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Estado e sociedade civil

de Marx a Gramsci*
Guido Liguori**

O RETORNO DA SOCIEDADE CIVIL econômico sobre o político; do privado sobre o


público; do mercado sobre a programação estatal.
O tema da sociedade civil tornou-se o centro E podemos dizer ainda, conjuntamente com Marx,
do debate cultural e político a partir do fim dos do burguês sobre o cidadão.
anos 1970 no âmbito da chamada “revolução
neoconservadora” ou “neoliberal”. Opondo-se ra- Na verdade, para fugir do conceito de classe,1
dicalmente à concepção do Estado enquanto “su- a idéia de cidadania desde então se tornou central
jeito ampliado”, para usar uma expressão grams- para essa determinada esquerda liberal. Na “teoria
ciana, essa discussão sustenta hoje uma “supremacia do indivíduo” (também entendido como “ser hu-
da sociedade civil” (significando tal supremacia mano” que faz parte de uma comunidade política
“uma forte reivindicação do não-estatal”), de sua nacional), proveniente do liberalismo clássico, o
maior atuação na vida econômica, no mercado, em cidadão aparece “fortificado” enquanto portador dos
contraposição ao Estado do bem-estar social. direitos aparentemente iguais e inalienáveis. Segun-
do essa esquerda liberal, a noção não mais compac-
A partir da metade do decênio seguinte, o con- tua com a realidade dos fatos, pois o indivíduo, o
ceito de sociedade civil também foi fundamental cidadão, está afastado de toda possibilidade de fa-
para processo de redefinição, antes de tudo cultu- zer parte de uma subjetividade coletiva – que,
ral, por parte de uma determinada esquerda – que, freqüentemente, aparece privada de todas as defe-
por sua conta, demonstrou a necessidade de aban- sas e dos direitos provindos dos últimos duzentos
donar o paradigma interpretativo ligado ao concei- anos de luta de classe.
to de classe. Tais tendências triunfaram no ano de
1989, com a crise dos modelos hiperestatistas e Podemos, então, indicar duas posições certa-
autoritários do socialismo real e com os limites de mente não iguais, ainda que dotadas de legalidades
gestão governamental apresentados pelos países conceituais e políticas semelhantes: aquela neoliberal,
socialdemocratas do Welfare State. A cultura da po- ou liberista, de uma parte, e aquela liberal clássica,
lítica da direita tornou-se preponderante, em for- de outra. Para a esquerda liberal (ou “neoliberal”),
ma e conteúdo, sobre a esquerda. Em suma, as con- o conceito de sociedade civil significa hoje, sobre-
cepções que se impõem majoritariamente dentro tudo,
da “esquerda” são de matrizes liberais e sintetica-
[...] o complexo das ações coletivas autônomas,
mente indicamos como sendo a supremacia da so-
corporativas, distintas do poder do Estado [...], a
ciedade civil sobre o Estado; a superioridade do sociedade civil significa várias modalidades de
experiências das vontades dos indivíduos, indepen-
dentemente do (e freqüentemente em aberta oposição
* Publicado originalmente em G. Petrônio & M. P. Musitelli ao) poder constituído, seja esse econômico, seja
(orgs.), Marx e Gramsci: memoria e attualitá (Roma:
político”.2
Manifestolibri, 2001), pp. 69-80, trad. Tatiana Fonseca
Oliveira.
** Professor de história do pensamento político contemporâneo Vê-se com isso, como tal definição está evi-
na Universidade da Calábria. Redator-chefe da revista Critica dentemente suprimindo o conceito de classe (que,
Marxista. por sua vez, se encontra mascarado por baixo do

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Karl Marx Bruno Trentin Gramsci

termo “corporativo”). Historicamente, essa nova a propósito do tema da sociedade civil, é Antonio
visão de sociedade civil está atrelada a uma inter- Gramsci, cuja crítica, não sem razão, estava volta-
pretação “idealista” sobre o fim de alguns regimes da contra o taylorismo (crítica, inclusive, também
despóticos do Leste Europeu. Se isso é compreen- presente em Lênin e em quase todo o marxismo da
sível, não é, porém, de certo compartilhado. A re- época). Trentin ao rediscutir o conceito de socieda-
vogação dos direitos do não-político, ou do pré- de civil gramsciano argumenta que se não compre-
político, de fato, quase sempre termina por endermos a realidade em sua dimensão deter-
promulgar os direitos do mercado. Como escreveu minante, que é a do antagonismo de classe – ou
Marx em A questão judaica, o homem da sociedade seja, a realidade enquanto indivíduos incluídos, in-
civil termina sempre por assemelhar-se com o “ho- tegrados, através da luta de classes na sociedade
mem egoísta”, cujo egoísmo chama-se “liberdade civil –, chegaremos à forma de interpretação noto-
civil”. Enfim, do homem visto como aquele que riamente discutível, em larga medida errônea, como
“[...] curva-se sobre si mesmo, sobre o seu interes- por exemplo a desenvolvida por Norberto Bobbio
se privado e seu arbítrio próprio”.3 Essa “antropo- em seu polêmico estudo sobre Gramsci de 1967.6
logia atomista” concebe uma dupla ação na socie-
dade civil: a “liberista”, baseada sobre o mercado, A respeito desse tema, encontram-se unidos:
como a “liberal”, fundada sobre os direitos e suas Marx, Gramsci e a socieda-
associações pré-estatais, que não considera a exis- de civil. A particular leitura
tência de classes sociais; ou seja, onde a pessoa, o feita por Bobbio * sobre o
Como escreveu Marx em A
indivíduo, é impelida a prescindir do seu ser-em- conceito de sociedade civil
sociedade, 4 do seu ser determinado pela complexa na obra de Gramsci não questão judaica, o homem da
rede de relações econômicas, sociais e políticas. pode constituir um ponto de
sociedade civil termina sempre
partida sobre a presente re-
Enquanto diferente tentativa de relançar à es- flexão, sendo talvez a própria por assemelhar-se com o
querda o conceito de sociedade civil, citamos o li- interpretação de Gramsci
vro de Bruno Trentin, La città del lavoro.5 Resumin- “homem egoísta” [...].
sobre sociedade civil a que
do uma velha “querela” da esquerda, sobretudo do mais influenciou, depois de
século XX, a favor e contra Lênin e o leninismo,
Togliatti, para a recepção
Trentin – se é de fato reprodutor de alguma tese
dos seus Cadernos do cárcere na Itália e no mundo.
própria das correntes teóricas minoritárias do mo-
vimento operário e comunista de Novecento de Dito de forma extremamente sintética,7 sem
Luxemburgo a Korsch –, lendo-os como notas de sustentar as divergências de Gramsci a respeito de
um ponto de vista social-político (onde, talvez em Marx, Bobbio não argumenta de forma profunda
meio a essa polêmica é evidenciado pela primeira
*
vez esse termo), acaba opondo-se a um ponto de Esse texto de Cagliari, de 1967, “La società civile in Gramsci”,
foi lançado no Brasil em agosto de 1982 com o título de O
vista de uma práxis, sobretudo político-estatualista. conceito de sociedade civil, trad. por Carlos Nelson Coutinho
Um dos autores que Trentin usa muito em sua obra, (Rio de Janeiro: Graal, 1982).

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os motivos de “autonomia” inter- acepção “seguindo o exemplo dos in-
pretativa gramsciana (o que tem sido gleses e dos franceses” Marx, ao ex-
muito destacado) no que diz respeito por seu modelo teórico, está se refe-
às tradições marxistas, principalmen- rindo? Não poderia ser outra senão
te em relação à particular acepção do aquela historicamente (in)deter-
conceito de sociedade civil. Seman- minada, aquela civil society concei-
ticamente, o raciocínio de Bobbio é tualizada na Grã-Bretanha e na Fran-
o seguinte: seja para Marx, seja para ça cuja referência foi diversas vezes
Gramsci, a sociedade civil é o “ver- explicitada. Além do mais, as pala-
dadeiro teatro da história” (a célebre vras que vêm logo depois no texto de
expressão de Marx usada na Ideolo- Marx (de que a anatomia da socieda-
gia alemã). Mas, para o primeiro, essa Togliatti
de civil é encontrada na economia
faz parte do momento estrutural, e política) são certamente muito
para o segundo faz parte do superestrutural: para ambivalentes para o problema que estamos enfren-
Marx o “teatro da história” é a estrutura, a econo- tando; isso porque a “sociedade civil” pode ser tam-
mia; para Gramsci, a superestrutura, a cultura, o bém substituída por “sociedade burguesa”, mas a
mundo das idéias. tradução que prevalece provém da frase marxiana
imediatamente precedente.
Mas as coisas estão verdadeiramente postas des-
sa forma? Valentino Gerratana assinala em nota de sua
edição crítica dos Cadernos que Gramsci também
A SOCIEDADE CIVIL DE MARX titubeou nos seus exercícios de traduções em rela-
ção à passagem do então “Prefácio” de 1859 de
Liberemos o campo de um problema prelimi- Marx. Gramsci possuía no primeiro tempo a se-
nar. Wolfgang Fritz Haug, em uma intervenção fei- guinte tradução “[...] açambarca com o nome de
ta em 1989,8 indica que tem constatado freqüentes ‘sociedade burguesa’, que porém a anatomia da so-
leituras bobbianas na obra de Gramsci e Marx. Sus- ciedade burguesa é encontrada na economia políti-
tenta o autor que é errado traduzir a expressão ca”. 10 No segundo momento, segundo revela
bürgerliche Gesellschaft como “sociedade civil”, o Gerratana, Gramsci passou a cancelar a palavra
certo seria traduzi-la como “sociedade burguesa”. “burguesa” e a substituiu por “civil”.
Como é notório, as expressões alemãs encontram-
se na sua maioria unidas, o que em quase todas as De modo geral, não parece possível traduzir,
outras línguas (de origem latina) estão separadas. nesse tipo de contexto, bürgerliche Gesellschaft como
Essa ambivalência semântica assinala o resto de uma “sociedade burguesa”. Para o italiano (e as línguas
verdade histórica: não se tem realmente uma “soci- latinas), a expressão “sociedade burguesa” vem sen-
edade civil” antes da sociedade burguesa? do compreendida, seja na sua relação com o Esta-
do, seja com relações extra-estatais. Termo inade-
Mas em que sentido deveria ser compreendida quado, portanto, para compreender a contraposição
a passagem em que Marx nos diz, no seu célebre instituída por Marx entre as “formas do Estado”
“Prefácio”, de 1859, de Para crítica da economia cujas “raízes” são mais profundas. A “sociedade ci-
política, que vil” é um termo que deriva do latim
[...] tanto as relações jurídicas quanto
societa civilis (traduções medievais do
as relações do Estado [...] têm suas grego Koinomia politiké) e, através de
próprias raízes, antes nas relações um longo trabalho de depuração his-
materiais de existência e cujos tórica, foi passado a indicar a societas
complexos vêm abrangendo o que civilis sine imperio, distinta daquela
Hegel, seguindo o exemplo dos ingleses cum imperio, isto é o Estado.11
e dos franceses no século XVIII, chama
de “sociedade burguesa”9 Voltemos a Marx. É possível ob-
servar que o tema “sociedade civil” e
ao invés de “sociedade civil”, sua relação com o Estado constitui
como se é de hábito traduzir? A que Bobbio um dos seus temas centrais na época

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na sua obra de juventude. Na sua In- conceito em Marx açambarca somen-
trodução à crítica da filosofia do di- te o momento da estrutura. Em A
reito de Hegel (de 1843), Marx – se- questão judaica, de 1843-1844, por
guindo o procedimento aplicado por exemplo, escreve o autor:
Feuerbach à crítica da religião – abre
o combate da relação entre sujeito e Este conflito mundano [...] a relação do
predicado e afirma que em Hegel o Estado político com seus pressupostos, não
por seus elementos materiais como a
sujeito é o Estado e o predicado é a
propriedade privada etc., ou espirituais,
sociedade civil. Só que na realidade como cultural, religião [...] a cisão entre o
demonstra o autor de O capital que Estado político e a sociedade civil, a esses
isso procede no âmbito real de for- contrastes mundanos, Bauer deixa subs-
ma inversa: o sujeito é a própria so- tituir.16
Bruno Bauer
ciedade civil. Escreve Marx que a
Os “pressupostos” do Estado, isto
família e a sociedade civil são os pressupostos do Estado, é, o que precede o Estado são tanto os elementos
são esses propriamente os momentos efetivos, ou seja, o materiais quanto os elementos espirituais e cultu-
meio e o fim. Nas especulações idealistas isso foi rais. E, ainda, na mesma obra, só que mais adian-
concebido de forma contrária, a idéia foi transformada te, Marx indica como partes constitutivas simples
em sujeito, ali os sujeitos reais, a sociedade civil, a família
da sociedade civil “[...] de um lado os indivíduos,
[...] foi se tornando os momentos objetivos da idéia,
do outro os elementos materiais e espirituais”.17
irreais e místicos.12
Em outro caso, advoga Gerratana, referindo-se
Bobbio tem razão quando afirma que em Marx ao “Prefácio” de 1859, que quando Marx escreve
o Estado é o “[...] momento secundário ou subor- que a “anatomia da socieda-
dinado à sociedade civil”.13 Essa posição, que emerge de civil é encontrada na eco-
desde 1843, será defendida continuamente no per- nomia política”, não se vê
Em Ideologia alemã,
curso marxiano. Em Ideologia alemã, por exemplo, por que se deva identificar
afirma que a “sociedade civil é o verdadeiro lar, o a parte com o todo, isto é, por exemplo, afirma
teatro de toda história”; é, também, no já citado com a estrutura. Por conse-
“Prefácio” de 1859 de Para crítica da economia polí- guinte, a “anatomia” da que a “sociedade civil
tica, onde Marx escreve sobre a influência de Hegel sociedade civil com os ele- é o verdadeiro lar, o teatro
nos anos de 1843-1844 e como desenvolveu, a par- mentos que essa estrutura
tir do autor da Fenomenologia do espírito,14 a sua sustenta e que não são suas de toda história”.
noção de sociedade civil. 18
funções específicas. Sabe-
mos que esses elementos es-
Na obra de Marx, todavia, é possível encon-
tão na sociedade civil de Marx, sejam eles estrutu-
trar elementos que indicam uma leitura mais com-
rais, sejam superestruturais, sendo estes últimos (os
plexa da dicotomia entre Estado × sociedade civil.
superestruturais) os centrais.
Uma leitura em parte diversa, que não pode negar
o “avesso” operado por Hegel, mas problematizar De modo geral, acredito que a dicotomia em
seja o conceito de sociedade civil (e dos conteúdos questão – para Marx – é própria da modernidade,
com os quais esse se nutre), seja a inteira valoriza- ou seja, é própria da sociedade burguesa; paralela-
ção da separação sociedade-Estado. Além do mais, mente, ou francamente sobreposta, ela indica a
o termo “sociedade” acena para uma questão dicotomia entre burguês e cidadão, criticando-a em
terminológica que merece ser indagada melhor: o nome de uma síntese e de uma recomposição supe-
fato é que Marx, na maturidade e na sua grande rior. Marx por isso não se limita a inverter a rela-
obra Crítica da economia política (O capital), não ção Estado–sociedade hegeliana, mas se opõe a essa
usará mais “sociedade civil”, abandonará totalmen- tese; critica a dicotomia ante a esfera pública e a
te o termo, preferindo usar “sociedade” tout court. privada, refuta o confinamento do político no Esta-
A respeito do termo “sociedade civil”, Gerrata- do e do socioeconômico na sociedade, mostra como
na15 discutindo – e fazendo uma réplica ao próprio o poder (e a política) é a própria mediação de am-
Bobbio – diz que não é de todo verdadeiro que tal bos os momentos.19 É essa concepção dialética que

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ainda o liga a Hegel. É essa mesma dialética que a “unidade real” é formada pelo Estado e pela soci-
também rastrearemos em Gramsci. edade. Um ao menos recordaremos. Trata-se do pa-
rágrafo 38 do Caderno 4:
Em outros termos, trata-se de apreender as li-
mitações das leituras mecanicistas da relação estru- [...] se especula [...] sobre a distinção entre sociedade
tura–superestrutura da obra de Marx. Gramsci, política e sociedade civil e se afirma que a atividade
contrariamente, soube rein- econômica é própria da sociedade civil e a sociedade
terpretar no sentido antide- política não deve intervir na sua regulamentação. Mas,
Em Bobbio, a estrutura e a terminístico a clássica pas- na realidade, essa distinção é puramente metodológica,
mas não orgânica. Na concreta vida histórica, a sociedade
sagem (aqui já referenciada)
superestrutura parecem política e a sociedade civil são a mesma coisa. De onde
do “Prefácio” de 1859. De- também o liberalismo deve ser introduzido por lei, pela
determinar uma a outra vemos nos preocupar em lei, para intervir a saber no poder político.22
(só que para Marx a estrutura apontar as reduções de uma
concepção cujas determina- Existe ainda menos uma separação rígida entre
determina a superestrutura e ções em última instância de economia, política e sociedade. Estado e sociedade
um e dos dois termos (es- não são realidades autônomas, a ideologia liberal
em Gramsci, o contrário).
trutura e superestrutura) es- que os pinta como tais é explicitamente negada.
tejam ligadas forte e imedi- Daqui nasce o conceito central nos Cadernos de
atamente a um único nível “Estado ampliado/maximizado”.23
da realidade: “teatro de toda história”. Em Bobbio, Estrutura e superestrutura, economia, política
a estrutura e a superestrutura parecem determinar e cultura são para Gramsci esferas unidas e ao mes-
uma a outra (só que para Marx a estrutura determi- mo tempo autônomas da realidade. Por isso mes-
na a superestrutura e em Gramsci, o contrário). mo há pouco sentido em contrapor a sociedade ci-
Na leitura de Bobbio, Gramsci soube atualizar vil de Marx, momento, sobretudo, das relações
Marx. No entanto, essas instâncias (ou melhor, os econômicas, com a sociedade civil de Gramsci,
elementos estruturais e superestruturais) não são onde prevalecem as relações político-ideológicas.
concebidas como momentos de unidade (e de au- Gramsci, no momento que delineia alguns aspec-
tonomia), de ações recíprocas entre os diversos ní- tos da sociedade civil, o faz sempre a partir de Marx
veis da realidade, próprios da concepção dialética, e de suas lições (pré-requisitos de sua concepção
como é indicado por Gramsci. E como penso que dialética). Esforçar-se em ir adiante, registrando na
seja a concepção de Marx. teoria, como já exposto, a nova forma de interven-
ção cultural e política na história. Um dos pontos
GRAMSCI: UMA CONCEPÇÃO
centrais do marxismo de Gramsci é, de fato, este
de não separar de modo hipostasiado alguns aspec-
DIALÉTICA
tos do real (economia, sociedade, Estado e cultu-
Nos Cadernos do cárcere, o discurso complica- ra). Bobbio, cuja teoria política é fortemente
se ainda mais. Para melhor dizer, torna inviável a dicotômica e procede por dualidades opositivas,
tentativa de se ler essa obra de Gramsci, tão com- defende como central no pensamento de Gramsci a
plexa e rica, com os instrumentos categoriais rigi- dicotomia Estado–sociedade civil, negando, assim,
damente dicotômicos indicados por Bobbio. Já em o que no autor dos Cadernos é o mais importante: a
Cagliari, em 1967, Jacques Texier fez objeções a não separação, ou seja, a unidade dialética entre
Bobbio em meio a sua defesa de que “[...] o con- política e sociedade, entre economia e Estado. Hoje,
ceito fundamental de Gramsci não é o da sociedade lamentavelmente, pode-se talvez dizer que o con-
civil, mas o de ‘bloco histórico’”.20 O que quero ceito de sociedade civil tem uma nova acepção, tem
advertir – como já foi lembrado por Togliatti dez um distanciamento daquele que encontramos ge-
anos antes,21 recuperando uma afirmação explícita nuinamente em Gramsci (como, por exemplo, os
de Gramsci – é que a distinção entre Estado e soci- limites idealistas das leituras liberais que são feitas
edade civil é de natureza metodológica e não orgâ- dos Cadernos, majoritárias no debate norte-ameri-
nica. São muitas as citações possíveis dos Cader- cano). Contudo, podemos ainda afirmar que
nos, no entanto, é possível afirmar que em Gramsci “Gramsci é o primeiro e mais importante marxista

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a refutar as reduções economicista Nuovo, quando o “primado da políti-
do conceito de sociedade civil”, o ca” inicialmente açambarca a sua for-
autor dos Cadernos havia insistido ma madura. Uma vez que passou a
“[...] na ‘autonomia’ da sociedade suprimir gradualmente os elementos
civil e no seu ‘destaque’ em relação precedentes do “sorelismo”, Gramsci
ao Estado e à sociedade política”.24 passa a conceber (manifestadamente
Para a esquerda liberal – como já foi influenciado também pela leitura de
indicado – a sociedade civil é qual- Hegel e dos neo-hegelianos italianos)
quer coisa de distante tanto da eco- que o “[...] Estado é sempre a condi-
nomia como do Estado. Não é jus- ção e o protagonista da história”.26
to, portanto, que esse indevido Nos Cadernos, a reflexão gramsciana
aspecto conceitual recaia sobre os sobre a “ampliação do conceito de
ombros de Gramsci! Lênin Estado” ou “Estado integral” é, na
verdade, a redefinição de uma teoria
É possível perceber no pensamento de Gramsci
política marxista. Com isso, ele não só supera o
uma grande novidade em relação ao pensamento
reduzido instrumentalismo, que era também de certo
de Marx? Em parte sim, é aquela relativa ao papel
modo de Marx, “[...] cujo Estado é um instrumen-
do Estado e da política. Dito de forma sintética,
to nas mãos de uma ‘classe sujeito’ dotada de vonta-
Gramsci supera completamente (a partir das lições
de [...]”,27 mas redefinindo a forma de Estado. In-
de Lênin) aquelas visões reduzidas e instrumentais
dicando-o também como aparato hegemônico,
do Estado que constitui talvez o maior ponto fraco
Gramsci pôde afirmar ainda que “[...] o Estado deve
de Marx. Enquanto Marx pensa a relação dialética
ser também entendido como um outro aparelho que
da sociedade e do Estado a partir da sociedade,
governa o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou so-
Gramsci pensa esta relação dialética da sociedade e
ciedade civil”.28 É por isso que Gramsci fazia refe-
do Estado a partir do Estado, “corrigindo” e
rências infinitas em seus Cadernos sobre a “unidade
“reequilibrando” um progressivo desequilíbrio
orgânica” entre Estado e sociedade civil. Escrevia
interpretativo. Marx e Gramsci, porém, confluem
Gramsci que “[...] na realidade efetiva sociedade
num ponto essencial: a sociedade civil não é um
civil e Estado identificam-se”.29 No pensamento de
lugar idílico. Concordam também – fato de con-
Gramsci, o Estado configura-se como o lugar de
senso e do triunfo da democracia e da cidadania
uma hegemonia de classe, momento que se tem
que aparece em algumas representações modernas
– com a tese de contrapor essa realidade àquela [...] um contínuo formar-se e superar-se de equilíbrios
realidade, mais ou menos despótica e opressiva, instáveis (no âmbito das leis) entre os interesses do grupo
mas sempre vista como negativa, do político. Como fundamental e àquele dos grupos subordinados,
delineou Joseph Buttigieg, a história da sociedade equilíbrios cujos interesses do grupo dominante
civil para Gramsci é a história do domínio de al- prevalecem até um certo ponto.30
guns grupos sociais sobre os outros, é a trama da
hegemonia, da subordinação, da corrupção e da É importante sublinhar que esse momento de
25
exclusão de poder, é a história da luta de classe. inovação teórica do marxismo gramsciano em rela-
ção a Marx desemboca em um novo registro da
É na temática do Estado, porém, relação entre economia e política
que se mistura majoritariamente a próprio do século XX. A ampliação
nova constituição das elaborações da intervenção estatal na esfera da
gramscianas. Em todo o pensamento produção é obra da organização e da
de Gramsci a reflexão sobre o Esta- racionalização, cujo político relacio-
do-nação é central e ligada à temática na-se com a sociedade e também a
da hegemonia. Estado-nação, crise do produz. Bolchevismo, fascismo,
Estado burguês, construção, supera- keynesianismo e Welfare são todos
ção/superamento do Estado proletá- exemplos – sejam puros, sejam com
rio e internacionalismo são os pro- algumas diferenças – dessa nova re-
blemas que delimitam o coração da lação entre economia e política que
reflexão no fim dos anos de Ordine Marco Aurélio Nogueira se completa a partir da Primeira

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6
Guerra Mundial (como vem ilustrar Rathenau na Noberto Bobbio, “La società civile in Gramsci” (1967), em
Noberto Bobbio, Saggi su Gramsci (Milão: Feltrinelli, 1990).
Alemanha e todos os debates também nos ambien- A interpretação de Bobbio, não por acaso, foi lembrada também
tes social democrata e comunista). Isso, inclusive, por Cox no artigo citado.
constitui a respeito do capitalismo descrito por Marx 7
Para uma exposição, uma discussão mais esmiuçada, indico o
uma invasão pela política. Como escreveu Marco meu livro, Gramsci conteso: storia di um dibattito 1922-1996
(Roma: Riuniti, 1996).
Aurélio Nogueira, “[...] o político estende, ocupa 8
W. F. Haug, “Tradurre Gramsci”, em M. L. Righi, Gramsci
muitos espaços. A ‘politização do social’ é seguida nel mondo (Atti del Convegno Internazionale di Studi
da socialização da política”.31 Gramsci, no campo Gramsciani, Formia, 25-28 de outubro de 1989) (Roma:
marxista, é quem melhor dá o tom teórico-político Fondazione Istituto Gramsci, 1995).
9
Cf. Karl Marx, ‘Prefazione’ (1859) a “Per la critica dell’economia
a esse fenômeno. política”, em Karl Marx & Friedrich Engels, Opere complete,
vol. 30 (Roma: Riuniti, 1986), p. 298.
Até onde poderemos afirmar que Gramsci é 10
Antonio Gramsci, Quaderni del carcere, edição crítica
um teórico da “autonomia do político”? Não creio organizada por Valentino Gerratana (Turim: Einaudi, 1975),
ser isso possível. Considero um erro as leituras que p. 2.358
11
arriscam fazer do autor dos Cadernos um teórico Cf. P. Portinaro, Stato (Bolonha: Il Mulino, 1999), p. 101.
12
Karl Marx, “Critica della filosofia hegeliana del diritto publico”, em
da “autonomia do social” – e aproveito para subli- Karl Marx & Friedrich Engels, Opere complete, vol. 3, cit., p. 98.
nhar aqui o fecundo debate travado por Gramsci 13
Noberto Bobbio, “La società civile in Gramsci”, cit., p. 41.
com o sorelismo. Todavia, a dialética do pensamento 14
Karl Marx, “Prefazione” (1859) a “Per la critica dell’ economia
gramsciano, os atos humanos e políticos desse au- política”, cit., p. 298.
15
Valentino Gerratana, “Intervento”, em P. Rossi, Gramsci e la
tor devem, coerentemente, induzir ao afastamento cultura conteporanea, vol. 1, Atti del Convegno Internazionale
também do erro oposto: o de ser um autor da “não- di Studi Gramsciani, Cagliari, 23-27 de abril de 1967 (Roma:
autonomia social”. Riuniti, 1969), p. 171.
16
Karl Marx, “Sulla questione ebraica”, em Karl Marx & Friedrich
A atualidade do pensamento de Gramsci reside Engles, Opere complete, vol. 3, cit., p. 167.
17
no aspecto de que a sua concepção de estatização e Ibid, p. 180.
18
de política compreende a sociedade. Nesse senti- Valentino Gerratana, “Intervento”, cit., p. 171.
19
Cf. G. Rametta, “Filosofia política e potere nel giovane Marx”,
do, não há uma negação, uma separação entre es- em G. Duso (org.), Il potere: per la storia della filosofia política
sas instâncias, muito pelo contrário. As notas, por moderna (Roma: Carocci, 1999).
20
exemplo, sobre os subalternos, sobre o folclore, a Cf. Jacques Texier, “Intervento”, em P. Rossi, Gramsci e la
cultura contemporânea, cit., p. 154.
luta pela hegemonia e o jovem “espírito de cisão” 21
Palmiro Togliatti, “Gramsci e el leninismo” (1958), em E.
indicam uma “concepção ampliada da política”, con- Ragioneri (org.), Gramsci (Roma: Riuniti, 1967), p. 179.
seqüência da sua “concepção ampliada de Estado”. 22
Antonio Gramsci, Quaderni del cárcere, 4, cit., p. 460.
Gramsci redefiniu o conceito de Estado, mas tam- 23
Cf. Cristine Buci-Gluksmann, Gramsci e lo stato (Roma:
Riuniti, 1976); G. Francioni, L’officina gramsciana (Nápoles:
bém ampliou o conceito de política. Separar socie- Bibliopolis, 1984).
dade do Estado, da política e da economia, socie- 24
J. L. Cohen, “La scommessa egemonica: l’attuale dibattito
dade e política, em qualquer direção que se deseje americano sulla società civile e i suoi dilemmi”, em Giuseppe
proceder, está fora da esteira do seu pensamento. Vacca, Gramsci e il Novecento, vol. 1, cit., p. 268.
25
J. Buttigieg, “Sulla categoria gramsciana di ‘sulbalterni’”, em
Giorgio Baratta & Guido Liguori (orgs.), Gramsci da um secolo
NOTAS all’altro (Roma: Riuniti, 1999).
26
1
Antonio Gramsci, “La conquista dello Stato” (12 luglio 1919),
Exemplificando essa tendência, e por sua usual clareza em V. Gerratana & A. Santucci, L’Ordine Nuovo 1919-1920.
argumentativa, vale verificar o livro de S. Veca, Cittadinanza (Turim: Einaudi, 1987), p. 128. Vale verificar também o
(Milão: Feltrinelli, 1989). meu artigo “Stato e mondializzazione” lançado na revista Critica
2
R. Cox, “Il pensiero di Gramsci e la questione della società marxista, no 5 (Roma: Riuniti, 1998).
civile alla fine del XX secolo”, em Giuseppe Vacca (org.) (com 27
Cristine Buci-Glucksmann, Gramsci e lo stato, cit., p. 116.
a colaboração de Marina Litri), Gramsci e il Novecento, vol. 1 28
Antonio Gramsci, Quaderni del cárcere, 6, cit., p. 801.
(Roma: Carocci, 1999), p. 240. 29
3
Antonio Gramsci, Quaderni del cárcere, 13, cit., p. 1.590.
Karl Marx, “Sulla questione ebraica”, Karl Marx & Friedrich 30
Ibid., p. 1.584.
Engles, Opere complete, vol. 3 (Roma: Riuniti, 1976), p. 179. 31
4
Marco Aurélio Nogueira, “Gramsci e la nuova política”, em
Cf. R. Finelli, “Antropologia della politica”, em Democrazia e Critica Marxista, no 5-6 (Roma: Riuniti, 1997); e, também,
Diritto, no 2, 1992. R. Racinaro, “L’interpretazione gramsciana dell’idealismo”, em
5
Bruno Trentin, La città del lavoro (Milão: Feltrinelli, 1997). Giuseppe Vacca (org.), Gramsci e il Novecento¸vol. 1, cit., pp.
As teses de Trentin sobre sociedade civil e teoria dos direitos 378-379. Foi discutida por esses autores, de forma eficaz, a
foram discutidas em Bruno Trentin, Autunno caldo: il secondo característica dialética da concepção gramsciana e da sua distância,
bienio rosso 1968-1969, entrevista dada a G. Liguori (Roma: da sua divergência ao modelo liberal, delineando, contudo, a
Editori Riuniti, 1999), p. 159. influência de Hegel sobre o autor dos Cadernos.

N OVOS R UMOS 10 ANO 21 • No 46 • 2006

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