, crer nas sublimes verdades que desejamos compreender, seria em vão que o profeta teria dito: Se não o crerdes não entendereis. [...] E ninguém se torna capaz de encontrar a Deus se antes não crer no que há de compreender” (AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio, II, 2, 6). A fé é o ponto de partida para essa busca, na qual compreende racionalmente aquilo que era tido apenas como verdade da fé. Na obra Solilóquios (386-387) e no De Trinitate (399-419) Agostinho disserta sobre a possibilidade do homem conhecer a Deus e alma humana. Nelas, encontramos a defesa de que podemos conhece-lo, senão em sua plenitude mas pelo menos com certeza, através de nossa existência, de um sujeito que existe, pensa e vive. Fé e razão embora sejam distintas não são excludentes em Agostinho, uma vez que a fé pressupõe de certa maneira a razão. A fé, dirá Agostinho, consiste em um pensamento que assente ou em um modo de pensar assentido (REALE, 1990, p.435); e o próprio ato de crer é um ato racional, pois envolve discernimento e assentimento. “Quem não vê que primeiro é pensar e depois crer? Ninguém acredita em algo, se antes não pensa no que há de crer. Embora certos pensamentos precedam de um modo instantâneo e rápido a vontade de crer, e esta vem em seguida, e é quase simultânea ao pensamento, é mister que os objetos da fé recebam acolhida depois de terem sido pensados. Assim acontece, embora o ato de crer nada mais seja que pensar com assentimento. Pois, nem todo o que pensa, crê, havendo muitos que pensam, mas não crêem; mas todo aquele que crê, pensa, e pensando crê e crê pensando.” (AGOSTINHO. A Predestinação dos Santos, II, 5). Deste modo, em Agostinho crer, ter fé em Deus, razão, inteligência e discernimento, são conceitos que podem ser associados. Contudo, permanece aberto até que ponto a inteligência pode conhecer sobre as verdades da fé. Nesse ponto, passagens como no De Vera Religione, parece indicar que todas verdades da fé podem ser tratadas pela razão:
“De onde resulta que as verdades, nas quais primeiramente
acreditamos, fiando-nos na autoridade, tornam-se depois compreensíveis (pela reflexão), até nos parecerem certíssimas” (A Verdadeira Religião. 8, 14.) Em outras passagens, como no De Ordine (A Ordem. II, XVI, 44), Agostinho defende a impossibilidade de conhecer a Deus. De fato, como menciona Gilson, “Não se poderia levantar uma lista de verdades, na qual algumas seriam, para ele, essencialmente filosóficas, enquanto outras seriam essencialmente teológicas; pois todas as verdades necessárias à beatitude, fim último do homem, estão reveladas nas Escrituras; em todas, sem exceção, pode-se e deve-se acreditar” (2006, p.76). III- Referências AGOSTINHO. A Predestinação dos Santos. Trad. Agustinho Belmonte. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1999. ______. O Livre-Arbítrio. 3ª ed. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1995. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Trad. Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006. REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. Antiguidade e Idade Média. Volume I. 3ª Ed. São Paulo: Paulus, 1990. VASCONCELLOS, MANOEL. “A razão diante da fé e da autoridade no Pensamento medieval”. In: Biblos, Rio Grande, 21: 225-237, 2007. ZILLES, Urbano. “Fé e Razão na Filosofia e na Ciência”. In: Rev. Trim. Porto Alegre v. 35, Nº149 , Set. 2005, p.457-479.