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O lugar de todos: uma terceira margem?

A quem e de quem os fundos perigosos do mundo Maria Heloísa Martins Dias*


e os às-nuvens pináculos dos montes?
(Guimarães Rosa)

Em seu conto "Nada e a nossa condição",


Resumo:
de Primeiras Estórias (1962), Guimarães Rosa co- O presente - artigo .:toma corri& ponto
loca na voz da personagem narradora o questio- de partida aficçao de5uimarães Rosa,
namento acima, funcionando aqui como epígra- especialmente
fe, mas também como mote para reflexões sobre !NadaleTarpo44'CirdiakdYi ícént°s:
meiras Estórias (1 962), para serem
esse difícil lugar a ser ocupado pelo homem, e C1.1 .qt.!9 stões relatiVas
,,,,, ,:keiósribisia-
em especial, pela linguagem que o re-configura. humana no que concerne as suas rêla
çogs com o Méió'Cú6i'ar'às'i- '''''
A insólita pergunta que brota da ficção des- As' estratégias '4'"°es
na rra-
se grande romancista brasileiro interessa-nos jus- tivas ,pósta,sriia„,escritura de Rosa não
tamente por sua singularidade, contida não ape- apenas eVidenCiárn!.:SinOlal'ida'clda
difícil ''Sintaire'éTitre o s“újéitóe' lin-
nas na forma inusitada de sua construção (traço guagem, corno também funcionam em
inequívoco da escrita de Rosa), mas também por- homologi'afCórine.eani;inós sociais,
que tal estranheza espelha outra — a que se situa possibilitandci um curioso espelha-
mento entre 'e•S'e•-S'*(AiZre-V•S'ci. O desta-
na realidade sócio-cultural — com a qual man- escrita
fque d:c1,ó,a ,-fórm p !eczoane
tém, assim, uma relação Por homologia. É aí que o :;,79,, jogo tensiN:(7)":›énil'
insólito começa a ter suas "razões" ou a receber justiça e'injustiç a
sinais de uma outra lógica, sagazmente montada o, sensível e âPiritual
por esse construtor de signos e fábulas. Por outras permite . êncaMinfiag'aS "r'éleir'á•e,•'.P/ ara
s'
palavras, e em sintonia com o pensamento de Homi ur,p,:in,!?ito mais amplo,,ex,terio-rlao
Bhabha, em O local da cultura, "é colocando a vio- i'.rerso literário -nossa realidade
contemporanea- espaço em que níam io--
lência do signo poético no interior da ameaça de fiómem"
violação política que podemos compreender os e o,-?.vi„V":eri'rriuito perigoso
poderes da linguagem." (Bhabha, 1998, p.9'7) %a:,i,ópeivarrador da ficção' de Gui-
marães Rosa.
No caso da escrita de Guimarães, a viola- 1),apyra„! ;;Çt!ay: Guimarães Roa,
ção é seu ponto de partida, o que significa assu-
mir uma posição em que a marginalidade jamais
é absoluta, porque trabalhada pelo seu confronto
com as outras margens, as raízes fundas e arcai-
cas, retirando-as dos lugares imóveis (e previsí-
veis) para reinventar suas funções. Eis o poder
desafiador de sua concepção, tanto da narrativa
quanto das contaminações mútuas entre litera-
tura e realidade cultural.
* Unesp/Ibilce/São José do Rio Preto. E-mail: mheloisadias@uol.com.br

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Entretanto, não é o ficcionista brasileiro que de existir — principalmente — vestido de funesto
quero colocar em primeiro plano; o exemplo de e intimado de venturoso". (Rosa,1985, p. 77).
sua obra apenas vem ajudar a iluminar um qua- Ora, essa sobreposição de apego encantado ao
dro mais amplo em que se insere a problemática que foi e consciência infeliz (funesta) de sua per-
da condição humana, verdadeiro objeto a ser da concretiza-se na linguagem do narrador rosi-
abordado. Entretanto, é significativo tomara "re- ano, "vestida", tal como a personagem, de im-
mexida história" do conto para analisar, pois pa- previsíveis combinações.
rece-me instigadora de caminhos convergentes Talvez seja o momento de recuperarmos o
para o debate, dentro e fora dos textos literários, enredo que figura no conto, aqui rapidamente
sobre a estranha "lógica" que move as ações hu- condensado: Tio Man'Antonio, assim menciona-
manas nas relações inter-subjetivas. do pela personagem narradora, é dono de uma fa-
Se acreditamos, em conformidade com o zenda imensa e isolada no alto de uma montanha,
que vêm propondo as lúcidas colocações de Homi conseguida não por herança mas por compra, onde
Bhabha, que o verdadeiro lugar da cultura só pode vivia com a mulher, Tia Liduína. Cercado por
ser compreendido em nosso processo histórico muitos servos e "gente indígena" que ali estancia-
atual por uma perspectiva capaz de eliminar as vam, ele cultiva total quietude e isolamento. Após
posições centrais e absolutas, então a mobilidade a morte da mulher, começa a arquitetar secreta-
ou deslocamento dos valores sedimentados é ex- mente um projeto: limpar toda a área da fazenda,
tremamente fértil para se poder redimensionar o valorizá-la com a alta do preço do gado e transfor-
espaço das relações entre os sujeitos, sejam ficci- mar seu aspecto original, assim apagando a me-
onais ou históricos. mória que o ligava à mulher e ao passado. O plano
O afastamento e a perda das especificida- se conclui, com a doação por escrito de todas as
des de "classe" ou "gênero", característicos da suas terras aos vaqueiros, servos, criados, enfim,
época pós-moderna, gera a necessidade de mu- todos os empregados que para ele trabalhavam, e,
dança de expectativa com relação às identida- para enganar as filhas, fingia que vendia seus bens
des e ao seu lugar histórico, de modo que estas com o lucro obtido pelos negócios. Apenas ficou
deixam de existir como realidades insuladas em com a sede da fazenda, permanecendo ali mesmo
estatutos próprios e auto-suficientes. Nada mais tendo perdido tudo. Um dia encontraram-no morto
avesso à dinâmica social do que o cultivo de uma na rede, prepararam seu velório, mas à noite a casa
auto-imagem a se impor como realidade neces- incendiou-se, sem explicação, reduzindo a cinzas
sária, porque tal egotismo não só dificulta uma velho e a casa.
percepção mais isenta e clara de si mesmo, o que Evidentemente, não é a seqüência de fatos
demanda distanciamento, como também impede em si mesma que ganha relevo na narrativa, mas
as trocas entre o eu e o outro, necessárias para que ela propicia enquanto espaço de lingua-
um conhecimento mútuo. O resultado desse nar- gem ou textualidade capaz de engendrar as for-
cisismo ou ótica centralizadora com que o eu se mas produtoras de sentido para esses fatos e per-
foca é uma existência irreal, porque dividida sonagens. E, mais ainda no nosso caso, interessa-
entre o que foi e o que poderia ou gostaria de ter nos perceber como esses sentidos confluem para
sido, sem conseguir superar a força do passado tema central a ser discutido — a condição hu-
nem entender os apelos do presente; uma exis- mana e o jogo das suas relações com o meio só-
tência, afinal, cuja razão de ser o ensaísta portu- cio-cultural.
guês Eduardo Lourenço (1991), ao refletir sobre A ficção de Guimarães Rosa, especialmen-
a cultura portuguesa, define como "era o termos te nos contos, tem como um de seus paradigmas
sido", num feliz aproveitamento do famoso verso a colocação em cena de personagens dotados de
de Fernando Pessoa, "fui-o outrora agora". E, as- poderes mágicos, sensações e comportamentos
sim, reencontramos na personagem do conto de incomuns, que atendem a uma lógica própria ou
Guimarães essa mesma estranha sensação, que a modos pré-lógicos de pensamento, conforme a
somente a fala enviesada do discurso narrativo crítica já apontou extensamente 1. No conto em
pode traduzir: "Realmente, reto Tio Man' Antô- questão, esse alheamento e reclusão numa fala/
nio se semelhasse, agora, de ter sido e vir a ser. E escuta distantes do mundo cotidiano mostra-se

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O lugar de todos: uma terceira margem?

em Man'Antonio, tio do narrador, o qual lança, presente: o difícil trânsito entre as esferas indivi-
assim, suas impressões sobre a personagem: "Tal- dual e social, em que pontuam as tensões sempre
vez murmurasse, de tão dentro em si, coisas gra- conflituosas entre o privado e o público, os impe-
ves, grandes, sem som nem sentido. Ele, por de- rativos pessoais e as injunções externas, a liber-
trás de si mesmo, pondo-se de parte, em ambí- dade e o dever, o livre arbítrio e a submissão etc.
guos âmbitos e momentos, como se a vida fosse Em nossa realidade cotidiana, conhecemos mui-
ocultável (...)". (Rosa,1985, p.75). to bem esses conflitos para os quais parece não
Trata-se de uma esfera mitopoética cujos haver (ou não se quer que haja?) soluções possí-
sentidos possibilitam ao leitor dessa ficção aten- veis, conforme percebemos pelas estranhas atua-
tar para a perturbadora sintaxe entre sujeito e ções das políticas sociais.
linguagem, mas também propiciam pensarmos Entretanto, qualquer que seja o enfoque que
sobre esses "ambíguos âmbitos" como caracterís- dermos a essa problemática, seja jurídico, políti-
ticos de uma realidade que pode não ser somen- co, educacional, ético, é preciso respeitar sem-
te ficcional. pre a natureza própria de sua fonte, enquanto
O que a ficção nos mostra, e de maneira realidade ficcional habilmente construída por um
magistral, é que esse modo "ocultável" de a per- escritor extremamente atento às armadilhas do
sonagem fechar-se em seus silêncios e ausências, viver e da própria linguagem que o representa.
entregando-se naturalmente aos assombros e ra- Nossa contemporaneidade, caracterizada
zões do se-ir do viver, afirma-se como uma legíti- por toda uma pulverização em termos ontológi-
ma condição a ser respeitada, mesmo que não cos e históricos, como diversos pensadores vêm
compreendida pelos sujeitos que com ela convi- reconhecendo em seus ensaios sobre pós-moder-
vem. Por que querer entender aquele que, por nidade, respeitadas suas especificidades teóricas
sua própria natureza, se retrai ao entendimento, (desde Linda Hutcheon a Gianni Vattimo, pas-
preferindo a "senha do secreto"? Que direito te- sando por Terry Eagleton, Derrida, Lyotard, De-
mos de exigir do outro uma lógica que se iguale leuze e outros), parece não suportar mais visões
(ou convenha?) à nossa, cobrando-lhe uma raci- logocêntricas, amarradas por uma coerência sis-
onalidade que ele não é (ou não quer ser) capaz têmica forçada (e forjada) a assegurar sua legiti-
de perceber e pôr em prática? Entre esse "louco" midade ou autoridade de saber. Saber, sim, mas
que resolveu doar tudo o que tinha para os em- existindo como exercício autoconsciente de seus
pregados e se transforma, mesmo sem nada, num limites epistemológicos e agenciando o devir como
administrador, sendo de graça "deles gestor, ca- "princípio" estrutural (e por que não criativo?)
pataz, rendeiro", e os seus servos, então enrique- do discurso. Ou, se quisermos estar consonantes
cidos, mas que também fingem e continuam a à fala de Barthes, a conjugação de sabor e saber
servi-lo mesmo assim, que diferença há? Como numa prática escritural somente favorecerá os
julgar esse pacto ambíguo, simultaneamente de- poderes revolucionários sulcados pela linguagem
moníaco e divino, acordado entre senhor e es- para driblar a força dos sistemas instituídos 2. Ora,
cravo pela inversão de papéis? tal revolucionarismo, lucida e ludicamente cons-
Se a narrativa do conto revela, afinal, o es- truído pela palavra, é o que Guimarães Rosa en-
pírito de justiça que a personagem resolveu pra- genhou em sua escrita, permanentemente aber-
ticar com seu plano tramado em silêncio, que ta a novas descobertas pelas leituras que dela se
estranha justiça é essa que se faz escondida dos acercarem.
outros - "tudo procedido à quieta, sob espécie, Basta pararmos em uma passagem como:
com o industrio de silêncios, a fim de logo não se "Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fa-
espevitar todo-o-mundo em cobiça (...)" (Rosa, zia-se a si mesmo, de conta. Aos outros amasse-
1985, p. 79) - como se fosse proibido alertar ao os — não os compreendesse." (Rosa, 1985, p.80),
mundo sobre a necessidade de se respeitarem os para podermos fruir um construto narrativo em
direitos uns dos outros? que o "fazer de conta" não é mero pretexto para
Como se vê, "Nada e a nossa condição" é a ficção, mas uma estratégia incorporada ao seu
um conto que, mesmo distante de nós há quase fazer, espaço em que pureza e astúcia se encon-
45 anos, enfoca uma situação permanentemente tram na trama arquitetada pela linguagem. É com

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essas armas — simplicidade e malícia — que a per- Antonio em transformar totalmente o espaço da
sonagem do conto consegue enganar o viver, di- fazenda, desbastando as matas e retirando as
gamos, enfrentando o árduo jogo da convivência marcas conhecidas e já vividas com a mulher, não
com o outro. Não seria com essas mesmas armas mais presente. É como se retirando concretamente
que poderíamos também tentar o convívio com os vestígios de uma paisagem já desgastada, a
nosso semelhante? Quando tudo nos convida à personagem arrancasse essa história passada para
vida em relação ou, conforme se perguntam os plantar novos caminhos, o que não deixa de in-
versos de Drummond, no poema "Mineração do comodar as filhas, apegadas à ótica conservado-
outro" - "Viver-não, viver-sem, como viver / sem ra: "Se não seria aquilo arrefecido sentimento,
conviver, na praça dos convites?" — (Andrade, pecar contra a saudade?" (Rosa, 1985, p.'7'7) —
1983, p.378), de que modo atender aos apelos elas se perguntam.
simultâneos de entrega ao outro e defesa de nos- Parece que a personagem rosiana se com-
sa individualidade? Ou, ainda, como se inquieta porta de modo análogo ao eu poético de Drum-
o eu lírico de Fernando Pessoa, "Ah, poder ser mond (voltemos ao nosso poeta) que, em "A má-
tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E quina do mundo", confessa estar com as "pupilas
a consciência disso!" (Pessoa, 1976, p.144). En- gastas na e árdua inspeção / contínua e dolorosa
fim, que limites há entre a consciência que te- do deserto"(Andrade,1983,p.303). Mas, então
mos de nosso papel no mundo perante a nós mes- divergindo da figura drummondiana, desencan-
mos e aos outros, e nossos desejos mais impulsi- tada com esse cansaço que a faz desistir de aco-
vos de atender às nossas demandas individuais? lher a oferta da máquina do mundo, a persona-
Evidentemente não há respostas definitivas gem de Guimarães não recua em seu plano de
nem receitas confortáveis para esse impasse, ao re-configurar o espaço rural, tentando conven-
qual não pretendo dar uma solução com estas cer as filhas da saudável mudança: "Mostrou-lhes:
reflexões. Apenas estou aproveitando a via aber- lá os campos em desdobra — o que limpo, livre, se
ta pela ficção de Guimarães Rosa, conferindo estendia, em quadro largo, sem sombrios, aberta
certa amplitude aos caminhos por ela traçados e, a paisagem — o descampado airado e verde, ao
assim, buscando possíveis leituras de nosso mun- mais verde grau, os capins naquela vivacidade."
do, não o do sertão universal edificado pelo es- (Rosa,1985, p.77).
critor, mas este não menos cruel e contraditório Na verdade, porém, esse desejo de transfor-
mundo civilizado da sociedade contemporânea. mar o presente num lugar expandido e ex-cên-
Há um interessante conceito proposto por trico, o que significaria abrir-se a margens des-
Homi Bhabha, em sua obra já citada (1994), de- conhecidas e arriscadas, sem limites, não apon-
finido como "unhomeliness", termo cuja tradu- ta, no conto, para um descondicionamento efeti-
ção —"desfamiliarização" — recupera o conceito- vo, como o desenrolar da narrativa irá mostrar.
chave cunhado por Chklóvski para falar sobre o Mesmo tendo alterado o cenário exterior, a per-
procedimento artístico 3. À parte esse possível sonagem não só permanece no lar (a Casa da fa-
diálogo com o formalismo, o que interessa a Bha- zenda intocável), como também continua a as-
bha é assinalar a sensação de estar estranho ao sumir, ficticiamente, o posto de senhor a "vigiar"
lar, "unhomed", como vital para os processos in- os empregados. O corte com o passado, afinal, é
terculturais e extraterritoriais, na medida em que enganoso, pois o sujeito trai a si mesmo, amarra-
propicia o descondicionamento dos recessos do do na força das convenções enraizadas em sua
espaço doméstico, sempre alienantes. Enfim, o identidade. Talvez seja por isso que é preciso
que o conceito preconiza é o distanciamento com queimá-lo, ao homem e à casa, como acontece
relação ao conhecido, seja este uma dimensão no final. O incêndio se deu sem explicação, diz o
temporal ou espacial, que solicita de nós o afas- narrador, como muitos acontecimentos da narra-
tamento, sempre fértil, porque edificador de no- tiva de Rosa, que ficam suspensos na sua aura
vas visões e sensações. Voltando à personagem mágica, mas que podem se tornar visíveis aos
do conto de Guimarães, essa "saída" de si mesmo olhos armados de perspicácia, como os do leitor
em busca de um corte com o apego a imagens do não ingênuo. A "explicação" pode estar (pode, e
passado está presente na atitude de Tio Man' não deve) nessa espécie de sina malsinada (o

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O lugar de todos: uma terceira margem?

neologismo vai por conta de Guimarães...) a en- sejam de ordem política, jurídica ou educacio-
volver Tio Man' Antonio que, conforme conclui nal. Mas, diferentemente da ficção, em que o
narrador, "como Destinado se convertera" simulacro e a simulação são fundamentais en-
(Rosa, 1985, p.82); ou seja, não é preciso deso- quanto construto e gesto artísticos, na realidade
cultar as razões, evidentes em sua secreta singu- social essas táticas sempre surtem efeitos dano-
laridade, de uma existência que fez da relação sos para o mais fraco, impotente para reagir (e,
eu x outro um verdadeiro enigma, portanto, a ser muitas vezes, até mesmo perceber) à manipula-
preservado, jamais revelado. E é exatamente essa ção de que é objeto. O "fazer de conta", como é
luz a um só tempo brilhante e opaca que se meta- insistentemente mencionado no conto de Gui-
foriza na chama a arder no incêndio. Se este foi marães Rosa, pode até funcionar, desde que am-
intencional ou acidental não importa, porque o bas as partes envolvidas na trama estejam cons-
que deveria se consumar já se cumpriu, aos olhos cientes da simulação posta em jogo pelos dois la-
atônitos de todos que assistem ao estranho espe- dos; caso contrário, estará se reafirmando apenas
táculo, onde, mais uma vez, o diabólico e o divi- lado do mais forte, cuja competência é assegu-
no conciliam suas forças: "mulheres se ajoelha- rada por aparelhos montados para protegê-lo.
vam, e homens que pulando gritavam, sebestos, Quer se chame a esses aparelhos autoridade, tra-
diabruras, aos miasmas, indivíduos. De cara no dição, poder, convenção, ordem, segurança, to-
chão se prostraram, pedindo algo e nada, preci- dos confluem para um mesmo resultado: a nega-
sados de paz." (Rosa, 1985, p. 82). ção da afirmação do outro, que se vê traído em
seus direitos.
Trata-se de uma cena em que o belo convi-
ve com o horrível, lembrando a concepção ro- Talvez seja por isso que buscamos nos refu-
mântica do grotesco cunhada por Victor Hugo 4, giar no espaço literário, porque, por mais que este
um momento em que o episódio faz aflorar aquilo se caracterize pelo invisível ou o obscuro do indi-
que as cinzas apagariam: a justiça e a bondade se zível, confinado com a morte, como nos mostra
fundem, "se queimam", juntamente com o indi- Maurice Blanchot comparando o escritor à figu-
vidualismo autoritário. ra órfica em busca de seu desejo 5, é sempre mais
confortável essa esfera que nos dispensa de um
Fica difícil julgar a atitude da personagem engajamento necessário, suicida. Podemos acei-
em relação ao meio que o serve, porque entre a tar o pacto ficcional, sabendo tratar-se tudo de
consciência de um e a inconsciência do(s) uma ilusão e, mesmo que sejamos cúmplices da
outro(s) não há limites precisos, nem declarados; trama montada, não sairemos tão machucados
tudo se passa como se houvesse um acordo implí- quanto na vida real. Nesta, não há nenhuma fi-
cito, vivido no "transclaro, sempre com um fun- gura simbólica (Orfeu ou outro qualquer mito)
do de engano, em seus ocultos fundamentos." para nos apoiar ou confortar, porque vivemos sem-
(Rosa,1985, p.80). Aqui fica uma margem para pre a nossa história, feita de enfrentamentos re-
preenchermos com questionamentos, não mais ais e irreversíveis.
direcionados ao universo literário criado por
Se, na obra de Guimarães (já consolidada
Guimarães, mas sim à realidade que vivemos em
pelo permanentemente atual romance Grande
nosso mundo contemporâneo.
sertão: veredas, apesar dos seus cinqüenta anos)
A tática de ocultamento, por mais criativa trama-se um jogo bem arquitetado para criar a
e produtiva que seja no espaço da criação literá- indefinição ambígua entre eu e outro, inocência
ria em sua relação com o leitor, onde o simbólico e malícia, bem e mal, bem como outros tantos
adquire papel preponderante, não serve à reali- antagonismos, é porque essa dinâmica tensiva
dade pragmática, sobretudo nas relações sociais faz parte das relações humanas. Qualquer que
em que deveriam ter prioridade os direitos hu- seja o espaço em que estas se desenrolem, os
manos. Sabemos o quanto as astúcias de mani- ((
amenos âmbitos" e os "cimos" do horizonte ser-
pulação estão presentes em nossa cultura, valen- tanejo ou a amplitude complexa das cidades, os
do-se dos mais diversos (e cruéis) meios para a sobressaltos e os "crespos do homem" fazem parte
obtenção dos efeitos desejados, desde a midia daquilo que o narrador rosiano define insisten-
publicitária, passando por outros veículos de co- temente como "viver é muito perigoso". Nesse
munciação e chegando a sistemas institucionais, sentido, sua ficção espelha, de modo primoroso,

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as contradições próprias do homem em seu meio Embora, como reconhece o autor, a tolerância
cultural, com a diferença (e nada pequena!) de devesse atender à própria diversidade dos estra-
que esse "espelho" é um simulacro, o que garan- tos sociais e culturais, há uma cultura dominan-
te a autonomia de seu fazer artístico. te cuja hegemonia dificulta o exercício demo-
Já no outro espaço, o da realidade empíri- crático desse princípio. Entretanto, é necessário
ca, onde o ilusionismo e outras táticas de masca- reverter tal quadro, pois a tolerância "leva em
ramento são sempre traiçoeiras, pois nos distan- consideração não apenas os direitos humanos ci-
ciam dos objetos concretos e nos levam a perdas, vis, políticos e culturais, fundados na liberdade
não há como ficar fruindo a estesia ou imergindo de expressão, mas os socioeconômicos que expres-
em abstrações; a práxis social sempre nos devol- sam a dignidade humana pelo princípio da igual-
ve a uma paisagem realista, em que os valores dade." (Cardoso, 2003, p.146).
precisam ser percebidos em seus contornos níti- Infelizmente, a realidade tem mostrado que
dos e as ações, realizadas com envolvimentos le- é melhor voltarmos o rosto para a ficção, espaço
gítimos. Isso não significa a afirmação de postu- mais confortável, onde a resposta possível para
lados moralistas ou o apego a estereótipos, pois o essa perplexidade seja mesmo a palavra enigmá-
que esses moldes acabam legitimando é o saber tica do narrador rosiano, na abertura de Grande
institucionalizado, conforme nos ensina a "aula" Sertão: Veredas: "Nonada.".
barthesiana, ao defender a aventura pelos pode-
res deslizantes da escritura — essa margem sub-
Notas:
versiva e criativa da linguagem. Mesmo sem ace-
dermos totalmente ao radicalismo sedutor do ' Alfredo Bosi, dentre outros críticos brasileiros, destacou esse
aspecto da ficção rosiana, ao aproximar essa inusitada forma de
pensamento de Barthes, é possível conjugar pai- pensamento das personagens ao pensamento mítico, em que se
xão e crítica na prática de leitura do mundo. interpenetram os planos do sensível e espiritual, acentuando-se
Dentro e fora da literatura, o que está em foco é manifestações como a loucura, o sonho, a psique infantil. (His-
tória concisa da literatura brasileira).
sempre o sujeito, instância complexa e cada vez
Ver, especialmente nesse aspecto, suas obras Aula e O prazer do
mais inacessível à nossa aparelhagem conceitu-
texto, indicadas nas referências bibliográficas no final deste artigo.
ai, o que deveria valer como estímulo e não de-
O ensaio em que se encontra esse conceito é "A arte como
sistência, na medida em que agencia possibilida- procedimento", em Teoria da Literatura — forrnalistas russos, edi-
des sempre renovadas de compreensão. Mesmo ção citada nas referências bibliográficas no final deste artigo.
que seja para toparmos, a cada passo, com o as- 4 Conceito contido no prefácio de Cromwell, de 1827, em que

sombro, tal como a personagem Riobaldo, ao des- Victor Hugo define as relações entre poesia e religião, como
também as categorias que regem a criação poética, destacando a
crever sua fatal descoberta: "Diadorim era mu-
mescla do sublime com o grotesco e o jogo de sombra e luz
lher como o sol não acende a água do rio Uru- como fundamentais ao espírito religioso ligado à arte.
cuia, como eu solucei meu desespero." (Rosa, 'Refiro-me especificamente a 'O espaço literário, obra em que o
1956, p.453). A revelação de uma identidade, autor desenvolve esse e outros temas dele desdobrados e relaci-
que se ocultara com intensa e íntima entrega ao onados à experiência da escrita.

longo da narrativa, atua como mais uma das ar-


madilhas diabólicas do destino, porém não elimi- Referências Bibliográficas:
na, antes evidencia ainda mais, a força do senti-
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. vol. único,
mento como móvel das ações humanas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, p.303-305, 377-378.
O que se espera, tanto na ficção quanto na BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo:
realidade, é que o sujeito possa nos convencer Perspectiva, 1977.

com seu sentimento, mas para isso precisamos estar . Aula. São Paulo: Cultrix, 1978.
abertos às trocas inter-subjetivas, o que parece BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte:
UFMG, 1998.
se tornar cada vez mais difícil no mundo globali-
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro:
zado. É que um dos conceitos-chaves para essa Rocco,1987.
dinâmica — a tolerância — apenas figura como BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2 ed.,
pressuposto teórico, distante das práticas efeti- São Paulo: Cultrix,1979.
vas do real, conforme ilustra muito bem a tese de CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. Tolerância e seus limites.
Clodoaldo Meneguello Cardoso a esse respeito. São Paulo: Edunesp, 2003.

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O lugar de todos: uma terceira m

HUGO, Victor. Pref. de Cromwell. Critique. Paris: Robert


Laffond, 1985, v.II, p.9
Abstract:
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Dom
Quixote, 1991. This paper adresses Guimarães Rosa'
s fiction, mai*the short story entitled
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio deJaneiro: Nova "Nada e a nossa condição": (Primei-
Aguilar,1976. ras estóri:73:196), in. order to: exami-
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de ne some issues concerning th:é human
Janeiro: José Olympio, 1956. condition. The analysis focusés on'the
relationship: between mar] and the cul-
. Primeiras estórias. 20 ed., Rio deJaneiro: Nova
tural :, ertVironment ,• and :the
Fronteira,1985:
intersubjeçtive tenSions that re-sult
VÁRIOS. Teoria da literatura formalistas russos. Porto Alegre: from this 'contact. Th'e nár.rative'
Globo, 1973. techniques' used 1:; -, Rosa ri'ot Only:
emphásize the singularity - of the
syritaX between rnan and language,
byt are alsO hornologous with sPcial
functions.-,The :consequence of the
interáctión between 'these • two:
univerSes is a Very curious parallel.
Th-rough this signific-ant role giien to
fórrn,'it is possible to sho'W how-Rosa
Z
I

s,writing': de-áls :with te:nsiónál


binarisrns,,such -as purity and,rnalice,
gOodrálttl),,vil, justice and injustice,
senSiti-VérieSS. and spirituality, tree 'will,
and duty, and others oppãsitio-ns.,This-
study leads the discuSsion to á broader
spectrum, beYond the literary .
'
_
t
approach, which is contemporary
reálity:,This- is the sPace whe-re Rosa's
narrator mentions as "os . crespos do
, , ,
homem' , which, exists
, and, points Out
other contingencies.,-- of humant -
,
condition. '
Keyvvords: Guimarães Rosa, narrative
,
techniques,'culture, society.'
,

teragir: Pensando a Extensão, Rio de Janeiro, n. 7, p. 155-161, jan./jul. 2005 161

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