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em Man'Antonio, tio do narrador, o qual lança, presente: o difícil trânsito entre as esferas indivi-
assim, suas impressões sobre a personagem: "Tal- dual e social, em que pontuam as tensões sempre
vez murmurasse, de tão dentro em si, coisas gra- conflituosas entre o privado e o público, os impe-
ves, grandes, sem som nem sentido. Ele, por de- rativos pessoais e as injunções externas, a liber-
trás de si mesmo, pondo-se de parte, em ambí- dade e o dever, o livre arbítrio e a submissão etc.
guos âmbitos e momentos, como se a vida fosse Em nossa realidade cotidiana, conhecemos mui-
ocultável (...)". (Rosa,1985, p.75). to bem esses conflitos para os quais parece não
Trata-se de uma esfera mitopoética cujos haver (ou não se quer que haja?) soluções possí-
sentidos possibilitam ao leitor dessa ficção aten- veis, conforme percebemos pelas estranhas atua-
tar para a perturbadora sintaxe entre sujeito e ções das políticas sociais.
linguagem, mas também propiciam pensarmos Entretanto, qualquer que seja o enfoque que
sobre esses "ambíguos âmbitos" como caracterís- dermos a essa problemática, seja jurídico, políti-
ticos de uma realidade que pode não ser somen- co, educacional, ético, é preciso respeitar sem-
te ficcional. pre a natureza própria de sua fonte, enquanto
O que a ficção nos mostra, e de maneira realidade ficcional habilmente construída por um
magistral, é que esse modo "ocultável" de a per- escritor extremamente atento às armadilhas do
sonagem fechar-se em seus silêncios e ausências, viver e da própria linguagem que o representa.
entregando-se naturalmente aos assombros e ra- Nossa contemporaneidade, caracterizada
zões do se-ir do viver, afirma-se como uma legíti- por toda uma pulverização em termos ontológi-
ma condição a ser respeitada, mesmo que não cos e históricos, como diversos pensadores vêm
compreendida pelos sujeitos que com ela convi- reconhecendo em seus ensaios sobre pós-moder-
vem. Por que querer entender aquele que, por nidade, respeitadas suas especificidades teóricas
sua própria natureza, se retrai ao entendimento, (desde Linda Hutcheon a Gianni Vattimo, pas-
preferindo a "senha do secreto"? Que direito te- sando por Terry Eagleton, Derrida, Lyotard, De-
mos de exigir do outro uma lógica que se iguale leuze e outros), parece não suportar mais visões
(ou convenha?) à nossa, cobrando-lhe uma raci- logocêntricas, amarradas por uma coerência sis-
onalidade que ele não é (ou não quer ser) capaz têmica forçada (e forjada) a assegurar sua legiti-
de perceber e pôr em prática? Entre esse "louco" midade ou autoridade de saber. Saber, sim, mas
que resolveu doar tudo o que tinha para os em- existindo como exercício autoconsciente de seus
pregados e se transforma, mesmo sem nada, num limites epistemológicos e agenciando o devir como
administrador, sendo de graça "deles gestor, ca- "princípio" estrutural (e por que não criativo?)
pataz, rendeiro", e os seus servos, então enrique- do discurso. Ou, se quisermos estar consonantes
cidos, mas que também fingem e continuam a à fala de Barthes, a conjugação de sabor e saber
servi-lo mesmo assim, que diferença há? Como numa prática escritural somente favorecerá os
julgar esse pacto ambíguo, simultaneamente de- poderes revolucionários sulcados pela linguagem
moníaco e divino, acordado entre senhor e es- para driblar a força dos sistemas instituídos 2. Ora,
cravo pela inversão de papéis? tal revolucionarismo, lucida e ludicamente cons-
Se a narrativa do conto revela, afinal, o es- truído pela palavra, é o que Guimarães Rosa en-
pírito de justiça que a personagem resolveu pra- genhou em sua escrita, permanentemente aber-
ticar com seu plano tramado em silêncio, que ta a novas descobertas pelas leituras que dela se
estranha justiça é essa que se faz escondida dos acercarem.
outros - "tudo procedido à quieta, sob espécie, Basta pararmos em uma passagem como:
com o industrio de silêncios, a fim de logo não se "Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fa-
espevitar todo-o-mundo em cobiça (...)" (Rosa, zia-se a si mesmo, de conta. Aos outros amasse-
1985, p. 79) - como se fosse proibido alertar ao os — não os compreendesse." (Rosa, 1985, p.80),
mundo sobre a necessidade de se respeitarem os para podermos fruir um construto narrativo em
direitos uns dos outros? que o "fazer de conta" não é mero pretexto para
Como se vê, "Nada e a nossa condição" é a ficção, mas uma estratégia incorporada ao seu
um conto que, mesmo distante de nós há quase fazer, espaço em que pureza e astúcia se encon-
45 anos, enfoca uma situação permanentemente tram na trama arquitetada pela linguagem. É com
neologismo vai por conta de Guimarães...) a en- sejam de ordem política, jurídica ou educacio-
volver Tio Man' Antonio que, conforme conclui nal. Mas, diferentemente da ficção, em que o
narrador, "como Destinado se convertera" simulacro e a simulação são fundamentais en-
(Rosa, 1985, p.82); ou seja, não é preciso deso- quanto construto e gesto artísticos, na realidade
cultar as razões, evidentes em sua secreta singu- social essas táticas sempre surtem efeitos dano-
laridade, de uma existência que fez da relação sos para o mais fraco, impotente para reagir (e,
eu x outro um verdadeiro enigma, portanto, a ser muitas vezes, até mesmo perceber) à manipula-
preservado, jamais revelado. E é exatamente essa ção de que é objeto. O "fazer de conta", como é
luz a um só tempo brilhante e opaca que se meta- insistentemente mencionado no conto de Gui-
foriza na chama a arder no incêndio. Se este foi marães Rosa, pode até funcionar, desde que am-
intencional ou acidental não importa, porque o bas as partes envolvidas na trama estejam cons-
que deveria se consumar já se cumpriu, aos olhos cientes da simulação posta em jogo pelos dois la-
atônitos de todos que assistem ao estranho espe- dos; caso contrário, estará se reafirmando apenas
táculo, onde, mais uma vez, o diabólico e o divi- lado do mais forte, cuja competência é assegu-
no conciliam suas forças: "mulheres se ajoelha- rada por aparelhos montados para protegê-lo.
vam, e homens que pulando gritavam, sebestos, Quer se chame a esses aparelhos autoridade, tra-
diabruras, aos miasmas, indivíduos. De cara no dição, poder, convenção, ordem, segurança, to-
chão se prostraram, pedindo algo e nada, preci- dos confluem para um mesmo resultado: a nega-
sados de paz." (Rosa, 1985, p. 82). ção da afirmação do outro, que se vê traído em
seus direitos.
Trata-se de uma cena em que o belo convi-
ve com o horrível, lembrando a concepção ro- Talvez seja por isso que buscamos nos refu-
mântica do grotesco cunhada por Victor Hugo 4, giar no espaço literário, porque, por mais que este
um momento em que o episódio faz aflorar aquilo se caracterize pelo invisível ou o obscuro do indi-
que as cinzas apagariam: a justiça e a bondade se zível, confinado com a morte, como nos mostra
fundem, "se queimam", juntamente com o indi- Maurice Blanchot comparando o escritor à figu-
vidualismo autoritário. ra órfica em busca de seu desejo 5, é sempre mais
confortável essa esfera que nos dispensa de um
Fica difícil julgar a atitude da personagem engajamento necessário, suicida. Podemos acei-
em relação ao meio que o serve, porque entre a tar o pacto ficcional, sabendo tratar-se tudo de
consciência de um e a inconsciência do(s) uma ilusão e, mesmo que sejamos cúmplices da
outro(s) não há limites precisos, nem declarados; trama montada, não sairemos tão machucados
tudo se passa como se houvesse um acordo implí- quanto na vida real. Nesta, não há nenhuma fi-
cito, vivido no "transclaro, sempre com um fun- gura simbólica (Orfeu ou outro qualquer mito)
do de engano, em seus ocultos fundamentos." para nos apoiar ou confortar, porque vivemos sem-
(Rosa,1985, p.80). Aqui fica uma margem para pre a nossa história, feita de enfrentamentos re-
preenchermos com questionamentos, não mais ais e irreversíveis.
direcionados ao universo literário criado por
Se, na obra de Guimarães (já consolidada
Guimarães, mas sim à realidade que vivemos em
pelo permanentemente atual romance Grande
nosso mundo contemporâneo.
sertão: veredas, apesar dos seus cinqüenta anos)
A tática de ocultamento, por mais criativa trama-se um jogo bem arquitetado para criar a
e produtiva que seja no espaço da criação literá- indefinição ambígua entre eu e outro, inocência
ria em sua relação com o leitor, onde o simbólico e malícia, bem e mal, bem como outros tantos
adquire papel preponderante, não serve à reali- antagonismos, é porque essa dinâmica tensiva
dade pragmática, sobretudo nas relações sociais faz parte das relações humanas. Qualquer que
em que deveriam ter prioridade os direitos hu- seja o espaço em que estas se desenrolem, os
manos. Sabemos o quanto as astúcias de mani- ((
amenos âmbitos" e os "cimos" do horizonte ser-
pulação estão presentes em nossa cultura, valen- tanejo ou a amplitude complexa das cidades, os
do-se dos mais diversos (e cruéis) meios para a sobressaltos e os "crespos do homem" fazem parte
obtenção dos efeitos desejados, desde a midia daquilo que o narrador rosiano define insisten-
publicitária, passando por outros veículos de co- temente como "viver é muito perigoso". Nesse
munciação e chegando a sistemas institucionais, sentido, sua ficção espelha, de modo primoroso,
sombro, tal como a personagem Riobaldo, ao des- Victor Hugo define as relações entre poesia e religião, como
também as categorias que regem a criação poética, destacando a
crever sua fatal descoberta: "Diadorim era mu-
mescla do sublime com o grotesco e o jogo de sombra e luz
lher como o sol não acende a água do rio Uru- como fundamentais ao espírito religioso ligado à arte.
cuia, como eu solucei meu desespero." (Rosa, 'Refiro-me especificamente a 'O espaço literário, obra em que o
1956, p.453). A revelação de uma identidade, autor desenvolve esse e outros temas dele desdobrados e relaci-
que se ocultara com intensa e íntima entrega ao onados à experiência da escrita.
com seu sentimento, mas para isso precisamos estar . Aula. São Paulo: Cultrix, 1978.
abertos às trocas inter-subjetivas, o que parece BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte:
UFMG, 1998.
se tornar cada vez mais difícil no mundo globali-
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro:
zado. É que um dos conceitos-chaves para essa Rocco,1987.
dinâmica — a tolerância — apenas figura como BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2 ed.,
pressuposto teórico, distante das práticas efeti- São Paulo: Cultrix,1979.
vas do real, conforme ilustra muito bem a tese de CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. Tolerância e seus limites.
Clodoaldo Meneguello Cardoso a esse respeito. São Paulo: Edunesp, 2003.