Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 2
"Porque sabe Elohim que, no dia em que comerdes dele, abrir-se-ão os vossos
olhos e sereis como Elohim, conhecedores do bem e do mal."
(Gênesis 3:5)
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 3
Somente de acordo com este terceiro significado é que se pode falar do contorno de
Deus, como por exemplo: "(...) E o contorno de YHVH [ele] olhará (...)"
(Números 12:8), cujo significado é: alcançará a verdade divina.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 4
Saiba que os três verbos — ver (raá), olhar (habil) e enxergar (chazá) — aplicam-
se à percepção visual e, metaforicamente, à apreensão racional.
Aquilo que se refere ao verbo ver é conhecido de todos.
Quando é dito: "E viu, e eis um poço no campo (...)" (Gênesis 29:2), trata-se de
uma percepção visual.
Quando é afirmado: " (...) e meu coração viu muita sabedoria e conhecimento"
(Eclesiastes 1:16), refere-se a uma apreensão racional.
Segundo esta metáfora, o verbo ver se aplica à divindade assim como em:
"(...) Vi YHVH (...)" (I Reis 22:19); "E fez-se ver YHVH (...)" (Gênesis 18:1);
"(...) e viu Deus que era bom" (Gênesis 1:21); " (...) Fazei-me ver Tua glória"
(Êxodo 33:18); "E viram o Deus de Israel (...)" (Êxodo 24:10).
Tudo isso é apreensão racional e jamais percepção visual, pois os olhos percebem
somente o corpo [físico] e ainda parcialmente, com alguns acidentes, ou seja, a
aparência física, seu aspecto e o que deriva dele.
Portanto, a divindade não é apreendida pelos sentidos, como será explicado.
Do mesmo modo, o verbo olhar refere-se a perceber com os olhos, como por
exemplo: " (...) não olhes por trás (...)" (Gênesis 19:17); "E olhou sua mulher para
trás dele [de Lot] (...)" (Gênesis 19:26); " (...) e olhou para a terra (...)"
(Isaías, 5:30).
Por outro lado, emprega-se em sentido metafórico [como observar] à observação
racional e à maneira de ver algo até alcançar sua compreensão.
Assim foi dito: "Não observou iniqüidade em Jacob (...)" (Números 23:21), sendo
que a iniqüidade é imperceptível ao olho; " (...) e observava Moisés por trás (...)"
(Exodo 33:8) ["E quando Moisés saía (do acampamento) para a tenda, levantava-
se todo o povo e punha-se de pé, cada um à entrada de sua tenda, e observava
Moisés por trás, até entrar na tenda." (Exodo 33:8)] - os Sábios disseram que se
trata do mesmo caso: contava-se dele que suas ações e palavras eram observadas,
meticulosamente examinadas; e também: "(...) Observe o céu (...)" (Gênesis
15:5), pois se tratava de uma visão profética.
Por sua vez, o verbo olhar sempre é aplicado metaforicamente à divindade, como
em: " (...) pois teve medo de olhar para Deus" (Exodo 3:6); "(...) e o contorno
[glória] de Deus olhará (...)" (Números 12:8); "(...) E a observação do esforço não
podes suportar (...)" (Habacuque 1:13).
Quanto a enxergar, aplica-se à percepção visual, como em: " (...) e enxerguem [a
ruína de] Sion com seus olhos" (Miquéias 4:11); e, metaforicamente, à apreensão
emocional, como em: " (...) que enxergou Judá e Jerusalém" (Isaías 1:1); " (...) a
palavra de Deus a Abrão em visão [profética] (...)" (Gênesis 15:1); e foi dito, em
sentido análogo: " (...) e enxergaram Deus (...)" (Êxodo 24:11).
Saibam disso.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 5
"E visionaram o Deus de Israel; e havia debaixo de seus pés como uma obra de
safira, e como a visão dos Céus, em sua limpidez."
(Êxodo 24:10)
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 6
Homem e mulher são dois termos com os quais foram denominados, em princípio,
o macho e a fêmea entre os seres humanos.
Posteriormente, foram estendidos metaforicamente a todo macho e fêmea das
demais espécies animais.
Assim, foi dito: "De todo animal (behemá) puro, tomarás para ti sete, sete [pares
de] homem (ish) e sua mulher (ishtô) , e de todo animal impuro, dois, homem e
sua mulher" (Gênesis 7:2), equivalente a "macho e fêmea".
Posteriormente, o termo mulher [como fêmea] foi estendido como metáfora a todo
objeto apropriado e adequado a compor com outro, por exemplo: "Cinco cortinas
estarão juntas, fêmea (ishá) com sua irmã (achotá) (...)" (Êxodo 26:3).
Está claro que irmã (achót) e irmão (ách) também são empregados
metaforicamente como macho e fêmea.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 7
Gerar (Ialád)
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 8
Lugar (Macóm)
Macóm.
Eis o termo cujo uso original refere-se a um lugar particular ou ao todo.
Posteriormente, a língua o estendeu e foi utilizado para a estatura e medida de
uma pessoa, ou seja: quanto à sua excelência em algum assunto, como por
exemplo: "Fulano ocupa tal lugar" em tal assunto.
Você já sabe que este termo é muito utilizado pelos que dominam esta língua
[hebraica], como por exemplo: "Preenche o lugar (macóm) dos seus
antepassados"; "e preenchia o lugar (macóm) dos seus antepassados em sabedoria
ou em temor"; e mais: "Ainda a controvérsia permanece em seu lugar (bimecomá)''
, ou seja, em sua categoria.
Sobre isso, é dito metaforicamente: "Bendita seja a glória de YHVH no seu lugar
(mimecomô)" (Ezequiel 3:12), ou seja, de acordo com a Sua estatura e o Seu
verdadeiro poder.
Assim é com toda expressão do "lugar" que cabe a Deus, cujo significado é: a Sua
real categoria, à qual nada se compara nem se assemelha, como lhe será
demonstrado adiante (capítulo 56).
Saiba que, quanto a todo termo polivalente que for explicado neste tratado, não
desejamos suscitar o que ficou registrado somente naquele capítulo; todavia,
abriremos um portal e explicaremos os significados deste termo que servem aos
nossos propósitos, não segundo o interesse de quem fala uma língua qualquer
entre outras.
[O autor dá a entender que, para a elucidação das palavras, seu objetivo é
unicamente indicar seus diversos sentidos filosóficos, prescindindo de explicações
de índole filológica ou das diversas acepções das mesmas na fala comum]
Você deve examinar os Livros dos Profetas e similares entre as obras dos Sábios,
para compreender os termos utilizados por todos eles e todo termo polivalente
segundo o sentido adequado ao tema correspondente.
Esta nossa afirmação é a chave para este tratado e obras semelhantes.
Como exemplo do que explicamos aqui quanto ao termo macóm eis a sentença:
"Bendita seja a glória de YHVH no seu lugar (mimecomô)”
Saiba que este termo é o mesmo que na seguinte passagem: "Eis aqui um lugar
(macóm)" (Êxodo 33:21), ou seja, um grau de contemplação - e de percepção
intelectual — e não ocular — (considerando o lugar indicado [a Moisés] na
montanha, que foi o de isolamento e do alcance da perfeição).
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 9
O Trono (Kissê)
O sentido original do termo kissê é conhecido, posto que foi no trono que se
sentaram os portadores de grandeza e estatura, como os reis; e era algo visível,
que indicava a medida de quem nele era visto, seu poder e grandiosidade.
O “Micdásh” (Santuário) foi denominado trono, visto que indicava a grandiosidade
Daquele que nele se revelava e onde projetava a Sua luz e glória, como foi dito:
"Um trono de glória nas alturas desde o início é o lugar do nosso santuário"
(Jeremias 17:12).
Pela mesma razão, os Céus foram chamados de trono, pois o seu significado —
para quem os entende e compreende — é o do poder Daquele que lhes deu
existência, que os movimenta e que governa o mundo abaixo por Sua influência
benéfica, como foi dito: "Assim diz o Eterno: 'Os Céus são o Meu trono (...) '''
(Isaías 66:1); ou seja, eles testemunham a Minha existência, grandeza e poder,
enquanto o significado deste trono é que está pronto para o que é grandioso, que
lhe é visível.
Nisso precisam acreditar os que buscam a verdade, e não que exista um corpo
sobre o qual a Divindade se apóia (que é muito elevada!), pois lhe deve estar claro
e comprovado que, se Ele é incorpóreo, como poderia ocupar um lugar e se apoiar
sobre um corpo?
O fato é como eu desejo lhe mostrar: todo lugar tornado nobre pela Divindade e
separado por Sua luz e esplendor, assim como o Micdásh ou os Céus, é chamado de
trono.
Contudo, tomado num sentido mais amplo da língua, como na passagem:
"(...) Porque levantou Deus a mão e jurou sobre o Seu trono (...)"(Êxodo 17:16), é
uma demonstração do Seu poder e grandeza, que não precisam ser considerados
externos a Deus ou criaturas da Sua Criação. como se Ele existisse ao mesmo
tempo com e sem o trono— isso é, sem dúvida, uma heresia.
Já foi explicado e dito: "Tu, Eterno, permaneces eternamente, e o Teu trono de
geração em geração" (Lamentações 5:19) — prova de que o trono é inseparável de
Deus.
Desta maneira, aqui e em passagens semelhantes, a palavra trono expressa a
grandiosidade e o poder de Deus, que não são externos à sua essência — como
será esclarecido em alguns capítulos deste tratado.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 10
Entretanto, quando foi dito: "E Moisés subiu a Deus (...)" (Êxodo 19:3) , trata-se de
um terceiro significado, relacionado também ao seu significado literal, "subir ao
topo do monte", onde sobre Moisés desceu uma luz criada [Isto é, uma
representação da Presença Divina, a Shechiná.]: não que exista um lugar por sobre
o qual Deus se eleve ou venha a descer — elevar-se-á [para longe] sim é da
imaginação dos muitos ignorantes!
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 11
O princípio sobre o qual repousa este termo em nossa língua [hebraica] — para o
assento de uma pessoa em um dado lugar -- é: "E Eli Hacohên (o Sacerdote Eli)
senta-se em um assento" (I Samuel 1:9).
Posto que se refere a uma pessoa que se senta em posição de repouso absoluto,
quanto à sua posição e conforto, este termo foi aplicado a tudo o que permanece
em repouso e é imutável, como a referência à promessa de Jerusalém erguida e
permanente, em condição de superioridade: " (...) E será erguida e assentada
(loshvêa) no seu lugar (...)" (Zacarias 14:10); e ainda: "Faça sentar (moshivi) a
[mulher] estéril na casa (...)",["Assente a [mulher] estéril na casa, feliz mãe de
filhos, Louvado seja o Eter-no, Halelu-lá" (Salmos 113:9).] ou seja, Ele a ergue e a
mantém.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 12
Quando uma pessoa resolve fazer algo e "acorda" para realizá-lo, bekimá, diz-se
deste que despertou (cám): "Pois despertou (hekím) meu filho o meu servo contra
mim" (I Samuel 22:8).
Eis uma metáfora para transmitir um decreto divino contra um povo que recebeu
uma sentença de morte: "E me ergui (Vecámti) por sobre a casa de Jeroboão
[Iaravám]" (Amos 7:9);
"E ergueu-se (vecám) por sobre a casa dos ímpios" (Isaías 23:10).
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 13
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 14
E há um terceiro sentido: "E viram os filhos dos senhores (benê haelohím) as filhas
dos homens (benót Adám) (Gênesis 6:2); 'Porém, como homem (adám), você deve
morrer" (Salmos. 82:7).
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 15
Tudo o que deriva deste termo, no que diz respeito ao Criador, carrega este
sentido: "E eis que o YHVH permanecia (nitsáv) sobre ela (...)" (Gênesis 28:13), a
saber, elevado e permanente sobre ela — a "escada" cuja primeira extremidade
está nos Céus e a última na Terra — por onde galgará todo aquele que subir, até
que alcance Aquele que está necessariamente sobre ela, posto que está, Elevado e
Permanente, no topo da "escada".
Está evidente em meu tratado que "sobre ela" é usado no sentido metafórico e "Os
anjos de Deus" são os profetas, dos quais assim se fala: "e enviou um anjo"
(Números 20:16); "E subiu um anjo de YHVH de Guilgal para Bochim" (Juízes 2:1).
Quão adequada é a afirmação "subiam e desciam"! — a "subida" (aliá) antes da
"descida" (ieridá), posto que, após a "subida" e a chegada nas alturas do
conhecimento através da "escada", haverá a "descida" daquilo que foi encontrado
sobre o assunto — com o objetivo de orientar e ensinar as pessoas do mundo.
Eis o real significado deste termo, conforme já explicamos [no capítulo 10].
Voltemos ao nosso tema: "permanecia (nitsáv) sobre ela" significa "para sempre,
permanente, perpetuo — não uma permanência material, como em: " (...) e te
porás de pé (venitsávta) sobre a rocha (...)" (Exodo 33:21).
[Deus orientou Moisés para que se posicionasse sobre um penhasco, para dentro de
cuja fenda deveria entrar quando passasse a Sua glória. Maimônides utiliza este
versículo como exemplo do uso concreto do termo natsáv.]
Já lhe foi explicado que nitsáv e amád têm aqui o mesmo significado, como foi dito:
"Eis que Eu estou/permaneço (omêd) diante de ti, ali sobre a rocha em Horeb (...)"
(Exodo 17:6).
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 16
Rocha (Tsur)
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 17
Não pense que é somente no ensino de teologia (chochmá elohít) ao povo que
devemos nos conter, mas também no da maior parte das ciências naturais
(chochmát hatéva).
Já compartilhamos as seguintes palavras [dos Sábios]: "Nada de Maassê Bereshit
(o Relato da Criação) em dois".
Este princípio não vale somente entre os adeptos da Torá, mas também entre os
antigos filósofos e sábios das outras nações, que ocultavam os princípios e falavam
na forma de enigmas; Platão e os que vieram antes chamavam a matéria de
feminino e a forma de masculino.
Você sabe que os princípios [dos seres] existentes e perecíveis são três: matéria,
forma e uma privação própria à matéria — posto que se assim não fosse, esta seria
incapaz de receber forma; portanto, a privação faz parte dos princípios.
Ao receber forma, cessa uma privação e a matéria passa a ter outra — e assim por
diante, como explicado nas ciências naturais.
E se eles [os filósofos] , que não sofrem de perda de clareza, questionavam estes
termos e estudavam seu simbolismo, tanto mais se espera que nós, comunidade de
homens religiosos, evitemos elucidar algo que seja de difícil compreensão para o
povo, tampouco permitamos que se imagine a verdade como algo contrário do que
se pretende aqui.
Preste atenção nisso também.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 18
Agora, se você quiser tomar o que foi dito sobre Moisés — "E abordará (venigásh) "
— como se ele fosse se aproximar do lugar na montanha onde a Luz — vale dizer:
"A glória de Deus" — surgiu diante dele, também é possível.
Contudo, saiba que o principal é que é indiferente se uma pessoa está no centro do
mundo ou nas alturas da nona esfera (se isto fosse possível): ele não se distanciará
de Deus, no primeiro caso, e tampouco se afastará Dele, no último; a aproximação
em direção a Deus ocorre por meio do conhecimento, e o afastamento ocorre
àqueles que Dele se mantêm ignorantes.
Entre esta aproximação e distanciamento há inúmeras gradações, umas acima das
outras.
Eis que esclarecerei em um dos capítulos deste tratado como isto é uma vantagem
do [nosso] ponto de vista.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 19
Cheio (Malê)
Malê é um termo polivalente utilizado na língua [hebraica] para um corpo que atua
sobre outro e o preenche: "E encheu (vatemalê) seu cântaro" (Gênesis 24:16);
"Enchei (meló) um ômer [Medida de um feixe de espigas ceifadas correspondente à
décima parte de uma efá (pouco mais de 39 litros).] dele" (Êxodo 16:32), entre
outros [exemplos].
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 20
No primeiro sentido: "E elevaram (vaissú) seu alimento sobre seus jumentos"
(Gênesis 42:26).
Há muitos exemplos como este, referentes a carregar e mudar, posto que se trata
de uma elevação espacial.
No segundo sentido: "E será elevado (Vetinassê) o seu reino" (Números 24:7);
"E levou-os e elevou-os (vainassêm)" (Isaías 63:9); "E por que vos elevais
(titenassú)" (Números 16:3).
Toda vez que o termo nessiá estiver relacionado ao Todo-Poderoso, ele estará no
seu sentido último: "Eleva-te (Hinassê), juiz da Terra" (Salmos 94:2); "Assim disse
o Altíssimo e Elevado (Nissá)" (Isaías 57:15), isto é, quanto à altura do posto,
posição e elevação, porém não no sentido espacial.
Talvez você encontre dificuldades quando eu falo "a altura do posto, posição e
elevação", e poderá dizer: "Como você atribui sentidos diferentes a um único
termo?".
Eis que lhe será esclarecido mais adiante que aqueles que alcançam uma apreensão
perfeita de Deus não consideram que Ele possua diversos atributos, mas que todos
que descrevem a Sua Força, Grandeza, Poder, Perfeição, Bondade, entre outros,
remontam a um único sentido, que é a Sua Essência, e nada além desta.
Eis que dedicarei alguns capítulos aos nomes e atributos [de Deus]; na verdade, a
intenção neste capítulo foi mostrar que ‘rám’ e ‘nissá’ não devem ser
compreendidos no sentido de elevação espacial, mas sim de posição.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 21
Passar (Avár)
Representa também outra metáfora referente a quem faz uma ação, exagera nela e
ultrapassa o limite, conforme foi dito: "E é como um cavalheiro perpassado (avaró)
pelo vinho" (Jeremias 23:9).
Também é uma metáfora relacionada a quem falha em uma ação, cuja intenção e
objetivo eram outros: "E ele atirou a flecha, que ultrapassou (lehaavirô) [o outro]"
(I Samuel 20:36).
E me parece que a [seguinte] passagem está conforme esta metáfora: "E passou
(vaiaavór) Deus diante do seu rosto" (Êxodo 34:6) — sendo que o sentido de "seu
rosto" recai sobre o Eterno.
Assim interpretaram os "sábios": que "seu rosto" refere-se a Deus, e, se isto
lembra claramente as hagadót [explicações metafóricas], aqui não é o lugar delas
— ainda que reforcem um pouco o nosso ponto de vista — e o sentido de "seu
rosto" aplica-se ao Santíssimo (Cadosh Baruch Hu).
Esta explicação está de acordo com o meu ponto de vista: que Moisés (que a paz
esteja com ele) solicitara determinada percepção — denominada "a visão do rosto"
— mas lhe foi dito: "E o Meu rosto não será visto" (Êxodo 33:23); então lhe foi
permitido ter uma percepção inferior à solicitada, a saber, aquela que percebeu
como "a visão das costas", nas palavras: "E verás Minhas costas" (Êxodo 33:23).
Já expusemos este assunto no Mishnê Torá, em que foi afirmado que o Eterno Deus
encobriu dele esta percepção denominada "visão do rosto" e substituiu-a por outra,
a saber: o conhecimento dos movimentos atribuídos a Deus, dos quais se pensa
que são muitos, tal como será explicado.
Quando digo "encobriu dele" [de Moisés], quero dizer que esta é uma percepção
oculta, inacessível por sua natureza, e que todo homem íntegro cuja mente está
concentrada naquilo que a sua natureza permite alcançar e pede por outra, além
desta, terá sua percepção atrapalhada ou a perderá — como será explicado em um
dos capítulos deste Tratado — a menos que a Ajuda Divina o acompanhe, como nas
seguintes palavras: "E deitarei minha palma sobre ti até que Eu tenha passado"
(Êxodo 33:22).
Entretanto, o Targum seguiu seu próprio método acerca destes assuntos, a saber,
que em toda expressão relacionada à Divindade que implica corporeidade ou
propriedades corporais, há uma elipse inerente; e o mesmo ocorre quando a
expressão é aplicada à Divindade.
Sobre as palavras: "E eis que YHVH estava sobre ela [a escada]" (Gênesis 28:13),
[ele parafraseia]: "A palavra de Deus vinha do alto"; e [novamente] sobre as
palavras: "Vigie o Eterno entre mim e ti" (Gênesis 31:49), [ele parafraseia]:
"A Glória de Deus contemplará"; e assim prossegue seu método (que a paz esteja
sobre ele).
E deste modo fez a respeito das palavras: "E passou YHVH diante dele e chamou"
(Exodo 34:6), [parafraseou]: "E passou (Vaiaavór) Deus a sua Presença Divina
diante de seu rosto e chamou", posto que aquilo que "passou", em si mesmo, era
indubitavelmente material; aí o sentido de "seu rosto" recai sobre Moshé Rabênu
(Moisés, Nosso Mestre) e o significado de "seu rosto" (al panáv) é
[o mesmo que] "diante dele" (lefanáv), como em: " E passou (Vataavór) o presente
diante dele (al panáv)" (Gênesis 32:22).
Este também é um belo e bom significado, e o escrito seguinte reforça a explicação
de Onkelos, o Prosélito (de abençoada memória): "E será, quando passar (baavór)
a minha glória" (Exodo 33:22) — já explicado que aquilo que "passa" é atribuído ao
Eterno, mas não é o próprio Deus (elevado seja o Seu nome!) ; e sobre a Glória
[divina] é dito: "Até que passe (ad avri)"
Portanto, se é impossível não levar em conta as elipses — como Onkelos, que
sempre as considerava, ora acrescentando o termo "glória", ora "palavra", ora
"Presença Divina", conforme o contexto em cada caso — eis que nós também
acrescentaremos aqui o termo faltante "voz", e a frase ficará: "E passou a voz de
Deus diante do seu rosto e chamou" (já explicamos, no início deste capítulo, o uso
metafórico para a "voz" da "passagem", narrada em Êxodo 36:6: "E fizeram passar
(vaiaavíru) uma voz (cól) pelo acampamento").
Assim "a voz" será quem "chamou".
Não deve haver objeção a se relacionar o "chamado" à "voz", posto que estes
mesmos termos encontram-se no relato sobre a palavra de Deus dita a Moisés:
"Ouvia a voz (cól) falando com ele" (Números 7:89); e, assim como a "fala" foi
relacionada à "voz", do mesmo modo relacionamos aqui o "chamado" à "voz".
Já mencionamos como a relação da "fala" e do "chamado" à "voz" se explica: "Uma
voz fala: Chame! E falou: O que chamarei?" (Isaías 40:6).
Este sentido, conforme seu contexto, é: "E passou uma 'voz' vinda de Deus e
chamou: 'Deus! Deus!'".
Eis que a palavra "Deus" é repetida no chamado, pois é Ele quem é chamado, como
em: "Moisés! Moisés!" (Êxodo 3:4); e em: "Abrahão! Abrahão!" (Gênesis 22:11).
Esta também é uma explicação muito bela.
E não venha levantar a objeção de que este assunto profundo, difícil de ser
compreendido, sofre muitas interpretações, porque isso em nada nos prejudica.
Cabe-lhe escolher qual delas você deseja: ou ficar com esta grande cena que é,
indubitavelmente, toda a "visão profética", e todo o esforço de compreensão
racional — o que [Moisés] pediu, o que lhe foi ocultado e o que alcançou — tudo
racional, sem o uso dos sentidos, conforme explicamos anteriormente; ou ficar com
a percepção visual de um objeto criado [material] cuja contemplação levaria à
totalidade da apreensão racional, conforme interpretou Onkelos (se é que esta
percepção visual não é também uma "visão profética", como ocorreu com Abrahão
em Gênesis 15:17: "E eis que um forno fumegante e uma tocha de fogo que
passou..."); ou, ainda, ficar também com a percepção auditiva, e esta "voz" será
aquela que "passou diante de seu rosto" — o que, sem dúvida, também é material.
Escolha a idéia que quiser, pois a intenção é que não acredite que o sentido das
seguintes palavras: "E passou" seja o mesmo de: "Passa diante do povo" (Êxodo
17:5), pois o Eterno Deus não é corpo nem pode lhe ser atribuído movimento,
assim como não se poder dizer que Ele "passou" conforme o primeiro significado do
termo.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 22
Vir (Bô)
Também significa a entrada de alguém em determinado lugar, como em: "E veio
(Vaiavô) José para casa" (Gênesis 43:26); "E será quando entrardes (tavôu) na
terra" (Exodo 12:25).
Por fim, aplica-se a algumas privações: "E veio (Vaiavó) o mal (...) e veio (vaíavô)
a escuridão" (Jó 30:26).
Posto que esta metáfora é aplicada para algo em geral incorpóreo, também pode
aplicar-se ao Deus Criador — para a vinda da Sua palavra ou da sua Presença
Divina (Shechiná) conforme é dito: "Eis que Eu venho (bá) a ti, na espessura de
uma nuvem" (Êxodo 19:9); "Porque o Eterno Deus de Israel entrou (bá) por ela"
(Ezequiel 44:2).
A tudo o que lhe é semelhante, designa a chegada da Shechiná: "E virá (Uvá) o
Eterno meu Deus, todos os santos com Ele" (Zacarias 14:5), a saber, a vinda (bô)
da Sua palavra, qual seja, a confirmação das Suas promessas feitas por intermédio
dos Seus profetas.
Eis o que é dito: "Todos os santos com Ele", como se dissesse: "E veio a palavra do
Eterno, meu Deus, por intermédio de todos os santos [que estão] com ele",
referindo-se a Israel.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 23
Saída (Ietsiá)
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 24
O Andar (Halichá)
A Halichã também está entre os termos — e estes são muitos — que expressam
movimentos particulares de um ser vivo: "E Jacob andou (halách) por seu caminho"
(Gênesis 32:2).
Também é uma metáfora para a expansão de corpos mais sutis do que os dos seres
vivos: "E as águas foram andando (halóch) e minguando" (Gênesis 8:5); "E andou
(Vatihalách) fogo na terra" (Êxodo 9:23).
Contudo, nas palavras "E acendeu-se a ira do Eterno contra eles; e Ele andou
(ielêch)" (Números 12:9), há dois sentidos em um só, a saber: a retirada da
Proteção Divina, expressada por: "e Ele andou"; e o de Ele haver dirigido a palavra,
juntamente com Sua revelação e manifestação, por meio desta "ira acesa" que
"andou" e estendeu-se até eles, cuja conseqüência foi: "Eis que Miriam estava
leprosa, branca como a neve" (Números 12:10).
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 25
Habitar (Shachán)
Também serve de metáfora para um ser inanimado, ou melhor, para tudo o que se
estabeleceu e permaneceu ligado a outra coisa.
Disso também se afirma que é "expressão de uma morada", mesmo que a coisa
sobre a qual se estabeleceu não seja um lugar ou um ser vivo, conforme as
palavras: "Que habite (tishcán) sobre ele uma nuvem" (Jó 3:5).
Não há dúvida de que a "nuvem" não é um ser vivo, tampouco um "dia" é um
corpo, mas uma divisão de tempo.
E assim que esta metáfora se aplica ao Todo-Poderoso, de acordo com o que foi
explicado: quanto à permanência da sua Presença (Shechiná) ou Proteção Divina
(Hashgachá) em qualquer lugar onde persiste a Shechiná ou em qualquer objeto
que conte com a Hashgachá, conforme foi dito: "E habitou (Vaishecón) a honra de
Deus" (Exodo 24:16); "E habitarei (Veshachánti) entre os filhos de Israel" (Exodo
29:45); "E com a benevolência [do Eterno] que habitou (shocheni) na sarça"
(Deuteronômio 33:16).
E tudo o que for proveniente deste movimento, que esteja relacionado ao Todo-
Poderoso, é no sentido da permanência da sua Presença Divina — a saber, Sua Luz
criada — no lugar, ou a permanência da Proteção Divina em um objeto, conforme o
seu contexto.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 26
Tudo o que para nós é perfeição refere-se a Deus — para nos ensinar que o Eterno
é perfeito em todas as maneiras de perfeição, e que absolutamente não há falta ou
ausência Nele.
E tudo o que as pessoas comuns considerarem falha ou ausência, não se atribuirá a
Ele: nem a comida, bebida, sono, enfermidade, injustiça ou coisa semelhante.
Porém, tudo o que elas considerarem como perfeição considere-o assim, mesmo
que não seja [considerado] perfeição em nosso meio; no entanto, para Deus, aquilo
que todos consideram perfeição decididamente são falhas.
Contudo, alguns atribuíram esta nossa imperfeição pessoal, humana, a Deus, o
que, segundo eles, seria uma falha na Sua lei.
Você sabe que o movimento é uma das capacidades de um ser vivo e é
indispensável para o seu aperfeiçoamento, pois assim como precisa comer, beber e
repor o que perde, assim também precisa do movimento para se voltar ao que lhe
é bom e habitual, bem como para se livrar do que lhe é mau e àquilo que se
contrapõe.
E não há diferença entre atribuir a Deus a comida e a bebida e atribuir o
movimento.
Todavia, segundo a "língua dos seres humanos" — ou seja, a crença popular — a
comida e a bebida eram uma falha da lei divina, enquanto o movimento não,
embora o que motive o movimento seja a necessidade.
Já foi explicado no modelo que tudo o que se move e tem uma certa medida de
grandeza é, sem dúvida alguma, divisível; e foi explicado, em seguida, que Deus é
incorpóreo e não tem medida de grandeza; também não se Lhe pode atribuir
movimento ou descanso, pois só descansa aquele que se locomove por seu
caminho.
Todos estes termos que ensinam sobre os movimentos dos seres vivos são
aplicados a Deus da maneira como dissemos — assim como se Lhe atribui a vida —
pois o movimento é um acidente inerente ao ser vivo.
Não há dúvida de que, ao se excluir a corporeidade, exclui-se tudo isso, a saber:
descer, subir, andar, parar, levantar, rodear, sentar, morar, sair, entrar, passar e
tudo o que se pareça com isso.
Eis o assunto.
Estender-se mais é preciso, não para exercitar o pensamento das pessoas comuns,
mas porque é necessário esclarecer aqueles que se dedicam ao aperfeiçoamento
pessoal e deles retirar, com certa amplitude, aqueles conceitos provenientes dos
seus anos de juventude, como fizemos.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 27
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 28
Pé (Réguel)
Também tem o sentido de se seguir alguém: "Sai tu e todo o povo que está a teus
pés (beraglecha) " (Êxodo 11:8) , ou seja, aqueles que te seguem.
Recai também no sentido de causalidade: "E te abençoou o Eterno pelos meus pés
(leragli) " (Gênesis 30:30), isto é, por minha causa, por mim, pois o que ocorre a
um se deve a outro, que, por sua vez, é a causa desta ocorrência — e isto acontece
com freqüência: "Ao pé/passo (leréguel) do trabalho que está diante de mim, e ao
pé/passo (leréguel) dos meninos" (Gênesis 33:14).
Caso seja dito: "E erguer-se-ão seus pés (ragláv) naquele dia sobre o Monte das
Oliveiras" (Zacarias 14:4), significa que foram expostos os seus motivos, a saber:
as maravilhas que então estavam para ser vistas neste lugar, cuja causa era Deus,
ou seja, Ele era o agente da ação.
E para esta interpretação inclinou-se Ionatán ben Uziel (que a paz esteja sobre ele)
ao afirmar: "E [Ele] irá se manifestar em Sua bravura neste dia no Monte das
Oliveiras"; assim, [Ionatán] traduzirá toda ação de contato e movimento por "Sua
bravura" [Seu poder], pois a intenção de todas elas se refere às ações decorrentes
da vontade de Deus.
De fato, a interpretação das palavras "E havia debaixo de Seus pés (ragláv) como
uma obra de pedra de safira" (Êxodo 24:10), por Onkelos, como você já sabe, é
que o termo "Seus pés (ragláv)" está em lugar do assento, conforme suas
palavras: "E sob o trono da Sua honra".
Compreenda e admire-se com o distanciamento que Onkelos assume da
corporeidade [de Deus] e de tudo o que nela resulta, até mesmo de longe, pois ele
não disse: "E sob o Seu trono", porque isto estaria ligando literalmente o trono a
Deus e implicaria que Ele se apóia em um corpo, o que, por sua vez, implicaria [a
Sua] corporeidade: mas [Onkelos] relaciona o "trono" à "Sua honra", ou seja, à
Shechiná (Presença Divina) , que é luz criada.
Portanto, [Onkelos] escreveu seu Targum (tradução) para "Porque a mão sobre o
Trono de Deus" (Êxodo 17:16) como "Da Shechiná (Presença Divina) de Deus sobre
o trono de Sua glória".
E assim você compreenderá a linguagem popular quando esta se refere a "O Trono
da Glória".
Acabamos desviando do tema deste capítulo para algo que será explicado em
outros.
Voltemos, então, para o tema deste.
Por outro lado, a expressão "a brancura da safira" refere-se ao brilho (zohar) [No
sentido de "transparência"], não à percepção da cor branca, pois a "brancura" da
safira não vem do branco, mas tão somente da transparência — e esta não é vista,
conforme se explica nos livros de ciências naturais, porque, se assim o fosse, não
se poderia ver nem receber todas as outras [cores]; portanto, como a matéria era
transparente, permitia que se vissem todas [as cores] e deixava transpassar cada
uma delas, uma após a outra. Isto se refere à Primeira Matéria, que, segundo sua
própria essência, carece de qualquer forma e por isso recebe todas as formas uma
após a outra.
Assim sendo, o que eles viram foi a Primeira Matéria e relacionaram-na ao Eterno,
sendo esta a primeira das Suas criações sujeita à gênese e à destruição, a qual Ele
criou do nada — sobre isso novas explicações virão mais adiante.
Saiba que você precisa de uma explicação como esta até mesmo para a
interpretação de Onkelos, que disse: "E sob o trono da Sua honra", o que significa:
na verdade a Primeira Matéria também está sob os céus, denominados "trono",
conforme ficou estabelecido anteriormente.
Eu não me atentaria a esta interpretação maravilhosa, da qual ouviremos em
alguns capítulos deste Tratado, ou encontraria este sentido se não fosse por Rabi
Eliezer ben Hurcanos.
A intenção fundamental de toda pessoa inteligente deve ser o distanciamento da
[idéia de] corporeidade referente a Deus e se concentrar em todas estas
percepções como mentais e não sensoriais.
Entenda e compreenda isso.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 29
Aflição (Étsev)
Também significa raiva: "E jamais ficaram irados contigo (atsavô) teus pais"
(I Reis 1:6) — e não sentiram raiva; "Pois ficara irado (neetsáv) com David"
(I Samuel 20:34) — ficara com raiva por causa dele.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 30
Comer (Achól)
E traduziu Ionatán ben Uziel (que esteja em paz) as palavras "E tirareis
água com alegria das fontes da salvação (Ushávtem máim bessassón,
mimaainê haieshuá)" (Isaías 12:3), como: "E recebereis uma nova
instrução com alegria dos eleitos entre os justos".
Preste atenção na sua interpretação de "água" como a sabedoria que virá
naqueles dias; e das "fontes (maainê)" como "dos olhos (meeínê) da
congregação", a saber: os líderes, que são os Sábios; nas palavras: "dos
eleitos entre os justos", eis que a "justiça" é a verdadeira "salvação".
E veja quanto sentido tem cada palavra deste passoc (frase) referente à
sabedoria e ao estudo.
Preste atenção nisso.
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 31
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 32
Saiba você, que atenta a este tratado, que o que ocorre com as percepções
mentais — naquilo em que dependem da matéria — é semelhante ao que
ocorre com as percepções sensoriais, a saber: quando você olhar à sua
volta irá perceber tudo o que o seu sentido da visão for capaz de
apreender; mas se forçar os olhos, exigir demais deles e tentar enxergar a
uma grande distância, ou examinar algum escrito ou impresso muito leve
que não há como enxergar, forçando a sua visão para compreendê-lo, além
de não conseguir enxergá-lo, você também diminuirá a sua capacidade
anterior de percepção, ou seja, enfraquecerá o seu sentido de visão e não
conseguirá mais ver como antes deste esforço.
O mesmo ocorrerá com todo aquele que se voltar para a investigação
intelectual de uma teoria em particular, pois se forçar o intelecto e exigir
demais da sua capacidade de reflexão, ficará atemorizado e não conseguirá
entender nem o que antes era capaz de compreender, pois todas as
capacidades físicas são da mesma natureza — as condições são as mesmas.
O mesmo acontece com respeito às percepções mentais, a saber: se você
admitir a dúvida — e não se equivocar, acreditando que há demonstração
para aquilo que é incapaz de ser demonstrado, não passar a rejeitar e
negar com um desmentido qualquer proposição cujo contrário não foi
demonstrado e não se esforçar para apreender aquilo que não é capaz de
entender — então terá atingido a perfeição humana e estará no nível de
Rabi Akiva (que a paz esteja sobre ele), que "entrou em paz e saiu em paz"
dos estudos teológicos. [Alusão a uma passagem metafórica do Talmud em
que se falava de quatro Sábios que entraram no Pardês (Paraíso): Ben Azai,
Ben Zomá, Elisha Acher e Rabi Akiva. Ben Azai olhou de relance e morreu;
Ben Zomá enlouqueceu. Acher tornou-se herege. Rabi Akiva "entrou em paz
e saiu em paz" ]
Caso você se esforce para ir além da sua capacidade de apreensão ou passe
a desmentir teorias cujo contrário não foi demonstrado — ou cuja
demonstração, mesmo que remota, é possível — então estará no nível de
Elisha Acher, ou seja, não somente deixará de alcançar a perfeição como irá
regredir para o nível máximo de imperfeição; assim, recairão sobre você as
forças das fantasias e inclinações para as imperfeições, vícios, indecências e
perversidades, transtornando o intelecto e obscurecendo sua luz — do
mesmo modo que ocorre às visões fantasiosas que desmentem tantas
coisas por conta da fraqueza de espírito, observadas nos enfermos e
naqueles que insistem em olhar para objetos muito brilhantes ou pequenos
demais.
Afirma-se a este respeito: "Mel encontraste: come o que te basta, para que
não te fartes e tenhas que vomitá-lo" (Provérbios 25:16).
Os Sábios também aplicaram isto a Elisha Acher.
E quão maravilhosa é esta metáfora!
Como já dissemos, ela compara [este tipo de conhecimento] ao que se
conhece sobre a alimentação e menciona o mais doce dos alimentos, o mel,
que, por sua própria natureza, se consumido em excesso irrita o estômago
e provoca o vômito.
E como dizer que, quanto à natureza deste tipo de conhecimento — com
toda a sua nobreza, importância e tudo o que vem da perfeição — caso não
se permaneça dentro dos seus limites, tampouco se adotem os cuidados
devidos, este se converterá em imperfeição, assim como o mel: se
consumido com moderação, alimenta e dá prazer, mas, em excesso, é
posto para fora.
Não foi dito: "para que não te fartes e destrua-o".
Porém: "...e tenha que vomitá-lo".
O mesmo tema é ilustrado pelas palavras: "Comer mel em demasia não é
bom (...)" (Provérbios 25:27); "Não queiras ser demasiado sábio: por que
queres te destruir?" (Eclesiastes 7:16); "Cuida dos teus passos quando
fores à casa de Deus" (Eclesiastes 4:17).
David ilustra o mesmo assunto com as seguintes palavras: "E não tenho a
pretensão de lidar com aquilo que está acima e além da minha
compreensão" (Salmos 131:1).
E nas palavras dos Sábios: "Aquilo que te é misterioso não investiga, e não
procures o que te estás oculto: investiga aquilo que te foi permitido e não
te ocupes com os mistérios".
Com isto quiseram dizer que só se deve empregar o intelecto para aquilo
que é possível ao ser humano compreender, pois se ocupar daquilo que está
além do entendimento humano é muito prejudicial, conforme já explicamos.
Para isso se voltaram os Sábios com as palavras: "Todo aquele que
contempla quatro coisas (...)" — e concluem: " (...) Todo aquele que não
reverencia a honra do seu Criador", apontando para aquilo que já
esclarecemos, ou seja, que o homem não deve se destruir pela especulação
de concepções falsas; e quando tiver dúvidas ou não encontrar evidências
sobre o assunto pretendido, não deve rejeitá-lo, negá-lo ou se apressar a
desmenti-lo, mas persistir e "reverenciar a honra do seu Criador", abster-se
e conter-se.
E isto já foi esclarecido.
Não é a intenção destes escritos pelos quais se expressaram os Profetas e
os Sábios (de abençoada memória) trancar inteiramente o portão da
especulação e impedir o intelecto de apreender aquilo que está à altura da
sua compreensão, como poderiam pensar os imperfeitos e os estúpidos,
que consideram sua imperfeição e estupidez como "perfeição" e
"sabedoria", quando estas nada mais são do que imperfeição e falta de
religiosidade, pois "tomam escuridão por luz e luz por escuridão".
A única intenção é afirmar que há um limite para a inteligência humana que
deve ser respeitado.
E não seja por demais meticuloso com as expressões usadas, neste capítulo
e similares, no que se refere ao intelecto, pois a intenção é orientar sobre o
assunto em questão e não desvendar a sua essência; eis que, para
esmiuçar o assunto, há outros capitulos.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 33
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 34
Cinco motivos pelos quais a Teologia não deve ser ensinada a todos
Cinco são os motivos para se evitar abrir o estudo de temas teológicos por
meio da indicação daquilo que é relevante destacar e da apresentação disso
às pessoas comuns:
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 35
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 36
Quanto aos "atributos", eis que lhe explicarei em qual sentido será dito, que
uma coisa qualquer agrada a Deus ou provoca a Sua ira e irritação, pois era
assim que algumas pessoas diziam que Deus os queria bem ou que irava-se
e irritava-se com eles.
Entretanto, este não é o tema deste capítulo, mas sim o que eu passarei a
expor.
Saiba que, ao examinar toda a Torá e todos os Livros dos Profetas, você
não encontrará expressões de "acender o furor", "ira" ou "zelo" [No sentido
de cultuar], a não ser com relação a ‘avodá zará’ (idolatria); e não
encontrará alguém chamado de "inimigo", "adversário" ou "que odeia" a
Deus, a não ser o "ovêd avodá zará" (idólatra).
Foi dito:
"Sirvais outros deuses (...) e se acenderá o furor do Eterno contra vós"
(Deuteronômio 11:16-17);
"Para que não cresça o furor do Eterno, teu Deus" (Deuteronômio 6:15);
"Para O irritardes pelas obras de vossas mãos" (Deuteronômio 31:29);
"Eles me provocaram ao zelarem por aquilo que não é Deus; provocaram a
Minha ira com a suas adorações vãs (...)" (Deuteronômio 32:21) ;
"Porque Deus zeloso é o Eterno (...)" (Deuteronômio 6:15);
"Por que provocaram a Minha ira com seus ídolos?" (Jeremias 8:19);
"Porque O provocaram seus filhos e suas filhas" (Deuteronômio 32:19);
"Porque um fogo se acenderá na minha ira" (Deuteronômio 32:22);
"O Eterno se vinga dos seus adversários e guarda rancor dos seus inimigos"
(Naum 1:2);
"E paga [em vida] aos que O odeiam" (Deuteronômio 7:10);
"Até desterrar a seus inimigos de diante dele" (Números 32:21);
"Porque o Eterno, teu Deus, odeia" (Deuteronômio 16:22);
"Porque todas as abominações que o Eterno odeia" (Deuteronômio 12:31).
Estas são apenas algumas das citações, mas se você procurar tudo o que há
sobre este tema em todos os livros, irá encontrá-las.
Certamente os Livros dos Profetas deram grande ênfase a isto porque se
trata de um falso conceito em relação a Deus (Louvado seja), a saber: é
‘avodá zará’ (idolatria).
Pois quem acredita que Reuvên está de pé quando ele está sentado não
terá se desviado mais da verdade do que aquele que acredita que o fogo
está abaixo do ar, que a água está abaixo da terra, que a terra é plana e
coisas semelhantes; e este segundo desvio da verdade é como o daquele
que acredita que o sol é composto de fogo, que a esfera celeste contém um
só hemisfério e coisas semelhantes; e este terceiro desvio da verdade é
como o daquele que acredita que os anjos comem e bebem, ou coisa
parecida; e este quarto desvio da verdade é como o daquele que acredita
que é obrigado a cultuar algo que não seja Deus.
Pois tudo isso não é mais do que a ignorância e a heresia aplicadas a um
assunto tão importante, vale dizer: uma posição importante de alguém na
existência é maior do que a daquele que ocupa uma posição inferior.
Sobre a heresia vale dizer: acreditar em algo em lugar daquilo que
realmente é; e sobre a ignorância é o mesmo que afirmar: ignorar aquilo
que é possível conhecer.
A ignorância daquele que desconhece a medida de um cone ou a
esfericidade do sol não se compara à daquele que não sabe se Deus existe
ou absolutamente inexiste; e a heresia daquele que pensa que um cone
equivale à metade (de um cilindro) ou que o sol é redondo não se compara
à daquele que pensa que Deus é mais do que Um.
Você sabe que todo aquele que é idólatra não o faz convencido de que
inexiste uma divindade além [dos seus ídolos]; ninguém se convenceu, em
épocas passadas, nem jamais irá se convencer em tempos vindouros que a
imagem, por ele forjada, de metal, pedra e madeira foi quem criou os céus
e a terra e os governa, pois, na verdade, cultua um ídolo sabendo que se
trata de algo imaginado como intermediário entre ele e Deus, conforme foi
explicado e declarado: "Quem não irá Te venerar, Rei das nações?"
(Jeremias 10:7); "E em todo lugar está incensado, oferecido em Meu nome
(...)" (Malaquias 1:11) — uma alusão à Primeira Causa entre eles [os
idólatras].
Isto já foi esclarecido em nossa obra maior [Mishnê Torá. Livro 1, "Sobre a
Avodá Zará (Idolatria)", capítulo 1.] e sobre isso nenhum dos que possuem
a nossa Torá discorda.
Entretanto, estes hereges (mesmo acreditando na existência de Deus)
aplicavam a sua heresia a uma lei (chóc) exclusiva do Todo-Poderoso: ao
serviço [religioso] e à veneração, conforme as palavras: "E servireis ao
Eterno (...)" (Êxodo 23:25), a fim de que a Sua existência persistisse na
crença das pessoas comuns; eles aplicaram esta lei ao que era diferente [de
Deus] , o que poderia levar à inexistência do Todo-Poderoso na crença das
pessoas comuns — pois estas só realizavam as práticas rituais, sem
compreender o seu sentido e a Verdade oferecida por meio destas — e
obrigatoriamente poderia levá-los à morte, como está escrito nesta
passagem: "Não deixarás com vida todo que tiver alma" (Deuteronômio
20:16) , ou seja, que esta falsa opinião seja erradicada para que não
corrompa outros, conforme está dito: "Para que não vos ensinem fazer
(...)" (Deuteronômio 20:18).
Estes são denominados "inimigos, os que nos odeiam, adversários", e é
afirmado que quem age assim "provoca o zelo, a ira e o aumento da cólera"
de Deus.
E como será a situação de quem aplica a sua heresia ao próprio Deus e
acredita no contrário do que é de fato?
Em outras palavras: que não acredita na Sua existência, ou acredita que
são dois, ou que é corpóreo, ou passivo [movido por forças externas], ou
que a Ele é relacionada qualquer imperfeição que seja.
Este, sem dúvida, é pior do que um ovéd avodá zará’ (idólatra), pelo fato de
pensar que é um intermediário ou alguém capaz de "fazer o bem" ou "fazer
o mal".
Saiba que você, caso venha a acreditar que Deus seja corpóreo ou algo
relacionado ao corpo, estará "provocando o Seu zelo, Sua ira, acenderá o
fogo da Sua cólera, será aquele que O odeia, Seu inimigo e Seu adversário"
de maneira muito mais contundente do que o idólatra.
Se vier à sua mente que há desculpa para quem acredita na corporeidade
[de Deus] — seja por ter crescido (sido educado) com ela, seja por
ignorância ou por inteligência limitada — o mesmo deve valer para o
idólatra, pois este não adorará a não ser por ignorância ou por ter crescido
[sido educado] assim: "o costume dos seus antepassados em suas mãos".
E se você disser que o sentido literal das Escrituras os induz a esta dúvida,
então saiba que, na verdade, os idólatras foram levados ao seu culto por
fantasias e conceitos falsos.
Do mesmo modo, não há desculpa para aquele que não as recebe dos
verdadeiros teólogos, caso seja incapaz de especular: pois eu não considero
herege quem não demonstra a rejeição da corporeidade [de Deus], mas sim
quem não acredita nesta rejeição; ainda mais quando esta pode ser
encontrada nas interpretações de Onkelos e de Ionatán ben Uziel (que a
paz esteja sobre eles), que se afastam da corporeidade [de Deus] de todas
as maneiras possíveis.
E esta foi a intenção deste capítulo.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 37
Faces (Panim)
Também denomina a ira: "E suas faces [sua ira] já não eram as mesmas"
(I Samuel 1:18). [Fala-se aqui de Ana, que viria a ser a mãe do profeta
Samuel. Muito aflita e nervosa, ela orava silenciosamente pedindo por um
filho homem. Ao vê-la naquele estado, o sacerdote Eli primeiro advertiu-a,
tomando-a por embriagada. Quando percebeu que, na verdade, ela estava
nervosa, disse-lhe para seguir em paz e que Deus lhe concedesse o que
pedia. Ana se acalmou e o seu rosto refletiu esta tranqüilidade.]
Faz-se muito uso do termo no sentido da ira e irritação de Deus: "As faces
de Deus os dividiu" (Lamentações 4:16); "As faces de Deus sobre os
malfeitores" (Salmos 34:17); "Minhas faces se irão e Eu te darei descanso"
(Êxodo 33:14); "E Eu colocarei as Minhas faces sobre aquele homem e
sobre sua família" (Levítico 20:5) — e são muitos [os exemplos].
Também é dito no seguinte sentido: "E o Eterno falava a Moisés face a face
(panim el panim)" (Êxodo 33:11), ou seja: um presente diante do outro,
sem intermediação, como em: "Vem, entreolhemo-nos nas faces" (II Reis
14:8); e "Face a face falou o Eterno convosco" (Deuteronômio 5:4).
Em outro lugar, quando foi dito: "Som de palavras vós ouvistes, porém
imagem não vistes, tão somente uma voz" (Deuteronômio 4:12), está claro
que [ouvir a voz] corresponde a "face a face" [Deus estava "face a face"
com o povo de Israel, ou seja, estavam presentes um diante do outro.]; e
também as palavras "E o Eterno falava a Moisés face a face" (Êxodo 33:11)
têm o mesmo sentido das da seguinte passagem: "E [Moisés] ouvia a voz
[de Deus] que falava com ele" (Números 7:89).
Eis que já lhe foi esclarecido que a audição da voz [de Deus] sem a
intermediação de um anjo equivale à expressão "face a face".
No sentido desta passagem: "E as Minhas faces não serão vistas" (Êxodo
33:23), significa que a verdadeira existência [de Deus] não poderá ser
compreendida.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 38
Atrás (Achár)
Este termo também tem o sentido de ir atrás de uma coisa, trilhar pelos
caminhos (imitar) da virtude de uma pessoa: "Atrás (Acharê) do Eterno,
vosso Deus, andareis" (Deuteronômio 13:5); "Atrás (Acharê) do Eterno
andarão" (Oséias 11:10), isto é, seguirão conforme a Sua Vontade, trilharão
pelos caminhos das Suas ações e se comportarão conforme as Suas
virtudes: "Andou atrás (acharê) da prescrição" (Oséias 5:11); e quanto à
seguinte expressão: "E verás Minhas costas (Achorái)" (Êxodo 33:23),
perceba como "aquele que Me segue, que se parece Comigo e se submete à
Minha vontade” — ou seja: todas as Minhas criaturas — como explicarei em
alguns capítulos deste tratado.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 39
Coração (Lev)
O termo lêv também significa "vontade" (ratsón): "E darei a vós pastores
conforme o Meu coração (Libi) (Jeremias 3:15); "Teu coração (Levavchá)
tem sinceridade, assim como o meu coração?" (II Reis 10:15), o que
significa: tua vontade é tão sincera como a minha?
Este termo já foi utilizado como metáfora para Deus no seguinte sentido:
"Conforme está no Meu coração (Bilevavi) e na minha alma, fará" (I Samuel
2:35), ou seja: você agirá conforme a minha vontade; "Meus olhos e Meu
coração (Libi) lá estarão todos os dias" (I Reis 9:3): minha Hashgachá
(Proteção Divina) e minha vontade.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 40
Eis que também denomina o "sopro de vida": "Um sopro de vida (rúach)
que vai e não volta" (Salmos 78:39); "Em que havia sopro de vida (rúach
chaím)” (Gênesis 7:15).
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 41
Alma (Néfesh)
Este termo também denomina aquilo que permanece do ser humano após a
morte: "E estará a alma do meu senhor atada ao peso da vida" (I Samuel
25:29).
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 42
Chái é o termo para um ser que floresce e sente: "Todo réptil que vive
(chái)" (Gênesis 9:3).
Também denomina a cura de uma enfermidade muito grave: "E viveu
(vaiechi) de sua enfermidade" (Isaías 38:9); "No acampamento até
reviverem (chaiotam)" (Josué 5:8); e também: "Carne viva (chái)" (Levítico
13:10).
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 43
Canto (Canáf)
Você deve ter prestado atenção às palavras "Com duas cobria seu rosto e
com duas cobria seus pés" (Isaías 6:2), isto é: a causa da sua existência (a
saber: do anjo) está demasiado oculta e escondida: "seu rosto" refere-se a
esta causa e "seus pés" às coisas das quais ele (a saber: o anjo) é a causa,
conforme esclareci sobre o uso do termo polivalente reguel (pé), estas
coisas também estão escondidas, pois as ações das Inteligências são
ocultas: estas somente são explicadas por meio de estudo, por dois
motivos, um referente a nós e outro a eles, a saber: a debilidade da nossa
percepção e a dificuldade de apreensão da [Inteligência] Separada em sua
verdadeira realidade.
E com relação às palavras "E com duas voava" (Isaías 6:2), mais adiante
esclarecerei, em um capítulo à parte, por que se faz a relação do
movimento do vôo com os anjos.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 44
Olho (Áin)
Também denomina o olho que vê: "Olho por olho" (Êxodo 21:24).
Este termo significa, ainda, proteção, conforme foi dito por Jeremias:
"Toma-o, e teus olhos (einêcha), coloque-os sobre ele" (Jeremias 39:12),
cujo sentido é: proteja-o.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 45
Ouvir (Shamá)
Eis que lhe apresentarei, sobre estas metáforas e imagens, aquilo que
saciará a sua sede e esclarecerá suas dúvidas, e lhe serão explicadas todas
as questões até que não tenha mais qualquer dúvida sobre o tema.
[Maimônides refere-se aqui a todos os sentidos físicos, não somente à
audição.]
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 46
Eis a percepção entre nós conhecida a respeito dos sentidos, quais sejam:
a audição e a visão.
Não conhecemos nem representamos algo na comunicação da alma de uma
pessoa à de outra senão pela fala, ou seja, o som articulado pelos lábios,
língua e demais instrumentos da fala.
E quando querem nos mostrar que Deus "percebe" e transmite [Suas
percepções] aos Profetas para que estes nos comuniquem, Ele nos é
descrito como ouvindo e vendo, em outras palavras: que Ele "percebe"
aquelas coisas vistas e ouvidas, e então as conhece; e também nos é
descrito que Ele fala, ou seja: que certas coisas são transmitidas Dele para
os Profetas, e este seria o caso da Profecia.
Isso será suficientemente esclarecido.
Assim como não pensaremos outra coisa da nossa existência que não seja
mediante o que produzimos por contato, do mesmo modo Deus é descrito
como ativo (e posto que as pessoas comuns não consideram como um ser
vivo senão aquele dotado de alma, também nos dirão que Ele possui alma,
— apesar de o termo "alma" ser polivalente, como foi explicado - e é por
isso que Ele vive).
Já que todas estas atividades não podem ser realizadas senão através dos
órgãos corporais, todos estes foram aplicados a Ele metaforicamente, pois é
por meio deles, dos pés e das solas dos pés, que há movimento espacial;
por meio do ouvido, do olho e do nariz existem a audição, a visão e o
olfato: pela boca, língua e voz existem a fala e a matéria da fala; e as
mãos, os dedos, a palma e o braço são os órgãos utilizados para se produzir
algo.
Em suma: que a Ele (que está acima de qualquer imperfeição!) foram
atribuídos metaforicamente estes órgãos corporais para expressar, por meio
deles, as suas ações; e estas ações Lhe foram atribuídas metaforicamente
para exprimir, por meio destas, uma dada perfeição, que não tem relação
com o movimento.
Com respeito aos órgãos táteis atribuídos a Deus: "Mão de Deus" (Êxodo
9:3); "Com o dedo de Deus" (Êxodo 31:18); "Obra dos Teus dedos"
(Salmos 8:4); "E sobre mim estendes a palma de Tua mão" (Salmos
139:5); "E o braço de Deus, a quem foi revelado?" (Isaías 53:1); "Tua
destra, Eterno" (Êxodo 15:6).
E quanto aos órgãos da fala atribuídos a Deus: "A boca de Deus falou"
(Isaías 1:20) ; "E abriu Seus lábios comigo" (Jó 11:5) ; "A voz de Deus,
com força" (Salmos 29:4); "E Sua língua é como fogo devorador" (Isaías
30:27).
Quanto aos órgãos dos sentidos atribuídos a Deus: "Seus olhos vêem, Seu
mirar analisa as pessoas" (Salmos 11:4) ; "Os olhos de Deus observam"
(Zacarias 4:10); "Inclina, Eterno, Teu ouvido e ouve" (II Reis 19:16) ;
"Acendestes um fogo em meu nariz" (Jeremias 17:4). [Como se fosse:
"Acendeste a Minha ira".]
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 47
E quando dizemos que Deus vê, estamos afirmando que Ele percebe as
coisas visíveis; e que Ele ouve, que percebe as coisas audíveis; assim
também seria possível Lhe atribuir paladar e tato, por meio dos quais se
entenderia que Deus percebe as coisas palatáveis e as táteis, pois o
conceito para a percepção de todos é um só; e caso você exclua, dentre
eles, uma só percepção, será obrigado a excluir todas (a saber: os cinco
sentidos); e caso se atribua a Deus uma só percepção dentre eles, ou seja,
a percepção obtida por um dos sentidos, você será obrigado a atribuir todas
as cinco.
Encontramos em nossos livros as expressões: "E Deus viu"; "e Deus ouviu";
"E Deus cheirou", mas não: "E Deus sentiu o gosto", "E Deus tocou".
Diremos que a razão para isso é proveniente do que está arraigado na
imaginação das pessoas: que Deus não terá com os corpos um encontro
corpo a corpo, físico, posto que nem com os olhos da imaginação é possível
vê-Lo.
E estes dois sentidos — o paladar e o tato — só obtêm suas sensações
quando há contato.
Não obstante, os sentidos da visão, audição e olfato adquirem suas
sensações mesmo que os corpos a serem percebidos por suas qualidades
estejam distantes.
Por isso, na imaginação das pessoas comuns era conveniente relacioná-los
a Deus.
E mais, pois o significado e a intenção da atribuição metafórica destes
sentidos a Deus é expressar a Sua percepção das nossas atividades; e a
audição e a visão bastam para isso, ou seja: que se perceba, por meio
destas, tudo o que o outro fará ou dirá ou, como [nossos Sábios] disseram
como advertência e aviso, em geral pela seguinte repreensão: "Saiba o que
está acima de ti: um olho que vê e um ouvido que ouve".
E você sabe, pelo caminho da verdade, que todos estes conceitos são um só
conceito, e que, se pelo lado de Deus, afastamo-nos da percepção do
paladar e do tato, pelo mesmo lado serão afastados a visão, a audição e o
olfato, pois todos implicam percepções físicas, impressões e questões
sujeitas a mudança; entretanto, alguns deles parecerão imperfeitos de
imediato, e de outros se pensará que são perfeitos.
Eis que acontecerá aos órgãos internos o mesmo que aos órgãos externos
dos sentidos, dos quais alguns se aplicam metaforicamente a Deus e outros
não; e tudo isso está "conforme a língua dos seres humanos": o que era
considerado perfeito atribuiu-se a Ele, e o que era visto como imperfeito
não se Lhe atribuiu.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 48
Assim, sempre traduz "Ouviu Deus" por "Foi ouvido diante de Deus", e,
quanto ao sentido do clamor, traduz "Ouvirei o seu clamor" (Êxodo 22:22)
por "Atenderei".
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 49
Sobre ss Anjos
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 50
Você que se interessa por este tratado, saiba que a crença não é um
conceito dito pela boca, mas representado pela alma, quando se acredita
em algo tal como é representado.
Caso lhe bastar, com relação aos conceitos verdadeiros ou que você supõe
verdadeiros, expressá-los oralmente sem representá-los [mentalmente]
nem acreditar neles — inclusive sem buscar a verdade neles — isto é muito
fácil: assim como encontrará muitos entre os ignorantes, que professam
crenças que absolutamente não compreendem.
Entretanto, se lhe vem ao coração elevar-se para um grau superior — o
grau do pensamento especulativo — e convencer-se de que Deus é Um, de
Unidade verdadeira, até admitir que nada composto se encontre Nele, nem
pensar em qualquer possibilidade a respeito Dele; saiba que a Ele não cabe
nenhum atributo de forma alguma e em absoluto, e assim como Dele se
afasta a idéia de corporeidade, também se apartará da Sua essência a
posse de qualquer atributo.
Entretanto, se alguém acredita que Ele é Um e possui muitos atributos, este
diz que Ele é Um, mas em seu pensamento acredita que Ele seja muitos.
Esta é a doutrina dos cristãos: "Ele é Um, mas Ele é três, e os três são um",
como se dissesse: "Ele é Um, mas possui muitos atributos, e Ele e Seus
atributos são um", mesmo que se aparte da corporeidade e acredite na
forma absolutamente simples. [É sabido, notório e não há dúvida de que o
conceito da Trindade e o que deriva disso constitui a principal diferença
entre o judaísmo e o cristianismo.]
Como se a nossa intenção e investigação fosse: "Como diremos?" e não:
"Como acreditaremos?".
Não há crença a não ser por meio da representação, pois a crença está na
convicção naquilo que é representado, que está fora da mente conforme
esta o representa.
Se esta é a convicção, ou seja, que o contrário disso é absolutamente
impossível; e não se encontrar na mente espaço para a rejeição desta
crença nem se admitir a possibilidade do seu contrário, então esta é
verdadeira.
E quando você se livrar dos desejos e hábitos, adquirir compreensão e se
capacitar naquilo que eu lhe direi nos próximos capítulos sobre se apartar
dos atributos [a Deus], você necessariamente irá se convencer daquilo que
falamos e será daqueles que concebem a "Unidade de Deus" (Ichud
Hashém); e não será como quem fala isso pela boca, mas não concebe a
sua idéia e pertence à categoria sobre os quais se diz: "Tu estás próximo
dos seus lábios e longe das suas entranhas" [No sentido de "coração", como
foi explicado anteriormente]. (Jeremias 12:2).
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 51
Sobre os Atributos
Eis que já foi explicado que o atributo não escapa de uma, entre duas
noções: ou será a essência do objeto ao qual é atribuído e significará o seu
nome — e nós não descartamos a sua aplicação a Deus, embora de um
outro modo, como será explicado; ou será diferente do objeto ao qual é
atribuído e algo acrescido a este, então será considerado um acidente para
aquela essência.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 52
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 53
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 54
Saiba que o Senhor dos Sábios, Moshé Rabênu (Moisés, nosso Mestre), que
a paz esteja sobre ele, fez dois pedidos e obteve resposta para ambos.
O primeiro pedido feito a Deus foi que o fizesse compreender a essência
divina e a sua verdade; e o segundo pedido — que, aliás, foi feito antes —
foi que o fizesse compreender seus atributos.
Deus respondeu a ambas as solicitações com a promessa de lhe fazer
compreender todos os Seus atributos, e estes são Suas ações; e fez Moisés
compreender que não se pode atingir a essência divina em si mesma, mas,
por meio da especulação, ele poderia alcançar o máximo possível a um
homem.
E o que ele (Moisés, que a paz esteja com ele) atingiu, nenhum homem,
antes ou depois dele, pôde alcançar.
Seu pedido de compreensão dos atributos de Deus está na frase: "Faze-me
conhecer Teus caminhos, e saberei (...)" (Êxodo 33:13) .
Observe as coisas maravilhosas que estão sob esta expressão: sua fala
"Faze-me conhecer Teus caminhos, e saberei (...)" aponta para a essência
divina, conhecida por seus atributos, pois quando [Moisés] soube os
"caminhos", compreendeu Deus.
E suas palavras: "(...) A recompensa dos que acham graça a Teus olhos
(...)" (Êxodo 33:13) indica que aquele que compreende Deus "encontrará
graça aos Seus olhos", não quem somente jejua e reza.
Todo aquele que O conhece, é desejado e objeto da Sua presença: “e
aquele que O ignora é objeto da Sua irai" e afastado.
Conforme a dimensão de sabedoria e ignorância, serão a vontade e a ira, a
aproximação e o distanciamento.
Já saímos da intenção do capítulo, então retornemos ao tema.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 55
Já nos foi indicado em diversos lugares deste tratado que tudo o que
implica corporeidade, evidentemente deve ser necessariamente apartado de
Deus, assim como todo afeto, pois toda passividade implica mudança, e o
agente que provoca estas afeições não é o afetado, sem dúvida; e se Deus
pudesse ser afetado de algum modo em decorrência de passividade, algo
estranho a Ele estaria nele atuando e modificando-o.
Também é necessariamente evidente que se aparte de Deus toda ausência,
tampouco que exista alguma perfeição que seja ausente Dele num
momento e presente em outro; pois, se assim fosse, Ele seria perfeito em
potência, e toda potência estaria conectada necessariamente a uma
ausência, e tudo o que passa da potência para a ação só pode ocorrer se a
ação existente para este processo for retirada de outro.
Portanto, é obrigatório que todas as perfeições de Deus sejam ativas e nada
exista Nele em estado de potência, de forma alguma.
O que também é necessariamente evidente que seja apartado de Deus é
qualquer comparação com as criaturas; isto é algo já sentido por qualquer
pessoa, e também está revelado nos Livros dos Profetas a respeito da
rejeição desta comparação: "A quem, pois, me compararei e me
equivalerei?" (Isaías 40:25); "Com quem comparareis a Deus?" (Isaías
40:18); "Ninguém é como Tu, Eterno!" (Jeremias 10:6) — e são muitos os
exemplos.
Em resumo, tudo o que leva a uma destas quatro espécies deve ser
necessariamente apartado de Deus por meio de provas claras, e estas são:
tudo o que leva à corporeidade, ou o que leva à passividade e mudança, ou
o que leva à ausência.
Portanto, não há Nele algo inativo que depois retorne à ação, ou algo que
leve à comparação com Suas criaturas.
Estas coisas se incluem naquilo que advém das ciências naturais acerca do
conhecimento de Deus, pois todo aquele que desconhece estas ciências
ignora a imperfeição dos afetos, e não compreenderá o que é potencial e o
que é atuante, tampouco a ausência inerente a tudo o que está em estado
de potência; nem que aquilo que é potencial é inferior àquilo que se move
para que esta potência passe ao estado de ação, e que este também é
inferior àquilo que, em seu processo, já se move em estado de ação.
Caso saiba destas coisas, mas desconheça suas provas, ignorará as
particularidades que necessariamente decorrem destas premissas gerais;
por isso não terá prova da existência de Deus nem da necessidade de Dele
separar estas espécies.
Após a apresentação desta proposta, iniciarei outro capítulo no qual
explicarei a falsidade do pensamento dos que crêem nos atributos
essenciais aplicados a Deus.
Na verdade, só compreenderá quem tenha conhecimento prévio da arte da
Lógica e da natureza da existência.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 56
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 57
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 58
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 59
O que de melhor pode ser dito a respeito desta questão está expresso nos
Salmos: "A Ti é dedicado todo louvor" (Salmos 65:2), cujo sentido é: o
louvor é o seu silêncio.
Esta é a expressão mais eloqüente sobre este assunto, pois tudo o que
dissermos sobre Deus, com a intenção de engrandecê-Lo ou louvá-Lo,
carrega em si mesmo um fardo no que se refere a Ele, e nisto
contemplaremos uma certa imperfeição.
Portanto, o mais digno é o silêncio e a limitação à percepção racional,
conforme ordenaram e afirmaram os íntegros: "Ponderai em vossos
corações enquanto estais em vossos leitos, e suspirai" (Salmos 4:5).
Você já conhece a famosa passagem (quem dera todas as passagens
fossem como esta!) que citarei literalmente (apesar de ser conhecida), para
lhe aproximar do seu conteúdo.
[Os Sábios] disseram: "Uma certa pessoa, ao fazer suas orações na
presença de Rabi Chanina, clamava: O Deus grande, poderoso e temível,
magnífico e forte, venerado e destemido! E o rabino lhe disse: 'Você já
encerrou todos os louvores ao teu Senhor? Pois bem, se Moshé Rabênu
(Moisés, nosso Mestre) não tivesse enunciado os três primeiros atributos na
Torá ["Porque o Eterno, vosso Deus, é o Deus dos deuses, o Senhor dos
senhores, o Deus grande, poderoso e temível (...)" (Deuteronômio 10:17).]
e os homens da Grande Assembléia (Knésset Haguedolá) não os tivessem
estabelecido na tefilá (oração), nem sequer poderíamos pronunciá-los, e
você profere e esgota a todos eles? A qual parábola isto se compara? A um
rei de carne e sangue que possuísse milhões de moedas de ouro e fosse
louvado por estas serem de prata — eis que isto lhe seria uma ofensa!".
Esta é a expressão deste homem devoto.
Em princípio, observam-se o seu silêncio e o seu repúdio à multiplicidade de
atributos positivos e então se constata que estes, se deixados à nossas
próprias mentes, jamais seriam proferidos e deles nada diríamos.
Contudo, à medida que se faz necessário uma expressão aos seres
humanos que se lhes apresente de uma determinada forma, conforme o
declarado: "Falou a Torá conforme a língua dos seres humanos", para que
Deus lhes seja descrito conforme a suas próprias capacidades, nossa
posição é que devemos nos limitar a estas [três] expressões e não
pronunciarmos o Seu nome por meio delas, exceto quando as lemos na
Torá.
Entretanto, quando também vieram os homens da Grande Assembléia —
que eram profetas — e as mencionaram na ordem da tefilá, nossa posição é
de que devemos proferir somente estas menções.
O mais importante que pode se depreender disto é que há duas razões
pelas quais devemos empregá-las em nossas orações: a primeira, por que
vieram da Torá, e a segunda, porque os profetas [Neste caso, "os homens
da Grande Assembléia"] as incluíram na ordem da tefilá.
Caso não houvesse a primeira, não as recordaríamos, e, se não houvesse a
segunda razão, não as teríamos extraído dos textos para utilizá-las em
nossas orações.
E ainda se lhe multiplicam os atributos!
Eis que também já lhe foi explicado sobre estas palavras que nem tudo o
que encontramos a respeito dos atributos relacionados a Deus nos Livros
dos Profetas devemos incluir e proferir em nossas orações, pois não se
afirma somente: "Se Moshe Rabênu (Moisés, nosso Mestre) não nos tivesse
dito estas palavras, seríamos incapazes de proferi-las", mas há outra
condição: "E vieram os homens da Grande Assembléia e as incluíram na
tefilá" — só então nos foi permitido usá-las em nossas orações.
E não como fazem os verdadeiros ignorantes, que tanto se empenham nos
louvores, ampliam e multiplicam palavras nas orações por eles compostas e
nos discursos que acumulam, acreditando que se aproximam de Deus por
meio destes. Eles aplicam atributos a Deus que, caso fossem atribuídos a
qualquer ser humano, implicariam uma deficiência deste.
Eles não compreendem estas questões tão amplas e importantes, estranhas
à inteligência do homem comum, e adotam o Eterno Deus como base de
suas linguagens; aplicam atributos e se referem a Deus em tudo o que
imaginam ser adequado, empenhando-se em louvá-Lo deste modo, como se
pudessem afetá-Lo com suas crenças.
E conforme encontram algo escrito nas palavras de um profeta sobre isso,
sentem-se autorizados a se dirigir às Escrituras (que, de todo modo,
precisam ser interpretadas) e se voltam ao seu sentido literal, inferindo
expressões e criando adendos, sobre os quais constroem seus textos.
Este abuso é freqüente entre os poetas, oradores e aqueles que pensam
que escrevem um cântico, a ponto de comporem coisas, entre as quais,
algumas são uma completa heresia e outras são da ordem da estupidez e
da imaginação deficiente, fazendo com que uma pessoa que as ouça, ria
delas e chore ao pensar como tais coisas podem ser ditas em referência a
Deus!
Caso eu não me compadecesse com a deficiência dos que assim se
expressam, citar-lhe-ia alguns deles para que você ficasse ciente dos
pecados que há neles, mas estas são composições cujas debilidades são
explícitas para quem é capaz de compreender.
É preciso que você observe e afirme: se lashón hará (más línguas, calúnia)
e hotsaát shém rá (difamação) são graves desobediências, tanto mais é
abusar da linguagem em referência a Deus e Lhe aplicar atributos — sobre
os quais Ele é tão superior!
Não direi que é uma desobediência, mas "um insulto e uma blasfêmia,
mediante um equívoco" por parte da multidão de ouvintes e do ignorante
que os declara.
De fato, aquele que percebe a imperfeição destas composições e, não
obstante, as profere, na minha opinião está entre aqueles dos quais se diz:
"E os filhos de Israel usaram palavras que não cabiam ao Eterno, seu Deus"
(II Reis, 17:9); e: "Para falar erroneamente de Deus" (Isaías 32:6).
E se você for daquele que "reverencia a honra do seu Criador", é
absolutamente desnecessário que lhes dê ouvidos, muito menos reproduza
o que dizem e, tampouco, comporte-se como eles.
Você já conhece a extensão do delito daquele que "lança palavras em
direção ao Alto".
E absolutamente desnecessário incluir atributos positivos a Deus, a fim de
engrandecê-Lo em seus pensamentos, ou que se afaste daquilo que os
homens da Grande Assembléia incluíram na ordem das tefilót (orações) e
brachót (bênçãos), pois isto é mais do que suficiente para toda obrigação,
como foi dito por Rabi Chanina.
De fato, com relação àquilo que está nos Livros dos Profetas, será lido ao se
mencioná-los, e aqui devemos acreditar no que já foi explanado: são
atributos aplicados às suas ações ou que apontam para a negação daquilo
que inexiste em Deus.
Esta questão também não deve ser divulgada às pessoas comuns, pois é
uma espécie de reflexão evidente para indivíduos aos quais a grandeza do
Criador não está em proferir o que é indigno, mas sim em pensar sobre o
que é procedente.
Voltemos à conclusão da observação sobre as sábias palavras de Rabi
Chanina.
Ele não disse: "A qual parábola isto se compara? A um rei de carne e
sangue que possuísse milhões de moedas de ouro e fosse louvado por cem
moedas" — pois assim esta parábola indicaria que as perfeições de Deus
seriam mais perfeitas do que as daqueles que as atribuem a Ele, sendo,
portanto, da mesma espécie — o que não é desta forma, conforme já
explicamos.
A sabedoria desta parábola está nas seguintes palavras: " (...) moedas de
ouro e fosse louvado por estas serem de prata", para indicar que aqueles
[atributos] que entre nós são perfeitos em nada se relacionam a Deus,
porém, quando se referem a Ele, são todos imperfeitos, conforme foi
exposto e afirmado nesta parábola: "Eis que isto Lhe seria uma ofensa".
Já lhe fiz saber que tudo o que você possa pensar como perfeição da parte
destes atributos, quando for da espécie que cabe a nós, é imperfeição no
que se refere a Deus.
Salomão já nos instruiu o suficiente sobre esta questão, e afirmou: "Porque
Deus está no céu e tu estás na terra; portanto, sejam poucas as tuas
palavras" (Eclesiastes 5:2).
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 60
Continua
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 61
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 62
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 63
Outros Cinco Nomes de Deus: Eheiê Ashér Eheiê, Iá, Shadái, Chassat
e Tsur
Shadái é derivado de "daí" (suficiente): "E o material para a obra lhes era
suficiente (daiám)" (Êxodo 36:7); o "shin" [Shin: letra hebraica
transliterada como "sh" em Shadái] equivale a "ashér" [contraído], como
em "shecvár" (que já). ["Pelo que tenho por mais felizes os que já (shecvár)
morreram, mais do que os que ainda vivem" (Eclesiastes 4:2).]
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 64
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 65
Não acredito que você — após ter alcançado este nível e se convencido de
que Ele existe, mas não pela existência; e que é Um, mas não pela unidade
— precise que eu lhe explique o quanto é inadmissível que se atribua a
palavra a Deus, levando em conta, sobretudo, o consenso em nossa nação
de que a Torá é criada, ou seja, que a palavra relacionada a Ele é criada.
De fato, se está relacionada a Deus para se tornar a locução ouvida por
Moshé Rabênu (Moisés, nosso Mestre), é porque Ele a criou e produziu do
mesmo modo como criou tudo o que é Sua criação e obra.
Mais adiante lhe farei chegar muitas coisas a respeito da Profecia; contudo,
minha intenção aqui é lhe mostrar que atribuir a palavra a Deus equivale a
Lhe atribuir todas as ações semelhantes às nossas.
Todas as mentes serão instruídas de que existe um conhecimento divino
apreendido pelos profetas — os quais diziam que Deus falou com eles e lhes
dirigiu a palavra — até que saibamos que estes assuntos que nos chegam
de Deus não são apenas frutos dos pensamentos e reflexões [dos profetas],
como explicarei, embora já tenhamos feito anteriormente menção a este
assunto.
Tudo isto foi baseado na semelhança com as nossas ações (incluído o fato
de estes termos também estarem dirigidos para o sentido de "querer",
como já explicamos).
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 66
"E as tábuas eram obra de Deus" (Êxodo 32:16), quer dizer: sua realidade
era natural, não artificial, pois todas as coisas naturais são denominadas
"obra de Deus" [como em]: "Também estes viram a obra de Deus" (Salmos
107:24).
Conforme são citadas todas as coisas naturais — como a planta, o animal,
os ventos, a chuva e assim por diante — diz-se: "Quão imensa é a
multiplicidade de Tuas obras, Eterno!" (Salmos 104:24) e mais destacado
do que isto são as palavras: "Os cedros do Líbano por Ele plantados"
(Salmos 104:16), pois como a realidade destes é natural e não artificial,
afirma-se que Deus os plantou.
Assim também as palavras "Escritura de Deus" (Êxodo 32:16) e o modo
como ocorre a relação entre esta Escritura e Deus já foram explicados nas
palavras: "Escritas com o dedo de Deus" (Êxodo 31:18), sendo que a
expressão "com o dedo de Deus" equivale ao que foi dito dos céus: "Obra
dos Teus próprios dedos" (Salmos 8:4), sobre o quê foi esclarecido que
estes [os céus] foram criados pela "fala": "Pela palavra de Deus os céus
foram feitos" (Salmos 33:6).
Já lhe expliquei que a Escritura expressa a realidade das coisas por meio de
‘amirá’ (dito) e ‘dibúr’ (fala), pois esta própria coisa da qual se diz que "foi
feita pela fala" também se diz que é "obra do dedo [de Deus]".
Portanto, a expressão "escritas com o dedo de Deus" equivale à expressão
"escritas pelo desejo de Deus", ou seja: por Sua vontade e desejo.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 67
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 68
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 69
Os filósofos, como você sabe, chamam Deus de "A Primeira Causa" (Hailá
Harishoná) ou "A Primeira Razão" (Hassibá Harishoná). ["A denominação
Primeira Causa de que o autor fala aqui, muito familiar aos filósofos árabes
e escolásticos, está intimamente ligada ao sistema de Aristóteles, que
aponta para o Primeiro Motor, ou seja, Deus, como o limite máximo ao qual
nossa inteligência necessariamente alcança ao remontar a série dos seres e
causas. Esta Primeira Causa é, segundo o Estagirita (Aristóteles), uma
condição necessária da Ciência, que seria impossível se as causas se
estendessem ao infinito, pois o ilimitado escapa à Ciência"]
Os conhecidos por Mutakálemim são inteiramente contra este termo e
denominam Deus de "Agente" (Hapoêl).
Eles afirmam: "Se dissermos que Deus é Causa, necessariamente se
encontrará o efeito, o que leva à eternidade do universo e à coexistência
necessária entre ambos; se dissermos que Ele é Agente, não se depreende
necessariamente que o resultado da Sua ação coexista com Ele. Uma vez
que o Agente antecede a Sua ação, não se pode descrevê-lo como tal a
menos que seja anterior à mesma".
Esta é a posição de quem não diferencia entre o que está em estado
potencial daquilo que é atuante e você sabe que, neste caso, não há
diferença entre dizer Causa ou Agente.
Isto porque, se você também tomar a Causa em estado potencial, esta será
anterior ao seu efeito no tempo; quando em ação, seu efeito
necessariamente coexiste com ela.
Caso você tome o Agente em ação, este coexistirá necessariamente com o
resultado da Sua ação: o construtor, antes de construir a casa, não é um
construtor de fato, mas potencial (assim como a matéria desta casa antes
de ser construída é uma casa em potencial); ao construir, ele então se
torna um construtor de fato e necessariamente a coisa construída passa a
existir.
Assim, nada ganhamos em preferir o termo "Agente" a "Causa" ou "Razão".
Na verdade, o propósito aqui é estabelecer a equivalência entre os dois
termos: assim como chamamos Deus de Agente — ainda que o resultado da
Sua ação inexista, pois não há obstáculos ou barreiras que O impeçam de
fazer o que desejar — também é evidente que, neste mesmo caso,
podemos chamá-Lo de Causa ou Razão, ainda que não exista efeito.
A razão pela qual os filósofos chamaram Deus de Causa ou Razão, em vez
de Agente, não é devido à sua conhecida teoria da eternidade do universo,
mas por outros motivos que eu agora lhe descreverei brevemente.
Já foi explicado, pelas ciências naturais, que podem ser encontradas quatro
causas para tudo o que resulta de uma causa, e estas são: a matéria, a
forma, o agente e a finalidade, que podem ser próximas ou distantes.
Cada uma destas quatro será chamada de razão ou causa.
Dentre as suas opiniões, uma com a qual concordo é que Deus é o Agente,
a Forma e a Finalidade.
Por isso, eles [os filósofos] afirmaram que Deus é Causa (ou Razão), a fim
de integrar estas três causas, a saber: que Deus é o Agente, a Forma e a
Finalidade do universo.
Minha intenção neste capítulo é lhe esclarecer como se pode afirmar isso a
respeito de Deus.
Não se incomode agora se Ele originou o universo ou se este procede
necessariamente Dele, segundo as teorias dos filósofos, uma vez que muito
será dito ainda a respeito deste assunto.
Contudo, minha intenção aqui é estabelecer que Deus é, ao mesmo tempo,
Agente de cada uma das atividades existentes no mundo e do próprio
universo como um todo.
Assim, afirmo que já foi explicado pelas ciências naturais que também é
preciso requerer uma causa para cada um daqueles quatro tipos de causas,
de modo que, para cada coisa, encontram-se imediatamente quatro causas
diretas para as quais também haverá outras causas e, para estas, outras —
até se chegar às primeiras causas.
Em outras palavras: há uma coisa movida por um determinado agente, para
o qual há outro agente, e assim por diante, até se chegar ao Primeiro
Motor, que é o verdadeiro Agente de todas as coisas intermediárias.
Assim, se a letra [hebraica] álef for movida pela letra bêt, o bêt, pela letra
guímel; o guímel, pela letra dálet, e o dálet, pela letra hê — dado que não
se pode seguir até o infinito, ficamos no hê, a título de exemplo — não há
dúvidas de que a letra hê é o motor do álef, bêt, guímel e dálet.
Logo, diremos com certeza que o movimento do álef é produzido pelo hê.
E neste sentido que toda ação existente está relacionada à Divindade, ainda
que a sua movimentação seja efeito da ação de uma das causas diretas,
como explicaremos.
Portanto, Deus, como Agente, é a causa mais distante.
Ao investigarmos todas as formas naturais sujeitas à geração e à corrupção,
descobrimos também ser impossível que uma forma não seja precedida por
outra que prepare uma dada matéria para recebê-la; e esta segunda forma
também é precedida por outra, até que alcancemos a forma original,
necessária para a existência daquelas formas intermediárias que são as
causas daquela mais próxima de nós.
Esta forma original para toda a existência é Deus, bendito seja.
Nem pense que, ao afirmarmos que Deus é a forma original de todo o
universo, estejamos nos referindo à "forma final", mencionada por
Aristóteles em sua obra denominada Metafísica, como não sujeita à geração
e à corrupção, pois esta forma é natural e não uma Inteligência Separada.
Afinal, não dizemos que Deus é a forma original do universo, imaginando
que Ele seja uma forma dotada de matéria ou a forma destinada para
aquela matéria, como se fosse para um corpo.
Não estamos falando neste sentido!
Contudo, assim como todo ser existente dotado de forma é, de fato,
definido pela mesma e, quando esta é perdida, também a sua existência
perece e desaparece, assim também é a própria relação entre Deus e todos
os princípios mais remotos da existência, pois é pela existência do Criador
que tudo existe e Ele estende a Sua permanência por meio daquilo que
estabelece como Emanação ou Influência (Shéfa), conforme demonstrarei
em alguns capítulos deste Tratado.
Se fosse possível que o Criador não existisse, toda a realidade seria
inexistente, devido à anulação do caráter das causas originais e seus efeitos
finais, bem como as causas e efeitos intermediários.
Por isso, a forma está para uma substância dotada de forma — que a faz
ser o que é e por meio da qual mantém sua existência e caráter — assim
como Deus está para o mundo.
Neste sentido, afirma-se que Ele é a "Forma Original" e a "Forma das
formas", ou seja: em última instância, a existência de toda forma no mundo
e a sua permanência dependem de Deus, assim como as coisas dotadas de
forma se mantêm por meio desta.
Em virtude disso, quando dizemos em nossa língua [hebraico] "Chéi haolám
(A Vida do universo)" (Daniel 1 2:7), seu significado é de que Deus é a vida
do universo, conforme será explicado.
O mesmo se diz a respeito de toda finalidade: pois para uma coisa que tem
um propósito, a partir deste você deve buscar outro propósito.
E como se você dissesse, por exemplo, a respeito de um trono, cuja matéria
é a madeira, sua forma é quadrangular e sua finalidade é ser possível
sentar-se sobre ele.
Cabe-lhe então perguntar: "Qual é a finalidade de sentar-se sobre o trono?"
Então alguém lhe responde: "Permitir a quem por ele se eleva colocar-se
acima do solo".
Você pergunta mais uma vez: "E qual é a finalidade de se elevar acima do
solo?".
E a resposta será: "Crescer aos olhos de quem o vê".
Mais uma vez você pergunta: "E qual é a finalidade de crescer diante de
quem o vê?".
Eis a resposta: "A fim de que o respeitem e o temam".
Você pergunta novamente: "E qual é a finalidade de ser temido?".
E receberá por resposta: "Para que suas ordens sejam mais respeitadas".
Você questiona: "Qual é o propósito do maior respeito às suas ordens?".
E a resposta será: "Impedir que as pessoas firam umas às outras".
Você replica novamente: "Qual é a finalidade de impedir que se firam
mutuamente?".
Então lhe será respondido: "Fazer com que suas vidas permaneçam em
ordem".
Portanto, será sempre necessário que uma finalidade leve a outra até que
se alcance a vontade singular de Deus — de acordo com uma das opiniões,
como será explicado, de modo que a resposta definitiva seja: "Esta foi a
vontade de Deus" — ou pelo decreto da Sua sabedoria — segundo a opinião
de outros, conforme será exposto, de modo que a resposta definitiva seja:
"Este foi o decreto da Sua sabedoria” .
Portanto. segundo estas duas abordagens, toda série de finalidades chegará
à vontade e à sabedoria de Deus — sobre as quais foi explicado, de acordo
com a nossa opinião, que elas são a Sua essência, pois a Sua vontade e
desejo ou a Sua sabedoria não são externas à Sua essência, como se Lhe
fossem estranhas.
Portanto, Deus é o propósito final de todas as coisas.
Por sua vez, a finalidade de tudo é assemelhar-se à perfeição de Deus
conforme a sua possibilidade — esta é a expressão da Sua vontade, que é
Sua essência, conforme explicaremos.
Por isso dizemos que Deus é o Propósito dos propósitos.
Portanto, expliquei-lhe de que modo se afirma que Deus é Agente, Forma e
Finalidade e por que eles [os filósofos] O chamaram de Causa e não apenas
de Agente.
Saiba que, sobre alguns teóricos dentre aqueles Mutakálemim, recaiu tal
ignorância e audácia a ponto de declararem que, se fosse possível Deus não
existir, isto não levaria necessariamente à inexistência daquilo que foi
trazido à existência pelo Criador — vale dizer: o universo — porque um
produto não perece necessariamente quando o agente que o produziu deixa
de existir.
O que eles afirmavam seria verdade no caso de Deus ser apenas o Agente e
se o seu produto não necessitasse Dele para continuar existindo — assim
como um cofre não desapareceria com a morte do seu marceneiro, pois não
era ele quem mantinha a existência daquele.
Entretanto, dado que Deus, além de ser a Forma do universo, conforme
explicamos, também é a Causa da sua continuidade e permanência, é um
equívoco afirmar que, se desaparecesse a causa, o seu produto continuaria
a existir, porque este não pode perdurar e permanecer a não ser por meio
Daquele do qual recebe condições para tal.
Perceba a enormidade do erro que estas palavras os levaram: de que Deus
é apenas Agente, mas não finalidade nem forma.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 70
Montar (Racháv).
Deus como o Primeiro Motor.
As Esferas Celestes.
Observe o modo como [os Sábios] incluem as "almas dos justos; almas e
espíritos daqueles que nascerão no futuro" — quão glorioso é isto para
aqueles que o compreendem!
As "almas" que permanecem após a morte não são a "alma" presente no
indivíduo ao nascer, pois no momento do seu nascimento esta tem apenas
um propósito em potencial; o que é separado após a morte é considerado
atuante de fato.
Tampouco a "alma" nascente equivale ao "espírito" nascente; por isso
foram considerados, no nascimento, como "almas e espíritos", embora
quando separados [do corpo] sejam uma coisa só.
Já explicamos aqui a polivalência do termo [hebraico] "rúach" (sopro,
vento, espírito), assim como tratamos da polivalência destes termos no final
do [nosso] Sefer Madá (Livro da Sabedoria). [Mishnê Torá, Hilchót Teshuvá
capítulo 8:3. Em 1232, após denúncia à Igreja de oponentes no meio
judaico, o primeiro volume do Mishnê Torá, conhecido como Sefer Madá, foi
queimado em Montpellier, França, juntamente com o igualmente "herético"
O Guia dos Perplexos].
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 71
O Kalám
[Maimônides expõe, nos últimos seis capítulos desta Parte 1, uma sinopse
da doutrina do Kalám - sistema de teologia racional dos muçulmanos
conhecidos como mutakálemim - antes de explicar as doutrinas dos
peripatéticos (discípulos da filosofia aristotélica) sobre a existência,
unicidade e incorporeidade de Deus, na Parte 2.
Este capítulo apresenta algumas indicações históricas relativas à origem do
Kalám, cuja influência sobre alguns teólogos judeus do Oriente é notória e
justifica, portanto, que Maimônides trate deste assunto]
Eu já lhe ensinei que nada existe além de Deus e este universo, bem como
não há outra evidência para Ele além deste universo, na sua totalidade e
em suas particularidades.
Faz-se necessário, portanto, examiná-lo tal como ele é e inferir princípios
daquilo que pode ser percebido a respeito da sua natureza.
Por esta razão é importante que você conheça a sua forma e natureza
manifesta; só então será possível inferir disto uma evidência daquilo que
existe além deste universo.
Considerei necessário, antes de tudo, trazer-lhe um capítulo em que lhe
explicarei sobre o universo como um todo, na forma de narrativa daquilo
que já foi demonstrado e cuja verdade já foi confirmada sem dúvida
alguma.
Em seguida, virão outros capítulos nos quais apresentarei as proposições
dos mutakálemim e descreverei os métodos por meio dos quais eles
explicam as quatro questões. [Existência, unicidade e incorporeidade de
Deus; e a criação do universo.]
Nos capítulos subseqüentes, exporei as proposições dos filósofos e seus
métodos demonstrativos para estas questões.
Por fim, apresentar-lhe-ei o método que eu sigo, como já lhe disse, a
respeito das mesmas.
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 72
Saiba que este universo como um todo nada mais é do que um organismo,
ou seja, todo o globo da esfera celeste, com tudo o que há dentro dele é,
sem dúvida, uma individualidade, como o são Reuvên e Shimón. [Platão,
em sua obra Timeu, também apresenta o universo como uma única
individualidade, um ser animado e orgânico, de forma esférica. Esta
também é a base da cosmologia de Aristóteles exposta no tratado Do Céu e
do Mundo (...) A idéia de macrocosmos e microcosmos que aparece
esporadicamente nas alegorias do Talmud e dos midrashim ocorre
sobretudo no tratado Avot de Rabi Natan, capítulo 31, e no Sefer Ietsirá
(O Livro da Criação), e também é aceito por muitos filósofos judeus
medievais.]
A sua variedade de substâncias — vale dizer: o próprio globo e tudo o que
está contido nele — equivale metaforicamente à variedade de substâncias
que constituem um ser humano.
Por exemplo: assim como Reuvên é um indivíduo composto de diferentes
substâncias — como carne e ossos — com uma variedade de humores [Os
quatro temperamentos: fleumático, melancólico, sangüíneo e colérico.] e
estados de espírito, do mesmo modo este globo é composto de esferas
[celestes], dos quatro elementos e seus derivados.
Não há absolutamente qualquer vazio nele, pois é inteiramente sólido.
Seu ponto central é o globo terrestre; as águas envolvem a superfície
terrestre, o ar envolve a água, o fogo envolve o ar e a quintessência
envolve o fogo. [Os antigos também chamavam de "éter", a "quinta
substância" que envolve as esferas celestes.]
Esta última envolve muitas esferas, uma dentro da outra, sem espaço entre
elas ou qualquer vazio, pois suas órbitas estão ajustadas e conectadas
umas às outras.
Cada uma delas se move em movimento circular uniforme, sem qualquer
aceleração ou retardamento — nenhuma delas irá ora acelerar e ora
desacelerar, mas cada uma segue a sua natureza quanto à velocidade e
características de movimento.
Assim, algumas esferas apresentam movimentos mais velozes do que
outras.
Aquela que exibe o movimento mais veloz é a esfera circundante, cuja
órbita se completa em um dia e faz com que todas as demais se
movimentem com ela — ou seja, a parte junto ao todo — uma vez que
todas são partes dela.
Os pontos centrais destas esferas diferem: em algumas, o centro coincide
com o do mundo [Ou seja, o planeta Terra, que então era tido como centro
do universo.] e, em outras, lhe é excêntrico [Esfera excêntrica: aquela cujo
ponto central não coincide com o centro da Terra, justificando assim
irregularidades de movimentos de alguns astros.]: algumas apresentam um
movimento próprio e constante de Leste a Oeste, enquanto outras se
movem constantemente do Oeste para o Leste.
Todo astro contido nestes globos faz parte da esfera à qual está fixo e não
tem movimento próprio, pois seu movimento aparente corresponde ao do
corpo do qual faz parte.
A matéria de toda a quintessência, cujo movimento é circular, é diferente
daquela que compõe os corpos dos quatro elementos contidos em seu
interior.
Em hipótese alguma e em nenhum aspecto, o número destes globos que
circundam o mundo pode ser menor do que 18; talvez seja em maior
número, o que é possível e merece investigação.
Do mesmo modo, se existem esferas de movimento circular que não
circundam o mundo, isto também merece ser pesquisado.
Dentro do globo que nos é mais próximo [Denominado sublunar ou
terrestre.], há uma matéria diferente daquela da quintessência: esta
recebeu os quatro arquétipos que originaram os quatro elementos: terra,
água, ar e fogo. [Em hebraico: Arba tsurót rishonót (literalmente: quatro
formas fundamentais).]
Cada um dos quatro tem um espaço natural que lhe é próprio, ocupado
somente por ele e correspondente à sua natureza.
São corpos inanimados, sem vida, percepção ou movimento próprio e
permanecem em seus lugares naturais.
Caso um destes seja forçado a sair do seu lugar, assim que esta força
[externa] cessar retornará ao mesmo, porque contém o princípio pelo qual
retorna ao seu lugar em movimento retilíneo, não permanecendo onde está
nem se movendo de outra maneira.
Há dois movimentos retilíneos nestes quatro elementos, para que retornem
aos seus lugares: em direção à esfera circundante — que é o do fogo e do
ar — e em direção ao ponto central — o da água e da terra.
Assim que cada um deles chega ao seu lugar natural, entra em repouso.
Por outro lado, os corpos esféricos são vivos e dotados de uma alma, por
meio da qual se movem.
Eles absolutamente não possuem um princípio de repouso nem estão
sujeitos a qualquer mudança, a não ser de posição, em decorrência do seu
movimento circular.
No entanto, se possuem inteligência pela qual podem produzir algo, isto só
pode ser esclarecido mediante uma cuidadosa investigação.
Devido ao movimento circular e perpétuo da quintessência em seu todo, os
elementos — vale dizer: fogo e ar — necessariamente saem de seus lugares
e são empurrados em direção à água; então estes três penetram nas
profundezas do corpo da terra, originando uma combinação entre os
elementos.
Em seguida, cada um deles passa a retornar ao seu respectivo lugar e, em
decorrência disso, carregam consigo partes da terra, associadas à água, ao
ar e ao fogo.
Em todo este processo os elementos sofrem ações e reações mútuas,
provocando uma mudança de combinação entre eles: inicialmente surgem
várias espécies de vapores, em seguida diversas espécies de minerais,
todas as espécies de vegetais e muitas de animais, conforme a proporção
das partes combinadas.
De fato, todo ser sujeito à geração e degeneração origina-se dos elementos
e a eles retorna, assim como estes atuam no desenvolvimento e na
degeneração uns dos outros.
A matéria de tudo é uma só.
É impossível encontrar matéria sem forma, tampouco encontrar uma forma
natural destes seres transitórios sem matéria.
Assim sendo, mediante a geração e degeneração dos elementos e de tudo o
que se origina e se desfaz por meio deles, as coisas retornam ao seu estado
inicial e seguem em um movimento circular semelhante ao da esfera
[celeste], de modo que o movimento desta matéria, capaz de receber forma
e através da qual estas se sucedem, equivale ao da esfera [celeste], com o
retorno de cada parte às suas próprias posições.
Assim como no corpo humano há órgãos dominantes e outros dependentes
que precisam ser governados pelos primeiros para se manterem, assim
também é o universo como um todo: há partes dominantes — a
quintessência, que a tudo envolve — e partes dependentes que precisam
ser governadas: os elementos e aquilo que se constitui deles.
Assim como o órgão dominante — a saber, o coração — trabalha
continuamente, é o princípio de todo movimento existente no corpo e, por
meio do seu próprio movimento, atua sobre os demais órgãos,
transmitindo-lhes as forças das quais necessitam para suas atividades,
assim também a esfera que governa as demais partes do universo, por
meio do seu próprio movimento, transmite a todas elas as forças de que
dispõe.
Todo movimento existente no universo tem sua origem no movimento desta
esfera e a alma existente em cada ser dotado de alma no universo é
originária da alma desta mesma esfera.
Saiba que as forças decorrentes das esferas [celestes] para este mundo
[terrestre], conforme já foi explicado, são quatro:
(1) a força que causa a combinação e composição [dos elementos], e não
há dúvida de que esta é suficiente para a composição dos minerais;
(2) a força que dá a alma vegetativa (néfesh hatsomáchat) a todo vegetal;
(3) a força que dá a alma instintiva (néfesh hachaiá) a todo animal; e
(4) a força que dá razão a todo ser racional — tudo isso em decorrência da
luz e da escuridão, de acordo com a luminosidade dos astros e suas
posições ao redor da Terra.
Assim como se o coração parar por um instante a pessoa morre e cessam
todas suas atividades e forças, do mesmo modo se as esferas parassem, o
mundo inteiro morreria e tudo o que há nele deixaria de existir.
A vida de um ser vivo depende inteiramente do movimento do seu coração
— ainda que alguns órgãos insensíveis não o sintam, como os ossos, a
cartilagem e outros.
O mesmo ocorre com o universo como um todo, pois este é um só
organismo que vive devido ao movimento da esfera [celeste] — que está
para ele assim como o coração está para os seres dotados de coração —
ainda que contenha muitos corpos em repouso e inanimados.
Portanto, é preciso que você represente todo este globo como um só
organismo vivo, com movimento próprio e dotado de alma.
Este modelo é indispensável, ou seja, é muito útil para demonstrar a
unicidade de Deus, conforme será explicado; por meio disso também será
esclarecido que, de fato, Um criou um.
Assim como é impossível que os órgãos humanos existam por si próprios e
permaneçam órgãos humanos de fato — vale dizer: que o fígado, o coração
ou a carne existam por conta própria — da mesma maneira é impossível
que os componentes do universo existam uns sem os outros neste mundo,
ao qual nos referimos, de modo que o fogo exista sem a terra e esta sem o
céu ou vice-versa.
Como o indivíduo humano é composto de uma única força que conecta seus
órgãos uns aos outros e os governa, dando a cada um aquilo de que
necessita, cuidando da sua recuperação e repelindo o que pode prejudicá-lo
— o que os médicos explicam e denominam de "a força que governa o
corpo vivo" e que, freqüentemente, chamam de "natureza" — assim
também o universo como um todo consiste de uma única força que liga uns
aos outros, protege suas espécies para que não pereçam, cuida dos
indivíduos de cada espécie na medida do possível, bem como protege
alguns seres permanentes.
Cabe investigar se esta força atua ou não por intermédio da esfera celeste.
No corpo de cada ser humano há partes direcionadas a certos propósitos:
os órgãos de nutrição, para a manutenção do indivíduo; os órgãos sexuais,
para a preservação da espécie; as mãos e os olhos, necessários para
localizar e apreender os alimentos e outros.
Há também coisas sem função determinada, mas que estão unidas àqueles
órgãos e lhes servem de extensão.
A constituição peculiar destas extensões é indispensável à manutenção da
forma daqueles órgãos, a fim de que possam realizar as atividades para as
quais se destinam.
Estas se estendem até as extremidades conforme a necessidade da matéria
— como os pêlos do corpo e a cor da pele, que são irregulares — e é
comum que algumas estejam ausentes, produzindo também grandes
diferenças entre os indivíduos (o que não ocorre com os órgãos: você não
encontrará uma só pessoa com um fígado dez vezes mais pesado do que o
de outra, mas encontrará um homem sem barba ou sem pêlos em
determinadas partes do corpo, ou com uma barba dez ou vinte vezes mais
longa do que a de outro homem — a variação em termos de pêlos e cor de
pele é muito comum).
O mesmo ocorre com o próprio universo: há espécies direcionadas à
permanência, perenes e regulares, que apresentam poucas diferenças no
tocante à largura, quantidade e qualidade.
Outras não têm função determinada, mas são necessárias às leis de
geração e degeneração da natureza — como espécies de vermes em meio
ao lixo, bichos em frutas apodrecidas e no mofo de objetos úmidos, vermes
nos intestinos, e daí em diante (em suma, parece-me que tudo quanto
carece de capacidade de procriar um semelhante pertence a esta classe);
por esta razão estas coisas são irregulares, ainda que a sua ausência seja
tão impossível quanto as diferenças entre tipos de pele e cabelos entre os
seres humanos.
Assim como nos seres humanos há substâncias duradouras, como os órgãos
vitais; e outras pertencentes à espécie, mas não aos seus indivíduos, como
os quatro humores, o mesmo ocorre com o universo: há substâncias
permanentes que mantêm o organismo, ou seja, a quintessência e as
partes que a constituem; e outras pertencentes à espécie, como os quatro
elementos e tudo o que é constituído por eles.
Da mesma forma que as forças que garantem o nascimento e a
sobrevivência de um ser humano são as mesmas que levam à sua
degeneração e morte, em todo o mundo transitório estas causas de geração
e degeneração são as mesmas.
Eis um exemplo: se admitíssemos que as quatro forças existentes no corpo
de cada ser que se alimenta — atração, retenção, digestão e excreção —
fossem forças inteligentes, capazes de realizar somente o necessário no
momento e na medida adequada, o ser humano se livraria de grandes
transtornos e muitas enfermidades.
Entretanto, como isso não é possível, uma vez que estas realizam funções
naturais sem pensar nem refletir e tampouco compreendem o que fazem,
por meio de suas ações necessariamente provocam doenças graves e
muitos transtornos, ainda que sejam instrumentos para o nascimento e
sobrevivência do ser humano por um determinado tempo.
A explicação para isto é que se a força de atração, por exemplo, não
absorvesse nada além do conveniente em todos os aspectos e tão-somente
na medida necessária, o ser humano estaria livre de muitas doenças e
sofrimentos; mas como não é este o caso, pois esta absorve qualquer
substância que aparece — ainda que seja em pouca quantidade e qualidade
— disto decorre necessariamente que a substância absorvida acaba sendo
mais quente ou mais fria do que deveria, mais espessa ou mais fina, ou
absorve-se mais do que é preciso, estrangulando os tendões, provocando
obstrução e putrefação.
Perde-se na qualidade da substãncia e alteram-se suas quantidades, dando
origem a enfermidades, como eczemas, pruridos e verrugas ou doenças
graves como o tumor, conhecido como câncer, elefantíase e gangrena, até
que a forma do órgão ou órgãos seja destruída — e isto vale para todas
estas quatro forças.
O mesmo ocorre no universo: aquilo que origina o nascimento dos seres e
prolonga suas existências por um certo tempo, em decorrência da
combinação dos elementos produzida pelas forças das esferas celestiais que
os movem e neles se difundem, é o mesmo que provoca fenômenos
destruidores no mundo, tais como enchentes e tempestades, neve e
granizo, furacões, trovões, relâmpagos e contaminação do ar ou fatalidades
que arrasam uma ou mais terras e até um país, como inundação de terras,
abalos, terremotos e transbordamento de água de mares e precipícios.
Saiba que não é por tudo isso que falamos, acerca da semelhança entre o
universo como um todo e o indivíduo humano, que este é considerado um
microcosmo, pois toda esta semelhança estende-se a qualquer outro ser
animal cujos órgãos sejam perfeitos — e você jamais ouviu qualquer autor
antigo afirmar que um burro ou um cavalo é um microcosmo.
Contudo, isto foi dito do homem por conta de algo que lhe é singular: a
capacidade racional, vale dizer, o intelecto, algo que não se encontra em
nenhum outro ser vivo.
Explica-se: nenhum animal precisa de pensamento, reflexão ou conduta
moral para a manutenção da sua existência, pois segue e age conforme a
sua natureza: come o que encontra daquilo que lhe é conveniente, habita
em qualquer lugar que encontra e copula com qualquer fêmea que esteja no
cio, se for este o caso.
Desta forma, o animal sobrevive por um determinado tempo e dá
continuidade à existência da sua espécie, sem precisar em absoluto de
outro indivíduo da mesma espécie para ajudar e auxiliar na sua manutenção
ou lhe fazer coisas que ele é incapaz de fazer sozinho.
Entretanto, o caso do ser humano é único: se uma pessoa levasse uma
existência solitária, desprovida de conduta moral e vivesse com os animais
irracionais, logo morreria e não suportaria um só dia, a não ser se, por
casualidade, encontrasse algo que lhe servisse de alimento, pois, para a sua
manutenção, o alimento requer muita preparação e só fica pronto por
intermédio do pensamento e da reflexão — além da utilização de muitos
instrumentos e da participação de outros indivíduos, cada um deles
especializado em determinada função.
Para isso precisa-se de alguém que os dirija e os reúna até que se
organizem socialmente, com continuidade e cooperação.
Também precisam se proteger do calor, no verão, e do frio, no inverno,
abrigar-se da chuva, neve e ventanias, para o que é necessário uma série
de preparativos que só serão adequados se houver pensamento e reflexão.
Por esta razão, o homem é dotado de capacidade racional que lhe permite
pensar, ponderar, atuar, preparar seus alimentos por meio de algumas
práticas, morar e se vestir, controlar todos os órgãos do seu corpo de modo
que a cabeça faça o que deve ser feito e os órgãos dependentes dos
dominantes executem suas respectivas funções.
Portanto, suponha que existisse um ser humano privado desta capacidade e
munido tão-somente de capacidade vital, este morreria em pouco tempo.
A razão é uma capacidade muito nobre, a mais nobre das de um ser vivo,
bem como a mais difícil de ser compreendida: à primeira vista e pelo senso
comum, não há como entender o seu verdadeiro caráter do mesmo modo
como são entendidas as demais forças naturais.
Analogamente, no universo há um ser que governa o conjunto, colocando
em movimento o seu órgão dominante, ao qual transmite a capacidade
motora para governar os demais.
Supondo a ausência deste ser, o globo — incluindo o órgão dominante e os
que dele dependem — não teria como existir, pois este ser é quem mantém
a existência do globo em cada uma de suas partes.
Este ser é Deus, exaltado seja o seu nome!
A única razão pela qual se afirma que o indivíduo humano é considerado um
microcosmo é porque possui um princípio único que rege os demais.
Por este motivo, Deus é chamado em nossa língua [hebraica] de
"Chêi Haolám" (A Vida do Universo), conforme foi dito: "E jurou por Chêi
Haolám (pela Vida do Universo)" (Daniel 12:7).
Saiba que, na comparação que estabelecemos entre o universo como um
todo e o indivíduo humano, não há controvérsia sobre aquilo que relatamos,
exceto por três fatores:
1) O órgão dominante de todo ser vivo dotado de coração beneficia os
órgãos que lhe são dependentes e destes obtém benefícios.
O mesmo não ocorre no universo, pois Aquele que exerce autoridade ou
concede poder não recebe qualquer benefício daqueles que Dele dependem.
Sua doação é como a de um generoso benfeitor voluntário, que faz isso
naturalmente, por ser magnânimo e não porque espera algo em troca, e, ao
agir assim, imita a Deus.
2) Em todo ser vivo dotado de coração, este se localiza no interior e no
centro do corpo, enquanto os órgãos dependentes ficam ao seu redor com o
intuito de lhe serem úteis, protegendo-o e guardando-o, de modo que não
lhe sobrevenha qualquer dano externo.
No universo como um todo ocorre o inverso: o que nele há de mais nobre
envolve as partes inferiores, de forma que certamente não é afetado pela
ação dos demais.
Mesmo que fosse vulnerável, não existe fora Dele outro corpo capaz de
afetá-Lo.
Ele exerce influência sobre tudo o que está contido no universo, mas nada
nem qualquer força externa entre os corpos materiais O afetam.
Todavia, existe alguma semelhança: em relação ao órgão dominante de um
ser vivo, quanto mais distante um órgão [dependente] está, menor é a sua
importância em comparação aos mais próximos.
Assim também é no universo: quanto mais distante um corpo material está
do ponto central, mais turvo e espesso é, seu movimento é mais lento, seu
brilho e transparência desaparecem em decorrência da distância em relação
ao corpo nobre — a esfera [circundante] — que é fonte de luz e esplendor,
tem movimento próprio, é sutil e simples.
Quanto mais próximo desta esfera um corpo está, mais adquire desta
algumas das suas propriedades e desfruta de uma certa superioridade em
relação aos mais distantes.
3) A capacidade racional é inerente ao corpo [humano] e inseparável deste.
Por sua vez, Deus não é uma força dentro do universo; Ele é externo a
qualquer um de seus componentes.
Seu governo e providência abrangem o universo em todos os seus
aspectos.
Suas metas e verdades estão ocultas e as capacidades humanas são
limitadas para compreendê-las, pois está demonstrado que Deus existe à
parte e sem contato com o universo.
Também está demonstrada a existência dos resultados do seu governo e
providência em cada detalhe, por menor que seja.
Louvado é Aquele cuja perfeição reconhecemos como eterna!
Saiba que é adequada a nossa comparação entre a relação de Deus com o
universo e a razão adquirida com o ser humano, pois esta não é uma força
inerente ao corpo, mas, de fato, está separada deste e o influencia.
A capacidade racional pode ser comparada ao intelecto inerente aos corpos
das esferas [celestes].
Contudo, a questão do intelecto das esferas, da existência das Inteligências
Separadas e da razão adquirida - que também é separada — são assuntos
sujeitos a especulação e investigação.
Pelo fato de suas evidências estarem ocultas, ainda que sejam verdadeiras,
suscitam muitas dúvidas, estão expostas a críticas e são sujeitas às
objeções dos seus críticos.
Portanto, optamos inicialmente por descrever o universo de uma forma
clara, de modo que nada daquilo que mencionamos seja negado como algo
desprezível, exceto por um destes dois tipos de indivíduos: o ignorante em
algo tão óbvio — como é o caso daquele que não é geômetra e rejeita
noções já estudadas e demonstradas; ou daquele que se equivoca ao optar
por apoiar uma teoria ultrapassada.
Entretanto, quem deseja se dedicar a uma verdadeira investigação deve
estudar até que se lhe esclareça a verdade sobre tudo o que relatamos aqui
e compreenda que esta é, sem dúvida, a forma existente e estabelecida do
universo.
Se alguém deseja aceitar isto de quem conhece as demonstrações de tudo
o que pode ser comprovado, então que aceite e formule seus próprios
argumentos e provas sobre isto.
Contudo, caso opte por não aceitar — nem mesmo por meio destes
princípios — então que vá estudar, porque posteriormente compreenderá
que as coisas são assim: "Eis que isto já o investigamos e assim é; ouve-o
e entenda isto para ti!" (Jó 5:27).
Após este preâmbulo e apresentação, passamos à exposição daquilo que
pretendíamos abordar e esclarecer. [Ou seja, as proposições do
mutakálemim e suas demonstrações relativas às quatro questões,
mencionadas no penúltimo parágrafo do capítulo 71: a criação do universo,
a existência de Deus, sua unicidade e incorporeidade.]
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 73
Décima proposição: uma forma possível não pode ser provada apenas por
estar em conformidade com as leis da natureza.
Eis a teoria da admissibilidade racional mencionada pelos mutakálemim,
espinha dorsal da doutrina do Kalám!
Compreenda o seu significado.
Eles entendem que tudo o que pode ser imaginado é admissível pelo
intelecto, por exemplo: o globo terrestre tornar-se esfera circundante e
vice-versa é algo racionalmente possível; se o globo de fogo se
locomovesse em direção ao centro e o globo terrestre, em direção à esfera
circundante, não haveria lugar mais adequado do que outro para uma e
outra substância, segundo a admissibilidade racional.
Eles afirmam que tudo o que existe entre os seres visíveis poderia ser maior
ou menor e diferente em forma e localização espacial do que realmente é,
como por exemplo: um ser humano do tamanho de uma grande montanha,
com muitas cabeças e capaz de voar; um elefante do tamanho de um piolho
e vice-versa — os mutakálemim afirmam que tudo isso é admissível pelo
intelecto, o que se estende para o universo como um todo.
A respeito de qualquer coisa que supõem pertencer a uma determinada
espécie e sobre a qual afirmam: "Se uma coisa pode ser de uma forma e
também de outra, a primeira não é mais provável do que a última", eles
deixam de verificar se a realidade equivale às suas hipóteses.
Afirmam que, em um ser com formas conhecidas, dimensões definidas e
características obrigatórias, estas propriedades não se modificam nem são
substituídas porque estão habituadas há muito tempo a ser assim — assim
como o costume do rei de somente cruzar montado as vias públicas do país,
jamais sendo visto de outra maneira; contudo, o intelecto não deixa de
considerar que o rei pode caminhar a pé pelo país, pois não há dúvida de
que isto é possível e racionalmente admissível.
Eles ainda afirmam que a terra se mover em direção ao ponto central e as
chamas para o alto, ou o fogo aquecer e a água resfriar são fatores
decorrentes de hábito.
Todavia, o intelecto não deixa de considerar que isto pode ser modificado,
de modo que o fogo possa resfriar, mover-se para baixo e ainda
permanecer sendo fogo; e a água possa aquecer, mover-se para o alto e
ainda permanecer sendo água.
E sobre isto que está fundamentada toda esta teoria.
Por outro lado, todos os mutakálemim concordam que a reunião simultânea
de dois opostos em uma mesma substância é absurda, impossível e
inadmissível pelo intelecto; também reconhecem que não há como a
substância existir sem acidentes (segundo alguns deles, o inverso também
é racionalmente inadmissível).
Eles ainda afirmam ser impossível uma substância converter-se em acidente
e vice-versa, tampouco uma matéria penetrar em outra, admitindo que
estas coisas são rejeitadas pela razão.
De fato, tudo o que os eles indicam como coisas absolutamente
inconcebíveis, bem como aquilo que consideram passível de ser
representado, é verdadeiro.
Entretanto, os filósofos argumentam: "Se vocês consideram uma coisa
impossível por ser inimaginável e outra possível porque pode ser imaginada,
o que é possível para vocês o é pela imaginação e não pelo intelecto.
Portanto, com esta proposição vocês provam o necessário, o possível e o
impossível, ora pela imaginação — e não pelo intelecto — ora pelo princípio
do senso comum", conforme destacou Abu Nasr ao referir-se àquilo que os
mutakálemim chamam de "intelecto". [Abu Nasr Al Farabi (870-950):
considerado o maior filósofo muçulmano antes de Avicena (980-1037). Sua
maior contribuição está na lógica, na filosofia e na sociologia. Tentou
conciliar o platonismo e aristotelismo com a teologia. Sua opinião era de
que a filosofia e o Islã estão em harmonia.]
Portanto, para os mutakálemim aquilo que pode ser imaginado é possível —
correspondendo ou não à realidade — e o que é inimaginável deve ser
desconsiderado.
Esta proposição só pode ser considerada como verdadeira devido às nove
proposições precedentes, e foi em seu favor que se fez necessário citá-las
anteriormente.
Observação
Saiba, você que é uma pessoa interessada neste Tratado, que conhece a
alma e suas capacidades e compreende cada coisa conforme o seu
contexto: você entende que a maioria dos seres vivos possui imaginação
(de fato, todos os seres vivos completos — vale dizer: que possuem coração
— obviamente têm imaginação) e o ser humano não se diferencia por
possuir esta capacidade.
A ação da imaginação não é como a do intelecto, mas o seu oposto: o
intelecto analisa as coisas complexas; diferencia suas partes; interpreta-as
e as descreve em suas realidades e causas; de um objeto infere muitos
conceitos, diferenciando uns dos outros, assim como a imaginação
diferencia dois indivíduos humanos reais.
Por meio do intelecto, distingue-se um conceito geral de outro, particular —
e uma prova só é demonstrada no âmbito do geral.
Pelo intelecto também se discerne entre o aspecto essencial e o acidental.
A imaginação não possui qualquer uma destas ações: só percebe o
particular inserido no seu contexto geral conforme a percepção dos
sentidos; ou combina coisas que se encontram dispersas na realidade,
unindo umas às outras e compondo um corpo ou uma das capacidades
corpóreas.
Por exemplo: alguém pode imaginar um homem com cabeça de cavalo,
asas e outras coisas — isto se chama ficção e invenção, sem qualquer
correspondência com a realidade.
A percepção imaginativa tampouco é capaz de escapar à matéria e abstrair
uma forma sequer; logo, nada se prova por intermédio da imaginação.
Então preste atenção àquilo que podemos extrair das ciências preliminares
e como é importante o que delas recebemos, no que diz respeito às
proposições.
Saiba que há certas coisas que uma pessoa é incapaz de descrever quando
as examina por intermédio da imaginação, considera-as tão inconcebíveis
quanto a reunião de dois opostos.
Em seguida estabelece uma prova demonstrativa disto e deduz a sua
existência.
Por exemplo: imagine um grande globo, da dimensão que quiser, mesmo
que seja do tamanho da esfera circundante; em seguida, suponha que nele
há um eixo que passa pelo seu ponto central; então, imagine dois
indivíduos parados em cada uma das duas extremidades do eixo, de modo
que seus pés estejam alinhados com o eixo — podendo estar ou não no
plano do horizonte.
Se estiverem, ambos cairão juntos; caso contrário, um deles cairá — e será
o que está na extremidade inferior, permanecendo o outro.
Assim é a representação da imaginação.
Contudo, já foi demonstrado que a Terra é esférica, habitada nas duas
extremidades do eixo e cada habitante, de ambos os lados, tem a sua
cabeça para o céu e seus pés na direção dos pés do seu semelhante, que
está na outra ponta do eixo —e é absolutamente impossível e inimaginável
que algum deles caia, porque nenhum está em cima ou embaixo, mas cada
um está em cima ou embaixo em relação ao outro.
Do mesmo modo, foi demonstrado no Livro 2 do Tratado das Seções
Cônicas que duas linhas que, em princípio, encontram-se a uma certa
distância uma da outra, à medida que avançam, a distância entre elas
diminui e uma se aproxima da outra; entretanto, é impossível que venham
a se encontrar, mesmo que avancem infinitamente e apesar de se
aproximarem enquanto avançam.
[O Tratado das Seções Cônicas, uma das principais obras científicas da
Antigüidade, tornou o matemático grego Apolônio de Perga (262-190 AEC)
a mais eminente figura da ciência grega no campo da geometria pura.]
Isto é tido como inconcebível no âmbito da imaginação.
Quanto a estas duas linhas, de acordo com o que foi exposto lá [no livro
supracitado] , uma é reta e a outra, curva.
Eis que já foi explicado o teor daquilo que, porque escapa ao alcance da
imaginação, é inconcebível e inimaginável; também está demonstrado que
certas coisas, consideradas pertinentes à imaginação, são inadmissíveis —
por exemplo: Deus como corpo ou força corpórea — pois a imaginação só
pode conceber algo corpóreo ou inerente ao corpo.
Portanto, está claro que existe alguma outra coisa — que não a imaginação
— pela qual pode-se examinar o adequado, o possível e o inadmissível.
Como é boa esta especulação e quão proveitosa é para quem quer ser
resgatado desta escuridão, vale dizer: do estudo através da imaginação!
Não pense que os mutakálemim ignoram tudo isso, pois estão cientes até
certo ponto: àquilo que é imaginável porém inadmissível, como a
corporeidade de Deus, eles chamam de fantasia e ficção e declaram
freqüentemente que tais fantasias são falácias.
Por esta razão, precisaram das nove proposições que mencionamos, a fim
de demonstrar a décima proposição, a qual, segundo eles, admite a
possibilidade das coisas imagináveis, em decorrência da semelhança entre
os átomos e da equivalência entre os acidentes, conforme explicamos.
Você que é um estudioso, observe e perceba que daqui surge uma linha de
investigação muito profunda, qual seja: quanto a algumas representações,
um dirá que são racionais e outro, que são imaginativas.
Nós desejamos encontrar um critério que distinga uma da outra.
Quando o filósofo afirma: "Minha testemunha é a realidade", como de fato
declarou, "e nela examinarei o adequado, o possível e o impossível", o
religioso [mutakálime] responde: "Aí está a divergência! Eu afirmo que esta
realidade existente foi feita pela Vontade [divina] e não é obrigatória; se foi
criada de uma maneira, poderia ter sido de outra, a menos que, como você
defende, a representação racional defina que esta última seja inadmissível".
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 74
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte 75
Continua.
Guia dos Perplexos - Volume 1 – Parte Final
Terceiro método: Se Deus fosse corpóreo, Ele seria finito — isto é verdade;
se fosse finito, Suas dimensões seriam conhecidas, assim como a sua forma
— isto também é necessariamente verdadeiro. E prosseguem: qualquer que
seja a sua dimensão e forma, seria possível que Deus fosse maior ou menor
e de uma forma diferente".
Se assim fosse, se Ele estivesse determinado por uma dimensão e forma,
antes seria necessário existir um Ser Determinante.
Ouvi também muitos mutakálemim enaltecendo este argumento; todavia, é
mais fraco do que todos os que o antecederam, pois está fundamentado na
décima proposição.
Já explicamos sobre o que resulta das imprecisões desta referentes aos
seres existentes, quando se supõe uma mudança em suas naturezas — e
mais ainda no que diz respeito a Deus.
Não há diferença entre este argumento e o que afirmam a respeito da
preferência da existência do universo à sua inexistência, que aponta para
um agente que preferiu, entre ambas as possibilidades, a primeira.
Se alguém questioná-los: "Por que isto não se estende a Deus?" e
prosseguir: "Uma vez que Ele existe, deve haver necessariamente um ser
que tenha preferido a sua existência à sua inexistência?".
A resposta certamente será a seguinte: "Isto levaria a um encadeamento
em que seria impossível se chegar ao fim com um Ser Necessário; este
seria impossível e um Criador, desnecessário".
Entretanto, esta deveria ser obrigatoriamente a mesma resposta quanto à
Sua forma e dimensão, porque, se todas as formas e dimensões são de
existência possível — ou seja, não existiam e passaram a existir — estas
poderiam ser maiores ou menores do que realmente são, ou terem outras
formas, para o que seria necessário um Ser Determinante.
No entanto, quanto à forma e dimensão de Deus — que seja elevado acima
de qualquer imperfeição e semelhança! — assim afirmou aquele que
acredita na sua corporeidade: "Não se pode dizer que Ele era inexistente e
depois passou a existir, para que necessitasse de um Ser Determinante
[anterior]; mas sim que a Sua essência, juntamente com a Sua dimensão e
forma, é de existência necessária, sem precisar de um Ser Determinante ou
que viesse a preferir a sua existência à sua inexistência, posto que esta
última é impossível. Portanto, Deus não precisa de um Ser Determinante
para a sua dimensão e forma, pois Ele é de existência necessária".
Observe o seguinte, você que pensa com discernimento (caso opte por
buscar a verdade — e afastar-se das paixões, daquilo que aceitou e da
inclinação para o que se habituou a exaltar — a fim de não enganar a sua
alma) acerca destes especuladores, daquilo que aconteceu a eles e por
causa deles, pois são como quem que foge das cinzas para cair no fogo.
Eles invalidaram a natureza da realidade e alteraram a criação dos céus e
da terra ao imaginarem-que, com suas proposições, provariam o caráter do
universo criado.
Entretanto, além de não terem demonstrado a criação do universo, na
nossa opinião falharam nas provas da existência, unicidade e incorporeidade
de Deus, pois tudo o que apresentaram, na verdade, foi tomado da
natureza da existência estabelecida e conhecida, apreendida pelos sentidos
e pelo intelecto.
Fim do Livro 1