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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa
Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho
Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado
JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio
David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira
Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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Contos Digitais DN
A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo
Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.

Autor: Onésimo Teotónio Almeida


Título: Jean-Charles, Amor De Calções

Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto


Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso
ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com

© 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora

ISBN: 978-989-8507-26-6

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consenti-
mento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição
o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo
com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor

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Onésimo Teotónio Almeida


Nasceu nos Açores, em 1946. Após uma passagem por Lisboa para prosseguir estudos,
emigrou para os EUA em 1972. Doutorou-se em Filosofia na Brown University
(Providence, Rhode Island), mas nessa altura já fazia parte do Centro de Estudos
Portugueses e Brasileiros (hoje Departamento) da mesma universidade, que ajudou
a fundar e de que depois foi diretor por mais de uma dúzia de anos. É Professor
Catedrático. A par da profusa escrita ensaística e académica, sempre escreveu crónicas
e estórias para jornais e revistas (sobretudo Jornal de Letras e LER). Tem seis livros
de crónicas, os mais recentes dos quais Viagens na Minha Era (2001) e Livro-me do
Desassossego (2007), e uma antologia dos anteriores, já esgotados: Onésimo. Português
Sem Filtro (2011). De contos, tem (Sapa)teia Americana (1983) e Aventuras de um
Nabogador e outras estórias-em-sanduíche (2008). Publicou também teatro (Ah! Mònim
dum Corisco! (1978) e No Seio Desse Amargo Mar (1991)) e ainda Onze Prosemas (e um
final merencório) (2004). Foi recentemente publicado o livro Utopias em Dói Menor
– Conversas transatlânticas com Onésimo (2012), uma conversa entre o próprio e João
Maurício Brás.

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Jean-Charles, Amor De Calções
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Onésimo Teotónio Almeida

pjvonbeck@oxbridge.uk

2/9/2012

Caro Alberto:

Desculpe-me ter deixado passar estes dias todos sem notícias. A tese abrandou um pouco
porque voltei a escorregar para as minhas tendências teóricas. Aquele Charles May é um
perigo, como você está sempre a dizer-me. Atrai-me para o abismo, autêntico buraco
negro da teoria. Mas a verdade é que é um fascínio. Resultado: atrasei-me na leitura dos
livros de contos recentes que me têm chegado. E o último da Alice Munro promete, a
julgar pela crítica de The New York Review of Books. A propósito de contos: e aquela minha
sugestão antiga de você se deixar de escrita académica e se pôr a experimentar ficção em
forma de conto? Já lhe disse tantas vezes. Estórias não lhe faltam. Agarre nas suas expe-
riências pessoais, a melhor fonte para a ficção. Aquelas que me contou do seu filho são
uma mina. Repito por aqui algumas das que me lembro, incluindo aquela dele em criança
a dar um beijo à mãe quando ela estava a maquilhar-se ao espelho e a dizer-lhe que era
a mulher mais linda do mundo e depois (penso que foi assim que me contou e, se não,
corrija-me por favor pois quero reproduzi-la como deve ser) a mãe comovida a dar-lhe
um beijo e ele Bem, pensando melhor, continua. Nem toda a gente é teu filho. Não foi assim? E
tinha quantos anos? Oito?

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albertod@hanford.edu

2/9/2012

Meu caro Pieter,

Deixe-se de teorias, já lhe disse. Já vazou montes delas sobre a primeira parte da tese,
agora feche essa caixa de Pandora e atire-se à análise dos contos que seleccionou. Mas
fuja mesmo desse perigoso sorvedouro do seu tempo e energia. Daqui a dias vai queixar-
-se de que anda de novo deprimido e eu vou repetir-lhe a cantilena do costume. A teoria
pode ser um veneno. Vai fazê-lo arrastar ainda mais a escrita da segunda parte da tese
e daqui a dias tem a universidade à perna, como dizemos em português. Ou a pôr-lhe a
corda ao pescoço, idem.
Quanto a isso de me lançar na escrita de ficção, esqueça! Vou declinar o convite que
me veio de uma revista para me juntar a uma plêiade de contistas num projecto de que
nem sei pormenores. Para conto não tenho jeito. É difícil, sabe? Leio alguns clássicos do
género, do Poe ou do meu Eça, por exemplo, e ainda fico mais inibido. Têm em mim o
efeito que a teoria literária tem em você: amarram-me. Está tudo ali tão direitinho, tão
no seu lugar. Quanto às estórias que coleccionei do Michael, por si só não chegam para
construir coisa nenhuma.
Sim, tinha oito anos quando se saiu com essa. Tenho outras dele com a mãe. Por exemplo
aquela de uma vez lhe dar um beijo ao chegar da escola e, com um ar algo aborrecido,
pôr-se depois a cantarolar os versos de uma canção, but I love you, you know I love you, e a
mãe: É doce, mas a que vem isso? E ele Nada, só uma canção com uma letra estúpida. E quando
certo dia, num dos seus momentos de ternura, lhe disse Eu era capaz de sacrificar a minha
vida por ti, pelo pai e pelos meus irmãos e a mãe aproveitou para lhe lembrar Se eras capaz
de fazer isso, então também podias ajudar mais vezes aqui em casa, ele especificou: Eu disse
sacrificar a minha vida, não o meu tempo.
Bom, vou deixar-me disto, que não passa de palermices de pai babado a falar dos filhos.
E avante com essa tese! Ah! Mas, já agora, só mais uma do Miguel com a mãe:
– Mãe, estás feliz?
– Porque perguntas?
– Não sei. Pareces-me com um ar tão deslavado como a Mona Lisa quando lhe apanharam
aquele sorriso.
O “deslavado’ não foi termo dele porque a conversa ocorreu em inglês. Mas não me
recordo exactamente do termo que usou. O nível do vocabulário dele em inglês é
imensamente superior ao português, que realmente se desenvolve sobretudo nas férias
em Portugal.
E lá voltei a cair na esparrela de me pôr a contar estórias do Miguel em miúdo. Será que

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me apanhou esse fraco e me puxa para ele de modo a fazer-me esquecer de o chatear por
causa da tese?

3/9/2012

Caro Alberto,

Não se zangue comigo. Tinha há tempos comprado no Amazon.com o livro Making


Stories: Law, Literature and Life ­– tenha calma, não é mais um de teoria literária, é de
um psicólogo cognitivista famoso, que deve conhecer, Jerome Bruner. Em conversas
aqui com um colega das ciências cognitivas tenho-me interessado cada vez mais pelo
contributo da psicologia para a literatura, sobretudo o conto e o romance. Não estou a
fazer nenhuma descoberta porque até os alunos do secundário sabem que a psicologia é
fundamental na literatura inglesa, e na daí dos States também, mas as ciências cognitivas
têm vindo a revolucionar as abordagens tradicionais, ou pelo menos a dar uma outra
base ao que já se sabia. Curiosamente, ele abre o livro com uma defesa da intuição, o
que para um cientista é uma admissão verdadeiramente surpreendente. Que as nossas
intuições sobre o modo como construímos estórias, ou como as compreendemos, são
tão implícitas que não as sabemos sequer explicar. O objectivo desse seu livro é pre-
cisamente tentar ir além do implícito, algo que os teóricos não têm conseguido fazer.
Imagine que recua até Aristóteles para identificar a primeira tentativa de explicação da
estrutura da narrativa – a poética da peripateia – de modo a captar as circunstâncias em
que uma sequência rotineira de eventos se transforma subitamente numa estória. Estou
fascinado. E não! Não goze comigo!
Voltarei a Lisboa em breve para mais pesquisa na BN, mas preciso de obter alguns fundos
de apoio da minha universidade, e eles estão ainda mais forretas, cada vez mais aquilo é
uma empresa, business à americana. Acho até que nem aí as universidades estão assim.
Tirar do meu salário já fraquinho de simples leitor, mesmo em sabática, é difícil. E não
quero continuar a recorrer indefinidamente aos meus pais. Tem sugestões?
Um último ponto: gostei das estórias que me enviou do Michael. Ainda não me tinha
contado essas. Tenho tentado ver se me recordo daquelas sobre a aula de Espanhol, mas
não me lembro bem. Quando tiver um momento, tenha paciência e repita-mas. Mas
deixe-se dessa de pensar que uso de subterfúgios. Se não soubesse que estava a brincar
comigo, garanto-lhe que me ofendia.

4/9/2012

Meu estimado Pieter,

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Já vi como é. Você agora descobriu as ciências cognitivas e vai cair noutro poço sem
fundo. É verdade que esse livro de Bruner está a causar impacto nas hostes da ficção.
O seu adorado Charles May não pára de referi-lo no blogue dele sobre a short story e
quando dei com o nome no seu mail ocorreu-me logo que fosse essa a fonte.
Quanto a apoios: se estiver à espera de uns trocos de Portugal, vai morrer à míngua.
Foram-se há muito os anos das vacas gordas. O meu conselho é sempre o mesmo,
bem pragmático: deixe-se ficar aí no fresco molhado de Inglaterra, onde ao menos tem
ambiente de paz para se refugiar a escrever essa famigerada segunda parte da tese. Se
voltar a Lisboa, já estou a ver o cenário: mete-se nas seroadas com os amigos, depois o
Bairro Alto, as livrarias, mais conversa e paleio, e nada feito. Não se esqueça do aviso do
decano da sua Faculdade… ou Empresa, se preferir chamar-lhe assim.
Quanto à estória do Miguel a que se refere – cá vou eu na fita – foi assim: estávamos à mesa
e ele contou qualquer coisa da sua aula de Espanhol que me fez, pelo contexto, perceber
que o tinham colocado numa aula com emigrantes hispânicos, portanto todos falantes de
espanhol como língua materna. Intervim manifestando espanto: Mas então na tua classe
toda a gente fala espanhol?! Ele muito, muito nonchalant: Claro. Todos. Bem, menos o professor!
Depois de lhe enviar o meu último e-mail recordei-me de mais algumas dele com a mãe.
Uma vez ela disse-lhe: Voltei a sonhar contigo. E tu há quanto tempo não sonhas comigo? Ele:
Não sei, mas de facto há muito tempo que não tenho pesadelos. Noutra ocasião ela perguntou-
-lhe porque não trazia cá a casa os amigos de quem falava frequentemente: Não, não.
Falo-lhes tão bem de ti que receio que já tenham criado expectativas demasiado elevadas. Nesse
mesmo tom ocorrem-me várias, mas acrescento só mais esta: num dos nosso passeios
de fim-de-semana longo, fomos a New Hampshire. Era Inverno e apanhámos belos dias
de neve que permitiram uma caminhada espectacular sobre um lago gelado. Os miúdos
estavam radiantes. Na viagem de regresso, o Miguel dizia à irmã: Trips like this I really,
really like. A mãe entrou na conversa: Em inglês há a distinção entre like e love Se gostaste
assim tanto, you loved it. A reacção foi veloz: Não, love é para algo muito, muito especial. A
mãe à espera do piropo e ele: … para… uma ida ao Disney World...
Bem, já basta! Mande-me notícias boas daí, tipo “já escrevi mais cinco páginas da tese”.
Nem precisa tanto; bastam duas, mesmo uma. Mas não me volte com novas descobertas
teóricas. Deixe o Charles May no seu Maio, que já estamos em Setembro e o ano vai
chegando ao fim. Como o seu prazo.
Abraço.
a.

5/9/2012

Apesar dos seus avisos, continuo com Bruner. Interessante que, numa comparação

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entre o direito e a literatura, ele aponte um paralelo fundamental: no caso do direito há
sempre precedentes que depois vão condizer com a “história” que mais tarde acontece
e, portanto, um dos objectivos principais de um narrador delas é preparar o leitor
para o inesperado, mas tem de ser algo que depois fits – o termo inglês é expressivo e
não sei como traduzi-lo para português (“ajusta-se”?). Por acaso terá acompanhado as
notícias destes dias acerca da revelação recente sobre o famoso caso do julgamento de
O J Simpson? Dizem que afinal o advogado de defesa fez qualquer aldrabice na luva
para ela não servir quando ele o mandasse calçá-la em pleno julgamento. Fui buscar
isto agora por causa do fit. Aquele grande slogan por ele criado e que salvou o seu
criminoso réu, não sei que tradução poderá ter em português: If it doesn’t fit, you must
acquit. É esse o fit usado no direito criminal para provar uma acusação, que Bruner
aplica à literatura – conto ou romance. Numa história, os elementos da narrativa têm
de fit entre si.
Quanto às estórias do Michael, não quero que perca tempo a contar-mas. Preferia que
as urdisse todas numa estória única em torno dessa personagem romanesca. Já viu como
andamos no mesmo barco? Você à espera da minha tese e eu à espera do seu conto. Tem
obrigação de acabar primeiro porque não precisa de mais de quinze, vinte páginas. E
não tem que se meter no labirinto louco das notas de rodapé nem da bibliografia. É só
deixar rolar a memória e a imaginação. Quem me dera poder trocar esse exercício por
esta maldita tese!

6/9/2012

Pieter,

Antes de mais, deixe-me avisá-lo: não vire o bico ao prego! Quem tem a espada de
Dâmocles sobre a cabeça é você e não eu. Portanto, avance lá com a tese e deixe de se
preocupar com o meu conto, que não me vai trazer benefício nenhum. Para mais, como
lhe disse, as estórias poderão, admito, ajudar a elaborar uma personagem rica, complexa,
subtil, mas isso não dá para um conto. A propósito de subtil, um dia já não me lembro
em que contexto, apanhei o Miguel numa das suas trafulhices e confrontei-o: Conheço as
tuas maneiras subtis. Reagiu de imediato: Se me apanhaste, então não são subtis.
Quanto ao fit, no caso da luva, diríamos “serve”. Mas em relação ao conceito aplicado
por Brunner numa narrativa, creio que fica melhor “encaixa”: as peças de um conto ou
romance devem “encaixar” umas nas outras; os elementos que constituem uma narrativa
devem acabar servindo, encaixando, no momento da surpresa.
Abraço.

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6/9/2012

Alberto,

Veio mesmo a propósito este seu email sobre a construção da personagem num conto ou
num romance. Tive necessidade de desanuviar o espírito e o corpo da tensão da escrita, e
fui mergulhar por umas horitas no livro de Bruner. Sabe que ele enumera doze caracte-
rísticas para o self? Não sei se é possível traduzir, mas não é exactamente o mesmo que eu.
Também não é ego nem o id freudiano, porque reúne esses com o superego. No entanto,
não vou meter-me por aí de novo, já em tempos falámos disto. Mas vale a pena ler. Vou
passar-lhe duas páginas do livro no scanner e enviar-lhe em attachment. Aqui apenas lhe
resumo o essencial: o self tem intenções e aspirações; é sensível a obstáculos e reage a
sucessos; altera aspirações em função de sucessos e derrotas; pratica a memória selectiva;
está voltado para os significant others (outro termo que não sei traduzir); adopta crenças
(beliefs) e valores sem quebra de continuidade; o self é contínuo através do tempo e das
circunstâncias; o self é sensível à situação em que se encontra e com quem se encontra; o
self formula-se (expressa-se?) por palavras; o self é moody (sujeito a alterações de estado
de espírito?); o self procura manter coerência.
Está a ver? Essas estórias todas que me conta do Miguel encaixam-se (fit) todas umas nas
outras, e aos poucos vai surgindo uma figura romanesca coerente.

8/9/2012

Pieter,

Se se tratasse apenas de juntar peças para a construção de uma personagem, não me


faltaria pano para mangas. Só de per si as estórias que reflectem um adensar de tensão
entre a personalidade dele e a minha através dos apartes, comentários irónicos, do rela-
cionamento dele comigo, são pequenos flashes que ajudam a captar de vários ângulos o
tal self (também não conheço nenhuma tradução, mas há dias, numa revista portuguesa,
não me lembro qual nem a que propósito, deparei com o termo autoconceito, que deduzi
ser uma tradução de self-concept, ou conceito de si mesmo). Mas voltando às estórias:
desconfio, porém, da possibilidade de com elas desenhar uma personagem literária com
algum interesse. Contá-las posso, porque me fazem relembrar bons tempos. Facilmen-
te me poria aqui a desbobiná-las em catadupa. Se não fosse o remorso de lhe desviar a
atenção da tese, contava-as mesmo. Vai só uma amostra que respiguei do dossier para
onde, ao longo dos anos, fui atirando papelinhos onde as registava. Vão em anexo para
você abrir apenas se lhe apetecer. Pode até enviá-las direitinhas para o caixote de lixo. Se
acontecer lê-las, verá que são desconexas e que é impossível a partir dali fazer seja o que

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for, porque não há uma estória a concatená-las de modo a produzir um princípio, meio e
fim. E não me venha dizer que elas todas fit, que se encaixam para criar uma personagem,
pois isso, independentemente das teorias do seu Charles May (ou Charles Magno? :>)),
não chega. Sou bem mais clássico no meu gosto.

Attachment – EstóriasMiguel

1. Fui acordá-lo uma manhã. Dei-lhe um beijinho:


– Adoro este miúdo… a dormir.
– (ainda de olhos fechados) – Então não me acordes.

2. A mãe chama o irmão: Paulo! Paulo! Aparece ele: Queres melhor?

3. A propósito de um amigo com quem lhe disseram que se parecia: Entre mim e o Jack há
tanta diferença que é um verdadeiro quantum leap.

4. Eu para ele: Vais logo à conferência comigo. Vais gostar. Resposta pronta: De certeza. É isso
e os nove planetas que vão estar alinhados.

5. Detestava vacinas e injecções. Teve de levar uma para alergias e outra contra a
meningite. No dia seguinte, estava preocupado: Mãe, telefona ao hospital, tenho uma mancha
vermelha no braço. Gozámo-lo. Quando ia a sair para a escola com os auscultadores, certa-
mente a ouvir rock, continuei o gozo:
– Olha, tens duas grandes manchas azuis nos ouvidos.
– Queres dizer que preciso de uma vacina de Beethoven?

6. O Herald traz uma foto de estudantes estrangeiros em visita a um college na vizinhança.


Um deles com ar muito feliz, à cabeça de uma mesa oval. A legenda reproduzia a frase
por ele proferida: Sinto-me como Bill Clinton. O Miguel comentou: Alguma coisa deve estar
a acontecer debaixo da mesa.

7. Eu rapava-lhe uma vez o bigode e ele, nada habituado ao exercício, não controlava o
sorriso, que lhe fazia covas na face.
– Não rias. Posso cortar-te.
– Se tivesses gravado o discurso do Presidente ontem ao país eu poderia vê-lo agora. De
certeza que ia estar de cara triste.

8. A mãe a cozinhar entornou óleo sobre o fogão, o que provocou uma labareda e muito
fumo. Nesse preciso momento o telefone tocou. Era um amigo a comunicar-nos que a
TV estava a transmitir imagens do ataque a Bagdad. Liguei a TV e o repórter dizia: – Não
conseguimos ver muito bem por causa do fumo espesso. Comentário do Miguel: Deve ser o da
nossa cozinha.

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(esta tem data de Janeiro de 1993)

9. Referindo-se a uma amiga, disse que era estúpida. A mãe admoestou-o. Que a conhecia
e que ela certamente não era estúpida. O Miguel: Digamos que às vezes consegue enga-
nar-me.

10. Estávamos à beira de um pequeno lago que parecia poluído. Um indivíduo apanhou
um peixe e quis oferecer-lho. Com bons modos, agradeceu: Não, obrigado. Tornei-me há
pouco vegetariano.

11. Numa frígida manhã nevava imenso e a rádio anunciou que as escolas estavam en-
cerradas. Comentário dele: Não se perdeu nada. Hoje íamos ter uma aula de Ciências sobre o
aquecimento global.

12. Passámos de carro com um amigo diante da casa da sua ex-mulher, que todos sabíamos
lhe fizera a vida negra. Eu, no gozo: Queres matar saudades? O Miguel no assento detrás a
jogar vídeo intrometeu-se na conversa: Matar saudades? Não. Matar… talvez.

8/9/2012

Não resisti e abri imediatamente o anexo. Não se preocupe. Eu não estava a trabalhar na
tese nem andava a ler teoria. Por acaso tinha acabado uma proposta para enviar a uma
fundação britânica que anunciou umas pequenas bolsas na área de Humanidades, com
preferência para Literaturas Periféricas Europeias. Vamos a ver. É um tiro no escuro,
mas a burocracia exigida não era exagerada. Vale a pena tentar porque preciso muito de
ir a Lisboa. Ficar demasiado tempo entre ingleses anestesia-me a criatividade.
Enquanto bebia um chá, li as estórias. Queria continuar e sei que tem mais. Acredito
até que tenha várias em torno de um tema. Poderia ser uma saída. Não me disse uma
vez que na relação dele consigo saíam-lhe algumas bem frescas? Acho que disse mesmo
“atrevidas”. Veja se consegue juntar umas quantas. Ficaria um conjunto a esboçar as
tensões de uma relação pai-filho.

10/9/2012

Vou acreditar que você não se distraiu da tese por causa das estórias do Miguel. E
depreendi claramente o seu veredicto: as estórias soltas dele, assim sem mais, não
chegam para nada. São uma tapeçaria árabe com jogos geométricos todos entrelaçados,
mas onde tudo se fica por uma composição eventualmente agradável do ponto de vista
estético, nada para além disso. Guardo, de facto, no dossier muitas estórias que têm a
ver directamente comigo. Mesmo sem ir repescá-las, posso apontar-lhe um punhado,

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assim sem qualquer sequência lógica, estou a lembrar-me de, numa conversa em família,
ele ter deixado escapar um espanholismo. Disse algo como isso é uma coisa general. A
mãe corrigiu-o imediatamente: Miguel, diz-se “geral”. Ele recuperou num ápice: Ah! Sim.
General é o pai.
De outra vez, depois de uma descompostura que lhe dei já não me lembro porquê, veio
ter comigo. Gostava de me dizer uma coisa muito em privado. Fi-lo falar, como sempre:
Eu sei que preciso de um pai forte, mas não exactamente de um sargento da tropa.
E há outras reflectindo um relacionamento mais suave, como uma vez em que íamos sair
por pouco tempo, eu e a mãe, e, porque ele ficava sozinho em casa, avisei-o de que, se
comesse, não queríamos migalhas no chão. À porta, ao adeus, disse-lhe: Ficas aqui como
um rei no seu palácio. Ele: Nunca vi um rei sem poder para espalhar as migalhas que lhe apetecer.
Bom, mas estanco a torneira mesmo aqui. Isto iria dar um e-mail muito comprido. Vou
escrever mais logo um texto à parte que lhe enviarei em anexo.

Attachment – EstóriasMiguel-2

Cá vai o prometido.
Sempre usei com ele um braço de ferro, se bem que coberto de veludo (a Inês acha
que era ao contrário: um braço de veludo coberto de ferro). O outro era suave e doce,
acolchoado. Brincávamos, usávamos de liberdade de expressão, mas as balizas estavam
traçadas. Aliás, foi ele que um dia me disse expressamente que queria saber quais eram
os seus limites, para não pisar o risco nem ter de andar sempre a experimentar até onde
podia ir. Dito assim, com toda esta ingenuidade e franqueza. Do seu ponto de vista,
muito sensível a pormenores, por vezes encontrava sinais de dureza da minha parte
que nem eram intencionais. Eu apercebia-me disso por via de conversas. A certa altura,
saiu uma entrevista minha num jornal acompanhada de várias fotos. A Inês comentou a
propósito de uma em que eu aparecia de cara carrancuda: Não gosto nada desta aqui. Nem
pareces tu. Ele estava ao lado, olhou para a foto e comentou: Bom, é a cara que eu estou mais
habituado a ver. Daí a conversa passou para a aparência intimidatória de alguns gestos e
a Inês frisou que sim, não faltava quem se sentisse intimidado com a minha maneira de
ser. O Miguel aliou-se à mãe. Conheço várias pessoas. E não estou a falar na Paula, essa fica
intimidada até por um esquilo.
Uma vez, um novo aluno nosso veio cá a casa. Ao jantar, a Inês quis saber das minhas
impressões. Muito tímido – disse eu. O Miguel interjectou: Claro! Vem aí assim de repente,
sem ter ideia de nada, e apanha com o pai sem anestesia!
Sei lá. Estou a recordar-me de outra ocasião em que, de visita cá em casa, um colega
revelou que, para debelar a crise da meia-idade desopilando um pouco a acelerar na
estrada, comprara uma Harley Davidson. O Miguel aproveitou-se: Devíamos oferecer-te
uma. Curioso, perguntei: Para quê? Então explicou: Para descontraíres, dares oportunidade

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total de expansão ao teu outro eu.
– E qual é ele?
– O amável, gentil.
Nem sempre era eu o alvo. Começou muito cedo a ler a Time Magazine e fazia-o quase de
ponta a ponta. Era uma reportagem sobre Clint Eastwood. Passei por ele, olhei a revista,
dei-lhe um beijinho e disse-lhe: Nem Clint Eastwood seria para ti um melhor pai do que
eu. Ele: Claro! E saltando do sofá imitando o sacar da pistola à cintura como um cowboy
em acção: Se não comes os cereais, Pum! Pum! Pum! Ou então um curto diálogo, cujas cir-
cunstâncias não registei, mas em que lhe disse: Um filho ideal iria agora com o pai aos dois
lugares aonde tenho de ir. Reacção dele: Tudo bem. Mas… e o filho real?
No entanto, essas eram excepções. Parecia um empowering para ele, quase metade do
meu tamanho, desafiar o pai. Mas tinha frequentes manifestações de afecto para comigo.
Certo dia acariciei-o na cabeça dizendo-lhe: Pareces uma estátua grega. Ele reagiu como
que a declinar o exagero: Oh! Come on! Insisti: Sim. Achas que o pai está a mentir quando te
faz estes elogios? Olhando-me de esguelha: Porque não? Faço isso a ti montes de vezes ao dia.
O Miguel não gostava de visitas em casa. À mesa, o ideal éramos só nós os cinco (um dia
avisei que íamos ter visitas e lembrei: Portem-se bem. Voltou-se para a irmã: Já sabes, logo
não podemos ser autênticos). Não raro acontecia eu trazer pessoas amigas para jantarem
connosco, às vezes quase sem aviso prévio. Eu punha-me a ajudar a Inês e mandava-os,
a ele e aos irmãos, servirem aperitivos aos convidados na sala e entretê-los metendo
conversa. Havia os mais solícitos, que correspondiam, no entanto muitos não ligavam.
Uma vez, o Miguel chegou à cozinha e disse: Já tentei conversar sobre política, religião e
desporto. O teu amigo não se interessou por nenhum desses assuntos. Desisto. Foi, aliás, a mãe
que me contou uma que não presenciei. Ela preparava o jantar e eu, por qualquer razão,
tinha saído. Tocou o telefone e a Inês pediu ao Miguel que atendesse. Ouviu então o
seguinte: O meu pai? Não está, mas não deve tardar. Creio que ele foi ali à rua ver se encontrava
alguém para convidar para jantar.
Só mais duas ou três de teor parecido: estava eu em casa, e bateram à porta. Era um amigo
com um problema e queria ouvir-me. A mãe perguntou quem viera sem a delicadeza de
avisar. O Miguel ofereceu a resposta: Bom, mais uma dessas walk-in therapy sessions.
A outra é no mesmo comprimento de onda. Telefonam-me de Minnesota. A chamada
demora e o Miguel precisa do telefone para ligar a um amigo (não era ainda tempo de
telemóveis). Diz para a mãe: O pai nunca mais se despacha. A mãe explicou que eu estava a
falar com um amigo que andava com uma depressão.
­– Perto do suicídio?
­– Não, mas é grave.
­– E porque é que vêm sempre chatear o pai?! Ele não é Deus para andar a resolver os
problemas de toda a gente… Mas não lhe digas que eu disse isto. Não quero ser eu a

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dar-lhe essa má notícia.
E agora é mesmo a última. O Miguel lia um artigo num número da Time, comemo-
rativo dos 50 anos do final da Segunda Grande Guerra – 1995, portanto. Era um
artigo precisamente sobre Hitler. Aconteceu a mãe passar por ele e olhar de soslaio:
­– O que é que andas a ler?
­– Bom, estou a ler sobre as raízes do pai.
­– (a Inês rindo)– Diz-lhe isso. Vai achar graça.
­– Não. Seria injusto.
­– Ele vai rir-se, sabes bem disso.
­– Mas será um insulto... para Hitler.
Mais tarde, terminada a leitura, interpela a mãe:
– Quando foi que o pai nasceu?
– Em 1946.
­– Pensa bem neste pormenor: Hitler morreu em 1945. Isso não te leva a acreditar na
reincarnação?

11/9/2012

Caro Alberto,
Escrevo apenas para um brevíssimo comentário sobre essa metáfora da tapeçaria árabe
(não a melhor referência para uma data como a de hoje, sobretudo para quem escreve
para os States). É boa só até certo ponto. Todavia, não serve para a tapeçaria que as suas
estórias formam, porque na arte árabe não podem figurar pessoas e, no seu caso, resulta
bem clara ali uma figura humana, um perfil inconfundível.
Tenho de sair. Depois do jantar voltarei. E obviamente que vou ler o attachment que
me enviou.

13/9/2012

Pieter,
Já me arrependo de ter ido na sua cantiga mais uma vez. Alonguei-me demasiado.
Estava tudo num único e-mail, mas achei um exagero. Batia um recorde de extensão.
Contra todas as normas do género, que privilegia o conciso. Por isso cortei e pus
quase tudo em anexo. Tinha de ser mesmo um português palavroso a fazê-lo. Pena
não haver medalha olímpica. Sempre obteria para Portugal um lugar melhorzito na
tabela aí em Londres. (Viu a pobreza da nossa representação nacional? O país perdeu
tusa por completo. Até para uma medalha de prata tiveram de ser dois a trabalhar.
Claro que nem lhe perguntei, mas não estou a imaginá-lo na loucura de Londres

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durante as Olimpíadas. Viu-as pela TV, como eu aqui uma vez por outra, não?) Mas
olhe, relativamente ao conto, não me venha com estórias porque essas conto eu. Fui
abrir a sua bíblia actual, a desse psicólogo cognitivista-tornado-teórico-literário, e
apanhei pelas ventas com uma página que você não me referiu nem me enviou no
anexo que acompanhava um dos seus últimos e-mails. Esqueceu-se (ou escondeu?) o
que Bruner diz mais adiante acerca das estórias (na ficção) ou dos “casos” (no direito), que
uma das características da narrativa – e note que já se trata de “narrativa” e não apenas
de “contrução da personagem” – é ter uma personagem protagonista de uma história
(no direito), ou estória (na ficção). Lá diz ele, bem escarrapachadinho em inglês que
também traduzo: uma estória precisa de um enredo (uma trama, como se diz em português
tradicional); um enredo necessita de obstáculos que levem as pessoas a repensar; as estórias
não estão apenas preocupadas com o passado relevante; as personagens de uma estória têm
aliados; as personagens têm de crescer; têm de manter as suas identidades e manifestar-se
nas suas continuidades; têm de existir num mundo de gente; têm de explicar-se a si próprias;
inevitavelmente têm altos e baixos; têm de fazer sentido. Selfhood (esta nem eu consigo
traduzir), segundo Bruner, é uma espécie de evento verbalizado que transforma o caos da
experiência num todo coerente e contínuo.
Ena! Grande tirada! Viu? Imagino que você já a tenha em epígrafe num capítulo da tese,
mas não quis referi-la nos seus e-mails para não me desencorajar ainda mais e fazer-me
desistir por completo do meu conto. Fica-lhe bem o gesto, mas não é a melhor maneira
de lidar com um realista máximo como eu.
Olhe, fico com escrúpulos. Eu para aqui a entrar no seu jogo e a fazê-lo desviar as atenções
de onde deve concentrá-las. Meu caro Pieter, lance-se na tese e não me volte a provocar
com estas brincadeiras. Agarre no seu Torga, nesse seu adorado “Uma rapariga loira” do
deus Eça, nos exemplaríssimos contos da Sophia de Mello Breyner, e desça mesmo ao
terra-a-terra (eu sei, eu sei, sou eu a recomendar-lhe) do Manuel da Fonseca e avance,
homem! Avance! Não queira ficar na pendura, sem salário quando Janeiro chegar. E
lembre-se: não me vai vir dizer que precisa de mais uns meses. Olhe que temos a defesa
agendada para Dezembro e depois não se queixe. Mete-se o Natal e não haverá prenda
do Santa Claus que o salve porque aí dos nortes europeus já não vêm mais milagres.
Sabe bem disso. Olhe que quem me avisa, meu amigo é, como já deve ter ouvido algum
português aconselhá-lo.
Grande abraço.
a.

15/9/2012

Alberto, my dear,

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Não esperava que me atirasse esse low blow. Sabe que o respeito e conhece a minha ho-
nestidade. E sabe que também tenho uma visão nada tradicional do conto. Li muito
Tchekov e leio Raymond Carver com insaciável sofreguidão. Não acredito que para um
conto seja necessário urdir uma história à maneira clássica. Um conto é uma espécie de
estágio para um romance, um afiar a faca, um aparar o lápis, um exercício de aquecimen-
to de músculos; e ele pode fazer-se exercitando o desenvolvimento de uma personagem,
como de um espaço, ou mesmo de uma pequena estória. Já conversámos sobre isto e está
tudo na introdução teórica da tese, onde creio que defendi com bons argumentos essa
postura. Pelo menos você disse-me que concordava. Por isso, este seu e-mail me surpre-
endeu pela negativa. Sei que tem plena consciência do que lhe estou a dizer, mas é apenas
um modo de procurar esquivar-se. Depois diz-me que eu é que estou a fazer isso para me
distrair do trabalho. É um caso de deixa-me dizer antes que me digam.
Este conjunto de estórias do Miguel que me contou no último e-mail bastam para um
conto. Eu, se fosse a si, dava-lhes apenas uma volta, sei lá, encadeava aquilo de forma
meio-louca como o Saramago a certa altura fez, no início do Levantado do Chão, lançan-
do-se num delírio narrativo transformando histórias reais num paraíso verbal (pode
dizer-se assim em português? nunca sei). Não se refugie nessa desculpa do que diz Bruner
sobre narrativas. O que mais há hoje são autores e teóricos que deixam a narrativa de
lado e fazem as imagens jogar entre si de tal modo que se tornam dinâmicas, vivas, in-
terventoras. Não é impunemente que vivemos na Idade do Cinema e da TV. Bom, hoje
é a da Internet. A do Cinema e TV é obsoleta, foi no século passado. Mas essa é apenas
mais uma razão. Lembre-se do que diz Bruner: há um momento em que a sequência caótica
de factos se transforma numa narrativa com nexo. E, na minha óptica, para um conto basta
ficar-se por aí. Não precisa de enredo, trama (?) (plot) ou o que quer que seja. O enreda-
mento (será assim, ou enredeamento?) está lá e o leitor compõe o resto.
Quanto aos Olímpicos, creio que lhe disse já quando você estava em Portugal. Estive
bastante alheio. Concentrei-me a trabalhar. Claro que sei que não acredita, mas é a
minha palavra de honra.
Best,
Pieter

17/9/2012

Longe de mim querer ofendê-lo. A pressa com que a gente responde a um e-mail, a
falta de cuidado na revisão do que se escreveu (muitas vezes nem se revê nada) acaba
afectando não apenas a qualidade gramatical e estilística, mas, o que é muito pior, o
sentido. Neste caso, foi exactamente o que aconteceu.
Deixemo-nos, porém, disso. (Sou ainda da velha escola e nunca uso o porém no início da

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frase; faço-o sempre entre vírgulas, todavia creio que sou the last of the Mohicans. Registo-
-lhe isto porque, sendo estrangeiro, se bem que escrevendo português melhor do que
muito jornalista da nossa praça, talvez não se aperceba deste pormenor aprendido na
minha Estilística do 5º ano). Deixemo-nos, dizia eu.
Voltando ainda ao estafado tema da estória e do enredo, elas, estórias, não faltam. A
questão é: mas serão interessantes? Valerão a pena? Ou são apenas um aditamento chato
e comprido, como a espada de D. Afonso Henriques, que não adianta nada na compre-
ensão das personagens, nem contribui para aprofundar o conhecimento delas e comple-
xificar os seus conflitos interiores ou com outrem? Tudo questões que, aliás, você trata
muito bem no terceiro capítulo. Diga-se de passagem que, quanto a teoria, na verdade
você já tocou tudo.

18/9/2012

Oi! (já que por aqui o português que ouço é brasileiro…)


Tenho uma boa notícia. Estou embalado na segunda parte da tese e a concentrar-me
na introdução à análise comparada dos três contos que combinámos. Trabalhei toda a
manhã e só agora vou almoçar. Chove imenso e eu estava disposto a fazer uma caminhada
ao longo do rio. Mas vou ter de adiar. Trouxe o computador para um bar mesmo aqui
ao lado do meu apartamento e está calmo para se ler. Mais logo vai ser uma zaragata
grande porque o Manchester City joga com o Real Madrid e não vai dar para trabalhar.
De qualquer modo, quero ver o jogo. Acho que vou ser o único aqui a tirar parte pelos
espanhóis. E quem diria? Eu, um holandês?! Mas é só porque o Real realmente está meio-
-português.
Acaba de chegar um colega. Continuo logo.

18/9/2012

Pieter,

Não me podia dar melhor notícia acerca da tese. Por isso não vou interrompê-lo nem im-
portuná-lo. Deixemos o Jean-Charles por agora. Bom trabalho. E parabéns pela vitória
do Real, que bem precisava de sair do fundo do poço onde se meteu.
Abraço. E força!

18/9/2012

Sim, sim, mas não ando na escrita de tese a 24/7; preciso de respirar e gosto de desopilar
de vez em quando.

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Não percebi essa do Jean-Charles. Quem é?

19/9/2012

Pieter, meu caro,

Desculpe. Foi lapso. Para não acontecer que ele ou os irmãos um dia encontrassem,
distraído sobre a secretária, o dossier com o nome dele, pus–lhe o rótulo “Jean-Char-
les” – autor dum livro publicado em França nos anos sessenta que se tornou best-seller.
Jean-Charles coligiu pequenas histórias de crianças e de estudantes e chamou-lhes La
Foire aux Cancres. A tradução portuguesa, que apareceu poucos anos depois, foi Humor
de Calções. Eu era adolescente e comprei esse livro, que me divertiu à grande. Foi uma
bela descoberta. Guardei-o e devo tê-lo por aí. De vez em quando ainda conto algumas
dessa colectânea. Todas as estórias do Miguel que escrevi e arquivei levavam o nome de
“Jean-Charles”, não fosse o diabo tecê-las. E quando entre amigos acontece contar uma
ou outra, não raro tenho ainda um lapsus linguae e escapa-me “Jean-Charles” em vez de
“Miguel”.
a.

19/9/2012

Muito interessante essa história do título do dossier. Enquanto escrevo a tese, poderia
aproveitar aí por esse lado e pôr-se a escrever também o seu conto seguindo as minhas
sugestões e encadeando essas histórias do Jean-Charles-Miguel. Experimente que vai ver
o resultado.

19/9/2012

Um dia, quando você acabar a tese, envio-lhe mais alguns dossiers que digitalizei. Um
deles é de um intenso diálogo à mesa, que o marcou profundamente até hoje.

19/9/2012

Espicaçou-me a curiosidade. Porque não mo envia? Prometo só ler quando me for deitar.

19/9/2012

Aí vai. Não se esqueça da promessa. Por favor cumpra-a para não me fazer sentir mal.
First things first.

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Attachment – EstóriasMiguel-3 (um diálogo)

Por decisão da Inês e minha, não havia televisor no primeiro andar aqui em casa. Elec-
trónico, só música. A ideia era que quem ficasse por aqui conversava com quem por
aqui estava. E todos os dias, por regra, sentávamo-nos à mesa a jantar durante uma
hora. Se um programa de televisão acontecesse coincidir, podiam sempre gravá-lo e ver
depois. Nos fins-de-semana, a refeição familiar era o almoço. As conversas tinham duas
regras básicas: serem livres e o humor obrigatoriamente aceitável. Quem dá leva e tem
de aguentar quando chega a sua vez de apanhar. Lembro-me de um dia ver lágrimas
rolarem grossas pela face do Miguel. Perguntei-lhe o que acontecera. Essa tua piada foi
muito forte – explicou em soluços. Lembrei-lhe que ele devia ter plena consciência da
dureza de muitas das suas farpas e por isso havia que encaixá-las também com fair play
quando fosse a sua vez de recebê-las. Eu sei, mas aceitar é diferente de gostar.
Todos os temas eram bem-vindos e havia liberdade total de expressão de pontos de vista.
Um dia ouvi à distância ele (doze anos na altura) contar ao irmão que, quando passara
um fim-de-semana em casa dos pais de um colega de escola, no Domingo os anfitriões
chamaram-nos para irem à missa e ele então confidenciou ao amigo: Não quero ofender
a sensibilidade dos teus pais, mas não posso ir porque sou ateu. Obviamente que a ele, grande
dorminhoco, convinha sair-se com aquela estratégia. Entrei na conversa e disse-lhe
exactamente isso. Mas ele insistiu. Que sim, era ateu. O que sabes sobre a não existência de
Deus? – perguntei-lhe. Tens fontes seguras que eu desconheça? Ao menos arranja um bocadinho
de humildade e diz que não sabes.
Mas a intenção aqui era narrar um desses longos diálogos à mesa. Aconteceu falar-se de
liberalismo e conservadorismo e o Miguel perguntou-me se eu me considerava conser-
vador ou liberal. Indaguei da razão da sua pergunta e perguntei-lhe o que pensava ele a
esse respeito: Às vezes pareces liberal, mas outras vezes acho que és conservador. Pedi-lhe então
que desse exemplos e deu: que insisto na liberdade de cada um falar abertamente e sem
receio de represálias, que brincamos muito uns com os outros e usamos humor, e foi por
aí fora, mas eu estava interessado em saber quais eram as minhas manifestações de con-
servadorismo e ele apontou-as: rigor excessivo nas horas de deitar, normas à mesa (um
dia ele disse que toda a regra de etiqueta era contra o conforto das pessoas), sou exigente
com os trabalhos de casa, que os obrigo a pedir desculpa quando estão em falta, e outras
coisas do mesmo teor. Expliquei-lhe então que ele tinha toda a razão, que nalgumas
coisas eu era conservador, e noutras liberal, e a conversa alargou-se pelo jantar fora em
animado debate entre todos. Terminada a refeição, manifestou interesse em prosseguir
a conversa, pois tinha algo mais para dizer. Segundo ele, eu falava muito em democracia,
mas aqui em casa não havia nenhuma. E a conversa desenrolou-se mais ou menos assim:
­– Para que saibas, eu nunca disse que aqui em casa vigorava qualquer regime demo-
crático, nem pretendo criar um.

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–­ Não acredito que estou a ouvir isso da tua boca. Tu admites que não há democracia
aqui em casa?!
­– Não há uma. Há duas.
­– Como?
­– Uma, a democracia de cima, é entre o pai e a mãe. Todas as decisões são tomadas
entre nós dois. E o que um de nós vos disser, está dito. Na democracia de baixo estão
vocês os três, e o nosso tratamento é completamente horizontal. Igualdade total no
trato. Entre a democracia de cima e a de baixo há um regime autoritário benévolo.
­– Autoritário?
­– Sim. Porque vocês são menores. Estão longe da maioridade, que só terão aos 18
anos.
­– E os nossos direitos?
­– Nenhuns.
­– Espanta-me estar a ouvir isso de ti!
­– Espera lá. Na escola já estudaste a história da luta americana pela independência,
não?
­– Claro!
­– Lembras-te do Boston Tea Party? Por que razão os habitantes das colónias ameri-
canas se revoltaram contra a coroa inglesa?
­– Por causa dos impostos.
­– E qual era o seu slogan?
­– No taxation without representation.
­– Isso mesmo. Se não tinham representação no Parlamento nem votavam, então não
tinham que pagar impostos. E vocês, pagam impostos aqui em casa?
­– Of course not!
­– Ah! Pois é isso mesmo. Não pagam imposto, logo não têm direito a representa-
ção, mas têm tudo gratuito, que os pais vos dão por amor sempre que precisam…
e mesmo sem precisarem. Não é necessário falar-se em direitos quando o que se
recebe é mais do que as leis lá de fora exigem, pois essas só cobrem os mínimos.
­– E se não concordamos?
­– Pois não é preciso concordarem porque não têm direito a voto. Dispõem sempre
da hipótese de saírem de casa, mas só perdem com isso. E portanto, enquanto aqui
estiverem, terão de cumprir as regras de quem paga e dá tudo.
­– ?!?!?!?! (cara de incrédulo e testa franzida)
­– Quando chegarem aos dezoito anos, estão legalmente autorizados a sair, a montar
a vossa própria casa e a instituir as vossas próprias regras. Serão cidadãos livres da
tutela dos pais. Mas não te esqueças que há outra tutela aí fora, a do Estado, que é
bem mais dura que a dos pais. E não dá nada de graça a ninguém, como nós aqui.

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E foi mais ou menos assim a conversa, que ele anos depois ainda me veio confessar ter-se
sentido de tal modo desafiado a responder-me, que passou noites a tentar descobrir ar-
gumentos contra, porém sem nunca conseguir encontrar nenhum que lhe parecesse su-
ficientemente válido para me poder convencer. O primeiro sinal do impacto veio poucos
dias depois, quando ouviu um outro diálogo meu com a mãe. Um amigo consultara-me
por e-mail pedindo uma tradução portuguesa para a expressão inglesa take for granted.
A mãe sugeriu tomar como adquirido, achar-se no direito… e ele acrescentou: Se ele quiser a
tradução numa única palavra, dá-lhe o meu nome.

19/9/2012

Pieter,

Estou a escrever este e-mail off-line porque tenho uns momentos livres, no entanto só o
enviarei depois de saber que não está a trabalhar. Não quero sentir-me culpado dos seus
atrasos e já lhe enviei um anexo demasiado longo, que é mais um ensaio do que o que
quer que seja que possa servir para um conto. Agora vou apenas acrescentar uma estória
a este dossier, que vai ficando demasiado comprido.
Quando há dias lhe dizia que não faltam estórias com nexo e mesmo enredo, é porque
as tenho de facto e não poucas. Verá ao que me refiro pelo simples exemplo que lhe vou
narrar e que está longe de ser o mais complexo, mas escolho por se encaixar (fit) nesse
conjunto de vinhetas que lhe enviei há dias em anexo.
Comprei ao Miguel uma bicicleta. O irmão tinha uma e há muito que ele aspirava à sua.
Explicar-lhe que os anos de diferença eram muitos não bastava para convencê-lo. Enfim,
lá cedemos, a mãe e eu. No dia em que a recebeu, perguntou logo se poderia levá-la para
a escola. Nem pensar! E, de qualquer modo, como? A escola ficava longe e ele ia todos os
dias de autocarro, atravessava a baixa da cidade e seguia ainda um bocado para além.
Ele apanhava o transporte numa estação a três quarteirões de casa. Onde iria deixar a
bicicleta? Óbvio que nem pensou nisso. Tinha talvez uns nove, dez anos e o que queria
de facto era exibir a maquineta perante os companheiros. Eu entendia isso e entendo,
mas não havia modo prático de solucionar a questão. Caso arrumado, pois. Pelo menos
assim pensei eu.
Preciso de explicar que aqui a escola começa cedo. Os miúdos americanos habituam-se a
tratar de si de modo independente. Ele e o irmão levantavam-se mais cedo por a escola
ser mais longe. Tomavam banho e o pequeno-almoço muitas vezes sozinhos, se a mãe e
eu nos deitávamos tarde. Sem problema. O Paulo tinha idade e juízo bastante para tratar
do irmão. No dia a seguir à oferta da bicicleta, de manhã, ouvi o bip do alarme da casa na
porta das traseiras. Achei estranho porque eles, sempre rotineiros e ensonados, saíam
inevitavelmente pela porta da frente da casa. Registei o pormenor anormal, mas não

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pensei mais nisso. Houve outro pormenor que depois me chamou a atenção: o comando
da garagem estava fora do seu lugar, sobre o sofá na sala traseira da casa. De novo me
intrigou o pormenor. Registei-o, mas havia assuntos mais importantes em que pensar.
No dia seguinte, o Paulo quis falar comigo a sós para me dizer que o Miguel estava muito
preocupado porque tinham roubado a bicicleta da garagem e ele estava com medo de me
dizer isso porque eu não ia acreditar. Mas não acreditar porquê? – perguntei. Ele deve ter
razões para ter receio. E expliquei ao Paulo a minha teoria simplicíssima, construída sem
sequer um eureka!: o Miguel insistiu em levar a bicicleta, saiu de manhã pela porta traseira de
casa; na corrida e atrasado como sempre, pegou na bicicleta e, na pressa, atirou o comando para o
sofá, fechou a porta e foi-se. Isso explica o apito do alarme da porta de trás que ouvi e o facto de eu
ter encontrado o comando da garagem em cima do sofá. Certamente foi de bicicleta até à paragem
do autocarro e, como não pôde levá-la consigo, deve tê-la deixado por lá esperando que ainda
estivesse quietinha à espera dele no regresso da escola. Roubaram-na sim, mas não da garagem,
que está bem fechada. O Paulo achou plausível a explicação e foi comigo à polícia dar parte
do roubo. Lá chegados, em minutos apenas um dos polícias de serviço foi ao computador
e disse: Ontem deu entrada aqui uma bicicleta exactamente trazida desse local. Não foi roubo.
Há ali um gabinete de advogados e uma secretária viu, de dentro, o veículo entre a janela e os
arbustos que lhe ficam em frente. Imaginando que se tratava não de simples esquecimento, mas de
alguém que a fora colocar lá de propósito, se calhar escondê-la, chamou a polícia. Foi um agente
nosso buscá-la e trouxe-a, esperançado em que alguém viesse por ela. Está aqui, podem levá-la. As
indicações que nos dá sobre a marca e cor conferem exactamente com as descritas na ficha e com
as da bicicleta que deu entrada ontem.
Num instante ficara tudo esclarecido e o Paulo metido no caso como testemunha ocular,
algo atónito com a velocidade e limpeza do processo. Faltava agora o passo seguinte.
Como dar uma lição ao Miguel? Escrevi uma narrativa dos factos mais ou menos como
esta que aqui lhe repito, selei-a num envelope e combinei com o Paulo que chamaríamos
o Miguel à presença de ambos. O resto seria comigo.
Assim foi. O Miguel chegou desconfiado e visivelmente nervoso. Havia armadilha e o
irmão, seu ídolo e pronto a defendê-lo, não lhe enviava sinais subliminares de dessa vez
estar ao seu lado. Falei eu então: Aqui, selado neste envelope está uma narrativa exacta de tudo
o que se passou com o alegado roubo da tua bicicleta. Vou entregar o envelope ao teu irmão e ele
vai segurá-lo. Os dois vamos pedir-te que contes tudo e exactamente o que se passou. A verdade
todinha. Depois vais tu abrir o envelope e ler a descrição dos factos que aí está. Se eles conferirem,
isto é, se disseres a verdade, estás perdoado. Mas se houver falhas importantes, o castigo será duro
e não constará apenas da perda da bicicleta.
Receoso e a apalpar terreno, o Miguel começou a contar. A princípio ainda tentou saltar
etapas, ou pelo menos alguns pormenores, mas as minhas perguntas rapidamente lhe
fizeram perceber que ele estava feito se não contasse tudo tintim por tintim. E fê-lo.

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Quando acabou, o irmão passou-lhe o envelope e pedimos-lhe então que o abrisse e
lesse. Fomos os dois, o Paulo e eu, lendo os reflexos na cara dele. Eram de espanto e
levaram-no do lívido ao alívio de saber que tinha contado a verdade, safando-se de uma
boa. Senti-lhe naquele momento a humilhação e procurei suavizá-la. Dez anos ainda era
idade para um pai, que às vezes lhe pareceria já susceptível de ser fintado, crescer imen-
samente sobre ele a avisá-lo que não era assim tão simplesmente que se saía da infância.
Dias depois, ele tinha recuperado o humor. Não se levantou a tempo de ir para a escola e
fui ao seu quarto saber o que se passava. Acordei-o. Virou a cara em ângulo no sentido da
minha voz, abriu os olhos e, apercebendo-se de que não despertara a horas, exclamou: Ó
meu Deus! Aproveitei para um toque de humor: Não. Sou eu, o pai. Ele entrou de imediato
no mesmo tom: E como posso eu ver a diferença?

20/9/12

Alberto,

Onde estão as estórias que me prometeu?

20/9/2012

Meu caro Pieter,

Por sua causa envolvi-me demasiado nas estórias do Miguel e até escrevi aqui dois longos
trechos que decidi não lhe enviar. É material demasiado longo e não serve de facto para
nenhum conto nem nada que se pareça. Não. E pronto, acabou-se.
E agora sou eu a perguntar: onde está a parte do novo capítulo da tese que me prometeu?
Abraço.
a.

20/9/12

Não quero acreditar que me está a fazer isso. Estava, e ainda estou, convencido de que,
a escrever assim, iria conseguir meter-se pela fase seguinte da vida do Miguel e pôr-se a
narrar uma ou mais estórias de fôlego que iriam encaixar perfeitamente na personagem
romanesca que você já delineou e construiu mesmo.
Ainda hoje volto ao assunto. Prometo. Não vou deixá-lo cair sem mais.

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21/9/12

Mas você, Pieter, queria um conto ou um romance? Não se esqueça que me disse que,
segundo o seu deus-da-teoria Charles May, a simples caracterização de uma persona-
gem dará para um conto, algo que nunca me convenceu. Agora já queria um romance.
Material para ele não me havia de faltar, creio que sem problema, encaixando todos os
elementos (o tal fitting de Brumer) com os precedentes, de modo a preparar a surpresa,
no entanto sem nunca a anunciar (estou a lembrar-me de uma fase intermédia do
Miguel, não já a personagem das estórias que lhe contei: no dia em que fez dezasseis
anos, disse-me: Pai, sei que, para trabalhar, já tenho 16 anos há muito tempo e que, para sair
com a minha namorada, vou continuar a ter 15 ainda por muito mais tempo). Sim, conteúdo
de alta tensão dramática. Só para levantar um pouco o véu, ainda nos verdes anos o autor
preferido do Miguel passou a ser Stephen King. Quando um dia lhe disse que deveria
deixar-se daquele estranho (foi em inglês que lhe falei e usei o termo weird) género de
horror/terror, respondeu de chofre que não entendia como alguém tão interessado em
literatura como eu, era incapaz de distinguir entre ficção e realidade, pois o interesse dele
era meramente literário. Mas contar desenvolvimentos posteriores, meu caro, chegaria
muito próximo do nosso tempo e de nós e, além disso, o material é de alta sensibilidade.
Os historiadores dizem ser preciso haver distância para se filtrar o não-essencial e, cá na
minha, a ficção ainda exige mais distanciamento para não se fazer aquilo que os historia-
dores almejam: história. Não, meu caro, não! Há muita coisa a salvaguardar antes de se
fazer literatura.
Em resumo, o material abunda, pode crer. Falece, porém, o talento (e aqui tenho presente
a sua referência saramaguiana) para me levantar do chão. Portanto, deixo-me de estórias
e peço-lhe que me imite neste particular. Por Júpiter, deixe-as igualmente. E despache lá
essa tese!

21/9/12

Professor,

Nada de decisões apressadas. Falamos amanhã. E não apague nadinha. Prometa-me!

21/9/12

Caro Pieter,

Não. Não apago. Mas já escrevi para a revista a dizer que não haverá conto. Já agora,
fica uma última do Miguel encontrada aqui num papelinho quase perdido. Como os
meus pais nunca usaram de manifestações físicas de afecto para com os filhos, a fim de

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manterem a autoridade e o respeito (tudo o que fazíamos nunca era bastante e a nossa
obrigação era fazer sempre melhor), não quis embarcar nessa com os meus filhos. Uma
vez, após uma situação tensa com o Miguel, disse-lhe: I love you. A reacção dele, sempre
fitting a personagem: Estamos finalmente de acordo. I love me too.

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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