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Cultura jurídica latino-americana:

entre o pluralismo e o monismo


na condição da colonialidade

I v o n e F. M . L i x a
Lucas Machado Fagundes

CURITIBA
2018
Multideia Editora Ltda.
Rua Desembargador Otávio do Amaral, 1.553
80710-620 - Curitiba – PR
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Danielle Annoni (UFSC) Neuro José Zambam (IMED)
Luiz Otávio Pimentel (UFSC)

Coordenação editorial: Emanuella Beghetto


Revisão: Kátia Regina Silva de Souza
Diagramação: Aline Cristina Fortunato Cruvinel
Capa: Emanuella Beghetto

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte


Lixa, Ivone F. M.
L788 Cultura jurídica latino-americana: entre o pluralismo e o
monismo na condição da colonialidade / Ivone F. M. Lixa,
Lucas Machado Fagundes – 1.ed. - Curitiba: Multideia, 2018.
260p.; 22,5cm

ISBN 9788584431748

1. Pluralismo jurídico. 2. Cultura jurídica. I. Fagundes, Lucas


Machado. II. Título.

CDD 340.1 (22.ed)


CDU 340
Cultura jurídica latino-americana:

entre o pluralismo e o monismo


na condição da colonialidade

I v o n e F. M . L i x a
Lucas Machado Fagundes

CURITIBA
2018
índice

PR E FÁC I O 9

I N T RO D U Ç ÃO 11

PLURALISMO JURÍDICO E A TOTALIDADE COLONIZADORA 17

capítulo 1: CONSTRUÇÃO DA CULTURA MONOJURÍDICA LATINO-AMERICANA: O


PLURALISMO JURÍDICO ENCOBERTO PELA TOTALIDADE COLONIZADORA 19

1.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS: GEOPOLÍTICA NA CONSTITUIÇÃO DA TOTALIDADE


COLONIZADORA  22

1.1.1. Conquista: dominação e domesticação  33


1.1.2. Formas de dominação  41
1.1.3. Objetivos da domesticação  57

1.2. DA INVASÃO À COLONIZAÇÃO: ASPECTOS DE UM PLURALISMO JURÍDICO


ENCOBERTO  65
parte 1

1.2.1. O Direito no período pré-colonial: aspectos normativos  66


1.2.2. O Direito no período da conquista e da colonização da América
autóctone  106
1.2.3. Instituições jurídicas  112
1.2.3.1. Pluralismo Jurídico na América indígena  140
A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA CULTURA MONO-JURÍDICA BRASILEIRA 155

capítulo 2: HISTORICIDADE DA CULTURA JURÍDICA NACIONAL E A REINVEN-


ÇÃO INSURGENTE DECOLONIAL 157

2.1. A “INVENÇÃO” DO BRASIL: O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO   157

2.1.1. Horizonte e criticidade  160


2.1.2. As raízes colonizadoras da Cultura Jurídica Brasileira  163

parte 2
2.2. INSURGÊNCIA E CRISE COMPREENDIDA DESDE A DECOLONIALIDADE  189

2.2.1. A crise na periferia jurídica brasileira  202


2.2.2. A experiência jurídica crítica brasileira: um regresso ao futuro 214
2.2.3. Reinventar o Direito e repensar a emancipação no século XXI  235

PE R S PE C T I VA S E AVA N Ç O S 2 47

REFERÊNCIAS 2 51
prefácio

A presente obra é fruto do trabalho de investigação cien-


tífica de dois pesquisadores e professores universitários, am-
bos preocupados com a cultura jurídica regional e os seus
desdobramentos no cenário vislumbrado nas quase duas dé-
cadas do século XXI.
A obra sobre a relação da monocultura jurídica com
o pluralismo jurídico acaba revelando, pelo viés sócio-histó-
rico, uma ampla gama de elementos reflexivos que devem ser
considerados no pensamento jurídico crítico latino-ameri-
cano. Assim, ganha extrema relevância a realidade histórica
do continente conformado na modernidade, pois a temática
da colonização e da colonialidade são fatores que atravessam
qualquer reflexão que se pretenda crítica.
Logo, ambos os autores não se eximem de tal desa-
fio reflexivo e tratam de recuperar a historicidade negada
de Nuestra América, resgatando dados que caracterizam o
encobrimento das práticas jurídicas autênticas no proces-
so de dominação, domesticação e desenvolvimento insti-
tucional colonizado. Entre tais elementos, é possível citar a
ideia de violência e usurpação colonial, o encobrimento da
cultura autóctone, o eurocentrismo como fator de estrutura
hermenêutica, a exploração legalizada como nosso passado e
presente jurídico, entre outros conteúdos que conformam o
ideário jurídico regional. Enfim, é um livro que contempla
uma visão do fenômeno jurídico desde a realidade sócio-

9
-histórica no continente, localizando-o dentro da totalidade moderna
como sistema-mundo formado em 1492.
Por estes motivos, é uma obra didática que serve de base para
os estudos não somente da História do Direito como também para as
disciplinas de Filosofia jurídica, Sociologia jurídica, Teoria do Direito,
Hermenêutica jurídica, Teoria Política e do Estado e Direitos Humanos,
pois contribui significativamente para o campo propedêutico na forma-
ção dos estudantes universitários.
Ademais, não se limita à formação em nível da graduação: pela
densidade de conteúdo e acervo bibliográfico, serve para os debates e se-
minários na pós-graduação e, é claro, ao público em geral, juristas ou não
que intentam compreender as mazelas da juridicidade na realidade de um
Estado com passado colonial e que ainda pretenda suplantar essa herança.
Por fim, foi um prazeroso privilégio ler o material antes da sua
publicação e do conhecimento ao público, ter tido a oportunidade de dar
sugestões e indicações bibliográficas que vieram a completar substancial-
mente o teor da obra.
Após acompanhar a trajetória dos autores, sabe-se que nas pági-
nas seguintes vêm o resultado de um trabalho de pesquisa dedicado, que
contribui de forma renovada para o pensamento jurídico crítico latino-
-americano.

Florianópolis/SC, outono de 2018.

Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer

10
introdução

E m meio a um contexto político desolador da segunda dé-


cada do século XXI na América Latina, em especial quando
um grupo assume o poder no Brasil retomando o conheci-
do e mentiroso discurso de “governo transitório de salvação
nacional”, decidimos pela publicação deste trabalho. Nes-
te cenário, haveria razão para refletir acerca da construção
histórica do horizonte da cultura jurídica brasileira desde o
marco decolonial? Por que e para que há de se problematizar
o pensamento jurídico nacional? Teriam os juristas de rever
e repensar seu papel político?
Observando melhor o desenrolar dos recentes fatos
políticos, não é difícil perceber que a trama de tomada de
poder, desta vez, não repetiu as práticas adotadas pelos an-
tigos grupos golpistas latino-americanos entre as décadas de
60/80, quando as forças armadas, aliadas aos monopólios
econômicos internacionais e ao serviço secreto americano,
sitiavam nas sedes de governos presidentes populares legiti-
mamente eleitos e os executavam ou os forçavam ao exílio e,
ato contínuo, desmantelavam as instituições e pisoteavam as
constituições “legalizando” o arbítrio.
Neste momento da dramática histórica nacional, o
golpe foi mais complexo e dependeu da colaboração de al-
guns juristas que, sem o menor pudor, forneceram “as tintas”
para o falso quadro de “legalidade e normalidade” das estra-
tégias, usadas para “reinterpretar” a Constituição segundo o

11
jogo de conveniências do momento. Até que, finalmente, o Parlamento
Nacional – frise-se, com significativa parcela dos membros comprova-
damente envolvidos em escândalos de corrupção –, aliado à mídia cor-
porativa e às elites financeiras, logra êxito. Instala-se aguda e profunda
crise multifacetada no país, com alto custo para as classes populares,
que vão assistindo, atônitas, às perdas dos direitos duramente conquis-
tados em nome da “governabilidade possível”.
A classe média brasileira, historicamente conservadora e facil-
mente cooptada por grupos golpistas, sentindo-se ameaçada por dar-se
conta de que não detém o poder do Estado e tampouco o poder social
das classes populares organizadas, alimentada por suas contradições
ideológicas que oscilam entre o individualismo competitivo e a defesa
dos “interesses” dos excluídos e da “lei e ordem”, pactua e incorpora o
discurso autoritário e fascista. Facilmente ganha adeptos, particular-
mente parte da classe trabalhadora que ascendeu economicamente du-
rante as décadas anteriores. Assim, a sociedade se fragmenta e se divide,
fazendo ressurgir fantasmas há muito exorcizados, como a defesa do
“Estado Militar”, o extermínio dos opositores, o “patrulhamento” ideo-
lógico nas escolas e universidades, o salvacionismo pregado pela “teolo-
gia da prosperidade”, etc. São eleitos “empreendedores” bem-sucedidos
e líderes religiosos que se anunciam como moralmente incorruptíveis.
É o nascimento da “serpente” que fala e age em cada um que engoliu
seu ovo e o alimentou no melhor dos ninhos: na desesperança e no ódio.
Nesse contexto, uma pergunta insiste em ser feita: afinal, qual foi
(e continua sendo) o papel dos juristas neste processo? Divididos entre a
complacência e a ruptura, não é mais possível sustentar a neutralidade
“supraconstitucional” e política. Vai-se descortinando o inconfessável
papel do judiciário, e o até então negado e criticado ativismo judicial
transforma-se em prática judicial institucionalizada. Ao que parece, por
aqui, nas “terras” brasileiras, o ativismo judicial assumiu sua face mais
perversa: serviu como álibi para procedimentos processuais de ocasião,

12
como a condução coercitiva para acusado que não se nega a comparecer
em juízo ou mesmo a prisão preventiva com base em delação premiada,
ferindo os mais sagrados princípios da ordem constitucional.
Os grandes ideais defendidos por juristas progressistas no início
do século XXI são perigosamente ameaçados e somos obrigados a agir,
a nos posicionarmos. Enfim, chega a “hora da verdade”; o momento que
exige uma explicação. Nestes instantes, nestas “encruzilhadas” da histó-
ria, por onde começar ou recomeçar?
Há uma extraordinária metáfora usada por Water Benjamin
para explicar o que é a história e qual é a sua função. Diz Benjamin:
Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus.
Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo
que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados,
sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passa-
do. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê
uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruí-
na sobre ruína e as dispersa em nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em
suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-
-las. Essa tempestade o impede irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado
de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que cha-
mamos de progresso.1

De certa forma, nós juristas estamos boquiabertos e aterrori-


zados. Entretanto, podemos “despertar” nossos mortos e rever nossa
trajetória histórica. Com Walter Benjamin, também aprendemos que o

1
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e políti-
ca. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin.
São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.

13
grande privilégio do historiador é o de despertar esperanças movidos
pela certeza de que não há segurança nem sequer para os mortos se os
inimigos vencerem, e por esta razão, devemos resistir e insistir.
Alimentados pela esperança de que pensar a história é o que
pode impedir o retrocesso, apresentamos o presente trabalho que, desde
uma perspectiva decolonial e crítica, pretende trazer à luz os elementos
históricos, políticos, ideológicos e culturais articulados para definir o
pensamento jurídico latino-americano e brasileiro.
Compreendendo que é possível a crítica e a problematização do
complexo processo civilizador moderno, a partir da periferia do poder
mundial, em fins do século XX, foi-se definindo o chamado “giro deco-
lonial”, ou “giro descolonial”. Trata-se da convergência de pensadores
que aspiram a uma nova epistemologia crítica daquela que foi legada
pela modernidade ocidental e que acabou prisioneira dos interesses do
mercado. O “decolonial” reconhece que há uma corrente de pensamen-
to, a qual, embora não hegemônica, vai se consolidando como alterna-
tiva no meio acadêmico e político, sustentando a elaboração do conhe-
cimento desde o negado pelo discurso da modernidade e o subalterno,
refutando as totalidades homogenizadoras eurocêntricas.
Nas páginas que se seguem, foram definidos dois grandes blocos
para problematizar a formação do pensamento jurídico brasileiro. No
primeiro, se descreve e se discute a construção da cultura monojurídica
latino-americana, que encobertou e ainda encoberta o pluralismo e a
demodiversidade política e jurídica; no segundo, a formação histórica
da cultura monojurídica brasileira.
O trabalho resulta de pesquisas desenvolvidas ao longo de dois
anos pelo grupo “Pensamento Jurídico Crítico Latino-americano”, vin-
culado à Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC/SC). Tal
instituição vem, sistematicamente, junto a uma rede de pesquisadores
nacionais e internacionais, particularmente os vinculados ao Programa
de Mestrado em Direitos Humanos da Universidad Autónoma San Luis

14
Potosi (México), e ao Mestrado em Direitos Humanos e Sociedade da
UNESC, produzindo significativas contribuições para esboçar elemen-
tos que permitam a compreensão dos fatores subjacentes à condição de
nosso tempo histórico. Entendimento este que possa servir para alimen-
tar as utopias reivindicatórias de esperança e as práticas de libertação
dos que continuam a enfrentar os atuais desafios e vislumbram, desde
hoje, um futuro mais generoso e fraterno.
Por fim, cabe destacar que esta obra foi desenvolvida com apoio
da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Ca-
tarina (FAPESC), por meio da Chamada Pública nº 09/2015 – Apoio a
grupos de pesquisa das Instituições do sistema ACAFE. Este auxílio pos-
sibilitou ao grupo de pesquisa “Pensamento Jurídico Crítico na Amé-
rica Latina” estar em diálogo e intercâmbio científico com a Universi-
dade Regional de Blumenau (FURB). Ainda, cabe destacar o apoio da
Universidade do Extremo Sul Catarinense, com o progrma Pró-Stricto,
programa de incentivo a pesquisa e a produção acadêmica, fomento que
auxiliou na viabilidade desta obra.

15
parte I

PLURALISMO JURÍDICO E A TOTALIDADE


COLONIZADORA

17
capítulo 1

CONSTRUÇÃO DA CULTURA MONOJURÍDICA LATINO-AMERICANA:


O PLURALISMO JURÍDICO ENCOBERTO PELA TOTALIDADE COLONIZADORA

O capítulo inicial da maioria das pesquisas jurídicas (ou


das que buscam esclarecer um horizonte e a espacialidade
da sua abordagem), em geral, trata de constituir algum tipo
de referência histórica no tratamento do tema escolhido. No
presente estudo, não será diferente, ainda que dissidente a
postura, pois esta reflexão histórica será reconstruída a par-
tir da temática da cultura jurídica, em que se busca não limi-
tar-se a constituir uma retórica meramente expositiva dos fa-
tos, dos fatores e das factibilidades com suas datas, episódios,
sujeitos, locais e desdobramentos que levam o tema para um
verdadeiro passeio retórico.
A divergência com a postura meramente retórica se
explica pelo fato de que a retórica historicista, pura e sim-
plesmente, faz com que o leitor volte ao passado para, logo
em seguida, ser arremessado ao futuro no capítulo seguin-
te. Isso transparece em fatores que se desdobraram segundo
a vontade do autor, ou foram grosseiramente arquitetados,
quando não amontoados sequencialmente, de acordo com
os interesses autorais. Logo, por vezes, acaba traduzindo um
deficit de perspectiva reflexiva, ainda que massivamente in-
formativo, pois são páginas e páginas com volume impres-
sionista aos expectadores e admiradores desse tipo de expo-
sição, típico do perfil tradicional do bacharelismo jurídico2.

2
“[…] o ensino jurídico brasileiro, desde a criação dos cursos de direito em
1827, sempre foi marcado por um estilo que privilegia o ornamento, a retórica e o

19
Por essa razão, a presente proposta trata-se de um constructo
histórico-crítico na busca da (re)composição temática dentro dos aspec-
tos que possam evidenciar alguns elementos para reflexão crítica e in-
quietante desde outras perspectivas, as quais tenham preocupações em
compreender os fatores que influenciam no tema da pesquisa.
Nesse sentido, a exploração deste estudo intenciona compreender
uma historicidade das ausências, em que inicialmente cumpre distinguir
o fator da localidade na abordagem, sabendo que é diferente quando se
fala dos sujeitos na geografia sulina ou norte-europeia. A referência da
espacialidade e de seu desenvolvimento histórico é fundamental para a
compreensão dos desdobramentos e de sua cotidianidade presente3.
Dessa maneira, tendo em conta a criticidade reflexiva, destaca-
-se a importância atribuída às corporalidades viventes que produzem
a identificação dos dominadores e dos dominados; descobrem-se frag-
mentos relacionais e, principalmente, caracterizam-se as relações de po-
der, algo que, para a análise jurídica, é determinante na engenharia da
produção da cultura jurídica monista.
Ainda no âmbito da justificativa pela escolha em começar a apre-
sentação da pesquisa pelos aspectos históricos e de maneira crítica, deve

efeito ao invés dos conteúdos e da profundidade da reflexão. São as características do


assim chamado ‘bacharelismo jurídico’”. FONSECA, Marcelo. Introdução teórica à
história do direito. Curitiba: Juruá, 2010, p. 18.
3
Enrique Dussel destaca: “El mundo, en cambio, en espacialidad o totalidad
de entes en una cierta proximidad o lejanía (desde el otro en la proximidad primera),
privilegia el "pasado" temporal como el "lugar" donde nací. El donde- nací es la pre-
determinación de toda otra determinación. Nacer entre los pigmeos del África o en
un barrio de la Quinta Avenida de New York, es en verdad igualmente nacer. Pero es
nacer en otro mundo, es nacer especialmente en un mundo que predetermina como
pasado, y por ello determina, nunca absolutamente pero es suficiente que determine
radicalmente, la implantación del proyecto futuro. El que nació entre los pigmeos
tendrá el proyecto de ser un gran cazador de animales; el que nació en New york
forjará el proyecto de ser un gran banquero, es decir, cazador de seres humanos”.
DUSSEL, Enrique. Filosofía de la Liberación. México: FCE, 2011, p. 56.

20
ser mencionado o que se busca recuperar com este tipo de resgate, algo
que é justamente semelhante ao proposto por Walter Benjamin – “[…]
el cepillo a contrapelo de la historia”4 –, na tentativa de também reaver
experiências perdidas ou encobertas pelas mazelas históricas e pela me-
mória dos dominadores.
Em tal situação, o momento fundante é o da localização do tema
na totalidade vigente, o qual se constitui na construção da modernidade
com base na compreensão do processo de dominação, de subjugação e
de aniquilamento de toda ideia que não esteja dentro dos parâmetros da
racionalidade eurocêntrica moderna. Por isso, compreende-se no âmbi-
to da pesquisa uma inicial recomposição histórica com postura diferen-
ciada da retórica tradicional, privilegiando a criticidade5.
No momento, se pretende explorar e demonstrar a forma da
constituição do Direito Moderno como totalidade excludente6 mono-
cultural, situando a questão do Pluralismo Jurídico como realidade
concreta. Logo, será considerada a questão das raízes que formaram a
cultura jurídica latino-americana e deram fundamentação para a estru-
tura jurídica no continente, pois com razão menciona Antonio Carlos

4
BENJAMIN, Walter apud PISARELO, Gerardo. Un largo termidor: La ofen-
siva del constitucionalismo antidemocrático. Madrid: Trotta, 2011, p. 20.
5
“Sólo los métodos críticos, los que se constituyen en un proceso ana-dialéc-
tico (desde la exterioridad: anó-, se produce el despliegue: diá-, de la comprensión de
un nuevo horizonte; lógos), son hoy aptos para investigar provechosamente en favor
de las naciones periféricas, de las clases populares”. DUSSEL, Enrique. Filosofía de la
Liberación. México: FCE, 2011, p. 253.
6
Para Antonio Carlos Wolkmer: “O processo de historicidade na América
Latina tem sido caracterizado por uma trajetória construída pela dominação inter-
na e pela submissão externa. Trata-se de um cenário montado a partir da lógica da
colonização, exploração e exclusão dos múltiplos segmentos étnicos, religiosos e co-
munitários. Uma história de contradições e desigualdades sociais, marcada pelo au-
toritarismo e violência de minorias, pela marginalidade e resistência das maiorias au-
sentes da história, como os movimentos indígenas, negros, campesinos e populares”.
Repensando a questão da Historicidade do Estado e do Direito na América Latina. In:
Revista Panóptico, ano 1, n. 4. 2006.

21
Wolkmer: “[…] da cultura jurídica latino-americana há de se ter em
conta a herança colonial luso-hispânica – e suas respectivas raízes ro-
mano-germânicas – e os processos normativos-disciplinares provenien-
tes da modernidade capitalista, liberal-individualista e burguesa7”.
Objetiva-se demostrar que a conquista e a colonização da Amé-
rica Latina são etapas de um processo de justaposição de interesses do-
minantes a partir das condições da realidade histórica colonial.
Portanto, estará concluso este momento inaugural, caso tenha sido al-
cançado o objetivo de pensar o tema do Pluralismo Jurídico na Totali-
dade moderna – reconstruir uma historicidade jurídica das ausências –,
em que se evidenciam aspectos da formação do Direito no tempo pré-
-colonial e no colonial com suas ideias jurídicas encobridoras, legando
elementos interdisciplinares com base na leitura de categorias proble-
matizadoras que põem em crise tal arquitetura jurídica oficial.

1.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS: GEOPOLÍTICA NA CONSTITUIÇÃO DA TOTALIDADE


COLONIZADORA
A presente etapa busca esboçar um breve panorama dos elemen-
tos principais que conformaram a geopolítica do período, compreendida
no processo de descobrimento e de conquista da América, com o intui-
to de convidar o leitor a submergir nesse emaranhado institucional que
conforma a colonização, envolvida em fatos imbricados no desenrolar da
constituição daquilo que se conhece como modernidade/totalidade.
Sendo assim, algumas máximas popularizadas, quando escu-
tadas no mundo acadêmico historiográfico, compõem parte do que se
pretende evidenciar nas próximas linhas, cuja importância reside em

7
WOLKMER, A. C. Síntese de uma História das Ideias Jurídicas: Da Anti-
guidade Clássica à Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 95.

22
servirem de ingresso para o debate proposto. Entre as quais: “A história
que aprendemos não é nossa!” e “Essa transformou a invasão em desco-
berta!”. É relutante interferir no pensamento moderno com a “apostasia”
da historiografia tradicional, afinal, se vislumbram e relembram-se com
frequência os famosos episódios dos “grandes” conquistadores, como
Homero em Ilíada, os heróis de Esparta e Atenas, os gladiadores e heróis
em Roma e assim por diante. Segue-se no “epistemicídio” (no informal
mesmo), em que se compreenda o assassinato do conhecimento ou uni-
lateralidade no conhecimento, pois essa tarefa nada mais contempla do
que duas funções: a primeira delas é localizar a própria história regional
como “não existente”, ou, na melhor das hipóteses, como “sub-existen-
te”, cumprindo uma tarefa de incluir – aos latino-americanos – como
apêndices da história Europeia8; já a segunda hipótese é de total negação
da existência do “Eu”, originário ou autóctone nas inventadas “Amerín-
dias”, ao que pouco se conhece dos grandes contos dos heróis Astecas,
Maias ou Incas, das suas epopeias e das demais aventuras ou cultura
episódica das mitologias e do misticismo; tudo isso é envolvido em uma
cena de barbárie vs civilização, pois a inevitável comparação se avulta
quase que frequentemente.

8
Talvez nem latinos e muito menos americanos, já que ambas são classifica-
ções atribuídas desde fora e sem contar com a vontade dos originários – pior que ser
contra a vontade, pois nesse caso se tem conhecimento do ato, no primeiro é totali-
tário –. encobrindo as originárias acepções. Ainda que a essas alturas do processo
civilizatório sirva para distinguir alguma coisa em termos de geografia ou geoepistê-
mica, não se pode olvidar as origens. Ou como afirma Ruggiero: “Em tais condições,
abandonar a definição ‘latina’ seria agir sabiamente: mas uma sabedoria que deveria
ser apoiada por um imenso poder sobre a imprensa, o rádio, a televisão, de todo
o mudo. Tal poder pertence apenas aos intelectuais… Equivale a renunciar. O que
não significa aceitar passivamente. Será preciso procurar saber o que pode significar
hoje a ‘latinidade’ da América. Seguramente não é possível dar aqui nem mesmo as
indicações do trabalho que resta fazer; nós assinalamos esse problema no fim destas
páginas sobre a conquista somente para não nos tornarmos cúmplice de um prolon-
gamento da conquista”. RUGGIERO, Romano. Os Mecanismos da conquista colo-
nial: os conquistadores. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p. 123.

23
Dessa forma, não é proposta discutir a questão da invenção – Ásia,
Índias, América9 –, mas sim o desdobrar da chamada invasão da América,
a qual, segundo a Enrique Dussel10, significa o descobrir do Outro11, a face
externa da Europa ou do seu “Ego”; esse encontro com o desconhecido é
provocativo e aguça o despertar místico do homem dominador, herdeiro
das “grandes histórias” que transmutaram Grécia, Roma, Cruzadas e Re-
conquista12, retomando as características do arquétipo “Indo-europeu”13
em que o “Ser” é sinônimo de posse, poder e propriedade; tomar para “Si”
na satisfação de dominar ao Outro – à mulher, ao jovem imaturo que deve
ser tutelado, ao escravo como incapaz, ao fraco, ao bárbaro, ao índio, ao
negro, ao trabalhador assalariado, enfim, a lista é grande de subjugados
pelo ego conquiro da modernidade. Dussel demonstra, em seus trabalhos,
que, ao lado do eufemístico descobrimento, se vislumbra o encontro entre
o Europeu sedento de dominação com o Outro, na sua condição de enig-
ma, tão ou mais impressionado que os “barbas ruivas” estrangeiros.

9
Indicado nesse caso seria a obra de O’GORMAN, Edmundo. La invención
de América. México: FCE, 2006.
10
Cf. E. DUSSEL, Enrique. 1492, O encobrimento do outro: a origem do mito
da modernidade, conferências de Frankfurt. Tradução de Jaime A. Classen. Petrópo-
lis: Vozes, 1993. DUSSEL, E. Filosofía de la liberación. México: FCE, 2011, p. 17-44.
DUSSEL, E. Política de la liberación: historia mundial y critica. Madrid: Editorial
Trotta, 2007c, p. 141-323.
11
“La ‘aparición’ del Otro, como un fantasma, del indígena semidesnudo que
Colón vio sobre las playas de las primeras islas tropicales del Atlántico occidental
‘descubiertas’ en octubre de 1492 fue rápidamente ‘encubierta’ bajo la máscara de los
‘Otros’ que los europeos portaban en su imaginario. En realidad no ‘vieron’ al indio:
imaginaron los Otros que portaban en sus recuerdos europeos. El Otro era interpre-
tado desde el ‘mundo’ europeo; era una ‘invención de Europa’”. DUSSEL, E. Política
de la liberación: historia mundial y critica. Madrid: Editorial Trotta, 2007c, p. 194.
12
A influência dos costumes e estruturas mentais, como o caso da literatura
das cavalgadas espanholas que embalam o ideário popular Ibérico, se constata na
afirmação de Ruggiero. RUGGIERO, Romano. Op. cit., p. 31.
13
Ver a obra de Jandir Zanotelli, em que aborda os arquétipos que compõem
essa pré-história dos descobrimentos Ibéricos. ZANOTELLI, João Jandir. América
Latina: Raízes Sócio-político-culturais. Pelotas: Educat, 1999.

24
O desdobramento desse encontro, como revelação ao Outro, é o ato
de continuidade do processo histórico em marcha na Península Ibérica. Para
o europeu, é a tão buscada expansão dominadora para a realização do seu
“ego dominador”, maturidade da Europa como sinônimo de Modernidade14;
o desdobramento desses fatores é o que constitui o tema da presente etapa no
estudo: a conquista – dominação – e a colonização – domesticação.
Para esse intento, a América originária é vista dentro da pers-
pectiva vigente do contexto da Península Ibérica, qual seja de guerra
declarada para a Reconquista, já que a Conquista pode ser entendida
dentro do prolongamento desse conflito espanhol15 trazido ao chama-
do Novo Mundo – descrição cínica e por si categorizadora –, algo que
implicará e mesmo justifica a continuidade por meio de dois fatores: os
sujeitos inimigos serão os próprios habitantes e os interesses expansivos
de contornar a crise regional, ou seja, no flanco mudará o inimigo, não
mais o Mouro ocupante do sul Ibérico, mas agora o indígena.
Nos propósitos europeus, não se trata mais da retomada de um
território, mas a tomada para si de um novo espaço. Nesse caso, tanto
faz, o fulcro primordial se trasladará de uma orelha a outra do Oceano
Atlântico, com fins de afirmação dos domínios violentos.
Por este viés, a hermenêutica inaugural do referido encontro será
fundamentada pelos arquétipos interpretativos Europeus. Assim reali-
zou Cristóvão Colombo, quando reinterpretou o mundo visto sob uma
perspectiva distorcida16, ou mesmo na visão dos próprios conquistado-
res que alimentavam seus antigos desejos, conforme recorda Romano

14
DUSSEL, E. Op. cit.
15
RUGGIERO, Romano. Op. cit., p. 32.
16
Em Tzvetan Todorov se apresentam as interpretações de Colombo, influen-
ciadas pelo seu modo de ver: “Podemos observar aquí la forma que las creencias de
Colón influyen en sus interpretaciones. No se preocupa por entender mejor las pa-
labras de los que se dirigen a él, pues sabe de antemano que va a encontrar cíclopes,
hombres con cola y amazonas. Bien ve que las sirenas no son, como se ha dicho, muje-

25
Ruggiero17, ou então na patética e interesseira comunicação e interpre-
tação que realizaram os portugueses em suas relações de troca com os
indígenas18. Ambos os momentos do choque entre as culturas são lidos
com base na face do “encobrir” o Outro, que de pronto é vilipendiado e
colocado na margem do diálogo fundante.
Diante disso, é necessário compreender a geopolítica que antecipa
esse encontro. Pode ser conformada da seguinte maneira: a queda do ba-
luarte oriental no império que representa o Estado de Cristandade – que
não deve ser confundido com Cristianismo19 –, a respeito do qual se afirma
que é conformado no acordo entre o Império Romano e os representantes
da religião Cristã, no momento em que Constantino decreta a “cristiani-
zação” dos seus domínios e Constantinopla se assume como fortaleza leste
do referido império, sem mais perseguições aos praticantes do cristianis-
mo, e a solidificação como religião oficial do Estado Romano oriental.

res hermosas; pero, en vez de concluir que las sirenas no existen, corrige un prejuicio
con otro: las sirenas no son tan hermosas como se supone”. TODOROV, Tzvetan. La
conquista de América: el problema do Otro. México: Siglo XXI, 2010, p. 27.
17
“O longo contato com os Sarracenos deixará no espírito dos portugueses
a figura ideal da ‘mourisca encantada’, tipo delicioso de mulher morena de olhos
negros, envolvida em um misticismo sexual, – sempre vestida de vermelho, ou pente-
ando seus longos cabelos, ou banhando-se em rios e nas águas de fontes misteriosas;
os colonizadores acreditam encontrá-la, semelhante se não idêntica, nas índias nuas,
de cabelos soltos, do Brasil”. RUGGIERO, Romano. Os Mecanismos da conquista
colonial: os conquistadores. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
18
“Um deles viu umas das contas de rosário, brancas: mostrou que as queria,
pegou-as, folgou muito com elas e colocou-as no pescoço. Depois tirou-as e com elas
envolveu os braços e acena para terra e logo para as contas e para o colar do Capitão,
como querendo dizer que dariam ouro por aquilo. Nós assim o traduzíamos porque
esse era o nosso maior desejo […] Mas se ele queria dizer que levarias as contas e mais
o colar, isso nós não desejávamos compreender, porque tal coisa não aceitaríamos fa-
zer”. CASTRO, Silvio apud PIRES, Sérgio Luiz F. O aspecto jurídico da conquista da
América pelos espanhóis e a inconformidade de Bartolomé de Las Casas. In: WOLK-
MER, Antônio Carlos. Direito e Justiça na América Indígena. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1998, p. 63.
19
Cf. ZANOTELLI, João Jandir. Op. cit.

26
Outro ponto a que se deve aludir é que esse chamado Estado
de Cristandade é a conjunção dos arquétipos do homem Indo-europeu,
com a fundamentação ou fundamentalismo Cristão institucionalizado
na Igreja Católica, o que se poderia operacionalizar como fator de legar
ideologia ao Estado dominador. Constituído esse acordo político-cleri-
cal, forma-se no oriente próximo uma fortaleza que deve ser lida como
porta de entrada da rota comercial com a Europa, logo se compreende
a importância que adquire a sua queda. A tomada de Constantinopla20
pelo império Turco-Otomano é significativa no sentido do fechamento
ao livre acesso para o oriente, pois os caminhos que serviam à economia
do interior europeu são afetados diretamente com a abrupta queda de
abastecimento interno europeu.
Sendo assim, o continente resignado no cerco e com o bloqueio do
seu principal acesso para as Índias ocidentais ao sudeste, tendo no sul dos
reinados Ibéricos o domínio árabe e ao leste também domínios bárbaros,
encontra-se – no seu âmago medieval – na periferia do mundo, uma ínfi-
ma faixa de terra cercada pelos impérios Turco-otamano, árabe e, mesmo
que longínquo, o império chinês; ao sudeste, sul e leste, respectivamente.
A tese da periferia da Europa 21 significa a arrancada que levará
aos descobrimentos. O fato do Oceano Atlântico ganhar importância

20
“Un mapa del orbe cristiano y musulmán hacia el año 1000, como el publi-
cado por Menéndez Pidal, muestra a la Cristandad envuelta por el mundo islámico,
con la amplia penetración por el flanco de Occidente que representa la invasión de la
Península Ibérica. Más tarde, en el siglo XV, la caída de Constantinopla pone en fran-
co peligro la frontera oriental del mundo cristiano. Pero la reconquista hispana hace
ceder la antigua amenaza por el rumbo del poniente y abre la puerta a la expansión de
los europeos por las costas de África, las Islas Canarias, Asia y América”. ZAVALA,
Silvio. La Filosofía política en la Conquista de América. México: Fondo de Cultura
Económica, 1993, p. 23.
21
Para Dussel: “La modernidade nace cuando se derrumba el milenário Medi-
terráneo. Desde los cretenses y fenicios, hasta los árabes y venecianos, el Mediterrá-
neo era un mar de grandes conexiones; era un área periférica de la historia que unía el
norte del África con el Oriente medio hacia la India, la China, y hacia el occidente con

27
comercial posteriormente se dá a partir do desinteresse na exploração
pelo Mar Mediterrâneo e da falta de forças para tal empreitada. Logo,
não se trata de uma escolha, e sim da única opção para ir ao oeste se-
guindo o Sol em busca de libertar-se da sufocadora geopolítica interna-
cional no mundo até esta época conhecido. Na busca, constituir-se-á o
propósito de suprir o mercado interno com produtos que eram necessá-
rios, mas o trajeto pelo Oceano Atlântico transforma-se paulatinamente
em rotas alternativas não só para o comércio, como também para a ex-
pansão dos domínios.
Trata-se de inverter o cerco e dar à luz o processo que se chama-
rá Modernidade, calcada no centralismo do “Ser Europeu”22. Entretan-
to, sem negar a influência filosófica do renascimento italiano em tempos
anteriores, propõe-se um salto de período, para destacar a relevância
que adquire o processo de unificação dos reinados de Castela e de Ara-
gão, com um intuito guerreiro e expansivo demasiado importante, con-
forme afirma E. Dussel ao tratar esse momento como a gestação ou o
período intrauterino da modernidade23.
Além disso, os processos de unificação na Península Ibérica,
mesmo depois dos descobrimentos na América, seguirão um contínuo
ato de consolidação, na medida em que, de acordo com o espanhol José

la Europa del sur. Sin embargo, aislada la Europa germano-latina por el mundo oto-
mano-musulmán (que llegaba desde el sur de España en Granada, y hasta las puertas
de Viena bajo la presión turca, después de la caída de Constantinopla en 1453), no po-
día expanderse por el ancho mundo. Los musulmanes llegaban desde el Marrueco de
los Almohavides, hasta Túnez, Egipto o el Irak; del califato mogol de Angra o Delhi,
a los reinos comerciales de Malaca y hasta la isla de Mindanao en Filipinas. Desde el
Atlántico al Pacífico era la única universalidad empírica en el siglo XV. Europa occi-
dental era sólo una cultura marginal y periférica”. DUSSEL, E. Op. cit., p. 30.
22
“Desde la experiencia de esta ‘centralidade’ conseguida con violencia, el eu-
ropeo comienza a considerarse como un ‘Yo’ constituyente. Es el nacimiento de la
historia de la subjetividad moderna, del ‘eurocentrismo’. La ‘centralidad’ europea en
la historia mundial es la determinación esencial de la modernidad”. Ibid., p. 30.
23
Ibid., p. 8

28
María Ots y Capedequí24, esta unificação da dinastia não irá pressupor
união nacional, pois ambos mantiveram seus ordenamentos jurídicos,
político e administrativos em separado. Apesar disso, não se descarta a
importância política do “acordo nupcial” para consolidação do proces-
so de Reconquista 25 dos territórios em mãos dos árabes e, posteriormen-
te, a conquista da América.
Atenta-se para este contexto que não somente os fatores econô-
micos, políticos e bélicos impõem à nascente nação espanhola lançar-se
ao mar em busca de solucionar a crise que atravessara sua despedida da
Idade Média. A questão religiosa, que já teve seu lugar destacado nes-
se processo, ganha outra dimensão quando o trono recém-formado e a
Igreja Católica unem esforços para enfrentar as novas leituras e inter-
pretações bíblicas que os clérigos protestantes realizam pela Europa. O
corrente conhecimento histórico que estas novas leituras despertam em
vários setores sociais, principalmente os emergentes na área econômica,
e as proporções que esse movimento começa a ganhar no momentâneo
âmbito geográfico reduzido no continente; alguns religiosos católicos
são levados a agregarem-se na empreitada marítima hispânica e por-

24
“Fueron los Reyes Católicos los primeros monarcas europeos que acertaron
a implantar el nuevo tipo de Estado característico de la Edad Moderna: el Estado-Na-
ción, frente a viejo Estado-Feudal e señorial y al Estado-Ciudad, de la Edad Media.
Con todo, el matrimonio de los Reyes Católicos sólo originó en España una unidad
dinástica, pero no una unidad nacional: Castilla y Aragón mantuvieron su propia
personalidad tanto en el orden político como en el jurídico en general”. OTS CAP-
DEQUÍ, J. M. Manual de Historia del Derecho Español en América y del Derecho
propiamente Indiano. Buenos Aires: Editorial Losada S.A., 1945, p. 73.
25
Já referido o significado da Reconquista, vale referir sua estrutura: “La Re-
conquista – como la empresa militar, europea y colonial, más tarde – dan posibilidad
de existencia, actividad y expansión numérica a una pequeña nobleza de menores
recursos. Esta cruzada peninsular interna imprime también su sello sobre la iglesia,
le permite ejercer el papel de dirección espiritual y encuadre ideológico de la sociedad
hispano-cristiana, le confiere un carácter militante y un alto sentido de su impor-
tancia y de su autoridad”. KAPLAN, Marcos. Formación del Estado Nacional en
América Latina. Buenos Aires: Amorrortu editores, 2001, p. 56.

29
tuguesa, pois setores eclesiásticos, por intermédio dos representantes
religiosos, tinham a finalidade de expandir os seus domínios e captar
novos fiéis. Junto às particularidades destacadas, cabe considerar as pre-
tensões religiosas na empresa da expansão ibérica, o fenômeno católico
tem suma importância no próprio “acordo nupcial” dos reis espanhóis e
no ideário de unidade política 26.
Unidas estas projeções, os reis católicos lançaram-se na empreitada
além-mar com a imediata justificativa em um sistema econômico que fun-
da toda a relação entre os reinados, os colonizadores, os colonos e os coloni-
zados, abrindo um espaço de extorsão mineral e acumulação sem registro
comparável na História Moderna, caracterizado como mercantilismo27.
Posto assim, o mercantilismo formado pela exploração direta
e beneficiadora da metrópole é o mecanismo econômico28 que possi-
bilitará aos reinados Ibéricos o contorno da crise financeira estrutural
da Europa. Isso implicou içá-la da sua condição de marginalidade no

26
“O casamento dos Reis Católicos, enfim, não deu bases efetivas para a fun-
dação da ideia de nacionalidade. […] Na ausência de um sentimento de nacionalida-
de, o lastro cultural da unificação foi preenchido pela religião católica. A importância
do catolicismo para a formação da ideia de nacionalidade remonta ao próprio pro-
cesso de expulsão do mouro infiel. Desde a Reconquista, a fonte maior de prestígio
e de legitimidade da monarquia provinha de seu patrocínio da ‘guerra santa’ contra
o muçulmano e a consequente expansão da cristandade. Para as pessoas comuns,
paulatinamente, a noção de súdito, até então fluida, se redimensionou e se confundiu
com a noção de cristão. […] A unidade religiosa, desta forma, legitimou e deu bases
efetivas para a unidade política”. FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização
da América Espanhola. São Paulo: Ática, 1992, p. 13.
27
O mercantilismo imperador no processo da colonização é assim definido: “Fa-
lar de colonialismo nada significa, a menos que se precise em que contexto econômico
este colonialismo se manifesta; ora, é preciso assinalar, na América espanhola, o caráter
essencialmente natural de sua economia”. RUGGIERO, Romano. Os Mecanismos da
conquista colonial: os conquistadores. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p. 46.
28
Sobre a estrutura econômica das expedições se pode consultar em: ZAVA-
LA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en la conquista de América. México: Porrúa,
1988, p. 113-123. p. 510-529.

30
sistema-mundo29 para afirmação financeira. Essa arquitetura econômi-
ca, que consolida a empresa marítima expansionista dos reis católicos,
é fundamentada na prática da extração direta de metais preciosos e de
acumulação lucrativa para a Coroa por meio da tributação dos seus
parceiros privados. A empreitada descobridora foi financiada em sig-
nificativa parcela por aportes de coletivos privados ou particularmente
por indivíduos, tendo em vista que os cofres reais, na época, se encon-
travam demasiadamente habitados pelo vento, que varria as economias
em disputas belicosas.
Sem alongar em demasiados detalhes, o que se trata de com-
preender são os fatores que permeiam o ato do descobrimento, a com-
posição daqueles acontecimentos que, encadeados na geografia europei,
representam os elementos formadores do ímpeto de lançar-se em expe-
dições marítimas. Sendo assim, foi sob os auspícios hermenêuticos da
Europa dominadora, nesse ato de constituir-se para conquistar o Outro,
que terá como procedimento para conduzir essa façanha à “assimilação”
produto da fórmula do “Ego conquiro”30, dando embasamento ao “Ser
Europeu”31. Explicitadas essas circunstâncias, a colonização na etapa se-
quencial consolida toda essa empresa, traduzindo-se em solução para os
problemas Ibéricos e dos seus pares.

29
Sobre essa terminologia, verificar o livro de Immanuel Wallerstein, prin-
cipalmente o capítulo 3. WALLERSTEIN, Immanuel. Análisis de sistemas-mundo:
una introducción. México: Siglo XXI, 2005, p. 64-86.
30
Cf. DUSSEL, E. Op. cit., p. 11-23.
31
Quadro cultural do Homem Europeu: “Em suma, o quadro cultural dos ho-
mens com quem os ameríndios se defrontaram é este: homens embebidos de valores
aristocráticos e hierárquicos que compartilhavam a mística superioridade do sangue
espanhol; portadores da única fé e, por isso mesmo, intolerantes com qualquer outra
manifestação religiosa que não fosse a católica; certos da legitimidade da guerra santa
contra o infiel, cuja vitória lhes dava o direito de se apropriarem de suas terras e de suas
riquezas; com a expectativa de fazer da América o meio mais rápido e eficaz para a
sua ascensão social, obtenção de prestígio e enriquecimento rápido”. FERREIRA, Jorge
Luiz. Conquista e Colonização da América Espanhola. São Paulo: Ática, 1992, p. 15.

31
Resumido este itinerário histórico, trata-se de evidenciar que:
[…] três fatores estão intimamente ligados na conquista
da América: os interesses da Coroa, como fator de poder,
tanto econômico como político; o fim do lucro e a riqueza
dos conquistadores, e a evangelização e o bom tratamen-
to dos indígenas. Toda a história de dominação da Espa-
nha na América está tecida por esses três fios32 .

Ou então, como esclarece Ferreira:


[…] Para o maior êxito do projeto de unificação, a monar-
quia católica necessitava do apoio político dos grupos se-
nhoriais e da Igreja. Configurou-se, assim, uma rede de in-
teresses comuns entre a monarquia, a nobreza fundiária e a
Igreja, que selaram uma aliança política sob a égide da fé33.

Com essas considerações, conta-se como estabelecida a conexão


com a geopolítica mundial do momento pré-invasão, a qual cumpre in-
troduzir ao estudo da problemática da conquista e da colonização da
América indígena e também se presta para antecipar alguns elementos
da próxima etapa, que demonstrará como se dá o desdobramento da
tríade especificada acima nas palavras de Jesús A. de la Torre Rangel.
O próximo passo trata de explorar as variáveis dominação e do-
mesticação, que desdobram o processo da conquista e da colonização
do Outro, concomitante à expansão e à afirmação do “ego conquiro”
europeu. Nas referências e reflexões seguintes, serão verificados os ecos
dentro da estrutura jurídica da empresa de colonização, os quais se fun-
damentarão em lógicas da filosofia política, da economia política, da
religiosidade, da cultura e das relações sociais dominadoras.

32
RANGEL, J. A. de la Torre. Direitos dos povos indígenas: da Nova Espanha
até a modernidade. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e Justiça na América
Indígena. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 220.
33
FERREIRA, Jorge Luiz. Op. cit., 1992, p. 13.

32
1.1.1. Conquista: dominação e domesticação

No prosseguimento do processo de expansão espanhola pelo Oce-


ano Atlântico, após o encontro com o Outro, dá-se o momento da con-
quista e da posterior ocupação do território, atos que se podem resumir em
dois momentos: a dominação, pela pacificação ou aplicação das “guerras
justas”, e a domesticação dos indígenas, segundo o modo de vida europeu,
que envolverá subsumir aos nativos em um âmbito totalizador nos quesi-
tos política, religião, economia, sociedade e cultura.
Para dominar os territórios recém-descobertos, um instrumento
de natureza jurídica fazia-se necessário: o chamado Requerimento, o qual
cumpria afirmar aos nativos, que advindos de outro espaço geográfico e
munidos de uma suposta superioridade civilizatória, imbuídos da “força
divina” e da “autorização soberana da majestade”, tomavam para si os ter-
ritórios alheios, bem como depunham os governos locais e as organizações
públicas dos povos invadidos.
Sendo assim, de acordo com Silvio Zavala34, após o desfecho fatí-
dico do Requerimento, em que a lógica do discurso jurídico da dominação
causava mais desconfortos que propriamente eficácia, veio a promulgação
das ordens do rei Fernando II, em que se troca o termo “conquista” por “pa-
cificação”35. Essa mudança retórica intentou reafirmar os ímpetos católicos
da empreitada evangelizadora, em que se traduzia na harmonização serena
do apostolado indiano com os índios, contudo, totalmente na contramão
dos objetivos em que investiam os setores privados, aos quais tampouco
lhes interessava outra coisa a não ser explorar essas gentes e suas riquezas.

34
ZAVALA, Silvio. La Filosofía política en la Conquista de América. Méxi-
co: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 37.
35
Pacificação, segundo as Ordenanças de Fernando II, 1573, se traduzia em:
“[…] traer de paz al gremio de la Santa Iglesia y a nuestra obediencia a todos los natu-
rales de la provincia y sus comarcas, por los mejores médios que [los expedicionários]
supieren y entendieren”. ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en la conquis-
ta de América. México: Porrúa, 1988, p. 132.

33
No entanto, juntamente a essa substituição no modo de anunciar
a conquista, seguiu-se certa institucionalização das liberdades indígenas,
prosseguida pela firme vigilância eclesiástica e pela política dos costumes
europeus, ou seja, era ordenado que os usos e costumes indígenas, inclusive
a própria liberdade e propriedade destes, fossem respeitados, com propó-
sito de assim manter uma relação mais amistosa com essas comunidades.
Entretanto, esses propósitos institucionais de pacificação emitiam nota fic-
tícia aos reais fatores que imperavam nas relações entre conquistadores e
conquistados, dando-se preferência para a legislação incrustada por uma
filosofia política com intentos evangelizadores, mas com uma prática ex-
ploradora desenfreada pela ganância36.
Essa orientação institucional37 serviu de base para as lutas dos
evangelizadores – com destaque para Antonio de Montesino, Bartolomé
de Las Casas, Vasco de Quiroga, Alonso de Veracruz, entre outros. Re-
presentando a disjunção no acordo político citado acima entre os difusos
interesses dos sujeitos envolvidos na empresa expedicionária. Propriamen-
te, Silvio Zavala reconhece esse desencontro quando afirma duas catego-
rias de sujeito no processo de ocupação a quem se dirigiam as disposições
jurídicas contraditórias com a realidade: “[…] la legislación se traducían
en preceptos especiales en las instrucciones de los conquistadores y pa-
cificadores; por este conducto las decisiones teóricas y las normas legales
influían en el modo de efectuar la ocupación”.38

36
“Estos propósitos se enfrentaron a las necesidades y a los apetitos del grupo
encargado de la actividad colonizadora. Surgió la lucha entre el derecho y la realidad,
entre la ley escrita y la práctica de las provincias. El indio podía ser libre dentro del
marco del pensamiento y de la ley de España, pero el goce de esa franquicia se vería
contrariado por obstáculos poderosos de orden social. Sin embargo, las ideas de li-
bertad y protección de los nativos formaron parte inseparable de ese complejo cuadro
histórico, como atributos de la conciencia española en América”. ZAVALA, Silvio.
Op. cit., p. 38.
37
Ibid., 1993, p. 39.
38
Ibid., p. 133.

34
Dessa maneira, seguindo a organização que realiza o pesquisa-
dor mexicano no tocante à pacificação, estabeleceu-se uma análise sob
três perspectivas: a finalidade religiosa, a anexação política com seus
desdobramentos jurídicos e, por fim, a guerra justa39. Revisando rapida-
mente a organização da ocupação, é perceptível que ela se desdobrava
na lógica citada com fins a dar conhecimento aos índios do justo título
que possuíam em mãos; os representantes da Coroa espanhola liam o
Requerimento, documento de cunho jurídico, que informava em idio-
ma castelhano do que se tratava aquela invasão. Ora, em resumo, o tex-
to informava dos poderes divinos que haviam investido ao papa e aos
reis católicos, requeria os bens materiais e imateriais dos povos locais,
os seus corpos e de familiares como força de trabalho e determinava
que deveriam estes sujeitos nativos render-se ao poder político da Co-
roa espanhola e ao poder religioso da Igreja Católica.
Como este documento não causava os efeitos que se esperava,
partiu-se para outras legislações que poderiam dar contornos jurídicos
aos atos invasivos. Nesse contexto foi que surgiram as referidas ordenan-
ças e outras legislações – Leis Novas, Recopilação de Leis de Índias, etc.
Assim posto, em torno da finalidade religiosa, a dimensão era
converter os indígenas ao reduto da fé em Cristo, promovendo progres-
sivo abandono das culturas religiosas autóctones, classificadas como
idolatrias40 e perseguidas de forma violenta – simbólica e física. Então,
tratava-se de afastá-los das crenças “pagãs” e de aproximá-los da reve-

39
ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en la conquista de América.
México: Porrúa, 1988, p.132-148.
40
“Aquilo que os espanhóis chamavam de idolatria não se limitava apenas
às práticas e crenças religiosas vigentes nas regiões conquistadas, mas ao conjunto
da cultura autóctone que não se coadunava com a doutrina cristã. Para os religiosos
europeus, os cultos nativos eram obra e manifestação do diabo que era necessário
destruir sem contemporização”. FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização
da América Espanhola. São Paulo: Ática, 1992, p. 76.

35
lação da “verdade”, Zavala recorda parte do texto da Recopilação da Lei
de Índias sobre esse intento:
El espirito católico del Estado español al confluir sobre
el tema de la pacificación, había ordenado: “los señores
reyes nuestros progenitores, desde el descubrimiento de
nuestras indias Occidentales, Islas y Tierra Firme del mar
Océano, ordenaron y mandaron a nuestros capitanes y
oficiales, descubridores, pobladores y otras cualesquier
personas, que en llegando a aquellas provincias procura-
sen luego dar a entender, por medio de los intérpretes, a
los indios y moradores, cómo los enviaron a enseñarles
buenas costumbres, apartados de vicios y comer carne
humana, instruirlos en nuestra santa fe católica y pre-
dicársela para su salvación y atraerlos a nuestro señorío,
porque fuesen tratados, favorecidos y defendidos como
los otros nuestros súbditos y vasallos, y que los clérigos
y religiosos les declarasen los misterios de nuestra san-
ta fe católica, lo cual se ha ejecutado con grande fruto y
aprovechamiento espiritual de los naturales. Es nuestra
voluntad que lo susodicho se guarde, cumpla y ejecute en
todas las reducciones que de aquí adelante se hicieren41.

Esse ato de impor a religiosidade europeia aos indígenas coa-


duna com o mencionado expansionismo católico fora do contexto de
disputa com o protestantismo da Reforma religiosa, pois se via a pos-
sibilidade de aumentar o número de devotos da Igreja Católica, a parte
de cumprir a missão de fé que havia encarregado o papa ao reis católi-
cos. Contudo, do ponto de vista da conquista, essa foi uma “arma” im-
portantíssima, pois a perseguição das chamadas idolatrias correspon-
deu ao ato político da pacificação: “[…] A imposição do catolicismo no
mundo conquistado pelos espanhóis não representou apenas um entre

41
ZAVALA, Silvio. Op. cit., p. 133.

36
outros aspectos da dominação colonial, mas foi poderoso instrumento
para sua viabilização”42.
O autor Jorge Luiz Ferreira reafirma essa conduta como instrumen-
to eficaz no processo da conquista, justamente por essa postura da Igreja
Católica que visava eliminar uma das bases de sustentação dos impérios do-
minados: as ditas campanhas de extirpar idolatrias, que se traduziam assim:
A repressão e a proibição de seus cultos, chamadas de
“campanhas de extirpação da idolatria”, e a evangeliza-
ção forçada produziram efeitos danosos na mentalida-
de aldeã. A imposição do cristianismo desencadeou um
processo de desagregação cultural, retirando deles o ins-
trumental cultural de leitura de sua realidade social, sem
oferecer, contudo, um outro que efetivasse uma possível
substituição43.

Logo, o que se está destacando é a postura tomada como proces-


so de evangelização que cumpriu essa função dominadora44, eficaz para
a tríade antes mencionada. Porém, não se pode olvidar a função prote-
tora aos indígenas que exerceram alguns setores da igreja na América,
ante o flanco da dominação – exploração escravagista e o ímpeto desen-
freado dos conquistadores. Vale advertir que, recordando as obras de
Jesús A. de la Torre Rangel45, as quais tratam a respeito do assunto, no

42
FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização da América Espanhola.
São Paulo: Ática, 1992, p. 73.
43
FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização da América Espanhola.
São Paulo: Ática, 1992, p. 74.
44
“No processo de conquista da América, a evangelização confundiu-se com
a própria dominação colonial. Tornou-se, na verdade, seu principal instrumento. A
repressão aos cultos tradicionais e a imposição da doutrina católica formando a cul-
tura nativa em crime, contribuíram para desestruturar a mentalidade e os padrões
culturais das populações nativas da América”. FERREIRA, Jorge Luiz. Op. cit., p. 80.
45
DE LA TORRE RANGEL, J. A. Alonso de Veracruz amparo dos indios. Su
teoría y práctica jurídica. Aguasclientes: UAA, 1998. DE LA TORRE RANGEL, J. A.

37
sentido de legar proteção, muitas leis e juízos foram caracterizados por
padres, dentre os quais alguns já foram citados acima. Contudo, esse fa-
tor não deve ser isolado e tampouco desvirtuar a totalidade encobridora
que cumpriu o fanatismo católico, gerando perseguição e aniquilação
das culturas religiosas autóctones, pois, apesar de o absurdo que possa
parecer, em nenhum momento até mesmos esses religiosos mais críticos
chegaram a pensar em desistir da empreitada evangelizadora.
Tendo em vista essa estrutura, é pertinente lembrar que a se-
gunda vertente da pacificação se constitui naquilo que Zavala denomi-
nou anexação política46, formalizada a partir de um embasamento no
Direito Medieval e que consta da atitude de vários conquistadores no
“ato de tomar posse”. Assim sendo, ocorreu desde Cristóvão Colombo,
Diego Velasquez, Hernán Cortes, Pizzarro, etc., juridicamente significa-
va tomar em nome do rei a propriedade daqueles territórios e surtia os
seguintes efeitos legais, nas palavras de Zavala:

Los efectos jurídicos de las tomas de posesión fueron


aceptados por la ley 14, título 12, libro IV de la Recopi-
lacion de Indias, precepto que condicionó todo el régi-
men de la propiedad de las colonias. El rey afirmaba que
pertenecían a su patrimonio y Corona Real todos los bal-
díos, suelos y tierras y sólo su concesión o confirmación
podían ser título legal del dominio inmobiliario en las
Indias. Las propiedades que no tuvieran este amparo ju-
rídico debían incorporarse al patrimonio Real47.

El uso alternativo del derecho en Bartolomé de Las Casas. San Luis de Potosí: Uni-
versidad Autónoma de San Luis de Potosí – Comisión Estatal de Derechos Humanos
– CENEJUS-CRT, 2007.
46
ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en la conquista de América.
México: Porrúa, 1988, p. 135.
47
Ibid., p. 137.

38
Esses efeitos eram frutos do conteúdo político dessa legislação,
que colocava inclusive os indígenas sob o domínio e a hierarquia do rei
espanhol na medida em que se oportunizava a esses subjugados uma es-
colha “voluntária”, de qualquer forma materializada no domínio fático
e na submissão política, na condição de súditos da Coroa. Esse tipo de
postura gera a imediata submissão à soberania da Espanha, pois “[…] la
idea fundamental de la proposición política, en 1518 como en 1573, era
que entre los índios reinaba um estado de fuerza y de agravios, que el
poder español reprimiria, imponiendo el orden y la justicia”48.
Nesse segundo impacto que anuncia a afirmação da estrutura
da conquista, busca arrebatar a autodeterminação e o autogoverno que
competia aos locais, desconsiderando toda a ordem da estrutura sócio-
-política que implicava sua sociedade, bem como hierarquizando-os de
maneira totalizadora dentro de um esquema alheio às suas vontades e à
sua livre manifestação destes. Ademais, adverte-se que o grau de liberda-
de dado aos indígenas por meio das legislações deveria responder a uma
ordem política de controle dos costumes pelos monarcas espanhóis e da
moral pelo poder eclesiástico; conformando um esquema para o qual as
opções eram dadas de antemão, sem margem para gerar qualquer tipo de
escapatória; assim nem mesmo as lutas jurídicas alternativas impressas
pelos apóstolos da causa indígena escapam dessa lógica. Traduz-se em
um ato de prolongamento do poder político espanhol até as Índias49.
Entretanto, vale salientar que a não adequação a qualquer dessas
linhas assinaladas acima “autorizava” o conquistador a radicalizar os

48
Ibid., p. 139.
49
“Los indios como vasallos, harían presentes y servicios al rey, y éste los
tomaría bajo su amparo y protección, haciéndoles mercedes. Era la relación política
interpretada conforme a la tradición medieval; el rey quedaba a modo de brazo am-
parador de la justicia y fuente del orden entre los nuevos vasallos indios, del mismo
modo que en Europa ejercía igual función en relación con sus súbdito naturales”.
Ibid., p. 139.

39
argumentos com o uso da violência. A denominada Guerra Justa, que
foi apaixonadamente defendida por Ginés de Sepúlveda no debate de
Villadolid com Bartolomé de Las Casas, trata-se de mais uma trampa
arquitetada pela filosofia política da conquista, pois principia sua fun-
damentação da culpabilidade dos indígenas e da inocência e clemência
dos invasores, os quais tiveram de suportar os tormentos de serem con-
vertidos à causa civilizadora.
Após o Requerimento ou, em alguns casos, antes mesmo, pres-
supondo a não aceitabilidade dos indígenas nas condições “propostas”,
partia-se para o conflito violento, apesar de que, em tese, deveria seguir-
-se o rito: “[…] Cuando los indios rechazaban la fe y se negaban a pres-
tar de paz la obediencia al rey, surgía la posibilidad teórica del empleo
de la guerra”50. Essa referida possibilidade teórica era regra prática dos
espanhóis que seguiam as recomendações da Coroa na Guerra Justa em-
pregada contra os indígenas. Nesse ato, nada consta de ilegalidade, pois
todos os atos que dominavam a cena da conquista, inclusive na etapa vio-
lenta, eram amparados por legislação específica e uma filosofia fundante.
Portanto, a síntese da relação se dá ao verificar que a brutalidade,
nessa etapa da conquista, deveria ser constituída supletivamente ao ato
preferencial da via pacífica – evangelização. Em termos teóricos, eram
essas as recomendações, porém, isso não quer dizer que a perversão se
constituiu na prática como primordial forma de contato, afinal o pró-
prio texto do Requerimento omite qualquer regulação no procedimento
de comunicação “com” os indígenas e também na comunicação “aos”
indígenas, e mesmo nos momentos em que se intentou este diálogo, de-
ve-se pressupor – e tão pronto confirma-se nos estudos consultados –,
que a negação a estas propostas também justificavam a guerra justa.
Logo, sem adentrar na perversidade da materialidade legislativa
que possibilita, ao menos no campo do Direito, uma isenção de culpa-

50
Ibid., p. 140.

40
bilidade dos conquistadores, bem como, na maneira em que se deu este
encontro, em que os contornos tomam outro rumo, vale salientar que
a doutrina que vigorava nesses termos fazia eco de apoio à ação, “[…]
conforme a la doctrina escolástica de la guerra, los requisitos esenciales
de ésta eran: autoridade legítima, causa justa, recta intención y forma
prudente de llevarla a cabo”51.
Esses aportes filosóficos, jurídicos e da doutrina eclesiástica da-
vam autoridade aos conquistadores, os quais, em posse do Requerimen-
to, obtinham a devida autorização Real para impor qualquer ato vio-
lento, contanto que objetivasse viabilizar a causa motivadora da Guerra
Justa e sagrada. Poderiam aplicar qualquer expediente brutal se, na
conduta do processo, fosse observada a intenção de proporcionar aos
naturais da região uma condução à civilidade. Assim se caracterizava
a encruzilhada dos espanhóis: legitimados a praticar sua concepção de
forma “prudente”, amparados na fundamentação filosófica e religiosa
do ato jurídico de conquistar pela palavra da fé ou pelo fio da espada,
tarefa para a qual cabe análise mais detalhada nas próximas linhas.

1.1.2. Formas de dominação


Tendo em vista o que foi anteriormente mencionado em torno
da questão da fundamentação filosófica, religiosa e jurídica, aborda-se
neste tópico a conquista, com destaque para a barbárie da postura es-
panhola e para os atos de atrocidades que compõem a denominada “le-
genda negra” da história. Esse tipo de postura faz com que alguns his-
toriadores e pensadores possam identificar a conquista como sinônimo
de guerra; entre estes Tzvetan Todorov, segundo o qual “[…] la guerra,
o más bien, como se decía entonces, la Conquista”52 está caracterizada

51
Ibid., p. 141.
52
TODOROV, Tzvetan. La conquista de América: el problema del otro. 2. ed.
México: Siglo XXI editores, 2010, p. 65.

41
pelos qualificativos “violência, injustiça e hipocrisia”53. A atitude rudi-
mentar e brutal dos conquistadores pode ser lida com base em alguns
caracteres que são constitutivos da forma na qual se materializou este
procedimento. Destes, simbolicamente, é marca indelével a “espada, a
cruz e a ganância”, o que gera para as populações indígenas um contexto
de aculturação, de desestruturação social/política e de evangelização54.
Assim sendo, urge explorar como é montada a arquitetura con-
quistadora para lograr dominação de forma tão eficaz e rápida, tendo
em vista que a hecatombe produzida junto aos povos originários é es-
pantosa pela quantidade e pela eficácia no agir do extermínio. Ao re-
montar essa estrutura, busca-se começar pelas origens fáticas da vio-
lência declarada, que se pode encontrar na disjunção dos princípios que
motivam os interesses na empresa da conquista enquanto dominação,
segundo Héctor Bruit: “[…] a problemática americana desenvolveu-se
estreitamente atrelada ao confronto de dois princípios que marcaram
o processo de dominação das Índias: o princípio do Estado legalista e
burocrático contra o princípio do senhorio patrimonial, derivado do ca-
ráter privado da conquista”55.
Esses princípios se desdobram em maior ingerência, regulamen-
tação, instruções e ordenanças da Coroa; logo surge uma seara de do-
cumentos de caráter público, tendo como destinatário direto o conquis-
tador. Isso pode verificar-se em significativas cargas de repartição das
riquezas conquistadas, em que aos conquistadores resta nada mais que
partir forçosamente em busca de mais e mais fontes de riquezas, levando
ao contexto da reação em cadeia da opressão, pois, se no topo da hierar-

53
RUGGIERO, Romano. Os Mecanismos da conquista colonial: os conquis-
tadores. São Paulo: Editorial Perspectiva S.A., 1973, p. 12.
54
Ibid., p. 12-24.
55
BRUIT, Hector. Bartolome de Las Casas e a simulação dos vencidos: en-
saio sobre a conquista hispânica da América. Campinas: Ed. da UNICAMP; São Pau-
lo (SP): Iluminuras, 1995, p. 22.

42
quia do domínio, o rei investe contra os conquistadores para a obtenção
de significativa parcela daquilo encontrado ou extraído, do outro lado, os
conquistadores investem sobre os indígenas na usurpação e na acumula-
ção sem precedentes. Essa relação entre as partes vai redundar na estru-
tura que gera o chamado “Pacto colonial”56.
Se um dos motivos fundadores que permearam a estupidez ga-
nanciosa dos conquistadores foi a disjunção dos princípios que nortea-
vam a empreitada, o pacto econômico assegurava melhor organização
da empresa de exploração e ao menos resolvia o problema internamente,
diga-se em dois terços da relação na tríade conquistadora: Estado, Igreja
e interesses privados. Em termos concretos, os desdobramentos do pac-
to colonial se traduzem na fórmula de escoamento ideal para suprir a
Coroa castelhana. Segundo Marcos Kaplan, o esquema de produção era
determinado da seguinte maneira:
[…] único o predominante fin de la explotación, con des-
tino a la metrópoli, para satisfacer la voracidad fiscal de
la Corona, para el consumo suntuario de los grupos de
poder […]. Para mejor aprovechamiento de las posibili-
dades americanas en su propio favor y en el de los grupos
que expresa o patrocina, la Corona impone un rígido sis-
tema de monopolio mercantil, bajo estricta fiscalización
del gobierno. […] El comercio colonial entre cada colonia

56
“La economía de las colonias hispanoamericanas es organizada en forma ra-
dial y centrífuga, con cabeza y eje en España, herméticamente cerrada contra todo ele-
mento externo, y destinada a funcionar hacia la metrópoli, para sus necesidades y en
su exclusivo provecho. Los objetivos motivadores básicos al respecto son: la provisión
de materias primas baratas y de metales preciosos; el consumo de productos enviados
desde (o a través de) la metrópoli; la generación y transferencia de un cuantioso exce-
dente económico; el logro de una balanza comercial favorable. La economía colonial
puede desarrollarse solo en la medida de las necesidades e intereses de tipo comercial,
financiero y fiscal de la metrópoli, o, por el contrario, en infracción directa de las nor-
mas tutelares impuestas por y para aquella”. KAPLAN, Marcos. Formación del Estado
Nacional en América Latina. Buenos Aires: Amorrortu editores, 2001, p. 70.

43
y España sólo puede fluir así, teóricamente, por puertos
privilegiados en ambos extremos, bajo impulso y control
de los grupos metropolitanos beneficiados por el monopo-
lio, y con exclusión de los grupos locales de América y de
terceros países. Prohibiciones estrictas y severas sanciones
fulminan todo tráfico o contacto entre las colonias, y en-
tre estas y el extranjero, y todo proceso productivo autó-
nomo que pueda competir con empresas y actividades de
la metrópoli, especialmente las manufactureras57.

Entretanto, se a disjunção política dos princípios entre os es-


panhóis ficou resolvida – ao menos minimizada – através do pacto
econômico, o que teriam a ver com isto tudo os indígenas? De pronto,
nem faziam parte da tríade conquistadora, porém, estavam envolvidos
involuntariamente no processo no polo das vítimas. Ora, retomando
a questão das formas da conquista com os caracteres já mencionados,
cabe referir que três categorias são importantes para se levar adiante a
compreensão do processo de conquista/dominação e entender o papel
indígena nesta conformação mencionada, que seriam o eurocentrismo,
a intolerância e a violência, para as quais se dedica especial atenção.
A denominação eurocentrismo58 comporta o momento em que
os reinos católicos de Isabel de Castela e Fernando de Aragão extrapo-
lam o cerco muçulmano-chino-otomano e abrem perspectivas de ex-

57
Ibid., p. 71.
58
“Se se entende que a ‘Modernidade’ da Europa será a operação das possibi-
lidades que se abrem por sua centralidade na História Mundial, e a constituição de
todas as outras culturas como sua periferia, poder-se-á compreender que, ainda que
toda cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode
pretender identificar-se com a ‘universalidade-mundialidade’. O ‘eurocentrismo’ da
Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade abstrata com a mun-
dialidade concreta hegemonizada pela Europa como centro”. DUSSEL, E. Europa,
modernidade e eurocentrismo. Edgardo Lander (org). A colonialidade do saber: eu-
rocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires, Argentina: Colección Sur Sur, CLACSO, 2005b, p. 28.

44
ploração além-mundo. Desse modo, o nascimento do eurocentrismo
é o momento em que o continente deixa de ser periferia do sistema-
-mundo e alça-se na condição de centro geopolítico na história, cuja
válvula propulsora será a América Latina. Os chamados descobrimen-
tos possibilitaram à Europa contornar suas crises, resolvendo significa-
tivamente os problemas principalmente de ordem econômica. Somada
ao espírito dominador, a vantagem militar dos europeus possibilitou
não só afirmar os seus domínios na América indígena, como também
expandir, alastrando-se sobre África e Ásia.
Essa ingerência toda e seus desdobramentos se fizeram possíveis
graças ao arquétipo indo-europeu de dominação e não-alteridade, pre-
sente não somente na consciência dos povos Ibéricos, como também na
dos europeus em geral. Ao se esmiuçar o eurocentrismo, basicamente
constitui-se uma visão geopolítica do mundo, na qual se transforma o
‘Ser’ do ‘Outro’ em um ‘Ser’ de ‘Si-mesmo’.
Dessa maneira, ser europeu é não considerar a existência do outro
ser da América. Trata-se da autoafirmação do ego dominador ou “ego
conquiro”59, sujeito que não verifica no personagem indígena uma outri-
dade; o que transparece na subjetividade do espanhol é a visão do outro
tendo a si como parâmetro e, em razão disso, julga-o e interpreta-o do seu
âmbito hermenêutico próprio – experiência e estrutura cultural europeia.
Desses aspectos derivam as teorias civilizatórias, bem como a
cegueira hermenêutica de Hernán Cortés e seus correligionários quan-
do se encantam com a cidade dos Astecas, comparam sua arquitetura,
inclusive afirmando que as de Sevilha seriam melhores; admiram a or-
ganização política e tributária, chegam a fazer uso dela depois, porém
de forma alguma isso evita que sejam destroçadas, pelo fio das espadas,
as gentes, as instituições e a cultura desses povos originários. Eis então
a materialização do eurocentrismo.

59
DUSSEL, E. Filosofía de la liberación. México: FCE, 2011, p. 19.

45
A consolidação do que se denomina eurocentrismo se dá quan-
do, concomitante à invenção da América, surge como verdade mundial
a perspectiva do universalismo60. Esta nada mais é que o ato de tornar
hábitos, estruturas linguísticas, instituições, cultura e religião em padrão
para o julgamento do que seja a civilização ou a barbárie em nível mun-
dial. O particularismo dos arquétipos que conformam o “Ser” europeu é
elevado ao grau de “selo civilizatório”, expansão ideológica que confor-
ma uma postura de domínio monocultural, intolerante e opressor.
Essa afirmação, por dizer geoepistêmica e geopolítica do euro-
centrismo, é atomizada por sua postura ante os povos indígenas na ma-
neira intolerante de compreender sua expressão de vida. Darcy Ribeiro
recorda que, para os Ibéricos, os indígenas, em sua condição de perfei-
ção física, possuíam “[…] um defeito capital: eram vadios, vivendo uma
vida inútil e sem prestação. Que produziam? Nada. Viviam suas fúteis
vidas fartas, como se neste mundo só lhes coubesse viver”61. O choque
cultural permite imaginar qual foi a interpretação indígena, e também
indica um pouco a impressão que tiveram os conquistadores; porém,
deve-se considerar a leitura tendenciosa de um explorador alvejando a
possibilidade de dispor daqueles corpos para o trabalho. Ademais essa
interpretação, se faz presente na profunda diferença do modo de vida
em que se encontram europeus em relação ao do índio. Para este “[…] a
vida era tranquila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa
sociedade solidária […]”62, ao passo que para aquele:
[…] a vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que a
todos condenava ao trabalho e subordinavam ao lucro.

60
RUGGIERO, Romano. Mecanismos da conquista colonial: os conquista-
dores. São Paulo: Editorial Perspectiva S.A., 1973, p. 98. Ou WALLERSTEIN, Imma-
nuel. Universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007.
61
RIBEIRO, Darcy. Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São
Paulo: Companhia da Letras, 2006, p. 41, grifo nosso.
62
Ibid., p. 42.

46
Envoltos em panos, calçados de botas e enchapelados, pu-
nham nessas peças de luxo sua vaidade, apesar de mais das
vezes as exibirem sujas e molambentas, do que pulcras e
belas, […] eles se achavam e se sentiam a flor da criação63.

Enfim, os índios eram vistos como irracionais, inferiores, infan-


tis, isto é, como seres que não dispunham de aspectos civilizatórios, mas
de uma forte capacidade para exploração. Conforme a percepção acima
mencionada, a religião dos povos locais era tida como algo demoníaco,
suas instituições em nada tinham a ver com as medievais espanholas
ou portuguesas, havia a necessidade de civilizar esses povos e dar-lhes
oportunidade de conhecer a verdadeira fé, organizar-se nos modelos
políticos e sociais sob o poder da realeza soberana e também conhecer
um sistema econômico “dadivoso” e ter relações culturais requintadas
e de “bom gosto”. Com esse objetivo de conduzir os indígenas no cami-
nho da “verdade”, da “razão” e da “civilização”, pelo Requerimento eram
oferecidas duas opções civilizatórias de afirmação eurocêntrica: a) caso
aceitassem a dominação, os espanhóis não teriam direito de transfor-
má-los em escravos; b) caso se rebelassem, seriam severamente punidos;
tudo isso validado nos justos títulos64 que a Coroa Ibérica possuía.
Sendo assim, a respeito das duas opções, cabe mencionar a ar-
gumentação que levantou, como contestação, o príncipe inca Atahualpa
– chefe de uma facção Inca que disputava o poder – perante a exposição
do Padre Valverde, capelão da expedição de Pizarro, sobre a “essência
do Cristianismo”:
Além disto me disse vosso falante que me propondes cin-
co varões assinalados que devo conhecer. O primeiro é o
Deus, Três e Um, que são quatro a quem chamais Criador
do Universo, porventura é o mesmo que nós chamamos

63
Ibid., p. 43.
64
Sobres os justos títulos, ver ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en
la conquista de América. México: Porrúa, 1988, p. 22-29.

47
Pachacamac e Viracocha? O segundo é o que diz que é Pai
de todos os outros homens, em quem todos eles amonto-
aram seus pecados. Ao terceiro chamais Jesus Cristo, só
ele que não colocou seus pecados naquele primeiro ho-
mem, mas que foi morto. Ao quarto dais o nome de papa.
O quinto é Carlos a quem, sem levar os outros em conta,
chamais poderosíssimo e monarca do universo e supremo
de todos. Mas, se este Carlos é príncipe e senhor de todo
o mundo, que necessidade tinha de que o Papa lhe fizesse
novas concessão e doação para me fazer guerra e usur-
par estes reinos? E, se o tinha, logo, o Papa é mais Senhor,
e não ele, e mais poderoso e príncipe de todo o mundo?
Também me admiro que digais que estou obrigado a pagar
tributo a Carlos e não aos outros, porque não dais nenhu-
ma razão para o tributo, nem eu me acho obrigado a dá-lo
de maneira nenhuma. Porque se por Direito houvesse de
dar tributo e serviço, parece-me que se deveria dar àquele
Deus e àquele homem que foi Pai de todos os homens, e
àquele Jesus Cristo que nunca amontoou seus pecados, fi-
nalmente se havia de dá-los ao Papa […]. Mas se dizeis que
a este não devo dar, menos devo dar a Carlos que nunca foi
senhor destas regiões nem o tenho visto65.

O próprio procedimento do documento por si alude à postura


extremamente violenta, no sentido de que as opções em realidade são
imposições, pois se aceitam os termos de maneira irrestrita e sob algu-
ma forma de subjugação; ou então, em caso de rebelião, como foi com
o representante Inca, também é dado o mesmo destino. De qualquer
forma, a ação violenta não oferece escolha.

65
DUSSEL apud SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da Amé-
rica aos sistemas penais de hoje: o discurso da “inferioridade” latino-americana. In:
WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de história do Direito. 4 ed. Ampl. e
Revisada. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2009, p. 285.

48
Novamente, resta a inquietude quanto à origem desse ímpeto
violento dos conquistadores, apesar de já ter-se mencionado anterior-
mente que uma das questões se dá pela disjuntiva dos princípios na
empresa da conquista; esta resolve a indagação no âmbito do processo,
mas nada ajuda a entender a manutenção da violência na prática do-
minadora, a não ser compreendê-la como instrumento de efetividade
do eurocentrismo. Dessa maneira, para o pesquisador italiano Romano
Ruggiero, a construção do ideário da violência ibérica é dada pelo pro-
longamento que se fez do contexto de reconquista naquele território66.
Justificada ou não a postura violenta dos conquistadores como
instrumento do eurocentrismo, o que assombra não são as artimanhas
utilizadas para formalizar, legalizar e legitimar, mas o resultado das
análises quantitativas da violência. O censo ocupa cifras altíssimas, por
exemplo, no “[…] México, às vésperas da conquista, a população era de
aproximadamente 25 milhões; em 1600, de apenas um milhão. ‘Nenhum
dos grandes massacres do séc. XX’ pode comparar-se a esta hecatombe”67.

66
“A violência instaurada com a chegada dos conquistadores espanhóis não foi
um processo exclusivamente americano mas, sim, uma continuidade da Reconquista da
península Ibérica, agora em novo ambiente. Na luta pela expulsão do mouro de seus terri-
tórios, os costumes criados com as sucessivas vitórias e o Direito feudal espanhol estabe-
leceram uma série de práticas e valores sociais que deram origem a uma cultura conquis-
tadora entre os cavaleiros espanhóis. Assim, a conquista militar dos territórios mouros
significava não apenas a expansão da fé cristã, mas também a concessão de privilégios
econômicos aos vitoriosos. As derrotas impostas ao infiel modelaram, paulatinamente, o
mito da superioridade do sangue espanhol frente ao muçulmano e a qualquer outro povo.
Finalmente acrescentou-se à cultura conquistadora cavalheiresca o ideário ‘guerra santa’:
lutar contra o mouro infiel era, ao mesmo tempo, uma luta pela glória de Deus, não admi-
tindo contemplação. Se portadores da única e verdadeira fé, não poderiam ser tolerantes
com qualquer outra religião que não a católica”. FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e
Colonização da América Espanhola. São Paulo: Ática, 1992, p. 92.
67
TODOROV apud SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da
América aos sistemas penais de hoje: o discurso da “inferioridade” latino-americana. In:
WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de história do Direito. 4 ed. Ampl. e Revi-
sada. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2009, p. 279.

49
Os dados, ainda que sejam diminuídos drasticamente, não afastam o
conhecimento do massacre em Tenochtitlán, capital do império Asteca,
relatado em diversas obras dos conquistadores68, ação que espanta pela
proporção e os seus efeitos devastadores.
Compreendendo essa atitude como forma de extermínio, vale ex-
plorar posicionamentos como o de Tzvetan Todorov, que analisou sob três
ângulos esse fenômeno: assassinato direto – na guerra justa –, maus tratos
– nas relações de trabalho – e enfermidades – pelo contato com doenças
típicas da Europa medieval69. A já referida Guerra Justa, Santa ou de Domi-
nação foi a forma pela qual a dominação teve maior eficácia; esta tipologia
ministrada no assassinato direto é a que comporta maior grau de frieza e
de desumanidade na não verificação do Outro na condição de humano. A
brutalidade dos atos, narrados principalmente pelos clérigos que acompa-
nhavam as expedições, distorce qualquer tentativa de justificação para a
violência, sejam jurídicas, ideológicas, religiosas, culturais ou históricas.
Nesse sentido, vale recordar o defensor dos indígenas, Frei Bar-
tolomé de Las Casas, que menciona:
Aqueles que foram de Espanha para esses países (e se tem
na conta de cristãos) usaram de duas maneiras gerais e
principais para extirpar da face da terra aquelas míseras
nações. Uma foi a guerra injusta, cruel, tirânica e san-
grenta. Outra foi matar todos aqueles que podiam ainda
respirar ou suspirar e pensar em recobrar a liberdade ou
subtrair-se aos tormentos que suportam como fazem to-
dos os Senhores naturais e os homens valorosos e fortes;

68
Ver as obras: CORTEZ, Hernan. A conquista do México. Porto Alegre:
L&PM, 2001. CASTILLO, Bernal Díaz del. Historia verdadera de la conquista de la
Nueva España. Prólogo con reseña crítica de la obra, vida y obra del autor, y marco
histórico. Editores mexicanos unidos: México, 2013. TAPIA, Andrés. Relación de la
conquista de México. Axial entre manos: México, 2008.
69
Estas formas encontram-se classificadas em TODOROV, Tzvetan. La con-
quista de América: el problema del Otro. 2. ed. México: Siglo XXI editores, 2010, p. 163.

50
pois comumente na guerra não deixam viver senão crian-
ças e as mulheres: e depois oprimem-nos com a mais hor-
rível e áspera servidão a que jamais se tenham submetido
homens ou animais. A essas duas espécies de tirania sim-
bólica podem ser reduzidas e levadas, como subalternas
do mesmo gênero, todas as outras inumeráveis e infinitas
maneiras que se adotam para extirpar essas gentes70.

A configuração da dominação pela guerra não encontra nos atos,


como esses narrados pelo padre, nenhuma justificativa, pois, na maio-
ria das vezes em que descreve os assassinatos, Bartolomé de Las Casas
menciona que as populações não estavam em posição de guerra, ou seja,
traduzia em puro massacre a produção de infindável tormento e ímpeto
destrutivo. O terror causado pelos espanhóis, tanto contra os domínios
Astecas quanto aos povos Incas, apesar de ter servido como procedimen-
to para consolidar a dominação, em muitos casos teria sido desnecessá-
rio, ou mesmo, de certa forma, causou prejuízo à empresa conquistadora,
dificultando mais os intentos espanhóis, como no exemplo da chamada
Matança de Alvarado, narrada por Miguel León-Portilla71.
Esse ato foi realizado sem autorização de Hernán Cortés e im-
petrado por seus subordinados, não havendo explicação alguma dentro
da lógica da dominação. Ao causar terror aos Astecas que pacificamente

70
LAS CASAS. Bartolomé. O paraíso destruído: a sangrenta história da con-
quista da América. Editora L&PM, 2001, p. 11.
71
“Vêm a fechar as saídas, as passagens, as entradas: a entrada da Águia, no
palácio menor; o de Acatl iyacapan (Punta de la Caña), a de Tezcacoac (Serpente de
espelhos). E logo que fecharam em todas elas se fixaram: já ninguém podia sair. Dis-
postas assim as coisas, imediatamente entram no Pátio Sagrado para matar a gente.
Vão a pé, levam seus escudos de madeira, e alguns levam os de metal e suas espadas.
Imediatamente cercam os que dançam, se lançam ao lugar dos atabaques: deram um
talho no que estava tocando: lhe cortaram ambos os braços. Logo o decapitaram:
longe caiu sua cabeça cortada. A todos esfaqueiam, lanceiam a gente e lhes dão talhos,
com as espadas os ferem. A alguns lhes sometem por detrás; imediatamente caem
por terra dispersas suas entranhas. A outros lhes dilaceram a cabeça: lhes cortaram a

51
ofereciam uma festa aos Espanhóis como simbologia de paz, evidenciou
a natureza brutal desses que, até então, levantavam dúvidas entre os
indígenas no tocante ao mito de que seriam divindades. Esse episódio
acabou gerando revolta entre os nativos e redundou na retirada dos es-
panhóis da cidade de Tenochtitlán, em cenário que ficou marcado pela
calamitosa “Noche Triste”.
Apesar de intentar compreender a natureza devastadora das vi-
das que se encontravam no âmago dos conquistadores, não se deve dei-
xar de reconhecer que o resultado foi a submissão ao terror que causa-
ram. Em muitos casos, não somente nos espaços Astecas, mas também
nos domínios Incas e Maias, espalhavam-se relatos a respeito da capa-
cidade feroz de destruição dos espanhóis; em algumas circunstâncias, a
simples menção dos feitos do invasor servia para desarmar de imediato
qualquer resistência indígena.
Em seus registros, Frei Bartolomé de Las Casas relata que aqueles
indígenas sobreviventes dos genocídios acabavam imolados no regime de
trabalho imposto pelo conquistador. O fruto desse trabalho era utilizado
como forma de saldar os esforços da expedição militar, juntamente às dí-
vidas adquiridas para realização da empreitada; um outro ponto a se acres-
centar é que, somada a tudo isso, existia a ganância tributária da Coroa.
Logo, entre os remanescentes indígenas, surge o regime de escravidão.
Para o autor José Luiz Ferreira: “[…] A brutal queda demográfica
não foi causada apenas pelas guerras de conquista e assassinatos diretos,
foi também devida em grande parte aos maus-tratos nos trabalhos for-

cabeça, ficou inteiramente em pedacinhos a sua cabeça. Mas a outros lhes deram ta-
lhos nos ombros: desmembrados, desgarrados ficaram seus corpos. Àqueles os ferem
nas coxas, a estes nas pantorrilhas, e aos demais pleno abdômen. Todas as entranhas
caíram por terra, e havia alguns que ainda em vão corriam: iam arrastando os intes-
tinos e pareciam enredar os pés neles. Ansioso para se porem a salvo, não achavam
para onde dirigir-se”. LEÓN PORTILLA, Miguel. A visão dos vencidos: a tragédia da
conquista narrada pelos astecas. Porto Alegre: L&PM história, 1985, p. 86.

52
çados na mineração”72. Como a extração de metais preciosos que eram
encontrados em abundância pelas terras ameríndias sanava satisfato-
riamente o deficit Ibérico desses materiais, a exploração mineira não
tardou em fazer mais vítimas em suas galerias e fora delas.
A dominação causada pela forma exploratória do trabalho es-
cravo indígena se conformava em jornadas e em relações extremamente
degradantes, as quais, posteriormente, foram “legalizadas” como re-
gime assalariado e de livre contrato com os indígenas que possuíam
“liberdade” para isso. A estupidez perpetrada pela Coroa Espanhola e
depois pela Coroa Portuguesa é digna de rechaço histórico, e confir-
ma a natureza abstrata de qualquer sistema jurídico na época. No caso
em análise, a exploração mineira com trabalho indígena conduziu ao
segundo momento de sujeição e de apropriação dos seus corpos para
satisfação da empresa de conquista.
Essa forma de extermínio indireta, de acordo com Héctor Bruit,
em reflexão aos estudos de Bartolomé de Las Casas, afirma três princi-
pais causas para a diminuição da população indígena. Segundo aquele
autor, a separação do casal no trabalho escravo afastava qualquer pos-
sibilidade de relação sexual reprodutiva, logo, o excesso da jornada de
trabalho impossibilitava a amamentação dos filhos pequenos e, por fim,
frente ao cenário trágico dos adultos, o aborto e o infanticídio visava a
evitar que as futuras gerações tivessem a mesma “sorte”73.
Essas denúncias de Las Casas, recordadas por Bruit, elevaram
o primeiro à condição de “Apóstolo dos índios”. Por isso, Las Casas foi
abominado por muitos partidários das teses que minorizavam os efeitos
da devastação. Na descrição do padre:
Matava de trabalho a uma infinidade de índios que obri-
gava a fazer navios, que depois conduzia do mar do Norte

72
FERREIRA, Jorge Luiz. Op. cit., p. 44.
73
BRUIT, Hector. Op. cit., p. 48.

53
ao mar do Sul, que são cento e trinta léguas, carregando-os
com âncoras que pesavam três ou quatro quintais. Trans-
portava desse modo também muita artilharia que carrega-
va sobre os ombros dessa pobre gente nua; vi muito desses
índios desfalecerem pelo caminho em virtude dos grandes
e pesados fardos que arrastavam. Ele desfazia as famílias
tirando aos homens suas mulheres e filhas a fim de dá-las
aos marinheiros e soldados para contentá-los; estes as le-
vavam em seus exércitos. Enchia os navios de índios e ali
morriam eles de sede e de fome. Por certo, se eu tivesse que
narrar as particularidades de todas essas atrocidades, faria
um grande livro, que espantaria todo mundo74.

Os conquistadores não tinham pudor em oprimir ou gastar gente75


no processo de extração mineira. Movidos pelos elementos já menciona-
dos e com a inescrupulosa ideologia de dominação, auferiam tratos degra-
dantes à própria condição humana dos seres que dominavam. Esses dois
elementos – terror e exploração do trabalho –, configurados na esfera de
domínio imposto pelos conquistadores, explicam em parte a instrumenta-
lização do eurocentrismo como ideologia universal, pois a aniquilação do
Outro dá centralidade a uma tipologia de vida, de cultura e de relação de
trabalho que conta com esses atos como fundadores e estruturais.
Explicar o eurocentrismo e seus estereótipos nada mais é que con-
tar a história da conquista da América, África e Ásia pelo modelo da ma-
terialização das primeiras ideologias dominantes na totalidade moderna.
Esses desígnios da eliminação do Outro, e depois a sua constituição como
objeto de exploração, estão na essência da postura eurocêntrica.
Por fim, com intuito de encerrar esta etapa do trabalho, cabe
recordar a polêmica que envolve uma possível “guerra bacteriológica”.

74
LAS CASAS. Bartolomé. O paraíso destruído: a sangrenta história da con-
quista da América. Editora L&PM, 2001, p. 67.
75
RIBEIRO, Darcy. Op. cit., p. 95.

54
É o que se pode classificar, segundo Tzvetan Todorov, como terceiro
elemento do processo de extermínio, catalogado na desolação por enfer-
midades causadas pela transmissão de bactérias ou vírus importados do
contingente europeu, para os quais os nativos da América não tinham
imunidade. Discutindo uma possível ação involuntária, afirma o autor:
Sea o no admisible esta explicación en el plano médico,
hay una cosa segura, y que es más importante para el aná-
lisis de las representaciones ideológicas que trato de hacer
aquí. Los conquistadores sí ven las epidemias como una
de sus armas: no conocen los secretos de la guerra bacte-
riológica, pero, si pudieron hacerlo, no dejarían de utilizar
las enfermedades con plena conciencia de ello; también es
lícito imaginar que las más de las veces no hicieron nada
para impedir la propagación de las epidemias. El que los
indios mueran como moscas es prueba de que Dios está
del lado de los que conquistan. Quizás los españoles preju-
zgaban un poco respecto a la benevolencia divina frente a
ellos; pero, en su concepción, el asunto era indiscutible76 .

Para complementar esse relato, faz-se mister uma referência do


autor Miguel León-Portilla, no tocante ao efeito causado pelas pestes
que traziam os espanhóis:
Quando se foram os espanhóis do México e ainda não se
preparavam os espanhóis contra nós, primeiro se difundiu
entre nós uma grande peste, uma enfermidade geral. Come-
çou em Tepeílhuitl. Sobre nós se estendeu: grande destrui-
dora de gente. Alguns bem os cobriu, por todas partes (de
seu corpo) se estendeu. Na cara, na cabeça, no peito, etc77.

76
TODOROV, Tzvetan. La conquista de América: el problema del Otro. 2. ed.
México: Siglo XXI editores, 2010, p. 165-166.
77
LEÓN POTILLA, Miguel. A visão dos vencidos: a tragédia da conquista
narrada pelos astecas. Porto Alegre: L&PM história, 1985, p. 99.

55
Proposital ou não, estas doenças alheias à imunidade dos indí-
genas constituíram outra forma de extermínio78, que redundou em um
processo de domínio sobre esses povos. Particularmente nesse estudo, se
configura a postura de acreditar que, dentro do âmago violento, opressor
e destrutivo dos conquistadores, utilizar-se da estratégia de espalhar uma
doença ou mesmo não fazer questão de controlar seus efeitos, por si pode
ensejar a conclusão de que causar a infestação de uma epidemia constitui-
-se uma arma demasiadamente eficaz para subjugar esses povos.
Dessa forma, para o eurocentrismo, não existe horizonte racio-
nal fora do campo de domínio e de exclusão na sua racionalidade; a
violência e o extermínio são o cumprimento do ego conquiro, manifes-
tação da sua potencialidade de produzir a aniquilação. Para o “Ser do-
minador”, o âmbito destrutivo é necessário como forma de apoderar-se,
limpar o terreno para construção das suas “verdades” como verdades
únicas, mundializadas e aceitas como história oficial. Isso implica invi-
sibilizar o outro, torná-lo ausente da sua própria história, enfim, um ato
de colonialidade do ser79.
Diante do exposto, pode-se então concluir que o processo de
conquista-dominação, apesar dos fundamentos dados pela filosofia da
guerra justa e ser legalizado nos instrumentos jurídicos da época, foi
apenas o momento da busca por consolidar a ocupação do território.

78
Apenas vale relatar que, no âmbito da queda demográfica causada pelas
formas de extermínio, os desdobramentos indiretos destas também devem ser recor-
dados, conforme evidencia o autor Héctor Bruit: “A destruição, o genocídio, as epide-
mias, a dissolução da família, a queda da fecundidade, o trabalho forçado, enfim, as
humilhações explicam o desastre demográfico. Mas também é necessário acrescentar
os suicídios individuais e coletivos, que, se não foram uma causa decisiva, explicitam
o afundamento psicológico do trauma”. BRUIT, Hector. Bartolome de Las Casas e a
simulação dos vencidos: ensaio sobre a conquista hispânica da América. Campinas:
Ed. da UNICAMP; São Paulo (SP): Iluminuras, 1995, p. 50.
79
Sobre colonialidade do ser ver:

56
Tão logo superado esse ato e confirmada a dominação quando do assen-
tamento dos expedicionários espanhóis e portugueses na América, cabe
considerar que os três elementos propostos por Tzvetan Todorov foram
instrumentos que materializaram esses objetivos.
Finalmente, estabelecida a capacidade ibérica de destruir e de
construir a partir da exploração restante, o potencial dominador dos
povos europeus passou da empresa conquistadora para outra dimensão,
calcada na afirmação dos domínios e no processo de consolidar a colo-
nização pela domesticação, tema da seguinte etapa.

1.1.3. Objetivos da domesticação


A lógica da conquista baixou os índices demográficos e de ocu-
pação territorial pelos autóctones, contrastada com a invasão massiva
dos expedicionários em busca das riquezas no continente, fato que pra-
ticamente vai eliminando povoados inteiros, gerando problemas de de-
sagregação e interferindo violentamente no modo de organização das
sociedades indígenas80. Posterior a essa fase dá-se início ao processo de
colonização, de assentamento no território ocupado e de instauração
dos modelos de exploração já aparelhados no modelo econômico do
pacto colonial. A essa fase pode-se chamar de período de domesticação
dos indígenas, atravessado pelo conflito entre alguns setores da igreja e
os colonos, pois aos primeiros cabia a evangelização e, aos colonizado-
res, o cumprimento dos desígnios econômicos da empresa colonizado-
ra, junto ao interesse da Coroa.
Nesse contexto, o melhor exemplo que tipifica a fase é o das deno-
minadas “encomendas”, sistema que poderia exercer a tarefa de conver-

80
“A conquista significou a destruição de suas civilizações, epidemias diver-
sas, trabalhos forçados e fome que foram responsáveis por uma brutal queda demo-
gráfica num curto espaço de tempo. Significou também desagregação violenta dos
laços sociais, familiares e culturais, desarticulando a maneira como viviam e como
organizavam a realidade social em suas mentes”. FERREIRA, Jorge Luiz. Op. cit, p. 9.

57
ter o terror indígena em suplício, transformando a dominação, por meio
do extermínio, em domesticação pelo viés da implantação de aspectos
políticos, sociais, culturais e religiosos Ibéricos, somada ao processo de
domesticação dos corpos, o qual convertia aqueles que restaram do mas-
sacre em potencialidade para o trabalho forçado. Nas palavras de Roma-
no Ruggiero, surgia um sistema para “enquadrar” os índios, convertendo
a sua dispersão e a desorientação (fruto das barbáries) em nova ordem de
disposição sociopolítica.
Considera-se que a encomenda:
[…] é o sistema mais difundido: os índios são confiados
(encomendados) a um espanhol a quem pagam tributo
sob a forma de prestação de serviços. A “encomienda”,
como todas as outras formas de trabalho indígena a ser-
viço do conquistador, quer seja na terra, nas minas, nas
areias auríferas dos rios, ou nas oficinas de tecelagem, se
caracteriza geralmente, apesar de certas variações locais,
pelo trabalho forçado81.

É perceptível que a forma de organização econômica para os es-


panhóis também tinha um propósito de agregar novamente os indíge-
nas em unidades comunitárias. Acontece que essas unidades assumi-
riam novos fundamentos e valores cristãos, pois reunidos como súditos
da realeza, seria mais fácil obrigar os nativos a se esmerarem em prol
da “proteção”, pagando tributos e reverenciando com pesados serviços
também aos seus “senhores”.
O esquema desenhado nessa instituição visava a conservar a ca-
pacidade laboral e os frutos que se poderiam extrair da força de traba-
lho dos indígenas nos redutos. Esses, encomendados a um senhor, eram
obrigados a prestar aportes financeiros ou mesmo braçais em favor dos

81
RUGGIERO, Romano. Mecanismos da conquista colonial: os conquistado-
res. São Paulo: Editorial Perspectiva S.A., 1973, p. 41.

58
próprios encomenderos, o que também gerava fontes lucrativas para a
Coroa. Não obstante, os indígenas reduzidos nas encomendas “rece-
beriam” préstimos religiosos, para que a empresa da conversão evan-
gelizadora também pudesse lograr cumprir sua total adequação, pos-
sibilitando-lhes incluir-se no mundo moderno como “novos homens”
civilizados. Nota-se, de todo esse engodo, o fato de que os próprios des-
tinatários não obtinham nenhum benefício advindo da sua “liberdade”
como encomendado, e uma alta carga de deveres era imposta, sem op-
ção real de recusa.
Diante disso, é verificada uma pequena abertura na estrutura
das encomendas, que confere margem de proteção aos indígenas. Tra-
ta-se de um pequeno campo de batalha, no qual emergem as teses de
defesa dos padres católicos defensores dos indígenas. Na afirmação da
unilateralidade funcional da instituição socioeconômica, materializada
na finalidade da dominação sem limites, alguns religiosos vão reivin-
dicar a evangelização, abrindo um front representado pelo conflito no
procedimento de domesticar os nativos.
Identificada essa questão, o paradoxo do sistema de encomenda
indígena passa a ventilar entre a reflexão de estar condensada a proposta
da domesticação em exploração ou evangelização e defesa das popula-
ções indígenas82.

82
Romano Ruggiero sintetiza esta situação: “Assim, o bem espiritual das po-
pulações indígenas e a defesa da região servem de duplo argumento para estabelecer
e justificar o nascimento e a manutenção da encomenda. Evidentemente, a Coroa
intervém de vez em quando para defender os índios. Mas deve-se confessar que ela
intervém mais para frear os encomenderos do que para defender seus súditos. Prova
está que, para proteger os índios da exação excessiva de tributos, afirmam que não se
pode fazê-lo pagar todo esse dinheiro, pois sua condição ‘parece ser mais de escravos
que de homens livres’. Defesa? Ou antes, rivalidade – como teremos oportunidade de
verificar em seguida – entre os interesses da Coroa preocupada em salvaguardar suas
prerrogativas, e os dos encomenderos que exercem uma autoridade abusiva? Em todo
caso, os índios não têm outra alternativa entre serem ‘escravos’ ou pagar ao encomen-
dero ‘todo cuanto pueden’, tudo o que podem”. Ibid., p. 45.

59
O que não cabe discutir é o caráter exploratório da encomenda,
principal instituto econômico do período da colonização. O problema que
se pretende abordar é complicado em termos de interesses políticos, pois
na condição de súditos e sob as leis da Coroa de Castela, os índios deve-
riam cumprir as suas tarefas e arrecadar os tributos – junto ao próprio
soberano e também ao senhor encomendeiro. Com esta postura, o nativo
cumpriu sua função dentro do sistema econômico, porém, o que nova-
mente vai recair sobre este é a questão da disputa entre os setores clericais
e os encomenderos – objetivando acúmulo de riquezas; tendo os indígenas
sido confinados em espaços territoriais sob um poder de mando, torna-se
um contexto ideal para as duas facetas da exploração: a laboral e a explora-
ção evangelizadora. De qualquer forma, o indígena era domesticado.
Contudo, o cenário apenas parecia perfeito. Ante a opressão bru-
tal dos encomenderos e o pouco interesse destes em efetuar uma devida
pauta religiosa aos seus encomendados, surgirão os embates que darão
um mínimo caráter protetivo aos indígenas, ou mesmo na acepção que
mencionou Ruggiero, ao menos indiretamente, como destinatários, os
indígenas gozarão desse “benefício”, por meio das legislações que ad-
vieram da relação conflituosa traçada entre os religiosos e os encomen-
deros. Para Jesús A. de la Torre Rangel, a encomenda cumpre, do ponto
de vista jurídico, uma dupla função: “[…] não só permite, mas exige a
organização comunitária indígena para poder funcionar. Mais do que
qualquer outra instituição indígena, a encomenda cumpre a dupla fun-
ção de juridicidade do Direito Espanhol na América: de submissão, por
um lado, e de proteção, por outro83”.
Essa duplicidade de que fala o autor se revela no plano do reco-
nhecimento da condição de domesticação que exerce esse instituto colo-

83
RANGEL, J. A. de la Torre. Direitos dos povos indígenas: da Nova Espanha
até a modernidade. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e Justiça na América
Indígena. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 228.

60
nial. Mas, ao mesmo tempo, demonstra que surtia um reflexo que expõe
o seu contrassenso, pois:
A encomienda implica também obrigações para os enco-
mendeiros, tanto na sua relação com a Coroa, como com
os índios encomendados, cuja cristianização protegia sua
pessoa e seus bens. Um sistema assim requer a subsistên-
cia da comunidade indígena. Sem isso é impensável. O
sistema da encomenda não destruiu a comunidade indí-
gena, apesar de todos os abusos dos encomendeiros, caso
contrário também teria desaparecido. Paradoxalmente,
graças aos sistemas da encomenda, a comunidade indíge-
na, em geral, e os calpullis, em particular, sobreviveram
na Nova Espanha 84 .

Essas contribuições demonstram um ponto de vista que conduz


à seguinte reflexão: no tocante à dominação, garantiu-se o extermínio
físico das massas nativas; já no que tange à domesticação, a lógica será
inversa. Em vez do extermínio dos corpos, promove-se a domesticação
para produção das riquezas da empresa colonizadora. Juntamente a esse
fator, trata-se também de não eliminar todas as estruturas de integração
social que possam ser utilizadas no empreendimento da domesticação.
Assim, de forma paradoxal, a encomenda acabou possibilitando aos in-
dígenas manter alguns dos seus costumes e usos, pois os arquétipos das
comunidades garantiam a unidade social necessária à exploração eco-
nômica por parte do colonizador. Esse paradoxo se sustenta, visto que,
para os espanhóis conquistadores e para os reis católicos, interessava-
-lhes acumular riquezas, logo, muitas estruturas nativas – inclusive as
jurídicas – se mantiveram durante o período da colonização.
Desse modo, as chamadas encomendas somam-se aos elementos
que compõem essa ampla gama que é a empresa da conquista e da co-

84
Ibid., p. 228

61
lonização da América originária, na qual os paradoxos são inúmeros,
mas que via de regra giram em torno dos princípios mencionados an-
teriormente quando foi recordada a tríade proposta por Jesús Antonio
de la Torre Rangel. Mesmo assim, essas incongruências logram afirmar
um pouco de ingerência no ímpeto dominador dos conquistadores, em
que nada altera a lógica de domesticação ou submissão dos indígenas
ao modo de vida “civilizado” europeu. Tampouco apaga o “trauma”
causado pelo processo de conquista85, porém, exemplifica, sob o ângulo
jurídico, a intencionalidade “protetiva”, algo importante, que será veri-
ficado nas próximas linhas com maior cuidado.
No presente momento deste trabalho, não há que se perder a ex-
periência do tema das encomendas como elemento estratégico no pro-
cesso de domesticação, bem como a capacidade de evidenciar os prin-
cípios da empreitada conquistadora e, efetivamente, das estruturas que
condicionam a prática colonizadora. Trata-se de importante instrumen-
to histórico que deve ser explorado detalhadamente. Sendo assim, des-
taca-se ainda na temática domesticação a questão do chamado “trauma
cultural” que, para os indígenas, quer evidenciar o seguinte:
[…] todo o aparato simbólico sofreu uma violenta rup-
tura que se manifestou num verdadeiro trauma cultural.
A proibição de seus cultos e a evangelização superficial

85
“A história visível da conquista é a história da derrota militar dos povos
americanos, da derrubada dos grandes impérios indígenas, do massacre do índio. É
também a história da pequena tropa dos conquistadores, a de Cortés, Pizarro, Valdi-
via, que enfrentaram toda classe de obstáculos – cordilheiras, planícies áridas, selvas,
climas quentes, guerras. Foram os ‘heróis-civilizadores’, valentes, católicos, cruéis e
delirantes. Fazem parte dessa história visível a evangelização dos índios, a extirpação
de idolatrias, a luta contra o demônio, a dominação e o servilismo dos naturais. Mas,
também, a procura do ouro, o enriquecimento rápido e a exploração até a exaustão e
a morte dos povos americanos”. BRUIT, Hector. Bartolome de Las Casas e a simula-
ção dos vencidos: ensaio sobre a conquista hispânica da América. Campinas: Ed. da
UNICAMP; São Paulo (SP): Iluminuras, 1995, p. 31.

62
retirou deles os padrões culturais de leitura da realida-
de social, sem que tivessem outros que efetivassem uma
possível substituição. Enfim, o significado da Conquista
para as populações ameríndias foi a violência em todos os
planos e dimensões 86 .

Essa disjunção está imersa na perspectiva do trauma cultural. No


âmbito da domesticação, os novos paradigmas colonizadores não vêm
somente substituir a ausência das antigas estruturas eliminadas ao fio
da espada; mas também romper definitivamente com qualquer resquício
destas, elaborando artifícios eficazes para tal finalidade, para posterior-
mente impor seus arquétipos. O que chama atenção nesse ponto é o fato
da importância política da evangelização no quesito ruptura cultural.
Não se deve falar em harmonização ou tolerância, e sim na supressão
total da primeira, e na intencionalidade progressiva de destruição dos
resquícios que, por derradeira insistência histórica, se mantiverem.
Precisa-se destacar a questão dentro das diferenças entre princí-
pios da conquista e as estruturas da colonização, pois, afinal, essa deses-
tabilização da cultura local não está explícita em nenhum dos interesses
anteriormente referenciados. Dado o início da domesticação, os espa-
nhóis tiveram de lidar com a total desolação desses povos, todavia, fa-
zendo uso daquilo que ainda subsistia, ao mesmo tempo que aplicavam
uma paulatina carga de ruptura e de imposição do novo sistema. Na re-
alidade, o proveito em manter algumas estruturas indígenas e fazer uso
delas se dava pela facilidade não só de cumprir os objetivos da empresa
conquistadora, como também fundar uma ordem cultural colonizadora
com arquétipos próprios. Ver-se-á, adiante, que os usos e os costumes
indígenas serão tolerados sob os auspícios da Igreja e da Coroa.

86
FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização da América Espanhola.
São Paulo: Ática, 1992, p. 10.

63
Tal processo acima mencionado se pode definir de dois modos:
aculturação ou deculturação. Para o primeiro caso, vale resgatar as pala-
vras do autor José Luiz Ferreira, ao abordar uma civilização agonizante:
O saldo mais desastroso da Conquista manifestou-se no
processo de aculturação econômica, social e religiosa so-
frido por estas populações. O colonizador, ao negar todo
o conjunto de atitudes, crenças e códigos de comporta-
mento próprios destes povos e sem oferecer substituto
à altura, desarticulou a forma destas populações inter-
pretarem e viverem sua própria existência. Este proces-
so levou, por exemplo, os infelizes habitantes da Ilha de
Páscoa a uma “terrível apatia” e a uma “civilização agoni-
zante”, como diagnosticou Métraux 87.

No fragmento, se encontram os dois momentos importantes re-


lacionados com a conquista como ato de aculturação: eliminar a cultura
existente para, em seguida, através da colonização, negar qualquer indício
da anterior religiosidade pela evangelização, consolidando a nova fé em
seu lugar. Entretanto, dentro da política de cumprir as finalidades e expli-
citando os princípios da empresa colonizadora, aparecem alguns elemen-
tos tolerantes que, pela sua própria lógica, se confirmam como perversos.
Diante disso, em relação ao que se pode chamar de deculturação,
vale referir a explicação dada pelo autor Héctor Bruit:
Em outras palavras, esconderam o que tinham sido e pas-
saram a ser o que nunca foram. […] O trauma foi coletivo e
sobreviveu na medida em que a sociedade e cultura indígena
não desapareceram totalmente. Como já foi assinalado por
mais de um estudioso, ao longo do período colonial não che-
gou a realizar-se uma aculturação completa, pelo contrário,
o que se desenvolveu foi um processo de deculturação em
que os valores dos vencedores e vencidos se justapõem88.

87
Ibid., p. 54.

64
Destarte, os europeus não lograram arrancar do âmago desses
povos as suas características originárias, ainda que tenham deturpado
boa parte. A justaposição é afirmada como mecanismo de subjugação, e a
referida tolerância revela a sua perversidade na vigilância e nas punições
auferidas aos que insistiam em demonstrar algum indício pagão. No en-
tanto, vale referir que esta estratégia de defesa dos indígenas constituía
uma espécie de resistência89.
Portanto, a partir do ponto de vista dos autores citados, pode-
-se concluir esta etapa expondo os principais elementos que conduzem
ao chamado processo de conquista e de colonização, manifestação do
período de constituição da totalidade moderna, no qual foi mapeada e
refletida uma geopolítica colonizadora. Expostos os principais fenôme-
nos que consolidam o processo de dominação e domesticação dos povos
originários, passa-se à próxima etapa, visando a dar enfoque àquilo que
é propriamente a área e o tema da obra: o campo jurídico e, principal-
mente, sua manifestação plural.

1.2. DA INVASÃO À COLONIZAÇÃO: ASPECTOS DE UM PLURALISMO JURÍDICO ENCOBERTO

Após a exposição anterior que demonstrou aspectos amplos e ge-


neralizados dos mecanismos que conformaram o processo colonizador,
resta na presente etapa dar enfoque ao campo jurídico, analisando dois
momentos distintos. Primeiro, verificando como se davam as relações

88
BRUIT, Hector. Bartolome de Las Casas e a simulação dos vencidos: en-
saio sobre a conquista hispânica da América. Campinas: Ed. da UNICAMP; São Pau-
lo (SP): Iluminuras, 1995, p. 5.
89
“[…] os indígenas deste país, embora lhes ensinem os evangelhos há muito
tempo, não são mais cristãos agora do que eram no momento da conquista, pois, no
que tange à fé, eles não têm mais agora do que tinham naquela época, e no que se
refere aos costumes, estão piores ‘en lo interior y oculto’; e se parecem praticar certas
cerimonias formais – entrar na igreja, ajoelhar-se, rezar, confessar-se e outras – eles
o fazem forçados”. ZUNIGA apud RUGGIERO, Romano. Mecanismos da conquista
colonial: os conquistadores. São Paulo: Editorial Perspectiva S.A., 1973, p. 20.

65
com caráter jurídico ao período pré-colonial, envolvendo alguns estu-
dos que tratam do tema jurídico no ciclo dos impérios originários, em
destaque, o Asteca. No passo seguinte, buscando compreender a forma
que começa a gerar o processo de encobrimento da originalidade plural
desses sistemas jurídicos, delineando a colonização da América.
Objetiva-se demonstrar aquilo que estava intacto quando da in-
vasão espanhola, e também o que foi destruído, fazendo com que os
seus resquícios – conformados em uma condição de não existência – se
consolidassem como algo alienígena, imposto violentamente no lugar
dessa ausência. A história do encobrimento do Pluralismo Jurídico na-
tivo durante o período colonial é a configuração das ausências e o início
da modalidade tolerante com o Outro, porém, dentro do viés de assimi-
lação e de deculturação, ou seja, tendo sempre em vista um parâmetro
hegemônico ou um padrão eurocêntrico, pretensamente universal.

1.2.1. O Direito no período pré-colonial: aspectos normativos

O chamado período pré-hispânico, pré-cortesiano ou período pré-


-conquista trata-se da concepção pré-moderna na América Hispânica90.
É um espaço típico dos historiadores e antropólogos, por conta principal-
mente das características de ordem cultural e dos elementos históricos.
Contudo, aos juristas em geral, pouco importam os estudos desta etapa,
em primeiro pela colonização epistemológica do senso comum no pensa-
mento jurídico e, em segundo lugar, pelas poucas fontes de estudos literal-
mente “jurídicos” – stricto sensu –, para não confundir com o entendimen-

90
Para García Gallo, se fala em Direito pré-hispânico: “ […] se trata de ellos
hasta el momento en que el pueblo respectivo entra en contacto con los españoles, lo
que ocurre en fechas muy distintas: v. gr., en 1492 y años sucesivos en las Antillas, en
1508 en Tierra Firmes, en 1519 en Méjico, en 1533 en Perú, en 1709 en California, etc”.
GARCÍA GALLO, Alfonso. La penetración de los derechos europeos y el pluralismo
jurídico en la América Española, 1492-1824. In: DAL RI, Luciene. DAL RI JR., Arno.
GARCÍA GALLO, Alfonso. et al (Org.). A latinidade da América Latina: enfoques
históricos-jurídicos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 99.

66
to sócio-histórico. Todavia, em razão da importância descolonizadora do
período, far-se-á breve referência com base em algumas obras de pensado-
res que resolveram transcender os limites da bolha moderna, em direção
a compreender os fenômenos de fora da ilha imaginária colonizada, para
então estudar como se organizavam os povos e as culturas pré-invasão.
Em alguns historiadores – ou ao menos nas principais referências do
assunto, as quais foram consultadas –, há uma forte evidência do “ba-
charelismo teórico” com formação jurídica. Na falta de criatividade in-
terpretativa, fazem o mesmo que Cortés quando da hermenêutica sobre
os nativos, lendo-os sob uma contemplação introspectiva; no caso dos
juristas viciados pelo formalismo legalista moderno, olham fenômenos
históricos desde a sua interpretação jurídica.
Por esta razão, cabe aqui uma explicação melhor para a situação:
os trabalhos analisados, em sua maioria, verificam os chamados “fenô-
menos jurídicos” pré-modernos, de acordo com as lentes dos elementos
jurídicos modernos. Qual é o problema dessa postura? Contaminação xe-
nófoba com o Outro Direito, no sentido de que a interpretação realizada é
preenchida pela legalidade – sistematização de normas jurídicas escritas e
fundamentação racionalizada por leis. A lente de análise do fenômeno ju-
rídico vislumbra uma compreensão moderna como parâmetro para ana-
lisar algo além da modernidade; não está dentro desse processo, mas em
outra esfera, portanto, constitui-se inadequado o instrumento de análise.
Ora, antes que possa gerar alguma dúvida sobre quais outras
referências se poderiam utilizar, contesta-se pelo exercício do estra-
nhamento do novo, do Outro, do distinto; destreza para pensar fora da
totalidade colonizadora é uma prática que necessita de instrumentos
de mediação e de profunda identificação com as práticas estranhas à na-
tureza formalista do Direito – no caso, a interdisciplinaridade ou apoio
em outras disciplinas ajudaria. Apesar de que seria difícil pensar isso na
primeira década do século XX, em que a cultura bacharelesca do Direito
não se permitiria tal ato.

67
Mesmo que inevitável a comparação – cujo caráter é de elucida-
ção compreensiva –, esta deve vir acompanhada da contemplação ino-
vadora, que só terá essa atitude no momento em que causar um forte
e indesejado incômodo, oriundo da inquietação do não-saber, não-co-
nhecer ou auto reconhecer-se como ignorante, primeiro momento da
afirmação da existência do Outro como distinto a “Eu”.
Contudo, elucidada essa percepção, tem-se em conta que esses
poucos e riquíssimos trabalhos serviram de embasamento para esta eta-
pa, antes do mundo colonial. Embora não representem o objeto do estu-
do, servem para comprovar que o Direito Moderno foi uma derradeira
invenção alienígena, para a qual o extermínio, a violência e o encobri-
mento são as melhores insígnias.
É bom frisar que não corresponde, esta etapa, a um passeio de
ilustrações retóricas, mas sim à apresentação de situações que demons-
tram o quão bem estruturadas eram as sociedades originárias da épo-
ca pré-invasão, e que a noção de civilidade jurídica é outra invenção
da modesta e marginalizada Europa no período da invasão. Trata-se
de uma etapa introdutória, que deveria ser trabalhada detalhadamente
na história jurídica da América Latina, pois as evidências estão latentes
e imersas na riqueza enigmática dos povos originários que, à primeira
vista, parecem mais interessantes que a história dos godos e dos visigo-
dos da região europeia; e, ao final, se manifestam de forma exuberante
na novidade de informações.
Nas obras pesquisadas atentamente, aparecem os sistemas jurí-
dicos com concepções vigentes na atualidade. Trata-se muito mais de
interpretações viciadas pelo contexto jurídico colonizado do que pro-
priamente uma leitura da organização jurídica do período. Em primeiro
lugar, isso se dá pela não oportunidade de etnografia da época,– apesar
de que algumas obras/relatos o fazem assim –, e pelo próprio modo vi-
ciado de relacionar o europeu transferido ao latino-americano. Entre-
tanto, esses elementos trazem uma interpretação muito qualificada do

68
período, na qual as relações tributárias sedimentam as relações pesso-
ais e comunitárias, e a forte presença de uma organização interpretada
como penal e civil também conduz a uma análise suficiente.
Assim sendo, mesmo se verificadas outras fontes, o mundo que
compõe o atual território mexicano proporciona vasto material inter-
pretativo no sentido mencionado, o que ocorre por conta do alto nível
de organização social das culturas que compunham o império dos As-
tecas e, não diferente, dos Incas e dos Maias. Porém, o recorte é pro-
posital: estas últimas civilizações foram ignorados na fortuna histórica
do presente estudo, muito mais pela delimitação necessária do que por
conta da riqueza cultural representada.
Nesse sentido, sem desconsiderar os demais valores das leis e
dos regulamentos desse mundo, tais como regras de Direito público,
Direito privado, tributos e questões penais, as quais aventam um riquís-
simo acervo erudito para uma pesquisa profunda, segue-se no intento
de explorar o âmbito de administração da justiça, escolhido para o foco
do presente item. Serão analisadas as questões dos desdobramentos da
organização jurídica que, pela própria natureza complexa do período, é
uma leitura voltada a ilustrar o modus operandi do sistema, altamente
influenciado pelas relações de poder na organização do, por assim dizer,
“Estado” pré-hispânico.
A questão será dividida na análise de como se compunha a
organização e, com esse critério, dar-se-á foco à exploração de um
período complexo que se torna mais palpável ao momento de desta-
car uma das características elucidadas, a qual parte da metodologia
do autor mexicano Jesús Antonio De la Torre Rangel, que se propõe a
não fazer um mero percurso histórico, mas sim uma aventura reflexi-
va focada em um objetivo claro e conciso. Para alcançar esse objetivo,
cabe referência a obra do jurista mexicano, segundo quem – em alu-
são ao historiador Rafael Altamira (1866-1951) – a história jurídica
deve estar ligada à história social, e o jurídico explica-se como resul-

69
tante dos fenômenos extrajurídicos91.
Para o autor mexicano, as fontes de referência para os estudos do
período se traduzem em códices ou código, nada mais que relatos ou tes-
temunhos documentados de caráter ideográfico, na maior parte traduzi-
dos por religiosos empenhados na compreensão do mundo indiano; ou
obras de historiadores indígenas, por vezes inclusos aos centros religiosos
junto aos padres católicos nos seminários de educação ou evangelização.
Também aparecem descrições dos historiadores espanhóis das primeiras
gerações, relatos dos exploradores ou integrantes das expedições inva-
soras e mesmo a Arqueologia (objetos ou manifestações artísticas que
podem traduzir a cultura em geral e, por consequência, a jurídica).
Entre a cultura dos Astecas, explica Jesús Antonio Rangel, não ha-
via um sentido de interpretação jurídica baseado na lei, mas em costumes92
e em entendimento hermenêutico de via “reta”: “[…] En el idioma azteca
‘justicia’ se dice tlamelachuacachinaliztli, palabra derivada de tlamelahua,
pasar de largo, vía recta a alguna parte, declarar algo, de donde también
tlamaclahualiztli, acto de enderezar lo torcido, desfacer entuertos […]”93.
Isso evidencia que o embasamento do juiz não se tratava de uma
lei escrita ou de um código de conduta. Ao julgar, extrapolava o ho-
rizonte hermenêutico da legalidade para a questão da preocupação da
coesão social pela normatividade.

91
Aprofunda o autor em parágrafo anterior: “[…] No son historia de las ins-
tituiciones jurídicas, sino que pretenden ser una historia de la juridicidade, quiero
decir de lo jurídico inmerso en lo social, en la medida que el Derecho se explica ca-
balmente por la realidad social, y ésta tiene una explicación conpleja, jugando en ello
un papel importante el Derecho mismo”. RANGEL, J. A. de la Torre. Lecciones de
historia del derecho mexicano. México: Porrúa, 2010, p. XX.
92
“La idea que existe entre los aztecas, al administrar justicia, no indica la
obligación del juez de someterse a una ley o mandato, sólo la de buscar la línea recta,
es decir, usar su propio criterio. Cada caso tenía su ley. Claro está que el criterio del
juez estaba influenciado por las costumbres y el ambiente social”. Ibid., p. 29.
93
Ibid., p. 29.

70
No caso mencionado, a questão da juridicidade dos povos origi-
nários, entende-se que o Direito aplicado cumpre unificar em torno da
decisão tomada uma conduta com fulcro nos interesses comunitários.
Ainda que se possa exagerar no âmbito da especulação reflexiva, propõe-
-se pensar, por um lado, que a interpretação base dos julgados dos juízes
Astecas, por consequência, pensava na reta conduta do império em si,
frente os seus dominados. Por outro lado, manter a coesão e o domínio,
contrariando condutas costumeiras de outros povos, pode pressupor in-
surgência, o que leva a compreender que, no Direito Asteca, primeira-
mente, há de se desvencilhar da uniformidade jurídica e, logo em seguida,
da legalidade como base de operacionalização do sistema jurídico.
Tendo isso em conta, logo se percebe que o Direito (ou o mundo
jurídico) não possuía centralidade na organização da sociedade Asteca,
caso comparado aos sistemas de tributos e de domínios violentos, por
meio das guerras do mesmo império. Entretanto, não de um todo se
deve diminuir sua importância, afinal julgados com base em práticas
reiteradas (costumes) possuem significância primeira. Essa maneira em
muito se assemelha aos atos jurídicos da idade média, na qual os costu-
mes e as práticas reiteradas garantiam uma lógica de segurança jurídica
para o complexo mosaico jurídico que compunha o período94.
Tudo isso leva a crer que a centralidade do monismo jurídico mo-
derno inverte a questão cultural plural por um sistema centralizado e bu-
rocrático, contrário ao pluralismo normativo Asteca e medieval, em que a
ideia de segurança jurídica estaria embasada na não-legalidade, mas em um
corpo interpretativo costumeiro que desse sequência de agregação societal.
Interessa aproveitar desse período a riqueza cultural organi-
zativa do mundo jurídico das pessoas e das relações humanas, pois a

94
Em torno do pluralismo jurídico na idade média, verificar MACHADO,
Lucas. Pluralismo jurídico e justiça comunitária na América Latina: perspectivas
de emancipação social. 2011. 218f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de
Pós-graduação em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

71
valorização dos aspectos sociais não significa diminuir a importância
do aparato jurídico normativo unitário moderno. Pelo contrário, visa a
envolvê-lo na totalidade cotidiana da vivência dos sujeitos que lhe dão
vida; em vez de isolar o sistema jurídico da realidade social e cultural,
fundamentá-lo em uma legalidade valorativa que se torna absoluta e in-
dependente – como critério fundante. Valoriza-se esse sistema a partir
do momento em que todo ato entendido modernamente como Direito
passa a ser a própria dimensão humana no seu contexto, uma riqueza
complexa que demonstra o alto grau de organização e, principalmente,
a valorização da atividade relacional dos povos – isso, entendido em ter-
mos jurídicos, reavalia a interpretação realizada pelos conquistadores e
funda outra perspectiva de entendimento a ser explorada.
Em parte, essa afirmação confirma a que se referia acima, na
perspectiva do Direito que tinha o autor Rafael Altamira, e mais, colo-
ca-se em questão a própria ideia da opulência jurídica na lei, purificada
pelos modernos doutrinadores.
Seguindo no aprofundamento dos aspectos jurídicos do estudo,
vale mencionar que o pesquisador da cidade de Aguascalientes faz men-
ção, em seu livro, de determinado espaço para interpretação ético-jurídica:
Los huehuetlatolli o “pláticas de los viejos” son varios do-
cumentos de distinta procedencia de origen prehispánico.
Se trata de pláticas didácticas o exhortaciones dirigidas a
inculcar ideas o principios morales, tanto a los niños del
Calmecac como del Telpochcalli, así como a los adultos
en ocasión de acontecimientos importantes como el ma-
trimonio, el nacimiento, la muerte, etc. A través de los
huehuetlatolli conocemos ideas ético-jurídicas de la cultu-
ra náhuatl, tales como el bien y el mal, el valor de la perso-
na humana, las obligaciones y compromisos sociales, etc95.

95
RANGEL, J. A. de la Torre. Op. cit., p. 30.

72
Essa interpretação de uma ética jurídica Asteca que privilegia a
organização das relações humanas traduz concepções jurídicas dos po-
vos que não podem ser desconsideradas como tais, em virtude de tradu-
zir conteúdos morais e de ordem social. Logo, esses enunciados sociais
são os arquétipos fundantes da cultura jurídica desse povo; caso algum
jurista imerso no âmbito histórico desconsidere essas características, já
de imediato olvida grande parte do arcabouço que conforma o sistema
jurídico pré-hispânico.
É oportuno mencionar o posicionamento do respeitado pesqui-
sador León Portilla:
[…] La primera obligación de tipo ético-jurídica es la del
respecto y obediencia a quienes están investidos de auto-
ridad. Esa idea de moderación y consideración frente a
“los rostros y corazones” ajenos, llegó a ser tan caracte-
rística entre los nahuas, que encontramos de ella innume-
rables ejemplos a través de todos los huehuetlatolli. Según
León Portilla el fundamento ético-jurídico de la cultura
nahua estriba: 1) en la autoperfección; y 2) en la genuina
aprobación social de lo conveniente, de lo recto. Y este
doble motivo es uno en el fondo, ya que la verdadera es-
tima y aprobación de la sociedad debe corresponder tan
sólo al “rostro y corazón” bien formado que practica en
la tierra “lo conveniente, lo recto”. Así es como en funci-
ón de su ideal de control y perfeccionamiento humano,
concibieron los sabios nahuas esta rica doctrina, que con
razón podemos llamar ético-jurídica […]96 .

A dimensão exposta na obra trata de realocar a interpretação


jurídica além do domínio formalista, calcado na materialidade da
existência do ser humano e na sua corporalidade viva em conexão com

96
RANGEL, J. A. de la Torre. Lecciones de historia del derecho mexicano.
México: Porrúa, 2010, p. 31

73
outras – ato relacional de qualquer sociedade. As relações são aperfei-
çoadas com base em um Direito que, antes de legitimar uma ordem
social, preocupa-se em resgatar relações organizativas para o convívio
harmônico e de desenvolvimento, ou seja, resumido em uma palavra:
equilíbrio social.
Prova disso se encontra em três fragmentos de um huehuetla-
tolli, citado por De la Torre Rangel, em uma primeira dimensão que
poderia se dizer transcendental ou religiosa: característica que perde
espaço na esfera jurídica moderna com a racionalização positiva. “[…]
Ya no puedes rigocijarte como antes lo hacía. Dignifica tu rostro, tu co-
razón, tu vida. Estímate a ti mismo, honráte, procede sabiamente, haz
divina tu palabra, tu discurso”97.
Nesse fragmento, em que está presente o grau de serviço socie-
tário como fundamentação do ato jurídico (e não ao contrário), a in-
corporação em serviço público é dignificada em termos quase divinos,
conferindo caráter especial ao exercício de tal tarefa; no mesmo sentido:
“[…] No te conviertas en fiera, no muestres los dientes, las uñas. No
hagas llorar, gritar a nadie, no golpees en la cabeza, no enfurezcas, pues
te llenarás de espinas y puas, espantarás, causarías asombro, escandali-
zarás, todos te odiarán98”.
No tocante ao segundo fragmento, encontra-se presente a di-
mensão humana, que lhe separa dos deuses, bem como se pode ler um
alerta acerca da embriaguez que o alto investimento no poder causa
nas corporalidades humanas. Percebe-se a sabedoria em verificar que
o exercício de um serviço público é algo de uma grandeza proporcional
ao perigo de envenenar-se no descuido de deixar-se tomar pela soberba
e pela apropriação excessiva do poder investido, de divinizar seus atos.
No Direito Asteca, ver-se-á adiante que a punição a esta falha é excessi-

97
Ibid., p. 32.
98
Ibid., p. 32.

74
vamente dura, inclusive com a perda da vida do infrator, algo que evi-
dencia a imperfeição do sistema, inerente a qualquer obra humana.
Por fim, resgata-se o sentido e a importância de manter a união
comunitária em torno do exercício da sua função: “[…] Reune, convoca,
congrega, agasaja a tus tlatoque – nobles –, acaricia a los Dueños del
Agua y la Tierra – el pueblo –, sé generoso con ellos. Ama a tu gente para
ser recordado, para que cuando mueras el viejo y la anciana suspiren y
lloren por ti99”. O autor Jesús Antonio de la Torre Rangel confirma que:
Lo anterior significa que si bien el tlatoani tenía un poder
absoluto e ilimitado, sin embargo en el pueblo y en los pro-
pios gobernantes existía la idea de un ejercicio del poder
no autoritario y respetuoso de los derechos del pueblo100.

O exercício desse poder não possui uma justificação em si pró-


prio, mas sim no serviço aos seus semelhantes em comunhão social não
individualizada. Igualmente, não se individualiza o poder e se alerta
para o excesso do apoderamento pessoal; também se faz referência ao
seu objeto fundante, o exercício para a comunidade.
Aprofundando um pouco mais essa exposição acerca de uma
ideia de Direito pré-cortesiano, privilegiando o Direito Asteca, quatro
obras são importantes para o estudo e serão abordadas na especifici-
dade mais interessante. No primeiro livro, “El Derecho Precolonial”,
publicado ao ano de 1937, pode-se começar a desvendar teoricamente
o tema; foi elaborado pelo sociólogo e jurista mexicano Lucio Mendie-
ta y Nuñez. O segundo livro, “Introducción a la historia del derecho
mexicano”, de Guillermo Floris Margadant S., 1971, dedica seu primei-
ro capítulo para “El Derecho precortesiano”, explorando o jurídico nos
povos Maias, Olmecas, Chichimecas e Astecas. O terceiro se trata de

99
Ibid., p. 32.
100
Ibid., p. 32.

75
“El derecho de los Aztecas”, de Josef Kohler, publicado pelo tribunal su-
perior de justiça do Distrito Federal mexicano, em 2002. Na sequência,
tem-se “Introducción a la história del pensamiento jurídico em Méxi-
co”, de Javier Cervantes, editado juntamente à obra anterior. Esses livros
compõem o arsenal de fontes secundárias sobre o assunto, cumprindo
uma tarefa de demonstrar a riqueza da cultura jurídica pré-hispânica,
no entendimento da sua organização e do sincretismo estrutural.
Ao iniciar, privilegia-se a obra de Mendieta y Nuñez. Ele começa
a sua exposição mencionando as fontes inspiradoras dos livros “[…] Cla-
vijero, Orozco y Berra, los Memoriales de Motolínia, la Historia Ecle-
siástica de Mendieta y la História General de Sahagún”101, trabalhos de
interpretação original, que poderiam ser considerados fontes primárias
para o tema, por conta do objeto e das épocas em que foram elaborados
– em alguns casos, como uma etnografia da vivência nos primeiros anos
da exploração conquistadora, tendo em vista que muitos clérigos acom-
panharam as expedições dos colonizadores, desde então registrando os
passos e as impressões sobre os povos originários.
Esses fatores garantem credibilidade para consulta, bem como
oferecem uma sistematização embasada em estudos concretos e em
acervos literários que são registros “vivos” das formas e das relações so-
ciais no período estudado. A obra tem como proposta uma síntese para
uma visão do conjunto sobre as instituições jurídicas da época anterior
à imposição colonizadora dos espanhóis102.
Mendieta y Nuñez comenta que a divisão em etapas da história
mexicana – na qual os períodos ou épocas seriam 1º: período pré-co-
lonial; 2º: período colonial; 3º: período de independência nacional; 4º:
época atual – merece crítica. “Esta división es puramente convencio-

101
MENDIETA NUÑEZ, Lucio. El derecho precolonial. México: Porrua Her-
manos y cia, 1937, p. 6.
102
Ibid., p. 7.

76
nal, obedece más al método, a las necesidades de la exposición, que a la
realidade de las cosas. En toda evolución social es posible señalar con
exactitud los límites de las grandes etapas”103. Entretanto, torna-se útil à
compreensão e ao desenvolvimento didático do período.
Resta afirmar sobre a existência de um Direito Asteca, de ma-
neira que possa afastar qualquer dúvida ou especulação depreciativa. É
conveniente a exposição de Javier Cervantes, em que destaca:
Pudiera preguntarse si realmente existió un Derecho
más o menos elaborado entre los Aztecas, a lo que, sin
duda, debe contestarse apriorísticamente, sin perjuicio
de confirmarlo plenamente más tarde, que el Derecho
sí existió en ese pueblo, como tiene que existir desde el
momento en que hay convivencia entre los hombres. Si
nos atenemos, además, a lo que se ha llamado la cultura
Azteca, atendiendo al desarrollo que muchos aspectos
ha podido ser comprobado, se llega también a la conclu-
sión de que el derecho no solamente existía, sino que las
normas que lo constituían llegaron adquirir una fuerza
y arraigo tales, que forzosamente tenía que transcender
a épocas posteriores104 .

O reconhecimento do nível cultural dos povos Astecas105 é algo


que chocou até os conquistadores como Hernán Cortés, pois o esplen-
dor da cidade de Tenochtitlán, com suas instituições comerciais, políti-
cas, sociais, religiosas e jurídicas dão conta do homem europeu encon-
trando-se com outra civilização. No que cabe ao fenômeno jurídico, a

103
Ibid., p. 11.
104
CERVANTES Y ANAYA, Javier de. Introducción a la historia del pensa-
miento jurídico en México. Primera edición. México, D. F.: Tribunal Superior de
Justicia del Distrito Federal, 2002, p. 395.
105
Sobre o grau de cultura dos aztecas, era relativamente elevado, lembra Josef
Kohler em sua obra: KOHLER, Josef. El derecho de los aztecas. México, D. F.: Tribu-
nal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2002, p. 19.

77
afirmação acima parte do pressuposto de que toda organização humana
corresponde a um sistema de normas, algumas destas de cunho jurídi-
co. Porém, no presente estudo, parte-se da constatação de que a lógica
de organização política, o sistema de cobrança de tributos, as regras de
convívio social e a expansão tomada pelo império Asteca hão de pressu-
por a existência de algum vínculo de cunho jurídico, compreendendo-se
por jurídico todo ato que visa a organizar e a regulamentar as condutas
em uma determinada sociedade para fins de convívio ordenado – en-
tenda-se ordem no sentido de divisão de tarefas, buscando satisfazer as
necessidades humanas básicas.
Nesse viés da explanação anterior, cumpre esclarecer sobre a con-
cepção de Direito. Pode-se falar em Direito Mexicano com base na cédula
real do governo de Índias, mas deve-se ter presente que isso é para a con-
cepção moderna do Direito, pois, ao se expandir o horizonte de compre-
ensão do fenômeno jurídico, ou melhor, do Direito como fenômeno so-
cial, encontra-se “[…] una resultante de los complejos factores que actuán
en el desenvolvimento de los grupos humanos constituídos, entonces si es
indispensable ocuparse del Derecho observado entre los indígenas antes
de la conquista […]”106. O autor Lucio Mendieta y Nuñez segue afirmando
que, apesar do Direito colonial em nada relacionar-se com o período an-
terior, a população a quem se destina carrega uma carga cultural e uma
herança histórica indelével. Isso é esclarecido quando, em termos cultu-
rais, reconhece o autor que alguns povos guardam práticas e costumes
pré-hispânicos em concorrência com o Direito legislado pelo Estado.
Sendo assim, a compreensão histórica do Direito para Mendieta
y Nuñez vem encontrar guarida no presente estudo. Busca evidenciar
uma visão conceitual do Direito inerente a seu desdobramento sociopo-
lítico. Em relação a isso, é importante ressaltar que:

106
MENDIETA NUÑEZ, Lucio. El derecho precolonial. México: Porrua Her-
manos y cia, 1937, p. 12.

78
En la realidad de las cosas esta relación íntima entre el
Derecho y el pueblo en que rige, es a menudo estorbada
y entonces, en vez de que el Derecho obre como fuerza
organizadora, impide el progreso del pueblo y lesiona
gravemente su vitalidad. Por esta razón nos proponemos
hacer un estudio histórico de nuestro derecho, conside-
rándolo no simplemente como conjunto de leyes, sino en
relación con nuestro medio para ver si las modificaciones
sufridas por éste, corresponden a la transformación his-
tórica y social de aquel107.

Na obra, aparece o conceito de sistema jurídico como fruto da


cultura popular e em íntima relação com a cotidianidade dos povos e
suas necessidades. As peculiaridades do estudo desenvolvido no livro
denotam uma particularidade inerente ao período e à especificidade
de cada domínio Asteca; a importância desses caracteres pré-coloniais
faz referência às práticas organizativas que serão posteriormente su-
primidas por outra concepção do Direito, que embasará sua raciona-
lidade em normas escritas por autoridades investidas de “reconheci-
mento” divino, como no caso dos reis. É interessante confrontar tais
concepções para mostrar como se operam na colônia certos aproveita-
mentos dos resquícios da cultura jurídico-social pré-cortesiana, como
o aparato de unificação colonizadora e a insuficiência do Direito colo-
nial em legitimar-se por si próprio, mesmo através da violência opres-
sora do pacto colonial108.

107
Ibid., p. 13.
108
“En resumen, todo el sistema jurídico y social era un reflejo fiel de la con-
ciencia popular; cada una de sus instituciones, cada una de sus leyes, obedecía a de-
terminadas circunstancias, respondía a ingentes necesidades. Por otra parte, la es-
tricta aplicación de la ley, que alcanzaba tanto a los poderosos como a los débiles,
siendo en muchos casos más cruel con aquéllos que con éstos, hacía que el Derecho
fuese respetado por todos, que la sociedad tuviese la conciencia de su carácter obliga-
torio. El Derecho, cuando es el producto de la vida del mismo pueblo en que rige, no
puede reformarse teóricamente. No es ni mejor ni peor que el Derecho de otro pueblo

79
Seria impossível pensar juridicamente o período sem considerar
as transformações sociais que sofrem os povos locais e o seu desenvolvi-
mento até a brutalidade invasora. A proposta apresentada é justamente
explorar os aspectos jurídicos do meio social como motor do desenvol-
vimento deste, pois não haveria forma de fundamentar em leis escritas o
sistema jurídico, sob pena de restringir sua abrangência, e também por
não significar um catalisador seguro da transformação jurídica.
No entanto, o historiador espanhol Alfonso García Gallo atenta
para importantes problemas na observação acerca dos textos que envol-
vem o período:
La América que descubren los europeos carece en absolu-
to de unidad cultural y jurídica. Los numerosos pueblos
que habitan en ella forman innumerables comunidades
que viven independientemente unas de otras, rigiéndose
cada una por sus propias costumbres. Excepto en algunas
regiones donde bajo una autoridad dominante diversos
pueblos han sido sometidos en parte a un régimen co-
mún, la casi totalidad de estas comunidades se mueve en
un ámbito geográfico muy reducido. Por ello, el mundo
prehispánico en el aspecto jurídico se nos aparece como
un gigantesco mosaico en el que cada una de sus piezas
constituye un Derecho diferente. Nuestro conocimien-
to de estos Derechos es hoy muy deficiente. Etnólogos y
antropólogos han estudiado estos pueblos y sus culturas.
Naturalmente, al ocuparse de sus forma de organizaci-
ón han tratado múltiples aspectos en los que existe una
ordenación social – un Derecho; pero, por su propia for-
mación, lo jurídico queda en un segundo plano y sin la
debida valoración. Es frecuente encontrar en sus obras la

o de otra época, sino el que necesariamente corresponde a un pueblo determinado


en una época determinada. Se transforma cuando las necesidades de la vida popular
suscitan las transformaciones correspondientes. No de otro modo se desarrolló el
Derecho Romano sobre los bárbaros preceptos de las XII Tablas”. Ibid., p. 61.

80
observación, sorprendente para un jurista, de que estos
pueblo no conocen el Derecho y se rigen por costumbres;
como si éstas no integraran aquél109.

O autor se preocupa em mostrar que havia outros tantos povoa-


dos com manifestações jurídicas próprias, cujo arcabouço não é desme-
recido, e que alguns apresentam fontes de estudos mais vastas e densas
para auxiliar na interpretação e na exposição com maior segurança e
concretude nos resultados da pesquisa. Diante disso, segue mencionan-
do sobre o grau de organização e desdobramentos do contexto sociopo-
lítico da época:
Los reinos primeramente citados lograron extender sus
dominios porque formaron una triple alianza defensiva
y ofensiva que le dio gran fuerza militar. Al efectuar sus
conquistas según escribe Orozco y Berra, “sujetaban a la
tribu vencida y al contingente de armas, municiones y sol-
dados para la guerra; pero dejaban a los señores naturales
su señorío, al pueblo sus usos y costumbres”. Sin embar-
go, el contacto frecuente que necesariamente se establecía
entre los pueblos conquistados y sus conquistadores, era
circunstancia favorable para el intercambio cultural110.

Dessa maneira, justamente na presente justificativa, está aquilo que


se pretende diferenciar no Direito colonial, pois o grau de coesão jurídica se
encontra na territorialidade do poder político dominante, sem, entretanto,
ter uma estrutura legal para justificar. Adiante se verá que as questões jurí-
dicas, ainda que uniformes, demandavam antes uma aplicação de acordo
com o conjunto sócio-histórico dos povos dominados. Aufere-se das cita-

109
GARCÍA GALLO. Alfonso. La penetración de los derechos europeos y el
pluralismo jurídico en la América Española, 1492-1824. In: DAL RI, Luciene. DAL RI
JR., Arno. GARCÍA GALLO, Alfonso. et al (Org.). A latinidade da América Latina:
enfoques históricos-jurídicos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 99.
110
Ibid., p. 18.

81
ções acima que o grau de organização “civil-militar” do reinado tríplice de
Tenochtitlán, Texcoco e Tacuba deixa um vestígio da estrutura política que
será muito bem aproveitado pelo domínio espanhol, mais tarde, durante o
processo de colonização, e as evidências do chamado “grau civilizatório”.
No entanto, cabe referir que o intercâmbio promovido pela “to-
lerância” dos dominadores no âmbito cultural de cada povo dominado
abre espaço para pensar-se que a juridicidade também possuía diversas
matrizes de aplicação, de interpretação e de fontes. Caso contrário, a
imposição de um Direito uniformizado em código tornaria obsoleto tal
ato de tolerar Outro Direito.
O chamado Direito Asteca está localizado como produto de uma
evolução secular e sincretismo no intercâmbio cultural nas disputas lo-
cais entre dominados e dominadores. As origens da pesquisa do autor
tratam de divulgar somente os últimos anos da organização jurídica às
vésperas da conquista, fator não impeditivo para exploração em confor-
midade com os relatos dos conquistadores. Levando em consideração
essa afirmação genérica, vale destacar:
Por las crónicas antiguas conocemos el derechos de los
mexicanos aborígenes tal como existía al efectuarse la
conquista; pero indudablemente que entonces ya era el
resultado de una larga evolución cuyo principio es impo-
sible determinar y que concluyó al ser rota la organizaci-
ón indígena por la dominación española; pero como esa
ruptura se llevó a cabo en el transcurso de varios siglos,
tampoco podemos limitar con fechas precisas la termina-
ción del derecho primitivo111.

É de se notar que, nessa relação de dominação, os reis eram elei-


tos de forma indireta em ambos os reinados da tríplice aliança112, desde

111
Ibid., p. 14.
112
Ibid., p. 15.

82
que o candidato fosse membro da família real e educado no que se cha-
mava Calmecac, estabelecimento de educação para a nobreza.
Organizadamente, o sistema judicial obedecia, em cada reinado da trí-
plice aliança, a um tribunal superior, com diferenças estruturais devido
às particularidades de cada caso. No reinado de México, por exemplo, o
rei nomeava ao magistrado supremo, que acumulava à obrigação de sen-
tenciar também o cargo de administrador; pelas proporções territoriais
do domínio de México, reproduzia-se o mesmo esquema nos povoados
mais distantes. Nesse caso, é curioso o fato de que aquilo que se poderia
chamar “justiça de bairro” é figura interessante no procedimento de ad-
ministrar justiça do reinado mexicano:
En cada uno de los barrios de México, el pueblo se reu-
nía anualmente para nombrar a un juez de competencia
judicial limitada, pues sólo conocía en los asuntos civiles
y penales de poca importancia que se suscitaran entre los
vecinos de su Distrito. Este juez tenía obligación de dar
noticias diarias al tribunal colegiado de la ciudad, sobre
los negocios en que intervenía. Como auxiliares de la ad-
ministración de la justicia había en cada barrio un indi-
viduo encargado de vigilar a algunas familias y de dar
cuenta de lo que en ellas observase; estos empleados eran
electos por el pueblo del propio modo que los jueces infe-
riores; pero no podían conocer ni fallar en asunto alguno;
por último cierto número de policías se encargaban de
emplazar a las partes y a los testigos en asuntos civiles y
penales y de aprehender a los delincuentes113.

Esses juizados nos bairros são vistos como elementos de conexão


entre o corpo superior de justiça e as comunidades mais afastadas geo-
graficamente. Cumpriam, ademais, concretizar as práticas costumeiras
e organizar um sistema de conduta de acordo com as ordens emanadas

113
Ibid., p. 20.

83
do soberano governante. Essa figura eleita pelo povoado era um inter-
cessor entre os costumes cotidianos e a ordenança judicial “oficial”, pois
mantinha informados os aplicadores do Direito sobre os fatores fun-
dantes, e também cumpria a função de disseminador das condutas ou
mesmo de vigilante destas.
Já no reinado de Texcoco, a situação era diferente. Nesse caso,
era o próprio “rei” que concedia aos juízes – sob seu poder supremo – a
repartição da justiça em colegiados especializados. Ora, mantinham-se
os juizados para lugares mais afastados e, periodicamente, se realizavam
audiências para as questões mais graves. Também convocavam-se reuni-
ões gerais para estabelecer esclarecimentos junto ao Supremo, principal-
mente no tocante à ordem financeira. A especialização em tribunais para
causas de nobres e de militares se destaca na organização do sistema; as
chamadas salas do palácio real comportavam divisórias conforme a te-
mática do julgado. Entretanto, algumas variantes se produziam: “[…] En
Tlaxcala, conocía de los pleitos y los decidía, un consejo de ancianos. En
Matlazinco, el primer rey conocía de los asuntos graves y los otros dos de
los de poca importancia. En Michoacán había un Tribunal Supremo para
asuntos penales; pero de los casos graves conocía el Rey”114.
Conforme a afirmação anterior, os juízes eram eleitos – no caso
do México, somente o magistrado superior era nomeado pelo rei –, mas
o perfil do jurista se tratava de pessoa da nobreza educada no Calmecac,
com qualidades de sabedoria e não afeito a receber dádivas e benes-
ses, tampouco comprometer-se com embriaguez. Encarregava-se muito
a quem fosse administrar justiça, bem como lhe outorgavam todas as
condições para o bom desempenho da função. Todavia, a responsabili-
dade era severamente avaliada quando a conduta se desvirtuava; a falta
de um magistrado era motivo da atribuição de penalidade à altura da

114
Ibid., p. 21.

84
sua investidura, não se permitindo os mesmos privilégios em termos de
exercício da função. Ao contrário disso, aplicavam-se penalidades com
a finalidade de castigar o mau uso da confiança depositada115.
Dessa maneira, correlato à atenção ao rigor das penalidades,
tem-se o grau de responsabilidade e de confiança atribuído ao adminis-
trador da justiça, demonstrando que, apesar de não ser ato fundante da
sociedade Asteca, o Direito tinha grande importância na organização e
no desenvolvimento das relações entre os povos. As fontes de que ema-
nava o Direito Asteca se constituíam basicamente em duas: os costumes
e as sentenças dos reis e juízes116.
Isso tudo evidencia que o sistema jurídico obedece a um sistema
cultural mais próximo ao cotidiano do povo, não se submetendo inteira-
mente aos desígnios deste. Afinal, o juiz era um sábio e, justamente por
esta qualidade, atendia à continuidade histórica dos seus desígnios, auxi-
liado por condutos inseridos nesse meio, ou mesmo quando o próprio juiz
se inteirava ao cotidiano – como no caso dos juízes que estavam de pron-
tidão nos mercados ou das figuras dos bairros, conforme mencionado.

115
“Si se hallaba que algún juez por respeto de alguna persona iba contra la
verdad y rectitud de la justicia, o si recibía alguna cosa de los pleiteantes, o si sabían
que se embeodaba, si la culpa era leve, una y dos veces, los otros jueces lo reprendían
ásperamente, y si no se enmendaba, a la tercera vez lo trasquilaban (entre ellos era
cosa de gran ignominia), y lo privaban con gran confusión, del oficio. En Texcoco
acaeció, poca antes de que los españoles viniesen, mandar el señor ahorcar un juez
porque por favorecer un principal contra un plebeyo dio injusta sentencia, y había
informado siniestramente el mismo señor sobre el caso; y después, sabida la verdad
mandó ejecutar en él la pena de muerte”. Ibid, p. 22.
116
“Los reyes y los jueces eran los legisladores; unos y otros, al castigar algún
delito o al fallar en algún negocio, sentaban una especie de jurisprudencia, pues el cas-
tigo en materia penal se tenía como un ejemplo que era repetido más tarde en idénticas
circunstancias y el fallo en cuestiones civiles, como una ley que se observaba fielmente
en posteriores ocasiones. El pueblo, en esta jurisprudencia, desempeñaba un papel
importantísimo: las penas que señalaban el rey o los jueces eran del todo acordes con
el sentimiento moral de aquel en la época, y las sentencias civiles no hacían otra cosa,
la mayoría de las veces, que sancionar los hábitos populares”. Ibid., p. 34.

85
O sistema era composto por normas consuetudinárias não escri-
tas. Embora existissem alguns hieróglifos que sustentavam algo seme-
lhante a um código, não eram utilizados com finalidade de conhecimen-
to disseminado da lei, mas como objeto de estudos e arquivo histórico
das práticas jurídicas para fins de análise pelos juristas. Já ao povoado,
nas relações cotidianas em geral, tinha-se no conhecimento cultural a
fonte dos seus direitos. Recorda Mendieta y Nuñez:
Las principales disposiciones penales y las más importan-
tes reglas que normaban los actos de la vida civil y públi-
ca, estaban escritas en jeroglíficos; algunos de ellos se han
conservado hasta nuestros días. Estos jeroglíficos no te-
nían más fuerza que la de la costumbre, servían para con-
servar la tradición jurídica; pero eran exclusivamente para
el conocimiento de los jueces y no para hacer del dominio
público las disposiciones legislativas. El derecho, entre los
antiguos mexicanos era, por tanto, consuetudinario117.

Esse autor complementa a ideia, afirmando que “[…] siéndonos


imposible referirnos al espíritu dominante en cada cuerpo de leyes, pues-
to que no habiendo Códigos escritos, las leyes indígenas no ofrecían uni-
dades definidas […]”118. Esses referentes às condições dos estatutos das
pessoas correspondem a uma lógica de desigualdade, pois, na concepção
social Asteca, existia uma divisão setorial, a qual influía no uso e na apli-
cação jurídica. No entanto, quando se aborda a questão dos escravos,
percebe-se através dos estudos que estes mantinham sua personalidade
jurídica mesmo na condição em que se encontravam, enquanto, entre os
sujeitos livres, as diferenciações se davam por questões de classe119.

117
Ibid., p. 34.
118
Ibid., p. 34.
119
“La esclavitud era, en hecho y en derecho, mucho más humana que la escla-
vitud usada entre los romanos. En realidad no era sino un género especial de servi-
dumbre que no invalidaba la personalidad jurídica del individuo. No puede decirse

86
A desigualdade no Direito Asteca não parece privilegiar alguns
sujeitos em detrimento de outros, mas sim constituir-se em reflexo do
contexto fundante do ato jurídico em si, ao mesmo tempo que creditava
ao Direito de outros sujeitos de categorias diferentes. Em falta de estu-
do mais aprofundado em relação a esse quesito, seria interessante zelar
pela cautela e deixá-lo apenas a título de referência, como uma hipótese
inexplorada. Ademais, é interessante notar nas evidências, em termos
de justiça, que não se tem registro no Direito Asteca da chamada peça
“fundamental” na administração da justiça moderna, o advogado.
No se tiene noticias de que hayan existido abogados; pa-
rece que las partes, en los asuntos civiles, y el acusador y
el acusado, en los penales hacían su demanda o acusación
o su defensa por sí mismos. Esto se comprende fácilmen-
te, si se tiene en cuenta la sencillez de la vida jurídica y
el corto número de leyes y la simplicidad del mecanismo
judicial. El derecho era fácilmente abordable para todos.
Sin embargo, Sahagún afirma que las partes podían estar
asistidas de sus procuradores120.

Essa afirmação demonstra que o objetivo do “litígio” não era so-


mente racionalizar em efeito para uma das partes ou debater em torno
de arcabouços jurídicos, mas representar um ato de descontinuidade nas
relações sociais em que há intervenção de terceiros, com o intuito de reo-
rientá-los na finalidade de retomar o “reto” convívio harmônico, sem ne-
cessidade de intermediários elucidativos dos fatos. Para os fins da admi-
nistração dos atos jurídicos, existiam as figuras dos juízes nos bairros, que
cumpriam a função de conectividade entre sistema judicial e população.

que las personas libres fuesen iguales ante la ley, porque si en lo que pudiéramos
llamar derecho penal de los indígenas, lejos de existir a las personas de categoría, en
ciertas relaciones civiles, muchas personas gozan de privilegios en relación con su
categoría”. Ibid., p. 38.
120
Ibid., p. 56.

87
À parte essa questão, algo que chama atenção na obra é sua ex-
posição em torno da rigidez do Direito Penal, em termos de privação de
liberdade, tanto nos escritos deste autor quanto nas várias outras fontes
consultadas. Essa referência temática ao sistema penal é invariavelmen-
te abordada como altamente repressiva, em excesso inclusive, com va-
riadas formas de pena de morte.
É curioso referenciar que a pena privativa de liberdade aparece
apenas na obra de Mendieta y Nuñez, que menciona:
Tenían las cárceles, escribe Mendieta, dentro de una casa
obscura y de poca claridad y en ella hacían la jaula o jau-
las, y la puerta de la casa, que era pequeña como puerta de
palomar, cerrada por afuera con tablas y arrimadas gran-
des piedras y allí estaban con mucho cuidado los guardas,
y como las cárceles eran inhumanas, en poco tiempo se
paraban los presos flacos y amarillos y por ser también la
comida débil y poca, que era lástima verlos, que parecía
que desde las cárceles comenzaban a gustar la angustia de
la muerte, que después habían de padecer121.

Como se pode perceber da exposição, a questão em torno do


Direito Penal Asteca é tratada segundo um viés do grau de severidade
das penas e da violência na sua aplicação. Diversos são os estudos que
exploram este fator, mesmo que no âmbito do próprio sistema jurídico
Asteca se perceba uma compartimentação da esfera penal. Sobre o Di-
reito Penal, em geral, Guillermo Floris Margadant assinala:
Es de notarse que entre los aztecas el derecho penal fue el
primero que en parte se trasladó de la costumbre al derecho
escrito. Sin embargo, la tolerancia española frente a ciertas
costumbres jurídicas precolombinas, no se extendió al de-
recho penal de los aborígenes. En general puede decirse que

121
Ibid., p. 58.

88
él régimen penal colonial era mucho más leve para el indio
mexicano, que este duro derecho penal azteca122 .

Essa afirmação leva a duvidar de quão irracional era esse sistema


penal, na medida em que se percebem evidências de humanização nas
penas dos povos originários ainda presentes nas culturas que as man-
têm vivas. Ao que parece, os estudiosos potencializaram alguns res-
quícios esparsos da severidade em documentos do período, utilizados
para casos concretos e para comparações com o desenvolvimento do
racionalismo penal e seu “humanismo” moderno, que conferem certa
desqualificação pejorativa ao período.
Por certo, deve-se reconhecer que não há outras provas ou ma-
teriais que possam comprovar a hipótese ou afastar a interpretação re-
alizada pelos pesquisadores. Entretanto, se pode ponderar desde a base
interpretativa dos autores – o Direito Penal Moderno –, quando da com-
paração ao sistema penal mexicano originário, que em parte é lido em
fragmentos normativos dos quais não se tem base concreta a respeito
das suas condições de aplicação real e da interpretação, por tratarem-se
de fragmentos e não da obra completa. Põe-se em questão o entendi-
mento dessa sistematização de “Direito Penal”, quando da análise dos
castigos por vezes sem conteúdo jurídico.
E, justamente por abordar esse tema das fontes de afirmação de
algo, é que se dá o espaço para adentrá-lo. Como foi mencionado acima,
as fontes de pesquisa do período compõem preocupação na totalidade
das principais obras estudadas, com as quais se crê dar validade às suas
abordagens; muitos investigadores utilizam como base as fontes já utili-
zadas em outras obras ou fazem referências a outras de cunho primário
para aprofundar o estudo. Nesse sentido, busca-se, nas próximas linhas,
expor a questão de um levantamento das principais fontes consultadas.

122
MARGADANT, Guillermo F. Introducción a la historia del derecho mexi-
cano. México: UNAM, 1971, p. 27.

89
O alemão Josef Kohler, que dedica várias páginas do seu livro a
sustentar quais seriam fontes do Direito Asteca123, afirma que as fontes
estariam organizadas em uma hierarquia de autores de acordo com o
critério de proximidade à fonte originária e também em consideração
às próprias preferências do autor, fontes diretas: a) monumentos e docu-
mentos conservados da época do reinado de Montezuma; b) códigos da
época – obras interpretadas de relatos ou de fragmentos normativos; c)
o chamado Livro de Ouro século XVII124; d) obras de Freis católicos, tais
como o chamado Código Mendocino125; e) a questão de uma fonte viva,
a qual trata o índio mesmo, na sua herança cultural. Sobre os índios,
vale uma observação acerca da leitura das leis e da questão da interpre-
tação igualdade/desigualdade:
Pero más importante aún, es conocer al indio con fines
adaptarlo al medio dentro de la cultura cristiana y de la
civilización, tomando para ello las medidas y establecien-
do las normas adecuadas a su dignidad de hombre, como
parte integrante de nuestra nación, sin apasionamientos
ciegos en pro de un indigenismo mal entendido, como en
el transcurso de nuestra vida independiente se ha mani-
festado. Tendremos oportunidad de examinar en las Leyes

123
KOHLER, Josef. El derecho de los aztecas. México, D. F.: Tribunal Superior
de Justicia del Distrito Federal, 2002, p. 20-39.
124
Hieróglifos que foram traduzidos ao idioma castelhano pelo Frei Andrés
Alcoviz. KOHLER, Josef. El derecho de los aztecas. México, D. F.: Tribunal Superior
de Justicia del Distrito Federal, 2002, p. 397.
125
“Este material foi mandado confeccionar por ordem do vice-rei Dom Anto-
nio de Mendonza, com a finalidade de levar informações ao rei Carlos V sobre a his-
toricidade dos originários, sua organização tributária e também sobre seu cotidiano, é
composto de três partes: um relato fundacional dos aztecas e sua história; o sistema e
expansão tributária e relatos do dia a dia do indígena e suas práticas. De acordo com as
informações de Kohler, este material não chegou ao seu destino, indo parar na França
e posteriormente na Inglaterra, onde descansa na biblioteca de Oxford”. Ibid., p. 399.

90
de Indias, sabias normas en que se tenía en cuenta la men-
talidad, criterio y, en una palabra, la psicología indígena,
normas que en épocas posteriores se han menospreciado
por considerar que establecían desigualdades, sin tener en
cuenta que la igualdad de las normas ante circunstancias
desiguales, es la mayor de las desigualdades126.

Nessa citação, Kohler reflete sua intencionalidade de expor a


condição do indígena junto ao Código de Índias e sua situação excep-
cional no tratamento dado por essa legislação assimilacionista. Algo que
vale destacar do fragmento é que primeiro deve-se ter em consideração
como fonte do estudo a importância da política indigenista presente nas
Leis de Índias, por conta de encontrarem-se nelas elementos que carac-
terizam e afirmam a colonização desses povos, bem como componentes
de proteção e de tolerância aos traços da sua identidade, pois se sabe que
esta legislação era calcada desde princípios e racionalidades cristãs.
Por outro lado, carece lembrar que as análises que considera-
rem a cultura indígena do período hão de observar a não linearidade do
desenvolvimento desta, e mais: sua mescla com a cultura hispânica – o
desigual de que fala o autor – pode ser lida de diversos ângulos, mas
acredita-se que o mais importante deve ser o choque cultural entre dois
seres com cargas culturais diferenciadas, as quais, no desenvolvimento
histórico, afirmarão uma diversidade inigualável por sua originalidade
resultante. Sendo assim, deve-se crer que o indígena e seus arquétipos
culturais são realmente uma fonte primária riquíssima, desde que con-
textualizada na não-linearidade do seu desenvolvimento, na mestiça-
gem do convívio com o branco europeu e no assimilacionismo das le-
gislações que o descaracterizaram como Outro.
Dessa forma, nas fontes indiretas de nível I, pela classificação
de Javier Cervantes y Anaya, aparecem autores ao tempo da conquista,

126
CERVANTES Y ANAYA, Javier de. Op. cit. p. 398.

91
escritores de relatos do período, tais como: Hernan Cortez127, Andrés de
Tapia128, Toribio Motolinia, Diego Duran, Bernardino Sahagún, Barto-
lomé de Las Casas129, Bernal Díaz del Castillo130; ou mesmo de historia-
dores indígenas: Fernando Pimentel Ixtlilxóchitl, Antonio Tovar Cano
Moctezuma, Tadeo de Niza, Gabriel Ayala, Domingo de San Antonio
Muñoz Chimalpahin, Fernando de Alva Ixtlilxóchitl e Tezozómoc131.
Esclarecidas algumas questões sobre as fontes, pode-se adentrar
às perspectivas organizacionais da justiça. Imperativo se faz analisar a
questão em torno da finalidade das guerras, eis que elas vão justificar a
expansão do império Asteca, e delinear o traçado do seu mapa geográ-
fico de poder. Dessa forma, a primeira utilidade que tem esse expedien-
te é o de fazer prisioneiros para sacrifícios; a segunda, dominar outros
povos e incluí-los no rol de cobrança de impostos, de tributos e obter
benesses. Esta segunda opção interessa mais ao quesito de organização
jurídica, e isso será utilizado pelos espanhóis na manutenção da teia de
administração da justiça. Inicialmente, utilizarão como arma política
de desarticulação do poder imperial Asteca e, depois, para destruir de
vez o reinado de Montezuma, por consequência, introduzindo a domi-
nação colonizadora através pela encomenda132.

127
CORTEZ, Hernan. A conquista do México. Tradução de Jurandir Soares
dos Santos. Porto Alegre: L&PM, 2011.
128
TAPIA, Andrés. Relación de la conquista de México. Axial entre manos:
México, 2008.
129
LAS CASAS, Frei Bartolomé de. O paraíso destruído: A sangrenta história
da conquista da América Espanhola. Tradução Heraldo Barbuy. Porto Alegre: L&PM,
2011.
130
CASTILLO, Bernal Díaz del. Historia verdadera de la conquista de la Nue-
va España. Prólogo con reseña crítica de la obra, vida y obra del autor, y marco histó-
rico. Editores mexicanos unidos: México, 2013.
131
Ver KOHLER, Josef. Op. cit., p. 400.
132
Ibid., p. 413.

92
Lógico que toda essa disputa por poder tinha como objetivo uma
ampliação dos domínios Astecas e a imposição do seu sistema de admi-
nistração da justiça. Tendo compreendido essa esquemática formação
e o desdobramento do poder do reinado de Montezuma, parte-se para
explorar outro caminho, contemplado na obra “Introduccion a la his-
tória del pensamiento jurídico em México”. Na parte destinada ao Di-
reito Asteca, Javier Cervantes faz menção ao quão bem estruturada era
a administração da justiça, porém, salienta que se deve esclarecer qual
conceituação é trabalhada na base desse pensamento jurídico, visto que
a questão da justiça busca conduzir os homens ao caminho “reto”133.
Pode-se deduzir da afirmação que a questão jurídica era definida
pela percepção do soberano, como um ato unilateral em desconexão
com os fatos culturais e independentes da vontade dos subordinados.
Contudo, foi verificado anteriormente que isso não é de todo verídico,
logo, o fragmento mencionado faz alusão ao fato de que a palavra final
do ato jurídico competia ao soberano e ele era o argumento supremo
de administração da justiça. Ora, se bem compreendido fosse esse ato
soberano, era estendido em seus domínios, desde que respeitando as
culturas locais, já que se viu anteriormente que a cultura jurídica Aste-
ca, a despeito de certa unidade dentro dos domínios, não pressupunha
a sua irrestrita uniformidade, pois caracterizava-se por uma geometria
variável, fato inegável em culturas nas quais as normatividades sociais

133
“Parece que este concepto descansa de que la justicia tiene por fin esencial
conducir a los hombres por el camino recto, pero ¿cuál era el camino recto? Ante
la inexistencia de leyes escritas por una parte, y la preponderancia del poder o la
voluntad del jefe por la otra el camino recto resultaría por la expresión de voluntad
expresada interpretada por él mismo, o por los órganos que le fueren subordinados.
A diferencia del concepto de Justicia como voluntad constante e perpetua de dar a
cada quien su derecho, entre los pueblos que no han alcanzado un estado de cultura
avanzado, la realización de la justicia mediante las resoluciones dictadas por jueces o
tribunales tiene más bien el carácter de un sometimiento a la voluntad superior, que
al reconocimiento de derechos”. CERVANTES Y ANAYA, Javier de. Op. cit., p. 444.

93
se sobrepõem às normatividades jurídicas, ou em que as últimas se con-
fundem com as primeiras.
Em torno do que poderia dizer-se Órgão Jurisdicional, ou mes-
mo de sua estrutura, leva-se em consideração o alerta do autor, segundo
quem existiam diferenças entre as estruturas judiciais dos reinos que
compunham o império Asteca, logo:
En este sentido se encuentra la opinión del Dr. Mendieta
y Nuñez: a la cabeza de la administración de la justicia
estaba el rey, y le seguía el cihuacoatl, especie de alter ego
del mismo. Las funciones del cihuacoatl no se concreta-
ban a las de justicia, sino de administración y de hacien-
da. Las sentencia por él dictadas no eran apelables ante
nadie; y existía un cihuacoatl no solo en la capital, sino en
diversos lugares a través del territorio, esculléndose para
ellos los sitios de más densa populación y hacía funciones
de tribunal de apelación respecto a los inferiores134 .

Da presente citação, duas questões cabem elucidar: primeiro, que


o conceito de rei – trabalhado nestas linhas – deve ser esclarecido, por
isso, faz-se necessário buscar compreender, de acordo com Josef Kohler135,
que este não se vincula à ideia europeia. Ainda que a lógica de poder
seja unitária e, a sucessão, por linhagem familiar, a terminologia cumpre
mais a função de afirmar a noção de poder político, desde uma cabeça
governante do que propriamente o desdobramento que o significado eu-
ropeu encerra em todas as suas acepções sociopolíticas e monárquicas.
O rei atribuía a administração da justiça a um administrador-geral, que,

134
Ibid., p. 445.
135
Para o autor: “Aceptamos el nombre de rey con que se designa al jefe o caci-
que, por amoldarse la connotación de esa palabra a toda clase de regímenes de carácter
monárquico, o sea, cuando la potestad se deposita en una persona y que además la ejer-
ce de manera vitalicia; pero no debe entenderse que haya identidad entre las funciones
del rey, entendida con el significado tradicional europeo, y la que tenían los jefes de las
sociedades americana en época precolombina”. KOHLER, Josef. Op. cit., p. 410.

94
em realidade, era responsável pelas questões tributárias. Vale relembrar
o que já foi dito anteriormente sobre a expansão do sistema de domínios
Azteca e seu ideário de domínio tributário, bem se pode entender que
a conceituação jurídica está atrelada aos aspectos culturais da lógica de
administração da justiça, possuindo estrita conexão com esse sistema de
tributos. Portanto, o administrador – agindo como extensão do poder
real – agregava poderes para a organização judicial.
Como também já afirmado, a questão da organização judicial
Asteca competia aos interesses de tributação, eis que: “Los Aztecas im-
pusieron definitivamente en las comarcas conquistadas una parte de su
derecho; pero en muchos puntos dejaron a los subyugados su indepen-
dencia a este respecto”136. Não há conhecimento relacionado às razões
desse tipo de atitude, não obstante, a finalidade parece evidente em
termos de administração da justiça: mantém o domínio do instituto
judicial e delega a operacionalização em termos específicos. Por um
lado, isso ajuda os Astecas a manterem seus domínios; por outro, vai
interessar e muito aos espanhóis, que “[…] al llegar Cortés, sus con-
quistas eran en parte demasiado recientes para permitir que su derecho
hubiera podido penetrar más al fondo y por eso al lado del derecho de
la metrópoli existían muchos derechos provinciales”137. Mais que isso,
a questão da administração judiciária, em mãos dos subordinados do
rei, gerava uma rede de importância econômica que alimentava a exis-
tência e o sustento do império. Aos espanhóis, pouco importava qual
Direito ou sistema jurídico se seguia, até porque, durante muito tempo,
a conquista foi tolerante com isso, ainda que nas Leis das Índias cons-
tasse a submissão aos princípios católicos. De fato, não era assim, vale
lembrar Hanns-Albert Steger:

136
Ibid., p. 21.
137
Ibid., p. 21.

95
Para los españoles parece haber sido imposible compren-
der el sistema jurídico autóctono de los indios. Sin embar-
go, transformaron a los caciques en intermediarios entre
la administración virreinal y los indios nativos. Ochenta
años después de la Conquista, el virrey de México no sa-
bía en qué contexto se nombraron los caciques y cómo
se transmitieron sus cargos. Los virreyes reconocieron a
los caciques como “señores naturales” y aceptaran su le-
gitimidad “natural”, sin preguntarse cómo está se había
fundado. Se utilizó la red de los “señores naturales” para
organizar la extracción tributaria, todo lo demás no tenía
interés para la burocracia española138 .

Manteve-se, nessa situação, o modelo de organização da justi-


ça, sem que se compreendesse em realidade o seu fundamento e, muito
menos, suas justificações. A rede de poder político dominador com-
preendia um sistema arquitetado e equilibrado em lógicas de poder e
sucessão, com particularidades que não interessavam ao dominador
espanhol, pois a ganância lucrativa, enquanto fez efeito, tolerou essa
apoteose da diversidade do esquema de organização judicial, quando no
fundo o interesse era a lógica de tributação que lhe dava bons frutos. A
crise não tarda em demonstrar os efeitos quando as gerações indígenas
começam a suceder-se, e o sistema tende a ruir, mais por falta de susten-
tação e fundamentação interna do que por operacionalização.
A isso poderia atribuir-se um conceito de Mestiçagem jurídica,
mencionado por Javier Cervantes, já referido de maneira geral anterior-
mente; no presente momento, cabe uma alusão aos ensinamentos do
historiador mexicano Esquivel Obregón:

138
STEGER, Hanns-Albert. Legitimación y poder, las formación de sociedades
nacionales en América Latina. In: DAL RI, Luciene. DAL RI JR., Arno. GARCÍA
GALLO, Alfonso. et al. (Org.). A latinidade da América Latina: enfoques históri-
cos-jurídicos. 2008, p. 91.

96
Por otra parte, conviene hacer nota, como lo hizo el ma-
estro Esquivel Obregón, el fenómeno en virtud del cual el
Derecho Indígena fue desvirtuado por la acción misma
de los indios, como el Derecho Español fue también al-
terado en América por acciones de los mismos españo-
les. El indio encontró en muchos casos más beneficios
en el Derecho Español, y fue el primero en desconocer
sus propias instituciones; y por su parte el español, ante
las facilidades que encontraba el indio para satisfacer sus
necesidades, cuando no su codicia desvirtuaba su propio
Derecho Español, surgiendo de todo esto un nuevo siste-
ma jurídico que si bien es cierto fue preponderantemente
hispánico, no dejó de resentir la influencia del indio139.

Quando, na primeira parte do fragmento, o autor atribui certo


desvirtuamento ao sistema por conta dos próprios indígenas, talvez es-
teja pensando nos setores oprimidos pelo domínio Asteca. Embarcando
na tese de que o sistema espanhol seria mais interessante ou traria mais
benefícios aos dominados, tinha potencialidade de garantir libertação
do jugo do império de Montezuma a esses sujeitos oprimidos – contudo,
sem livrar-se do extermínio e da violência que posteriormente surgi-
riam com os novos dominadores. Ainda em atenção à primeira parte
do fragmento, encontram-se desavenças internas para minar o império
e utilizar suas lógicas comunicativas ante a incapacidade do domínio
jurídico, pois a centralização jurídica na Europa ainda era fruto de uma
evolução que se constituiria mais tarde. Pode-se pensar que, no período
colonial, impor essa pretensão seria desnecessário, o que faria da explo-
ração das redes indígenas algo mais interessante.
Essa mestiçagem jurídica interessou muito mais aos espanhóis do-
minadores do que propriamente aos indígenas, afinal, suas questões nor-

139
ESQUIVEL OBREGON apud KOHLER, Josef. El derecho de los aztecas.
México, D. F.: Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2002, p. 395.

97
mativas se mantiveram por largo período sob o reconhecimento das Leis
de Índias, fato que não acrescenta e nem onera em nada a estes. A situação
começa mudar com a formação do Estado e a unificação do Direito, como
se verá mais adiante. Esses fatores, para os espanhóis dominadores, deso-
neram e proporcionam um bom lucro, pois sem capacidade organizativa
para impor o seu próprio sistema jurídico, atuam via uma mistura con-
templativa que de fundo muito lucrativo se pareceu, deixando em aberto
uma futura dominação e uma subjugação jurídica total, quando as Leis de
Índias colocam limites à existência do Pluralismo Jurídico indígena.
Resta discordar do autor no ponto no qual menciona que aos po-
vos originários tenha sido benéfico. Isto se faz considerando dois elemen-
tos: o primeiro é a realidade demonstrada pelos fatos históricos visuali-
zados na amplitude da compreensão do fenômeno, que demonstram que
a organização e administração da justiça plural foram suplantadas pelos
domínios e hegemonia jurídica espanhola; e em segundo momento da
reflexão, também é possível reconhecer que o autor, quando recorda uma
circunstância conflitiva – entres alguns grupos indígenas e o império
Asteca –, acaba olvidando a diferença dos interesses dos vários lados –
indígenas rebeldes, império Asteca e espanhóis dominadores.
Com essas reflexões, não se quer descartar a influência indígena
no prolongamento jurídico da sua originalidade ou mesmo desconside-
rar sua influência nos desdobramentos do sistema jurídico ao tempo da
conquista e da colonização. Na realidade, o que se pretende afirmar é
que esse Pluralismo Jurídico tolerante espanhol gera silenciosamente o
ocultamento de um sistema sobre outro. Por fim, a influência indígena
torna-se esvaziada, e sua personificação original é maculada no oculta-
mento durante o nascimento do efêmero sistema de Direito Moderno.
Vale refletir a proposta de Cervantes em relação a esses aspectos:
El sentido jurídico del indio es factor importantísimo en
la Historia del Derecho en México; él ha obrado activa y

98
poderosamente en toda nuestra vida; pero en la oscuri-
dad, sin él mismo darse cuenta as veces, porque las fuer-
zas vienen de los senos inaccesibles de un alma cuyo mis-
terio no nos hemos ya cuidado de penetrar, ni menos de
exponer en nuestras Leyes, por temor de que se diga que
somos enemigos del principio de igualdad y que tratamos
de volver a la odiosa distinción de razas140.

Em torno dessa perspectiva, tem-se em conta que, mesmo no


chamado ocultamento indígena da historicidade jurídica oficial, ou en-
tão, quando do “assimilacionismo” da juridicidade indígena à cultura
jurídica do branco europeu, cabe referenciar que houve, em certo senti-
do, persistência do Direito consuetudinário originário. Nesses casos, o
que se verifica é uma mescla entre a cultura jurídica indígena e a cultura
jurídica do invasor, fator que não altera o conteúdo material e a origi-
nalidade da cultura jurídica autóctone. Ora, esse fenômeno é verificável
atualmente, basta estudar os povos herdeiros dos impérios Maias, Incas
e mesmo Astecas. Guillermo Margadant, em seu estudo, afirma:
Desde luego, algunas regiones de México han sentido
poco la influencia de la nueva civilización, traída por los
españoles. Entre los lacandones, los indios de la Sierra
Alta de Chiapas, en Quintana Roo y algunas regiones re-
motas de Yucatán y Campeche, entre los Tarahumaras
y lo Yaquis, Seris, Coras, etecétera, encontramos prác-
ticas jurídicas consuetudinarias, cuya base uno busca-
ría en balde en la legislación oficial de las entidades en
cuestión. Es de suponerse que se trata de supervivencia
del derecho precortesiano, aunque que a menudo nos
sorprende las diferencias entre la vida jurídica que, por
ejemplo, Robert Redfield nos describe en su análisis de
un pueblo maya, Tusik, y lo que pensamos saber de la

140
Ibid., p. 396.

99
antigua vida jurídica maya. Inclusive cerca de la capital
se observan figuras jurídicas consuetudinarias, contra
legem, que constituyen posiblemente transformaciones
de instituciones precortesianas141.

Pode-se fazer uma leitura da resistência do Direito Indígena142


ao processo de centralização jurídica eurocêntrica. Mas, no âmbito da
presente reflexão, se privilegia o descaso da Coroa de Castela quanto
ao modo de organização desses povos, em que possa ganhar relevância
esse sistema jurídico autóctone somente quando em confronto com os
interesses do soberano político moderno. Nesse sentido, ao que parece,
esse sistema sobreviveu aos tempos por não estar conectado em outros
âmbitos de interesse na colonização e tampouco no Estado Moderno.
Logo, a persistência histórica da sua continuidade constitui um acidente
no desenvolvimento jurídico moderno monista, diga-se não intencio-
nal, mas que representa um riquíssimo acervo vivo, com elementos que
podem evidenciar algo daquele sistema operacional jurídico de que se
tem conhecimento via relatos.
Contudo, Guillermo F. Margadant relembra quanto de mestiça-
gem pode haver nesse sistema jurídico originário e quanto deste tam-
bém se pode encontrar no sistema jurídico oficial. Quer o autor demons-
trar a dose que influenciou nas origens do sistema jurídico regional, e
fazer aflorar a ideia de mestiçagem jurídica que apresenta seus limites

141
MARGADANT, Guillermo F. Introducción a la historia del derecho mexi-
cano. México: UNAM, 1971, p. 29.
142
De forma geral e específica sobre o Direito Indígena no período da conquis-
ta, consultar: COLAÇO, Thais Luzia. O Direito indígena pré-colonial. In: WOLK-
MER, Antonio Carlos (Org.). Direito e justiça na América Indígena: da conquista
a colonização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 111-142. Cf. COLAÇO,
Thais Luzia. O direito guarani pré-colonial e as missões jesuíticas: a questão da inca-
pacidade indígena e da tutela religiosa. 1998. 468f. Tese (Doutorado) – Curso de Di-
reito, CCJ, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1998. Disponível
em: <http://tede.ufsc.br/teses/PDPC0280-T.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2014.

100
de exploração histórica, e há de se ter em conta quando observadas as
considerações abaixo:
Otra cuestión es la de saber cuánto del derecho precor-
tesiano sobrevive, no al margen de la legislación oficial,
sino incorporado en ella. Tratando esa cuestión debemos
tener cuidado de no considerar coincidencia entre el de-
recho moderno y el precortesiano como producto de fi-
liación entre ambos sistemas: muchas figuras del derecho
nacen del sentido común, o de la lógica de la vida social;
por lo tanto, tales coincidencias pueden tener una fuente
común en idénticas necesidades sociales, y no indicar que
el sistema nuevo sea una prolongación de otro anterior143.

Admitindo-se a proposição, sabe-se que o esquema de adminis-


tração da justiça e a organização jurisdicional Asteca foram paulatina-
mente suprimidos durante o período colonial, tendo como conclusivo o
processo de marginalização quando da formação dos Estados Moder-
nos. Não se deve digerir como meramente protetivas as Leis de Índias,
pois tiveram um papel importantíssimo nessa transição; talvez o que se
pode creditar a essas leis é o fator de minimização da violência e de ins-
trumentalidade transitória para outra realidade jurídica. Se por um lado
encobriu e minimizou a violência real, de outro se fundou na legalização
da violência simbólica, aniquilando as instituições jurídicas pré-hispâ-
nicas, às quais não cabe julgamento quanto ao seu nível de civilidade ou
racionalidade, afinal, a proposta é impossível na sua acepção, tendo em
vista primeiramente a falta de elementos concretos e mais evidentes e,
em segundo, os aspectos falhos do próprio ato sentencial, no sentido de
que não há como julgar sistemas que são constituídos além da diferença
e distintos desde seus matizes formais e materiais (vale dizer das raízes).
O que se deve explorar dessa afirmação é o fato de que:

143
MARGADANT, Guillermo F. Op. cit., p. 29.

101
Aunque la Corona española de ningún modo quiso eli-
minar todo el derecho precortesiano, y expresamente au-
torizó la continuada vigencia de aquellas costumbres que
fueran compatibles con los intereses de la Corona y del
Cristianismo (Leyes de Indias) la superioridad de la civi-
lización Hispánica impulsó a los mismos indios a aban-
donar a menudo – innecesariamente – sus costumbres, en
beneficio del sistema nuevo. En algunas materias, empero,
como en la organización del ejido moderno con sus parce-
las individuales, es posible que tradiciones arraigadas en
la fase precortesiana hayan logrado transmitirse a la fase
colonial e inclusive a la moderna legislación agraria144 .

Mesmo que notória a tendência eurocêntrica do autor, em ter-


mos de atribuir preferência por determinada civilização, inclusive au-
ferindo superioridade – talvez confundindo superioridade militar com
superioridade civilizacional –, como se fosse possível catalogar hierar-
quicamente partindo do critério civilizacional. Vale ponderar, em nota,
que o Direito ou sistema jurídico pré-colonial se fez duradouro por con-
ta dos interesses ou da vontade da Coroa; talvez não seja de todo con-
creta essa afirmação, pois se pode levantar a hipótese da resistência in-
dígena em abdicar dos seus costumes, somando-se ao fato de: qual seria
o interesse da Coroa em administrar justiça para aqueles que não eram
considerados humanos? Ademais, o choque de culturas jurídicas pode
ser explorado nas audiências, momentos em que se acredita ter sido ins-
taurado em grau mais alto o confronto de juridicidades, com imposição
da jurisdição colonial – este é assunto para uma seguinte etapa.
Por enquanto, importa mencionar que a continuidade do Direito
Asteca nas Leis de Índias é o embasamento para a hipótese estruturada
acima, à medida que muitos costumes “jurídicos” indígenas foram in-
corporados pelo novo ordenamento com a finalidade de manter, à ca-

144
Ibid., p. 29.

102
beça, o Estado espanhol, mas, na operacionalização, os velhos costumes
locais. Isso é importante notar: o Estado invasor manteve a lógica de
Pluralismo Jurídico de tipo assimilacionista, ou seja, aceitava a vasta
teia de juridicidades desde que sob seu controle se mantivesse a admi-
nistração da justiça. Tratava-se de uma unidade abstrata formada por
uma pluriversidade real, em que a unidade descansava na diversidade
do ordenamento jurídico colonial. Veja a opinião do mexicano:
En las Leyes de Indias, que no estudiamos los mexicanos,
pero que sí estudian los juristas historiadores españoles, por
más que para ello sea más difícil establecer las relaciones
que puedan tener con las instituciones y la vida práctica del
indio; en esas leyes, decimos, pueden encontrarse huellas
del derecho precortesiano, pues a veces los reyes españoles
dieron forma legales a lo que los indios tenían y practica-
ban. Precisamente la propiedad comunal de los pueblos fue
legalmente sancionada, como institución exclusiva para los
indios de la colonia, en tanto que para los españoles y los
mestizos se imponía la propiedad individual con su ius abu-
tendi, conforme la legislación de Castilla145.

De outra banda, essa citação põe em evidência uma reflexão em


torno do conceito de igualdade e de diferença acima referido, pois o
contexto social colonial estava em escalas grupais ou classes, ao gosto
do leitor, que determinava tratamento legal diferenciado. A concepção
de igualdade, ao que parece, era aplicada entre iguais, e a concepção de
diferente, aos diferentes146. Essas lógicas serão sepultadas adiante, ante o
contexto ideológico iluminista da igualdade abstrata universal; no mo-
mento, importa atribuir esta diferenciação como maneira de reconheci-

145
KOHLER, Josef. Op. cit., p. 11.
146
RANGEL, J. A. de la Torre. Direitos dos povos indígenas: da Nova Espanha
até a modernidade. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e Justiça na América
Indígena. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 231.

103
mento da situação real no contexto social e, mais ao final do fragmento,
se percebe que essa proteção legal à propriedade comunal indígena dei-
xa de ter validade na usurpação legalizada, quando da formação do Es-
tado, algo que pode sugerir a função econômico-social do centralismo
uniforme da jurisdição, no nascente Estado Moderno mexicano.
De modo a finalizar esta etapa, explorando os modelos norma-
tivos dos autores referenciais, destaca-se os exageros do campo herme-
nêutico destes. Como no parágrafo anterior, a interpretação, ainda que
válida, encontra-se totalmente viciada pelo locus de reflexão que parte
do próprio autor. A seguir, Josef Kohle trata das leis que tinham os po-
vos originários em forma de registro:
En su legislación de paz iba a la cabeza del estado acolhua,
con su capital Texcoco; sus leyes y su organización política
se hicieron típicas para los estado vecinos, especialmente
para los aztecas. Los grandes legisladores de los acolhuas
fueron principalmente los dos célebres y preminentes
reyes, Nezahuacóyotl, (1431-1472), y Nezahualpiltzintli,
(1472 hasta 1515). El primero dio ochencha leyes que crea-
ron un nuevo estado del derecho. A estas ochenchas leyes
pertenecen las treinta y dos que aun se conservan147.

Nesse ponto, faz sentido o alerta do espanhol Alfonso García Gallo:


[…] los pocos estudios realizados por juristas adolecen,
en su mayor parte, del erróneo planteamiento de valorar
los datos con mentalidad jurídica actual. Son muy pocos
los estudiosos que han procedido con una doble formaci-
ón etnológica y jurídica148 .

147
KOHLER, Josef. Op. cit., p. 46.
148
GARCÍA GALLO. Alfonso. La penetración de los derechos europeos y el
pluralismo jurídico en la América Española, 1492-1824. In: DAL RI, Luciene. DAL RI
JR., Arno. GARCÍA GALLO, Alfonso. et al. (Org.). A latinidade da América Latina:
enfoques históricos-jurídicos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 99.

104
Portanto, torna-se inegável o contexto originário de Pluralismo
Jurídico nas instituições pré-hispânicas, com a finalidade em um cená-
rio de normatividade social sobreposta à normatividade de conteúdo
jurídico propriamente, no qual a força normativa desses povos advinha
a própria cultura e o convívio harmônico. Essa origem e sequência his-
tórica do desenvolvimento do chamado Direito pré-cortesiano, calcada
na consciência popular e com intuito de suprir suas necessidades rela-
cionais, correspondia a um determinado momento e a carências espe-
cíficas de um povo. Logo, a base das normatividades descansa sobre as
realidades sociais, e o fenômeno jurídico se envolve em torno delas. O
mundo alienígena que topa com o ser originário de Abya Yala é incom-
preensível aos olhos dos povos autóctones, na medida em que a racio-
nalidade que funda o sistema jurídico invasor encontra-se calcada na
afirmação do sistema de leis sobre culturas, diversidades, pluralidades,
conformada em uma homogeneidade abstrata ou em uma pluralidade
que busca se exaurir em denominador comum.
Esses elementos ganham sua devida importância quando o co-
lonizador espanhol reconhece a influência e a importância do Direito
autóctone, e o faz através das normatividades dirigidas para este espaço,
conhecidas como Lei de Índias. O intuito foi o de expandir domínios
através das mesmas redes de conexões oportunizadas pelo espólio do
império Asteca. Salvo essa consciência de utilização e de aproveitamen-
to dos sistemas de administração de justiça locais pelos espanhóis, com
objetivo de concretizar a colonização, os demais aspectos auferidos de-
monstram o grau de organização e de complexidade que traz à luz que
o ordenamento jurídico plural autóctone era evidentemente mais avan-
çado e sofisticado que o modelo unitário implantado.
Para esta etapa, importa saber que o sistema jurídico na América
indígena é um descontínuo evoluir até o monismo centralista dos Esta-
dos modernos. E a persistência do legado originário, a ser verificada na
próxima seção, consiste em demonstrar que o grau de durabilidade de

105
um sistema jurídico é inversamente proporcional à sua rigidez legal; essa
talvez seja uma das inúmeras lições do Pluralismo Jurídico pré-colonial.
Diante disso, como foi visto, mesmo impérios dominadores –
como no caso dos Astecas – respeitavam a organização jurídica local e
o poder político dos seus líderes, conservando os arquétipos fundantes
dos dominados, com claro intuito de se manterem como dominadores,
porém, não produzindo ausentes e ocultamentos; fato contrário se tem
como hipótese para o próximo capítulo. Por enquanto, resta guardar os
principais ensinamentos desta etapa para, na próxima, iniciar refletindo
como foi constituindo-se o processo de produção de ausências jurídicas,
centralização das fontes normativas e afirmação de um novo domínio
em solo dos povos originários.

1.2.2. O Direito no período da conquista e da colonização da América autóctone

Diante do apresentado, no momento pré-hispânico, pode-se per-


ceber a importância que os costumes obtinham sobre o campo jurídico.
A lógica racionalizada do Direito (típica da modernidade), começará a
modelar-se como dominante e hegemônica na necessidade de fundar os
Estados modernos, com constituições e ordens jurídicas de tipos legali-
zados na institucionalidade burocrática, na coerção estatal e na prima-
zia da centralização. A presente etapa do estudo busca conformar um
momento de pré-centralização jurídica, em que a conquista e a coloni-
zação representam a antessala do monismo jurídico.
O tema da conquista e da colonização será trabalhado desde os
aspectos jurídicos, os quais, em realidade, compuseram todos os atos que
envolveram o Estado espanhol e português nas Índias. Desde o momento
da partida da Europa até a chegada, a invasão e o assentamento em terras
ameríndias, a juridicidade ocupou um espaço primordial na filosofia po-
lítica da conquista, como ato de fundamentar e legitimar o domínio. Em
razão disso, o tema da juridicidade, da conquista à colonização, ganha
centralidade nesta etapa do estudo. Comporta a importância de desmiti-

106
ficar que a unidade e o domínio monista não configuram uma afirmação
neste momento histórico; ao contrário, esse período ganha relevância
justamente por permitir, apesar do manto da destruição e da domina-
ção, alguns campos de autonomia, entre os quais o jurídico é um deles,
conformando uma espécie de Pluralismo Jurídico subjugado.
Essa hipótese justifica-se no sentido de abordar como a empresa
colonizadora representa um ato de tolerância quando da área de aborda-
gem jurídica, fato que, no campo cultural, no religioso e no político-social,
não se configura da mesma maneira. Ainda que possa ser lido o período
como antessala das perspectivas modernizadoras do centralismo jurídico
burocrático estatal, se encontram no período relatos do contexto plural.
Vale recordar que a sequência proposta no capítulo visa a (re)
construir os horizontes da totalidade moderna pelo viés jurídico. Con-
sequentemente, é perceptível que a temática do Pluralismo Jurídico so-
fre alterações com as modificações nas condições jurídicas autóctones
e originárias, pois a centralização das fontes do Direito, operada na
modernidade através de um lento processo de encobrimento de outras
vertentes, desacredita as perspectivas com enfoque na força normati-
va social, passando a potencializar a capacidade normativa unitária do
Estado, que refletirá em importante aspecto para a formação do futuro
Estado-nação independente.
Seguindo a proposta de Alfonso García Gallo149, não se preten-
de recorrer a essas ordens jurídicas com a intenção retórica, mas para
demonstrar a instrumentalidade do aparato performativo de uma or-

149
Este autor menciona que: “El trabajo, no obstante su relativa facilidade, pue-
de ser de interés cuando se trata de dar a conocer un material desconocido, o de valo-
rarlo. En todo caso será un trabajo mediocre si el estudioso se limita a exponer lo que
en él se encuentra y va a remolque de las fuentes sobre ellas. Sólo que entonces no se
encuentra con un trabajo hecho, sino con un trabajo pensado, que hay que elaborar”.
GARCÍA GALLO, Metologia de la historia del Derecho Indiano. Santiago: Editorial
Jurídica de Chile, 1971, p. 134.

107
denação adequada aos interesses da empreitada colonizadora, somada
a alguns aspectos da pluralidade jurídica frente ao movimento de cen-
tralidade no arcabouço da filosofia política da empresa mencionada, por
um momento mantendo um viés opressivo, por outro representando
uma tática assimilacionista com matizes autônomas.
Adverte-se que este período é sinuoso; suas instituições transi-
tam entre uma tortuosa estrada às vésperas da modernidade150, tornan-
do a pesquisa extremamente dificultosa por conta da interpretação a
respeito dos fatos e dos seus desdobramentos. Para evitar deslizes, cum-
pre delimitar sua abordagem; o momento de demonstrar a geografia
geral do período através das normatividades que o envolve, nada mais
significa que preparar o terreno para o enfoque específico de dimensio-
nar uma perspectiva crítica desmitificadora151. Tal crítica é operada pelo
Pluralismo Jurídico colonial, tendo em vista a profunda aniquilação e
intolerância colonizadora gerada pelo univocismo jurídico espanhol.

150
“Edad Moderna (siglos XVI a XVIII). Este período puede ser considerado
como el período de formación de un Derecho propiamente nacional. Dentro de él, el
reinado de los Monarcas Católicos, significa el momento de transición de la Edad Media
a la Edad Moderna. A lo largo de este período se produce la unidad dinástica, primero y
la unidad nacional de España, después. El viejo tipo de Estado-ciudad, es sustituido por
el nuevo sistema político que encarna el Estado-nación. España pasa a ocupar un pri-
mer plano entre los países rectores de Europa. Se produce una tendencia a la unificación
jurídica peninsular más que por la creación de un Derecho nuevo de características na-
cionales, por la expansión imperialista del Derecho castellano. […] Lo más interesante
de este período, en el orden jurídico, es la proyección sobre las Indias Occidentales del
Derecho castellano y la aparición en estos territorios del Derecho propiamente india-
no”. OTS Y CAPDEQUÍ. Manual de historia del Derecho Español en las Indias y del
Derecho propiamente Indiano. Buenos Aires: Editorial Losada, 1945, p. 30.
151
“En general, un historiador jurista de formación esencialmente dogmática
preferirá, sin duda, estudiar la institución tal como se configura en las leyes o en las
obras de literatura jurídica. Por el contrario, un historiador jurista más atento a la
vida efectiva del Derecho se inclinará a tomar como punto de partida el problema o
situación social que éste trata de ordenar, sin perjuicio de ocuparse estrictamente de
lo jurídico y hacerlo con rigurosa técnica. Lo que no impide que cualquiera de ellos,
cuando el tema lo requiera, adopte estos planteamientos el que estime más conve-
niente”. GARCÍA GALLO. Op. cit., p. 142.

108
Por fim, vale advertir que algumas opções foram tomadas, bus-
cando melhor delimitar a abordagem. A primeira delas se dá como já foi
realizado na primeira etapa do capítulo: privilegiando o Direito público
ou as normas que têm esse carácter em detrimento das normatividades
de caráter privado, nada mais pelo sentido que estas últimas tinham –
regular os negócios privados –, enquanto as normatividades públicas
visavam à organização do espaço político/jurídico. No desenvolvimento
do trabalho, a escolha pelo privilégio ao mundo hispânico, comparado
ao pouco espaço dedicado à conquista e à colonização portuguesa, se dá
entre vários motivos, principalmente pela melhor e maior sistematici-
dade da empreitada dos reinos de Castela, ante o tardio e desordenado
intento português152 – a despeito da vasta extensão territorial.
No âmbito da empreitada da conquista, marcadamente forçou-
-se um processo de base político-econômico evangelizador, contradição
que irá se desdobrar em interesses político-econômicos entre a Coroa
espanhola e os anseios privados de aventureiros em relação à questão
religiosa da instituição eclesiástica153.
O caráter jurídico da conquista se vê compreendido por estes três
âmbitos de interesses. Os acordos “capitulados” entre o poder político his-

152
Para Antonio Carlos Wolkmer: “Nos primórdios da colonização, o Reino
Luso, [estava] muito mais interessado nas riquezas do Oriente (Índias) […]. A or-
ganização institucional portuguesa foi exercida de forma menos disciplinada que a
espanhola […]. Já sob o aspecto administrativo, ainda que houvesse uma necessária
centralização em Lisboa com relação a todas as questões coloniais, a estrutura bu-
rocrática também não era das mais eficientes”. WOLKMER, Antonio Carlos (Org.).
Direito e Justiça na América Indígena. Da conquista a Colonização. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1998, p. 78.
153
Ainda que se possa configurar muito mais uma “ocupação”, certamente que
a tal “conquista” da América não foi um acontecimento isolado do cenário econômi-
co ocidental nos séculos XV e XVI. Na verdade, a lógica da conquista está inserida
num leque conjuntural maior do expansionismo europeu da época, assentado em
critérios econômicos (busca mercantil por metais preciosos) e político-ideológicos
(cristianizar os aborígenes e convertê-los em servos da igreja e da Coroa). Ibid., p. 76.

109
pânico-português, e os chamados “descobridores”, eram muitas vezes co-
ordenados por motivações de ordem religiosa, as quais se tornaram ine-
vitavelmente um confronto direto quando do assentamento da empresa
colonizadora e da finalidade do processo de dominação no Novo Mundo.
Apesar disso, ao final dos deslindes oriundos dessas divergências, cabia à
Coroa definir postura; esta, via de regra, pendia formalmente para o cam-
po religioso e, na prática154, para o lado sensível dos seus desafortunados
cofres, em que o chamado empenho colonizador pode ser medido pelo
grau lucrativo155 que a colônia explorada possibilitava.
Já Hector Bruit possui uma compreensão demasiado reducionista
da empresa colonizadora, visto que, na prática, o processo religioso tinha
fortes divergências156 do processo de exploração econômica, tanto que o
próprio Bartolomé de Las Casas e outros vigários expuseram em diversas
investidas seus descontentamentos com a empreitada violenta e ganan-
ciosa da conquista, em detrimento do processo espiritual da fé católica.

154
Nesse afã, o início da modernidade do Ocidente foi profundamente marca-
do pela interação do discurso evangelizador com a prática mercantil. Sem dúvida, foi
o triunfo de uma combinação ideológica bem articulada, em que o mercantilismo e a
evangelização se revelam, no dizer de Héctor Bruit, as duas faces “da mesma moeda”, e
seria impossível entender o processo de conquista, eliminando ou negando a importân-
cia de um deles. Contraditórios em princípio, ambos se complementam na prática, sem
que os colonizadores tivessem a pretenção de se esconder um atrás do outro. Ibid., p. 80.
155
Na colonização da América Ibérica, há de se considerar que a estrutura po-
lítico administrativa não foi uniforme e idêntica. Houve uma série de modalidades de
colonização colocadas em prática por espanhóis e portugueses. Importa ter presente
que o nível de dominação da Metrópole se definia em conformidade com a relevância
lucrativa que as colônias assumiam em determinado momento. Ibid., p. 77.
156
“A conquista americana suscitou uma ampla polêmica entre os partidários
da evangelização como único instrumento colonizador e os que consideravam lícito
o uso de outros recursos. Nos dois casos, surgiram três problemas que permearam
todo processo de assentamento dos colonos no continente: a relação com os infiéis,
o poder do papa e do rei e a guerra justa contra os índios. O debate americano sobre
estas questões esteve irremediavelmente vinculado ao objetivo mercantil da conquis-
ta, tanto ou mais importante que o evangelizador, a tal ponto que o próprio Las Casas

110
O olhar que lançam ambos os pesquisadores sobre este debate é
parcial. No intuito de demonstrar o real interesse do Estado espanhol
pelas Índias, porém, não se pode perder de vista os fenômenos em sua
especificidade dentro da generalidade, afinal, as Leis Novas e outras
legislações protetivas dos indígenas surgiram do contexto de reivindi-
cação em colocar freios na ganância opressiva do sistema colonizador,
auspiciado pelo seu processo de acúmulo econômico157.
A totalidade da obra de Las Casas, em que a doutrina religiosa
abarcou a conquista e a colonização, tinha um projeto próprio de ex-
pansão da doutrina católica, tendo em vista que a Igreja Católica estava
acossada na Europa pela expansão das perspectivas protestantes. Por
isso, vale lembrar que inclusive Las Casas suscitou a possibilidade de o
rei espanhol desistir da empreitada de colonizar a América, justamente
por conta de não ter capacidade de frear o chamado ímpeto destrutivo
do colonizador ante a ganância pelo ouro. Jamais a Coroa de Castela de-
sistiu da empreitada religiosa como uma das finalidades, e isso em nada
comprova a tese acima, no sentido de que a evangelização cumpriria o
fator de domínio necessário para assentamento da ordem econômica,
até porque os colonizadores não precisavam dos clérigos para efetuar a
captura e o domínio dos indígenas.
Ainda assim, a organização em reduções e a evangelização cum-
priam similar tarefa que, de uma maneira ou outra, serviria aos efeitos
pretendidos pela empresa colonizadora.

teve de ceder espaço ao primeiro, como foi demonstrado em seus projetos de coloni-
zação pacífica”. BRUIT, Hector. Bartolome de Las Casas e a simulação dos vencidos:
ensaio sobre a conquista hispânica da América. Campinas: Ed. da UNICAMP; São
Paulo (SP): Iluminuras, 1995, p. 89.
157
Las Casas, campeão da evangelização, compreendeu com nitidez o processo
histórico que viveu com tanta paixão e não se deixou iludir nem por suas ideias que
parecem utópica e até ingênuas. “Todas as coisas obedecem ao dinheiro e os índios
evangelizados são instrumentos para alcançar o ouro”, escreveu ele no Tratado com-
probatório del império soberano. Ibid., p. 90.

111
Seguindo essa linha de interpretação, pode-se mencionar que a
face da colonização possui três caras distintas, e não duas, e que apesar da
insígnia do processo ser a busca por horizontes de exploração mineral, a
tríplice unificadora deste se traduz em interesses que convergem e diver-
gem, conforme o contexto que seja estudado ou aplicado, pois o interesse
político da Coroa se aproxima do interesse privado dos colonizadores;
contudo, tem seu âmbito próprio de desenvolvimento, visto que a expan-
são e o domínio das colônias representam uma fonte de poder político
importantíssimo ao recém-iniciado processo de unificação Ibérico.
Esse projeto monárquico não era totalmente oposto ao acúmulo
da riqueza que interessava aos aventureiros privados, muitos dos quais,
em realidade, pouco se importavam com a ideia unificadora dos reinos
Ibéricos. Embora súditos, tratavam de dar enfoque aos seus imediatos
objetivos na empresa colonizadora, pois os altos investimentos realiza-
dos e o contrato de obrigações com a majestade constrangiam estes em
dar privilégios aos seus desígnios.
Frente a essas afirmações, que procuraram desvencilhar três
arquétipos que compõem a diversidade de um mesmo fenômeno – no
caso, a Colonização –, segue-se, nas próximas linhas, as especificidades
das instituições jurídicas e o caráter de pluralidade das normatividades
no âmbito do período, enfoque permeado pela organização em institui-
ções sociais, políticas e econômicas, em conformidade com as propostas
nas obras do especialista em Direito colonial na América Latina, o his-
toriador espanhol José Maria Ots y Capdequí158.
1.2.3. Instituições jurídicas

Ao iniciar esta parte, novamente realiza-se referência ao pensa-


mento de Jesús Antonio De la Torre Rangel, quando recorda ao historia-

158
OTS CAPDEQUÍ, J. M. El Estado Español En las Indias. México: Fdo. Cult.
Econômica, 1993. Ou mesmo a obra: OTS CAPDEQUÍ, J. M. Intituciones. Barcelona:
Salvat Editores S.A., 1959.

112
dor Rafael Altamira, revelando a importância de se fazer uma história
social, na qual o jurídico seja influído diretamente por estas questões
antes suscitadas, compreendendo que a análise meramente “legal” deve
ser relacionada ao seu correlato fático ou à materialidade compositiva
do “que fazer” do Direito, desdobrado nos momentos da sua verificação
na realidade cotidiana.
Tal escolha ajuda a evidenciar a qualidade do Direito legislado e a
sua adequação ao contexto, formado com base na complexidade de dois
mundos extremamente estranhos, que, na conexão forçada dos fatos da
conquista e da colonização, se veem permeados por elementos de origina-
lidade. Dessa maneira, ao se iniciar a questão das instituições jurídicas no
período, não se pode olvidar o enfoque geral da pesquisa, que busca, na
arquitetura histórica, a composição da chamada totalidade, desde aspectos
sociais, em que elementos e categorias dos períodos fundantes determinam
ou, pelo menos, direcionam o rumo dos debates na modernidade jurídica.
Seguindo essa linha, parece pertinente somar-se a preocupação
de Ots y Capdequí quanto ao método de abordagem histórica para aná-
lise das disciplinas histórico-jurídicas, podendo dar-se de maneira sis-
temática ou histórica159.
Justamente fundado na preocupação metodológica é que se po-
deria admitir um método sistemático, sem trabalhar uma instituição
jurídica em seu âmbito estrito, mas situando a sua pertinência dentro
do conjunto da obra colonização. Por essa razão, é mister concordar
com o autor no momento em que menciona o método histórico e se
compromete com a fidelidade dos acontecimentos no locus temporal
específico, pois, sem dúvida, esta opção exala maior condicionamento
para manusear as categorias do objeto. No tocante ao objeto proposto,
ou melhor, ao objeto da proposta de pesquisa do primeiro capítulo, vale
absorver os institutos sem atrelar-se muito ao seu recorte temporal, e
sim ao seu desdobramento informativo, performativo e prático. Logo,
a presente etapa comporta a análise da temática da seguinte forma: co-

113
meça-se pelo problema jurídico do descobrimento e pela necessidade
de fundamentar juridicamente este ato – tendo em vista que toda em-
preitada da conquista e da colonização se dá estritamente assim, até
mesmo os atos mais draconianos que se possam verificar, como foi o
caso da chamada “guerra justa” ou da “encomienda”, são permeados
por embasamentos jurídico160.
Contudo, as estruturas jurídicas da conquista e da colonização
estão embasadas em fundamentos que compõem o próprio arcabouço
da fundação dinástica unificada da Coroa Aragão-Castela. Em razão
disso, uma etapa em torno das instituições jurídicas castelhanas, ain-
da que de maneira sucinta, torna-se obrigatória mencionar, para logo
na sequência dar andamento ao regime e à organização judicial nas
Índias. Ademais, as bases jurídicas em aspectos gerais também são es-
tudadas no âmbito dos desdobramentos do chamado Direito Indiano
– capitulações, instruções, Leis Novas, Leis de Burgos, etc., concluindo
com a função social dos instrumentos de domínio como a encomenda,
desde um panorama jurídico.
Esclarecido o itinerário, a exploração daquilo que o jurista mexi-
cano lança como preocupação da sua pesquisa acerca do “descobrimen-
to” da América e do Direito, trata-se da questão da justificativa jurídica
para “penetração” em território das Índias ocidentais, em que se funda-
va o direito de invadir, dominar e colonizar os povos autóctones161.
A pergunta subsequente é, justamente, por que se dá esta situ-
ação de necessidade em justificar? Deve-se ao período em que ocorre

160
ZAVALA, Silvio. Op. cit., p. 10.
161
“[…] Este problema jurídico no era nuevo. Es el mismo que se había presen-
tado y se presenta, a lo largo de la historia de la humanidad, cuando están frente a
frente, cara a cara, conquistador y conquistado. La novedad, respecto a la Conquista
de América, estriba en que por primera vez se plantea la cuestión en términos ju-
rídico”. RANGEL, J. A. de la Torre. Lecciones de Historia del Derecho Mexicano.
México: Porrúa, 2010, p. 71.

114
o descobrimento, comutativo com a época da chamada Reconquista,
episódio da retomada pelos espanhóis dos territórios da península em
posse dos muçulmanos, somados à carga religiosa que compunha essa
empreitada: elementos que se estendem pelos territórios do “Novo Mun-
do”; para Jesús Antonio De la T. Rangel, “[…] la conquista de América se
considera una continuación de la labor de la Reconquista […], entre los
muchos elementos que entretejen su historia, tiene como cuestión prici-
palísima lo relativo a la moral Cristiana”162. Isso redunda na abordagem
em torno da busca de justificação que leva os reis católicos a pleitearem
apoio do sumo pontífice da Igreja Católica para referendar suas ações,
aparecendo as famosas bulas papais, como a Inter Caetera163.
Este documento com conteúdo jurídico concedeu para os reis
católicos soberania, jurisdição e domínio sobre as Índias ocidentais.
Ao contrário de resolver o problema da justificação dos reinados cas-
telhanos, causou transtornos em torno da interpretação do seu conte-
údo, culminando com a controvérsia originada pelo reinado português
que exigiu também os mesmos efeitos em favor das suas descobertas no
além-mar. Acontece que não só o fervoroso cristianismo do reinado de
Castela justificou a esta solicitação de interpelação do Vaticano, afinal,
essa prática era reiterada na Idade Média164. Percebe-se logo que o ponto
inaugural dessa questão não é as divergências no quesito interpretação
do fenômeno descobrimento – por isso a segurança jurídica pretendida

162
Ibid., p. 72.
163
“Esa religiosidad y esos fundamentos de moral Cristiana, así como una tra-
dición política medieval, lleva a los reyes españoles, Isabel de Castilla y Fernando de
Aragón, a recurrir al papa para justificar la Conquista y obtener un título que legiti-
me sus acciones en América. Obtiene las llamadas Bulas Inter cetera […]”. Ibid., p. 72.
164
“La historia no se parte en dos de un día para otro; las ideas políticas y jurí-
dicas de la modernidad se están gestando desde antes de los descubrimientos colom-
binos y pronto aparecen con fuerza. Por esa razón la Bula es cuestionada, ya que las
ideas políticas de la modernidad ponen en jaque a las teorías medievales. Como título

115
pelos espanhóis por meio da enunciação papal; não foi o documento em
si o problema, mas os desdobramentos jus-econômicos do seu conteúdo.
Silvio Zavala, em seu tradicional livro “Las instituciones jurídi-
cas en la Conquista de América”, pontua que justamente o caráter me-
dieval da prática do papa Alexandre VI é confrontado pela postura dos
novos tempos que começam a se aproximar. Esse caráter de transição
gera as diversidades interpretativas em torno do sentido jurídico ou de-
clarativo da bula165. Entretanto, é inegável que as principais interpre-
tações não desconheceram seu conteúdo jurídico, mesmo aquelas que
anunciaram um aspecto arbitral, em que a bula papal seria uma espécie
de resolução de conflitos entre as nações, hipótese de imediato afastada
pelo próprio Zavala. “[…] El examen de los documentos comprueba que
la sentencia arbitral no existió. Las bulas de Alejandro se expidieron
sin conocimiento ni citación de los portugueses y el litigio entre las dos
Coronas continuo después de las bulas”166.
Tratando-se ou não de uma sentença arbitral, o fato é que a
bula se desdobrou em outros atos de conteúdo jurídico, como é o caso
do Tratado de Tordesilhas, que se prestou a discutir a validade das
futuras possessões e passou a dar certo ânimo menos acirrado nas
disputas pelos territórios além-mar entre os reinados Ibéricos. Com
posteriores interpretações do documento papal, não faltou inquieta-
ção dos demais reinos europeus, logo, a bula, em vez de sanar a debi-

jurídico con pleno valor en el sentido de otorgar a España derechos de soberanía,


dominio y jurisdicción sobre Indias, sólo puede tener como base las ideas, las teorías
y las prácticas político-juridicas de la Edad Media. Existen muchos precedentes en la
práctica papal medieval, por la que los pontífices hacen donaciones de territorios y
otorgan soberanía y jurisdicción a reyes y poderosos señores, de tal modo que permi-
ten reconstruir a la genealogía de las Bulas de Alejandro VI”. Ibid., p. 75.
165
ZAVALA, Las instituiciones jurídicas en la conquista de América. Méxi-
co: Porrúa, 1988, p. 32.
166
Ibid., p. 33.

116
lidade justificadora do fanatismo ortodoxo cristão de Castela, acabou
despertando demasiados desconfortos em outros rincões167. Também
é válido referir que esse mesmo documento eclesiástico juridicizou o
debate da evangelização indígena, no aspecto que se pode chamar de
hispano-índio, ou da tutela168 para os reis da Espanha quanto à evan-
gelização dos indígenas.
Enfim, com conteúdo contraditório ou não, as bulas papais re-
presentaram o ato jurídico que inaugurou as controvérsias sobre a inva-
são da América Latina, bem como a fundante polêmica no Novo Mundo,
um período que começa na ebulição transitória para modernidade169.
Com valor jurídico originário, o conteúdo das bulas ganhou
paulatinamente status de carta fundamental no desenvolver do proces-
so da conquista, ao ponto que Bartolomé de Las Casas e as cortes espa-
nholas chegam a reconhecer no debate jurídico, teológico e político em
Valladolid sua pertinência. Os reinados de Castela e Aragão procura-
ram não se afastar do seu conteúdo, como sinal de respeito ao arcabouço
que dava sustentação jurídica aos seus domínios conquistadores.

167
O autor mexicano menciona a inquietação de Francisco I, rei da França, re-
ferente ao conteúdo interpretativo dos teóricos espanhóis em torno do exclusivismo
espanhol: “[…] el sol brilla para mí tanto como para los demás. Vería de buen gusto
la cláusula del testamento de Adán, em la que se me excluye de la repartición del
Orbe”. Ibid., p. 33.
168
Cf. COLAÇO, Thais Luzia. Incapacidade indigena: tutela religiosa e viola-
ção do direito guarani pré-colonial nas missões jesuíticas. Curitiba: Jurua, 2000.
169
“[…] las bulas de Alejandro VI sobre América no fueron distintas de las usa-
das em la tradición medieval de la cancillería vaticana; tampoco fueron un fallo arbi-
tral, pero desde el siglo XVI hubo opiniones en favor de esta interpretación; tuvieron
además valor simbólico en las contiendas políticas y religiosas de Europa, siendo ata-
cadas por los autores de las naciones enemigas y defendidas por la opinión casi uná-
nime de los escritores españoles; tuvieron valor, por último, ante el problema de los
títulos de España sobre las Indias, no porque contuvieran en realidad una donación,
sino porque los autores del primero y del segundo planteamiento las interpretaron
en favor de los derechos de los españoles conforme a los razonamientos expuestos;
finalmente la Corona reconoció su influencia legal”. ZAVALA, Silvio. Op. cit., p. 43.

117
Torna-se importante verificar algo que Zavala chama de dois
ciclos interpretativos do problema jurídico da conquista. O primeiro
se dava no interesse da ampliação da jurisdição e dos valores do Ser
europeu para o Novo Mundo. Era concatenado na falta de autonomia
dos sujeitos habitantes e na possibilidade de domínio absoluto sobre a
não-humanidade dos mesmos, ou seja, é neste tipo de perspectiva que
surge o âmbito hermenêutico jurídico de parte dos colonizadores. Es-
clarecido esse primeiro ciclo, já se pode compreender a justificativa da
chamada “guerra justa” pela “civilização” dos não-humanos. Visualiza-
-se que, por detrás desta explicação hermenêutica e jurídica, aparece a
materialidade concreta que não é observada nos documentos jurídicos:
a exploração, o roubo e a vitimização dos nativos170.
Na sequência, Zavala mostra que essa postura foi logo contes-
tada, devido ao seu exagero na afirmação própria do dominador. Não
pelo fato de parecer abusiva, mas sim porque estava transplantando
totalmente o confronto da Reconquista espanhola para o Novo Mundo,
de uma forma que aplicava aos indígenas o mesmo trato que outrora
fora impingido aos infiéis sarracenos, mouros, judeus e muçulmanos,
típicos inimigos dos cristãos.
Isso faz surgir a lógica que compõe o segundo ciclo interpre-
tativo do âmbito problematizador jurídico da conquista, em que é re-
chaçada a primeira hipótese levantada anteriormente. Nesse segundo

170
“[…] Según la cual los pueblos gentiles tuvieron jurisdiciones y derechos an-
tes de la venida de Cristo al mundo; pero desde ésta, todas las potestades espirituales
y temporales quedaron vinculadas en su persona, y luego por delegación, en el Papa-
do. De suerte que los infieles podría ser privados de sus reinos y bienes por autoridad
apostólica, la cual estaban obligado obedecer. […] los infieles e idólatras, cuyas obras
son en pecado, aunque mirando el derecho antiguo de las gentes, pudiesen adquirir y
tener tierras y señoríos, éstos cesaron y se transpasaron a los fieles, que se lo pudiesen
quitar, después de la venida de Cristo al mundo, de quien fué constituido absoluto
monarca y cuyo imperio, juntamente con su sacerdocio, comunicó a San Pedro y a los
demás Pontífices que en su cátedra sucedieron”. Ibid., p. 16.

118
ciclo, aparece uma postura mais tolerante com a situação dos indígenas:
enxerga-os por outro ângulo, que não da experiência da guerra de re-
conquista na Península Ibérica – em que o inimigo era o infiel.
Essa segunda tese era fundamentada no Direito natural do res-
peito aos bens e aos domínios dos povos ameríndios. O fato de não
serem devotos da fé cristã não justificava a comparação com os infiéis
muçulmanos e, portanto, também não justificava uma guerra por conta
da sua não-humanidade. Por conseguinte, o problema para esse segun-
do ciclo era de que os indígenas, na condição de não conhecedores da fé
e dos ensinamentos de Cristo, deveriam ser oportunizados na mesma,
em vez de subordinados por ignorá-la. Abre-se aqui espaço para neces-
sidade de evangelização.
Essas posições, diante do problema jurídico da conquista ,já fo-
ram exaustivamente tratadas em diversas obras sobre o confronto ju-
rídico/político entre Ginés de Sepúlveda contra Bartolomé de Las Ca-
sas. O que interessa para esta etapa é o fato de que, nos primórdios dos
avanços dos reis espanhóis sobre a América, estes obtiveram uma forte
inclinação de fundamentação temporal e espiritual, dando-se a com-
preender que as possessões a exercer nesse mundo faziam do Direito
um instrumento de domínio eficaz quando da sua inter-relação com o
contexto geopolítico do Estado invasor.
Para não alongar o discurso, exaustivamente explorado por his-
toriadores do Direito que referenciaram a pesquisa, resta elucidar que as
soluções abordadas se resumem a levar a fé cristã aos originários povos
das Índias, carentes dessa natureza “civilizatória” por conta da condição
“infiel” transmutada em desconhecedores da fé. Estendiam, por conse-
quência, as demais condições – jurisdicional, política e civil – do Estado
castelhano, subordinando estas à religiosidade; e denunciando a “ilegi-
timidade” do governo de alguns “idólatras”, como Montezuma.
Enfim, a plêiade de justificação ou fundamentação do problema
da penetração espanhola passa invariavelmente pelas duas vias anterior-

119
mente anunciadas: o domínio absoluto pela força ou o domínio modera-
do pela religiosidade dos fanáticos cristãos. De uma ou outra maneira, a
postura da Coroa de Castela foi a de manter os domínios, contanto que o
fim da conquista fosse imposto, seja pela espada ou pela conversão171.
Não obstante o campo jurídico como justificação, o Estado Es-
panhol, sedimentadas as problemáticas do período da conquista, tratou
de preocupar-se em dar tonalidade a um sistema jurídico na colônia
como maneira de estabelecer a dominação.
Para essa empreitada, as bases advêm, segundo José Maria Ots y
Capdequí, basicamente do reinado pertencente à Isabel de Castela, pois
mesmo com a unificação das duas Coroas, o fundo de apoio financeiro
às expedições provinha dos cofres de Isabel, a Católica. A aliança ma-
trimonial de fato não se concluiu em termos de jurisdição, ou seja, em
personalidade política e administrativa autônoma unificada172.
Destaca-se que o primeiro direito aplicado à América dominada
seria a estrutura jurídica de Castela. Devido a “[…] exigências ineludi-
bles del nuevo ambiente geográfico, económico y social, hicieron prác-
ticamente inaplicable, en muchos aspectos, el viejo derecho castellano
para regir la vida de las nuevas ciudades coloniales”173. Esse instrumento
jurídico de Castela serviu aos intentos de consolidação da dominação.
Contudo, os fatores da inaplicabilidade total do arcabouço jurí-
dico de Castela à realidade colonial fazem com que o Estado castelhano

171
“La posición de la Corona ante el problema jurídico de las Indias no podía
ser igual a la de los publicistas, porque sus intereses políticos le restaban libertad. De
aquí que admitiera todos los títulos, no desdeñando ni el civil de compra. Más que
justificar de modo abstracto la invasión, le interesaba resolver el problema jurídico
de su dominio aunque en su actitud no dejaron de influir los principios generales
examinados”. Ibid., p. 29.
172
OTS Y CAPDEQUÍ, J. M. El Estado Español En las Indias. México: Fdo.
Cult. Econômica, 1993, p. 9.
173
Ibid., p. 11.

120
tenha de emanar ordenações jurídicas específicas para o contexto da
Colônia, as quais, quando consolidadas, vão chamar-se “Direito India-
no”. Antes de explorar esse Direito, torna-se importante diferenciar três
tipos de ordem jurídica que compõem o arcabouço do período: Direito
Castela, Direito Indiano e Direito Espanhol174.
A questão está em perceber que a unificação dos reinados católi-
cos não significou de imediato a unificação espanhola, no sentido como
já foi mencionado acima; isso redunda em ordenamentos jurídicos e em
conjuntos de leis que dão especificidade ao Reinado de Castela, bem
como ao Reinado de Aragão e aos demais inseridos na geografia do que
se compreende atualmente por Espanha. O reflexo desse fator é verifi-
cado quando da tomada à frente das navegações por parte de Isabel de
Castela, o que redunda na imposição da sua legislação ao Novo Mundo,
e da instituição das primeiras formas jurídicas175 específicas.
Esse conjunto normativo demonstra a dimensão da preocupação
jurídica da Coroa de Castela, não pensando nos destinatários indianos, e
sim no próprio flanco de proteção interna aos seus interesses. Afinal, es-
sas normas emanadas tiveram o nítido caráter de organizar e determinar
as especificidades das relações entre os interesses privados dos navegado-

174
“Desde un punto de vista español, el contenido de esta disciplina debe com-
prender el conjunto de las culturas jurídicas desarrolladas en España y sus dominios
extra-peninsulares, desde los tiempos más remotos de la antigüedad hasta la promul-
gación del derecho español contemporáneo. Desde un punto de vista hispanoame-
ricano, bastará con estudiar la historia del derecho castellano – y no la de los otros
derechos españoles peninsulares – por ser este derecho el que rigió en los territorios
de las llamadas Indias Occidentales, ya que por las circunstancias históricas en que
tuvieron lugar los descubrimientos colombinos, las indias quedaron incorporadas,
políticamente, a la Corona de Castilla”. OTS Y CAPDEQUÍ. Op. cit., p. 25.
175
“En cuanto al Derecho propiamente indiano, está integrado por aquellas
normas jurídicas – Reales Cédulas, Provisiones, Instrucciones, Ordenanzas, etc. –
que fueron dictadas por los monarcas españoles o por sus autoridades delegadas, para
ser aplicadas de manera exclusiva – con carácter general o particular – en los territo-
rios de Indias Occidentales”. Ibid., p. 26.

121
res e dos exploradores com a Coroa. Isto é, os destinatários finais da le-
gislação indiana eram os próprios súditos de Castela ou mesmo europeus
que, por ventura, se submetiam aos interesses deste reinado.
Recorda Jesús Antonio De la Torre Rangel: “Es tan importante
el aspecto legal de la Conquista que, como disse García Gallo, el De-
recho Indiano ‘nace antes de que se conozca – incluso antes de que se
sepa si existe – el país que ha de regir’”176. Este fragmento faz referência
às capitulações que Isabel de Castela e Cristóvão Colombo assinaram
na cidade de Santa Fé, com fins e interesses de pactuar o negócio que
acordavam. Tinha este documento o conteúdo de defesa jurídica dos
interesses Reais nos futuros descobrimentos do navegador, dotando-o
de matéria jurídico-formal das “descobertas”, embora possua desdo-
bramento político.
Esclarecido esse enfoque, menciona-se agora o que realmente
integra o Direito Indiano. Seguindo Ots y Capdequí, tem-se que esse
ordenamento está composto por prescrições de conteúdo jurídico que
buscam regular as relações referentes aos descobrimentos e, depois,
atendendo aos fins de organização da conquista e da colonização dos
territórios e dos povos indianos. A capacidade legislativa para emanar
tais atos normativos cabia exclusivamente à Coroa espanhola ou aos
governos radicados na Metrópole, sejam estes investidos em autorida-
de para assuntos sobre as Índias Ocidentais, tais como são os órgãos
da Casa de Contratação de Sevilha e do Conselho de Índias; ou por
demais representantes da Coroa propriamente nos territórios indianos,
tal se dá nos casos em que a faculdade para ditar disposições legais
com cunho de organização, administração ou regulação deveria conter
a Real anuência177. Uma delimitação teórica acerca do Direito Indiano,

176
GARCÍA GALLO apud RANGEL, J. A. de la Torre. Lecciones de Historia
del Derecho Mexicano. México: Porrúa, 2010, p. 95.
177
OTS Y CAPDEQUÍ. Op. cit., p. 329.

122
que permite especificar melhor seu entendimento, é realizada recor-
dando o eminente historiador Ricardo Levene:
Com razón há podido decir Ricardo Levene: “La legis-
lación de India compreende las Reales Cédulas ú Orde-
nes, pragmáticas, provisiones, autos, resoluciones, sen-
tencias y cartas referentes al derecho público o privado,
con lo que se ha querido expresar que en su elaboración
y promulgación han intervenido órganos e institucio-
nes distintas, desde el Rey al consejo de Indias, al Mi-
nisterio de Indias, a los virreyes, audiencias, cabildos,
consulados, intendencias, sin nombrar a la derivada de
concordatos y convenios internacionales”. Interesa pre-
cisar sin embargo, que en un sentido doctrinal estricto,
la potestad legislativa, tanto en las Indias como en Es-
paña, radicaba exclusivamente en la Corona. Cuando
otros organismos o autoridades dictan ordenanzas o
instrucciones, lo hacen en nombre del Rey y sometidas
a la confirmación real quedan, las disposiciones por
ellos dictadas178 .

O objetivo do Direito Indiano era dar posse aos reinados de Cas-


tela sobre os territórios do Novo Mundo, submetendo sob a sua autori-
dade todos os que por essas terras se encontravam, sendo literalmen-
te incorporados ao reino, inclusive em condição de vassalos dos reis.
Equivale mencionar que, com a chegada do espanhóis, os autóctones
e originários encontrados na sua vida cotidiana acabaram por serem
submetidos ao Direito Indiano: o descobrimento por si já condicionava
estes povos a súditos do mesmo reino católico179.

178
LEVENE apud OTS Y CAPDEQUÍ. Manual de Historia del Derecho Es-
pañol en America y del Derecho propiamente Indiano. Buenos Aires: Editorial Lo-
sada S.A., 1945, p. 329.
179
Ibid., p. 158.

123
Essas normativas autorizavam os navegadores e os explorado-
res a ocupar e dominar, em nome da Coroa, com livre arbítrio para
auferir todas as benesses possíveis em favor dos seus correligioná-
rios. Ora, percebe-se que esse caráter patrimonialista e possessório
dos reis da Espanha tinha nítido interesse de expandir os territórios
da Península Ibérica em direção a outros rumos que pudessem liber-
tá-los do cerco muçulmano que assolava a Europa; mesmo que recon-
quistado o território Ibérico, os demais caminhos e rotas de comércio
ainda afrontavam crise aos interesses reais.
Desvenda-se aqui o enorme compromisso e a responsabilidade
que acumulava a normatividade do Direito Indiano: dar conta de as-
segurar ao desesperado mundo Espanhol uma solução para sua crise.
Para De la Torre Rangel, esse paradigma pode ser resumido nas se-
guintes reflexões:
Esta normatividad para las Indias Occidentales tendría
que dar razón de la diversidad y complejidad geográfica
y, sobre todo, de las distintas personas y grupos sociales
para la que estaba destinada a regir. Ese Derecho objetivo
tenía además que conjugar tres factores que van íntima-
mente ligados a lo complejo de la empresa española en
América: los intereses de la corona, cómo factor de poder
tanto económico como político; el fin de lucro y riqueza
de los conquistadores; y la evangelización y buen trato a
los indios. Toda la historia de la dominación de España en
América, está tejida por estos tres hilos. El Derecho In-
diano, en ese sentido, tanto en su expresión objetiva como
Ley, así como su práctica y aplicación, refleja ese complejo
tejido histórico y busca ese equilibrio entre esos tres fac-
tores que marcan el dominio hispano en nuestra tierra180.

180
RANGEL, J. A. de la Torre. Lecciones de Historia del Derecho Mexicano.
México: Porrúa, 2010, p. 100.

124
Dessa forma, quais seriam então as características do Direito In-
diano? Na empreitada de compreender esse fenômeno, é fundamental
consultar outra obra de Ots y Capdequí181, em que acentua quatro carac-
terísticas do Direito Indiano:
a) casuísmo acentuado – em realidade, o Direito Indiano não cor-
respondeu a um código fechado e bem armado em termos de aplicabilida-
de rígida; o que se percebe das suas predileções são generalizações sobre
questões de cunho muito concreto aos interesses em voga, sem grandes
possibilidades de prever os demais andamentos. Puseram-se abstrações
ou “generalidades”, sem entretanto observar determinada especialidade
da área do Direito, pois, como afirma o próprio autor, a legislação trata-
va de problemas concretos, em que a especificidade era tão peculiar que
impossibilitava de constituir uma consolidada doutrina;
b) tendência assimiladora e uniforme – como mencionado ante-
riormente, a questão de incorporar os povos autóctones ao reinado cas-
telhano implicava o ato de assimilá-los e uniformizá-los sob o controle
dos dominadores, logo, umas das características do Direito Indiano se-
ria a função de realizar a ingrata tarefa de conduzir os povos dominados
sob uma régua delimitadora institucional, de acordo com os preceitos
dos reinados espanhóis. Por certo, essa empreitada não surtiria os efei-
tos desejados, recorda Ots y Capdequí: “La realidade se impuso y unas
mismas instituciones adquirieron modalidades diferentes en las distin-
tas regiones de las Indias, según el ambiente geográfico, social y econó-
mico en que hubieron de desenvolverse”182;
c) minuciosidade regulamentadora – referente a essa caracterís-
tica, primeiramente, não se deve confundir com o caráter geral do item
“a”, pois aqui há ingerência instrucional aos dirigentes nas Índias. Esta

181
OTS Y CAPDEQUÍ, Intituciones. Barcelona: Salvat Editores S.A., 1959, p.
231-232.
182
Ibid., p. 231.

125
característica busca suprir a distância geográfica da Coroa e afirma a
sua capacidade vigilante em torno das relações de Direito público ou da
administração dos seus interesses no novo território. A especificidade
dos atos tornou a gestão colonial um regime extremamente burocrati-
zado e controlado, fruto da tentativa de evitar distorções e fraudes rela-
cionadas aos seus interesses nas Índias ocidentais;
d) sentido religioso e espiritual – por fim, o elemento que faltava
para completar a tríade de interesses colonizadores, o quesito religião (ca-
tólica) era missão primordial da conquista, envolvendo em uma ética cris-
tã as inúmeras legislações. Tanto que Bartolomé de Las Casas, quando in-
voca a defesa dos indígenas via bula papal Inter Coetera, relembra a missão
evangelizadora que deve possuir o processo de colonização. Esse sentido
religioso se transfere às normatividades nos lineamentos que compõem o
cenário jurídico do Direito Indiano. Teólogos e moralistas atuaram mais
que juristas, a fim de emanar a compreensão hermenêutica das leis.
Essa construção legal do Direito Indiano compôs uma proposta
de geometria invariável na aplicação, que redundou no fenômeno de
disjunção entre Direito e fato, em que os desdobramentos na realidade
se deram de maneira distinta183.
Dessa particularidade, resultou o conhecido enunciado: “se acata
pero no se cumple”, que passou à normatividade social e aos reiterados mo-
delos de administração na colônia, os quais, surpreendentemente, obtinham
um subterfúgio que tornava o descumprimento uma total legalidade184.

183
“Ésta es a causa de que se observe, a lo largo de toda la vida jurídica colonial,
un positivo divorcio entre el derecho y el hecho. Una fue la doctrina declarada en la
ley y otra la realidad de la vida social. Se quiso ir demasiado lejos en el noble afán de
defender para el indio un tono de vida elevado en el orden social y en el orden es-
piritual, y al dictar, para protegerle, normas de cumplimiento difícil o imposible, se
dio pie, sin desearlo, para que de hecho prevaleciera en buena parte la arbitrariedad,
quedando el indio a merced de los españoles encomenderos y de las autoridades de la
colonia”. OTS Y CAPDEQUÍ, J. M. Op. cit., p. 13.
184
“No implicaba este medida acto alguno de desobediencia, porque en definitiva

126
Isto posto, cabe evidenciar-se alguns itens que podiam dar con-
ta da generalidade que representou o Direito Indiano como primeira
manifestação jurídica sobre o novo território descoberto, bem como as
influências que o contexto legou a esse ordenamento jurídico. Não faz
parte do estudo comentar os aspectos legislativos de cada normativida-
de do período, nem mesmo fazer referências aos seus aportes interpreta-
tivos, presentes na maioria dos autores estudados, pois, além de redun-
dante, não cumpre o objetivo primordial do trabalho, que é demonstrar
a totalidade jurídica moderna desde sua construção. Para essa tarefa,
basta apenas aludir a estruturas de definição, características, aspectos e
qualidades que puderam, de alguma maneira, influir na cotidianidade
jurídica dos sujeitos autóctones.
Dito isso, reitera-se a preocupação por uma historiografia de nu-
ances sociais, reafirmando que o campo jurídico que interessa a esta
pesquisa encontra-se adstrito nestes matizes, logo, não se trata de uma
compreensão dogmática, tampouco ortodoxa do Direito: o caráter da
investigação é do Direito como um fenômeno social. Esse tipo de análi-
se permite ir além da legalidade, labor deixado aos especialistas, que se
contentam estritamente com a verificação da área histórica do sistema
legal. O estudo se pauta pela historicidade sociojurídica. Não obstante,
seguindo o pensamento de Jesús A. De la Torre Rangel, vale a pena fri-
sar o caráter instrutivo por meio de dois instrumentos legais que for-
mam as primeiras manifestações do Direito Indiano.
Esses instrumentos são as chamadas capitulações e as instru-
ções, primeiros elementos concretos do Direito Indiano que admitem

se daba cuenta el Rey de lo acordado para que éste, en última instancia y a la vista de la
nueva información recibida, resolviese. Y si bien es cierto que el amparo de esta costum-
bre pudieron cometerse abusos y arbitrariedades por parte de algunas autoridades, no lo
es menos que, gracias a ella, pudo dotarse al derecho colonial de una cierta flexibilidad
que le era muy necesaria, y que de otro modo no hubiera podido conseguirse dada la
tendencia centralizadora de los monarcas y de sus hombres de gobierno”. Ibid., p. 14.

127
suma importância para a compreensão do domínio espanhol na Amé-
rica185. As capitulações, documento firmado em acordo entre a Coroa
e sujeitos privados, compunham instrumento contratual de natureza
civil que gerou direitos e obrigações entre as partes; não se partia em
expedição sem esse prévio contrato com os reinos Ibéricos. Algumas
especificidades são importantes notar186: primeiro se constituía uma au-
torização concedida pelos reis para que o aventureiro pudesse lançar-se
em uma empresa de exploração dos novos territórios além-mar. Tudo
isso juridicamente confirmado pelos pleitos reais junto ao poder papal,
resultado das bulas concessivas; logo, a titularidade absoluta dos reis
católicos assim legalizava a exploração das suas possessões.
Em segundo lugar, as capitulações tratavam das obrigações in-
cumbidas ao chefe da expedição. Deixavam evidente quais seriam as
suas tarefas e condições ante os interesses reais. Referiam-se ao bom an-
damento do trato, à devida observância da conduta do contratante sob
condições determinadas pelos reis e, principalmente, ao cumprimento
do objetivo da missão, itens estes que compõem a terceira especificidade.
Em termos jurídicos, para Silvio Zavala, constituiu-se em con-
cessão contratual de serviço público187. O Estado de Castela abdicava de
tomar para si frente nas expedições exploratórias, delegando em favor
das empresas privadas os procedimentos de matéria ocupacional em
nome do ente público. Esse instrumento ganha caráter de Direito ao
constituir-se em documento jurídico fundamental, sendo estendido até
o Novo Mundo sua materialidade. Dessa maneira, capitular significava
“[…] prerrogativa regia, a veces delegada, pero siempre em nombre de

185
RANGEL, Jesús A. de la Torre. Lecciones de Historia del Derecho Mexica-
no. México: Porrúa, 2010, p. 95.
186
Ibid., p. 96.
187
ZAVALA, Silvio. Las instituciones jurídicas en la conquista de América.
México: Porrúa, 1988, p. 101.

128
la corona”188; o documento sentenciava licença, autorização para explo-
rar em nome da Coroa189.
Ots y Capdequí recorda, primeiramente, que a participação
da Coroa nas capitulações se esgotava no próprio ato de contratar.
Não aportava nenhum outro dispêndio para efetivação exploratória,
isto porque a crise190 que assolava o Estado espanhol impedia que este
propriamente participasse das expedições. Com isso, o título jurídico
tornou-se um objeto de barganha econômica: “Por eso las capitulacio-
nes de descubrimientos […] se consideraron como verdadeiros títulos
jurídicos negociables y fueron objeto, con frecuencia, de las más di-
versas operaciones: ventas, traspasos, permutas, sociedades, etc.”191. Ao
saber-se que essa manifestação jurídica não foi suficiente para regular
os negócios e interesses da Coroa no território das Índias, e tendo este
poder público a ânsia de ingerência massiva nos negócios que celebrava
envolvendo as Índias, faz-se surgir outro instrumento de pura relevân-
cia no contexto de pactos entre os reis católicos e os interesses de indi-
víduos na empresa de exploração.

188
Ibid., p. 102.
189
“Las capitulaciones para efectuar descubrimientos contenían generamen-
te: la licencia del rey al conquistador: ‘vos doy licencia y facultad para que podáis
conquistar y poblar las dichas islas’; seguía el contrato entre el rey y el caudillo: qué
gastos y obligaciones tendría éste, qué mercedes le haría el rey en honores y bienes
materiales”. Ibid., p. 102.
190
“El costeamiento económico por el Estado de las expediciones descubrido-
ras, resultaba poco menos que imposible para un erario como el español escaso de
recursos y todavía empobrecido más, por las guerras imperialistas y religiosas que en
Europa se empeñaba en sostener. Si para evitar los daños que resultaban del carácter
privado de las expediciones se hubiera puesto fin a la iniciativa – heroica y desorbita-
da – de los particulares, la colonización española en las Indias, difícilmente hubiera
logrado superar la etapa histórica inicial”. OTS Y CAPDEQUÍ, Manual de Historia
del Derecho Español en America y del Derecho propiamente Indiano. Buenos Ai-
res: Editorial Losada S.A., 1945, p. 156.
191
Ibid., p. 156.

129
Tal documento, com a mesma natureza contratual, era emanado
pelos reis católicos ou então por seus representantes nas Índias, que ex-
pediam Instruções em matéria de organização e cumprimento em torno
da política e da ética da Coroa, constituindo-se em manifestação tácita
do projeto da realeza, já que, por conta das dificuldades antes mencio-
nadas, não viriam por si próprios a efetuá-lo.
De natureza meramente instrumental, esse documento jurídico192
possui desdobramentos políticos eficazes, já que as determinações reais
se faziam presentes e afirmavam a natureza soberana da Coroa sobre os
descobrimentos realizados.
As “Instrucciones” enumeravam os principais preceitos da pre-
ocupação espanhola quanto aos seus interesses expedicionários – isto é,
econômicos e de dominação –, bem como aos preceitos ético-religiosos
mencionados acima, pontuando a ação do conquistador em torno da sua
presença com valor jurídico e mantendo o controle público das manifes-
tações privadas que constituíram o ato exploratório da conquista. Isso
leva a refletir que, desde os primórdios, a empreitada da conquista e da
colonização pode ser lida a partir de uma filosofia política implícita no ato
de dominar e de colonizar; porém, a maneira de proceder é visivelmente
jurídica, mesmo quando não se encontra efetividade nas normatividades
expostas. Por variados motivos, segue-se no presente estudo a tese de Sil-
vio Zavala, no intuito de concluir que a conquista e a colonização foram
um ato jurídico, legalmente sistematizado nessa perspectiva193.

192
“Por su naturaleza jurídica, las instrucciones eran contratos de mandato
o poderes, porque delegaban en los caudillos la facultad coactiva y la jurisdicción
militar, civil y criminal. Pero su valor principal era de carácter político: mediante la
instrucción, el rey, cabeza y origen de la autoridad conforme al sentido medieval de la
organización política, hacía llegar a los miembros de la hueste el principio del orden;
sólo esa delegación daba a los jefes la potestad para contener dentro de la disciplina a
los sueltos y codiciosos soldados indianos”. ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurí-
dicas en la conquista de América. México: Porrúa, 1988, p. 124.
193
“Las disposiciones citadas comprueban que la extensión del dominio es-

130
Por fim, resume Jesús A. de la Torre Rangel o significado jurídico
das Instruções: documento que regrava e organizava a expedição, deter-
minando o comportamento dos sujeitos, a tomada de posses em nome
do Rei, a submissão às ordens do capitão da expedição, entre outros
elementos de ordem organizacional194.
Ao final do período da conquista, obviamente, esse emaranhado
de interesses, concatenados por instrumentos jurídicos com implícitos
objetivos não relacionados entre si, veio a causar colapso. Conforme se
concluiu o processo da conquista e logo consolidou-se a questão da colo-
nização, pode-se visualizar que os aparatos jurídico foram constituídos
para estabilizar os interesses privados em matéria de acumulação, tudo
isso somado aos motivos ético-religiosos de cativar para a fé católica os
povos originários e os interesses materiais e obrigações que impunha a
Coroa espanhola. O desdobramento das Capitulações e das Instruções
pode ser verificado em Silvio Zavala da seguinte maneira:

pañol en América y, por lo tanto, la actividad de las huestes encargadas de efectuarla,


no quedaron bajo los dictados de la inspiración libre de los caudillos, sino regidas
por esas normas uniformes, las cuales, a su vez, obedecían a inspiraciones teóricas.
Los hechos de los conquistadores pueden haberse acercado o distanciado de la reglas
por razones económicas o personales, pero el sistema jurídico para la ocupación
existió”. Ibid., p. 131.
194
“Junto con las capitulaciones, aunque con importancia jurídica menor, es-
tán las llamadas Instrucciones que de ordinario se dieron a los jefes de las expedi-
ciones. Cuando el viaje se pactaba con el consejo de Indias, éste daba Instrucción a
nombre del rey; si el pacto se hacía con alguna autoridad autorizada residente en las
Indias, tocaba a ésta dar Instrucción. Las instucciones reglementaban la forma de
hacer la navegación así como el comportamiento de los expedicionarios. Establecía
que la posesión de las terras a donde llegaren la hicieran en nombre de los reyes, ante
escribano y con solemnidad. Obligavan a enviar a España muestras de todo lo que
encontraren. También se establecía que se sometiera a los indios al dominio de su
Majestad. Además, en la Instrucción se mandaba que los expedicionarios quedaban
sujetos al capitán y habían de acudir a sus llamadas y consultas, y el propio capitán
podría ponerles penas y ejecutarlas”. RANGEL, J. A. de la Torre. Lecciones de Histo-
ria del Derecho Mexicano. México: Porrúa, 2010, p. 99.

131
De esta suerte, las instituciones indianas fluctuaran en el
período posterior a la conquista, entre el interés de los
particulares, amparado por la obligación del Estado de
premiarlos en virtud del sistema privado autorizado para
la ocupación de América, y la tendencia de la Corona fa-
vorable a sus miras regalistas y fiscales y a la protección
de los indios. Esta complejidad ocasionó episodios como
el de las Leyes Nuevas de 1542, en que las dos corrien-
tes se encontraron, imponiéndose finalmente un térmi-
no medio conciliador, que fácilmente se advierte en las
instituciones españolas destinadas a servir de cauce a la
relación jurídica entre los españoles y los indios195.

As várias legislações surgidas posteriormente a esse período


expuseram a preocupação que permeou a luta de muitos clérigos pela
defesa dos direitos indígenas, isso porque os dois instrumentos – Capi-
tulações e Instruções – abarcavam apenas os interesses dos setores pri-
vados e do Estado espanhol, sem caracterizar uma postura evangeliza-
dora exigida por alguns setores da igreja católica. Nesse cenário, surgem
algumas legislações, como as Lei de Burgos de 1512 e as Leis Novas de
1542, exemplos que redundaram em uma exigibilidade frente a Coroa
para manter os princípios éticos e a preocupação evangelizadora ante o
contexto da exploração gananciosa e exterminadora imposta pelos ex-
ploradores em sua busca de acumulação de riquezas.
Aos poucos, novas legislações foram surgindo, e outras sendo
substituídas por instituições que se voltavam para fundar nessas terras
um reinado nos moldes Ibéricos. Seguindo a perspectiva exposta por
De la Torre Rangel196, de fato existiu um reinado estendido da Península
Ibérica, algo que implicava instituições.

195
ZAVALA, Silvio. Op. cit., p. 202.
196
“Una primera cuestión que es necesario afirmar con relación a la esencia de
la Nueva España es que, jurídicamente, es un reino y no una colonia, esto a pesar de

132
Esse reinado implantado no Novo Mundo foi continuidade do
processo de unificação “nacionalista” promovido pelos reinados espa-
nhóis após a queda dos mouros na Península ibérica no processo de
Reconquista197. Nada mais significa que a recuperação da condição polí-
tico-militar de enfrentamento na geopolítica mundial e econômica.
Como sequência do processo da reconquista ibérica, deu-se
a conquista do Novo Mundo, estendida como ato de dominação, de
usurpação e de ocupação irrestrita dos territórios pertencentes aos
povos originários de Abya Yala. O fato de ter-se dado a extensão uni-
ficadora correlata na Espanha não significa encarar a colonização ape-
nas consequente da anexação ao reinado da Península Ibérica; elevar
a Nova Espanha e outras partes à condição de vice-reinados e súditos
integrantes do “grande reino Espanhol” foi um inegável ato com in-
tenção política de submissão.

la dependencia política de la Corona española. “Ni su estructura social, ni sus regí-


menes que las gobiernan, tenían propiamente las características” de colonias. Cerezo
de Diego explica así esta cuestión: “En la idea imperial de Carlos V no sólo se encuen-
tra un deseo de unificar Europa sino de europeizar América. Durante su reinado se
conquista la Nueva España y la mayor parte del continente americano al que se lleva
la cultura europea, se le hispaniza y se le confere idéntico rango político que al resto
de los reinos y provincias del emperador. Esta incorporación de América a Europa
supone el ensanche del espacio geográfico tradicional del Imperio constituyéndose
un auténtico imperio euroamericano”. CEREZO apud RANGEL, J. A. de la Torre,
Lecciones de Historia del Derecho Mexicano. México: Porrúa, 2010, p. 129.
197
Utiliza-se aqui a metáfora que faz Hans Albert-Steger: “Terminó la Recon-
quista, comenzó la conquista: la enorme dificultad que tiene los alunos em las es-
cuelas españolas toda vez que deben explicar por qué la Reconquista es anterior a la
Conquista, indica la importancia de esta cesura histórica. La Reconquista no era una
simple campaña militar, sino un período histórico, muy importante para la forma-
ción de la identidad cultural europea dentro de un ambiente muy profundo de sin-
cretización cultural e intelectual”. STEGER, Hanns-Albert. Legitimación y poder, las
formación de sociedades nacionales en América Latina. In: DAL RI, Luciene. DAL RI
JR., Arno. GARCÍA GALLO, Alfonso. et al. (Org.). A latinidade da América Latina:
enfoques históricos-jurídicos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 89.

133
Ora, classifica-se como um processo de forte conotação colonial.
Ainda que as instituições criadas na região tenham a mesma categoria
política, de fato, o elemento subordinação se fez peremptório na cotidia-
nidade local. O grau de submissão ao qual eram impostas as instituições
políticas autóctones ou originárias dá uma noção do que se pode enca-
rar como procedimento colonizador dentro do processo de unificação
– entenda-se anexação – com os reinos Ibéricos198.
Nesse sentido, as instituições espanholas enviadas para fixar um
processo de colonização sob a denominação Reinado encarregaram-se
de implantar em terras alheias o espelho da sua organização pública. E
assim foi, pois se mantiveram os órgãos superiores em solo Ibérico e,
nas Índias, instituíram-se representações autônomas199.
Essa organização em instituições, para assentar domínio políti-
co e econômico sobre os territórios ameríndios, tem significado no pro-
cedimento da colonização. Destacam-se as Audiências como modelo de

198
“El propio Cerezo reafirma en otro lugar, apoyándose al final en la Reco-
pilación de Leys de Indias: Es oportuno recordar para conocimiento de escritores
superficiales o poco escrupulosos con la realidad histórica que en esta época ni existe
el nombre de colonias, término que con el significado moderno se acuñará varios
siglos después, ni nuestros juristas y teólogos como la propia administración españo-
la en Indias pretendieron aplicar a aquellos territorios y sus habitantes un régimen
jurídico distinto que el que se aplicaba en el resto de los reinos hispanos, procurando
en todo momento que tanto en religión como en cultura, administración o economía
fueran asimilados a la metrópoli. La propia corona había dispuesto que las leyes que
se aprobaran para el Nuevo Mundo a través del consejo de Indias fueron lo más con-
formes, en cuanto la diversidad y diferencias existentes entre unos y otros territorios
lo permitiese, con las que existían en los reinos de Castilla y León porque siendo de
una Corona los Reynos de Castilla, y de las Indias, las leyes y orden de gobierno de los
unos, y de los otros, deven ser lo más semejantes y conformes, que ser pueda”. CERE-
ZO apud RANGEL, J. A. de la Torre, Lecciones de Historia del Derecho Mexicano.
México: Porrúa, 2010, p. 130.
199
“La Nueva España contó con dos grupos de órganos de gobierno. El prime-
ro, radicado en España, lo forman o Rey, el Consejo de Indias y la Casa de Contrata-
ción de Sevilla. El segundo grupo, con sede en Nueva España, lo forman el Virrey, las
Audiencias y los ayuntamiento”. Ibid., p. 130.

134
organização judicial da colônia, pois essa articulação reflete o exemplo
dos vários intentos de organização do sistema público das instituições
colonizadoras, em especial, instituições jurídicas. Dessa forma, sem de-
longas, o estudo que comporta a questão das Reais Audiências das Ín-
dias espanholas200 especifica o primeiro momento da busca pela unifor-
midade jurídica do Direito Indiano, no sentido de formalizar o domínio
espanhol nesse campo.
Igualmente às demais instituições, as chamadas Audiências fo-
ram literalmente transplantadas para o território além-mar, em confor-
midade com o modelo das clássicas Reais Audiências e da Chancelaria
da Espanha, pois, de acordo com Ots y Capdequí, a influência desta
instituição no território Ibérico se deu de maneira semelhante no Novo
Mundo, o qual predominou inicialmente e, depois, necessitou de adap-
tações exclusivas para cada realidade. Os modelos espanhóis de Audiên-
cias ou de Chancelarias se transladaram e se conformaram na América
conquistada, sem que houvesse primazia de um modelo específico201,
moldando-se e adaptando-se conforme as necessidades locais.
Apesar da instrumentalização nas Índias do mecanismo judicial
hispânico, consolidou-se pelas bandas ameríndias do Atlântico um for-
mato peculiar, que impunha caracteres de administração governativa a
essas Audiências, dando caráter específico em relação ao modelo do rei-
no espanhol, e mesmo atribuindo importância significativa se compara-
do no âmbito do poder que essas instituições adquiriram nos diferentes
espaços territoriais.

200
Detalhadamente, pode-se conferir um estudo aprofundado dos reflexos de
administrar justiça desde o Direito Indiano, uma análise do caso dos tribunais supe-
riores (letrados) nas Audiências nas Índias espanholas na obra MARTIRÉ, Eduardo.
Las audiencias y la administración de justicias em las Índias. 2ª ed. Buenos Aires:
Librería Histórica, 2009.
201
OTS Y CAPDEQUÍ, Manual de Historia del Derecho Español en America y
del Derecho propiamente Indiano. Buenos Aires: Editorial Losada S.A., 1945, p. 355.

135
Como organismo el más importante de la administra-
ción de la justicia colonial, debe ser considerada la Au-
diencia indiana. Pero las circunstancias especiales del
ambiente en que hubo que actuar y desenvolverse, así
como los principios fundamentales del sistema político
y administrativo que hubo de presidir la obra coloniza-
dora de España en América, motivaron que esta institu-
ción jugase en las Indias papel mucha más importante
que el que venían desempeñando las viejas Audiencias
en el territorio peninsular 202 .

Esse papel de governo empenhado pelas Audiências compunha,


segundo o mesmo autor, em citação a Haring:
La Audiencia, actuando como Consejo de Estado, delibe-
raba con el Presidente en ciertos días de la semana sobre
asuntos de la administración política. Estas sesiones admi-
nistrativas se llamaban acuerdos y las resoluciones adopta-
das autos acordados. Cuando se trataba de los asuntos de
la Hacienda Pública se unían a los Oidores, los Oficiales
Reales. Con el desarrollo del acuerdo, la Audiencia colonial
llegó a adquirir poderes legislativos y administrativos, los
cuales le dieron en su distrito particular, poderes en cierto
modo análogos a los del Consejo de Castilla en España203.

Percebe-se, nas circunstâncias transcritas, que a intenção da Co-


roa Peninsular era organizar um sistema autônomo e que trabalhasse em
função da homogeneidade política administrativa. A instituição da Audi-
ência visava a substituir os modelos esporádicos e informais de justiça por
um sistema institucional uniforme, ainda que isso não viesse a substituir
as tipologias jurídicas locais, as quais foram toleradas pelas Leis Indianas.

202
Ibid., p. 355.
203
HARING apud OTS Y CAPDEQUÍ, Manual de Historia del Derecho Es-
pañol en America y del Derecho propiamente Indiano. Buenos Aires: Editorial Lo-
sada S.A., 1945, p. 359.

136
De fato, consolidou-se um instrumento operativo que encadeava
propósitos de centralização das fontes e dos enunciados com conteúdo
jurídico, cumprindo o objetivo de assentar arquétipos colonizadores com
a submissão e o controle Ibérico, substituindo a reconhecida e precária
instituição judicial informal do período da Conquista. Contudo, na ins-
titucionalização, reconhece-se a persistência de alguns outros juízos204.
Esse aspecto centralizado e institucional da administração da
justiça nas Índias, operado com autonomia pelas Audiências Reais, con-
trasta com a realidade diversificada de fontes normativas com conteúdo
jurídico existente no território. Sabe-se que conformava mais um apa-
rato de assentamento da organização colonial dominadora, importada
e imposta, sofrendo modificações ao adaptar-se à nova realidade, e sub-
metendo-se às forças do poder local. Dada essa condição no contexto
local, surge o caráter de dinamismo e de criatividade que gera auten-
ticidade ao órgão hispânico, acumulando o ato de administrar justiça
à peculiaridade de adaptar-se aos problemas administrativos político
impostos pelos problemas da cotidianidade local, tornando o trabalho
dos aplicadores uma arte de improvisar decisões, em que as fontes nor-
mativas se davam, por vezes, alheias ao campo jurídico, apesar de que o
esforço institucional foi feito sempre no sentido de restringir seus pro-
cedimentos a entendimentos do Direito oficial205.
Essas palavras dão conta de certos indícios de um Pluralismo
Jurídico colonial tolerante, verificado por intermédio da tese de Jesús

204
“Hemos dicho que el predominio general de la justicia ordinaria adminis-
trada conforme a los principios legales, dejó subsistentes algunos juicios sumarios
(aparte de los que ya existían en la misma legislación castellana). Los más de ellos se
referían a casos de indios, a los que por su condición se debía presumir incapaces de
litigar en el mismo plano que los españoles, y expuestos a perder todos pleitos, por su
facilidad para ser explotados”. Ibid., 1959, p. 294.
205
ARENAL apud RANGEL, J. A. de la Torre, Lecciones de Historia del Dere-
cho Mexicano. México: Porrúa, 2010, p. 193.

137
Antonio De la Torre Rangel, no caráter protetivo aos indígenas presente
nas normatividades do período de Nova Espanha. Inclusive Silvio Zava-
la recorda que, em um intento de harmonização do governo nas Índias:
Sobre la armonización del gobierno español, con el an-
tiguo régimen político de los indios, existe también una
interesante legislación o estatuto político de los indios
incorporados. En las Leyes Nuevas de 1542, la corona or-
denó a las Audiencias de Indias: “no den lugar a que en
los pleitos de entre indios, o con ellos, se hagan procesos
ordinarios, ni haya largas, como suele acontecer por la
malicia de algunos abogados y procuradores, sino que
sumariamente sean determinados, guardando sus usos y
costumbres no siendo claramente injustos; y que tengan
dichas audiencias cuidado que así se guarde por los otros
jueces inferiores206.

Assim, fica evidente o teor tolerante desse tipo de pluralidade,


por manter sob seus auspícios os costumes e usos essenciais à justa re-
solução dos pleitos indígenas. Como as Reais Audiências detinham o
controle administrativo da justiça e a ela se incumbia proteger e acomo-
dar esses trâmites207.
Ao executar fielmente essas determinações legais da Coroa, o
protetorado administrativo judicial indígena mantinha o reconheci-
mento da sua insuficiência para resolver as questões de ordem local. A

206
ZAVALA, Silvio. Op. cit., p. 73.
207
“En la Real Cédula para la Audiencia de la Plata, de 23 de septiembre de
1580, se repitió: “Como sabéis, tenéis orden precisa de que en los pleitos de los dichos
indios no se hagan procesos ordinarios y que sumariamente se determinen, guar-
dando sus usos y costumbres, no siendo claramente injustos, es necesario saber los
usos y costumbres que los dichos indios tenían en tiempo de su gentilidad en todo
el término del distrito de esa Audiencia, os mandamos hagáis información dello, la
cual enviaréis al maestro Consejo de Indias, para que él, visto, se provea lo que con-
venga”. Ibid., p. 73.

138
inadequação legal emanada do outro lado do Atlântico ecoava muito
baixo nas terras ameríndias, onde seus usos e costumes ancestrais da-
vam conta da organização.
Ao final, a Real Cédula reconhece que todo tipo de usos e de cos-
tumes dos naturais deve ser submetido à análise do Conselho de Índias,
o qual daria salvo-conduto às práticas que julgasse justas e de acordo
com seus preceitos.
Dessa forma, torna-se inegável o caráter não totalitário da em-
presa espanhola em termos de instituições jurídicas, pois nota-se que
procurou conservar, em parte, as demais entidades locais. Mesmo que o
caráter legislativo tenha se mostrado um ato que tecnicamente encerrou
certo Pluralismo Jurídico subjugado, sabe-se que a execução das leis ad-
mitia outros aspectos que deformavam seu conteúdo.
No entanto, essa análise da complexidade, que envolve o plura-
lismo das fontes jurídicas no período, carece de estudos mais detalha-
dos. Contudo, são verificáveis indícios que se apresentam para confir-
mar a tese do Pluralismo Jurídico subjugado:
Este primer respecto al derecho público de los indios,
consistiendo la Corona que continuara vigente su legis-
lación antigua, se repetió en la ley 4, tít. 1, lib. II de la
Recopilación: “Ordenamos y mandamos, que las leyes y
buenas costumbres que antiguamente tenían los indios
para su buen gobierno y policía, y sus usos y costumbres
observados y guardados después que son cristianos, y
que no se encuentran con nuestra sagrada religión, ni
con las leyes de este libro y las que han hecho y ordena-
do de nuevo, se guarden y ejecuten; y siendo necesario,
por la presente las aprobamos y confirmamos, con tan-
to que Nos podamos añadir lo que fuéremos servido, y
nos pareciere que conviene al servicio de Dios nuestro
Señor y al nuestro, y a la conservación y política cris-
tiana de los naturales de aquellas provincias, no perju-

139
dicando a lo que tienen hecho, ni a las buenas y justas
costumbres y estatutos suyos”208 .

Por conseguinte, ao tratar-se desse tema, de suma relevância


para o presente trabalho, e incorporando este capítulo como tarefa de
demonstrar o arcabouço jurídico complexo e denso que envolve o pe-
ríodo, permitir-se-á avançar especificamente na questão do Pluralismo
Jurídico colonial, intentando lograr alguns pontos de reflexão que se
fazem necessário, os quais, longe de encerrar o debate, pretendem acres-
centar elementos reflexivos.

1.2.3.1. Pluralismo Jurídico na América indígena

Após expor a maneira motivacional das instituições jurídicas


como mecanismo procedimental da colonização ou, ao menos, de efe-
tuação dos artifícios para esse fim, vale ressaltar que a questão da juri-
dicidade na América indígena não encontra seu esgotamento monista
com a condição do vice-reinado durante o período colonial. Isso porque
a Coroa de Castela concede certo espaço para a aplicação e o desenvolvi-
mento dos modelos de justiça autóctones, dando sobrevivência oficial a
esses e legalizando suas práticas dentro dos parâmetros e da supremacia
aos interesses dos reis católicos e os pressupostos religiosos, configuran-
do-se um Pluralismo Jurídico subjugado.
Nesse sentido, acrescenta-se que essa postura denota um inte-
ressante aspecto da cultura jurídica do período, pois ao lançamento
das repúblicas e nações latino-americanas não foi observado o mesmo
estilo tolerante. Ao contrário, a intransigência do monismo jurídico
imperante e fundamental para o Estado nacional, ainda que construído
sob um contexto plural e diversificado em termos sociais, atendeu às
necessidades e aos interesses dos setores dominantes. Logo, essa par-

208
Ibid., p. 73.

140
ticularidade do período colonial revela maior riqueza sincrética das
multivariadas formas de resolver os conflitos e, no caso indígena, para
além da questão legislativa, traduzindo-se em um complexo sistema de
usos e costumes que determinam da identidade ao sentido de harmo-
nia como formas jurídicas.
O que se compreende por Pluralismo Jurídico no período é a
coexistência de diversas leis e fontes da leitura jurídica, compondo o
acervo do conteúdo normativo – jurídico e social – da época, algo mes-
clado com resquícios de cultura, valores místicos e religiosos, em uma
complexa teia de relações para além das regulações. Em termos legislati-
vos, pode-se mencionar que, a partir da metade do século XVI, aparece
a tendência uniformizadora das Leis Indianas209.
Ora, nada mais presente no viés centralizador do que a intenção
de atrair os indígenas para a causa da assimilação nos auspícios “sobe-
ranos” da Coroa de Castela. No momento em que o reinado espanhol
deixava sob seu resguardo as normatividades da esfera eclesiástica, pú-
blica, e o manuseio dos aspectos econômicos, os outros âmbitos pode-
riam ser distribuídos por conta dos interessados, mesmo que fossem
indígenas. Desdobrando essa leitura, os reis católicos tratam de proteger
os interesses religiosos, os objetivos evangelizadores da igreja e também

209
“[…] la legislación indiana se dicta con carácter territorial (para una pro-
vincia o en general), sin distinción de razas, y en este sentido, hasta que se reconoce
expresamente la vigencia de los Derechos indígenas, aplicable a españoles e indios.
Ahora bien, como esta legislación dictada especialmente para las Indias solo regula
ciertas cuestiones – la organización eclesiástica y la secular administrativa y fiscal,
el comercio y algunos aspectos económicos y la condición de los indios –, en lo no
regulado por ella, los españoles se rigen por el Derecho castellano y los indios por sus
propias costumbres. Posiblemente, también los negros de condición libre han debido
en algunos aspectos aplicar sus propios usos, en la medida en que éstos los han con-
servado”. GARCÍA GALLO. Alfonso. La penetración de los derechos europeos y el
pluralismo jurídico en la América Española, 1492-1824. In: DAL RI, Luciene. DAL RI
JR., Arno. GARCÍA GALLO, Alfonso. et al. (Org.). A latinidade da América Latina:
enfoques históricos-jurídicos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 104.

141
os negócios particulares entre setores privados. Tomam para si as réde-
as da organização político-administrativa, ao mesmo tempo, abrindo
mão de certo rol jurisdicional estratégico, do qual demandar-se-ia uma
estruturação e organização mais complexa, fator que não parece conta-
bilizado nos cálculos políticos do governo espanhol, somando-se ainda
aos aspectos de confronto que surgiram entre Leis de Castela, Leis de
Índias e cultura jurídica indígena.
A proposta da distinção legislativa para cada destinatário é uma
hipótese de determinar o campo jurisdicional, classificando-o de acor-
do com o indivíduo que busca regular e hierarquizar as esferas de apli-
cação, legando autonomias a alguns setores e soberanias a outros; o que
redundará em uma materialidade de Pluralismo Jurídico subjugado,
controlado e propositalmente sem forças de sobrepor-se aos poderes
dominantes. Nada mais resta a essa pluralidade normativa do que, de
forma simbólica, representar o poder colonial e, de maneira material,
hierarquizar os aspectos jurídicos.
Ademais, o próprio Estado espanhol determinava as classes so-
ciais sob o âmbito da aplicação normativa pela qual se regia, regulamen-
tando de forma explícita os cidadãos espanhóis – súditos legítimos – e
os demais com suas regras e condutas, tal foi o caso de índios e negros.
Pergunta-se qual seria a conveniência dessa postura para o Esta-
do, que buscava a unidade conjuntural sob a soberania do monarca, ou
mesmo de que serviria manter sistemas jurídicos variados para, poste-
riormente, concretizar a chamada unidade nacional simbólica? De ime-
diato, surge uma hipótese referente à postura do Estado espanhol ante a
qualidade ou a categoria política dos nativos; pode-se supor, com evidên-
cias, que essas atitudes tolerantes para com a juridicidade dos índios e
dos negros estariam intimamente ligadas aos interesses de mantê-los sub-
jugados, até mesmo por conta da incapacidade compreensiva do mundo
jurídico europeu em relação ao modo “jurídico-cultural” dos nativos. A
título de exemplo, cabe refletir como seria dificultoso para a Coroa legali-

142
zar a propriedade coletiva indígena no âmbito do Direito de Castela, para
não falar na impossibilidade material de desenhar essa proposta.
Outro ponto que pode auxiliar na resposta às inquietações ante-
riores trata-se daquilo que contextualiza o historiador espanhol:
Tan pronto como se superó la primera etapa insular de la
colonización y los españoles se adentraron en tierra con-
tinental – Tierra Firme –, tuvieron que enfrentarse con
los aborígenes de estas comarcas, muchos de los cuales
vivían dentro de fuertes organizaciones políticas- […] –
cuyas organizaciones, pasado el fragor de la conquista,
convenía a los hombres de gobierno de España utilizar,
en la medida de lo posible, al servicio de su política co-
lonizadora. Se decretó, por los monarcas españoles, que
se respetase la vigencia de las primitivas costumbres ju-
rídicas de los aborígenes sometidos, en tanto estas cos-
tumbres no estuvieran en contradicción con los intereses
supremos del Estado colonizador, y por este camino, un
nuevo elemento, el representado por las costumbres de
los indios sometidos, vino a influir la vida del derecho
de las instituciones económicas y sociales de los nuevos
territorios incorporados al dominio de España 210.

Como se percebe, a lógica pluralista em termos jurídicos se jus-


tifica também por conta da insuficiente força política de Castela para
enfrentar a estrutura orgânica do sistema jurídico indígena, afinal, ao
contrário da concepção cultural do Direito Europeu, para os indígenas,
este estaria em um emaranhado de normatividades de caráter social,
político, cultural e místico, o que era totalmente incompreensível para
administrar segundo o ponto de vista que pretendia impor os interesses
da Coroa – sujeitados a uma ética religiosa fervorosa e moralista.

210
OTS Y CAPDEQUÍ, J. M. El Estado Español En las Indias. México: Fdo.
Cult. Econômica, 1993, p. 11.

143
Aliás, sujeitar as corporalidades indígenas seria uma coisa, ago-
ra, toda a sua cultura, é uma estratégia falida em sua própria concepção.
Os invasores, cientes dessa situação, trataram de articular estratégias de
domínio mais “dóceis”, menos impositivas e mais pacificadoras. Esses
aspectos de facultar aos indígenas certos âmbitos de organização – em
destaque, o jurídico – eram compostos de limitações tácitas nas Leis
de Índias, principalmente em torno da questão de jurisdição criminal.
Atende esse caráter jurisdicional ao controle de divisar quem detém o
monopólio da violência e a determinação dos castigos.
A interpretação dos âmbitos jurisdicionais e sua posterior de-
terminação afirmam o postulado dos limites políticos que implica esse
Pluralismo Jurídico colonial. Quanto mais se estuda a inquietante per-
gunta acerca dos motivos que levam essa tolerância jurídica plural, em
um período de predomínio do extermínio e de assimilação territorial,
política e cultural sob o manto da exploração econômica, mais se apro-
xima a confirmação da hipótese de que, na análise da história das insti-
tuições jurídicas no período do reinado nas Índias, o Pluralismo Jurídico
colonial é um essencial instrumento do procedimento colonizador211.
Esse tipo de colocação traz à luz a “real” meta da arquitetura ins-
titucional, armada para envolver paulatinamente a materialidade con-
figurativa dos ordenamentos que congregavam a esfera sólida da orga-
nização sociopolítica ameríndia. Atingir de pronto o núcleo do cultivo
jurídico indígena não era uma estratégia de dominação, mas compreen-
dê-lo e desestruturá-lo fazia parte da engenharia que se mostrou eficien-
te para concretizar o processo de espoliação das forças organizativas
desses povos e subsumi-los. Se o recorte histórico que sintetiza o perí-

211
“[…] Se decretó además, por los monarcas españoles, que se respetase las cos-
tumbres de los indios sometidos en todo aquello que no se contraria los intereses del
Estado conquistador. Estos elementos jurídicos aborígenes representaran un elemento
importante en la juridicidad indiana”. RANGEL, J. A. de la Torre. Op. cit., p. 114.

144
odo permite verificar e compreender esses fenômenos, sua ampliação
e visão da totalidade que representou esse período até a formação dos
Estados nacionais ajudam a vislumbrar seus resultados.
Diante disso, alerta-se para o fato de que a proposta de não “libe-
rar” todas as esferas jurídicas para livre deliberação dos povos indígenas
não deve ser lida como ato desconexo das esferas políticas e econômicas
que envolviam a subordinação colonial. As instituições jurídicas, como
o caso das Audiências, são puro reflexo das anteriores esferas – que,
vale recordar, foram compostas pela carência econômica da Coroa de
Castela, os gananciosos interesses privados dos exploradores e a missão
apostólica do episcopado.
Logo, a materialidade dessas circunstâncias condiciona o conte-
údo da legalidade pluralista colonial que envolve aqueles atos jurídicos
emanados pela Coroa de Castela em benefício dos ameríndios, imbuí-
dos de uma ação estratégica dominadora mais ampla que o próprio âm-
bito jurídico, tolerantemente assimilado pela legislação, mas ao mesmo
tempo insuficiente para, de imediato, alcançar a factibilidade instru-
mental ao projeto de construir em terras do Novo Mundo o espelho
do reino espanhol. Por isso, se justificam certos condicionamentos às
esferas de poder, elaborando expedientes que constituem uma variável
nas ordenanças da monarquia; estas seriam “trampas” que mantinham
alguns arquétipos organizacionais dos povos originários, simultanea-
mente mesclando-os e subjugando-os dentro da estrutura colonial.
Até aqui, abordou-se o procedimento da colonização como a
proposital engenhosidade política dos reinos católicos. Trata-se agora
de colocar em evidência os desdobramentos e, de pronto, se convocam
as ponderações de Alfonso García Gallo, que esclarece:
Civilizar a los indios se entiende cómo enseñar a ésos a
vivir como los castellanos. Lo que en el terreno jurídico
supone el trasplante del Derecho castellano, adaptándolo
a las peculiares circunstancias del mundo americano, en

145
un primer momento no se ha pensado en la dificultad que
entraña para los indios regirse por un Derecho que le es
absolutamente extraño. Pero ésta se percibe luego clara-
mente a la vez que, reconociendo a las comunidades indí-
genas su carácter de sociedades políticas plenas conforme
al Derecho natural, se acepta que pueden organizarse así
mismas como días quieran, y en consecuencia desde me-
diados del siglo XVI se les permite regirse por sus propias
costumbres en cuanto no se opongan a la ley natural y a
la religión católica. En consecuencia, coexisten en todas
las regiones de Indias tres sistemas jurídicos diferentes: el
castellano-indiano, el canónico y el indígena 212 .

Esse fragmento do historiador do Direito da Universidade Com-


plutense de Madrid investe sobre o caráter das propostas que abrem para
uma pluralidade jurídica ante as falhas que representaram a impostura
direta do ordenamento jurídico de Castela e, no caso dos indígenas, a
pouca eficácia que surtiria o chamado Direito Indiano.
Acontece que tal abertura deveria estar condicionada aos próprios
elementos que ensejaram esse ato falho das legislações espanholas, qual
seja, a não aceitabilidade ameríndia ao estranho no seu mundo. Afinal, o
corpo jurídico castelhano não teve regência no Novo Mundo justamente
por conta da inadaptabilidade à geopolítica e à epistêmica local, ou mes-
mo à cultura do Outro, distinto em sua natureza cultural. As travas, para
que alerta García Gallo, compõem não somente limites ao Pluralismo Ju-
rídico colonial, mas também estratégias de encobrimento das perspecti-
vas normativas locais, no sentido civilizador que fala ao “Outro”.
Explica-se isso quando da legalização dos usos e dos costumes
indígenas diante da legislação castelhana; em realidade, se quer primei-

212
GARCÍA GALLO. Alfonso. La penetración de los derechos europeos y el
pluralismo jurídico en la América Española, 1492-1824. In: DAL RI, Luciene. DAL RI
JR., Arno. GARCÍA GALLO, Alfonso. et al. (Org.). A latinidade da América Latina:
enfoques históricos-jurídicos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 103.

146
ramente aflorar sua natureza diferente, para em seguida hierarquizá-la
de maneira que a posicione sob o Direito de Castela e, por fim, menos-
prezando a sua soberania quando estabelece que não somente algumas
jurisdições como também alguns casos sejam informados, analisados e
sentenciados pelo Conselho Real de Índias.
Relembrar a obra de Tzvetan Todorov é inevitável no tocante à questão
da igualdade e da diferença no período da colonização, pois sabe-se que
o indígena ocupava uma pseudo-igualdade em relação ao europeu, uma
igualdade hierarquizada pela superioridade “racial”.
A aceitação da juridicidade indígena sob a guarda legal superior
de Castela pode ser traduzida em reflexão a partir de Todorov da se-
guinte maneira: se o compreender não é acompanhado de um reconhe-
cimento expressivo e pleno do outro como sujeito em suas capacidades
e integridade, logo, esse ato corre o risco de transformar-se em manipu-
lação com escopo de exploração. O saber fica subordinado ao poder, por
consequência, não é outra postura que se encontra na presente atitude
do refinado Pluralismo Jurídico colonial213.
O que se pretende evidenciar com essas reflexões é o fato de
que a manutenção das instituições jurídicas indígenas, ou mesmo das
normatividades sociais que se assemelham ao parâmetro jurídico espa-
nhol, é um processo de converter a pluriversidade em uma pluralida-
de homogeneizante, projetada em total tolerância dominadora. Assim,
utilizando-se do mesmo princípio de ver ao Outro como a si mesmo,
típico da hermenêutica do eurocentrismo no período, assentado no bi-
nômio da igualdade/diferença, assimila-se a cultura do Outro como
própria através da afirmação da diferença e da estipulação do parâme-
tro unificador, aquela que, em vez de afirmar uma identidade distinta,
acaba incorporando como diferença, no momento em que hierarquiza

213
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 2. ed.
México: Siglo XXI editores, 2010, p. 162.

147
e subordina ao parâmetro conveniente aos seus interesses; trata-se da
progressiva incorporação da alteridade.
A outra face da moeda projetada nessas leis é a mesma da enco-
menda: mantêm-se reduzidos e controlados os povos originários, legan-
do espaços mínimos de cotidianidade autóctone, desde que a carga colo-
nizadora seja auferida simultaneamente; a perversidade do processo de
extermínio, por vezes, não se manifestou apenas pelo fio da espada, mas
na tortura da tolerância jurídica e do assédio evangelizador, que cumpri-
ram juntos uma função específica de flexibilização para dominação214.
Esse arquétipo implícito nas estruturas do Reinado das Índias
foi amplamente manipulado em todas as esferas de dominação (inclu-
sive na jurídica), principalmente nas institucionais. O que se lê como
não uniformidade durante esse período no campo jurídico, trata-se de
uma ardilosa manobra de “flexibilidade”, conforme afirmou Todorov. Já
García Gallo faz referência, de maneira explícita, a esse intento:
La política de civilizar a los indios, aunque se haya permitido
a éstos regirse por sus costumbres, tiende a su españolización
cultural y jurídica. El Derecho indiano, que pretende orga-
nizar con arreglo a los criterios españoles y europeos la vida
del Nuevo Mundo, constituye por ello un poderoso elemento
perturbador o destructor de las formas de vida indígenas215.

214
“Los europeos dan prueba de notables cualidades de flexibilidad e improvi-
sación que les permiten imponer mejor en todas partes su propio modo de vida. Claro
que esta capacidad de adaptación y de absorción al mismo tiempo no es en modo
alguno un valor universal, y trae consigo su otra cara, que se aprecia mucho menos.
El igualitarismo, una de cuyas versiones es característica de la religión cristiana (oc-
cidental) y también de la ideología de los Estados capitalistas modernos, sirve igual-
mente a la expansión colonial: ésta es otra lección, un poco sorprendente, de nuestra
historia ejemplar”. Ibid., p. 295.
215
GARCÍA GALLO. Alfonso. La penetración de los derechos europeos y el
pluralismo jurídico en la América Española, 1492-1824. In: DAL RI, Luciene. DAL RI
JR., Arno. GARCÍA GALLO, Alfonso. et al. (Org.). A latinidade da América Latina:
enfoques históricos-jurídicos. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 105.

148
Acontece que, para esse escopo da dominação prosseguir, não
havia como eliminar totalmente o principal agente do processo: os pró-
prios indígenas. Aliás, já foram mencionados o extermínio assinalado
e a operação exploratória e escravocrata combatida arduamente pelos
clérigos cristãos, o que fez com que o Estado espanhol interviesse na
questão, inclusive lançando normativas para regular, reprimir e intentar
barrar este ímpeto. Logo, ao não haver possibilidade de eliminar direta-
mente o sujeito da dominação, outros expedientes aparecem, entre tais,
a dominação cultural216.
Lógico que, além de dominar os indígenas e as suas instituições,
o interesse “Real” de conservá-las, conforme a tese de Jesús Antonio De
la Torre Rangel, também tinha finalidade exploratória. Por exemplo, o
sistema do “cacicazgo” e outros relacionados com as lideranças indígenas
foram amplamente utilizados pela Coroa no período de colonização.
Tal foi o caso da exploração tributária do império de Montezu-
ma, pois os espanhóis, sabendo, ainda que superficialmente, do mapea-
mento tributário e hegemônico do império do líder Asteca, exploraram-
-no enquanto foi lucrativo. Entretanto, o que bastava para os espanhóis
era compreender “como” advinha o recolhimento, não lhes interessava
aprofundar com que princípios funcionava o sistema. As instituições es-
panholas que mantiveram muitas das culturas jurídicas, primeiramen-

216
“Para los españoles parece haber sido imposible comprender el sistema jurí-
dico autóctono de los indios. Sin embargo, transformaron a los caciques en interme-
diarios entre la administración virreinal y los indios nativos. Ochenta años después de
la Conquista, el virrey de México no sabía en qué contexto se nombraron los caciques
y cómo se transmitieron sus cargos. Los virreyes reconocieron a los caciques como
‘señores naturales’ y aceptaron su legitimidad ‘natural’, sin preguntarse cómo ésta se
había fundado. Se utilizó la red de los ‘señores naturales’ para organizar la extracci-
ón tributaria, todo lo demás no tenía interés para la burocracia española”. STEGER,
Hanns-Albert. Legitimación y poder, las formación de sociedades nacionales en Amé-
rica Latina. In: DAL RI, Luciene. DAL RI JR., Arno. GARCÍA GALLO, Alfonso. et al.
(Org.). A latinidade da América Latina: enfoques históricos-jurídicos. 2008, p. 91.

149
te, não possuíam como finalidade primordial a ideia de tolerar, e, dada
a inutilidade para os verdadeiros fins que a justificavam, logo eram eli-
minadas ou abandonadas as instituições nativas, ou então incorporadas
dentro do assimilacionismo espanhol217.
Isso pode-se verificar em algumas audiências realizadas com
o fim de dar voz e atenção aos pleitos indígenas, formalizados dentro
dos procedimentos alheios às suas formas de debater problemas em
assembleia. Esses dois fatores tipificam performances de subjugação
sem transparecer conteúdo explícito dos fins perseguidos, e também
se pode notar a diferença abissal entre a materialidade de uma pro-
posta, os seus desdobramentos (desejados ou não) e a sagacidade na
construção inescrupulosa.
Ademais, o que envolve a persistência ou eliminação de uma
instituição é a referência que esta tem para as finalidades dos atos do
“Reinado espanhol”. Ao que parece, a afirmação colonial se apresenta
inteiramente deformadora, em virtude da inabilidade para lidar com
as questões que fogem à sua lógica interpretativa. García Gallo, em
algumas passagens, permite explorar questões que envolvem a eficácia
dos costumes indígenas para resolução das suas próprias desconfor-
midades, e o quanto estas ficam comprometidas quando do intrometi-
mento não legítimo das instituições e das personagens colonizadoras.
Salienta que a reiterada naturalidade e a espontaneidade com que al-
gumas questões eram resolvidas tornam-se um absurdo diante da ra-
cionalidade eclesiástica moralista ibérica. Afirma o autor que: “[…] el

217
“La transformación o desaparición de instituciones indígenas a veces es
consecuencia de la imposición de otras castellanas que las anulan o restringen. v.
gr., en el campo de la organización política. Y lo mismo ocurre en la esfera canónica
para los indios cristianos: p. ej., con la imposición del matrimonio monogámico y la
prohibición del divorcio. Otras, se debe a un proceso de imitación o aproximación a
las instituciones castellanas, que en algún aspecto se consideran más beneficiosas; tal
ocurre cuando los indios solicitan títulos de propiedad de sus tierras para así mejor
defenderlas”. GARCÍA GALLO. Alfonso. Op. cit., p. 106.

150
Derecho sentido y vivido por la población indígenas, en muchas partes
la más numerosa, es un Derecho vivo, de cuya vitalidad depende que
la legislación pueda imponerse de modo efectivo”218.
Finalmente, aquilo que se pode chamar de Pluralismo Jurídico
colonial ou subjugado se conformou em um instrumento de domínio
em serviço da procedimentalidade colonizadora (concretizado como
tolerante). Foi, na realidade, um composto formulado por caracteres
de subjugação, hierarquia e controle, emanado desde limites legais e
com finalidades estritamente ligadas aos interesses dos espanhóis. Da
natureza jurídica desse tipo de pluralismo, observa-se não o fato de
tratar sobre os Direitos Indígenas ou suas formas jurídicas, mas o con-
teúdo material dessa tipologia, dado pela própria legislação espanho-
la, que, em termos de Direito, hierarquiza leis e subclassifica os usos
e costumes dos povos autóctones, reduzindo a compreensão jurídica
autóctone ao entendimento da instituição Real Audiência de Índias.
Diante disso, o Pluralismo Jurídico colonial deve ser caracteri-
zado por sua flexibilidade derivada da unilateralidade relacional im-
posta aos povos locais, a qual resulta em um procedimento ardiloso219,
de reconhecimento falseado pela intolerância calcada na igualdade-
-diferença, que hierarquiza as naturezas humanas, reduzindo o seu
potencial cognoscitivo sob o manto de um consenso dominador. O
que se teve foi uma pluralidade e, teoricamente, se deve admitir que a
melhor qualificação é dada pela categoria de maleabilidade jurídica,
por comportar uma ampliação da cobertura legislativa, com uma in-

218
Ibid., p. 107.
219
Romano Ruggiero recorda, em seu livro, sobre a necessidade de criar siste-
ma para enquadrar os índios. No caso específico por ele abordado, se trata da questão
da encomenda que, por analogia, deve-se estender às demais instituições, em que a
jurídica como típico instrumento de domínio não deve ficar de fora. RUGGIERO, Ro-
mano. Mecanismos da conquista colonial: os conquistadores. São Paulo: Editorial
Perspectiva S.A., 1973, p. 41.

151
terpretação do conteúdo jurídico estritamente controlado pela admi-
nistração central em mãos da Coroa.
Lendo a materialidade exposta nos intentos que representaram
esse tipo de atitude dominadora – privilegiando os âmbitos econômico,
religioso e político –, é possível concluir que os princípios envolvidos
no movimento da administração da justiça não se importavam em pri-
vilegiar uma compreensão jurídica indígena, traduzindo o Pluralismo
Jurídico colonial em reduzido fenômeno (de)codificado à luz da inter-
pretação do Conselho de Índias.
Isso significa que a legitimação dos usos e dos costumes amerín-
dios estava condicionada à uniformização pelos parâmetros que deve-
riam ser analisados no nível dos princípios espanhóis, pois as perspecti-
vas legislativas apontavam para uma hermenêutica castelhana.
O que a legislação das Índias permitia era uma desarticulação
cultural dos usos e dos costumes indígenas em dois momentos: o pri-
meiro, na legalização ou na institucionalização através da hierarquiza-
ção pelas Reais Audiências, submetendo ao seu controle o que consi-
deravam válido, como no caso em que não se deveriam contrariar as
normas da igreja e de Castela – e, para isso, as Audiências se incumbiam
de administrar justiça; o segundo se dá pelo progressivo efeito do pri-
meiro, ou seja, a uniformização da administração da justiça, fato seme-
lhante à aculturação que desacreditava os indígenas.
Destarte, o que se verificou nesse episódio foi a contradição en-
tre uma invenção ardilosa de maleabilidade jurídica e um fático Plu-
ralismo Jurídico autóctone, encoberto e dominado pela institucionali-
zação das Reais Audiências de Índias. Mesmo ao colocar-se em acordo
com as posturas de Jesús Antonio De la Torre Rangel, nas quais alude a
certo grau de proteção, verificado principalmente pelas atitudes de al-
guns setores da igreja e de seus sacerdotes, com o mérito de possibilitar
uma existência subordinada às instituições jurídicas externas, não será
demasiado afirmar que esta comportou dupla finalidade – intencional

152
ou não – de cercear a soberania das populações originárias no sentido
vivo (como acima mencionou García Gallo), na cotidianidade histórica,
pulsante, natural e bela da sua cultura jurídica. Em termos teóricos, a
compreensão do Pluralismo Jurídico colonial, dependendo do aspecto
sob o qual for analisado o problema, deve ser desconsiderada como tal
terminologia, salvo se a amplitude da conotação atingir outras esferas
fora do Direito, como um conceito largo e ampliado.
Enfim, desde que se mantenha a ótica da subjugação e da domi-
nação, conferidas somente quando estudada a materialidade do desdo-
bramento da instituição Real Audiência de Índias como administração
da justiça sobre o aspecto plural jurídico, o que se encontra são instru-
mentos de dominação em que o Pluralismo Jurídico medieval europeu
foi excelente expediente para conformar a empresa colonizadora.

153
parte II

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA CULTURA


MONO-JURÍDICA BRASILEIRA

155
capítulo 2

HISTORICIDADE DA CULTURA JURÍDICA NACIONAL E A REINVENÇÃO


INSURGENTE DECOLONIAL

2.1. A “INVENÇÃO” DO BRASIL: O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO

E m 2000, passados 500 anos do “descobrimento” do Brasil,


Marilena Chauí desconstrói o “mito Brasil”, afirmando que a
América não “estava à espera de Colombo, assim como o Bra-
sil não estava aqui à espera de Cabral”220. Antes de mais nada,
diz Chauí, “Brasil” é uma invenção histórica e cultural da me-
trópole portuguesa, e parte do projeto do capitalismo mercan-
til europeu que, simultaneamente, alargava as fronteiras do
visível, trazendo novas mercadorias, e as do invisível, novos
semióforos221. Sem dúvida, não foi a vontade de Deus que con-
duziu os súditos de Dom Manuel até as terras brasileiras.
As conquistas coloniais europeias do século XV apa-
recem como desdobramento da expansão do capitalismo
mercantil, constituindo o ponto de partida para a edificação
do projeto da Modernidade.

220
CAHUÍ, Marilena. Brasil – mito fundador e sociedade autoritária. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 57.
221
O termo “semióforo” é utilizado por Marilena Chauí na obra suprarreferida
para designar uma imagem que vincula o visível ao invisível – ao imaginado –, que
permanece e é reproduzido pelas elites intelectuais para dar sentido e vínculo entre
o real e o imaginário. A invenção de uma nação, em geral, passa por um processo de
construção de semióforos, tais como “a vontade de Deus”, “missão salvadora”, “obra
de heróis”, etc. Dessa forma, a gênese histórica é negada e esvaziada, tornando o irreal
em real, nascendo o mito.

157
“Modernidade” é a designação genérica de um complexo con-
junto de transformações, cujos efeitos acabaram colocando a Euro-
pa como centro de um projeto civilizatório hegemônico. Trata-se de
um processo paradigmático inédito, que reorientou as múltiplas rela-
ções da vida cotidiana e suas formas tradicionais de racionalização,
carregando consigo distintas faces. Externamente, desde o Sul 222 , a
modernidade pode ser interpretada como construção do mito criado
a partir do século XV acerca da existência de um centro histórico
mundial portador de uma concepção civilizadora de ordem econômi-
ca, política e social. Em momentos históricos anteriores, os impérios
ou sistemas culturais coexistiam entre si, e apenas com a expansão
europeia, que atinge a América no século XV e o Oriente no XVI, é
que o planeta torna-se o “lugar” de uma “única” história mundial 223.
Na face interna, eurocêntrica, modernidade é a emancipação racio-
nalizadora da humanidade. Um discurso que oculta a irracionalidade
justificadora de seu próprio mito.
Para Enrique Dussel, o mito da modernidade, uma prática irra-
cional de violência, é fundado nas seguintes crenças:
a) a civilização eurocêntrica moderna se autocompreende como
a mais desenvolvida e superior;
b) em troca desta superioridade, lhe é imposta a exigência moral
de desenvolver os povos mais primitivos, rudes e bárbaros;
c) este processo de educação civilizadora deve ser conduzido
pela Europa;
d) como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, se necessário

222
A palavra “Sul” é utilizada para designar o espaço geopolítico de confluência
e experiência histórica multicultural dos povos latino-americanos.
223
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: LANDER, Ed-
gardo (org.) La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspecti-
vas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 46.

158
for e, em último caso, a violência pode ser utilizada em nome do pro-
gresso (justificando-se, assim, a “guerra justa” colonial);
e) o processo civilizatório produz vítimas, mas como a violência
é inevitável, há um heroísmo intrínseco neste sacrifício salvador;
f) o bárbaro não é vítima, mas sim o culpado dos sacrifícios ne-
cessários, já que o “civilizado” é inocente por ser nobre sua missão;
g) logo, o processo civilizatório possui “custos” para os povos
atrasados (imaturos), para as raças escravizáveis e para todo débil224.
“Modernidade”, portanto, é um paradigma múltiplo, ambíguo
e complexo, que enfeixa em si relações de dominação desenvolvidas
mundialmente desde o século XV, cujo impulso foi a autoelaboração
europeia de um imaginário de “progresso” linear e universal. A tirania
de poder, com sua “missão civilizadora”, ocultada pelo discurso justi-
ficador da modernidade, constituiu-se numa prática “racionalizadora”
de um mito alimentado interna e externamente pelo mundo europeu,
ao mesmo tempo que era definitivamente superado o passado medieval.
Assim, “mundo moderno” é produto da aproximação entre a burguesia
secularizada europeia e as necessidades do capitalismo, o qual acabou
por oferecer os contornos do padrão mundial de poder que construiu o
modelo civilizatório hegemônico.
É evidente que a expansão colonialista europeia do século XV não
resultou da necessidade de ocupação de novos espaços por excesso popu-
lacional, mas foi propositalmente provocada por uma burguesia comercial,
definida por Caio Prado Júnior como “sedenta de lucros, e que não en-
contrava em seu espaço pátrio, satisfação à sua desmedida ambição”225. Os

224
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: LANDER, Ed-
gardo (org.) La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspecti-
vas latinoamericanas. Op. cit., p. 49.
225
JÚNIOR, Caio Prado. Evolução política do Brasil. 9ª Ed. São Paulo: Brasi-
liense, 1975, p. 13.

159
diversos fatores políticos que culminaram com a ascensão ao trono portu-
guês da Casa de Aviz favoreceram o fortalecimento da burguesia comercial
lusitana, que logo tratou de começar um movimento de expansão externa,
iniciada com a tomada de Ceuta em 1415, e desde então, não mais parou226.

2.1.1. Horizonte e criticidade

Refletir acerca da experiência histórica partilhada num espaço


chamado Brasil é, no sentido gadameriano, a possibilidade de confron-
to – oposição do novo (presente, atual e questionador) ao antigo (do-
minante, a tradição) – do que permanece oculto pelos paradigmas do-
minantes. Portanto, é nesse confronto que se visibilizam resistências a
serem superadas e, assim, torna-se possível emergir o novo.
Se, como diz Gadamer, “o novo deixaria de sê-lo se não tivesse
que se afirmar contra alguma coisa”227, o que haveria de novo em rever a
trajetória da cultura jurídica brasileira por um viés crítico? O que restaria
a ser reinventado neste atual cenário desolador de início do século XXI?
Em tempos de elite global e um mundo neoliberal que está a
produzir perversidades em escala jamais vistas, ao que parece, nos en-
contramos diante de inéditas e desafiadoras escolhas paradoxais ainda
mal compreendidas.
No entender de Slavoj Zizek 228:
[…] o conformismo cíclico nos diz que os ideais emancipa-
dores de mais igualdade, democracia e solidariedade são,
além de raivosos, perigosos, e que nos levam a uma socie-

226
Acerca do tema da política portuguesa de expansão ultramarina, há como
referência: DIAS, Manuel Nunes. Expansão européia e descobrimento do Brasil. In:
MOTA, Carlos Guilherme (org). Brasil em perspectiva. 9ª Ed. São Paulo: Difel, 1977.
227
GADAMER, Hans Georg. O problema da consciência histórica. Tradução
de Paulo Cesar Duque Estrada. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 14.
228
ZIZEK, Slavoj. Problemas em el paraíso – del fin dela historia al fin del
capitalismo. Tradución de Damià Alou. Barcelona: Ed. Anagrama, 2016, p. 12.

160
dade cinza e regulada em excesso, e que nosso verdadeiro
paraíso é o universo capitalista existente e “corrupto”. O
compromisso radical emancipador surge da premissa que
enfadonho é a dinâmica capitalista, pois oferece sempre o
mesmo sob o disfarce de mudança constante, e que a luta
pela emancipação segue sendo a mais audaciosa de todas
empreitadas. Nosso objetivo é essa segunda opção.

Escolher pela emancipação é enfrentar um duro e urgente con-


fronto entre lógicas e forças contrárias, que, conforme lembram Dardot
e Laval229, estão se avolumando como resultado das mutilações e dos so-
frimentos causados pela subjetivação neoliberal, a qual age no sentido do
egoísmo social, da negação da solidariedade e da redistribuição, podendo
“desembocar em movimentos reacionários ou até mesmo neofascistas”.
Neste panorama, pretende-se discutir novos pactos, trajetórias e
compromissos; coloca-se a necessidade de refundação da cultura jurídi-
ca crítica, desde um olhar decolonial, compreendendo a reflexão sobre
a experiência histórica um importante ponto de partida, na medida em
que torna possível o questionamento da história efeitual.
A história efeitual é o que determina de antemão o que se mostra
à primeira vista como questionável e objeto de investigação, portanto,
uma maneira de superar a ingênua compreensão orientada pelo padrão
de compreensibilidade230. Quando se nega a história efeitual na ingenui-
dade da fé metodológica, a consequência pode ser até uma real deforma-
ção do conhecimento231. Não se trata apenas de mero reconhecimento
do poder da história efeitual como elemento hermenêutico, e sim, so-
bretudo, de torná-la consciente. Sem a pretensão de apreender um sa-
ber absoluto, a consciência da história efeitual é, segundo Gadamer, em

229
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo – ensaio
sobe a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 9.
230
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Op. cit., p. 449-450.
231
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Op. cit., p. 450.

161
primeiro lugar, consciência da situação hermenêutica, isto é, da situação
em que nos colocamos em face da tradição que se quer compreender.
A situação do presente, suas instituições e seus dogmas são limites
para a compreensão e problematização, uma vez que o âmbito de visão –
horizonte hermenêutico – inclui tudo o que é visível a partir de um ponto, e
é este “ponto de mirada” que deve ser questionado. A consciência da histó-
ria efeitual permite a abertura para outros horizontes, para uma ampliação
inclusiva de novos pontos de mirada, de outros olhares sobre o presente.
Nas palavras de Gadamer:
Ter horizonte significa não estar limitado ao que há de
mais próximo, mas poder ver além disso. Aquele que tem
horizonte sabe valorizar corretamente o significado de
todas as coisas que caem dentro deles, segundo padrões
de próximo e distante, de grande e pequeno. A elabora-
ção da situação hermenêutica significa então a obtenção
do horizonte de questionamento correto para as questões
que se colocam frente à tradição.232

É exatamente na tentativa visibilizar o horizonte jurídico brasi-


leiro que se pretende retomar brevemente a construção histórica da cul-
tura jurídica nacional, lembrando, como diz Antonio Carlos Wolkmer,
que a retomada dos estudos históricos ganha significado quando se “tem
em conta a necessidade de repensar e reordenar uma tradição norma-
tiva, objetivando depurar criticamente determinadas práticas sociais,
fontes fundamentais e experiências pretéritas que poderão, no presente,
viabilizar o cenário para um processo de conscientização e emancipa-
ção”233. Esta é a pretensão da análise da especificidade da cultura jurídi-
ca no contexto histórico-político delineado após a invenção do Brasil.

232
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Op. cit., p. 452.
233
WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 2ª Ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1999, p. 1.

162
2.1.2. As raízes colonizadoras da Cultura Jurídica Brasileira

Alfredo Bosi inicia sua análise acerca da colonização distinguin-


do dois processos: aquele relacionado com o mero povoamento, e o que
conduz à exploração do solo. Assinala que, na expressão verbal “ato de
colonizar”, não está diferenciado o ato de habitar e o ato de cultivar,
como se “fossem verdadeiros universais nas sociedades humanas, a pro-
dução dos meios de vida e das relações de poder, a esfera econômica e
esfera política, reproduzem-se e potenciam-se toda vez que se põe em
marcha um ciclo de colonização”234. Neste novo processo, iniciado a
partir do século XVI, há o acréscimo de algo: um traço de dominação,
de aventura, de conquista. Embora, nem sempre, o colonizador conce-
besse a si mesmo como um simples conquistador. Em 1556, quando era
difundida a Lenda Negra sobre a colonização ibérica na América, a Es-
panha proibia o uso das palavras conquista ou conquistadores, impon-
do a substituição por descobrimento ou colonizadores.
O processo de ocupação, ironicamente chamado de descobrimen-
to, não ocorreu por expansão demográfica, como na antiguidade havia
acontecido com os gregos pelo Mediterrâneo, entre os séculos VIII e VI
a.C. “Ela é a resolução de carências e conflitos de matriz e uma tenta-
tiva de retomar, sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o
semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo
civilizatório”235. Em tal processo, era necessário cultivar não somente a
terra, mas também os seres humanos; cultivar práticas, símbolos e valo-
res capazes de garantir um estado de coexistência social, enfim, uma cul-
tura. Sem dúvida, a produção da cultura colonialista exigiu o domínio de
outros humanos, de sujeitá-los a padrões de dominação. Talvez essa seja

234
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 12.
235
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. Op. cit., p. 13.

163
uma possibilidade de se compreender por que, a partir do século XVIII,
as noções de cultura e progresso se confundem e se misturam.
Neste sentido, o processo de expansão comercial europeu, cha-
mado de moderna colonização, se insere no momento de superação do
modo de vida medieval, quando um grupo ascendente e enriquecido –
burguesia mercantil – orquestra as transformações econômicas, sociais
e políticas que culminam com a formação dos Estados Modernos e a
consolidação do capitalismo. Os elementos essenciais para a compre-
ensão da relação colônia-metrópole, com a consequente criação de um
aparato jurídico, são, entre outros, a expansão da economia europeia
mercantil e o esforço dos Estados Modernos metropolitanos em trans-
formar as colônias em instrumentos de expansão deste poder.
Na transformação dos antigos reinos medievais em Estados Mo-
dernos, unificados e centralizados, abrem-se os caminhos ultramarinos
que permitem a inserção destes Estados no processo de exploração, via-
bilizando a construção de seus impérios coloniais. A moldura do siste-
ma que explica a organização produtiva colonial e as suas implicações
na vida social não se limita à atividade colonizadora, mas a ajustar a
colônia de forma especializada, “concentrando os fatores na produção
de alguns poucos produtos comerciáveis na Europa, as áreas coloniais
se constituem ao mesmo tempo em outros tantos centros consumidores
dos produtos europeus”236. Com esta relação monopolizadora, criam-se
os mecanismos de apropriação e concentração dos lucros.
Não apenas o alinhamento dos fatores produtivos aos interesses
europeus é que revela a dependência e exploração colonial. É evidente
que tal sistema determinou um modo específico de produção: impôs pre-
ferencialmente o regime de trabalho escravo, impedindo a possibilidade
de acesso à terra, eliminando o risco de desenvolvimento de agricultura

236
NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial. In:
MOTA, Carlos Guilherme (org) Brasil em perspectiva. p. 58.

164
de subsistência. Essa é a compreensão de Fernando A. Novaes para o
surgimento da escravidão no momento em que a Europa caminha em
sentido contrário, pretendendo consolidar o trabalho assalariado237.
Portanto, a invenção do Brasil teve um sentido. No entendimen-
to de Stuart B. Schwartz, o Brasil, “desde sua origem, tem sido tanto
uma ideia como um lugar. Significou coisas diferentes para pessoas di-
ferentes e o próprio termo tem sido redefinido e reinterpretado para re-
fletir as diferentes discrepâncias entre pessoas de variadas extrações e
posições sociais. O Brasil, enquanto ideia, foi frequentemente mais um
projeto do que uma realidade, às vezes geográfica, às vezes nacional ou
até social”238. O projeto do colonizador conferiu um sentido à invenção
brasileira: tratava-se de instalar uma produção semicapitalista, em lar-
ga escala. A grande lavoura açucareira, pelo modo de exploração, nas
palavras de Sérgio Buarque de Holanda 239, é de natureza perdulária e
caracteriza o objetivo metropolitano: servirem-se da terra ao máximo,
mas sem muitos sacrifícios, como usufrutuários.
A lógica da modernidade é essencialmente colonialista. Chama
atenção Boaventura de Sousa Santos que, apesar de mutuamente cons-
truídos, capitalismo e colonialismo não se confundem240. “O capitalis-
mo pode desenvolver-se sem o colonialismo, enquanto relação política,
como se verificou historicamente, mas não o pode fazer sem o colonia-
lismo enquanto relação social, aquilo que […] podemos designar como

237
NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial. In:
MOTA, Carlos Guilherme (org) Brasil em perspectiva. p. 59.
238
SCHWARTZ, Stuart A. Gente da terra braziliense da nação. Pensando o
Brasil: a construção de um povo. In: MOTTA, Carlos Guilherme (org). Viagem In-
completa. A experiência brasileira. Op. cit., p. 105.
239
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª Ed. São Paulo: Cia das
Letras, 2000, p. 49.
240
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A gramática do tempo – para uma nova
cultura política. Vol. IV, São Paulo: Cortez, 2006, p. 37.

165
colonialidade de poder e do saber”241. O projeto da modernidade, em-
bora tenha sido edificado e vigorado nas metrópoles europeias, o que
excluía as sociedades coloniais das promessas de emancipação e regula-
ção, para as colônias, apenas foi dado optar entre a violência da repres-
são e a violência da assimilação242.
A despeito de Portugal, desde o século XVII, ter sido incorpo-
rado no sistema capitalista como periférico, sem ter assumido lugar
central, chegando ele próprio a ser um país dependente – sobretudo da
Inglaterra –, a subordinação colonial constitui-se no elemento central
de construção da identidade cultural brasileira, reproduzindo as rela-
ções de poder de uma metrópole periférica e subalterna. O colonialismo
português diferencia-se por ter se caracterizado como retroativo, ma-
nipulado segundo os desejos e as necessidades de outras metrópoles,
sobretudo a inglesa, que protagonizava um colonialismo que impunha a
normatividade do sistema-mundo243.
Alfredo Bosi244, na tentativa de mapeamento da formação eco-
nômica-social do Brasil Colônia, descreve como características funda-
mentais da ordem então estabelecida os seguintes aspectos:
a) A predominância de uma camada de latifundiários com in-
teresses atrelados a grupos mercantis europeus, o que permitia depen-
dência estrutural, impedindo a dinamização de um capitalismo mais
avançado internamente, reproduzindo-se um modelo capitalista colo-
nial específico, limitado a uma esfera mercantil dependente.
b) Como parte da lógica latifundiária, vinculada aos interesses dos
traficantes negreiros africanos, a força de trabalho foi constituída essen-
cialmente por escravos, cuja única alternativa não era a passagem para o

241
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A gramática do tempo. Op. cit., p. 37.
242
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A gramática do tempo. Op. cit., p. 36.
243
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A gramática do tempo. Op. cit., p. 232.
244
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. Op. cit., p. 23-25.

166
trabalho assalariado, mas a fuga e resistência nos quilombos. Ou, ainda,
como parte de uma lógica perversa, a alforria, alternativa para a resistência,
representava o ingresso numa vida marginal ou de condição de submissão
como agregado. A condição foi sempre de dependência e exploração.
c) A estrutura político-jurídica vai sempre representar os inte-
resses dos proprietários locais, os homens bons, mas com poder limitado
aos interesses reais. A competência de nomear o governador-geral com
mandato de quatro anos era da Coroa portuguesa, sendo incluído no po-
der do governador as forças militar e administrativa, segundo critérios
determinados pelos regimentos, cartas e ordens régias. O corpo burocrá-
tico de funcionários reais – provedores, ouvidores, procuradores, inten-
dentes, etc. – tem a ação controlada diretamente por Lisboa (a partir de
1642, pelo Conselho Ultramarino). Com o avanço da estrutura colonial,
vão sendo transferidos magistrados metropolitanos, juízes de fora, que
se sobrepunham aos eleitos nas vilas. A permanente tensão entre os in-
teresses locais e os metropolitanos será o fator de crise instalada a partir
do século XVIII, que, tendo a independência como tentativa de sua supe-
ração, servirá de fortalecimento do mandonismo local, legitimado pelos
bacharéis, os quais servem de representantes dos donos do poder.
d) O exercício de cidadania é limitado tanto pelo Estado Ab-
solutista Metropolitano como pelo poder interno, inexistindo qualquer
representação ou mecanismo de garantia para o conjunto da população,
situação que pouco se altera com a independência, pois o que se instala
é um modelo político censitário e indireto.
e) A cultura eclesiástica, sobretudo a jesuíta, empenhada numa
prática missionária supranacional, ganha espaço no início do proces-
so de colonização quando a moeda corrente era a ideia do papel evan-
gelizador da expansão metropolitana. Posteriormente a uma atividade
marginal, sucumbe sob a pressão do avanço bandeirante e do exército
metropolitano, restando, assim, a função educacional junto aos filhos
das elites locais.

167
f) A formação de uma cultura letrada estamental que não per-
mitia a mobilidade vertical, com raros casos de apadrinhamento, pre-
dominando uma massa analfabeta e caracterizando uma rígida linha
divisória entre a cultura oficial e a cultura popular.
A partir desse mapeamento, é possível compreender as raízes da
cultura brasileira como resultado de uma lógica agrária, latifundiária e
escravista, marcada por uma imensa distância entre o que exigiam da
terra e o que a ela davam em troca. A ilimitada exploração interna como
regra necessária para a submissão externa. A gestão da colônia deveria
ser feita através da metrópole, cujo norte foi a efetivação dos princí-
pios mercantilistas e o núcleo a formação e manutenção de um sistema
monopolista, que, como lembra Wolkmer, era a forma encontrada pela
metrópole de impedir que outras nações europeias “pusessem em risco,
com a concorrência, aqueles privilégios advindos da restrição comer-
cial, tão lucrativas aos comerciantes portugueses que não encontravam,
no seu espaço, satisfação para sua ambição”245.
Como parte integrante do universo colonial brasileiro, orga-
nizou-se um tipo de poder destituído de qualquer identidade com os
interesses internos, já que formou-se com a incorporação do aparato
burocrático e profissional lusitano, ou seja, como extensão da Coroa
portuguesa, que avançou no sentido de constituir-se numa forma de
poder legitimada pelos senhores da terra, os donos locais do poder.
A instituição do sistema de Governo-geral em 1548, como forma
de centralizar o poder e solucionar o problema do fracasso do sistema
de capitanias e a invasão estrangeira, aumenta a possibilidade de criação
de um corpo burocrático, destacando-se o Ouvidor-Geral como símbo-
lo da justiça local. A administração jurídica brasileira, marcada com a
chegada do primeiro ouvidor-geral, Pero Borges, em 1549, nas palavras

245
WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. p. 38

168
de Schwartz, ao contrário de criar uma administração centralizada, teve
sua função sobreposta à estrutura existente de magistrados e ouvidores
designados pelos donatários246. O resultado foi “um sistema de controle
exercido pelo rei e pelo donatário, ao mesmo tempo, confuso e muitas
vezes inoperante”247.
A justiça colonial encontrada pelo ouvidor-geral Pero Borges é
descrita por Schwartz da seguinte maneira:
Grassava o abuso administrativo e a incompetência. Por
exemplo, durante a ausência do donatário em Ilhéus,
Francisco Romero, um espanhol, fazia as vezes de capitão
e ouvidor. Embora fosse um bom homem e soldado expe-
riente, Romero era inadequado para o cargo de juiz, pois
é ignorante e muito pobre, o que muitas vezes faz crer aos
homens o que não devem. Borges recomendou insisten-
temente que a Coroa forçasse os donatários a selecionar
seus ouvidores dentre homens treinados para servir à lei.
Sublinhou que em Lisboa, um magistrado treinado e com
grande experiência presidia poucas audiências, enquanto
no Brasil, um analfabeto podia proferir muitas sentenças,
desrespeitando todos os princípios legais248 .

A incompetência e inoperância judicial colonial brasileira, que


contribuiu para a prática de excessos e ilegalidades de toda espécie, pode
ser compreendida não apenas pela permissividade metropolitana e local,
mas também pela dificuldade de acesso às áreas remotas, o que foi con-

246
Há de se lembrar que, por orientação das Cartas de Doação, o cargo de ouvi-
dor, primeira autoridade da justiça colonial, era designado pelos donatários das capita-
nias por um prazo renovável de três (3) anos, constituindo-se a administração da justiça
como representação dos donatários nas questões cíveis e criminais.
247
SCHWARTZ, Stuart A. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo:
Perspectiva, 1979, p. 24.
248
SCHWARTZ, Stuart A. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. Op. cit.,
p. 24.

169
tribuindo a um mandonismo local, situação esta que preocupava os mis-
sionários jesuítas, sobretudo pela exploração das comunidades indígenas.
Chama atenção Schwartz que a lei portuguesa vigente no Brasil dizia res-
peito somente aos europeus, praticamente inexistindo proteção jurídica
para as relações entre os europeus e os indígenas. Tal situação é descrita
pelo autor ao se referir ao que o missionário jesuíta Manoel da Nóbrega
narra como punição imposta a um índio assassino de um português: foi
colocado na boca de um canhão e literalmente feito em pedaços . Rapida-
mente, os nativos perceberam para qual lado pendia a balança da justiça,
porque não havia limites para o abuso e arbítrio dos colonizadores, en-
contrando apenas algum refúgio nas missões jesuítas250.
Entretanto, apesar das profundas contradições na administração
da justiça colonial, já por volta de 1580 havia um sistema mais centrali-
zado, o que pode ser compreendido como reflexo do avanço da indústria
açucareira em Pernambuco e na Bahia. Na medida em que se expandia
a lavoura da monocultura açucareira, crescia a população e os conflitos,
o que vinha a exigir maior intervenção jurídica para a manutenção da
prosperidade local. O momento político que então se sucedeu com a
ascensão ao trono de Felipe II da Espanha (1580) é marcado por uma
maior atenção à justiça colonial, fruto, possivelmente, da personalidade
burocrática e precisão administrativa imperial, traços que transpare-
cem com a nova codificação empreendida, já que a complexa legislação
portuguesa (Ordenações Afonsinas – 1446; e Ordenações Manuelinas
– 1514-1521) era herdeira dos códigos romanos e visigodos. Leis antigas
e injustas que, na prática, eram desrespeitadas, o que permitia a impu-
nidade para os poderosos251.
Chama atenção José Reinaldo de Lima Lopes que as Ordenações
Filipinas, editadas em 1603, não foram inovadoras, tão somente conso-
lidaram o que havia nas Ordenações anteriores. Afirma o referido autor:
Não se tratava de um código, no sentido moderno, mas
de uma consolidação de direito real. As Filipinas, espe-

170
cialmente, são criticadas pelas contradições e repetições,
perfeitamente compreensíveis quando se sabe que nem
pretendiam ser um código (não há partes gerais sobre
atos, negócios, pessoas, etc.), nem desejava o rei castelha-
no impor novidades a Portugal, preferindo manter (con-
solidando) o que já havia. Daí o respeito à tradição e aos
textos legislativos encontrados, que foram mantidos mes-
mo quando contraditórios, mesmo levantando a hipótese
de omissões e cochilos dos redatores252 .
Quanto ao sistema de fontes, a regra definida no Livro III, Título
64 é que os conflitos devem ser julgados segundo as leis, os estilos ou os
costumes do reino. Leis eram os atos do príncipe; estilos eram os “costu-
mes” da Casa de Suplicação, ou jurisprudência aceita e determinada pelo
mais alto tribunal metropolitano. Nos casos de lacuna, aplicava-se o Di-
reito Canônico se a matéria trazia pecado, ou Direito Romano na ausên-
cia dele, considerando-se ainda os recursos das glosas medievais – glosas
de Acúrsio – e as opiniões de Bártolo. Esses dois últimos recursos aban-
donados pela reforma da Lei da Boa Razão253 (lei de 18 de agosto de 1769).
Na ausência de solução nas fontes referidas, o caso deveria ser apreciado
pelo rei, que determinaria a solução, fazendo valer a “voz do príncipe”.
Na lógica metropolitana, legislar era garantir a justiça através
de prêmios ou castigos, como atitude paternal do monarca em relação a
seus súditos. A lei emanada do pai é justa porque, mesmo dura, preten-

253
A Lei da Boa Razão veio a representar uma revisão do Direito Romano a
partir da emergente lógica da modernidade, jusnaturalista ou utilitarista, ao definir
que a boa razão “consiste nos primitivos princípios que contém verdades essenciais,
intrínsecas e inalteráveis, que a ética dos mesmos romanos havia estabelecido, e que
os direitos natural e divino formalizaram para servirem de regras morais e civis entre
o cristianismo: ou aquela boa razão que se funda nas outras regras, que de universal
consentimento estabeleceu o direito das gentes para a direção e governo de todas as
nações civilizadas: ou aquela boa razão que se estabelece nas leis políticas, econômi-
cas, mercantis e marítimas que as mesmas nações têm promulgado com manifestas
utilidades para o sossego público”. Citada em LIMA LOPES, José Reinaldo. O direito
na história. Op. cit., p. 270.

171
de corrigi-los e salvá-los. Mas na distante colônia, o “poder paternal”
do monarca era exercido como força aliada à autoridade delegada, o
que produz um sistema de pouca efetividade, marcado pelo desmando
e pela corrupção local.
A importância da colônia sendo crescente e visível já no início
do século XVII explica a criação do Tribunal de Relação254 no Brasil,
cuja primeira tarefa era a de selecionar um grupo de magistrados treina-
dos e dispostos a enfrentar as condições adversas na colônia. O perfil era
o de homens aptos e experientes que presidiriam o Tribunal brasileiro
subordinado à Casa de Suplicação255, desfrutando dos mesmos privilé-

254
A estrutura jurídica inicia no Brasil nas mãos dos capitães-donatários que
recebiam amplos poderes para administrar a economia e organizar a vida civil na
terra. Com o fracasso do sistema de capitanias hereditárias, é criado o sistema de go-
verno-geral, que incluía a figura do ouvidor geral, o cargo mais elevado na hierarquia
judiciária da colônia, buscando-se, assim, diminuir o poder dos capitães-donatários.
Até que em 14 de abril de 1628 revoga-se expressamente o privilégio dos capitães de
fazerem justiça em suas terras. O ouvidor recebia recursos vindos de ouvidores das
comarcas, mas conhecia por ação nova, como jurisdição originária, conflitos que se
dessem a uma distância de dez léguas de sua sede ou estrada. De suas decisões, era
possível recorrer à Casa de Suplicação em Lisboa. Embora tenha sido criado pelo
Regimento de 1587, apenas em março de 1609 se instalou propriamente um tribunal
régio no Brasil: o Tribunal de Relação da Bahia, constituído por dez desembargado-
res, todos letrados – um chanceler, três desembargadores de agravos, um ouvidor-ge-
ral do cível e do crime, um juiz dos feitos da Coroa, fazenda e fisco, um provedor de
defuntos e resíduos, dois desembargadores extravagantes e o governador-geral, que
teria assento como Governador da Relação. Estes tribunais deram origem aos atuais
Tribunais de Justiça dos estados brasileiros.
255
A Casa de Suplicação era o tribunal diretamente ligado ao poder real que,
inicialmente, incluía as atividades do Desembargo do Paço. Com a reforma das Or-
denações, aprovadas em 1595, mas em vigor em 1603, atualmente conhecidas como
Ordenações Filipinas, a administração metropolitana era regida pelo monarca que
poderia ser substituído por uma junta de governadores e contava com uma série de
órgãos de apoio, a começar pelo Conselho de Estado, que reunia-se ocasionalmente
pela convocação do rei para assessorá-lo em questões complexas. O mais constante
era o Desembargo do Paço, que se reunia diariamente e, às sextas, despachavam com
o rei. Além de exercer funções consultivas, julgava as questões que, por causa de fo-
ros especiais, superavam a alçada da Casa de Suplicação, os recursos às decisões da

172
gios dos desembargadores metropolitanos. Entretanto, conforme narra
Wolkmer256, apesar de o Tribunal ter sido oficializado em 7 de março
de 1609, com a invasão holandesa, foi abolido em 1626, e restaurado
posteriormente em 1652. A partir do século seguinte, expandem-se os
Tribunais de Relação no Brasil – Rio de Janeiro em 1751, Maranhão em
1812, Pernambuco em 1821.
Nas palavras de Schwartz257, os burocratas que constituiriam a
magistratura brasileira eram um grupo muito bem particularizado, o
qual representava a espinha dorsal do governo real. Para serem nome-
ados ao Desembargo do Paço, exigia-se o requisito de ser formado em
Direito por Coimbra e ter exercido a profissão por, no mínimo, dois
anos. Porém, para o ingresso na Universidade, deveria ser o futuro ba-
charel de “raça pura” – com limites de carreira para os que tivessem a
“mancha” de serem “cristãos novos” –, ortodoxos na sua religião e poli-
ticamente leais, originando a maioria da pequena nobreza e da classe de
burocratas. A prova de conhecimento jurídico para a inscrição no qua-
dro de magistrado era precedida de inúmeras declarações testemunhais
sobre a vida pregressa, atividades e reputação do candidato. Mais espe-
cificamente, buscava-se a garantia de que não havia “contaminação de
sangue de mouro, mulato, judeu ou qualquer outra raça infecta”. Ainda,
a comprovação de que os pais e avós, no momento da nomeação, não
tivessem atividades manuais, artesanais e prática de comércio varejista,

mesma e os conflitos de jurisdição entre ela e a Casa de Cível. Eram de competência


exclusiva do Desembargo do Paço os pedidos de legitimação, restituição de fama,
findas, graças e perdões, emancipação de menores, etc. Junto à Casa de Suplicação e
ao Desembargo do Paço existia um tribunal especial, com competência privativa em
causas que envolvessem a Igreja ou os membros das ordens militares-religiosas. Era a
Mesa da Consciência e Ordens, que também assessorava o rei.
256
WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 63-64.
257
SCHWARTZ, Stuart A. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. Op.
cit., p. 58.

173
exceto se houvessem pertencido ao senado da Câmara ou a outro órgão
de privilégio especial no funcionalismo real.
Os magistrados coloniais, graças à política da Coroa portugue-
sa, formavam no século XVII um grupo de burocratas elitizados, fiéis
servidores reais, movido por generosas promoções e interesses pessoais.
O cargo representava prestígio, dinheiro e status, o que acaba por cons-
truir a magistratura como um ramo da burocracia real e, ao mesmo
tempo, um grupo social específico. “Embora a magistratura tivesse se
desenvolvido como um corpo de burocratas profissionais com funções
específicas dentro da estrutura política, com o correr do tempo, os ma-
gistrados tinham tentado fazer de seu cargo um suporte de status so-
cial”258. Os juízes europeus, sob a proteção da Coroa, emergiram como
um grupo que viu-se com o direito de exigir privilégios e símbolos que
até então pertenciam à nobreza, chegando a criar justificativas para sua
nobreza. No século XVIII, na Europa Ocidental, os juristas argumenta-
vam que o conhecimento das leis literalmente enobrece os indivíduos e,
portanto, deveriam ser considerados iguais aos nobres; e a Coroa, como
detentora dos símbolos que garantiam a ascensão social, para vincular
os magistrados a seus interesses, fazia concessões.
No império português, chama atenção Schwartz259, a magistra-
tura não se tornou uma nobreza distinta por seu cargo ou função. Indi-
vidualmente, o magistrado poderia ascender à nobreza pelo casamento
ou por título conferido pela Coroa, mas não chegou a competir com a
aristocracia, porque seus interesses eram ditados pelo rei. Mas isso não
impediu que, no Brasil Colônia, se formasse um grupo característico
de burocratas da justiça que souberam aliar as funções e fórmulas bu-

258
SCHWARTZ, Stuart A. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. Op.
cit., p. 242.
259
SCHWARTZ, Stuart. A. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. Op.
cit., p. 243.

174
rocráticas às relações pessoais de parentesco. É o abrasileiramento da
burocracia, descrito como procedimentos pessoais e profissionais que se
confundem e se autossustentam.
Ao chegar na colônia, além de sua família, o juiz poderia agregar
parentes, afilhados, empregados, escravos; enfim, um grupo de pessoas
que serviam como intermediários entre o magistrado e as demais pessoas
da sociedade, o que permitia uma “facilitação de caminho” até o juiz. Por
outro lado, ao estender sua proteção a um grupo próximo, o magistra-
do também cumpria parte de seu papel profissional: protetor, padrinho,
marido e pai. E, é claro, sem deixar de lado sua obrigação religiosa, o que
lhe dava vantagens sociais. Por essa razão, os magistrados tornavam-se
benfeitores de igrejas, conventos e ordens religiosas, e não raras vezes, na
condição de ilustres funcionários reais, assumiam papéis de liderança. Os
pesados encargos financeiros de uma vida de ostentação não podiam ser
arcados com os já altos salários e as gratificações recebidas.
Rapidamente, os juristas brasileiros perdiam interesse intelectual,
apesar de sua formação universitária. Não há entre os magistrados brasi-
leiros da época colonial autores cujos trabalhos sejam lembrados, a despei-
to de estarem sempre presentes em reuniões intelectuais260. Sem dúvida, a

260
SCHWARTZ, Stuart A. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. Op.
Cit., p. 257.
261
Gregório de Mattos e Guerra, conhecido como “Boca do Inferno”, nasceu
na Bahia em 23 de dezembro de 1636, em meio a uma família de proprietários rurais,
empreiteiros de obras e funcionários administrativos de ascendência portuguesa. Es-
tudou no Colégio dos Jesuítas da Bahia até 1642, quando foi para a Universidade de
Coimbra, onde se formou em Cânones em 1661. Após atestar ser “puro de sangue”, é
nomeado juiz de fora em Alcácer do Sal, em 1663. Teve brilhante carreira como ma-
gistrado em Lisboa, reconhecido com sentenças publicadas pelo jurisconsulto Emma-
nuel Alvarez Pegas. Retorna para o Brasil em 1683, depois de 30 anos, para assumir o
cargo de Desembargador da Relação Eclesiástica e, mais tarde, tesoureiro mor da Sé,
um ano após ter tomado ordens menores. É destituído do cargo por se recusar a usar
batina e acatar ordens superiores. Começa então a satirizar os costumes e as classes
sociais baianas, as quais chama de “canalha infernal”. Escreve com letras corrosivas

175
melhor leitura sobre os magistrados, no Brasil Colônia, é de Gregório de
Mattos261, que com os seguintes versos descreve a justiça colonial:

E que justiça a resguarda? […] Bastarda.

É grátis distribuída?[…] Vendida.

Valha-nos Deus, o que custa O que El-Rei nos dá de graça.

Que anda a Justiça na praça Bastarda, vendida, injusta.

Seu interesse particular pela administração da justiça no Brasil


é por ter sido letrado em Coimbra e magistrado real em Portugal. Seus
versos não mostram os juízes como seres sem rosto, mas como pessoas
em seu cotidiano, envolvidos essencialmente em duas esferas: poder e
corrupção. Seus versos renderam-lhe a deportação para Angola, pois
não poupava cáusticas palavras para descrever o sentido do “abrasilei-
ramento da magistratura real”.
Apesar dos versos do “Boca do Inferno”, como era chamado Gre-
gório por seus inimigos, não representarem perigo à autoridade e ao cargo
exercido pelos juízes, deixavam evidente o nível incontrolável de corrup-
ção que havia atingido o exercício da justiça no Brasil em fins do século
XVII. Descrevia os burocratas judiciais – juízes, escrivães, tabeliães, etc.
– como pedaços cortados de um mesmo tecido. Apesar de serem sempre

e eróticas. Por sua vida livre de “homem solto sem modos cristãos”, é denunciado à
Inquisição em Lisboa, em 1685, por falar mal de Jesus Cristo e não tirar o barrete da
cabeça quando passava uma procissão em sua frente. Mas o feito não tem prossegui-
mento. Por seus poemas e sátiras contra o governador Antonio Luiz Gonçalves da
Câmara Coutinho, a quem chamava de “fanchono beato”, é ameaçado de morte. Até
que um complô o prende e envia-o a Angola, sem direito de voltar à Bahia. Em Luan-
da, no ano de 1694, auxilia o governo local a combater uma conspiração militar e, em
troca, recebe permissão para voltar ao Brasil, mas para Recife, devendo ficar longe da
Bahia e de seus desafetos. Morre em 1695, vítima de uma febre contraída em Angola.

176
acusações pessoais e não ao sistema como um todo, seus versos deixavam
evidente o comprometimento no exercício da justiça. Por essa razão, dizia
que, quando um magistrado recebia suborno, tanto do acusado como do
acusador, era mais fácil chegar o “juízo final do que a sentença”.
Pelo relato da época, o exercício da justiça brasileira era venal e
facilmente subvertido. Os critérios de análise processual eram pessoais,
econômicos e sociais, sem que isso comprometesse os interesses reais,
funcionando com uma certa flexibilização frente a dureza da estrutu-
ra metropolitana. E quanto mais se expandia a colônia, mais crescia a
burocratização e as oportunidades de corrupção, o que não significava
necessariamente ilegalidade, mas o uso de artifícios jurídicos para be-
nefício próprio ou de um apadrinhado, ou mesmo o uso do cargo para
obter vantagens pessoais diretas ou indiretas.
Raimundo Faoro262 demonstra que a minoria colonial formada
por um quadro administrativo e o estado-maior de domínio comanda,
controla e disciplina a economia e os núcleos humanos, tornando-se efe-
tivamente donos do poder. As formas jurídicas vão servindo de freio à
emancipação colonial. Os juristas, como uma espécie de “aristocracia” lo-
cal, comandavam a vida na colônia, fazendo de seus procedimentos ins-
trumentos eficientes de dominação e perpetuação da ordem exploradora.
Há de se reconhecer que o aparato jurídico-político colonial
significou a transposição da estrutura metropolitana para a colônia,
porém, com traços muito peculiares, a exemplo da justaposição da jus-
tiça oficial e privada exercida nos sertões e nos latifúndios, cujo po-
der não era contestado. A justiça local, que servia de fortalecimento do
mandonismo, sempre foi reconhecida como uma espécie de contrapeso
à ineficiência da justiça real, à venalidade dos burocratas e à corrupção
dos magistrados.

262
FAORO, Raimundo. Os donos do poder – formação do patronato político
brasileiro. Vol. I, São Paulo: Editora Globo, 2000, p. 230.

177
Cabe lembrar o papel desempenhado pela Igreja Católica na ad-
ministração da justiça, com seu Tribunal do Santo Ofício, que, nas pala-
vras de Anita Novinsky, serviu, mais do que de instrumento religioso, a
um “sistema político de dominação e onde não havia lugar para os judeus,
cristãos novos, muçulmanos, negros, mulatos, ciganos, heterodoxos ou
contestadores de toda espécie. Através de seu sistema de ameaças, […]
de perseguição, […] de tortura, a Inquisição garantiu a continuidade da
estrutura social do antigo regime, e a religião preencheu sua função polí-
tico-ideológica”263. Apesar de não ter havido um Tribunal Inquisitorial no
Brasil, ele existia como presença possível, pois sempre que necessário os
acusados brasileiros eram julgados pelo Tribunal Inquisitorial em Lisboa.
As chamadas “Visitações do Santo Ofício” ocorreram na colônia brasilei-
ra, sobretudo na fase de mineração de ouro, a despeito do poder delegado
ao Bispo da Bahia pelo Santo Ofício em 1580, quando foram registradas
inúmeras heresias, sodomias, feitiçarias, bigamias, blasfêmias, etc.
Em síntese, é oportuno destacar o pensamento de Wolkmer264,
quando afirma que a especificidade da estrutura jurídica da colônia
brasileira não permitiu o exercício da cidadania e das práticas políticas
descentralizadas. Forjou-se em meio a um passado latifundiário, patri-
monialista, senhorial e escravista, cuja dinâmica fez surgir uma cultu-
ra jurídica singular, marcada por ideias e práticas paradoxais. Este é o
horizonte da cultura jurídica brasileira colonial dominante. Legítima
herdeira de um pensamento condicionado pelo mercantilismo e pela
administração burocrática centralizada, construída sob uma menta-
lidade escolástico-tomista e elitista. Uma mentalidade condicionada a
servir a Deus e ao rei, incapaz de ser comprometida com qualquer nova
ideia que viesse a representar o ideário renascentista moderno, mais
próximo do humanismo emergente, já que este significava a “expansão

263
NOVINSKY, Anita. A inquisição. São Apulo: Brasiliense, 1983, p. 90.
264
WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 71.

178
protestante”, que teve como maior expressão de resistência na Europa a
Península Ibérica.
Assim, longe do ideário iluminista moderno, que veio a repre-
sentar a possibilidade de construção de uma lógica racional crítica ao
obscurantismo medieval, a cultura jurídica colonial brasileira definiu-
-se sacralizando a tradição e o servilismo, o que permitiu a consolida-
ção e a reprodução das ideias e valores da elite mercantilista portuguesa.
Neste sentido, assinala Alberto Venancio Filho, que por força da Com-
panhia de Jesus, na Universidade de Coimbra, a cultura predominante
até meados do século XVIII mantinha-se refratária às transformações
reivindicadas pelo Renascimento, o que é claramente evidenciado num
edital do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra de 1746, que
determinava “nos exames ou lições, conclusões públicas ou particulares
se não ensine defensão ou opiniões novas pouco recebidas, ou inúteis
para os estudos das ciências maiores, como são as de René Descartes,
Gassendi, Newton e outros, nomeadamente qualquer ciência que de-
fenda os átomos de Epicuro ou outras quaisquer conclusões opostas ao
sistema de Aristóteles”265. Tal panorama é alterado com a Reforma do
Marquês de Pombal na segunda metade do século XVII, quando os je-
suítas são expulsos da metrópole e da colônia, e seus reflexos na tenta-
tiva de emergência de uma cultura moderna, o que marcará a transição
para o século XIX e a busca de superação da herança colonial.
Mudanças sensíveis ocorrem na cultura jurídica brasileira no
século XIX, que inicia-se sob o signo da modernidade. As revoluções
burguesas e o absolutismo ilustrado, que abriam as portas para compre-
ender o humano como valor fundamental da sociedade, encontravam
forte contraste com o sistema colonial brasileiro, cuja marca era a vio-
lência imposta aos trabalhadores escravizados e a dinâmica contraditó-

265
VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo – 150 anos de
ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 5.

179
ria da relação metrópole-colônia, acabando por definir um espaço sub-
jugado. Apesar disto e das resistências contra a centralização receberem
golpes fatais, quer pelas mãos diretas das milícias reais, quer de seus
braços locais, o Brasil torna-se independente em 1822. Uma dispersa,
desarticulada e fluída nação emerge entre conflitos e dilaceração das
antigas capitanias. O cuidado maior era o de manter a unidade políti-
ca, que, como destaca Raimundo Faoro, tratava-se de tarefa gigantesca
e incerta diante dos enormes obstáculos, não apenas geográficos, mas,
sobretudo, políticos266.
É evidente que uma sequência de fatos – Abertura dos Portos
(1808), criação do Reino Unido do Brasil (1815) e, finalmente, a Revolu-
ção do Porto (1820) – acelerou o processo que mobilizou as elites locais
para a independência. Tal processo fez necessária a construção de uma
cultura jurídica nacional, que vai encontrar no liberalismo uma pro-
posta doutrinária, a partir da qual serão edificados os primeiros cursos
jurídicos, uma elite jurídica e o edifício legal. Assim, a tarefa primeira
é compreender a natureza e especificidade deste “liberalismo caboclo”
presente como cimento da cultura jurídica em construção, em especial
para compreender a profunda distinção entre o revolucionário libera-
lismo europeu e o brasileiro, e como este último serviu de suporte aos
interesses das oligarquias vinculadas à monarquia imperial.
Essa face “cabocla” do liberalismo brasileiro é muito bem conhe-
cida. Com razão, comenta Wolkmer:
Eram profundamente contraditórias as aspirações de li-
berdade entre diferentes setores da sociedade brasileira.
Para a população mestiça, negra, marginalizada e des-
possuída, o liberalismo, simbolizado na Independência
do país, significava a abolição dos preconceitos de cor,
bem como a efetivação da igualdade econômica e a trans-

266
FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Op. cit., p. 315-316.

180
formação da ordem social. Já para os estratos sociais que
participaram diretamente ao movimento de 1822, o libe-
ralismo representava instrumento de luta visando à eli-
minação dos vínculos coloniais. Tais grupos, objetivando
manter intactos seus interesses e as relações de domina-
ção interna, não chegaram a reformar a estrutura de pro-
dução nem a estrutura da sociedade267.

O liberalismo, como observa Macridis, em suas diferentes di-


mensões, ético-filosófica, econômica e política-jurídica 268, representou
o ideário de cunho individualista sustentado pela burguesia europeia
contra o absolutismo monarquista, capaz de reproduzir novas condi-
ções materiais, sociais e políticas que permitiam sua ascensão e justifi-
cativa de poder. No Brasil, essa doutrina era conhecida por uma peque-
na parcela de letrados inovadores, e até revolucionários, já que a maioria
da população era de analfabetos, escravos e uns poucos trabalhadores
livres, para os quais os “novos ventos da liberdade europeia” não sopra-
vam nem como “leve brisa”.
O liberalismo brasileiro serviu tão bem aos interesses das oligar-
quias locais que pôde conviver com a institucionalização da escravidão,
tornando-se uma aparente ambiguidade a marca da política brasileira:
uma retórica liberal e uma prática oligárquica, um conteúdo conserva-
dor e reacionário sob a aparência da democracia.
Emília Viotti da Costa 269 identifica o liberalismo brasileiro como
uma “ideologia de tantas caras” que serviu em “momentos distintos di-
ferentes grupos com intenções diversas”: a face heroica – própria dos

267
WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 76.
268
MACRIDIS, Roy C. Ideologias políticas contemporâneas. Brasília: Unb,
1982, p. 38-41.
269
VIOTTI DA COSTA, Emília. Liberalismo brasileiro, uma ideologia de
tantas caras. Folha de São Paulo de 24.02.1985, citada por WOLKMER, Antonio Car-
los In: História do direito no Brasil. Op. cit., p. 77-78.

181
movimentos que antecederam a independência; a antidemocrática – dos
revolucionários da primeira constituinte; a moderada – dos adeptos da
monarquia constitucional; a radical – dos reformistas da fase regencial; e
a que acabou por impor-se, a face conservadora, defendida pela minoria
antidemocrática apegada às práticas do clientelismo e da patronagem.
Em outras palavras, o liberalismo no Brasil foi singular, defendendo a
democracia representativa e negando a participação popular, atribuindo
aos poucos letrados a tarefa de conduzir as instituições políticas e jurí-
dicas. Enfim, um liberalismo conservador, elitista, antidemocrático, que
recusa, na prática, suas próprias convicções.
O processo de transição social produzido pela independência tra-
rá a marca desta lógica liberal. Apesar disto, salienta Florestan Fernandes
que a independência constituiu-se numa revolução social, por ter produ-
zido simultaneamente o fim da era colonial e o advento da sociedade
nacional270. As relações de poder modificam-se na medida em que deixa
de manifestar-se “como imposição de fora para dentro, para organizar-se
a partir de dentro, mau grado as injunções e as contingências que iriam
cercar a longa fase do ‘predomínio inglês’ na vida econômica, política e
diplomática da Nação”271. Sem dúvida, os donos do poder não se insurgi-
ram contra a estrutura da sociedade colonial, mas contra o limite impos-
to pelo sistema que acabava por neutralizar a capacidade desta elite em
dominar as diferentes esferas da ordem social, política e econômica. Essa
é, segundo Florestan Fernandes, a lógica que permite compreender por
que as elites nacionais, sem negar a ordem social dominante, atuaram na
esfera política, adaptando e integrando internamente a herança colonial
com os interesses impostos pela independência272.

270
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, 1974, p. 31.
271
FERNANDES, Florestan A revolução burguesa no Brasil. Op. cit., p. 31-32.
272
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Op. cit., p. 32.

182
O novo momento brasileiro se caracteriza como uma inovação
aliada ao poder por parte das oligarquias e à enorme marginalização da
população livre. A independência pode ser compreendida como mudan-
ça de status político-jurídico sem mudança material e social, o que justi-
fica a perpetuação das relações sociais de dominação internas ao longo da
construção da sociedade nacional. Para Florestan Fernandes, essa é uma
das razões da defesa limitada, tosca e egoísta, porém eficaz, dos ideais
liberais por parte das elites nacionais, pois apenas era defendido aquilo
que, num jogo de probabilidades concretas, poderiam efetivamente des-
frutar, como o poder de igualdade e fraternidade dos interesses inerentes
ao seu papel definido da estrutura de poder dominante273.
É evidente que o liberalismo, ao construir a base ideológica e
política para a transição colonial, tornou-se o elemento mais destacado
da cultura brasileira durante a fase imperial e o ideário para a edifi-
cação do Estado nacional, para a “ideia de Brasil”. Este projeto liberal
não significou uma única aspiração, mas sim o resultado de distintos
segmentos, radicais e moderado-conservadores, que concordavam num
aspecto: o processo de independência e construção nacional se operaria
com a ausência de participação popular. Lembra Paulo Mercadante que
o povo já havia sido advertido, em tentativas anteriores de participação,
que sua atuação em acontecimentos importantes poderia terminar com
um doloroso saldo de tragédia 274.
O resultado dos conflitos entre os diferentes segmentos liberais
foi a vitória dos conservadores, pensamento claramente explícito nas
palavras de Evaristo da Veiga, líder da independência: “Não temo que o
Brasil se despolitize, temo que se anarquize, temo mais hoje os cortesãos

273
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Op. cit., p. 34.
274
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil – contri-
buição ao Estado da formação brasileira. 2ª Ed., Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
1972, p. 61.

183
da gentalha que aqueles que cheiram as capas do monarca”275. Os radi-
cais “souberam aceitar” a monarquia como forma de sobrevivência. Este
fato demonstra a paradoxal conciliação resultante da estratégia liberal-
-conservadora, capaz de permitir o clientelismo e a cooptação, aliados
a uma cultura jurídico-institucional formalista, retórica e ornamental.
Este “pacto conciliador” estará presente na judicialização do processo
de independência, sendo sua face visível o bacharelismo liberal.
A cultura jurídica brasileira do século XIX resume-se à soma
de dois fatores: a elaboração de uma legislação própria e a criação dos
cursos de Direito. Se, de um lado, a primeira tarefa era a de construir o
aparato legal institucional da nação independente, de outro, era neces-
sária a formação de uma elite jurídica própria e afinada com os ideais
da independência. A implantação dos cursos jurídicos no Brasil era a
alternativa possível frente a perda do único centro formador de juristas
de língua portuguesa, a Universidade de Coimbra, e o desaparecimento
dos centros jesuíticos de ensino. Sem dúvida, o ponto de partida para
a construção da ordem político-jurídica nacional era a instauração dos
cursos, dado que este fornecia importantes quadros para o Estado impe-
rial, já que a grande maioria de bacharéis eram absorvidos pelo serviço
público, por serem mais raros os cargos para magistrados e advogados.
A Carta de Lei de 11 de agosto de 1827, que implanta os primei-
ros cursos jurídicos do Brasil, em São Paulo e Recife, reflete, segundo
Wolkmer, a exigência da elite que veio a suceder a dominação colonial,
preocupada com a estrutura de poder e a preparação de uma camada
burocrática administrativa capaz de assumir o gerenciamento nacio-
nal276. Tais centros servirão como reprodutores da legalidade oficial po-
sitiva, ou seja, legitimadores dos interesses do poder distantes de qual-

275
Citado por José Reinaldo de Lima Lopes. In: O direito na história – lições
introdutórias. Op. cit., p. 279.
276
WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 80.

184
quer compromisso com expectativas sociais. Deve-se lembrar que, entre
os Ministros de Estado de 1831 a 1853, mais de 45% eram magistrados;
somados, em certos períodos, os advogados que exerciam tais funções
chegava-se a 60%277. Assim, os cursos de Direito assumiram as funções
de serem simultaneamente defensores do ideário liberal e formadores
da elite burocrática devidamente adestrada para o exercício do poder.
Entretanto, ao buscar construir suas próprias escolas de Direito,
o ensino jurídico brasileiro reproduzia um modelo alienígena, cosmo-
polita, ilustrado e literário, divorciado do quadro agrário rural predo-
minante, excluindo a grande massa popular marginalizada. Apesar de
tais escolas tratarem de formar burocratas do poder dentro da lógica do
conservadorismo, é necessário que se assinale algumas tendências ino-
vadoras. A Faculdade de Direito de Pernambuco, mesmo comungando
a tendência comum do ensino jurídico brasileiro, é o cenário da emer-
gência de um movimento que representará a possibilidade de novos
horizontes, mais afinados com as modernas correntes de pensamento
emergentes, o que poderia representar uma alternativa para o mimetis-
mo português e francês. Este movimento de forte influência germânica,
autodenominado Escola de Recife, será considerado o mais avançado
de sua época, e terá como expoente a figura de origem social humilde e
mestiça: Tobias Barreto. Sobre a importância deste movimento, destaca
Alberto Venancio Filho:
O movimento da Escola do Recife representava, contudo,
e talvez pela primeira vez, a realização daquela grande
tarefa a que se tinham proposto as faculdades de direito,
de representarem grandes centros de estudo das ciências
sociais e filosóficas no Brasil, mas da qual, via de regra, se
vinham omitindo ou escapando, pois trazia o movimento

277
Dados fornecidos por José Murilo de Carvalho, citado por José Reinaldo de
Lima Lopes In: O direito na história – lições introdutórias. Op. cit., p. 337.

185
no seu bojo um problema de transformação de ideias no
campo da crítica literária 278.

A Escola de Recife entendia que, para dotar o Brasil de um apa-


rato jurídico, era necessário compreender a sociedade brasileira, sua na-
tureza e construção. Defendia que o jurista deveria ser algo mais que um
rábula. A intenção era a de compreender o fenômeno jurídico a partir
de uma pluralidade de conhecimentos que resultavam essencialmente
do evolucionismo e do monismo. E, sem dúvida, estes pensadores jurí-
dicos, mais distantes do centro do poder, viam-se como vanguarda.
Já São Paulo, centro privilegiado do bacharelismo liberal e da
elite agrária, orientou-se para a formação de burocratas e militantes
políticos. No espaço do Largo São Francisco, foram intensas as defesas
em favor dos direitos individuais e das liberdades políticas. As lutas
abolicionistas e republicanas eram parte da vivência acadêmica, que
mais se caracterizava como autodidata, pois o ensino jurídico era de
má qualidade, permitindo que inúmeros acadêmicos aderissem à mi-
litância política, sem que deixassem se ser cooptados pela burocracia
estatal. O comprometimento da qualidade do ensino era denunciado
em 5 de agosto de 1831 pelo aviso do Ministro do Império José Lino
Coutinho sobre o desleixo e a negligência escandalosa de professores
do curso de Direito, indiferentes à ausência dos acadêmicos, aprovan-
do-os indiscriminadamente.
Comparativamente, enquanto a Escola de Recife imaginava pro-
duzir pensadores da ciência do Direito, o Largo São Francisco de São
Paulo era o celeiro de políticos e burocratas do Estado Imperial. Recife
exaltava seu papel como núcleo intelectual e formador de ideias. São
Paulo, apesar da fragilidade intelectual, colocava-se como vanguarda
política nacional de onde partia o direcionamento político-jurídico bra-

278
VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo. Op. cit., p. 96.

186
sileiro. Seja como for, chama a atenção José Reinaldo Lima Lopes que,
em meio a um ensino de baixa qualidade, os juristas tornavam-se qua-
se autodidatas que continuavam a reproduzir ideias tradicionalistas e
formalistas de Direito, mantendo como espaço de discussão política o
privado: o interior do Salão do Imperador e os espaços domésticos, fato
característico de uma sociedade aristocrática que foi capaz de construir
um corpo normativo legal de fachada liberal, o qual pudesse conviver
com o escravismo e a religião de Estado.
Os juristas brasileiros forjados no Brasil independente caracterizam-
-se pelo apego ao passado e pela valorização de uma cultura retórica e vazia,
que não soube levar em conta a diversidade e a especificidade brasileira. Por
esta razão, conclui Caio Prado que o Direito Brasileiro é “um direito arti-
ficial e inaplicável”, que deixa de lado as particularidades nacionais, sendo
um exemplo significativo a questão da terra: “num país agrícola e na maior
parte ainda deserto, e que apesar disto nunca foi devidamente tratado nas
leis brasileiras. O que sempre tivemos na matéria foi copiado de legislações
europeias, onde naturalmente a situação é inteiramente outra”279.
Uma prova disso é a codificação civil brasileira de 1916. Mais
próxima do conservadorismo do que da inovação, reproduziu mais va-
loração ao patrimônio privado do que às pessoas. Fiel retrato do modelo
social, político, ideológico e cultural de sua época; muito do qual se per-
petuou até o momento. Sem dúvida, trata-se da ritualização e dogma-
tização das raízes que ordenavam, e de certa forma, ainda ordenam, as
relações materiais e pessoais brasileiras. O resultado deste passado, no
tocante à legislação civilista, é que permanecem irresolvidas questões
sociais dramáticas, como a concentração de riqueza, que foi funcionan-
do historicamente como um perverso mecanismo que, nos dias de hoje,
segrega e estigmatiza milhões de brasileiros, pois, sem dúvida, o modelo

279
PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil. Op. cit., p. 197.

187
civil nacional foi idealizado para assegurar e perpetuar os interesses e
privilégios da oligarquia agrária.
Em síntese, a cultura jurídica do século XIX, que vai engendrar
o Direito do século XX, vigente atualmente no Brasil, marcou-se por um
forte individualismo e formalismo legalista, projetando uma lógica sin-
gular, própria de uma nação que emergiu buscando aliar os princípios
individualistas liberais burgueses, importados do modelo europeu, com
o legado colonial que instituiu práticas burocráticas e administrativas
orientadas e ajustadas para a garantia e a proteção dos bens patrimo-
niais, ignorando os interesses e as necessidades da grande maioria que
compõe o povo brasileiro. São oportunas as palavras de Wolkmer quan-
do afirma que “os limites, o artificialismo e a pouca funcionalidade desse
sistema de legalidade formalista e conservador propiciam as condições
favoráveis para a sequência de confrontos intermináveis e os horizontes
de ruptura com os procedimentos de justiça oficial e estatal” 280.
É exatamente sob a ótica desta cultura jurídica que é construída
a concepção hermenêutica jurídica no Brasil. Um saber técnico-norma-
tivo que, dentro de padrões rigorosos de objetividade, pretende seguir
um seguro caminho para a manutenção e reprodução do modelo de
Direito legado por este passado marcado pela exclusão e dominação,
alheias a qualquer interesse e ao compromisso de emancipação.
Boaventura de Sousa Santos chama de razão indolente281 o mode-
lo de racionalidade que orientou a epistemologia moderna e acabou por

280
WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Op. cit., p. 125.
281
A respeito do conceito de razão indolente, há de se considerar que é utili-
zado por Boaventura de Sousa Santos ao longo de seus trabalhos para servir como
crítica ao modelo epistemológico que presidiu a ciência moderna. Tal conceito é de-
senvolvido e explorado em seus trabalhos mais recentes, destacadamente Para um
novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática Crítica
à razão indolente, Vol. I, publicado em 2001 no Brasil, e A gramática do tempo: para
uma nova cultura política, Vol. IV, publicado em 2006.

188
edificar um tipo de conhecimento-regulação ao longo da trajetória entre a
ignorância (concebida como caos) ao saber (concebido como ordem). Ide-
alizado e anunciado inicialmente como conhecimento-emancipação, por
ter sido absorvido pelo desenvolvimento do capitalismo e da civilização
moderna, foi transformado progressivamente num saber regulação, sendo
esse o que acabou por povoar as culturas dominadas pelo modelo europeu.
O colonialismo metropolitano, impingido ao Brasil a partir do
século XVI, trouxe como uma de suas faces a imposição do modelo epis-
temológico hegemônico na Europa através da violência. Violência pela
repressão de outras formas de saber existentes na colônia e, também, pela
assimilação de um saber que anuncia-se como universal e verdadeiro.
A cultura jurídica nacional desenvolveu-se numa matriz epistemo-
lógica que muito bem cumpriu o papel de reprodução do Direito hegemôni-
co, tornando-se instrumento de legitimação de um passado comprometido
com a ausência de compromissos de legítima emancipação nacional. Enfim,
uma concepção vazia e negadora de referenciais que possam definir um ho-
rizonte compreensivo legitimamente justo para com o que, secularmente,
foi excluído do Direito Brasileiro: valores e necessidades capazes de promo-
verem a emancipação política e social dos empobrecidos, dos ausentes e dos
invisibilizados. Um “Direito das ausências”, responsável por ter a “balança”
da justiça pendido para “o lado” mais forte política e economicamente.

2.2. INSURGÊNCIA E CRISE COMPREENDIDA DESDE A DECOLONIALIDADE

Em tempos de transição, novas designações vão sendo definidas


e redefinidas como tentativa de apontar para o novo e, assim, denun-
ciam o esgotamento dos antigos rótulos. Como parte do movimento
intelectual e político crítico de reação à colonialidade/modernidade, o
chamado “giro” decolonial, ou “mudança de eixo” reflexivo, insere-se no
movimento de crítica à colonialidade/modernidade. Para teóricos como
Catherine Walsh – que propõe “descolonial” – ou Walter Mignolo – que
adota o termo “de-colonial” –, há uma observação quanto ao rigor ter-

189
minológico no sentido de diferenciar o projeto emancipatório relacional
e crítico ao capitalismo dos movimentos pós-coloniais emergidos desde
a independência política das antigas colônias, representados pelas elites
intelectuais das ex-colônias inglesas da Áfria e Ásia.
O termo “decolonialidade”, aqui utilizado, orienta-se como
opção relacionada à concepção que dialoga com o político, filosófico
e epistemológico da periferia latino-americana que, nascido desde os
movimentos sociais em fins do século XX, tem como protagonistas
sujeitos históricos insurgentes – transformadores –, que vão reinven-
tando e reivindicando um novo Direito de resistência, nascido da plu-
ralidade e diversidade.
A resistência e insurgência da “periferia” ganha força no final da
Primeira Guerra Mundial, etapa marcada pela “vitória” do liberalismo,
quando se assinala um novo momento de divisão política no sistema
de dominação internacional. Inaugura-se um longo período de disputa
pela hegemonia política e econômica liberal, entre o “velho” centro-eu-
ropeu e o “novo” norte-americano. Este modelo, pilar da modernidade
triunfante desde as Revoluções Burguesas, nos primeiros anos do século
XX já havia começado a ser rechaçado pelas revoluções e pelos levantes
nacionalistas em distintos lugares do mundo, em nome de uma moder-
nidade libertária, representando uma “ameaça” concreta a este projeto
universalizante. A ideologia socialista, com repercussões na África e
América Latina, sem defender uma oposição à modernidade tecnoló-
gica, acreditava que, para serem cumpridas as promessas e esperanças
preconizadas pela modernidade, necessitava-se de libertação282. Nos
anos seguintes, entre as guerras mundiais, a geocultura liberal, embora
ameaçada, mantinha-se como estratégia de luta entre as potências, pela

282
WALLERSTEIN, Immanuel. Após o liberalismo – em busca da reconstru-
ção do mundo. Tradução de Ricardo Aníbal Rosenbush. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,
2002, p. 143.

190
hegemonia no sistema de dominação mundial, e elemento unificador do
“mundo livre” contra o “mundo comunista”.
Porém, mesmo abalado, o “sistema-mundo”283 moderno man-
tinha centralização ideológica nas áreas tradicionalmente definidoras
da geocultura. A América Latina, em particular, desde sua colonização,
via-se como herdeira europeia; a nova composição de forças da Guerra
Fria, que acabou por conduzir os Estados Unidos da América para o
centro da disputa de poder mundial, não trazia o mesmo elemento uni-
ficador tradicional eurocêntrico. O american way of life não inspirava
identificação e alinhamento ideológico tão amplo para impor-se como
centro do ideário liberal latino-americano. Por outro lado, para o pen-
samento crítico de resistência anti-imperialista e anticolonial, que até
então encontrava no marxismo-leninismo a via revolucionária liberta-
dora, após a Segunda Guerra Mundial, episódios no “campo socialista”
começavam a levantar dúvidas sobre um horizonte de futuro socialista
anticapitalista. A soma destes dois fatores fazia com que, na América
Latina, em particular, o momento fosse de esvaziamento dos tradicio-
nais modelos progressistas e conservadores.

283
Immanuel Wallerstein, na obra O Sistema Mundial Moderno, desenvolve o
conceito de sistema-mundo como um “sistema em que existe uma divisão extensiva
do trabalho. Esta divisão não é meramente funcional – isto é, ocupacional – mas ge-
ográfica. Quer dizer, a gama de tarefas econômicas não está distribuída uniforme-
mente por todo sistema mundial. […] na sua maior parte é função da organização
social do trabalho, que aumenta e legitima a capacidade de certos grupos dentro do
sistema explorarem o trabalho dos outros, isto é, receberem uma maior parte do
excedente” (Vol. I – A agricultura capitalista e as origens da economia-mundo
européia no século XVI – Tradução de Carlos Leite e outros, Porto: Ed. Afronta-
mento, 1990, p. 339). Compreende que o sistema-mundo moderno é essencialmente
capitalista e, por isto, sobrevive há cinco séculos, criou economias-mundo dividi-
das em estados de centro e periferia, e também semi-periféricas, que, num processo
de expansão, tendem a aumentar as distâncias sociais e econômicas. Esse afasta-
mento é mascarado pelos avanços tecnológicos e homogeneizado culturalmente
para servir aos interesses dos grupos-chave.

191
A perda de “confiança” num modelo socialista é marcada por
uma soma de eventos que levam intelectuais tradicionalmente ligados
à militância de esquerda a desconfiar e mesmo a romper com o Parti-
do Comunista. A revolta operária de Berlim, duramente reprimida, por
exemplo, levou Brecht em 1953 a criticar aberta e ferozmente o Estado
Socialista. Além das sangrentas repressões internas na Rússia e o abuso
de poder que, após a morte de Stalin, tornam-se públicos. O Massacre
da Comuna de Shangai, em 1967, ordenada pelo próprio Mao, denuncia-
va de forma temerária para os intelectuais socialistas os rumos futuros
da Revolução Chinesa. Na sequência, tanques russos ocupam Praga em
1969, colocando fim ao que poderia ser uma experiência socialista demo-
crática. Sem esquecer a revolta vitoriosa dos trabalhadores poloneses do
Solidarnosc em 1976 e, finalmente, a caída do muro de Berlim em 1989.
Apesar dessa sucessão de fatos e dos rompimentos políticos, tra-
balhadores e revolucionários socialistas continuavam lutando pela es-
perança de um futuro libertador. Na década de 1960, estes movimentos
emancipatórios adquirem uma inédita dimensão. A luta passa a não ser
somente pela libertação operária, mas a de seres humanos explorados
e discriminados nas múltiplas formas de convivência social, incluindo
mulheres, homossexuais, jovens, indígenas, enfim, o momento era de
luta pela libertação da subjetividade, do conhecimento, da cultura, da
defesa do meio ambiente diante da depredação. Tratava-se de libertar
humanos da autoridade da “razão de Estado”284.
Era um tempo de luta pela ampliação e radicalização da demo-
cracia, não apenas em relação ao Estado, mas também no cotidiano da
convivência social, definindo-se, a partir de então, um novo imaginá-
rio crítico, mais global e radical. O Estado como centro articulador de
poder vai cedendo espaço a novas formas de libertação, até então mar-

284
QUIJANO, Aníbal. El regresso del futuro y las cuestiones del conocimien-
to. Revista Hueso Húmero, nº 38, Peru: Francisco Campodónico Ed., abr. de 2001, p. 7.

192
ginais e periféricas. Este processo não passou despercebido por inte-
lectuais, a exemplo de Immanuel Wallerstein. Por sua perspectiva, esta
novidade de mobilização era um claro sinal de que o sistema mundial
moderno apresentava traços de esgotamento. Um modelo que não mais
encontrava prestígio por suas grandes narrativas, tampouco por seus
defensores. Seguramente, por esta razão, Wallerstein considera o movi-
mento de Paris de 1968 um marco para o fim de um ciclo que havia se
iniciado no século XVI. Confessa que a grande ênfase a 1968 é porque,
embora o liberalismo não tenha desaparecido, acabou perdendo seu pa-
pel ideológico definidor da geocultura do sistema-mundo.
[…] o movimento recolocou as questões que o triunfo
do liberalismo, no século XIX, encerrara ou excluíra do
centro debate público. A direita e a esquerda internacio-
nais afastavam-se novamente do centro liberal. O novo
conservadorismo era, em muitos sentidos, a ressurreição
do velho conservadorismo da primeira metade do século
XIX. Também a Nova Esquerda era, em muitos sentidos,
o radicalismo do início do século XIX ressuscitado, que,
é bom lembrar, naquela época ainda era simbolizado pelo
termo “democracia”, do qual se apossariam depois ideó-
logos centristas285.

Os eventos sociais e políticos dos anos finais do século XX aca-


baram por frustrar esperanças e ilusões, tanto nas áreas centrais da mo-
dernidade como em sua periferia. Mas a derrota que começa a ser reco-
nhecida não era somente política ou econômica, era também intelectual.
Um vazio de futuro emancipador foi entregue às vítimas do capitalismo
e ao seu tradicional centro articulador. Anunciava-se o final do projeto
da modernidade, e o sistema internacional passava a enfrentar uma gra-

285
WALLERSTEIN, Immanuel. Após o liberalismo – em busca da reconstru-
ção do mundo. Op. cit., p. 145.

193
ve e talvez irreversível crise moral e institucional. Marcava-se o início
de um discurso difuso e complexo, que denunciava o irreversível fim do
projeto da modernidade. Para Wallerstein, a tensão entre a modernidade
tecnológica e libertadora desde 1968 tornou-se explícita e irremediável.
Em seu pessimismo, vê no pós-modernismo, enquanto tentativa de supe-
ração da modernidade, uma clara evidência de esgotamento da própria
modernidade. Pós-modernidade é uma forma de rejeitar a modernidade
tecnológica em nome da modernidade da libertação. Se ganhou “tão gro-
tesca denominação, é porque o pós-modernismo é confuso. Como dou-
trina anunciatória, ele é presciente, sem dúvida, porque de fato estamos
caminhando para um outro sistema histórico”286. Sua angústia intelectu-
al é anunciada de uma perspectiva específica dos que sempre viveram ou
até então pensavam viver no melhor dos mundos possíveis.
O esvaziamento das imagens e dos discursos representativos da
racionalidade moderna vai criando um complexo debate, no qual in-
ventam-se novas rotulações. São tempos dos “pós”. Termos que signi-
ficam tentativas de demonstrar situações que, ou se defende e se tenta
promover, ou se rechaça. O que parece ser o ponto de convergência é o
esgotamento das categorias da modernidade e das grandes utopias que
serviram para construir o horizonte de futuro moderno, sendo a crítica
à modernidade o ponto de partida para sua própria superação. Recor-
rendo a Max Weber, talvez seja possível compreender a pós-modernida-
de como um desencantamento com a modernidade.
O exame do tema dos pós/des/de não se trata de tarefa simples,
pequena. A discussão é complexa e polêmica, e está presente nos distin-
tos campos do conhecimento, já que é difícil o silêncio diante de uma
temática tão visível e que invade o cotidiano. Talvez por esta razão, o
assunto também tem se tornado nebuloso e nem sempre resolvido com

286
WALLERSTEIN, Immanuel. Após o liberalismo – em busca da reconstru-
ção do mundo. Op. cit., p. 149.

194
sobriedade intelectual. Nestes novos tempos, é difícil apontar a saída
definitiva, ou no mínimo uma alternativa teórica esclarecedora sobre a
crise da modernidade.
À luz dos processos históricos relacionados à emergência do tema
da pós-modernidade, torna-se compreensível, porque foi construído no
entendimento da civilização Norte Atlântica. Segundo Cornel West,
são três os processos históricos fundamentais relacionados à questão
da pós-modernidade. Primeiro, o fim da Era Europeia (1492-1945), que
dizimou a autoconfiança da Europa e provocou a autocrítica. Para West,
“esse descentramento monumental da Europa produziu reflexões inte-
lectuais exemplares, como a desmistificação da hegemonia europeia, a
destruição das tradições metafísicas ocidentais e a desconstrução dos
sistemas filosóficos norte-atlânticos”287. Segundo, o surgimento dos Es-
tados Unidos como centro de poder militar e econômico, “ditando re-
gras” no cenário político e cultural. Terceiro, o estágio inicial da desco-
lonização política na Ásia e África.
Embora se tratando de um discurso crítico sobre a modernida-
de, elaborado a partir do próprio esgotamento desta, é necessário que se
chame atenção acerca de um aspecto central, em geral não considerado
no debate: a pós-colonialidade. A pós-modernidade, autoconcebida des-
de o Norte, carrega consigo a mesma concepção unilateral de mundo e
de história que nega e oculta a colonialidade, portanto, reproduz a ideia
monotópica e universal da modernidade, para a qual a diferença pós-
-colonial é considerada passiva. O colonial permanece bárbaro, pagão,
subdesenvolvido e incapaz, devendo ser tutelado. Desconsidera que as
condições históricas não são apenas locais. Desde o século XV, com a

287
WEST, Cornel. The American Evasion of Philosophy: A Genealogy of
Pragmatism. Madison: University of Wisconsin Press, p. 9-11, citado por MIGNOLO,
Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Edi-
tora UFMG, 2003, p. 143-144.

195
expansão do sistema-mundo, há um “outro lado” liminar que, paralela-
mente, constrói o imaginário social.
Indo nesta direção, pode-se perceber que a “crise” manifestada
na Europa na segunda metade do século XX é, simultaneamente, pensa-
da e vivenciada em suas margens/fronteiras. Há nesta “crise” um duplo
movimento: um “local”, no “interior” do sistema moderno, que ideali-
zou e tratou de colocar-se como centro do projeto da modernidade; e
outro em suas fronteiras, que as reinventa.
Para reconhecer o pensamento pós-colonial, forçosamente se re-
torna aos anos que se seguiram à década de 70 do século XX, quando a
perda da tradicional referência de centro geocultural e político fez com
que fosse difícil localizar os centros dos “projetos globais”. E é neste
contexto que os saberes subalternos/subjugados às “outras formas” de
pensar a modernidade tornam-se insurgentes e visíveis. Saberes sub-
jugados é um conceito “emprestado” de Michel Foucault, como lembra
Walter Mignolo288, que introduziu a expressão “insurreição de saberes
subjugados” para referir-se e descrever a transformação epistemológi-
ca por ele percebida, carregando duplo significado. Diz Foucault: “Para
mim é duplo o significado de saberes subjugados. Por um lado, refiro-
-me aos conteúdos históricos soterrados e disfarçados numa sistemati-
zação funcionalista ou formal”289, portanto, como um saber ocultado,
absorvido e anulado pelo saber dominante e disciplinador que, segundo
Focault, ainda tinha um segundo significado:
Creio que se deveria compreender saberes subjugados
como outra coisa, algo que de certa forma é totalmente
diferente, isto é, todo um sistema de conhecimento que

288
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade,
saberes subalternos e pensamento liminar. Op. cit., p. 44.
289
Citado por MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – co-
lonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Op.cit., p. 44.

196
foi desqualificado como inadequado para suas tarefas ou
insuficientemente elaborados: saberes nativos, situados
bem abaixo na hierarquia, abaixo do nível exigido de cog-
nição de cientificidade. Também creio que é através da
reemergência desses valores rebaixados (tais como os sa-
beres desqualificados do paciente psiquiátrico, do doente,
do feiticeiro – embora paralelos e marginais em relação à
medicina – ou do delinquente, etc.) que envolvem o que
eu agora chamaria de saber popular (lê savoir dês gens),
embora estejam longe de ser o conhecimento geral do bom
senso, mas, pelo contrário, um saber particular, local, re-
gional, saber diferencial incapaz de unanimidade e que
deve suas forças apenas à esperteza com a qual é combati-
do por tudo à sua volta – que é através do reaparecimento
desse saber, ou desses saberes locais populares, esses sa-
beres desqualificados, que a crítica realiza sua função290.

Walter Mignolo, trazendo a concepção de “saberes subjugados”


até o limite da diferença colonial, quando tornam-se subalternos da co-
lonialidade do poder, concebe-os como liminares, como “saberes sub-
jugados em pé de igualdade com o ocidentalismo como o imaginário
dominante do sistema mundial colonial/moderno: o ocidentalismo é
a face visível do edifício do mundo moderno, ao passo que os saberes
subalternos são seu lado sombrio, o lado colonial da modernidade”291.
O saber liminar é o que também Darcy Ribeiro, na década de 60, defi-
nia como o subalterno. Aquele que é característico do povo colonizado
brasileiro, privado de riqueza e do fruto de seu trabalho, degradados e
humilhados, assumem como sua a imagem que “era um simples refle-
xo da cosmovisão europeia, que considerava os povos coloniais racial-

290
Citado por MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – co-
lonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Op.cit., p. 44.
291
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade,
saberes subalternos e pensamento liminar. Op. cit., p. 45.

197
mente inferiores”292. Mesmo as elites que serviam os interesses centrais
viam-se como destinados a subalternos políticos e intelectuais por ser
naturalmente sua posição inferior à europeia.
A geopolítica do conhecimento moderno é também questionada
e reinventada a partir da periferia e num enorme esforço de descons-
trução e de busca de alternativas à “crise da modernidade”. Vai-se edi-
ficando um movimento-pensamento descolonial. Uma experiência até
então invisibilizada intelectualmente, mas, presente nos movimentos
populares293, ganhando status acadêmico na década de 80, a partir do
diálogo com os movimentos sociais e seus saberes. Embora nascido fora
da academia, o pensamento pós-colonial entra no circuito das univer-
sidades no contexto de uma nova geografia do conhecimento através
da periferia quando, na América Latina em particular, são anunciadas
novas formas de saber. Sem entrar na discussão acerca dos estudos pós-
-coloniais294, em rápida síntese e tomando por empréstimo a análise de
Walter Mignolo295, o início dos estudos pós-coloniais dá-se entre as dé-
cadas 1950 e 1960, quando a atenção está centrada na Guerra Fria. No

292
RIBEIRO, Darcy. Las Américas y la civilización – proceso de formación y
causas del desarrollo desigual de los pueblos americanos. Caracas: Biblioteca Aya-
cucho, 1968, p. 63.
293
Walter Mignolo lembra o Movimento Taky Onkoy, no Peru, durante o sécu-
lo XVI, que promove um regresso ao modo de vida anterior aos incas. Um autêntico
movimento indígena anticolonial que extraordinariamente mostra sua capacidade de
questionar e resistir. Ou mesmo no Brasil registra-se os movimentos de resistência
colonial como os Quilombos, Movimentos Messiânicos e tantos outros incriminados
pelo “direito oficial”.
294
O tema é exaustivamente tratado por pensadores como Walter G. Mignolo,
Enrique Dussel, Arturo Escobar, Michel Rolph Trouillot, Aníbal Quijano, Fernando
Coronil, Carlos Lenkersdorf e demais intelectuais africanos e hindus que abriram as
portas das universidades europeias e norte-americanas aos estudos pós-coloniais.
295
MIGNOLO, Walter G. Cambiando las éticas y las políticas del conocimien-
to: lógica de la colonialidad y postcolonialidad imperial. Bogotá: Revista Tabula
Rasa, nº 3: 47-72, jan./dez. de 2005, p. 61 e seguintes.

198
Sul, o economista argentino Raul Prebisch, em 1949, lançava, a convite
da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina), a introdução
do primeiro Estudo Econômico da América Latina, O desenvolvimen-
to econômico da América Latina e alguns de seus principais problemas,
causando verdadeiro pânico pela sede central das Nações Unidas. Ino-
vava o pensamento através do conceito de substituição de importações
e da relação de preços de intercâmbio. A introdução foi apresentada na
segunda Conferência da CEPAL, em Havana, recebida com entusiasmo
pelos países latino-americanos, dedicando-se aos estudos econômicos
acerca do desenvolvimento e sua relação com a industrialização.
De certa forma, as ideias de Prebisch, conhecidas mundialmen-
te, modificaram a geografia do conhecimento dentro da periferia, mos-
trando um novo campo a ser investigado. Nas palavras de Mignolo,
apesar de Prebisch estar longe de ser um marxista, era um economista
honesto e olhava o mundo a partir da periferia e não desde o centro,
como tradicionalmente haviam feito Adam Smith, David Ricardo e Karl
Marx 296. Após seus estudos, outros surgiram em meio ao otimismo da
Revolução Cubana e o duro golpe ao socialismo com o fim do governo
Allende no Chile. Nestes anos 1970, no tumultuoso contexto político,
filosófico e epistemológico latino-americano e na explosão literária 297,
surge o Pensamento da Libertação.
Para David Sánchez Rubio298 é no contexto latino-americano da
segunda metade do século XX que se compreende os eventos episte-

296
MIGNOLO, Walter G. Cambiando las éticas y las políticas del conocimiento:
lógica de la colonialidad y postcolonialidad imperial. Bogotá: Revista Tabula Rasa,
nº 3: 47-72, jan./dez. de 2005, p. 61.
297
Escritores latino-americanos como Garcia Márquez, Vargas Llosa, Guima-
rães Rosa e outros são reconhecidos e comparados aos grandes escritores mundiais.
298
RUBIO, David Sánchez. Filosofia, Derecho y Liberacion en América Lati-
na. Bilbao: Ed. Desclée de Brower, Coleção Palimpsesto, 1999.

199
mológicos que caracterizam o Pensamento da Libertação. O primeiro
evento descrito por David Sánchez Rubio é a Teoria da Dependência
que, embora nascendo com matriz econômica e sociológica, na esteira
do trabalho de Prebisch, representa uma reação às teses desenvolvimen-
tistas e funcionalistas que acaba por denunciar o que era ocultado pelo
discurso econômico liberal: que o desenvolvimento dos países centrais
do capitalismo tinha como contra partida o subdesenvolvimento para
continuar o processo de acumulação. Portanto, era denunciado que a
pobreza nas áreas de periferia seria efeito da riqueza das nações cen-
trais do sistema. O segundo é a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire.
Contrariando as concepções dominantes, Freire defende que o sujeito
deve ser parte ativa do processo de construção de seu conhecimento e
oferece formas de educação à favor dos menos favorecidos. Milita por
uma educação libertadora, na qual o diálogo e o reconhecimento do
saber do Outro iria suprimindo a discriminação e a opressão através de
uma pedagogia crítica e emancipatória. O terceiro é a Teologia da Liber-
tação que, na mesma linha, busca um diálogo com os distintos campos
do conhecimento social, especialmente os de matriz marxista, e com
base na fé libertadora, para além das condições terrenas de existenciali-
dade, anuncia a crença numa igualdade cristã. E finalmente a Filosofia
da Libertação que, inicialmente, com a influência de Leopoldo Zea e
depois Augusto Salazer Bondy e Enrique Dussel, denunciava a ausência
de preocupação da filosofia ocidental dominante e eurocêntrica com a
condição do empobrecido latino-americano, sujeito a partir do qual de-
veria ser iniciada a reflexão filosófica.
Mas a colonialidade do conhecimento insiste em absorver e
ocultar o pensamento da periferia. Em não raras vezes o periférico é
anulado. É comum, mesmo academicamente, um discurso que consi-
dera como o único válido o saber europeu, querendo significar que ne-
gros e índios latino-americanos possuem cultura e sabedoria, o que é
diferente de conhecimento. Nesta lógica, é no Primeiro Mundo que se

200
produz conhecimento objetivo e científico, pois no Segundo o conhe-
cimento não é objetivo, e o que minimamente há é “ideologicamente
contaminado”. Com este argumento, o pensamento periférico foi sendo
anulado, desprezado e descartado. A Filosofia e a Teologia da Libertação
não foram tomadas a sério pelo conhecimento global: eram mais parte
da cultura do que do conhecimento. E, desta forma, a colonização do
ser ia de mãos dadas com a colonização do conhecimento e, através de
meios sutis, é enterrada. Não é saber autorizado, administrado e legiti-
mado pelas instituições que manejam o saber global299.
Exatamente no momento em que mais se acentua a “crise” da
modernidade, o subalterno/oprimido/subjugado ganha força. É nesta
direção que emerge a preocupação de pensadores como Boaventura de
Sousa Santos em Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação
Social, a partir do Sul300. Reconhece Boaventura que, aos que vivem no
Sul, as teorias tradicionais estão fora de lugar e não se ajustam às suas
realidades. Os povos do Sul não necessitam simplesmente de um novo
conhecimento para superação da “crise”, mas do reconhecimento de
que é possível produzir conhecimento de uma nova forma. “Não ne-
cessitamos de alternativas, necessitamos é de pensamento alternativo
às alternativas”301. Trata-se de retomar o pensamento crítico a partir
da atitude pós-colonial, que mais que uma construção epistemológica,
é política e permanece na América Latina, seja nas serras como em
Chiapas, seja nas cidades como o Fórum Social Mundial, ou nas uni-
versidades americanas e europeias.

299
MIGNOLO, Walter G. Cambiando las éticas y las políticas del conoci-
miento: lógica de la colonialidad y postcolonialidad imperial. Op. cit., p. 62.
300
Trata-se especificamente do projeto desenvolvido por Boaventura de Sousa
Santos, que culmina com a publicação, em abril de 2007, de um livro-manifesto neste
sentido que mais adiante será explorado.
301
SOUSA SANTOS, Boaventura. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a
Emancipação Social. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 20.

201
Decolonialidade relacionada à emergência de uma nova geopolí-
tica do conhecimento deve ser compreendido distintamente do pós-co-
lonialismo ou descolonialismo enquanto luta de emancipação política
das colônias europeias. Para Boaventura de Sousa Santos, “é um con-
junto de práticas (predominantemente performativas) e de discursos que
desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador, e procuram
substituí-las por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado”302.
A diferença colonial cria uma condição única de, sob o ponto de vista do
subalterno, oferecer um novo horizonte crítico para as representações da
crítica interna às narrativas modernas hegemônicas. É a superação do
discurso linear que vai do moderno precoce ao moderno e ao moderno
tardio, ultrapassando as fronteiras internas – conflitos entre os impérios
– e externas – conflitos nas representações – da própria modernidade303.
Na tentativa de recuperar as experiências do pensamento jurídi-
co crítico para encontrar elementos a serem resgatados e reinventados
pela hermenêutica jurídica crítica brasileira é que, a seguir, se passa à
análise das vivências do Direito Brasileiro no contexto da reação à “cri-
se” da modernidade. Trata-se da descrição e análise do que Mignolo
chama de pensamento liminar, o “outro pensamento” acerca da “crise”
jurídica moderna. A leitura feita na margem externa no ocidente euro-
peu que busca romper e reinventar a tradição herdada pelo colonialismo
lusitano em terras brasileiras.

2.2.1. A crise na periferia jurídica brasileira


Ao longo da construção histórica da cultura jurídica nacional, foi
edificado um ideário, embora mais servindo para reproduzir e justificar
uma perversa ordem social, insistente em mostrar-se como eficaz e legí-

302
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A Gramática do Tempo: para uma nova
cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 233.
303
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade,
saberes subalternos e pensamento liminar. Op. cit., p. 11.

202
timo. Se for correta a afirmação de Boaventura de Sousa Santos de que
a “representação é sempre uma forma de olhar” e, quanto maior e mais
bem reproduzido é o poder, maior sua transparência, o imenso monu-
mento rotulado de “Direito Brasileiro”, visto sob um olhar inovador, é
capaz de capturar os limites e as impossibilidades de um sistema-poder
de representações ilusórias, deformadas e artificiais. E é deste novo olhar
que se torna possível perceber um horizonte até então desconhecido.
No Brasil, a possibilidade de “visibilidade” inovadora do Direito
nasceu de uma experiência coletiva no contexto dos anos 1970. À época,
um conjunto de eventos de naturezas distintas acabou por conduzir os
juristas a um “espaço” de reflexão inédita: o espaço crítico.
A possibilidade de um olhar renovado pode corrigir “cegueiras”,
tal qual a que acometia juristas brasileiros, impedindo a percepção de
espaços e atores próximos, todavia, historicamente negligenciados e in-
visibilizados. Mas uma nova visão também pode ser assustadora, geran-
do sensação de “estranhamento”. Um mal-estar próprio daquele que,
horrorizado, deixa de reconhecer-se diante de única imagem que, até o
momento, lhe era conhecida e o identificava.
Nas três últimas décadas do século XX, pensadores do Direito
Brasileiro vivenciaram a experiência do “estranhamento”, descobrindo
fatalmente que a representação reconhecida como “Direito” tornava-se
um objeto irreconhecível, o qual servia somente para projetar a falsa
idealização daquilo que um dia se imaginou ter sido. Este foi o instante
em que se passou, de forma recorrente, a se falar em “crise do Direito”.
Um tipo de crise “que podemos chamar de crise espetacular: de um lado,
o olhar da sociedade à beira do terror de não ver refletida nenhuma ima-
gem que reconheça como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão
fixo quanto opaco, do espelho tornado estátua que parece atrair o olhar
da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado”304.

304
SOUSA SANTOS, Boaventura. A crítica à razão indolente. Op. cit., p. 48.

203
É nos momentos de “crise” que se pode captar a fragilidade das
representações, uma fragilidade que a coloca em risco da “queda”. O
instante do desequilíbrio, do fim das certezas, também é o de forçosa-
mente olhar o “chão”, descobrindo o risco de misturar-se com a “terra”.
Este é o instante da reinvenção. Quando é possível, da “matéria” bruta
renovada, surgir uma nova construção305, um esperado reinício.
Este inédito momento histórico foi vivenciado em fins da década
de 1970 no Brasil. A sociedade civil organizada tenta retomar os ide-
ais democráticos que os “anos de chumbo” da ditadura militar haviam
destroçado. Era o momento de vingança da história que não poderia ser
desperdiçado306. Na segunda metade do século XX, o Brasil passou por
transformações tão rápidas quanto brutais. Se é certo que não há uma
teleologia na história e sua trajetória pode ser continuamente criada e re-
criada quando novas condições parecem apontar a possibilidade de ou-
tro direcionamento, a década de 70 foi um destes imperdíveis momentos.
A crença do “desenvolvimento estabilizador” alastrado como
ideário político e econômico latino-americano no pós-guerra, a partir
das ideias de Walt Whitman Restow, assessor de Segurança Nacional
do governo Kennedy, lançadas no livro As Etapas do Desenvolvimento
Econômico: um manifesto não comunista, não era mais sustentável ante
a dramática realidade econômica e social nacional. O endurecimento
político em nome do crescimento econômico não mais se justificava. O

305
Metáfora semelhante é utilizada por Boaventura de Sousa Santos para sig-
nificar o sentido da “crise” como momento inovador.
306
A expressão A Vingança da História é utilizada como título para obra de
Emir Sader (São Paulo: Boitempo, 2003) que reflete acerca do contexto político bra-
sileiro dos finais do século XX, o qual teria levado à eleição do presidente Lula, um
ex-sindicalista, de origem popular e vinculado a um partido construído no momen-
to de transição democrática e sempre rechaçado pelas elites brasileiras. Sua análise
parte do pressuposto de que a dinâmica da história e a historicidade humana são
inseparáveis e possuem como um dos elos o processo permanente de construção e
reconstrução a partir da luta concreta cotidiana.

204
país havia mergulhado na inflação e recessão. Crescia a oposição polí-
tica e os sindicatos se fortaleciam. Inicia-se uma mobilização nacional
pela democracia que culmina, na década de 1980, com o “Movimento
das Diretas Já”, que se concretiza com a promulgação da Constituição
Federal de 1988. A CF/88 veio a representar o desejo de definitivamente
sepultar o modelo político autoritário anterior.
Durante os anos da ditadura, os movimentos sociais foram su-
focados e pulverizados. Apesar da amarga experiência de derrota pelo
golpe militar de 1964, modestas e sutis mudanças ocorreram durante os
anos 70, impulsionando transformações políticas irreversíveis. Lembra
Eder Sader que, naquele momento, pequenas manifestações que aparen-
temente eram incapazes de produzir impacto sobre a institucionalidade
estatal “começam a ser valorizadas como expressão de resistência, de
autonomia e criatividade”307. Estas manifestações passaram a expressar
uma “crise dos referenciais políticos e analíticos que balizavam as repre-
sentações sociais sobre o Estado e a sociedade em nosso país”308. Para in-
telectuais militantes, o Estado perdia lugar privilegiado de instrumento
de transformação, voltando atenção à sociedade civil, e esta decepção
abria caminho à descoberta da sociedade civil309. Lembra Francisco We-
ffort que este redirecionamento não foi produto tão somente intelectual,
mas da atenção ao cotidiano enfrentado pelos perseguidos do regime
que tinham de valer-se do que estava às mãos. “Não havia partidos aos
quais pudessem recorrer, nem tribunais nos quais se pudesse confiar. Na
hora difícil, o primeiro recurso era a família, depois os amigos, em al-
guns casos também aos companheiros de trabalho. […] De que estamos
falando aqui senão da sociedade civil, embora ainda molecular das rela-

307
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena – experiên-
cias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). São Paulo: Paz e
Terra, 1995, p. 32.
308
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Op. cit., p. 33.
309
WEFFORT, Francisco. Por que democracia? São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 93.

205
ções impessoais?”310. A necessidade e desejo de uma sociedade civil que
fizesse frente ao Estado de “terror” implantado em 1964 fez com que ela
se inventasse também no sentido intelectual. Assim, das experiências
vividas brotavam elaborações teóricas, como assinala F. Weffort311.
Curiosamente, do próprio fechamento do Estado para a partici-
pação popular, foram criadas condições de serem vislumbradas possibili-
dades e potencialidades de retomada da vida democrática, e para além do
campo intelectual “emergem novos padrões de práticas coletivas”312. A re-
orientação política e intelectual para a sociedade civil expressou mudanças
substanciais em reflexões teóricas comprometidas com ações transforma-
doras. A “nova descoberta” de objeto teórico em finais da década de 1970
no Brasil provocou o surgimento de uma grande produção intelectual, a
qual apontava a explosão de um movimento popular que trazia consigo
“a marca da autonomia e da contestação à ordem estabelecida”313. Eram os
chamados “novos” sujeitos sociais e históricos. Por que novos?
Antes de mais nada, porque criado pelos próprios mo-
vimentos sociais populares do período: sua prática os
põe como sujeitos sem que teorias prévias os houvessem
constituído ou designado. Em segundo lugar, porque se
trata de um sujeito coletivo e descentralizado, portanto,
despojado das duas marcas que caracterizaram o advento
da concepção burguesa à subjetividade: a individualida-
de solipsista ou monádica como centro de onde partem
ações livres e responsáveis e o sujeito como consciência
individual soberana de onde irradiam ideias e represen-
tações, postas como objetos domináveis pelo intelecto.

310
WEFFORT, Francisco. Por que democracia? Op. cit., p. 95.
311
WEFFORT, Francisco. Por que democracia? Op. cit., p. 95.
312
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Op. cit., p. 34.
313
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Op. cit., p. 35.

206
O novo sujeito é social; são os movimentos sociais po-
pulares em cujo interior indivíduos até então dispersos e
privatizados, passam a definir-se a cada efeito resultante
das decisões e atividades realizadas. Em terceiro lugar,
porque é um sujeito que, embora coletivo, não se apresen-
ta como portador da universalidade definida a partir de
uma organização determinada que operaria como centro,
vetor e telos das ações sociopolíticas e para a qual não ha-
veria propriamente sujeitos, mas objetos ou engrenagens
de máquina organizadora 314 .

As instituições tradicionais, desarticuladas ou desacreditadas, já


não mais serviam de centros articuladores, em sentido mais clássico,
de ação política, havendo, assim, a necessidade de serem encontrados
novos núcleos polarizadores legítimos. A “crise” em suas múltiplas faces
institucionais reconduzia a novos discursos e novas práticas: na Igreja,
articula-se o discurso da “teologia da libertação”; na militância sindical,
surge o “novo sindicalismo”, cuja prática será decisiva para a reorienta-
ção política da nação brasileira nos anos seguintes; “novos movimentos
de bairros”, que se constituíam num processo de auto-organização de
luta por direitos em lugar de “favores” que serviam de “moeda de troca”
em fases eleitorais; a “sociedade civil”, na ausência de políticas de in-
clusão, descobria a solidariedade. Enfim, eram os “novos movimentos
sociais”, que politizavam espaços antes silenciados pela esfera privada315.
“O discurso libertário e as práticas emancipatórias traziam esperança”.
Grupos religiosos progressistas que haviam abrigado e assessora-
do inúmeras organizações populares – Pastorais, Centros de Educação
Popular, Movimentos de Direitos Humanos, etc. – instrumentalizavam
estes “novos movimentos sociais” para servirem de “novos atores” a uma

314
CHAUI, Marilena. Prefácio da obra Quando novos personagens entraram
em cena. Op. cit., p. 10-11.
315
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Op. cit., p. 36.

207
sociedade que desejava a participação e democracia. Nos bairros urba-
nos, surgem associações de moradores, movimentos de creches, saúde,
transporte, etc., que passam a reivindicar bens e serviços coletivos. No
meio rural, organizam-se movimentos de seringueiros, mulheres traba-
lhadoras, sem-terra, e tantos outros na tentativa de valorizar a coope-
ração comunitária. Formam-se uma multiplicidade de grupos sociais,
cuja maior marca é uma ampla mobilização social que tem como ator
um sujeito que expressa uma identidade coletiva. Apesar das múltiplas
identidades, estes sujeitos compartilham o projeto comum de ampliação
dos direitos de participação, cidadania e resgate da democracia.
Das múltiplas falas316, vão sendo criadas categorias teóricas que
apontam o traço comum destes “sujeitos”: a associação em torno de um
“projeto” e uma ideia de “autonomia”. A efetivação do “projeto” agluti-
nador de cada movimento nascia a partir de uma realidade negadora
de inclusão e de direitos mais essenciais, capazes de garantir a cidada-
nia efetiva. Portanto, trazia consigo o pressuposto de garantir a ordem
democrática através do modelo político de Estado e, com isto, os mo-
vimentos vão conquistando espaços de participação. A autonomia que
garanta a independência na construção de identidade e de projetos per-
mite a estes sujeitos vivenciarem experiências múltiplas e únicas. Não
havia um “centro estruturante”, lembra Eder Sader, e esse é um fator
decisivo para a edificação e sedimentação de identidades coletivas317.
O “Brasil descobria o Brasil”. Descobria-se horrorizado como
um “planeta de náufragos”. Uma sociedade em que “ganhadores”, in-
divíduos com acesso aos bens e serviços que chegaram à modernidade
usufruem de benefícios, em nada perdendo para os cidadãos dos países
ricos; mas estes poucos privilegiados conseguem conviver lado a lado

316
Na obra de Eder Sader acima referida, nas páginas 50 a 52, são tomadas falas
em que surge a expressão “novo sujeito” e seu sentido político.
317
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Op. cit., p. 53.

208
com os “perdedores”, um imenso contingente de excluídos, não consu-
midores, em condições subumanas de vida318. Uma realidade marcada
pela desigualdade e violência em suas múltiplas formas de manifesta-
ção. Este é o quadro da “crise” dos juristas. Uma “crise” diferenciada:
“de estranhamento”. Não era mais possível integrar os dois grandes pro-
dutos que fizeram a reputação do Direito ao longo dos séculos: a justiça
e a segurança319.
A histórica incompatibilidade estrutural entre o Direito e a reali-
dade sobre a qual atua conduziu, de forma irreversível, a uma ineficiên-
cia, que é umas das faces visíveis desta “crise”. Para José Eduardo Faria,
as complexas relações entre o judiciário brasileiro, as demais institui-
ções governamentais e a sociedade civil passaram a apontar para um
descompasso entre a arquitetura dos tribunais brasileiros e a realidade
socioeconômica de onde atuam320. A racionalidade jurídica brasileira,
elaborada no contexto do colonialismo português a partir das raízes
culturais da Contra-Reforma, funcionalmente, foi idealizada para exer-
cer funções instrumentais, políticas e simbólicas na esfera de uma socie-
dade que anuncia-se como estável, com níveis razoáveis de distribuição
de renda e um sistema legal racionalmente harmônico, composto por
normas padronizadas, unívocas e hierárquicas. Sob esta perspectiva, os
conflitos judiciais seriam preferencialmente interindividuais e nascidos
a partir de interesses utilitários, mas vistos como opostos pelos litigan-
tes. Assim, lembra Faria, a intervenção jurídica apenas seria admissível

318
ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao Direito Alternativo Brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 37.
319
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização
do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In: <www.jusnave-
gandi.com.br>. Acesso em: 6 jun. 2007.
320
FARIA, José Eduardo. Direito e Justiça no século XXI: a crise da justiça no
Brasil. Texto apresentado no Seminário “Direito e Justiça no Século XXI” em 29 de
Maio de 2003 – Universidade de Coimbra (PT).

209
após a violação de um direito substantivo, por iniciativa individual dos
lesados, o que faria com que a intervenção judicial fosse realizada num
horizonte retrospectivo, sobre interesses e fatos passados, e controlada
pelas partes, ficando as decisões restritas à esfera individual321. A emer-
gência de novo cenário construído por sujeitos que identificam-se cole-
tivamente e reclamam novos direitos sociais colocava a racionalidade e
operacionalidade jurídica fora de lugar.
A entrada para o século XXI é dramática. Uma complexa rea-
lidade multifacetada, possuindo como uma de suas faces visíveis a ab-
soluta incapacidade do Estado em controlar, disciplinar e regular com
seus instrumentos normativos ultrapassados e idealistas, sem a menor
relação com a realidade social, construída por uma relação de poder
excludente e elitista às demandas sociais cada vez mais complexas, que
desafiam a autoridade do Estado, o qual vê-se na obrigação de exercer
funções contraditórias.
O desmonte institucional do Estado brasileiro após a ditadura
militar tornou clara a impossibilidade de sustentação do tradicional
discurso jurídico. O Direito Moderno, nas palavras de Pierre Legen-
dre, idealizado para propagar o desejo de submissão através da grande
obra do poder que é fazer-se amar322, apenas pôde realizar este prodígio
porque pressupôs uma ciência particular, um saber que “constitui a ar-
mação desse amor e camufla com seu texto a prestigiação de uma pura
e simples imposição de adestramento”323. Em nome da ordem e seguran-
ça, a história do Direito Brasileiro mostra a perpetuação de uma forma
de poder infalível que manteve, ao limite do suportável, um regime de

321
FARIA, José Eduardo. Direito e Justiça no século XXI: a crise da justiça no
Brasil. Op. cit.
322
LEGENDRE, Pierre. O amor ao censor – ensaio sobre a ordem dogmática.
Trad. Colégio Freudiano Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 7.
323
LEGENDRE, Pierre. O amor ao censor. Op. cit., p. 7.

210
crenças que acabaram esfaceladas pela brutal realidade. Um universo
que não encontrava defensor que poderia definir-se como feliz, mas tão
somente culpado324.
É sobre esta culpa assumida com desejo de reinvenção que, no
Brasil, é construída uma corrente crítica de Direito. Em meados da dé-
cada de 1980, a realidade brasileira reclamava a reconstrução da ordem
democrática. Os instrumentos de exercício de poder, esvaziados pelo
fim das verdades racionais “que sustentaram durante séculos as formas
de saber e de racionalidade dominantes”, não conseguiam mais “respon-
der inteiramente às inquietações e às necessidades” daquele momento325,
produzindo o que se passou a designar como “crise do Direito”. A “cri-
se”, produto da descrença e insegurança jurídica, é definida por Antonio
Carlos Wolkmer como “a agudização das contradições e dos conflitos
sociais em dado processo histórico. Expressa sempre a disfuncionalida-
de, a falta de eficácia ou o esgotamento do modelo ou situação histórica
aceitos e tradicionalmente vigentes”326. Sinais de esgotamento que vão
conduzindo para o interior do campo jurídico o pensamento crítico,
inaugurando uma discussão inédita e fértil.
Uma possibilidade de enfrentamento e compreensão da “crise”
jurídica brasileira foi encontrada na Teoria Crítica, concepção que des-
de a década de 1960 vinha influenciado pensadores do Direito Euro-
peu, através das “ideias provindas do economicismo jurídico soviético
(Stucka, Pashukanis), da releitura gramsciana da teoria marxista feita
pelo grupo de Althusser, da teoria crítica frankfurtiniana e das teses ar-

324
Refiro-me especificamente ao estudo de Pierre Legendre acerca do conceito
de felicidade de Estado, operado modernamente pela ciência do Direito, que mostra-
-se como a ciência dos bons sujeitos.
325
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico.
3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 1.
326
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico.
Op. cit., p. 2.

211
queológicas de Foucault sobre o poder”327. Na Europa, as inovações da
Teoria Crítica encontravam um terreno fértil no ambiente pós-guerra,
projetando no campo jurídico a desmistificação do jusnaturalismo e do
positivismo. Antonio Carlos Wolkmer, retomando a trajetória do pen-
samento jurídico crítico europeu, lembra que a crítica jurídica consoli-
dou-se inicialmente na França por volta dos anos 1970, culminando com
o “manifesto” da Associação Crítica do Direito em 1978, atingindo em
seguida a Itália, Espanha, Bélgica, Alemanha, Inglaterra e Portugal328.
Na América Latina, os “ventos” inovadores chegam por volta da dé-
cada de 1980 com o engajamento de juristas progressistas e comprometidos
com a superação dos obstáculos políticos que impediam a construção e efe-
tivação da democracia. Este movimento de renovação do pensamento jurí-
dico recebe a adesão de pensadores brasileiros em inúmeras faculdades de
Direito, acabando por serem pioneiros de uma pedagogia jurídica emanci-
padora. As perspectivas epistemológicas, apesar de múltiplas, tinham como
ponto em comum a defesa do rompimento com o positivismo legalista, re-
velando o caráter dominador e centralizador do Direito hegemônico329.
A Teoria Crítica trouxe consigo o impacto do questionamento do
papel ideológico do Direito na medida em que, diferentemente da con-
cepção moderna de ciência, coloca no interior da discussão jurídica as
contradições e ambiguidades inerentes ao Direito Moderno, buscando
tomar o Direito como instrumento não de manutenção da ordem esta-
belecida, mas de possibilidade de emancipação do sujeito histórico tradi-

327
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico.
Op. cit., p. 16.
328
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico.
Op. cit., p. 16.
329
São inúmeros os pensadores do Direito relacionados ao pensamento jurí-
dico crítico, mas a verdadeira arqueologia epistemológica feita por Antonio Carlos
Wolkmer na obra Introdução ao pensamento jurídico crítico, já citada, lembra com
acuidade nomes e trajetórias que merecem ser registrados.

212
cionalmente “submerso em determinada normatividade repressora, mas
também discutir e redefinir o processo de constituição do discurso legal
mitificado e dominante”330. Mostrava-se assim um horizonte inovador,
que trazia consigo a necessidade de rompimentos e abandonos teóricos.
Foi exatamente neste contexto que a hermenêutica ganha um
novo status na discussão jurídica. Entretanto, esta não é uma novida-
de. Nos momentos agudos de transição, a questão hermenêutica ganha
relevância. Mais do que nunca, é necessário compreender a partir de
novas categorias uma realidade também inovadora. A complexidade
desta nova problemática, qual seja, descobrir o “lugar” da hermenêutica
numa lógica jurídica emancipadora, fez com que fosse instaurada uma
discussão que até o início do século XXI permanece em aberto.
O pensamento crítico permitiu ao jurista brasileiro perceber que
o “Brasil chega à pós-modernidade sem ter conseguido ser liberal nem
moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista, elitizada e
excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e não entre certo e errado,
justo ou injusto –, mansa com os ricos e dura com os pobres, chegamos ao
terceiro milênio atrasados e com pressa”331. A pressa no campo jurídico
começa a avançar no sentido de edificar instrumentos e instrumentado-
res que deem conta de des-pensar e re-pensar o paradigma jurídico do-
minante, construindo “uma nova cultura da alteridade e da pluralidade,
através de certas categorias críticas emergentes na perspectiva latino-a-
mericana, seja como forma de destruição, seja como instrumento peda-
gógico de libertação”332, ressignificando socialmente a moderna episte-

330
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico.
Op. cit., p. 18.
331
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo di-
reito constitucional brasileiro. Op. cit., p. 45.
332
WOLKMER, Antonio Carlos. A função da crítica no redimensionamento
da filosofia jurídica atual. In: Revista Crítica Jurídica, no. 22, Curitiba: Unibrasil,
2003; p. 176.

213
mologia das ausências. Ausências que chegam a tornar concretamente
invisíveis os atores sociais de que nos fala Fernando Braga da Costa333.
Neste contexto de transição do pensamento jurídico, um dos de-
safios é refletir acerca do “espaço” a ser ocupado pela Teoria do Direito.
Constatada a insuficiência do que tradicionalmente lhe foi reservado, o
espaço de um saber dogmático quanto ao sentido imanente da norma
posta, é necessário discutir, para além do método, se haveria um espaço
para a reflexão política e ideológica do Direito, sobretudo quando se tem
em vista a edificação de uma racionalidade emancipatória, no sentido
de construir um conhecimento prático-normativo adequado para uma
compreensão justa de um problema social concreto. Trata-se, portanto,
de descobrir a possibilidade de práticas judiciais que recusem uma ín-
dole exclusivamente a favor da interpretação normativa asséptica.
Emprestando metaforicamente o sentido de espaço definido por
Milton Santos334 como “um conjunto de fixos e fluxos”, considerando
elementos fixos os que permitem ações dinâmicas capazes de modificar
o meio, e os fluxos ou renovadores os que recriam as condições sociais,
a Teoria do Direito e, particularmente, a hermenêutica jurídica, desco-
brem-se como espaços privilegiados de compreensão normativa, poden-
do vir a ser emancipatórios.

2.2.2. A experiência jurídica crítica brasileira: um regresso ao futuro335

Nas três últimas décadas do século XX, o cenário social, políti-


co e econômico provocou, de forma crescente, um profundo mal-estar
na cultura jurídica brasileira. O saber jurídico moderno, até então uma

333
COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: retratos de uma humilha-
ção social. São Paulo: Ed. Globo, 2004.
334
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Op. cit., p. 50.
335
Expressão utilizada por Aníbal Quijano em artigo intitulado El regresso del
futuro y las cuestiones del conocimiento, publicado na Revista Hueso Húmero, n. 38,
abril de 2001.

214
sólida ciência que sustentava a racionalidade e autonomia do Direito,
viu-se esgotado. Instala-se o desencanto e a necessidade de aprender a
“conviver com a perda de todo um sistema de objetos, de crenças que
fizeram o elogio das certezas”336. A mitologia jurídica moderna que im-
pulsionara a expansão do Estado liberal capitalista chegava ao fim, e o
até então sagrado era profanado.
O horizonte projetado como futuro, não de mera continuida-
de do passado ou presente, mas da promessa de cumprir o desejado e,
quem sabe, até o sonhado, indicava o inverso: sua derrota. Apesar de
algumas vitórias, chegava o momento de admitir os limites do exercício
do poder em “nome da lei e ordem”. Algumas destas próprias vitórias
serviam para confirmar a poderosa e revolucionária certeza de que as
lutas se orientam segundo um horizonte de futuro, e não para uma en-
ganosa visão profética. Diante da esperança, toda derrota representava,
tão somente, mais um momento de luta, e com esta certeza ia se resis-
tindo à prisão, ao exílio, à tortura, e, até mesmo, ao doloroso sacrifício
de vidas amadas337.
Um horizonte de futuro é definido quando um tempo novo pos-
sibilita para a existência social um novo sentido, apontando para uma
específica perspectiva do imaginário e das representações coletivas: a
histórica338. A perspectiva de um imaginário histórico eurocêntrico,
mantida hegemônica e universalizante até a segunda metade do século
XX, na América Latina em geral e no Brasil em particular, pouco a pou-
co perde seu tradicional centro articulador e, abandonada, volta o seu
olhar ao “pensamento crítico”. Instala-se um imaginário mais radical,

336
WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e Ensino do Direito – o sonho aca-
bou. Vol. II. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 35.
337
QUIJANO, Aníbal. El regresso del futuro y las cuestiones del conocimien-
to. Op. cit., p. 4.
338
QUIJANO, Aníbal. El regresso del futuro y las cuestiones del conocimien-
to. Op. cit., p. 5.

215
que instiga a libertação das representações e idealizações tradicionais
que, como “espelhos sociais”, mais serviam para distorcer o real do que
para refletir sobre ele. O sentido de “crise” provocado pela incompre-
ensão de uma imagem distorcida e parcial tem como maior tragédia a
consciência de que se foi conduzido sabendo e desejando aceitar aquela
imagem como sua exclusivamente. E desta forma, toma-se consciência
de que se vai sendo o que nunca foi. E pior, o resultado é a imobilidade
e ausência de referenciais para identificar os reais problemas, e muito
menos resolvê-los, a não ser de forma parcial e distorcida339.
A consciência jurídica crítica, como forma de resistência inte-
lectual a uma perspectiva histórica dominante e colonizadora, emerge
num novo momento histórico brasileiro, quando é iniciado o rompi-
mento com o poder ditatorial, em fins dos anos 1980, e a ação de no-
vos atores sociais vai indicando que não se tratava somente de buscar
novos conteúdos teóricos. O problema da “crise” da razão jurídica não
era tão somente um problema de conteúdo, tampouco de metodologia.
Era muito mais do que isto. O momento apontava o esgotamento do
pensamento tradicional; era um problema político que trazia consigo
profundas implicações de conhecimento. Assim, construir um saber
contra-hegemônico era uma questão epistemológica de consequências
políticas irrenunciáveis. A capacidade de percepção da complexa rea-
lidade não era uma questão de “troca” de paradigmas. Vivia-se coleti-
vamente uma experiência que possibilitava, de um lado, a potenciali-
zação do reconhecimento da falácia do saber científico único e neutro,
denunciando a existência de outros espaços de construção de saber;
e de outro, a necessidade de perspectivas coletivas de transformações
políticas. Tratava-se de encontrar racionalidades alternativas, um novo

339
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América La-
tina. Publicação virtual do Consejo Latino Americano de ciencias sociales. Disponí-
vel em: <www.clacso.org>.

216
e complexo tempo, e superar a angústia da impotência do que não se
pôde ou não se quis evitar.
Foi sendo desde então estabelecida uma trajetória fragmentada
e, por muitas vezes, polêmica, autodenominada “crítica do Direito”. Um
corpo de ideias produzidas a partir de distintos marcos teóricos que
buscaram estabelecer um diálogo flexível, podendo-se identificar, desde
então, “um conjunto de vozes dissidentes que, sem se construir, ainda,
em um sistema de categorias, propõe um conglomerado de enunciações
apto a produzir um conhecimento do Direito, capaz de fornecer as bases
para um questionamento social radical”340. Com objetivo irrenunciável
de revisão epistemológica, reconhecendo os limites e as funções, de-
claradas ou não, do saber jurídico oficial, a crítica do Direito desloca
seu eixo. Não mais crê na “supremacia da razão sobre a experiência,
tampouco da experiência sobre a razão, mas sim, pelo aprimoramento
da política sobre ambas. Portanto, a análise das verdades jurídicas exige
a explicitação das relações de força que formam domínios de conheci-
mento e sujeitos como efeitos de poder e do próprio conhecimento”341.
Embora sem cumprir a tarefa de construir uma Teoria Crítica
do Direito, talvez por vocação da própria atitude crítica de constituir-se
mais num movimento político permanente de insubordinação à verda-
de, ou pela sua própria natureza, condenada a impossibilitar a identifi-
cação da unidade, o certo é que pode-se analisar a trajetória histórica
deste movimento-ação insurgente brasileiro como tentativa de resgate
de elementos, fragmentos e experiências, em não raras vezes negligen-
ciadas e marginalizadas, que podem indicar o que efetivamente encon-
tra-se agonizante e o que resta a ser retomado como guia para edificação
de um novo saber emancipatório.

340
WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In:
Epistemologia e Ensino do Direito – o sonho acabou. Op. cit., p. 27.
341
WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas.
Op. cit., p. 28.

217
A construção de uma teoria crítica do Direito Brasileiro pode
ser analisada a partir dos movimentos que foram edificando, desde uma
pluralidade teórica e diretriz política de ação, de intensidade variável,
mas que trouxeram o “problema hermenêutico” como uma questão em
aberto, cujas respostas, algumas mais ou outras menos acabadas, vão
identificando e cimentando o que podemos vislumbrar como uma her-
menêutica jurídica crítica brasileira.
Um ponto de partida para a construção do pensamento jurídico
crítico é a Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), descrita por Roberto
Lyra Filho342 um pouco antes de sua morte (ocorrida em 11 de junho de
1986). Fundada por ele em Brasília, cujo boletim era a Revista de Direito
& Avesso (publicada desde 1982), acabou por conquistar adeptos mili-
tantes em todo Brasil, germinando movimentos críticos do Direito que
se seguiram entre as décadas de 80 e 90. Como era próprio de Roberto
Lyra, define a NAIR por aquilo que ela não é, escrevendo343:
a) NAIR não é um sistema de dogmas, forjados ou espo-
sados;
b) NAIR não é tampouco uma revolução copernicana,
dentro das ideias jurídicas, nem a adaptação de qualquer
modelo anterior, nacional ou estrangeiro;
c) NAIR não é um partido político ou clube jacobino, an-
gariando recrutas e distribuindo carteirinha de membro

342
Roberto Lyra Filho nasceu no Rio de Janeiro em 13 de outubro de 1926. So-
ciólogo e jurista, exerceu atividade artística e literária (sob o pseudônimo mais conhe-
cido de Noel Delamare), destacando-se como penalista na vida acadêmica e fora dela.
Foi professor titular da Universidade de Brasília até o ano de 1984, quando se transfere
a São Paulo, ano em que profere conferência memorial para estudantes de Direito
(Centro Acadêmico XI de Agosto) sobre sua visão crítica do Direito. Foi autor de inú-
meras obras jurídicas, sempre marcadas por seu pensamento socialista, reconhecido
por Marilena Chauí como uma Nova Filosofia Jurídica que devolve ao Direito sua
dignidade política. Seus escritos são marcados pela indissociável relação entre Direito
e política, numa época em que esta era atitude corajosa e assumida por poucos.
343
Publicada pela Revista Humanidades nº 11 e disponível no site da NPL.

218
deliberante para as assembleias, com vozerio, patrulheiros,
diretores de consciência revolucionária e rachas fragorosos;
d) NAIR não é, por outro lado, um conjunto de intelec-
tuais narcisistas e incapazes de absorver tanto as contra-
dições não-antagônicas internas quanto o elenco mínimo
de princípios comuns, de que resulta o seu posicionamen-
to conjunto;
e) NAIR não é um grupo de gabinete, mas está, sempre,
num ir-e-vir, entrá, sempre, num ir-e-vir, entre as tarefas
indispensáveis da elaboração teórica e os compromissos,
com a nossa pequena contribuição, de todas as campanhas
de vanguarda suprapartidária – anistia, reconstitucionali-
zação, combate à lei de segurança do poder, que se disfar-
ça como segurança nacional, e diretas já – nenhuma das
quais encontrou, ainda, a plena realização de sua meta.

Com esta definição, ao melhor estilo de Roberto Lyra, é eviden-


ciado o caráter do movimento crítico liderado pela NAIR, que desen-
volveu projetos como o Direito Achado na Rua, lançado em 1987 como
curso à distância, um dos pioneiros da prática jurídica emancipatória.
Em suas palavras, Direito é:
Antes de tudo, liberdade militante, a afirmar-se, evolu-
tivamente, nos padrões conscientizados de justiça histó-
rica, dentro da convivência social de indivíduos, grupos,
classes e povos – e isso quer dizer que o direito é então,
em substância, processo e modelo de liberdade conscien-
tizada ou conscientização libertadora, na era para a práxis
transformativa de mundo; e não ordem/social (que pro-
cure encerrá-lo ou detê-lo), nem norma (que bem ou mal
pretenda veicular), nem princípio abstrato (que desvincu-
le das lutas sociais e concretas), nem apenas luta social e
concreta (que desconhece os limites jurídicos de uma prá-
xis transformativa do mundo e reivindicadora de direitos
sonegados: não se conquistam direitos pelo esmagamento
de direitos, isto é, direitos humanos e gerais, pois o livre

219
desenvolvimento de cada um é condição para o livre de-
senvolvimento de todos, o que exclui a pretensa legitimi-
dade duma ação majoritária aniquiladora de que são, sen-
tem, pensam, carecem e reclamam os titulares do direito
inalienável à diferença pessoal ou grupal irredutível)344 .

Os trabalhos de Roberto Lyra explodem entre as décadas de 1970


e 1980, como manifestos de desejo de uma prática jurídica inovadora e
politicamente comprometida. Aponta o que via como tarefa cotidiana
do jurista: a permanente luta pela vida democrática e garantia de direi-
tos fundamentais. Como pensador de seu tempo, assume de forma co-
rajosa a necessidade de releitura do marxismo pelos juristas, colocando
em questão a incorreta concepção segundo a qual Marx teria negado o
Direito. Ao contrário, seus trabalhos demonstram que é possível cap-
tar a dialética e o materialismo histórico, os “fios condutores” do ideá-
rio marxista, como métodos de superação do tradicional positivismo e
jusnaturalismo que impregnavam a cultura jurídica nacional. Analisa
a decadência da cultura jurídica dominante na obra Para um Direito
sem Dogmas345. Buscando as origens da ciência dogmática do Direito,
demonstra que o conservadorismo jurídico esteve historicamente rela-
cionado à necessidade de manutenção dos interesses dominantes, e, o
Direito, utilizado segundo o jogo de conveniências das elites. Denuncia
a necessidade de superação do modelo hegemônico de Direito através da
renovação teórica e prática, já que a ciência dogmática do Direito mo-
derno foi o instrumento ideológico privilegiado da burguesia, e serve
mais como entrave do que propriamente de garantia emancipatória.
Sua luta por um Direito sem dogmas traça um painel crítico e
erudito, analisando a relação entre um humanismo socialista e os direi-

344
Revista Humanidades nº 11. Disponível no site da NPL: <www.nplyriana.
adv.br>.
345
Publicada em 1980 em Porto Alegre pela S.A. Fabris.

220
tos humanos sem abandonar a cátedra como militância cotidiana, man-
tendo-se independente de grupos partidários. Como um “professor que se
afastou de antigos compromissos conservadores para engajar-se na linha
do pensamento progressista”346, foi pioneiro na defesa de um supralega-
lismo jurídico, no sentido de uma utopia que instiga a repensar o Direito
e as suas tradicionais fontes legitimadoras. Suas provocações teóricas são
no sentido de compreender o Direito como processo conflitivo a partir de
uma pluralidade de ordenamentos que se definem no cotidiano social e,
ao mesmo tempo, um convite para serem afastadas as “vendas” impostas
pela legalidade míope truculenta, em nome da ordem, aos oprimidos, aos
condenados da terra descritos por Frantz Fanon347.
Com o amadurecimento da Nova Escola Jurídica Brasileira, suas
propostas inovadoras foram inseridas em inúmeros campos jurídicos,
contribuindo desde a democratização do ensino do Direito, com imple-
mentação de projetos interdisciplinares que realimentaram o debate acer-
ca da função e dos modos de produção do saber jurídico, até fundamentar
as práticas políticas em defesa da democracia assumidas pelos juristas a
partir da década de 1980. A militância lyriana chamou atenção para a re-
novação das fontes produtoras do Direito, admitindo como Direito aque-
le “achado e construído na rua”, incluindo, desta forma, os movimentos
sociais no ordenamento jurídico, reconhecendo a capacidade popular de
auto-organização e autodeterminação. A metodologia crítica dialética de
Roberto Lyra, além de reconhecida como uma nova prática por inúme-
ros pensadores do Direito no Brasil, do porte do Professor José Eduar-
do Faria348, da Universidade de São Paulo, Luis Alberto Warat e Antonio

346
LYRA FILHO, Roberto. Para um Direito sem Dogmas. Porto Alegre: S.A.
Fabris, 1980, nota introdutória de apresentação.
347
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 1979.
348
FARIA, José Eduardo; CAMPILONGO, Celso. Sociologia Jurídica no Bra-
sil. Porto Alegre: S.A. Fabris, 1991.

221
Carlos Wolkmer ,da Universidade Federal de Santa Catarina, e militan-
tes do “Direito insurgente” como Miguel Pressburger349, alcança círculos
acadêmicos estrangeiros350, tornando-se um ponto de ancoragem para os
movimentos que se seguiram no Brasil nas décadas de 1980 e 1990.
Conhecer o Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente não é
um tema de interesse acadêmico inédito. É de lembrar-se que, na mesma
década de 1970, quando ia se dando visibilidade aos movimentos sociais
como sujeitos de construção de novos direitos, o então jovem pesquisador
português, Boaventura de Sousa Santos, a partir de um projeto apresenta-
do no Programa de Doutorado em Sociologia Jurídica na Universidade de
Yale, investiga os padrões de resolução dos conflitos e da pluralidade jurí-
dica na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, cujos resultados foram
publicados mais tarde351. Permaneceu pesquisando diretamente cinco
meses na favela, durante o difícil período da ditadura352, quando afirma

349
Como chama atenção Lédio Rosa de Andrade In: Introdução ao Direito Al-
ternativo Brasileiro, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1966, Miguel Pressburger,
advogado militante coordenador do Instituto Apoio Jurídico Popular no Rio de Ja-
neiro, contribuiu para o pensamento jurídico crítico com o conceito de Direito Insur-
gente, com o qual identifica o “outro” Direito além do estatal que nasce nas periferias
da sociedade. O pluralismo jurídico defendido a partir de sua prática como advogado
pode ser conhecido através de suas reflexões reproduzidas em artigos citados por
Lédio Rosa como Paradigmas do Conflito e da Ordem: Reflexões Sociológicas sobre
a Racionalidade Jurídica e Direito Alternativo, de Edmundo Lima de Arruda Jr. In:
FARIA, José Eduardo, T. Miguel Pressburger, Edmundo Lima de Arruda Jr. e outros
Direito Alternativo. Seminário Nacional sobre o uso alternativo do direito. Instituto
dos Advogados Brasileiros, Rio de Janeiro, Seleções Jurídicas, 1993.
350
Vide: Doxa – Problemas Abiertos em la Filosofia Del Derecho, Universidad
de Alicante, Espanha; Resenha do XII Congresso Mundial de Sociologia realizado
em Madrid em 1990, Droit et Societé, nº 9, Paris.
351
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Sociologia na primeira pessoa: fazendo
pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil,
Brasília, DF, n. 49, ano XX, v. XIX, p. 39-79, 1988.
352
Vide entrevista concedida no dia 22/05/2001, disponível pelo JB Online no
site: <jbonline.terra.com.br/destaques/bienal/entrevista_boaventura>.

222
ter visto, pela primeira vez, a desigualdade, a exclusão social e também a
resignação das classes oprimidas. Buscou formas de alterar nomes, nú-
meros e locais para não permitir a identificação de líderes comunitários,
omitindo inclusive o nome da própria favela, usando o nome fictício de
Pasárgada, em alusão ao poema de Manuel Bandeira.
Seu trabalho mostrava que o “Direito em Pasárgada” era cons-
truído de forma distinta do oficial, de acordo com o caso concreto em
análise, usando-se muito da retórica como forma de fundamentação,
constituindo-se mais num trabalho de mediação – cedência mútua e
ganho recíproco –, em que o resultado nunca era o “zero”, com ativa
participação do presidente da Associação dos Moradores. Descreve, na
época, o jovem pesquisador, que a mediação apresentava uma corres-
pondência estrutural – adapta-se a relações entre as partes de múltiplos
vínculos que permanecem após a solução do conflito – e contextual às
necessidades locais – porque a reprodução de juridicidade baseia-se na
cooperação pela inexistência de instrumentos repressivos353.
Assim, iam sendo descobertos, no Brasil, novos sujeitos de Di-
reito e novas fontes de Direito, crescendo a preocupação em garantir
a democratização política e jurídica. Embora já crescendo no país um
grupo de juristas críticos, restava ainda a necessidade de um fato aglu-
tinador, o que foi propiciado pelos eventos que culminaram com o sur-
gimento do movimento do Direito Alternativo (DA). Amilton Bueno
de Carvalho, retomando a história do movimento, lembra que o início
do engajamento de juízes – que acabaram por ser os pioneiros – deu-se
em meio à discussão pré-constituinte de 1985, quando a Associação dos
Juízes do Rio Grande do Sul promoveu encontros para fazer sugestões
à Constituição, em projeto de elaboração. Durante os debates, um de-

353
A análise do projeto é feita por KONZEN, L. P. Boas aventuras na Pasárga-
da do pluralismo jurídico ou alternativas para uma ciência do direito pós-moderna?
Prisma Jurídico, São Paulo, v. 5, p. 169-184, 2006.

223
les se declara publicamente socialista, provocando perplexidade para os
que, por força ideológica, não poderiam admitir um posicionamento
político de um juiz, e alívio para outros que descobriam não serem sós,
tampouco exóticos por se identificarem com as lutas populares354. Em
todo país, surgiam declarações de juízes com o desejo de reconstrução
democrática comprometida com a inclusão das vítimas da história. A
partir de então, formou-se um grupo de estudos para repensar o Direito
a partir do desejo de um novo modelo de sociedade.
Organizadamente, começaram a atuar na Associação dos
Juízes, tendo vital papel em greves da magistratura e pe-
rante a Escola Superior de Magistratura. Os julgamentos,
agora com nova ótica do jurídico, alteram-se substancial-
mente. Iniciou nova era de produção teórica, agora não
mais numa visão compartimentalizada do jurídico355.

Quando já estava andamento o processo de amadurecimento


das ideias e práticas deste grupo de juízes, o jornalista Luiz Maklouf, do
Jornal da Tarde, em outubro de 1990, como tentativa de desmoralizar
publicamente um grupo de juízes do Rio Grande do Sul vinculado a um
grupo de estudos sobre Teoria Crítica do Direito, publica reportagem
com título Juízes gaúchos colocam direito acima da lei. Ao contrário do
desejo do repórter, apoio aos “juízes gaúchos” aparece de todos os can-
tos do país, culminando na organização do I Encontro Internacional de
Direito Alternativo, em Florianópolis, Santa Catarinam no ano de 1991,
ao qual seguiram-se muitos outros356.

354
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo em Movimento. 6ª
ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 73.
355
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo em Movimento. Op.
cit., p. 74.
356
O uso da expressão “Direito Alternativo” pelo Movimento acabou sendo
resultado tanto da insistência da mídia em rotular desta forma a posição assumida

224
Com o DA, foi encontrado um elo de identidade entre o que
havia surgido isolada e desarticuladamente como movimento amplo
de defesa de uma prática de Direito comprometida com os empobre-
cidos357. Seguramente, este é um elemento inovador no DA. Além de
inaugurar instrumentos de ação prática que abrem um espaço inédito
para a reflexão acadêmica – um espaço social tradicionalmente negado
–, é assumido como movimento político diferenciado. Para além da pre-
ocupação de edificar uma Teoria, os militantes do DA preocupavam-se
em colocar em movimento uma prática alternativa capaz de ultrapassar
as tradicionais. A alternatividade, no dizer de Amilton Bueno de Carva-
lho, é capaz de: a) aproximar o Direito do conflito humano; b) permitir
uma discussão acerca dos valores do Direito – desmascarando o caráter
ideológico do Direito; c) permitir participação política; d) questionar a
ordem estabelecida e as leis que a mantêm; e) viabilizar a inserção do
Direito no contexto sócio-econômico; f) possibilitar novas formas de
solução dos conflitos358. DA é considerado por seus fundadores não uma
Teoria de Direito, mas um movimento que se caracteriza pela “busca
de um instrumental prático-teórico destinado aos operadores jurídicos
que ambicionam colocar seu saber/atuação na perspectiva de uma socie-
dade radicalmente democrática”359.

pelos “juízes gaúchos”, como o próprio Amilton Bueno de Carvalho que ministrava
na Escola Superior de Magistratura do Rio Grande do Sul uma cadeira denominada
“Direito Alternativo”.
357
Há na obra de Horácio Wanderlei Rodrigues, Ensino Jurídico e Direito Al-
ternativo, São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 153, expressa referência ao pronunciamento
de Amilton Bueno de Carvalho durante debates de sua conferência no I Seminário
Cearense sobre Direito Alternativo: “Direito Alternativo” seria a “Teologia da Liber-
tação” jurídica, em clara referência à opção preferencial pelos excluídos sociais.
358
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo em Movimento. Op.
cit., p. 35-36.
359
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo em Movimento. Op.
cit., p. 72.

225
O debate acerca do DA colocou a público um espaço inédito no
pensamento jurídico, possibilitando a outros juristas somarem-se ao
movimento iniciado pelos juízes gaúchos, abrindo-se uma ampla frente
que vai recebendo o nome de Movimento de Direito Alternativo. Chama
atenção Horácio Wanderlei Rodrigues que foram muitos os espaços e as
frentes de luta, mas podem ser estabelecidos elementos centrais inego-
ciáveis defendidos pelo movimento. O primeiro ponto é a constatação
de que há uma luta de classes, e que o Direito é uma forma de enfrenta-
mento desta luta. Segundo, o firme propósito de construção do socialis-
mo com clara definição política dos agentes do movimento. Terceiro, a
justiça social, entendida como a conquistada historicamente ou reivin-
dicada, enquanto parâmetro para definir o que é Direito360.
A “alternatividade” como adjetivo do Direito é tomada pelos mi-
litantes enquanto o outro lado da moeda luta pela emancipação da maio-
ria da população. É alternativa contra a opressão que o jurídico tenta
(e tem conseguido) impor361. Entretanto, as formas de “alternatividades”
assumidas pelo grupo permitem concluir que “alternativo” foi um gêne-
ro expresso em distintas práticas (frentes), como: a) “positivismo de com-
bate”; b) “uso alternativo” de Direito; c) “Direito Alternativo” em estrito
senso. Para Edmundo Arruda Jr., estas distinções englobam três níveis
de juricidade e lutas: 1) Instituído Sonegado: a luta no plano dos direitos
institucionalizados e negados (instituído sonegado); 2) Instituído Relido:
a luta no plano das recompreensões hermenêuticas (releitura do institu-
ído); 3) Instituinte Negado: a luta nos direitos não instituídos, negados e
reprimidos que encontra seu lugar no pluralismo jurídico362.

360
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino Jurídico e Direito Alternativo.
São Paulo: Ed. Acadêmica, 1993, p. 154.
361
CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e Direito Alternativo. São
Paulo: Ed. Acadêmica, 1992, p. 89.
362
ARRUDA Jr., Edmundo Lima de. Introdução à Sociologia Alternativa. São
Paulo: Ed. Acadêmica, 1992, p. 189 e seguintes.

226
O gênero “alternatividade”, categoria abstrata e genérica, carrega
a ideia de “alter” (alternativo) como luta permanente à emancipação de
“sujeitos preferenciais”: os oprimidos. Lembra Celso Luiz Ludwig363 que
são inúmeros os pensadores do Direito; cada um, a seu modo, trilha o
caminho do uso do Direito em favor daqueles para os quais tradicional-
mente foi negada a justiça. Usam o Direito à favor da emancipação da
classe trabalhadora (Nicolas M. López Calera, Pietro Barcellona, Luigi
Ferrajoli, Modesto Saavedra, etc.); alternatividade identificada com os
interesses do povo/dos pobres/dos marginalizados (Jesús Antonio de La
Torre Rangel). Autores nacionais que defendem um Direito insurgente à
favor dos oprimidos (Miguel Pressburger); ao lado do povo marginaliza-
do, oprimido e espoliado (Antonio Carlos Wolkmer); aliado aos interes-
ses das classes subalternas (Wilson Ramos Filho); a defesa de proteção
dos interesses das massas oprimidas (Lédio Rosa de Andrade); declara-
damente comprometido com os pobres (Amilton Bueno de Carvalho);
e tantos outros que foram se somando à imensa massa de juristas com-
prometidos com um Direito emancipatório e garantidor das condições
necessárias à vida com dignidade para os que compõem o que Celso L.
Ludwig resume como bloco social dos oprimidos, categoria identificada
tanto pelos sujeitos da alternatividade jurídica como os da práxis da li-
bertação, uma das grandes matrizes do pensamento crítico brasileiro364.
Em 1996, quando já iam mais de cinco anos de DA, Lédio Rosa
de Andrade365, em sincero depoimento sobre a trajetória e as conquistas
do movimento, afirma que, apesar do idealismo dos militantes, ainda no

363
LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia da libertação: paradigmas da fi-
losofia, filosofia da libertação e direito alternativo. São José: Conceito Editorial, 2006,
p. 210 e seguintes.
364
LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia da libertação: paradigmas da
filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Op. cit., p. 214.
365
ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao Direito Alternativo Brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 185 e seguintes.

227
Brasil é necessário sonhar com uma sociedade mais justa, democrática,
livre da miséria e pobreza. “No afã de alcançar estes ideais, os juristas
alternativos dedicam seu labor à constante busca de mudanças sociais.
Com erros e acertos, estes profissionais estão construindo uma outra
opção, uma alternativa à forma tradicional de se lidar com o mundo
jurídico”366. Eram vistos os resultados do movimento com a certeza de
necessidade de continuar a luta pela efetivação de uma ordem jurídica e
política que garanta a realização da vida. Inúmeros foram os trabalhos
publicados, os encontros realizados, os projetos acadêmicos desenvolvi-
dos, as práticas jurídicas alternativas de advogados populares, de mem-
bros do ministério público e juízes que foram construindo um corpo de
jurisprudência e produção teórica, acabando por contribuir decisiva-
mente na difícil retomada democrática que vinha se anunciando desde
a instalação da Assembleia Nacional Constituinte de 1986.
Apesar do otimismo e da esperança construídos pelo DA, e da
grande corrente de juristas decididos a retomar a democracia, vivia-se
a herança de um tempo, como lembra o poeta Carlos Drummond de
Andrade, de “gente cortada… de meio silêncio, de boca gelada e murmú-
rio, palavra indireta e aviso na esquina”. Era ainda recente o terror im-
posto pelos militares através do extermínio, “esse troço de matar”367. O
processo histórico de abertura política brasileira, ocorrido entre os anos
1974 a 1985, embora tenha sido marcado por avanços e retrocessos como

366
ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao Direito Alternativo Brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 185 e seguintes.
367
No dia 16 de fevereiro de 1974, General Ernesto Geisel manteve um diálogo
com o General Dale Coutinho, transcrito por Elio Gaspari na obra A ditadura der-
rotada, da coleção: O Sacerdote e o Feiticeiro, São Paulo: Editora Schwarcz, 2003 (p.
319 e seguintes), no qual declara o então presidente o motivo das mortes: a subversão.
Com todas letras, afirma Geisel: “Porque antigamente você prendia o sujeito e o su-
jeito ia lá fora” (referindo-se ao exílio). “Ó Coutinho, esse troço de matar é uma bar-
baridade, mas acho que tem que ser”. Para os interlocutores, o terror era uma questão
de “luta contra a guerra da subversão”.

228
consequência do projeto de abertura lenta, gradual e seguro idealizado
pelos militares368, a derrota da ditadura veio de todos lados, e a luta pela
garantia de direitos foi a grande marca do período de redemocratização.
Analisando brevemente o panorama que antecedeu a Constituição Bra-
sileira de 1988, com o objetivo de compreender sua natureza diferencia-
da, não é difícil entender porque a expressão “direitos fundamentais” foi
incorporada no debate político e ao ordenamento jurídico nacional.
Em fins da década de 1970, parte da classe média que havia apoiado
o golpe de 1964, graças ao medo produzido pela propaganda anticomunis-
ta por setores conservadores da Igreja Católica, diante das frequentes de-
núncias de tortura e morte de estudantes, cassações de políticos, ausência
de liberdade de expressão e perseguições a sindicatos, acaba por afastar-se
do governo militar. São perdidas as vultuosas quantias enviadas pelos Es-
tados Unidos da América e pela Alemanha Ocidental através da campanha
anticomunista, feita pelos golpistas que utilizavam o Instituto de Pesquisa
e Estudos Sociais (IPES)369 como fachada para seus interesses quando já

368
O poder militar representado por Ernesto Geisel, Leônidas Pires e Aureliano
Chaves articula o “Projeto Geisel-Golbery”, que planeja uma devolução do poder aos ci-
vis, porém com completa subordinação da sociedade civil aos seus objetivos, que jamais
foram revelados. O próprio Geisel afirmava que não havia projeto algum, apenas a cons-
ciência de necessidade de mudança sem que fossem contrariados fortes interesses que
haviam no interior da corporação. Por outro lado, haviam militares que eram contrários
à democracia, dizendo tão somente que “preferiam viver na situação revolucionária”.
Estes dois grupos condicionavam o processo político e davam ao mesmo um caráter
lento, gradual e seguro, como na época afirmavam os discursos. A propósito do tema:
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Crise Militar e o Processo de Abertura Política
no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge e NEVES DELGADO, Lucilia de Almeida. O
Brasil Republicano – O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em
fins do século XX. Livro 4, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
369
O IPES era, na verdade, uma fachada montada pelos militares, entre os quais
Golbery do Couto e Silva, da Escola Superior de Guerra, que, associado a empresários
nacionais, cria “pesquisas” sob encomenda de resultados para conseguirem verbas no
exterior e garantirem a “ordem política e social”. Mais tarde, ainda sob a ditadura,
este Instituto dará origem ao Serviço Nacional de Informações (SNI), que funcionava
como a polícia política da ditadura, um celeiro de futuros governantes.

229
não conseguiam “melhorar a imagem” da ditadura, causando um profun-
do mal-estar aos “aliados” estrangeiros. Ainda, a oposição representada
por um único partido – MDB (Movimento Democrático Brasileiro) –, es-
tudantes, trabalhadores, intelectuais e setores atuantes da sociedade civil
como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Confederação Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI),
que vai dando uma dinâmica própria ao processo político.
Num balanço do processo conduzido pelos militares, é nítido
o caráter autoritário no qual se confundiam disciplina e ordem com
uma visão imperial de poder. Naquelas condições, não é difícil com-
preender o rompimento com os militares e o seu projeto. No início
dos anos 1980, o regime estava saturado e o movimento popular cres-
ce, sai às ruas e exige Diretas Já370. O movimento de Direitas Já repre-
sentava “um rompimento radical com a abertura limitada e pactuada
que o regime vinha implantando e levaria, através da eleição de um
presidente pelo voto direto, com uma Constituinte, a uma ruptura
constitucional extremamente desfavorável para as forças que implan-
taram a ditadura militar no país”371. Tornava-se imprescindível uma

370
“Diretas Já” foi um movimento civil de reivindicação por eleições presi-
denciais no Brasil em 1984. Agregou múltiplos setores da vida nacional e organizou
manifestações públicas históricas. No dia 16 de Abril de 1984, pouco antes de votação
à emenda proposta pelo Deputado Federal Dante de Oliveira, que tinha como objeti-
vo instaurar eleições diretas para presidente da república, é organizado na Praça da
Sé, em São Paulo, um grande comício com o intuito de pressionar os parlamentares.
Mesmo assim, no dia 25 de abril de 1984 a emenda é votada e, devido a manobras po-
líticas, é rejeitada. Neste mesmo dia, 25, houve um dos maiores blecautes da história
do Brasil, e as regiões sul e sudeste, destacadas politicamente, ficam sem luz, não po-
dendo acompanhar a votação. O Exército ocupa a Esplanada dos Ministérios e se po-
siciona defronte ao Congresso Nacional. Eram claros os sinais de intimidação. Como
a situação política estava mudando rapidamente, políticos até então defensores do
regime passam a alterar seu discurso e, embora sem conseguir, de imediato, eleições
diretas, o movimento “Diretas Já” foi um marco no processo de redemocratização.
371
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Crise Militar e o Processo de
Abertura Política no Brasil, 1974-1985. Op. cit., p. 273.

230
ampla negociação entre a oposição e a base governista. De forma há-
bil, o dilema político foi solucionado com a garantia de uma transição
que não fugisse ao controle das elites políticas, através de um pacto
em torno do nome de Tancredo Neves, consagrado presidente do Bra-
sil em 15 de janeiro de 1985, com a derrota do candidato governista,
Paulo Maluf. Chegava ao fim o duro golpe contra a democracia, de-
pois de 21 anos. O último general presidente da ditadura, João Batista
Figueiredo, recusou-se a passar a faixa a seu sucessor e saiu pela porta
dos fundos do Palácio do Planalto. Um homem derrotado que havia,
ao tomar posse, feito a promessa de que faria do Brasil uma demo-
cracia “na lei ou na marra”, entregou um país endividado econômi-
ca e socialmente à sociedade civil. A democracia foi conquistada na
“marra” pelo povo nas ruas, sem que fosse pedida permissão e, assim
inicia, a Nova República Brasileira.
Embora houvesse um forte apelo político para convocação de
uma Assembleia Nacional Constituinte originária e exclusiva, como for-
ma de garantir o máximo possível de participação popular, acabou-se
por instaurar, em 1986, uma Constituinte dentro do próprio Congresso
Nacional, dependente das estruturas e dos interesses existentes. Mas sem
perder o rumo da história, aquele foi um momento em que fundou-se a
mentalidade de um Novo Constitucionalismo, quando o Direito passou
a ser o instrumento transformador da Nova República Democrática.
Apesar de contestável a legitimidade da Assembleia Constituin-
te, o processo instaurado em 1986 carregava consigo as contradições e
esperanças de um Brasil que ia saindo dos “anos de chumbo”. A legi-
timidade da Constituinte acabou sendo construída pelo amplo movi-
mento de participação da sociedade civil através de sindicatos, associa-
ções de classe, enfim, das várias iniciativas populares de participação.
A despeito disto, ainda eram evidentes as posições ideológicas, políti-
cas e jurídicas antagônicas herdadas da ditadura. De um lado, os con-
servadores, que representavam os interesses da elite nacional, tentavam

231
amarrar um texto constitucional que mantivesse seus privilégios eco-
nômicos; de outro, os progressistas, que se organizavam para elaborar
uma Constituição garantista, dirigente e programática. Deste embate
de forças políticas, o resultado foi a elaboração de uma Carta Consti-
tucional norteada pelos princípios do Estado Democrático de Direito,
que garantiu à “Res/pública” brasileira a tarefa de conferir eficácia ao
programa constitucional definido.
Como ensina José Joaquim Gomes Canotilho, a Constituição
é um texto que regula uma ordem histórica concreta, por ser produ-
zido a partir de uma realidade concreta. Em seu sentido histórico, a
Constituição é entendida como “o conjunto de regras (escritas e con-
suetudinárias) e de estruturas institucionais conformadoras de uma or-
dem jurídico-política num determinado sistema político-social”372. É a
Constituição que estabelece o fundamento da ordem jurídica de uma
nação em determinado período histórico, por condicionar a criação,
vigência e execução do ordenamento jurídico, além de determinar seu
próprio conteúdo. É ela que “fixa os princípios e diretrizes sob os quais
devem formar-se a unidade política e as tarefas do Estado, mas não se
limita a ordenar apenas a vida estatal, regulando também as bases da
vida não-estatal”373. A Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, seja por trazer em si difícil travessia democrática, seja por uma
euforia contida depois de longos anos de negação de vida política, com
seus vícios e virtudes, inaugura uma fase inédita no país: a superação do
“velho constitucionalismo” e a fundação de um modelo de Estado com a
qualidade de Democrático de Direito.

372
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constitui-
ção. 3ª Edição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 49.
373
BERCOVICI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas
considerações sobre o caso brasileiro. Brasília. Revista de Informação Legislativa.
Ano 32, n. 142, abr./jun. de 1999, p 35-36.

232
Sem adentrar na complexidade do tema do moderno constitu-
cionalismo, o certo é que, com o modelo adotado no Brasil, há uma
inovação no ordenamento jurídico-político, uma vez que a fórmula
política nominada “Estado Democrático de Direito” supera os mode-
los anteriores. Para Willis Santiago Guerra Filho, a Constituição é um
programa de ação a ser partilhado por todo integrante da comunidade
política 374, e isto, por si só, além do ideário que a inspirou, cria tarefas
novas para o Estado. Na nova concepção, governar passa a ser a cria-
ção de políticas que garantam igualdade de condições e oportunida-
des, dando-se uma abertura para permanente tarefa de construção e
reconstrução de cidadania. Enfim, um modelo que pretende harmoni-
zar os três pilares do Estado-Nação Moderno: a esfera pública, ocupada
pelo Estado; a privada, ocupada pelo indivíduo; e a esfera coletiva, que
incorpora a soma de indivíduos organizados a partir de interesses, con-
dições e objetivos comuns.
Uma das consequências foi o amadurecimento, nas últimas déca-
das do século XX, dos estudos dos juspublicistas em função do próprio
caráter da nova Constituição, que obrigou o desenvolvimento de toda
uma reflexão dogmática e política constitucional. Como hábito do colo-
nialismo intelectual, a matriz principiológica constitucional norteadora
foi produzida em outros centros de conhecimento, sobretudo o Ibérico
e Alemão, relacionada com o processo democrático das décadas de 1970
daqueles centros. Este novo constitucionalismo substancial aporta num
Brasil fraturado, socialmente empobrecido, formado por uma grande
massa de seres humanos para os quais o Direito mais essencial foi sis-
tematicamente negado, e por esta razão, a nova mentalidade constitu-
cional veio a representar uma possibilidade de resgate das promessas

374
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade
pós-moderna – introdução a uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1997, p. 29.

233
incumpridas da modernidade. Por esta razão, para uma nação onde o
Welfare State não passou de um simulacro, o novo constitucionalismo
foi uma autêntica revolução copernicana375.
O tradicional constitucionalismo, construído sobre a ideologia
liberal e legitimado através de uma teoria meramente normativa, vê-
-se superado pelo que vai sendo chamado de neoconstitucionalismo. A
superação do “constitucionalismo ideológico”, no entender de Lenio L.
Streck 376, dá-se em três frentes: a) por carregar consigo uma nova teoria
das fontes, já que a Constituição, como autoaplicativa, faz com que a
lei não represente mais a única fonte de Direito; b) a substancial altera-
ção da teoria da norma em função da normatividade dos princípios; c)
no plano da interpretação, por trazer um novo paradigma hermenêuti-
co-interpretativo. As três caracterizam o novo constitucionalismo, que
provocou “profundas alterações no direito, proporcionando a superação
do paradigma positivista, que pode ser compreendido no Brasil como
produto de uma simbiose entre formalismo e positivismo, no modo
como ambos são entendidos pela(s) teoria(s) crítica(s) do Direito”377.
O constitucionalismo das décadas de 1980 e 1990, no Brasil, em-
bora nascido em tradicionais centros geoculturais, representa, simulta-
neamente, conquista e desafio. Conquista no sentido de possibilitar uma
cidadania ativa através de instrumentos democráticos na intervenção
das condições reais de existência dos brasileiros, fixando obrigações di-
rigentes para o Estado. O Estado Democrático de Direito tem um con-

375
STRECK, Lenio Luiz. A Hermenêutica Filosófica e as Possibilidades de Su-
peração do Positivismo pelo (neo)Constitucionalismo. In: ROCHA, Leonel Severo e
STRECK, Lenio Luiz. Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 2005, p. 154.
376
STRECK, Lenio Luiz. A Hermenêutica Filosófica e as Possibilidades de
Superação do Positivismo pelo (neo)Constitucionalismo. Op. cit., p. 159.
377
STRECK, Lenio Luiz. A Hermenêutica Filosófica e as Possibilidades de
Superação do Positivismo pelo (neo)Constitucionalismo. Op. cit., p. 159.

234
teúdo transformador da realidade social, já que ultrapassa o conteúdo
material da vida humana, passando a irradiar valores de democracia em
todos os sentidos da vida da Nação, inclusive na jurídica. Por outro lado,
a nova fórmula política é obrigada a conviver com o velho positivismo
jurídico que povoa o imaginário dos juristas através da dogmática e de
seus instrumentos técnicos-operacionais, o que coloca em risco e fragi-
liza o modelo democrático duramente conquistado. Este é um desafio
que vem sendo enfrentado pela via hermenêutica enquanto condição de
possibilidade de compreender a disfuncionalidade entre o Direito, que
pelo neoconstitucionalismo é um instrumento de garantia e transfor-
mação social, as instituições políticas encarregadas de conferir eficácia
ao modelo democrático de Estado, e a crescente complexidade das de-
mandas sociais. Indo nesta direção, vai-se construindo um novo para-
digma hermenêutico no pensamento jurídico brasileiro, autodenomina-
do crítico, cuja gigantesca tarefa é servir de condição de possibilidade
da ordem democrática e de resistência ao estrito formalismo legalista.

2.2.3. Reinventar o Direito e repensar a emancipação no século XXI

A entrada no século XXI, embora não triunfal, nas terras bra-


sileiras foi feita sob a égide da democracia aliada à esperança – nunca
perdida – de reafirmação de cidadania. É neste contexto que o sistema
judiciário, internamente, assumiu o papel inédito de assegurar não ape-
nas o conjunto de direitos fundamentais duramente conquistados, mas o
de também manter a estabilidade política numa historicamente frágil or-
dem democrática. Revisando a história do Direito Brasileiro, não é difícil
perceber que este protagonismo é muito diferente do tradicionalmente
assumido de servir de mero instrumento de conferir eficácia ao sistema
normativo estabelecido por um poder político raramente comprometido
com interesses populares e fortemente marcado pela herança colonial.
Na trajetória de construção do Estado brasileiro, o judiciário
esteve mais ocupado em cumprir seu papel controlador e reprodutor

235
dos interesses das elites e organizar-se institucionalmente como apa-
rato burocrático do poder. A bem da verdade, o judiciário não foi alvo
de atenção, nem das elites, nem das forças progressistas, talvez porque
nunca representou obstáculo para aquelas, tampouco fonte de justiça
social para estas, mas acabou em finais do século XX assumindo um
papel político do qual não pode mais renunciar.
O novo sistema mundial neoliberal, adotado pelos países euro-
peus, nos últimos trinta anos encontrou o absoluto desmantelamento
do Estado intervencionista – quer o modelo desenvolvimentista das
periferias e semiperiferias mundiais como Estado Providência – e o
fortalecimento do Estado de Bem-Estar Social relativamente avançado
nos países da Europa, marcado por fortes políticas sociais que aliam
altos níveis de competitividade com altos níveis de proteção social378.
A mudança política em tempos de neoliberalismo global, na leitura de
Boaventura de Sousa Santos, exige um judiciário eficiente, rápido e in-
dependente para assegurar o novo modelo de desenvolvimento que se
assenta nas regras de mercado e nos contratos privados, mas também,
que responda às demandas sociais causadas pela precarização dos direi-
tos sociais e econômicos379.
Particularmente no Brasil, sem que tenha um modelo de Estado
forte em políticas sociais, a redemocratização constitucional ampliou
consideravelmente o leque de direitos em relação aos chamados direitos
fundamentais, e também aos novos direitos, cujos titulares são sujei-
tos coletivamente identificados: consumidores, negros, homossexuais,
crianças e adolescentes, mulheres, indígenas, e tantos outros quantas
possibilidades de articulação social e política. Este fato aumenta a ex-

378
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para uma Revolução Democrática da Justi-
ça. São Paulo: Cortez, 2007, p. 16.
379
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para uma Revolução Democrática da Justi-
ça. Op. cit., p. 17.

236
pectativa social de serem garantidos direitos anunciados constitucio-
nalmente, mesmo com débeis mecanismos de implementação, já que a
nova ordem constitucional prevê igualmente a ampliação de estratégias
e “instituições das quais se pode lançar mão” para invocar os tribunais,
como, por exemplo, a ampliação da legitimidade para “propositura de
acções diretas de inconstitucionalidade, possibilidade de as associações
interporem acções em nome de seus associados e a consagração da au-
tonomia do Ministério Público”380. O novo constitucionalismo e a re-
democratização brasileira conferiram ao judiciário um papel relevante:
instrumento de viabilização de direitos e garantias, e de reconstrução e
manutenção da ordem democrática.
Entretanto, a redemocratização, aliada ao constitucionalismo
construído nas matrizes europeias que consagram direitos fundamentais
– conquistados ao longo de um processo histórico específico –, em terras
brasileiras, tem sido uma proposta desacompanhada de políticas públicas
e sociais capazes de conferirem eficácia e efetividade à nova ordem, ainda
com agravante de existirem fortes resistências entre juristas herdeiros de
uma lógica cartesiana, reféns do ultrapassado paradigma formal legalista
de Direito. Sem medo de errar, pode-se afirmar que aí está uma das ra-
zões centrais para compreender o por que de, passados quase vinte anos de
Constituição Democrática, o Brasil ainda é um país em que os princípios
democráticos fazem parte de uma mera intencionalidade nem sempre ou
raramente contemplada. “Para se ter uma ideia, o princípio constitucional
da ampla defesa ficou quase quinze anos sem ser aplicado nos interroga-
tórios judiciais, sem que a doutrina e a jurisprudência – com raríssimas
exceções – tivesse reivindicado a aplicação direta da Constituição”381. Evi-
dentemente, sem esquecer que o “peso da balança” pende para um “lado”.

380
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para uma Revolução Democrática da Justi-
ça. Op. cit., p. 18.
381
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Op. cit., p. 155.

237
Mais além, existem sérios obstáculos nas práticas judiciais que
invisibilizam os Movimentos Sociais como fonte legítima de Direito,
um campo jurídico que emerge de forma contra-hegemônica e não pode
ser negligenciado. “É o campo dos cidadãos que tomaram consciência
de que os processos de mudança constitucional lhes deram direitos sig-
nificativos – direitos sociais e econômicos –, e que veem no direito e nos
tribunais um instrumento importante para fazer reivindicar os seus di-
reitos e as suas justas aspirações a serem incluídos no contrato social”382.
São as permanentes “vítimas da história”.
Se no passado colonial a face visível da exploração era a do es-
cravo, em tempos de globalização o resultado da perversidade sistêmica,
de que nos lembra Milton Santos, são as vítimas do fascismo social. O
fascismo social não é, como recorda Boaventura de Sousa Santos, aquele
criado diretamente pelo Estado, mas o produto de um sistema em que
o nível de competitividade – aquela que tem a guerra como norma383 –
acaba num individualismo arrebatador e possessivo que a tudo coisifica,
inclusive aos seres humanos. Um sistema “que comanda outros subsiste-
mas da vida social, formado uma constelação que tanto orienta e dirige
a produção da economia como também a produção da vida”384. As frag-
mentações resultantes da lei de mercado rompem a solidariedade social,
fazendo com que novas formas de perversidades sociais sejam criadas.
O fascismo social, antes de um regime político, é um regime
social e civilizacional385. Como resultado da nova ordem mundial ne-
oliberal, não é mais necessário o sacrifício da democracia para a manu-

382
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para uma Revolução Democrática da Justi-
ça. Op. cit., p. 29.
383
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Op. cit., p. 46.
384
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Op. cit., p. 48.
385
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova
cultura política. Op. cit., p. 333.

238
tenção do capitalismo, e por esta razão é uma nova forma de fascismo.
Na leitura de Boaventura de Sousa Santos, é um fascismo pluralista que
se apresenta sob múltiplos modos. O primeira deles é o que chama de
“fascismo do apartheid social” visibilizado na forma de organização do
espaço urbano. Há uma zona selvagem – hobbesiana –, na qual não pre-
valece o contrato social; e a zona civilizada, onde vale o contrato social
em sua forma mais avançada: o Estado Democrático de Direito. Não é
apenas uma ingênua organização urbana, é um critério também de rela-
ção social e de judicialidade. Nas zonas selvagens, a presença do Estado
é truculenta; é um Estado predador e não confiável, enquanto nas zonas
civilizadas o Estado é democrático e eficaz386.
Outra forma considerada por Boaventura é a do “fascismo para-
estatal”, que se caracteriza pela usurpação das prerrogativas estatais por
parte do poder local, em não raras vezes ocorrendo com a conivência
do Estado. É uma expressão do novo fascismo, que tem em sua vertente
o “fascismo contratual”, produto da fragilização produzida pelas con-
dições de exclusão que acabam por provocar o desamparo e a vulne-
rabilidade dos menos fortes – os vitimizados –, obrigando-os a aceitar
incondicionalmente as condições impostas pelos poderosos. No Brasil,
um exemplo vergonhoso do fascismo contratual é a existência de milha-
res de trabalhadores escravizados.
Em 2013, a ONG Walk Free Foundation noticiava que o Brasil
possuía 200 mil pessoas em situação de trabalho escravo, colocando o
país em 94º lugar no ranking das nações com o maior registro de traba-
lho escravo. De acordo com a referida pesquisa, 29 milhões de pessoas
vivem em situação análoga a de um escravo no mundo, além de serem
vítimas de tráfico humano, trabalho servil derivado de casamento ou
dívida, exploração sexual e infantil.

386
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova
cultura política. Op. cit., p. 334.

239
A Pastoral dos Imigrantes, ligada à Igreja Católica, calcula que
só na cidade brasileira de São Paulo existam 120 mil trabalhadores es-
cravos, atuando em torno de 18 horas por dia em condições insalubres,
sem direitos garantidos e com salário irrisório. Em sua maioria, são
imigrantes bolivianos e paraguaios que chegam em busca de melhores
condições de sobrevivência387.
O “fascismo da insegurança”, para Boaventura de Sousa Santos,
é a produção de permanente nível de ansiedade e insegurança quanto
ao presente e futuro, reduzindo as perspectivas positivas para supor-
tar o pesado fardo da ausência de um mínimo necessário para a sobre-
vivência. Acentua-se no indivíduo a lembrança de ausência passada e
presente de políticas públicas eficientes e, para o futuro, vislumbra-se
um horizonte de colapso do sistema de proteção pública, sobretudo da
saúde e dos fundos de previdência. Talvez a mais terrível de todas as
faces do fascismo social seja o “fascismo financeiro” que, com múltiplas
formas, é exercido pelas empresas privadas cuja ação, aliada ao capital
internacional, possui a capacidade de “lançar no estado de natureza da
exclusão países pobres inteiros”388.
Este estado de natureza hobbesiano nas sociedades periféricas
neste início de século XXI destrói os tradicionais laços de convivên-
cia e/ou sobrevivência. Nesta nova fase do capitalismo, agora mun-
dializado, diferente do que ocorreu na Revolução Industrial do século
XVIII, que trazia consigo modernização e novos postos de trabalho, o
que vem acontecendo, para lembrar o pensamento marxista, é a subs-
tituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, que vai colocando à
deriva da sociedade uma enorme massa de seres humanos. Na leitura

387
Dados publicados pela Revista do Instituto Observatório Social, nº 6 de ju-
nho de 2004.
388
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova
cultura política. Op. cit., p. 337.

240
de Giorgio Agamben389, a relação entre o poder soberano e a vida dos
indivíduos cria um pertencimento político que abrange todos sentidos
da vida social. Não apenas a noção de direitos e deveres, mas, sobretu-
do, a prática do reconhecimento do outro como um cidadão igual. É a
existência política, cuja negação encerra o indivíduo numa existência
biológica e distinta dos demais.
Retomando a discussão de autores anteriores, como Hannah
Arendt e Michel Foucault, Agamben pensa a relação entre a política e a
vida pelo poder de decisão do soberano que produz a vida nua, definida
não apenas em sua dimensão biológica, mas apolítica, com a negação
de direitos, e quando isto acontece, a vida perde significância para os
demais, e o sujeito torna-se um homo sacer.
No Brasil, sem voltar a insistir em tema já visitado, a desigual-
dade e seletividade, em especial no circuito da violência penal, reprodu-
zem sistematicamente processos de exclusão e vitimização aos setores
populares, desonrando e desrespeitando grupos sociais que compõem
as zonas de selvageria, expondo sofrimento e intimidade de seres huma-
nos que, perversamente, são transformados em “descartáveis” por “te-
rem rompido o contrato social” e, por isso, tornam-se seres desprovidos
de direitos, aos quais apenas resta a vida biológica, sujeitos ao “Direito
Penal do inimigo”390. A exceção vira regra nas áreas de exclusão, e justi-
ficável para a prática do extermínio do “perigoso”.
Estes são os sujeitos desprovidos de “linguagem”, invisibilizados,
portanto, política e juridicamente inexistentes. Em que pese o esforço
constitucionalista crítico e sua incansável luta pela democratização,

389
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Soberano e a Vida Nua I. Tradução de
Henrique Burigo, Belo Hrizonte: Ed. UFMG, 2002.
390
Aqui refiro-me especificamente ao conceito defendido por Jakobs Günter e
Manuel Meliá Cancio na obra Derecho Penal del Enemigo, Navarra: Editorial Aran-
zadi, 2006.

241
resta em aberto um espaço jurídico que não pôde ser preenchido pelas
práticas críticas. É possível pensar uma opção às práticas alternativas e
reinventar a crítica desde as experiências descolonizadoras brasileiras.
Desde uma crítica à razão proléptica hermenêutica do Direito Moder-
no, que além de contrair o presente, reconhecendo-o como única fonte
compreensiva, o Direito estatal, reduz o espaço de mediação jurídica ao
Estado, sendo possível ampliar espaços presentes emergentes.
Adotando a sugestão de Boaventura de Sousa Santos, ao chamar
de sociologia das emergências a prática de ampliar o presente, reconhe-
cendo o que foi subtraído pela sociologia das ausências, hermeneuti-
camente ampliando os espaços de possibilidades de compreensão do
Direito para além do Estado, é possível identificar agentes, práticas e
saberes com tendências de futuro sobre as quais amplia-se as expectati-
vas de esperança. Trata-se de uma ampliação quanto às potencialidades
e capacidades ainda não reconhecidas, necessariamente movendo-se no
campo das experiências sociais que, desde as práticas do “reconheci-
mento”, “transferência de poder” e “mediação jurídica”, são legítimos
espaços de luta por dignidade humana391.
Indo nesta direção, deve-se falar em reconhecer o mundo social
como mundo de possibilidade compreensiva e, portanto, fonte de uma
nova racionalidade hermenêutica. Trata-se de uma perspectiva plura-
lista de Direito, que reconhece múltiplos espaços de fontes normativas,
apesar de, na maioria das vezes, como lembra Antonio Carlos Wolk-

391
Esta é a proposta defendida, entre outros, por Hélio Gallardo em Derechos
Humanos como Movimiento Social. Edicioness desde abajo, Bogotá e explorada por
Norman J. Solórzano Alfaro em Fragmentos de uma Reflexión Compleja sobre una
Fundamentación Del Derecho y la Apertura a una Sensibilidad de Derecho Humano
Alternativa, a ser publicado na Revista Jurídica Eletrônica nº 2 do Curso de Direito
da Universidade Regional de Blumenau.
392
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico – fundamento de uma
nova cultura no Direito. o Paulo: Editora Alfa Omega, 1994, p. 155.

242
mer392, ser informal e difusa. O pluralismo é uma fonte de inúmeras
possibilidades de regulação. Para Antonio Carlos Wolkmer:
O pluralismo enquanto concepção “filosófica” se opõe ao
unitarismo determinista do materialismo e do idealismo
modernos, pois advoga a independência e a inter-relação
entre realidades e princípios diversos. Parte-se do princí-
pio de que existem muitas fontes ou fatores causais para
explicar não só os fenômenos naturais e cosmológicos,
mas, igualmente, as condições de historicidade que cer-
cam a vida humana. A compreensão filosófica do pluralis-
mo reconhece que a vida humana é constituída por seres,
objetos, valores, verdades, interesses e aspirações marca-
das pela essência da diversidade, fragmentação, circuns-
tancialidade, temporalidade, fluidez e conflituosidade.
[…] O pluralismo, enquanto “multiplicidade dos possí-
veis”, provém não só da extensão dos conteúdos ideológi-
cos, dos horizontes sociais e econômicos, mas, sobretudo,
das situações de vida e da diversidade das culturas393.

Numa perspectiva pluralista de Direito, é possível ampliar o es-


paço jurídico para além do estatal, articulando saberes, práticas e ações
coletivas inovadoras até então pouco reconhecidas. As múltiplas expe-
riências das práticas pluralistas, uma das quais foi objeto de pesquisa
durante o desenvolvimento do presente estudo e, adiante, compondo o
conjunto de anexos, dentre os quais o projeto “Direito Achado na Rua”,
anteriormente citado, leva o nome cunhado por Roberto Lyra Filho e,
atualmente, sob a coordenação de José Geraldo de Sousa Junior, bus-
ca capacitar operadores do Direito e refletir acerca da atuação jurídica
dos sujeitos coletivos enquanto expressão dos movimentos sociais. Para
tanto, identifica espaços políticos nos quais se desenvolvem novas práti-
cas sociais que anunciam direitos, mesmo os que estão além do formal

393
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. Op. cit., p. 158.

243
legal, além de buscar sistematizar informações obtidas das práticas so-
ciais com vistas a criar categorias jurídicas. Trata-se de uma prática plu-
ralista, cujo espaço de investigação é inesgotável para a hermenêutica.
Identificar os elementos comuns nas traduções das múltiplas realidades
– a jurídica e a coletivamente criada – para encontrar o comum, o ponto
inicial para a tradução, é uma tarefa que não cabe numa teoria herme-
nêutica, universal por natureza.
As práticas jurídicas que incluem o espaço social não podem ser
uma “canibalização”, para usar a expressão de Boaventura de Sousa San-
tos, dos demais. É necessária uma tradução das múltiplas hermenêuticas,
dentre as quais a jurídica. Neste sentido, não cabe uma hermenêutica
jurídica nos moldes tradicionais. São campos distintos que se tocam – o
estatal e o social –, em que mundos normativos, práticas e saberes dialo-
gam, se desentendem e interagem, tornando possível reconhecer os pon-
tos de contato entre a tradição moderna ocidental e os saberes leigos.
As duas zonas de contacto constitutivas da modernidade
ocidental são a zona epistemológica, onde se confrontam a
ciência moderna e os saberes leigos, tradicionais, dos cam-
poneses, e a zona colonial, onde se defrontam o coloniza-
dor e o colonizado. São duas zonas caracterizadas pela ex-
trema disparidade entre as realidades em contacto e pela
extrema desigualdade das relações de poder entre elas394 .

A tarefa do Direito como tradução retoma o sentido mais original


do termo, mas a partir de uma perspectiva inovadora que traduz saberes
nem sempre convergentes.
Como as práticas sociais de compreensão e solução de conflitos
são mais retóricas e argumentativas, logo, tornam-se grandes os desafios a
serem enfrentados pelos juristas de profissão. Boaventura de Sousa Santos

394
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova
cultura política. Op. cit., p. 130.

244
sugere uma hermenêutica diatópica que, em síntese, consiste em buscar
os topois – lugares comuns que constituem o consenso básico e torna pos-
sível o dissenso argumentativo – presentes na argumentação, que é nor-
malmente assentada em postulados, axiomas, regras e concepções aceitas
por todos. “O trabalho de tradução não dispõe à partida de topoi, por que
os topoi que estão disponíveis são os que são próprios de um dado saber
ou de uma dada cultura”395. O trabalho consiste em, sem que se tenha um
ponto de partida, reconhecer os topoi que cada prática é expressa como
forma argumentativa. “É um trabalho exigente, sem seguros contra riscos
e sempre à beira de colapsar. A capacidade de construir topoi é uma das
marcas mais distintas da qualidade do intelectual ou sage cosmopolita”396.
São dificuldades que se impõem e devem ser superadas pela prática do
reconhecimento e da oportunidade de dar voz ao outro, mesmo ao que
não quer fazer uso dela, do que permanece em silêncio.
Já Walter Mignolo fala de uma hermenêutica pluritópica397 como
parte da resistência à semiose colonial, porque a colonialidade do poder
pressupõe a diferença colonial como sua condição de possibilidade e
como aquilo que legitima o subalterno do conhecimento e a subjugação
dos povos398. Considerando a construção do pensamento hermenêutico
jurídico brasileiro, na linha de pensamento da descolonização e na in-
clusão dos múltiplos atores sociais no processo de construção do saber
jurídico, sua perspectiva é monotópica, ou seja, é edificada sob a pers-
pectiva de um único sujeito cognoscente – o jurista de profissão – e com
uma posição de quem fala de um lugar virtual, uma terra-de-ninguém

395
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova
cultura política. Op. cit., p. 133.
396
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova
cultura política. Op. cit., p. 133.
397
MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais. Op. cit., p. 37.
398
MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais. Op. cit., p. 40.

245
universal, como chama Mignolo. A intenção de sua hermenêutica é apa-
gar a concepção de que interpretar é descrever a realidade a partir de
seu horizonte compreensivo. O objetivo é apagar a distinção entre o su-
jeito que conhece e o objeto que é conhecido, entre um objeto “híbrido”
(o limite como aquilo que é conhecido) e um “puro” sujeito disciplinar
ou interdisciplinar (o conhecedor), não contaminado pelas questões li-
miares que descreve399. Uma hermenêutica que assume-se como dialó-
gica e que, numa perspectiva pedagógica emancipatória, caminha para
a conscientização e libertação.
Com estas concepções, o Direito adquire uma dimensão distinta
do que tradicionalmente lhe foi reservado, e vai um pouco mais além do
que até foi edificado pela crítica tradicional. É um espaço de aproximação
e de assumir responsabilidades mútuas, que rompe com a lógica construí-
da pelo saber colonizador e abre para ainda tornar possível a esperança no
justo. As condições de possibilidade de compreensão são elaboradas com
o outro e a partir deste outro, historicamente negado e silenciado.

399
MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais. Op. cit., p. 42.

246
PE R SPEC TI VA S E AVA NÇ OS

F inalmente, o que se verificou no estudo foi o breve itinerá-


rio da formação e da composição do sistema jurídico como to-
talidade moderna, em que a invenção do Novo Mundo se deu
pela total desconexão dos preceitos deste e pela falta de cria-
tividade na estruturação de uma organização pública original
por parte das elites políticas que erigiram os poderes consti-
tuídos. Nessa desconexão, foram marginalizadas as necessida-
des locais dos setores populares. Prontamente, a elitização do
sistema jurídico latino-americano logrou deixar na diligência
de um Estado dependente, em todas as suas bases de sustenta-
ção material, formal e filosófica, os aspectos que conformam
a administração de justiça, órgão este direcionado a suplantar
qualquer resquício das formas de pluralidade jurídica.
Após ter sido apontado o campo jurídico desde a cons-
trução colonial até a formação moderna, o que se verifica são
arquétipos e influências norte-eurocêntricas, que trabalharam
no encobrimento das distintas formas de produção jurídi-
ca regional. Logo, o que resta de tarefa para um pensamento
jurídico crítico com compromisso por uma cultura jurídica
diferente da retórica formalista e bacharelesca, é a exploração
do campo da descolonialidade do saber jurídico, do poder das
instituições forjadas no elitismo e na conjugação de outras
fontes para o sistema jurídico na região.
Esta obra não visualiza um fechamento reflexivo em
torno dos temas abordados, pois, ao tratar da cultura jurídica

247
de forma ampla e geral, intentou aprofundar os estudos em temáticas
pouco comuns ao pensamento jurídico standart. Assim, a classificação
que se pretende é uma abertura para a ruptura na epistemologia jurídica
tradicional (que ignora a construção sócio-histórica da cultura jurídica
originária em Nuestra América).
Por conseguinte, uma hermenêutica jurídica crítica não pode fur-
tar-se ao desafio da interdisciplinariedade, sob pena de, unilateralmente,
condicionar a perspectiva dos juristas, enviesando-os somente pelos ca-
minhos do formalismo. A ideia central que moveu a perspectiva deste tra-
balho passa pelo não encobrimento do passado colonial e das estruturas
que ainda mantém a colonialidade. Trata-se de um exercício reflexivo que
possa relacionar as circunstâncias do pensamento jurídico cotidiano com
o passado do culturalismo colonizado dos operadores jurídicos.
Ademais, também não significa um total rechaço ao formalismo
do Direito. Ao contrário, denuncia que a visão formalista apenas oculta
a materialidade das relações de vida dos sujeitos vivos. Ora, a mate-
rialidade das corporalidades vivas, visualizadas no texto como sujeitos
ausentes, é a condição de possibilidade para armar um sistema jurídico
com critérios de justiça para com o Outro. Portanto, o formalismo ju-
rídico deve ser dimensionado como instrumento de luta aos povos na
sua afirmação da dignidade e na garantia dos meios para a produção e
reprodução da vida.
Por fim, o estudo é uma abertura reflexiva à trajetória do Direito e
seu papel na sociedade regional, marcados pela colonialidade das relações
sociais e por profundas distorções econômicas e políticas, que, na sua ge-
neralidade, foram garantidas por discursos jurídicos oficiais, legislações
que encobriram práticas normativas de justiça, incriminando direitos vi-
vos, e sentenciando aqueles não amparados pelos donos do poder.
A tarefa que fica a partir desta obra é a perspectiva de avanço nas
reflexões sócio-históricas regionais como busca de novos elementos para
o conhecimento das experiências jurídicas desperdiçadas pelas doutrinas

248
jurídicas oficiais. Não há outro caminho senão operar por meio da her-
menêutica liberadora, que assuma o compromisso de identificar as estru-
turas de reprodução da colonialidade jurídica, denunciá-las na sua faceta
dominadora, e promover rupturas desde a realidade histórica concreta de
experiências vivas, práticas jurídicas encobertas, que utilizam continua-
mente como critério a vida na sua plenitude, com dignidade e afirmação
das condições de possibilidade de produção e reprodução desta. Enfim,
trata-se de potencializar as experiências que buscam a libertação.
Esta não é uma obra acabada: é um texto resultado de pesquisas
que busca(ra)m resgatar a cultura jurídica em sua dimensão colonial e
reprodutora da colonialidade. Trata-se de uma irrupção reflexiva que as-
sume uma postura sócio-histórica e abre possibilidades de compreensão
crítica ao pensamento jurídico regional. Deste modo, um pensamento
jurídico crítico latino-americano deve enfrentar a dialética sócio-histó-
rica entre o pluralismo e o monismo na condição da colonialidade na
América Latina.

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