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17/03/2020 “Mari condensa toda a Mesopotâmia e imaginá-la destruída é muito triste” | Entrevista | PÚBLICO

ENTREVISTA PATRIMÓNIO  TORNE-SE PERITO

“Mari condensa toda a Mesopotâmia e


imaginá-la destruída é muito triste”
Jean-Claude Margueron dedicou-se ao estudo da Mesopotâmia e dirigiu
escavações na antiga Mari, na Síria, durante 25 anos. Apaixonou-se pelo deserto
e pelo Eufrates na sua primeira viagem e nunca deixou de regressar. Nesta
entrevista fala das cidades na Antiguidade e de como um ataque à arqueologia no
Médio Oriente é um ataque universal, uma catástrofe.
Lucinda Canelas 3 de Maio de 2015, 9:52

Jean-Claude Margueron tem 80 anos, boa parte


deles passados a trabalhar a partir das campanhas
arqueológicas que, entre 1979 e 2004, dirigiu em
Mari, importante cidade da Mesopotâmia fundada
por volta de 2900 a.C.. Define-se como um
historiador apaixonado pela Mesopotâmia e foi
nessa qualidade que esteve em Lisboa para
participar no colóquio Na Fronteira entre o Mito e a
História – Representações do Espaço e do Poder na
Antiguidade, na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

De uma energia que parece inesgotável, Margueron,


um dos mais respeitados académicos que se
dedicam ao estudo das sociedades que gravitaram
em torno dos rios Tigre e Eufrates, está hoje
oficialmente reformado, mas isso não o impede de
continuar a escrever sobre a Mesopotâmia e a
ensinar na École Pratique des Hautes Études, em
Paris.

No colóquio de Lisboa, o historiador falou dos


lugares de poder na Mesopotâmia, de como são
difíceis de identificar. E, para o fazer, foi lançando
perguntas como “O que é um palácio?” e “O que é
que o distingue de um templo se usa os mesmos
dispositivos e se nele o rei se faz adorar como um

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deus?” Os lugares de poder, explicou, não são fáceis


de definir em arqueologia, nem mesmo quando se
cruza a informação que nos dá a arquitectura com
fontes documentais, e na Mesopotâmia evoluem à
medida que as próprias cidades se transformam,
assim como o papel do rei enquanto líder político e
militar.

Mari, a actual Tell Hariri síria, a 15 quilómetros da


fronteira com o Iraque, foi uma importante
metrópole do Eufrates médio e é escavada por
arqueólogos franceses desde 1934. Foi o primeiro
director de escavações, André Parrot, que levou pela
primeira vez Jean-Claude Margueron para o Médio
Oriente e para o deserto. Sabê-la hoje ameaçada pela
guerra e em parte destruída é para o historiador
francês “devastador”.

“A Babilónia é um monstro que não existe, um mito, ao passo que Mari é


verdadeira, é uma cidade em que se pode fazer História. E eu sou um
historiador, não vivo no mito”

Como é que Mari aparece no seu percurso?


Eu tinha 13 anos e estava de férias numa pequena
ilha, na praia. Havia mais duas famílias para além
da minha e uma delas era a de André Parrot. Foi
assim que o conheci e brinquei com os seus filhos.
Fiquei a saber o que fazia pelas conversas dos
adultos. A princípio, claro, ele não se interessou
nada por mim, mesmo nada. Só passou a interessar-
se quando percebeu que eu ia assistir às suas
conferências e que tinha decidido fazer do Oriente a
minha vida. Foi aí que Parrot me perguntou se
estava interessado em acompanhá-lo na campanha
seguinte de escavações. Bom, era uma aventura:
viajar para descobrir o Oriente aos 19 era tudo o que
eu queria. O meu pai só aceitou quando lhe
expliquei que precisava de ir para ter a certeza de
que era aquilo que queria fazer com a minha vida – e
era.

Qual é a imagem que guarda dessa primeira


viagem?
A da chegada. É um cenário impressionante, mesmo
sem construções espectaculares em efeito. Houve
um fascínio pelo sítio, mas também pelo Oriente,
pelo deserto, pelo vale do Eufrates. Havia ali um
mundo natural que, apesar de transformado, estava
ainda muito próximo da Antiguidade. E havia
também aquela imensa ruína capaz de produzir

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palácios, templos, estátuas… Uma cidade


desaparecida que encerrava um mundo inteiro, toda
uma sociedade.

Equipa da 15ª campanha de escavações em Mari, em 1965: Jean-Claude Margueron é o segundo à direita e André Parrot é o quinto à
direita (director) ARCHIVO DE LA MISIÓN DE MARI

O que é que faz dela uma cidade singular no


contexto da Mesopotâmia? Muitos ouviram
já falar de Babilónia mas serão poucos os
que sabem o que é Mari ou onde fica…
A Babilónia é um monstro que não existe, um mito,
ao passo que Mari é verdadeira, é uma cidade em
que se pode fazer História. E eu sou um historiador,
não vivo no mito. O que me interessa é saber como
se vivia ali, nas margens do Eufrates, há cinco mil
anos. O que me apaixona no trabalho que faço é a
possibilidade de pôr em evidência as características
da primeira sociedade urbana, da primeira
civilização urbana. Antes de Mari isso não existe.

Mari é a primeira cidade?


Não, mas é uma das mais antigas. É difícil
identificar a primeira, mas é do quarto milénio a.C.,
e Mari é do princípio do terceiro.

Porque é que o homem sentiu necessidade de


construir cidades?
Porque a vida se tornou mais complexa, exigia mais
organização, e ele percebeu que, se queria que as
suas construções durassem – falamos de
construções em tijolo cru, difícil de preservar num
território sujeito a cheias - era preciso criar um meio

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urbano harmonioso. E nesse meio urbano as cidades


nascem com ruas radiais e canais que as atravessam
ou canais periféricos. Mari é certamente uma das
primeiras cidades em meio urbano.

“Gostaria que a próxima geração tivesse uma atitude responsável e que não
escavasse para encontrar objectos, mas para encontrar uma civilização. A terra
tem muitas memórias, mas lembra-se apenas de excertos, de pedaços – a terra
não guarda o todo”

O que é que isso quer dizer?


Quer dizer que não está sozinha, que funciona em
rede com outras cidades ligadas por canais e rotas.
Mari é uma grande cidade logo no momento da
fundação [as escavações mostram três níveis de
ocupação, mas sempre com cidades] porque ela
controla a rota do cobre e de outros metais que vem
da Anatólia e se dirige para a Babilónia. Ela
assegura, para seu benefício, o transporte e até a
transformação e venda destes materiais. Nela a
metalurgia do cobre e do bronze é decisiva. Mari é
um dos sítios que melhor nos permitem
compreender a civilização do Próximo Oriente desta
época.

E porquê?
Porque há muitas coisas bem conservadas. Além
disso foi um lugar rico, com recursos, escavado de
forma sistemática desde 1934 - houve mais de 40
campanhas em Mari. É claro que os arqueólogos não
fizeram as coisas da mesma maneira…

A arqueologia no período colonial era


orientada para o objecto…
Claro. No princípio escavou-se sem parar à procura
de peças de grande espectacularidade e depois, na
segunda metade do século XX, foi-se caminhando
para uma arqueologia mais precisa, rigorosa, que
fazia depender a linha de investigação das
descobertas no terreno. Um exemplo: em 2000
descobri que as ruas eram feitas de uma combinação
de materiais que permitia a absorção muito rápida
da água das chuvas, impedindo a formação de poças
e de lama. Mas fiz esta constatação escavando
apenas uma rua. No ano seguinte, escavámos todas
as que tínhamos já identificado à procura da mesma
combinação de materiais, isto para que uma
descoberta não se esgote nela mesma, para que sirva
para ampliar o conhecimento.

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Sendo tão importante, porque é que Mari é


menos conhecida do que outras grandes
cidades do vale do Tigre e do Eufrates? E
aqui voltamos à Babilónia…
Não creio que seja. As pessoas não conhecem a
verdadeira Babilónia, conhecem as diversas versões
ficcionadas, mágicas…

Jean-Claude Margueron a escavar em Mari em 1938: depósito da fundação do Templo dos Leões ARCHIVO DE LA MISIÓN DE MARI

Que Babilónia é essa?


Quando falamos da Babilónia há que considerar
várias babilónias. Há a da Bíblia, com toda a sua
ambiguidade, que a mostra ora como a grande
cidade, ora como, desculpe o termo, a puta. Depois
há o interesse que por ela demonstra Alexandre, o
Grande, que tinha a intenção de a transformar na
capital do seu império, mostrando que, no tempo de
Alexandre [356-323 a.C.], não é o mundo grego que
aparece como modelo, e também não é o Egipto, é a
Babilónia. E, por fim, o mito criado pelos
arqueólogos alemães, que a vêem como um projecto
de império.

Qual império?
Um império figurado. A Alemanha tinha de ter uma
grande capital para mostrar em Berlim, como se de
um programa político se tratasse e não de
investigação científica. E a Babilónia foi essa capital
[grande parte dos artefactos encontrados, incluindo
a célebre Porta de Ishtar, estão no Museu Pergamon,

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na capital alemã]. Os arqueólogos alemães fizeram


na Babilónia uma coisa única – escavaram em
permanência durante 17 anos. Escavaram todos os
dias até serem expulsos pelos ingleses. Hoje
sabemos que este método é totalmente
desaconselhado porque acaba por andar depressa
demais, não deixa que o arqueólogo ganhe distância
das descobertas e reflicta sobre elas. É uma
abordagem totalmente imbecil.

Qual era a relação entre Mari e a Babilónia?


Elas estão na mesma rota de comércio, mas
com funções diferentes, imagino…
Essa é uma questão muito interessante. Mari situa-
se na rota do Eufrates, vinda da Anatólia, numa zona
de confluência absolutamente estratégia. Ora, o rio
continua e, mais à frente, aparece a Babilónia, que
também é construída sobre o Eufrates. Muitas
pessoas pensam que a Babilónia é que era a grande
cidade, e isto mesmo historiadores que trabalharam
sobre Mari, mas que não vêem as coisas como eu as
vejo. Ora, Mari não estava sob o controlo da
Babilónia. Tenho a certeza, de acordo com
informação histórico-geográfica, que no terceiro
milénico a.C. Mari é dominante e a Babilónia só
muito lentamente começa a ganhar espaço ao ponto
de, no começo do segundo milénio a.C., fundar um
império e esmagar Mari. Isto é feito com
Hammurabi – quando ele desaparece, desaparece o
império. É preciso esperar pelo primeiro milénio
a.C., com Nabucodonosor e durante apenas 60 anos,
para que a Babilónia se transforme de novo num
império. Quando pensamos no assunto chegamos à
conclusão que não é muito… É por isso que, quando
reflicto sobre a natureza dos impérios, sobre os reis
que por lá passaram e quanto tempo durou o seu
domínio, não posso deixar de defender que é Mari
que é superior à Babilónia, mesmo que tenha havido
momentos em que a segunda foi incontestavelmente
mais forte do que a primeira. Mari é, sem dúvida, a
grande cidade do terceiro milénio da Mesopotâmia
do Norte.

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Margueron, com os directores da missão arqueológica ibérica na Síria, ao norte de Mari, em 2007. Os directores são Francisco
Caramelo, da Universidade Nova de Lisboa (ao centro), e Juan Luis Montero, da Universidade da Corunha ELOY TABOADA

Nessa época temos de dividir a


Mesopotâmia?
Sim, temos. A do Norte tem Mari como centro e a do
Sul, depois de Uruk, tem Ur.

Há muitas diferenças entre o Norte e o Sul?


Grosso modo, os elementos fundamentais são os
mesmos, com pequenas diferenças regionais. Ur é
uma cidade circular como Mari, que tem canais
como Mari, e que foi fundada sobre o comércio
como Mari.

Se Mari era assim tão importante porque é


que nunca foi o centro de um império, como
a Babilónia?
Porque Mari baseia a sua força no comércio. A
Babilónia é uma cidade fundada para criar uma
junção onde os dois ramos da Mesopotâmia – os rios
Tigre e Eufrates – estão o mais próximo possível
antes de se separarem de novo. A Babilónia é
construída aí para assegurar a ligação à rede do
Tigre. É a esta função de cruzamento de geografias
que a Babilónia vai buscar a sua força e não apenas
ao comércio. E é esta posição de encruzilhada que dá
à Babilónia um papel extremamente importante.

Escavou em Mari durante 25 anos. Qual foi a


descoberta que mais o fascinou?
É muito difícil de dizer e eu explico porquê: eu não
encontrei estátuas nem fundações mirabolantes,
como Parrot, concentrei-me nos factos do dia-a-dia.
Por causa da arquitectura, foquei-me nas
habitações, nos palácios, nos templos, no conjunto

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das estruturas urbanas. Eu andei à procura da vida


do quotidiano e não de episódios extraordinários. É
claro que, se tivesse encontrado estátuas teria dito
“muito bem” e não me passaria pela cabeça atirá-las
ao Eufrates, mas não encontrei. Isto não significa
que não tenha encontrado coisas apaixonantes…

Como por exemplo…


Há um momento particularmente importante –
aquele em que percebi que as ruas de Mari eram
feitas de um material que permitia escoar as águas.
E isto há cinco mil anos. É preciso um pensamento
coerente para pôr de pé uma cidade em arquitectura
de terra em que isto acontece. E é preciso também
um conhecimento técnico apuradíssimo. Foi quando
comecei a relacionar uma série de elementos que me
eram dados pela arquitectura que senti que tinha
chegado à estrutura urbana de Mari. Não se tratava
de identificar as ruas dispostas em estrela, embora
isso fizesse parte, tratava-se de constatar que a
cidade dependia de uma tecnologia extraordinária e,
até à data, desconhecida. Foi uma descoberta
incrível – não é tão sexy como a estátua de uma
divindade, mas traz-nos muito mais conhecimento.

Qual foi a principal dificuldade que


encontrou ao trabalhar em Mari? A
arquitectura em terra é muito difícil de
conservar…
Uma das coisas mais difíceis foi garantir que o que
era descoberto não se deteriorava, precisamente.
Sabia o que Parrot tinha escavado e o que tinha
encontrado, mas também queria fazer coisas novas.

Que coisas?
Uma leitura estatigráfica do terreno, que Parrot
nunca fizera, por exemplo.

O que é que nos dá a estratigrafia?


Uma leitura das fases de ocupação daquele
território. Se for bem feita, mostra-nos como é que a
vida evoluiu naquele lugar, como se transformou.

Quando se fala da Mesopotâmia é muito


comum vê-la descrita como uma terra de
transformações e até de revoluções. A da
escrita, a da administração, a do
urbanismo… A partir de Mari, qual destas
revoluções é mais evidente?
É muito difícil de responder. Temos sempre
tendência a sobrevalorizar as descobertas que
fazemos, sem as relativizar por comparação às dos
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outros. Um exemplo: quando encontrei o grande


espaço central do palácio da primeira cidade de Mari
[Ville 1], uma sala com 16 metros de lado que
deveria ter sido coberta sem que tivesse quaisquer
colunas, uma proeza técnica assinalável, fiquei
estupefacto e disse para comigo mesmo: “Esta gente
de Mari era, efectivamente, a melhor…” Acreditava,
nessa altura, e cheguei a escrevê-lo, que ninguém
noutro ponto da Mesopotâmia tinha sido capaz de
tal coisa. Pois enganei-me redondamente. Pouco
tempo depois, analisei as plantas de uma outra
cidade – Kish [fundada por volta de 2500 a.C., a
pouco mais de 10 quilómetros da Babilónia] – e
percebi que, para a mesma época, este centro na
Mesopotâmia central também tinha espaços
cobertos com 16 metros de largo. Mari não estava
sozinha, era simplesmente o reflexo de um saber
fazer generalizado, e isto muda tudo porque
compreendemos que estamos perante um fenómeno
de civilização e não perante algo excepcional.

É por isso que Mari representa uma grande


oportunidade para um arqueólogo - permite-nos ler
o que a civilização mesopotâmica teve de melhor,
embora nada nela seja único. Quanto à escrita, em
Mari não sabemos praticamente nada a não ser que,
certamente, houve logo desde o início. Não
encontrámos textos muito antigos mas eu defendo
que, se Mari foi desde logo uma cidade comercial,
não podia existir sem escrita. Deu-nos muitos
documentos, mas nada específico. Mas foi em Mari
que pude ver, pela primeira vez, como nascia uma
cidade na Mesopotâmia.

Como?
Quando analisei a morfologia da cidade cheguei à
conclusão que tinha sido criada artificialmente e que
não tinha começado, como alguns historiadores
pensavam até aí, como uma pequena aldeia. Eu
escavei muito e não encontrei aldeia nenhuma. E aí
comecei a interrogar-me: Será que Mari é caso
único? Apercebi-me, então, que quando temos uma
cidade circular como Mari é impossível que seja
construída sobre as ruínas de uma aldeia.

Porquê?
É preciso ter um plano horizontal limpo em que
possamos traçar uma rede de linhas que nos
permitam formar um círculo. É preciso um projecto
definido. Há quem não acredite nesta teoria, mas eu

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defendo que, caso tenha havido algo anterior a Mari,


foi arrasado para que a cidade como a conhecemos
fosse construída.

Mari e as outras cidades semelhantes também não


poderiam ter sido construídas sem um programa
hidrológico preciso – era preciso eliminar com
regularidade as águas da chuva. A cidade era
atravessada por um canal que recebia estas águas e
as fazia desaparecer. Todo o urbanismo na
Mesopotâmia se apoia neste princípio. Ninguém
conseguiria construir uma cidade em arquitectura
de terra sobre ruínas em arquitectura de terra e sem
que houvesse um sistema eficaz de eliminação das
águas das chuvas.

É por causa de conclusões como esta que diz


que a cidade é riquíssima…
Sim, claro. É riquíssima em informação. Foi com ela
que aprendi quais são os elementos fundamentais
que faziam uma cidade na Mesopotâmia – e uma
cidade na Mesopotâmia é uma primeira cidade em
todo o mundo. Não são os palácios, não são os
templos, é o conjunto, o projecto urbanístico, o
pensamento que permite que ele nasça.

Fala em primeiras cidades… A Mesopotâmia


tem muito mais a ver connosco do que o
Egipto, em que não conhecemos a
organização urbana, mas a maioria das
pessoas ignora a sua importância para a
civilização ocidental e tem um certo fascínio
pela herança egípcia…
É um erro dos nossos antepassados e dos nossos
historiadores [risos]. É claro que o Egipto é
fascinante por causa do esoterismo: há os mortos, as
pinturas riquíssimas nos túmulos… Mas, quando
ouvimos a maioria das pessoas falar do Egipto, é
com grande exotismo, como se fosse um mundo
muitíssimo diferente do nosso. É uma visão
totalmente falsa. O Egipto é mais do que o Livro dos
Mortos e é preciso pensá-lo como um todo. A
Mesopotâmia é tão ou mais importante do que o
Egipto, mas menos conhecida. Bom, se teve alguma
fama, foi com Alexandre e a Babilónia e essa, como
já vimos, é uma visão desviante…

Como podemos, então, defini-la em bom


rigor?
A Mesopotâmia é um istmo – de um lado tem o
Mediterrâneo e do outro o Golfo Arábico-Pérsico.
Depois tem os rios Tigre e Eufrates, que vêm da

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Anatólia para desaguarem no golfo. Foram os dois


rios, com a possibilidade de transporte que
oferecem, que criaram as condições para o
desenvolvimento da civilização mesopotâmica. Ela
começa a formar-se no fim do neolítico, grosso
modo no sexto/quinto milénio a.C., mas existe
realmente a partir do quarto milénio a.C., com Uruk
e, sem dúvida, as primeiras cidades. Estas cidades
nascem do comércio e não vivem sozinhas.

A civilização mesopotâmica funda-se pelo transporte


de mercadorias através de uma rede hidrológica.
Progressivamente o istmo transforma-se num
espaço de trocas e de transformação de mercadorias
do Norte para o Sul e também no sentido inverso.
Foi a água que fez tudo isto graças a um esforço de
domesticação dos rios, um trabalho longo e
gigantesco.

É muito interessante que nos venham dizer que a


filosofia grega criou tudo… Nada mais falso! É certo
que os gregos vieram depois e trouxeram essa
mesma filosofia e tantas outras coisas que admiro,
mas não podemos dizer que o mundo ocidental
nasceu na Grécia. É um erro histórico fenomenal – a
história do Ocidente começa na Mesopotâmia.

É por isso que a destruição a que hoje se


assiste nos vídeos propaganda do
autoproclamado Estado Islâmico - a
acreditarmos que ela de facto ocorreu – é tão
preocupante…
Fico estupefacto. Sabemos que eles não vão destruir
tudo, mas que já destruíram coisas que deveríamos
ter sido capazes de proteger. Agora o mais urgente é
documentar: fazer vídeos, trabalhos teóricos e de
conservação no que ainda existe. Temos um projecto
para fazer um levantamento rigoroso em imagens do
palácio de Mari. Quero que se torne vivo na
imaginação das pessoas. Não sei como proteger Mari
ou outros sítios arqueológicos de futuros ataques
sem ser através de dispositivos que nos permitam
eternizá-los na nossa cabeça. Se não somos capazes
de os conservar no terreno – infelizmente não somos
e os últimos tempos têm mostrado isso – temos de
os conservar na memória.

Não há outra maneira?


Se há não sei qual é. Temos de continuar a trabalhar
sobre Mari e sobre todas estas cidades fabulosas de

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uma civilização também ela fabulosa. É preciso


perpetuar tudo o que é histórico e rigoroso, é preciso
não insistir nos mitos nem nos fantasmas.

Mari também foi incluída nestes raides de


destruição dos extremistas islâmicos? Não vi
qualquer notícia a respeito…
Vi imagens de satélite de Mari – é de bater com a
cabeça nas paredes… Pensar que algumas das
pessoas que trabalharam connosco nas escavações,
que viram o cuidado com que lidámos com cada
peça, com cada descoberta, estão agora entre os que
foram capazes de arrasar estruturas em Mari é
muito doloroso. Inaceitável. Ali está condensada
toda a Mesopotâmia e é por isso que imaginá-la
destruída é simplesmente muito triste, devastador.
Ainda não vimos aparecer objectos no mercado, mas
isso não é estranho porque nas escavações dos
últimos anos não encontrámos praticamente
nenhuns artefactos. Mas estes sítios são uma
tentação permanente. E com quatro anos de
guerra... É uma catástrofe.

O que é que falta descobrir em Mari?


Tanta, tanta coisa. Mari foi a minha vida, mas deixei
muito por encontrar. Gostaria que a próxima
geração tivesse uma atitude responsável e que não
escavasse para encontrar objectos, mas para
encontrar uma civilização. A terra tem muitas
memórias, mas lembra-se apenas de excertos – a
terra não guarda o todo.

Chamei ao meu último livro Cidades


Invisíveisprecisamente porque eu não posso escavar
e encontrar uma cidade inteira, mas posso
identificar vestígios, pistas. E é sobre estes traços
que eu posso construir as minhas interpretações, as
minhas cidades.

lcanelas@publico.pt

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