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VII Congresso Nacional da FEPODI


“Pós-graduação, Universidade e Pesquisa”

A Federação Nacional de Pós-Graduandos em Direito – FEPODI e a


Universidade Presbiteriana Mackenzie, realizaram nos dias 05 e 06 de dezembro de
2010 o VII Congresso Nacional da FEPODI, na cidade de São Paulo-SP, tendo por
objetivos: I - Divulgar as atividades de pesquisa realizadas pelos alunos dos Programas
e de Pós-Graduação e Graduação das Instituições de Ensino Superior do país, bem
como por docentes pesquisadores; II - Promover a integração ensino-pesquisa-
extensão entre os corpos discente e docente, no âmbito da Graduação e Pós-
Graduação; III - Incentivar o intercâmbio com pesquisadores das mais diversas
Instituições de Ensino Superior.
Foram 298 trabalhos submetidos ao evento, os quais passaram por dupla
avaliação cega, sendo que 260 trabalhos foram aprovados para apresentação no
evento, dos quais 209 foram apresentados nos 20 Grupos de Trabalhos: 102 trabalhos
no dia 05 de dezembro e 107 trabalhos apresentados no dia 06 de dezembro. Os
trabalhos aprovados foram submetidos por graduandos, pós-graduandos e professores
de diversas Instituições de Ensino Superior de todas as regiões do Brasil, na proporção
de: 61% Sudeste; 22% Centro-oeste; 8% Norte; 6% Nordeste e; 3% Sul.
Participaram como autores(as) 143 graduandos(as), 27 graduados(as), 74
mestrandos(as), 21 mestres(as), 26 doutorandos(as) e 7 doutores(as); como
coautores(as) participaram 72 graduandos(as), 12 graduados(as), 31 mestrandos(as),
22 mestres(as), 12 doutorandos(as) e 23 doutores(as).
Participaram da avaliação dos trabalhos 40 Professores Doutores ligados às
principais instituições de ensino do país, sendo elas: Mackenzie, CESUBE, UNIMAR,
UNICURITIBA, UFMS, estas na correalização do evento, além de professores ligados a
outras instituições como: PUC-SP; UNISAL; UNINOVE; USP-SP; USP-RP; FMU;
UNESP; EPD; UNIFIEO; UNIVALE; ESDHC; UFSC.
Estiveram ligadas ao evento ainda instituições como: Conselho Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI e; Associação Nacional de Pós-
Graduandos – ANPG.
Estiveram na Abertura do Evento Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto –
Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Prof. Dr.
Orides Mezzaroba – Presidente do CONPEDI; Prof. Me. Yuri Nathan da Costa Lannes
– presidente da FEPODI e; Profa. Flávia Calé – presidente da ANPG.
No encerramento do evento ainda foi eleita a nova diretoria da FEPODI para os
anos 2020-2022; tendo como nova presidente a Profa. Me. Sinara Lacerda.
Nestes anais temos a honra de apresentar os trabalhos aprovados e
apresentados nos Grupos de Trabalhos no VII Congresso Nacional da FEPODI –
Mackenzie, “Pós-Graduação, Universidade e Pesquisa”.
Esperamos que todos possam aproveitar a leitura.

Felipe Chiarello de Souza Pinto


Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Yuri Nathan da Costa Lannes


Ex-Presidente da FEPODI

ISBN: 978-65-00-00047-4
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COORDENAÇÃO GERAL
Arthur Bezerra de Souza Junior (Mackenzie/UNINOVE)
Caio Augusto Souza Lara (Dom Helder Câmara/UFMG)
Elisângela Volpe dos Santos (ANPG)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (Mackenzie)
Livia Gaigher Bosio Campello (UFMS)
Mariana Ribeiro Santiago (UNIMAR)
Marianny Alves (UFMS)
Stephanie Dettmer Di Martin Vienna (UNINOVE)
Tais Ramos (Mackenzie/UNINOVE)
Valter Moura do Carmo (UNIMAR)
Vladmir Oliveira da Silveira (UFMS)
Welington Oliveira de Souza Costa (UFMS)
Yuri Nathan da Costa Lannes (FEPODI/Mackenzie)

ORGANIZADORES
Ana Carolyne Barbosa Tutya (UFMS)
Angela Jank Calixto (UFMS)
Eduardo Buzetti Eusteaquio (UNIMAR)
Elisângela Volpe dos Santos (ANPG)
Gustavo Santiago Torrecilha Cancio (UFMS)
Hélder Marcelino (UFES)
Igor Gomes Duarte dos Santos (UFMS)
Leandro André Francisco Lima (UNINOVE)
Lucas Pires Maciel (UNIMAR)
Mariana Amaral Carvalho (UFS)
Marianny Alves (UFMS)
Roberto Kosop (UNICURITIBA)
Stephanie Dettmer di Martin Vienna (UNINOVE)
Thiago Antunes Rezende (UNINOVE)
Wagner Gundim (PUC-SP)
Wellington Oliveira Costa (UFMS)
Yasmin Dolores de Parijós Galende (Centro Universitário do Pará)
Yuri Nathan da Costa Lannes (Mackenzie)

COORDENAÇÃO CIENTÍFICA
Felipe Chiarello de Souza Pinto (Mackenzie)
Valter Moura do Carmo (UNIMAR)

CONSELHO CIENTÍFICO
Álisson José Maia Melo (UNISETI)
Elisaide Trevisam (UFMS)
Eudes Vitor Bezerra (UNINOVE)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (Mackenzie)
Fernando Gustavo Knoerr (UNICURITIBA)
Jonathan Barros Vita (UNIMAR)
Kiwonghi Sebastiam Bizawu (Dom Helder)
Leonardo José Peixoto Leal (UNIFOR/FAVILI)
Livia Gaigher Bosio Campello (UFMS)
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Luc Quonian (Université de Toulon – França)


Lucas Gonçalves da Silva (UFS)
Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva (UFS)
Mariana Ribeiro Santiago (UNIMAR)
Orides Mezzaroba (UFSC)
Rubens Beçak (USP)
Sérgio Braga (UNINOVE)
Suzana Borràs Pentina (URV – Universitat Rovira i Virgili – Espanha)
Valmir Cesar Pozzetti (UFAM/UEA)
Valter Moura do Carmo (UNIMAR)
Viviane Côelho de Sellos-Knoerr (UNICURITIBA)
Vladmir Oliveira da Silveira (UFMS)
Ynes da Silva Felix (UFMS)
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A532
Anais do VII Congresso Nacional da FEPODI [Recurso eletrônico on-line] organização
VII Congresso Nacional da FEPODI – São Paulo;

Coordenadores: Yuri Nathan da Costa Lannes e Felipe Chiarello de Souza Pinto –


São Paulo, 2019.

Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-00-00047-4
Modo de acesso: www.fepodi.org
Tema: Pós-graduação, universidade e pesquisa

1. Pós-graduação. 2. Universidade. 3. Pesquisa. I. VII Congresso Nacional da


FEPODI (1:2020 : São Paulo, SP).

CDU: 34
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Sumário

DIREITO ADMINISTRATIVO E PREVIDÊNCIA ................................................ 7


DIREITO CIVIL, EMPRESARIAL E CONSUMIDOR I ...................................... 73
DIREITO CIVIL, EMPRESARIAL E CONSUMIDOR II ................................... 132
DIREITO CONSTITUCIONAL I ...................................................................... 192
DIREITO CONSTITUCIONAL II ..................................................................... 262
DIREITO DO TRABALHO E PROCESSO DO TRABALHO ........................... 353
DIREITO E NOVAS TECNOLOGIAS ............................................................. 456
DIREITO INTERNACIONAL ........................................................................... 522
DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E PROCESSO PENAL I ........................ 590
DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E PROCESSO PENAL II ....................... 683
DIREITO POLÍTICO E ECONÔMICO ............................................................ 771
DIREITO TRIBUTARIO E PROCESSO TRIBUTARIO ................................... 867
DIREITO, EDUCAÇÃO, ARTE, LITERATURA E HERMENEUTICA .............. 949
DIREITOS DA CRIANÇA, ADOLESCENTE, IDOSO E ACESSIBILIDADE . 1041
DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E SUSTENTABILIDADE I .......... 1145
DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E SUSTENTABILIDADE II ......... 1218
DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E SUSTENTABILIDADE II ......... 1310
DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E SUSTENTABILIDADE IV ....... 1391
PROCESSO CIVIL E ACESSO À JUSTIÇA I............................................... 1477
PROCESSO CIVIL E ACESSO À JUSTIÇA II.............................................. 1558
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Grupo de Trabalho:

DIREITO ADMINISTRATIVO E PREVIDÊNCIA


Trabalhos publicados:

A UTILIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UM DIÁLOGO


SOBRE POSSÍVEIS DESENCONTROS ENTRE PRINCÍPIOS

ANÁLISE E POSSIBILIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DO INSTITUTO DO


DISPUTE BOARD EM OBRAS PÚBLICAS DE GRANDE VULTO NO ÂMBITO
NACIONAL.

APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO, E AS NOVAS REGRAS


SEGUNDO A REFORMA PREVIDENCIÁRIA

IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO PARA AS COMPRAS E


CONTRATAÇÕES PÚBLICAS TENDO EM VISTA A EFICIÊNCIA DO
PROCESSO LICITATÓRIO, COM FOCO NAS CONTRATAÇÕES E
AQUISIÇÕES REALIZADAS POR MEIO DE DISPENSA DE LICITAÇÃO, COM
BASE NO ART. 24, II, DA LEI Nº. 8.666/93

IMPRESCRITIBILIDADE DO DEVER DE RESSARCIR O ERÁRIO EM RAZÃO


DA PRÁTICA DE ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

O CONTROLE EXTERNO DAS CONTAS PÚLICAS NO BRASIL POR MEIO


PARTICIPAÇÃO POPULAR À LUZ DA LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO

O LIMBO TRABALHISTA-PREVIDENCIÁRIO: VERDADEIRO DESRESPEITO À


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

UMA ABORDAGEM DOS MODELOS DE PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS NO


BRASIL À LUZ DOS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS DA PUBLICIDADE E DA
EFICIÊNCIA
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A UTILIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UM


DIÁLOGO SOBRE POSSÍVEIS DESENCONTROS ENTRE PRINCÍPIOS
THE USE OF THE MEDIATION IN PUBLIC ADMINISTRATION: A DIALOGUE
ABOUT POSSIBLE DIVERGENCIES BETWEEN PRINCIPLES

Virginia Grace Martins de Oliveira

Resumo: Este artigo traz a problemática sobre a possibilidade de aplicação da


mediação na Administração Pública. Tal análise é motivada pela disposição
trazida pela Lei n. 13.140/15, que, embasa a mediação por meio de princípios
regentes, mas também prevê a utilização da mediação nos conflitos em que
figure como parte pessoa jurídica de Direito Público. Para tanto, a partir de
explanações doutrinárias que discutem os princípios que envolvem a
Administração Pública, o artigo analisa os princípios que regem a mediação, para
em seguida analisar os possíveis desencontros que podem ocorrer na
autocomposição de conflitos. A pesquisa utilizará a técnica de pesquisa
bibliográfica e documental e o método dedutivo de abordagem para analisar a
utilização da mediação de conflitos em que figure como parte na resolução
consensual de conflitos, a pessoa jurídica de Direito Público, um âmbito que é
embasado por princípios constitucionais específicos.
Palavras-Chave: Administração Pública. Mediação. Princípios.

Abstract: This article presents the problem about possibility of applying


mediation in Public Administration. This analysis is motivated by the disposition
of Law n. 13.140 / 15, which supports mediation through governing principles, but
also predict for the use of mediation in conflicts in which it be involved legal
person of the Public Law. Therefore, based on doctrinal explanations that discuss
the principles involving Public Administration, the article analyzes the governing
principles of the mediation, and then, analyzes the possible divergences that may
occur in the self-composition of conflicts. The research will use the bibliographic
and documentary research technique and the deductive approach method to
analyze the use of conflict’s mediation in which figure as part of the consensual
conflict resolution, the legal person of Public Law, an ambit that is based on
specific principles constitutional.
Keywords: Public Administration. Mediation. Principles.

INTRODUÇÃO

O presente estudo visa analisar a aplicação da mediação na


autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública. A motivação
para tal análise decorre da disposição constante na Lei n. 13.140/15, a Lei de
mediação, no que tange a possibilidade da utilização da mediação na
Administração Pública. A análise enfocará os possíveis desencontros entre os
princípios basilares do Direito Público, que são a saber, a legalidade e a
supremacia do interesse público sobre o particular, juntamente com um dos
princípios que regem especificamente a Administração Pública, o da eficiência,
previsto no artigo 371 da Constituição Federal de 1988 (CF/88) e os princípios

1 Apesar de existir na previsão constitucional uma gama de princípios que regem o Direito
Administrativo e por consequência a Administração Pública e todos os Poderes da República em
suas funções administrativas, o presente estudo enfocará nesta fase do desenvolvimento do
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da isonomia entre as partes, da autonomia da vontade das partes e da busca do


consenso2, que estão entre os que embasam a mediação no Brasil e são
dispostos pela Lei n. 13.140/15, a Lei de mediação.
A análise será realizada com o auxílio da doutrina jurídica, situando os
princípios no âmbito da autocomposição de conflitos de interesse.
A pesquisa utilizando-se da técnica de pesquisa bibliográfica e
documental e do método dedutivo de abordagem, analisa a utilização da
mediação de conflitos em que figure como parte a pessoa jurídica de direito
público, com o fim de verificar e debater sobre os possíveis desencontros entre
os princípios inseridos na autocomposição de conflitos nesse âmbito peculiar,
que é embasado por princípios constitucionais dirigidos propriamente ao Direito
Público e à Administração Pública.

OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Administração Pública3 especificamente é embasada por princípios que


orientam sua atuação e estão dispostos no artigo 374 da Constituição Federal de
1988. Estes princípios visam satisfazer as necessidades coletivas, visto que a
atuação Estatal se situa no ramo de Direito Público (NOHARA, 2011, p. 57). Este
ramo, por sua vez, envolve relações entre o cidadão e o Estado, que são
organizadas, por exemplo, pelas disciplinas denominadas como, Direito
Administrativo, Direito Tributário e Direito Constitucional. O Direito Público existe
simultaneamente com o Direito Privado que envolve relações entre particulares,
organizadas, por exemplo, pelos Direito Civil e Empresarial (NOHARA, 2011, p.
05).
O Direito Administrativo e por via de regra, o Direito Público são os objetos
do presente trabalho, pois a Administração Pública é um dos componentes
destes ramos, pois como menciona Irene Patricia Nohara (2011, p. 05-06), “o
Direito Administrativo é o ramo do direito público que trata de princípios e regras
que disciplinam a função administrativa e que abrange órgãos, agentes e
atividades desempenhadas pela Administração Pública na consecução do
interesse público”. Nesse sentido, entende-se que os princípios dispostos pela
CF/88 objetivam regrar a “consecução do interesse público”, pois sabe-se, que
modernamente os princípios foram alçados a condição de normas vinculantes.
E como bem aponta Irene Patricia Nohara (2011, p. 53), a respeito dos princípios,
[...] “têm caráter vinculante, cogente ou obrigatório, na medida em que

trabalho, somente os princípios, da supremacia do interesse público sobre o particular, da


eficiência e da legalidade (este como princípio que embasa o Direito Público em geral), como
resultado parcial desta pesquisa.
2 Apesar de a Lei n. 13.140/15 elencar outros princípios que serão assinalados adiante a título

de informação, este estudo dedica-se a analisar nesta fase do desenvolvimento do trabalho,


somente os princípios da busca do consenso, da isonomia entre as partes e da autonomia da
vontade das partes, como resultado parcial desta pesquisa.
3 Esta expressão será grafada neste trabalho com letras iniciais maiúsculas, pois segundo

Nohara (2011, p. 07), “Administração Pública em sentido estrito envolve apenas órgãos
administrativos no desempenho de função administrativa”. E esclarece que [...], “administração
pública”, grafada com letras iniciais minúsculas se referem ao contexto de função administrativa,
ou seja, a atividade da administração (NOHARA, 2011, p. 06 e 07).
4 Texto do artigo 37 da CF/88: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]”.
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consubstanciam a mais elevada expressão do consenso social sobre os valores


básicos a serem assegurados no Estado Democrático de Direito”.
Deste modo, entende-se que os objetos de tratamento do Direito
Administrativo são os princípios e regras que regem as atividades do Estado,
especificamente em suas funções administrativas. Como bem aponta, Irene
Patricia Nohara (2011, p. 05), “trata de princípios e regras que disciplinam a
função administrativa e que abrange órgãos, agentes, e atividades
desempenhadas pela Administração Pública na consecução do interesse
coletivo”.
Entretanto, expõe-se inicialmente sobre os princípios que norteiam não
somente a Administração Pública, mas o Direito Público, abordando
primeiramente os da legalidade e da supremacia do interesse público sobre o
particular. Estes princípios norteiam as relações do Estado entre os particulares
e estão presentes em todas as disciplinas que perfazem o ramo de Direito
Público, conforme já mencionado.
O princípio da legalidade vincula o particular de acordo com o que
determina o art. 5º, II5, da CF/88. Da mesma forma que o particular somente
pode ser obrigado a cumprir o que está na lei, o Estado só pode exigir do
particular que cumpra o que está disposto em lei (NOHARA, 2011, p. 64 e 65).
Esse princípio representa um limite para a atuação do Estado perante o
particular. Nesse sentido, assevera Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010, p. 63),
“[...], na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que
decorre da lei”.
E acrescenta-se o disposto no art. 37 da CF/88, o princípio da legalidade
que vincula a Administração Pública em todas as esferas, compostas pelos
Poderes da República no desempenho de suas funções administrativas. E como
brilhantemente assinala Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010, p. p.64), “em
decorrência disso, a Administração Pública não pode, por simples ato
administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor
vedações aos administrados; para tanto ela depende de lei”.
O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular é um
elemento influente em toda a ação estatal, pois envolve desde a elaboração de
leis até a execução de programas, obras e serviços, pois embasa todas as
disciplinas de Direito Público. Essa ideia de supremacia, envolve um conceito
que divide a atuação do Estado entre os interesses individuais e públicos ou
coletivos. Contudo, há críticas a essa distinção, pois esses dois campos se
imiscuem muitas vezes, o que pode dificultar a análise entre o que é estritamente
de interesse público ou privado. Além disso, houve modificações nas relações
sociais e econômicas, que trazem, por exemplo, a iniciativa privada para agir
pelos interesses públicos (DI PIETRO, 2010, p. 65; NOHARA, 2011, p. 63). A
respeito da distinção dos interesses, Di Pietro (2010, p. 65) exemplifica
claramente, “[...] existem normas de direito público que defendem também
interesses dos particulares (como as normas de segurança, saúde pública,
censura, [...] e normas do capítulo da Constituição consagrado aos direitos
fundamentais do homem).
Diante desta tensão entre os interesses público e privado, surgem críticas
à ideia de supremacia do interesse público, como por exemplo, expõe Gustavo
Binembojm (2005, p. 167), ao elucidar que, “Veja-se que não se nega, de forma
5Texto do inciso II do art. 5º da CF/88: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei;”
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alguma, o conceito de interesse público, mas tão somente a existência de um


princípio da supremacia do interesse público”.
Sobre a crítica a ideia de supremacia do interesse público, Irene Patricia
Nohara (2011, p. 64) expõe que,

[...], não nos identificamos com a corrente doutrinária que


simplesmente põe em xeque a noção de superioridade dos interesses
públicos, alegando que atualmente a Administração deva ser colocada
em plano de igualdade com os particulares e, por consequência, os
interesses públicos devam ser retirados de seu patamar de
supremacia.

Nesse sentido, este estudo acompanha o pensamento da autora Irene


Patricia Nohara, pois entende-se que os critérios devem ser analisados com
cautela visando preservar os direitos sociais dos particulares, bem como,
garantir a supremacia do interesse público. Essa tensão entre os interesses
público e privado necessitam ser sopesados, o que não significa dizer, no
entendimento desta pesquisa, que o correto é mitigar a noção de supremacia do
interesse público.
O princípio da eficiência foi introduzido na CF/88 por meio da Emenda
n.19 de 1998, atendendo as propostas da Reforma Administrativa ocorrida na
década de 90 e inserida no Plano Diretor da Reforma do Estado. O desafio que
este princípio coloca é em primeiro lugar o da definição de eficiência e em
segundo, se refere ao contexto em que foi introduzido, pois a Reforma visou
organizar e alterar a estrutura do Estado para que este pudesse lidar com a crise
econômica mundial que se aproximava. Em síntese a Reforma enfocou o
estabelecimento do modelo gerencial (NOHARA, 2012, p. 02).
Ao prelecionar sobre o enfoque da mencionada Reforma Administrativa
que é o de estabelecer o modelo gerencial, Irene Patricia Nohara (2012, p. 02)
alude que, “ao procurarem modificar o papel do Estado de prestador de serviços
públicos para gerenciador de atividades que seriam progressivamente
transferidas ao setor privado, seja por meio de delegação ou até por privatização
stricto sensu [...]”. Por isso, denota-se o objetivo subjacente a inserção da
eficiência como um princípio constitucional, que é o de contribuir para o ajuste
fiscal, enfocando as ações do agente público num modelo que privilegia o
alcance de metas e flexibilização da burocracia que visam a economia de gastos
(NOHARA, 2012, p. 208-209 e 213).
Expõe-se o entendimento da autora Nohara (2012, p. 217) sobre o significado
do princípio da eficiência, ao afirmar que, “[...] insere-se na ótica da boa gestão.
Não concordamos que o sentido da eficiência, com caráter normativo, deva
alcançar a noção de “ótimo”, [...]. E, justificando sua posição, enfatiza a autora
Nohara (2012, p. 218), “a escolha do ótimo carrega acentuado grau de
arbitrariedade, o que demonstra que existem múltiplas visões do que seria uma
gestão eficiente”. Nesse sentido, o presente estudo acompanha o
entendimento da autora Nohara sobre a definição de eficiência.
Por fim, expõe-se a análise que a autora realizou a respeito da eficiência
da gestão administrativa do Poder Judiciário, enfocando que a ideia de gestão
baseada em alcance de metas que são apoiadas simplesmente em dados
quantitativos, pois isto pode ser complexo no âmbito do Poder Judiciário, já que
no serviço que tem por função dizer o direito ou fazer justiça, os dados
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qualitativos prevalecem. Sabe-se que as demandas judiciais exigem minucioso


estudo de caso a caso, respeitando-se o princípio do devido processo legal, o
que exige tempo (NOHARA, 2012, p. 178-182). Nesse sentido, Nohara (2012,
p.182) esclarece que, “o critério puramente quantitativo não é capaz de
diferenciar juízes cuidadosos daqueles que só se preocupam em ‘atingir metas’,
sendo negligenciada uma dimensão tão importante quanto à da celeridade, qual
seja: a efetividade do provimento”.

OS PRINCÍPIOS DA MEDIAÇÃO NO BRASIL

Primeiramente cumpre esclarecer que a mediação é um instrumento de


resolução consensual de conflitos definido pela Lei n. 13.140/15 6, a Lei de
mediação, e pelo Novo Código de Processo Civil (NCPC) 7. O instrumento
pertence ao conjunto de meios autocompositivos, regulamentados inicialmente
pela Resolução n. 125/10 editada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que
além de instituir uma política pública de tratamentos adequados de conflitos por
meio da conciliação e mediação8, instituiu a adoção desses instrumentos como
opção do Estado brasileiro especificamente por meio desses modelos de
autocomposição.
A Lei de mediação, no art. 2º9 elencou os princípios que o balizam o
procedimento. E com isso trouxe diretrizes que regem a atuação do mediador. E
entre eles, há os da isonomia entre as partes, da autonomia da vontade das
partes e da busca do consenso, objetos pontuais do presente estudo.
O princípio da isonomia entre as partes traduz que o mediador deve tratar
com igualdade as partes presentes no procedimento de modo a diminuir ou fazer
inexistir qualquer resquício de desigualdades, como por exemplo diferenças
culturais, econômicas, desinformação e outros quesitos (CUNHA, 2018, p. 11).
O princípio da autonomia da vontade das partes, traduz que o mediador
não pode impor, propor ou sugerir propostas ou soluções, pois cabe-lhe a tarefa
de aproximar as partes, para que estas encontrem a solução. Vale ressaltar, que
inclusive deve-se respeitar a vontade das partes de desistir do procedimento, o

6 Texto do artigo 1º da Lei n. 13.140/15: “Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de solução
de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da
administração pública”.
Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial
sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou
desenvolver soluções consensuais para a controvérsia.
7 Texto do Artigo 165 do Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/15): “Os tribunais criarão centros

judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e


audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a
auxiliar, orientar e estimular a autocomposição”.
[...]
§ 3o O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre
as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de
modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios,
soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.
8 Apesar da Política Pública de tratamento adequado de conflitos tratar tanto da conciliação

quanto da mediação, esta pesquisa dedica-se a analisar o instituto da mediação.


9 Texto do art. 2º da Lei n. 13.140/15: A mediação será orientada pelos seguintes princípios:

I - imparcialidade do mediador; II - isonomia entre as partes; III - oralidade; IV - informalidade;


V – autonomia da vontade das partes; VI - busca do consenso; VII - confidencialidade; VIII - boa-
fé”.
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que significa dizer que as partes possuem liberdade para decidir se querem
continuar na autocomposição. Esse princípio embasa a atuação do mediador,
pois este deve respeitar a vontade das partes não lhes impondo nenhuma
condição ou proposta (CUNHA, 2018, p. 13).
O princípio da busca do consenso baseia-se na ideia de que o
procedimento ao ser conduzido por um terceiro que possui a função de
aproximar as partes para que estas cheguem a um consenso. O consenso na
mediação advém de uma negociação com a presença de um terceiro imparcial
que é o mediador. Entende-se que o consenso traz a tônica da mediação,
devendo ser tarefa do mediador, caminhar nessa busca para que a melhor
solução seja construída pelos envolvidos (CUNHA, 2018, p.14). Denota-se que
ambos princípios se relacionam, pois não haverá consenso se a autonomia da
vontade não for respeitada.

POSSÍVEIS DESENCONTROS ENTRE OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA E DA MEDIAÇÃO NA AUTOCOMPOSIÇÃO DE CONFLITOS DE
INTERESSE

O art. 3210 da Lei n. 13.140/15, a Lei de mediação, traz a autorização para


que se realize a autocomposição de conflitos no âmbito do Direito Público por
meio de órgãos e entidades da Administração Pública.
A utilização da mediação no âmbito da Administração Pública já perfaz a
realidade, mas ainda persistem questionamentos em torno da possibilidade
dessa ação, devido em primeiro lugar ao princípio da supremacia do interesse
do interesse público sobre o particular, pois numa autocomposição de conflitos
de interesse, as partes estarão dispostas numa negociação visando de um lado,
o interesse público, de outro, o interesse privado em relação de igualdade, pois
há o princípio da isonomia entre as partes. Entende-se que neste contexto, a
parte que goza da supremacia do interesse público não se coloca com igualdade
perante a parte que não pertence ao Direito Público. Há aqui um desencontro de
princípios. Tal premissa exige cautela na definição de interesse público e na ideia
de supremacia, principalmente se na contenda houver interesses que traduzem
direitos fundamentais e sociais do particular. A este respeito a autora Geisa
Rosignoli Neiva (2019, p. 74), ilustrando que, “[...] havendo o confronto entre
diferentes interesses públicos, haverá de se fazer ponderação entre eles. É o
que acontece, por exemplo, quando a Administração se depara com situações
de ocupações irregulares ou de risco, que devem ser sopesadas com o direito
social de moradia”. Esclarece-se, porém que não se defende aqui, a mitigação
da ideia de supremacia do interesse público e sim a análise do caso concreto
por meio da “ponderação de valores” (NEIVA, 2019, p. 74).
Há questionamentos sobre a interação entre os princípios da busca pelo
consenso que embasa a mediação, bem como, sobre o da legalidade presente
na Administração Pública. Conforme mencionado, na mediação, a busca pelo
consenso deve respeitar o princípio da autonomia da vontade das partes. E foi
assinalado anteriormente que o particular pode realizar tudo o que não for

10Texto do art. 32: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar câmaras
de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da
Advocacia Pública, onde houver, com competência para:
[...]”
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proibido pela lei. Mas, a Administração Pública só pode realizar o que está
disposto em lei, não pode agir como o particular, pois este pode realizar aquilo
que a lei não proíbe. Há aqui um desencontro de princípios. Esta interação de
princípios requer cautela durante o procedimento da mediação, pois entende-se
que a Administração Pública só poderá negociar ou transigir sobre situações
fáticas que possuam regulamentação que permita a transação para determinado
conflito, devido ao princípio da legalidade, ou seja, o Poder Público não age em
regra de acordo com a vontade do agente público e sim de acordo com a lei,
salvo os casos em que é possível a aplicação da discricionariedade que exige
atendimento aos critérios de conveniência e oportunidade, que atendam o
interesse público numa determinada situação fática (NOHARA, 2011, p. 212).
Nestas situações a consensualidade estaria permitida se as regras e princípios
normativos assim permitissem.
Há quem defenda a desnecessidade de lei específica para autorizar o
consenso para cada espécie de conflito. A autora Geisa Rosignoli Neiva (2019,
p. 97) se posiciona sobre esse desencontro de princípios ao afirmar que, “caberá
a lei, portanto, identificar em linhas gerais as espécies de conflitos que
comportarão a solução consensual, admitindo-se uma certa margem de
interpretação, sempre à luz ao interesse público [...]”. O presente estudo
acompanha a autora nesse entendimento, defendendo a ideia de que é
desnecessário leis específicas que autorizem a mediação na busca pela
consensualidade em cada situação.
Com relação ao princípio da eficiência há questionamentos, pois conforme
assinalado anteriormente, esse princípio foi inserido como norma para a
Administração Pública num contexto em que se buscava o ajuste fiscal, ou seja,
reformas na economia, onde o Estado pudesse economizar sobre os gastos e
auferir situações mais vantajosas do ponto de vista econômico. E, entende-se
que diante de uma autocomposição de conflitos não se pode buscar
simplesmente o que é mais vantajoso a despeito de não assegurar direitos aos
particulares. Nesse sentido, a autora Geisa Rosignoli Neiva (2019, p. 112)
esclarece que, “a eficiência passou a ser qualidade essencial da boa
governança, devendo ser entendida com novos contornos [...]”.
Esse entendimento é convergente com a ideia já assinalada
anteriormente, de que a eficiência, “insere-se na ótica da boa gestão” (NOHARA,
2012, p. 217). Por isso, para resolver esse desencontro de princípios na
autocomposição, é necessário rever a concepção sobre o princípio da eficiência
também no âmbito autocompositivo, com o fim de buscar resultados por meio do
consenso em prol da sociedade protegendo-se os direitos sociais e com isso,
acrescenta-se, como ilustra Neiva (2019, p. 91), “[...], principalmente, de
atingimento da eficiência administrativa”.

CONCLUSÃO

Como se pôde observar, a Administração Pública possui princípios que


norteiam suas ações visando o bem-estar coletivo, que será concretizado se não
houver concessões ou vedações de caráter pessoal, ou se não houver também
proteção de direitos dos particulares em detrimento do sacrifício do interesse
público. Contudo, observou-se, que no contexto autocompositivo de conflitos
podem ocorrer desencontros entre os princípios explanados (que inclusive, são
questionamentos realizados pela doutrina jurídica), pois numa contenda que
15

envolve a Administração Pública e o particular, estarão em jogo interesses


público e privado.
Com relação ao princípio da legalidade, este estudo assinalou que
acompanha o posicionamento doutrinário que entende ser desnecessário a
existência de leis específicas para autorizar o consenso a cada espécie de
conflito, cabendo à lei oferecer diretrizes gerais na busca pelo consenso.
Conclui-se que são necessários estudos cautelosos sobre a aplicação dos
princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e da isonomia,
admitindo-se a “ponderação de valores” aplicada a cada caso concreto e não a
mitigação da supremacia do interesse público.
Com relação ao princípio da eficiência, conclui-se que é necessário rever
o sentido do princípio, aplicando-se aos casos concretos a ideia de que a
eficiência reside na “ótica da boa gestão”, devendo as soluções
autocompositivas visarem a proteção da sociedade, por meio de acordos
efetivos, em vez de primar pela celeridade, o que se traduz como “eficiência
administrativa”.
Portanto, acrescenta-se à conclusão, que é possível a utilização da
mediação no âmbito da Administração Pública, mesmo diante dos desencontros
apontados, desde que haja cautela na aplicação dos princípios com o objetivo
de respeitar os direitos fundamentais e sociais juntamente com o interesse
público.

REFERÊNCIAS

BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de


proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In:
SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados:
desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2005.

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Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2018.

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Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2015]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
Acesso em: 18 set. 2019.

BRASIL. Lei nº 13.140 de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação


entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a
autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública [...]. Brasília,
DF: Presidência da República, [2015]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm.
Acesso em: 02 out. 2019.

CUNHA, Leonardo Correia. Conteúdo do dispositivo. In: CABRAL, Tricia


Navarro Xavier; CURY, Cesar Felipe (org.). Lei de mediação comentada
artigo por artigo: dedicado à memória da Profª Ada Pelegrini Grinover.
Indaiatuba: Editora Foco, 2018.
16

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23. ed. São Paulo:
Atlas, 2010.

NEIVA, Geisa Rosignoli. Conciliação e mediação pela administração


pública: parâmetros para sua efetivação. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2019.

NOHARA, Irene Patricia. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2011.

NOHARA, Irene Patricia. Reforma administrativa e burocracia: impacto da


eficiência na configuração do direito administrativo brasileiro. São Paulo: Atlas,
2012.
17

ANÁLISE E POSSIBILIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DO INSTITUTO DO


DISPUTE BOARD EM OBRAS PÚBLICAS DE GRANDE VULTO NO ÂMBITO
NACIONAL
ANALYSIS AND POSSIBILITY OF IMPLEMENTATION OF THE DISPUTE
BOARD INSTITUTE IN LARGE PUBLIC WORKS IN THE NATIONAL SCOPE

Henrique Furtado Tavares


Luciana da Silva Vilela

Resumo: No Brasil, em especial à época de grandes eventos como a Copa do


Mundo de Futebol e Olimpíadas, algumas obras emblemáticas foram bastante
questionadas devido ao custo de recursos públicos empregados, tanto em sua
construção, em sua manutenção e principalmente na devida expectativa da
população em sua conclusão. O dispute board ou comitê de resolução de
disputas nada mais é do que um instrumento de solução de divergências entre
as partes de um contrato, que, ao contrário da arbitragem, inicia antes mesmo
da assinatura da minuta contratual, com escolha de membros em número ímpar
e cláusulas estipuladas em acordo de ambas as partes.O presente estudo trás
uma abordagem dogmática acerca da norma vigente da Lei de Licitações e do
principio constitucional da eficiência em correlato com o instituto do dispute board
como forma garantidora da devida conclusão das obras licitadas em âmbito
nacional.
Palavras-chaves: Dispute board. Comitê de resolução de disputas. Obras
públicas de grande vulto.

Abstract: In Brazil, in particular at the time of major events such as the Football
World Cup and the Olympics, some emblematic works were quite questioned due
to the cost of public resources employed, both in its construction, its maintenance
and especially in due expectation of the population in its conclusion. The dispute
board or dispute resolution committee is nothing more than a solution differences
between the parties to a contract, which, unlike arbitration, commences even
before the signing of the contractual draft, with odd number of members being
chosen and clauses stipulated by agreement of both parties. The present study
takes a dogmatic approach about the current norm of the Bidding Law and the
constitutional principle of efficiency in relation to the institute of the dispute board
as a way to guarantee the proper conclusion of the works bid at national level.
Keywords: Dispute board. Dispute resolution committee. Largepublic works.

INTRODUÇÃO

Muito se fala no âmbito nacional acerca de obras públicas de grande vulto


e suas devidas conclusões. Os chamados “elefantes brancos” são obras de
valores significativos que recebem tal alcunha devido ao seu custo benefício, sua
devida eficácia como bem público e principalmente, sua utilidade para com o
interesse coletivo.
No Brasil algumas obras emblemáticas acabaram por receber tal
antonomásia devido ao custo de recursos públicos empregados, tanto em sua
construção como em especial, em sua manutenção, assim como a devida
expectativa da população em sua conclusão.
18

O dispute board ou comitê de resolução de disputas nada mais é do que


um método de solução de divergências entre as partes de um contrato. Nasce
antes mesmo da assinatura, onde as partes, no caso em tela, licitante e licitado,
definem previamente um comitê formado por profissionais especialistas
(advogados, auditores, engenheiros, arquitetos, árbitros) para que, em caso de
controvérsias acerca da execução do contrato e da obra propriamente dita,
notifiquem, auditem, estudem e principalmente formulem meios de resolução do
conflito instaurado ou a ser verificado, com o objetivo fim de se ver concluída a
obra licitada. Não somente isso, os membros do dispute board produzem provas
periciais que podem ser utilizadas em litígios judiciais no sentido em que, durante
a fiscalização e execução da obra, uma de suas devidas competências é a
elaboração de relatório preciso e minucioso de cada aspecto e atualização do
projeto licitado.
Apesar de não haver lei federal que regule tal instituto (ressalta-se que
existe Projeto de Lei em trâmite no Senado Federal) o dispute board jáfigurou
como pressuposto necessário em obras cujo financiamento advêm de
BancosInternacionais, como Banco Interamericano de desenvolvimento e Banco
Mundial, umexemplo fora a presença do instutito supramencionado para os
contratos de expansão dometrô de São Paulo em 2003. Com fundamento nos
princípios constitucionais da eficiência e transparência, assim como no
dispositivo do art. 42 §5º e art. 67 da Lei deLicitações pátria, verifica-se a
utilidade do presente instituto como mantenedor das garantias do interesse
público, em especial no objetivo fim, de conclusão de obras eprevenção de obras
paradas.
O presente estudo parte através da utilização do método de pesquisa
explicativa, com fonte primária de pesquisa em artigos e projetos de estudo em
curso, com caráter qualitativo e enfâse no estudo documental assim como
revisões bibliográficas.

DO DISPUTE BOARD, INSTITUTO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E LITÍGIOS


E SEUS FUNDAMENTOS.

Trata-se de instituto internacional, sendo aos poucos importado para o


Brasil, de solução de controvérsias extrajudiciais. Formado por especialistas de
áreas diversas, cujo estudo e profissionalização podem variar de acordo com a
necessidade das partes, como advogados, auditores, contabilistas, arquitetos,
engenheiros e quaisquer outro tipo de profissionais qualificados, que venham a
atender a convenção e interesse dos contratantes e contratados, no estudo em
tela, licitantes e licitados.
Diferente da arbitragem, o dispute board é proposto e tem como
nascimento momento anterior ao lítigio já formado. Em acordo prévio à
assinatura do contrato, as partes definem seus membros, em número ímpar,
suas competências, prerrogativas, áreas de atuação e se suas recomendações
possuiram caráter vinculativo ou não ao andamento e fiscalização do projeto.
Em brilhante análise conceitua os autores Fernando Capuñay e
Gianfranco R. Ferruzo Dávila (2014, p. 105, tradução nossa) acerca do instituto
previamente mencionado:

[…] Os Dispute Board Resolutionsão órgãos consultivos permanentes,


composto por um outro membro (que conhece profundamente o
contrato), que geralmente é estabelecido no início do contrato e
19

permanece por toda a duração do contrato, para ajudar as partes a


resolver as divergências e controvérsias que possam surgir no estágio
de execução contratual1.

No mesmo entendimento versam os autores Mahesh Abeynayake do


departamento de Economia da Construção da Universidade de Moratuwa, Sri
Lanka e Chitra Weddikkara, Presidente do Instituto de Arquitetos do Sri Lanka2,
sobre o denominado Termo Completo do Conselho de Adjucação de Litígios:

[…] O termo DAB completo compreende um ou três membros que são


nomeados antes do empreiteiro iniciar a execução das obras e que
normalmente visitam o local posteriormente. A principal razão para um
DAB de prazo completo é lidar com disputas ou relacionadas ao local
da construção. Um painel permanente também poderá, se desejado
pelas partes, atuar como uma caixa de ressonância informal quando
surgirem problemas e antes de serem formalmente encaminhados
para a resolução de disputas3.

Em sede de doutrina pátria, elencamos os dizeres do professor Antônio


Fernando Marcondes (2011, p. 123) em trecho que reproduz disposto na Dispute
Resolution Board Foundation:

[...] um comitê formado por profissionais experientes e imparciais,


contratado antes mesmo do início de um projeto de construção para
acompanhar o progresso da execução da obra, encorajando as partes
a evitar disputas e assistindo-as na solução daquelas que não puderem
ser evitadas, visando à sua solução definitiva 4.

O Dispute Board constitui assim, meio de grande valia para resolução de


conflitos durante a execução do contrato de obras públicas, haja vista que pode
atuar e recomendar soluções às partes sem necessidade de suspensão total ou
parcial da obra, além disso, possui como objetivo principal uma fiscalização e
atuação para o fim de continuidade, não paralisação ou suspensão parcial da
obra e sua consequente e desejada finalização.
Tal fiscalização é tratada como prerrogativa de enorme importância em
âmbito extrajudical, pois delimita os possíveis conflitos e divergências que
possam surgir ou que eventualmente já surgiram, assim como, no âmbito (caso
1Do original: “[…] Los Dispute Board Resolution son órganos consultores perma-nentes,
compuestos por uno otres miembros (los cuales cono-cen a profundidad el contrato),que
generalmente se estable-cen al inicio de un contrato y semantienen durante toda la dura-ción del
mismo, con la finalidadde ayudar a las partes a resolverlas desavenencias y controver-sias que
pudiesen surgir en laetapa de ejecución contractual.” (Chafloque; Dávila, 2014, p. 105).
2ABEYNAYAKE, Mahesh; WEDDIKKARA, Chitra. SPECIAL FEATURES AND EXPERIENCES

OF THE FULL-TERM DISPUTE ADJUDICATION BOARD AS AN ALTERNATIVE DISPUTE


RESOLUTION METHOD IN THE CONSTRUCTIONINDUSTRY OF SRI LANKA. Disponível em:
<https://www.academia.edu/8549590/Special_Features_and_Experiences_of_The_Full_Term_
Dispute_Adjudication_Board_As_An_Alternative_Dispute_Resolution_Method_In_The_Constru
ction_Industry_Of_Sri_Lanka>. Acesso em: 08 Out. 2019.
3Do original: “[…]Full term DAB comprises one or three members who are appointed before the

contractor startsexecuting the works, and who typically visit the site on a regular basis thereafter.
The mainreason for a full term DAB is to deal with disputes on or related to the construction site.
A standing panel may also be able, if desired by the parties, to act as an informal sounding
boardwhen issues first arise and before they are formally referred to dispute resolution.”.
4MARCONDES, Antonio Fernando Mello. OS DISPUTE BOARDS E OS CONTRATOS DE

CONSTRUÇÃO. In: BAPTISTA, Luiz Olavo; PRADO, Maurício Almeida (Org.). Construção civil
e direito. São Paulo: Lex, 2011. p. 123.
20

venha a ser necessário) judicial, pois a análise e relatórios dos membros do


Comitê de Resolução de Disputas pode até mesmo servir de prova pericial do
andamento e atos contratuais exercidos durante sua vigência.
Um dispute Board eficiente pode coontribuir de maneira eficaz para o
sucesso do contrato conforme CARLOTTA CALABRESI (2009, p. 111)56.
O primeiro Dispute Board fora utilizado nos Estados Unidos na década de
70, mais especificamente no ano de 1975 na construção do Eisenhower Tunnel,
após fora verificado em diversos países em diversas obras e serviços, em
especial em projetos de elevada complexidade como aeroportos (no caso de
Hong Kong), autopistas (Mount Baker ridge em Washington, Estados Unidos) e
até mesmo hidroelétricas em Ertan, na China7 (2015, v. 9, n. 2, p. 140).
Com bem pontuado pelas pesquisadoras Ana Paula Brandão e Isabella
Carolina Miranda em publicação na Revista de Direito Mackensie os Dispute
Boards em solo pátrio “foram introduzidos nos contratos para a expansão do
metrô de São Paulo, em 2003, cujo financiamento foi feito pelo Banco Mundial
e, mais tarde, na Parceria Público-Privada para construção do Complexo
Criminal Ribeirão das Neves, em Belo Horizonte, Minas Gerais” (2015, v. 9, n. 2,
p. 141)8, assim como em diversas obras, como previamente mencionado no
corpo do resumo deste estudo, em construções emblemáticas da Copa do
Mundo e Olimpíadas.
Cada vez mais conceituado, tal instrumento de solução de divergências
trata de estrita vinculação à vontade das partes e da liberdade de escolha dos
mecanismos de controle de controvérsias e solução de litígios que melhor se
adequem tanto à escolha como também às necessidades das partes
contratantes.
Em análise mais profunda do referido instrumento de controle de litígios,
necessário se faz uma leitura acerca das normas e princípios pátrios que
englobam o Dispute Board, que será melhor explanada a seguir.

DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA


EFICIÊNCIA, PUBLICIDADE E SEGURANÇA JURÍDICA ABRANGIDOS PELO
DISPUTE BOARD.

A priori verifica-se que o objetivo principal do previamente mencionado


instituto necessariamente abrange o princípio constitucional da eficiência, no
tocante à constante vigilância para finalização devida da obra licitada.
Guido Falcone menciona que deve a administração pública desenvolver
seus atos públicos “do modo mais congruente, mais oportuno e mais adequado
aos fins a serem alcançados, graças à escolha dos meios e da ocasião de utilizá-
los, concebíveis como os mais idôneos para tanto”9.

5Do original: “[…] Un Dispute Board efficiente può contribuire in maniera efficace alla riuscita del
progetto.”.
6CALABRESI, Carlotta. Dottorato di ricerca in diritto comparato (ius 02). LA RISOLUZIONE

DELLE CONTROVERSIE NEI CONTRATTI INTERNAZIONALI DI APPALTO: IL DISPUTE


BOARD. 2009. P. 111.
7 RIBEIRO, Ana Paula Brandão; RODRIGUES, Isabella Carolina Miranda. Revista Direito

Mackenzie. OS DISPUTE BOARDS NO DIREITO BRASILEIRO. v. 9, n. 2, p. 129-159.


8RIBEIRO, Ana Paula Brandão; RODRIGUES, Isabella Carolina Miranda.Op., cit., p. 141.
9FALZONE, Guido. IL DOVERE DI BUONA AMMINISTRAZIONE, Milão, Giuffrè, 1953.
21

Neste sentido, temos que a boa administração de que menciona Falzone


alcançará seus objetivos mais íntimos quando de seus atos administrativos
resultarem a administração e gestão perfeita de seus recursos.
Em excelente assertiva denota-se a conceituação profícua dos
professores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2001, p.
267) que elencaram:
[…] O princípio da eficiência tem partes com as normas de “boa
administração”, indicando que a Adminsitração Pública, em todos os
seus setores, deve concretizar atividade administrativa predisposta à
extração do maior número possível de efeitos positivos ao
administrado10.

A real vontade dos administrados em relação às obras públicas é a


certeza acerca de sua conclusão e devida utilização eficaz ao interesse público.
Com base em tal princípio é de se comentar que a preocupação maior das
partes licitantes com a instituição do Dispute Board é em ver a obra licitada
finalizada e com sua própria e devida utilização pelos administrados, de modo
que esta vinculção ao objetivo final de concretização da obra pública entende-se
estritamente vinculada ao cumprimento do disposto no princípio elencado a
nossa Carta Magna.
Em suma, discorre o Douto professor Hely Lopes Meirelles:

[…] Dever de eficiência é o que impõe a todo agente público de realizar


suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o
mais moderno princípio da função administrativa, que já não se
contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo
resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento
das necessidades da comunidade e de seus membros11.

O mesmo se verifica em relação ao princípio da publicidade, onde denota-


se a total concordância com os ditames constitucionais no sentido em que, os
relatórios minuciosos produzidos (em caso de anuência das partes, até mesmo
produzidos em cada fase da fiscalização e execução do contrato por meio de
reuniões, visitas e atas ordinárias do Comitê) esclarecem, informam e tornam
público e notória a execução e suas fases do contrato de obras.
Nas palavras do saudoso e já mencionado doutrinador Hely Lopes:

[…] publicidade, como princípio da Adminsitração Publica, abrange


toda atuação estatal, não só sob o aspecto de divulgação oficial de
seus atos, como também de propiciação de conhecimento de conduta
interna de seus agentes. Essa publicidade atinge, assim, os atos
concluídos e em formação, os processos em andamento, os pareceres
dos órgãos técnicos e jurídicos, os despachos intermediários e finais,
as atas de julgamento das licitações e os contratos com quaisquer
interessados, bem como os comprovantes de despesas e as
prestações de conts submetidas aos órgãos competentes. Tudo isso é
papel ou documento público que pode ser examinado na repartição por

10ARAÚJO, Luiz Alberto David; Júnior, Vidal Serrano Nunes. CURSO DE DIREITO
CONSTITUCIONAL. 4ª Edição. Editora Saraiva. 2001, p. 267.
11MEIRELLES, Hely Lopes. DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO. Cit., 21. Ed., atualizada

por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São
Paulo, Malheiros Ed., p. 90.
22

qualquer instrumento e dele obter certidão ou fotocópia autenticada


para fins constitucionais.12

Por fim e não menos importante elencamos ao presente estudo uma


análise ao princípio da segurança jurídica, que entendemos tratar de harmoniosa
sintonia para com o instituto em comento, no tocante à pretensão implícita na
qual os atos administrativos devem ser regidos em relação a sua devida
utilização de recursos públicos.
Em direito internacional comparado, versa Eduardo Gárcia de Enterría
(2008, p. 484, tradução nossa)13:

[…] Vale lembrar, para esse fim, que os princípios gerais do direito são
uma condensação dos grandes valores jurídicos materiais que
constituem o substrato do sistema e a repetida experiência da vida
jurídica. Eles não consistem, portanto, em uma invocação abstrata e
indeterminada da justiça, da consciência moral ou da discrição do juiz,
mas na realização de uma justiça técnica materialmente especificada,
baseada nos problemas legais específicos e objetivados no mesma
lógica das instituições 14.

O Dispute Board como podemos ver se encontra baseado nos princípios


constitucionais pátrios como forma de garantia, de segurança jurídica, de
publicidade e eficiência.
As prerrogativas de que são dotados os membros do Comitê de
Resolução de Disputas são garantias não só de cumprimento estrito aos ditames
constitucionais pátrios como também uma segurança implícita aos administrados
de que os membros selecionados para suas funções de fiscalização, buscarão
o objetivo fim de conclusão profícua da obra em comento.
As análises, recomendações e fiscalizações do Dispute Board também
possuem condão em legislação federal brasileira, uma breve análise em
sequência dará um norte acerca dos dispositivos legais que regem nossa Lei de
Licitações acerca do tema.

DA LEI N. 8.666/93 E DISPOSITIVOS QUE AUTORIZAM A IMPLEMENTAÇÃO


DO DISPUTE BOARD EM ÂMBITO NACIONAL.

Por fim, elencamos em breve suma o disposto nos artigos 42 §5º e 67 da


Lei de Licitações, que tratam da fiscalização de terceiros em contratos de obras
e serviços.
O primeiro elenca taxativamente que nas concorrências de âmbito
internacional poderá contemplar no edital, para obras e serviços condições
decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais

12MEIRELLES, Hely Lopes. DIREITO ADMINISTRATIVO. São Paulo: Saraiva, 3. Ed., p. 86.
13ENTERRÍA, Eduardo Gárcia de. CURSO DE DERECHO ADMINISTRATIVO, obra conjunta
com Tomás-Ramon Fernández, Thomson-Civitas. Madri, 14ª ed., vol. I, 2008, p. 484.
14Do original: “[…] Conviene recordar a este proposito que los principios generales del derecho

son una condensación de los grandes valores juridicos materiales que constituyen el substractum
del ordenamiento y de la experiencia reiterada de la vida juridica. No consisten, pues, em una
abstracta e indeterminada invocacíon de la justicia o de la conciencia moral o de la discreción
del juez, sino más bien, em a empresión de una justicia material especificada técnicamente en
función de los problemas jurídicos concretos y objetivada em la lógica misma de las
instituciones”.
23

aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos


daquelas entidades (Lei n. 8.666/93, art. 42 §5º, 1993):

Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá


ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e
atender às exigências dos órgãos competentes.
§ 5o Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição
de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação
oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo
financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas,
na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos,
protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo
Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas
entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais
vantajosa para a administração, o qual poderá contemplar, além do
preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a
obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem
com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho
motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela
autoridade imediatamente superior 15.

O segundo faz clara referência ao já debatido poder de fiscalização do


Estado na execução de seus contratos de obras e serviços, dispondo até mesmo
da possibilidade de contratação de terceiros alheios à administração pública para
composição de fiscais da execução, senão vejamos (Lei n. 8.666/93, art. 67,
1993):

Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada


por um representante da Administração especialmente designado,
permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de
informações pertinentes a essa atribuição.

A legislação pátria corrobora a implementação do Dispute Board como


meio de fiscalização da execução de contratos na figura de terceiros
especialmente admitidos para tais funções.
Em resumo, entendem os autores que o presente instrumento de solução
de litígios seria de grande valia para a fiel execução de obras de grande vulto no
ordenamento pátrio e consequentemente para o desenvolvimento nacional.

CONCLUSÃO

O instituto do Dispute Board apresenta inovações consideráveis para a


solução de litígios extrajudiciais no âmbito internacional e nacional. Suas
prerrogativas fiscalizatórias, capacidade de solução célere de controvérsias e
possibilidade de recomendações e aplicação de soluções vinculativas ou não,
em muito complementariam os dispostos já vigentes que corroboram o interesse
público na fiel execução do contrato de obras e sua devida transparência e
eficiência.

15BRASIL. Lei nº 8.666/93, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá
outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>.
Acesso em: 08 Out. 2019.
24

Em análise aos ditames legais, infere-se que a implementação de tal


instituto para obras de grande vulto no Brasil traria imensos benefícios para o fiel
adimplemento dos contratos licitatórios da administração pública assim como,
balizariam o interesse público que notoriamente versa na devida continuidade da
obra e sua efetiva conclusão.

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1988. Disponível em:
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26

APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO, E AS NOVAS


REGRAS SEGUNDO A REFORMA PREVIDENCIÁRIA
RETIREMENT DUE TO CONTRIBUTION TIME, AND THE NEW RULES
UNDER THE PENSION REFORM

Fernanda Matias Braga


Tatyane Nogueira Ribeiro

Resumo: O presente trabalho, busca contextualizar acerca dos aspectos gerais


da aposentadoria por tempo de contribuição, trazendo seu histórico ao longo da
história, logo analisando se fato a aposentadoria por tempo de contribuição não
protege nenhum risco social, tendo como objetivo analisar ao principais
requisitos para a sua concessão hodiernamente, fazendo uma comparação com
os requisitos trazidos pela reforma previdência por meio da PEC06/2019, ou seja
as regras transitórias das qual os filiados serão submetidos para poderem se
aposentar. Para alcançar o objetivo utilizou-se do método de análise teórica, a
fim de apresentar de forma clara a real situação do benefício.
Palavras-chave: Aposentadoria por tempo de contribuição. Reforma
Previdência. Risco Social.

Abstract: This paper seeks to contextualize the general aspects of retirement by


contribution time, bringing its history throughout history, then analyzing whether
retirement by contribution time does not protect any social risk, aiming to analyze
the main requirements for its grant today, making a comparison with the
requirements brought by the pension reform through PEC06 / 2019, ie the
transitional rules to which the members will be subjected in order to retire. In order
to reach the objective, the theoretical analysis method was used in order to clearly
present the actual benefit situation.
Keywords: Pension Reform. Retirement by time of contribution. Social risk.

INTRODUÇÃO

A reforma previdência, de acordo com a PEC 06/2019 vem trazer algumas


mudanças significativas nas regras permanentes da Constituição de Federal de
1988, de modo que a proposta abrange a alterações de diversos dispositivos,
dentre eles, não poderá ser criado ou majorado nenhum benefício ou serviço da
seguridade social, sem a correspondente fonte de custeio total.
Dentre as diversas alterações que a reforma vem trazer no âmbito
previdenciário, vale ressaltar acerca da aposentadoria por tempo de
contribuição, que é um beneficio previsto na Constituição Federal de 1988, onde
o requisito principal atualmente para aposentar é apenas o tempo que o filiado
contribuiu sendo homem 35 anos e mulher 30 anos, ou seja, independente de
comprovar ou atingir idade mínima. Logo por não exigir uma idade mínima para
aposentar acumulada com o tempo por contribuição, este é um benefício muito
importante, mesmo não correspondendo a qualquer risco social a ser coberto
pela Previdência Social.
Destarte, o presente trabalho tem por objetivo analisar os requisitos da
aposentadoria por tempo de contribuição, antes e após a reforma, abrangendo
um breve histórico acerca desse benefício, de tal modo analisando a polêmica
da contingência social. Por fim, a problematização que busca responder é se de
27

fato, a reforma da previdência bem como a extinção da aposentadoria por tempo


de contribuição em concomitância com as regras de transição trazidas pela
reforma, irão favorecer o contribuinte levando em consideração o Principio da
dignidade da pessoa humana e proporcionando de fato uma redução na
desigualdade econômica.
Para a consecução deste trabalho, utilizou-se do método de análise
teórica, por intermédio de revisão bibliográfica atinente ao tema. Bem como
serão utilizadas as principais fontes de Direitos, tais como doutrinas, legislação,
que tratam em especial dos direitos acerca da previdência social em especial o
benefício da aposentadoria por tempo de contribuição, afim de apresentar de
forma clara e objetiva como está real situação do beneficio e como ficará
futuramente com a promulgação da PEC 06/2019.

REQUISITOS DA APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO


ANTES DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA

A aposentadoria por tempo de contribuição, assim como os demais


benefícios do Regime Geral da Previdência Social, possui requisitos próprios
para sua concessão, sendo pertinente a sua análise, tendo em vista os inúmeros
debates que a cercam quanto à sua manutenção no ordenamento jurídico
previdenciário e ante a sua possível alteração caso haja aprovação da Reforma
da Previdência.
Disciplinada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 201, §7º,
inciso I, a aposentadoria por tempo de contribuição será devida ao homem que
possui 35 anos de contribuição e a mulher que possuir 30 anos de contribuição.
Assim, conforme pontua Lazzari et al. (2017), não se faz necessário a idade
mínima para que seja concedido o benefício mencionado.
A Constituição Federal também autoriza que haja contagem recíproca do
tempo de contribuição quando se verifica o que preceitua seu artigo 201, §9º,
que possui a seguinte redação:

§ 9º Para efeito de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca


do tempo de contribuição na administração pública e na atividade
privada, rural e urbana, hipótese em que os diversos regimes de
previdência social se compensarão financeiramente, segundo critérios
estabelecidos em lei.

Deste modo, vê-se que é possível a contagem recíproca do tempo de


contribuição na administração pública, na atividade privada, seja ela exercida no
âmbito rural ou urbano, devendo haver compensação financeira dos regimes de
previdência social.
Assim, observa-se que a Emenda Constitucional n. 20/1998 estabeleceu
regras de transição que poderão ser aplicadas para fins de concessão do
benefício de aposentadoria por tempo de contribuição àqueles que se filiaram ao
Regime Geral de Previdência Social até a data de 16 de dezembro de 1998 e
que possuírem carência para tanto.
À face do exposto, é possível constatar que a aposentadoria por tempo
de contribuição possui suas peculiaridades e, até o momento, basta que possua
tempo mínimo de contribuição para que seja requerida e concedida junto à
Autarquia Previdenciária, não se fazendo necessária a presença do requisito
28

idade, razão pela qual ela permite que seja beneficiado àqueles que contribuíram
ou trabalharam desde muito cedo.

POLÊMICA ACERCA DA CONTINGÊNCIA SOCIAL DA APOSENTADORIA


POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO

Dentre as alterações propostas pelo Projeto de Emenda a Constituição n.


6/2019, diz respeito aos requisitos para a concessão da aposentadoria por tempo
de contribuição, sendo que, com a aprovação da Reforma Previdenciária, haverá
idade mínima para fins de concessão deste benefício (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2019).
Para tanto, uma das justificativas utilizadas para que haja a modificação
legislativa e, ainda, por se tratar de uma das discussões que se estende há anos
quando o benefício a ser tratado é a aposentadoria por tempo de contribuição,
diz respeito à ausência de risco social a ser protegido por esta categoria de
aposentadoria na atualidade.
Neste sentido discorre Ibrahim (2015, p. 609):

A aposentadoria por tempo de contribuição é um benefício que sofre


constantes ataques, sendo que um número razoável de especialistas
defende sua extinção. Isso decorre de conclusão de não ser este
benefício tipicamente previdenciário, pois não há qualquer risco social
sendo protegido - o tempo de contribuição não traz presunção de
incapacidade para o trabalho.

A Constituição Federal, em seu artigo 201, estabelece que:

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime


geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados
critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá,
nos termos da lei, a: I - cobertura dos eventos de doença, invalidez,
morte e idade avançada; II - proteção à maternidade, especialmente à
gestante; III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego
involuntário; IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes
dos segurados de baixa renda; V - pensão por morte do segurado,
homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes,
observado o disposto no § 2º.

Destarte, aqueles que defendem a extinção desse tipo de benefício


previdenciário, alegam que a aposentadoria por tempo de contribuição não tem
como finalidade proteger os segurados do Regime Geral de Previdência Social
de um risco social, ao contrário do que ocorre na aposentadoria por
incapacidade, por exemplo, que busca proteger o incapaz. Além do mais,
sustentam que o artigo acima transcrito “não prevê a aposentadoria por tempo
de contribuição como contingência a ser coberta pelo sistema” (MARTINS, 2013,
p. 339).
Por outro lado, há quem defenda a aposentadoria por tempo de
contribuição alegando que “mesmo não tendo risco a proteger, permite uma
renovação mais rápida do mercado de trabalho, o que pode ser útil em épocas
de desemprego acentuado” (IBRAHIM, 2015, p. 609).
Há quem entenda, ainda, que a aposentadoria por tempo de contribuição
possui um contingente social a ser protegido e, por esta razão, deve ser mantida
no ordenamento jurídico pátrio. Neste sentido explana Martins (2013, p. 339):
29

a aposentadoria por tempo de contribuição deve ser mantida, pois há


contingência a ser coberta, porque o trabalhador já se apresenta
cansado depois de tantos anos de trabalho. O tempo de contribuição é
considerado contingência pelo desgaste do trabalhador com o passar
dos anos, por suas dificuldades em conseguir emprego, pois tem mais
de 40 anos.

Além do mais, assevera Martins (2013, p. 339) que a aposentadoria por


tempo de contribuição “é até mesmo uma forma de renovação de quadros, dando
oportunidades aos mais novos, concedendo mais postos de trabalho aos
iniciantes”.
Pelo exposto, verifica-se que há quem defenda a alteração da atual
legislação brasileira que disciplina a aposentadoria por tempo de contribuição, a
fim de incluir o requisito idade para a sua concessão para fins haver proteção a
um contingente social. No entanto, há quem defenda a extinção deste tipo de
aposentadoria por entender que, durante toda sua existência, não buscou
proteger qualquer risco social.
Noutro giro, há entendimento no sentido de que a aposentadoria por
tempo de contribuição visa proteger o trabalhador que, ao contribuir a quantidade
necessária para o recebimento do benefício, vê-se esgotado de laborar, haja
vista o tempo significativo necessário para tanto.
Oportuno consignar que, atualmente, a aposentadoria por tempo de
contribuição somente será concedida após 30 anos de contribuição, se mulher,
e 35 anos de contribuição, se homem, tempo este que exige demasiadamente
das condições físicas e até mesmo psíquicas do trabalhador.
Não há que se falar, portanto, que a aposentadoria por tempo de
contribuição não protege qualquer contingente social, uma vez que a saúde e
integridade física do trabalhador devem ser consideradas para a manutenção
deste benefício da maneira que ele apresenta hoje. A exaustão daquele que
trabalhou e contribuiu desde cedo deve ser beneficiada e protegida pelo Regime
Geral de Previdência Social.

NOVAS REGRAS DA APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO


SEGUNDO A REFORMA PREVIDENCIÁRIA

A reforma da previdência trouxe em seu texto algumas mudanças


significativas nas regras de transição no que condiz as diversas formas de se
aposentar no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sendo que, para
novos segurados até que venha a ser editada a lei complementar, serão
aplicadas as disposições transitórias. Como já mencionado, esse tipo de
beneficio por tempo de contribuição não precisa ter uma idade mínima para se
aposentar, sendo um dos requisitos exigidos é o período de carência de 180
meses, ocorre que, com a PEC 06/2019 esse benefício deixará de existir de
forma gradual, sendo criada pela reforma três regras de transição da qual os
filiados deverão submeter para poder se aposentar.
O artigo 18 da PEC 06/2019 traz os requisitos de forma cumulativa que
deve ser preenchido pelos filiados até a data da promulgação da emenda da
primeira regra de transição:

Art. 18. Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas


estabelecidas nos art. 19, art. 20 e art. 24 ou pela lei complementar a
30

que se refere o § 1º do art. 201 da Constituição, fica assegurado o


direito à aposentadoria por tempo de contribuição ao segurado filiado
ao Regime Geral de Previdência Social até a data de promulgação
desta Emenda à Constituição, quando preencher, cumulativamente, os
seguintes requisitos:
I - trinta anos de contribuição, se mulher, e trinta e cinco anos de
contribuição,
se homem; e
II - somatório da idade e do tempo de contribuição, incluídas as frações,
equivalente a oitenta e seis pontos, se mulher, e noventa e seis pontos,
se homem, observado o disposto no § 1º.
§ 1º A partir de 1º de janeiro de 2020, a pontuação a que se refere o
inciso II do caput será acrescida de um ponto a cada ano para o homem
e para a mulher, até atingir o limite de cem pontos, se mulher, e de
cento e cinco pontos, se homem, observado o disposto no § 5º.
§ 2º A idade e o tempo de contribuição serão apurados em dias para
o cálculo do somatório de pontos a que se referem o inciso II do caput
e o § 1º.
§ 3º Para o titular do cargo de professor que comprovar
exclusivamente vinte e cinco anos de contribuição, se mulher, e trinta
anos de contribuição, se homem, em efetivo exercício das funções de
magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio, o
somatório da idade e do tempo de contribuição, incluídas as frações,
será equivalente a oitenta e um pontos, se mulher, e noventa e um
pontos, se homem, aos quais serão acrescentados, a partir de 1º de
janeiro de 2020, um ponto a cada ano para o homem e para a mulher,
até atingir o limite de noventa e cinco pontos, se mulher, e de cem
pontos, se homem, observado o disposto no § 5º.
§ 4º O valor da aposentadoria concedida nos termos do disposto neste
artigo corresponderá a sessenta por cento da média aritmética definida
na forma prevista no art. 29, com acréscimo de dois por cento para
cada ano de contribuição que exceder o tempo de vinte anos de
contribuição, até atingir o limite de cem por cento.
§ 5º Lei complementar de iniciativa do Poder Executivo federal
estabelecerá a forma como a pontuação referida no inciso II do caput
e no § 3º será ajustada após o término do período de majoração a que
se referem os § 1º e § 3º, quando o aumento na expectativa de
sobrevida da população brasileira atingir os sessenta e cinco anos de
idade.

A primeira regra citada no artigo 18 da PEC trata-se da regra de transição


por pontos onde a soma do tempo de contribuição com a idade passa a ser a
regra de acesso ao benefício. Ressalto, que no caso de professores estes terão
de bônus a redução de cinco pontos, sendo obrigatório a comprovação de tempo
efetivo nos exercícios nas funções de magistrados.
O artigo 19 da PEC 06/2019 traz em seu rol a segunda regra de transição,
sendo que todos os requisitos devem ser cumpridos de forma cumulativamente
conforme primeira regra:
Art. 19. Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas
estabelecidas nos art. 18, art. 20 e art. 24 ou pela lei complementar a
que se refere o § 1º do art. 201 da Constituição, fica assegurado o
direito à aposentadoria por tempo de contribuição ao segurado filiado
ao Regime Geral de Previdência Social até a data de promulgação
desta Emenda à Constituição, quando preencher, cumulativamente, os
seguintes requisitos:
I - trinta anos de contribuição, se mulher, e trinta e cinco anos de
contribuição,
se homem; e
31

II - idade de cinquenta e seis anos, se mulher, e sessenta e um anos,


se
homem.
§ 1º A partir de 1º de janeiro de 2020, a idade a que se refere o inciso
II do caput será acrescida de seis meses a cada ano, até atingir
sessenta e dois anos de idade, se mulher, e sessenta e cinco anos de
idade, se homem.
§ 2º Para o titular do cargo de professor que comprovar
exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério
na educação infantil e no ensino fundamental e médio, o tempo de
contribuição e a idade de que trata o inciso I do caput deste artigo serão
reduzidos em cinco anos, aos quais serão acrescentados, a partir de
1º de janeiro de 2020, seis meses a cada ano nas idades de que trata
o inciso II, até atingir sessenta anos para ambos os sexos.
§ 3º O valor da aposentadoria concedida nos termos do disposto neste
artigo corresponderá a sessenta por cento da média aritmética definida
na forma prevista no art. 29, com acréscimo de dois por cento para
cada ano de contribuição que exceder o tempo de vinte anos de
contribuição, até atingir o limite de cem por cento.
§ 4º Lei complementar estabelecerá a forma como as idades referidas
nos § 1º e § 2º serão ajustadas, quando o aumento na expectativa de
sobrevida da população brasileira atingir os sessenta e cinco anos de
idade.

O artigo 19 traz em seus parágrafos a segunda regra de transição


conhecida por idade mínima, onde as regras exigem a idade mínima e o tempo
de contribuição, está é semelhante a regra anterior. Ocorre que, conforme
mencionado no artigo a idade mínima não será sempre a mesma, visto que, até
2020 será acrescido mais seis meses aumentando a idade.
O artigo 20 traz a terceira regra estabelecida para a aposentadoria por
tempo de contribuição, sendo que os requisitos deverão ser preenchidos
conforme aduz a redação:

Art. 20. Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas


estabelecidas nos art. 18, art. 19 e art. 24 ou pela lei complementar a
que se refere o § 1º do art. 201 da Constituição, fica assegurado o
direito à aposentadoria por tempo de contribuição ao segurado filiado
ao Regime Geral de Previdência Social que contar, até a data da
promulgação desta Emenda à Constituição, com mais de vinte e oito
anos de contribuição, se mulher, e trinta e três anos de contribuição,
se homem, e quando preencher, cumulativamente, os seguintes
requisitos:
I - trinta anos de contribuição, se mulher, e trinta e cinco anos de
contribuição,
se homem; e
II - cumprimento de período adicional correspondente a cinquenta por
cento do tempo que, na data de promulgação desta Emenda à
Constituição, faltaria para atingir trinta anos de contribuição, se mulher,
e trinta e cinco anos de contribuição, se homem.
Parágrafo único. O benefício concedido na forma prevista no caput
terá seu valor apurado de acordo com a média aritmética definida na
forma prevista no art. 29, multiplicada pelo fator previdenciário,
calculado na forma do disposto nos § 7º a § 9º do art. 29 da Lei nº
8.213, de 1991.

O artigo 20 traz a regra de transição por pedágio, está regra demonstra


que quem está a dois anos de cumprir o tempo de contribuição, poderá optar
pela aposentadoria sem idade mínima, aplicando o Fator Previdenciário, tendo
32

que cumprir o pedágio de 50% sobre o tempo faltante. De modo que, todos que
se aposentarem por esta regra, terá o valor médio de todas as contribuições
multiplicada pelo fator previdenciário.
Por fim, o artigo 24 conclui com as disposições transitórias acerca do
Regime Geral de Previdência Social, tendo os requisitos que devem ser
preenchidos cumulativamente:

Art. 24. Até que entre em vigor a nova lei complementar a que se refere
o § 1º do art. 201 da Constituição, o segurado filiado ao Regime Geral
de Previdência Social após a data de promulgação desta Emenda à
Constituição será aposentado quando preencher, cumulativamente, os
seguintes requisitos:
I - sessenta e dois anos de idade, se mulher, e sessenta e cinco anos
de idade, se homem, reduzidos em dois anos, se mulher, e em cinco
anos, se homem, para os trabalhadores rurais de ambos os sexos,
inclusive aqueles a que se refere o § 8º do art. 195 da Constituição; e
II - vinte anos de tempo de contribuição.
§ 1º O titular do cargo de professor de ambos os sexos poderá se
aposentar com sessenta anos de idade, desde que comprove trinta
anos de contribuição exclusivamente em efetivo exercício das funções
de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.
§ 2º O valor das aposentadorias de que trata este artigo corresponderá
a sessenta por cento da média aritmética definida na forma prevista no
art. 29, com acréscimo de dois por cento para cada ano de contribuição
que exceder o tempo de vinte anos de contribuição, exceto para os
trabalhadores rurais a que se refere o § 8º do art. 195 da Constituição,
cujo valor será de um salário-mínimo.
§ 3º As idades previstas neste artigo serão ajustadas em 1º de janeiro
de 2024 e, a partir dessa data, a cada quatro anos, quando o aumento
na expectativa de sobrevida da população brasileira atingir os sessenta
e cinco anos de idade, para ambos os sexos, em comparação com a
média apurada no ano de promulgação desta Emenda à Constituição,
na proporção de setenta e cinco por cento dessa diferença, apurada
em meses, desprezadas as frações de mês

Diante do exposto é possível verificar que a aposentadoria por tempo de


contribuição proporcionou ao contribuinte a opção de se enquadrar em mais de
uma regra de transição, podendo selecionar aquela que é mais vantajosa para
si, considerando as datas possíveis para se aposentar e o valor do benefício. Em
contrapartida, as regras de transições poderão causar grandes impactos, haja
vista, a dificuldade de grande parte dos cidadãos que tem dificuldade de atingir
o tempo de contribuição.

CONCLUSÃO

A seguridade social de acordo com a Constituição de 1988 tem como


objetivo proteger a sociedade, garantindo a dignidade da pessoa humana, bem
como a proteção de seus direitos. Logo a seguridade por meio da previdência
social disponibiliza aos individuos diversos benefícios e serviços, dentre eles a
aposentadoria por tempo de contribuição, objeto de estudo deste trabalho.
Porém diante da escassez no orçamento da previdência social e em
virtude da redução dos índices de natalidade e o aumento da expectativa de
sobrevida, são os fenômenos que tem dado ensejo a reforma previdenciária, de
modo a buscar alternativas para reduzir os gastos, por meio de capitalização,
33

readaptação, manutenção e fortalecimentos dos regimes, causando de tal modo


uma melhora na economia brasileira.
Diante do exposto é possível verificar que a reforma da previdência é
necessária, porém com meios razoáveis e proporcionais e não de forma
retrograda, desconsiderando a proteção social alcançado pela Constituição de
1988, e ao verificarmos a contribuição por tempo de serviço, através da reforma,
verificamos que a mesma deixará de existir por não proteger nenhum risco
social. Sem contar a forma como os já filiados terão como opções de regras de
transição, como por exemplo considerar o tempo de contribuição com a idade
mínima para aposentar. No tocante ao risco social, deve ser analisado com
bastante eficiência esta questão, visto que a um risco profundo quando aliado a
idade mínima.
Por fim, uma solução que não atingiria o direito adquirido do trabalhador
de modo a proteger a sua integridade e de certa forma inibir algumas
desigualdades sociais, seria uma ampla discussão não somente acerca da
Seguridade Social e da Previdência, mais sim, uma reforma de todos os
encargos materializada numa proposta de reforma tributária, podendo assim
analisar o sistema de custeio, e não apenas apontar a previdência como meio
para restabelecer a recuperação da economia, protegendo de fato o principio da
dignidade da pessoa humana.

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União, 05 de outubro de 1988. Brasília, 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em
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RPPS. Disponível em <
34

http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/03/NOVAPREVIDENCIA.pdf>. Acesso em
agosto de 2019.
35

IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO PARA AS COMPRAS E


CONTRATAÇÕES PÚBLICAS TENDO EM VISTA A EFICIÊNCIA DO
PROCESSO LICITATÓRIO, COM FOCO NAS CONTRATAÇÕES E
AQUISIÇÕES REALIZADAS POR MEIO DE DISPENSA DE LICITAÇÃO, COM
BASE NO ART. 24, II, DA LEI Nº. 8.666/93
THE IMPORTANCE OF PLANNING FOR PURCHASES AND PUBLIC
CONTRACTING IN VIEW OF THE EFFICIENCY OF THE BIDDING
PROCESS, FOCUSING ON CONTRACTING AND ACQUISITIONS CARRIED
OUT BY MEANS OF EXEMPTION FROM BIDDING, BASED ON ART. 24, II,
OF LAW NO. 8.666/93

Núbia Campos
Orientador(a): Lucas Fortini Bandeira

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a importância do


planejamento prévio realizado pelo administrador público para as compras e
contratações públicas, tendo em vista a eficiência do procedimento licitatório e a
escolha da modalidade de forma correta, com enfoque nas dispensas de licitação
em razão do valor, para que se evite o fracionamento ilegal de despesas. O
Tribunal de Contas, orienta aos administradores que devem sempre realizar o
planejamento anual prévio para que se evite o fracionamento legal de despesas
e o uso indevido da modalidade de dispensa de licitação como forma de se
esquivar da realização obrigatória do procedimento licitatório. Busca-se
demonstrar a importância do planejamento prévio anual, realizado por parte do
administrador a fim de que se forem feitas dispensas de licitação em razão do
valor, não extrapole o limite máximo estabelecido pela lei.
Palavras-chave: Planejamento prévio. Licitação. Fracionamento illegal.

Abstract: The purpose of this article is to analyze the importance of the prior
planning carried out by the public administrator for public procurement and
procurement, in view of the efficiency of the bidding process and the choice of
the correct form, focusing on the waiver of bidding because of the value, to avoid
the illegal fractionation of expenses. The Court of Auditors advises administrators
to always carry out prior annual planning so as to avoid the legal fractionation of
expenses and the improper use of the bidding waiver modality as a way to avoid
the mandatory performance of the bidding procedure. The aim is to demonstrate
the importance of the prior annual planning, performed by the administrator so
that if bidding waivers are made on the basis of value, it does not exceed the
maximum limit established by law.
Keywords: Previous planning. Bidding. Illegal fractionation.

INTRODUÇÃO

Trata-se de um estudo sobre a importância do planejamento prévio para


as compras e contratações públicas visando a redução dos gastos públicos e
melhor utilização e aplicação dos recursos, com o objetivo de se evitar o
desperdício de dinheiro público, com a realização de vários processos licitatórios
com um mesmo objeto, caracterizando o fracionamento das despesas e, desta
forma ensejando o gasto desordenado e desnecessário.
36

Busca-se analisar a importância de um planejamento adequado e


antecipado realizado pelo gestor público, para as compras e contratações, tendo
em vista a estimativa de gastos anual, como forma de se evitar o fracionamento
ilegal de despesas, e consequentemente auxiliar na melhor escolha da
modalidade de licitação, a fim de que não se utilize modalidade inferior àquela
permitida em lei, ocorrendo deste modo, o fracionamento de despesas, que é
considerado ilegal. Destarte, o planejamento antecipado e a estimativa
previamente realizados podem ser grandes aliados para o administrador público
e auxiliar em um melhor gasto dos recursos públicos, evitando o fracionamento
ilegal de despesas.

LICITAÇÃO

Todas as compras e contratações que ocorrem na Administração Pública


devem, em regra, ocorrer por meio de um procedimento administrativo, com
determinadas regras e atos que devem ser seguidos visando a contratação de
serviços ou aquisição pelo órgão público, sendo essa a regra estabelecida pelo
art. 37, XXI da Constituição Federal de 1988. No entendimento de Carlos Pinto
Coelho Motta (2005, p. 2) licitação pode ser entendida como “[…] o instrumento
de que dispõe o Poder Público para coligar, analisar e avaliar comparativamente
as ofertas, com a finalidade de julga-las e decidir qual será a mais favorável”.
Ao longo de toda a história o procedimento licitatório e toda a legislação
vieram se modificando e se adequando às necessidades do Poder Público, neste
tópico será tratado um breve histórico da legislação que regulamenta as
aquisições, alienações e contratações de serviços e obras pelo Poder Público.
O grande marco para a licitação no Brasil foi com a entrada em vigor da Lei nº
8.666/93, conhecida como Lei de Licitações e Contratos no ano de 1993.

PRINCÍPIOS BÁSICOS DA LICITAÇÃO

Importante ressaltar que para que o processo licitatório possa ocorrer de


modo correto é necessária a observância além dos Princípios que regem a
Administração Pública (Princípios de Legalidade, Impessoalidade, Moralidade,
Publicidade e Eficiência) definidos pela Constituição da República Federativa do
Brasil, devendo ainda observar os Princípios específicos (Princípios da
Vinculação ao Instrumento Convocatório, Julgamento Objetivo, Probidade
Administrativa e Igualdade) basilares que norteiam a realização das licitações,
tendo em vista que os princípios estão interligados uns aos outros e que devem
ser observados e seguidos.

FASES DA LICITAÇÃO

No que diz respeito ao início do procedimento licitatório a doutrina é


divergente, uma vez que alguns autores defendem o mesmo posicionamento
que está previsto no art. 38 da Lei de Licitações, de que o processo licitatório se
inicia com o procedimento administrativo já devidamente autuado, numerado,
contendo detalhamento do objeto, autorização e recurso para a despesa. No
entendimento de Mello (2009, p. 510) “sendo a licitação um procedimento,
desdobra-se em fases”, deste modo, pode-se afirmar que o procedimento
licitatório é dividido em duas fases, sendo estas, interna e externa. Importante
37

ressaltar que tais fases devem seguir sempre o que é estabelecido na Lei de
Licitações, no entanto, cada fase poderá variar de acordo com a modalidade
licitatória. (MEDAUAR, 2018). Deste modo, a licitação pode ser dividida em fase
interna e externa.
É na fase interna que a autoridade competente deverá delimitar e definir
o objeto da contratação ou aquisição, justificando a necessidade para tal, após
a justificativa devidamente fundamentada, deverá assim, definir a modalidade
licitatória, bem como os critérios para a habilitação dos participantes, além disso,
é na fase interna que são definidos os critérios de aceitação de proposta,
cláusulas contratuais que definirá as sanções previstas, fixação de prazo para
fornecimento do material adquirido ou da conclusão do serviço contratado e
demais critérios necessários. (CARVALHO FILHO, 2015). Portanto, entende-se
que o procedimento licitatório tem seu início internamente no órgão interessado
seguindo, posteriormente, aos procedimentos posteriores, da chamada fase
externa (ALEXANDRINO, 2017), deve-se considerar que a fase interna deve ser
bem elaborada antes a fim de se evitar deficiências em relação ao planejamento
conforme afirma Motta (2005).
Segundo entendimento de Carvalho Filho (2015, p. 318) “a fase externa é
constituída dos atos e atividades que contam com a participação da
Administração e de terceiros”, de acordo com o mesmo autor, é nesta fase que
ocorre a escolha da proposta mais vantajosa para a Administração.Nesse viés,
Meirelles (2016) afirma que a fase externa do procedimento licitatório se divide
em atos até que se chegue à conclusão do procedimento licitatório.

DEFINIÇÃO DO OBJETO DA LICITAÇÃO

No entendimento de Meirelles (2016) a finalidade principal da licitação


sempre será obter o objeto pretendido nas melhores condições possíveis para a
Administração Pública, deste modo, o objeto deverá ser devidamente definido
no edital de convocação ou no convite, conforme estabelecido no art. 40, I, da
Lei nº. 8.666/93, para que os interessados tenham ciência e possam atender
plenamente ao exigido de forma fiel e plenamente ao exigido pela Administração
Pública (MEIRELLES, 2016).Ressalta-se que a definição do objeto devidamente
realizada poderá ajudar a Administração Pública a não realizar o fracionamento
ilegal de despesas, tendo em vista que poderá, de forma adequada, reunir os
itens em lotes os objetos de mesma natureza para que desta forma realize
contratações de forma legal, sem o fracionamento ilegal de despesas e melhor
utilização do dinheiro público.
Com o objetivo de garantir maior eficiência em compras e contratações
nas quais o objeto for divisível e houver a possibilidade de obtenção de maior
vantagem para a Administração Pública e, sendo possível a garantia de uma
maior competitividade entre os interessados, é imprescindível que se faça o
parcelamento do objeto da licitação, é o que entende o Tribunal de Contas em
entendimento sumulado na Súmula nº. 247/2004.
Nesse diapasão, também foi a decisão monocrática do STJ do Ministro
Relator Mauro Campbell Marques – Agravo em Recurso Especial: AREsp
1278128 MA 2018/0086024-8 - Decisão Monocrática “Da Decisão: a técnica do
parcelamento do objeto da licitação é uma garantia da máxima competitividade
nas licitações, entretanto, não pode descambar para uma regra inflexível, sob
pena de onerar-se a Administração Pública”.
38

Parcelamento do objeto em itens e lotes

O parcelamento do objeto da licitação, em casos em for divisível e desde


que comprovada economia para a Administração Pública, poderá ser dividido em
itens ou lotes, conforme estabelece o art. 23, §1ºda própria Lei de Licitações e
Contratos, portanto, o parcelamento por itens tem por objetivo ampliar a
competitividade entre os interessados, tendo em vista que isso amplia a disputa,
conforme afirma o jurista Justen Filho (2005), ainda segundo o mesmo autor, tal
situação só poderá ocorrer se houver efetiva vantagem para a Administração
Pública.Por outro lado, a Administração tem a possibilidade ainda de realizar o
parcelamento do objeto em lotes que, nada mais é, que a união de diversos
objetos em um único lote, deste modo, o interessado deverá apresentar proposta
para todos os itens que estão abarcados naquele lote.

DISPENSA DE LICITAÇÃO

Conforme estabelecido pela Constituição da República Federativa do


Brasil em seu art. 37, XXI, a Administração Pública, em regra, exige o processo
licitatório para as contratações de serviços, obras, alienações e compras, porém,
em determinados casos preestabelecidos em lei, há a possibilidade de não se
realizar o procedimento licitatório, como é o caso da Dispensa de Licitação que
pode ser dispensada ou dispensável, de acordo com casa caso. No que diz
respeito à licitação dispensada tratada no art. 17 da Lei nº. 8.666/93, pode-se
utilizar o conceito do jurista Hely Lopes Meirelles (apud FRANÇA, 2013, p. 75)
afirmando que a licitação dispensada “é aquela que a própria lei declarou como
tal”.Já a chamada licitação dispensável, estabelecida no art. 24 da Lei nº.
8.666/93, é aquela em que “verifica-se em situações onde, embora viável
competição entre particulares, a licitação afigura-se objetivamente inconveniente
ao interesse público” conforme aduz Marçal Justen Filho (apud FRANÇA, 2013,
p. 101).

Dispensa de licitação em função do valor: análise dos incisos I e II do art. 24, Lei
nº. 8.666/93

A Lei de Licitações em seu art. 24 estabeleceu nos seus incisos I e II as


possibilidades de dispensar a licitação em razão do valor, porém, devendo ser
levado em consideração o limite máximo estabelecido em cada um deles.
Ressalta-se que os valores definidos nos incisos acima mencionados foram
estabelecidos tendo como parâmetro o preço determinado para a realização de
licitações na modalidade Convite. No entendimento de alguns doutrinadores, tais
limites são para todo o exercício financeiro, como é o entendimento de Motta
(2005) e do TCU, no entanto, esse tema ainda não é pacificado. Nesse sentido,
o Tribunal de Contas da União e o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
entendem que em casos de contratações ou compras devem ser previstos os
valores totais até o final do respectivo exercício financeiro, para que o objeto da
licitação não seja fracionado de forma ilegal, utilizando-se assim da dispensa
como meio de escapar da obrigação de licitar.

FACIONAMENTO ILEGAL DE DESPESAS


39

No conceito de Marinela (2018, p. 456) o fracionamento ilegal de


despesas “se caracteriza quando se divide a despesa para utilizar modalidade
de licitação inferior à recomendada pela legislação para o total da despesa, ou
para efetuar contratação direta com dispensa de licitação, pelo valor”.Frisa-se
que na maioria dos casos o fracionamento ocorre por falta de planejamento
prévio anual do que será gasto no exercício financeiro, por parte do
administrador público. Ressalta-se que a inobservância do planejamento anual
por parte do administrador público, pode ensejar em caracterização de ato de
improbidade administrativa, considerando que tal atitude por parte do
administrador viola os princípios previstos na Lei de Improbidade Administrativa,
podendo o administrador responder por sua conduta (MARINELA, 2018).Deste
modo, não é discricionário ao administrador escolher uma modalidade inferior
àquela apropriada para determinada contratação ou aquisição, ou até mesmo
como forma de se fazer com que a participação de interessados seja restrita,
tendo em vista que tal ato do administrador público poderá ser caracterizado
como crime (JACOBY FERNANDES, 2016).

IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO PARA AS COMPRAS E


CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

O planejamento é uma prática de suma importância, tendo em vista que


o que se busca a partir do planejamento prévio é evitar eventuais erros ou
resultados malsucedidos, o que pode acarretar desperdício de dinheiro público,
conforme afirma Medeiros (2018).
Em relação a importância do planejamento prévio para as compras e
contratações públicas, Santos (2017) afirma que a inexistência de um
planejamento antecipado de todas as aquisições e contratações gera diversas
consequências para a Administração, quais sejam, a existência de informações
imprecisas e duvidosas, além de culminar na realização de diversos processos
licitatórios com um mesmo objeto, ocorrendo, deste modo, o fracionamento de
despesas e a utilização de modalidades inferiores àquelas permitidas em lei
(SANTOS, 2017). O planejamento prévio, além de ter como objetivo precípuo
a economia de recursos públicos, conforme aludido por diversos autores, visa
ainda evitar que ocorra o fracionamento ilegal das despesas com aquisições e
contratações fracionadas ao longo do ano, sem a devida programação, ou ainda
que o gestor público utilize uma modalidade licitatória inferior àquela que a lei
determina para as compras e contratações.

O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS COMO ALTERNATIVA PARA O


PLANEJAMENTO

Uma forma de se obter um resultado mais eficiente e econômico para a


Administração nos casos das compras e contratações corriqueiras, e não houver
possibilidade de se estocar os materiais, ou outras situações é, sempre que
possível, a realização da licitação utilizando-se do Sistema de Registro de
Preços (SRP), conforme estabelecido na própria Lei de Licitações estabelecida
em seu art. 15.A partir do Sistema de Registro de Preços o que se busca é
simplificar e agilizar as contratações futuras que a Administração tenha que
40

realizar, otimizando o processo e evitando que a cada demanda tenha a


necessidade de se realizar novos processos licitatórios (DI PIETRO, 2018).
Além de estar regulamentado pela Lei nº. 8.666/93, o Sistema de Registro
de Preços é regulamentado atualmente na esfera federal pelo Decreto nº.
7.892/13 e alterado pelo Decreto nº. 8.250/14, no entanto, deverá cada ente da
federação regular o procedimento em sua respectiva esfera, devendo observar
as características e peculiaridades de cada região e alguns requisitos
estabelecidos na própria Lei de Licitações.
O SRP é um importante instrumento para a administração pública
considerando que há a fixação de preços, nesse sendo, sistema de registro de
preços com apenas um procedimento licitatório, garante economicidade e
eficiência para a máquina pública, visto que “os preços ficam à disposição da
Administração, que realizará as contratações quando lhe forem convenientes”,
conforme narra Marinela (2018, p. 453).
Quanto as vantagens da utilização do Sistema de Registro de Preços, o
referido mecanismo é considerado um exímio instrumento que auxilia a
Administração Pública a fim de garantir eficiência e economicidade nas
contratações, auxiliando ainda no planejamento dos gastos públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Frente às análises realizadas para a construção desta monografia, pode-


se perceber que no âmbito da Administração Pública não é comum que se
realizem o planejamento e estimativa prévia de seus gastos, tornando-se cada
vez mais corriqueiro o fracionamento ilegal de despesas e como consequência
o gasto desordenado de dinheiro público.
Pôde-se perceber ainda que com a elaboração de um planejamento
prévio com a estimativa daquilo que realmente será gasto pela Administração
Pública é possível que se tenha um procedimento licitatório mais correto, eficaz
e econômico, considerando que ao realizar uma aferição mais precisa daquilo
que realmente é necessário para suprir as demandas da Administração e de
toda a população como um todo, é possível se verificar a economia, tendo em
vista que será realizado um número menor de procedimentos licitatórios para se
efetivar as compras e contratações.
Foi perceptível que para que não ocorra o fracionamento ilegal de
despesas é imprescindível que a Administração Pública faça a definição correta
e objetiva do objeto pretendido para contratação ou aquisição, devendo ainda
ser levada em consideração a real necessidade para a aquisição ou
contratação, tendo em vista que a justificativa deverá ser feita de forma
adequada e fundamentada, visando a eficiência do procedimento licitatório e
melhor escolha da modalidade legalmente prevista.
Nesse sentido, um dos mecanismos apresentados foi o Sistema de
Registro de Preços – SRP, uma importante ferramenta que auxilia a
Administração Pública para o planejamento, economia e diminuição do
processo burocrático no que diz respeito a realização de diversos processos
licitatórios com um mesmo objeto, considerando que a partir da utilização desse
sistema ocorre a união de itens de mesma natureza em lotes, como forma de
se evitar o fracionamento ilegal de despesas e o parcelamento de objetos de
mesma natureza e, desta forma, diminuir a utilização da modalidade de
41

Dispensa de Licitação que por diversas vezes é utilizada como forma de fraudar
licitações.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo. Direito administrativo descomplicado. 25 ed. ver.


e atual. São Paulo: 2017.

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2018.

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ed. rev, ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015.

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contratos da Administração Pública. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
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MADEIRA, José Maria Pinheiro; MELLO, Cleyson De Mores. Lei 8.666


comentada e interpretada: Lei de Licitação e Contratos Administrativos. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 2014.

MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 12 ed. São Paulo: Saraiva,


2018.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte:


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MEDEIROS, Claudia Lucio de. A Importância do Planejamento nas


Contratações Públicas: Prevenção de Falhas e Efetividade nos Resultados.
Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará, 2018.
Disponível em: <http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2018/05/04-A-
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42 ed. São Paulo:


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42

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26 ed.


rev e atual. São Paulo: Malheiros, 2009.

MENDES, Fernanda Fragoso. Sistema de registro de preços: uma análise


acerca do entendimento do Tribunal de Contas da União e da Consultoria-
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UFPE. 2018. Disponível em:
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MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas licitações e contratos. 10 ed. Belo
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SANTOS, Lucimar Rizzo Lopes dos. A importância do planejamento na


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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Agravo em Recurso


Especial:AREsp 1278128 MA 2018/0086024-8 - Decisão Monocrática.
Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/623948999/agravo-
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TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Súmula nº 247. É admitida a adjudicação


por item e não por preço global, em editais de cujo objeto seja divisível. Diário
de Justiça da União, Brasília, 2004. Disponível em:
<https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/13/%252a/N
UMERO%253A247/DTRELEVANCIA%2520desc/false/1/false>. Acesso em:
20. out. 2018.
43

IMPRESCRITIBILIDADE DO DEVER DE RESSARCIR O ERÁRIO EM RAZÃO


DA PRÁTICA DE ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
IMPRESCRIPTIBILITY OF THE DUTY TO RETRIEVE THE ERARY ARISING
FROM THE PRACTICE OF ADMINISTRATIVE IMPROBITY ACTS

Matheus Rodrigues Oliveira


Edilson Vitorelli

Resumo: O Supremo Tribunal Federal pacificou entendimento, controverso na


doutrina e na jurisprudência, no sentido de reconhecer a imprescritibilidade da
pretensão de ressarcimento de prejuízos causados ao patrimônio público em
decorrência da prática de atos de improbidade administrativa. O presente
trabalho se propõe a uma análise da natureza jurídica do dever de ressarcimento
do dano ao erário, bem como da evolução jurisprudencial a respeito de sua
imprescritibilidade quando a lesão derivada da prática de atos ímprobos. É objeto
deste estudo, também, o elemento subjetivo nos atos de improbidade, vez que,
para que seja imprescritível o dever de ressarcir, o ato de improbidade
necessariamente deve ser doloso.
Palavras-chave: Improbidade administrativa. Imprescritibilidade.

Abstract: The Brazilian Supreme Court pacified an understanding, controversial


in doctrine and jurisprudence, in order to recognize the imprescriptibility of the
claim for compensation for damage caused to the public property due to the
practice of acts of administrative misconduct. This paper proposes an analysis of
the legal nature of the duty to compensate the damage to the purse, as well as
the jurisprudential evolution regarding its imprescriptibility when the injury derived
from the practice of improper acts. It is also object of this study, the subjective
element in the acts of misconduct, since, in order to be imprescriptible the duty
to compensate, the act of misconduct must necessarily be willful.
Keywords: Administrative misconduct. Imprescriptibility.

INTRODUÇÃO

O § 5º do artigo 37 da Constituição Federal dispõe que “[a] lei


estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer
agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as
respectivas ações de ressarcimento”. Como se observa, o constituinte
estabeleceu uma ressalva relevante, que configura exceção à regra de que tudo,
um dia, prescreve. A prescrição pode ser entendida como uma sanção à inação
daquele que é detentor de uma pretensão legítima. Essa ideia deriva do
postulado, originário do Direito Romano, representado pelo brocardo latino
dormientibus non sucurrit ius (o direito não socorre aos que dormem), como
forma de garantia da estabilização das relações jurídicas e extinção de
obrigações ante a inação daquele que poderia exigir seu adimplemento. Em
última análise, portanto, o instituto da prescrição se presta à garantia da
segurança jurídica.
Veja-se que o objeto do § 5º do artigo 37 da CF/1988 é distinto do que
dispõe o § 4º do mesmo dispositivo. O § 4º estabelece que as sanções para atos
de improbidade administrativa, independentemente da responsabilização nas
esferas penal e administrativa, seguirão o disposto em lei (inclusive, de forma
44

implícita, os prazos prescricionais). O § 5º, por sua vez, trata da


imprescritibilidade da ação que objetiva o ressarcimento ao erário em razão de
ato ilícito praticado por agente público ou não. O constituinte originário
estabeleceu, assim clara distinção entre a prescritibilidade das sanções
decorrentes de atos ilícitos e a imprescritibilidade da reparação ao erário.
À Administração Pública, portanto, foi assegurada, pelo constituinte
originário, a imprescritibilidade da pretensão de ver ressarcido um dano causado
ao patrimônio público, ainda que os agentes públicos responsáveis pela
reparação tenham se omitido no poder-dever de buscar a reparação no tempo
adequado. A mitigação, assim, do princípio geral da prescritibilidade, garantidor
de segurança jurídica, se dá em razão de outro valor igualmente superior: a
primazia do interesse público.
Não obstante, a imprescritibilidade trazida no bojo do § 5º do artigo 37 da
Constituição Federal foi objeto de substancial controvérsia doutrinária e
jurisprudencial, até a recente definição, pelo Supremo Tribunal Federal, no
sentido de reconhecer que é imprescritível a reparação do prejuízo causado ao
patrimônio público em decorrência da prática de atos ímprobos.
Este trabalho se propõe, assim, a uma análise a respeito da natureza do
dever de reparar o dano causado ao patrimônio público em decorrência da
prática de atos de improbidade administrativa para, então, proceder a uma
revisão doutrinária e jurisprudencial a respeito da sua prescritibilidade ou
imprescritibilidade.

1. NATUREZA INDENIZATÓRIA DO RESSARCIMENTO AO PATRIMÔNIO


PÚBLICO.

Aquele que, por ato ilícito, causa dano a outrem é obrigado a repará-lo –
artigo 927 do Código Civil –, e não poderia ser diferente quando a Fazenda
Pública é lesada. Na esfera da improbidade administrativa, o ressarcimento do
dano causado ao patrimônio público se reveste de natureza indenizatória,
derivada de uma responsabilização de ordem tipicamente civil.
Vale dizer: o ressarcimento integral do dano, a que faz referência o § 4º
do artigo 37 da Constituição Federal e o artigo 12, incisos I, II e III, da Lei n.
8.429/1992, pode ser obtido por qualquer meio, judicial ou extrajudicial, hábil a
garantir a reparação. Uma vez reconhecido o ato de improbidade, e dele
decorrente prejuízo de qualquer natureza, direto ou indireto, ao patrimônio
público, é decorrência lógica que o réu seja condenado a reparar o dano
causado. Tal medida não se confunde com a multa civil, esta sim de natureza
sancionatória, embora igualmente patrimonial.
Na esfera da improbidade administrativa, é cabível a condenação ao
ressarcimento integral do dano ainda que, por outras vias, tal reconhecimento
também tenha se dado. A Administração Pública pode adotar medidas, judiciais
ou administrativas, para reaver o prejuízo assumido. Ainda que, por exemplo, em
uma ação popular, ou uma ação civil pública ajuizada na forma da Lei n.
7.347/1985, o réu tenha sido condenado ao ressarcimento ao erário, a mesma
condenação deve se dar na ação de improbidade administrativa correlata.
Ocorre que, nesta hipótese, a comprovação da reparação do dano em uma via
extingue a obrigação nas demais. Não há, portanto, bis in idem na existência de
provimentos jurisdicionais que reconhecem simultaneamente a obrigação de
reparar o dano; entretanto, tal reparação se dará apenas uma vez, aí sim sob
45

pena de ocorrência do bis in idem. Se, por exemplo, o réu da ação de


improbidade já tenha reparado o dano administrativamente, a partir do
reconhecimento desta obrigação em decisão do Tribunal de Contas da União,
nada impede que o juízo competente para apreciar e julgar a ação de
improbidade condene o réu na mesma sanção e, na decisão, reconheça o
adimplemento desta obrigação.
O efeito prático desse entendimento é assegurar que a reparação do
prejuízo causado ao patrimônio público se dê, ainda que venha a ser revista a
decisão prolatada em outras esferas de responsabilização além da improbidade
administrativa (civil, administrativa, eleitoral, penal etc.), haja garantia do
cumprimento da obrigação.
Ressalte-se que o § 2º do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa
estabelece que “[a] Fazenda Pública, quando for o caso, promoverá as ações
necessárias à complementação do ressarcimento do patrimônio público”. Assim,
caso a reparação do dano na ação de improbidade seja insuficiente, caberá à
pessoa jurídica lesada buscar, por outras vias, a complementação da reparação.
Assim, embora o § 4º do artigo 37 da Constituição Federal estabeleça que
o “ressarcimento ao erário” como uma espécie de sanção decorrente da prática
de atos de improbidade administrativa – ao lado da suspensão dos direitos
políticos, da perda da função pública e da indisponibilidade dos bens, esta última
de natureza acautelatória –, há de se entender que o dever de reparar o dano,
em qualquer circunstância, possui natureza indenizatória, não se confundindo,
portanto, com as demais sanções, estas com viés punitivo, aplicáveis aos
agentes ímprobos.

2. DISCUSSÃO ACERCA DA IMPRESCRITIBILIDADE DO


RESSARCIMENTO DO DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO DECORRENTE DE
ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.

José Afonso da Silva (2007, p. 349) discorre a respeito da expressa


ressalva estabelecida no § 5º do artigo 37 da Constituição Federal ao princípio
da prescritibilidade:

Se a Administração não toma providências para sua apuração e


responsabilidade do agente, sua inércia gera a perda do ius
persequendi. É o princípio que consta do art. 37, § 5º, [...]. Vê-se,
porém, que há uma ressalva ao princípio. Nem tudo prescreverá.
Apenas a apuração e punição do ilícito; não, porém, o direito da
Administração ao ressarcimento, à indenização do prejuízo causado ao
Erário. É uma ressalva constitucional – e, pois, inafastável, mas, por
certo, destoante dos princípios jurídicos, que não socorrem quem fica
inerte (dormientibus non sucurrit ius). Deu-se, assim, à Administração
inerte o prêmio da imprescritibilidade, na hipótese considerada.

A doutrina majoritária, há tempos, reconhece que a disposição do § 5º do


artigo 37 do texto constitucional configura expressa ressalva ao princípio geral
da prescritibilidade. Nesse sentido, Garcia e Alves (2008, p. 500):

É voz corrente que o artigo 37, § 5º, da Constituição dispõe sobre o


caráter imprescritível das pretensões a serem ajuizadas em face de
qualquer agente, servidor ou não, visando ao ressarcimento dos
prejuízos causados ao erário. Como consequência, tem-se que
somente as demais sanções previstas nos feixes do art. 12 da Lei de
46

Improbidade serão atingidas pela prescrição, não o ressarcimento do


dano (material ou moral), o qual poderá ser a qualquer tempo
perseguido.

A abrangência do disposto no parágrafo 5º do artigo 37 da Constituição,


entretanto, foi mitigada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do recurso
extraordinário n. 669.069/MG (Tema 666 da Repercussão Geral)1. Na ocasião,
foi fixado o entendimento de que não é imprescritível a reparação do dano ao
erário, quando decorre de ilícito civil, desde que não configure ato de
improbidade administrativa.
Deve-se ressaltar que, nos termos do inciso III do artigo 927 do Código de
Processo Civil, as razões de decidir assentadas pelo Supremo Tribunal Federal
em julgamento de recursos extraordinário afetados à repercussão geral formam
precedente de observância obrigatória pelas instâncias jurisdicionais inferiores.
Assim, a pretensão do ressarcimento ao erário por parte daquele que pratica um
ilícito civil e, em decorrência disso, dá causa a dano ao patrimônio público (por
exemplo, um acidente automobilístico que causa avarias a um veículo de
propriedade do Poder Público) é, sim, prescritível, na forma como definiu o STF.
No entanto, a prescritibilidade da ação que objetiva a reparação do dano
ao erário decorrente de ato de improbidade foi expressamente excetuada do
julgamento. Essa foi a divergência novamente levada à apreciação do Supremo
Tribunal Federal no recurso extraordinário n. 852.475/SP. O objeto da
repercussão geral reconhecida está centrado na discussão sobre se de fato é
imprescritível a ação que objetiva a reparação do dano ao erário,
independentemente da prescritibilidade expressa para aplicação de outras
sanções, nas esferas penal, administrativa e da improbidade administrativa.
Aliás, a decisão do Pleno do STF que, por maioria, reconheceu a
existência de controvérsia constitucional e a repercussão geral no caso
paradigma2, é explícita nesse sentido. A decisão é assim ementada:

ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL


PÚBLICA. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PRETENSÃO
DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. PRESCRITIBILIDADE (ART. 37,
§ 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). REPERCUSSÃO GERAL
CONFIGURADA.
1. Possui repercussão geral a controvérsia relativa à prescritibilidade
da pretensão de ressarcimento ao erário, em face de agentes públicos,
em decorrência de suposto ato de improbidade administrativa.
2. Repercussão geral reconhecida.

No voto condutor, proferido pelo então relator, Ministro Teori Zavascki, foi
estabelecida adequadamente a distinção das teses jurídicas, que ora pretende-
se demonstrar:

2. Discute-se, no recurso extraordinário, a prescritibilidade da


pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos em
decorrência de suposto ato de improbidade administrativa. No exame
do RE 669.069-RG (de minha relatoria, DJe de 26/8/2013, Tema 666),
o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral de

1 STF. Tribunal Pleno. Recurso extraordinário com repercussão geral n. 669.069/MG (Tese 666).
Relator Ministro Teori Zavascki. Julgado em 3 fev. 2016; publicado em 28 abr. 2016.
2 STF. Tribunal Pleno. Recurso extraordinário com repercussão geral n. 852.475/SP. Relator

Ministro Teori Zavascki. Julgado em 19 maio 2016; publicado em 27 maio 2016.


47

matéria delimitada como a imprescritibilidade da ações de


ressarcimento por danos causados ao erário, ainda que o prejuízo não
decorra de ato de improbidade administrativa.
No entanto, no julgamento de mérito, firmou-se tese mais restrita, no
sentido de que é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda
Pública decorrente de ilícito civil (RE 669.069, de minha relatoria, DJe
de 28/4/2016, Tema 666). Tal diretriz não alcança, portanto, as ações
de ressarcimento decorrentes de ato de improbidade administrativa.
Em face disso, incumbe ao Plenário desta Corte pronunciar-se acerca
do alcance da regra estabelecida no § 5º do art. 37 da CF/88, desta vez
especificamente quanto às ações de ressarcimento ao erário fundadas
em atos tipifica os como ilícitos de improbidade administrativa.

Ou seja: o STF, no julgamento do recurso extraordinário n. 669.069/MG


(Tema 666), fixou o entendimento de que é prescritível a reparação do dano ao
erário, quando decorre de ilícito civil, que não configure ato de improbidade
administrativa. Por sua vez, a prescritibilidade da ação que objetiva a reparação
do dano ao erário que configura ato de improbidade, excetuada do primeiro
julgamento, passou a ser objeto de afetação à repercussão geral, tendo por
paradigma o recurso extraordinário n. 852.475/SP (Tema 897).
O tema afetado à repercussão geral foi o seguinte: “prescritibilidade das
ações de ressarcimento ao erário fundadas em atos tipificados como ilícitos de
improbidade administrativa”. Não se trata, pois, de discussão sobre a prescrição
para o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, nos termos da Lei n.
8.429/1992, mas se é ou não imprescritível a reparação de prejuízo ao erário
que decorre de ato ímprobo. As sanções de improbidade, indubitavelmente e por
expressa dicção constitucional (§ 4º do artigo 37), são prescritíveis.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal sedimentou em definitivo a
questão em agosto de 2018, ao finalmente julgar o recurso extraordinário n.
852.475/SP (Tema 897 da Repercussão Geral), em que foi fixada – por seis
votos a cinco – a seguinte tese: “são imprescritíveis as ações de ressarcimento
ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade
Administrativa” 3.
Assim, pacificou-se, em definitivo, o entendimento de que, quando o ato
de improbidade é doloso e gera prejuízo ao patrimônio público, a pretensão da
Administração ou do Ministério Público pela sua reparação é imprescritível.
A partir da definição do STF, sedimentou-se o entendimento que já era
reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina especializada, no sentido da
possibilidade de ajuizamento de ação, fundada na Lei n. 8.429/1992, para que o
Judiciário reconheça a prática do ato ímprobo e, ainda que não aplique as
sanções decorrentes, estas prescritas, condene o agente a ressarcir o prejuízo
causado ao erário. Assim, nada obsta que a ação de improbidade administrativa
seja ajuizada, nos termos da Lei n. 8.429/1992, a fim de que seja reconhecido o
ato ímprobo, para que, ainda que não sejam aplicadas as sanções (“penas”) dele
decorrentes, o agente seja condenado a reparar o dano ao erário). Neste caso,
a legitimidade ativa continua a ser tanto da pessoa jurídica lesada quanto do
Ministério Público. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, há tempos,
reconhece a legitimidade ativa do Ministério Público na busca por ressarcimento

3STF. Tribunal Pleno. Recurso extraordinário com repercussão geral n. 852.475/SP (Tema 897).
Relator Ministro Alexandre de Moraes; redator do acórdão Ministro Edson Fachin. Julgado em 8
ago. 2018; publicado em 25 mar. 2019.
48

de danos causados ao erário, ainda que tenha se operado a prescrição para as


demais sanções. Nesse sentido, por todos os julgados4:
A propósito, este entendimento foi publicado pelo STJ no informativo
“Jurisprudência em Teses”, edição n. 38 (“Improbidade Administrativa – I”), com
a seguinte tese: “O Ministério Público tem legitimidade ad causam para a
propositura de Ação Civil Pública objetivando o ressarcimento de danos ao
erário, decorrentes de atos de improbidade”. Esta tese foi publicada, também, no
Informativo de Jurisprudência n. 384, correspondente ao período de 16 a 27 de
fevereiro de 20095:

3. ELEMENTO SUBJETIVO

O Superior Tribunal de Justiça entende que, sob nenhuma hipótese, é


admitida a responsabilidade objetiva para reconhecimento da prática de atos de
improbidade administrativa. De fato, o elemento subjetivo deve ser demonstrado
– dolo ou culpa, nas hipóteses do artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa,
ou dolo, nas demais espécies de atos ímprobos.
Não há qualquer ressalva daquela Corte Superior, em remansosa
jurisprudência, no sentido de obstar a aplicação literal do disposto no artigo 10
da Lei n. 8.429/1992, ao prever a possibilidade de considerar condutas culposas
como ímprobas para, assim, ensejar a aplicação das sanções de estilo. Esse
entendimento está corroborado na tese 1 trazida no informativo “Jurisprudência
em Teses”, edição n. 38 (“Improbidade Administrativa – I”)6, no seguinte sentido:

1) É inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei n.


8.429/1992, exigindo- se a presença de dolo nos casos dos arts. 9º e
11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios
administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do
art. 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário.

No Superior Tribunal de Justiça, portanto, não há dúvidas acerca do


reconhecimento da possibilidade de serem sancionados os atos ímprobos
decorrentes de culpa grave, dos quais decorre prejuízo ao patrimônio público.
Há, entretanto, parcela da doutrina que sustenta a inconstitucionalidade do
elemento subjetivo culposo para a prática dos atos de improbidade
administrativa que importam em prejuízo ao patrimônio público. O fundamento
principal dessa corrente é no sentido de que o ato ímprobo, nos termos do § 4º
do artigo 37 da Constituição Federal, decorrem da desonestidade de agentes
públicos, inexistindo – para os que sustentam esse entendimento –
“desonestidade culposa”.

4 Por todos os julgados nesse sentido, vide: STJ. Segunda Turma. Recurso Especial n.
1.358.338/SP. Relatora Ministra Assusete Magalhães. Julgado em 9 ago. 2016; publicado em 2
fev. 2017. Decisão unânime.
5 O Informativo n. 384 do STJ faz referência ao seguinte julgado: STJ. Segunda Turma. Recurso

Especial n. 1.069.723/SP. Relator Ministro Humberto Martins. Julgado em 19 fev. 2009;


publicado em 2 abr. 2009. Decisão unânime. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/>; acesso em 9 out. 2019.
6 A ação em controle concentrado de constitucionalidade está sob relatoria do Ministro Marco

Aurélio Mello, sem data prevista para julgamento.


49

Tramita perante o Supremo Tribunal Federal, inclusive, a Ação Direta de


Inconstitucionalidade n. 4.295/DF7, pela qual são questionados diversos
dispositivos da Lei n. 8.429/1992, inclusive o caput do artigo 10 da Lei de
Improbidade Administrativa. O Partido da Mobilização Nacional (PMN), autor da
ação direta, não apresenta fundamentação sólida a respeito da
inconstitucionalidade do elemento subjetivo culpa, propriamente. Na petição
inicial8, defende a incompatibilidade da norma impugnada com os dispositivos
da Constituição Federal em razão de “não configurarem atos de especial
qualidade ética negativa”, em razão de um “critério frouxo adotado pelo
legislador”, que passaria – segundo a agremiação partidária autora – a “tornar
equivalente a improbidade toda irregularidade formal, independentemente do
grau de culpa do agente, da magnitude econômica do ato e das finalidades
perseguidas”.
Por certo, o entendimento sustentado pelo autor da ação direta decorre
de uma incompreensão a respeito da natureza da culpa para configuração dos
atos ímprobos tipificados no artigo 10 da Lei n. 8.429/1992. Como já sustentado,
a mera ilegalidade do ato praticado pelo agente público não é suficiente para
configuração de improbidade administrativa. Igualmente, conforme defendido no
tópico anterior, não é qualquer culpa a justificar a capitulação da conduta como
ímproba por lesiva ao patrimônio público. Deve-se buscar a culpa grave, aquela
decorrente de violação superior à mera juridicidade, decorrente de desídia
inescusável do agente, por imprudência, negligência ou imperícia.
Aliás, vale o destaque do entendimento sustentado por Neves e Oliveira
(2019, p. 91-92):

Nada obsta, em nossa visão, a previsão da modalidade culposa da


improbidade administrativa, uma vez que o art. 37, § 4.º, da CRFB não
se refere expressamente ao dolo como requisito essencial para
configuração da improbidade, bem como compete ao legislador definir
os ilícitos em geral (administrativos, civis e penais) e as respectivas
sanções. Nesse caso, ainda que se entenda que o ideal seria a fixação
apenas de modalidades dolosas de improbidade, a previsão da forma
culposa não significa violação ao texto constitucional.
Aliás, na forma culposa, há violação ao dever de cautela por parte do
agente público e do terceiro, o que justifica, em princípio, a aplicação
de sanções. Ora, se o Direito Penal, que estabelece sanções graves,
inclusive com restrição da liberdade dos indivíduos, admite a prática de
crimes culposos, com maior razão deve ser admitida a previsão legal
de atos de improbidade na forma culposa.
Isso não significa dizer que todo e qualquer deslize no dia a dia da
Administração venha a configurar improbidade administrativa. Existem
graus de violação à ordem jurídica que são sancionados com
intensidades distintas. A mera irregularidade administrativa comporta
sanção administrativa, mas não sanção de improbidade. A
interpretação da legislação de improbidade deve ser feita à luz dos

7 O Informativo n. 384 do STJ faz referência ao seguinte julgado: STJ. Segunda Turma. Recurso
Especial n. 1.069.723/SP. Relator Ministro Humberto Martins. Julgado em 19 fev. 2009;
publicado em 2 abr. 2009. Decisão unânime. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/>; acesso em 9 out. 2019.
8 Trata-se de processo eletrônico, de modo que a petição inicial está disponível para consulta

no sítio eletrônico do STF:


http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletr
onico.jsf?seqobjetoincidente=3751870; acesso em 9 out. 2019.
50

princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tanto na tipificação


das condutas quanto na aplicação das sanções.
Por esta razão, não basta, em princípio, apenas a culpa leve por parte
do agente ou do terceiro, exigindo-se a culpa grave para configuração
da improbidade administrativa.

Pende, entretanto, inclusive para sedimentar em definitivo o


entendimento, por questão de segurança jurídica, o posicionamento do Supremo
Tribunal Federal a respeito da constitucionalidade material do caput do artigo 10
da Lei de Improbidade Administrativa – não obstante o julgamento do Tema 897
da Repercussão Geral reconheça, ainda que tacitamente, a possibilidade de ato
ímprobo culposo, na hipótese prevista em lei (artigo 10 da Lei n. 8.429/1992). Na
esteira do entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal, entretanto, é
necessária a demonstração do dolo do agente ímprobo para a
imprescritibilidade, sem posicionamento definitivo daquela Corte a respeito da
constitucionalidade da modalidade culposa de ato ímprobo.

CONCLUSÃO

Após o julgamento do recurso extraordinário com repercussão geral n.


852.475/SP, o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento, no sentido
de reconhecer que, nos termos do § 5º do artigo 37 da Constituição Federal, é
imprescritível a pretensão de ressarcimento dos danos causados ao patrimônio
público em decorrência da prática de atos de improbidade administrativa
dolosos.
Como sustentado neste trabalho, o ressarcimento do dano não é medida
sancionatória, mas possui natureza indenizatória. Por este motivo, não se
confunde com as demais sanções previstas na Constituição Federal (§ 4º do
artigo 37) e na Lei n. 8.429/1992 (artigo 12, in fine).
Embora a Constituição Federal não disponha acerca do elemento
subjetivo nos atos de improbidade administrativa, a Lei n. 8.429/1992,
especificamente no caput do artigo 10, prevê a possibilidade de atos de
improbidade administrativa culposos que causem lesão ao patrimônio público.
Há controvérsia doutrinária a respeito da previsão de atos ímprobos culposos,
mas, até o momento, a constitucionalidade do dispositivo não foi afastada,
entendendo a doutrina e a jurisprudência majoritárias a possibilidade de
reconhecimento de ato ímprobo decorrente de culpa grave do agente público.
Nestas hipóteses de atos ímprobos culposos que causem dano ao patrimônio
público, na esteira do entendimento firmado pela Suprema Corte, a pretensão
ressarcitória prescreve no mesmo prazo da pretensão de aplicação das sanções
estabelecidas pela prática de atos de improbidade administrativa.

REFERÊNCIAS

BERTONCINI, Mateus; MARTINS, Grasiele Borges. A adequada aplicação das


sanções por ato de improbidade administrativa como forma de preservação de
direitos fundamentais. Revista Jurídica Unicuritiba (ISSN 2316-753X), Curitiba,
vol. 25, n. 9, p. 153-183, 2010.

BERTONCINI, Mateus; GARBIN, Maurício Augusto. Cidadania, princípio da


razoabilidade e o problema do ato de improbidade administrativa culposo.
51

Revista Jurídica – Unicuritiba (ISSN 2316-753X), Curitiba, vol. 43, n. 2, p. 93-


113, 2016.

GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 4.


Ed. São Paulo: Lumen Juris, 2008.

GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel; FERREIRA, Jussara Suzi A. B. Nasser;


CHUEIRI, Miriam Fecchio. Aspectos da prescrição na ação popular e a regra
do art. 37, § 5.º, da CF. Revista de Processo, São Paulo, vol. 189, nov. 2010, p.
101-122.

HOLANDA Jr., André Jackson; TORRES, Ronny Charles L. de. Improbidade


Administrativa. 3. Ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende.


Manual de Improbidade Administrativa: direito material e processual. São
Paulo: Método, 2019.

SCARPINELLA BUENO, Cássio. O procedimento especial da ação civil pública


por ato de improbidade administrativa (Medida Provisória 2.088). In
SCARPINELLA BUENO, Cássio; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende
(Org.). Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais. São Paulo:
Malheiros, 2001.

SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. 4. Ed. São Paulo:


Malheiros, 2007.
52

O CONTROLE EXTERNO DAS CONTAS PÚLICAS NO BRASIL POR MEIO


PARTICIPAÇÃO POPULAR À LUZ DA LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO
THE EXTERNAL CONTROL OF PUBLIC ACCOUNTS IN BRAZIL THROUGH
POPULAR PARTICIPATION BY THE ACCESS TO INFORMATION ACT

Leonardo Gutierrez Alves

Resumo: Controle social e participação popular são temas recorrentes e de


fundamentais importâncias para a devida consolidação de um Estado
Democrático de Direito. Nesse sentido, a Constituição da República Federativa
do Brasil garante dentre outros, o princípio da publicidade, o qual foi devidamente
regulamentado pela Lei de acesso à informação, de modo que os administrados
passam a conhecer melhor e com mais profundidade os detalhes da
administração pública, podendo assim, exercer o seu controle. Dessa forma, o
presente trabalho busca apresentar os conceitos do controle administrativo tanto
pela via externa exercido pelos Tribunais de Contas, bem como, o controle
realizado pelos cidadãos.
Palavras-chave: Tribunal de Contas. Controle Social. Lei de acesso à
informação.

Abstract: Social control and popular participation are recurring themes and of
fundamental importance to the consolidation of a democratic State of law. The
Federal Constitution guarantees, among others, the principle of publicity, which
was duly regulated by the access to information Act, so that the administered
shall know better and with more depth the details of public administration, and
control it. Thus, the present work seeks to introduce the concepts of
administrative control via external exercised by Courts of Auditors, and, the
control carried out by citizens.
Keywords: Court of Auditors. Social Control. Access to information Act.

INTRODUÇÃO

“Conhecimento é poder”, essa afirmação extraída do original em latim,


Scientia potentia est, é uma famosa frase a qual em alguns documentos é
atribuída ao inglês Francis Bacon, contudo, sua real autoria é desconhecida.
Independentemente do autor, essa pequena frase diz muito a respeito da
construção social da humanidade, a qual pode ser observada em muitas
passagens históricas em que um dos principais fatores de destaque de algumas
personalidades era o fato delas possuírem conhecimento advindo de
informações em diversas áreas, tais como política, científica, acadêmica,
filosófica e outras.
Atualmente a sociedade vive na “Era da informação” ou “Era do
conhecimento”, esse momento é fruto, principalmente, da grandiosa evolução
dos meios de comunicação que facilitam a transferências de conteúdos e dados.
Todavia, o fato de ter acesso à informação não significa diretamente
alcançar o seu conhecimento ou até mesmo entendê-la, contudo, o primeiro fator
é fundamental para que ocorram o segundo e o terceiro.
Assim, pode ser considerado como um grande progresso para a melhoria
da gestão pública a edição da Lei de acesso à informação (LAI), a qual garante
53

aos cidadãos acesso, à quase todas, às informações geradas pela administração


pública.
Ademais, é importante observar que não basta apenas fornecer dados,
mas também que o conteúdo a ser franqueado seja realizado em linguagem clara
e compreensível, conforme é exigido no artigo 5º da LAI1.
Assim, além de ter acesso às informações, a população poderá conhecer
o que se passa na administração pública, podendo exercer de fato o controle
dessa atividade, atendendo, dessa forma, um dos principais objetivos da lei.

CONTROLE DE CONTAS

Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos. Se


os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os
controles internos e externos. Ao constituir-se um governo integrado
por homens que terão autoridade sobre outros homens a grande
dificuldade está em que se deve, primeiro, habilitar o governante a
controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo.
James Madison, 1788 The Federalist Papers, nº 51

Essa memorável frase do Madison faz relembrar também Montesquieu, o


qual estabelece em sua célebre obra “o espírito das leis”, que os homens que
possuem o poder são tentados a abusá-lo “tout homme qui a du pouvoir est porté
à en abuser”2 (MONTESQUIEU, 1996, p. 166).
Sendo assim, o controle de contas é uma atividade essencial na
administração pública, a qual deve ser exercida de maneira independente e
imparcial, garantido assim a lisura do procedimento administrativo,
principalmente em um Estado democrático de Direito.
Para entender melhor esse último conceito, José Afonso da Silva ensina
que o Estado democrático de Direito é uma passagem importante na evolução
dos modelos estatais, haja vista que Estado democrático de Direito não significa
apenas a união do Estado democrático com o Estado de Direito (SILVA, 1988,
p. 21).
Esse modelo de Estado é caracterizado pela democracia que o qualifica
e segundo José Afonso da Silva “irradia os valores da democracia sobre todos
os seus elementos constitutivos e, pois, também, sobre a ordem jurídica” (SILVA,
1988, p. 21).
Assim, o Direito envolvido pelos valores da democracia “se enriquece do
sentir popular e terá de ajustar-se ao interesse coletivo” (SILVA, 1988, p. 21), Ou
seja, o Estado democrático de Direito pressupõe uma ampla participação
popular, a qual certamente deverá também controlar a res pública3.
Em relação ao controle da administração pública é importante destacar
que existem três modalidades (I) Controle Interno, o qual é caracterizado por ser
exercido pelo mesmo órgão, seja por uma hierarquia interna ou por meio das
corregedorias; (II) Controle Externo é realizado por outro órgão ou Poder e (III)
Controle Popular, sendo realizado pelos administrados, podendo ser
individualmente ou coletivamente.

1 (...) Art. 5o É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada,
mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil
compreensão.
2 Tradução do francês “todo homem que possui poder é levado a dele abusar” (MONTESQUIEU).
3 Tradução do latim “Coisa pública” ou “Coisa do povo”.
54

E nesse aspecto, é imperioso observar a Constituição da República


Federativa do Brasil estabelece no artigo 70 que

A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e


patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta,
quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das
subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso
Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno
de cada Poder.

E ainda, em no artigo 71 dispõe que “O controle externo, a cargo do


Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da
União”, com atribuições de apreciar, julgar, fiscalizar contas, dentre outras
atividades.
Ou seja, nesses casos a atividade exercida pelas Cortes de Contas no
Brasil é considerada como meio externo de controle.

CONTROLE POPULAR

A Constituição da República Federativa do Brasil aduz em seu artigo 1°,


parágrafo único, o maior exemplo da força popular estabelecendo que “Todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente”.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro considera, ainda que o controle seja uma
tarefa do Estado, o cidadão não só pode, mas também deve participar dessa
atividade, não somente na satisfação de seus direitos, da mesma forma nos
direitos coletivos (DI PIETRO, 2007, p. 671).
Nesse contexto é imperioso observar o artigo 31, § 3º, da Constituição
Federal, estabelece que “as contas dos Municípios ficarão, durante sessenta
dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e
apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade”.
Outrossim, no artigo 74, § 2º da Constituição Federal está garantido que
qualquer cidadão tem legitimidade para realizar denúncias de irregularidades ou
ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União – TCU.
Ademais, é fundamental destacar que qualquer cidadão é parte legítima
para propor ação popular que tem por objetivo, dentre outros, a anulação de ato
lesivo ao patrimônio público nos termos do artigo, 5º, LXXIII da Constituição
Federal.
Ainda, é válido frisar que no artigo 37, § 3º da Constituição Federal estão
elencadas algumas modalidades de participação popular na administração
pública, tais como a realização de reclamações relativas aos serviços públicos
prestados e a representação contra o exercício negligente e o abuso de poder.
Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello relembra que existe
também um importante mecanismo no controle da administração pública,
quando ocorre o “abuso de autoridade”, essa possibilidade está estabelecida na
Lei 4.898/65 que “regula o direito de representação e processo de
responsabilidade administrativa, civil e penal nos casos de abuso de autoridade”.
Para realização do referido procedimento, o interessado deverá peticionar a
autoridade superior (MELLO, 2009, p. 927).
55

Além disso, um notável canal para estabelecer o direito à cidadania e


facilitar o acesso da população junto aos órgãos públicos, são as ouvidorias, que
abrem um relevante espaço para dúvidas, sugestões e reclamações.
Desse modo, alinhada as modernas práticas em um Estado democrático
de direito surge esse meio de comunicação que é também conhecido como
Ombudsman.
Por fim, fica evidente que o sistema normativo brasileiro contempla
inúmeras modalidade de participação e controle popular na administração, o qual
somente pode ser bem concretizado com a existência da publicidade, legalidade
e outros princípios dos Direitos, Constitucional e Administrativo.

LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO

Conforme apresentado anteriormente, a criação da Lei nº 12.527/2011,


conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI), foi fundamental para a
garantia da publicidade, transparência e o estabelecimento de maior controle
social da administração pública.
Nesse sentido, o referido diploma legal regulamenta o acesso à
informação conforme garantido no artigo 5º, inciso XXXIII, no artigo 37, § 3º, II e
artigo 216, § 2º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Ademais, é válido destacar que a mencionada lei tem abrangência
nacional e sujeita sua observância a todos os entes federativos, aos órgãos
integrantes da administração pública direta dos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, ainda aos órgãos da administração pública indireta, bem como, os
Tribunais de Contas e Ministério Público.
Ainda, é imperioso observar que a Lei de acesso à informação (LAI)
estabelece no artigo 3º que uma das diretrizes desse diploma é realizar o
desenvolvimento do controle social da administração pública, ou seja, a
participação da sociedade controlando a atividade do Estado, essa garantia
possibilita, inclusive, a correção de falhas ou abusos praticados.
Em que pesem os avanços mencionados, é importante frisar que o
caminho percorrido até a publicação da Lei de acesso à informação foi longo,
haja vista que Constituição Federal foi promulgada em 1988 e a LAI somente
entrou em vigor em 2011.
Além disso, há se considerar que por ser uma lei relativamente “nova”, o
seu conteúdo ainda é desconhecido por muitos brasileiros, entretanto, espera-
se que o legado deixado seja imenso.
Embora haja uma enorme expectativa futura, não se imagina que grandes
efeitos aconteçam imediatamente, entretanto, é imperioso observar que alguns
efeitos práticos já estão ocorrendo, tendo em vista, por exemplo, que alguns
agentes públicos foram punidos, inclusive com demissão ou destituição de seus
cargos por descumprirem os ditames da LAI.
Ou seja, mesmo que incipiente, o dispositivo legal será importante para a
concretização da publicidade na administração publica, bem como, o
conhecimento da população do que se passa no âmbito público e
consequentemente será realizado o controle social da máquina estatal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
56

O controle de contas é uma tarefa de extrema importância na


administração pública e o árduo papel desempenhado por todas as Cortes de
Contas do país é louvável, contudo, somente esse tipo de controle externo não
atenderia todas as demandas sociais, tendo em vista o tamanho e a
complexidade do Estado brasileiro.
Assim, além do tradicional e eficiente controle externo exercido pelos
Tribunais de Contas, é necessária que seja ampliada a participação popular na
fiscalização da administração pública.
Nesse sentido, há um destaque para as variadas formas inseridas em
diversos dispositivos legais, inclusive na Constituição Federal, garantindo a
participação da população no controle estatal.
Por fim, uma das importantes medidas para estabelecer o acesso às
informações foi a publicação da Lei nº 12.527/2011 (LAI), a qual contempla e
espera que haja uma maior participação e controle social da administração
pública a partir das informações divulgadas.

REFERÊNCIAS

ANDI, Agência Nacional de Notícias dos Direitos da Infância. Acesso à


informação e controle social das políticas públicas. Coordenado por
Guilherme Canela e Solano Nascimento. Brasília. Disponível em
http://www.andi.org.br/politicas-de-comunicacao/publicacao/acesso-a-
informacao-e-controle-social-das-politicas-publicas. Acesso em 01 de abril de
2019.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de


1988. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm. Acesso em
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BRASIL. Lei nº 12.527 de 18 de novembro de 2011. Disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm.
Acesso em 26 de março de 2019.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª


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MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Baron de, 1689-1755. O espírito das


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PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. – 20. Ed. São Paulo:
Atlas, 2007.

SILVA, José Afonso da. O Estado democrático de Direito. Revista de Direito


Administrativo. Rio de Janeiro, 1988.
57

O LIMBO TRABALHISTA-PREVIDENCIÁRIO: VERDADEIRO DESRESPEITO


À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
LIMBO SULLA SICUREZZA DEL LAVORO E DELLA PREVIDENZA SOCIALE:
N VERO DISRISPETTO PER LA DIGNITÀ UMANA

Tânia Regina Silva Garcez


Luiz Rosado Costa
Orientador(a): Ana Paula Martins Amaral

Resumo: Há tempos o trabalhador no Brasil vivencia um problema denominado


limbo previndenciário-trabalhista, ou seja, tem seu benefício previdenciário
cessado mesmo com a manutenção da sua incapacidade laboral e, ao tentar
retornar ao trabalho, é impedido em razão de ter sido considerado inapto em
perícia. Por meio de método dedutivo e com pesquisa bibliográfica, documental
e empírica, esta pesquisa busca demonstrar que, mesmo diante da omissão
legislativa e de uma política pública que trate da questão, há necessidade de que
os operadores do direito busquem soluções.
Palavras-chave: Limbo previdenciário-trabalhista. Dignidade da Pessoa
Humana. Direito do trabalhador doente.

Sintesi: I lavoratori in Brasile hanno da tempo sperimentato un problema


chiamato limbo sulla sicurezza del lavoro e della previdenza sociale, ovvero, i
loro benefici di sicurezza sociale sono cessati anche con il mantenimento della
loro incapacità al lavoro e, quando cercano di tornare al lavoro, sono prevenuti
perché considerati non qualificati nelle competenze Con metodo deduttivo e con
ricerche bibliografiche, documentarie ed empiriche, questa ricerca cerca di
dimostrare che anche di fronte all'omissione legislativa e all'ordine pubblico che
affronta la questione, è necessario che le forze dell'ordine cerchino soluzioni.
Parole-chiavi: Limbo. Dignità umana. Legge dei lavoratori malati.

INTRODUÇÃO

Este trabalho visa discorrer a respeito do limbo previdenciário-trabalhista


que nos dias de hoje, vem se tornando corriqueiro em nosso sistema
previdenciário-trabalhista, porém, tema este considerado incomum e de difícil
discussão na jurisprudência e na doutrina, já que não existe legislação
específica e clara sobre o assunto, tornando um desrespeito cada vez maior à
dignidade da pessoa humana e se afastando da finalidade precípua da
Constituição Federal que é a de garantir o bem-estar e a justiça social a que se
acha preordenado o Estado brasileiro.
A proposta deste artigo é apresentar o entendimento jurisprudencial e
doutrinário quanto a esse fenômeno denominado limbo previdenciário-
trabalhista trazendo as consequências deste instituto na seara humanitária e
por decorrência na trabalhista e previdenciária.
Para responder ao problema enfrentado será utilizado o método
hipotético-dedutivo através de pesquisa bibliográfica, documental e empírica.

1 CONCEITO DE LIMBO PREVIDENCIÁRIO-TRABALHISTA


58

Há muito tempo o trabalhador no Brasil tem vivenciado um problema de


extrema relevância e pouca solução denominado limbo previndenciário-
trabalhista, em outras palavras, tem seu benefício previdenciário cessado
mesmo com a manutenção da sua incapacidade laboral, e ao tentar retornar ao
trabalho é impedido em razão de ter sido considerado inapto pelo médico do
trabalho.
Assim, permanece o trabalhador entre céu e o inferno, em um completo
vazio, onde, sem saber como resolver esse impasse, em qual Justiça recorrer
ou esperar, passa a vivenciar um dos momentos mais difíceis de sua existência.

1.1 O LIMBO NA VISÃO DA IGREJA CATÓLICA E DE DANTE ALIGHIERI NA


DIVINA COMÉDIA

Há mais de dez anos a igreja católica extinguiu este que foi considerado
um dos maiores dogmas de fé, o limbo, o “não-lugar”, o completo vazio, onde
ficavam eternamente os pagãos não batizados, que, embora tivessem sido
virtuosos em suas vidas, pagavam pelos seus pecados, mesmo sem a mínima
noção de conhecê-los, unicamente por não terem conhecido ou reconhecido os
ensinamentos de Jesus.
Em A Divina Comédia, poema épico escrito por Dante Alighieri no século
XIV, o poeta por meio de seu alter ego, se encontra com o poeta latino Virgílio
que, a pedido de Beatriz (amor da juventude de Dante), oferece-se como guia
pelo inferno e purgatório para que Dante, pelo exemplo dos pecadores, encontre
o caminho até a salvação e o paraíso.
Os dois iniciam a viagem, mas antes da entrada para o Inferno, passam
por uma região chamada “Limbo” – um lugar de espera eterna, onde não há
castigo, nem esperança de salvação– que abriga as almas de infantes falecidos
antes do batismo e de personagens do passado anteriores a Cristo. O limbo,
assim, é um não-lugar onde vai a alma daqueles que não podem ir para o céu
(ou porque não foram batizados ou porque nasceram antes de Cristo) mas
também não merecem o inferno.
É essa a sensação de limbo, como narra Dante:

“Somos por essa causa, essa somente,


Perdidos, mas nossa pena é só esta
‘Sem esperança ansiar eternamente”.
(ALIGHIERI, 1998, p. 44, grifo nosso).

Hoje já extinto pela doutrina da igreja católica, e sem Beatriz de Dante


para guiar ao Paraíso, o ansiar eternamente do limbo acomete milhares de
cidadãos brasileiros quando se sentem desamparados pela autarquia
previdenciária na negativa da concessão do benefício pleiteado e, em seguida,
pelo empregador que não o acolhe de volta ao trabalho e não se responsabiliza
pela sua remuneração. Assim, resta ao trabalhador esperar em um limbo jurídico
até que o Judiciário decida.

1.2 O LIMBO NA VISÃO PREVIDENCIÁRIO-TRABALHISTA

O limbo previdenciário-trabalhista ocorre quando o empregado, em


benefício de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, recebe alta na
perícia do INSS (Instituto Nacional da Seguridade Social) e ao passar pelo
59

exame médico do trabalho é considerado inapto para retornar à sua função.


Portanto, esse segurado-empregado passa a não contar com o auxílio do
benefício e também a não perceber seu salário ou remuneração junto ao
empregador.
A divergência entre laudos médicos também pode ocorrer entre aquele
que o médico particular ou da rede pública de saúde concede mediante exames
e procedimentos mais específicos do segurado e o laudo do perito da autarquia
previdenciária e ainda, através da famosa “ALTA PROGRAMADA”, na qual o
próprio INSS através de critérios desconhecidos pela medicina coloca um prazo
estabelecido para recuperação e cura do paciente-segurado.
A lei de benefícios (Lei 8.213/1991) não trata especificamente sobre o
limbo previdenciário apenas traz que o auxílio-doença será devido ao segurado
empregado a contar do décimo sexto dia do afastamento da atividade, e, no caso
dos demais segurados, a contar da data do início da incapacidade e enquanto
ele permanecer incapaz e que o segurado empregado, inclusive o doméstico,
em gozo de auxílio-doença será considerado pela empresa e pelo empregador
doméstico como licenciado 1
Já CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) aborda que o contrato de
trabalho permanecerá SUSPENSO durante o recebimento do benefício de
auxílio-doença. Traz em seu art. 476 que “em caso de seguro-doença ou auxílio-
enfermidade, o empregado é considerado em licença não remunerada, durante
o prazo desse benefício.”
É de se perceber que o benefício por incapacidade é precário, ou seja,
pode ser revisto pela perícia do INSS a qualquer momento, cabendo ao
trabalhador retornar à sua atividade imediatamente após a cessação, desde que
a autarquia o considere apto ao trabalho. Em outras palavras, cessou o benefício
cessa também a suspensão do contrato de trabalho.
Dessa forma, o benefício por incapacidade cessando, consequentemente
o contrato de trabalho volta à tona, cabendo ao empregador pagar o salário do
empregado. Ocorre que se o médico do trabalho que avalia este empregado o
considera INAPTO ao retorno, esse trabalhador fica a mercê da própria sorte,
uma vez que dá início a um jogo de “empurra-empurra” entre a Autarquia Federal
e o empregador.
O problema aqui envolvido se atribui ao fato de não existir norma que
venha a regulamentá-lo de forma inequívoca, o que deixa a resolução do embate
para via judicial, fazendo com que nossos Tribunais tenham que “legislar” sobre
o tema.

2. O SISTEMA NACIONAL DE SEGURIDADE SOCIAL (SNSS) E SEU


OBJETIVO

O Sistema Nacional de Seguridade Social foi definido pela Constituição


Federal como sendo o instrumento apto a assegurar as finalidades de bem-estar
e justiça social no país. E o artigo 194 da Carta Maior assegura que “a seguridade
social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social” (BRASIL, 1988).

1 Lei 8.213 de 24 de julho de 1991 arts. 60 e 63.


60

A Lei de Organização e Custeio da Seguridade Social (Lei 8.212/1991)


assim qualifica o Sistema em seu artigo 1º: “A Seguridade Social compreende
um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da
sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência
social e à assistência social” (BRASIL, 1991).
Já a Lei de Benefícios (Lei 8.213/1991) traz em seu artigo 1º traz que:

A Previdência Social, mediante contribuição, tem por fim assegurar aos


seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de
incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de
serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem
dependiam economicamente.

A Constituição e as Leis de Seguridade Social objetivam alcançar a


Justiça Social através de políticas sociais que, com o auxílio da seguridade
social, do Estado e da sociedade tratarão de implantá-las, em obediência aos
comandos da Constituição Federal do Brasil. Então, pergunta-se: o que se deve
entender por justiça social, aqui qualificada como objetivo de toda e qualquer
política social?
Superar esses problemas é núcleo do processo de desenvolvimento de
um povo e como ressalta Amartya Sen (SEN, 2010) o desenvolvimento requer
que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania,
carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática,
negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de
Estados repressivos. A despeito de aumentos sem precedentes na opulência
global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número de
pessoas, talvez até a maioria.
Ao inserir a justiça social como objetivo, o legislador constituinte
preestabeleceu a tarefa a que toda sociedade é chamada a desempenhar, não
só através da Seguridade Social, como também a cada indivíduo e a cada
empresa realizá-la. A justiça, enquanto uma finalidade a ser alcançada,
impulsiona a todos um dever de agir.
Incumbe sim ao Poder Público, aqui representado pela Previdência
Social, traçar com a sociedade estratégias sociais que se amoldem na direção
do objetivo proposto que é o alcance da justiça social e do desenvolvimento
humano e de todo país.
Entretanto, pertence também à inciativa privada, através das empresas
cumprirem a função social e solidária e como bem retrata Lívia G. Campello
(CAMPELLO; SANTIAGO 2016) a função social obriga os contratantes a não se
afastarem das “expectativas sociais” referentes a um dado negócio, não se
desviando para propósitos inúteis ou contrários à coletividade, sob pena de se
observar a interferência estatal na readequação do negócio. Impõe, assim, às
partes, uma postura negativa de não desrespeitar a sociedade.
Essa solidariedade entre Poder Público e sociedade deve existir, pois a
justiça social exige a superação de todo interesse egoísta que destrói o
desenvolvimento construído com liberdade. É incumbência da Seguridade Social
primar pela combinação da igualdade com a solidariedade e ser um sistema
jurídico capaz de conferir equivalente quantidade de saúde, previdência e
assistência social a todos que dela necessitarem e, esse respectivo objetivo, a
justiça social, somente se tornará algo palpável quando a promoção do bem de
61

todos deixar de ser um simples programa e trazer normas efetivamente


realizáveis e comprometidas com o bem comum.

3. O LIMBO E O DESRESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Ao se deparar com a historicidade dos direitos humanos, é possível


verificar que sua concretização se dá de forma não linear, sendo que na maior
parte das vezes são eventos históricos que provocam elevações nas garantias
e a consolidação de novos direitos.
Inicialmente, o conjunto de Direitos era denominado de Direitos do
Homem, entendido como espécie humana, o que remonta a ideia por detrás do
conceito já que são direitos inerentes ao ser humano, universais, independente
de etnia, sexo, idade, local de nascimento, posses, dentre diversos outros. Visam
acabar com as diferenças entre seres humanos, não só buscando tratamento
igualitário, como também fomentando políticas públicas que visem resguardar a
dignidade da pessoa humana.
Entre os Direitos do Homem se encontra talvez um dos mais importantes
– o Direito à Vida, entretanto, não basta viver, é necessária condição de uma
vida digna, por todo esse período, a ser suprida por cada ser humano através de
seu desenvolvimento individual, mas caso esteja impossibilitado em fazê-lo,
deverá ser suprida pelo Estado a partir de políticas públicas efetivas e concretas.
A vida só se torna digna quando se tem garantido o mínimo essencial,
como alimentação, moradia, saúde, educação, inclusão social. Através do
trabalho é que cada ser humano desenvolve suas habilidades e busca garantir
este mínimo essencial. Caso ele esteja doente, incapacitado para sua vida
laboral, como ver garantida sua dignidade, bem como de sua família?
Como preceitua Ingo W. Sarlet (SARLET, 2008) há uma proclamação à
dignidade relacionada a prestações sociais estatais obrigatórias (saúde,
educação, assistência social, trabalho, etc) impondo ao Estado o fornecimento
de prestações destinadas à concretização da igualdade e redução de problemas
sociais para entregar a pessoa humana o piso vital mínimo (mínimo necessário
para uma existência dignada).
No caso vertente, ao Estado caberá um dever de agir e acolher através
de uma política pública consistente esse trabalhador que se encontra num dos
piores momentos de sua vida, ou seja, doente e sem condições de suprir suas
necessidades básicas bem como de sua família.
Não é o que ocorre no Brasil e a dignidade da pessoa humana, no caso
do limbo previdenciário-trabalhista não está sendo respeitada nem pelo Estado,
mormente pela empresa empregadora, visto que, o INSS nega o benefício
mesmo percebendo a incapacidade do trabalhador que, sem condições, implora
para retornar ao trabalho e o médico do trabalho não o permite devido à
persistência da incapacidade.

4. A RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR DIANTE DO LIMBO


PREVIDENCIÁRIO

A recusa quanto ao retorno ao trabalho, sob a alegação de manutenção


da incapacidade laborativa, mesmo diante da alta previdenciária, configura o
que convencionou chamar de limbo jurídico. Via de regra, nos casos em que a
recusa parte da empregadora e não havendo alteração no entendimento da
62

autoridade previdenciária quanto à incapacidade laboral do trabalhador,


imputa-se ao empregador a obrigação do pagamento dos salários referentes
ao período em que o empregado ficou ausente do trabalho.
O ordenamento jurídico trata da matéria por meio do Decreto 3.048/1999,
alterado pelo Decreto nº 8.691/2016, e somente as leis trabalhistas bem como
sua jurisprudência nos trazem mais alternativas de solução que as leis
previdenciárias, já que os tribunais federais transferem a competência do limbo
para a Justiça do Trabalho, julgando apenas a questão da incapacidade ou não
do segurado.
O próprio artigo 476 da Consolidação das Leis do Trabalho traz que o
contrato de trabalho permanece suspenso enquanto o trabalhador-segurado
estiver em gozo de benefício de auxílio-doença, corroborado pelo art. 63 da Lei
8213/91. Desta forma, por analogia, conclui-se que se encerrado o prazo
concedido pelo benefício e, em não havendo decisão administrativa ou judicial
que o restabeleça, o contrato deixa de estar suspenso devendo o empregado
retornar ao trabalho e o empregador voltar a pagar sua remuneração.
No entanto, muitas vezes o trabalhador está inapto para retornar às suas
funções, diante do laudo de seu médico ou do médico do trabalho, podendo até,
em caso de retorno, prejudicar ainda mais sua saúde. Questiona-se, assim, se
então isso seria, portanto, uma espécie de “licença remunerada”?
É o que a jurisprudência majoritária vem entendendo, como ilustram os
seguintes julgados do Tribunal Superior do Trabalho (TST):

PAGAMENTO DE SALÁRIOS. ALTA MÉDICA


PREVIDENCIÁRIA. RECUSA DA EMPRESA EM RECEBER O
TRABALHADOR. A alta médica atestada pelo INSS é ato
administrativo, com presunção de veracidade, não passível de
descumprimento pelo particular. A impugnação do ato deve ocorrer
em instância própria e, enquanto não desconstituída por prova em
contrário, é válida. Trata-se de medida que visa à garantia de
direitos fundamentais dos trabalhadores. A recusa do empregador,
em permitir o retorno do trabalhador ao emprego para
desenvolvimento de suas atividades rotineiras, não o desonera do
pagamento dos salários e consectários legais. Precedentes.
Conhecido e provido. (BRASIL, 2015, grifos nossos).

AGRAVO. RECURSO DE REVISTA. ALTA


PREVIDENCIÁRIA. RESISTÊNCIA DO EMPREGADOR EM
AUTORIZAR O RETORNO DA EMPREGADA AO TRABALHO.
LIMBO TRABALHISTA PREVIDENCIÁRIO. INDENIZAÇÃO POR
DANO MORAL. 1. In casu , verifica-se que a autora recebeu alta
previdenciária por parte do INSS, e o contrato de trabalho deixou de
estar suspenso, ressurgindo para o empregador a obrigação de
pagar salários. Considerando que o TRT chancelou o entendimento
de que o empregador não estava obrigado a pagar salários em
período em que o contrato já não estava mais suspenso, concluiu-
se pelo malferimento do artigo 476 da CLT. 2. Acrescente-se que
todos os pedidos da autora estão amparados no fato de que mesmo
após inúmeras tentativas de retorno ao trabalho (após alta
previdenciária) a empregada foi impedida de voltar a trabalhar, e por
consequência, deixou de receber salários. A não percepção de
salários é a causa de pedir da rescisão indireta do contrato de
trabalho, bem como do pedido de indenização por danos morais. 3.
Por esta razão, uma vez restabelecida a sentença que reconheceu
que o empregador agiu ilicitamente ao desautorizar o retorno ao
trabalho depois da alta previdenciária, a consequência também é o
63

restabelecimento da decisão que julgou procedentes os pedidos


articulados com amparo na tese do "limbo previdenciário" . 4.
Registre-se, por fim, que ao contrário do que é sustentado pelo
Banco, a autora transcreveu às fls. 278-279 (recurso de revista) o
trecho do acórdão Regional que consubstancia o
prequestionamento da matéria. Logo, restaram atendidas as
exigências do artigo 896, § 1º-A, da CLT. 5. Em conclusão, não
prospera o agravo da parte , dadas as questões jurídicas
solucionadas na decisão agravada. Em verdade o reclamado só
demonstra o seu descontentamento com o que foi decidido. Não
merece reparos a decisão. Agravo não provido (BRASIL, 2019).

Diversos Tribunais vêm julgando desta mesma forma, tornando assim


pensamento majoritário onde nossos julgadores priorizam a aplicação dos
princípios da Dignidade da Pessoa Humana e do Direito Fundamental ao
Trabalho, sendo o não pagamento do salário do trabalhador pela empresa e
o não recebimento deste empregado de volta à sua função ou outra que lhe
permita o seu restabelecimento uma afronta aos referidos princípios.

CONCLUSÃO

Diante do apresentado, o limbo previdenciário é um tema que ainda não


possui uma legislação específica ficando assim na dependência da
interpretação dos operadores do direito.
Apontar alternativas para solução que não a judicial seria de extrema
relevância para quem vive ou viveu um dia a experiência deste limbo
previdenciário:
a) A primeira delas seria a de suprir a lacuna da lei através de
negociações coletivas, através de convenções coletivas ou acordos coletivos
de trabalho, com a participação efetiva de cada sindicato de categoria;
b) Em caso de readaptação do empregado, a participação sindical
seria de total e necessária valia, além da sensibilidade da equipe de recursos
humanos e do próprio empregador em determinar outra função que não abale
ainda mais a saúde do empregado-segurado;
c) Não havendo possibilidade de convenção coletiva, acordo
coletivo e reabilitação profissional, indenizar o empregado e colocá-lo em uma
espécie de “licença-remunerada”, pagando seu salário, recorrendo
administrativa ou judicialmente na tentativa de desconstituir o ato administrativo
(alta do INSS ao empregado) e pleiteando de forma indenizatória a reparação
dos danos pelo pagamento dos salários que deveriam ter sido pagos pela
Autarquia, através de Ação Regressiva contra o INSS;
d) Optar o empregador em rescindir o contrato de trabalho com o fim
do benefício e a consequente alta, caso não haja estabilidade profissional,
arcando com todo o ônus de uma rescisão sem justa causa, ou seja, com a
totalidade das verbas indenizatórias.
De qualquer forma, o que importa mesmo é tentar ao máximo preservar
a saúde física e psicológica da parte hipossuficiente desta relação que é o
empregado-segurado, que não pode em espécie alguma ser altamente punido
pelo limbo previdenciário, já que não foi ele quem deu causa à triste situação
que se vivencia – a enfermidade.

REFERÊNCIAS
64

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: inferno. Tradução: Ítalo Eugenio Mauro.


São Paulo: Editora 34, 1998.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm> . Acesso
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 31 jul.
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Acesso em: 26 jul. 2019.

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de novembro de 1994.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº TST-RR-740-


37.2011.5.15.0128, Relator Ministro Emmanoel Pereira, Datade Julgamento
11/03/2015, 5ª Turma, Data de Publicação DEJT 20/03/2015.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. TST. Agravo em Recurso de


Revista nº1005354020165010060, Relator: Maria Helena Mallm ann, Data de
Julgamento: 27/02/2019, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 01/03/2019.

CAMPELLO, Lívia Gaigher Bósio; SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Função social


da empresa na dinâmica da sociedade de consumo. In Revista Scientia Iuris.
Londrina, v.20. n.1, abr.2016, p.135.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9 ed., rev.,


ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.55.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Trad. MOTTA, Laura


Teixeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 16
65

UMA ABORDAGEM DOS MODELOS DE PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS


NO BRASIL À LUZ DOS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS DA PUBLICIDADE
E DA EFICIÊNCIA
AN APPROACH TO PRISON PRIVATIZATION MODELS IN BRAZIL IN LIGHT
OF THE ADMINISTRATIVE PRINCIPLES OF PUBLICITY AND EFFICIENCY

Claudia Aratangy
Orientador(a): Cintia Barudi Lopes

Resumo: O presente resumo visa discutir a dificuldade em se analisar


objetivamente a privatização dos presídios no Brasil à luz dos princípios da
Administração Pública - particularmente os da Publicidade e da Eficiência,
considerando-se também os mecanismos de controle na gestão dos contratos
celebrados entre o setor público e o privado. Demonstra-se a dificuldade em
mapear os presídios, obter informações sobre os contratos, identificar os
diversos modelos de gestão praticados e, por conseguinte, a fragilidade do
controle estatal que contribui para a própria fragilidade desses modelos
carcerários tidos como mecanismos aptos a amenizar a crise do setor de
segurança pública no país.
Palavras-chaves: Presídios. Parcerias público-privadas. Modelos.

Abstract: This summary aims to discuss the difficulty in objectively analyzing the
privatization of prisons in Brazil in the light of the principles of Public
Administration - particularly those of Advertising and Efficiency, also considering
the control mechanisms in the management of public sector contracts. private. It
is difficult to map prisons, obtain information about contracts, identify the various
management models practiced and, therefore, the fragility of state control that
contributes to the very fragility of these prison models considered as mechanisms
capable of mitigating the crisis. of the public safety sector in the country.
Keywords: Prisons. Public-Private Partnerships. Models.

INTRODUÇÃO

O presente resumo visa analisar os modelos de gestão e de parcerias


público-privadas já existentes e fazer uma abordagem desses instrumentos à luz
de alguns princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública, em
especial o da publicidade e o da eficiência, sem entrar no mérito da discussão
sobre a constitucionalidade das privatizações prisionais. Outra preocupação
desse resumo é questionar quais são e como estão sendo aplicados os
mecanismos de controle estatal e de monitoramento da iniciativa privada nos
presídios os quais são por ela geridos nas mais variadas regiões do país. Far-
se-á, pois, uma breve abordagem dos modelos prisionais privados em
funcionamento no Brasil, abordando-se as formas de gestão em cada região em
análise, a fim de se verificar, ao final do resumo, os pontos de fragilidade e de
vantagens desse sistema em parceria.
Atualmente 21 cidades no Brasil têm prisões geridas pela iniciativa
privada. São 32 unidades em oito estados brasileiros1.

1
Presídios Privados no Brasil. Disponível em
https://especiais.gazetadopovo.com.br/politica/presidios-privados-no-brasil/. Acesso em
06/09/2019.
66

O presídio de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, um dos pioneiros,


encontra-se em funcionamento desde 2013 e envolveu a construção da unidade
prisional pelo parceiro privado (empresa GPA) com prazo de gestão do
estabelecimento fixado contratualmente em 30 anos, com remuneração paga
direta e mensalmente, por preso, pelo parceiro público. Constata-se também
nesse modelo de gestão privada que a segurança no interior da unidade prisional
é realizada por empregados da empresa gestora, a GPA. Chamados de
monitores, os funcionários da empresa podem, apenas, utilizar cassetetes e
algemas. Para casos mais graves, como rebeliões, o Estado deixa, à disposição,
uma equipe de 12 a 14 agentes com poder de polícia2.
Manaus é umas das regiões do país que mais possui presídios
administrados em parceria com a iniciativa privada. Com um complexo composto
por 07 (sete) presídios – Complexo Penitenciário Anísio Jobim, todos são geridos
pela iniciativa privada, a Umannizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda. A
empresa se destina a gerir a limpeza e conservação predial, fornecer serviços
de rouparia e vestuário dos detentos, alimentação e serviços de apoio técnico,
tais como médicos, dentistas, assistentes sociais, advogados, psiquiatras e
outros. Quanto à segurança prisional, o monitoramento interno é feito por
agentes privados contratados pela Umannizzare em regime celetista que, em
cogestão, atuam com os agentes penitenciários, servidores públicos estatais.
Após um massacre ocorrido no ano de 2017, neste ano de 2019 o
complexo Anísio Jobim voltou a ser palco de mais um episódio de mortes
envolvendo 55 (cinquenta e cinco) detentos, colocando em xeque o modelo
prisional privatizado e trazendo à baila a fragilidade da gestão e do controle
estatal. Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária do Amazonas
(Seap), houve briga de facções por poder interno. Quatro dias antes, relatório da
Seap indicava que havia 20 nomes marcados para morrer3.
O Estado da Bahia possui 07 (sete) unidades prisionais geridas em regime
de cogestão, que representa uma repartição de competências e de
responsabilidade entre Estado e iniciativa privada. A empresa Socializa
Empreendimentos e Serviços de Manutenção é umas das principais gestoras
dos sistemas penais localizados no Complexo da Mata Escura e no de Barreiras,
gerindo desde o supervisor administrativo, médicos, dentistas, psicólogos,
advogados, assistentes sociais, nutricionistas, professores até o agente
penitenciário, chamado de agente de disciplina. A guarda de muralha é realizada
pela Polícia Militar.4
No Espírito Santo existem dois presídios geridos em parceria com a
iniciativa privada, a Penitenciária de Colatina e a de Segurança Máxima no
Município de Viana. Além da manutenção e conservação dos prédios e a
prestação de serviços técnicos (advogados, médicos, assistentes sociais e
outros), como ocorrem nos demais modelos, a empresa privada ainda é
responsável pelo trabalho dos detentos. A empresa também se responsabiliza
pelos estudos dos presos. Nestes locais os internos frequentam aulas do ensino
2 Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/parana/ribeirao-das-neves-unica-ppp-
penitenciaria-do-brasil/. Acesso em 06/09/2019.
3 Presídios: o que expõe o massacre no Amazonas? Disponível em
https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/noticias/presidios-o-que-expoe-o-massacre-no-
amazonas. Acesso em 14/09/2019.
4 SANTOS, Jorge Amaral dos. Parcerias público-privadas no sistema penitenciário brasileiro.

Disponível em https://jus.com.br/artigos/13521/as-parcerias-publico-privadas-no-sistema-
penitenciario-brasileiro. Acesso em 14/09/2019.
67

básico e fundamental. E todas as alas do presídio são monitoradas por um


sistema de câmaras, inclusive na portaria.5

No Ceará existe gestão compartilhada na Penitenciária Industrial


Regional do Cariri, no Município de Juazeiro do Norte. A gestão privada é
realizada pela empresa Humanitas Administração Prisional S/C, atualmente
denominada CONAP – Companhia Nacional de Administração Prisional. A
inciativa privada também é responsável, dentre as atividades de conservação e
manutenção dos prédios, alimentação, higiene e vestuário, pelo trabalho e
estudo dos presos. Há uma preocupação nesse sistema prisional com a
ressocialização dos detentos, já que a empresa privada investe no trabalho dos
internos. Nessa penitenciária, através de parceria com a empresa Criativa Jóias,
150 presidiários fabricam folheados, com uma produção de 250 mil peças/mês.
Cada preso recebe cerca de 75% do salário mínimo por mês e redução da pena6.
Posteriormente, ainda foram contratados mais dois sistemas privados de gestão
na região. Penitenciária Industrial Regional de Sobral (PIRS) e Instituto Presídio
Professor Olavo Oliveira II (IPPOO II). De maneira bem questionável, essas
outras duas gestões privadas foram contratadas com dispensa de licitação, sem
qualquer respaldo da legislação.
Em Santa Catarina, mais propriamente em Joinville, a Penitenciária
Industrial Jucemar Cesconetto é considerada modelo para as prisões na região.
Conhecida como “creche”, “spa” e “colônia de férias” entre os criminosos, ela se
destaca pelo tratamento humano e pela perspectiva de reintegração social que
oferece, por meio da educação e do trabalho7. A Montesinos é a empresa
responsável pela gestão nas regiões de Santa Catarina e Espírito Santos. O
poder de comando está nas mãos do diretor do Presídio, responsável pelo
contato direto com a Secretaria de Justiça e Cidadania e pela fiscalização das
atividades do parceiro privado.
No Estado do Paraná, pioneiro nas parcerias público-privadas em
presídios no país, a administração da Penitenciária Industrial de Guarapuava foi
retomada pelo Poder Público, após o encerramento do contrato. Atualmente não
existem presídios regidos em cogestão, mas o atual governo já manifestou a
intenção de retomar o sistema prisional privado.
Em São Paulo ainda não temos nenhum modelo privado de gestão
prisional em funcionamento. Porém, o atual governador do Estado já autorizou a
entrega de quatro unidades prisionais para a iniciativa privada. Serão 59
profissionais por unidade, de agentes a pedagogos, todos contratados pela
empresa que assumir o projeto. Ela ainda será responsável pela segurança
externa do presídio, escolta e transporte dos presos8.

5 Ibidem. Mesma data de acesso.


6 SANTOS, Jorge Amaral dos. Parcerias público-privadas no sistema penitenciário brasileiro.
Disponível em https://jus.com.br/artigos/13521/as-parcerias-publico-privadas-no-sistema-
penitenciario-brasileiro. Acesso em 14/09/2019.
7 Penitenciária de Joinville aponta a solução para o falido sistema carcerário. Disponível em

https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/07/uma-bpenitenciaria-de-joinvilleb-aponta-
solucao-para-o-falido-sistema-carcerario.html. Acesso em 17/09/2019.
8 Privatização de Presídios em SP segue modelo de unidades onde massacres deixaram 111

mortos. Disponível em https://ponte.org/privatizacao-de-presidios-em-sp-segue-modelo-de-


unidades-onde-massacres-deixaram-111-mortos/. Acesso em 14/09/2019.
68

AS PRINCIPAIS FALHAS DOS MODELOS PRIVADOS DE GESTÃO


PRISIONAL EM FUNCIONAMENTO

Encontrar informações sobre os presídios privatizados no Brasil é tarefa


árdua. O relatório do INFOPEN9 de 2017 não traz dados sobre a privatização da
gestão. É necessário, para isso acessar os relatórios estaduais, um a um. A
gestão dos presídios no Brasil é categorizada de quatro formas diferentes,
conforme consta nestes relatórios das Unidades da Federação:

Pública: ente público responsável pela gestão integral do


estabelecimento, mesmo que determinados serviços sejam
terceirizados;
PPP - entende-se, para os fins do presente levantamento, a realização
de contrato e outorga para entidade privada realizar construção e
gestão integral do estabelecimento, cabendo ao ente público a
fiscalização da atividade do parceiro privado;
Cogestão: trata-se, para os fins do presente levantamento, de modelo
que envolve a Administração Pública e a iniciativa privada, em que o
administrador privado é responsável pela gestão de determinados
serviços da unidade, como segurança interna, alimentação,
vestimenta, higiene, lazer, saúde, assistência social, psicológica, etc.,
cabendo ao Estado e ao ente privado o gerenciamento e administração
conjunta do estabelecimento;
Organização sem fins lucrativos - a gestão do estabelecimento é
compartilhada entre o Estado e entidades ou organizações sem fins
lucrativos10.

Os dados encontrados nestes relatórios foram reunidos na Tabela 1:


Pública PP Cogestão Organização sem fins lucrativos não informado Total

1432 7 28 36 30 1533
Tabela 1: Distribuição dos presídios no Brasil por tipo de gestão em números (autoria própria).

Como se pode observar, há 30 presídios sem informação. Embora do


ponto de vista percentual não seja significativo, além de violar o princípio da
publicidade, é preocupante que exista este tipo de omissão em uma área tão
sensível como a da administração penitenciária. Não há, mesmo nos relatórios
estaduais, qualquer outra informação sobre as características específicas desses
presídios: números de presos, tipo de crime cometido por aquela população
carcerária, número de funcionários, porcentagem de funcionários terceirizados,
custo por preso. Os números apresentados nos relatórios são globais e não
permitem uma análise comparativa.
Outro ponto que merece atenção é a categoria - cogestão - utilizada nos
relatórios, pois não há definição que contemple este conceito e, como se sabe,
a Lei 11.079/2004, que institui as parcerias público-privadas no Brasil, restringe-
as a duas modalidades, definidas em seu artigo 2º, §§ 1º e 2º, quais sejam,

9 Sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro disponíveis no site do


DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional - www.depen.gov.br.
10 Esta definição aparece apenas nos relatórios analíticos das Unidades da Federação mas não

no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Atualização - Junho de 2017 – nem


tampouco nas versões anteriores do Levantamento.
69

concessão patrocinada e concessão administrativa. Caso consideremos que a


cogestão se trata da Concessão administrativa, concordamos com DI PIETRO11
quando afirma que a definição carece de clareza. Para a jurista

Se esse objeto da concessão administrativa – delegação da execução


do serviço público – se revelar verdadeiro, haverá terceirização de
atividade-meio (serviços administrativos) e atividade-fim (serviços
sociais do Estado).

Para MÂNICA12 não há controvérsia e esta nova modalidade de


concessão pode englobar o sistema prisional, embora o autor chame a atenção
para os limites impostos pelo fato de os presídios englobarem atividades
exclusivas do Estado:

(...)Portanto, a criação dessa nova fórmula contratual — a concessão


administrativa — viabilizou um arranjo para a obtenção de serviços
para o Estado antes impossível: aquele em que o particular investe,
financeiramente, na criação de infraestrutura pública necessária à
existência do serviço e ajuda a concebê-la.
As parcerias público-privadas com objeto prisional tratam-se de
concessões administrativas de serviços administrativos prestados
diretamente à Administração e sua análise merece especial atenção.
Isto porque, devido às funções típicas estatais a que se relaciona,
o modelo exige cuidados quanto à delimitação de suas
possibilidades de delegação. (Grifo nosso)

E mais, para saber se os devidos cuidados estão sendo tomados, para


analisar se este modelo - que assumiremos como o de cogestão para fins deste
resumo - está de acordo com os ditames da Lei das PPPs, seria preciso, antes
de qualquer coisa, que o princípio da publicidade ou da transparência, como
tem sido chamado algumas vezes desde a Lei de Acesso à Informação Lei nº
12.527/2011, estivesse sendo respeitado. Entretanto a dificuldade do acesso às
informações sobre a privatização dos presídios vai desde os editais e processos
licitatórios até os relatórios sobre a gestão.
Esta impressão fica confirmada na leitura do relatório Prisões
Privatizadas no Brasil em Debate13, de 2014, elaborado pela Pastoral
Carcerária:

Efetivamente, não há informações suficientes para realizar uma análise


segura da efetividade da privatização no âmbito dos estados, a
começar pela falta de transparência. Os governos estaduais e as
empresas privadas resistem em oferecer informações dos processos
de licitação; a maioria ignorou nossos pedidos de informação ou
explicitamente se recusou a responder nossas perguntas, mesmo
diante de expressa menção à Lei de Acesso à Informação.

11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31ª ed. rev. atual. e ampl. – Rio de
Janeiro: Forense, 2018, p. 347.
12 MÂNICA, Fernando Borges; BRUSTOLIN, Rafaella. Gestão de Presídios por Parcerias

Público-Privadas: uma análise das atividades passíveis de delegação. Rev. Bras. Polít.
Públicas (Online), Brasília, v.7, nº 1, 2017 p. 304-320.
13 JESUS FILHO, José e OI, Amanda Hildbrand (coordenadores). Prisões privatizadas no

Brasil em debate/Pastoral Carcerária Nacional. São Paulo: ASAAC, 2014.


70

Quanto ao procedimento licitatório, observa-se que a participação no


certame se resume a um mesmo grupo de interessados do ramo, o que de certa
forma nos faz duvidar da ampla competitividade que deve nortear a licitação.
Além disso, há uma agravante no caso de Ceará com a contratação (ao nosso
ver ilegal) com dispensa de licitação.
Percebe-se, também, em algumas regiões que os presídios privatizados
acabam fazendo uma seleção bem como limitando o número de presidiários,
deixando-se para os presídios públicos o problema da superlotação e dos
detentos de maior periculosidade e pertencentes a certas facções criminosas.
Ou situações como a do presídio de Serrinha, na Bahia em que, segundo os
reeducandos não têm oportunidade de trabalho – embora a Secretaria de
Administração Penitenciária tenha oferecido “pois não haveria funcionários
suficientes para viabilizar o deslocamento de um grande número de presos para
a área de trabalho ou mesmo de estudo”. A empresa, entretanto, poderia
“providenciar funcionários para garantir trabalho e estudo aos presos, porém não
o faz por falta de interesse e dever legal”14.
Diante da ausência de informações mais precisas, fica inviabilizada a
análise objetiva sobre a eficiência dessas contratações. Percebe-se que, no
geral, esses presídios privados funcionam bem em termos de gestão predial, das
atividades de limpeza e lavanderia, higiene e alimentação dos detentos.
Também no que diz respeito aos serviços técnicos prestados por profissionais
especializados a gestão tem produzido resultados positivos. A despeito disso, o
massacre ocorrido em Manaus nos faz pensar que essas privatizações não são
capazes de evitar rebeliões e motins, mortes e fugas, mostrando ainda a
fragilidade do controle estatal nas gestões privadas que, ao que parece,
administram os presídios como “terra de ninguém.”
Fica então o questionamento: será que as privatizações dos presídios são
mecanismos jurídicos capazes de resolver a crise penitenciária no país?

CONCLUSÃO

A crise no sistema carcerário no Brasil já se estende há anos e existe


desde os anos 80. Com o advento da Lei n° 11.079/2004 – Lei das Parcerias
Público-Privadas, e a criação de uma nova modalidade contratual, a concessão
administrativa, abre-se uma possibilidade de amenizar a crise no setor de
segurança pública com a privatização da gestão prisional. A falta de publicidade
e de transparência por parte das empresas gestoras e do Poder Público, em total
descompasso com a Lei de Acesso à Informação (Lei n° 12.527/2011), vem
impedindo o acesso a dados imprescindíveis ao controle da eficiência desses
modelos contratuais e dos próprios mecanismos de controle estatal, que nos
parece bem falhos. Essa falta de informação dificultou a identificação mais
precisa dos modelos contratuais em funcionamento e existentes entre os
agentes envolvidos na gestão do sistema carcerário.
Constata-se do Sistema de informações estatísticas carcerárias dois
modelos em funcionamento nos presídios privatizados: a chamada parceria
público-privada (contratos em menor número de celebração definidos como a
gestão integral efetuada pelo parceiro privado sob supervisão estatal – o que nos
causa certa estranheza a expressão “gestão integral”: pode existir legalmente?)

14 Idem
71

e a chamada cogestão (contratos em maior número de celebração, com


responsabilidades compartilhadas entre a iniciativa privada e o setor público –
mais compatível com a conhecida concessão administrativa da Lei das PPP’s).
No modelo de cogestão a iniciativa privada fica incumbida da
administração interna dos presídios, desde a alimentação, saúde dos detentos,
higiene, trabalho, estudo, limpeza, lavanderia, serviços técnicos profissionais,
até monitoramento interno realizado por empregados contratados pela empresa
privada em regime celetista. O monitoramento externo e a direção do presídio
ficam nas mãos do parceiro público. Agentes penitenciários – servidores públicos
concursados e estatuários, são chamados em casos de crises, tais como
rebeliões, fugas e mortes.
Percebe-se que a precariedade na contratação desses monitores internos
e a alta rotatividade a que se sujeitam fragilizam o controle e facilitam as
rebeliões e fugas. O modelo chamado de parceria público-privada e que envolve,
conforme dados fornecidos no Sistema de Informações carcerárias, a gestão
integral dos presídios pela iniciativa privada é, no mínimo, temerária. Ressalte-
se que o artigo 4°, inciso III da Lei n° 11.079/2004 consagra expressamente a
indelegabilidade do poder de polícia à iniciativa privada. No modelo da cogestão
existe uma delegação parcial desse poder às empresas gestoras, haja vista que,
apesar do parceiro privado não ser responsável pela direção do presídio, nem
por sua segurança externa, o fato é que os monitores internos aplicam algumas
sanções disciplinares aos detentos, como apreensão de celulares e suspensão
de benefícios, o que fatalmente repercutirá no cumprimento da pena dos presos
e na sua progressão de regime.
Quanto ao controle e segurança dos detentos, constata-se o uso da
inteligência artificial no monitoramento interno dos presídios, como câmeras e
até drones. Verifica-se também que algumas unidades prisionais têm investido
mais fortemente nas atividades de estudo e no trabalho do preso, a exemplo do
que ocorre no Ceará. Mas o caminho ainda é longo para que as parcerias
público-privada sejam consideradas “as salvadoras da pátria”. Aliás, enquanto
esses modelos contratuais sejam assim considerados, substituindo-se às
políticas públicas na área de segurança, elas jamais produzirão os feitos jurídicos
esperados.
Esses modelos contratuais são válidos juridicamente enquanto haja um
intenso controle estatal e uma melhora no acesso às informações e dados
relacionados à gestão privada de presídios, tudo isso aliado às medidas de
política pública no setor. Sem essa segurança mínima de controle e de
transparência não se pode efetivamente avaliar o desempenho dessas
contratações. Nem mesmo se espera e, obviamente, seria bem inocente esperar
que as parcerias público-privadas sejam capazes de resolver definitivamente a
crise carcerária do sistema prisional brasileiro. Sem políticas públicas no setor,
sem investimento na educação e na ressocialização dos detentos, sem melhores
condições de trabalho à população brasileira (com a consequente diminuição da
criminalidade), a crise continuará existindo, a despeito da privatização.

REFERÊNCIAS

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31ª ed. rev. atual. e
ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2018.
72

MÂNICA, Fernando Borges; BRUSTOLIN, Rafaella. Gestão de Presídios por


Parcerias Público-Privadas: uma análise das atividades passíveis de
delegação. Rev. Bras. Polít. Públicas (Online), Brasília, v.7, nº 1, 2017.

JESUS FILHO, José e OI, Amanda Hildbrand (coordenadores). Prisões


privatizadas no Brasil em debate/Pastoral Carcerária Nacional. São Paulo:
ASAAC, 2014.

Notícias pesquisadas

SANTOS, Jorge Amaral dos. Parcerias público-privadas no sistema penitenciário


brasileiro. Disponível em https://jus.com.br/artigos/13521/as-parcerias-publico-
privadas-no-sistema-penitenciario-brasileiro. Acesso em 14/09/2019.

Presídios Privados no Brasil. Disponível em


https://especiais.gazetadopovo.com.br/politica/presidios-privados-no-brasil/.
Acesso em 06/09/2019.

Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/parana/ribeirao-das-neves-
unica-ppp-penitenciaria-do-brasil/. Acesso em 06/09/2019.

Presídios: o que expõe o massacre no Amazonas? Disponível em


https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/noticias/presidios-o-que-expoe-o-
massacre-no-amazonas. Acesso em 14/09/2019.

Penitenciária de Joinville aponta a solução para o falido sistema carcerário.


Disponível em https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/07/uma-
bpenitenciaria-de-joinvilleb-aponta-solucao-para-o-falido-sistema-
carcerario.html. Acesso em 17/09/2019.

Privatização de Presídios em SP segue modelo de unidades onde massacres


deixaram 111 mortos. Disponível em https://ponte.org/privatizacao-de-presidios-
em-sp-segue-modelo-de-unidades-onde-massacres-deixaram-111-mortos/.
Acesso em 14/09/2019.

Sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro


disponíveis no site do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional -
www.depen.gov.br.https://www.huffpostbrasil.com/2014/05/27/quanto-mais-
presos-maior-o-lucro-conheca-a-primeira-penitenci_a_21670346/
73

Grupo de Trabalho:

DIREITO CIVIL, EMPRESARIAL E


CONSUMIDOR I
Trabalhos publicados:

A LACUNA LEGISLATIVA SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE


VONTADE: DIFICULDADES A SEREM ENFRENTADAS

A MULTIPARENTALIDADE NA SUCESSÃO LEGÍTIMA

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A RESPONSABILIDADE CIVIL SOB A ÓTICA


DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

ANOTAÇÃO REGISTRÁRIA DOS DESCENDENTES EM ASSENTO DE


NASCIMENTO E DE ÓBITO DOS PAIS: PROPOSTA DE PREVENÇÃO E
EFETIVIDADE DE ACESSO À LEGÍTIMA

FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS: DO RECONHECIMENTO JUDICIAL AOS


LIMITES ESTABELECIDOS PELOS PROVIMENTOS DO CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA QUANTO À MULTIPARENTALIDADE
EXTRAJUDICIAL

O APRISIONAMENTO DA FAMÍLIA AO CASAMENTO

O NOME COMO O MÍNIMO EXISTENCIAL: DIREITO À AUTONOMIA E À


IDENTIDADE PESSOAL DOS TRANSGÊNEROS
74

A LACUNA LEGISLATIVA SOBRE AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE


VONTADE: DIFICULDADES A SEREM ENFRENTADAS
LEGISLATIVE GAP ON ADVANCE WILLING DIRECTIVES: DIFFICULTIES TO
BE FACED

Pyetra Caroline Ferraz Silva


Murilo Alves Muniz
Orientador(a): Cleber Affonso Angeluci

Resumo: O presente estudo tem como objetivo apresentar as atuais dificuldades


quanto ao pleno exercício do Direito à Liberdade implícito no registro das
Diretivas Antecipadas de Vontade, dada a ausência de lei que as regulamente,
levando ao despreparo das instituições judiciárias e cartorárias no que se refere
a aplicação e registros destas, sendo consequência de tal ausência, por fim
último, a deslegitimação do direito de liberdade do individuo ante o próprio corpo.
Além disso, importa-se a pesquisa em apresentar os meios nos quais poderão
suprir ou amenizar as lacunas legislativas referente as Diretivas Antecipadas de
Vontade, permitindo, assim, uma maior aplicabilidade e efetividade a este
instrumento, garantindo, por fim, dignidade ao registrante.
Palavras-chave: Ausência de Regulamentação. Instituições Judiciárias e
Cartorárias. Despreparo.

Abstract: The present study aims to present the current difficulties regarding the
full exercise of the Right to Freedom implied in the registration of the Advance
Willing Directives, given the absence of law regulating them, leading to the
unpreparedness of the judicial and notary institutions regarding the application
and records of these, being the consequence of such absence, finally, the
delegitimation of the right of freedom of the individual before his own body. In
addition, it is important to research to present the means in which they can fill or
mitigate the legislative gaps regarding the Advance Willing Directives, thus
allowing greater applicability and effectiveness to this instrument, ultimately
ensuring dignity to the registrant.
Keywords: Lawlessness. Judicial Institution and Notarial Office.
Unpreparedness.

INTRODUÇÃO

A pesquisa possui como objetivo avaliar as perspectivas atuais acerca das


diretivas antecipadas de vontade (DAV) e, principalmente, os problemas à serem
enfrentados por aqueles que desejam praticar tal ato de expressão de vontade.
Diferentemente do que usualmente discute-se acerca das diretivas,
pretende este resumo explicitar que não possui este instituto necessária ligação
com os atos de disposição da própria vida, haja vista que diz respeito à
procedimentos aos quais pretendem os indivíduos sujeitar-se ou não, sendo
inadequado pensar nas diretivas associando-as à morte, pois este último é um
fenômeno involuntário, contrapondo-se às diretivas, que dizem respeito a um
fenômeno, em sua essência, voluntário.
Importante esclarecer ainda que não há a pretensão de abordar neste,
aspectos teóricos como história ou significado das diretivas antecipadas de
vontade, visto que, diversos outros trabalhos científicos assim já o fizeram,
75

pretendendo-se, portanto, discutir os aspectos práticos que envolvem o registro


das DAVs. Para isso foi utilizado o método dedutivo por meio dos procedimentos
qualitativo e teórico que consistem na pesquisa de obras, jurisprudências, artigos
de periódicos e documentos eletrônicos que tratam do tema, bem como, a
própria legislação pátria a respeito do assunto.
Dada a consecução lógica sobre a pesquisa, mostra-se relevante sua
discussão haja vista os problemas que permeiam o tema, e que suscita
questionamentos à respeito do porquê as diretivas pouco são colocadas em
prática. Por trás desta pergunta, escondem-se tantas outras como: Seria a
ausência de normativas à respeito do tema o principal fator? Até que ponto é a
atuação do judiciário sobre o tema? Como fica o serviço do cartorário no que
tange ao registro das diretivas antecipadas de vontade sem legislação que o
direcione? Haveria outro meio que não seja o cartório notarial para realizar o
registro das diretivas?

COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS PREPONDERANTES: O QUE


TEM A LEI E A JURISPRUDÊNCIA A DIZER SOBRE AS DIRETIVAS
ANTECIPDAS DE VONTEDE?

Dentre os principais questionamentos acerca das DAVs, possuem estes


um “ancestral comum”, fundado na Constituição Federal Brasileira de 1988, em
seu art. 5°, caput, que prevê o direito à vida como direito fundamental inerente
ao ser humano, devendo este ser respeitado e garantido ante os demais.
Dada a característica de ser este direito fundamental, encontra óbice com
relação a sua não absolutoriedade no que tange a sua aplicação em aspectos
práticos, estando a todo tempo em conflito com outros direitos, como bem
explana Clève e Freire “os conflitos entre direitos fundamentais e bens jurídicos
de estrutura constitucional ocorrem quando o exercício de direito fundamental
ocasiona prejuízo à um bem jurídico protegido pela Constituição.”1
Um direito constantemente em conflito com o direito à vida é o direito à
liberdade, principalmente, na seara das diretivas antecipadas de vontade em
que, comumente, estas são associadas como um ato de disposição da própria
vida, mas que se profundamente analisadas, em nada tem a ver.
A opção pela não submissão à certos procedimentos, não implica
necessariamente à morte, pois pode um paciente após um lapso de
inconsciência sobreviver, entretanto, como qualquer outra escolha, tem também
sua consequência, que poderá ser a morte.
Neste sentido, dizem respeito as diretivas principalmente quanto aos
procedimentos médicos, como pode se observar da leitura do Art. 1º da
Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM):

Art. 1º. Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de


desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre
cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que
estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua
vontade2.

1 CLÈVE, Clémerson Merlin; FREIRE, Alexandre Reis Siqueira Freire. Algumas notas sobre
colisão de direitos fundamentais. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais das
Faculdades do Brasil, 2002, p. 3.
2 BRASIL. Resolução n° 1995 de 31 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas

de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União, Brasília – DF, p. 269-70, Seção I. Disponível
76

Do disposto, dizem as diretivas principalmente a respeito do direito à


liberdade e dignidade, do que do direito à vida, de modo que, o indivíduo que
recusa certo tipo de tratamento, não almeja sua morte, mas sim sua liberdade
sobre o próprio corpo.
Nas escassas decisões acerca das diretivas em âmbito nacional, por
diversas vezes, o poder judiciário aplica o direito à vida preponderando-o com
relação ao direito à liberdade, por acreditar que versam estas sobre atos de
disposição da própria vida, quando na verdade, dizem respeito a liberdade que
tem o indivíduo quanto aos procedimentos que pretende se submeter.
Importante salientar que, tal preponderância embora não seja
substancialmente benéfica, não se mostra como o motivo mais razoável para
justificar a pouca aplicabilidade das DAVs, podendo se considerar uma das
principais causas para tal fenômeno a ausência de normatização específica a
respeitos das diretivas.
Logo, aquele que eventualmente possua o desejo de propor tal ato
volitivo, encontra por diversas vezes óbice, haja vista que, nem todos os cartórios
notariais se dispõem a registrar as DAVs, ou ainda que disponham, se o individuo
por algum motivo venha a buscar o amparo do poder judiciário de modo a ver
respeitada sua vontade, o mesmo se deparará com decisões as quais deliberam
que não se enquadram as diretivas nas hipóteses legais de jurisdição voluntária,
não devendo, portanto, o judiciário chancelar pleitos declaratórios de caráter
genérico e abstrato, vez que, podem as diretivas serem realizadas em cartório
extrajudicial.
Neste mesmo sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo (TJSP) em acórdão de recurso de apelação, veja-se:

JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. DIRETIVAS ANTECIPADAS DE


VONTADE. ORTOTANÁSIA. Pretensão de estabelecer limites à
atuação médica no caso de situação futura de grave e irreversível
enfermidade, visando o emprego de mecanismos artificiais que
prologuem o sofrimento da paciente. Sentença de extinção do
processo por falta de interesse de agir. Manifestação de vontade na
elaboração de testamento vital gera efeitos independentemente da
chancela judicial. Jurisdição voluntária com função integrativa da
vontade do interessado cabível apenas aos casos previstos em lei.
Manifestação que pode ser feita por meio de cartório extrajudicial.
Desnecessidade de movimentar o Judiciário apenas para atestar sua
sanidade no momento da declaração de vontade. Cartório Extrajudicial
pode atestar a livre e consciente manifestação de vontade e, caso
queira cautela adicional, a autora poderá se valer de testemunhas e
atestados médicos. Declaração do direito à ortotanásia. Autora que não
sofre de qualquer doença. Pleito declaratório não pode ser utilizado em
caráter genérico e abstrato. Falta de interesse de agir verificada.
Precedentes. Sentença de extinção mantida. Recurso não provido 3.

em:< http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2012/1995_2012.pdf >. Acesso em 08 de


Out. de 2019.
3TJSP. Apelação Cível 1000938-13.2016.8.26.0100. Relator(a): Mary Grün. DJ: 10/04/2019.

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,2019. Disponível em:


< https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=12400740&cdForo=0>. Acesso em: 09
out. 2019.
77

De modo contrário, outros tribunais brasileiros têm decidido acerca do


tema, quebrando indiscutivelmente os melhores ideais de uniformidade de
decisões as quais deveria o poder judiciário manter. Exemplo disso é a eminente
decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sobre o assunto, na qual
entenderam os ministros pelo respeito aos limites traçados nas DAVs:

APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO.


ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé
esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme
laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudo
psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o
Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória
contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua
vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da
ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem
prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo
natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser
combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º,
III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A
Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual
não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento
ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera
infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico
ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que,
não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa
pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar
o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente,
pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que
figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina.
5. Apelação desprovida.4

A insegurança jurídica é latente em tais decisões, dada a discrepância dos


julgamentos, logo, se é dever do poder judiciário a fundamentação de suas
decisões conforme previsto no art.93, IX da Constituição Federal de 1988 5, no
que irá calcar o julgador sua decisão ante a ausência de normativa e
jurisprudência consolidada sobre as DAVs? Irrefutavelmente, na melhor
interpretação pessoal que tiver sobre o tema, independente de suas
consequências.
Em uma tentativa de transpassar tal lacuna legislativa causadora de
inúmeros subjetivismos sobre tal matéria, já foram apresentados alguns projetos
de lei que pretendem versar sobre a regulamentação das diretivas antecipadas
de vontade. Dentre eles pode-se citar o projeto de lei n° 5.559/16 do Deputado
Pepe Vargas e o projeto de lei n° 352/2019 do Deputado Alexandre Padilha,
estando ambos em trâmite na Câmara dos Deputados.

4 TJRS. Apelação Cível 70054988266. Relator (a): Irineu Mairani. DJ: 20/11/2013. Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 2013. Disponível em:
<https://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_acordaos.php?Numero_Processo=700549
88266&code=5852&entrancia=2&id_comarca=700&nomecomarca=&orgao=TRIBUNAL%20DE
%20JUSTI%C7A%20-%201.%20CAMARA%20CIVEL>. Acesso em: 09 out. 2019.
5 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federal do Brasil. Brasília, DF: Senado

Federal, 1988.
78

Já no Senado Federal, havia em tramitação dois projetos de lei, também


a respeito do tema, sendo eles o projeto de lei n° 149/2018 do Senador Lasier
Martins e o projeto de lei n° 267/2018 do Senador Paulo Rocha.6
No entanto, como nenhum projeto de lei foi aprovado até o momento,
continuam à mercê todos os demais órgãos cuja função é justamente pôr em
prática as diretivas, não sabendo os profissionais, sejam dos hospitais, do
judiciário, e dos cartórios notariais, quais procedimentos tomarem, acarretando
indiretamente o despreparo institucional e a pouca aplicabilidade das DAVs à
qual, em tão próximo momento, irá mencionar-se.

A INEXISTÊNCIA DE NORMATIZAÇÃO COMO PRECURSORA DE


DESPREPAROS INSTITUCIONAIS

Além da já mencionada insegurança jurídica dada a ausência de


normativas à respeito das Diretivas Antecipadas de Vontade, outros fenômenos
ocasionados por este mesmo motivo são a pouca aplicabilidade das diretivas e
o despreparo dos órgãos aos quais, à princípio, deveriam dar efetividade às
DAVs.
A pouca aplicabilidade das diretivas, além da própria inexistência de lei,
é ocasionada, dentre outros motivos, pela ausência de debate sobre o tema
morte pela população brasileira, bem como, pelo desconhecimento dos
indivíduos acerca dos processos e procedimentos médicos que poderão ser
dispostos por meio de diretivas.
A falaciosa ideia de que, não discutindo-se acerca da morte, são os seres
humanos capazes de afastá-la ou, ao menos, postergá-la, é ponto crucial da
pouca aplicabilidade das diretivas.
Nas palavras de Cleber Affonso Angeluci sobre o explanado:

Há certo receio e preocupação, talvez por crenças ou ausência de


hábito, de se falar sobre a morte, embora seja a única certeza da
existência, o receio perpassa o imaginário humano como se o próprio
assunto pudesse atraí-la, e como se a omissão fosse suficiente para
afastá-la a perder de vista, o que racionalmente não parece justificável
[...].7

Para além da pouca aplicabilidade das diretivas pelos motivos já


expostos, o despreparo institucional ao qual também cabe aqui mencionar dada
a ausência de legislação específica, afeta a atuação dos cartórios notariais no
que tange principalmente à padronização dos procedimentos, uma vez que, não
existindo lei que discipline sobre a forma pela qual devem as diretivas serem
registradas, acaba por ocasionar discrepância entre os instrumentos utilizados
pelos cartórios.
Muito embora a maioria dos tabeliães já tenham tido algum contato prévio
com tal ato, o procedimento de registro utilizado por cada um deles é variável. À
título de comprovação da afirmação citada, em uma pesquisa realizada entre 12
responsáveis por tabelionatos na cidade de Porto Alegre/RS, e apresentada
através do artigo “O registro das Diretivas Antecipadas de Vontade: opinião dos

6 ANGELUCI, Cleber Affonso. Considerações sobre existir: as diretivas antecipadas de vontade


e a morte digna. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 21, p. 39-59,
jul./set.2019. p. 56.
7 Ibid. p. 43.
79

tabeliães da cidade de Porto Alegre - RS” mostra que destes 12 tabeliães,


66,7% não adotam nenhum tipo de modelo para o registro das DAV’s, tendo
alguns deles citado que as registraram através de escritura declaratória, por
instrumento público e até mesmo por testamento.8
Tal confusão causada à esta classe de profissionais por conta da ausência
de lei que disponha sobre as diretivas, gera o emprego errôneo de instrumentos
cujo os efeitos são nitidamente causa mortis, como é o caso do testamento, para
o registro das diretivas. Via de regra, sabe-se que não deveria o testamento ser
utilizado para o registro das diretivas, eis que estas possuem efeitos para o
indivíduo que a registra ainda em vida.
A preocupação com o modo de feitura das DAV’s perante o cartório
notarial mostra-se relevante pois, ainda que a Resolução 1995/12 do CFM nada
diga a seu respeito, focando-se exclusivamente na atuação médica, é um dos
melhores métodos capazes de garantir segurança ao indivíduo, principalmente
no que tange ao respeito à sua vontade, sendo nas palavras de Crippa e Feijó
“[...] a forma mais concreta de comprovação da vontade para elidir possíveis
conflitos [...]”.9
Entretanto, dado os avanços tecnológicos constantes, surgem-se novas
ferramentas aptas à expressão e divulgação das diretivas antecipadas da
vontade, e por meio destas, tornando o ato muito menos burocrático. O advento
dos smartphones e da interação por meio de redes sociais pelos diversos tipos
de mídia, possibilitam a um só tempo, o registro das diretivas com um simples
toque, bem como, o acesso à seu conteúdo pelos profissionais a quem compete
respeitá-las, tornando muito mais efetivo tal ato de disposição de vontade.10

CONCLUSÃO

Por meio dos questionamentos e indagações explanadas, pôde-se


concluir que diversos são problemas pelos quais as DAVs pouco são colocadas
em prática, entretanto, dentre todos estes, destaca-se principalmente a falta de
normatização, como um dos principais problemas a serem enfrentados.
Assim, quando o indivíduo, convicto de suas vontades, deseja dispor a
respeito dos procedimentos médicos que pretende ou não enfrentar futuramente,
procura o cartório notarial ou o judiciário, e encontra de imediato óbice quanto a
formalização de seu direito.
Tais problemas ocorridos durante a feitura das diretivas são, em sua
grande maioria, causados pela falta de regras que, se existissem, teriam a
função de disciplinar os procedimentos e os meios adequados para a
formalização.
No entanto, há outros demais problemas que ainda precisam ser
superados para a efetiva aplicabilidade das diretivas, dentre eles destaca-se a
desvinculação da morte dos pensamentos fantasiosos a seu respeito, os quais

8 CRIPPA, Anelise; FEIJÓ, Ana Maria Gonçalves dos Santos. O registro das Diretivas
Antecipadas de Vontade: opinião dos tabeliães da cidade de Porto Alegre – RS. Revista Bioética
no Mundo da Saúde. 2016 p. 257-266.
9 Ibid.
10 ANGELUCI, Cleber Affonso. Considerações sobre existir: as diretivas antecipadas de

vontade e a morte digna. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 21, p.
39-59, jul./set.2019. p. 52.
80

ainda existem, e precisam ser quebrados para que possa discutir-se sobre o
tema.
Além deste, deveriam os órgãos governamentais e de classe preocupar-
se um pouco mais quanto da divulgação acerca das diretivas, de modo a superar
o desconhecimento dos indivíduos sobre os processos e procedimentos médicos
que poderão ser dispostos nesta.
Quanto da atuação dos tabeliães, se esta em um futuro próximo ainda
seja necessária para o registro das diretivas, o próprio suprimento da lacuna
legislativa à respeito das DAVs já melhoraria até certo ponto a padronização dos
procedimentos de registro, evitando-se, portanto, os conflitos acerca dos
instrumentos empregados para tal.
Estando todos estes problemas bem resolvidos, não haveriam muitos
motivos para procurar o judiciário para dirimir conflitos, conservando-se,
portanto, seu caráter subsidiário no que tange as diretivas antecipadas de
vontade.
Por fim, ressalta-se que, discutir-se sobre diretivas não se mostra de
grande valia apenas para a efetivação de seus procedimentos, mas
principalmente para garantir o mínimo de liberdade e dignidade ao individuo em
um momento tão delicado ao qual, de fato, surtirão as DAVs seus efeitos!

REFERÊNCIAS

ANGELUCI, Cleber Affonso. Considerações sobre existir: as diretivas


antecipadas de vontade e a morte digna. Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil, Belo Horizonte, v. 21, p. 39-59, jul./set.2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federal do Brasil.


Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Resolução n° 1995 de 31 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas


antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União, Brasília – DF, p.
269-70, Seção I. Disponível em:<
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2012/1995_2012.pdf >. Acesso
em 08 de Out. de 2019.

CLÈVE, Clémerson Merlin; FREIRE, Alexandre Reis Siqueira Freire. Algumas


notas sobre colisão de direitos fundamentais. Cadernos da Escola de Direito e
Relações Internacionais das Faculdades do Brasil, 2002, p. 3.

CRIPPA, Anelise; FEIJÓ, Ana Maria Gonçalves dos Santos. O registro das
Diretivas Antecipadas de Vontade: opinião dos tabeliães da cidade de Porto
Alegre – RS. Revista Bioética no Mundo da Saúde. 2016 p. 257-266.

TJRS. Apelação Cível 70054988266. Relator (a): Irineu Mairani. DJ: 20/11/2013.
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 2013. Disponível em:
<https://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_acordaos.php?Numero_Pr
ocesso=70054988266&code=5852&entrancia=2&id_comarca=700&nomecoma
rca=&orgao=TRIBUNAL%20DE%20JUSTI%C7A%20-
%201.%20CAMARA%20CIVEL>. Acesso em: 09 out. 2019.
81

TJSP. Apelação Cível 1000938-13.2016.8.26.0100. Relator(a): Mary Grün. DJ:


10/04/2019. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,2019. Disponível em: <
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=12400740&cdForo=0>.
Acesso em: 09 out. 2019.
82

A MULTIPARENTALIDADE NA SUCESSÃO LEGÍTIMA


THE MULTIPARENTHOOD IN LEGITIMATE SUCCESSION

Giovana Pires

Resumo: A Constituição vigente expandiu o conceito de família e tornou mais


branda a conceituação do tema.Com o surgimento de novos conceitos, o instituto
da família se adaptou ao longo do tempo, acompanhando a evolução social, por
exemplo, dando uma maior seguridade jurídica aos filhos havidos fora do
casamento e por meio de adoção.A multiparentalidade também é decorrente
dessa evolução: é um instituto muito recente e um reflexo dessa flexibilização do
conceito de família, que tem gerado muitas discussões em várias áreas do
Direito, em especial, nas áreas de família e de sucessões. Recentemente o
Supremo Tribunal Federal, por meio Recurso Extraordinário n°898060,
reconheceu a multiparentalidade.Com o entendimento da Suprema Corte é
nítido que o tema terá um reflexo no Direito das sucessões, uma vez que tal
entendimento reconhece que o parentesco socioafetivo, assim como o biológico,
gera efeitos patrimoniais.
Palavras-chaves: Multiparentalidade. Direito sucessório. RE 898060.

Abstract: The current constitution expanded the concept of family and made
more lenience the conceptuation of the theme, with the emergence of these new
concepts the family institute adapted over time according to the social evolution,
giving a greater legal security to children out of wedlock and through adoption.
The multiparenthood is a very recent institute and a reflection of this flexibility of
the concept of family that has generated many discussions in various areas of
law, in particular the areas of family and successions. Recently, the Supreme
Court by the Extraordinary Appeal N ° 898060acknowledged the
multiparenthood. With the understanding of the Supreme Court, it isclear that the
theme will have a reflection on the law of successions, since such understanding
recognizes that the socioaffective kinship, as well as the biological does, causes
patrimonial effects.
Key words: Multiparenthood. Inheritance law. Extraordinary Appeal N ° 898060.

INTRODUÇÃO

O Direito, em especial o Direito de família, passa por várias modificações,


pois a sociedade está em constante mudança. Ao longo dos anos novas
conceituações de família foram se formando e o ordenamento acompanhou tais
mudanças. Assim, a Lei Maior de 1988 trouxe uma nova conceituação para o
termo família, considerando não só o parentesco consanguíneo, como também
o afetivo, com essa regulamentação, os filhos havidos fora do casamento e por
meio de adoção passaram a ter direitos sucessórios.
A multiparentalidade é um instituto muito recente que tem gerado muitas
discussões em várias áreas do Direito, principalmente as áreas de família e de
sucessões. Apesar do recente reconhecimento, com o entendimento da
Suprema Corte é nítido que o tema terá um reflexo no Direito das sucessões,
uma vez que tal entendimento reconhece que o parentesco socioafetivo, assim
como o biológico, gera efeitos patrimoniais.
83

Assim, neste artigo serão analisados quais os efeitos deste instituto na


sucessão legitima e como seria feita a sucessão de que trata o art.1.836 do
Código Civil (BRASIL, 2002). Uma vez que as famílias multiparentais ainda não
têm uma regulamentação no ordenamento jurídico, seus efeitos frente à
sucessão legítima não são conhecidos de uma maneira clara, portanto conhecê-
los é uma necessidade eminente, pois cada vez mais o instituto se torna comum
na sociedade.

1. A FAMILIA MULTIPARENTAL

A família multiparental consiste na família composta por mais de um pai


ou uma mãe, esse instituto ganhou força com o reconhecimento do Supremo
Tribunal Federal acerca da multiparentalidade, no Recuso Extraordinário n°
898060. neste sentido Carlos Roberto Gonçalves: “A multiparentalidade, pois,
consiste no fato de o filho possuir dois pais ou mães reconhecidos pelo direito, o
biológico e o socioafetivo, em função da valorização da filiação socioafetiva”
(GONÇALVES,2017,p.398)
As famílias multiparentais são mais um exemplo da grande alteração do
Direito frente às modificações da sociedade, no entanto, apesar do grande
avanço com o reconhecimento da multiparentalidade, o instituto ainda precisa de
uma maior regulamentação, pois ainda existem muitas lacunas a serem
preenchidas, em especial os efeitos desse instituto no Direito sucessório.
O que se pode perceber é que o conceito de família se modificou muito,
por esta razão, alguns doutrinadores destacam a dificuldade de conceituar o
instituto que está em constante modificação.
Esses novos tipos de famílias que vem surgindo com o tempo é a prova
de que o Direito e a sociedade sempre evoluem, e tornam-se cada vez mais
flexíveis e abertos ás mudanças sociais
As famílias atuais são as chamadas famílias edemonistas ,nas quais o
afeto prevalece mais que a consanguinidade, o parentesco socioafetivo tem
grande espaço nestas famílias.
Poliana Carla Castro Trindade e Deborah Marques Pereira conceituam as
famílias edemonistas:

Diante do exposto, tem-se a família eudemonista como uma tendência


no Direito brasileiro, em que, mais vale o afeto do que a questão
biológica entre parente do mesmo sangue, pois as pessoas se unem
em função deste, trazendo para realidade do Direito o respeito,
companheirismo e sentimento para a união de pessoas que buscam
algo em comum entorno do amor.[...]
A família é a essência para o ser humano viver em sociedade e devido
às ampliações do conceito desta, o sentimentalismo tornou-se
característica principal para a formação da família brasileira, trazendo
para o direito das famílias uma experiência diferente de se criar lei,
baseando esta no afeto que entrelaçam os seres humanos, nascendo
à família eudemonista e dando a esta vida e direito (CASTRO;
MARQUES, 2015, p.14,15)

Essa conceituação de família baseada no afeto foi gradativamente


construída a partir da constituição de 1988, que ampliou o conceito de família
adequando-o a vários princípios, como o princípio da dignidade da pessoa
humana, afetividade, entre outros. O princípio da dignidade da pessoa humana
84

é um dos principais princípios para o instituto da multiparentalidade, pois é


preciso que todos sejam tratados de forma igualitária e que não se tenha a
chamada hierarquização dos vínculos.

2. A SUCESSÃO DE ACENDENTES E A LACUNA NO CASO DA


MULTIPARENTALIDADE

A sucessão de ascendentes é um tema pacificado no ordenamento


jurídico, visto que está presente nos artigos 1.836, § 2º, 1837 e 1.790, III do
Código Civil de 2002, analisando os artigos 1837e 1.790, III percebe-se que,
concorrendo com o cônjuge, o ascendente tem direito a um terço da herança
ou a metade, se for maior o grau. Já pelo artigo 1.836, § 2º vê-se que, na falta
de descendentes, a linha paterna herda metade e a outra metade cabe à linha
materna (BRASIL, 2002).
No ano de 2015 Farias e Rosenvald estabelecem alguns problemas com
relação à sucessão de ascendentes, caso o instituto fosse reconhecido:

De qualquer modo, procurando uma visão mais sistêmica e


problematizante, é preciso perceber que uma conseqüência natural da
admissibilidade da tese da pluripaternidade é o reconhecimento de
uma multi-hereditariedade, na medida em que seria possível reclamar
herança de todos os seus pais ou de todas as suas mães .
[...]
O tema, portanto, exige cuidados e ponderações de ordem prática,
uma vez que, admitida a pluripaternidade, estar-se-ia tolerando,
porigual, apluri-hereditariedade, gerando inconvenientes explícitos,
com uma estranha possibilidade de estabelecimento de filiação para
atender meramente interesses patrimoniais. Mais ainda: uma pessoa
poderia herdar várias vezes, de seus diferentes pais (FARIAS;
ROSENVALD, 2015, p.599).

O que se pode notar é que em um breve espaço de tempo o instituto foi


reconhecido e, por óbvio, gerou efeitos e diretos sucessórios. Tudo indica que a
problemática do instituto não está tanto na sucessão de descendentes, como
elencado pelos autores, mas sim na de ascendentes, a sucessão de
descendentes não encontra impedimento algum:

Ainda que possa soar inusitado, o fato de uma pessoa ter direitos sobre
heranças de diversos ascendentes em primeiro grau não encontra
obstáculo na ordem constitucional vigente. Assim, independentemente
da origem do vínculo, o filho será herdeiro necessário e terá direito à
legítima. Ter direitos sucessórios em relação aos pais biológicos e, ao
mesmo tempo, em relação aos pais socioafetivos não ofende qualquer
norma jurídica, ao contrário, apenas realiza a plena igualdade entre os
filhos assegurada pela Constituição. Ter um, dois, três ou até mais
vínculos parentais decorre de contingências da vida, de modo que não
há problema em haver irmãos legitimados a suceder em heranças
distintas de seus respectivos ascendentes. Tanto é assim que não se
questiona quando alguém que não tenha pai registral divide a herança
da mãe com outros herdeiros que têm dois pais (SCHREIBER;
LUTOSA, 2017, p.13).

Ao falar na sucessão de descendentes multiparentais fica fácil a


compreensão de como essa seria feita visto que, basta seguir a regra já
85

positivada para a sucessão de descendentes. Mas e quanto aos ascendentes?


Numa breve análise dos artigos1.836, § 2º, 1837, e 1.790, III do Código Civil
de 2002, há uma percepção de que os ascendentes ficariam com quotas
diferentes na sucessão. Ainda falta regulamentação sobre o tema, para então
suprir tais diferenças e garantir-lhes maior seguridade jurídica.
Neste sentido:

De acordo com o artigo 1.829, da lei civil vigente, que estabelece a


ordem de vocação hereditária, em se tratando de ascendentes, se
houver cônjuge sobrevivente, ele concorrerá com aqueles, qualquer
que seja o regime de bens do casamento, conforme disciplinado no
inciso II do citado dispositivo legal. Nesta hipótese, caberá um terço da
herança para cada um (CC, art. 1.837). A partir do exposto, surge a
dúvida: Como deverá ser partilhada a herança, quando houver dupla
parentalidade – pai biológico e pai socioafetivo –, e a sucessão for na
linha reta ascendente? E se houver concorrência com cônjuge
supérstite? (GOZZO, 2017, p.18)

Trata-se de uma lacuna na lei:

E, na ausência dos descendentes herdam os ascendentes (art. 1829,


II), em concorrência com o cônjuge, independente de regime de bens
ou somente o cônjuge sobrevivente caso não existam ascendentes
(art. 1.829, III).
Como se vê, as novas famílias se constituem numa “caixinha de
surpresas” e o código civil de 2002 não previu essa nova modalidade
de “família multiparental”, portanto não há normas aplicáveis,
principalmente no que diz respeito ao direito das sucessões.
(SHIKICIMA, 2016, p.74)

Na Falta de regulamentação sobre o tema, deve-se fazer uso da


equidade, adaptar o que =está positivado ao que já ocorre na prática, como
forma de tornar a lei mais justa, não prejudicando as famílias multiparentais, pois,
apenas aplicar o art.1.836,§ 2º ao caso concreto é nitidamente uma divisão
injusta, que fere os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Faz-se necessário, ademais, analisar como ficaria a sucessão de que
trata o artigo 1.837 do Código Civil, em que o cônjuge está em concorrência com
o ascendente. Sobre essa hipótese, Débora Gozzo propõe a seguinte forma de
divisão da herança:

Se houver só um pai e uma mãe, e o cônjuge supérstite, tudo indica


que este deverá continuar tendo direito a um terço do patrimônio líquido
deixado pelo falecido, cabendo o restante da herança ao ascendente.
[....}
Na hipótese de os ascendentes serem os avós, parentes em linha reta
de segundo grau, ou se maior for esse grau, sugere-se que a partilha
mantenha o montante de um terço para o cônjuge sobrevivente,
dividindo-se o restante do patrimônio em duas linhas: a materna e a
paterna, ainda que haja mais de um avô e/ou uma avó materno ou
paterno no grau (GOZZO, 2017, p.19)

A visão da autora sobre manter a mesma regra na hipótese em que trata


o artigo 1.837 é medida um tanto quanto injusta, tendo em vista que, em
respeito ao princípio da igualdade, as quotas devem ser dividas de forma igual
para todos herdeirosa regulamentação dos efeitos sucessórios, em especial a
86

sucessão de ascendentes é eminente, pois as famílias multiparentais precisam


ter uma maior segurança jurídica.
A resolução destas questões por meio dos princípios gerais do Direito e
através do Código Civil, aplicando as mesmas regras das famílias onde a
multiparentalidade não está a presente é uma medida de emergência, visto que
a regulamentação do instituto se atrela ao princípio da economia processual,
uma vez que com o estabelecimento do regramento jurídico da questão, o Poder
Judiciário não terá a necessidade de interpretar um caso concreto, fazendo uso
dos princípios e outras normas, para suprir as lacunas e, somente depois, ser
possível iniciar um processo de inventário, por exemplo, com isso, deixando as
famílias por mais tempo a espera de seus direitos.

CONCLUSÃO

O Direito se modifica com o tempo, com o avanço da sociedade. O


conceito de família é um grande exemplo de como o Direito se molda de acordo
com as necessidades sociais, visto que esse conceito, principalmente com a
CF/88, expandiu-se, existindo no ordenamento jurídico atual as mais diversas
formas de famílias.
Os Princípios são norteadores da ciência jurídica, o ramo do Direito de
família tem seus princípios próprios, as questões que envolvem a
multiparentalidade vêm sendo resolvidas por meio de princípios, tendo em vista
a falta de lei especifica sobre o tema, o que mostra a grande importância dos
princípios no ordenamento jurídico.
Para a sucessão de descendentes sejam eles multiparentais ou não, já
existe regra positivada. A problemática que se discutiu nesse trabalho versa
sobre a sucessão de ascendentes, pois os artigos 1.836, § 2º, 1837, e 1.790, III
do Código Civil de 2002, se forem aplicados aos ascendentes, estes terão
quotas diferentes na sucessão.
Alguns casos de multiparentalidade na sucessão já estão em
pauta no judiciário e estão sendo resolvidos ou com base nas regras de
sucessão, sem observar a particularidade dos casos que envolvem a
multiparentalidade, ou se utilizando dos princípios, o que é uma medida
emergencial e as famílias multiparentais necessitam de regulamentação
especifica, para que se atenda os princípios da isonomia e dignidade da pessoa
humana.
Assim, regulamentar a questão é uma medida iminente, pois cada vez
mais famílias multiparentais vão surgir e o ordenamento precisa acompanhar
estes avanços para dar a essas famílias segurança jurídica, resolver estes
questões sem uma regulamentação especifica poderá acarretar prejuízos a
essas famílias.

REFERÊNCIAS

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Curso de direito civil: famílias.,


7. ed. São Paulo: Atlas, 2015. v. 6.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito


civil: direito de família.7. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. v. 6.
87

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família 8. ed.


São Paulo: Saraiva, 2011. v. 6.

GOZZO, Débora. Dupla parentalidade e direito sucessório: a orientação dos


Tribunais Superiores brasileiros.Disponível em: http://civilistica.com/wp-
content/uploads/2017/12/Gozzo-civilistica.com-a.6.n.1.2017.pdf. Acesso em: 02
fev.2019

LUTOSA, Paulo Franco; SCHREIBER, Anderson. Efeitos jurídicos da


multiparentalidade. Disponível em:
file:///C:/Windows/system32/config/systemprofile/Downloads/5824-21823-1-
PB.pdf. Acesso em: 02 fev. 2019.

TRINDADE, Poliana Carla Castro; PEREIRA, Deborah Marques.


Eudemonismo e o Estatuto da família no Estatuto da Família no Direito
Brasileiro. Disponível em
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88

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A RESPONSABILIDADE CIVIL SOB A ÓTICA


DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS
DOMESTIC VIOLENCE AND CIVIL RESPONSIBILITY UNDER THE VISION
OF BRAZILIAN COURTS

Emilly Bianca Ferreira dos Santos


Rildo Amorim da Silva Júnior

Resumo: O presente trabalho trata do assunto violência doméstica na sociedade


conjugal e a possível responsabilização civil do agressor, focando na relação
homem-mulher por ser a que possui maior incidência de acontecimentos pela
desigualdade de gênero. As formas de violência delimitadas são as da Lei Maria
da Penha (Lei nº 11.340/2006). A busca de reparo, nesta pesquisa,
diferentemente da maioria dos casos, é feita pelo âmbito do Direito Civil. Apesar
das grandes divergências de entendimento sobre a possibilidade ou não de
reparação, foram coletados e analisados julgamentos de tribunais brasileiros
com a finalidade de demonstrar a visão do Poder Judiciário sobre estes casos.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Sociedade conjugal. Violência.

Abstract: This work papers deals with the issue of domestic violence in marital
society and the possible accountability of the aggressor, focusing on the male-
female relationship because it has the highest incidence of events due to gender
inequality. The forms of violence delimited are the Maria da Penha Law (Law No.
11.340/2006) and the search for reparation, unlike most cases, is made by the
scope of Civil Law. Despite the wide divergence of understanding about the
possibility of reparation or not, judgments of Brazilian courts were collected and
analyzed in order to demonstrate the view of the judiciary on these cases.
Keywords: Civil responsability. Conjugal society. Violence.

INTRODUÇÃO

Atualmente, parece ter ganhado notoriedade nas grandes mídias casos


de violência doméstica, em que a vítima recorrentemente é a mulher como
esposa, namorada, ex-mulher ou até filha do agressor. Contudo, tais casos não
são recentes nem cresceram de forma exponencial repentinamente.
A cultura brasileira de perpetuação de violências familiares não é tão nova
quanto as notícias televisivas e possui suas raízes fincadas na família patriarcal.
Na verdade, a própria sociedade conjugal construída no ordenamento jurídico
brasileiro – que apenas refletiu o corpo social dos séculos XIX e XX com o Código
Civil de 1916 – possui a ideologia do pater familia.
Nesse cenário, a violência doméstica, principalmente contra a mulher,
naturalizou-se a ponto de ser bordão famoso no Brasil o “em briga de marido e
mulher, não se mete a colher”. No entanto, a omissão da sociedade e até de
autoridades encarregadas de resguardar a incolumidade pública prejudicou e
fertilizou o campo para que as formas de violência prosperassem.
Assim, um ambiente que, idealmente, deveria ser de segurança, alegria e
bem-estar torna-se hostil e perigoso com agressões físicas, xingamentos,
ameaças e, no pior dos casos, leva a morte de milhares de mulheres brasileiras.
O comumente esperado é que a mulher busque a via judicial pela área do
Direito Penal, ingressando com uma ação e pleiteando a medida protetiva,
89

entretanto, sabe-se que esta é a ultima ratio e que, muitas vezes, tratam-se de
relações familiares que envolvem fatores sentimentais, outras pessoas como
filhos, questões financeiras e a submissão pela desigualdade de gênero. Por
conta disso, o questionamento que se faz é: qual outra medida mais efetiva
poderia ser adotada pela vítima nessa situação?
Para tentar responder essa pergunta, a responsabilidade civil aparece
como medida possível. Sabe-se que nunca será possível retornar ao status quo
ante – o próprio Direito penal é prova disso –, entretanto, pode-se estar diante
de um meio para reparar danos materiais ou até mesmo, por exemplo,
possibilitar o custeio de acompanhamento psicológico para a vítima.
Como não há regramento positivo específico sobre o assunto, este
trabalho pretende analisar a tendência dos tribunais brasileiros, se estão
predispostos a aceitar a responsabilidade civil decorrente de ilícitos na
constância marital, ou se se recusam a possibilidade.

O ENFOQUE DA VIOLÊNCIA NA RELAÇÃO HOMEM-MULHER

A violência acompanha a história do homem desde os primórdios, o que


pode fazer parecer que seja aspecto natural das relações interpessoais.
Entretanto, assim como a desigualdade social não é natural (ODALIA, 1983),
apesar da tentativa de normalização na sociedade e, por vezes, até parecer ser
incontrolável, a violência de gênero também não é.
A desigualdade na relação homem-mulher é construída e pode se
caracterizar como violência doméstica, como violência de gênero. Por óbvio, a
violência de gênero pode ser praticada nas relações homem-homem e mulher-
mulher, contudo a violência mais conhecida e difundida é homem-mulher
(SAFFIOTI, 1999).
Uma explicação para o fenômeno pode ser o fato de que a mulher
fisicamente ter menor vantagem que o homem, o que não significa por dedução
que não existam mulheres agressivas. Contudo, o homem ainda,
expressivamente, é o maior vetor de violência.
Dados do 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública informam que em
2017 houve 4.539 homicídios de mulheres, representando um aumento de 6,1%
em relação ao ano de 2016. Desse total, 1.133 foram registrados como
feminicídios. Além disso, foram registrados 221.238 casos de lesão corporal
dolosa enquadrados na Lei Maria da Penha, o que significaria 606 casos por dia.
Por isso, o foco deste trabalho é no mais notável relacionamento abusivo
no cenário brasileiro que é a relação homem-mulher.

FORMAS DE VIOLÊNCIA DENTRO DA SOCIEDADE CONJUGAL E A LEI


MARIA DA PENHA

A Lei Maria da Penha, nº 11.340/2006, criou mecanismos aptos a coibir a


violência doméstica e familiar contra a mulher. Não sem motivo, haja vista ser
esta na sociedade brasileira o alvo mais fácil de ser atingido em caso de
violência. O Panorama da Violência Contra as Mulheres no Brasil relata que a
violência infligida é causada por motivos afetivos e emocionais, logo, em geral o
agressor é seu próprio companheiro (2018).
As formas de violências podem ser várias, mas por fins didáticos, serão
utilizadas as descritas no artigo 7º da Lei 11.340/2006, dos incisos I a V. A
90

violência doméstica e familiar pode ser física, psicológica, sexual, patrimonial e


moral.
Todavia, neste trabalho a abordagem será preferencialmente das
violências física, moral e psicológica por serem as mais comumente
denunciando na relação conjugal.

A CONFIGURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Decorre de ato ilícito a responsabilidade civil na convivência conjugal, v.


g., abuso físico, como espancamento; abuso psicológico, como xingamentos, a
repetição de ideias depreciativas sobre o cônjuge ofendido.
A primeira característica deste dano é ser dever jurídico sucessivo, que
significa que há um dever jurídico originário que, geralmente, pode ser
expressado como a obrigação de respeitar a dignidade da pessoa humana e, se
este foi violado, gera o dever jurídico sucessivo, que é o de indenizar moralmente
o ofendido.
Em síntese, como ensina Sérgio Cavalieri Filho (2015) a responsabilidade
civil se origina de dano que violou dever jurídico originário, sendo, por
consequência, dever jurídico sucessivo.
Também é fato jurídico voluntário ilícito. Fato jurídico é todo fato que
possui relevância para o direito, pois diversas ações e omissões, quando
exteriorizadas, ganham importância no mundo fático mas, somente, algumas
afetam o mundo jurídico. A voluntariedade refere-se à conduta humana, ou seja,
fato jurídico voluntário é ação ou omissão humana e não natural. Portanto, fato
jurídico voluntário ilícito é ato da conduta humana que ganha relevância, pois vai
contra lei ou norma do ordenamento jurídico.
Dentre as formas de responsabilidade, a do dano moral em sociedade
conjugal é responsabilidade civil extracontratual, pois o dano não advém de
quebra ou violação de norma contratual, mas sim da realização de ato ilícito
contra o indivíduo ofendido.
Poder-se-ia até entrar em discussão quanto as exceções em que a
responsabilidade civil seria contratual, pois a sociedade conjugal, que é gênero,
pode ser casamento e união estável contratual. Contudo, o objetivo do estudo
não é verificar a violação de cláusulas maritais ou itens dispostos em contrato de
união estável, como, por exemplo, na hipótese de existir uma cláusula expressa
em que em caso de traição, o cônjuge faltoso deveria pagar determinada quantia
monetária. Na verdade, o intuito da pesquisa é de verificar os abusos originados
de atos ilícitos, como abuso físico, psicológico, patrimonial, moral.
Portanto, para este estudo da responsabilização civil em sociedade
conjugal, esta é extracontratual, ou seja, origina-se de um dever jurídico imposto
em lei (CAVALIERI FILHO, 2015).
Por fim, é responsabilidade civil subjetiva, que é caracterizada pelos
quatro elementos fundamentais: conduta, culpa, nexo de causalidade e dano.
Justamente pelo pressuposto indispensável da responsabilidade subjetiva – a
culpa –, é que o dano moral em sociedade conjugal é assim definido. A culpa in
lato sensu deve estar presente, sob pena de tentar responsabilizar objetivamente
em relações interpessoais.
Em resumo, a responsabilização do cônjuge faltoso é civil subjetiva e
extracontratual por fato jurídico voluntário ilícito e dever jurídico sucessivo.
91

A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA SOBRE A INDENIZAÇÃO DE DANOS


DECORRENTES DA SOCIEDADE CONJUGAL

Como é de amplo conhecimento e reafirmado por Belmiro Pedro Welter,


a jurisprudência majoritária é reticente em relação à indenização por danos
morais na sociedade conjugal, tendo sido esse um dos motivos para o estudo do
tema (2000).
No entanto, em julgados brasileiros, como no REsp. nº 37.051/SP do STJ
citado por Rolf Madaleno (2016, p. 354) foi reconhecido o direito à devida
indenização ao cônjuge inocente que, durante a permanência da união
matrimonial, foi injuriado pelo ofensor. O julgado é de 2001, portanto estava sob
a égide do Código Civil de 1916, do Código de Processo Civil de 1973 e da
possibilidade de separação por culpa, o que se verifica no caso:

SEPARAÇÃO JUDICIAL - PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS


GUARDA E INTERESSE - DANOS MORAIS REPARAÇÃO -
CABIMENTO - 1. O cônjuge responsável pela separação pode ficar
com a guarda do filho menor, em se tratando de solução que melhor
atenda ao interesse da criança. Há permissão legal para que se regule
por maneira diferente a situação do menor com os pais. Em casos tais,
justifica-se e se recomenda que prevaleça o interesse do menor. 2. O
sistema jurídico brasileiro admite, na separação e no divórcio, a
indenização por dano moral. Juridicamente, portanto, tal pedido é
possível: responde pela indenização o cônjuge responsável exclusivo
pela separação. 3. Caso em que, diante do comportamento injurioso
do cônjuge varão, a Turma conheceu do especial e deu provimento ao
recurso, por ofensa ao art. 159 do Cód. Civil, para admitir a obrigação
de se ressarcirem danos morais. (Recurso Especial, REsp. n.
37.051/SP, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Min. Nilson Naves,
Data de julgamento: 17/04/2001)

Mas, ainda que já se tenha modificado a forma de dissolução da


sociedade conjugal e os Códigos, é importante ressaltar que o cônjuge foi
responsabilizado nos termos do artigo 159 do Código Civil de 1916 1 por culpa
exclusiva da separação. Ou seja, houve o reconhecimento de ato ilícito praticado
durante a união.
Seguindo o entendimento majoritário dos Tribunais, a Apelação Cível nº
597155167 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou a indenização
por quebra do dever de fidelidade:

ACAO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. COMPANHEIRO


TRAÍDO. DESCABIMENTO. A QUEBRA DE UM DOS DEVERES
INERENTES À UNIÃO ESTÁVEL - FIDELIDADE - NÃO GERA O
DEVER DE INDENIZAR, NEM A QUEM O QUEBRA - UM DOS
CONVIVENTES - E MENOS, AINDA, A UM TERCEIRO QUE NÃO
INTEGRA O CONTRATO EXISTENTE E QUE E, EM RELAÇÃO A
ESTE, PARTE ALHEIA. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível
Nº 597155167, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, Relator: Eliseu Gomes Torres, Data de julgamento:
11/02/1998)

1 Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar
direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a
avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.521 a 1.532 e
1.542 a 1.553.
92

No caso em tela, o companheiro em união estável foi traído, houve a


quebra do dever conjugal, todavia a Sétima Câmara Cível entendeu que não
restou configurada a responsabilidade civil.
Em decisão recente da Quarta Turma do STJ, por impossibilidade do
reexame fático-probatório, foi confirmado o indeferimento à indenização por
danos morais no caso de quebra do dever conjugal de fidelidade, sob a
justificativa de que o cônjuge ofensor não tinha a intenção de lesar ou
ridicularizar o ofendido:

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO


DE DIVÓRCIO. ALIMENTOS. EX-CÔNJUGE. NECESSIDADE NÃO
COMPROVADA. SÚMULA 7/STJ. DANO MORAL. INFIDELIDADE
CONJUGAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. SÚMULA 7/STJ. [...] 2. A revisão
do acórdão recorrido, que afasta a existência de danos morais em
razão da infidelidade conjugal, pois ausente a intenção do ex-cônjuge
de lesar ou ridicularizar o cônjuge traído, demandaria o reexame do
conjunto fático-probatório, providência inviável em sede especial,
diante do óbice da Súmula 7 do STJ. 3. Agravo regimental a que se
nega provimento. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial,
AgRg no AREsp nº 56677/MG 2014/0208991-2, Quarta Turma,
Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti, Data de Julgamento:
06/11/2014, Data de Publicação: DJE 14/11/2014)

Ocorre que a intenção de lesar ou ridicularizar, que se fosse o caso


aparentemente seria considerado passível de indenização, é afeta do dolo, do
ânimo do indivíduo de querer agir conforme determinada conduta. Contudo, para
a responsabilidade civil ser configurada é necessário a culpa, bem como a
conduta, o dano e o nexo de causalidade.
No Tribunal do Rio de Janeiro, em Apelação Cível nº 0136304-
43.1996.8.19.0001, foi negada a indenização por dano moral no caso de uma
vítima que alegou se sentir humilhada porque o ex-cônjuge, durante o
matrimônio, a traiu e a sua amante engravidou.

DANO MORAL. RELACIONAMENTO EXTRACONJUGAL.


SEPARAÇÃO CONSENSUAL, SÓ POS SI, NÃO INDUZ À
CONCESSÃO DE DANO MORAL. Alega a autora que seu ex-marido,
durante a vida comum, manteve relacionamento extraconjugal, daí
advindo uma filha e que por isto sofreu humilhação e vexame. As
provas negam tal circunstância, porque o relacionamento do casal já
estava deteriorado nos meses em que o réu já vinha mantendo
comunhão com a outra. Para que se possa conceder o dano moral é
preciso mais que um simples rompimento da relação conjugal mas que
um dos cônjuges tenha, efetivamente, submetido o outro a condições
humilhantes, vexatória e que lhe afronte a dignidade, a honra e o pudor.
Não foi o que ocorreu nesta hipótese, porque o relacionamento já
estava deteriorado e o rompimento era consequência natural.
Sentença de improcedência mantida. (Apelação Cível nº 0136304-
43.1996.8.19.0001, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
Segunda Câmara Cível, Relator: Des. Gustavo Adolpho Kuhl Leite,
Data de Julgamento: 10/04/2001)

Em interessante matéria realizada pela Divisão de Divulgação e Imprensa


do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, foi relatado um processo em que
a requerente pleiteou danos morais porque durante a constância do casamento
93

descobriu que era traída por seu marido. O juiz titular do 8º Juizado Especial
Cível reconheceu que a conduta do requerido era indevida, como relatou:
“Evidentemente, o réu cometeu um ilícito, agiu como não devia, com conotação
inequivocamente perniciosa para a sociedade familiar que constitui com o
casamento, agora desfeito.”2
Contudo, seguiu o entendimento jurisprudencial majoritário e negou a
procedência dos pedidos da requerente, pois só poderia haver danos morais
caso a intenção do requerido fosse de causar vexame, vergonha e execração
pública.
O que se percebe é que a violação a dever conjugal, ainda que cause
dano à esfera moral, atualmente só é reparado caso venha à tona o
descumprimento e cause humilhação porque outros souberam do ocorrido.
Em relação à indenização na sociedade conjugal por ato ilícito, como a
maioria da doutrina se mostra favorável, em recente julgado do STJ tratou-se de
um caso sobre relacionamento abusivo. O interessante do julgado, que trata
sobre a impossibilidade de revisão da matéria fática-probatória e sobre o valor
da indenização, é que traz a nomenclatura “relacionamento abusivo” no caso de
uma mulher que durante a sociedade conjugal sofria agressões físicas e morais.

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E


PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS
MORAIS. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO A SÚMULA. INVIABILIDADE.
INCIDÊNCIA DA SÚMULA 518/STJ. CASAMENTO.
RELACIONAMENTO ABUSIVO. DANO MORAL CONSTATADO
PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REVISÃO DE VERBA
INDENIZATÓRIA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. INEXISTÊNCIA
DE VALORES EXORBITANTES. REVISÃO DOS HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA. REVOLVIMENTO DE
MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 7/STJ.
AGRAVO DESPROVIDO. 1. Os enunciados sumulares não estão
compreendidos no conceito de lei federal, para fins de interposição do
recurso especial pela alínea a do inciso III do art. 105 da Constituição
Federal. Incidência da Súmula 518/STJ. 2. É cediço o entendimento
desta eg. Corte de que a revisão dos valores a título de indenização
por danos morais só é possível em hipóteses excepcionais, quando
irrisório ou exorbitante o valor, incidindo, em regra, o óbice da Súmula
7/STJ. 3. No caso dos autos, constata-se que o eg. Tribunal de origem
fixou valor de indenização a título de danos morais em favor da ora
agravada, ex-esposa do ora agravante, em decorrência de agressões
físicas e morais sofridas na constância do casamento, dentro dos
liames de proporcionalidade e razoabilidade, em face das
peculiaridades do caso concreto, o que não autoriza a ingerência desta
Corte Superior na revisão do valor arbitrado. Precedentes. 4. A
remansosa jurisprudência desta eg. Corte é no sentido de que a
pretensão de revisar os valores fixados a título de honorários
advocatícios sucumbenciais esbarra no óbice da Súmula 7/STJ, a qual
é afastada somente nas hipóteses de exorbitância ou índole irrisória do
quantum arbitrado, o que não é a hipótese dos autos. 5. Agravo interno
desprovido. (Agravo Interno no Recurso Especial, AgInt no REsp nº

2 JÚNIOR, AFONSO. Juiz não reconhece direito de indenização por danos morais solicitada
por mulher traída pelo marido. Disponível em:
<http://juizados.tjam.jus.br/juizados/index.php/noticias/32-juiz-nao-reconhece-direito-de-
indenizacao-por-danos-morais-solicitada-por-mulher-traida-pelo-marido>. Acesso em: 20 nov.
2018.
94

1739132/PR, T4-Quarta Tuma, Relator: Min. Raul Araújo, Data do


Julgamento: 18/10/2018, Data da Publicação: DJE 26/10/2018)

A decisão da instância a quo foi de que a ex-cônjuge fosse indenizada em


R$ 100.000,00 (cem mil reais) pelos abusos sofridos durante a constância do
matrimônio.
Ainda que a jurisprudência seja tímida quanto à responsabilidade na
sociedade conjugal, atos ilícitos evidentes como violência física, moral,
psicológica podem ser reparadas nas esferas penal e cível.

CONCLUSÃO

A violência doméstica ainda é problema que afeta, principalmente, as


mulheres em suas relações familiares o que fez surgir institutos com a finalidade
de assegurar a incolumidade física, patrimonial e mental das vítimas, como a Lei
Maria da Penha. Entretanto, outras medidas podem ser viáveis para reparar as
violações de direito, como a responsabilidade civil aplicada nos ilícitos nas
relações conjugais.
Os tribunais parecem ser temerosos principalmente se a indenização por
danos morais é pleiteada em relação à quebra de dever conjugal. Enquanto, em
relação a ato ilícito, como agressão física, a indenização parece ser mais
passível de ser deferida.
Existe tendência inusitada dos Tribunais em aceitar a indenização em
caso de traição somente se o cônjuge ofendido for exposto ao ridículo perante a
sociedade e que o ofensor tenha a intenção de lesar. No caso de o cônjuge ser
traído, que é violação de dever conjugal, os Tribunais não tendem a aceitar a
indenização.
Apesar de os tribunais brasileiros ainda se demonstrarem retraídos com
a sua aplicação em relações familiares, a indenização pode ser até mesmo
medida menos gravosa que adotar as ações penais e até mais vantajosa para
a vítima, que pode decidir por adotar ambas as alternativas.
Portanto, a responsabilidade civil apresenta-se como alternativa
contemporânea e viável para a vítima, que terá mais uma opção de reparação à
violência sofrida e, quiçá, até mais eficaz por evitar a revitimização que
porventura ocorre em processos penais.

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Tribunais, ano 89, v. 775, pp. 128-135, maio 2000.
97

ANOTAÇÃO REGISTRÁRIA DOS DESCENDENTES EM ASSENTO DE


NASCIMENTO E DE ÓBITO DOS PAIS: PROPOSTA DE PREVENÇÃO E
EFETIVIDADE DE ACESSO À LEGÍTIMA
REGISTRATION OF RECORD OF CHILDREN'S SATTERS OF BIRTH AND
SCOPE: PROPOSAL FOR PREVENTION AND EFFECTIVENESS OF
ACCESS TO LEGITIMATE

Raquel Helena Valési

Resumo: Este trabalho, fruto de tese de doutorado, tem como ponto central o
estudo das anotações registrárias como forma de facilitar ao descendente,
primeira classe de herdeiros, acesso ao direito fundamental de herança. Se é
na família que se promove os valores afetivos e de solidariedade humana, não
se deve conferir tratamentos diferentes às pessoas de seus membros, seja de
uma filiação advinda de forma biológica, civil ou socioafetiva. Por isso, os
princípios inerentes à convivência familiar, baseada no afeto recíproco entre os
seus integrantes devem se estender ao direito sucessório de forma igualitária,
sob pena de contrariar o ditame constitucional. As atividades realizadas pelo
Cartório de Registro Civil, através da anotação registrária, poderá facilitar o
acesso à legítima aos descendentes.
Palavras-chave: Direito Sucessório. Filiação. Registro Civil.

Abstract: This work, the result of a doctoral thesis, has as its central point the
study of registration notes as a way to facilitate the access to the fundamental
right of inheritance to the first class of heirs. If it is in the family that the values of
affection and human solidarity are promoted, then different treatment should not
be given to the people of its members, whether from a biological, civil or socio-
affective affiliation. Therefore, the principles inherent in family life, based on
reciprocal affection among its members, should extend to inheritance law in an
equal manner, under penalty of contradicting the constitutional dictum. The
activities performed by the Civil Registry Office, through the registration notation,
may facilitate access to legitimate to descendants.
Keywords: Succession Law. Affiliation. Civil Registration.

INTRODUÇÃO

Nossa Constituição Federal condiciona proteção jurídica à família não


importando o modelo do qual ela se reveste. O vértice legal é a proteção do
núcleo familiar e, que tem como ponto de partida, e também seu término, a tutela
da pessoa humana. Se é na família que se promove os valores afetivos e de
solidariedade humana, não se deve conferir tratamentos diferentes às pessoas
de seus membros seja de uma filiação advinda de forma biológica, civil ou
socioafetiva. Por isso, os princípios inerentes à convivência familiar, baseada no
afeto recíproco entre os integrantes deve se estender ao direito sucessório de
forma igualitária, sob pena, de contrariar o ditame constitucional. Para atribuição
do devido a cada um dos herdeiros, seria importante haver mecanismo jurídico
de imediata referência à filiação que associasse os pais aos filhos biológicos,
adotivos ou socioafetivos, declarados ou reconhecidos, porque assim, evitaria
que alguns descendentes e sua estirpe, não tivessem acesso ao acervo
hereditário a que tenham direito, por herança. Isso poderá ser feito pela anotação
98

registrária dos descendentes em assento de nascimento dos pais, como


veremos.

1. O REGISTRO CIVIL COMO INSTRUMENTO DE RECONHECIMENTO


EFETIVO DO DIREITO DE PERSONALIDADE

Os registros1 públicos tem relevância no sistema jurídico em especial


como meio de prova de atos, fatos jurídicos e negócios jurídicos que vinculam
sujeitos de direito2 e ainda para constantes relações jurídicas a que somos
submetidos, dependentes da comprovação do estado civil.
Nos dizeres de Eduardo Espínola “é de maior interesse para o indivíduo
e para a coletividade que os elementos fundamentais da condição política e
família de uma pessoa sejam estabelecidos de modo indiscutível e, que todos
possam conhecê-los” 3.
Sem dúvida, a importância do registro civil4 reside na comprovação da
autenticidade e publicidade sobre dados relativos ao estado da pessoa 5, cujos
dados serão, na maioria das vezes, essenciais para eficácia da relação jurídica
como se lê do próprio artigo 1º da Lei 6.015/736.
O sistema7 de registros públicos atual, reflete o grau de organização e
evolução da sociedade e, com relação ao estado civil de uma pessoa, ele

1 Também podemos salientar que a palavra registro vem do latim medieval registru, com possível
influência do francês registre. Poderia ser o ato ou efeito de registrar, ou melhor, é aquilo que se
escreve ou lavra em livro especial pelo escrevente de registro. FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira
S.A., 1986.
2 No caso do registro de pessoas físicas os fatos jurídicos tem maior repercussão, pois são

questões ligadas à nacionalidade, nascimento/morte e matrimônio e, que corresponde a grosso


modo às causas que influenciam a delimitação do estado das pessoas e que, no direito romano,
gerariam uma capitis deminutio. CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de direito civil
português. Coimbra:Almedina, 2009, v.1, T. II, p. 307.
3 Tratado de direito civil brasileiro. Rio de Janeiro:Freitas Bastos, 1939, t. X, p. 650
4 Serpa Lopes ensina que o estado civil é o “o conjunto das qualidades constitutivas que

distinguem o indivíduo na cidade e na família, sendo que outros vêem, não verdadeiramente um
conjunto dos direitos e obrigações da pessoa, mas uma situação jurídica, em que a ordem
jurídica é interessada”. Para ele, o registro civil das pessoas naturais seria a instrumentalização
do estado civil, ou seja, um instrumento autêntico dos fatos importantes da vida humana, tais
como o nascimento e a morte, entremeados de uma série de fatos e atos jurídicos, como o
casamento, a adoção e a tutela. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado dos Registros
Públicos. 6. ed. rev. atul. Brasília:Brasília Jurídica, 1997, v. 1, p. 22.
5 Josserand afirma que: “Les registres sont destinés à réveler au public, et aux interesses

euxmêmes,la situation que chque individu ocupe dans la famille, son status familie, notadamente
em faisant coonaître son âge,son sexe, as position de céliberataire ou de conjoint , de père de
famille”. JOSSERAND, Louis. Cours de droit civil positif français. 2 ed. Paris:Sirey, 1940, t. I, p.
160. Tradução livre para o texto acima: Os registros são feitos para revelar ao público, e a si
mesmos, a situação que ocupe o indivíduo na família interessada, sua familie status,
notadamente a idade, gênero, como estado civil e seus parentesco.
6 E, no que diz respeito ao registro civil de nascimento podemos afirmar que este formalizará a

inscrição da declaração de nascimento com vida de uma pessoa natural, em livros ou bancos de
dados públicos, sob a responsabilidade de delegados do Poder Público ou direta do próprio
Estado, observando-se as formalidades legais, conferindo ao assentamento segurança,
autenticidade, publicidade, eficácia, validade contra terceiros, existência legal e perpetuidade.
7 Pode-se definir sistema como a conexão interna que liga todos os institutos jurídicos e as regras

jurídicas numa grande unidade. A sistemática do direito privado tem origem em aspiração
aristotélica, porque a filosofia do direito demonstra que as instituições romanas de direito seguem
a classificação de Cícero, que define o fim do direito propondo a elaboração de uma linguagem
99

caracteriza-se pelo conjunto de posições jurídicas inerentes ao indivíduo e que


definem o seu estado pessoal (nome, sexo, filiação, etc) - que repercutirão no
mundo jurídico - por isso sua prova é condição de estabilidade e segurança no
tráfico jurídico8. Pode-se afirmar que a segurança jurídica é o principal objetivo
do sistema registral como um todo.
A importância das informações concernentes ao estado civil de cada
pessoa justificam-se para que não haja dispersão, ou seja, busca-se referência
a uma única pessoa física. A fortaleza dos registros está em mostrar que a
situação atestada pelo registro reflete o que efetivamente se sucede na esfera
social, em especial, neste trabalho, a filiação ali registrada garantirá o acesso à
herança. O registro civil prepondera na preocupação com o tráfico de
informações e no comprometimento com garantia dos direitos fundamentais.
Pode-se afirmar que, o registro de nascimento marca o vínculo parental e
de filiação e, diante dos diversos arranjos familiares, em especial, quando há
multiparentalidade9, a atuação dos Cartórios de Registro Civil é fundamental,
pois, averbando-se10 nos assentos de nascimento e casamento a parentalidade
socioafetiva garantirão aos filhos efetiva produção de efeitos jurídicos, inclusive
sucessórios11.
Diante dos avanços doutrinários, e também visto na jurisprudência,
constata-se que há uma desbiologização do parentesco em prol de vínculos
socioafetivos e que isso não se deve situar-se apenas no plano teórico, na
afirmação de princípios12. Deve-se produzir efeitos práticos no ordenamento

levando em conta três elementos: as pessoas (cives), as coisas (res) e as ações (causae).
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito:definições e fins do direito. Trad. Alcidema Franco Bueno
Torres. São Paulo:Atlas, 1977, p. 77.
8 ARAUJO, Fábio Caldas de. Do registro civil das pessoas naturais. In: ARRUDA ALVIM NETO,

João Manoel (coord.) et.al. Lei de registros públicos comentada. Rio de Janeiro:Forense, 2014,
p. 28.
9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 898.060, rel.Min. Luiz Fux, Dj

23/09/16 e DJe 26/09/16. EMENTA: Recurso extraordinário. Repercussão geral reconhecida.


Direito civil e constitucional. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica. Paradigma do
casamento. Superação pela constituição de 1988. Eixo central do direito de família:
deslocamento para o plano constitucional. Sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da
CF). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias. Direito à busca da
felicidade. Princípio constitucional implícito. Indivíduo como centro do ordenamento jurídico
político. Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos.
Atipicidade constitucional do conceito de entidades familiares. União estável (art. 226, § 3º, CF)
e família monoparental (art. 226, § 4º, CF).Vedação à discriminação e hierarquização entre
espécies de filiação (art. 227, § 6º, CF). Parentalidade presuntiva, biológica ou afetiva.
Necessidade de tutela jurídica ampla. Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento
concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável (art. 226,
§ 7º, CF). Recurso a que se nega provimento. Fixação de tese para aplicação a casos
semelhantes (grifos nossos).
10 CASSETARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva:efeitos jurídicos. São

Paulo: Atlas, 2014, p. 226.


11 “De importância e relevância imensuráveis, o registro de nascimento dá início a história jurídica

de cada pessoa, significando o marco inicial para o exercício pleno da cidadania [...] a certidão
de nascimento é o primeiro documento básico de cidadania sendo o Registro Civil das Pessoas
Naturais a primeira porta para o exercício da dela, possibilitando a inserção do indivíduo em seu
meio a partir do seu registro de nascimento, quando ele passa a existir juridicamente, bem como
estabelecendo o vínculo parental, através do liame de filiação” (FERNANDES, Regina de Fátima
Marques. Registro Civil das Pessoas Naturais. 1. ed. Porto Alegre: Norton, 2005, p. 31-32 e 77-
79).
12 NADER, Paulo. Curso de direito civil:direito de família. 3 ed.Rio de Janeiro:Forense, 2009, v.5,

p. 261.
100

jurídico como um todo, repercutindo, inclusive, no âmbito das sucessões, afinal,


os efeitos registrais civis de reconhecimento de parentalidade socioafetiva e a
multiparentalidade registrária poderão conferir múltiplas sucessões.
Logo, o registro civil das pessoas naturais confere suporte legal da família,
isso porque não existindo o registro, também juridicamente se tornam
inexistentes as pessoas, as relações de parentalidade e seu acesso a todos os
seus direitos subjetivos. A legalidade se dá por meio do registro, através do qual
se atribuem os direitos e obrigações13.
Foi por esta razão que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através do
Provimento14 nº 63/2017 e, mais tarde atualizando-o pelo Provimento 83/2019,
permite que os cartórios registradores formalizem o reconhecimento espontâneo
e extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva não obstaculizando,
ao final, a discussão judicial sobre a verdade biológica.
Assim, resta claro que, através do Registro Civil estaremos na direção do
respeito à cidadania, à filiação e também na facilitação de acesso à legítima.

2. REGISTRO DE NASCIMENTO E ÓBITO: BUSCA DA IDENTIDADE


FAMILIAR

Com o registro de nascimento, surgirá documento originário da pessoa


natural. Ele servirá de base para emissão de todos os demais assentos
(casamento, óbito, etc.). Nele, se contém os elementos do estado da pessoa
natural (estado individual) que individualizam a pessoa para a prática de atos e
realização de negócios. E tão importante quanto ao registro de nascimento está
o registro da extinção da pessoa natural, ou seja, a lavratura do registro de óbito
conduzirá o acesso efetivo à legítima pelos descendentes do de cujus.
Neste último caso, em geral, o declarante presta informações na
Declaração de Óbito, junto ao médico, mas a informação prestada pelo
declarante perante o registrador é a que deve prevalecer15. É nessa declaração
junto ao registrador que o declarante informa se o falecido deixou filhos e bens
e, aqui reside considerável interesse neste trabalho. Assim, veja-se.
Cediço que a vida humana não é estática, o registro deve refletir as
alterações do estado das pessoas. Assim, além do registro dos atos ou fatos no
13 HUBER, Cloves. Registro Civil das pessoas naturais. Leme: Editora de Direito, 2002, p. 24.
14 Disponível em: http:://www.cnj.jus.br/busca/provimento.Acesso em 30 de setembro de 2019.
15 Em conformidade com os arts. 80 da Lei n. 6.015/73 e 68 da Lei n. 8.212/91 o assento de óbito

conterá os seguintes elementos: 1º) a hora, se possível, o dia, o mês e o ano do falecimento; 2º)
o lugar do falecimento o, com a sua indicação precisa; 3º) o prenome, o sobrenome, o sexo, a
idade, a cor, o estado civil, a profissão, a naturalidade, o domicílio e a residência do morto; e em
conformidade com o mencionado art. 68: a data de nascimento da pessoa falecida; 4º) se era
casado, o nome do cônjuge sobrevivente, mencionando-se a circunstância quando separado
judicialmente ou divorciado, se viúvo, o nome do cônjuge pré-defunto e o cartório do casamento
em ambos os casos; 5º) os prenomes, os sobrenomes, a profissão, a naturalidade e a residência
dos pais; 6º) se faleceu com testamento conhecido; 7º) se deixou filhos, nome e idade de cada
um, mencionando se entre eles há menor e incapaz; 8º) se a morte foi natural ou violenta e a
causa conhecida, com o nome dos atestantes; 9º) o lugar do sepultamento; 10º) se deixou bens;
11º) se era eleitor. A Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, no Provimento n.
41 de 2012, reformulou o Capítulo XVII de suas Normas de Serviço e estabeleceu no item 94,
alínea d, que o assento de óbito deverá conter: “se era casado ou vivia em união estável, o nome
do cônjuge ou companheiro sobrevivente, mencionando-se a circunstância quando separado
judicialmente, divorciado, ou de união estável dissolvida ou extinta pela morte de um dos
companheiros; se viúvo, o nome do cônjuge ou companheiro pré-morto e o Registro Civil das
Pessoas Naturais do casamento ou união estável”.
101

livro de cartório, também há atos praticados pelo registrador que não tem função
idêntica a do registro, porém, modifica o teor ou os efeitos do registro. Tratam
das averbações. As averbações são atos realizados, pelo registrador, que
alteram o conteúdo do estado da pessoa ou, os efeitos deste registro.
Verifica-se que o sistema de registro civil se mantém também atualizado
com outros atos que tornam o registro mais completo. Esses atos podem ser
visualizados pelas averbações, mas também, pelas anotações. Ambos são atos
acessórios a um ato de registro e que dão publicidade às alterações que foram
feitas no registro ao qual se referem. Ambos são feitos à margem direita do
registro, mas enquanto as averbações fazem prova plena, as anotações só são
início de prova ao ato que se referem.
Através das anotações há indicações de que existe um outro ato de
registro civil relativo à mesma pessoa, o que permite que a publicidade seja
completa e que uma certidão atualizada indique a existência e a localização de
atos registrários (registro ou averbação) posteriores que alteram o estado da
pessoa natural.
Essas anotações apenas produzem efeitos meramente publicitários e
conduzem início de prova da existência de outro registro ou averbação (esses
produzem efeitos comprobatórios plenos). A anotação do óbito de uma pessoa
no seu registro de nascimento e de casamento confere início de prova do óbito,
mas não faz prova plena dele, isso só se dará com a certidão de óbito.
Enquanto a averbação indicará as modificações do assento, as alterações
da situação jurídica do estado da pessoa natural e de que trata o registro (ato
originariamente lavrado) materializada na margem direita do assento (altera a
essência do registro - artigos 97 a 102 da Lei 6.015/73), a anotação (artigos 106
a 108 da Lei 6.015/73), apenas dá notícia de algum ato realizado com objetivo
de facilitar as buscas e conferirá a completude do registro16, pois elas constituem
atos registrários derivados da prática de outros anteriores (registro ou
averbações).
Como se vê, as anotações formam uma “rede” que permite a busca por
todos os registros de seus atos e fatos da vida civil. Elas são indispensáveis à
plena publicidade, segurança e certeza dos assentamentos do registro civil. Na
maioria das vezes, as alterações do estado civil das pessoas naturais não se
verificam no mesmo local onde foi lavrado, originariamente, o assento de
nascimento, e que devem constar averbações e anotações concernentes a todas
as modificações do estado civil17. As anotações devem ser comunicadas entre
cartórios por meio de cartas e, mais recentemente e atual, por meio da CRC-
comunicações (artigo 106, § único da Lei 6.015/73).
A anotação, portanto, é elemento de indicação que faz remissão a atos
anteriormente praticados, através dela se faz o cruzamento das informações

16 As averbações e anotações não se submetem a qualquer tipicidade, sendo exemplificativo o


rol assente na Lei de Registros Públicos [...] Ou seja, enquanto o rol de atos registráveis deve
estar previsto expressamente em lei, não há como se impedir a averbação de alguma alteração
do teor do assento por falta de previsão legal, pela imperiosa necessidade dos registros
espelharem a realidade fática (SANTOS, Reinaldo Velloso dos. Registro Civil das pessoas
naturais. São Paulo:safe,2006,p. 76).
17 GAMA, Affonso Dionysio. Os registros públicos no Código Civil. 2 ed. São Paulo: Livraria

Academica Saraiva, 1929, p. 12


102

sobre os principais fatos da vida civil da pessoa natural18. E aqui concentra-se


nosso interesse neste ato registrário chamado anotação.

3. ANOTAÇÃO REGISTRÁRIA: INSTRUMENTO DE ACESSO À LEGÍTIMA


PELOS DESCENDENTES

Se pela anotação haverá o cruzamento das informações sobre os


principais fatos da vida civil da pessoa natural, o surgimento de filhos (biológicos,
socioafetivos, civis ou reconhecidos) é um acontecimento na vida da pessoa
natural que gerará imediatamente reflexos no direito de família e também no
direito sucessório.
Se a anotação registrária reserva a ideia de dar notícia de atos realizados
no registro civil pela pessoa natural, mostrando os principais fatos que houveram
em sua vida, meramente publicitários, mas que são considerados início de prova
sobre a existência de outro registro ou averbação os quais produzem efeitos
comprobatórios, por que então não se reconhecer e considerar a possibilidade
do registro na sua inteireza e possibilitar a anotação dos filhos no assento de
nascimento dos pais e, na de óbito ulteriormente, para que assim possa-se
identificar de forma irrefutável quem são os descendentes para reconhecimento
de plano das pessoas partícipes da sucessão legítima daquela pessoa natural
que anotou (através do Oficial do Cartório) os filhos em seu livro de nascimento
e, que posteriormente, após sua morte, poderão ser anotados, pelo registrador,
no livro de óbito do de cujus?
Caso haja a morte da pessoa natural, será realizado o registro do seu
óbito com as anotações de sua morte em seu assento de nascimento e, no de
casamento, se houver. Os filhos do de cujus, naturalmente serão os primeiros a
receber a herança, mas para isso, deverão se apresentar em inventário a ser
formalizado (judicial ou extrajudicial) por meio de suas certidões de nascimento
ou casamento atualizadas. Caso alguns (ou todos) dos filhos não tenham
conhecimento da morte do pai/mãe e, não foram declarados na certidão de óbito
à época, pelo declarante, pois sequer os irmãos (bilaterais ou unilaterais,
socioafetivo, reconhecidos) tios, avós, sobrinhos, se conhecem e nem possuem
seus registros em cartório idêntico ao do de cujus, dificultará a esse descendente
vivo e registrado de ter acesso à legítima quando desconhecido, culposa ou
dolosamente, pelos outros descendentes, no momento da distribuição dos
quinhões.
Ainda que não explicitamente, todos os dados que se consignam no
registro civil são elementos de um mosaico que compõem o desenho do estado
civil da pessoa e se englobam na sua identificação, como também na sua relação
com os demais membros da mesma família.
Esse mosaico pode, de forma fictícia, ser visualizado no gráfico a seguir.
Por ele, demonstra-se que as anotações registrárias possibilitam a unidade
registral familiar na medida que aquelas circulam no sistema dos registros civis
informando todos os acontecimentos realizados nos livros e averbações de cada
pessoa e, que, se interagem com os demais membros da família (parentesco)
por uma película porosa e comunicante.

18BALBINO FILHO, Nicolau. Registro Civil das pessoas naturais: prática e rotina, jurisprudência,
legislação. São Paulo:Atlas, 1983, p. 111.
103

Assim, se houver anotação dos filhos – declarados, reconhecidos e até


mesmo dos nascituros, reconhecidos por decisão judicial19– no assento de
nascimento dos pais, mais tarde, à época da morte do pai/mãe o registrador
poderá buscar essas anotações realizadas neste assento para inserí-las no
assento de óbito.

Anotações

Livro A Livro B Registro

a Paid Averbações
Livro C Livro E
Unidade
Registral
Familiar
Anotações
Livro A PaiLivro B Registro
Filho

d Averbações
a
Livro C Livro E

Pai

Portanto, havendo um documento público com prova irrefutável dos filhos


do sucedido, facilitará o acesso à legítima de todos os filhos (ou estirpes) que
foram anotados e, que não participaram do convívio com outros
descendentes20,21.

19 Estabelecendo uma compreensão sistêmica com o art. 2º do CC, verifica-se que o nascituro
apesar de não ter nascido já se reconhece legalmente personalidade jurídica, permitindo-lhe
exercer, desde a concepção, a plenitude dos direitos existenciais e, condicionalmente ao
nascimento com vida, os direitos patrimoniais. Se é assim, o nascituro possui legitimação
condicional para suceder, ou seja, nascendo com vida, recebe a herança ou o legado. Se nascer
sem vida (natimorto) não adquire direitos sucessórios.
20 Por outro lado, os interessados, quando da requisição da certidão de óbito atualizada, para

fins de abertura de inventário, terão chance de apontar todos os filhos (declarados ou


reconhecidos) ou suas estirpes em inventário judicial ou extrajudicial, evitando futura anulação
de partilha.
21 Busca-se, portanto, evitar herança jacente, sonegação de bens da legítima, demandas judiciais

pela ausência dolosa ou culposa de alguns descendentes no inventário e, ainda, ampliação da


segurança dos negócios jurídicos onerosos ou gratuitos feitos por descendentes com terceiros.
104

Apenas ficará de fora os casos que dependam de investigação e


reconhecimento de paternidade. Se realizada a anotação dos filhos no assento
de nascimento e, ulteriormente na de óbito dos pais falecidos, muito
provavelmente não serão excluídos do inventário e partilha de bens, pois seria
indispensável (com suporte de lege ferenda através de sugestões, em tese de
doutorado, de alterações legislativas e Provimento expedido pelo Conselho
Nacional de Justiça)22 a referida certidão de óbito de cujus nos autos (ou
Escritura Pública) de inventário com as devidas anotações necessárias.

CONCLUSÃO

A proposta da anotação registrária como mecanismo juridicamente


adequado para ser feito em assento de nascimento e de óbito dos pais, decorre
do fato de que através dela é possível fazer remissões dos outros registros
(assento de nascimento dos filhos) sem alterar o estado da pessoa natural ou o
conteúdo do registro.
Se houver anotação dos filhos – declarados, reconhecidos ou até
nascituros mediante determinação judicial – no assento de nascimento dos pais,
mais tarde, à época da morte do pai/mãe, o registrador poderá buscar e, conferir,
via intranet, essas anotações realizadas neste assento para inserí-las no assento
de óbito, complementando, se for o caso, os dados fornecidos pelo declarante
sobre a morte da pessoa natural e que tenha deixado filhos ou nascituros.
Mesmo que o declarante da morte tenha fornecido por incompleto ou não tenha
conhecimento da existência de filhos do de cujus, as anotações dos filhos no
assento de nascimento do pai, agora falecido, permitirá que o registrador anote
todos os filhos declarados ou reconhecidos.
Os descendentes anotados em assento de nascimento e na de óbito dos
pais faz com que a eles sejam garantidos os preceitos constitucionais ligados à
identidade pessoal, personalidade, propriedade, acesso à herança, dentre outros
ventilados no trabalho tendo em vista à evidência direta, de prova irrefutável em
reconhecer de plano quem são os herdeiros imediatos.
Com algumas propostas de alterações legislativas e expedição de
Provimento pelo CNJ, a anotação registrária dos descendentes garantir-se-á o
acesso mais eficaz à legítima e, ainda, poderá evitar o uso da máquina do
Judiciário que potencializaria a lesão ao herdeiro pelas delongas do rito
processual.

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Astrea de Alfredo Y Ricardo Depalma, 1982, T.1
107

FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS: DO RECONHECIMENTO JUDICIAL AOS


LIMITES ESTABELECIDOS PELOS PROVIMENTOS DO CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA QUANTO À MULTIPARENTALIDADE
EXTRAJUDICIAL
HOMOAFFECTIVE FAMILIES: FROM JUDICIAL RECOGNITION TO LIMITS
SET BY NATIONAL COUNCIL OF JUSTICE PROVISIONS ON
EXTRAJUDICIAL MULTI-PARENTING
Micaella Martins Benevides
Orientador(a): Marilu Aparecida Dicher Vieira da Cunha Reimão Curraladas

Resumo: As famílias brasileiras contemporâneas não são mais somente


aquelas ligadas pelo vínculo matrimonial entre marido e esposa. Com a
Constituição Federal/88 e o Código Civil/02, os vínculos jurídicos familiares
ampliaram-se com o reconhecimento da união estável como entidade familiar.
Posteriormente, o reconhecimento judicial dos direitos dos casais homoafetivos,
o afeto alçado a valor jurídico a ensejar o reconhecimento da filiação socioafetiva
e, desse embrião, a possibilidade da existência da multiparentalidade, podendo
ser reconhecida judicial ou extrajudicialmente, redesenharam o panorama
familiar brasileiro. Diante dessa realidade, o Conselho Nacional de Justiça,
mediante os Provimentos 63/2017 e 83/2019, estabeleceu previsões normativas
para o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva e, dentre elas,
permitiu a inclusão de apenas um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno
ou do materno. Assim, pretende-se questionar e vislumbrar uma possível
limitação à proteção estatal das diversas formas de núcleos familiares
atualmente reconhecidos judicialmente, como é o caso das famílias
homoafetivas.
Palavras-chave: Família homoafetiva. Multiparentalidade. Reconhecimento
extrajudicial.

Abstract: Contemporary Brazilian families are no longer just those linked by the
marriage bond between husband and wife. With the Federal Constitution / 88 and
the Civil Code / 02, family juridical ties expanded with the recognition of the stable
union as a family entity. Subsequently, the judicial recognition of the rights of
homoaffective couples, the affection raised to legal value to give rise to the
recognition of socio-affective affiliation and, from this embryo, the possibility of
the existence of multiparenting, which may be judicially or extrajudicially
recognized, redesigned the Brazilian family landscape. Given this reality, the
National Council of Justice, through Provisions 63/2017 and 83/2019, established
normative provisions for the extrajudicial recognition of socio-affective affiliation
and, among them, allowed the inclusion of only one socio-affective ascendant,
either on the paternal side or of the maternal. Thus, we intend to question and
envisage a possible limitation to state protection of the various forms of family
nuclei currently recognized in court, as is the case of homoaffective families.
Keywords: Homoaffective Family. Multiparenting. Extrajudicial recognition.

INTRODUÇÃO

Antes da Constituição Federal de 1988 a família era vista pelo enfoque


formalista e matrimonial, sendo considerada como tal apenas aquela formada
exclusivamente pelo matrimônio, ou seja, família era somente aquela constituída
108

pelo homem e pela mulher, unidos pelo casamento. Com a Constituição de 1988
e, logo após, com o Código Civil de 2002, o conceito de família ampliou-se com
reconhecimento jurídico da união estável e, posteriormente, diante da Emenda
Constitucional n. 66/2010, com a facilidade do procedimento do divórcio,
surgiram novas demandas, em especial, o clamor pela proteção jurídica aos
filhos não biológicos, por vezes oriundos de outros casamentos ou uniões
estáveis, criados no mesmo zelo familiar diante de laços de afetividade. Assim,
esses laços afetivos, denominados por socioafetividade, ganharam grande força
nas famílias contemporâneas, onde uma pessoa diversa do parentesco biológico
assume a função de pai/mãe na vida da criança/adolescente.
Aliada a essa evolução, também os casais formados por pessoas do
mesmo sexo passaram a pugnar por reconhecimento jurídico, o que se efetivou
pela decisão do Supremo Tribunal Federal, de 05 de maio de 2011, que acabou
por reconhecer o relacionamento homoafetivo como entidade familiar,
estendendo aos parceiros do mesmo sexo os mesmos direitos
constitucionalmente assegurados aos companheiros e, posteriormente, aos
cônjuges.
Diante dessas novas estruturas familiares, do embrião da socioafetividade
emergiu o reconhecimento da possibilidade da existência da multiparentalidade,
por meio do julgamento do Recurso Extraordinário 898.060/SC em que o
Supremo Tribunal Federal, em análise da Repercussão Geral 622/2016, além de
reconhecer a parentalidade socioafetiva como uma modalidade independente de
parentesco, também firmou entendimento de que a parentalidade biológica não
se sobrepõe à socioafetiva.
Assim, diante da decisão da Corte Suprema, o Conselho Nacional de
Justiça, mediante os Provimentos ns. 63/2017 e 83/2019, estabeleceu previsões
normativas para o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva,
restringindo, no entanto, a inclusão a apenas um ascendente socioafetivo, seja
do lado paterno ou do materno, o que pode limitar o exercício desse direito pelas
famílias homoafetivas.
Diante da importância da análise das implicações jurídicas dessa
evolução e nessa linha de pesquisa, o primeiro capítulo aborda o
reconhecimento judicial das relações homoafetivas; o segundo capítulo trata do
reconhecimento da multiparentalidade pelo Supremo Tribunal Federal; e, a seu
turno, o terceiro capítulo se dedica à análise da multiparentalidade homoafetiva
e as restrições impostas pelos provimentos da Corregedoria Geral de Justiça,
tudo com a finalidade de se questionar e vislumbrar uma possível restrição ou
limitação à proteção estatal das diversas formas de núcleos familiares
encontradas na sociedade e, atualmente, reconhecidas judicialmente, como é o
caso das famílias homoafetivas.

1. O RECONHECIMENTO JUDICIAL DAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

Como bem exposto por Almeida (2018, p. 16), na esteira dos demais
países oriundos da tradição romano-germânica do Direito, “o modelo familiar
erigido no ordenamento brasileiro era exclusivamente formalista e matrimonial,
relegando à marginalidade quaisquer outras formas de relacionamento que não
aqueles advindos do casamento legítimo”. Essa visão jurídica somente se
modificou com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 diante
do reconhecimento da união estável como entidade familiar. Valendo-se da
109

importância ontológica e interpretativa do princípio da dignidade da pessoa


humana (art. 1º, III, CF), constitucionalistas como Luís Roberto Barroso e Daniel
Sarmento “defendiam a tese segundo a qual o não reconhecimento dos
relacionamentos homoafetivos como entidade familiar com efeitos análogos aos
da união estável implicaria em vilipêndio aos valores insculpidos na Carta de
Direitos de 1988” (ALMEIDA, 2018, pp. 21/22).
Em julgado histórico, o Supremo Tribunal Federal alterou o paradigma
brasileiro na matéria. Em 05 de maio de 2011, ao apreciar a ADI n. 4.277, que
requeria à Corte Constitucional “o reconhecimento do relacionamento
homoafetivo como entidade familiar, a fim de estender aos parceiros do mesmo
sexo os mesmos direitos constitucionalmente assegurados aos companheiros
na união estável” (ALMEIDA, 2018, p. 22), e a ADPF n. 132, em que o
Governador do Estado do Rio de Janeiro sustentava que a “não equiparação do
relacionamento homoafetivo duradouro à união estável representaria
desrespeito frontal aos princípios constitucionais da igualdade, liberdade de
expressão e dignidade, buscava obter a ‘interpretação conforme a Constituição’
do art. 1723, CC” (ALMEIDA, 2018, p. 22), a Suprema Corte julgou procedente
os pedidos, “optando pela interpretação do art. 1.723, CC que reconhece como
união estável, aquela relação estabelecida entre duas pessoas do mesmo sexo
que preencha todos os demais requisitos, em harmonia com os preceitos
fundamentais da Constituição Federal” (ALMEIDA, 2018, p. 25).
Na mesma linha da possibilidade jurídica das uniões homoafetivas e com
arrimo no parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal, casais
homoafetivos passaram a requerer a conversão dessas uniões em casamento.
Diante dos diferentes resultados obtidos, ora negando-se ora promovendo-se a
conversão, a depender do entendimento de cada Estado-membro da República
Federativa do Brasil, em 15 de maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça,
por meio da Resolução n. 175, vedou “às autoridades competentes, caso dos
responsáveis pelos Cartórios de Registro Civil de todo o País, a recusa de
habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em
casamento entre pessoas do mesmo sexo” (TARTUCE, 2019a, p. 51). Portanto,
após um longo percurso, resta inegável o progresso recentemente alcançado ao
atribuir-se proteção judicial aos relacionamentos homoafetivos, advindo desse
reconhecimento todos os efeitos jurídicos pertinentes, em especial, para fins da
pesquisa ora realizada, quanto aos direitos parentais.

2. O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE PELO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL

No dia 21 de setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal entendeu


que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o
pai biológico e, por maioria de votos, os ministros negaram provimento ao
Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, onde o pai biológico
recorria contra um acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos
patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo. O relator do
leading case que acabou por fixar a tese para o tema que recebeu o número 622,
ministro Luiz Fux, afirmou que não há impedimentos do reconhecimento
simultâneo de ambas as formas de paternidade, tanto a socioafetiva quanto a
biológica, conforme ementa abaixo:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL
RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO
110

ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA.


PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA
CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO DIREITO DE
FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O PLANO CONSTITUCIONAL.
SOBREPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA
CRFB). SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO
DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO À BUSCA DA
FELICIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO.
INDIVÍDUO COMO CENTRO DO ORDENAMENTO
JURÍDICOPOLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS
REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ-CONCEBIDOS.
ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE ENTIDADES
FAMILIARES. UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3º, CRFB) E FAMÍLIA
MONOPARENTAL (ART. 226, § 4º, CRFB).VEDAÇÃO À
DISCRIMINAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE
FILIAÇÃO (ART. 227, § 6º, CRFB). PARENTALIDADE PRESUNTIVA,
BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA
AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS.
RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE.
PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE
RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7º, CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA
PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS
SEMELHANTES. (STF, REs nº 898.060, Rel Min. Luiz Fux, Plenário,
pub. 24/08/2017).

A decisão fixou a seguinte tese de repercussão geral: “A parentalidade


socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do
vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos
jurídicos próprios”. Nesse mesmo Recurso Extraordinário, o Instituto Brasileiro
de Direito de Família atuou na ação na qualidade de amicus curiae, sustentando
que a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos deixou de existir com a
Constituição de 1988 e defendeu que ambas as paternidades - socioafetiva e
biológica - acarretam na mesma igualdade, sem hierarquia. Consideraram,
também, que o principal requisito para a existência da parentalidade socioafetiva
era consolidada por meio da convivência familiar duradoura. A Ministra Cármen
Lúcia destacou também que “amor não se impõe, mas cuidado sim, e esse
cuidado me parece ser do quadro de direitos que são assegurados,
especialmente no caso de paternidade e maternidade responsável”. Por maioria
de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal fixou a tese de repercussão
geral no Recurso Extraordinário 898.060/SC, onde ficou definido que a
existência da paternidade socioafetiva não exime a responsabilidade do pai
biológico.
Tem-se, assim, que a multiparentalidade é viável e uma consequência da
parentalidade socioafetiva, podendo ter origem na “inseminação artificial feita por
casais homossexuais, sejam duas mulheres ou dois homens, seja o material
obtido por doação ou de alguns dos cônjuges ou companheiros, ou, também,
quando um dos genitores falece e a pessoa é criada por outra pessoa, e, ainda,
na relação de padrastio e madrastio” (CASSETARI, 2017, p. 273).
Em sequência, o Conselho Nacional de Justiça, por meio do Provimento
n. 63, de 14 de novembro de 2017, instituiu modelos diferenciados de certidões
de nascimento, casamento e de óbito a serem adotados pelos ofícios de registro
civil das pessoas naturais, e, dentre suas disposições, regulamentou o
reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade
socioafetiva. Mais recentemente, no dia 14 de agosto de 2019, o Conselho
111

Nacional de Justiça, por meio do Provimento 83, alterou a Seção II do


Provimento 63/2017 sobre a parentalidade socioafetiva, acrescentando dois
parágrafos, numerados como § 1º e § 2º, ao artigo 14 do Provimento n. 63/2017,
estabelecendo, no § 1º, que “somente é permitida a inclusão de um ascendente
socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno” e, no § 2º, que “a inclusão de
mais de um ascendente socioafetivo deverá tramitar pela via judicial”.
Diante dessas regulamentações surge a indagação: na hipótese de um
casal homoafetivo com filho(s), em que já teríamos o registro de dois genitores,
seja no campo paterno seja no campo materno, e, posteriormente, um deles
venha a constituir nova família e seu novo cônjuge ou companheiro venha a
firmar laços socioafetivos concretos com esse(s) filho(s), restaria impossibilitada
a inclusão de seu nome, pela via extrajudicial, na certidão de nascimento
desse(s) filho(s)?

3. A MULTIPARENTALIDADE HOMOAFETIVA E AS RESTRIÇÕES IMPOSTAS


PELOS PROVIMENTOS DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

O reconhecimento da multiparentalidade abriu uma possibilidade enorme


para que casais homoafetivos pudessem fazer constar seus nomes na certidão
de nascimento de seus filhos não apenas na hipótese de filiação biológica, mas,
principalmente, na hipótese de filiação socioafetiva. Como os casais tradicionais,
os casais homoafetivos também seguem os mesmo requisitos para o
reconhecimento da multiparentalidade socioafetiva, porém passam por mais
complicações por adotarem, principalmente, o modo da reprodução assistida
para conceber de seus filhos.
A decisão pioneira sobre a multiparentalidade homoafetiva foi proferida
pela justiça gaúcha onde foi aprovado o registro do nome de duas mães, que
são casadas entre si, e do pai biológico. Segundo o Magistrado Rafael Pagnon
Cunha em sua decisão:

As mães são casadas entre si, o que lhes suporta a pretensão de duplo
registro, enquanto ao pai igualmente assiste tal direito. A
desatualização do arcabouço legislado à velocidade da vida nunca foi
impediente ao Judiciário Gaúcho; a lei é lampião a iluminar o caminho,
não este, como já se pronunciou outrora; a principiologia constitucional
dá guarida à (re)leitura proposta pela bem posta inicial. Muito haveria
a ser escrito. Serviria o presente case ao articular de erudita e
fundamentadíssima sentença. Não é o que esperam, entretanto,
Fernanda, Mariani, Luis Guilherme e, mui especialmente, Maria
Antônia (lindo nome); guardam, sim, célere e humana decisão, a fim
de adequar o registro da criança ao que a vida lhe reservou: um ninho
multicomposto, pleno de amor e afeto. Forte, pois, na ausência de
impedientes legais, bem como com suporte no melhor interesse da
criança, o acolhimento da pretensão é medida que se impõe. (TJRS,
Comarca de Santa Maria. Proc. 027/1.14.0013023-9 [CNJ:.0031506-
63.2014.8.21.0027], Juiz Rafael Pagnon Cunha, j. 11/09/ 2014).

Também no Rio Grande do Sul, a primeira decisão colegiada foi proferida,


admitindo a multiparentalidade:

DECLARATÓRIA DE MULTIPARENTALIDADE. REGISTRO CIVIL.


DUPLA MATERNIDADE E PATERNIDADE. IMPOSSIBILIDADE
JURÍDICA DO PEDIDO. INOCORRÊNCIAJULGAMENTO DESDE
LOGO DO MÉRITO. APLICAÇÃO ARTIGO 515, § 3º DO CPC. A
112

ausência de lei para regência de novos - e cada vez mais ocorrentes -


fatos sociais decorrentes das instituições familiares, não é indicador
necessário de impossibilidade jurídica do pedido. É que "quando a lei
for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito (artigo 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil). Caso em que se desconstitui a sentença
que indeferiu a petição inicial por impossibilidade jurídica do pedido e
desde logo se enfrenta o mérito, fulcro no artigo 515, § 3º do CPC. Dito
isso, a aplicação dos princípios da "legalidade", "tipicidade" e
"especialidade", que norteiam os "Registros Públicos", com legislação
originária pré-constitucional, deve ser relativizada, naquilo que não se
compatibiliza com os princípios constitucionais vigentes, notadamente
a promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer
outra forma de discriminação (artigo 3, IV da CF/88), bem como a
proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (artigo
227, § 6º, CF), "objetivos e princípios fundamentais" decorrentes do
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Da mesma
forma, há que se julgar a pretensão da parte, a partir da interpretação
sistemática conjunta com demais princípios infraconstitucionais, tal
como a doutrina da proteção integral o do princípio do melhor interesse
do menor, informadores do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
8.069/90), bem como, e especialmente, em atenção do fenômeno da
afetividade, como formador de relações familiares e objeto de proteção
Estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação
de vínculo familiar. Caso em que no plano fático, é flagrante o ânimo
de paternidade e maternidade, em conjunto, entre o casal formado
pelas mães e do pai, em relação à menor, sendo de rigor o
reconhecimento judicial da "multiparentalidade", com a publicidade
decorrente do registro público de nascimento. Deram provimento.
(TJRS, AC 70062692876, 8ª Câm. Cível, Rel. José Pedro de Oliveira
Eckert, j. 12/02/2015).

Mais recentemente, em maio de 2019, o Superior Tribunal de Justiça, ao


julgar o Recurso Especial 1.608.005/SC, reconheceu a possibilidade de registro
simultâneo do pai biológico e do pai socioafetivo no assento de nascimento da
criança. O caso envolvia um casal homoafetivo em união estável que, com o
desejo de ter um(a) filho(a), procuraram clínicas de fertilização para a realização
de inseminação artificial. Para tanto, a irmã de um deles se prontificou para ser
a “mãe de substituição”, mais a parte do material genético doado por um dos
genitores (o cunhado da doadora). A gestante por sub-rogação, renunciou
expressamente ao seu poder familiar em relação ao nascituro, por meio de uma
escritura pública. Com o nascimento da criança, os pais propuseram o
reconhecimento de paternidade socioafetiva, mantendo em branco o nome da
mãe na certidão, uma vez que a concepção ocorrera por inseminação artificial
heteróloga. O pedido foi julgado procedente, determinando a inclusão na
certidão de nascimento do nome do pai biológico e do pai socioafetivo, além dos
nomes dos avós paternos do infante. Recurso Especial foi interposto pelo
Ministério Público do Estado de Santa Catarina, perante o Supremo Tribunal de
Justiça, com fundamento da violação aos dispositivos dos artigos 25, caput; 41,
§1º; 50, §13º, I, todos da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente);
dos artigos 4º, I e II; 535, II, do revogado Código de Processo Civil, assim como
do artigo 1.597, V, do Código Civil. Por unanimidade de votos, foi negado
provimento ao recurso pela terceira turma do STJ, seguindo fundamento de se
tratar de reprodução assistida heteróloga, onde não existe parentesco ou filiação
com a então gestante sub-rogada e, ainda, em respeito ao precedente vinculante
113

da Suprema Corte, reconhecer a possibilidade de registro simultâneo do pai


biológico e do pai socioafetivo no assento de nascimento, objetivando-se, com
tudo isso, a concreção do princípio do melhor interesse da criança.

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO


HOMOAFETIVA. REPRODUÇÃO ASSISTIDA. DUPLA
PATERNIDADE OU ADOÇÃO UNILATERAL. DESLIGAMENTO DOS
VÍNCULOS COM DOADOR DO MATERIAL FECUNDANTE.
CONCEITO LEGAL DE PARENTESCO E FILIAÇÃO. PRECEDENTE
DA SUPREMA CORTE ADMITINDO A MULTIPARENTALIDADE.
EXTRAJUDICICIALIZAÇÃO DA EFETIVIDADE DO DIREITO
DECLARADO PELO PRECEDENTE VINCULANTE DO STF
ATENDIDO PELO CNJ. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA.
POSSIBILIDADE DE REGISTRO SIMULTÂNEO DO PAI BIOLÓGICO
E DO PAI SOCIOAFETIVO NO ASSENTO DE NASCIMENTO.
CONCREÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA
CRIANÇA. 1. Pretensão de inclusão de dupla paternidade em assento
de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de
reprodução assistida sem a destituição de poder familiar reconhecido
em favor do pai biológico. 2. “A adoção e a reprodução assistida
heteróloga atribuem a condição de filho ao adotado e à criança
resultante de técnica conceptiva heteróloga; porém, enquanto na
adoção heverá o desligamento dos vínculos entre o adotado e seus
parentes consanguíneos, na reprodução assistida heteróloga sequer
será estabelecido o vínculo de parentesco entre a criança e o doador
do material fecundante.” (Enunciado n.111 da Primeira Jornada de
Direito Civil). 3. A doadora do material genético, no caso, não
estabeleceu qualquer vínculo com a criança, tendo expressamente
renunciado ao poder familiar. 4. Inocorrência de hipótese de doação,
pois não se pretende o desligamento do vínculo com o pai biológico,
que reconheceu a paternidade no registro civil de nascimento da
criança. 5. A reprodução assistida e a paternidade socioafetiva
constituem nova base fática para a incidência do preceito “ou outra
origem” do art. 1.593 do Código Civil. 6. Os conceitos legais de
parentesco e filiação exigem uma nova interpretação, atualizada à
nova dinâmica social, para atendimento do princípio fundamental da
preservação do melhor interesse da criança. 7. O Supremo Tribunal
Federal, no julgamento RE 898.060/SC, enfrentou, em sede de
repercussão geral, os efeitos da paternidade socioafetiva, declarada
ou não em registro, permitindo implicitamente o reconhecimento do
vínculo de filiação concomitante baseada na origem biológica. 8. O
Conselho Nacional de Justiça, mediante o Provimento n. 63, de
novembro de 2017, alinhado ao precedente vinculante da Suprema
Corte, estabeleceu previsões normativas que tornariam desnecessário
o presente litígio. 9. Reconhecimento expresso pelo acórdão recorrido
de que o melhor interesse da criança foi assegurado. 10. RECURSO
ESPECIAL DESPROVIDO. (STJ – Resp: 1608005 SC 2016/0160766-
4, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de
Julgamento: 14/05/2019, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de
Publicação: DJe 21/05/2019).

São marcos muito importantes para os casais homoafetivos, garantindo a


possibilidade da construção familiar, partindo do princípio da dignidade da
pessoa humana, onde todos possuem o direito do poder familiar com base no
amor. Seguindo dizeres de Dias e Oppermann (2015) “Famílias multiparentais
sempre existiram e continuarão a existir. A diferença é que até recentemente
eram condenadas à invisibilidade, resultando desta perversa tentativa, de não
ver o que foge do modelo do espelho, a exclusão de direitos”.
114

De fato, a afetividade, a proteção integral e do melhor interesse da criança


e do adolescente, a paternidade responsável e a solidariedade constituem
princípios aplicáveis à multiparentalidade, todos com arrimo no princípio da
dignidade da pessoa humana. Não distante, o princípio da isonomia também se
faz inarredável, principalmente quando se trata de relações homoafetivas.
Conforme se nota ao final da última ementa transcrita, o Conselho Nacional de
Justiça, mediante o Provimento n. 63, de novembro de 2017, alinhado ao
precedente vinculante da Suprema Corte, já havia estabelecido previsões
normativas para o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva.
Desse modo, o Conselho Nacional da Justiça autorizou o reconhecimento
extrajudicial da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade, dando
aplicação prática à decisão do Supremo Tribunal Federal, facilitando a vida
daqueles que não queiram ou não possam ingressar com uma ação para o
reconhecimento da multiparentalidade, além de contribuir com a redução no
número de demandas judiciais acerca do tema. No entanto, a multiparentalidade
que pode ser reconhecida extrajudicialmente foi limitada a dois pais ou duas
mães. Assim, caso alguém tenha três pais e/ou três mães deveria ingressar com
uma ação para o reconhecimento da paternidade, uma vez que em seu artigo 14
se estabeleceu que o reconhecimento da paternidade (lato sensu) socioafetiva
“somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de
mais de dois pais ou de duas mães no campo ‘filiação’ no assento de
nascimento”. Mais recentemente, no dia 14 de agosto de 2019, a Corregedoria
Geral de Justiça do Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento n. 83,
modificando o Provimento 63/2017. Dentre as modificações efetuadas, destaca-
se o acréscimo de dois parágrafos, numerados como § 1º e § 2º, ao artigo 14 do
Provimento n. 63/2017, estabelecendo, no § 1º, que “somente é permitida a
inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno” e,
no § 2º, que “a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo deverá tramitar
pela via judicial”. Em primeiras impressões, Tartuce (2019) expressou-se da
seguinte forma:
Foi mantido o caput do art. 14, in verbis: “o reconhecimento da
paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado
de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou
de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento”. A
previsão vinha gerando muitas dúvidas e incertezas a respeito da
possibilidade ou não de reconhecimento extrajudicial da
multiparentalidade e talvez poderia ser até aperfeiçoada, com mais
clareza. Com o texto atual, acrescido dos dois novos parágrafos, a
minha resposta continua sendo positiva quanto a essa polêmica,
apesar de o caput não ter sido modificado. Na dicção do novo § 1º do
art. 14 do Provimento n. 63 do CNJ, “somente é permitida a inclusão
de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno”.
Além disso, se o caso envolver a inclusão de mais de um ascendente
socioafetivo, deverá tramitar pela via judicial (§ 2º). Penso que
evidenciado e se confirma, portanto, o registro da multiparentalidade
no cartório. Porém, tal reconhecimento fica limitado a apenas um pai
ou mãe que tenha a posse de estado de filho. Se o caso for de
inclusão de mais um ascendente, um segundo genitor baseado na
afetividade, será necessário ingressar com ação específica de
reconhecimento perante o Poder Judiciário. Nota-se, assim, a
preocupação de evitar vínculos sucessivos, que, aliás, são difíceis de
se concretizar na prática, pois geralmente a posse de estado de filhos
demanda certo tempo de convivência. De toda forma, pela redação
mantida no caput, não é possível que alguém tenha mais de dois pais
115

ou duas mães no registro, ou seja, três pais e duas mães ou até mais
do que isso.

Constata-se que a regulamentação acaba por restringir o exercício de


direitos aos casais homoafetivos, direitos esses tão recentemente conquistados,
pois na hipótese de um casal homoafetivo com filho(s), em que já teríamos o
registro de dois genitores, seja no campo paterno seja no campo materno, e,
posteriormente, um deles venha a constituir nova família homoafetiva e seu novo
cônjuge ou companheiro venha a firmar laços socioafetivos concretos com
esse(s) filho(s), restaria impossibilitada a inclusão de seu nome, pela via
extrajudicial, na certidão de nascimento desse(s) filho(s). Em se tratando de
casais heteroafetivos, o termo “unilateral” não representa limitação, mas quando
se trata de casais homoafetivos o mesmo raciocínio não pode ser aplicado,
devendo o termo “unilateral” ser interpretado respeitando a particularidade de
cada família e, assim, admitir a inclusão de mais um genitor, inobstante na
certidão de nascimento já reste registrado dois pais, admitindo-se um terceiro, e
se já registrado com duas mães admitir uma terceira, respeitando, de qualquer
forma, o limite de inclusão de apenas um ascendente socioafetivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resta cristalino que, por maiores que tenham sido as conquistas já


efetivadas, é inequívoco que o Brasil precisa avançar e, mais ainda, não
retroceder na proteção, promoção e efetivação de garantias de direitos aos
casais homoafetivos. É correto afirmar que, quanto à multiparentalidade, em
especial para casais homoafetivos, trata-se de assunto extremamente novo e
que existem poucos casos concretos julgados a nos dar uma visão mais ampla,
mas que, diante da tese de repercussão geral fixada pelo Supremo Tribunal
Federal, busca-se harmonizar Direito e realidade social. Em arremate,
percebemos o reconhecimento extrajudicial da multiparentalidade como um
grande avanço no Direito de Família e que, considerando ser o direito uma
prerrogativa, deve ser estendido de forma igualitária, independentemente da
forma de constituição familiar, seja ela hetero ou homoafetiva, tudo em respeito
aos preceitos fundamentais da Constituição Federal.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Bruno Rodrigues de. O reconhecimento dos casamentos e


parcerias entre pessoas do mesmo sexo no direito transnacional:
pluralismo, dignidade e cosmopolitismo nas famílias contemporâneas. Belo
Horizonte: Arraes Editores, 2018.

CASSETARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva:


efeitos jurídicos. 3. ed. rev., atual., e ampl. – [2. Reimpr.] – São Paulo: Atlas,
2017.

DIAS, Maria Berenice; OPPERMANN, Marta Cauduro. Multiparentalidade:


uma realidade que a Justiça começou a admitir. 2015. Disponível em:
file:///C:/Users/Marilu/Downloads/(cod2_13075)MULTIPARENTALIDADE__Ber
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116

STF, REs nº 898.060, Rel Min. Luiz Fux, Plenário, pub. 24/08/2017. Disponível
em:
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TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família. vol. 5. 14. ed. – Rio de
Janeiro: Forense, 2019a.

TARTUCE, Flávio. O Provimento 83/2019 do Conselho Nacional de Justiça


e o novo tratamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade
socioafetiva. 2019b. Disponível em:
http://genjuridico.com.br/2019/08/29/reconhecimento-parentalidade-
socioafetiva/. Acesso em 09/10/2019.
117

O APRISIONAMENTO DA FAMÍLIA AO CASAMENTO


EL ENCARCELAMIENTO DE LA FAMILIA AL MATRIMONIO

Nathalia Cristina Silva Lorente


Orientador(a): Cleber Affonso Angelucci

Resumo: Pretende-se estudar a realidade das novas famílias, com foco nas
diferenças e equiparações entre casamento e união estável, especialmente pela
ruptura do paradigma patriarcal, representava a família oriunda exclusivamente
do casamento, no século passado. Ainda hoje a família é considerada a base da
sociedade civil, assim, é importante comparar as instituições familiares.
Mostrando o funcionamento de cada uma delas, se podem ser equiparadas ou
não, se a união estável deve ser monogâmica como o casamento. Ainda não há
conclusões definitivas, mas já é possível colher como resultados preliminares
que existem inúmeras diferenças entre as instituições. Portanto, discutir as
possibilidades de entidades familiares distintas sem equiparar ao casamento,
considerando seus diversos efeitos, é fundamental para a garantia da liberdade
e dignidade da pessoa humana, vez que a singularidade da família poderá impor
um efeito contrário aquele desejado, pois da família plural restaria apenas a
família matrimonial, retornando à família patriarcal.
Palavras-chave: Casamento. União estável. Família singular.

Resumen: Se pretende estudiar la realidad de las nuevas familias, con foco en


las diferencias y equiparaciones entre matrimonio y unión estable, especialmente
por la ruptura del paradigma patriarcal, representaba a la familia oriunda
exclusivamente del matrimonio, en el siglo pasado. Aún hoy la familia es
considerada la base de la sociedad civil, así que es importante comparar las
instituciones familiares. Mostrando el funcionamiento de cada una de ellas, se
pueden equiparar o no, si la unión estable debe ser monógama como el
matrimonio. Todavía no hay conclusiones definitivas, pero ya se pueden extraer
resultados preliminares de que existen numerosas diferencias entre las
instituciones. Por lo tanto, discutir las posibilidades de entidades familiares
distintas sin equiparar al matrimonio, considerando sus diversos efectos, es
fundamental para la garantía de la libertad y dignidad de la persona humana, ya
que la singularidad de la familia podrá imponer un efecto contrario al deseado,
pues de la familia plural quedaría sólo la familia matrimonial, retornando a la
familia patriarcal.
Palabras clave: Matrimonio. Unión estable. Familia singular.

INTRODUÇÃO

Desenvolver uma pesquisa sobre as instituições familiares é um desafio,


pois tratamos de relações humanas, de vidas reais e com uma carga enorme de
complexidade, principalmente por se tratar de equiparar ou diferenciar uma
instituição da outra, e além disso, discutimos as possibilidades de regularização
de outro tipo de instituição familiar, que já existe, porém não é bem recepcionada
pelo ordenamento jurídico brasileiro. Falamos aqui do casamento, da união
estável e das relações que surgem da união estável, como uniões paralelas.
A pesquisa ainda não possui conclusões definitivas, mas temos como
principal objetivo garantir a vontade das partes nas relações e refletir sobre as
118

equiparações que vem acontecendo com a recente decisão do STF, que julgou
inconstitucional o art. 1790 do Código Civil. Até que ponto a equiparação das
relações prejudicaria a dignidade da pessoa humana? Ou até mesmo pensar se
o judiciário não estaria transformando as outras instituições em um casamento
forçado, como diz Mário Luiz Delgado.
As relações devem ser livres, serem constituídas de acordo com a
vontade das partes, respeitando sempre o princípio da dignidade humana, e
garantindo o bem-estar social de todos os componentes da família, independe
de como é formada, ela deve ser respeita e protegida pelo Estado.

1. METOGOLOGIA

A pesquisa está sendo desenvolvida no Grupo de Pesquisa “O Direito de


Família Contemporâneo” da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no
campus de Três Lagoas, MS, com fomento dado pelo CNPq, no Programa de
Iniciação Científica – PIBIC/CNPq.
A pesquisa foi dividida em quatro partes principais. Na primeira
abordamos o contexto histórico e a evolução das instituições familiares,
começamos nas cidades antigas, onde o casamento era considerado a única
forma de constituir família, marcado pelo patriarcalismo, e passamos por todas
as etapas até chegarmos na família contemporânea, na promulgação da
Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, e no avanço jurídico
das instituições familiares, baseadas na democracia, no afeto e até mesmo na
felicidade dos componentes da família.
Na segunda parte, buscamos os conceitos de casamento e união estável,
suas diferenças e semelhanças, além disso, passamos a analisar o julgado do
STF que possui grande relevância para pesquisa, pois equiparou a união estável
ao casamento para fins de sucessão do companheiro ou companheira falecida.
Na terceira, estudamos a possibilidade de uniões estáveis paralelas e seu
reconhecimento perante o Poder Judiciário, procuramos demonstrar que as
famílias plurais não devem ser marginalizadas, principalmente após decisão do
CNJ, em que proibiu os cartórios de realizarem escrituras públicas de uniões
paralelas. É importante destacar que existe proibição legal dessas uniões
concomitantes, em especial para o casamento, com isso, passamos a destacar
os princípios da igualdade, da dignidade humana, da solidariedade e por fim, o
princípio da afetividade, além de tentar diferenciar fidelidade e lealdade.
Na quarta e última parte, apresentamos resultados parciais, pois ainda
não temos resultados definitivos, vez que a pesquisa está em andamento e ainda
há sérias e profundas discussões sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal
e suas consequências, havendo necessidade de maturação da situação
analisada para melhor implementação.
Utilizamos o método de pesquisa dedutivo e descritivo, com a finalidade
de analisar as instituições desde os séculos passados até os dias de hoje,
analisando cada etapa de evolução do ordenamento jurídico, cada mudança na
constituição das famílias e principalmente, a maneira como ordenamento
acompanha ou deveria acompanhar as mudanças da sociedade.
O propósito do trabalho é demonstrar a importância do reconhecimento e
diferenciação de cada uma das instituições familiares, tenham elas a
composição que tiverem, sob o manto da dignidade da pessoa humana e apta
ao desenvolvimento pessoal, sendo relevante, acima de tudo o respeito e
119

convalidação de direitos e garantidas, conforme disposto na própria Constituição


Federal. Utilizamos também a revisão bibliográfica e documental acerca do
tema, sendo assim temos fontes secundárias no trabalho.

2. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA FAMÍLIA BRASILEIRA

O Direito de Família é um ramo que sofre diversas mudanças no decorrer


do tempo, por estar ligado diretamente com os acontecimentos da sociedade,
com as mudanças políticas, sociais e econômicas, além de estar ligado
diretamente com a evolução pessoal de cada ser humano. Quando falamos em
família, o que primeiro pensamos é a definição de família ou quais as famílias
existentes na sociedade contemporânea e não podemos deixar de associar a
família ao casamento, por ser uma das formas mais antigas para se constituir
família nos países ocidentais, além de estar enraizado em nossos conceitos de
família.
A família era oriunda exclusivamente do casamento nos séculos
passados, representava um paradigma patriarcal/religioso, onde o casamento
era composto por pai, mãe e filhos e só era válido ou reconhecido quando ocorria
a cerimônia no religioso, ou seja, na Igreja Católica. Esse modelo de família, era
um modelo que privilegiava o homem, pois só ele gozava de direitos, ele era o
representante da família, detinha o poder de governar a casa, os filhos e a
mulher. Ainda mantendo esse modelo de família, o Código Civil de 1916
continuou tratando a família como algo hierarquizado e patriarcal, mudando
somente a validação do casamento, introduzindo o casamento civil, mantendo
ainda o homem como o principal membro da família.
Ao longo dos anos e com as mudanças de costumes, a família começou
a se modificar. No início da Revolução Industrial, houve a quebra daquela família
camponesa, com uma enorme quantidade de filhos, onde todos eram utilizados
como mão de obra ruralista, com isso, tivemos um enxugamento da família,
passamos para uma família menor, em que o pai prezava pelo sustento da casa,
dos filhos e da esposa, e detinha todo o poder familiar, a mãe era apenas uma
cuidadora do lar.
Após a Revolução Industrial houve outras diversas mudanças no meio
político e social, principalmente na evolução da família, com isso, a mulher
passou a ter mais destaque dentro e fora do casamento, passou a ser
reconhecida e constituída de direitos dentro da sociedade. Além das mudanças
nos direitos das mulheres, houve outros direitos em ascensão que contribuíram
para a quebra da família singular e o nascimento da família plural e democrática,
como conhecemos atualmente. A chegada da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 é o maior exemplo de como aquele modelo
patriarcal estava ultrapassado e mal visto pela sociedade, pois nela há
determinação expressa para que haja igualdade no tratamento entre homens e
mulheres, inclusive dentro da sociedade conjugal.
A promulgação da Constituição Federal foi um marco muito importante
para o meio jurídico e principalmente para o Direito de Família, além de garantir
a dignidade da pessoa humana, estabeleceu a igualdade entre homens e
mulheres, deixando de limitar a família apenas no casamento e passou a
englobar mais maneiras de se constituir família, uma delas que vamos destacar
ao longo da pesquisa é a união estável, instituição que antes não era permitida
nos ordenamentos jurídicos, era mal vista pela sociedade e denominada como
120

família ilegítima, por ser considerada união concubinária e para as mulheres se


tornava uma ação reprovável, pois nenhuma mulher deveria se envolver com
algum homem, sem ser devidamente casada.
Buscando-se uma definição de família na Constituição Federal e no
Código Civil 2002, não conseguimos encontrar uma descrição clara e objetiva do
que é família e também não conseguimos identificar um limite, o único fato que
podemos destacar é que ainda hoje a família é a base da sociedade, é uma
instituição importante para o Estado, inclusive assegurada pelo Texto
Constitucional de acordo com o art. 226 da CF/88. Por esse motivo, vamos
utilizar um conceito de família baseado no art. 5º, II da Lei n 11.340/2006, a Lei
Maria da Penha: “II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade
formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.
A partir desta breve análise histórica da evolução da família até os dias de
hoje e com a nossa em escolha em adotar o conceito de família descrito na Lei
Maria da Penha, partimos para o objetivo central da pesquisa, que é discutir e
analisar as diferenças e semelhanças entre duas instituições familiares e a
possibilidade de reconhecimento da família plural, falamos então, do casamento
e da união estável, tendo como foco a discussão em torno da decisão do
Supremo Tribunal Federal nos temas de repercussão geral nº498 e 809 em que
se decidiu pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, equiparando
cônjuge ao companheiro/a para fins sucessórios, o que pode acarretar o retorno
da família singular.

3. SEMELHANCAS E DIFERENÇAS ENTRE CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL

Como demonstrado em parágrafos anteriores, a família é a base da


sociedade e protegida pelo Estado, com isso, começamos este tópico afirmando
que não pretendemos analisar qual instituição familiar é mais ou menos
importante, não queremos hierarquizar nenhuma instituição, todas elas são
fontes de constituição de família, nosso objetivo é discutir sobre suas formas de
constituição, de desconstituição, de quantidade de membros, de como devem
ser celebradas e garantir que todos sejam respeitas, protegidas e legalizadas na
maneira em que se constituíram.
O casamento é um ato solene e complexo, realizado entre duas pessoas
com certa capacidade para se casar e com vontade de casar, passam por
procedimentos de habilitação, celebração, disposição de seus patrimônios e por
fim, por processos de dissolução, muitas vezes ligado ao âmbito religioso. Nas
palavras de Mário Luiz Delgado:

O casamento pressupõe um ato formal e solene, precedido de um


processo destinado a apurar a capacidade matrimonial dos
nubentes. A prova de sua existência é exclusivamente documental,
através de certidão extraída do assento público competente. A
dissolução também exige um procedimento próprio e deliberação
estatal. A prova de que o matrimônio se dissolveu também se faz
por certidão, pouco importando a realidade dos fatos. Se os ex-
cônjuges, depois de divorciados, retomam a convivência como se
ainda casados fossem, tal fato jamais terá o condão de restaurar o
casamento (DELGADO, 2016, p. 1.352).
121

Além de todos os procedimentos para a realização do casamento, os


cônjuges possuem alguns deveres recíprocos, como: dever recíproco de
fidelidade, de coabitação, mútua assistência, sustento da família, o dever de
guarda e educação dos filhos comum e o dever de respeito e consideração
mútuos. Rolf Madaleno traz em sua doutrina que:

Faltando o cônjuge com qualquer um dos deveres pessoais do


casamente, ele incide em ato de violação das obrigações do
matrimônio, servindo o fato como motivação pessoal de efeito
exclusivamente ético, de foro íntimo, para a proposição do divórcio
judicial litigioso e não causal, deixando de servir como motivo para
a derrogada ação de separação judicial litigiosa consoante
dispunha o caput do artigo 1.572 do Código Civil, não gerando mais
nenhum efeito jurídico à exceção do dever de mútua assistência em
que a falta de socorro alimentar pode gerar uma ação de alimentos
(MADALENO, 2017, p. 480).

Antes de adentrarmos no conceito de união estável, é preciso pontuar que


cada vez mais as pessoas estão optando por uniões mais simples, sem aquela
formalidade do casamento, em um censo do IBGE encontramos dados que
compravam esta preferência atualmente:

As mudanças que vêm ocorrendo nos padrões de organização


familiar no Brasil podem ser vistas através das formas das uniões.
As evidências trazidas pelo Censo Demográfico 2010 indicaram um
crescimento significativo das uniões consensuais em relação a
2000. Em 2010, no conjunto do País, 36,4% das pessoas
declararam viver em união consensual, percentual
consideravelmente superior ao observado em 2000 (28,6%).
Reduziram-se os percentuais das pessoas que viviam unidas
através do casamento civil e religioso e daquelas unidas apenas no
religioso (IBGE, 2010).

Ao contrário do casamento, a união estável é uma forma de se constituir


família mais simples, baseada apenas na vontade dos companheiros de ficarem
juntos e constituírem família, ligada mais ao afeto e a convivência dos
companheiros, não tendo necessidade de um contrato ou de ato solene antes de
iniciar as relações. Em passado bem recente, a Lei nº 8.971/1994 estipulava a
necessidade de um tempo para se concretizar a união estável ou surgimento da
prole, o tempo necessário era de 5 anos para a constituição de uma união
estável. Porém a Lei nº 9.278/1996, conhecida como Lei Álvaro Villaça de
Azevedo, revogou a lei anterior e não fixou prazo para a constituição da união
estável.
Logo após, com o Código Civil de 2002, a união estável passou a ter
alguns requisitos para sua constituição, deve ser uma união pública, contínua,
duradoura e com o objetivo de constituir família, além disso, é importante elencar
que a súmula nº 382 do STF, permite que os companheiros vivam em residências
distintas. Diferente do casamento, a união estável não impõe deveres aos
companheiros, como fidelidade recíproca, o que a união estável estabelece é
lealdade entre os parceiros, devemos entender essa lealdade como uma forma
de confiança e diálogo entre os componentes da relação.
Sendo assim, conseguimos constatar que casamento e a união estável
são entidades familiares, mas com grande diferenciação, mesmo com o grande
esforço dos doutrinadores na área de família em garantir mais direitos aos
122

companheiros. Partindo desse viés, temos a recente decisão do Supremo


Tribunal Federal nos temas de repercussão geral nº 498 e 809, referentes aos
Recursos Extraordinários 878.694/MG e 646.721/RS em que se decidiu pela
inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, equiparando companheiro/a
ao cônjuge para fins sucessórios. Um dos principais problemas da pesquisa é
perguntar são ou não diferentes? É razoável tratar o companheiro como herdeiro
necessário, mesmo ele não tendo constituído um casamento? A equiparação de
casamento e união estável serve para a construção da dignidade humana? Os
efeitos das instituições não levariam à singularidade familiar? Esse tratamento
não acarretaria em um casamento forçado ou em verdadeiro retrocesso em se
equiparar uma outra instituição familiar ao casamento?
Já conseguimos identificar que as duas instituições são diferentes,
possuem diferenças na forma de se constituir, na forma de celebração e
comprovação, possuem diferenças inclusive na dissolução. E mais uma vez é
importante ressaltar que não discutimos qual instituição é mais ou menos
importante, aqui discutimos a autonomia de cada uma delas, a vontade das
partes em cada entidade e que essa vontade seja respeitada pelo Estado.
Além desses pontos, buscamos discutir a eventual possibilidade de
uniões estáveis paralelas, pois no casamento há expressa proibição à bigamia,
mas na união estável não existe essa proibição, outro grande ponto que
devemos diferenciar, é que no casamento temos o pressuposto da fidelidade e
na união estável temos a lealdade, e aqui entendemos a lealdade como um dever
de confiança e diálogo entre os companheiros, se todos concordam, qual o
motivo de não ser protegido pelo ordenamento.
É através deste pensamento que destacamos a importância de se
diferenciar o casamento da união estável, a importância de se propagar cada vez
mais o princípio da afetividade como parâmetro para as instituições familiares.
Por se tratar de pesquisa em andamento, ainda não conseguimos responder
algumas das indagações mencionadas acima, mas já possível colher que há um
grande conservadorismo jurídico em se equiparar uma outra instituição familiar
ao casamento.
Portanto, discutir as possibilidades de entidades familiares distintas do
casamento, mesmo considerando seus efeitos, é fundamental para a garantia da
liberdade e dignidade da pessoa humana, vez que a singularidade da família
poderá impor um efeito contrário aquele desejado, pois da família plural restaria
apenas a família matrimonial e, talvez em breve, um retorno à família patriarcal.

CONCLUSÃO

O propósito deste trabalho é promover discussões sobre o assunto,


mesmo que ainda não haja conclusões definitivas, já é possível colher alguns
resultados parciais, o que podemos concluir é que as diferenças existem e
devem ser respeitadas, a vontade das partes na constituição familiar deve valer,
para não regredirmos, para não transformarmos tudo em casamento, ou melhor,
em um casamento forçado pela legislação e judiciário brasileiro, o momento é de
discussão e reflexão sobre o tema, é pensar nos pontos principais e em cada
família existente.
Além disso, já podemos destacar algumas principais diferenças entre os
institutos, uma delas é de que na união estável não há um dever de fidelidade,
mas um dever de lealdade, confiança e diálogo entre os companheiros,
123

permitindo-se assim as uniões estáveis paralelas e simultâneas, diferente do


casamento em que há expressa proibição à bigamia, devendo os cônjuges o
dever de fidelidade recíproca.
Ainda é importante destacar que a própria Constituição Federal diferencia
os institutos, destacando no § 3º do art. 226, que as uniões estáveis são
reconhecidas como entidade familiar, cabendo a lei facilitar sua conversão em
casamento, com isso, podemos concluir, que são entidades diferentes, pois uma
pode se converter na outra, não se converte o que é igual. Outro ponto que nos
mostra a grande diferença entre os institutos, é a vontade das partes, cabe as
partes escolherem se querem constituir casamento ou união estável, como
mostramos na pesquisa, atualmente há uma grande tendência de se constituir
relações consensuais, ou seja, relações mais simples, como as uniões estáveis.

REFERÊNCIAS

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união estável e casamento. Revista Brasileira de Direito Civil. Belo
Horizonte, vol.12, p. 59-73, abr./jun. 2017.

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Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível em:
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_____. LEI MARIA DA PENHA. Lei N.°11.340, de 7 de Agosto de 2006.

DELGADO, Mário Luiz. O paradoxo da união estável: um casamento forçado.


Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 2, n 1, p. 1349-1371, 2016.

GIANELLINI, Giovani Guitti. Limites da escritura pública de união estável: um


ensaio sobre a validade. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 2, n 1, p. 171-
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MADALENO, Rolf. Manual de Direito de Família.. [Minha Biblioteca] – Rio de


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https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530976187/epubcfi/6/10[;
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MULTEDO, Renata Vilela; MORAES, Maria Celina Bodin de. Liberdade e


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RAMOS, André Luiz Arnt; CATALAN, Marcos José. O eterno retorno: a que(m)
serve o modelo brasileiro de direito sucessório? Civilistica.com, a. 8. n. 2.
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124

REINIG, Guilherme Henrique Lima. Aspectos polêmicos da sucessão do


companheiro a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002. Revista dos
Tribunais, vol. 931, p. 117. Mai/2013DTR\2013\2713.
125

O NOME COMO O MÍNIMO EXISTENCIAL: DIREITO À AUTONOMIA E À


IDENTIDADE PESSOAL DOS TRANSGÊNEROS
THE NAME AS EXISTENTIAL MINIMUM: RIGHT TO AUTONOMY AND
PERSONAL IDENTIFY OF TRANSGENERIES

Mathaus Miranda Maciel

Resumo: O presente resumo que se pretende desenvolver busca mostrar a luta


atual, no país, enfrentada pelos transgêneros em relação à sua identidade
pessoal. Objetiva-se explicitar alguns retrocessos na parte documental brasileira
que, devido às necessidades e às diversidades de situações sociais, estão
passando por significativas mudanças. Busca-se explicitar como os direitos da
personalidade são imprescindíveis no que se refere à definição da dignidade
humana, uma vez que consideram o ser humano em si mesmo. Analisa-se,
ainda, a singularidade do indivíduo transgênero e faz-se um breve histórico da
transexualidade, antes considerada como doença pela Organização Mundial da
Saúde (OMS). Finalmente, é objetivo central da pesquisa interpretar, de maneira
crítica, algumas decisões judiciais em relação ao registro civil dos transgêneros
e as implicações no universo jurídico desse grupo minoritário.
Palavras-chave: Identidade pessoal. Transgêneros. Documentação.

Abstract: The present summary is intended to develop a search to show the


current struggle in the country, faced by transgender people concerning their
identity. It aims to explain some setbacks in the Brazilian documentary part that,
due to the needs and diversities of social situations, are undergoing significant
changes. It seeks to clarify how the rights of the personality are indispensable in
terms of the definition of human dignity since they consider the human being in
itself. It is also analyzed the uniqueness of the transgender and a brief history of
transsexuality that was considered as a disease by the World Health
Organization. Finally, it is the central objective of the research to interpret, in a
critical way, some judicial decisions regarding the civil record of transgeneries
and the implications in the legal universe of this minority group.
Keywords: Personal identify. Transgeneries. Brazilian document.

INTRODUÇÃO

Muito discute-se hoje, na sociedade brasileira, acerca dos direitos da


personalidade e suas implicações na vida dos indivíduos. Nesse contexto,
caracterizam-se esses direitos como situações jurídicas que consideram o
sujeito em sua própria singularidade, ou seja, os direitos da personalidade
tentam buscar a identidade pessoal dentro do universo jurídico (NAVES, 2017).
São alguns exemplos dessa singularidade humana o direito à vida, à liberdade,
à imagem, à honra e ao nome, uma vez que ordenamento jurídico brasileiro
optou pela tipicidade aberta desses direitos, de forma que sempre seja possível
abarcar novos aspectos jurídicos de proteção à pessoa.
Dessa forma, ao examinar o direito à identidade pessoal e ao nome,
previsto no art. 16 do Código Civil (BRASIL, 2002), é reiterada a noção de
dignidade humana, o que permite a valoração da identidade do sujeito. Então,
quando é considerada a realidade dos transgêneros no país, sobretudo no que
126

tange a documentos de identificação, percebe-se uma violação, em muitas


decisões judiciais, dos direitos da personalidade ao nome e à identidade pessoal.
Fato é que as possibilidades jurídicas que consideram a pessoa
transexual modificam-se constantemente e, para que haja o real gozo de direitos,
é necessário considerar os distintos aspectos da pessoalidade.
No tocante à vertente metodológica do resumo proposto, utilizou-se a
vertente jurídico-sociológica. Em relação ao tipo de investigação, o tipo jurídico-
projetivo e o jurídico-interpretativo. Por fim, o raciocino predominante é o
raciocínio dialético.

1. DESENVOLVIMENTO
1.1. DO DIREITO À IDENTIDADE E AO NOME

Em primeiro lugar, segundo Bruno Torquato e Maria de Fátima Freire de


Sá, é necessário dividir à identidade em dois aspectos: o estático e o dinâmico:

O aspecto estático é composto de elementos que refletem a identidade


pessoal como identificação externa, abrangendo o nome, a filiação, a
data e o local de nascimento e caracteres físicos. Já a identidade na
perspectiva dinâmica envolve ingredientes mais internos do sujeito, por
trazer componentes da biografia da pessoa, com suas crenças e
experiências. É um aspecto que, apesar de interno, é formado pela
alteridade e no convívio social (NAVES; SÁ, p. 81, 2017).

Nesse âmbito, ao interpretar a teoria dos autores, afirma-se que, pela


utilização dos desses dois aspectos em harmonia, constrói-se a identidade
social. De maneira análoga, invoca-se a sexualidade que, assim como a
identidade, possui elementos estáticos e dinâmicos. A sexualidade pode ser
dividida em “gênero” e “sexo” e, mesmo assim, as discussões ainda estão
abertas no tocante a esses conceitos. Para Judith Butler, filósofa estadunidense
notável, o gênero teria uma configuração dinâmica:

O gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente


nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece
interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e
regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se
tornou impossível separar a noção de “gênero” das interseções
políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida.
(BUTLER, 2015, p.20).

No tocante ao sexo, esse conceito poderia ser definido em seu aspecto


estático, capaz de identificar o sujeito em suas relações sociais, assim como o
nome exerce essa função. Contudo, “gênero” e “sexo” são termos em fluidos em
construção e, o que hoje é considerado como paradigma, pode ser alterado, em
razão da diversidade de casos sociais. Os transgêneros identificam-se
distintamente o seu gênero da sua morfologia corporal e, muitos optam pela
cirurgia de transgenitalização, na tentativa de adequar o sexo morfológico ao
sexo psíquico.
Portanto, o Direito surge como uma forma de estender a ampla
participação de todos nas situações jurídicas e, como é uma disciplina aberta,
modifica-se constantemente para que englobe, ou busque englobar, a maioria
dos cidadãos, consideradas suas singularidades. Embora no art. 5° da
Constituição Brasileira e na parte dos Direitos da Personalidade no Código Civil,
127

seja assegurada a igualdade formal perante a lei e a consideração da pessoa


em sua individualidade, sem distinção de qualquer natureza (BRASIL, 1988), na
aplicação de casos concretos, muitas decisões afastam-se do que a própria lei
dispõe.
Outro fator importante a ser discutido é a utilização da linguagem como
forma de dominação. Como uma forma de tentar equiparar, nas situações
concretas, os direitos fundamentais dos transexuais e de outros indivíduos, em
2014, uma reunião sobre Direitos Humanos tratou dessa questão. No tocante ao
assunto, foi aprovado para análise um manual referente ao uso da linguagem
inclusiva e não sexista, que, em uma de suas partes, dispõe:

A atual realidade está mudando, onde o empoderamento e o


protagonismo(...), é um fato no mundo e na região, levanta a
necessidade urgente de tornar visível o progresso de um mundo que
caminha em direção à igualdade de gênero. O uso correto da
linguagem que não oculta, não subordina não subestima, não exclui,
não estereotipa – é hoje um desafio crucial para a visibilidade dessas
mudanças e seu fortalecimento para um olhar mais igualitário e
inclusivo da realidade (MANUAL, 2018).

Essas diretrizes explicitam que a linguagem é um meio para a expressão


dos pensamentos e dos sentimentos e, não raro, indivíduos transgêneros são
vítimas de violações de direitos de identidade, seja pelo nome, seja por ações
que atingem sua dignidade.

1.2. CASOS E INTERPRETAÇÕES

De 1953 é datada a primeira utilização da palavra “transexualismo”, por


um médico estadunidense, Henry Benjamin, que utilizou tal termo para elencar
as divergências psicomentais do transexual (VIEIRA, 2012). Nota-se que o sufixo
–ismo, de acordo com estudos da Medicina, é utilizado para designar uma
doença e, apenas em 2019, a Organização Mundial da Saúde retirou a
transexualidade da Classificação Internacional de Doenças (NAÇÕES UNIDAS
BRASIL). Nesse ínterim, afirma-se que a sociedades atuais demandam novas
alternativas de inclusão e, cabe a variadas ciências, sobretudo o Direito,
exercerem esse papel inclusivo.
Dessa maneira, é imprescindível salientar que a discussão acerca dos
indivíduos transgêneros engloba aspectos muito mais complexos que a
identidade. Contudo, de maneira reducionista propositada, serão analisados
casos e jurisprudências referentes à identidade e ao nome, uma vez que esses
dispositivos observam as necessidades sociais e mudanças pelas quais a
atualidade experiencia. Certo é que às vezes é importante reduzir as questões
para, posteriormente, ampliar.
Inicialmente, em 2014, com a I Jornada de Direito da Saúde, é mostrada
a possibilidade da retificação do registro do prenome e do gênero, sem a cirurgia
de transgenitalização. Porém, de caráter recomendatório, será analisado nos
casos se o conteúdo de tal Jornada está sendo devidamente aplicado:

Enunciado nº 42 – Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito


enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência
entre a identidade determinada, pela anatomia de nascimento e a
128

identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para


a retificação do registro civil.

Ainda, dispõe o enunciado nº 43 que é possível a retificação do sexo


jurídico sem a realização da cirurgia. Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça
não se manifestou em relação à questão, uma vez que há a necessidade de
apuração. Ao examinar a legislação internacional, pelo Direito Comparado,
percebe-se exemplo semelhante na Argentina, com a Ley de Identidad de
Género. O enunciado de tal lei prevê sobre a adequação de nome de sexo,
entretanto, ainda não foi apurada pelo Senado argentino (VIEIRA, 2012).
Em 2012, o STJ analisou questões referentes a possíveis correções do
registro civil de um indivíduo, pela separação de seus genitores. Argumentou,
para a retificação do nome do indivíduo, o STJ: “o princípio de verdade real
norteia o registro público e tem por finalidade a segurança jurídica, razão pela
qual deve espelhar a realidade presente, informando as alterações relevantes
(...)”. Portanto, em eventuais julgados de retificação de registros civis de
transgêneros, por que os tribunais não empregarem o princípio da verdade real,
responsável por se ater à situação concreta e suas singularidades?
Além disso, o nome social, embora nem sempre o mesmo de registro, é
personalíssimo ao sujeito e, por isso, motivo de tutela legal e de respeito. Para
isso, há o art. 58 da Lei de Registros Públicos que prevê a substituição do
prenome pelo nome social (BRASIL, 1973). De maneira consoante ao exposto,
afirma Sílvio Venosa:

Diversos transexuais já obtiveram judicialmente sua modificação de


documentos, pois o registro público deve espelhar a realidade, dentro
do seu princípio de veracidade. A mudança de nome segue o mesmo
princípio, ainda porque a legislação permite que se adicione o nome
pelo qual a pessoa é conhecida (VENOSA, p. 149, 2016).

Outros dispositivos notáveis no tocante aos direitos da personalidade dos


transgêneros são o Estatuto da Diversidade Sexual e uma lei estadual adotada
Universidade de São Paulo. O primeiro, ainda motivo de discussões no Senado
e não aprovado, consta no art. 44 a garantia de que os transexuais, travestis e
intersexuais que possuam o descompasso entre o seu sexo morfológico e o sexo
psíquico o direito ao nome social. Já a lei estadual 55588/2010 (SÃO PAULO,
2010), que a USP recepcionou, dispõe sobre o tratamento nominal desses
cidadãos e permite o uso do nome social de alunos e alunas transexuais em
documentos acadêmicos. Reforça-se que equiparação formal perante a lei só
terá efetividade plena se houver junção da eficácia jurídica à eficácia social
(NOVELINO, 2016).
Analisa-se, ainda, a decisão em 2009 da 4º Turma do STJ, ao julgar
procedente a autorização de Romar retificar seu nome para Bruna:

Registro público. Mudança de sexo. Exame de matéria constitucional.


Impossibilidade de exame na via de recurso especial. Ausência de
prequestionamento. Súmula nº211/STJ. Registro civil. Alteração do
prenome e do sexo. Decisão judicial. Averbação. Livro cartório (...) 4.
A interpretação conjugada nos arts. 55 e 58 da Lei nº 6015/73 confere
amparo legal que transexual operado obtenha autorização para a
alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público notório
pelo qual é conhecido no meio em que vive. 5. Não entender
juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa
129

postergar o exercício direito à identidade pessoal e subtrair do


indivíduo a prerrogativa de adequar o registro de sexo à sua nova
condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. 6.
No livre cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de
prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram
de decisão judicial (grifo nosso).

Essa decisão, de 2009, apresenta aspectos a serem criticados de forma


negativa e positiva. Quando à mudança de nome condicionada à cirurgia de
transgenitalização, critica-se, uma vez que, hoje, o Supremo Tribunal Federal já
se posicionou e reconheceu a transgêneros a possibilidade de alteração civil do
registro sem a submissão à cirurgia (STF, 2018), mediante à diversidade de
situações jurídicas. Além disso, julga-se equivocada a decisão de que deva ficar
averbado as modificações à margem do prenome ou que deixe clara a
interferência judicial. Defende-se a retificação do prenome por completo, já que
a não alteração do registro civil ou a alteração com eventuais dizeres que
poderiam continuar constrangendo esses indivíduos perpetuaria a busca pela
identidade pessoal dos transgêneros. Assim, apenas o nome retificado e o sexo
(em documentos que é expresso) acompanhariam a identidade, a carteira de
motorista e o título de eleitor, por exemplo, sem linguagens que não atenuariam
os preconceitos. Faz-se importante defender também, como atualmente o STF
já expressa, a mudança de registro civil sem o requisito primário da cirurgia de
transgenitalização.

CONCLUSÃO

Finalmente, de forma preliminar, explicitaram-se no resumo as


dificuldades que os transgêneros ainda enfrentam na realidade brasileira. Nesse
âmbito, foram trabalhadas noções de dignidade que o indivíduo transexual
busca. Afirma Tereza Vieira:

O transexual não quer muito, quer apenas o mínimo existencial para


uma sobrevivência digna, procurando o equilíbrio entre os direitos
fundamentais e os sociais. O direito à busca do equilíbrio corpo-mente
do transexual, ou seja, à adequação do sexo e prenome, está ancorado
no direito ao próprio corpo, no direito à saúde e, principalmente, no
direito à identidade sexual em conformidade com sua identidade de
gênero, a qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal
(VIEIRA, p. 118, 1996).

Dessa forma, é possível ratificar que todas as eventuais decisões judiciais


e prováveis legislações recepcionadas em favor dessa problemática dialoga
intimamente com a noção de equidade proposta por Aristóteles. O filósofo crê
que a equidade é uma correção na lei, motivada pela variedade das situações
sociais, que tem por finalidade a máxima “desigualar para igualar”. São palavras
de Aristóteles (1991): “E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei
quando ela é deficiente em razão da sua universalidade”. Portanto, somente em
consonância com esse pensamento é que são possíveis medidas inclusivas, o
que permite enxergar nos direitos da personalidade uma intima ligação com a
equidade aristotélica e, mediante o exercício desses direitos, a afirmação da
pessoalidade e personalidade do indivíduo, de qualquer natureza, em suas
relações jurídicas subjetivas.
130

Em síntese, o que ajuda a corroborar a singularidade de todo sujeito


detentor de direitos e deveres na ordem civil foi a Declaração Universal do
Genoma Humano e dos Direitos Humanos, em 1997. Tal dispositivo foi
elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO) e seu artigo 2º prevê que:
Todos têm o direito ao respeito por sua dignidade e seus direitos
humanos, independentemente de suas características genéticas. Essa
dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos a suas
características genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade
(UNESCO, 1997).

Com o eixo fundamental na dignidade da pessoa humana, a Declaração


norteia princípios básicos da igualdade entre os indivíduos.
Dessa maneira, quando discute-se acerca de direitos fundamentais, como
o da identidade pessoal e do nome, busca-se garantir meios para que as
singularidades de cada pessoa sejam valorizadas. A dignidade humana, motivo
de inúmeras discussões nos tempos hodiernos, pode ser garantida por
incontáveis instrumentos jurídicos e, há na tutela do nome digno uma forma de
tentar atenuar as constantes violações de direitos que os transgêneros
enfrentam. Concretiza-se, então, o direito ao nome, o direito de ser si mesmo.

REFERÊNCIAS

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para as pessoas trans. Huff Post. 31 jan. 2019. Disponível em:
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm. Acesso em: 04 out.
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BRASIL, Supremo Tribunal de Justiça. REsp 10724/MG. Rel. Min. Luís Felipe
Salomão, j. 04 dez. 2012.
131

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 737993/MG. Recurso Especial


2005/0048606-4, 4º Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha (1123), DJe.
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VIEIRA, Tereza Rodrigues (Org.). Transgêneros. 1. ed. Brasília, Zakarewicz,


2019.

WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis em derecho: pautas metodológicas y


técnicas para elestudiante o investigador delderecho. Madrid: Civitas, 1985.
132

Grupo de Trabalho:

DIREITO CIVIL, EMPRESARIAL E


CONSUMIDOR II
Trabalhos publicados:

A HARMONIA DOS INTERESSES NA RELAÇÃO DE CONSUMO: O RISCO


DE DESENVOLVIMENTO E A NEGLIGÊNCIA AO RECALL COMO
EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE

A INSEGURANÇA JURÍDICA OCASIONADA PELA UTILIZAÇÃO DO MERO


ABORRECIMENTO COMO FUNDAMENTO PARA A NEGATIVA DE AÇÕES
POR DANOS MORAIS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

DISREGARD DOCTRINE E A LEI ANTICORRUPÇÃO

IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMAS DE COMPLIANCE PARA A


ADEQUAÇÃO À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

O APOIO FEDERAL À INOVAÇÃO E A POSSIBILIDADE DE ACESSO AO


FINANCIAMENTO PELO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL SUJEITO AO INOVA
SIMPLES

O DIREITO À SAÚDE NA RELAÇÃO DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DA


JURISPRUDÊNCIA PAULISTA DIANTE DOS DANOS ESTÉTICOS
DECORRENTES DE TRATAMENTOS DE CRIOLIPÓLISE

PROIBIÇÃO DE CASAMENTO DE PESSOA MENOR DE DEZESSEIS ANOS:


UMA PROTEÇÃO JURÍDICA?

SUSTENTABILIDADE DA EXISTÊNCIA: DIGRESSÕES SOBRE A


AUTONOMIA E DIGNIDADE NA VIDA E NA MORTE
133

A HARMONIA DOS INTERESSES NA RELAÇÃO DE CONSUMO: O RISCO


DE DESENVOLVIMENTO E A NEGLIGÊNCIA AO RECALL COMO
EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE
THE HARMONY OF INTERESTS IN THE CONSUMER RELATIONSHIP: THE
RISK OF DEVELOPMENT AND NEGLIGENCE OF THE RECALL AS
EXCELLENCE OF RESPONSIBILITY

Idamara Cristina Pinheiro do Amaral


Orientador(a): Áurea Moscatini

Resumo: O presente artigo tem como intuito fazer uma análise crítica sobre a
harmonia de que trata o artigo 4º, III do Código de Defesa do Consumidor,
harmonia cujo qual deve se basear no princípio da boa-fé e equilíbrio. Para isso,
discorre-se o artigo sobre a responsabilidade do fornecedor no Código de Defesa
do Consumidor, discutindo-se com foco duas possíveis excludentes não
aplicáveis atualmente pela legislação brasileira, que são elas: o risco de
desenvolvimento e a negligência do consumidor em relação ao recall. O método
de pesquisa utilizado para compor o artigo foi o hipotético-dedutivo com subsídio
de pesquisa bibliográfica.
Palavras-chaves: Harmonia. Boa-fé. Excludente.

Abstract: The purpose of this article is to make a critical analysis of the harmony
referred to in Article 4, III of the Consumer Protection Code, which should be
based on the principle of good faith and balance. For this, the article is discoursed
on the responsibility of the supplier in the Consumer Protection Code, discussing
in focus two possible exclusionary not currently applicable by Brazilian law, which
are: the development risk and the negligence of the consumer in relation to the
recall. The research method used to compose the article was the hypothetical
deductive with subsidy of bibliographic research.
Keywords: Harmony. Good faith. Excluding.

INTRODUÇÃO

O seguinte artigo transcorre em torno do art. 4º, III do Código de Defesa


do Consumidor em que prevê como objetivo que a relação de consumo opere de
forma em que haja a harmonia dos interesses dos participantes desta relação,
sempre com base na boa-fé e equilíbrio entre consumidores e fornecedores.
No entanto, ocorre um antagonismo entre tentar estabelecer essa
harmonia juntamente ao sistema totalmente protetivo que é o Código de Defesa
do Consumidor.
Recordemos que, o Código de Defesa do Consumidor adentrou o sistema
jurídico brasileiro a fim de equiparar o consumidor em relação ao fornecedor,
buscando assim uma relação jurídica equilibrada e justa.
O artigo então buscando analisar de forma crítica essa harmonia e
equilíbrio almejado na relação jurídica, aborda a responsabilidade do fornecedor
no Código de Defesa do Consumidor analisando duas hipóteses de excludentes:
o risco de desenvolvimento e a negligência do consumidor ao recall.

HARMONIZAÇÃO DE INTERESSES NAS RELAÇÕES DE CONSUMO


134

O Código de Defesa do Consumidor em seu caput do art. 4° e


especificamente em seu inciso III, dispõe como um de seus princípios e objetivo,
a harmonia dos interesses nas relações de consumo, harmonia esta que deve
se apresentar de forma compatível com a proteção do consumidor e a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, viabilizando os
princípios contidos no art. 170 da Constituição Federal nos quais consistem na
ordem econômica.
A harmonia das relações de consumo será pautada com base nos
princípios da boa-fé e equilíbrio, princípios cujos quais também constituem a Lei
n. 8.078/90 e aparecem no art. 4º, inciso III.
Estes dois princípios então (boa-fé e equilíbrio) estabelecidos pelo
legislador como base da harmonia entre a relação existente entre consumidor e
fornecedor, tem como propósito vincular os interesses visivelmente distintos, que
consiste na proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e
tecnológico, visando não somente a defesa do hipossuficiente, mas inclusive a
garantia da ordem econômica.
A boa-fé juntamente ao princípio do equilíbrio tem como essência
propiciar a cooperação entre os sujeitos da relação, além de ter o intuito de
equilibrar a relação jurídica de consumo, a fim de garantir o respeito dos direitos
de ambas as partes, tanto do hipossuficiente como daquele que é detentor da
livre iniciativa e do poder econômico.
Deste modo, deve-se compreender de forma explícita que a harmonia
entre as relações de consumo está estritamente atrelada aos princípios da boa-
fé e do equilíbrio, uma vez que na ausência destes, impossibilita-se a existência
da harmonização dos interesses nas relações de consumo.

RESPONSABILIDADE OBJETIVA E A TEORIA DO RISCO

A responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor é baseada


na teoria do risco, ou também denominada teoria objetiva, no qual consiste na
responsabilidade em que não é necessária a existência ou demonstração de
culpa. Na relação de consumo o fornecedor responde pelo produto ou serviço
defeituoso que colocar no mercado independentemente se agir com culpa
(negligência, imprudência ou imperícia), havendo uma única exceção em relação
à hipótese do § 4º do art. 14 que estabelece a responsabilidade do profissional
liberal.
A tese da responsabilidade objetiva após reconhecida no âmbito da
responsabilidade civil passou a permear diversas leis esparsas, assim como
exemplo a que tratamos aqui, sendo o Código de Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor nem sempre foi alicerçado pela
responsabilidade objetiva. Como nos ensina Gonçalves (2018), a
responsabilidade objetiva só surgiu e se tornou um sistema autônomo no âmbito
da responsabilidade civil a partir da segunda metade do século XIX, pois até
então somente se falava em responsabilidade subjetiva.
No Código Civil brasileiro de 1916 ainda não se previa a responsabilidade
objetiva, somente após o Código Civil de 2002 essa tese passou a ressurtir. No
entanto, se estabelece na maioria dos casos, como regra, a responsabilidade
subjetiva, investindo-se da teoria objetiva somente em casos específicos.
Como nos explica Silva Pereira (1990, p. 507),
135

A regra geral, que deve presidir à responsabilidade civil, é a sua


fundamentação na ideia de culpa; mas sendo insuficiente esta
para atender às imposições do progresso, cumpre ao legislador
fixar especialmente os casos em que deverá ocorrer a obrigação
de reparar, independentemente daquela noção.

Portanto, a teoria do risco surge justamente devido ao progresso social,


com intuito de acompanhar e amparar as mudanças provenientes da
complexidade da sociedade.
Deste modo inseriu-se a responsabilidade objetiva no CDC. Na medida
em que a sociedade se tornava mais complexa, mais se crescia o consumo. A
demanda por produto ou serviços em grande quantidade deu início ao projeto
capitalista, visado na produção em série, que apesar de conseguir acompanhar
ao crescimento da sociedade, não assegurou e não assegura ainda uma
produção isenta de vício ou defeito, sendo uma falha inexorável.
Vejamos a seguir a análise feita por Herman V. Benjamin (apud BIHL,
1983, p.50):

Os bens de consumo modernos, se por um lado oferecem


crescente conforto e inovação, por outro aumentam, na mesma
ou em maior proporção, seus riscos, como decorrência natural
de sua progressiva complexidade, assim como de sua
quantidade e multiplicidade no mercado (Luc BIHL, La loi Du 21
juillet 1983 sur La sécurité dês consommateurs, Sécurité dês
consommateurs et responsabilité du faiit dês produits
défectueux, p. 50)

Em razão disso, essa teoria, fundada na responsabilidade objetiva,


segundo os ensinamentos de Miguel Reale (1978), consiste na atividade que
implica a existência de riscos inerentes à atividade desenvolvida, impondo-se a
responsabilidade objetiva de quem dela tira proveito, haja ou não culpa,
necessitando apenas que haja o dano e o nexo de causalidade entre fornecedor
e consumidor.
Assim, como arremata Nunes (2009, p. 172), a adoção da
responsabilidade objetiva independe da demonstração de culpa, visto que isso
se torna algo difícil ao consumidor em relação ao fornecedor, “assim como ao
fato de que, efetivamente, muitas vezes, o fornecedor não tem mesmo culpa de
o produto ou serviço terem sido oferecidos com vício/defeito”.

EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE

O Código de Defesa do Consumidor como já vimos, é alicerçado pela


responsabilidade objetiva, com base na teoria do risco, em que
independentemente de culpa será o fornecedor responsável pelos danos que
causar ao consumidor por meio de seus produtos ou serviços.
No entanto, ele ainda prevê de forma estrita e taxativa em seu art. 12,
parágrafo terceiro, três possibilidades de excludentes, que como leciona Nunes
(2009, p. 284) “não se trata de excludente de responsabilidade, mas sim de nexo
de causalidade”, em que pode o fornecedor tentar elidir a relação existente entre
ele – fornecedor – e o dano/defeito.
Conforme o art.12, §3º, o fabricante, o construtor, o produtor ou
importador só não será responsabilizado quando provar que: I) não colocou o
136

produto no mercado ou que se inserido no mercado, foi sem seu conhecimento;


II) que embora haja colocado o produto no mercado, o produto não é defeituoso;
III) quando provar culpa exclusiva (e não concorrente) do consumidor, ou seja,
quando provar que o comportamento do consumidor foi o único causador do
acidente de consumo e por fim, se provar a culpa exclusiva de terceiro, estranho
à relação de consumo, que assim como a culpa exclusiva do consumidor e as
outras duas possibilidades de excludente, quebram o nexo de causalidade
existente na relação de consumo.
Ainda que estejam previstas essas três excludentes no Código, fica
explícito que o risco do fornecedor é de fato integral, visto que o rol de
excludentes é tão restrito que nem ao menos prevê a possibilidade de caso
fortuito ou força maior como excludente de responsabilidade.
Conforme os ensinamentos de Gonçalves (2009, p. 285),

O que acontece é que o CDC, dando continuidade, de forma


coerente, à normatização do princípio da vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo, preferiu que toda carga
econômica advinda do defeito recaísse sobre o agente produtor.

Entretanto, a posição dos tribunais brasileiros e inclusive a do Superior


Tribunal de Justiça, é a de que se admite a arguição das aludidas excludentes
(caso fortuito ou força maior) ainda que não previstas no Código de Defesa do
Consumidor, se embasando de forma coerente, em que o fato inevitável rompe
o nexo de causalidade, visto que não há no fato nenhuma relação com atividade
do fornecedor, não se podendo então falar em defeito do produto ou serviço.
Além disso, o Código também não inclui no rol de excludentes os riscos
referentes ao desenvolvimento, isto é, defeitos que – em face do estado da
ciência e da técnica à época da colocação em circulação do produto ou serviço
– eram desconhecidos ou imprevisíveis. Em outras palavras, segundo Vetri
(1980), o risco de desenvolvimento é aquele defeito que não pode ser
cientificamente conhecido no momento do lançamento do produto no mercado,
vindo a ser conhecido somente após certo período de uso do produto ou serviço.
Por fim, há outra questão em que o Código e nem mesmo a jurisprudência
traz como excludente, que se entorna em meio à negligência do consumidor ao
recall do fornecedor. O que ocorre é que o fornecedor permanece responsável
por eventuais acidentes de consumo causados pelo vício não sanado, em razão
da negligência do consumidor em não atender o chamado do recall feito pelo
fornecedor.

O DESENVOLVIMENTO COMO EXCLUDENTE: DIREITO À INOVAÇÃO


TECNOLÓGICA E SEGURANÇA DO CONSUMIDOR

Apesar de ser o risco de desenvolvimento um tema muito polêmico e


discutido por diversas legislações e doutrinadores, na União Europeia, após a
edição da Diretiva Europeia, CEE 374/85, já se possibilitou a adoção ou não do
risco de desenvolvimento como excludente. A maior parte dos países da
Comunidade Econômica Europeia já faz o uso dessa instituição, como por
exemplo, Portugal e Itália, que adotaram a exclusão total da responsabilidade,
assim como temos países como a Alemanha e a França que adotaram a
responsabilização parcial.
137

Porém, como já vimos no que se refere ao sistema brasileiro, não há a


possibilidade do fornecedor se eximir da responsabilidade através da alegação
baseada no risco do desenvolvimento, mantendo assim, o Código de Defesa do
Consumidor, todo seu sistema protetivo à vulnerabilidade e a hipossuficiência do
consumidor.
No entanto, a não adoção da aplicação dessa excludente no Código de
Defesa do Consumidor, de certa forma descendeu a um antagonismo em meio
aos objetivos do caput do art. 4º e o seu inciso III, em que como já havíamos
comentado logo no início, consiste no princípio da harmonização dos interesses
na relação de consumo.
Conforme o caput do art. 4º, o fornecedor deve visar às necessidades do
consumidor, devendo os mesmos também assegurar a dignidade deste.
Contudo, os interesses do fornecedor e consumidor devem-se também se
apresentar de forma harmônica, de forma compatível à proteção do consumidor
e a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico.
Diante da não possibilidade do risco de desenvolvimento como
excludente, fica visível a divergência da harmonia almejada no caput do art. 4º,
juntamente ao inciso terceiro, havendo uma acareação entre promover
segurança aos consumidores e ao mesmo tempo promover o desenvolvimento
econômico e tecnológico.
A relação de consumo deve proporcionar a melhoria da qualidade de vida
do consumidor, como também deve o fornecedor trazer inovação ao mercado de
consumo, abrangendo a inovação tecnológica visando benefícios à sociedade,
visando um bem comum a todos. Entretanto, trazer ao mercado de consumo um
produto inovador, é também impor demasiada responsabilidade ao fornecedor
que estará imerso aos riscos do desenvolvimento.
Há uma limitação, ainda que de forma recôntida em relação a figura do
fornecedor em exercer sua livre iniciativa e sua autonomia de invenção. Propiciar
a invenção de algo, assim como inserir um produto no mercado exige um grande
dispêndio de tempo, trabalho e dinheiro. Incentivar pesquisas, por exemplo, para
a descoberta de um medicamento que tenha por fim salvar vidas pode suceder
a certo desconforto ao titular da descoberta que ruminar sobre os riscos a saúde
que este mesmo medicamento pode também vir ocasionar após sua
comercialização.
Possuir uma responsabilidade em relação a um produto em que no
momento que posto em circulação o estado de conhecimento cientifico e técnico
não era tal que permitisse a descoberta do defeito, distancia e se apresenta de
forma atroz à iniciativa do fornecedor de trazer novas ideias, produtos e
invenções ao mercado, podendo levar a monotonia do mercado de consumo,
assim como também leva a estagnação do desenvolvimento econômico, visto
que o mercado contribui de forma relevante para o fomento do crescimento da
economia.
Importante ressaltar que em momento algum tem o fornecedor a intenção
de colocar um produto defeituoso no mercado, visto que o produto passa por
diversos testes até ser aprovado como apto para consumo.
Além disso, é importante destacar a análise que faz Sant’Ana Policarpo
(2012) de que:

São os riscos os maiores responsáveis pelo desenvolvimento da


pesquisa científica. São eles que alavancam os cientistas a
buscarem novas soluções para novos e velhos problemas. Se
138

não fosse a possibilidade do dano não haveria estudos para


eliminação dos mesmos.

Portanto, diante ao exposto, fica evidente o conflito entre tentar


compatibilizar a segurança do consumidor com a necessidade de
desenvolvimento econômico e tecnológico. A questão de ser o desenvolvimento
uma excludente se torna controvertido quando se tenta conciliar o
desenvolvimento com o bem-estar do consumidor, estabelecendo-se então um
obstáculo a compleição do princípio da harmonia em meio aos interesses dos
participantes da relação de consumo.

O RECALL E A BOA-FÉ DO CONSUMIDOR

O recall é um instrumento previsto no art. 10, §1º do CDC que tem como
escopo a proteção do consumidor, estabelecendo o dever ao fornecedor de
impedir ou procurar impedir, ainda que tardiamente, que o consumidor venha a
sofrer algum dano ou perda em virtude de produto ou serviço que tenha
apresentado vício após sua comercialização.
O fornecedor então deve arguir conforme o §2º do art. 10 todos os meios
de comunicação possíveis, assim como através de anúncios publicitários, tanto
como através da utilização de registros pessoais disponibilizados na relação de
consumo, como notas fiscais, endereços dos compradores, utilizando-se até
mesmo do contato por meio de correspondência, telefonema etc para realizar o
recall, ou seja, o chamado ao consumidor, informando-o do vício e o
convocando-o para que possa assim, o fornecedor sanar o vício presente no
produto ou serviço.
No entanto, como já visto, ainda que o fornecedor realize devidamente o
recall, se utilizando de todos os meios possíveis para que o consumidor
compareça e assim o vício seja sanado, caso o consumidor resolva não atender
a convocação do fornecedor, se mostrando totalmente negligente e assumindo
os riscos de um possível acidente de consumo, ainda será o fornecedor
responsável por eventuais danos ou perdas que este mesmo consumidor por
meio de sua negligência venha a sofrer.
O fato de o consumidor não atender ao recall não é fator suficiente para
afastar a responsabilidade objetiva do fabricante em caso de acidente, segundo
o entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
A negligência do consumidor não resulta em excludente para o
fornecedor, nem como culpa exclusiva do consumidor e nem ao menos como
culpa concorrente, podendo se verificar nesta relação de consumo um abuso
de direito por parte do consumidor, visto que devido ao seu não
comparecimento ao recall, este consumidor acarretará consequências e um
grande prejuízo ao fornecedor caso um acidente venha a acontecer, pois o
mesmo consumidor que recusou atender ao recall será o mesmo que ensejará
por uma indenização posteriormente.
Devemos constatar que os fornecedores ao realizarem o recall, ao
utilizar publicidade ostensiva para produzir o chamado e emanar a informação
para que assim possam reparar o dano, agem movidos por boa-fé, respeitando
a orientação do dispositivo do art. 4º, III e do art. 6°, II do CDC, que consiste
no princípio da boa-fé e equilíbrio.
É nítido então, que esta negligência do consumidor em relação ao recall
e a não possibilidade de nenhuma excludente, seja culpa exclusiva ou
139

concorrente, proporciona a quebra de uma relação harmônica. Assim, como


também é visível que aqui tratamos de uma relação em que o consumidor
aparentemente é somente detentor de direitos, esvaecendo-se sua
responsabilidade quanto aos seus deveres.
O fornecedor responder de forma integral por um acidente que veio
ocorrer de certa forma pela negligência do consumidor, visto que o vício e o
problema que se apresentava o produto poderia ter sido sanado se o recall
fosse atendido, fere o princípio da boa-fé, princípio este que impõe a ambos os
envolvidos na relação de consumo, uma relação baseada na cooperação, na
igualdade, no agir pautado pela ética, respeitando assim os interesses de
ambas as partes e impossibilitando práticas abusivas no exercício de
determinado direito.
Por derradeiro, ainda que não se possa aplicar a culpa exclusiva do
consumidor, exonerando-se integralmente a responsabilidade do fornecedor,
visto que de certa forma ainda há o nexo de causalidade entre os contratantes,
mediante ao fator da inserção do produto no mercado que veio apresentar
nocividade ou periculosidade conforme o caput do art. 10 do CDC, é gritante a
necessidade de se reconsiderar a inserção da hipótese de culpa concorrente
como excludente mediante situações como essas que permeiam as relações
de consumo, visando assim promover deveras uma relação harmônica, justa e
equilibrada pautada no princípio da boa-fé.

CONCLUSÃO

Diante ao exposto, podemos concluir que há uma grande dificuldade de


se estabelecer a harmonia dos interesses dos participantes da relação de
consumo.
O Código de Defesa do Consumidor que tem como objetivo uma relação
jurídica equilibrada, se desvia desse ensejo tendo como seu principal
fundamento somente a segurança do fornecedor. Além disso, não há equilíbrio
em uma relação quando uma das partes somente é detentora de direitos,
ignorando seus deveres, deveres esses como, por exemplo, o de agir com boa-
fé, princípio contido na Lei 8.078/90, que é de suma importância para a harmonia
na relação de consumo.
Atualmente, se exige um avanço do Código de Defesa do Consumidor
para que se possa alcançar de fato uma relação harmônica, viabilizando tanto
os interesses dos consumidores, assim como os dos fornecedores. O CDC não
deve retirar seu foco em prol da segurança do consumidor, porém ele deve
buscar conciliar a segurança do consumidor ao desenvolvimento econômico e
tecnológico como almejado no art. 4º, III do CDC, possibilitando-se assim não só
a segurança do consumidor, como também a inovação tecnológica ao mercado
de consumo, visto que este também é um direito do consumidor, além de ser
algo que possibilita trazer benefícios a sociedade, como por exemplo, no que se
refere a saúde e a qualidade de vida.
Para tanto, os fornecedores também necessitam de certa segurança
jurídica, motivando-os para que os mesmos possam atender seus próprios
interesses e respectivamente suprir as necessidades dos consumidores
conforme o art. 4º. Como um primeiro passo, faz-se necessário a análise da
responsabilidade do fornecedor no CDC, em especial em relação a
responsabilidade imposta ao fornecedor em frente aos acontecimentos
140

corriqueiros da jurisprudência como, por exemplo, em face das situações que se


poderiam adotar excludentes como o do risco de desenvolvimento e
principalmente a em virtude da negligência do consumidor em relação ao recall.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, A.H.V.; MARQUES, C.L.; BESSA, L.R. Manual de direito do


consumidor. 7ª ed. rev., atual. e ampliada.São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2016.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 4:


Responsabilidade civil. 13ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de direito do consumidor. 4ª ed. São


Paulo: Saraiva, 2009.

OAB, Rio de Janeiro. STJ: faltar a recall não afasta responsabilidade de


fabricante. Jusbrasil, 2008. Disponível em: < https://oab-
rj.jusbrasil.com.br/noticias/27801/stj-faltar-a-recall-nao-afasta-responsabilidade-
de-fabricante >. Acesso em 25 julh. 2019.

POLICARPO, Nathália Sant’Ana. O risco de desenvolvimento e a


responsabilidade do fornecedor. Âmbito Jurídico, 2012. Disponível em: <
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-106/o-risco-do-desenvolvimento-e-
a-responsabilidade-do-fornecedor/>. Acesso em 11 julh. 2019.

REALE, Miguel. Diretrizes gerais sobre o Projeto de Código Civil. In:


Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1978.

SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de direito civil. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Forense.

VETRI, Dominick. Profili della responsabilità Del produttore negli Stati


Uniti. Dano da prodotti e responsabilità dell’impresa (a cura di Guido Alpa
e Mario Bessone). Milano: Giuffrè, 1980.
141

A INSEGURANÇA JURÍDICA OCASIONADA PELA UTILIZAÇÃO DO MERO


ABORRECIMENTO COMO FUNDAMENTO PARA A NEGATIVA DE AÇÕES
POR DANOS MORAIS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
THE LEGAL INSECURITY OCCURRED BY THE USE OF MERE
ANNOYANCE AS THE GROUND FOR THE DENIAL OF ACTIONS BY MORAL
DAMAGE IN CONSUMER RELATIONS

Marcel Carlos Lopes Félix

Resumo: A utilização da tese do mero aborrecimento como justificativa e/ou


fundamento para a negativa de ações de indenização por danos morais advindas
de relações consumeristas tem causado insegurança jurídica na seara do
Direito. Para analisar a temática se faz necessário realizar um estudo acerca dos
danos morais no direito brasileiro com a finalidade de levantar o que vem a ser
mero aborrecimento. Para atingir este objetivo, a metodologia adotada neste
resumo foi a pesquisa bibliográfica (livros, doutrina, jurisprudência, artigos,
revistas especializadas, dentro outros) e o método utilizado foi o hipotético-
dedutivo, com o intuito de tentar compreender a tese do mero aborrecimento e a
conceituação de dano moral no sistema jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Dano Moral. Mero Aborrecimento. Relações de Consumo.

Abstract: The use of the mere annoyance thesis as justification and/or ground
for the denial of actions for moral damages arising from consumerist relations has
caused legal uncertainty in the Law. In order to analyze the subject, it is
necessary to conduct a study about the moral damages in Brazilian law in order
to raise what is merely annoyance. To achieve this goal, the methodology
adopted in this abstract was bibliographic research (books, doctrine,
jurisprudence, papers, specialized journals, among others) and the method used
was the hypothetical-deductive, in order to try to understand the mere annoyance
thesis and the conceptualization of moral damage in the Brazilian legal system.
Key-words: Moral damage. Mere annoyance. Consumer Relations.

INTRODUÇÃO

No Brasil, ver julgada procedente uma indenização por danos morais


decorrente de relação de consumo tem sido cada vez mais difícil, uma vez que
o Poder Judiciário tem indeferido diversos pedidos com base na tese do mero
aborrecimento, apesar de não configurar como nenhuma das hipóteses
excludentes de ilicitude ou meio de defesa em uma possível demanda judicial.
Esse tema tem sido muito utilizado como fundamento para a
improcedência de ações de danos morais nas relações consumeristas, pois, de
acordo com a legislação civilista, pode o julgador analisar o caso concreto e
decidir acerca do cabimento ou não de responsabilização por danos morais. Se
esse tema não está previsto no ordenamento jurídico como uma das hipóteses
que o juiz deve levar em consideração quando da análise/julgamento de um
pedido de indenização por danos morais decorrente de relação consumerista,
questiona-se como se justificaria a possibilidade de utilização da mencionada
tese do mero aborrecimento.
Dentro dessa problemática apresentada, é mister fazer o estudo do tema
com o intuito de compreender como é utilizado o argumento do mero
142

aborrecimento como justificativa e/ou fundamento para a negativa de ações de


indenização por danos morais advindas de relações consumeristas. E, para
tanto, é necessário fazer um estudo acerca dos danos morais no direito brasileiro
com a finalidade de levantar o que vem a ser mero aborrecimento.
Como referência para este estudo, pode-se mencionar a obra “Danos à
pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais”1 de Maria
Celina Bodin de Moraes, com o intuito de analisar a problemática da utilização
(in)devida do mero aborrecimento, no caso do julgamento improcedente de
indenização por danos morais proveniente de questões de consumo, pois a
referida obra traz uma proposta de reconstrução da responsabilidade civil.
Desse modo, têm-se sustentado, ao longo dos últimos anos, o
entendimento de que o mero aborrecimento seria um fundamento para se julgar
improcedente um pedido de indenização por danos morais por um consumidor.
Porém, há necessidade de se descobrir quais seriam os critérios balizadores
dessa tese e quais seriam os seus fundamentos, requisitos, pressupostos e
características.
Esses e outros questionamentos justificam a necessidade de pesquisar
esse tema que tem sido, corriqueiramente, utilizado pelos Tribunais brasileiros,
em todas as instâncias e que tem atingido um número muito grande de
jurisdicionados (no caso, os consumidores), no tocante aos seus pedidos de
indenização por danos morais.

DESENVOLVIMENTO

O atual Código Civil dispõe que a responsabilidade civil é dever sucessivo,


haja vista o descumprimento de um dever legal originário, conforme instituem os
artigos 186 e 9272. O legislador civilista trouxe o conceito de ato ilícito (artigo
186) como aquele em que, em razão de uma conduta, alguém viola direito e
causa dano a outrem. E, mais adiante, no artigo 927, prevê que aquele que
cometer ato ilício e causar dano a outrem fica obrigado a reparar o dano.
Pode-se, a partir da leitura civilista, extrair os elementos/pressupostos da
responsabilidade civil, quais sejam: conduta (ação ou omissão, dolosa ou
culposa), dano e o nexo de causalidade entre essa conduta e o dano causado.
Desse modo, poderá ser condenado a pagar indenização por danos morais
decorrentes de relação de consumo aquele que tiver preenchido esses
requisitos, exceto, no caso de se tratar de um dos meios de defesa ou excludente
de ilicitude: estado de necessidade; legítima defesa; exercício regular de um
direito; estrito cumprimento do dever legal; culpa exclusiva da vítima; fato de
terceiro; caso fortuito ou força maior; cláusula de irresponsabilidade ou de não
indenizar; e prescrição, todos previstos na legislação brasileira. Portanto, de

1 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos
danos morais. Rio de Janeiro: Renovar: 2003.
2 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito

e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (Arts. 186 e 187), causar dano a outrem fica obrigado a repará-
lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (BRASIL. Código Civil. 29. ed. São
Paulo: Saraiva, 2019).
143

acordo com a legislação, somente nesses casos é que o juiz está autorizado a
negar um pedido de reparação, seja ele de cunho material e/ou moral.
O dano, conforme exposto, é um dos pressupostos da responsabilidade
civil, ou seja, sem esse requisito não poderá haver ação de indenização por
danos morais. Pode o dano, desse modo, ser conceituado como uma lesão à
diminuição ou à destruição de qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou
moral, que um indivíduo sofre em decorrência de um evento contrário a sua
vontade. Sérgio Cavalieri Filho (2015) afirma que

O dano é, sem dúvida, o grande vilão da responsabilidade civil. Não


haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não
houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não
pode haver responsabilidade sem dano. Na responsabilidade objetiva,
qualquer que seja a modalidade do risco que lhe sirva de fundamento
– risco profissional, risco proveito, risco criado etc. -, o dano constitui o
seu elemento preponderante. Tanto é assim que, sem dano, não
haverá o que reparar ainda que a conduta tenha sido culposa ou até
dolosa3.

O dano indenizável deve ser reconhecido quando estiverem presentes os


seguintes requisitos: a) diminuição ou destruição de um bem jurídico, patrimonial
ou moral, pertencente a uma pessoa; b) efetividade ou certeza do dano; c)
causalidade; d) subsistência do dano; e) legitimidade; e f) ausência de causas
excludentes de responsabilidade.
A doutrina classifica, tradicionalmente, o dano em patrimonial e moral. O
primeiro é aquele que se refere a bens economicamente apreciáveis, como, por
exemplo, o dano em um carro ou em um celular. Ao segundo, o dano moral, dar-
se-á maior atenção, nesta pesquisa.
Héctor Valverde Santana (2014) afirma que

A tese de reparabilidade do dano moral passou por três momentos


distintos. Inicialmente prevaleceu a teoria negativista, consistente na
expressiva oposição doutrinária quanto à possiblidade de reparação do
dano moral, seja direto ou indireto, com decisiva influência na
jurisprudência nacional. O segundo momento é marcado por um
temperamento da posição radical que afirmava a impossibilidade de
existência do dano moral. Trata-se da teoria eclética ou mista, que por
sua vez admitira a reparabilidade do dano moral desde que houvesse
uma repercussão patrimonial. Finalmente, prevaleceu a teoria
positivista que acolheu a tese da reparabilidade do dano moral puro,
sobretudo a partir da inserção do tema na CF/1988 (Art. 5º, V e X) 4.

O Código Civil, assim, em seu artigo 186, dispõe que é devida indenização
ainda que proveniente exclusivamente de dano moral, mesmo que, segundo
Carlos Alberto Bittar (1993), esses danos estejam na esfera da subjetividade5. O

3 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo:
Malheiros, 2015. p. 70.
4 SANTANA, Héctor Valverde. Dano moral no direito do consumidor. Apresentação Claudia

Lima Marques. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 135.


5 Caracterizam-se “como danos morais os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do

plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo esse,
portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o
da intimidade e da consideração pessoal), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que
144

dano moral, dessa forma, consiste na lesão de direitos cujo conteúdo não é
pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Entretanto, não é porque
os danos estejam na esfera da subjetividade que haveria sempre a necessidade
de se provar o mal-estar, dissabor e/ou constrangimentos sofridos para que seja
efetivamente reconhecida a lesão a esses direitos.
Benjamin, Marques e Bessa (2016), nessa perspectiva, utilizam o
exemplo de inscrição indevida em órgãos de proteção ao crédito para explicarem
que

Embora, a concepção do dano moral, principalmente sua vinculação


ou não à dor psíquica, seja tema bastante polêmico na doutrina, é
incontroverso no Superior Tribunal de Justiça – especificamente a área
de entidades de proteção ao crédito – que, para o deferimento de
indenização por dano moral, basta ao interessado demonstrar que o
registro foi irregular6.

A doutrina costuma mencionar quase as mesmas possibilidades de não


se responsabilizar uma pessoa (fornecedor) por um possível dano causado, seja
decorrente de ato ilícito ou não e em momento algum se menciona o argumento
do mero aborrecimento como justificativa para o julgamento desfavorável de um
pedido de indenização por danos morais quando se trata de uma relação de
consumidor/fornecedor. O atual posicionamento jurisprudencial apenas afirma
que o mero aborrecimento seria o fato contumaz e imperceptível que não alcança
a esfera jurídica personalíssima de uma pessoa, é considerado um fato da vida,
o qual não repercute ou altera o aspecto psicológico ou emocional de alguém.
Ruy Rosado de Aguiar (2003), porém, explica que o consumidor quando
requer dano moral é com o fito de ser ressarcido pelo aborrecimento, transtorno
e frustração sofridos quando o fornecedor não cumpre o que fora contratado.
Afirma que:

[...] a experiência do foro revela que as ações de indenização por


descumprimento de contrato (na sua grande maioria, contrato de
consumo incluem um pedido de reparação do dano material,
correspondente ao dano emergente ou ao lucro cessante, facilmente
aferíveis, e outro, de reparação do dano moral, que corresponderia ao
dano sofrido pelo consumidor com a frustração pelo inadimplemento
do fornecedor), causa de transtornos e aborrecimentos. Na verdade,
essa segunda parcela (que não se inclui nos danos emergentes e nos
lucros cessantes) contém também um aspecto que não é só patrimônio
jurídico do consumidor. Isto é, os consumidores que sofrem os efeito
do descumprimento ou do cumprimento imperfeito do contrato têm
obtido indenização por esse fato não a título de dano material, que
existe e que resulta do simples inadimplemento, mas como se fora uma
reparação ao dano moral. Com isso, o dano moral passou a ser usado

vive e atua (o da reputação ou da consideração social)” (BITTAR, Carlos Alberto.


Responsabilidade Civil por Danos Morais. São Paulo: Revista dos tribunais, 1993. p. 41).
6 Os danos morais, decorrentes do registro indevido em bancos de dados de proteção ao crédito,

devem ser encarados sob tríplice perspectiva: ofensa à privacidade e honra assim como
alteração negativa do estado anímico da pessoa (ofensa à integridade psicofísica). [...] Não há
necessidade de demonstrar que houver afetação ao bem-estar psicofísico da pessoa, ou seja,
que a inscrição gerou vergonha, constrangimento, tristeza ou qualquer outro sentimento negativo
(BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual
de direito do consumidor. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p.
353.)
145

como vocativo para a conceituação de prejuízos causados pelo


descumprimento de um contrato. Toda vez que um cidadão compra um
automóvel defeituoso, ele pede a restituição do numerário ou a
substituição por um outro veículo, e ainda reparação do ‘dano moral’,
a significar que ele está querendo é ser indenizado pelo mal que lhe
resultou do descumprimento do contrato7.

Dano moral, desse modo, seria tudo aquilo que não seria mero
aborrecimento e, nesse sentido, poder-se-ia construir um argumento por
exclusão, ou seja, o que não se encaixa no conceito de dano moral. E isso se
dá, repita-se, por faltar ao tema mero aborrecimento elementos, requisitos,
pressupostos e/ou critérios que demonstrem ao juiz, com certa segurança,
quando ele pode negar um pedido de danos morais decorrentes de relação de
consumo.
Não há previsão constitucional ou legal de autorização por parte do Poder
Legislativo para aplicação dessa temática, mesmo que esteja, amiúde,
mencionada em diversos tipos de julgados em todas as instâncias judiciárias.
A adoção desse tema por parte do Poder Judiciário tem sido defendida
por alguns, em razão da suposta e famigerada “indústria do dano moral”. E, sob
essa perspectiva, os juízes, por falta de legislação que pudesse conter uma
suposta banalização da utilização da ação de indenização por dano moral,
acabam utilizando o termo mero aborrecimento para tentar justificar e
fundamentar a negativa de reparação por danos morais em ações do
consumidor, com base na possível utilização desregrada da ação de indenização
por dano moral de um modo geral.

CONCLUSÃO

Dessa forma, a questão do mero aborrecimento deve, imediatamente, ser


objeto de estudo aprofundado por parte da comunidade jurídica, uma vez que
trata de resolução de conflitos na ordem de reparação por possíveis danos
morais decorrentes de relações que envolvem o consumidor. No caso de
improcedência de uma ação de indenização por danos morais decorrentes de
relação de consumo com fulcro no mero aborrecimento, o Poder Judiciário tem
fundamentado suas decisões por meio da utilização de uma hipótese não
prevista em lei e, mesmo que a negativa de um pedido de reparação fosse
embasada em mero aborrecimento, não há critérios claros e objetivos para que
o julgador, no caso concreto, possa se balizar quando for proferir uma decisão.
A insegurança jurídica é tamanha que os próprios Tribunais
constantemente reformam as decisões, em sede de recurso. Não que se espere
do magistrado a perfeição de suas decisões e muito menos se está a criticar o
sistema de reanálise das decisões por parte de superiores (princípio
constitucional do duplo grau de jurisdição). O que se está em jogo é a falta de
critérios e isso faz com que o Poder Judiciário possa se tornar uma verdadeira
loteria no tocante às ações de indenizações por danos morais resultadas de
relações consumeristas.

7AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. O novo Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor –
Pontos de convergência. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais,
n. 48. out-dez 2003, p. 65
146

A comunidade jurídica, desse modo, carece de um estudo mais


aprofundado acerca do tema mero aborrecimento, haja vista ser comumente
utilizado. E não é uma tarefa fácil de resolver, principalmente, se se levar em
conta as milhares de ações de indenização por danos morais, decorrentes de
relação de consumo, com base em possíveis aborrecimentos da atualidade, que
são protocoladas todos os dias.
Com base em todo o exposto, um caminho seria que o Poder Judiciário,
por meio dos Tribunais Superiores nas suas diferentes esferas e especialmente
o STJ e o STF, estabelecesse os critérios mínimos que distinguem o mero
aborrecimento do que seria efetivamente dano moral, sob pena do Poder
Judiciário negar indenizações que seriam devidas com espeque nas constantes
agruras pelas quais passam os consumidores.

REFERÊNCIAS

AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. v. 2, 9. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 1994.

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. O novo Código Civil e o Código de Defesa do


Consumidor – Pontos de convergência, Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 48. out-dez 2003.

BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo


Roscoe. Manual de direito do consumidor. 7. ed., rev., atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil por Danos Morais. São


Paulo: Revista dos tribunais, 1993.

BRASIL. Código Civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São


Paulo: Malheiros, 2015.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-
constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar: 2003.

SANTANA, Héctor Valverde. Dano moral no direito do consumidor. 2. ed. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
147

DISREGARD DOCTRINE E A LEI ANTICORRUPÇÃO


DISREGARD DOCTRINE AND THE ANTI-CORRUPTION LAW

José Luis Andréa Junior


Guilherme Tirado Leite

Resumo: A pessoa jurídica surge como uma realidade destinada a alcançar um


determinado objetivo lícito. Entretanto, a partir do momento em que a pessoa
jurídica é utilizada para a realização de fraudes, o princípio da autonomia pode
ser superado por meio da desconsideração da personalidade jurídica. A Lei n.º
12.846/2013 traz a possibilidade de aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica visando coibir atos corruptivos na seara empresarial, bem
como efetivar a aplicação das sanções prevista pela Lei Anticorrupção. A
presente pesquisa analisa, sem a intenção de esgotar o assunto, a aplicação da
disregard doctrine disposta na Lei Anticorrupção. O método de abordagem
utilizado foi o hipotético-dedutivo e como técnica de pesquisa, a bibliográfica.
Palavras-chave: Autonomia. Desconsideração da personalidade.
Anticorrupção.

Summary: The legal entity emerges as a reality aimed at achieving a certain


legal objective. However, once the legal entity is used for fraud, the principle of
autonomy can be overcome by disregarding the legal personality. Law No.
12.846 / 2013 brings the possibility of applying the disregard of legal personality,
which may curb corrupt acts in the company, as well as enforce the sanctions
considered by the anti-corruption law. This research analyzes, without intending
to exhaust the subject, an application to disregard the doctrine set forth in the
Anti-Corruption Law. The approach method used was the hypothetical deductive
and as a research technique, a bibliographic.
Keywords: Autonomy. Disregard of personality. Anti-corruption.

INTRODUÇÃO

O tema desconsideração da personalidade jurídica não é recente, pelo


contrário, está inserido no cotidiano há muitos anos. Porém, comporta algumas
divergências que merecem ser abordadas.
É sabido que o ordenamento jurídico confere autonomia às pessoas
jurídicas, desde que observados os requisitos gerais de constituição. A
autonomia da pessoa jurídica é uma forma legal de limitação da responsabilidade
dos seus componentes, ou seja, o meio pelo qual a pessoa jurídica não se
confunde com seus sócios. Desta forma, a desconsideração foi desenvolvida
com o objetivo de combater o mau uso advindo da autonomia da pessoa jurídica.
Com a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica ocorre a
superação desta autonomia. Porém, não pode ser aplicada a qualquer pretexto.
A norma contida no art. 50 do Código Civil de 2.002 estabeleceu critérios
objetivos e disciplinou a desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro.
Todavia, a teoria era aplicada mesmo antes de estar inserida no ordenamento
jurídico, utilizando-se com fundamento a doutrina nacional e estrangeira.
Acredita-se que a inclusão de referido artigo veio trazer os parâmetros
necessários, a fim de impedir a utilização excessiva da teoria da
148

desconsideração, de modo a ignorar a autonomia em qualquer caso que não


preenchesse os pressupostos de aplicação.
A lei nº 12.846 de 1º de agosto de 2013 trouxe mais uma hipótese de
aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico
brasileiro. Qual seja, a possibilidade de aplicar a disregard doctrine à pessoa
jurídica que praticar os ilícitos tipificados na referida legislação especial.
O resumo passa pela pessoa jurídica, abordando de maneira sucinta a
personalidade jurídica e distinção entre seus integrantes. Prossegue para o
estudo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Em outro passo,
tratam-se das noções acerca da disregard doctrine prescritas na Lei
Anticorrupção.

1. PESSOA JURÍDICA

Sabe-se que o homem é um ser social e que as associações com outros


da mesma espécie é algo inerente de sua própria natureza. Partindo deste
raciocínio, Carlos Roberto Gonçalves observa que:

[...] Nem sempre as necessidades e os interesses do indivíduo podem


ser atendidos sem a participação e cooperação de outras pessoas, em
razão das limitações individuais. Desde a unidade tribal dos tempos
primitivos até os tempos modernos essa necessidade de se agrupar
para atingir uma finalidade, para alcançar um objetivo ou ideal comum,
tem sido observada.1

Entende-se que o desenvolvimento econômico e social da população


agravou a necessidade do homem se unir com outros semelhantes para atingir
seus objetivos.
No que tange à interferência do desenvolvimento econômico no direito,
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho afirmam que “realmente, temos
aí um processo de raiz e procedência dominantemente econômicos, embora de
largas repercussões socioculturais sobre o inteiro elenco da vida coletiva”. E
continuam mencionando que, “como uma rápida alteração da vida coletiva, o
desenvolvimento tenderá, normalmente, a criar fenômenos de inadaptação,
entrechoques de sistemas entre uma vida econômico-industrial emergente e
uma organização social estática e tradicionalista”.2
Por este norte, como uma figura moldada em decorrência de um fato
social, a pessoa jurídica, que compreende a união de esforços em prol de
determinado fim, passa a ter uma grande importância.
Assim, o direito passou a disciplinar estas associações (leia-se, união de
esforços para a obtenção de um fim comum), dotando-as de personalidade para
que possam praticar atos da vida jurídica, ou seja, para que possam adquirir
personalidade alcançando o status de sujeito de direitos e obrigações.
Pontes de Miranda arremata que a razão de ser, portanto, da pessoa
jurídica está na necessidade ou conveniência de os indivíduos unirem esforços
e utilizarem recursos para a realização de objetivos comuns, que ultrapassam as
possibilidades individuais. Essa constatação motivou a organização de pessoas,

1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 1,
p. 208
2 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. 14 ed. São

Paulo: Saraiva, 2012. v. 1. p. 205


149

com o reconhecimento do direito, que atribui personalidade, distinta da


personalidade de cada membro do grupo, passando este a atuar na vida jurídica
com personalidade própria.3
Do mesmo modo, Maria Helena Diniz defende que:

Sendo o ser humano eminentemente social, para que possa atingir


seus fins e objetivos une-se a outros homens formando agrupamentos.
Ante a necessidade de personalizar tais grupos, para que participem
da vida jurídica, com certa individualidade e em nome próprio, a própria
norma de direito lhes confere personalidade e capacidade jurídica,
tomando-os sujeitos de direitos e obrigações.4

Partindo desta linha de raciocínio, pode-se afirmar que a pessoa jurídica


é um resultado do fenômeno histórico e social e consiste num conjunto, de
pessoas ou bens, dotado de personalidade jurídica, constituída na forma da lei
e para a obtenção de um fim comum.
É bom salientar que, em decorrência desta personalidade jurídica própria,
a pessoa jurídica não se confunde com a pessoa de seus integrantes. Assim, ao
adquirir personalidade, a pessoa jurídica passa a ser sujeito de direitos e
obrigações, vinculando-a por si mesma, sem, via de regra, vincular seus
componentes.
O Código Civil Brasileiro de 2002, seguindo o posicionamento adotado
pelo Código de 1916, adotou a teoria da realidade técnica para explicar o
fenômeno de um grupo de pessoas possa adquirir personalidade própria,
concedendo certa segurança aos integrantes do grupo, mormente pelo fato de
que a personalidade do ente não se confunde com a personalidade de seus
componentes.
O Código civil de 2002, seguindo a linha do Código revogado, dispôs em
seu art. 45 que a pessoa jurídica começa a existir com a inscrição de seu ato
constitutivo no órgão competente. Apesar do novo código civil não apresentar
norma correspondente do art. 20 do código de 1.916 (artigo que prescrevia a
distinção entre a pessoa jurídica e seus membros), permanece implícito o
princípio da inconfundibilidade da pessoa jurídica com seus membros. Sobre o
tema, Flávio Tartuce observa que “apesar de o Código Civil não repetir a regra
do art. 20 do CC/1916, a pessoa jurídica não se confunde com seus membros,
sendo essa regra inerente à própria concepção da pessoa jurídica”5.
Em regra, é a própria pessoa jurídica que responde pelo cumprimento da
obrigação contraída. Por isso, caso a pessoa jurídica se torne inadimplente com
sua obrigação, a parte adversa da relação obrigacional somente poderá
demandar em face da pessoa jurídica.

2. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

O art. 50 do novo Código Civil inovou ao prescrever a possibilidade de


desconsiderar a personalidade jurídica, em caso de abuso da personalidade,
caracterizada pela confusão patrimonial ou desvio de finalidade. Possibilitando,

3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de


Janeiro: Borsoi, 1956. v. 1. p. 280.
4 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria geral do Direito Civil. 29 ed. São

Paulo: Saraiva, 2012. v. 1, p. 263


5 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. 10. Ed. São Paulo: Método, 2014, v1. p. 213.
150

deste modo, que os efeitos lesivos das obrigações sejam estendidos aos
administradores e sócios da pessoa jurídica.
Cumpre lembrar que antes da entrada em vigor do Código Civil de 2.002,
salvo nas relações consumeristas, a figura da desconsideração da
personalidade jurídica encontrava-se apenas nas esferas doutrinária e
jurisprudencial.
Em razão da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, as sociedades
podem ser utilizadas como instrumento hábil para a realização de fraudes ou
abuso de direito. Isso porque uma vez regularmente constituída e seguindo os
preceitos legais, bem como os dispostos em seu contrato social (ou estatuto), a
sociedade não se confunde com seus componentes.
Fábio Ulhoa Coelho defende que:

[...] em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da


autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelo sócio
permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade
empresária. Somente se revela a irregularidade se o juiz, nessas
situações (quer dizer, especificadamente no julgamento do caso), não
respeitar esse princípio, desconsiderá-lo. Desse modo, com o
pressuposto de repressão a certos tipos de ilícitos, justifica-se
episodicamente a desconsideração da personalidade jurídica da
sociedade empresária.6

Conforme Gilberto Gomes Bruschi:

A desconsideração da personalidade jurídica, na verdade, não visa a


acabar com a autonomia da pessoa jurídica prevista anteriormente no
art. 20 do Código Civil de 1916, mas, sim, tornar mais eficaz essa
autonomia em relação aos membros que a constituem.7

A desconsideração da personalidade jurídica é o instrumento pelo qual o


credor tem a possibilidade de livrar-se do abuso obscuramente praticado por
aquele que gere a sociedade, mantendo-a, todavia, íntegra, o que também
permanece com a autonomia patrimonial.
Cumpre salientar que a personalidade jurídica será esquecida apenas no
caso específico. Deste modo, apesar de desconsiderada, a personalidade
permanecerá intacta nos demais casos que fogem do alcance da disregard
doctrine.
Para Calixto Salomão Filho:

É possível desconsiderar a pessoa para um determinado fim,


preservando-a quanto aos restantes [...]. De outro lado, a
desconsideração não influi sobre a validade de ato ou atos praticados,
o que permite preservar direitos e interesses de terceiros de boa-fé.8

Deste modo, se a sociedade seguir todos os preceitos legais de


constituição e funcionamento, adotando todos os seus requisitos previstos em
seu ato constitutivo e, destaca-se, não ocultar ilícitos praticados por seus
responsáveis, a autonomia da pessoa jurídica permanecerá intacta,

6 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial. Volume 2. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 58.
7 BRUSCHI, ibidem, p. 28.
8 SALOMÃO FILHO, Calixto. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 149.
151

impossibilitando a invasão da esfera patrimonial de seus componentes, mesmo


havendo insolvência da pessoa jurídica.
Uma vez verificado o abuso da forma da pessoa jurídica, é facultado ao
magistrado afastar o princípio que estabelece a distinção entre a pessoa jurídica
e seus componentes (sócios ou acionistas), impedindo, desta forma, que seja
alcançado o objetivo ilícito pretendido.
Para Fábio Konder Comparato, as pessoas jurídicas são criadas com a
finalidade de exercer determinadas funções gerais e especiais. Tendo em vista
essas funções para as quais se criou a pessoa jurídica, e os atos contrários,
quando praticados pelos membros do ente jurídico, é que se utiliza a disregard
doctrine, que deve ser operada como consequência de um abuso ou fraude, mas
que nem sempre constitui um ato ilícito. Daí por que não se deve cogitar da
sanção de invalidade e sim da ineficácia relativa.9
João Manoel de Carvalho Santos ensina que “embora não se chegue a
anular ou ter como nula a pessoa jurídica, esta pode ser considerada ineficaz,
se usada para o encobrimento de atividades ilícitas, caso em que se pode falar
de abuso de direito da personalidade jurídica”.10
Isso posto, verifica-se que a utilização da pessoa jurídica pelos sócios, em
abuso, para obter vantagens à custa de terceiro, propicia a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica, autorizando ao juiz ‘erguer o véu’
que protege os componentes da sociedade, para demonstrar o verdadeiro jogo
de interesses que proliferou em seu interior.
Deste modo, para a aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica deve haver a má utilização da pessoa jurídica, não podendo se utilizar a
teoria apenas por estarem presentes a impontualidade e a insolvência. Salvo
quando se tratar da aplicação da “teoria menor”, sobretudo nas relações de
consumo, trabalhista ou direito ambiental.

3. DISREGARD DOCTRINE NA LEI ANTICORRUPÇÃO

A lei nº 12.846 de 1º de agosto de 2013, popularmente conhecida como


lei anticorrupção, trouxe mais uma hipótese de aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro. O art. 14 da lei em
comento prescreve que:
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser
desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito
para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos
ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão
patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções
aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e
sócios com poderes de administração, observados o
contraditório e a ampla defesa.

A inclusão deste dispositivo corrobora a possibilidade de se desconsiderar


a personalidade jurídica da empresa que pratica atos contra a administração
pública, no âmbito processual administrativo. O STJ já se posicionou

9
COMPARATO ,Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3. Ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1983, p. 286.
10
SANTOS, João Manoel de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1982, v XXXIV. p. 15.
152

consignando o entendimento de que é possível a desconsideração da


personalidade jurídica, desde que observados o contraditório e a ampla defesa
no processo administrativo regular. Nesse sentido:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE


SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA
LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO
OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO.
FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA.
POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E
DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto
social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em
substituição a outra declarada inidônea para licitar com a
Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação
da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de
Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os
efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
- A Administração Pública pode, em observância ao princípio
da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses
públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de
sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que
facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em
processo administrativo regular.
- Recurso a que se nega provimento.11 (grifamos)

É perceptível que a lei anticorrupção encontra-se em sintonia com o


Código Civil de 2002 (art. 50). Assim, para que seja realizada a aplicação da
disregard doctrine, basta que a pessoa jurídica tenha sido utilizada com abuso
do direito para facilitar, dissimular ou encobrir a prática dos atos ilícitos contidos
na lei anticorrupção (art. 5) ou para provocar confusão patrimonial. Desta forma,
os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica são estendidos aos seus
administradores e sócios com poderes de administração, desde que observados
o contraditório e a ampla defesa.
De acordo com o art. 9º da Lei anticorrupção, competem à Controladoria
Geral da União (CGU) a apuração, o processo e o julgamento dos atos ilícitos
previstos no art. 5º. Desta feita, se durante o processo administrativo restar
comprovado que a empresa abusou da personalidade para encobrir a prática de
atos ilícitos, ou, ainda, para provocar confusão patrimonial, à Controladoria Geral
da União deverá aplicar a desconsideração da personalidade jurídica para coibir
o abuso de direito e inibir a prática de fraude por meio má utilização da
personalidade jurídica.
Importante destacar que os sócios que não exercem a administração da
pessoa jurídica e que não tenham contribuído para prática dos ilícitos não serão
alcançados pela desconsideração, isso porque a lei anticorrupção prevê tal
ressalva. O que se entende ser o mais correto tratando-se de disregard doctrine.

11BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº


15166, da Segunda Turma, Brasília, DF, 08 de setembro de 2003. STJ: Jurisprudência do STJ:
Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=desconsidera%E7%E3o+da+personali
dade+e+processo+administrativo+regular&&tipo_visualizacao=RESUMO&b=ACOR&thesaurus
=JURIDICO&p=true > Acesso em: 05 set. 2016.
153

CONCLUSÃO

1. Em regra, diante da personalidade jurídica os integrantes da pessoa


jurídica não podem ser responsabilizados pelas obrigações assumidas pela
sociedade.
2. Em caráter de exceção, pode ocorrer a responsabilização dos sócios
ou administradores da pessoa jurídica no caso de desconsideração da
personalidade jurídica, pelo abuso da personalidade caracterizado pelo desvio
de finalidade ou confusão patrimonial.
3. Para alcançar o patrimônio pessoal dos integrantes da pessoa jurídica,
a desconsideração da personalidade jurídica deve ser requerida demonstrando
a presença dos requisitos legais contidos no art. 50 do Código Civil.
4. A lei Anticorrupção traz a possibilidade de desconsideração da
personalidade jurídica na seara administrativa para responsabilizar os
componentes da sociedade que praticar as infrações tipificadas ou causar
confusão patrimonial.
5. Diferente da previsão civilista (art. 50), a lei anticorrupção prevê que os
sócios que não tenham contribuído para prática dos ilícitos não serão alcançados
pela desconsideração da personalidade jurídica. Ou seja, apenas os sócios que
atentarem contra as normas contidas na lei anticorrupção terão o patrimônio
pessoal alcançado pela desconsideração.
6. A desconsideração da personalidade jurídica disposta na lei nº
12.846/13 é uma medida colocada para combater a atos de corrupção de
pessoas jurídicas utilizadas com abuso do direito para facilitar, dissimular ou
encobrir a prática dos atos ilícitos ou para provocar confusão patrimonial. Com a
desconsideração, os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica alcançarão
os seus administradores e sócios, desde que observados o contraditório e a
ampla defesa.

REFERÊNCIAS

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Acesso em: 06 set. 2019.

______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de


Segurança nº 15166, da Segunda Turma, Brasília, DF, 08 de setembro de
2003. STJ: Jurisprudência do STJ: Disponível em:
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=desconsidera%E7%E3o
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154

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2013. v 1.
156

IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMAS DE COMPLIANCE PARA A


ADEQUAÇÃO À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
IMPLEMENTATION OF COMPLIANCE PROGRAMS FOR FITNESS FOR THE
GENERAL DATA PROTECTION LAW

Michaelly Ribeiro
Orientador(a): Ana Paula Pissaldo

Resumo: Com o aparecimento e popularização da chamada Sociedade Digital,


as pessoas com cada vez mais frequência expõem seus pontos de vista à
respeito dos mais diversos e importantes temas assim como seus hábitos. Por
exemplo, é comum sabermos o posicionamento político ou religioso, o time de
futebol de preferência, ou até mesmo os lugares que uma pessoa frequenta
utilizando apenas uma pesquisa rápida e simples na internet. Não é preciso ser
técnico ou gênio em TI para conseguir algumas informações à respeito de
alguém de maneira fácil e gratuita, está ali, disponível, na grande maioria das
vezes. Diante disto, a lei 12.964/2014 conhecida como Marco Civil da Internet,
acabou por não abarcar todas as demandas sobrevindas deste avanço
significativo da circulação de dados. Tornou-se então imprescindível o
desenvolvimento de uma legislação exclusiva que tutelasse os direitos
fundamentais da pessoa natural ameaçados por este excesso de informações
que, diariamente, transitam neste Mundo Digital.
Palavras chave: LGPD. Compliance. Dados Pessoais.

Summary: With the emergence and popularization of the so-called Digital


Society, people increasingly expose their views on the most diverse and
important topics as well as their habits. For example, it is common to know the
political or religious position, the preferred football team, or even the places a
person attends using just a quick and simple internet search. We don't have to
be IT technicians or geniuses to get some information about someone easily and
freely, it's there, available most of the time. Given this, the law 12.964 / 2014
known as Marco Civil Internet, did not cover all the demands arising from this
significant advance of data circulation. It was then essential to develop exclusive
legislation to protect the fundamental rights of the natural person threatened by
this excess of information that transits daily in this Digital World.
Keywords: General Data Protection Law. Compliance. Personal data.

INTRODUÇÃO

Pensando na gravidade das consequências que a exposição de dados,


por vezes desmedida, pode trazer ao cidadão comum, o mundo tem voltado seus
olhos a indispensabilidade da criação de mecanismos jurídicos que protejam
esses dados que, em quantidades imensuráveis, vêm circulando neste mundo
digital. A mais conhecida e inspiradora é a regulamentação Europeia à respeito
do tema, conhecida como GDPR. A General Data Protection Regulation tem
gerado efeitos à nível mundial, tanto nas mudanças em regulamentações locais
no que se refere a dados pessoais, quanto na economia.
Esta pesquisa tem como marco inicial a sanção da Lei Geral de Proteção
de Dados Pessoais (LGPD), pelo então presidente Michel Temer, em 14 de
agosto de 2018. Sob a ratificação do atual chefe de Estado Jair Messias
157

Bolsonaro, em julho deste ano, a mesma passa por algumas alterações e


complementada com a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a
ANPD. Ainda em período de vacância, esta lei vem deixando as empresas um
tanto apreensivas em relação as adaptações para estar em Compliance com as
novas regras e limites de tratamento desses dados. Mesmo sendo o profissional
designado pela própria LGPD para implementar essa nova cultura, como o DPO
pode ter sucesso neste processo totalmente novo e complexo de adequação?
Através da metodologia hipotética dedutiva e levantamentos
bibliográficos, a análise a seguir tem por escopo fazer uma conexão entre os
princípios e práticas já utilizadas na área do Compliance e que podem ser
aplicadas a este novo seguimento. Ou seja, quais os mecanismos já
reconhecidos por estabelecerem boas condutas em ambientes corporativos e,
consequentemente, a diminuição significativa de atos/fatos delitivos em
detrimento da própria empresa ou de terceiros, podem ser úteis para a atuação
deste profissional.

PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA ESTAR EM COMPLIANCE COM A LEI

Nas palavras de Rodrigo de Pinho Bertoccelli:

O termo compliance tem origem no verbo inglês to comply, que


significa agir de acordo com a lei, uma instrução interna, um
comando ou uma conduta ética, ou seja, estar em compliance é
estar em conformidade com as regras internas da empresa, de
acordo com procedimentos éticos e as normas jurídicas
vigentes5. No entanto, o sentido da expressão compliance não
pode ser resumido apenas ao seu significado literal. Em outras
palavras, o compliance está além do mero cumprimento de
regras formais. Seu alcance é muito mais amplo e deve ser
compreendido de maneira sistêmica, como um instrumento de
mitigação de riscos, preservação dos valores éticos e de
sustentabilidade corporativa, preservando a continuidade do
negócio e o interesse dos stakeholders. (BERTOCCELLI 2019,
p. 35)

Para o professor especialista em governança corporativa Marcos Assi:

Em termos práticos, o Compliance consiste em planejar a


prevenção de riscos de desvios de conduta e descumprimento
legal, além de incorporar métodos para detectá-los e controlá-
los, tudo isso por intermédio de um programa de Compliance,
também conhecido como programa de integridade.” Ou seja,
assim como o Compliance Officer, o Data Protection Officer
(DPO) deve buscar sucesso em sua atuação, sobretudo, na
implementação de políticas internas preventivas, estratégias de
proteção dos dados e planos de ação para gestão de eventuais
riscos envolvendo a segurança e privacidade desses dados
pessoais. (ASSI, 2018, p. 24)

Disciplinado pela ISO (International Standartization Organization) 19600,


para estar em Compliance é necessário a adoção de princípios e programas de
implementação de normas de conduta e integridade garantindo assim a
prevenção de contrariedades ao universo jurídico vigente. Em outras palavras,
assim como o Compliance Officer, o Data Protection Officer deve buscar sucesso
158

em sua atuação, sobretudo, através da implementação de políticas internas


preventivas, estratégias de proteção para os dados e planos de ação para
eventuais riscos envolvendo a segurança e a privacidade dos mesmo.
Delimitada por princípios importantes, a LGPD define claramente como se
dará este processo. Estes princípios são: finalidade legítima; explícita e
específica; acesso livre; facilitado e gratuito sobre a forma e duração do
tratamento aos titulares dos dados; transparência quanto a identidade dos
agentes e a realização do tratamento; segurança através da utilização de
medidas técnicas e administrativas para proteger esses dados; e, a prestação
de contas e responsabilização demonstradas pelo agente a respeito da
observância e cumprimento das normas e, principalmente, a eficácia dos
procedimentos adotados.
Isto é, na prática o maior desafio do encarregado dos dados será adequar
as empresas a essas novas modalidades e, para tanto, deverá estar muito bem
informado tanto em relação as exigências já transcritas em lei quanto as
regulamentações que serão disponibilizadas pela Autoridade Nacional de
Proteção de Dados, a ANPD, em especial no que se refere aos Dados Pessoais
Sensíveis.

QUEM É O DPO

Nomeado pela lei brasileira como Encarregado pelo Tratamento dos


dados pessoais, o Data Protection Officer será o profissional responsável pela
aplicação das normas tanto já previstas quanto as regulamentações posteriores
impostas pela ANPD. Com suas atividades previstas no artigo 41 da LGDP, o
DPO deverá estar apto para aceitar reclamações e comunicar-se com os titulares
dos dados; receber notificações da Autoridade Nacional e adotar providências;
Orientar os funcionários e os contratados da entidade a respeito das práticas a
serem tomadas em relação a proteção dos dados pessoais e, além disso, sua
identidade e as suas informações de contato deverão ser divulgadas
publicamente, de forma clara e objetiva.
A lei não é clara quanto a área de trabalho que este profissional deve estar
inserido para exercer o papel do DPO. Porém, ao observar as exigências e
responsabilidades que este cargo exige, conclui-se que, além da formação
específica em Data Protection Officer, o mesmo já atue em âmbito jurídico ou
segurança da informação/TI.

SANÇÕES APLICÁVEIS A EMPRESAS QUE NÃO ESTIVEREM EM


CONFORMIDADE

Não apenas positivando as novas regras de tratamento de dados


pessoais e os direitos dos titulares, a lei é clara no que se refere as punições
cabíveis em casos de infrações e descumprimentos do que rege a LGPD.
Sanções rigorosas que tendem a “incentivar” os responsáveis pelo tratamento
de dados a estar cada dia mais em Compliance com as novas exigências.
A depender da gravidade da infração, as seguintes penas estão previstas
a partir do artigo 52 da Lei Geral de Proteção de Dados:

Art. 52. Os agentes de tratamento de dados, em razão das


infrações cometidas às normas previstas nesta Lei, ficam
159

sujeitos às seguintes sanções administrativas aplicáveis pela


autoridade nacional:
I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas
corretivas;
II – multa simples, de até 2% (dois por cento) do faturamento da
pessoa jurídica de direito privado, grupo ou conglomerado no
Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, limitada, no
total, a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por
infração;
III - multa diária, observando o limite total a que se refere o inciso
II;
IV - publicização da infração após devidamente apurada e
confirmada a sua ocorrência;
V – bloqueio dos dados pessoais a que se refere a infração até
a sua regularização;
VI – eliminação dos dados pessoais a que se refere a infração.
(Lei13.709, Lei Geral de Proteção de Dados)

Todavia, conforme dito anteriormente, o legislador leva em consideração


a boa-fé dos operadores de dados pessoais e considera como relevantes no
momento de aplicação das penalidades a cooperação do infrator, se este é
reincidente, a adoção de política de boas práticas e governança, o grau do dano
e a adoção reiterada e demonstrada de mecanismos internos capazes de
minimizá-los. Ou seja, além de estar em total conformidade com a legislação, é
necessária mostrar estar Compliance com suas atividades no tocante a
positivada lei.

CONCLUSÃO

À luz do conteúdo estudado, pode-se concluir que um árduo trabalho


espera o DPO. Em uma Era Digital, é impossível mensurar a quantidade de
dados pessoais que circulam pela internet, dentre eles, inclusive, os dados
pessoais considerados pela própria LGPD como sensíveis, isto é, aqueles que
podem ser facilmente ligados a uma pessoa natural revelando sua origem racial
ou étnica, convicção religiosa ou opinião política, dado referente à saúde ou
opção sexual e etc.
Portanto, é de suma importância que empresas operadoras de dados
pessoais busquem adequação imediata ao novo regramento. Uma vez que, para
surtir efeitos consideráveis, o efeito temporal é primordial para que os
controladores se harmonizem e atuem em conformidade com a LGPD.

REFERÊNCIAS

ANTONIK, Luiz. R. Compliance, Ética, Responsabilidade Social e Empresarial:


Uma Visão
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161

O APOIO FEDERAL À INOVAÇÃO E A POSSIBILIDADE DE ACESSO AO


FINANCIAMENTO PELO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL SUJEITO AO INOVA
SIMPLES
FEDERAL SUPPORT FOR INNOVATION AND THE POSSIBILITY OF
ACCESS TO FINANCING BY INDIVIDUAL ENTREPRENEURS SUBJECT TO
INNOVATE SIMPLE

Daniela dos Santos Ferreira de Almeida


Orientador(a): Leonardo da Silva Sant'Anna

Resumo: O Inova Simples, criado pela Lei Complementar nº 167/2019, prevê a


concessão de tratamento diferenciado às startups no momento de sua abertura
e fechamento. De acordo com a lei, a formalização dessas empresas é realizada
de forma simplificada pelo Governo Federal. Ou seja, o registro ocorrerá
independentemente da atuação da Junta Comercial. Nesse sentido, o estudo
investiga se a fixação de um rito sumário para a abertura das startups pode trazer
consequências em relação ao acesso a financiamento especial. Para tanto, é
adotada a análise documental, apoiada em leis, regulamentos e em estudos
técnicos. O trabalho conclui que a exigência do arquivamento da inscrição do
empresário pela Junta Comercial representa um obstáculo à contratação dos
empréstimos pelos beneficiários do Inova Simples. Em vista disso, sugere-se a
revisão das cláusulas regulamentares que condicionam o enquadramento nos
programas, a fim de ampliar o acesso aos recursos.
Palavras-chave: Empresário Individual. Financiamento. Inovação Simples.

Abstract: Innovate Simple, created by Complementary Law nº 167/2019,


provides for the granting of differential treatment to startups at the time of opening
and closing. According to the law, the formalization of these companies is carried
out in a simplified manner by the Federal Government. That is, the registration
will occur regardless of the action of the Board of Trade. In this sense, the study
investigates whether the establishment of a summary rite for opening startups
can bring consequences regarding access to special financing. For this,
document analysis is adopted, supported by laws, regulations and technical
studies. The study concludes that the requirement for the registration of the
entrepreneur's registration by Board of Trade represents an obstacle to borrowing
by the beneficiaries of Innovate Simple. In view of this, it is suggested to revise
the regulatory clauses that condition the framing in the programs in order to
increase access to resources.
Keywords: Individual Entrepreneur. Financing. Innovate Simple.

INTRODUÇÃO

O sucesso de uma startup depende do cumprimento do escopo de sua


intenção inovadora. No entanto, de acordo com os objetivos traçados, os
investimentos em capital variam, sendo, em todos os casos, essenciais para a
criação e o funcionamento das startups. Vale frisar, ainda, que o capital por si só
não garante o sucesso de uma empresa nascente, mas representa um fator
importante no caminho para a inovação. Em 2019, entrou em vigor a Lei
Complementar nº 167, que introduziu no ordenamento jurídico o conceito de
162

startup ou empresa de inovação e criou o Inova Simples, que prevê a concessão


de tratamento diferenciado a essas empresas.
No tocante ao apoio à inovação empresarial no país, tem-se que o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é considerado
atualmente o “principal instrumento do Governo Federal para o financiamento de
longo prazo e investimento em todos os segmentos da economia brasileira”,
incluindo os setores de inovação (BNDES, 2019, s.p.). Em vista disso, o presente
trabalho tem por objetivo analisar as condições de acesso ao financiamento de
projetos de inovação realizados por micro, pequenas e médias empresas
(MPME), oferecido pelo BNDES, a fim de verificar se existe óbice à participação
do empresário individual sujeito ao Inova Simples.
Para atingir os objetivos do estudo, adota-se nos procedimentos da
pesquisa a análise documental, tendo por base a legislação pertinente ao tema
e a Circular nº 14, de 06 de dezembro de 2018, emitida pela Superintendência
da Área de Operações e Canais Digitais (SUP/ADIG), do BNDES. Além disso, o
trabalho utiliza como referenciais publicação da Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Económico (OCDE) que apresenta um panorama das
startups na América Latina, bem como estudo divulgado pela CB Insights,
destaque mundial em dados sobre startups. Este último estudo refere-se aos
fatores de insucesso das empresas de inovação, dentre eles, a insuficiência de
recursos financeiros.

A FIGURA DA STARTUP NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

De acordo com a definição constante do art. 2º, inciso IV, da Lei nº


10.973/2004, com redação dada pela Lei nº 13.243/2016, o termo inovação
corresponde à:
introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e
social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que
compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características
a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em
melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho (BRASIL,
2004, s.p.).

Na esteira da definição acima, a LC nº 167/2019 introduziu no


ordenamento jurídico o conceito de startup. Para os fins do referido diploma
legal, a startup é considerada uma empresa de caráter inovador que visa ao
aperfeiçoamento de sistemas, métodos ou modelos de negócio, de produção, de
serviços ou de produtos, que já existam ou sejam criados a partir de algo
totalmente novo. A LC nº 167/2019, que altera o Estatuto das Micro e Pequenas
Empresas (LC nº 123/2006), também prevê a fixação de rito sumário para
abertura e fechamento de empresas sob o regime do Inova Simples. De acordo
com a lei sob exame, este rito corresponde a um tratamento diferenciado com
vistas a estimular a criação, formalização, desenvolvimento e consolidação das
startups como agentes indutores de avanços tecnológicos e da geração de
emprego e renda.
Conforme determina o § 3º, do art. 65-A, da LC nº 123/2006, o registro da
startup está sujeito à tratamento simplificado e é deferido automaticamente, com
base nas autodeclarações do empreendedor. O cadastro da startup deverá ser
realizado no mesmo ambiente digital do portal da Rede Nacional para a
Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim).
163

Para tanto, o interessado deve acessar o sítio eletrônico oficial do Governo


Federal e preencher um formulário digital próprio, disponível na seção reservada
aos beneficiários do Inova Simples.
Entre os meios estabelecidos pela LC nº 167/2019 para a validação dos
produtos ou serviços em desenvolvimento pelas empresas inseridas no ramo da
inovação está a comercialização experimental. Caso obtenham êxito no
desenvolvimento de suas soluções, não há dúvidas de que as startups poderão
comercializar suas soluções em caráter definitivo. Inobstante a isso, a lei não é
clara quanto às condições para o desenquadramento do regime especial. Nesse
sentido, questiona-se, inclusive, se o alcance da intenção inovadora implica na
perda do direito a um tratamento diferenciado. Por outro lado, no que tange à
hipótese de insucesso do empreendimento, a lei permite o cancelamento
automático do número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas
(CNPJ), bastando para isso a declaração do empresário.
A CB Insights – destaque mundial na coleta de dados e informações sobre
capital de risco, tecnologia, investimentos para startups, entre outros -, analisou
o post-mortem de 101 startups que encerraram suas atividades. O estudo
resultou em uma lista com os 20 principais motivos que levaram essas empresas
ao insucesso. As razões vão da falta de adequação do produto ao mercado à
desarmonia da equipe. Em primeiro lugar na lista da CBInsights está a
inexistência da necessidade do mercado (42%), seguido da falta de dinheiro
(29%). Aparece ainda no ranking das principais causas de fracasso das startups,
a ausência de financiamento ou o desinteresse dos investidores (8%)
(CBINSIGHTS, 2018).
No que diz respeito ao financiamento da inovação no ambiente produtivo,
a Lei nº 10.973/2004, prevê que cabe às agências de fomento o financiamento
das ações que visem a estimular e promover o desenvolvimento da ciência, da
tecnologia e da inovação (art. 2º, inciso I). Por outro lado, ainda de acordo com
essa lei, cumpre às chamadas incubadoras de empresas o estímulo ou apoio
logístico, gerencial e tecnológico ao empreendedorismo inovador e intensivo em
conhecimento. Segundo o disposto na lei em comento, o objetivo da atuação das
incubadoras é facilitar a criação e o desenvolvimento de empresas que tenham
como diferencial a realização de atividades voltadas à inovação (art. 2º, inciso
III).
Com base nas informações sobre novas empresas constantes da
plataforma online “AngelList”, a OCDE (2016) destacou a liderança do Brasil na
América Latina, no tocante ao número de startups existentes em seu território.
As startups brasileiras localizam-se, em sua maioria, na região sudeste do país,
sobretudo nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A OCDE
também ressalta que desde 2010, muitos países na América Latina, entre eles o
Brasil e o México, têm desenvolvido programas de apoio às startups. Devido à
rápida evolução desses programas, um dos resultados observados diz respeito
às percepções das pessoas sobre a América Latina e a sua imagem como um
lugar para o empreendedorismo e inovação.

O ACESSO AO FINANCIAMENTO PELOS EMPRESÁRIOS INDIVIDUAIS


SUJEITOS AO INOVA SIMPLES

O Estatuto das Micro e Pequenas Empresas (MPE), alterado pela LC nº


167/2019, prevê, no art. 18-A, § 4º, inciso V, que o Microempreendedor Individual
164

(MEI) poderá ser constituído na forma de startup. Nesse caso, porém, o MEI
estará impedido de optar pelo recolhimento dos impostos e contribuições
abrangidos pelo Simples Nacional em valores fixos mensais,
independentemente da receita bruta por ele auferida mensalmente. Apesar de o
MEI ser considerado uma modalidade de microempresa (art. 18-E, § 3º, da LC
123/2006), o deferimento do seu registro não está sujeito ao exame da Junta
Comercial do Estado ou do Distrito Federal.
Isso porque a formalização do MEI ocorre por meio do Portal do
Empreendedor, sítio eletrônico cuja gestão é de responsabilidade do Governo
Federal. O empresário individual que se enquadre na definição constante do art.
966 do Código Civil de 20021 (Lei nº 10.406/2002) pode ser considerado como
MEI, desde que aufira receita bruta anual até R$ 81.000,00 e satisfaça outros
requisitos previstos no art. 18-A, da LC nº 123/2006.
O fundamento para aplicação desse tratamento diferenciado e
simplificado encontra-se no art. 970 do Código Civil de 2002, segundo o qual “a
lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário
rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes”.
No que tange à definição de “pequeno empresário”, o art. 68 da LC nº 123/2006
determina que se considera pequeno empresário, para efeito de aplicação do
disposto no art. 970 do Código Civil de 2002, o empresário individual
caracterizado como microempresa, que aufira receita bruta anual até
R$ 81.000,00.
O Programa BNDES de Apoio à Micro, Pequena e Média Empresa
Inovadora – “BNDES MPME Inovadora” – foi instituído com o objetivo de
“aumentar a competitividade das Micro, Pequenas e Médias empresas”, por meio
do “financiamento dos investimentos necessários para a introdução de
inovações no mercado”. O objetivo do programa contempla ainda a articulação
dessas empresas com os membros do Sistema Nacional de Inovação, bem como
“ações contínuas de melhorias incrementais em seus produtos e/ou processos,
além do aprimoramento de suas competências, estrutura e conhecimentos
técnicos” (BNDES, 2018, p. 1).
Para ser beneficiária do “BNDES MPME Inovadora” é necessário cumprir
uma série de requisitos. Primeiramente, a contratante do financiamento deve ser
pessoa jurídica de direito privado, com sede e administração no País e
empresário individual inscrito no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ)
e no Registro Público de Empresas Mercantil (RPEM), classificados por porte
como Micro, Pequenas e Médias empresas. Além disso, a contratante deve se
enquadrar em pelo menos uma das condições listadas no Anexo único da
Circular SUP/ADIG nº 14/2018-BNDES.
O instrumento em análise foi emitido pelo BNDES com vistas a regular o
seu programa de financiamento destinado aos projetos de inovação realizados
pelas MPME, de faturamento anual de até R$ 300 milhões. Para ter acesso ao
financiamento no âmbito desse programa é necessário que o empresário
individual tenha o seu documento de constituição regularmente arquivado no
RPEM, na forma do art. 32, inciso II, alínea ‘a’, da Lei nº 8.934/1994. Às Juntas
Comerciais, órgãos locais do Sistema Nacional de Registro de Empresas
Mercantis (Sinrem), competem à execução dos serviços do registro, que

1 De acordo com o art. 966 da Lei nº 10.406/2002, “considera-se empresário quem exerce
profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou
de serviços”.
165

compreende o arquivamento dos documentos relativos à constituição, alteração,


dissolução e extinção dos empresários individuais, das sociedades empresárias
e também das cooperativas.
Apesar de a Lei nº 8.934/1994 ter conferido às Juntas Comerciais a
competência pela execução e administração dos serviços de registro, o processo
de formalização e enquadramento do MEI é executado e gerido diretamente pelo
Governo Federal, sem a interveniência das Juntas Comerciais. Ainda de acordo
com essa lei, a jurisdição das Juntas Comerciais é limitada à área da
circunscrição territorial da unidade federativa onde esteja localizada a sua sede
(art. 5º). Cabe frisar ainda que, no âmbito administrativo, as Juntas Comerciais
estão subordinadas ao governo do respectivo ente federativo. Contudo, no
aspecto técnico, existe a subordinação ao Departamento Nacional de Registro
Empresarial e Integração, órgão central do Sinrem, com funções supervisora,
orientadora, coordenadora e normativa, na área técnica (art. 3º, inciso I, alínea
‘a’ c/c art. 6º).
Em que pese estar claro que o programa do BNDES é destinado somente
às micro, pequenas e médias empresas, entende-se que a exigência quanto ao
arquivamento dos atos empresariais no RPEM, por si só, já excluiria do rol de
beneficiários o MEI constituído sob a forma de startup e sujeito ao regime do
Inova Simples. Isso porque, apesar de o MEI ser considerado um empresário
individual, e quanto ao porte, uma modalidade de microempresa, a sua inscrição,
alteração e baixa no CNPJ é realizada exclusivamente por meio do Portal do
Empreendedor, acessível aos usuários da Redesim, criada pela Lei nº 11.598,
de 3 de dezembro de 2007.
No caso do MEI constituído sob a forma de startup, a LC nº 123/2006,
alterada pela LC nº 167/2019, determina que a sua inscrição também seja
realizada no ambiente digital da Redesim. Contudo, o registro deve ocorrer
mediante o preenchimento de formulário próprio, disponível em sítio eletrônico
exclusivo para as iniciativas empresariais de caráter incremental ou disruptivo
que se autodeclarem como startups ou empresas de inovação e que estejam
sujeitas ao regime do Inova Simples. Vale ressaltar, no entanto, que o tratamento
diferenciado para abertura de startups não se restringe ao microempreendedor
individual. Sendo assim, todos os empresários individuais registrados na forma
do art. 65-A, da LC nº 123/2006, estariam impedidos de obter o financiamento.
Consoante o disposto nos arts. 1º e 2º da Lei nº 11.598/2007, a Redesim
foi criada com o objetivo de propor ações e normas aos seus integrantes, com
vistas à simplificação e à integração do processo de registro e legalização de
empresários e pessoas jurídicas no âmbito da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios. Inobstante a isso, a participação na Redesim é
obrigatória somente para os órgãos federais. Em relação aos órgãos,
autoridades e entidades não federais (incluídas as Juntas Comerciais), com
competências e atribuições vinculadas aos assuntos de interesse da Redesim,
a participação é voluntária, por adesão mediante consórcio. Ainda segundo o art.
9º do diploma legal em comento, ao usuário da Redesim é assegurada “entrada
única de dados cadastrais e de documentos, resguardada a independência das
bases de dados e observada a necessidade de informações por parte dos órgãos
e entidades que a integrem”.
Em resumo, o MEI constituído na forma de startup não se encontra inscrito
no Registro Público de Empresas Mercantil, nos termos da Lei nº 8.934/1994.
Em vista disso, essa modalidade de microempresa, embora aufira um
166

faturamento anual até R$ 81.000,00, e mesmo que concorra diretamente para a


introdução de inovações no mercado, que é justamente o motor para a sua
criação, não é considerada como beneficiária do “BNDES MPME Inovadora”.
Além do MEI, a restrição ao financiamento, a princípio, também se estenderia a
outros empresários individuais sujeitos ao Inova Simples. Isso porque o texto
aprovado não esclarece se, no caso do empresário individual, classificado por
porte como micro ou pequena empresa, é necessário o ulterior registro no
RPEM. Diante das alterações promovidas pela LC nº 167/2019, com a expressa
inserção no ordenamento jurídico da figura das startups no Estatuto das MPE, o
fato descrito neste trabalho parece não se justificar.
De acordo com o art. 19, § 2º-A, inciso II, da Lei nº 10.973/2004, incluído
pela Lei nº 13.243/2016, o financiamento é considerado um dos principais
instrumentos de estímulo à inovação empresarial. Sendo assim, no que tange às
startups sob o regime do Inova Simples, é recomendada a expressa inclusão
destas nos programas de financiamento destinado à inovação, tendo como
objetivo o fortalecimento e a expansão dessas empresas. Além disso, a inclusão
sugerida justifica-se à luz dos princípios que devem reger as medidas de
incentivo à inovação no país e que se encontram elencados nos incisos do
parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.973/2004, incluídos pela Lei nº
13.246/2016.
Entre os princípios dispostos na lei brasileira de incentivos à inovação no
ambiente produtivo estão a “promoção da competitividade empresarial nos
mercados nacional e internacional” (art. 1º, inciso VII, Lei nº 10.973/2004) e a
“atratividade dos instrumentos de fomento e de crédito, bem como sua
permanente atualização e aperfeiçoamento” (art. 1º, inciso XI, Lei nº
10.973/2004). Apesar dos esforços para tornar o programa mais atrativo, com a
redução da remuneração do BNDES, de 1,13% a.a. para 1,05% a.a., e o
aumento da participação máxima do Banco para até 100% dos itens financiáveis,
é necessário atentar para as oportunidades de melhoria do programa no tocante
ao aumento da competitividade das MPE, mais especificamente das startups
sujeitas ao regime do Inova Simples.
Vale registrar que, no âmbito do BNDES, há um programa de microcrédito
para micro e pequenas empresas e empresários individuais, o “BNDES Crédito
Pequenas Empresas”. No entanto, o programa não é voltado para empresas de
inovação, sendo o seu escopo mais abrangente. Além desse programa, lançado
em 2019, existe também o “BNDES Microcrédito – Empreendedor”, que oferece
financiamento de até R$ 20.000,00 a microempreendedores formais e informais.
O limite máximo da taxa de juros referente a esse financiamento é de 4% ao
mês, incluídos todos os encargos. Ademais, a participação do BNDES nesse
programa é de até 100% do valor financiado e não são exigidas garantias reais
nas transações. Contudo, o valor financiado nesse programa pode ser pouco
atrativo para as empresas de inovação formais que buscam maiores aportes
para os seus projetos.
A Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, alterada pela Lei nº
13.674/2018, garante a empresas de desenvolvimento ou produção de bens e
serviços de tecnologias da informação e comunicação, benefícios relativos à
isenção de imposto e à depreciação acelerada de ativos. Para tanto, considerado
o seu faturamento bruto anual, essas empresas devem realizar investimentos
em atividades no país de pesquisa, desenvolvimento e inovação referentes ao
setor. Em 2018, a Lei nº 8.248/91 passou a prever a aplicação de parte dos
167

recursos obtidos por esse mecanismo de incentivo por meio: a) de fundos de


investimentos ou outros instrumentos autorizados pela Comissão de Valores
Mobiliários (CVM), com vistas à capitalização de empresas de base tecnológica;
e b) de programa governamental que se destine ao apoio a empresas de base
tecnológica, conforme regulamento a ser editado pelo Ministro de Estado da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (art. 11, § 18, inciso II, da Lei
nº 8.248/1991, incluído pela Lei nº 13.674/2018).
Nesse sentido, verifica-se a possibilidade de as startups de base
tecnológica serem beneficiadas com os recursos aplicados sob a forma de
fundos de investimento ou sob a forma de programa especial de apoio
administrado pelo Governo Federal, com fundamento na Lei nº 8.248/1991. À luz
do que prevê esse diploma, aplicável ao setor de informática e automação,
sugere-se, ainda, a criação de fundos de investimentos e de programa especial
de financiamento, com vistas ao apoio e à capitalização das empresas sujeitas
ao Inova Simples. Para tanto, é recomendado que seja instituída lei autorizando
a captação e utilização de recursos financeiros complementares, obtidos
mediante a concessão de benefícios aos negócios que realizarem investimentos
em iniciativas inovadoras no mercado interno.

CONCLUSÃO

Entre as mudanças promovidas no ordenamento jurídico brasileiro pela


Lei nº 13.243/2016, estão a inclusão do financiamento como um dos principais
instrumentos de apoio à inovação empresarial. Em consulta ao sítio eletrônico
do BNDES, o trabalho identificou que o Governo Federal oferece condições e
formas de financiamento de acordo com o tipo e o porte do negócio. Em relação
às micro e pequenas empresas, são disponibilizadas condições diferenciadas e
formas de financiamento especiais, com vistas ao seu incentivo. Inobstante a
isso, constatou-se que o atual programa de apoio às micro e pequenas empresas
de inovação do BNDES não abrange o empresário individual constituído na
forma de startup, seja ele caracterizado como MEI ou classificado quanto ao
porte como micro ou pequena empresa.
Ante o exposto, o estudo sugeriu a revisão do regulamento do programa
“BNDES MPME Inovadora” para inclusão desse empresário, cujo registro é
realizado no ambiente da Redesim. Alternativamente, sob a inspiração da Lei nº
8.248/1991, alterada pela Lei nº 13.674/2018, o trabalho recomendou a
instituição de lei autorizando a captação e utilização de recursos financeiros nos
moldes do que já é previsto para o setor de informática e automação. O objetivo
da medida proposta é aplicar os recursos obtidos mediante a concessão de
benefícios em fundos de investimentos e na execução de programas
governamentais, ambos voltados para a capitalização e o apoio das startups
sujeitas ao regime do Inova Simples.
Nesse sentido, o estudo conclui que as medidas tendentes a
desburocratizar a abertura de startups, nos termos do que preconiza o art. 65-A
da LC nº 123/2006, devem ser concebidas pari passu ao planejamento e à
execução de mecanismos de fomento que promovam o seu fortalecimento e
expansão. Noutras palavras, a simplificação do rito para a formalização das
startups não pode servir de obstáculo para a participação dessas empresas em
programas governamentais de financiamento, voltados para o apoio de micro e
168

pequenas empresas que concorram diretamente para a introdução de inovação


nos mercados externos e internos.

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170

O DIREITO À SAÚDE NA RELAÇÃO DE CONSUMO: UMA ANÁLISE DA


JURISPRUDÊNCIA PAULISTA DIANTE DOS DANOS ESTÉTICOS
DECORRENTES DE TRATAMENTOS DE CRIOLIPÓLISE

Thiago Gomes Luiz de Paula


Denis Carvalho

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar a responsabilidade do


prestador de serviço de estética para com o consumidor, este, destinatário
final, pois verificou-se que após a realização do procedimento de estética
denominado criolipólise, quando este executado de maneira incorreta, acaba
gerando danos ao paciente, o qual não encontra outra saída, a não ser a busca
pelo amparo judicial para conseguir recuperar parte do dano sofrido através de
danos morais e materiais. Verifica-se assim que a busca e o sonho pelo corpo
saudável se torna um pesadelo quando gera algum dano ao paciente, para isso
será realizada a análise documental e jurisprudencial do estado de São Paulo.
Palavras-chave: Dano estético. Dano material. Responsabilidade.

Abstract: This piece has the main purpose to analyze the responsibility of the
aesthetic professionals to its customers, the last receiver, because was noticed
that after the aesthetic procedures, called Cryolipolysis, when executed in the
wrong way, it can harm the patient, who has no alternative but look after judicial
protection to get back part of the damage suffered thought moral and material
damages. It's clear that the pursuit and the dream of a healthy body becomes a
nightmare when it causes some damage to the patient. In this case, will be
done a documentary and case law analysis of São Paulo State.
Keywords: Ethical Harm. Material Damage. Responsability.

INTRODUÇÃO

A satisfação pessoal é o motor que impulsiona as pessoas a saírem do


estágio de inércia e buscarem o estudo, trabalho e a conquista de tantas outras
metas. No passado ter um bom emprego, carro e família eram os principais
objetivos a serem perseguidos. Estes objetivos talvez não tenham alterado,
entretanto, é inegável que o cuidado maior com o corpo e a percepção não só
pessoal como a de terceiros sobre a aparência física deixou de ser algo
reservado para figuras públicas ou atletas.
Novas dietas, exercícios físicos e tratamentos estéticos proliferam no
mercado em progressão exponencial. Ocorre que a ausência de orientação e
preparo necessário daqueles que conduzem este procedimento podem
transformar um sonho em um pesadelo.
Nesse contexto é que o presente trabalho se insere. Buscando
compreender as responsabilidades jurídicas de procedimentos estéticos no
Brasil, iniciou-se uma investigação acadêmica para compreender quais são as
principais ocorrências e consequências dos tratamentos estéticos sem o
resultado esperado. Concentrando inicialmente a pesquisa nos procedimentos
envolvendo a criolipólise, identificados serão os danos mais recorrentes,
responsáveis e valor das indenizações fixadas com base no conteúdo das
decisões proferidas no ano de 2018 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
171

1. A BUSCA PELA BELEZA POR INTERMÉDIO DA CRIOLIPÓLISE

GRACINDO (2015, p.425) indica ser a aparência um verdadeiro cartão de


visita, a primeira impressão e aquela que fica concebida na mente das pessoas.
A busca pela beleza, sensação interna que cada um carrega dentro de si
capaz de trazer um certo encanto pelo próprio corpo, faz com que as pessoas
busquem refúgio em academias, salões de beleza e clínicas a fim de alinharem
a um padrão desejado.
Entre os procedimentos buscados encontra-se a criolipólise. Trata-se de
um tratamento alternativo à lipoaspiração por ser menos invasivo, eficaz e
seguro para redução da gordura localizada. (TAGLIOLATTO, TOSCHI,
BENEMOND, WU e YOKOMIZO, 2017)
Por meio de equipamentos colocados sobre a pele ocorre a redução de
temperatura nessas áreas de contato, congelando as células de gordura a ponto
de gerarem sua destruição e posterior eliminação natural pelo organismo.

2. O SURGIMENTO DA RELAÇÃO DE CONSUMO NO TRATAMENTO DE


CRIOLIPÓLISE

Qualquer relação entre pessoas possui algum tipo de regulação


normativa. Estas estabelecem obrigações, direitos e deveres entre as partes
envolvidas e nos tratamentos estéticos não seria diferente.
Partindo da premissa clássica e mais frequente de contratação de
serviços estéticos, qual seja, aquela em que um indivíduo procura profissional
ou clínica especializada para atendimento particular, serão aplicadas as
disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor.
O cliente encaixa-se na definição legal de consumidor, contida no art. 2º
da norma supramencionada, visto ser a pessoa física que se beneficiará da
prestação de serviços estéticos.
No extremo oposto encontram-se as clínicas e profissionais autônomos
do ramo estético que preencherem os requisitos qualificadores de fornecedores.
Ainda que inexista o registro como pessoa jurídica, a ausência da
empresarialidade não retira destes a condição de fornecedores visto que
exploram atividade econômica com regularidade, produzindo, desenvolvendo,
executando ou circulando produtos e serviços no mercado de consumo.
A prestação remunerada do trabalho estético encaixa de na definição de
serviço constante no art. 3º, §2º, CDC, formando esta relação de consumo que
demanda um cuidado expressivo em todas as suas fases de formação em razão
da vulnerabilidade e riscos aos quais o cliente/consumidor está exposto.
No tocante à vulnerabilidade do consumidor destaca SILVA (2014, p.79):

O principio da vulnerabilidade do consumidor é tido como o principio


maior que rege as relações de consumo. Com seu reconhecimento no
mercado de consumo, trazido explicitamente no CDC, no art.4º, I, o
legislador consumerista demonstrou a fragilidade do consumidor na
relação com o fornecedor. São, portanto, os princípios, direitos e
garantias relacionados em virtude do reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor.
172

Como um dos efeitos concretos desta vulnerabilidade está o dever de


informar. Entre as informações elementares, nos termos do art. 6º, III, da
supracitada norma, encontram-se os dados sobre preço, composição, qualidade,
quantidade e tantos outros merecendo destaque, em razão do caso concreto, as
informações sobre os riscos.
Por trabalhar com baixas temperaturas existe um risco de lesões
decorrentes da queima do tecido epitelial em razão das baixas temperaturas. Por
esta razão e preventivamente clínicas e profissionais só devem operar estes
equipamentos com o treinamento e experiência necessários para não
proporcionarem danos estéticos e morais em seus pacientes. Espera-se ainda
que nesta atividade sejam informados previamente que os resultados esperados
serão alcançados desde que associado a hábitos de alimentação corretos,
realização de exercícios físicos e outros que inteferem no andamento do
tratamento.
Nesse sentido destaca CHACON (2009, p.3-4) que numa relação de
consumo, após a vítima sofrer danos decorrente de defeito no serviço prestado
pela empresa, esta mesmo não agindo culposamente, irá responder pelos danos
causados a vítima pois trata-se de responsabilidade objetiva.

3. OS DANOS DECORRENTES DA CRIOLIPÓLISE SOB A PERSPECTIVA


DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

Para compreender a extensão do dano, sua autoria e outros elementos


levados em consideração para a fixação do montante indenizatório analisou-se
os acórdãos proferidos sobre o tema no ano de 2018. A partir dos resultados
encontrados buscou-se também na origem dos processos informações
relevantes acerca do perfil dos litigantes, duração média da lide e outras
informações importantes.
Constatou-se que 80% dos processos foram movidos por mulheres.
Embora o mercado indique um aumento da procura dos homens por tratamentos
estéticos nos últimos anos a grande parte do público que procura o referido
procedimento continua sendo o grupo feminino.
Em todos os processos figuraram no polo passivo as clínicas. Essa
tendência talvez se justifique na maior capacidade econômica desta para reparar
o dano bem como na expectativa dos autores em afastar a comprovação do dolo
ou culpa em caso de responsabilização pessoal do profissional.
Cerca de 70% dos processos analisados originaram-se em comarcas do
interior. Uma das possíveis explicações para a maior incidência dos processos
fora da capital seja o menor porte das clínicas do interior e baixa concorrência
no mercado desse tratamento específico que associados poderiam implicar
numa oferta desse serviço por profissionais sem a qualificação técnica
necessária para operá-los ou assegurar ainda a correta manutenção.
Não houve o pedido em boa parte dos processos analisados a
condenação dos danos materiais, por outro lado, apenas em um deles, em razão
da improcedência total da demanda, não houve a fixação dos danos morais.
Estes últimos oscilaram entre os sete e trinta mil reais.
Os recursos foram promovidos em sua maioria pelas clínicas buscando,
entre outras providências, a redução dos valores indenizatórios que foram
reduzidos em apenas 10% dos casos.
173

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sonho de ter o corpo perfeito pode tornar um pesadelo para o


consumidor que não estiver atento no momento da escolha da clínica
responsável por seu tratamento estético.
A aquisição ou aluguel de equipamento implicam em custos consideráveis
ao fornecedor, logo, a utilização desses no maior tempo possível e por
profissionais sem o devido treinamento para maximização dos ganhos é
certamente responsável ou que ao menos potencializa a ocorrência de acidentes
de consumo.
O maior ônus continua sendo suportado pelo consumidor, obrigado a
buscar a tutela jurisdicional e aguardar por longos anos até a efetiva reparação.
Acredita que o número de ocorrências no Estado seja ainda maior do que os
indicados na pesquisa, não identificáveis pela inexistência de recurso, por
conciliação anterior à sentença ou pelo simples desconhecimento do direito à
reparação superior à simples devolução do dinheiro empenhado no
procedimento.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 8.078. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm . Acesso em 10 out 2019

FONTES, Olivia de Almeida. BORELLI, Fernanda Chagas. CASOTTI, Leticia


Moreira. Como ser homem e belo? Um estudo exploratório sobre a relação
entre masculinidade e o consumo de beleza. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/read/v18n2/a05v18n2.pdf. Acesso em 09 out 2019

GRACINDO, Giselle Crosara Lettieri. A moralidade das intervenções


cirúrgicas com fins estéticos de acordo com a bioética principialista.
Disponível em http://www.scielo.br/pdf/bioet/v23n3/1983-8034-bioet-23-3-
0524.pdf Acesso em: 09 out 2019

SILVA, Daisy Rafaela da. O consumo na pós-modernidade: efeitos nas


classes D&E. Campinas, SP: Editora Alínea, 2014.

TAGLIOLATTO, Sandra. TOSCHI, Aldo. BENEMOND, Tania Maria Henneberg.


WU, Suzana Lu Chen, YOKOMIZO, Vania Marta Figueiredo. Criolipolise -
revisão da literatura, relato e análise de complicações. Disponível em
http://www.surgicalcosmetic.org.br/detalhe-artigo/604/Criolipolise---revisao-da-
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SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1001039-


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SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1001350-


08.2014.8.26.0554, da 29ª Câmara de Direito Privado. Apelante: L. S. S.
Apelado: S. E. E. e D. C. I. de D. L. Relator: Dr. Carlos Henrique Miguel
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SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1004753-


85.2014.8.26.0068, da 2ª Câmara de Direito Privado. Apelante: J. C. L. T.
LTDA - ME e J. S. C. Apelada: D. G. B. Relator: Dr. Álvaro Passos. São Paulo,
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49.2016.8.26.0037, da 36ª Câmara de Direito Privado. Apelante: A. B. E - ME.
Apelado: C. da S. M. Relator: Dr. Milton Carvalho. São Paulo, 06 de setembro
de 2019. Disponível em:
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SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1019546-


73.2014.8.26.0506, da 28ª Câmara de Direito Privado. Apelante/Apelado: L. C.
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Acesso em: 01 out 2019

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1042156-


55.2015.8.26.0100, da 34ª Câmara de Direito Privado. Apelante: T. I. de B.
LTDA ME . Apelada: G. M. D. Relator: Dr. Carlos Von Adamek. São Paulo, 13
de setembro de 2017. Disponível em:
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Acesso em: 01 out 2019

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1049592-


58.2016.8.26.0576, da 30ª Câmara de Direito Privado. Apelante: D. E. R. P.
LTDA - ME. Apelado: R. C. E. Relator: Dr. Carlos Russo. São Paulo, 03 de
outubro de 2018. Disponível em:
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=11857457&cdForo=0.
Acesso em: 01 out 2019
175

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1127908-


29.2014.8.26.0100, da 22ª Câmara de Direito Privado. Apelante/Apelado: M. T.
E. LTDA. Apelada/Apelante: D. de F. M. D. M. Relator: Dr. Roberto Mac
Cracken. São Paulo, 28 de março de 2018. Disponível em:
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=11315841&cdForo=0.
Acesso em: 01 out 2019

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 1129645-


96.2016.8.26.0100, da 5ª Câmara de Direito Privado. Apelante/Apelado C. B.
S. LTDA - EPP. Apelante/Apelado A. G. da S. Relator: Dr. A. C. Mathias Coltro.
São Paulo, 08 de maio de 2019. Disponível em:
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=12480611&cdForo=0.
Acesso em: 01 out 2019
176

PROIBIÇÃO DE CASAMENTO DE PESSOA MENOR DE DEZESSEIS ANOS:


UMA PROTEÇÃO JURÍDICA?
INTERDICTION DE MARIAGE POUR LES MINEURS DE SEIZE ANS: UNE
PROTECTION LÉGALE?

Fábio Luís Procópio Braga Yamaoka


Isa Gabriela de Almeida Stefano

Resumo: Em 12 de março de 2019, a Lei nº 13.811 alterou o art. 1.520 do Código


Civil e trouxe vedação, expressa, de casamento de quem não atingiu a idade
núbil (dezesseis anos). O problema desta pesquisa questiona a eficácia desta
proibição na erradicação dos relacionamentos e coabitação que envolvam
menores de dezesseis anos. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), sobre registros civis e censos demográficos, apontam que, entre os
anos de 2000 e 2010, a quantidade de registros civis de casamentos com
pessoas menores de dezoito anos diminuiu, entretanto, a de que se declararam
“casadas” aumentou consideravelmente. Os artigos sobre casamento infantil,
consultados neste trabalho, indicam medidas que auxiliariam seu combate, entre
outras: melhorar as estruturas familiares, garantir o acesso à educação e a
posterior inserção, dos jovens egressos do ensino médio, no mercado de
trabalho.
Palavras-chave: Casamento infantil. Idade núbil.

Résumé: Le 12 mars 2019, la loi nº 13.811 a changé l’art. 1.520 du Code Civil et
a interdit expressément le mariage pour toute personne n’ayant pas atteint l’âge
nubile (seize ans). La présente recherche remet en cause l’efficacité de cette
interdiction pour l’éradication des relations et de la cohabitation entre mineurs de
seize ans. Les données de l’IBGE sur les actes d’état civil et les recensements
démographiques démontrent qu’entre les années 2000 et 2010, le nombre
d’actes de mariages entre personnes âgées de moins de 18 ans a diminué,
cependant le nombre de personnes qui se déclarent “mariés” a considérablement
augmenté. Les articles sur le mariage infantile consultés dans le présent travail
indiquent des mesures qui seraient efficaces pour faire face à ce problème,
comme par exemple: améliorer les structures familiales, assurer l’accès à
l’éducation et, également, l’accès au marché du travail des jeunes ayant fini le
lycée.
Mots-clés: mariage infantile, âge nubile.

1. INTRODUÇÃO

Em 12 de março de 2019, a Lei nº 13.811 alterou a redação do art. 1.520


da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil) e proibiu o casamento de pessoas com
menos de dezesseis anos completos.
A intenção do legislador foi reduzir a quantidade de casamento nessa
faixa etária, com a justificativa de que milhares de pessoas se casam muito
jovens, ainda em idade escolar, e acabam por não concluir o ensino médio.
A mera proibição de reconhecimento de um vínculo jurídico é suficiente
para eliminar, ou ao menos diminuir, esta situação fática: de relacionamento não
eventual envolvendo pessoas menores de dezesseis anos, no Brasil?
177

A pesquisa deste problema será de revisão bibliográfica e análise quali-


quantitativa, através de busca em doutrinas, julgados, leis e artigos, além de
estatísticas a respeito de casamentos que envolvam crianças e adolescentes.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. CRIANÇA E ADOLESCENTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

A proteção a crianças e adolescentes, em nosso ordenamento jurídico,


está presente em diversos dispositivos.
A Constituição da República Federativa do Brasil (CF) os tutela, mas não
delimita as faixas etárias que compreendem a infância e a adolescência, essa
tarefa foi cumprida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, em
seu art. 2º, define como criança a pessoa até doze anos de idade incompletos e
adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
A CF e o Código Penal (CP) definem como menores de idade, para efeitos
de imposição de pena, as pessoas com até dezoito anos incompletos, sendo,
portanto, inimputáveis1.
O art. 14, § 1º, II, ‘c’ da Constituição Federal permite ao adolescente, maior
de dezesseis e menor de dezoito anos, a faculdade de votar.
O CP, no art. 217-A, tipifica a conduta de manter conjunção carnal, ou
praticar outro ato libidinoso, com menor de quatorze anos de idade; sendo o
crime de estupro, neste caso, presumido, ou seja, o menor de quatorze anos não
tem capacidade de consentir para o sexo.
Atualmente, o Código Civil (CC) estabelece que os menores de dezesseis
anos são absolutamente incapazes de exercer, per si, os atos da vida civil; os
maiores de dezesseis e menores de dezoito anos são relativamente capazes,
podem praticar sozinhos alguns atos, necessitando de ratificação de seu
representante legal em outros; e os maiores de dezoito anos possuem
capacidade de fato2.
O parágrafo único do art. 5º do CC, entretanto, determina algumas
situações em que a capacidade será plena de forma antecipada, ou seja, antes
dos dezoito anos completos. Dessas possibilidades, apenas duas, constantes
nos incisos I e V, exigem o mínimo de dezesseis anos, as dos incisos II, III, e IV
não3.
A Lei nº 13.811/2019, ao alterar o art. 1.520 do Código Civil, impossibilitou
a emancipação do menor de dezesseis anos pelo casamento.
Em uma análise sistemática de nosso ordenamento jurídico, portanto, é
possível perceber que não há uniformização quanto à capacidade de
discernimento e consentimento dos menores de dezoito anos.

1 Arts. 228 e 27, respectivamente.


2 Arts. 3º, 4º e 5º, respectivamente.
3 I – pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público,

independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o


menor tiver dezesseis anos completos;
II – pelo casamento;
III – pelo exercício de emprego público efetivo;
IV – pela colação de grau em curso superior;
V – pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde
que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.
178

O maior de quatorze anos pode consentir com o sexo, mas não pode
casar-se.
Há doutrinadores que defendem que este limite, de quatorze anos para
anuir com a relação sexual, deveria ser reduzido para doze anos. Segundo Nucci
(2017, p. 891):
[...] o legislador, na área penal, continua retrógrado e incapaz de
acompanhar as mudanças de comportamento reais na sociedade
brasileira, inclusive no campo da definição de criança ou adolescente.
Perdemos uma oportunidade ímpar de equiparar os conceitos com o
Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, criança é a pessoa
menor de 12 anos; adolescente, quem é maior de 12 anos. Logo, a
idade de 14 anos deveria ser eliminada desse cenário.

A pessoa com mais de dezesseis anos tem capacidade de eleger


representantes do Poder Legislativo e do Poder Executivo, mas não sabe
discernir entre certo e errado, de modo que não pode ser penalizado
criminalmente.
Esses são apenas dois exemplos de uma aparente falta de coerência
entre normas pertencentes ao mesmo sistema jurídico.

2.2. CASAMENTO DE MENORES DE DEZOITO ANOS

O casamento de menores de dezoito anos, atualmente, é considerado


precoce em nossa sociedade.
De acordo com a Galeria de Estudos e Avaliação de Iniciativas Públicas
(GESTA), uma das maiores causas de evasão escolar, e consequente
desrespeito à educação obrigatória dos quatro aos dezessete anos 4, é a
gravidez/maternidade.
A Organização Não Governamental Promundo realizou um estudo5 sobre
casamentos na infância e na adolescência no Pará e no Maranhão, os dois
estados brasileiros com maior incidência de casamentos de menores de dezoito
anos. Segundo Taylor (2015, p. 10), “as evidências mostram que casamentos na
infância e adolescência na América Latina são, em sua maioria, informais e
consensuais”, ao contrário do que acontece em alguns países, no sul da Ásia e
da África, em que as crianças são forçadas a casar.
No mesmo estudo, os pesquisadores listam os cinco principais fatores
motivadores para o casamento na infância e na adolescência: 1. Gravidez; 2.
Controlar a sexualidade das meninas e limitar comportamentos percebidos como
‘de risco’; 3. Estabilidade financeira; 4. Decisão marital como expressão da
agência das meninas; 5. Decisão marital como resultado da preferência e do
poder dos homens adultos.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
relacionados ao registro civil6:
Casamentos de pessoas menores de quinze anos:
2000 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Homens 33 33 42 41 55 37 15 4
Mulheres 1.675 429 438 355 319 345 287 244

4 Art. 4º da Lei 9.394 – O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado
mediante a garantia de: I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17
(dezessete) anos de idade [...]
5 “Ela vai no meu barco” – Casamento na infância e adolescência no Brasil
6 Séries Históricas e Estatísticas do IBGE
179

Casamentos de pessoas de quinze anos7:


2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Homens 49 59 58 76 84 58 36
Mulheres 855 848 648 671 699 652 465

Casamentos de pessoas de dezesseis anos:


2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Homens 612 653 685 696 721 688 619
Mulheres 20.788 21.099 20.458 19.059 18.317 16.494 14.159

Casamentos de pessoas de dezessete anos:


2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Homens 2.150 2.195 2.469 2.408 2.471 2.315 1.985
Mulheres 25.443 25.394 25.403 23.996 23.454 21.311 18.357

No censo demográfico de 2000, realizado pelo IBGE, 20.030 pessoas,


entre dez e quatorze anos, declararam ser casadas e 15.527 que viviam em
companhia de cônjuge ou companheiro; entre as de quinze a dezessete anos,
estes números foram de 150.836 e 138.204, respectivamente.
No censo demográfico de 2010, também realizado pelo IBGE, as
estatísticas foram de: 56.739 pessoas, entre dez e quatorze anos, que se
declararam casadas e 16.240 que coabitavam com cônjuge ou companheiro; e,
entre as de quinze a dezessete anos, 126.452 e 94.424, respectivamente.
Ao cruzar os dados, de registro civil e de censo demográfico, é possível
perceber que a quantidade de relacionamentos estáveis envolvendo crianças e
adolescentes é muito maior do que o número de registro de casamentos.
A quantidade de registros de casamentos, com pessoas menores de
quinze anos, diminuiu de 1.708, no ano de 2000, para 462 no ano de 2010,
entretanto, neste mesmo intervalo, de acordo com o censo, houve um aumento
de mais de 280% entre as pessoas de dez a quatorze anos que se declararam
casadas: 20.030 no ano de 2000 para 56.739 no ano de 2010.
Em um artigo publicado8 no site das Nações Unidas – Brasil (ONU), os
autores destacam os efeitos negativos de casamento antes dos dezoito anos e
citam as principais intervenções que seriam eficazes para sua erradicação:
garantir a qualidade e o engajamento das crianças e adolescentes na escola;
ampliar a infraestrutura de ensino; garantir que o ensino seja acessível
financeiramente; intervenções para assegurar que as meninas não sofram
assédio sexual; iniciativas voltadas a desenvolver habilidades cognitivas,
socioemocionais e técnicas, e transformar normas sociais, para que as meninas
tenham oportunidades adequadas de emprego quando terminarem o ensino
médio.

2.3. LEI Nº 13.811 DE 12 DE MARÇO DE 2019

Esta lei alterou o art. 1.520 do Código Civil.

7
Dados anteriores a 2003 não especificam as idades de 15, 16 e 17 anos, estão unificadas na categoria
“15 a 19 anos”.
8
“Casamento infantil – o que falta para erradicar essa prática”
180

De acordo com o texto anterior: “Excepcionalmente, será permitido o


casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil, para evitar imposição ou
cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez”.
O atual: “Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem
não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código”.
O projeto de lei que culminou com esta lei é o PLC 56/2018, de autoria da
ex-deputada Laura Carneiro. Na explicação da Ementa consta o seguinte
“Proíbe, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil
(dezesseis anos de idade)”.
Na defesa pela aprovação do projeto de lei, o senador Roberto Rocha diz
que “uma criança, um jovem de quinze anos não pode beber, não pode dirigir,
não pode votar. Então, é logico que também não possa se casar”.
O casamento de menores de dezesseis, conforme o próprio texto anterior
dizia, era excepcional, porém, ao possibilitar sua ocorrência, poderia garantir, no
caso concreto, direitos à pessoa que ainda não havia atingido idade núbil.
Há, inclusive, jurisprudências de autorização judicial de casamentos de
menores de dezesseis anos que não estavam grávidas, ou seja, flexibilizando o
(antigo) texto da lei, justamente para proteger o menor e em reconhecimento da
situação fática. Nesse sentido:

HABILITAÇÃO PARA CASAMENTO - MENOR DE 16 ANOS QUE JÁ


RESIDE COM O NAMORADO E PRETENDE CASAR-SE -
REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÃO FÁTICA, LEVANDO-SE EM
CONSIDERAÇÃO O PADRÃO MORAL ACEITÁVEL NESTES CASOS
-- LEGALIZAÇÃO PROGRESSIVA - AUSÊNCIA DE PREJUÍZO.
(TJSC, Ap. Civ. 2012.023817-0, 2012)
É cediço que o art. 1.520 do CC/2002 (LGL\2002\400) textualmente só
autoriza o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil "para
evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de
gravidez".
Todavia, com fundamento no escopo social que deve nortear o
aplicador da lei (art. 5.º da LICC (LGL\1942\3)), como também com
base no princípio do fim social na interpretação dos contratos (onde se
inclui o de casamento) segundo previsto no art. 421 do CC/2002
(LGL\2002\400), há necessidade de se curvar à realidade e considerar
que a convivência inconteste sob o mesmo teto em união estável,
acrescida da concordância dos pais, de pessoa que está há poucos
dias de completar 16 anos de idade, delineia um cenário que clama ao
juiz que autorize a conversão da situação fática em casamento,
conforme a vontade de todos os envolvidos. (TJSP, Ap c/ Ver 589.370-
4/9-00, 2009)
APELAÇÃO CÍVEL. CASAMENTO DE MULHER MENOR DE 16
ANOS. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. DEFERIMENTO.
Demonstrado nos autos que, uma vez indeferido o pedido de
suprimento de outorga para casamento, é bem provável que os jovens
comecem a viver em união estável, se assim já não o fizeram, é de ser
deferido o pedido de suprimento judicial. (TJRS, Ap. Civ. 70014430292,
2006)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO DE FAMÍLIA - CASAMENTO
DE MULHER MENOR DE 16 ANOS - SUPRIMENTO JUDICIAL-
DEFERIMENTO - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO NÃO
PROVIDO.
Embora o Suprimento Judicial tenha ocorrido fora da hipótese
excepcional do art. 1520 do CC (gravidez), verifico a ocorrência do fato
consumado [...]. (TJMG, Ap. Civ. 1.0051.11.000488-7/001, 2013)
181

A hipótese de casamento para evitar imposição ou cumprimento de pena


já havia sido revogado tacitamente pela Lei n° 11.106/2005, que alterou o Código
Penal e eliminou esta causa de extinção da punibilidade.
O parágrafo 1º do art. 1.723 do Código Civil diz que os mesmos
impedimentos do casamento, previstos no art. 1.521, são aplicáveis à união
estável. O referido art. 1.521 é um rol taxativo, ou seja, apenas as hipóteses nele
previstas são impeditivas de registro civil de casamento e não foi alterado pela
Lei nº 13.811/2019.
De acordo com Flávio Tartuce:
[...] não se pode dizer que a alteração do art. 1.520 do Código Civil
tenha criado hipótese de impedimento matrimonial, estando no âmbito
da incapacidade, que não foi alterada, pois não houve qualquer
modificação do texto do art. 1.517. (SCHREIBER et al., 2019, p. 1144).

O inciso VII do art. 166 do Código Civil determina que: “É nulo o negócio
jurídico quando [...] a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática,
sem cominar sanção”; o casamento de menores de dezesseis anos, portanto, é
nulo de pleno direito.
O reconhecimento da união estável do menor de dezesseis anos,
entretanto, apesar de benéfico para a criança/adolescente, tornaria a Lei nº
13.811/2019 inócua e nesse sentido a terceira turma do STJ se manifestou no
RE 1.369.860/PR ao prescrever as mesmas limitações para o casamento à união
estável.

3. CONCLUSÃO

O casamento de crianças e adolescentes é prejudicial, deve ser


desestimulado e combatido.
As pesquisas, mencionadas nesta pesquisa, citam medidas eficientes na
tentativa de erradicação de casamentos infantis: estruturas familiares mais
estáveis, garantia de acesso à educação, colocação profissional dos jovens
egressos do ensino médio e educação sexual.
A proibição de casamento, por si só, dificilmente reduzirá a situação fática
de relacionamentos e coabitação envolvendo menores de dezesseis anos.
O não reconhecimento de vínculo jurídico desses relacionamentos, no
entanto, acarreta desamparo ao menor de dezesseis anos e, por esse motivo, a
alteração do art. 1.520, promovida pela Lei nº 13.811/2019, poderia ser
considerada em desacordo com o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III, CF).

4. REFERÊNCIAS

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Acesso em: 12 ago, 2019.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de


Janeiro, 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 19 de ago, 2019.
182

BRASIL. Lei nº 13.811 de 12 de março de 2019. Confere nova redação ao art.


1.520 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) para suprimir
as exceções legais permissivas do casamento infantil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13811.htm>.
Acesso em: 12 ago, 2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília,


1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 15 ago, 2019.

BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e


bases da educação nacional. Brasília, 1996. Disponível em:
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2019.

BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do


Adolescente. Brasília, 1990. Disponível em: <
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183

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Marriage-Girls-Education-and-the-Law-in-Brazil.pdf>. Acesso em: 22 de ago,
2019.
184

SUSTENTABILIDADE DA EXISTÊNCIA: DIGRESSÕES SOBRE A


AUTONOMIA E DIGNIDADE NA VIDA E NA MORTE
SUSTAINABILITY OF EXISTENCE: DIGRESSIONS ABOUT AUTONOMY AND
DIGNITY IN LIFE AND DEATH

Alysson Oliveira Moreira


Cleber Affonso Angeluci

Resumo: A reflexão crítica acerca da autonomia e da liberdade no processo de


morrer é inexorável para compreensão da dignidade humana numa perspectiva
singularizada de cada ser. A construção do conceito e compreensão da vida e
da dignidade perpassam por toda existência do humano, como seres
processuais e dinâmicos, seja nas relações intersubjetivas ou nas reflexões
íntimas sobre esse processo, resultante na edificação da identidade e da
personalidade do indivíduo, bem como na internalização dos interesses
experienciais e críticos desenvolvidos. O viver e o morrer, nesse contexto, são
indissociáveis além do entendimento meramente biológico, pois exerce
influência direta na consubstanciação da dignidade e integridade, segundo a
ética e o significado de vida para essa pessoa singularmente considerada.
Palavras-chave: Autonomia Existencial. Dignidade da morte. Direito Civil.

Abstract: The critical reflection about autonomy and freedom in the process of
dying is inexorable for understanding human dignity in a unique perspective of
each being. The construction of the concept and understanding of life and dignity
permeate the whole existence of the human existence, as procedural and
dynamic beings, whether in intersubjective relations or intimate reflections on this
process, resulting in the construction of the identity and personality of the
individual, as well as internalization of the developed experiential and critical
interests. Living and dying, in this context, are inseparable beyond the merely
biological understanding, since it exerts a direct influence on the
consubstantiation of dignity and integrity, according to ethics and the meaning of
life for this singularly considered person.
Key words: Existential Autonomy. Dignity in death. Civil Right.

INTRODUÇÃO

As questões acerca do fim da vida são relegadas ao esquecimento


durante o viver, deixadas para serem decididas nos momentos derradeiros
críticos, enquanto deveriam ser discutidas em vida plena. O perecer tem íntima
relação com a vida em si, na sua potência quotidiana, pois como fio condutor da
dignidade, se estende até o derradeiro suspiro. Nesse contexto, a autonomia
existencial e a liberdade devem ser inexoravelmente garantidas ao indivíduo,
como meios de possibilitar decisões existenciais sobre a vida e sobre o processo
de morrer. Isto porque vida e morte possuem ligação indissociável com a
dignidade e integridade do significado e percepção da vida desse ser
singularmente considerado como um fim em si mesmo.
A pesquisa é fruto de reflexões críticas desenvolvidas no Grupo de
Pesquisa “Direito Civil Emergente”, da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, Campus Três Lagoas e, do trabalho de conclusão de curso em andamento.
Para tanto, utilizou-se do método dedutivo, na perspectiva qualitativa, com
185

revisão bibliográfica de literatura jurídica, médica e filosófica acerca do tema. O


referencial teórico é embasado, principalmente, na obra “Domínio da vida”, de
Ronald Dworkin (2009) e no texto “Autonomia Existencial”, de Ana Carolina
Brochado Teixeira (2018).

ASPECTOS EXISTENCIAIS DA VIDA E PARA ALÉM DA MORTE: A


CONSTRUÇÃO DA LIBERDADE E DA AUTONOMIA

Refletir sobre a morte e o processo de morrer é considerado tabu, mau-


agouro. É atrair a indesejada das gentes. Entretanto, em perspectivas filosóficas
e existenciais o pensar sobre a vida requer, inexoravelmente, a análise do
perecimento e todas as questões e aspectos que orbitam em torno desse tema.
É indissociável das noções existenciais alicerces do significado da vida as
digressões acerca da liberdade e da autonomia e a forma como o Direito lida
com a normatização do viver e do morrer, estes vistos como um todo uno e
indivisível da identidade e da razão de ser do indivíduo.
Quando Ronald Dworkin (2009) afirma que no voto do juiz Scalia, no caso
Cruzan1, o Estado tem o direito constitucional de manter vivo um paciente
terminal, cria-se uma tensão no sentido de condenar o indivíduo a viver, isto é,
parece sair do campo de proteção do direito para uma obrigação de viver.
Desconsidera-se, portanto, todas as questões acerca da autonomia, liberdade e
interesses fundamentais do cidadão, mesmo alegando se tratar de proteção à
santidade da vida. Ao voltar os olhos para o passado desse sujeito, a sua vida
se santifica pelas escolhas que tomou no curso dela, de forma que, o processo
de morrer tem muito mais a ver com a vida em si do que com o derradeiro
momento.
É, portanto, questão que afeta a totalidade da vida, não só o momento de
autodeterminação acerca da morte, pois a “ênfase que colocamos no ‘morrer
com dignidade’ mostra como é importante que a vida termine apropriadamente,
que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter vivido” (DWORKIN,
2009, p. 280).
A questão da importância dada à morte e como ela ocorrerá tem relação
com aquilo cujo indivíduo reflete e internaliza como uma boa vida, bem vivida e,
em consequência, o bom desfecho. Para isso, Dworkin (2009) traz a ideia de
interesses experienciais, que dizem respeito a forma como se interpreta a vida e
a ela se atribui valor – se boa ou ruim –, de acordo com percepções pessoais
acerca dos fatos e do mundo. Nesse mesmo contexto, Baruch Spinoza (apud
BARROS FILHO, 2016) define como potência de vida (ou de agir), isto é, são
impulsos interpretados como momentos de felicidade, impulsos da vida na sua
forma mais sublime. Ao revés, a tristeza é por ele definida como uma queda da
potência de agir, correspondente a um impulso de morte que apequena o
indivíduo e o aproxima da morte. Assevera Clóvis de Barros Filho (2016, s/p),
acerca das oscilações da potência de agir que

1 O caso de Nancy Cruzan diz respeito à uma jovem que teve o córtex cerebral destruído por
ter ficado sem oxigenação após um acidente de trânsito e passar 7 anos em estado vegetativo
e seus pais terem recorrido diversas vezes à Suprema Corte americana para retirada do
suporte vital (DWORKIN, 2009, p. 252). Na decisão, os juízes Renhquist e Scalia
reconheceram que o Estado não tem o dever de cumprir uma ordem de um testamento vital por
ofender a santidade da vida, mas sim, pode agir legitimamente para preservar o valor
intrínseco dela.
186

somos todos viventes dotados de certa quantidade de energia para


viver (...), ela nos é essencial. Sem essa energia, a vida acaba. E ela
oscila seja porque somos constituídos de matéria orgânica em trânsito,
seja porque nosso corpo está no mundo. Pois o mundo nos afeta, e ele
está sempre ali; vivemos em relação. Se assim vivemos, é por que
afetamos o mundo ininterruptamente e vice-versa. (...) Se nossa
potência de agir oscila, entenderíamos o nosso corpo como um
exército em busca e alguma preservação ou ganho de potência. Assim,
poderíamos nos entender essencialmente como vontade de potência,
energia que busca mais energia. Naturalmente, isso nos leva a
classificar o mundo em função da forma como nos afeta e a propor
assim, uma espécie de grande valor para ele. O mundo que nos afeta
positivamente é aquele que alavanca a potência de agir, o mundo que
nos afeta negativamente é aquele que nos apequena a potência de agir
e nos aproxima da morte.

Portanto, as questões dos interesses experienciais são afetas à


compreensão intrínseca do ser vivente.
Entretanto, a liberdade cerceada de não poder dispor sobre o processo
de morrer em consonância com a filosofia é valor extrínseco ao ser e atinge a
todos, ao passo que afeta a liberdade e a autonomia de determinação dos
indivíduos em geral. Além disso, pode até ser propulsora de um impulso negativo
da potência de agir do ser acorrentado à imposição da indecisão. Retirar-lhe a
liberdade de viver e encerrar sua vida de modo a conferir significado a sua
existência é capaz de retirar todo o impulso de vida que abrilhantou a vida desse
sujeito.
Nesse contexto, o ser privado de sua liberdade na perspectiva existencial
deixa de ser um fim em si mesmo, nos moldes kantianos, e passa a ser um
instrumento da vontade do sistema jurídico e cultural avesso ao debate das
questões relacionadas com o fim da vida. Dentro dessa mesma perspectiva,
poder-se-á, também, considerar uma ofensa à santidade da vida, pois nenhum
sentido faria seu ato final, se contrário a toda construção da identidade de vida,
experiência, arruinando, portanto, o legado daquele em processo de partida.
Na perspectiva de Dwokin (2009), as experiências também podem ser
críticas, isto é, interesses críticos, entendidas como aquelas cuja privação ou
desconsideração e, ainda, aquelas que se deixassem de serem vividas,
retirariam todo o sentido da vida em seu todo. São, portanto, o substrato da forma
de se viver e encarar a vida. São os pontos nevrálgicos e definidores da própria
personalidade e identidade do indivíduo. Considerando isso, o derradeiro
momento tem uma ligação estreita com a percepção experiencial crítica e diz
muito mais respeito a própria vida do que com a morte em si, pois, num súbito,
pode fazer ruir todo significado dado àquela existência. A liberdade existencial,
portanto, é direito fundamental a ser respeitado, constituindo um dos alicerces
da boa vida e da dignidade humana, na vida e no morrer, pois há uma dimensão
cruel na reflexão feita por alguém que, já no fim da vida, ao avaliar seu estado
contemporâneo veja sua vida pregressa se esvaindo de significado.
A reflexão acerca dos interesses críticos dialoga com a perspectiva do
morrer quando analisados sob uma perspectiva de integridade da vida, isto é,
como um momento inexorável da existência de todos seres vivos que, em
conjunto com os interesses experienciais vividos se integram e formam o núcleo
duro da personalidade e da compreensão da vida daquele indivíduo. Dworkin
(2009, p. 290-291) explica essa relação de forma que
187

quando refletimos sobre o que torna boa a vida de uma pessoa, vemo-
nos divididos entre crenças que parecem antagônicas. Por um lado, os
interesses críticos de uma pessoa parecem depender muito de sua
personalidade. O compromisso que alguém assume como
determinada concepção de virtude ou de realização (...) é parte do que
torna a vida organizada em torno desse compromisso correta para a
pessoa em questão. Mas é difícil conciliar essa ideia atraente com uma
convicção ainda mais fundamental que temos – a de que o fato de uma
pessoa pensar que determinada escolha é correta para ela não a torna
correta, e que o processo de decisão, por vezes tão angustiante, é um
processo de julgamento e não apenas de escolha; que tal decisão pode
não estar certa, e que as pessoas podem estar enganadas quanto ao
que é realmente importante na vida. Essa crença é indispensável para
a distinção básica entre interesses críticos e interesses experienciais,
bem como para o desafio e a tragédia que a maioria das pessoas sente.
Na verdade, constitui o fundamento mesmo de nossas vidas morais.
(...) É importante que consideremos uma vida boa e que a
consideremos boa. A integridade desempenha dois papéis nessa
história: é a marca da convicção e do compromisso e não apenas de
uma escolha passada, também reflete investimento, a ideia de que o
valor em uma vida se encontra, em parte, em sua integridade, de modo
que o fato de já se ter estabelecido como um tipo de vida constitui –
ainda que de modo algum concludente – de que deve continuar sendo
esse tipo de vida (grifo do autor).

A integridade da vida, ou em outra perspectiva, o respeito às escolhas e


interesses críticos da pessoa, portanto, é fio condutor da dignidade ao passo que
permite conferir significado cristalizado às vidas escolhidas pelos indivíduos, na
sua autonomia, de assim serem vividas, sentidas e entendidas como boas.
Dentro desse contexto, a ideia de sustentabilidade da vida se insere como
uma forma de construção da identidade pessoal e do reconhecimento do ser da
vida como digna, segundo seus interesses experienciais e críticos, de modo a
não se relativizar as decisões autônomas e livres. A escolha por determinado
tipo de vida, segundo as concepções conjunturais que envolvem tanto a pedra
angular da personalidade individual, de acordo com as experiências sensoriais,
intelectuais e éticas são, também, partes essenciais dessa identidade,
considerando a ideia de integração entre os momentos de vida, e,
indubitavelmente fins de per si da dignificação da vida. Assim, “é possível traçar
um paralelo entre o viver com dignidade e o morrer com a mesma dignidade,
respeitando o projeto de vida de cada pessoa e estruturando institutos para
permitir o pleno desempenho da dignidade humana, ainda que nos breves
momentos finais que antecedem a morte” (ANGELUCI, 2019, p. 59).
A questão dos interesses experienciais encontra exemplo nítido em caso
recente, do enfermeiro francês Vincent Lambert. Ele se tornara tetraplégico e
passou a viver em estado vegetativo após um acidente automobilístico ocorrido
em 2008 e, somente em 2019, após mais de uma década de entraves judiciais,
sua esposa obteve autorização para retirada do seu suporte vital (AYUSO,
2019). Os pais de Lambert eram contra a retirada de suporte vital, vinculados a
ideias religiosas dogmáticas e taxaram a decisão como uma “eutanásia
encoberta” – a eutanásia é considerada crime na França. Do outro lado, a esposa
e alguns familiares do francês buscavam a retirada do suporte vital, pois,
segundo um sobrinho, François Lambert, era o que eles esperavam há anos,
disse: “estávamos prontos há anos, é o racional. Vincent estava em estado
188

vegetativo e não teria querido viver assim. Espero que descanse em paz”
(AYUSO, 2019). O conflito entre os valores experienciais e críticos pode ser
estabelecido no momento em que se confronta a experiência emocional dos
familiares, em especial os pais, com a posição crítica assumida pela esposa e
outros familiares ao buscarem entender que para o enfermeiro, aquele estágio
vegetativo desproveria o significado que durante o exercício pleno da sua
autonomia e liberdade conferiu a sua vida.
A questão experiencial encontra forte justificação no utilitarismo
desenvolvido por Jeremy Bentham (SANDEL, 2016, p. 43-75). Segundo essa
corrente filosófica, as ações seriam eticamente corretas e valoradas
positivamente se promovessem a maior felicidade possível em detrimento do
menor sofrimento por consequência dessas escolhas e ações. A primeiro
momento, por se relacionar ao prazer sensorial, a ideia utilitarista conduziria a
uma crítica favorável aos argumentos experienciais nas decisões do fim da vida,
pois autorizariam a prorrogação de uma vida por aqueles que a consideram boa
e digna de ser vivida até o último suspiro possível, proporcionando novas
experiencias ou a continuidade de conexão com o mundo sensorial.
Ao revés, também autorizaria a decisão pela morte tida como digna, ao
fazer cessar o sofrimento físico ou psicológico daquele que considera violadora
da sua identidade viver dependente de aparelhos ou do cuidado de terceiros no
fim de suas vidas, pois, segundo Dworkin (2009), o impacto causado pela
escolha existencial não diz respeito, exclusivamente àqueles responsáveis pelos
cuidados necessários, mas sim impacta a própria dignidade da pessoa. O autor,
prosseguindo a crítica ao utilitarismo como parâmetro para escolhas existenciais
faz referência ao significado da vida e de sua integridade, de modo que no
momento crítico do ocaso de suas vidas o arrependimento muitas vezes não diz
respeito a ter tido uma vida mais intensa e mergulhada em prazeres, mas sim
que tais prazeres não teriam a importância que lhes parecia ter. Nesse ponto, os
interesses críticos são essenciais para a autonomia e a liberdade, consagrando
a integridade do significado da vida do indivíduo e arremata

as pessoas consideram importante não apenas que sua vida contenha


uma variedade de experiências certas, conquistas e relações, mas que
tenha uma estrutura que expresse uma escolha coerente entre essas
experiências – para algumas, que demonstre compromisso inequívoco
e autodefinidor com uma concepção de caráter ou de realização que a
vida como um todo, vista como uma narrativa integral e criativa, ilustre
e expresse. Sem dúvida, esse ideal de integridade não define, por si
só, uma forma de vida: pressupõe convicções substantivas
(DWORKIN, 2009, p. 290).

O respeito às escolhas existenciais e da dignidade de se escolher por um


estilo de vida, com todas as etapas coerentes a esse processo de construção
diuturno do eu e da identificação do ser com o mundo integra, desde a
consciência até a morte, perpassa pela solidificação da autonomia privada na
sociedade como um exercício de alteridade e liberdade. A sustentabilidade da
vida aqui definida busca, portanto, o efetivo direito à vida digna – e não o dever
de viver de qualquer forma, a qualquer custo –, calcada na ideia de equilíbrio
que a própria noção de sustentabilidade carrega. Esse equilíbrio deve ser
entendido no exercício quotidiano da alteridade e do respeito às escolhas de
cada indivíduo, como uma vida complexa, uma identidade e um fim em si
mesmos.
189

As concepções acerca da vida e da morte são construídas internamente


no sujeito ativo, nos espaços intersubjetivos e de relacionamento familiares,
amigos e sociedade, mas também com o mundo, de forma que o conceito de
vida digna e, portanto, boa de ser vivida, é formado nesse fluxo experiencial e
crítico contínuo entre a vida e a morte. Nesse sentido, assevera Ana Carolina
Brochado Teixeira (2018, p. 99-102) que

o ser humano só se faz digno se tratado com igualdade pela sociedade


e por seus pares, ou seja, sem discriminação por suas escolhas, sejam
elas quais forem, sendo-lhe resguardado o direito de ser diferente; a
pessoa só constrói sua autonomia na interação com o outro, na troca
de experiências, no processo dialético do seu amadurecimento e
aprendizado de vida, pois, afinal, são nesses espaços de
intersubjetividade que ela edifica sua personalidade. Assim entende o
legislador constituinte.
(...)
Os espaços de intersubjetividade, por isso, baseiam-se na perspectiva
relacional, tendo em vista que a pessoa constrói, no decorrer da vida,
sua identidade e personalidade, sendo produto deste feixe de relações
com os outros. Enfim, ela vai se edificando em um processo de
autoconhecimento e de interação social. É a partir do relacionamento
com o outro que ela se molda e, verdadeiramente, constitui-se em
todas as suas dimensões. Por conseguinte, edifica, também, a sua
dignidade de forma genuína, pois, embora esta seja concebida de
forma singular, visto que compõe a humanidade de cada ser, ela só se
forma plenamente através do olhar do outro. Por isso, afirmamos que
o homem também é visto como um ‘ser processual’, ou seja, muda a
partir das experiências que vivência, construindo a si mesmo
constantemente, informado pela relação com os demais, e pelas
escolhas que faz durante a vida.

Portanto, a liberdade de exercício da autonomia existencial, com seu


consequente respeito, e a integridade do sentido da vida são a coluna vertebral
da dignidade da vida humana no aspecto subjetivo.
Por derradeiro, neste momento, resta salientar que não se pretende
instalar uma cultura da morte, como ressaltou a Gazeta do Povo (GAZETA DO
POVO, 2019) em editorial publicado sobre a morte de Vincent Lambert, mas sim
a defesa da autonomia existencial em sua plenitude e da liberdade dignificantes
da vida de cada ser singularmente considerado. O referido editorial qualificou o
processo de morte e o reconhecimento da autonomia crítica do francês como um
verdadeiro assassinato, excluindo o conceito de morte digna ao afirmar que
“ainda que cometida da forma mais asséptica possível, dentro de um hospital,
ainda que realizada por vontade do próprio paciente, a eutanásia continua sendo
a eliminação deliberada de uma vida por não ser considerada tão valiosa quanto
a das outras pessoas” (GAZETA DO POVO, 2019).
Entretanto, ante os interesses críticos e experienciais do paciente,
Dworkin (2009, p. 301) pondera que

O fato de estar ou não entre os interesses fundamentais de uma


pessoa ter um final de vida de um jeito ou de outro depende de tantas
outras coisas que lhes são essenciais – a forma e o caráter de sua
vida, seu senso de integridade e seus interesses críticos – que não se
pode esperar que uma decisão coletiva uniforme sirva a todos da
mesma maneira. É assim que alegamos razões de beneficência e
autonomia em nome das quais o Estado não deve impor uma
190

concepção geral e única à guisa de lei soberana, mas deve, antes,


estimular as pessoas a tomar as melhores providências possíveis
tendo em vista o seu futuro.

E, para além, defende-se a dignidade do exercício e do respeito à sua


autonomia por meio do direito de cada um decidir o rumo da sua vida de acordo
com seus princípios, portanto, as escolhas existenciais críticas estão longe de
serem um culto a morte, se aproximando muito mais da vida íntegra, coerente e,
em última análise, a forma mais árdua e difícil da dignidade.

CONCLUSÃO

A perspectiva de sustentabilidade da existência conjuga como pedras


fundamentais a autonomia existencial plena e a liberdade de escolhas como
condutoras de uma vida digna e íntegra, desde o seu início até seu momento
final. As decisões vitais, acerca do viver e do perecer constituem elementos
indissociáveis do reconhecimento do eu e da construção da personalidade do
indivíduo, em conjunto com a sua percepção sobre a realidade em consonância
com seus valores éticos.
Permitir decisões sólidas em relação as providências futuras aplicáveis ao
processo de morrer são um modo de respeitar a singularidade de cada ser
humano em razão das suas convicções e compreensão da vida. Como
ressaltado, o perecer tem uma relação muito próxima com a própria vida pretérita
e, não exclusivamente com a morte, de forma que retirar a autonomia existencial
e tomar medidas contrárias as convicções éticas, filosóficas e críticas daquele
indivíduo pode retirar o significado de uma vida toda vivida com convicção, nos
momentos dos suspiros finais, portanto, irreversível.
Em suma, deve-se buscar o respeito pela singularidade de cada ser na
sua liberdade de autodeterminação em detrimento de decisões padronizadas por
incidência de uma concepção generalizante do ordenamento jurídico.

REFERÊNCIAS

ANGELUCI, Cleber Affonso. Considerações sobre o existir: as diretivas


antecipadas de vontade e a morte digna. Revista Brasileira de Direito Civil.
Belo Horizonte. V. 21, p. 39-59, jul./set., 2019.

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Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/11/actualidad/1562829904_975554.ht
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Campinas, SP: Papirus 7 Mares, 2016 – (Coleção Papirus Debates).

DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades


individuais. Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão da tradução Silvana
Vieira. – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
191

GAZETA DO POVO. A eutanásia de Vincent Lambert e a “cultura da morte”.


Opinião. Editorial de 10 de julho de 2019. Disponível em: <
https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/a-eutanasia-de-vincent-
lambert-e-a-cultura-da-morte/>. Acesso em 18. set. 2019.

SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa


Matias e Maria Alice Máximo. – 20. ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2016.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia existencial. Revista Brasileira


de Direito Civil - RBDCilvil, Belo Horizonte, v. 16, p. 75-104, abr./jun. 2018.
192

Grupo de Trabalho:

DIREITO CONSTITUCIONAL I
Trabalhos publicados:

A DEMOCRACIA BRASILEIRA EM CRISE

A DEMOCRACIA EM PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO E O ATIVISMO


JUDICIAL

A NECESSIDADE DE IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE


PREVENÇÃO DA AIDS PARA PESSOAS IDOSAS NO ESTADO DE ALAGOAS,
BRASIL

A PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA ANTE À PRÁTICA CULTURAL DO


INFANTICÍDIO INDÍGENA

A PROTEÇÃO DO EXERCÍCIO DA LIBERDADE RELIGIOSA: A POLÊMICA


ALÉM DO SACRÍFICO

CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO: CRISE E PERESPECTIVAS.

DEMOCRACIA EM CRISE? REFLEXÕES SOBRE O PERIGO DE COLAPSO


DO REGIME DEMOCRÁTICO

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: AINDA A QUESTÃO DA


SOLIDARIEDADE ENTRE OS ENTES FEDERATIVOS

JULGAMENTO DE RECURSOS REPETITIVOS, PRECEDENTES E


“ABSTRATIVIZAÇÃO” DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
193

A DEMOCRACIA BRASILEIRA EM CRISE


BRAZILIAN DEMOCRACY IN CRISIS

Filipe Ferreira da Silva


Orientador(a): Luiz Rodolfo Ararigbóia Souza Dantas

Resumo: A democracia é o sistema político onde o poder é exercido através do


sufrágio universal, ou seja, um regime de governo representativo “do povo”, “pelo
povo” e “para o povo”. Os partidos políticos, como fenômeno político e social,
surgem como um meio para a concretização da democracia. No entanto não é
segredo que já há algum tempo tem perdido vigor a ideia de que a democracia
consiste na simples possibilidade de escolha livre de pessoas para integrar
órgãos representativos e que, por intermédio deste processo eleitoral, estes
escolhidos seriam a expressão da vontade, senão da unanimidade, ao menos
da maioria do povo, seriam a expressão da soberania popular. E nesse contexto
pretendemos neste artigo demostrar alguns dos fatores que levaram a atual
situação de crise que vive a democracia brasileira.
Palavras-chave: Democracia. Partidos políticos. Patologias o sistema partidário
brasileiro.

Abstract: Democracy is the political system where power is exercised through


universal suffrage, that is, a regime of government representative of "the people",
"for the people" and "for the people." Political parties, as a political and social
phenomenon, emerge as a means for the realization of democracy. It is no secret,
however, that for some time now the idea that democracy has been simply the
possibility of free choice of persons to be part of representative bodies has been
lost, and that through this electoral process those chosen would be the
expression of will, if not unanimity, at least of the majority of the people, would be
the expression of popular sovereignty. And in this context we intend in this article
to demonstrate some of the factors that led to the current crisis situation in
Brazilian democracy.
Keywords: Democracy. Political parties. Pathologies os the Brazilian party
system.

INTRODUÇÃO

A democracia, é tema de relevante e hodierno debate na agenda do


constitucionalismo contemporâneo, sobretudo no que diz respeito aos direitos
fundamentais constantes do texto constitucional de 1988, pois apresenta
questões de grande expressão nacional, a que podemos citar: ideologias e
programas de governo; moldagem do discurso político em busca da identidade
com o eleitorado; fenômeno da homogeneização do senário político;
multiplicação dos partidos políticos e a fidelidade partidária.
Deste modo cumpre-nos ressaltar que alguns destes diretos fundamentais
apesar de sua salutar relevância constitucional, sofre ao longo dos tempos
influências de um fenômeno político e social que surge nos séculos XVII e XVIII,
contemporânea, portanto, ao surgimento do regime democrático representativo,
que intitulamos de partidos políticos.
Nesse sentido segundo os ensinamentos do professor José Afonso da
Silva: “partido político é uma forma de agremiação de um grupo social que se
194

propõe a organizar, coordenar e instrumentar a vontade popular com o fim de


assumir o poder para realizar seu programa de governo”.
Para Hans Kelsen os partidos são: “formações que agrupam homens de
mesma opinião para garantir uma influência verdadeira sobre a gestão dos
negócios políticos”.
Desta forma temos que os partidos políticos, como fenômeno político e
social, possuem como função precípua, ser um meio para a concretização da
democracia.

CONCEITO

A palavra democracia tem origem no grego demokratía que é composta


por demos (povo) e kratos (poder). Neste sistema político, o poder é exercido
pelo povo através do sufrágio universal.
É, portanto, um regime de governo representativo, ou seja, “do povo”,
“pelo povo” e “para o povo”.
A esse respeito Aristóteles consubstancia a ideia de democracia como
uma forma corrupta da politeia, porque a denominava de “governo dos pobres”
e essa mudança de foco resulta da interferência de que provavelmente os muitos
não são os ricos. O demos de Aristóteles não era constituído por todas as
pessoas, mas por uma parte, os pobres e, mesmo que os ricos constituíssem a
maioria ainda assim geraria uma oligarquia, ao passo que um governo dos
pobres, mesmo que fossem poucos seria uma democracia.

PARTIDOS POLÍTICOS NA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

A idéia de governo representativo que hoje prevalece nos países


democráticos e matriz ocidental e de inspiração nitidamente liberal, a
representação política foi a solução encontrada por teóricos de envergadura
como Sieyès, Locke, Benjamim Constant, Burke, Stuart Mill, Montesquieu,
Madison e tantos outros para justificar a existência dos governos exercidos por
terceiros que surgiam a partir de então nas nações em que o governo direto por
todos os cidadãos, ressalte-se, sem restrições de gênero, classe social, cor,
origem ou grau de instrução, não se mostrava possível.
Isso porque além de a formação de comunidades políticas
exponencialmente maiores que as antigas polis gregas já não permitia a reunião
de todos os cidadãos em praça pública para deliberar sobre os assuntos comuns,
também não se mostrava possível a participação política ampla que hoje as
sociedades conhecem, haja vista o período histórico situado, qual seja, séculos
XVIII e XIX.
Deste modo, surgem como alternativa à racionalização do processo de
governo e de identificação entre eleitor e eleito o partido político. Entretanto, para
se firmar como alternativa válida, o partido deve ser capaz de se depurar de seus
vícios e ostentar uma estrutura interna democrática e livre de corrupção. Deve
ainda ser financiado nos termos da lei, respeitar os demais partidos e os direitos
fundamentais do homem, além de atuar permanentemente em prol da formação
política do povo, com fundamento em ideais democráticos e buscando o poder
pelo convencimento e pelo voto e nunca pela força. Trata-se do “partido
pasteurizado” a que alude Manoel Gonçalves Ferreira Filho. (Sete vezes
democracia... op. cit., pp. 48 – 49).
195

1. PRINCIPAIS PATOLOGIAS DO SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO

De fato, não é segredo que já há algum tempo tem perdido vigor a ideia
de que a democracia consiste na simples possibilidade de escolha livre de
pessoas para integrar órgãos representativos e que, por intermédio deste
processo eleitoral, estes escolhidos seriam a expressão da vontade, senão da
unanimidade, ao menos da maioria do povo; seriam a expressão da soberania
popular.
Não obstante o artigo inaugural da constituição federal de 1988, dispõe
ser o Brasil um Estado Democrático de Direito por meio do qual todo poder
emana do povo, que o exerce diretamente, nos termos do que dispõe, e
indiretamente, por seus representantes. A regra, portanto, ainda é a
representação; a participação direta a exceção complementar.
De qualquer forma, pode-se dizer que esta lógica de representação,
especialmente nos órgãos colegiados, praticamente implorou pelo surgimento
ou pelo fortalecimento das estruturas partidárias. Agrupar os representantes
escolhidos pelo eleitorado em blocos mais ou menos hierarquizados e coesos
talvez seja a mais eficiente forma conhecida de racionalizar os trabalhos em
órgãos desta natureza. Ainda mais importante que isso, o alinhamento dos
parlamentares em blocos também se consolidou como o meio mais racional de
organizar os governos nos regimes parlamentaristas, embora esta lógica não
possa ser transportada sem adaptações para os sistemas presidenciais.
Com esta perspectiva, os próprios processos eleitorais passaram também
a ser praticamente monopolizados pelos partidos.

1.1. IDEOLOGIAS VERSUS PROGRAMAS DE GOVERNO

Max Weber, já reconhecia que os programas objetivos dos partidos, já à


sua época, costumavam ser “não raro apenas um meio de recrutar novos
membros”.
James Bryce, relatando a necessidade de adaptação dos partidos
americanos de então às realidades e problemas de seu tempo, dizia:
“desaparecida a vida, o corpo torna-se inútil, exala mau cheiro, contamina.
Deve ser descartado ou enterrado. O que é a vida para o organismo, são os
princípios para o partido”.
Todavia, é necessário analisar tais alegações com alguma dose de
cautela. Os partidos dotados de alta carga doutrinária ou ideológica também
não estão isentos de críticas ou reservas.
Paulo Bonavides, reproduzindo advertência anteriormente feita por Kaufmann,
afirma – com razão – que a ascensão de Hitler e do NSDAP deu-se dentro das
regras do jogo político vigente à época, sob os auspícios da Constituição de
Weimar, mediante a apresentação apaixonada de um discurso carregado de
alta carga da pior ideologia que, não obstante, foi capaz de convencer parcela
significativa da população alemã da época. É bem verdade que o paradigma
empregado é dos mais extremos conhecidos, mas, com suporte nele, o aludido
autor de Munique identifica nos partidos ideológicos uma forte vocação para,
embalados por uma tendência dogmática, forçar a substituição, pela sua
própria, das (sempre presentes) diferentes formas com que parcelas da
sociedade enxergam o mundo que as cerca. Segundo o referido autor:
“assemelham-se mais a seitas e igrejas do que, em verdade, a partidos
196

políticos.
São dotados de irresistível impulso para a intolerância. Não perdoam os
seus inimigos nem com eles se reconciliam, considerando-os hereges,
merecedores de implacável combate; levam a luta política para o terreno das
paixões mais violentas e os combates partidários tomam para eles o caráter de
guerras de religião. A mudança de partido equivale à mudança de profissão
religiosa” 151.
Por estas razões, cada vez mais a carga ideológica que embalava os
partidos de outrora e que serviam para recrutar seus membros e sensibilizar os
eleitores, vem sendo progressivamente substituída pela ideia de programa de
governo, por meio do qual a legenda apresenta ao público uma série de
propostas e projetos que pretende executar no caso de vitória. É claro que a
formulação destes projetos não está livre de todo e qualquer conteúdo
ideológico. Entretanto, o que mudou é que, cada vez mais, os partidos passam
a ser julgados não apenas pelas idéias que defendem, mas principalmente pela
sua capacidade de converter em ações efetivas aquelas propostas escolhidas
pelos cidadãos durante o processo de consulta eleitoral.

1.2. O ESTREITAMENTO DAS MARGENS DE DIFERENCIAÇÃO ENTRE OS


PROGRAMAS

De todo modo, o confronto direita versus esquerda tem gerado alguns


problemas de identificação dos partidos por parte dos eleitores.
No Brasil, o problema é mais sensível, porque está gerando um
congestionamento em direção ao centro.
Do lado esquerdo, como dito, o fim do regime soviético pôs fim ao ideal
romântico de igualdade entre homens a partir da socialização dos meios de
produção.
Isto significou que os partidos orientados neste sentido até então foram
obrigados a guinar para o centro para não cair na escuridão do anacronismo e
do esquecimento. Do lado direito, temos que as feridas deixadas pelo último
regime militar ainda não cicatrizaram.
Daí que associar-se diretamente a estas lembranças equivaleria quase
a um suicídio político. O resultado é que também os partidos conservadores
foram forçados a dar alguns passos em direção ao centro. Não é preciso gastar
muitas linhas para demonstrar o quão confuso e poluído pode se tornar o
quadro partidário, especialmente em um sistema multipartidário como o
brasileiro, quando diversas legendas importantes, ao mesmo tempo, caminham
para a mesma direção.
Some-se a isso um fato muito claro e simples: no fim das contas, os
anseios de um espectro considerável da sociedade são muito semelhantes: é
nítido que uma maioria considerável da população deseja que serviços públicos
tais como saúde, educação, transporte coletivo, etc., sejam prestados de forma
eficiente e com o menor custo possível.
A diferença, cada vez mais, tem consistido na forma com que a proposta
é veiculada e na capacidade que os partidos e candidatos demonstrarem para
conseguir captar os anseios mais urgentes do eleitorado.

1.3. OS PARTIDOS CATCH-ALL


197

Por mais numerosos que sejam, os partidos políticos não perdem sua
natureza de predadores eleitorais: seu objetivo específico é o sucesso nas
urnas. Em um regime democrático, este sucesso sempre advém do
convencimento do eleitorado.
Acontece, todavia, que as campanhas eleitorais – e mesmo a maioria
das gestões que delas emergem - preferem passar ao largo destas discussões
para evitar contrariar setores importantes da sociedade que, no futuro, podem
assegurar importantes votos a seus candidatos. É sua natureza de predador
universal manifestando- se de novo. Surge daí, portanto, a conclusão que nos
informa que uma coisa é a homogeneidade de partidos, outra coisa muito
diferente é a proximidade das campanhas.
Já dizia Michels que “o partido modern é uma organização de combate
no sentido político do termo e, como tal, deve ajustar-se às leis da tática” 152.
“O exame da organização evidencia a fragilidade dos partidos catch-all
no Brasil.
Eles são máquinas eleitorais: controlam pouco os políticos, são mais ou
menos disciplinados; desempenham um papel secundário nas campanhas; tem
relativamente pouco controle sobre as filiações, sobre o que os políticos fazem
e sobre quem é eleito.
Os partidos brasileiros caracterizam-se por organizações frouxas, que
permitem que os partidos atuem com desconsideração de regras e
compromissos. Falta-lhes coesão; muitas vezes são as disputas locais entre
‘caciques’, e não as grandes questões políticas ou ideológicas, que determinam
a filiação a um Partido”

1.4. FENÔMENO DA HOMOGENEIZAÇÃO NO CENÁRIO POLÍTICO

O grande problema de todo este cenário de homogeneização partidária


traçado é que a vontade popular deixa de ser a grande força motriz da ação
política transformadora da realidade social e passa a ser um mero instrumento
empregado pelos atores políticos para alcançarem seus próprios objetivos.
É verdade que estes objetivos não são necessariamente individuais,
egoísticos ou mesmo ilegais.
Em muitos casos, os agentes do poder sinceramente acreditam que
manipular o eleitorado em favor de suas próprias convicções acerca do que
possa ser melhor para o povo é um pequeno preço que o regime democrático
deve pagar em favor dos resultados materiais a serem alcançados assim que
passarem a controlar a máquina administrativa. É desnecessário dizer,
entretanto, tratar-se esta de conduta desviada que não pode ser considerada
como parâmetro ideal para a elaboração de um modelo político baseado na
ampla e livre participação popular.
Um sistema de partidos pouco distintos entre si limita a eficiência do
processo dialético no qual se transforma um regime sadio de alternância no
poder. Aos cidadãos, nesta paisagem, não são oferecidas alternativas eleitorais
reais: apenas mais do mesmo.

1.5. A FIDELIDADE PARTIDÁRIA

No Brasil, por força do disposto no art. 14, 3°, V da constituição federal,


dentre outros requisitos cumulativos previstos no referido artigo, prevê como
198

condição de elegibilidade que o cidadão esteja filiado a partido político, ou seja,


a pessoa somente poderá concorrer a um cargo eletivo se estiver filiada.
Posto isso, uma vez eleito e diplomado, se o titular do mandato eletivo,
sem justa causa, decidir sair do partido político pelo qual foi eleito, ele poderá
perder o cargo que ocupa a depender do sistema eleitoral (proporcional ou
majoritário) ao qual se submente referido cargo.
Desta forma, o mandato parlamentar conquistado no sistema eleitoral
proporcional (deputados federais, deputados estaduais e vereadores) pertence
ao partido político, pois neste sistema o número de votos válidos ao partido
político, é muito importante, uma vez que ao votar na legenda, faz-se a escolha
por partido, conforme se extrai das lições do art. 109, do código eleitoral (Lei
4737/65) que explica como se chega ao número de votos válidos.
Assim, com exceção das hipóteses de justa causa, o parlamentar eleito
que mudar de partido político, responderá a processo na Justiça Eleitoral que
poderá resultar na perda do seu mandato. O assunto está disciplinado na
Resolução n.º 22.610/2007 do TSE, que elenca, inclusive, as hipóteses
consideradas como “justa causa”, quais sejam: incorporação ou fusão do
partido; criação de novo partido; mudança substancial ou desvio reiterado do
programa partidário; e grave discriminação pessoal.
No entanto, com a lei 13.165/15, as situações de justa causa para a
desfiliação partidária passam a ser apenas três, conforme o parágrafo único do
artigo 22-A: mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;
grave discriminação política pessoal; e mudança de partido efetuada durante o
período de 30 dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei (seis meses)
para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandato
vigente.
A nova hipótese introduzida pela Reforma Eleitoral, a chamada “hipótese
da janela”, não prevê um fato que gere justa causa para a saída do partido, mas
estabelece um momento no qual o candidato poderá mudar de agremiação sem
sofrer consequências no exercício do cargo para o qual foi eleito. Henrique
Neves explica que, em uma primeira leitura do novo dispositivo, no caso dos
deputados, por exemplo, a oportunidade de mudança do partido só poderá ser
exercida quando tiverem cumprido cerca de três anos e três meses do seu
mandato, ou seja, nos 30 dias que antecedem o início do mês de abril (seis
meses antes do pleito).
De outro modo a perda do mandato em razão de mudança de partido
não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário, sob pena de
violação da soberania popular. No sistema majoritário, o candidato escolhido é
aquele que obteve mais votos, não importando o quociente eleitoral nem o
quociente partidário.
Nos pleitos dessa natureza, os eleitores votam no candidato e não no
seu partido político. Desse modo, no sistema majoritário, a imposição da perda
do mandato por infidelidade partidária contraria à soberania popular.

CONCLUSÃO

O que observamos é que existe um descontentamento generalizado com


o funcionamento da democracia no atual modelo (representativa ou semidireta),
pois os políticos, partidos e por consequência os governos têm demostrado em
suas ações ou omissões um verdadeiro abandono do interesse público, um
199

esquecimento do verdadeiro significado da “coisa pública”, da “administração


pública”.
A democracia foi idealizada como um regime de governo representativo,
ou seja, “do povo”, “pelo povo” e “para o povo” e os partidos políticos, por sua
vez, como fenômeno político e social, possuem como função precípua, ser um
meio para a concretização da democracia.
Não obstante, por possuir os partidos políticos o monopólio do processo
eleitoral, haja vista, não ser possível sequer a candidatura a cargo eletivo sem a
filiação partidária, o enfraquecimento e o perecimento da democracia ao menos
no que tange ao modelo brasileiro hoje vigente (democracia semidireta), se
mostra evidente.
Os partidos políticos em sua maioria não são capazes de depurar-se de
seus vícios, pois a corrupção tem se mostrado como algo enraizado em suas
bases, haja vista as inúmeras condenações criminais de que temos notícia e os
escândalos de corrupção a que o brasileiro lamentavelmente está habituado.
Internamente nossos partidos políticos não ostentam uma estrutura interna
democrática e livre, pois o vigora é o interesse pessoal.

REFERÊNCIAS

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2002

ARANTES, Rogério. Judiciário e política no Brasil. São Paulo: Sumaré/EDUC,


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CAGGIANO, Monica Herman S. A reeleição: tratamento constitucional (breves


considerações). Preleções Acadêmicas, CEPS - Centro de Estudos Políticos e
Sociais de São Paulo, Caderno 1, 1997.

__________________. Corrupção e Financiamento das Campanhas Eleitorais.


In: ZILVETI, Fernando Aurélio, LOPES, Sílvia. O Regime Democrático e a
Questão da Corrupção Política. São Paulo: Atlas, 2004.

___________________________. Democracia x constitucionalismo: um navio


à deriva? Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e documentos de
trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São
Paulo, n. 1, 2011.

__________________. Oposição na Política. São Paulo: Angelotti, 1995.

FIGUEIREDO, Marcelo. Direito Constitucional: estudos interdisciplinares sobre


federalismo, democracia e Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum,
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COUTO, Cláudio. “Agenda constituinte e a difícil governabilidade”, Lua Nova,


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200

HUNTINGTON, Samuel P. A terceira onda: a democratização no final do século


XX. São Paulo: Ática, 1994.

IDEA – International Institute for Democracy and Electoral Assistance.


“Electoral Management Design. Handbook Series. Suiça, 2007.
201

A DEMOCRACIA EM PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO E O ATIVISMO


JUDICIAL
DEMOCRACY IN THE PROCESS OF CONSOLIDATION AND JUDICIAL
ACTIVISM

Ludmila de Paula Castro Silva


Orientador(a): Vladmir Oliveira da Silveira

Resumo: O presente trabalho discorre sobre as decorrências do ativismo judicial


no processo de amadurecimento da democracia, abordando a confiança
depositada pela sociedade no Poder Judiciário para que funcione como condutor
ao êxito das promessas frustradas pelo mundo da política. Aborda-se a rota de
tensão lógica entre a ideia de constitucionalismo e de democracia, bem como a
necessidade de balanceamento entre a separação de poderes e a interferência
do Poder Judiciário no processo decisório na seara política, fazendo a análise
entre ativismo judicial e violação dos preceitos democráticos e da segurança
jurídica. O texto abrange, ainda, o perigoso ciclo de infantilização da sociedade
que se escora na potência dirigente da norma constitucional.
Palavras-chave: Democracia. Ativismo judicial. Poder Judiciário.

Abstract: This paper discusses the consequences of judicial activism in the


process of maturing democracy, addressing the trust placed by society in the
judiciary to act as a driver for the success of promises frustrated by the political
world. The route of logical tension between the idea of constitutionalism and
democracy is approached, as well as the need to balance the separation of
powers and the interference of the Judiciary in the decision-making process in
the political field, making the analysis between judicial activism and violation of
democratic precepts and legal certainty. The text also covers the dangerous cycle
of infantilization of society that is anchored in the governing power of the
constitutional norm.
Keywords: Democracy. Judicial activism. Judicial Power.

INTRODUÇÃO

O ativismo judicial tem sido entendido como um fenômeno de


remodelação no papel clássico da função jurisdicional, a pretexto de dar
efetividade às normas constitucionais. Convém observar que há variantes de
significante da expressão ativismo judicial1, ora sendo abordada para designar
intervenções legítimas do Poder Judiciário em sede de efetivação de políticas
públicas, ora remetendo, a priori, a uma indevida interferência do Poder
Judiciário nas competências do Poder Legislativo, ao criar uma norma não
contemplada no ordenamento jurídico e, consequentemente, usurpar a função
legislativa. Pode convergir, ainda, para a indevida intromissão na esfera
discricionária do Poder Executivo no cumprimento de seus deveres.
Independente da perspectiva de análise, por detrás de seu estudo, as
ciências jurídicas têm oscilado, às claras, entre um grande entusiasmo,
notadamente em campos de inércia ou ineficiência das instâncias político-

1 Sinteticamente conceituada por Elival Pereira Ramos como o “desrespeito aos limites
normativos substanciais da função jurisdicional”. In: Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2.
ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 141.
202

deliberativas, e severa desconfiança, sobretudo quando os órgãos estatais de


jurisdição, a pretexto de implementar normas constitucionais relegadas à
irrelevância política, tomam as rédeas do processo de implementação dos
direitos dos cidadãos concretos num cenário de tensão com as demais funções
típicas da soberania estatal.
Esse processo tem sido identificado como um resultado natural do
denominado constitucionalismo democrático. A ideia de constitucionalismo está
em rota de tensão lógica com a de democracia2; afinal, ele é essencialmente e
em si mesmo um limitador do poder democrático3, pois, se a soberania popular
assegura o autogoverno do povo de acordo com as aspirações e os ideais de
uma dada geração, a Constituição impede que as maiorias eventuais desvirtuem
o projeto político que é suprageneracional4 consagrado pelo poder constituinte
originário.
Essas tensões tendem a ser suavizadas – ao menos pretensamente – no
Estado contemporâneo a partir do momento em que, ao lado de normas
estruturantes do poder e dos mecanismos que asseguram seu reto exercício,
amplos catálogos de direitos (e não apenas os direitos típicos da cidadania sob
uma leitura antiga, como os direitos civis e políticos) dotados de
jusfundamentalidade5 começaram a ser introduzidos nos textos constitucionais,

2 “Anteriormente à discussão sobre o paradoxo entre democracia e constitucionalismo há outra


sobre soberania e poder constituinte. Isso porque se parte da premissa moderna de que a
soberania é popular e, assim, cabe ao povo a tarefa de então se autolegislar, fundando, dessa
maneira, a ordem normativa que lhe regerá, qual seja, a Constituição. Daí a necessidade de se
preservar a Constituição, como a primeira ordem que se autoimpõe como manifestação da
soberania popular e do poder constituinte, vinculando, assim, ambos. Por isso a relação entre
constitucionalismo e democracia remete à que se dá entre poder constituinte e soberania. A ideia
de poder constituinte como poder onipotente, fruto da soberania popular, que surge do nada e
inaugura uma nova ordem é encarada por Antonio Negri como um poder que, paradoxalmente,
se autolimita a criar a Constituição. Dessa forma, para Negri, o constitucionalismo representa
justamente a domesticação desse poder soberano, popular, expansivo”. GODOY, Miguel
Gualano. Constitucionalismo e democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e
Roberto Gargarella. São Paulo, Saraiva, 2012, p. 27.
3 Faz-se alusão neste ponto à conhecida alegoria do marinheiro amarrado ao mastro do navio

que pela primeira vez foi exposta por John Elster, relembrando passagem da Odisseia, de
Homero: amarrar-se ao mastro era a recomendação de Ulisses a que os seus subordinados não
sucumbissem ao canto das sereias e viessem, portanto, a se afogar por tão sediciosos encantos.
Assim sendo, as constituições democráticas atuariam como os mecanismos de autolimitação, ou
precomprometimento, adotados pela soberania popular para se proteger de suas paixões e
fraquezas. (ELSTER, John. Precommitment and Constitutionalism, Columbia University, 1995
apud VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça. In: Lua Nova, nº 42, 1997,
p. 53-54.)
4 A ideia de pacto entre gerações não parece ter alcançado a devida atenção no direito

constitucional, em particular na dogmática, ainda muito entusiasmada com a necessidade de


concretizar direitos e com os discursos correspondentes, como o tem, historicamente, na filosofia
política.
5 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, constituída em Estado Democrático

de Direito (art. 1º), estabelece, como fundamentos do Estado, a cidadania e a dignidade da


pessoa humana (art. 1º, II e III); como objetivos fundamentais desse mesmo Estado, a construção
de uma sociedade justa e a erradicação da pobreza e da desigualdade social (art. 3º, I e III). Esta
abordagem sugestiona um espaço óbvio de conformação dos poderes constituídos. Nada
obstante, direitos sociais são informados por tal tessitura axiológica; devidamente
“constitucionalizados”, a maioria da doutrina pátria endossa a noção de que se podem
denominar, então, “direitos fundamentais”, para além daqueles que são trazidos no art. 5º.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
203

de tal modo que a irresponsabilidade e o descompromisso no exercício do poder


estejam razoavelmente constritos.
Nada obstante, o modelo de constituições analíticas, animado pela visão
dirigente que inspirou todo o constitucionalismo posterior à Segunda Guerra
Mundial, e em particular nas vivências de Portugal de 1976 e Espanha de 1978,
ambos de forte influência sobre o Constituinte pátrio de 1988, de certo modo
açodou a crônica falta de correspondência entre o mundo qual se almejava
conformar e, paradoxalmente, o mundo realizável por trás das promessas
normatizadas6.
Interessante e contundente descrição do fenômeno é dada por Manoel
Gonçalves Ferreira Filho:

A Constituição dirigente, modelo que tanto fascínio ganhou no Brasil


dos anos oitenta, é duvidoso que se tenha concretizado em algum
Estado. Sem dúvida, marcou tal modelo a Constituição portuguesa de
1976, mas de permeio com o estilo garantístico e conformador,
conforme salienta Jorge Miranda [...]. por outro lado, os planos e
programas propostos foram de tal sorte que é um exagero desmedido
ver o governo dirigido impositivamente por eles. Não passam de
promessas, no estilo tradicional das normas programáticas clássicas. 7

Este abismo entre o ôntico e o deôntico terminou por alimentar de certo


modo a expectativa de que ao Poder Judiciário coubesse suplementar as
deficiências do mundo da política, assegurando o cumprimento das promessas
constitucionais por seus braços próprios. Por óbvio, alguns problemas teóricos
sobrevêm a partir de tal concepção, inclusive riscos democráticos, sobre os quais
comentar-se-á a seguir.

A DEMOCRACIA EM PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO E O ATIVISMO


JUDICIAL

Relevante observar que quando a atuação jurisdicional não consegue se


fiar numa autocontenção razoável e termina avançando indiscriminadamente
nos campos próprios da política, vivenciados sobretudo nos meandros dos
Poderes Executivo e Legislativo 8, sob o pretexto de que se devam proteger os
planos rígidos da Constituição da ação ou da inércia de maiorias eventuais, há
possibilidade de que isso gere o sufocamento das possibilidades de escolha pelo
povo de seus próprios rumos. Pode-se influenciar, inclusive, o modo de caminhar

Constitucional. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 3. ed (rev., atual. e ampl), 2014, pp 272-
275.
6 Destaque-se aqui a experiência do “constitucionalismo dirigente” na realidade espanhola, com

reflexão feita por Luis Aguiar de Luque. Constitución y Democracia en la experiencia española.
In: MAUÉS, Antonio G. Moreira (org). Constituição e democracia, Max Limonad, 2001, pp. 169-
186.
7 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo, 2.

ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 74-75.


8 Manoel Gonçalves Ferreira Filho aduz que a “judicialização da política” consiste em atribuir ao

Judiciário decisões de caráter político, sendo que assim o seriam porque afetam os destinos da
comunidade ou orientam a máquina governamental em direção a objetivos determinados que,
na doutrina clássica da separação dos poderes, não lhe seriam propriamente atribuíveis.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A Constituição de 1988 e a judicialização da política. In:
Revista da Procuradoria-Geral da República, nº 9, Ed. Revista dos Tribunais, p. 141.
204

até eles, num perigoso ciclo de infantilização da sociedade que se escora na


potência dirigente da norma constitucional.
Destarte, o desenvolvimento desenfreado da constitucionalização do
direito e o correlato incremento da judicialização da política pode provocar um
“aborto do processo de maturação do legislador”9 e, de certa forma, retardar a
natural evolução institucional em democracias sob amadurecimento10, ante uma
compreensão quiçá exageradamente tutelar dos direitos. No campo da
sociologia, essa preocupação fora prognosticada por Ingeborg Maus, para quem
a descrença nas tradicionais formas da política, em especial na monarquia alemã
pré-Weimar, tenderia progressivamente a transformar cortes constitucionais,
juízes e tribunais no “superego” de uma sociedade “órfã”11.
Existe uma considerável distância, convém que se diga, entre endossar-
se a crença em que os órgãos judiciários, incluídos os de cúpula, devam ser
depositários fiéis de promessas constitucionais de efetivação de direitos, num
campo que sabemos ser de razoável desilusão e, de outro lado, em que sejam
afinal órgãos estagnados e recolhidos aos arranjos do constitucionalismo liberal
clássico de Montesquieu, segundo o qual lhes cumpriria o singelíssimo papel de
proclamar aquilo que o enunciado textual já trazia de maneira “emudecida”.
Nesta perspectiva, o juiz era considerado a mera “boca da lei”, servindo
como interlocutor entre a legislação na forma escrita e o caso concreto. A
suposição de que o texto proveniente do órgão legislativo pudesse condensar a
razão humana iluminista tinha por premissa, para os teóricos do movimento
revolucionário francês, a redução do papel de interpretação jurídica ao de singelo
revelador da vontade (abstrata) da lei no caso (concreto).
A própria aplicação direta da Constituição Federal, com seus diversos
direitos postos, gera esteio hábil à manifestação do ativismo judicial, corroborada
ainda por vias como a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos,
com lastro em critérios menos rígidos12, e a supremacia dos princípios sobre as
regras.
De certa forma, este exegetismo demarca a concepção político-ideológica
que associava o Poder Judiciário, em especial sua investidura por nomeação
direta pelo monarca, ao Ancién Régime. Esta concepção de interpretação
jurídica provou-se superada já pelo positivismo normativista kelseniano e
hartiano. Afinal, a cogência das Constituições não deve ser ignorada, sendo
verdade que diversos direitos foram constitucionalizados, entre os quais os
econômicos e sociais, que demandam concretização por ação estatal positiva.

9 MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional. Leitura jurídico-dogmática de uma


complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais, São Paulo: Ed. Atlas, 2012,
p. 86.
10 Anote-se, por oportuno, que democracias em desenvolvimento não podem ser consideradas

em crise, uma vez que sequer completaram seu ciclo de consolidação para que possam ser tidas
como desestruturadas.
11 V. MAUS, Ingeborg, Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade

jurisprudencial na sociedade “órfã”. In: Novos Estudos CEBRAP, nº 58, novembro de 2000.
12 Manoel Gonçalves Ferreira Filho lembra que “[...] foram juristas - já desapegados da separação

dos poderes - e não tribunais, que levantaram a tese de que a declaração de


inconstitucionalidade de uma lei era a revogação, com efeitos retroativos, da mesma. Como foi
o principal deles, Hans Kelsen, quem inspirou a instituição de um controle direto de
inconstitucionalidade, por uma Corte especial, na Constituição Austríaca de 1920”. In: Poder
Judiciário na Constituição de 1988: Judicialização da política e politização da justiça. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 198:1-17, out./dez. 1994, p. 4.
205

A justiciabilidade, nesse ponto, é não somente uma expectativa legítima,


sagrando-se como um selo de garantia do Estado de Direito13. O Estado
Democrático de Direito, que almeja conciliar constitucionalismo e democracia –
unindo soberania popular à limitação do poder –, vê nas Constituições um
instrumental inelutável não só para definir programas, mas para definir direitos e
dar as ferramentas para realizá-los, sob as premissas metodológicas da
controlabilidade e da limitação do poder.
Por isso, mais que fazer uma escolha entre o devaneio idealista e o
desiluso ceticismo, com toda sorte de consequências, Elival da Silva Ramos
aduz que:

Cabe à crítica doutrinária auxiliar o Poder Judiciário a encontrar o


equilíbrio entre a ousadia e a criatividade, imprescindíveis à tarefa de
concretização de uma Constituição social-democrática, e a
observância dos limites decorrentes da adequada interpretação do
próprio texto que se pretende ver transformado em realidade. 14

Em certo sentido, não há como negar que, na experiência constitucional


brasileira, exageros foram cometidos no campo do ativismo judicial. Bons
pretextos podem ser utilizados para maus resultados; aliás, quando bons os
resultados, sejam eles aqueles com que o analista concorde, efeitos colaterais
nunca podem ser negligenciados pela boa ciência jurídica, nem haverá razão
mesmo para supor que o analista concordará a todo tempo com toda e qualquer
decisão ativista.
Esse ânimo com o colosso do direito constitucional, que aportou um
entusiasmo no neoconstitucionalismo15, dificilmente não chegaria ao ponto de
revivenciar as agruras na conciliação entre o constitucionalismo e a democracia,
comprometendo a segurança jurídica tão esperada pela aplicação da
Constituição Federal. Com clareza solar, Mônica Herman Salem Caggiano
discorre sobre os riscos da teoria cunhada neoconstitucionalismo:

A questão que se coloca, no entanto, é a pertinente à elasticidade,


flexibilidade e mutabilidade que impregnam a teoria denominada
“neoconstitucionalismo” que opera com valores. Abandonada a idéia
da rigidez, da superioridade, da estabilidade e da previsibilidade
constitucional como serão resguardados os direitos fundamentais?
Qual exatamente o instrumento e mecânica a preservar a segurança
jurídica? O que se depreende é que o constitucionalismo que pretende
ser contemporâneo – ou a teoria do neoconstitucionalismo – assume
uma postura descompromissada com o princípio da segurança jurídica,
que exsurge na trajetória evolutiva da idéia de Estado de Direito,

13 A justicialidade consiste, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, na garantia específica do


Estado de Direito de que a legalidade e a igualdade que ele comanda terão efetividade.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 109-110.
14 RAMOS, Elival Pereira. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2. ed., São Paulo: Saraiva,

2015, p. 289.
15 Por uma abordagem interessante, v. CAGGIANO, Mônica Herman Salem. Democracia x

Constitucionalismo: um navio à deriva? In: Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e


documentos de trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São
Paulo, n. 1, 2011, mensal, 44 p.; SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos
e possibilidades. In: FELLET, André Luiz Fernandes et al (org). As novas faces do ativismo
judicial, Salvador, Ed. JusPodivm, 2ª tiragem, 2013.
206

buscando exatamente lhe assegurar reforço, robustecendo a missão


maior de uma Constituição, qual seja estabelecer limites e engradar o
Poder.16

Considerando-se que o Supremo Tribunal Federal brasileiro, que faz as


vezes de Tribunal judiciário de cúpula e igualmente de corte constitucional
suprema, avançou sem parcimônia em muitos terrenos de desacordos morais
razoáveis17, e a cada dia profere decisões em campos típicos do universo da
política, é natural que pensemos num ponto em que um hiperativismo judicial
chegará a tornar a cidadania no Brasil cada vez menos habilitada a
autogovernar-se, a autolegislar e a cobrar de seus representantes, comprimindo
a autonomia popular. Nesta senda, Elival Pereira Ramos defende que:

Não devemos incidir no equívoco elitista que tenta concretizar uma


Constituição democrática, paradoxalmente, atribuindo ao povo um
papel secundário. [...] Compete aos juristas democratas colocar o seu
saber a serviço da construção de instituições que permitam o triunfo de
um governo que se faça não apenas em benefício do povo, mas com
a sua participação decisiva, diretamente, sob determinadas condições,
e indiretamente, de modo diuturno, por meio dos instrumentos de
representação política.18

Tal questionamento tem sido feito diuturnamente na doutrina brasileira já


há algum tempo19. Uma das preocupações mais salientes repousa no

16 Democracia x Constitucionalismo: um navio à deriva? In: Cadernos de Pós-Graduação em


Direito: estudos e documentos de trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011, mensal, p.19.
17 Consideram-se desacordos morais razoáveis as dificuldades de se encontrar, em sociedades

complexas e plurais, a uniformidade segura de pensamento em matérias sensíveis de


moralidade política, como as que definirão, por exemplo, os limites da liberdade ordenada ou a
compreensão sobre o direito à vida, e que sejam, do ponto de vista da argumentação jurídico-
constitucional, igualmente sustentáveis. Neste caso, a conciliação tende a ser impossível. Por
vezes se diz que, impossível a conciliação argumentativa, tais temas devem estar interditados
ao debate público; outras se defende que, se houver necessidade de que se instaure uma
discussão sobre o tema, considerando-se o momento evolutivo apropriado, o campo de
discussão não deve ser o da arena judiciária, mas o da discussão política propriamente dita. A
explicar o sentido do que sejam tais desacordos razoáveis, v. RAWLS, John. Justiça como
eqüidade: uma concepção política, não metafísica. In: Revista Lua Nova [online]. 1992, n.25,
pp.25-59; e, mais recentemente, McMAHON, Cristopher. Reasonable disagreement: a theory of
political morality, Cambridge University Press, 2009.
18 RAMOS, Elival Pereira. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2. ed., São Paulo: Saraiva,

2015, p. 333.
19 “Tudo isso faz um estranho sentido quando pensamos no papel do Judiciário junto às

sociedades modernas do Ocidente. Será que o Judiciário estaria funcionando como uma espécie
de superego da comunidade política, e, no desenrolar da função, acabaria, pelo exagero que
acompanha o exercício de todo poder, suprimindo o espaço próprio de decisão da autonomia
popular? Raciocinando ainda por hipótese, seria lícito imaginar que o controle de
constitucionalidade, em especial aquele realizado por via de ação junto às cortes supremas,
substituiria a capacidade de decisão pretensamente séria, dialetizada e racional dos indivíduos
como um todo, pela de outro grupo, composto por um número infinitamente menor? Até que
ponto os juízes constitucionais são defesa da Constituição, e a partir de qual momento se tornam
repressão de uma democracia madura? Também (...) excesso de funcionamento gera timidez,
fraqueza, opressão; o indivíduo não conduz, mas é conduzido; a sociedade são as muralhas de
seu emparedamento na história” MENDONÇA, José Vicente Santos de. Ulisses e o superego:
novas críticas à legitimidade democrática do controle judicial de constitucionalidade. In: Revista
de Direito da Procuradoria Geral do Estado, Rio de Janeiro, volume 62, 2007, p. 205.
207

enfraquecimento da sociedade civil, que, argumentativamente, deixará – mesmo


os grupos organizados – de buscar a representação política e o incremento
qualitativo da participação popular para, no seu lugar, estimular a litigiosidade
judicial.
É nítido que isso há de implicar a perda responsividade da classe política
representante (e de seus atos) perante os representados, de tal maneira que os
anseios destes possam ser captados e respeitados por aqueles; ao revés,
propicia um estado de letargia “conveniente” da classe política, a qual, em vez
de enfrentar a superexposição pública e polêmica que vai implicada no embate
de opiniões ou de cosmovisões divergentes – como sói acontecer em
democracias amadurecidas –, acaba por se eximir de tais custos políticos, ao ver
transferidas as suas responsabilidades decisórias às arenas judiciárias.
É dizer: toda a salutar estimulação ao accountability20 político, buscando
– afinal de contas – que a vontade dos representantes eleitos espelhe a dos
representados, pode acabar refreada, enfraquecendo a vitalidade democrática.
Não se pode, portanto, denegar certos riscos democráticos que uma postura
judicial ativista contumaz há de provocar.

CONCLUSÃO

À luz do exposto, é difícil não imaginarmos um cenário complexo no


processo de amadurecimento das democracias jovens: a ideia de um Poder
Judiciário inerte tem sido progressivamente sepultada, graças à descrença na
política tradicional como forma de atendimento dos anseios sociais.
A ideia de um Judiciário colossal e salvacionista vem sendo
paulatinamente vista sob desconfiança, dessa feita pela ideia – clássica – de que
a separação de poderes tende a ser o remédio mais seguro para a
controlabilidade real dos órgãos estatais. Colocando-se os temas da política no
coração de órgão não investido pela via democrática, emerge a noção de que
uma jurisdição excessivamente tutelar pode ajudar a atrasar o processo de
consolidação democrática.
Nesse diapasão, talvez seja inerente ao debate constitucional atual expor
a inevitabilidade da tensão entre constitucionalismo e democracia, porque
nasceu assim o Estado Democrático de Direito, e seguirá de tal modo em suas
múltiplas vivências e reflexos sociais. Vale dizer que a Lei maior de um Estado
deve esta coadunada ao povo que a respeita e ao regime democrático 21 vigente,
almejando – ainda que inviável em sua completude - a mínima discrepância entre
o que se quer e o que é possível.
A alocação do Estado-juiz na condição de provedor universal e confiável
das necessidades dos cidadãos, condutor da sociedade às promessas
frustradas pelo mundo da política ou o órgão capacitado a apresentar respostas
aos temas sensíveis de moralidade política gera o risco de infantilização social

20 A ideia de accountability pode ser traduzida como “responsividade” ou “responsabilização” –


refere-se à obrigação perene de que um órgão representativo deva prestar contas de seus atos
e posturas, nos limites do mandato politicamente investido, aos seus representados. Sobre a
temática, v. MAINWARING, Scott e WELNA, Christopher (editores). Democratic Accountabilty in
Latin America, Oxford University Press, 2003.
21 Robert A. Dahal, em obra clássica, afirma que “apesar de suas falhas, não devemos perder de

vista os benefícios que tornam a democracia mais desejável que qualquer alternativa viável a
ela.” In: Sobre a democracia. Trad.: Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2001, 230 p.
208

e, via direta, do colapso das bases fundantes da própria democracia. Todavia,


dadas as premissas de separação dos poderes e a inevitabilidade da jurisdição,
não deve ser tal fato, aliado aos meandros do ativismo judicial, considerado
como cláusula máxima de redução do nível de vivência da experiência
democrática.
A estabilidade da democracia pressupõe, além de outros fatores, que o
sistema de freios e contrapesos esteja em equilíbrio e, nesta esteira, não há
respaldo a que o Poder Judiciário seja detentor das rédeas do processo decisório
na seara política quando em exercício de ativismo judicial com fundada
propensão à violação do preceito da segurança jurídica. O Poder Judiciário deve
sim cumprir sua missão constitucional, observando, entretanto, sempre sua
responsabilidade na maturação da democracia.

REFERÊNCIAS

CAGGIANO, Mônica Herman Salem. Democracia x Constitucionalismo: um


navio à deriva? In: Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e
documentos de trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011, mensal, ISSN: 2236-4544, 44 p.

DAHAL, Robert A. Sobre a democracia. Trad.: Beatriz Sidou. Brasília: Editora


Universidade de Brasília, 2001, ISBN: 85-230-0621-4, 230 p.

ELSTER, John. Precommitment and Constitutionalism, Columbia University,


1995 apud VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça. In:
Lua Nova, nº 42, 1997.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A Constituição de 1988 e a


judicialização da política. In: Revista da Procuradoria-Geral da República, nº 9,
Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

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politização da justiça. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 198:1-
17, out./dez. 1994.

______. Aspectos do direito constitucional contemporâneo, 2. Ed., São Paulo,


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______. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p.


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GODOY, Miguel Gualano. Constitucionalismo e democracia: uma leitura a partir


de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella. São Paulo, Saraiva, 2012.

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española. In: MAUÉS, Antonio G. Moreira (org). Constituição e democracia,
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MAINWARING, Scott e WELNA, Christopher (editores). Democratic


Accountabilty in Latin America, Oxford University Press, 2003.
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dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos
fundamentais, São Paulo: Ed. Atlas, 2012

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Ulisses e o superego: novas críticas à


legitimidade democrática do controle judicial de constitucionalidade. In: Revista
de Direito da Procuradoria Geral do Estado, Rio de Janeiro, volume 62, 2007.

RAMOS, Elival Pereira. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, 2. ed., São


Paulo: Saraiva, 2015.

RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma concepção política, não


metafísica. In: Revista Lua Nova. n.25, 1992, pp.25-59.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de


Direito Constitucional. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 3. ed (rev., atual.
e ampl), 2014.

V. MAUS, Ingeborg, Judiciário como superego da sociedade: o papel da


atividade jurisprudencial na sociedade “órfã”. In: Novos Estudos CEBRAP, nº
58, novembro de 2000.
210

A NECESSIDADE DE IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE


PREVENÇÃO DA AIDS PARA PESSOAS IDOSAS NO ESTADO DE
ALAGOAS, BRASIL
THE NEED FOR IMPLEMENTATION OF PUBLIC AIDS PREVENTION
POLICIES FOR ELDERLY PEOPLE IN THE STATE OF ALAGOAS, BRAZIL

Cecilio Argolo Junior


Silvania de Souza Santos
Orientador(a): Cristina Maria de Souza Brito Dias

Resumo: O presente estudo tem como objetivo mostrar a importância de


implantação de políticas públicas de prevenção da aids em pessoas com idade
igual ou maior a 60 anos em Alagoas. Foi desenvolvido a partir de estudo
documental e de revisão de literatura com busca eletrônica em diversas bases
de dados virtuais publicadas nos últimos 20 anos, além de consulta a boletins
epidemiológicos HIV/aids dos últimos três anos, 2016, 2017 e 2018. Ter
conhecimento tardio da infecção e baixa adesão ao tratamento antirretroviral
(TARV) constituem os principais motivos do aumento no número de óbitos em
pessoas idosas. Por fim, é necessário que os órgãos públicos criem estratégias
e políticas públicas de saúde que propiciem a essa população mais
conhecimento das ações preventivas, das formas de transmissão do HIV e do
tratamento da aids para, assim, efetivamente diminuir o número de casos em
Alagoas.
Palavras-chave: HIV/aids. Idosos. Alagoas.

Abstract: This study aims to show the importance of implementing public policies
for AIDS prevention in people aged 60 years or older in Alagoas. It was developed
from a documentary study and literature review with electronic search in various
virtual databases published in the last 20 years, as well as consultation with HIV
/ AIDS epidemiological bulletins of the last three years, 2016, 2017 and 2018.
Have late knowledge infection and poor adherence to antiretroviral treatment
(ART) are the main reasons for the increase in the number of deaths in the
elderly. Finally, it is necessary that public agencies create strategies and public
health policies that provide this population with greater knowledge of preventive
actions, forms of HIV transmission and AIDS treatment, thus effectively reducing
the number of cases in Alagoas.
Keywords: HIV / AIDS. Seniors. Alagoas.

INTRODUÇÃO

A aids é uma grave infecção crônica. Há quatro décadas vem


disseminando pânico por todo o mundo (BRASIL BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO,
2018). A epidemia é apresentada como de grandes proporções. É manifestada
após a infecção do organismo pelo vírus HIV podendo levar o portador à morte,
caso não seja diagnosticado e tratado adequadamente em virtude das inúmeras
infecções oportunistas enfraquecerem o organismo (SILVA et al., 2018).
Embora as pesquisas sobre esse tema estejam avançadas não existe,
ainda, cura definitiva para a enfermidade. A eficácia do Tratamento Antirretroviral
(TARV) vem permitindo aos soropositivos uma maior sobrevida (ARGOLO
JUNIOR et al., 2014).
211

No Brasil, a transformação da pirâmide etária vem sendo acompanhada


por uma série de mudanças na vida da população com idade igual ou maior a 60
anos. Essas alterações são fruto dos avanços científicos e tecnológicos
apresentados principalmente no campo da medicina. (BRITO; CASTILHO;
SZWARCWALD, 2000).
Em Alagoas, o número de casos registrados de HIV/aids em pessoas com
idade igual ou superior a 60 anos vem crescendo nos últimos tempos. Entretanto,
a falta de diagnóstico precoce, a adesão insuficiente ao tratamento e, muitas
vezes, o abandono deste vem causando preocupação em virtude da aceleração
do processo de adoecimento por infecções oportunistas. (ALAGOAS, SESAU,
2019).
O presente estudo busca responder à questão disparadora ao saber: qual
o atual perfil clínico da população de idosos, soropositiva, em Alagoas? Foi
construído a partir de uma revisão de literatura através de busca eletrônica em
diversas bases de dados publicados nos últimos 20 anos e consulta nos boletins
epidemiológicos dos últimos três anos.
Por fim, este estudo objetiva mostrar a importância de implantação de
políticas públicas de prevenção da aids em pessoas com idade igual ou maior a
60 anos em Alagoas, Brasil.

1. A EPIDEMIA DA INFECÇÃO PELO HIV EM ALAGOAS

Alagoas é um importante polo turístico do Nordeste brasileiro. Praias


paradisíacas ladeadas por extensas faixas de coqueirais contornam um mar de
águas mansas, quentes e cristalinas fazendo de seu território um lugar ideal para
o descanso e lazer em todas as épocas do ano. Possui área territorial de
27.848.000 km2, com 3.322.820 habitantes. É formada por 102 municípios sendo
Maceió, o mais populoso, que é a sua capital. (BRASIL, IBGE, 2019).
Segundo o Boletim Epidemiológico HIV/aids (2018), de 1986, ano de
registro do primeiro caso em solo alagoano, a novembro de 2018,
contabilizaram-se 9.797 casos, com 2.241 óbitos. O estado ocupa o terceiro
lugar na região Nordeste. A maior concentração eencontra-se na faixa etária de
30 a 39 anos, com 2.405 pessoas infectadas com HIV/aids; seguida de 40 a 49
anos, com 1.550 casos. (BRASIL, BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO HIV/AIDS,
2018).
Para Araujo et al. (2018), estudos têm apontado o aumento de casos de
HIV/aids em idosos. Essa maior exposição ao vírus pode estar relacionada à
falta de implementação de políticas públicas de prevenção específicas para esse
grupo etário. Em 2013 já se evidenciava um aumento significativo na taxa de
detecção de HIV/aids entre mulheres com idade maior ou igual a 60 anos, 40,4%
no Brasil. (ARGOLO JUNIOR et al., 2014).
De fato, os boletins epidemiológicos, desde 2016, vêm dando destaque
ao avanço da epidemia em pessoas com idade igual ou maior a 60 anos
(BRASIL, BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO HIV/AIDS, 2016, 2017, 2018). As
próprias vulnerabilidades naturais desse grupo etário, aliadas às práticas sexuais
inseguras contribuem para o risco iminente de contágio pelo vírus HIV. (ARAÚJO
et al., 2018).
Em Alagoas esse crescimento vem chamando a atenção da Vigilância
Epidemiológica. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (2019), no
período de 2016 a junho de 2019, foram registrados 203 casos de HIV/aids,
212

sendo 134 casos em homens e 64 casos em mulheres (ALAGOAS, SESAU,


2019). Assim, como no Brasil, a principal forma de contaminação pelo vírus se
dá, basicamente, por vias sexuais, condição natural da existência humana.
(FORESTO et al., 2017; ALAGOAS, SESAU, 2019; SILVA et al., 2018).
O perfil epidemiológico da epidemia, ao longo desses anos, vem sofrendo
modificações em todo o estado, atualmente, com maior predominância entre
heterossexuais, mulheres, pobres, jovens, com baixa escolaridade, e do interior.
Trata-se de uma população que apresenta grande tendência a alcançar o
envelhecimento, caso adira ao protocolo terapêutico. (BRASIL, BOLETIM
EPIDEMIOLÓGICO HIV/AIDS, 2018; SANTOS; ASSIS, 2011; MENEZES et al.,
2018; SILVA et al., 2018).
A eficácia do tratamento antirretroviral justifica o possível envelhecimento
desse grupo. Desde 2013, a Organização Mundial de Saúde vem apresetando
orientações consolidadas sobre o uso correto para tratamento e prevenção da
infecção pelo HIV. Esses documentos resumem as principais característica e
recomendações que devem ser, vitaliciamente, cumpridas pela pessoas que
vivem com HIV. (SANTOS; ASSIS, 2011; MENEZES et al., 2018; BRASIL,
BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO HIV/AIDS, 2018).
Por fim, a literatura tem mostrado que as medidas de prevenção e controle
contra as infecções sexualmente transmissíveis, em especial, a aids, na terceira
idade, especificamente, se constituem um importante panorama de apoio para
estudos sobre o tema. (SILVA et al., 2018).

2. A EVOLUÇÃO DO HIV/AIDS NA POPULAÇÃO COM IDADE IGUAL OU


MAIOR A 60 ANOS

O envelhecimento é um fenômeno fisiológico e natural do corpo.


Importante ciclo no desenvolvimento humano, progressivo, inevitável e universal,
prepara a chegada da idade avançada. É uma condição intrínseca a todo
indivíduo. Compreende a integração e interação de várias condições e
alterações físicas, biológicas, psicológicas, sociais, espirituais e, também,
culturais. (ARAÚJO et al., 2018).
À lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003, classifica como idosas as
pessoas com idade igual ou maior a 60 anos. Entretanto, o estado atual de saúde
não está relacionado tão somente à idade cronológica do indivíduo. Outras
condições são imperativas no processo, dentre essas, o estilo de vida construído
em todos os anos e os hábitos saudáveis cultivados definem a forma de
envelhecer. (SILVA et al., 2015).
Essas condições são importantes por englobarem um conjunto de
aspectos funcionais, familiares, emocionais e sociais (COSTA et al., 2018). Por
essas razões, doenças crônicas negligenciadas, fragilidades, condições físicas
reduzidas, diminuição da autonomia, declínio funcional, recursos sociais e
financeiros escassos são vulnerabilidades que podem afetar a população de
idosos. (SOARES et al., 2017).
Desde 2012, aos dias atuais, o Brasil registra uma população de mais de
30 milhões de idosos. Nesse grupo, o número de mulheres idosas soma 16,9
milhões, superando o número de homens idosos, 13,3 milhões (BRASIL, IBGE,
2018). Diante desse aumento na população de idosos no Brasil, o bem-estar
subjetivo, psicológico e emocional tem sido amplamente estudado em virtude da
213

necessidade de conhecer mais profundamente esse fenômeno. (SOARES et al.,


2017).
Quando o assunto é a aids o problema passa a ser de todos. Por ser,
também, um fenômeno social, se faz necessário levar o indivíduo a repensar
suas atitudes, rever seu cotidiano e modificar a sua conduta (ARAUJO et al.,
2018). Evitar o adoecimento é um ato de responsabilidade e cuidado de si.
Condição importante para a manutenção da vida. Por isso, não há como negar
os danos que essa epidemia vem causando em todo o planeta. (IBIAPINA et al.,
2016).
No campo da terceira idade o tema envolve um rol de questões e
polêmicas relacionadas às suas necessidades próprias de autoconhecimento,
percepção, atenção e, sobretudo, cuidados com à própria saúde e do meio em
que está inserido (ARAÚJO et al., 2018). A invisibilidade dos idosos
de outrora, estigmatizada jocosamente pela sociedade e estereotipada na falsa
ilusão de não terem vida sexual ativa e constante, vem mostrando uma realidade
fisiológica diferente, muito embora, ainda, arraigada de preconceitos. (SANTOS;
ASSIS, 2011).
A questão diretamente relacionada ao envelhecimento com HIV e dos
novos casos nessa faixa etária vêm permitindo a esse grupo de indivíduos
soropositivos redescobrir experiências até então apagadas pelo diagnóstico de
uma enfermidade, ainda, repleta de barreiras. (IBIAPINA et al., 2016).
Menezes et al. (2018) afirmam que o aumento nas taxas de infecção por
HIV/aids é mais evidenciado ao confrontar a população pesquisada com o seu
poder socioeconômico. Quanto mais baixas a renda e a escolaridade do
indivíduo, maior a probabilidade e o risco de ser contaminado pelo HIV. Esse
aspecto fundamenta as elevadas taxas de contaminação encontradas em seu
estudo (MENEZES et al., 2018). Estatisticamente isso é comprovado nos últimos
boletins epidemiologicos de HIV/aids através da interiorização e pauperização
da epidemia em Alagoas. (BRASIL, BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO HIV/AIDS,
2016, 2017, 2018).
Assim, em que pese essa fácil contaminação pelo vírus HIV e sua
complexa magnitude de difusão geográfica e temporal isso vem mostrando que
a enfermidade se tornou um dos maiores problemas de saúde pública de todos
os tempos, revelando-se uma epidemia concentrada, tal como ocorre em alguns
países da América do Sul, Sudão, Tailândia e Etiópia, diferente da África que
possui uma epidemia generalizada. (BRITO; CASTILHO; SZWARCWALD,
2000).

3. CONDIÇÃO SOROLÓGICA PARA O HIV EM PESSOAS IDOSAS

A condição sorológica para o HIV do idoso traz consigo um amplo


espectro carregado de manifestações clínicas que vai da fase aguda à fase
avançada da enfermidade. Em virtude disso surgem uma série de mudanças e
situações difíceis de serem enfrentadas e administradas no dia a dia, fato
dificultado, ainda, por preconceitos e sofrimentos apensos ao próprio estado
sorológico. (PROTOCOLO CLÍNICO, 2018; CASTANHA et al., 2007; TEIXEIRA;
SILVA, 2008).
Ressalta-se que o impacto psicoemocional e social do diagnóstico, muitas
vezes, associado ao medo de morrer juntam-se ao estigma da aids, afetando a
identidade do portador, causando-lhe o próprio isolamento interpessoal. Esse
214

comportamento pode levar a transtornos psiquiátricos recorrentes interferindo na


adesão ao TARV e influenciando negativamente as condições orgânicas e
clínicas do soropositivo atingindo sua qualidade de vida. (SILVA et al., 2015).
O avanço do HIV em pessoas com idade igual ou maior a 60 anos passou
a ser, no Brasil, um problema de ordem pública em decorrência da falta de
diagnóstico precoce, o que inclui o estado de Alagoas. (SILVA et al., 2018).
Quando o assunto ligado à epidemia é à morte, Guimarães et al. (2017)
apresentam em seu estudo uma tendência nacional de redução de óbitos por
HIV/aids, entre os anos de 2000 e 2014/2015. Alagoas verificou um quadro de
2,4 óbitos por 100 mil hab., em 2007, e 4 óbitos por 100 mil hab, em 2017.
(GUIMARÃES et al., 2017; BRASIL, BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO, 2018).
A morbimortalidade vem sendo marcada pelo crescente avanço no
desenvolvimento de novos fármacos. Drogas mais potentes e eficazes vêm
sendo utilizadas na imunização dos soropositivos e no combate às infecções
oportunistas causadas pelo vírus HIV. (FERREIRA; ALESSANDRO;
SANTA’ANA, 2010).
Nessas razões, o aparecimento de novos casos de HIV/aids em pessoas
idosas e a diminuição da mortalidade por HIV/aids no estado vêm
proporcionando a esse grupo o aumento da sobrevida, resultado da eficiência do
tratamento oferecido, gratuitamente, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), um
dos melhores do mundo segundo a UNAIDS. (BRASIL, BOLETIM
EPIDEMIOLÓGICO HIV/AIDS, 2018; GUIMARÃES et al., 2017; UNAIDS, 2018).
Por fim, viver na condição de soropositivo traz a essa população etária
uma série de mudanças em sua vida, cujo enfrentamento da infeção é bastante
árido em decorrência das inúmeras barreiras e sofrimentos implícitos na própria
enfermidade (CASTANHA et al., 2007; TEIXEIRA; SILVA, 2008). A rejeição
social é classificada como um dos maiores problemas enfrentados por esse
grupo. Em decorrência disso, o isolamento, a depressão e, até mesmo, o
suicídio, vêm se tornando fatos corriqueiros na vida dessas pessoas
soropositivas. (CHELES, 2010).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos aspectos estudados emerge um novo fenômeno preocupante


diretamente ligado a essa grupo etário, ou seja, o aumento da incidência de
casos de HIV/aids. Essa enfermidade, sem mais hierarquização de risco, e,
atualmente, com maior número de casos registrados na população
heterossexual, vem contaminando os idosos devido à sua vulnerabilidade física,
psicológica, emocional e social. A invisibilidade desse problema à luz de sua
própria exposição ao risco vem dificultando o diagnóstico e, consequentemente,
retardando o tratamento, fazendo com que aumente o coeficiente de óbitos por
infecções oportunistas ligadas à aids.
A epidemia vem avançando impiedosamente nos 102 municípios
alagoanos, sem exceção, principalmente, em pessoas idosas, com baixo poder
econômico e de escolaridade reduzida. O diagnóstico tardio da enfermidade vem
dificultando a adesão à TARV expondo os idosos a um rol de enfermidades
oportunistas diretamente ligadas a aids. Trata-se de uma situação preocupante,
uma vez que pode trazer sérias consequências à saúde do soropositivo e,
inclusive, levá-lo à morte.
215

Por fim, necessita-se de mais efetividade do setor público nas políticas de


prevenção ao HIV/aids para a população de idosos. Estratégias educativas
voltadas ao plano de promoção da saúde e prevenção da enfermidade podem
ser o caminho para instigar mudanças no comportamento de risco desse grupo
etário. Tornam-se necessários e urgentes mais estudos voltados para esse
fenômeno diretamente relacionado à terceira idade em virtude de, ainda, existir
o desconhecimento em domínios básicos relativos à prevenção, transmissão e
tratamento da enfermidade. Dessa forma, é imperativo que esse grupo promova
mudanças de comportamentos e atitudes e, consequentemente, garanta uma
vida plena e saudável, com mais qualidade.

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218

A PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA ANTE À PRÁTICA CULTURAL DO


INFANTICÍDIO INDÍGENA
THE PREVALENCE OF THE RIGHT TO LIFE BEFORE THE CULTURAL PRACTICE
OF INDIGENOUS INFANTICIDE

Milca Vieira Paiva Xavier


Orientador(a): Alexandre Marchioni Leite de Almeida

Resumo: O objetivo do artigo será a análise da colisão de Direitos


Fundamentais. Para isso, busca-se demonstrar que a prática tradicional de
infanticídio indígena, embora considerada um ato cultural, põe em conflito as
normas de proteção à vida ante a tradição indígena de infanticídio, ferindo a
Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, onde o
bem mais importante tutelado pelo Estado é a vida da pessoa humana. Além do
mais, analisou-se o Projeto de Lei 1057/2007, denominado Lei Muwaji, cujo texto
que apresenta medidas para coibir a prática tradicional do infanticídio indígena,
foi aprovado na Câmara dos Deputados em setembro de 2015. Após mais de
quatro anos do protocolo legislativo, a subemenda 119/95, apresentada ao
Projeto de Lei 1.057/2007, foi incluída na pauta da 101ª reunião da Comissão de
Direitos Humanos e Legislação Participativa.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Infanticídio Indígena. Direitos
Humanos

Abstract: The purpose of this article will be the analysis of the Fundamental
Rights colision. In order to do this, the aim is to show that the traditional practice
of indigenous infanticide, although is considered a cultural act, it sets in conflict
the life protection rules in view of the indigenous tradition of infanticide. So that
contradict the Federal Constitution and the Internatinal Human Rights Treaties,
where the most important good protect by the Nation is the human life.
Furthermore, the Law Project 1057/2007, Called Bill Muwaji”, whose text
presente measures to restrain the traditional practice of indigenous infanticide,
was approved September 2015 in the Chamber of Deputies. After more four
years of legislative protocol, the amendement 119/95, submitted to the Bill
1.057/2007, it was included in the agenda of the 101º Comitte on Human Rights
and Participatory Legislation.
Keywords: - Fundamental Rights. Infanticide Indigenist. Human Rigths

INTRODUÇÃO

A prática cultural do infanticídio indígena ainda é comum em várias tribos


no território brasileiro. Crianças que nascem com algum tipo de anomalia física,
deficientes intelectuais, filhos de mães solteiras ou até mesmo gemelares, são
rejeitadas pela tribo, em especial pelos anciãos. É delegada aos pais a missão
de ceifar a vida dessas crianças, sendo elas recém-nascidas ou não. A forma
mais utilizada é abandoná-las na densa floresta ou enterrá-las ainda vivas.
O presente artigo busca analisar a prevalência do direito à vida ante a
prática cultural do infanticídio. Para tanto, foram estudados os conflitos entre os
Tratados Internacionais e normas legais internas, além dos pareceres da
Associação de Antropólogos, e defensores dos direitos indígenas e juristas.
Cumpre salientar que o foco deste estudo recairá sobre a tribo dos Kamaiurás,
219

que está inserida nas terras do Alto do Xingu, localizada no Estado do Mato
Grosso.

DESENVOLVIMENTO

A dignidade da pessoa humana prevista no 1º artigo, III da Constituição


Brasileira de 1988, é o direito que nasce com o homem, de modo que está
intrinsecamente em sua essência. Portanto, este direito que é pleno, não pode
ser renunciado, alienado e tão pouco violado. Porém, vale lembrar que o Estado
Democrático de Direito deve prover meios para coibir qualquer ação que coloque
em risco a violação do direito.
Sarlet (2011) escreve que a qualidade intrínseca e distinta de cada
indivíduo o faz merecedor do respeito e consideração por parte da sociedade e
do Estado, devendo este garantir e assegurar que os direitos fundamentais
inerentes ao homem sejam respeitados.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 assegura a garantia de que
o direito à vida é inviolável, definição que encontramos em diversas doutrinas e
Tratados Internacionais.
Ressalta-se, que a declaração surgiu diante das atrocidades
cometidas durante a 2ª Guerra Mundial pelo Estado Nazista, sob o comando de
Adolph Hitler, em que milhares de pessoas foram dizimadas, especialmente os
judeus. Normas foram estabelecidas para evitar que as barbáries cometidas
pelos oficiais do Füher fossem cometidas novamente.
Em 2002, o Congresso Nacional, aprovou por meio do Decreto nº 143, a
matéria da Convenção nº 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho),
sobre Povos Indígenas e Tribais, que estabelece que aos povos indígenas
devem ter assegurados os mesmos direitos e oportunidades que a legislação
outorga aos demais membros da população. Determina ainda que seus
costumes e tradições devem ser respeitados.
Entretanto, expõe no artigo 8º que estes costumes não devem ser
incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico
nacional, e tampouco com os direitos humanos constantes dos diplomas
normativos internacionais e recepcionados pelo Estado brasileiro.
Além disto, diante da necessidade de proporcionar proteção especial à
criança, Declaração dos Direitos da Criança de Genebra em 1924 foi de suma
importância, tanto é que foi ratificada por 169 países, e entre eles o Brasil, em
1990.
Antes de proteger qualquer outro direito, o Estado deve salvaguardar
aquele que é o mais importante e inviolável, que é o direito à vida humana, e que
sem a proteção deste direito, todos os demais ficam sem fundamento. Desse
modo, aduz Barreto (2016, p.444):

E o direito à vida é o direito tutelado por excelência. Assim sendo,


estabelece o art. 231 da Constituição Federal que são reconhecidos
aos indígenas seus usos, costumes, línguas, organização social, etc.
Entretanto, existe um limite a esse reconhecimento, a colisão com
direitos fundamentais.

A Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do


Adolescente, no artigo 7º, reafirma o dever do Estado em garantir através de
políticas sociais públicas, proteção às crianças e adolescentes. Assim como na
220

CF, nas convenções e nos Tratados Internacionais, é certo e evidente que o


legislador também incluiu as crianças indígenas como detentoras de tais
direitos.
O Infanticídio, previsto no artigo 123 do Código Penal, ocorre no momento
em que a mãe, sob intensas alterações psíquicas e físicas, comete o crime
tirando a vida do próprio filho recém-nascido, logo após o parto: “Matar, sob a
influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. É
classificado pelos doutrinadores como crime próprio, em virtude do tipo penal
somente realizar-se pela genitora da vítima.
O ato ilícito cometido pelos demais índios configura o tipo penal
denominado, homicídio, visto que o próprio cacique ou outro integrante da tribo
poderá cometê-lo, caso os pais da criança recusarem a missão a eles imposta
pela tradição cultural.
Neste mesmo contexto, Barreto (2016, p.446) diz que o termo infanticídio
não é o correto para dissertar sobre o homicídio das crianças indígenas. Analisa:

Nesta exposição, utilizou-se o termo infanticídio, apesar de


juridicamente não ser esse o termo correto. Trata-se, na verdade, de
homicídio de crianças indígenas, e não infanticídio, pois para o Direito
Penal é necessário que a mãe aja no estado puerperal para que se
caracterize o infanticídio. No caso dos indígenas, o motivo é cultural, e
não biológico (...).

A prática do infanticídio indígena ainda é realidade em várias tribos


brasileiras, entre elas a tribos dos Kamaiurás, que, conforme informações no sítio
eletrônico Povos Indígenas no Brasil - Portal do Instituto Socioambiental (ISA),
constituem uma etnia que pertence ao grupo étnico e linguístico tupi-guarani,
tendo como religião oficial o xamanismo.
Habitam no Parque Indígena do Xingu, às margens da zona de
confluência, entre dois importantes rios da microbacia xinguana do Mato Grosso,
região Central do Brasil.
Atualmente, estão sob a liderança de uma mulher, a cacica e pajé Mapulu
Kamaiurá (o nome da tribo sucede ao nome do indígena).
Em 2009, a jornalista Sandra Terena, índia da tribo Terena, produziu
documentário sobre o infanticídio indígena, quebrando o silêncio, situação em
que os relatos de parentes de vítimas e de sobreviventes são carregados de
fortes emoções.
Em resumo, o documentário mostra que, em nome de uma cultura
rejeitada pelos sobreviventes e pelos pais, as crianças recém-nascidas com
deficiência, gêmeos, nascidas de fruto de relação sem compromisso, ou até
mesmo as já crescidas, cuja deficiência só foi constatada posteriormente, são
enterradas, envenenadas ou abandonadas na selva, à mercê de animais
famintos. Há também relatos de bebês flechados e mortos a golpes de facão.
São atrocidades cometidas em nome de uma tradição que é praticada desde
antes mesmo da chegada do homem branco.
Explica a jornalista Terena que as crianças também são sacrificadas por
controle de natalidade. No caso em que um casal que possui muitos filhos e a
mulher tem nova gestação, eliminam o bebê, pois acreditam que teriam
dificuldade de criar mais um filho, visto que precisam trabalhar para ajudar a
manter o sustento da coletividade.
221

Quanto aos gêmeos, o motivo é o mesmo, a dificuldade de uma mãe


cuidar de dois bebês. Porém, em algumas tribos, os índios acreditam que os
gêmeos são frutos de espíritos malignos.
O índio Marcos Nayorume, então com 10 anos, viu seu irmão gêmeo ser
queimado vivo. Foi salvo por um militar que o adotou. Sabiamente, assim
discursa: “A cultura é uma dinâmica! A cada momento muda a cultura, de
geração em geração! Isso, os antropólogos têm que entender…”.
Sobre os filhos de mães solteiras, o motivo para o homicício é que a
criança precisa de uma figura masculina que o ensine a pescar e caçar, ou até
mesmo pelo fato do pai rejeitá-lo.
Sandra Terena mostra reuniões de lideranças indígenas em diversas
regiões como Brasília (2008), Roraima (2009) e no Parque do Xingu (2008), com
a intenção de resolver o conflito interno. A pauta desses encontros, além de
versar sobre o infanticídio, traz também a intervenção do Estado no amparo às
famílias que possuem crianças doentes e rejeitadas, se estas devem ou não ser
resgatadas pelos agentes da saúde, a fim de proporcionar-lhes tratamento
médico adequado.
Ante a prática do infanticídio indígena, ex-deputado Henrique Afonso PT/
Acre apresentou junto a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei
1057/2007, que foi posteriormente denominado Lei Muwaji, em homenagem à
índia Muwaji, uma mulher da tribo Suruwahá, que após sofrer pressão da aldeia
para enterrar sua filha que nasceu com paralisia cerebral, optou em abandonar
sua tribo, a fim de buscar socorro médico e salvá-la da morte.
O Projeto de Lei foi aprovado pela Câmara dos Deputados em setembro
de 2015, por 361 votos favoráveis contra 84 contrários, e 9 abstenções, e com
referências nas legislações já existentes, entre elas a Constituição Federal, a
Convenção Sobre Direitos das Crianças, e a Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais.
Foi apresentada pelo deputado federal Marcos Rogério (PDT/RO) o
Projeto de Lei da Câmara nº119/2015. A proposta acrescenta no Estatuto do
Índio, o artigo 54-A, que visa estabelecer o dever da União, dos Estados e dos
Municípios e responsáveis pela política indigenista (como a Fundação Nacional
do Índio - FUNAI) o dever de usar de todos os meios para proteger crianças,
adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas de práticas
que atentem contra a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica.
No Senado Federal, a subemenda apresentada ao Projeto da Lei Muwaji
foi amplamente discutida na primeira audiência pública CDH - Comissão de
Direitos Humanos e Legislação Participativa, cuja sessão plenária ocorreu no dia
14/11/2016, presidida pelo Senador Paulo Paim (PT/RS).
Participaram da audiência antropólogos, indígenas entre eles, Kakatsa
Kamayura, índio sobrevivente do mencionado infanticídio, representantes de
órgãos que desenvolvem políticas indigenistas, como a FUNAI e FUNASA, esta
última entidade vinculada ao Ministério da Saúde, que tem por objetivo promover
a saúde da população pobre e vulnerável.
Após quase 04 anos do protocolo legislativo, a ementa foi redistribuída
ao Senador Telmário Mota, para emissão de relatório. E em 19/09/2019 a
matéria foi incluída na pauta da 101ª reunião da Comissão de Direitos Humanos
e Legislação Participativa.
Embora haja entendimento no STF que a colisão entre os direitos
fundamentais devem ser resolvidos com base no princípio da hermenêutica da
222

harmonização, fatos que podem ser conferidos em inúmeras jurisprudências no


próprio site do órgão Federal, os conflitos entre o direito de guardar a cultura e o
de preservar a vida dificilmente serão compreendidos em algumas comunidade
indígenas na atualidade, posto que, para os anciãos, as tradições ensinadas por
seus antepassados devem ser preservadas, mesmo que as vidas de seus
semelhantes sejam tiradas.
O princípio da proporcionalidade dos direitos fundamentais deve ser
observado, quando tais direitos entram em conflito. Nesta medida de proporção,
é certo que na balança (metáfora do peso), para precisar qual direito deve
prevalecer, a vida, que constitui o bem maior tutelado pelo Estado tem o maior
peso. Vejamos o que aduz Barreto (2016, p.444), sobre a limitação de tais
direitos:

(...) existe um limite a esse reconhecimento, a colisão com direitos


fundamentais. Aqui cabe chamar a atenção para o fato de que somente
se defende a limitação dessas tradições quando há colisão com direitos
fundamentais. Se não houver colisão, jamais se cogita a ideia de limitar
tais tradições, pelo contrário, devem ser fomentadas com veemência.

O projeto de lei ora citado, não visa criminalizar o indígena pela prática do
infanticídio, mas todo cidadão que tenha conhecimento da prática e é omisso,
como disciplina o parágrafo 8º.
Ademais, o próprio Estatuto do Índio no artigo 57, prevê que o
magistrado deve observar o grau de integração do silvícola com a sociedade
para aplicação ou isenção de pena. Em concordância com o artigo 26 do Código
Penal, que trata da redução ou isenção de pena ao agente que é incapaz de
entender o ilícito que comete, Hungria (1980) escreveu que o dispositivo também
poderá ser aplicado aos silvícolas inadaptados a civilização. Contudo, em
contradição ao entendimento, Antunes (2008), entende que o artigo não pode
ser aplicado aos índios e tampouco considerá-los pessoas com insuficiência
mental porque não estão inseridos na sociedade civilizada.

CONCLUSÃO

Restou claro que a prática do infanticídio indígena provoca a colisão entre


os Direitos Fundamentais do homem e o direito a preservação da cultura
indígena. Logo, o direito a prática cultural dos índios, tradições, costumes e o
direito à vida humana estão elencados na Constituição Brasileira e nos Tratados
internacionais como garantias essenciais ao homem.
Contudo, observa-se que os legisladores e juristas buscavam demonstrar
que o direito à vida deve sobressair sobre os demais, como de fato
sobressai. Entretanto, o Brasil, sendo signatário dos Tratados Internacionais, é
omisso quando conhece a prática do infanticídio indígena e não toma
providências para coibi-lo. Ignora a Convenção 169 OIT, da qual também é
signatário, e a recomendação aos Estados-Parte para que, conjuntamente com
os povos indígenas, elaborem políticas públicas que visam proteger a vida das
crianças indígenas.
É certo que a dignidade humana, a liberdade, a igualdade, a segurança,
a propriedade e a cultura são direitos invioláveis e imutáveis e pertinentes a todo
ser humano. Porém, não faz sentido elencá-las com garantias essenciais, se
deixarmos de proteger a vida humana.
223

Frisa-se mais uma vez que o direito à vida em todos os tratados


internacionais que tratam sobre o tema, é o que prevalece sobre todos e
quaisquer outros direitos. Contudo, a violação ao direito à vida é constantemente
praticada ao redor do mundo. Mata-se para usurpar poder, por dinheiro, por
política, em nome da cultura e até mesmo por intolerância religiosa.
Conclui-se que, se não há vida humana para preservar a cultura, esta se
perde ao longo do tempo. E mais, a vida deve ser preservada para que a
identidade de um povo não seja esquecida ou apenas lembrada nos livros de
história.
Finaliza-se este artigo, com a frase dita na Comissão de Direitos
Humanos (CDH) do Senado federal, ocasião em que se discutia a subemenda
do Projeto de Lei 119/15 pelo índio Kakatsa Kamaiurá, resgatado da morte por
enterramento quando ainda bebê: “A vida é mais importante do que manter a
cultura viva”. Em tupi-guarani: “Tekowe tawa ang Ihwaratã ma’ëa
iaiwa, Porerekwamã ‘ang ihwaratã utsu ma’e ‘ymã.”

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen


Juris, 2008.HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Editora
Forense, 1980

SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na


Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011, pág.61

MONOGRAFIA
BARRETO, Maíra de Paula- O infanticídio indígena no Brasil sob a
perspectiva do controle de convencionalidade. Enfoque dos direitos
humanos. 2016 (Doutorado em Direitos Humanos) - Ediciones Universidad
de Salamanca, Espanha, 2016.

LEGISLAÇÃO
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de
1988. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm - acesso em
19.04.2019

BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção


no 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos
Indígenas e Tribais. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF,
20.04.2004. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2004/decreto/d5051.htm- acesso dia 07/04/2019

BRASIL. Decreto no 99.710, de 21 de novembro de 1990.Promulga a


Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União, Pode
Executivo, Brasília, DF, 22.11.1990. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm- acesso dia
07/04/2019
224

BRASIL. Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do


Adolescente e de outras providências. Diário Oficial da União, Pode
Executivo, Brasília, DF, 16.7.1990 e retificado em 27.9.1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm – acesso dia 07/04/2019

BRASIL. Decreto-Lei 2848, de 7 dezembro de 1940. Código Penal. Diário


Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 31.12.1940. Disponível em :
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm - acesso em
07/04/2019.

BRASIL. Lei 6.001, de 19 d dezembro de 1973. Estatuto do Índio. Diário


Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 21.12.1973. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6001.htm - acesso dia 08/04/2019.

Atividade Legislativa / Projetos de Lei e Outras Proposições / PL 1057/2007.


Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?id
Proposicao=351362 acesso dia 13/03/2019.

Senado Federal. PROJETO DE LEI DA CÂMARA Nº 119, DE 2015 (Nº


1.057/2007, na Casa de origem). Disponível em: https://www25.senado.leg.br
/web/ atividade/ materias/-/materia/122998 – acesso 13/03/2019

SITES
TERENA, Sandra. QUEBRANDO O SILÊNCIO. Youtube, 26/12/2013.
Disponível em: https://youtu.be/V5F9HjSnsmw (Documentário quebrando o
silêncio) - acesso dia 13/03/2019

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Povos Indígenas no Brasil. São Paulo


2018 https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kamaiur%C3%A1- acesso dia
15/04/2019.
225

A PROTEÇÃO DO EXERCÍCIO DA LIBERDADE RELIGIOSA: A POLÊMICA


ALÉM DO SACRÍFICO
LA PROTECCIÓN DEL EJERCICIO DE LIBERTAD RELIGIOSA: LAS
POLÉMICAS MÁS ALLÁ DEL SACRIFICIO

Diana Paula Ajonas Rocha


Jamille A. Weiss Penteado de Freitas Chaves
Orientador(a): William Rosa Miranda Vitorino

Resumo: A proposta do presente resumo é refletir acerca de práticas


discriminatórias contras religiões de matriz africana historicamente perpetradas
em decorrência da legitimação nivelada emanado de uma sociedade com
ideários cristãos enraizados. Questiona-se a patente dilapidação do pleno
exercício da liberdade religiosa da espiritualidade candomblecista e umbandista.
Problematiza-se, portanto, a demonização e o alto grau de desrespeito social em
relação às liturgias próprias das religiões de matriz africana, e sua injusta
caracterização como ilegítimas, enquanto outras culturas litúrgico-espirituais
recebem maior grau de respeito social e até mesmo da indústria alimentícia e do
comércio. Nesse sentido, argumenta-se que a perseguição em relação às ditas
práticas religiosas decorrem da ausência informação, empatia e reflexão sobre
o assunto, assim, a limitação ao pleno exercício de tais acepções religiosas
constitui uma patente violação a um direito fundamental constitucionalmente
reconhecido.
Palavras-chave: Liberdade religiosa. Religiões de matriz africana. Uso litúrgico
do sacrifício.

Resumen: El propósito de este resumen es reflexionar sobre las prácticas


discriminatorias contra las religiones africanas históricamente perpetradas como
resultado de la legitimación nivelada que emana de una sociedad con ideas
cristianas arraigadas. Se cuestiona la patente dilapidación del pleno ejercicio de
la libertad religiosa de la espiritualidad candomblecista y umbandista. Por lo
tanto, la demonización y el alto grado de falta de respeto social en relación con
las liturgias propias de las religiones africanas se problematizan, y su
caracterización injusta como ilegítima, mientras que otras culturas litúrgicas-
espirituales reciben un mayor grado de respeto social e incluso de la industria
alimentaria y el comercio. En este sentido, se argumenta que la persecución en
relación con las dichas prácticas espirituales deriva de la falta de información,
empatía y reflexión sobre el tema, así, la limitación al ejercicio pleno de dichos
significados religiosos constituye una violación patente de un derecho
constitucionalmente fundamental reconocido.
Palabras-clave: Libertad religiosa. Religiones de madre africana. Uso litúrgico
del sacrificio.

INTRODUÇÃO

A consolidação do Brasil enquanto Estado laico visa proteger a todo


cidadão o pleno exercício de sua liberdade religiosa. É inegável o avanço das
garantias dos direitos fundamentais em estatura constitucional, mas infelizmente
ainda há uma cultura social de intolerância religiosa, especialmente em relação
226

às religiões não-cristãs, com ideologias, conceitos litúrgicos e manifestações de


espiritualidade diferentes dos dogmas do cristianismo.
Vivemos em uma sociedade majoritariamente cristã (católica apostólica
romana e/ou protestante), que historicamente sempre teve maior imponência e
força para se impor seus dogmas – considerados absolutos, inquestionáveis –
àqueles que não o professem, nesse sentido, criou-se no ideário social brasileiro
“um jeito correto de cultuar o sagrado”, uma legitimação consciente e
inconsciente da religião cristã em detrimento de outras práticas e ideologias
espirituais, e sua consequente demonização.
Os adeptos das religiões de matrizes africanas são até os dias atuais
perseguidos, tendo seus ritos ligados ao mal e ao profano, sendo assim,
considerado socialmente polêmico, tanto por sua demanda, quanto pelo seu alto
grau de reprovação e discriminação.
Com este lastro propedêutico, pretende-se, por meio desta pesquisa,
refletir a acerca da patente ausência de empatia e de conhecimento adequado
que têm levado a julgamentos equivocados acerca das práticas espirituais das
religiões de matriz africana no Brasil (candomblé e umbanda), que, com
facilidade, podem se desdobrar em pré-conceitos que fomentem um visão
distorcida que tornem aceitáveis práticas escusas como a intolerância religiosa
vinculada a uma forte discriminação étnico-racial.
Ascendeu ao STF o Recurso Extraordinário n° 494.601, que tinha como
objeto a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul relativa a uma
norma do Código de Proteção dos Animais do Estado, norma gaúcha de nº
12.131/2004, que reconheceu a legitimidade do sacrifício de animais por
religiões de matriz africana sob a justificativa de que tais rituais não violavam as
normas de maus tratos aos animais, o que acabou reforçando o livre exercício
dos cultos e liturgias de matrizes africanas. Muito embora o Ministério Público do
Rio Grande do Sul tenha se insurgido contra a decisão do tribunal à quo, o STF
negou provimento ao recurso extraordinário, tendo fixado, em 28 de março de
2019, a tese de que "é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de
resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos
de religiões de matriz africana"1.
Durante a pesquisa, percebeu-se que o problema vai além do sacrifício
de animais, pois existem outras mobilizações sociais também em relação à
proibição do uso de tambores e atabaques durantes as reuniões de matriz
africana, o que denota um preconceito colonialista de caráter escuso.
A presente pesquisa baseou-se numa proposta de metodologia científica
qualitativa e descritiva, direcionada à pesquisa bibliográfica, com amparo em
materiais já elaborados, publicados e acessíveis, tais como livros, artigos e
julgados do Supremo Tribunal Federal. O estudo busca analisar a temática
proposta, com foco no respeito às liberdades individuais religiosas. Visa-se, por
meio deste, disseminar os conhecimentos africanos milenares e conscientizar
acerca da estigmatização e opressão de culturas historicamente dilapidadas,
cujo consequência nefasta corporifica o desrespeito liberdade religiosa e à
diversidade espiritual.

DESENVOLVIMENTO

1 STF. Recurso Extraordinário nº 494.601. Relator: min. Marco Aurélio. Julg. 28 mar. 2019
(acórdão em fase de estruturação dos votos pelo min. Edson Fachin).
227

As religiões de matrizes africanas, da qual discorre-se especificamente


sobre o candomblé e seus rituais de imolação que, desde os primórdios, têm
sofrido perseguições, tendo seus ritos demonizados, e, na maioria das vezes,
visto como algo profano. Pode-se questionar, portanto: como pensar nesse
âmbito, construindo um pensamento crítico que altere o modo excludente e
preconceituoso de pensar e sentir a realidade espiritual de outrem? Como tirar a
“normalidade”, que se mostra apontada como uma arma em forma de ataque
sobre as religiões de matrizes africanas?
O Brasil possui um extenso histórico de intolerância religiosa, visto que,
por muito tempo, a religião católica foi imposta como a crença oficial do Estado,
inclusive por meio de catequeses forçadas a indígenas e africanos escravizados.
Aliás, todos aqueles que recusavam a ser catequizados eram perseguidos e até
mortos por exerceram uma religiosidade carregada de blasfêmias. Esta triste
lembrança colonialista deixou rastros até os dias atuais, confinando e
segregando minorias, reforçando a necessidade da desconstrução de
informações obtidas pelo senso comum.
Eis a importância da decisão final do Recurso Extraordinário n° 494.601
pelo Pleno do STF, por meio da qual o Tribunal desenquadrou o exercício da
imolação religiosa de animais da tutela jurídica de maus tratos aos animais.
Reconhecendo-se com proeminência, o livre exercício dos cultos e liturgias de
matrizes africanas e, consequentemente, do sacrifício de animais, validando a
norma gaúcha questionada.
Falar sobre religião e tudo o que se ramifica dela é algo que, na maioria
das vezes, desencadeia polêmicas. Se pontuarmos do ponto de vista
estritamente constitucional, a laicidade estatal significa que o Estado é laico, não
religioso, não confessional, isto é, não pode prestigiar nem prejudicar religião
alguma.
É importante ressaltar que na Carta Cidadã de 1988 está assegurada a
inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo garantido o livre
exercício dos cultos religiosos e, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e as suas liturgias, permitindo assim que todo brasileiro possa professar
livremente sua fé2:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos


culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.

Tendo-se isso em mente, a liberdade religiosa é um direito fundamental e


constitucional, um predicado existencial, o Estado não deve interferir, salvo para
assegurar o exercício adequado desse direito.
A partir disso, faz-se mister ressaltar alguns traços históricos sobre a
liberdade religiosa no contexto jurídico do nosso país. O acórdão da ADPF nº
54/DF, que analisou a questão do aborto de fetos anencefálicos, relatada pelo
ministro Marco Aurélio, sintetizou, com maestria, os avanços relacionados à
liberdade religiosa no Brasil, vejamos:
A Constituição do Império, de 25 de março de 1824, inicia-se com “EM

2CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Artigo 215. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 22 jan. 2019.
228

NOME DA SANTÍSSIMA TRINDADE” e, no artigo 5º, preconiza que “A


Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do
Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto
doméstico, ou particular em casas para isso destinadas (...)
No limiar da transição do Império para a República, o Estado brasileiro
houve por bem separar-se da Igreja, conforme evidencia a ementa do
Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, o qual:
Proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados
em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o
padroado e estabelece outras providências.
(...) Na mesma linha, andou o Constituinte de 1988, que, sensível à
importância do tema, dedicou-lhe os artigos 5º, inciso VI, e 19, inciso I,
embora, àquela altura, já estivesse arraigada na tradição brasileira a
separação entre Igreja e Estado.
(...) Nesse contexto, a Constituição de 1988 consagra não apenas a
liberdade religiosa – inciso VI do artigo 5o –, como também o caráter
laico do Estado – inciso I do artigo 193.

Nesta esteira, não se pode desconsiderar as conquistas e avanços que o


ordenamento jurídico tem absorvido em decorrência da luta de cientistas sociais
e ativistas religiosos que se debruçaram a descontruir a falsa ideia de que deve
haver uma unicidade religiosa. É certo que as visões subjetivas de mundo são
construídas a partir do interesse do sujeito sobre determinada demanda, e isso
deve ser respeitado, contudo, cabe ao Estado tutelar os interesses de toda
coletividade, que envolvem ações de deslegitimação da segregação e da
intolerância religiosa.
Verifica-se essencial a desmistificação de alguns tabus que envolvem
esse assunto e que acabam contribuindo para que determinados grupos na
sociedade tentem proibir a prática de liturgias religiosas diversas. Cultuar o
sagrado deve ser uma escolha totalmente íntima, individual, e quando se tenta
impedir o livre exercício de determinada religião por clara discriminação, é que
se evidencia a interferência e o desrespeito à diversidade democrática de ideias.
Nesta toada, importa-nos tecer algumas informações sobre a liturgia
espiritual candomblecista: o candomblé é uma religião que surgiu, e que se
inspirou das práticas espirituais de africanos de diversos grupos étnicos
capturados e trazidos para o Brasil como escravos. Assim, os africanos
escravizados trouxeram com eles a sua cultura e sua religiosidade como uma
forma se manterem conectados com suas origens e suas ancestralidades, que
aqui se reorganizaram e deram origem ao candomblé.
Desde de seu germe em terras brasileiras, o candomblé sempre foi alvo
de perseguições, seja de ordem estatal, quanto sociocultural. Com suas raízes
na África, o candomblé adaptou-se e se disseminou no Brasil, levando em
consideração a mistura de etnias e culturas, e a dificuldade em se realizar as
práticas, sendo elas inicialmente feitas de maneira secreta.
Existem registros de que o primeiro terreiro no Brasil foi instalado na Bahia
em 1830, sendo uma religião considerada relativamente nova, organizada em
centros periféricos, onde escravos eram mais livres para andar e se comunicar.
Uma das adaptações mais evidentes foi a quantidade de orixás – cultuados nesta
liturgia espiritual –, que no Candomblé brasileiro conta com apenas dezesseis,

3STF. Arguição de Descumprimento De Preceito Fundamental nº 54/DF. Relator: Ministro


Marco Aurélio. DJE: 30/4/2013. STF, 2013.
229

enquanto o número de divindades adoradas pelos africanos excedem em muito


este número, o que demonstra a pluralidade e a complexidade dessa crença.
Infelizmente, o candomblé sempre sofreu a estigmatização de seita
demoníaca, o que, contraditoriamente, não faz sentido nenhum, pois na referida
religião não é feita nenhuma referência ao inferno nem a um demônio, conceitos
típicos de outras religiões. O principal receio dos não fomentavam pluralidade
religiosa no Brasil era de que religiões como o candomblé se disseminasse ideias
anticristãs, ou seja, em razão de o candomblé não sacralizar um conceito de
sagrado e profano minimamente parecido com as denominações de rompante
cristão.
Todo o ritual do candomblé possui um propósito, e deve ser feito sem
intuito cruel, e com o mínimo sofrimento possível aos animais – até a cultura
iorubá não admite em seus dogmas o desrespeito ao aninam e à sua energia
vital. No que diz respeito ao sacrifício, a fundamentação é a troca de forças,
energias. O sangue (axorô ou ejè, na língua iorubá), nesta religião, representa a
vida, e os animais oferecidos produzem o alimento das divindades cultuadas, e
posteriormente são higienizados, preparados e servidos aos adeptos da religião
e à comunidade no entorno dos terreiros como um exercício de responsabilidade
social. Para cada divindade e ritual é utilizado um animal específico. Nada se
perde, utiliza-se desde as vísceras, até o couro do animal.
Tais conceitos e liturgias são corroboradas por estudos como o de
Marcelo Tadvald, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, vejamos:
[…] a imolação deve ser realizada com o mínimo de sofrimento
possível para o animal. Nos casos em que se imolam animais maiores
(os “quatro pés”), o obé (faca sagrada) deve estar bem afiado e o golpe
deve ser certeiro. Não por acaso, somente babalorixás
experimentados, e que passaram pelos ritos iniciáticos específicos
(axé da faca, por exemplo), têm o direito e o poder de imolar animais.
Na grande maioria das vezes, são sacerdotes treinados que executam
essas tarefas. O que explica em parte esta deferência especial para
com os animais é a necessidade de humanizar as vítimas animais 4.

Existe toda uma relação pré-estabelecida com os animais, começa-se


pela escolha do mesmo, a compra, seguido de uma série de critérios e preceitos.
Oferecer a comida aos Orixás, entidades divinas africanas, é um processo que
somente pode ser exercido por pessoas devidamente preparadas para o ritual.
José Carlos Gomes dos Anjos, também doutor em Antropologia Social
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, teceu um importante estudo
sobre os sacrifícios realizados em terreiros de candomblé, no qual preceitua:

O sacrifício de animais nos terreiros dá-se numa forma milenar de


cultura que não separa o divino, o humano e o natural nem mesmo no
sofrimento. No sacrifício há uma única pessoalidade em metamorfose
e renascimento. Por estarem congregados numa unidade, o sacrifício
é um momento especial de fusão de destinos e renascimentos em uma
unidade simultaneamente animal, humana e divina. O sacrifício só
ocorre na medida e quando não há a recusa das três partes que se

4TADVALD, Marcelo. Direito litúrgico, direito legal: a polêmica em torno do sacrifício ritual de
animais nas religiões afro-gaúchas. Caminhos, Goiânia, v. 5, n. 1, jan./jun. 2007, p. 132.
230

entregam ao acontecimento cósmico5.

Assim, a construção dos saberes dentro do Candomblé é feita através da


oralidade e é passada de geração pra geração, e muitas coisas são reveladas
apenas para quem ocupa uma determinada hierarquia, sendo que pessoas que
não fazem parte da religião não podem ter acesso, o que dificulta de maneira
considerável a pesquisa sobre o tema. Apesar disso, todos que presenciam e
falam sobre este ritual afirmam que os animais demonstram calma, enquanto os
participantes entoam cânticos.
Muitas vezes, o incômodo surge através de máscaras e em tons de
preocupações que, de maneira velada, consolidam a discriminação étnico-racial
e religiosa de práticas diferentes não aceitas socialmente Não é um exercício
muito difícil relacionar a intolerância religiosa ao questionamento em torno do
sacrifício de animais nas religiões de matrizes africanas, visto que nenhum
questionamento é feito em rituais muito parecidos e muito comuns, a exemplo
da cultura kosher, vinculada à religião judaico-cristã, na qual os rabinos devem
acompanhar pessoalmente os sacrifícios dos animais, para assim garantir que a
liturgia judaica será devidamente seguida – questiona-se, portanto: porque as
religiões de matriz africana não podem receber o mesmo!?

CONCLUSÃO

Assim, tornam-se completamente reprováveis os questionamentos


levantados em relação a proibição do sacrifício animal na liturgia do candomblé,
nos quais o lugar de fala que a maioria dessas pessoas ocupa é o de
consumidores diários de carnes de origem animal.
Diante disso, outro ponto que pode ser questionado quanto à
discriminação religiosa e étnico-racial, é que muitos manifestantes que se opõem
à imolação de animais durantes ritos de matriz africana defendem a ideia de que
os animais deveriam ser anestesiados antes, o que tiraria toda a simbologia do
ato sob a perspectiva iorubá. Porém, pouquíssimos são os que manifestam esse
tipo de opinião junto aos matadouros ou frigoríficos.
O colonialismo clássico pode até não mais existir, mas a colonialidade
está bem presente atualmente, onde todos querem e podem dar e ressignificar
suas simbologias, seus sacramentos, suas liturgias, ditando o que é correto para
encontrar seu sagrado e viver em sociedade, menos os praticantes de
determinadas religiões que não seguem linha de pensamento parecida6.
A luta pelo livre exercício de toda e qualquer liturgia religiosa constitui um
elemento-chave para a desconstrução de preconceitos historicamente
perpetuados, assim, é indispensável que se fomente uma relação intersubjetiva
pautada pelo respeito a óticas diversas, abrindo novos lugares de fala 7 e tocando
em novas questões que estabeleçam ângulos novos de percepção, afinal,

5 ANJOS, José Carlos dos. Os sentidos do sacrifício nas religiosidades afro-brasileira. Rio
Grande do Sul: Núcleo de Estudos da Religião, 2015. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/ner/index.php/estante/visoes-a-posicoes/69-os-sentidos-do-sacrificio-na-
religiosidade-afro-brasileira>. Acesso em: 12 mai. 2019.
6 JESUS, Jayro Pereira de. Terreiro e cidadania: um projeto de combate ao racismo cultural

religioso afro e de implementação de ações sociais em comunidades-terreiros..., p. 185-202. In:


Ashoka Empreendedores e Takano Cidadania. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro:
Takano Ed., 2003.
7 RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala [livro eletrônico não paginado]. São Paulo: Pólen, 2019.
231

vivemos sob o predicado jurídico da igualdade, somos todos igualmente


diferentes, e a diferença não pode ser demonizada ou dilapidada ao alvedrio de
concepções discriminatórias escusas.
Romper historicamente com o que é instituído como universal e dialogar
com o diferente nos aproxima ao princípio universalista de que a igualdade entre
os homens deve ser para todos. A lei fundamental da convivência humana é o
respeito mútuo.

REFERÊNCIAS

ANJOS, José Carlos dos. Os sentidos do sacrifício nas religiosidades afro-


brasileira. Rio Grande do Sul: Núcleo de Estudos da Religião, 2015.
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/ner/index.php/estante/visoes-a-
posicoes/69-os-sentidos-do-sacrificio-na-religiosidade-afro-brasileira>. Acesso
em: 12 mai. 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso
em 12 mai. 2019.

JESUS, Jayro Pereira de. Terreiro e cidadania: um projeto de combate ao


racismo cultural religioso afro e de implementação de ações sociais em
comunidades-terreiros..., p. 185-202. In: Ashoka Empreendedores e Takano
Cidadania. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Ed., 2003.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala [livro eletrônico não paginado]. São Paulo:
Pólen, 2019.

STF. Arguição de Descumprimento De Preceito Fundamental nº 54/DF.


Relator: Ministro Marco Aurélio. DJE: 30 abr. 2013.

______. STF. Recurso Extraordinário nº 494.601. Relator: min. Marco


Aurélio. Julg. 28 mar. 2019 (acórdão em fase de estruturação dos votos pelo
min. Edson Fachin).

TADVALD, Marcelo. Direito litúrgico, direito legal: a polêmica em torno do


sacrifício ritual de animais nas religiões afro-gaúchas. Caminhos, Goiânia,
v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007.
232

CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO: CRISE E PERESPECTIVAS.


CONSTITUTIONNALISME BRESILIEN: CRISE ET PERSPECTIVES

Bruno Bertolotti
Felipe José Faria Nascimento

Resumo: O presente trabalho busca demonstrar a crise que vive o


constitucionalismo brasileiro, sobretudo no que diz respeito a atuação
institucionais dos Poderes da Repúblicas e da implementação dos direitos
sociais. A Constituição Federal positivou vários direitos e propagou muitas
promessas, no entanto, o Estado não foi capaz de satisfaze-los, surgindo,
assim, a possibilidade e a oportunidade do alargamento da via jurisdicional.
Palavras-chaves: Constitucionalismo. Crise. Direitos Fundamentais.

Résumé: Le presente travail vise à démontrer la crise que traverse actuellement


le constitutionnalisme brésilien, notamment en ce qui concerne les performances
institutionnelles des puissances des républiques et la mise en œuvre des droits
sociaux. La Constitution fédérale a énoncé de nombreux droits et promesses,
mais l’État n’a pas été en mesure de les remplir, ce qui a permis d’élargir la voie
judiciaire.
Mots-clés: Constitucionalisme. Crise. Droits fondamental.

INTRODUÇÃO

Crise: uma palavra polissêmica, dependendo do campo do conhecimento


que é utilizada pode ter significados diferentes. Para o Sociólogo Zigmund
Bauman a palavra tem relação com as ciências médicas e designa o momento
do tratamento do paciente em que o médico deve escolher qual é a melhor
terapia a ser utilizada, a falta de certeza quanto ao procedimento adotado faz
com que surja a crise.
Neste sentido podemos dizer que o modelo constitucional brasileiro passa
por grande crise. A Constituição Federal que recentemente completou trinta e
um anos de sua promulgação parece não ser capaz de responder os anseios da
sociedade. Embora não seja o escopo do trabalho, a sociedade também se vê
em uma situação que não é das mais confortáveis, é impossível encontrar
consenso, unidade e segurança jurídica, talvez um dos reflexos da pós-
modernidade, possivelmente, caberá ao Judiciário, dentro de parâmetros claros
e bem definidos ser o elo entre sociedade e Constituição, já que os demais
Poderes, estes eleitos e com vocação clara para isso até aqui tem se mostrado
ineficiente.
Caberia aqui, ainda, uma palavra sobre a metodologia adotada no
presente trabalho, que é a metodologia dialética. A teoria crítica será utilizada
com marco teórico para o seu, já que busca-se desvelar os mitos a respeito da
interpretação proativa do Poder Judiciário. A teoria crítica e o próprio proceder
do Judiciário parece ser pautado pela dialética, já que são temas cercados pela
conflituosidade, a qual tem como combustível a sociedade e o ordenamento
jurídico.

DESENVOLVIMENTO
233

A Constituição Federal foi pensada e promulgada para uma realidade que


não mais existia quando da sua promulgação, o passo que foi dado pelo
legislador brasileiro em 1988, os países europeus já haviam realizado no pós-
guerra. Essas palavras não se mostram críticas a Constituição, pelo revés, a
crítica é para a forma de mundo que se criou, este modelo não é novo nem
mesmo imprevisível, o modo de produção econômico capitalista nos levaria a
essa situação mais dia ou menos dia.
É meio a essas tensões sociais, mas não só sociais, sobretudo
econômicas que está a ainda jovem Constituição Brasileira, que positivou em
seu texto, especialmente no capítulo que trata os direitos fundamentais um rol
de direitos sociais. Atribuiu ao Estado a responsabilidade por sua
implementação.
É aqui que reside o maior problema, a Constituição foi elaborada para um
Estado forte e soberano na acepção mais original que o termo possui, mas ao
nascer deparou-se com um Estado impossibilitado de cumprir com o que havia
prometido. É bem verdade que essa impossibilidade acaba se mesclando com a
falta de vontade política, mas a sua principal causa é amistosidade e conciliação
que se busca realizar entre os direitos sociais com os interesses econômicos.
Nesta arena aparece mais um ator, o Judiciário, que se posta entre as
promessas constitucionais e os interesses sociais, sua atuação avança em todos
os eixos, inclusive na promoção dos direitos sociais. Situação problemática é a
falta de um parâmetro ou um limite para sua atuação. Diante deste contexto paira
uma grande desconfiança de todos os atores institucionais.
São estes os problemas que permeiam uma ainda jovem constituição, o
horizonte parece ainda muito nebuloso, não é possível traçar seu futuro, sem um
debate profundo dos problemas que lhe cercam. Incertezas rodam o cenário
jurídico brasileiro, as incertezas e inseguranças são sentimentos próprios das
democracias, mas por outro lado deveria existir certezas e seguranças nas
instituições, no caso brasileiro isso também não ocorre. Neste cenário obscuro
nasce uma certeza: Para trás não se pode voltar, mas existe um grande receio
de avançar. Para o bem ou para o mal, os avanços constitucionais, sobretudo
àqueles ligados aos direitos sociais estão sendo implementados pelo Judiciário,
é neste posto específico que pretendemos fazer uma análise sobre a
possibilidade e limites da atuação jurisdicional.
O objetivo do presente trabalho é demonstrar a crise constitucional que
vive o pais, e a possibilidade de interpretação proativa da Constituição pelo
Judiciário, órgão que, a nosso ver, tem o papel fundamental de garantir os
direitos fundamentais, bem como a responsabilidade de tirar os demais Poderes
da inércia, fenômeno este que os estudiosos dão o nome de judicialização da
política, e alguns, de uma forma pejorativa caracteriza-o como ativismo judicial.
O fenômeno que passou a se chamar de juidicialização da política é uma
questão social, oriunda justamente “por conta da maior consagração de direitos
e regulamentações constitucionais, que acaba por possibilitar um maior número
de demandas”1
Para Luiz Roberto Barroso2, existem três grandes causas para a
judicialização da política, a primeira delas seria a redemocratização do país, a

1 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial – Limites da Atuação do Judiciário. Porto


Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p.33
2 BARROSO, Luiz Roberto. In Anuário Iberoamericano de Justiça Constitucional. Madri, 2009,

n°13, pp. 17-32


234

Constituição de 88 fez com que o judiciário Deixasse de ser um “departamento


técnicoespecializado”, sendo agora um verdadeiro poder político, o qual teria por
uma das suas principais funções fazer valer a constituição. A segunda causa que
o autor especifica é a constitucionalização de algumas matérias que
anteriormente eram tratadas pelo processo político majoritário, e por fim elenca
a última causa referindo-se ao controle de constitucionalidade, que a seu ver
trata-se de um dos mais abrangentes do mundo.
A judicialização da política em si mesmo não seria algo bom ou mau, mas
sim um fenômeno existente face a ineficiência do Estado, e este seria o único
responsável pela sua diminuição ou aumento. “A diminuição da judicialização
não depende, portanto, apenas de medidas realizadas pelo poder Judiciário,
mas sim de uma plêiade de medias que envolvem um comprometimento de
todos os poderes constituídos”3
A Constituição de 1988, é extremamente analítica, trata de inúmeras
questões, inclusive de algumas que não merecem status constitucional. As
constituições contemporâneas convivem de forma harmoniosa com diversas
constituições: a política, a econômica, a financeira, a monetária, a social, a
previdenciária, a cultural, dentre outras.
Dentre essas situações destaque de relevo é a positivação dos direitos
sociais, sobretudo àqueles esculpidos no artigo 6° da Constituição. Para muitos
o legislador constitucional fez apenas fagulhas com sua ação, já que os
conceitos são extremamente abertos, por outro lado também normatizou que a
implementação destes direitos seria de responsabilidade do Estado.
Pois bem, diante da inércia do Poder Legislativo em produzir normas a fim
de regulamentar essas situações, e do Executivo com a não criação de
programas previstos na Lei Maior, possibilitou o alargamento da atuação do
Poder Judiciário, este passou a atuar de forma ampla na esfera interpretativa,
isso aliado ao amplo sistema de controle de constitucionalidade utilizado pelo
Brasil.
Para Monica Herman Cagiano4 este alargamento da função jurisdicional
se deu em face da preocupação com a democracia, alguém deveria proteger “as
soberanas regras esculpidas pela Constituição”, a sua inobservância, sem
alguém para exercer essa vigia e correção de rumos traria irreparáveis danos à
Democracia. Surge assim o que muitos autores passaram a chamar de
neoconstitucionalismo.
Uma das marcas deste novo modelo constitucional é a sua elasticidade e
mutabilidade. O Brasil não teve a iniciativa de traçar os limites da atuação
jurisdicional enquanto interprete da Constituição, em consequência, se quase
nada é sólido, se tudo tende a dissolver, não existe mecanismos possíveis de
garantir os próprios direitos fundamentais, não existe por óbvio qualquer tipo de
segurança jurídica.
Se não existe vontade política para colocar os mais necessitados em uma
situação de igualdade ou no mínimo de dignidade, a fim de que se trave um
verdadeiro e nivelado debate democrático, cabe ao Judiciário, lançando mão dos
instrumentos que possui, realizar a leitura da situação atual e, quando chamado

3 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial – Limites da Atuação do Judiciário.


Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p.32-33
4 HERMAN-CAGGIANO, Monica Herman. In Cadernos de Pós-Graduação em Direito,

Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011


235

a decidir, exercer uma crítica sobre o sistema. Isso deve englobar os


instrumentos jurídicos que estão aquém daquilo que buscou a Lei Maior.5
A transição para o Estado de Liberal de Direito acabou por positivar os
direitos fundamentais, ou então podemos dizer que agora está obrigado a
normas objetivas, “o Estado de direito significa que o poder político está preso e
subordinado a um direito objetivo”6
Ao olharmos para os direitos sociais fundamentais podemos afirmar que
desde a Constituição de 1934 costumava-se alocar os direitos sociais no capítulo
da ordem econômica e social, o que na visão de Sarlet “reduzia sua eficácia e
efetividade, ainda mais que consagrados sob a forma de normas programática”.7
Mas ao analisarmos a Constituição de 1988, percebemos um grande avanço e
conquista quando se trata os direitos sociais dentro do título II: “Dos direitos e
das garantias fundamentais”. Dessa forma, os direitos sociais que sempre foram
relegados a um segundo plano, passaram a obter o status de direitos
fundamentais, e por esse motivo gozam da mesma proteção e tratamento que
estes. De igual modo, demonstrando e reforçando a importância dos direitos
sociais que aparecem no preâmbulo da constituição, quando da afirmação que
o Estado Democrático instituído pela Assembleia Nacional constituinte é
“destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais (...)”8.
Muito embora firmado como direitos fundamentais, os direitos sociais
ainda são demasiadamente relegados, a desculpa para isso na grande maioria
das vezes é a falta de recursos financeiros, razão por que buscou-se na
jurisprudência e doutrina alemã a teoria da reserva do possível, a qual por
exigência de síntese não teremos espaço para abordar em seus contornos
originais.
Fanando Facury Scaff afirma que “todo orçamento possui um limite que
deve ser utilizado de acordo com exigências de harmonização econômica
Geral”9. Para Ana Paula Barcellos “a expressão reserva do possível procura
identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante
das necessidades quase sempre infinitas a serem por elas supridas”10.
Para solucionar o dilema, de um lado o cidadão clamando pelos direitos
sociais, de outro o Estado alegando falta de recurso, quadro em que o Judiciário
passa a desempenhar papel cada vez mais ativo no cenário dos direitos sociais

5 BERTOLOTTI, Bruno e GONZALES, Everaldo Tadeu Quilicci Gonzales. Proatividade


interpretativa do Judiciário e Teoria Crítica. In: XXV Congresso do Conpedi – Curitiba, 2016. GT
Filosofia do Estado, acesso em: www.conpedi.org.br em publicações.
6 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 14ª ed. – São

Paulo: Saraiva, 2012, p.20.


7 SARLET. Ingo Wolfgang. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br/pdf_seguro/revista-

dialogo-juridico-01-2001-ingo-sarlet.pdf. Acesso em 9 jul. 2015.


8 “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para

instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e


individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
9 SCAFF, Fernando Fecury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. 151. In

SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (organizadores). Direitos fundamentais:


orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 150.
10 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio

da dignidade da pessoa humana. 3º ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 276.


236

fundamentais. Luiz Roberto Barroso afirma que após a Segunda Guerra Mundial
é possível verificar nos países ocidentais um avanço da justiça constitucional
sobre o espaço da política majoritária, entendendo por política majoritária aquela
que é feita no âmbito do Executivo e Legislativo, a qual tem por combustível o
voto popular11.
Ao solucionar um problema cria-se outro, que consiste basicamente na
possibilidade de o Judiciário desempenhar esse papel e qual seria o seu limite,
já que habitualmente caberia ao Judiciário somente controlar a legalidade dos
atos administrativos e não o mérito.
Paulo Bonavides dá ênfase quanto à relevância do papel judiciário,
na efetivação dos direitos fundamentais, já que o referido órgão não deve
somente interpretar, mas, principalmente, concretizar. Daí porque “o juiz
constitucional, tendo por incumbência proteger os direitos fundamentais, faz da
concretização tarefa essencial”12.
Para Ana Paula Barcelos, a legitimidade dos tribunais é no sentido de
determinar as prestações necessárias à satisfação do mínimo existencial, o qual
corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência
humana digna. Entende, assim, que o mínimo existencial é composto por quatro
elementos, três materiais e um instrumental, quais sejam: educação
fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e o acesso à Justiça.
Reconhece, ainda, que essas prestações poderão ser exigidas judicialmente de
forma direta, caracterizando-se verdadeiros direitos subjetivos.13

CONCLUSÃO

A crise que se instaurou na sociedade é inegável, a crise não é somente


do constitucionalismo, trata-se de uma crise social, de identidade. Os poderes
institucionais, investidos na clara missão de traçarem políticas públicas
emancipatórias quedam-se inerentes.
Neste cenário de crise vimos que o Judiciário acaba por ser a última
trincheira do cidadão, ainda que acessível à poucas pessoas. Os direitos
fundamentais prometidos pela constituição sofrem com sua inefetividade por
parte do Estado, embora tenha nascido claramente com tal vocação sua inércia
é fator impeditivo para o implemento.
A clara falta de vontade política aliado a valsa que envolve Estado poder
econômico faz com que o estado de crise se aprofunde, neste cenário é preciso
ter esperança, mesmo que de certa forma contrário a democracia, o Judiciário
passa a ser responsável pelas promessas constitucionais. Ainda não sabemos
se é o melhor tratamento, enquanto isso vivemos entre as incertezas e as crises.

REFERÊNCIAS

11 BARROSO, Luiz Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática.


Disponível em: http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_Cached.pdf. Acesso
em 15jul. 2015.
12 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.

558
13
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio
da dignidade da pessoa humana. 3º ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 230, 257 e 288
237

BARROSO, Luiz Roberto. In Anuário Iberoamericano de Justiça Constitucional.


Madri, 2009, n°13.

___________Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática.


Disponível em:
http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_Cached.pdf

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios


constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 3º ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2011.

BAUMAN,Zygmunt e BORDONI ,Carlo. Estado de Crise. 1° Ed. Rio de


Janeiro: Zaha. 2016.

BERTOLOTTI, Bruno e GONZALES, Everaldo Tadeu Quilicci Gonzales.


Proatividade interpretativa do Judiciário e Teoria Crítica. In: XXV Congresso do
Conpedi – Curitiba, 2016. GT Filosofia do Estado, acesso em:
www.conpedi.org.br em publicações.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo:


Malheiros, 1998.

HERMAN-CAGGIANO, Monica Herman. In Cadernos de Pós-Graduação em


Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São
Paulo, n. 1, 2011.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 14ª


ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.

SCAFF, Fernando Fecury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do


possível. 151. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti
(organizadores). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010

SARLET. Ingo Wolfgang. Disponível em:


http://www.direitopublico.com.br/pdf_seguro/revista-dialogo-juridico-01-2001-
ingo-sarlet.pdf.

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial – Limites da Atuação


do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
238

DEMOCRACIA EM CRISE? REFLEXÕES SOBRE O PERIGO DE COLAPSO


DO REGIME DEMOCRÁTICO
DEMOCRACY IN CRISIS? REFLECTIONS ON THE DEMOCRATIC REGIME
COLLAPSE DANGER

Ney Alves Veras


Orientador(a): Vladmir Oliveira da Silveira

Resumo: O objetivo deste trabalho é o de discutir dificuldades pelas quais


atravessa a democracia na sociedade brasileira, seus avanços e retrocessos,
com breve análise de sua origem clássica até a atualidade. Busca analisar, de
maneira sintética, o ideal democrático, a origem da democracia e sua evolução,
enfrentando a problemática da democracia, partidos e sistema eleitoral e político.
Através de pesquisa bibliográfica, com análise da evolução doutrinária a respeito
do o assunto, o tema se justifica pela fundamental importância da democracia no
sistema político brasileiro, concluindo-se pela vulnerabilidade da democracia nos
tempos atuais.
Palavras-chave: Democracia. Partidos políticos. Sistema eleitoral.

Summary: The aim of this paper is to discuss the difficulties that democracy is
going through in Brazilian society, its advances and setbacks, with a brief
analysis of its classical origin to the present day. It seeks to analyze, in a
synthetic way, the democratic ideal, the origin of democracy and its evolution,
facing the problematic of democracy, parties and electoral and political system.
Through bibliographic research, with analysis of doctrinal evolution on the
subject, the theme is justified by the fundamental importance of democracy in
the Brazilian political system, concluding by the vulnerability of democracy in
the present times.
Keywords: Democracy. Political parties. Electoral system.

1. INTRODUÇÃO: O IDEAL DEMOCRÁTICO

A democracia mostra-se como a melhor escolha política no mundo


moderno. As alternativas à democracia como a fascista, nazista, comunista,
ditaduras militares, apenas citando alguns exemplos, mostraram-se desastrosas.
Tais regimes antidemocráticos do século XX apresentaram ao mundo alguns dos
piores exemplos de organização política e social. E como adverte Mônica Herman
Salem Caggiano, “ademais, com o fim da cortina de ferro a queda do muro de
Berlim, a independência dos estados africanos e a adoção de uma economia de
mercado no mundo asiático, observa-se uma tendência clara da democracia de
se transformar em regime político universal”1.
E será que aprendemos com isso? Aparentemente não, pois continuam a
existir tendências e movimentos antidemocráticos pelo mundo todo, muitas vezes
associados ao extremismo, ao fanatismo (religioso ou não), ao autoritarismo e
ânsia pelo poder absoluto, o que corrompe os sistemas políticos e eleitorais.

1 CAGGIANO, Mônica Herman Salem. Democracia x constitucionalismo – um navio à


deriva? In: Cadernos de Pós-Graduação em Direito – estudos e documentos de trabalho.
Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP. n São Paulo: Manole Editora,
2011, p. 11.
239

Mas o que diferencia um governo democrático de ou não democrático? De


acordo com Robert A. Dahl, “os 25 séculos em que tem sido discutida, debatida,
apoiada, atacada ignorada, estabelecida, praticada, destruída e depois às vezes
restabelecida aparentemente não resultaram em concordância sobre algumas das
questões fundamentais sobre a democracia2
Muitas vezes, ditadores chegam ao poder democraticamente, como Adolf
Hitler, Alberto Fujimori no Peru, Hugo Chávez na Venezuela, citando-se apenas
alguns exemplos de Nações onde “uma mistura letal de ambição, medo e cálculos
equivocados conspirou para levá-las ao mesmo erro: entregar
condescendentemente as chaves do poder a um autocrata em construção”3
Ocorre que a democracia tem significado diferente, para povos e culturas
diferentes, e em períodos históricos distintos. Democracia pressupõe o voto, a
participação livre e soberana do povo. A eleição é “o sistema por excelência pelo
qual o povo se manifesta. Disto resulta a óbvia importância do sistema eleitoral,
que se liga intimamente com o sistema de partidos, para a sua concretização”. 4
Ainda de acordo com Robert. A. Dahl, a democracia apresenta
consequências desejáveis, como o de evitar a tirania, garantir os direitos
essenciais e a liberdade geral, além da autodeterminação dos povos e sua
autonomia moral, potencializar o desenvolvimento humano e proteger os
interesses pessoais essenciais, promover igualdade política, além de buscar a paz
e prosperidade5

2. A ORIGEM DA DEMOCRACIA E SUA EVOLUÇÃO

A despeito da origem clássica, mesmo países com destacada posição


sócio-econômica enfrentam obstáculos à democracia, um regime sensível ao
clamor popular e aos avanços totalitários. A propósito, “hoje se percebe um nítido
avanço nos questionamentos acerca do velho constitucionalismo e sua
conformização às novas demandas de prática democrática” 6
Democracia como antítese de um governo autocrático caracteriza-se por
regras e procedimentos próprios, como adverte Norberto Bobbio:

“o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia


entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático,

2 DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora da


Universidade de Brasília 2001, p. 12.
3 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato

Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 26.


4 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Democracia, Partidos e Sistema Eleitoral. In:

CAGGIANO, Mônica Herman Salem (Coord). Direito Eleitoral em debate – estudos em


homenagem a Cláudio Lembo. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 368.
5 DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora da

Universidade de Brasília 2001, p. 58. Ainda de acordo com o autor, “o problema fundamental e
mais persistente na política talvez seja evitar o domínio autocrático. Em toda a história registrada,
incluindo este nosso tempo, líderes movidos por megalomania, paranoia, interesse pessoal,
ideologia, nacionalismo, fé religiosa, convicções de superioridade inata, pura emoção ou simples
impulso exploraram as excepcionais capacidades de coerção e violência do estado para atender
a seus próprios fins. Os custos humanos do governo despótico rivalizam com os custos da
doença, da fome e da guerra” (p. 59).
6 CAGGIANO, Mônica Herman Salem. Democracia x constitucionalismo – um navio à

deriva? In: Cadernos de Pós-Graduação em Direito – estudos e documentos de trabalho.


Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP. n São Paulo: Manole Editora,
2011, p.17
240

é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias


ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar
decisões coletivas e com quais procedimentos” 7

E são vários os fatores que ensejam o esvaziamento democrático em vários


períodos da história, baseados, por exemplo, em

“diferenças entre direitos, deveres, influência e a força de escravos e


homens livres, ricos e pobres, proprietários e não-proprietários de terras,
senhores e servos, homens e mulheres, trabalhadores independentes e
aprendizes, artesãos empregados e donos de oficinas, burgueses e
banqueiros, senhores feudais e rendeiros, nobres e gente do povo,
monarcas e seus súditos, funcionários do rei e seus subordinados.
Mesmo os homens livres eram muito desiguais em status, fortuna
trabalho, obrigações, conhecimento, liberdade, influência e poder. Em
muitos lugares, a mulher de um homem livre era considerada
propriedade sua por lei, pelo costume e na prática. Assim, como sempre
acontecia em todos os cantos, a lógica da igualdade mergulhava de
cabeça na desigualdade irracional” 8

Pode-se afirmar que a democracia é discutida pelos povos há cerca de


2.500 anos, desde a Grécia antiga e em Roma. De acordo com Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, “a democracia, na lição dos antigos, era uma forma de governo na
qual o povo diretamente decidia as questões políticas fundamentais. O seu órgão
máximo era, assim, a assembleia de cidadãos. É o que se vê na memorável
experiência ateniense do tempo de Péricles”9
Na Grécia clássica, composta por várias cidades-estado em que se
destacava Atenas, nesta adotou-se um sistema de governo popular que perdurou
por dois séculos. A propósito, “foram os gregos – provavelmente os atenienses –
que cunharam o termo demokratia: demos, o povo e kratos, governar” 10. A
democracia de Atenas era a mais importante entre as cidades gregas, um
paradigma de democracia participante.
Em Roma, aproximadamente no mesmo período em que foi implementado
na Grécia, os romanos chamaram tal sistema de república (onde res, que em latim
significa coisa ou negócios), e publicus – ou seja, a república significava
etimologicamente como sendo uma ‘coisa pública’ ou ‘negócios do povo’.
Os romanos restringiam o direito de participação no governo aos aristocratas,
sendo que apenas com o tempo e luta a plebe (povo) adquiriu igual direito, restrito

7
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia – uma defesa das regras do jogo. Coleção
pensamento crítico, n. 63. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 6.ed., Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986, p. 17.
8 DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora da

Universidade de Brasília 2001, p. 33.


9 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Democracia, Partidos e Sistema Eleitoral. In:

CAGGIANO, Mônica Herman Salem (Coord). Direito Eleitoral em debate – estudos em


homenagem a Cláudio Lembo. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 367.
10 DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora da

Universidade de Brasília 2001, p. 21. De acordo com o autor, “Por falar nisso, é interessante
saber que em Atenas, embora a palavra demos em geral se referisse a todo o povo ateniense,
às vezes, significava apenas a gente comum ou apenas o pobre. Às vezes, demokratia era
utilizada por seus críticos aristocráticos como uma espécie de epíteto, para mostrar seu desprezo
pelas pessoas comuns que haviam usurpado o controle que os aristocratas tinham sobre o
governo. Em quaisquer dos casos, demokratia era aplicada pelos atenienses e por outros gregos
ao governo de Atenas e ao de muitas cidades gregas”.
241

aos homens. A democracia romana durou mais que a ateniense, até cerca de 130
a.C, quedando com a ditadura de Júlio César e, após seu assassinato em 44 a.C.
sucedida por um império. O governo popular ressurgiu na Itália por volta de 1100
d.C.
A democracia surgiu e se desenvolveu através dos tempos pela
propagação de ideais democráticos, mas tudo sempre depende e dependeu da
sua definição. Até porque o próprio populismo tenta justificar seu fortalecimento
no próprio conceito de democracia. Os debates em torno das relações do
populismo com a democracia estão ligados à definição desta, como destaca
Carlos de La Torre11. Mas Robert. A. Dahl prefere chamá-los de governos
populares, e adverte:

“parte da expansão da democracia (talvez boa parte) pode ser atribuída


à difusão de idéias e práticas democráticas, mas só a difusão não explica
tudo. Como o fogo, a pintura ou a escrita, a democracia parece ter sido
inventada mais de uma vez, em mais de um local. Afinal de contas, se
houvesse condições favoráveis para a invenção da democracia em um
momento, num só lugar (por exemplo, em Atenas, mais ou menos 500
a.C.), não poderiam ocorrer semelhantes condições favoráveis em
qualquer outro lugar?. Pressuponho que a democracia possa ser
inventada e reinventada de maneira autônoma sempre que existirem a
condições adequadas(...)”12

E as condições para que a democracia se estabeleça em determinado


estado ou país são fruto de uma evolução histórica e sociológica complexa, com
ênfase na hierarquização da sociedade, seja na forma de monarquias, regimes
despóticos, aristocracias ou mesmo oligarquias.
E para designar os governos populares os gregos se utilizaram do termo
democracia, e os romanos tiraram do latim a expressão república, nome dado aos
governos italianos posteriormente.

3. O PERIGOSO COLAPSO DO REGIME DEMOCRÁTICO

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard, enfrentam a


temática do declínio da democracia no mundo e em especial nos Estados Unidos,
sobretudo a partir da ascensão de Donald Trump à Presidência daquele país.
Fatores como intimidação da imprensa e abuso nas redes sociais são fatores
preocupantes, gerando preocupação sobre como as democracias morrem... A
visão geral sobre o tema, repousa no precedente de que as democracias morrem
nas mãos de homens armados, por golpes ou coerção militares. Porém, existem
outras maneiras de uma democracia ser arruinada, como nas mãos de homens
eleitos, sob o manto de um verniz democrático. Segundo os autores,

11 TORRE Carlos de La. El populismo y la promessa de uma democracia más inclusiva. In:
RIVERO Ángel; ZARZALEJOS, Javier; PALACIO, Jorge Del (Coord). Geografía del populismo
– um viaje por el universo del populismo desde sus Orígenes hasta Trump. 2.ed. Madrid:
Tecnos, 2018, p. 54. De acordo com o autor, “quienes entendem la democracia como uma serie
de instituciones que garantizan el pluralismo, la alternância em el poder a través de eleccione
limpias, la división de poderes y la defensa de los derechos civiles vem em el populismo uma
amenaza y um perigo”.
12 DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora da

Universidade de Brasília 2001, p. 19.


242

“Uma vez que um aspirante a ditador consegue chegar ao poder, a


democracia enfrenta um segundo teste crucial: irá ele subverter as
instituições democráticas ou ser constrangido por elas? As instituições
isoladamente não são o bastante para conter autocratas eleitos.
Constituições têm que ser defendidas – por partidos políticos e cidadãos
organizados, mas também por normas democráticas. Sem normas
robustas, os freios e contrapesos constitucionais não servem como os
bastiões da democracia que nós imaginamos que eles sejam. As
instituições se tornam armas políticas, brandidas violentamente por
aqueles que as controlam contra aqueles que não a controlam. É assim
que os autocratas eleitos subvertem a democracia – aparelhando
tribunais e outras agências neutras e usando-os como armas,
comprando a mídia e o setor privado (ou intimidando-os para que se
calem) e reescrevendo as regras da política para mudar o mando de
campo e virar o jogo contra os oponentes. O paradoxo trágico da via
eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam
as próprias instituições da democracia – gradual, sutil e mesmo
legalmente – para matá-la” 13

Em todas as democracias existem demagogos em potencial. Uma


conjugação de fatores direciona o curso de sua ascensão ao poder, inclusive com
aclamado apoio público. Os partidos políticos, que deveriam servir de filtro,
evitando a mera candidatura de indivíduos que apresentassem sinais de
autoritarismo, atuam como uma empresa de negócios...
E não existe, afinal, um alerta realmente seguro de que a democracia esteja
sendo ameaçada, e por isso muitos presidentes autoritários chegam ao poder sem
a percepção ou mera preocupação da sociedade a que deveriam servir. A
democracia liberal como a conhecemos está sendo testada ao limite, e como
adverte Manuel Castells, “aposta-se no surgimento dessa nova ordem de uma
nova política que substitua a obsoleta democracia liberal que, manifestadamente,
está caindo aos pedaços em todo o mundo, porque deixa de existir no único lugar
em que pode perdurar: a mente dos cidadãos”14
Afinal, os políticos podem facilmente reforçar a democracia ou arruiná-la.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt desenvolveram um conjunto de sinais de alerta
para nos ajudar a reconhecer um autoritário, o que ocorre quando os políticos “1)
rejeitam, em palavras ou ações, as regras democráticas do jogo; 2) negam a
legitimidade dos oponentes; 3) toleram e encorajam a violência; e 4) dão
indicações de disposição para restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a
mídia” 15 .Os autores construíram inclusive uma interessante tabela:

Os quatro principais indicadores de comportamento autoritário,


de acordo com Steven Levitsky e Daniel Ziblatt16 (Como as democracias morrem)
Os candidatos rejeitam a Constituição ou expressam disposição de
violá-la?
1. Rejeição das regras
democráticas do jogo

13
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Zahar, 2018, p. 20.
14
CASTELLS, Manuel. Ruptura – a crise da democracia liberal.Tradução de Joana Angélica d’Ávia Melo.
Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 111.
15
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Zahar, 2018, p. 34-35.
16
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Zahar, 2018, p. 36-37.
243

(ou compromisso débil Sugerem a necessidade de medidas antidemocráticas, como cancelar


com elas) eleições, violar ou suspender a Constituição, proibir certas organizações
ou restringir direitos civis ou políticos básicos?
Buscam lançar mão (ou endossar o uso) de meios extraconstitucionais
para mudar o governo tais como golpes militares, insurreições violentas
ou protestos de massa destinados a forçar mudanças no governo?
Tentam minar a legitimidade das eleições, recusando-se por exemplo,
a aceitar resultados eleitorais dignos de crédito?
Descrevem seus rivais como subversivos ou opostos à ordem
constitucional existente?
Afirmam que seus rivais constituem uma ameaça, seja à segurança
2. Negação da nacional ou ao modo de vida predominante?
legitimidade dos Sem fundamentação, descrevem seus rivais partidários como
oponentes políticos criminosos cuja suposta violação da lei (ou potencial de fazê-lo)
desqualificaria sua participação plena na arena política?
Sem fundamentação, sugerem que seus rivais sejam agentes
estrangeiros, pois estariam trabalhando secretamente em aliança com
(ou usando) um governo estrangeiro – com frequência um governo
inimigo?
Têm quaisquer laços com gangues armadas, forças paramilitares,
milícias, guerrilhas ou outras organizações envolvidas em violência
ilícita?
3. Tolerância ou Patrocinaram ou estimularam eles próprios ou seus partidários
encorajamento à ataques de multidões contra oponentes?
violência Endossaram tacitamente a violência de seus apoiadores, recusando-
se a condená-los e puni-los de maneira categórica?
Elogiaram (ou se recusam a condenar) outros atos significativos de
violência política no passado ou em outros lugares do mundo?
Apoiaram leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como
expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos
4. Propensão a e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou políticas?
restringir liberdades Ameaçaram tomar medidas legais ou outras ações punitivas contra
civis de oponentes, seus críticos em partidos rivais na sociedade civil ou na mídia?
inclusive a mídia Elogiaram medidas repressivas tomadas por outros governos, tanto
no passado quanto em outros lugares no mundo?

O mero enquadramento em qualquer destes fatores já é preocupante, isso


somado ao viés populista de políticos antiestablishment, que “traduzem o
sentimento das massas” e se dizem a salvação. No Brasil, por exemplo, muitos
outsiders sem qualquer experiência ou talento para a coisa pública já se elegeram
com record de votos. E quando populistas vencem as eleições, não é nada
incomum investirem sobre garantias democráticas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: DEMOCRACIA, PARTIDOS E O SISTEMA


ELEITORAL E POLÍTICO

Não se pode falar em democracia sem que se trate da questão dos partidos
políticos, pressuposto da democracia contemporânea, e a vinculação de um
candidato a eles é decisiva. Segundo a visão de Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
“a análise dos sistemas eleitorais exige o exame do sistema de partidos. Um
implica o outro, um influencia o outro, num processo de realimentação (feedback).
244

O que obriga este trabalho enfrenta os sistemas eleitorais e partidários, que


reciprocamente interagem”17
Após a segunda guerra mundial os partidos foram reconhecidos como
elemento necessário, constitucionalmente, no processo político. O problema é
questionar se é incurável a “doença oligárquica dos partidos” 18, expressão
utilizada por Robert Michels. Neste ponto, a importância atribuída às massas
populares é grande, pois muitas vezes são guiadas por demagogos. Soma-se a
isso o clamor repentino das mídias sociais, o que está muito presente na
sociedade moderna, cada vez mais tecnológica.
Maurice Duverger ensina que partidos eram facções em que se dividiam as
repúblicas antigas, eram clubes onde se reuniam deputados das assembleias
revolucionárias, “bem como as vastas organizações populares que enquadram a
opinião pública nas democracias modernas”19. Segundo Duverger, até 1850
nenhum país do mundo conhecia os partidos políticos tal como concebidos
atualmente, a exceção dos Estados Unidos. Os partidos sofrem, ainda hoje,
profunda influência das suas origens, com ênfase nas circunstâncias do seu
nascimento.
Christopher H. Achen & Larry M. Bartels provocam uma reflexão sobre uma
nova visão de democracia de acordo com a real natureza dos cidadãos,
empregando-se para isto a riqueza de evidências sócio-científicas para ressaltar
que a idéia de voto puro e simples como manifestação de solidez democrática, é
equivocada. Ou seja, as eleições, de acordo com o modelo atual, são enganosas,
e por isso nossa democracia é vulnerável, quando baseadas na preferência de
cada eleitor, e não em identidade de idéias e planos de governo e partidos
políticos20.

5. REFERÊNCIAS

ACHEN, Christopher H; BARTELS, Larry M. Democracy for realists – why


elections do not produce responsive government. New Jersey: Princeton
University Press, 2016.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia – uma defesa das regras do


jogo. Coleção pensamento crítico, n. 63. Tradução de Marco Aurélio Nogueira.
6.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

CAGGIANO, Mônica Herman Salem. Democracia x constitucionalismo – um


navio à deriva? In: Cadernos de Pós-Graduação em Direito – estudos e
documentos de trabalho. Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito
da USP. n São Paulo: Manole Editora, 2011.

17 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Democracia, Partidos e Sistema Eleitoral. In:


CAGGIANO, Mônica Herman Salem (Coord). Direito Eleitoral em debate – estudos em
homenagem a Cláudio Lembo. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 370.
18 MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Trad. Arthur Chaudon. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1982, p. 219.


19 DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Tradução de Cristiano Monteiro Ortega. Rio de

Janeiro: Zahar Editores, 1987, p.19.


20 ACHEN, Christopher H; BARTELS, Larry M. Democracy for realists – why elections do not

produce responsive government. New Jersey: Princeton University Press, 2016.


245

CASTELLS, Manuel. Ruptura – a crise da democracia liberal.Tradução de


Joana Angélica d’Ávia Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília:


Editora da Universidade de Brasília 2001.

DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Tradução de Cristiano Monteiro


Ortega. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1987.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Democracia, Partidos e Sistema


Eleitoral. In: CAGGIANO, Mônica Herman Salem (Coord). Direito Eleitoral em
debate – estudos em homenagem a Cláudio Lembo. São Paulo: Saraiva, 2013.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem.


Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018..

MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Trad. Arthur Chaudon.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.

TORRE Carlos de La. El populismo y la promessa de uma democracia más


inclusiva. In: RIVERO Ángel; ZARZALEJOS, Javier; PALACIO, Jorge Del
(Coord). Geografía del populismo – um viaje por el universo del populismo
desde sus Orígenes hasta Trump. 2.ed. Madrid: Tecnos, 2018.
246

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: AINDA A QUESTÃO DA


SOLIDARIEDADE ENTRE OS ENTES FEDERATIVOS
FUNDAMENTAL RIGHT TO HEALTH: STILL THE QUESTION OF
SOLIDARITY BETWEEN THE DIFFERENT LEVELS OF GOVERNMENT

Michel Ernesto Flumian


Aldo Aranha de Castro

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a análise do direito fundamental


à saúde, em especial quanto à efetividade da prestação do direito em tela, eis
que tanto a doutrina como a jurisprudência afirmam que os entes estatais são
solidariamente responsáveis pelas prestações, o que não estaria adequado a
uma interpretação constitucional que promova a viabilidade do direito.
Inicialmente, faz-se uma breve abordagem do direito fundamental à saúde e o
seu arcabouço jurídico. Toma-se por caso paradigma o Recurso Extraordinário
nº 855.178, repercussão geral, o qual permite uma análise crítica da prestação
jurisdicional, a qual caminha para uma melhor racionalização dos recursos. O
trabalho será desenvolvido a partir do método hipotético-dedutivo, com pesquisa
em doutrina, artigos científicos, legislação e decisões judiciais, no intuito de
destacar a preocupação em preservar o direito de toda a sociedade.
Palavras-chave: Direito da saúde. Solidariedade. Subsidiariedade.

Abstract: This paper aims to analyze the fundamental right to health, especially
as to the effectiveness of the provision of the right in question, as both doctrine
and jurisprudence claim that state entities are jointly and severally responsible
for the provisions, which would not be appropriate a constitutional interpretation
that promotes the viability of the right. Initially, a brief approach to the fundamental
right to health and its legal framework is presented. A case in point is the
Extraordinary Appeal nº. 855.178, general repercussion, which allows a critical
analysis of the jurisdictional render, which is moving towards better resource
rationalization. The work will be developed from the hypothetical-deductive
method, with research in doctrine, scientific articles, legislation and court
decisions, in order to highlight the concern to preserve the right of the whole
society.
Keywords: Health law. Solidarity. Subsidiarity.

INTRODUÇÃO

A especial relevância conferida à saúde em razão de seu vínculo direto


com a vida de cada indivíduo, confia ao tema importância singular, posto que
envolve necessidades primárias do ser humano e a existência de um sistema
complexo de atribuições decorrente de decisões tomadas por gestores, pela
população organizada e preocupações quanto à exequibilidade dos planos
traçados, em especial na área de saúde.
A eficácia do Direito à Saúde, sobretudo vista do prisma da prestação
jurisdicional, depende da observância das políticas sociais e econômicas
propostas pela Constituição Federal, regulamentadas infra constitucionalmente,
em consonância com diversos outros balizadores postos à disposição do
julgador, uma vez que a oportunidade do gozo do direito à saúde deve estar à
247

disposição de todos e não somente pronta a atender aqueles que buscam o


direito perante os tribunais.
O acesso igualitário e universal descrito no artigo 196 da Constituição
Federal não importa na responsabilidade irrestrita dos entes de direito público
pelo fornecimento de medicamentos e prestação de serviços na área da saúde,
sobretudo dos pequenos municípios, de pequeno orçamento, hipossuficientes
técnica e estruturalmente ante a complexidade e imensidão dos prestadores de
serviço e industriais vinculadas à área de saúde. Demonstrar-se-á que existe
uma composição constitucional para garantia do acesso à saúde, quais são suas
implicações na legislação infraconstitucional e igualmente criticar o
posicionamento do Judiciário quanto à imposição de solidariedade dos entes
federativos na prestação de serviços relacionados ao tema.

O DIREITO DA SAÚDE, EVOLUÇÃO E OPOSIÇÃO À COMPETÊNCIA


SOLIDÁRIA DOS ENTES PÚBLICOS, POR SUA EFETIVIDADE

A incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos “naturais” e


“inalienáveis” do indivíduo não passa de esperança, aspiração, ideia, impulso,
ou, até, por vezes, mera retórica política se não lhe for assinalada “a dimensão
de Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as
normas constitucionais”, quando aí estarão protegidos “sob a forma de normas
(regras e princípios) de direito constitucional” Para (CANOTILHO, 2006, p. 377)
e para tanto se faz necessária uma teoria dos direitos fundamentais concernente
com o padrão constitucional adotado pela República e que se propõe a instaurar
um Estado Democrático de Direito, no qual a consagração dos Direitos e
Garantias Fundamentais ocupa uma posição de destaque (GUERRA FILHO,
2005, p. 30)
Vale dizer que os direitos fundamentais e, acima de tudo, a dignidade da
pessoa humana a que se referem, são indissociáveis, estando no centro do
discurso jurídico constitucional e conforme destaca Manuel Gonçalves Ferreira
Filho (2016, p. 57) com impulso extraordinário após as Grandes Guerras, e ainda
como forma de responder aos novos desafios.
A saúde, como política pública e obrigação do Estado, primeiro se
concretizou nos países germânicos, tornando-se direito do homem com a
menção feita na Declaração dos Direitos, promulgada pela França. A
proclamação da liberdade e da igualdade do indivíduo, da prevalência da nação
e da lei, foi um marco a contribuir, in casu, para a o desenvolvimento de um
sistema nacional de assistência, incluindo-se a médica, não só na França, mas
em diversos países da Europa (RAEFFRAY, 2005, p. 63). “Pode-se dizer que a
saúde dentro dos padrões do individualismo liberal que floresceu no séc. XIX é
uma saúde ‘curativa’, ligada ao que a moderna doutrina atual chama de aspecto
negativo da saúde: a ausência de enfermidades” (SCHWARTZ, 2001, p. 33),
porém, em 26 de julho de 1946, constituída a Organização Mundial da Saúde
(OMS), ergue-se um marco teórico em seu preâmbulo, que em certa altura diz:
“saúde é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência
de doenças”.
Ieda Tatiana Cury perante a construção histórica e evolutiva do conceito
de saúde aduz que de modo geral pode-se constatar ser necessária a
intervenção estatal para garantir um piso mínimo de condições de dignidade à
pessoa humana, o que culmina com o reconhecimento de alguns direitos pelo
248

Estado, destacando-se o direito à saúde (2005, p. 38), tal como na Constituição


Mexicana de 1917 e a de Weimar na Alemanha, em 1919. Dentre outros
diplomas, o direito à saúde foi objeto do Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, de 03 de janeiro de 1976, especificamente nos
artigos 1º, 2º e 12. A consagração da saúde como direito fundamental é uma
realidade, pois não só foi mencionada diretamente pelo texto da Constituição em
capítulo próprio, mas também faz parte da estrutura básica do Estado e da
Sociedade (SARLET, 2006, p. 79).
A concepção de Direito como o justo-objetivo, o justum, oriunda do Direito
Romano e reafirmada por juristas, tais como Karl Engisch, Geny e Michel Villey,
compromissa o intérprete com o descobrimento do “justo” e como assegurá-lo.
“A lei (direito-norma) não é propriamente ‘o direito’, mas uma de suas fontes”.
Tampouco o direito subjetivo é o direito, mas o poder de exigi-lo ou o seu
reconhecimento. “A Ciência do Direito é assim chamada porque ela é o conjunto
de conhecimentos que tem por objeto o justo e suas manifestações.” Essa
interpretação corresponde à natureza fundamental do direito (MONTORO, 2000,
p. 47).
(...) a referência à regra de direito vista por dentro implica
necessariamente a compreensão do direito como regra do
comportamento humano em sociedade. De fato, as normas jurídicas
representam as limitações às condutas nocivas para a vida social.
Assim sendo, a saúde, definida como direito, deve inevitavelmente
conter aspectos sociais e individuais (DALLARI, 1988).

É este equilíbrio instável que alguns procuram manter, concebendo o


Direito da Saúde, seja na origem, seja no momento de sua interpretação, como
instrumento de segurança na prestação do direito individual e coletivo da saúde,
em vistas a proporcionar reais condições de acesso a todos que necessitam de
uma prestação positiva do Estado e não da falsa propaganda de que o governo
deve salvar a todos, entregar a todos e fazer tudo a todos, pois não construímos
uma democracia falaciosa, fantasiosa ou utópica, devendo prevalecer o
horizonte da melhor prestação possível, o que implica na atuação do Poder
Judiciário, cuja atuação há muito é discutida em terras norte-americanas, a
exemplo do papel apropriado e atuação de juízes não eleitos na democracia
constitucional. Nesse sentido, destaca Andrei Koerner, que “se supõe que haja
um padrão histórico objetivo para apreciar e determinar as formas legítimas de
atuação dos tribunais”, que envolva, minimamente, “a exterioridade das normas,
a abstração das categorias, a neutralidade dos juízes e a fixidez das decisões
judiciais” (2016, p. 252).
Não é um direito (fundamental) de via única, necessário sopesar os
reflexos e efeitos de uma decisão em âmbito social, não é razoável que a mesma
dê a uns poucos o direito pleiteado e impossibilite a prestação a tantos outros,
afinal, os direitos sociais a prestações “(...) ao contrário dos direitos de defesa,
não se dirigem à proteção da liberdade e igualdade abstrata, mas, sim, (...)
encontram-se intimamente vinculados às tarefas de melhoria”, as quais
importam em “distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como à
criação de bens essenciais não disponíveis para todos os que deles necessitem”
(SARLET, 2006, p. 298).
Os custos assumem “especial relevância no âmbito de sua eficácia e
efetivação, [...] dependendo, em última análise, da conjuntura econômica”
(SARLET, 2006, p. 300) e a solução preconizada por Alexy, segundo Ingo
249

Wolfgang Sarlet, impõe a otimização, ou seja, a maximização, da eficácia dos


direitos fundamentais sociais, afinada com a norma contida no art. 5º, § 1º, da
CF, não que todos possam ser realizados plenamente. O autor toma como
exemplo o direito à saúde e, em síntese, diz que sua proteção deve ser realizada
em condições materiais mínimas para uma existência digna. “O princípio da
dignidade humana assume (...) importante função demarcatória, podendo servir
de parâmetro para avaliar qual o padrão mínimo em direitos sociais a ser
reconhecido” (SARLET, 2002, p. 64).
Sueli Gandolfi Dallari assevera que “(...) o julgador deve certificar-se de
que as políticas públicas de saúde relacionadas à prestação de serviços públicos
necessários à garantia do direito à saúde foram elaboradas segundo o processo
previsto constitucionalmente”, em especial se houve participação popular efetiva
em sua elaboração e se a comunidade segue fiscalizando sua implementação
(exigência da Constituição da República, art. 198, III) (2014, p. 11).
Em boa hora, houve a criação pelo Conselho Nacional de Justiça das
Jornadas Nacionais de Saúde, a primeira em 2014, para o monitoramento e a
resolução das demandas de assistência à saúde. Contudo, por mais que se
tenha evoluído qualitativamente na forma de tratar a questão, reduzindo a
atecnia, um ponto ainda precisa ser avaliado de forma harmônica com a
evolução alcançada em outros aspectos, qual seja, o de que a obrigação na
prestação de saúde seria solidária entre os entes da Federação, e, para tal
análise tomar-se-á como ponto de partida o Recurso Extraordinário nº 855.178,
repercussão geral, com voto condutor da lavra do Ministro Luiz Fux, cuja ementa
transcreve-se a seguir:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E


ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS.
REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE
JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médico adequado aos necessitados
se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade
solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por
qualquer um deles, isoladamente ou conjuntamente.
(RE 855178 RG, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 05/03/2015,
PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-
050 DIVULG 13-03-2015 PUBLIC 16-03-2015).

A União inconformada, gostaria de ver reconhecida sua ilegitimidade


passiva para não ter que cofinanciar o medicamento. O acórdão reconheceu a
responsabilidade solidária entre os entes federados e que eventuais questões
de repasse de verbas atinentes ao SUS deveriam ser dirimidas administrativa ou
judicialmente em demanda própria.
A priori, do próprio texto constitucional, especialmente dos artigos
dedicados à temática, pode-se iniciar uma concepção diversa do entendimento
exposto. No artigo 196, o “dever do Estado” necessariamente deve balancear-
se com “direito de todos”. A questão da solidariedade entre os entes federativos
merece o trato com o mesmo rigor ao qual tem sido submetida a obrigação de
prestar os serviços ou fornecer medicamentos. Após um período de depuração,
as decisões têm privilegiado uma conduta diligente e eficiente do Estado, o que
de igual forma deve-se estender ao entendimento hoje prevalente quanto à
existência de solidariedade entre os entes federativos.
250

No plano constitucional, o artigo 23 encontra-se no Título III, da


Organização do Estado, dentre aquelas competências da União. O que se retira
dali é que o conjunto das políticas econômicas e sociais adotadas pelo Poder
Público, consistente na formulação de políticas, ambientais, sanitárias e
nutricionais, são de competência comum (art. 23, II, da CF) e não havendo a
expressa solidariedade que a maioria dos julgados impõe aos entes da
administração pública. A solidariedade em si, decorre da lei ou da convenção
entre as partes e numa interpretação que considere o conjunto das normas
constitucionais, é razoável afirmar que o mandamento constitucional é de legislar
em seus diversos níveis, eis que só assim pode agir o Estado (de Direito), em
obediência ao Princípio da Legalidade e da Probidade, os quais devem ser de
observância pelo agente público.
A solidariedade, conceito comum de direito das obrigações, importa na
responsabilização total daquele ente federativo acionado, e, ainda que este
possa reaver parcela do que desembolsou, se este fosse o caso dos municípios,
principalmente dos pequenos, passariam longos anos até que o erário
retornasse ao status quo ante, se recompondo de modo a atender o que foi
preconizado no planejamento de governo. É a própria Constituição que
determina que o “direito de todos”, deverá estar garantido mediante políticas
públicas sociais e econômicas, visando não só a redução de doenças e de outros
agravos, mas também para garantia do acesso universal e igualitário às ações e
serviços (art. 196), o que é reforçado pelo contido no artigo 197, considerando
de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público
“dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle
(...)”. Ademais, estas mesmas ações e serviços, por determinação também
constitucional integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um
sistema único, porém, descentralizado (art. 198, CF). A descentralização e a
repartição de competências orçamentárias e de execução das políticas e
serviços de saúde, é de observância constitucional e não apenas alguma medida
que fora tomada infraconstitucionalmente.
Competências administrativas que pontuam Sarlet, Marinoni e Mitidiero,
“correspondem aos poderes jurídicos de caráter não legislativo ou jurisdicional
atribuídos pela CF aos diversos entes da Federação”. Também chamadas de
“competências materiais, dizem respeito à tomada de decisões de natureza
político-administrativa, execução de políticas públicas e a gestão em geral da
administração pública em todos os níveis federativos” (Cf. por todos Fernandes,
Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 589.) (2018, p. 920)
A descentralização é necessária para superação de velhos paradigmas,
pois o Estado centralizado não tem capacidade de responder a altura questões
de interesse local, uma vez que o aparato sempre foi gigantesco demais para os
pequenos e corriqueiros problemas. Por isso, nossa Lei Maior propõe um
sistema complexo com vistas ao equilíbrio federativo, repartindo as
competências pela técnica da enumeração dos poderes da União (cf. arts. 21 e
22), com poderes remanescentes para os Estados (art. 25, §1º) e poderes
definidos indicativamente para os municípios (art. 30); combina com esta
distribuição a possibilidade de delegar poderes (art. 22, parágrafo único), e, a
possibilidade da atuação paralela da União, Estados, Distrito Federal e
Municípios em áreas comuns (art. 23) (SILVA, 1999, p. 479), tal como ocorre
com a saúde pública. “Em outras palavras, a Constituição não previu a
solidariedade, mas a atuação paralela dos entes federativos na organização da
251

saúde coletiva, estruturada para todos e não no atendimento individual”


(FLUMIAN, 2008, p. 170).
Deve-se destacar que tais competências de cunho paralelo ou simultâneo
visam, em verdade, a sinergia e a cooperação entre os entes federativos
conforme a pertinente observação de Fernanda Dias Menezes de Almeida na
obra “Competências na Constituição de 1988” (apud SARLET, MARINONI,
MITIDIERO, 2018, p. 922)

Trata-se de matérias em relação às quais o constituinte


pretendeu assegurar certa simetria entre os entes federativos,
ademais de garantir uma ampla cobertura de atuação, isenta de
lacunas, mediante políticas públicas e ações diversas em áreas
sensíveis, como é o caso, apenas para ilustrar, zelar pela guarda
da Constituição, das leis e das instituições democráticas e
conservar o patrimônio público (art. 23, I), cuidar da saúde e
assistência pública, da proteção e garantia das pessoas com
deficiência (art. 23, II), entre outras. (SARLET, MARINONI,
MITIDIERO, 2018, p. 922)

Assim, causa preocupação que mesmo diante do arcabouço


constitucional mencionado, dos princípios aplicáveis e que ao final visam a
eficácia da Constituição, a Corte Suprema, em sua maioria, continue e decidir
afastando-se dos mandamentos constitucionais, eis que não é o caso de
omissão legislativa, tampouco de omissão na execução das políticas públicas da
área de saúde, mas de atuação distante do mandamento constitucional que
viabilize a atuação do Estado como um todo e de tal maneira que aquele que
possui melhores condições técnicas e orçamentárias se encarregue de questões
de maior complexidade.
Contudo, a despeito da eventual regulamentação legislativa do modo de
cooperação, o exercício das competências comuns frequentemente gera
conflitos entre os entes federativos, os quais poderiam ser sanados
privilegiando-se uma exegese sistemática e teleológica, que – sempre atentando
aos critérios da proporcionalidade quando em choque interesses e direitos de
cunho fundamental – dê preferência à legislação e ação administrativa (que é do
que aqui se trata) mais protetivo da pessoa humana.
No mencionado Recurso Extraordinário nº 855.178, repercussão geral,
após a decisão do Ministro Fux houve o ingresso com embargos de declaração,
os quais foram julgados recentemente conforme se extrai a seguir:

Decisão: Preliminarmente, votou o Ministro Celso de Mello


acompanhando o Ministro Edson Fachin na rejeição dos embargos de
declaração. Na sequência, o Tribunal, por maioria, fixou a seguinte tese
de repercussão geral (Tema 793): “Os entes da federação, em
decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis
nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios
constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à
autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de
repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem
suportou o ônus financeiro”, nos termos do voto do Ministro Edson
Fachin, Redator para o acórdão, vencido o Ministro Marco Aurélio, que
não fixava tese. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário,
23.05.2019.
252

A Corte ao afirmar que há solidariedade entre os entes federativos, por


conta da competência comum, mas determinar que se observe os critérios
constitucionais de descentralização e hierarquização, em verdade afastou a
solidariedade clássica ao resolver que a autoridade judicial direcione o
cumprimento da decisão e ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Resta a dúvida de como realizar tal procedimento sem que tenha participado
naquela ação específica, em observância ao devido processo legal, o ente
federativo cuja competência, em tese, lhe seria atribuída por toda a política
pública de saúde. No caso de obrigações complexas, com pluralidade de
sujeitos, há perfeita compatibilização, eis que a multiplicidade de agentes não
obsta a repartição do liame obrigacional em tantas relações jurídicas autônomas
quantas forem os devedores. Reconhecer a solidariedade apenas por conta de
uma ampliação da segurança do crédito não necessariamente melhora o acesso
do jurisdicionado e por outro lado tal decisão pode repercutir sobre aqueles que
não acionaram o Judiciário ou que dependem do orçamento para as prestações
na área de saúde, os quais, porém, poderão ter que aguardar melhores
condições do ente público que arcou com algum tratamento de alto custo, sem
que fosse o responsável, inclusive por determinação constitucional, como
reconheceu-se acima.
O Judiciário, isto provavelmente disseminado no direito constitucional
contemporâneo, toma para si o papel de protagonista, porém, tal fenômeno,
conforme já descrito é de difícil concepção, ante as diversas variações, porém,
a passagem do tempo tem sido boa conselheira, aos menos para o Supremo
Tribunal Federal quanto a questão aqui posta, eis que passou a trilhar um
caminho mais racional e adequado a suportar as questões relativas à
judicialização da saúde.

CONCLUSÃO

As diretrizes econômicas e sociais que se referem ao Direito à Saúde não


podem ser analisadas isoladamente. Portanto, àquele que pretende operar nesta
área e, sobretudo, opinar ou decidir numa demanda com este fundo, deverá
considerar as imposições populares, federativas, além de com tal opinião
(decisão) garantir o mínimo dos serviços à coletividade, levando em conta ainda
as diretrizes fiscais e a proporcionalidade da prestação jurisdicional dentro deste
Estado.
Não se trata de singelo entendimento ou justificativa para atuação prática,
pois nada que tenha custos para sua efetivação pode ser absoluto, devendo-se
ainda mostrar-se adequado, necessário e proporcional aos bens em confronto,
sem esquecer que os custos importam diretamente na capacidade financeira dos
entes públicos e o orçamento aprovado pelo Legislativo sua garantia.
A construção de uma estrutura jurídico-normativa visando a organização,
o gerenciamento, o financiamento e as prestações em saúde resultou, em
grande parte, da participação ativa da população nos fóruns de discussão
estabelecidos naquelas esferas de caráter consultivo (conselhos). Destarte, a
participação democrática, um dos pilares de sustentação do arcabouço
estabelecido em saúde, foi respeitada, não somente após a Constituição Federal
de 1988, mas na formulação de textos que garantissem que as disposições
constitucionais fossem exequíveis.
253

A prestação jurisdicional garantidora do mínimo essencial do Direito à


Saúde importa em primeiramente admitir que possível traçar limites aos direitos
fundamentais, conquanto pacificado o entendimento de que, em princípio,
inexiste direito absoluto. Desta maneira, o direito à saúde na República
Federativa do Brasil, concebido de tal modo que chegue ao destinatário de
maneira universal e igualitária, deve ser prestado como formulado pelas políticas
públicas adotadas, ainda em consonância com a técnica, de modo a garantir a
viabilidade do sistema e o atendimento do mínimo necessário a cada um dos
destinatários, cabendo ainda ao Supremo Tribunal Federal a tomada de um
posicionamento mais condizente com a realidade, no que tange à suposta
obrigação solidária nas questões que envolvem a saúde.

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uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
255

JULGAMENTO DE RECURSOS REPETITIVOS, PRECEDENTES E


“ABSTRATIVIZAÇÃO” DO CONTROLE DIFUSO DE
CONSTITUCIONALIDADE
JUDGMENT OF “REPETITIVE” APPEALS, PRECEDENTS AND
“ABSTRACTIVIZATION” OF DIFFUSE CONTROL OF CONSTITUTIONALITY

Beatriz Scudeler Almeida


Orientador(a): Carolina de Albuquerque

Resumo: O Controle de Constitucionalidade é extremamente importante para


preservar a Supremacia da Constituição Federal. Atualmente o judiciário
brasileiro reconhece duas formas de Controle de Constitucionalidade, o Difuso e
o Concentrado. Apesar de haver apenas a previsão legal dessas duas formas de
controle, muito se discutiu e ainda está em pauta a possibilidade da
“Abstrativização” do Controle Difuso de Constitucionalidade no Brasil. O Novo
Código de Processo Civil valorizou os precedentes, especialmente através do
Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida, cujas decisões são
de obrigatória observância pelos Tribunais Inferiores, de forma que os efeitos
produzidos ultrapassam as partes evolvidas no litigio, conferindo, então, eficácia
“erga omnes” a uma decisão concreta, ampliando a possibilidade de
“Abstrativização” do Controle Difuso de Constitucionalidade no ordenamento
jurídico pátrio.
Palavras-chave: Controle de Constitucionalidade. Abstrativização do Controle
Difuso. Recurso Extraordinário.

Abstract: The Control of Constitutionality is crucial to preserve the Federal


Constitutionality Supremacy. Nowadays the Brazilian Judiciary recognizes two
forms of Constitutionality Control – the Diffuse and the Abstract. Although there
is only legal provision of these two forms of control, the possibility of
“Abstractivization” of Diffuse Control of Constitutionality in Brazil has been
discussed greatly and still on the agenda. The New Brazilian Code of Civil
Procedure has overvalued the precedents, particularly through the Extraordinary
Appeal with general repercussion. Its decisions are compulsory compliance by
lower courts so that the effects surpass the evolved parts in litigious, thus
conferring “erga omnes” effectiveness in a concrete decision, broadening the
“Abstractivization” possibility of the Diffuse Control of Constitutionality in the
Brazilian legal system.
Key-words: Constitutionality Control. “Abstractivization” of Diffuse Control.
Extraordinary Appeal.

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro, visando preservar a Supremacia da


Constituição Federal, adota dois tipos de controle de constitucionalidade, o
controle difuso ou concreto, por via incidental e o controle concentrado ou
abstrato, por via principal.
Apesar de o Brasil não adotar expressamente a possibilidade da
“Abstrativização” do Controle Difuso de Constitucionalidade, nos últimos anos,
especialmente após a entrada em vigência do Novo Código de Processo Civil,
foi possível observar, no cenário prático, que tal sistemática foi introduzida no
256

ordenamento jurídico através das mudanças do Recurso Extraordinário, que


acabam por vincular os tribunais inferiores às decisões proferidas pelo STF em
sede de Recurso Extraordinário com Repercussão Geral.
O presente resumo busca demonstrar a possibilidade da aplicação do
efeito “erga omnes” em decisões do STF no controle difuso, dando enfoque ao
RE 657.718 e ao RE 878.694, evidenciando a problemática da referida pesquisa:
A nova regulamentação do Recurso Extraordinário pelo Novo Código de
Processo Civil traz ao ordenamento jurídico uma nova forma de Controle de
Constitucionalidade? Bem como, abordar brevemente como, na prática, tais
novidades se relacionam aos princípios valorados pelo Código de Processo Civil
em Vigor.

DESENVOLVIMENTO

A Supremacia da Constituição é princípio básico do Estado Democrático


de Direito, através dele é possível resguardar todos os demais princípios
constitucionais, razão pela qual se faz necessário à proteção da Carta Maior,
que se dá através do Controle de Constitucionalidade e no Brasil esse pode ser
exercido de duas formas.
A primeira forma é através do Controle Difuso ou Concreto de
Constitucionalidade, por via incidental, que permite a análise da
constitucionalidade de leis ou atos normativos em demandas concretas, por todo
e qualquer tribunal. O Controle Difuso se caracteriza pelo efeito inter partes das
decisões proferidas, de tal maneira que a constitucionalidade ou não do ato
discutido vincula apenas as partes do processo.
Já a segunda forma admitida pelo nosso ordenamento é o Controle
Concentrado ou Abstrato de Constitucionalidade, cuja competência é exclusiva
do Supremo Tribunal Federal, ocorre através de ações próprias e seus efeitos
são vinculantes, ou seja, produzem efeito erga omnes.
Apesar de apenas essas duas formas de controle de constitucionalidade
supracitadas serem reguladas pelo nosso ordenamento jurídico, muito se discute
a respeito da possibilidade ou não da “Abstrativização” do controle difuso de
constitucionalidade, que seria a tendência de dotar de eficácia “erga omnes” uma
decisão proferida pelo STF em sede de controle difuso incidental.
A relevância sobre a possibilidade ou não da “Abstrativização” do controle
difuso é significativa, destarte chegou, inclusive, a ser discutida pelo Órgão de
Cúpula, situação na qual foi rejeitada a possibilidade da adoção de tal
instrumento no ordenamento pátrio. A questão se manifestou através da
Reclamação 4335/AC, quando se discutiu a possibilidade da ocorrência da
mutação constitucional do Artigo 52, X da Constituição Federal, se aceita esta
tese não mais seria necessário que o Senado Federal suspendesse a eficácia
das decisões declaradas inconstitucionais pelo STF, o efeito deveria ser
produzido imediatamente e com eficácia “erga omnes”, inclusive em decisões
tomadas através do Controle Difuso. Entretanto, apenas dois ministros
concordaram com essa tese, de modo que a mesma não pode ser considerada
vigente.
Porém, é possível observar no cenário prático que tal medida vem sendo
adotada pelo judiciário, especialmente através do Novo Código de Processo
Civil, que trouxe significativas mudanças a respeito do Recurso Extraordinário,
principalmente em relação aos precedentes, que acabam por vincular os
257

tribunais inferiores às decisões proferidas pelo STF em sede de Recurso


Extraordinário com Repercussão Geral.

Outra inovação é a existência de efeito vinculante em relação a todas


as decisões proferidas nos recursos extraordinários desde a existência
ou não de repercussão geral até a decisão de mérito. Assim, se uma
determinada norma for declarada inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal no julgamento de um recurso extraordinário, este
entendimento deverá ser adotado em todos os casos semelhantes que
envolvam a aplicação da referida regra ao caso concreto. (COURI,
2015, p. 63)

Os principais artigos do NCPC que destacam a necessidade de


observância pelos tribunais inferiores das decisões proferidas em sede de
Recurso Extraordinário são os artigos 489, VI, 927, III, 988, §5º, II, 1030, “b”, II,
1040, II, III e 1041, §1º, e todas essas mudanças evidenciam uma tendência na
valorização dos precedentes, valorizando o princípio da segurança jurídica e
proteção à confiança e à isonomia (LENZA, 2015).
Nos casos em que uma questão constitucional chega ao Supremo
Tribunal Federal, havendo repercussão geral, a decisão proferida por esse órgão
deve ser observada por todos os tribunais inferiores. Inclusive, se o tribunal
inferior violar o decidido pelo STF em sede de Recurso Extraordinário, pode a
parte, após esgotarem todos os recursos possíveis, impetrar uma reclamação
direta ao Órgão de Cúpula, o que demonstra a força vinculante da decisão em
sede de Recurso Extraordinário.
Sendo assim, o Código de Processo Civil trouxe um instrumento que
permite o controle de constitucionalidade de maneira difusa com efeitos que
ultrapassam a esfera das partes envolvidas no litígio, atingindo todos os
indivíduos, conferindo eficácia “erga omnes” a uma decisão concreta e
acarretando a introdução da “Abstrativização” do controle difuso de
constitucionalidade através do Recurso Extraordinário.

Como o recurso extraordinário é o principal instrumento do controle


difuso de constitucionalidade, os precedentes do Pleno do STF em tais
casos passam a ter eficácia obrigatória, transcendendo os limites
subjetivos da causa da qual surgiu. A solução do caso vale apenas
para as partes (coisa julgada, art. 506 do CPC); mas o precedente tem
eficácia erga omnes. (DIDIER, CUNHA, 2016, p. 376)

No atual cenário brasileiro já é possível visualizar as mudanças


introduzidas pelo NCPC, havendo inclusive a ocorrência da “Abstrativização” do
controle difuso de constitucionalidade nos Recursos Extraordinários 657.718 e
878.694.
O RE 657.718, com tema 500 de Repercussão Geral, discutiu se seria
inconstitucional a negativa do fornecimento de medicamentos que não estão
previstos no rol da Anvisa. O julgamento do referido Recurso Extraordinário se
deu no sentido de que o Estado, em regra, não é obrigado a fornecer
medicamentos experimentais e também foram decididos quais seriam as
situações consideradas exceções a essa regra.
No julgamento do RE 878.694, Repercussão Geral tema 809, foi decido
ser inconstitucional a distinção prevista no Código Civil entre companheiro e
cônjuge para efeitos sucessórios, declarando inconstitucional o Artigo 1.790 do
Código Civil, que a partir do referido julgado passou a ter sua eficácia suspensa,
258

devendo, então, adotar a ordem sucessória prevista no Artigo 1.829 do mesmo


diploma. Nesse caso, houve, inclusive, a modulação dos efeitos da decisão,
passando a se aplicar o entendimento apenas aos inventários judiciais com
sentença de partilha não transitada em julgado e às partilhas extrajudiciais sem
escritura pública lavrada.
Em ambos os casos é possível perceber que os efeitos das decisões
muito se assemelham a das proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede
de Controle Concentrado e apesar de se tratarem de demandas concretas, os
tribunais inferiores passaram a julgar os casos com demandas similares em
conformidade com o entendimento adotado nos Recursos Extraordinários.
No caso do RE 657.718 os tribunais passaram a julgar improcedente as
ações que pleiteavam o fornecimento de medicamentos não registrados na
Anvisa e em relação ao RE 878.694 a ordem sucessória prevista no Artigo 1.829
do Código Civil passou a ser aplicada, desconsiderando o previsto no Artigo
1.790 do Código Civil.
O Novo Código de Processo Civil ampliou de fato a força vinculante do
Recurso Extraordinário, transformando-o em uma verdadeira forma de controle
de constitucionalidade. Apesar de o RE tratar de uma demanda concreta, a
questão discutida é de extrema relevância, vez que se direciona a interpretação
e aplicação de norma constitucional, e possui repercussão geral, vez que este é
requisito do próprio recurso impetrado. Portanto, não faria sentido que tal decisão
gerasse efeito apenas para as partes do processo específico, devendo, então,
abranger o sistema jurídico como um todo.

(...) Se o recorrente conseguir demonstrar que o seu recurso ultrapassa


os interesses inter partes – social, econômica, política ou
juridicamente, este será julgado, justamente por importar além de sua
própria limitação processual, com aplicabilidade para outras demandas
ou para a própria sociedade, pela importância ali demonstrada.
(LEMOS, 2017, p. 423-424)

Se impossível ignorar a necessidade de atribuir efeito vinculante a


decisões tão significativas, necessário a atribuição do efeito “erga omnes” as
decisões proferidas em sede de Recurso Extraordinário, ainda mais
considerando que o Recurso Extraordinário possui como pressuposto de
admissibilidade a repercussão geral, ou seja, a lide é relevante do ponto social,
econômico, político ou jurídico, de forma que o interesse do litigio ultrapassa os
interesses das partes.
Todas as mudanças no Recurso Extraordinário buscaram atender aos
princípios destacados pelo Novo Código de Processo Civil, dentre eles o
princípio da isonomia, da segurança jurídica, da celeridade e da razoável
duração do processo.
Em relação ao princípio da Isonomia e da Segurança Jurídica, é
indiscutível que as mudanças cumprem o almejado, pois os precedentes
permitem que todos os processos que versem sobre a mesma lide sejam
uniformizados.
Porém, em relação ao princípio da Celeridade e da Razoável Duração do
Processo, no cenário prático, é possível observar que esses se encontram
disfuncionais, pois ao definir a tese de repercussão geral, inúmeros processos
são sobrestados, ficando suspensos até que haja a formação do precedente.
Sendo assim, diversos processos em todo o Brasil ficam parados esperando a
259

decisão da tese vinculante pelo Supremo Tribunal Federal e posteriormente,


aguardam novamente, pelo julgamento da instância inferior, podendo acarretar
em maior morosidade, que a usual.

O tempo necessário para a formação do precedente judicial obrigatório


reflete-se na sua aplicação à massa de processos que se encontram
sobrestados aguardando a fixação da tese jurídica a ser aplicada. Não
sem razão, os processos que ainda se encontram sobrestados
vinculados a temas de recurso repetitivo estão paralisados, em média,
há 2 anos e 8 meses e os que aguardam a decisão acerca da
repercussão geral do recurso extraordinário dormitam há 3 anos e 6
meses. Os processos que estavam sobrestados em razão da afetação
de matérias ao rito de julgamento de recursos repetitivos ou pelo
reconhecimento de repercussão geral da questão veiculada em
recursos extraordinários assim permaneceram por aproximadamente 2
anos (21 meses no caso dos recursos repetitivos e 28 meses no caso
da repercussão geral). ” (DELGADO, STEMLER e BORGES, 2017, p.
40)

Grande parte dos operadores do direito acolheram com entusiasmos as


mudanças advindas com o Código de Processo Civil, mas muitos têm dúvidas
importantes sobre tal posicionamento, acreditando que a obrigatória adoção das
decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Recurso
Extraordinário irá acarretar em uma advocacia massificada e que o julgamento
padronizado é uma nítida violação ao principio do livre convencimento motivado
e da intima convicção do Juiz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O termo “Abstrativização” do Controle Difuso implica em aplicar os efeitos


dados a uma forma de controle de constitucionalidade a outra, que,
classicamente, não teria o condão de amplificação de efeitos, de modo que a
questão constitucional chega ao judiciário pelas formas previstas no controle
difuso, porém os efeitos das decisões são típicos do controle concentrado.
Atualmente, apresenta-se irrevogável a crescente força dos precedentes,
possibilitando a conclusão que o Recurso Extraordinário, através de todas as
mudanças previstas no NCPC, trouxe ao ordenamento jurídico pátrio uma nova
forma de Controle de Constitucionalidade, através da “Abstrativização” do
Controle Difuso de Constitucionalidade, conferindo eficácia “erga omnes” a
decisões proferidas em casos concretos.
O ordenamento jurídico vem se adequando às mudanças do Recurso
Extraordinário, especialmente no que tange a forma com que os Tribunais
Inferiores lidam e agem diante da obrigatória observância das decisões
proferidas pelo STF em sede de Recurso Extraordinário com Repercussão Geral
reconhecida.
Os casos práticos apresentados, RE 657.718 e RE 878.694, permitem
concluir que apesar de a lide ter sido levada ao Supremo Tribunal Federal
através de dois casos concretos, os efeitos das decisões se estenderam a todos
os outros litígios que versaram sobre causas similares, uniformizando o
julgamento proferido pelos Tribunais Inferiores, que passaram a adotar a tese do
Órgão de Cúpula.
E, por fim, pode-se verificar, de forma inicial, que apesar desse instituto
ter ampliado a isonomia e a segurança jurídica processual, ainda é necessário
260

que sua aplicação se torne mecanismo de concretização do princípio da


Celeridade e da Razoável Duração do Processo, em relação a duração do
julgamento da formação e aplicação dos precedentes.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Andressa Silva de. “Abstrativização do controle difuso


incidental”. 2015. 144 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federa. Recurso Extraordinário 878.694. Relator


Ministro Roberto Barroso, Brasília, 10 de maio de 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federa. Recurso Extraordinário RE 657.718.
Relator Ministro Marco Aurélio, Brasília, 22 de maio de 2019.

COURI, DÉborah Cristina. “O instituto da repercussão geral e a mudança de


paradigma do controle difuso de constitucionalidade com a objetivação
do recurso extraordinário”. 2015. 72 f. Monografia (Especialização) - Curso
de Direito, Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasilia, 2015.

DELGADO, Lucas; STEMLER, Igor Tadeu Silva Viana; BORGES, Davi


Ferreira. “Sistemas de julgamento concentrado de demandas repetitivas e
formação de precedentes judiciais: Realidade e Desafios”. Revista CNJ,
Brasília, ano 2017, v. 2, n. 1, p. 34-45, 3 nov. 2017. e-revista.

DIDIER JR,Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito


Processual Civil. 13. ed. SALVADOR: JusPODIVM, 2016. v. 3.

DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. Curso de Processo


Constitucional: Controle de Constitucionalidade e Remédio Constitucionais. 5.
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2017.

FAGUNDES, Cristiane Druve Tavares. “A Objetivação do Recurso


Extraordinário”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas
Tadeu, São Paulo, v. 1, n. 1, p.110-118, jan. 2014. Semestral. Disponível em:
<https://www.usjt.br/revistadireito/numero-1/13-cristiane-fagundes.pdf>. Acesso
em: 18 set. 2019.

LENZA, Pedro. “Reclamação Constitucional: Inconstitucionalidades No


Novo CPC/2015”. Direito UNIFACS–Debate Virtual, n. 178, 2015.

LEMOS, Vinícius Silva. “A Repercussão Geral no Novo CPC: a construção


da vinculação da decisão de mérito proferida em repercussão geral pelo
STF”. Revista Eletrônica de Direito Processual – Redp, Rio de Janeiro, v.
18, n. 1, p.403-427, 10 abr. 2017. Quadrimestral. Disponível em:
<file:///M:/CLIENTES%20EXTRAJUDICIAL/ELIANA%20MARISA%20GANEN/C
ontrato%20comodato/27946-92010-1-PB.pdf>. Acesso em: 18 set. 2019.

MONTENEGRO, Manuel Carlos. “Tribunais se mobilizam para seguir STF


em julgamentos de repercussão geral.” 21. Mar. 2017. Disponível em: <
261

http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84504-tribunais-se-mobilizam-para-seguir-stf-
em-julgamentos-de-repercussao-geral-2>. Acesso em: 27. Ago.2019.

NEVES, Rafael Burlani; DE SOUZA, Mário Henrique. “A argumentação


jurídica e o princípio do livre convencimento motivado sob a óptica do
Novo Código de Processo Civil”. Revista de Direito Faculdade Dom Alberto,
v. 2, n. 1, 2017.
262

Grupo de Trabalho:

DIREITO CONSTITUCIONAL II
Trabalhos publicados:

O ACESSO AOS DADOS DE APARELHO CELULAR EM FACE DO SIGILO


PREVISTO NO ARTIGO 5º, INCISO XII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988

O ATIVISMO JUDICIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO FATOR


DE DESEQUILÍBRIO NA SEPARAÇÃO DOS PODERES

O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO SOB A ÉGIDE DA ORGANIZAÇÃO


DOS PODERES CONSTITUCIONAIS.

O FALSO CONFLITO ENTRE A DEMOCRACIA E O ATIVISMO JUDICIAL

O MEIO AMBIENTE EM CONFLITO: COMUNIDADES TRADICIONAIS EM


UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

O STF E A TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

O TRABALHO DO CONDENADO PRESO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO


BRASILEIRO: CRÍTICA AO DIREITO DE (NÃO) TER DIREITOS
TRABALHISTAS

OS LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL NO PÓS-POSITIVISMO

PERSPECTIVAS DA DEMOCRACIA MILITANTE E A APLICAÇÃO


CONSTITUCIONAL NO BRASIL

PRECEDENTES JUDICIAIS VINCULANTES E O PAPEL DOS JUÍZES


ENQUANTO LEGISLADORES OCASIONAIS NO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL BRASILEIRO.

SAÚDE: DIREITO DE TODOS, DEVER DO ESTADO? EXERCÍCIO DE


EQUIDADE E CIDADANIA NA ATENÇÃO A PESSOAS VIVENDO COM
HIV/AIDS EM ALAGOAS

UM PAÍS MONOCROMÁTICO E UNILATERAL: A PERMANÊNCIA DA


PERSPECTIVA DA HOMOSSEXUALIDADE COMO UMA PATOLOGIA NA
SOCIEDADE BRASILEIRA
263

O ACESSO AOS DADOS DE APARELHO CELULAR EM FACE DO SIGILO


PREVISTO NO ARTIGO 5º, INCISO XII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988
ACCESS TO CELLULAR DATA DUE TO THE CONFIDENTIALITY PROVIDED
FOR IN ARTICLE 5, ITEM XII OF THE FEDERAL CONSTITUTION OF 1988

Bruna Gregio Soares de Manzano Linjardi

Resumo: A partir do direito ao sigilo das correspondências conferido pelo artigo


5º, XII da Constituição Federal de 1988, o presente trabalho possui como objeto
focal a análise do acesso aos dados dos aparelhos telefônicos pela autoridade
policial no ato da apreensão ou na investigação criminal. Com o objetivo maior
de elucidar se esse acesso deve prescindir ou não a autorização judicial,
buscaremos nos julgados dos tribunais superiores os entendimentos para tal
questionamento, juntamente com o método indutivo e comparativo. O tema
embora controverso, possui maior amparo na garantia da privacidade e
intimidade, que, juntamente com o sigilo das comunicações são direitos e
garantias constitucionais, portanto, essenciais para o estado democrático de
direito. Para tanto, a garantia do sigilo das comunicações deve ter o seu
entendimento estendido aos dados contidos nos aparelhos celulares, por se
tratar de garantia fundamental inerente ao ser humano.
Palavras-chave: Sigilo de dados. Garantia à privacidade. Acesso aos dados
telefônicos.

Abstract: Based on the right to confidentiality of correspondence conferred by


article 5, XII of the Federal Constitution of 1988, the present study has as focal
object the analysis of access to data of telephone handsets by the police authority
in the act of seizure or criminal investigation. In order to clarify whether or not this
access should dispense with judicial authorization, we will seek in the courts of
higher courts the understanding for such questioning, together with the inductive
and comparative method. The subject, although controversial, has greater
support in ensuring privacy and intimacy, which together with the secrecy of
communications are constitutional rights and guarantees, therefore, essential for
the democratic rule of law. To this end, the guarantee of confidentiality of
communications must have its understanding extended to the data contained in
mobile phones, as it is a fundamental guarantee inherent in humans.
Keywords: Data confidentiality. Privacy guarantee. Access to telephone data.

INTRODUÇÃO

O princípio consolidado do sigilo das comunicações, previsto no artigo 5º,


inciso XII, da Constituição Federal passou a ser palco de discussões, juntamente
com o direito á privacidade (Art. 5º, X, CF), diante da atual e constante evolução
dos aparelhos telefônicos que há tempos deixou de ser um mero instrumento de
comunicação telefônica e se tornou um aparelho em que é possível se
armazenar inúmeros dados de variadas naturezas.
Sendo o aparelho telefônico um instrumento quase indispensável na vida
atual, não seria diferente na criminalidade. Assim, diante do atual cenário, o
presente estudo tem o objetivo de elucidar se o acesso aos dados contidos no
aparelho telefônico é ato permissivo e qual seria o seu aparo legal.
264

O tema estudado se mostra relevante diante do atual contexto


tecnológico, levando em consideração que os aparelhos telefônicos armazenam
inúmeros tipos de dados, como arquivos de mídia, mensagens, e inclusive dados
bancários. Assim, os celulares passaram a ser largamente utilizados nas ações
criminosas e portanto, se tornaram objetos de grande valia para as investigações
criminais.
Com o presente trabalho buscamos elucidar, amparados pelos princípios
constitucionais do sigilo das comunicações e da privacidade, a exigência da
autorização judicial para o acesso aos dados dos aparelhos telefônicos, ou a sua
prescindibilidade, para o acesso, pelas autoridades policiais, aos dados no
momento da investigação criminal.

O SIGILO DE DADOS PREVISTO NO ARTIGO 5º, INCISO XII DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O sigilo vem sendo incorporado às constituições brasileiras desde à época


do império com a Constituição Imperial de 1824 que estabelecia o “segredo
inviolável das cartas”. Já na Constituição de 1891 surge a expressão “sigilo na
tutela da inviolabilidade da correspondência”, que vem sendo seguida pelas
Constituições de 1934 e 1946. Foi na Constituição de 1967 que o legislador deu
maior extensão ao direito acrescentando ao texto o sigilo das comunicações
telegráficas e telefônicas.
Na Constituição de 1988, o direito à intimidade e à privacidade vieram
presentes no rol dos direitos e garantias fundamentais. O Art. 5º, inciso X da
Carta Maior assegura que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra
e a imagem das pessoas”, um pouco adiante, o inciso XII disciplina
especificamente o direito à privacidade das comunicações “é inviolável o sigilo
da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou
instrução processual penal”.
Tais direitos vêm para garantir que os documentos que contém
informações sobre a vida privada dos cidadãos sejam protegidos, ou seja,
proteção às movimentações bancárias (sigilo bancário), aos registros de
ligações telefônicas (sigilo telefônico) e também a quaisquer informações de
cunho individual.
Tais garantias estão dentre as normas fundamentais não passíveis de
exclusão, as chamadas cláusulas pétreas, preceituadas no Art. 60, § 4º, IV da
Constituição Federal de 1988.
No entanto, mesmo se não fosse assim, o Brasil tem o dever de garantir
a intimidade e privacidade, em respeito aos tratados internacionais, os quais o
Brasil é signatário e versam sobre o direito e a proteção da privacidade.1

1 A Declaração Universal dos Direitos do Homem expressa em seu artigo 12 que “ninguém será
sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua
correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação”.
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em seu Art. 17 protege a privacidade: “1.
Ninguém poderá ser objetivo de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua
família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e
reputação.”
A Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto San Jose da Costa Rica estabelece, em
seu Art. 11 (...) §2º Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida
265

No mesmo norte, o Art. 5º, inciso XII da Constituição Federal, assegura o


direito à inviolabilidade das comunicações pessoais, assim sendo: (a) da
correspondência, (b) das comunicações telegráficas, (c) de dados e (d) das
comunicações telefônicas. A primeira diz respeito as cartas enviadas pelos
correios. A segunda, já em desuso, versa sobre os telegramas. O terceiro
abrange formas de comunicação mais comuns hoje em dia: SMS,
videoconferências, mensagens instantâneas de aplicativos de celulares, e por
fim, a quarta diz a respeito de conversas realizada via linha telefônica.
Contudo, no momento em que o legislador trouxe o direito ao sigilo à Carta
Magna, o fez com devidas ressalvas e de forma não absoluta, sendo que para
alguns casos, o sigilo poderia ser quebrado. Assim, foi estabelecido, uma
exceção condicionada à apreciação judicial e para fins de investigação criminal
ou instrução processual penal, cuja disciplina foi designada à legislação
infraconstitucional.
Sobre o tema, discorre Ana Paula Oliveira Ávila e André Luis Woloszyn:

A invasão à privacidade, sob a forma da quebra do sigilo, é a medida


concreta destinada à promoção de uma finalidade: a determinação da
autoria de crimes sujeitos à pena de reclusão. Não se questiona a
adequação da medida para a promoção da finalidade: a escuta de
conversas relacionadas ao ilícito cuja autoria se deseja apurar, sem o
conhecimento dos investigados, é inequivocamente apto para a
promoção do fim. (ÁVILA, WALOSZYN, 2018).

Foi necessário, portanto, a regulamentação do inciso XII do Art. 5º da CF,


a qual, se deu com a publicação da Lei n.º 9.296/96. Verifica-se inclusive, que,
tanto a lei Maior, quanto a lei regulamentadora, foram coerentes “ao supor a
excepcionalidade da medida, de modo a autorizar o seu emprego somente
quando outras formas menos comprometedoras dos direitos constitucionais do
acusado não forem suficientes para a determinação da autoria” (ÁVILA,
WALOSZYN, 2018).
Frisa-se que somente o juiz pode autorizar a interceptação telefônica,
trata-se portanto, de uma reserva de jurisdição. Desta monta, o assunto é
pacífico no STF:

A cláusula constitucional da reserva de jurisdição - que incide sobre


determinadas matérias, como (...) a interceptação telefônica (CF, art.
5º, XII) (...) traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste
ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra,
mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra,
excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a
própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições,
por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado. MS
23.452/RJ.

Contudo, no atual contexto global, se tornaram cada vez mais presentes


a utilização de aparelhos celulares que agregam inúmeras funções pertinentes
à vida privada do indivíduo. Neste permanecem os registros de imagens,
mensagens, e-mails, registros telefônicos e até registros bancários.

privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais
à sua honra ou reputação.
266

Assim, com essas inovações do mundo moderno, surgiu a questão sobre


o acesso a esses dados, ou seja, as autoridades policiais, no momento da
abordagem/investigação criminal, poderiam ter acesso aos dados contidos no
telefone celular do indivíduo suspeito de ilícito penal? Sem o amparo expresso
na legislação, a resolutividade da questão ficou a cargo dos tribunais superiores.

O ACESSO AOS DADOS DO APARELHO CELULAR NA JURISPRUDÊNCIA


DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Ao que se refere sobre o entendimento dos Tribunais Superiores, mais


especificamente o Supremo Tribunal Federal, este mantinha entendimento
bastante divergente ao que diz respeito à quebra de sigilo de comunicações nos
casos de acesso aos dados em aparelhos telefônicos. Tais posicionamentos
contrapostos, eram no sentido de que os dados dos aparelhos celulares não
configuravam comunicação, e portanto, não estariam amparados pelo Art. 5º,
XII, CF. Já doutra monta, os dados deveriam ser protegidos pelo princípio da
privacidade e intimidade previsto no Art. 5º, X, CF.
Em um primeiro momento, vislumbra-se, ainda no ano de 2010, o voto do
Ministro Celso de Melo, no sentido de que não há direitos ou garantias absolutas,
podendo estes ser relativizados diante relevante interesse público2. De acordo
com o julgado, a primazia do interesse público sobre o individual, vem como
principal argumento para a justificativa da restrição dos direitos fundamentais
individuais.
No entanto, mesmo que o interesse coletivo se sobreponha ao individual,
o STF também já explicitou que para que haja a supressão dos direitos
fundamentais, é necessário que possua fundamentações e justificativas, a fim
de evitar o uso abusivo e indiscricionário3.
Partindo desde ponto, verificamos ser consenso que as garantias
fundamentais não são absolutas e podem ser relativizadas.
Já em que pese o acesso aos dados de aparelhos celulares, o primeiro
entendimento jurisprudencial é no sentido de que a persecução criminal e todos
os seus desdobramentos, se sobressaem ao direito à privacidade, ou seja, os

2 “Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de


caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências
derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a
adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou
coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto
constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas
(...) permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a
proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa
das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem
pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.” HC 103.236. Grifo nosso.
3 (...) a quebra de sigilo não pode ser manipulada, de modo arbitrário, pelo Poder Público

ou por seus agentes. É que, se assim não fosse, a quebra de sigilo converter-se-ia,
ilegitimamente, em instrumento de busca generalizada e de devassa indiscriminada da esfera
de intimidade das pessoas, o que daria ao Estado, em desconformidade com os postulados
que informam o regime democrático, o poder absoluto de vasculhar, sem quaisquer limitações,
registros sigilosos alheios. Para que a medida excepcional da quebra de sigilo bancário
não se descaracterize em sua finalidade legítima, torna-se imprescindível que o ato
estatal que a decrete, além de adequadamente fundamentado, também indique, de modo
preciso, dentre outros dados essenciais, (...) o lapso temporal abrangido pela ordem de
ruptura dos registros sigilosos mantidos por instituição financeira. HC 91.867, Grifo
nosso.
267

argumentos desse entendimento, baseiam-se principalmente no Art. 6º, incisos


II e III do CPP que aduz ser dever da autoridade policial “apreender todos os
objetos que tiverem relação com o fato”, bem como “colher todas as provas que
servirem para o esclarecimento do fato”.
Em consonância com o mencionado, em 2012, a decisão do STF, sob a
ótica do Ministro Gilmar Mendes, elucidou que o artigo 5º, XII, da CF não poderia
ser interpretado no sentido de proteger o acesso aos dados contidos no aparelho
telefônico no momento da apreensão criminal4.
Sendo assim, o entendimento do STF, num todo, era de que a norma do
Art. 5º, XII, CF não poderia ter um entendimento extensivo a ponto de igualar os
dados dos aparelhos telefônicos ao sigilo telefônico a que o artigo se refere.
Entretanto, com entendimento consolidado contrário ao mencionado, o
STJ, no julgamento do RHC 51.531/RO5, teve destacado pelo seu relator, Nefi
Cordeiro, o seguinte:

Nas conversas mantidas pelo programa whatsapp, que é forma de


comunicação escrita, imediata, entre interlocutores, tem-se
efetiva interceptação inautorizada de comunicações. É situação
similar às conversas mantidas por e-mail, onde para o acesso tem-se
igualmente exigido a prévia ordem judicial. (...) Atualmente, o celular
deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa
distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de
múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência
eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a
comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia
convencional. Grifo nosso.

A ministra Maria Thereza salientou que o assunto é controverso, uma vez


em que estão presentes conflitos de normas constitucionais: o da garantia à
intimidade e privacidade (Art. 5º, X, CF) e o da segurança pública (Art. 144, CF).
Assim, uma das normas deveria ser relativizada em favor à outra, e, conforme
decidido, a garantia fundamental da intimidade e privacidade se sobressaiu.
Já iniciando uma mudança de entendimento no STF, em 23/11/2017, foi
reconhecido por unanimidade pelo tribunal supremo a existência da
Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo 1.042.075/RJ de
relatoria do Min. Dias Toffoli:

(...) Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no


sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito
registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e
não dos dados. 2.3 Art. 6º do CPP: dever da autoridade policial de
proceder à coleta do material comprobatório da prática da infração
penal. (...) Verificação que permitiu a orientação inicial da linha
investigatória (...) bem como possibilitou concluir que os aparelhos
seriam relevantes para a investigação. 2.4 À guisa de mera

4 Suposta ilegalidade (...) do fato de os policiais, após a prisão em flagrante do corréu, terem
realizado a análise dos últimos registros telefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos.
Não ocorrência. 2.2 Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que
recebem, inclusive, proteção jurídica distinta.
5 (...) 1. Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas

diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização


judicial. 2. Recurso ordinário em habeas corpus provido, para declarar a nulidade das provas
obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado
dos autos. RHC 51.531/RO. Grifo nosso.
268

argumentação, mesmo que se pudesse reputar a prova produzida


como ilícita e as demais, ilícitas por derivação, nos termos da teoria
dos frutos da árvore venenosa (fruit of the poisonous tree), é certo que,
ainda assim, melhor sorte não assistiria à defesa. HC 91.867/PA. Grifo
Nosso.

Este sabiamente esclareceu que o tema poderia se repetir em vários


outros casos, e por isso deveria ser tratado com mais atenção. E como previsto
pelo Ministro, o tema de fato viera à tona em inúmeros julgados.
Em análise aos recentes entendimentos do STF, temos que o
entendimento, vem sendo gradativamente mudado em ambas as turmas. A
corroborar, mesmo Ministro Gilmar Mendes, que anteriormente acreditava que o
acesso aos dados dos aparelhos telefônicos não estaria abrangidos no Art. 5º,
XII, CF, elucidou no HC nº 16.8052/SP que “o avanço normativo nesse
importante tema da proteção do direito à intimidade e à vida privada deve ser
considerado na interpretação do alcance das normas do art. 5º, X e XII, da CF”.
Ainda no HC supra, o Ministro esclarece que estamos diante de uma clara
mutação constitucional e que o entendimento restritivo à norma prevista no artigo
5º, XII da CF, não mais é o suficiente para amparar os direitos fundamentais. De
acordo com suas palavras:

Tão importante quanto a alteração do contexto jurídico é a impactante


transformação das circunstâncias fáticas, que trazem novas luzes ao
tema. Nesse sentido, houve um incrível desenvolvimento dos
mecanismos de comunicação e armazenamento de dados pessoais
em smartphones e telefones celulares na última década.

No mesmo norte, de acordo com o julgamento do HC 16.7720/SP o


Ministro Luiz Fux, da asseverou que “as informações armazenadas nos
aparelhos celulares apreendidos somente poderão ser acessadas por ordem
judicial”.
Não obstante, o Ministro Marco Aurélio julgou um caso bem peculiar em
que mesmo o celular tendo sido apreendido mediante autorização judicial, a
autoridade policial se valeu do recurso de espelhamento do aplicativo de
whatsapp web em computador, podendo, portanto, ser um usuário participante
de conversas. Assim, o Ministro reconheceu a existência da autorização judicial
somente para o acesso aos dados já existentes no aparelho celular sendo, por
óbvio, ilegal o espelhamento do aplicativo.
O Ministro Roberto Barroso, no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº
166.323/MG, elucidou que “a questão (acesso aos dados do aparelho celular) foi
submetida à apreciação do Juiz competente, o qual concordou com o exame do
conteúdo das mensagens, não se constatando, de imediato, qualquer ilegalidade
na medida”.
Verifica-se que o entendimento de que o acesso aos dados dos aparelhos
celulares somente seria possível com a autorização judicial, vem surgindo com
grande frequência no STF.
No mesmo sentido, no julgamento do HC 157.578 o Ministro Edson
Fachin, reconheceu a ilegalidade das provas obtidas por meio do acesso ao
aparelho celular sem a autorização judicial nos autos em testilha, que auxiliaram
para a condenação pelo crime de tráfico de drogas.
Podemos observar com a análise jurisprudencial, que o entendimento
majoritário já consolidado pelo STJ sobre a imprescindibilidade da autorização
269

judicial para o acesso aos dados do aparelho celular, vem se tornando


entendimento majoritário inclusive no STF. Desta monta, o direito inviolável à
privacidade, garantido pela Carta Magna, vem se consolidando cada vez mais
no que se refere ao acesso aos aparelhos telefônicos.

CONCLUSÃO

Verifica-se que a grande controvérsia do tema sobre a necessidade de


autorização judicial para o acesso aos dado em telefones celulares, vem cada
vez mais tendendo à imprescindibilidade desta.
Comparado com o pedido de quebra de sigilo telefônico, o amparo legal
maior é na garantia do direito à privacidade e a intimidade, sendo assim, o atual
entendimento majoritário é no sentido de ser imprescindível a autorização judicial
para o acesso a tais dados, sendo inclusive o entendimento pacificado já no STJ.
Caminhando para a mesma direção, a interpretação do Art. 5º, XII da CF,
para o STF, vem se tornando um entendimento relacionado à mutação
constitucional, vez que o princípio do sigilo das comunicações está sendo
expandido ao acesso aos dados de aparelhos de telefones celulares.
Assim, o que se espera é que o entendimento para que não seja permitido
o acesso aos dados em aparelhos celulares sem a autorização judicial, seja
também consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, vez que se trata de direitos
e garantias fundamentais inerentes ao ser humano.

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273

O ATIVISMO JUDICIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO FATOR


DE DESEQUILÍBRIO NA SEPARAÇÃO DOS PODERES
JUDICIAL ACTIVISM OF THE SUPREME FEDERAL COURT AS A FACTOR
OF IMBALANCE IN THE SEPARATION OF POWER

Zamis Maia Carneiro


Orientador(a): Luciana de Toledo Temer Lulia

Resumo: O presente artigo pretende analisar a atuação do Supremo Tribunal


Federal que se vale do fenômeno do ativismo judicial para resolver questões de
repercussão geral nacional. Essa atuação da Suprema Corte acaba por
incorporar atribuições que não são suas e consequentemente suprime a atuação
dos demais órgãos dos poderes constituídos no Estado Democrático de Direito.
À luz da compreensão de Montesquieu quando dissertou sobre a separação de
poderes, nota-se que o atual papel do judiciário brasileiro tem gerado um
verdadeiro desequilíbrio institucional, prejudicando a atuação dos demais
poderes na gerência do país. Para Montesquieu, os poderes deveriam ser
controlados pelo próprio poder, como freio dos excessos que eventualmente
possam cometer. Como referencial teórico, utiliza-se a obra de Montesquieu, O
Espírito das Leis, especificamente, o capítulo VI do Livro XI, que trata da
organização dos poderes.
Palavras-chave: Separação dos poderes. Supremo Tribunal Federal. Ativismo
judicial.

Abstract: This article intends to analyze the Federal Supreme Court 's action that
uses the phenomenon of judicial activism to solve issues of general national
repercussion. This action of the Supreme Court ends up incorporating attributions
that are not theirs and consequently suppresses the actions of the other organs
of the powers constituted in the Democratic State of Right. In the light of
Montesquieu's understanding of the separation of powers, it is noted that the
current role of the Brazilian judiciary has generated a true institutional imbalance,
hampering the performance of the other powers in the country's management.
For Montesquieu, powers should be controlled by their own power, as a brake on
the excesses they may eventually commit. As a theoretical reference, the work
of Montesquieu, The Spirit of Laws, is specifically used, chapter VI of Book XI,
which deals with the organization of powers.
Keywords: Separation of powers. Federal Court of Justice. Judicial activism.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos o Brasil tem experimentado um verdadeiro desequilíbrio


institucional. Os poderes da república, aparentemente, enfraqueceram sua
essência funcional. A Constituição Federal de 1988 prevê que os Poderes da
União, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, são independentes e harmônicos
entre si1, todavia, o presente cenário prático revela que esta harmonia está
prejudicada, em virtude do ativismo judicial exercido pelo Supremo Tribunal

1 Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo
e o Judiciário. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em
30.08.18
274

Federal, que interfere, diretamente, na atribuição e deveres dos demais poderes


da união. Ao longo da história a separação dos poderes tem sido objeto de
estudo de diversos teóricos da ciência política, tais como Montesquieu, John
Locke, Platão, Aristóteles etc. A influência do pensamento de Montesquieu sobre
a organização dos poderes, inspirou a Constituição de 1988, que consagrou o
modelo tripartite como princípio constitucional. A atuação do Supremo Tribunal
Federal, quando se vale dos fenômenos da judicialização das políticas públicas
e do ativismo judicial, revela que a crise nacional está instalada. O STF não
representa apenas uma corte constitucional, tampouco se limita a função de
guardião da constituição, mas tem operado de forma a obrigar o Poder Executivo
para que, efetivamente, exerça seu papel de gerenciamento e administrador das
leis, bem como, tem suprimido a atribuição do Poder Legislativo, quando cria
novas regras por meio das suas decisões judiciais. Muitas questões surgem
diante desse fenômeno, dentre as perguntas que se podem fazer é, qual é mais
efetiva, a lei ou a decisão judicial? Ou ainda, a omissão da atuação e execução
das atribuições dos demais Poderes da União, tem forçado o Supremo Tribunal
Federal a suprir essa deficiência? A atuação do STF parece, às vezes, atender
aquilo que chamamos de efetividade dos direitos e garantias fundamentais.
Todavia, o alcance das decisões judiciais tem de fato, invadido a esfera de
atribuição dos demais poderes do Estado Democrático Brasileiro, e com isso,
gerado um desequilíbrio institucional.

DESENVOLVIMENTO

Montesquieu, em sua obra, O Espírito das Leis, no capítulo VI do Livro XI,


cujo título é "Da constituição da Inglaterra"2, descreve a organização instituição
da Inglaterra, que seriam um remédio efetivo contra o absolutismo, isto é, contra
a concentração exacerbada de poder por um monarca. A ideia de Montesquieu
era demonstrar que os homens são tentados a abusar do poder que tem, por
isso, ele destaca que esse abuso deveria ser reprimido pelo poder, o poder deve
frear o poder. Para ele o sistema inglês proporcionava este tipo de equilíbrio. Tal
sistema se tratava do presidencialismo clássico (AMARAL JÚNIOR, 2008) 3.A
separação de poderes tem a função de evitar a concentração de poder nas mãos
de uma pessoa, no caso o monarca, e este instituto surgiu como uma forma de
resposta aos regimes absolutistas.
A separação dos poderes no Brasil não segue estritamente a concepção
de Montesquieu, muita embora a essência tenha sido a mesma. A obra O
Espírito das Leis produziu uma referência efetiva sobre o assunto. O sistema
brasileiro acabou por prever o modelo da tripartição dos poderes, sendo eles o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Nota-se que o Supremo Tribunal Federal não atende os interesses da maioria, e
é importante ressaltar que os maiores interessados na atuação do tribunal são

2 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. De l’esprit des lois, vol.
I, Paris:
Garnier-Flammarion, 2005, p. 294-304. Em Português: MONTESQUIEU, Charles Louis de
Secondat, baron
de la Brède et de. O espírito das leis, tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins
Rodrigues,Brasília: UnB, 1995, p. 118-125.
3 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Sobre a organização de poderes em Montesquieu:

Comentários ao Capítulo VI do Livro XI de "O espírito das leis", 2008. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/ - p.2.
275

entidades políticas com objetivos específicos que nem sempre são de


interessantes da população geral. Poder-se-ia até mesmo afirmar que, a atuação
do Supremo esbarra em interesses oligárquicos, pois o acesso a ele é restrito e
nem todos podem arcar com os custos de uma atuação jurídica por lá.
A separação de poderes no Brasil, mais uma vez, encontra-se em
desequilíbrio. De um lado, deseja-se diálogo institucional e de outro, há uma
contenda sobre de quem deve ser a última palavra. A Corte Constitucional do
Brasil se vale do fenômeno do ativismo judicial para ditar as novas regras
nacionais, decidindo quase todas as questões políticas atuais.
No que tange ao ativismo judicial, ele acaba por se revestir de diversas
roupagens. Se reveste do neoconstitucionalismo, da técnica da ponderação de
princípios, de uma nova hermenêutica constitucional, do pós positivismo etc.
O ativismo judicial está intimamente ligado com a ideia de uma
Supremacia Judicial. A compreensão desta ideia é a de que determinadas
pessoas são incapazes de se autogovernarem e acabam por transferir esta
atribuição para um grupo capaz de realizar tal tarefa (MENDES, 2008).4
Salienta-se que o ativismo judicial se vale, também, do mecanismo do controle
de constitucionalidade, que, em algumas hipóteses tem sido visto como
desconfiança na concepção de democracia. Os que se valem desse mecanismo
de controle, acabam por ter prevalência quando interpretam as normas
constitucionais e se conjunto de direitos fundamentais. A celeuma persiste entre
essa atuação do judiciário e o papel do legislativo que deveria sobrepor esta
hipótese de ativismo.
Apesar das extensas prerrogativas que a Constituição Federal de 1988
deu ao STF, o ativismo judicial se abraça, também, com a concepção do
neoconstitucionalismo, doutrina que teve seu desenvolvimento recente, mais
precisamente no início do século XXI, que traz um nova perspectiva em relação
ao constitucionalismo. O neoconstitucionalismo é chamado também de
constitucionalismo pós moderno, e até mesmo pós positivismo (LENZA, 2012)5.
O objetivo do neoconstitucionalismo está em alcançar a eficácia da
Constituição, retirando do texto da norma o caráter meramente retórico e
tornando-o mais efetivo, na medida em que se busca a concretização dos direitos
fundamentais.
Agasalhado com o neoconstitucionalismo, o Supremo Tribunal Federal
tem ganhado proeminência no cenário nacional ao decidir diversas questões que
influenciarão diretamente os direitos individuais e coletivos.
Teóricos da ciência política e juristas afirmam que estamos vivendo numa
supremacia judicial, ou sob o olhar de Oscar Vilhena Vieira 6, numa
“supremocracia”. Ele aponta que o STF está no centro do atual sistema político,
sendo que este fenômeno representa a fragilidade do sistema representativo.
Segundo ele, o STF está exercendo uma função legislativa, ao criar regras e
ainda absorvendo a atribuição de intérprete da Constituição (VIEIRA, 2008)7.

4 MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação.


2008. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. doi:10.11606/T.8.2008.tde-05122008-
162952. p.162. Acesso em: 2018-09-11.
5 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16.ed. ver., atual. E ampl. – São Paulo:

Saraiva, 2012. p.61.


6 Professor e diretor da faculdade de direito da Fundação Getúlio Vargas – FGV.
7
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, [S.l.], v. 4, n. 2, p. 441-463, jul. 2008. ISSN
2317-6172. Disponível em:
276

Para os defensores do neoconstitucionalismo e os que entendem que a


postura de uma corte constitucional está correta quando se judicializa,
basicamente todas as questões da sociedade, o ministro Luís Roberto Barroso,
expõe que os tribunais constitucionais, em várias partes do mundo, tornaram-se
protagonistas das discussões políticas ou morais, em temas controvertidos. Com
a atuação do Poder Judiciário do Brasil, a suprema corte do País ganhou força
em questões relevantes, o que resultou na judicialização da vida e no ativismo
judicial (BARROSO, 2012)8.
De certa forma, o ativismo judicial representaria uma forma de ação
vigorosa do Poder Judiciário em detrimento dos outros poderes, mais
especificamente, o Legislativo. Com o ativismo, o Supremo Tribunal Federal
torna-se legislador, ao criar novas regras ou dar interpretação mais extensiva do
que está no texto da lei e até mesmo na própria Constituição9.

CONCLUSÃO

O ativismo judicial como fator de desequilíbrio institucional revela que a


divisão dos poderes, promovida pelo pensamento de Montesquieu, está distante
da concepção original e da organização do Estado Democrático de Direito.
Posicionamentos jurídicos não devem ser levados como mera retórica pra
reivindicar atribuições diversas daquelas estabelecidas pela Constituição
Federal.
O ativismo judicial se vale do controle de constitucionalidade para impor,
aos demais poderes nacionais, sua supremacia, alegando ser, o judiciário, quem
deve dar a última palavra.
Montesquieu já destacava que o poder de julgar é perigoso, e que todo o que
detém poder é tentado a abusar dele, e por isso, na sua compreensão, o julgador
deveria ser, tão somente, a boca da lei.
Ademais, Montesquieu era cético em relação à democracia, destacando
que nem todos os homens podem votar. Muito embora, o modelo representativo
encontre falhas, este é o modo pelo qual o povo, e todos os seus grupos, podem
ser representados, pois assim o fizeram ao eleger seus candidatos.
O Supremo Tribunal Federal não é um órgão representativo, no sentido
político, apesar da sua grande importância em poder fazer o papel de protetor
da Constituição. Não há dúvidas de que, quando um dos poderes falha, é
necessário que alguém se posicione para que esta grande máquina que é o
Estado, não pare de funcionar.
Não se pode deixar de observar que o Supremo Tribunal Federal age
quando é provocado. A provocação jurisdicional é o que representa o sistema
processual brasileiro. Todavia, quando, ao ser provocado, o STF extrapola sua

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/35159/33964>. Acesso em:


13 Set. 2018.
8 BARROSO, Luís Roberto. Direito e política: a tênue fronteira ou judicialização, ativismo judicial

e democracia. 2012. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI156926,41046-


Direito+e+politica+a+tenue+fronteira+ou+judicializacao+ativismo acesso em 13.09.18.
9 Um caso emblemático julgado pelo STF foi o da união homoafetiva na ADI 4277 e na ADPF

132 quando deram interpretação conforme a Constituição Federal do artigo 1.723 do Código
Civil e interpretaram extensivamente o artigo 226 §3º da CF. (Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931 acesso em
13.09.18).
277

esfera de competência, está assim, agindo por impulso próprio e


consequentemente, gerando desequilíbrio entre os demais Poderes da União.
Em anos eleitorais, se fala em inúmeras reformas, e até mesmo em “mini
constituinte”, o que sem dúvida, se acontecer, destruirá todo Direito
Constitucional que até aqui foi construindo, ocasionando na perda, daquilo que
se busca todo dia, a segurança jurídica.

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279

O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO SOB A ÉGIDE DA ORGANIZAÇÃO


DOS PODERES CONSTITUCIONAIS.
EL ESTADO DE DERECHO DEMOCRÁTICO BAJO LA AYUDA DE LA
ORGANIZACIÓN DE PODERES CONSTITUCIONALES.

Alan Carvalho de Sousa

Resumo: O presente artigo tem como escopo estudar a Organização dos


Poderes como essencial para a manutenção e proteção do Estado Democrático
de Direito. É notório que a distribuição dos poderes entre o Legislativo, Executivo
e Judiciário, ensejam garantias e equilíbrio políticos de modo a se evitar ou pelo
menos, minimizar os riscos de abuso de poder. Objetivasse com o método
indutivo analisar se ao se preservar a separação dos poderes constitucionais, o
Estado democrático de direito estará seguro ou não.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Proteção. Separação dos
poderes.

Abstract: El propósito de este artículo es estudiar la Organización de Poderes


como esencial para el mantenimiento y la protección del Estado de derecho
democrático. Es notorio que la distribución de poderes entre la legislatura, el
poder ejecutivo y el poder judicial proporcionará garantías políticas y equilibrio
para evitar o al menos minimizar los riesgos de abuso de poder. El objetivo del
método inductivo era analizar si preservar la separación de los poderes
constitucionales, el estado de derecho democrático es seguro o no.
Keywords: Estado de derecho democrático. Protección. Separación de poderes.

INTRODUÇÃO

O tema objeto de estudo neste trabalho visa destacar a relevância do


assunto ao ponto de motivar o interesse aos muitos estudiosos, e profissionais
que concentram suas pesquisas na área jurídica, ensejando, levar os leitores à
uma profunda reflexão da temática.
O presente estudo não tem a pretensão de exaurir todo o assunto em suas
poucas páginas, mas influenciar em novas pesquisas que retomam o assunto de
fundamental importância. De modo que, também não visa trazer um estudo como
uma visão perfeita e acabada do Estado Democrático de Direito e da
Organização dos Poderes, até porque são temas dinâmicos e em constantes
debates.
O estudo sobre Estado Democrático de Direito e a Organização ou
Separação dos Poderes, percorrerá de forma objetiva em algumas abordagens
importantes, de modo a possibilitar a verificação de alguns fatos que o
influenciaram para a compreensão de ambos os temas, que certamente serve
de caminho para melhor compreender se a separação dos poderes é ou não
essencial para a manutenção do Estado Democrático de Direito. O método
escolhido para esta pesquisa é o indutivo, buscando-se, a partir da análise da
organização dos poderes verificar o quanto a sua manutenção é ou não
importante para o Estado democrático de direito. Ao longo deste estudo visará
abordar a proposta temática tendo sempre como subsidio, livros, artigos de
profissionais, e estudiosos das áreas envolvidas, abordando o assunto de uma
forma clara, e fácil.
280

O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A ORGANIZAÇÃO DOS


PODERES CONSTITUCIONAIS.

Os grupos sociais, grupos religiosos, a escola, a Universidade, a família


etc, são capazes de gerar relacionamentos, que ensejam na compreensão da
formação da Sociedade propriamente dita. Certo que a “compreensão do termo
sociedade variam, podendo abranger os grupos sociais de uma cidade, de uma
país ou de todos os países, e, neste caso, é a sociedade humana, a
humanidade”. (AZANBUJA, 2008. p.1).
Muito embora possa ocorrer essa variação quanto à compreensão da
sociedade, todos levam de certa forma a consolidação de um Estado, até porque,
o Estado é a formação de “uma sociedade, pois constitui essencialmente de um
grupo de indivíduos unidos e organizados permanentemente para realizar um
objetivo comum” (AZANBUJA, 2008. p.2).
A dinamização social possibilita com que o Estado não se torne imutável,
haja vista que, essa dinamização o prolonga através do tempo e do espaço.
Diante dessa dinamização do Estado, nasce o Estado de Direito,
“conceitualmente vinculado ao liberalismo, e devido ao individualismo e
neutralismo que apresentava o Estado Liberal de Direito não trouxe a efetividade
da garantia dos direitos individuais almejadas quando de sua criação”.
(KAMMER, 2019. p.n.p)
Em decorrência disso, verifica-se a “necessidade de contraposição a essa
situação, surge o Estado Social de Direito, que, impulsionado por movimentos
sociais do século XIX e XX, buscava a tão sonhada justiça social e a melhoria
das condições de vida dos habitantes de um país”. (KAMMER, 2019. p.n.p )
Entretanto, nem o Estado Liberal quanto o Estado Social, cumpriram ou
efetivaram o conceito de justiça e a garantia dos direitos sociais, já que ambas
são espécies derivadas do Estado de Direito. Exemplo triste a ser lembrado
desse Estado de direito foi à opressão empregada contra os povos judeus pela
Alemanha Nazista e a Itália Fascista. (KAMMER, 2019. p.n.p)
Em razão disso surge o Estado Democrático de Direito, que trará em seu
arcabouço as garantias individuais, com a observância da lei, à divisão da
organização do Estado de modo a efetivar a justiça social, e a participação
popular do povo nos processos políticos.
A República Federativa do Brasil atualmente consiste em um Estado
Democrático de Direito, que se solidifica pelo Art. 1º da Constituição Federal,
quando diz que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito, de igual forma pela cláusula contida no parágrafo único
do art. 1º, ao se estabelecer que todo o poder emana do povo, que exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.
A previsão do regime jurídico referente ao Estado Democrático de Direito
é reforçada pelo princípio democrático que marcou o texto de 1988 e pela
cláusula constitucional acima descrita. Até porque “esse se funda no princípio da
soberania popular, que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa
pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação
das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do
Estado democrático, mas não o seu completo desenvolvimento” (SILVA, 1988.
p. 20). A formação ou construção da ideia de organização dos poderes, ou a
281

tripartição desses poderes, adveio na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua


obra Política, em que esse descreveu a existência de “três funções distintas
exercidas pelo poder soberano, a fundação de editar normas gerais a serem
observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto
(administrando) e por fim, a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos
da execução das normas gerais nos casos concretos”. (LENZA, 2013. p.513).
A contribuição de Aristóteles quando da identificação do exercício de três
funções estatais diferentes, muito embora exercida por um único órgão,
influenciou a construção da organização dos poderes constitucionais na forma
vista na atualidade. Em decorrência do momento histórico na qual Aristóteles
estava inserido, fez com que esse teorizasse e descrevesse “essa concentração
dos exercícios de tais funções na figura de uma única pessoa, o soberano”.
(LENZA, 2013. p.513). Pois era na pessoa do soberano que ocorria a
concentração do poder de mando e desmando, haja vista que esse era quem
“editava o ato geral, aplica-o ao caso concreto e, unilateralmente, também
resolvia os litígios eventualmente decorrentes da aplicação da lei” (LENZA, 2013.
p. 513).
Montesquieu em sua obra Espírito das leis, quando traz a visão precursora
do Estado liberal burguês, aprimora a teoria de Aristóteles, de modo que, apenas
com as revoluções liberais do século XVIII, essa visão, tonou-se conhecida.
As três funções estatais são muito bem identificadas (legislativo, executivo
e judiciário), quando Charles Louis de Secondat, faz a defesa da monarquia
limitada, conforme constam do capitulo VI, do livro XI, de O espírito das leis.
Destacando que “são atribuídas a órgãos distintos, dotados de prerrogativas de
independência institucional (Poderes), disso resultando um sistema de freios e
contrapesos inibidor de abusos e altamente benéfico à liberdade individual”.
(RAMOS, 2015. p.n.p). Consequentemente em razão desse aprimoramento
que não se deu em identificar o exercício de três funções estatais, e sim quando
essa parte do pensamento Aristotélico diz que essas três funções estão ligadas
a três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Ou seja, quando
cada função passa a corresponder a cada um dos órgãos, e não mais se
concentrando nas mãos de um único soberano, viabilizam garantias e equilíbrio
políticos de modo a se evitar ou pelo menos, minimizar os riscos de abuso de
poder.
Em suma o pensamento tradicional de Montesquieu, quando tratasse do
princípio da separação dos poderes consagrados em sua doutrina, considerar-
se-á os poderes do Estado com a seguinte divisão: o Legislativo, o Executivo e
o Judiciário, sendo que a cada um e outorgado uma função.
O Artigo 2º da Constituição Federal de 1988 revela-nos o princípio da
divisão funcional do Poder, encontrando sistematização no Título IV da referida
Constituição, sendo que, do referido título IV, constata-se que a compilação
institucional do Estado moderno admitirá em determinadas momentos que a
função desempenhada pelos três poderes Constitucionais seja distinta das que
primariamente compõe as suas atribuições, mais conhecidas como funções
atípicas.
Como se extrai ainda do texto Constitucional esse identifica as funções
estatal que se atrela a cada um dos Poderes, sendo que “tal função típica admite,
em alguma medida e nos termos expressamente prescritos pela Constituição, o
compartilhamento interorgânico, mas sempre haverá um núcleo essencial da
função que não é passível de ser exercido senão pelo Poder competente”.
282

(RAMOS, 2015. p.n.p).


Ramos (2015) dirá que a “observação da separação dos Poderes importa,
dentre diversos outros consectários, na manutenção dos órgãos do Judiciário
nos limites da função jurisdicional que lhes é confiada e para cujo exercício foram
estruturados”.
Barroso (2010, p. 205) leciona no sentido, que o conteúdo central e
histórico do princípio da separação dos Poderes, devem ser descritos da
seguinte forma: “as funções estatais devem ser divididas e atribuídas a órgãos
diversos e devem existir mecanismos de controle recíproco entre eles, de modo
a proteger os indivíduos contra o abuso potencial de um poder absoluto”
Por isso justamente na busca por esse equilíbrio dos poderes, e não mais
a concentração na mão de um único órgão, que se consolida o “denominado
sistema de freios e contrapesos – checkes and balances -, sendo esse a técnica
pela qual os poderes promovem, reciprocamente, o controle dos atos praticados.
Os checkes and balances constituem formas de equilíbrio e interferência entre
os poderes como instrumento de garantia da liberdade. Significam o controle do
exercício do Poder pelo próprio Poder, cujos limites são definidos pela
Constituição” (CARLOS, 2017. p. 296). Logo, havendo o excesso
desses limites impostos pela Constituição, o poder por meio da competência que
lhe é atribuída poderá conter o outro poder a fim de cessar os atos praticados
em desconformidade com a Constituição.

O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO SOB A PROTEÇÃO DA


ORGANIZAÇÃO DOS PODERES CONSTITUCIONAIS?

Estudou-se anteriormente, conceitos e a importância do Estado


democrático de direitos, bem como, a relevância e a finalidade da organização
dos poderes Constitucionais com o advento da Constituição Federal de 1988, do
mesmo modo que, alguns pontos principais quanto da sua criação e
aperfeiçoamento. Em face dos dois temas já explicados
anteriormente o que se busca é compreender se a manutenção da organização
dos poderes concorre ou não para a preservação do Estado democrático de
Direito.
Partindo do quanto já estudado, verificou-se que a distribuição dos
poderes entre o Legislativo, Executivo e Judiciário, corroboram para as garantias
Constitucionais e equilíbrio políticos de modo a se evitar ou pelo menos,
minimizar os riscos de abuso de poder. E que uns dos meios para se evitar esses
abusos é através da técnica de freios e contrapesos, que possibilitará com que
os poderes entre si, controle os atos praticados uns dos outros, nos limites
Constitucionais.
Quando se parte do conceito que o Estado Democrático de Direito “é uma
sociedade política comandada por representantes eleitos pelos cidadãos dessa
sociedade que tem por função zelar pela separação dos poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário, garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos e a
obediência aos ditames legais” (CHAGAS, 2012. p. 53), e mais a técnica de
freios e contrapesos, concluir-se-á que a manutenção da separação dos
poderes, é essencial para que se preserve os direitos fundamentais individuais.
Evidentemente que a preocupação quando da manutenção da
organização dos poderes, além do controle constitucionais que todos exercem
sobre cada um, é a garantia de efetividade dos direitos fundamentais dos
283

indivíduos, conforme preconiza o artigo 5º da Constituição Federal. Entre tais


direitos encontram-se o direito à vida, à liberdade, a igualdade, à segurança,
entre outros. Sendo todos indispensáveis para a concretude da democracia,
estando intimamente ligada a essa. A igualdade por
exemplo é vista como um dos núcleos da democracia, devendo essa ser
concretizada e realizada, não só no campo jurídico, mas também tenha o seu
alcance estendido às demais dimensões da vida.
Outro ponto importante é que ao ocorrer a supressão de qualquer dos
poderes Constitucionais (executivo, legislativo e judiciário), como por exemplo o
executivo, não haveria a possiblidade da participação popular política na escolha
de seus representantes, pelo menos nos moldes aplicados com o advento da
Constituição de 1988.
Certo que situações de concentração de poderes em uma única pessoa,
já foram vivenciadas por civilizações, basta lembrar da monarquia ou da figura
do soberano que detinha toda a concentração de poder, ou seja, de mando e
desmando, de modo que esse era quem criava a lei e ao mesmo tempo aplicava-
a no caso concreto levado ao seu julgamento.
Logo a organização dos poderes como é vista hoje, representa a
compilação organizada de uma Constituição que propicia de certa forma a
preservação de direitos, já que, a sua idealização ou finalidade entre algumas
delas objetiva-se a “preservação da liberdade individual, combatendo a
concentração de poder, isto é, a tendência absolutista de exercício do poder
político da mesma pessoa ou grupo de pessoas” (DIMOULIS, 2008. p. 145).
Entretelando há indagações em sentido oposto, ou seja, poderia ser a
Constituição que preceitua a organização dos poderes em si mesma suficiente
para garantir a democracia, ou o Estado democrático de direito? Isto é, o Estado
Democrático de Direito descrito na Constituição seria suficiente para
salvaguardar a democracia?
Levitsky (2018. p. 99), afirma que a resposta seria não, já que “mesmos
Constituições bem projetadas por vezes falham nessa tarefa”. Dirá ainda que

“Se regras constitucionais bastasse, a figura como Perón, Marco e


Getúlio Vargas – Todos o quais assumiram o cardo sob constituições
ao estilo norte-americano, que continham, no papel, um arranjo
ordenado de freios e contrapesos – teriam sido presidentes de um ou
dois mandatos, em vez de autocratas notórios”. [..] Primeiro, porque
constituições são sempre incompletas. Como qualquer conjunto de
regras, eles têm inúmeras lacunas e ambiguidades. Nenhum manual
de operação, não importa quão detalhado, é capaz de antecipar todas
as contingências possíveis ou prescrever como se comportar sob todas
as circunstâncias. (Levitsky, 2018. p. 100-101)

Veja que a democracia está intimamente ligada com o Estado


democrático de Direito, até porque foi em decorrência do Estado Democrático de
Direito, como dito anteriormente, que se se trousse em seu arcabouço as
garantias individuais, com a observância da lei, a divisão da organização do
Estado de modo a efetivar a justiça social, e a participação popular do povo nos
processos políticos. Canotilho (2002, p. 287), leciona no sentido ao descrever o
conceito de democracia como um "processo de continuidade transpessoal,
irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas pessoas".
Vejam que a democracia somente pode ser concretizada com a
implementação e a efetivação da separação dos poderes.
284

Emanuel de Moraes (1998, p. 236) compreende que nos direitos naturais


do homem, como o direito à vida, a liberdade e a igualdade, vincularam-se o
conceito fundamental do Estado democrático, assim como, os direitos
fundamentais, a separação dos poderes e a soberania do povo, cujo ponto
culminante é a felicidade de todos, devem estrarem asseguradas pela Estrutura
do Estado democrático.
Quando à afirmação que a Carta Magna promulgada em 1988, no dia 05
de outubro, “tornou-se o principal símbolo do processo de redemocratização
nacional. Após 21 anos de regime militar, a sociedade brasileira recebia uma
Constituição que assegurava a liberdade de pensamento” (Câmara), que está
em conformidade com o pensamento de Sundfeld (2002, p. 54), pois para que
se possa inferir que o Estado democrático de direito de fato cumpre o seu papel
pensado pelo legislador, esse deve ser somado ao arcabouço do
constitucionalismo, da república, com a efetiva participação popular direta,
separação dos Poderes, legalidade e direitos (individuais e políticos), uma vez
que são elementos fundamentais para se vivenciar uma democracia
participativa, sendo que isso somente foi possível com a Constituição de 1988.
As atuações exercidas por cada um dos Poderes no Estado democrático
brasileiro estará sustentada e equilibrada sempre que houver a manutenção da
relação organizacional dos Poderes, de modo que se leve em consideração a
isonomia e harmonia entre as funções, de forma a concorrer com a cooperação
e coordenação de cada poder, objetivando a sustentação da tripartida do
exercício do poder.
Até porque não há que se falar em regime de separação de poderes na
contemporaneidade, mas sim de cooperação de funções entre esses poderes.
Apesar que a “expressão cooperação entre poderes” já ser emprega por
Immanuel Kant, na sua obra A Doutrina do Direito, publicada em 1797.
Abramovay (2012) no que tange a teoria contemporânea da separação
dos poderes expõe que “a única maneira de o princípio da separação de Poderes
conviver com a democracia e exercer a sua principal função de combater o
arbítrio é a de um permanente ambiente de diálogo constitucional (...)”.
Perceba que se qualquer desses poderes falharem na sua função de
combater e impedir os excessos realizados pelo Poder que pratica a ação
inconstitucional, a democracia está comprometida e consequentemente o
Estado democrático de direito.
Por isso o controle e a fiscalização são indispensáveis para se evitar
abusos do poder, nessa percepção Piçarra (1989, p. 258-259) afirma que “o
sistema de controles jurídicos constituiria o núcleo essencial do princípio da
separação dos poderes no Estado de Direito contemporâneo”.
Logo é indispensável o controle e fiscalização que também se
concretizará pela técnica de freios e contra pesos, ou seja, “o sistema de freios
e contrapesos determinou, afinal, não um equilíbrio permanente entre os
poderes separados, mas sim a predominância cíclica de cada um deles” (Piçarra,
1988. p. 184), igualmente as regras que se apresentam indispensável para a
manutenção do Estado Democrático de Direito.

CONCLUSÃO

Depreende-se que a separação dos poderes, ou cooperação entre eles é


necessária, para que o Estado Democrático de Direito se efetive. Ou seja, a
285

organização da separação dos poderes, deve ser visto, como um meio voltado
a preservar o desenvolvimento do Estrato Democrático de Direito, objetivando
ainda o cumprimento de uma de suas principais finalidades que consistirá na
concretização dos direitos fundamentais.

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SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. São Paulo:


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287

O FALSO CONFLITO ENTRE A DEMOCRACIA E O ATIVISMO JUDICIAL


FALSO CONFLICTO ENTRE LA DEMOCRACIA Y EL ACTIVISMO JUDICIAL

Elaine Dupas
Leonardo Chaves de Carvalho
Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: O presente trabalho objetiva a discussão sobre o possível dilema entre


a Democracia e o ativismo judicial para analisar até que ponto a prática do
ativismo fere a Democracia, visto que o judiciário não foi eleito
democraticamente. Será analisada a divisão dos Poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário e suas funções. Bem como a importância do ativismo judicial como
prática para garantir o cumprimento da Constituição Federal e,
consequentemente, dos direitos fundamentais. A metodologia utilizada é a
revisão bibliográfica. Conclui-se que o ativismo judicial garante a aplicação dos
direitos constitucionais que é a maior expressão da vontade popular.
Palavras-chave: Ativismo judicial. Democracia. Direitos fundamentais.

Resumen: Este documento tiene como objetivo discutir el posible dilema entre
la democracia y el activismo judicial para analizar en qué medida la práctica del
activismo perjudica a la democracia, ya que el poder judicial no ha sido elegido
democráticamente. Se analizará la división de los poderes legislativo, ejecutivo
y judicial y sus funciones. Además de la importancia del activismo judicial como
práctica para garantizar el cumplimiento de la Constitución Federal y, en
consecuencia, los derechos fundamentales. La metodología utilizada es la
revisión de la literatura. Se concluye que el activismo judicial garantiza la
aplicación de los derechos constitucionales, que es la mayor expresión de la
voluntad popular.
Palabras-clave: Activismo judicial. Democracia. Derechos fundamentales

INTRODUÇÃO

A história demonstra que a Democracia, sempre tema de discussões,


sempre sofreu duras críticas, sendo contestada desde sua origem até os dias
atuais. Porém, embora exista variadas críticas a respeito dessa forma de
governo, ainda é o que conhece-se de melhor como forma de governar.
Conforme afirma Bobbio, para quem a democracia é o reino das
liberdades: “Ao longo dos últimos anos, a democracia se converteu no
denominador comum de todas as questões politicamente relevantes, teóricas e
práticas.” (2018, p.16)
Compreender a evolução e transformação do conceito da terminologia e
sua efetividade é fundamental para qualquer abordagem atual do cenário político
e do Estado Democrático de Direito.
A ampliação do número de Estados democráticos demonstra a
democratização do sistema internacional. E, embora haja críticas severas quanto
a esse modelo de governo, sendo chamado pejorativamente até de
“mediocracias” com intenção de indicar democracias frouxas, nota-se que
permanece e se fortalece mundialmente, vencendo os Estados
antidemocráticos, sobrevivendo diante de ditaduras políticas ou militares.
288

No cenário brasileiro, o ativismo judicial pode ser considerado como


ofensor da Democracia na medida em que o judiciário atua como defensor dos
direitos fundamentais extrapolando suas funções tipicar na separação dos
Poderes.
Explica-se: o judiciário não foi eleito democraticamente, ou seja, pode
não expressar a vontade do povo. Porém, ativismo judicial é a atividade que visa
assegurar a realização de um direito fundamental estabelecido na Constituição,
que via de regra é a vontade da maioria.
Nesse sentido, há severo debate sobre se o Poder Judiciário, por meio da
prática do ativismo judicial, ofende a Democracia no sentido de diminuir o poder,
principalmente do Legislativo, bem como do Executivo. Ou seja, se o judiciário
ao agir fora das suas funções típicas, atua de forma antidemocrática.
Objetiva-se analisar se o ativismo judicial, visando a efetivação dos
direitos fundamentais, fere a democracia.
Nesse sentido, pretende-se como objetivos específicos: conceituar e
abordar evolução do termo Democracia, bem como análise do ativismo do
judiciário brasileiro, por fim, o papel do judiciário para a consolidação ou
enfraquecimento da Democracia no Brasil.
Quanto à metodologia, toma-se como base para classificação da pesquisa
o critério proposto por Vergara (1998) que a qualifica quanto aos fins e quanto
aos meios. Quanto aos fins, a pesquisa é descritiva e exploratória. Quanto aos
meios, a pesquisa é bibliográfica.

DEMOCRACIA E ATIVISMO JUDICIAL

Norberto Bobbio afirma que para conceituar Democracia é necessário


saber “quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais
procedimentos”, mas com a ressalva de que “até mesmo as decisões de grupo
são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide), e por isso para que
“possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em
regras” que definam “quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões
vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos”
(2018, p. 35)
Além disso, para Bobbio (2018) é essencial que os sujeitos que vão decidir
ou eleger àqueles que deverão tomar as decisões, tenham escolhas, ou seja,
“alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra” e
que isso só será possível se estiverem garantidos os “direitos de liberdade, de
opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação etc.”. E
conclui sobre tais direitos que “as normas constitucionais que atribuem estes
direitos não são exatamente regras do jogo: são regras preliminares que
permitem o desenrolar do jogo” (2018, p. 38)
Para Caggiano, o conceito mais moderno de Democracia refere-se:

Dentre os diferentes – e não muito afastados – conceitos


doutrinários, de qualquer forma, emergem os elementos
liberdade e igualdade a nortear os rumos democráticos
e a sua concretização mediante eleições livres e
competitivas com amplos espaços para oposição. Estes
últimos valores, aliás, por muito tempo sustentaram o
sufrágio universal como a conquista maior da
humanidade. (CAGGIANO, 2011, p. 09-10) (grifos
nossos).
289

Portanto, ao tratar do tema proposto, há um suposto dilema entre o


ativismo judicial e a Democracia, uma vez que ao praticar o ativismo judicial,
estaria o Poder Judiciário diminuindo os poderes do Poder Legislativo e do
Executivo, democraticamente eleitos.
Porém, partindo da concepção de Bobbio sobre a democracia, percebe-
se que tal dilema inexiste, haja vista que as normas constitucionais são regras
preliminares que garantem o exercício de escolha dos representantes. Para que
os sujeitos possam exercer a livre escolha, é imprescindível que tenham todos
os seus direitos fundamentais garantidos.
O ativismo judicial, de maneira simples e fácil de ser compreendido, de
acordo com Loureiro (2013), caracteriza-se “por uma atuação direta do Estado-
Juiz, na figura do Poder Judiciário, no sentido de assegurar a realização de um
direito fundamental estabelecido na constituição, diante de uma situação
concreta na qual uma pessoa seja privada deste direito” (2013, s.p.)
Portanto, ao praticar o ativismo, entende-se que o Poder Judiciário estaria
invadindo a esfera de Poder do Legislativo e Executivo, que são poderes que
têm seus representantes eleitos democraticamente.
A separação dos poderes, da fórmula de Montesquieu, visão clássica
sobre o tema, apregoa que um faz a lei, outro a executa, o terceiro a aplica, ou
seja: Legislativo, Executivo e Judiciário. Logo, cabe ao Poder Judiciário a
aplicação da lei. Ressalta Lessa sobre a atividade do Judiciário:

A três - continua - se reduzem os principais caracteres distintivos do


Poder Judiciário: 1) as suas funções são as de um árbitro; para que
possa desem- penhá-las, importa que surja um pleito, uma contenda;
2) só se pronuncia acerca de casos particulares, e não em abstrato
sobre normas, ou preceitos jurídicos, e ainda menos sobre princípios;
3) não tem iniciativa, agindo - quando provocado, o que é mais uma
conseqüência da necessidade de uma contestação para poder
funcionar.

Percebe-se, portanto, que o que diferencia um poder do outro é


fundamentalmente as funções que exercem. Ensina Ferreira Filho (1994) que tal
distinção se dá em razão da função e não da matéria, ratione muneris e não
ratione materiae.
E complementa Lessa:

Uma só matéria pode ser legislativa, executiva e judicial. Trata-se de


regulá-la por uma lei? É legislativa. Faz-se necessário executar a lei,
ou proceder em geral de acordo com a lei? É a matéria executiva, ou
administrativa. Deu origem a contendas, ou contestações,
concernentes à aplicação da lei? É judicial.

Nesse sentido, o controle de constitucionalidade das leis aparenta ser um


dos pontos mais delicados desse conflito de poderes, no qual quem vence é o
Judiciário, se realmente se tratar de inconstitucionalidade.
Enfrentar tal questão traz um paradoxo. Afinal, afirmar que o ativismo
enfraquece a democracia é esquecer que a democracia no Brasil ainda está frágil
e recente, uma vez que a Constituição Federal de 1988 rompe com um período
antidemocrático e traz uma vasta carta de direitos.
Galvão afirma sobre o período de redemocratização:
290

Relativamente ao Brasil, no começo de sua experiência democrática,


uma Corte Constitucional com amplos poderes fazia-se necessária
para fortalecer o compromisso com os direitos fundamentais e aniquilar
os espectros da ditadura. Vinte anos depois, entretanto, a população
depara-se com a possibilidade de ter restringida sua participação na
tomada de decisões político-sociais. (GALVÃO, 2011, p. 391).

E complementa:

Os juízes discordam sobre interpretação judicial na mesma proporção


em que as pessoas comuns discordam sobre a moralidade coletiva. Os
termos vagos em que as Cartas Constitucionais não fornecem
nenhuma resposta para os casos constitucionais difíceis, como aborto,
eutanásia, pesquisa com células-tronco e ações afirmativas. A única
certeza é que a população vai ser diretamente afetada por alguma
concepção particular de direito acolhida pela maioria dos membros da
Suprema Corte. Nessas questões de moralidade política, não há
nenhuma garantia que o ponto de vista adotado pelos juízes seja
superior ao dos outros membros da sociedade. (GALVÃO, 2011, p.
283).

Como já levantado, o tema democracia e ativismo judicial é polêmico e


suscita os mais calorosos debates. Afinal, para garantir direitos fundamentais, o
judiciário, por muitas vezes, necessita ultrapassar sua esfera típica de atuação
e adentrar na esfera do Poder Legislativo ou Executivo, diante da inércia desses
ou, simplesmente diante da falta de interesse em agir.
Os que vociferam contra o ativismo e afirmam que tal prática enfraquece
a democracia, afirmam:

O Poder Judiciário não deve assumir, em qualquer matéria e em


qualquer intensidade, a prevalência na determinação da solução entre
conflitos morais porque, num Estado de Direito, vigente numa
sociedade complexa e plural, deve haver regras gerais destinadas a
estabilizar conflitos morais e reduzir a incerteza e a arbitrariedade
decorrente de sua inexistência ou desconsideração, cabendo à sua
edição ao Poder Legislativo e a sua aplicação, ao Judiciário. (ÁVILA,
2009, p. 193)

Percebe-se que se trata de não exercer funções atípicas, não adentrando


em questões que necessitam da moral para serem solucionadas. Porém, tal
abstenção por parte do Poder Judiciário pode causar violação de direitos, ou
uma redução significativa de garantias dos direitos fundamentais.
Elival da Silva Ramos concorda com tal corrente que afirma que o ativismo
judicial enfraquece a Democracia e que deteriora os postulados da separação
de poderes e do Estado Democrático de Direito e aponta a necessidade da
manutenção de balizas normativas à interpretação judicial.
Em contrapartida, Conrado Hubner Mendes afirma que a legitimição dos
poderes não é algo estático:

Se concordarmos que as variáveis de legitimidade da democracia não


se esgotam no procedimento, mas abrangem também os resultados,
passa a ser aceitável que a substância subordine, em algumas
circunstâncias, o procedimento, ou seja, que a instituição que tenha
alcançado a resposta mais compatível com um critério substantivo de
291

legitimidade tenha boas razões para prevalecer independentemente de


seu pedigree (subvertendo a estrutura formal). (MENDES, 2011, p.
194)

Nesse sentido, é possível observar que a opinião pública tem


fundamentado as decisões decorrentes do ativismo do Poder Judiciário. Logo,
não é possível afirmar que quando uma questão enfrentada pelo judiciário é
considerada como ativismo judicial, esta esteja isenta dos valores da sociedade,
ferindo ou reduzindo a Democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio do exposto, considera-se que há um falso dilema entre


Democracia e Ativismo Judicial. A Democracia não é reduzida ou fragilizada
porque o judiciária exerce suas funções atípicas e adentra nas funções do
legislativo ou do executivo.
Conforme demonstrado, a separação de Poderes não pode ser
fundamentação para deixar de garantir um direito fundamental previsto
constitucionalmente. Além do mais, o Brasil está em fase de redemocratização
após um longo período de ditadura militar.
Entende-se que a máxima de que os fins justificam os meios é aplicável
nessa forma encontrada pelo judiciário para garantir a aplicação dos direitos
fundamentais e dos direitos humanos.
Portanto, não se justifica afirmar que ao exercer funções típicas do
Legislativo e do Executivo, que são eleitos democraticamente, o Judiciário não
estaria respeitando a vontade da maioria. Ao contrário, os casos resolvidos por
meio do ativismo judicial são de grande clamor social, com soluções que
representam e garantem os direitos fundamentais dos cidadãos, com
fundamento na Constituição Federal que é o ápice da vontade popular.
O Poder Judiciário contribui para o fortalecimento da Democracia, embora
o tema seja um caminhar em uma fina navalha, conforme demonstrado.

REFERÊNCIAS

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da Ciência”. In: BINENBOJM, Gustavo; NETO, Cláudio Pereira de Souza;
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292

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GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. Concentração de Poder da Jurisdição


Constitucional: Uma análise crítica de seus pressupostos filosóficos. In:
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do;
LEAL, Roger Stiefelmann; HORBACH, Carlos Bastide (Coord.). Direito
Constitucional, Estado de Direito e Democracia: Homenagem ao Prof. Manoel
Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2011.

MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação de poderes e


deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo:


Saraiva, 2010.
293

O MEIO AMBIENTE EM CONFLITO: COMUNIDADES TRADICIONAIS EM


UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
THE ENVIRONMENT IN CONFLICT: TRADITIONAL COMMUNITIES IN
CONSERVATION UNITS

Allex Jordan Oliveira Mendonça


Larissa Campos Rubim
Orientador(a): Glaucia Maria de Araujo Ribeiro

Resumo: O objetivo de estudo, que diz respeito as comunidades tradicionais


que convivem em unidades de conservação, é mostrar se há compatibilização
de direitos diversidade biológica e da diversidade cultural. A metodologia
utilizada nesta pesquisa foi a do método dedutivo; quanto aos meios a pesquisa
foi a bibliográfica, com uso da doutrina e da legislação; quanto aos fins, a
pesquisa foi qualitativa. Chega-se a conclusão de que os institutos podem ser
compatíveis, desde que se utilize a proporcionalidade na interpretação jurídica,
na tentativa de manter a equivalência dos direitos nos casos concretos.
Palavras-chave: Comunidades tradicionais. Unidades de conservação. Colisão.

Abstract: The objective of a study that concerns the traditional communities that
live in conservation units is to show whether there is a compatibilization of
biological diversity and cultural diversity rights. The methodology used in this
study was that of the deductive method. As to the means the research was the
bibliography with the use of doctrine and legislation. As for the purposes the
research was qualitative. It is concluded that the institutes can be compatible as
long as proportionality is utilise in the legal interpretation in an attempt to maintain
the equivalence of rights in concrete cases.
Key-words: Traditional communities. Conservation units. Collision.

INTRODUÇÃO

Através do conceito de meio ambiente é possível verificar conflitos que


permeiam o cotidiano do ordenamento jurídico brasileiro. Embora a pessoa
humana seja destinatária final do Direito Ambiental, muitos problemas
envolvendo o homem e as naturezas encontram espaço para discussões
transdisciplinares. Dentro deste contexto, algumas classificações do meio
ambiente entram em choque – não por serem conceitos divergentes – mas por
possuírem iguais valores, necessitando de uma atividade interpretativa para a
resolução do caso concreto. Exemplo disso é a problemática das comunidades
tradicionais e indígenas e que vivem em áreas protegidas na Amazônia.
O meio ambiente pode ser identificado, dentre outras classificações, como
natural e cultural – ambos previstos na Constituição Federal de 1988 . Postas
estas classificações introdutórias, a problemática do tema gira em torno da
sobrevivência das comunidades tradicionais e indígenas (meio ambiente
cultural) que vivem em áreas protegidas (meio ambiente natural). De um lado, o
reduto ao meio ambiente natural, e de outro a proteção dada ao meio ambiente
cultural: a questão dos direitos destas populações é ponto de tensionamento e
fonte de conflitos que levam à pauta a colisão de direitos fundamentais.

1. O CONFLITO
294

Primeiramente, necessário destacar alguns estudos de comunidades


tradicionais na Amazônia que demonstram a dificuldade imposta pela afetação
das Unidades de Conservação. Dentre eles citam-se os realizados por Siqueira
(2012) e Silva, G. (2013) cujas pesquisas serviram de parâmetro para as
indagações propostas acerca desta problemática. O primeiro trabalho descreve
e analisa o Quilombo do Tambor, grupo social que vive no Parque Nacional do
Jaú. Sua problemática gira em torno da definição de quilombo e a aplicação do
dispositivo da Constituição Federal previsto no art. 68 do ADCT. Segundo
Siqueira (2013), esta investigação demonstrou que a situação dos residentes do
rio Jaú é de insegurança sobre a apropriação e uso de recursos para reprodução
social, tendo em vista êxodos forçados, deslocamentos compulsórios, além de
pressões e controles dirigidos por agentes externos sobre o local.

[...] Pode-se considerar que os efeitos mais caros dessa intervenção


sobre a população do meio rural da região de criação veio mesmo na
forma de fortes pressões que o órgão gestor da UC passou a exercer
sobre os moradores, com deslocamentos compulsórios sem
indenização prévia e os “êxodos” forçados a que foram submetidas
todas as famílias residentes no rio Jaú e em suas adjacências
(SIQUEIRA, 2013, p. 75).

O segundo exemplo diz respeito às comunidades ribeirinhas que habitam


a unidade de conservação Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio
Negro. Em seu trabalho, Silva, G. (2013) mostra que ao criar as áreas de
conservação, o Estado estabelece um caráter impositivo diante dos moradores
destes locais, o que redireciona suas práticas de vida em relação àquele meio.
Segundo a autora, para a maioria dos ribeirinhos que habitam este espaço
protegido, a criação de uma unidade de conservação se configura como uma
forma de constrangimento “uma vez que a idéia de proibição se evidencia a partir
das limitações impostas quanto ao uso dos recursos naturais, como terra para
plantio, madeira, pescado e caça” (SILVA, G., 2013, p 146).
Tais limitações afetam diretamente as possibilidades de sobrevivência do
grupo, visto que não encontram condições que lhes permitam dar continuidade
ao sistema de reprodução dos núcleos familiares, fazendo com que a presença
permitida vá aos poucos se tornando em ausência forçada. A diversidade cultural
dos grupos sociais que habitam as unidades de conservação colide com o ideário
de preservação do meio ambiente natural – tal colisão envolve a garantia de
acesso a determinados recursos percebidos como essenciais para a existência
do grupo e sua permanência no território. Os estudos trazidos demonstram que
processos de posse, apropriação de terras e recursos naturais, de restrição e
controle excessivos dos espaços de uso, de deslocamento compulsório de
residentes podem causar a extinção desses grupos. Não considerar as
dimensões culturais e sociais no processo de criação das unidades de
conservação opera de modo diverso ao que prega o documento constitucional
de 1988.

2. A DIVERSIDADE BIOLÓGICA E AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Antunes (2010) conceitua as unidades de conservação como espaços


territoriais destinados ao estudo e preservação de exemplares da flora e da fauna
que, por força do ato do Poder Público, poderão ser públicas ou privadas. Neste
295

sentido, o Congresso Nacional editou a Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000,


norma que institui o Sistema Nacional de Conservação da natureza e dá outras
providências com a finalidade – esculpida no aludido art. 225 da Constituição
Federal – de exercer plenamente efeitos no ordenamento jurídico. A lei em
comento trata de espaços instituídos pelo Poder Público para conservação de
bens ambientais e classifica as unidades de conservação em dois grupos: As
Unidades de Proteção Integral1 e as Unidades de Uso Sustentável2. As primeiras
têm como finalidade a preservação da natureza, na qual apenas é permitido o
uso indireto de seus recursos naturais. As segundas são áreas cuja finalidade é
a adequação da conservação da natureza aliada ao uso sustentável de seus
recursos.
Nestes casos, o Estado estabelece características e atributos para cada
um dos espaços que, dependendo do tratamento dado, poderá ser utilizado e
explorado economicamente. Cada unidade de conservação apresenta um
padrão de limitação de atividades sociais, turísticas e econômicas. Ressalta-se
que, conforme aponta Antunes (2010), a Constituição Federal criou um regime
jurídico especial de interesse público para a proteção de espaços do território
nacional.
O SNUC3 apresenta variados conceitos aplicáveis às unidades de
conservação, além de estabelecer condições de validade da criação dessas
áreas. A criação destas áreas depende de estudo técnico prévio, sendo
necessário e recomendável a consulta pública, a fim dar espaço para
comunidade envolvida no processo de criação – conforme art. 5º da Lei nº 9.985.
Antunes (2010) esclarece que estas normas procedimentais de criação das

1 As Unidades de Proteção Integral se classificam em: Estação Ecológica Reserva Biológica,


Parque Nacional, Monumento Natural e Refugio de Vida Silvestre. Conforme art. 8º da Lei 9.985
de 2000.
2 As Unidades de Uso Sustentável categoriza os espaços em Áreas de Proteção Ambiental,

Áreas de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de


Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural.
Conforme art. 14 da Lei 9.985 de 2000
3 Não só a Lei do SNUC trata de assegurar a proteção jurídica da diversidade biológica. O

arcabouço normativo de proteção ao meio ambiente natural encontra amparo em alguns


documentos legais. Além do art. 225 da Constituição Federal, que estabelece o meio ambiente
ecologicamente equilibrado como direito de todos, e apresenta a concepção de bem ambiental;
a Convenção Da Diversidade Biológica, assinada durante a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e aprovada pelo Congresso Nacional através do
Decreto Legislativo nº 2 de 1994, em seu artigo oito, determina que cada parte contratante do
acordo estabeleça um sistema de áreas protegidas ou áreas onde medidas especiais precisem
ser tomadas para conservar a diversidade biológica; além do desenvolvimento de diretrizes que
administrem a conservação da diversidade biológica. A Convenção Sobre Proteção Do
Patrimônio Mundial, Cultural E Natural de 1972 incentiva a preservação de bens culturais e
naturais visto que possuem valor universal; além de estabelecer que a humanidade se empenhe
na preservação da diversidade. A Lei nº 6938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional Do
Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicações, tem por objetivo a
preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia a vida e tem como um dos
seus princípios a proteção de ecossistemas. O Decreto nº 4.339/2002, que institui princípios e
diretrizes para a implementação da Política Nacional Da Biodiversidade revela grande
preocupação com as unidades de conservação promovendo a proteção, criação e
desenvolvimento destes bens ambientais. Por fim o Decreto nº 5.758 que instituiu o Plano
Estratégico Nacional De Áreas Protegidas (PNAP) possui dentre seus princípios a valorização
do patrimônio natural e do bem difuso, garantindo os direitos das gerações presentes e futuras,
além de reconhecer as áreas protegidas como um instrumento eficaz para a preservação da
diversidade biológica e sociocultural.
296

unidades de conservação são direito subjetivo da população a fim de que tenham


posse ou propriedades nas áreas que serão definidas como unidades de
conservação.
Percebe-se o valor das unidades de conservação em garantir a proteção
territorial de espaços com características ecológicas e ambientais relevantes
para a manutenção da fauna e da flora. Entretanto, um dos grandes problemas
da proteção da diversidade biológica em áreas protegidas certamente diz
respeito as populações tradicionais que habitam os locais das unidades de
proteção integral. Um conjunto de pesquisas realizadas nas mais diversas áreas
do conhecimento tem demonstrado a viabilidade e o interesse em proteger e
manter esses povos nos seus territórios tradicionais, mesmo quando inseridos
em Unidades de Conservação. Neste sentido, necessário é abordar a proteção
jurídica dada a diversidade cultural.

3. DIVERSIDADE CULTURAL E COMUNIDADES TRADICIONAIS

A Diversidade cultural também é considerada um dos aspectos do meio


ambiente. Tal feição encontra guarida na Constituição Federal, em seu art. 2164,
o qual informa que constituem o patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial de diferentes grupos formadores da sociedade,
incluindo as forma de expressão, modos de criar, fazer e viver, criações
científicas, artísticas e tecnológicas, além de obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados a manifestações artístico-culturais e
obras, objetos, documentos e edificações destinadas às manifestações artístico-
culturais.
Para Silva, J. (2013), o meio ambiente cultural é obra do homem,
identificada pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico,
turístico que adquiriu ou se impregnou de valor especial. Neste sentido, Fiorillo

4 A proteção jurídica dada a diversidade cultural no que diz respeito às populações tradicionais
também encontra amparo em vários documentos legais: além da Constituição federal, em seus
artigos 215 e 216, aqui já explicitados, outros documentos legais tendem a resguardar alguns
direitos das populações tradicionais e indígenas; o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias institui modalidade de apropriação formal de terras para povos como os quilombolas;
o Decreto nº 4.339/2002 que institui a Política Nacional da Biodiversidade, tenta compatibilizar
direitos: em seu art. 2º, XII diz sobre a importância das populações tradicionais na conservação
e na utilização da biodiversidade brasileira e informa que povos indígenas, quilombolas e as
outras comunidades locais desempenham papel importante na conservação e na utilização
sustentável da biodiversidade brasileira; a Convenção da Diversidade Biológica, artigo 8, J
estabelece como obrigação o respeito a preservação e a manutenção do conhecimento, as
inovações e praticas das comunidades locais e populações indígenas como estilo de vida
tradicional relevante à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica; a
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, art. 4º, afirma que a defesa da diversidade
cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade da pessoa humana; a
Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, art. 2º,
item seis, declara a diversidade cultural como grande riqueza para os indivíduos e as sociedades,
sendo a proteção, promoção e manutenção da diversidade cultural uma condição essencial para
o desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e futuras; a Declaração das
Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção nº 169/89 da OIT,
reconhecem junto com os povos indígenas, outros grupos cujas condições sociais, econômicas
e culturais os distinguem de outros setores da coletividade nacional, arrolando para todos direitos
específicos; por fim, o Decreto nº 4.887/2013, o qual regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos.
297

(2013) ressalta que tal diversidade cultural traduz a idéia de um povo, sua
formação e cultura – considerada um dos elementos identificadores da
cidadania. Este bem difuso encontra amparo também no art. 215 da Carta Magna
que determina a garantia e pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional5, devendo o Estado proteger as manifestações de
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras.
Entretanto, conforme assevera Machado (2013, p. 1092) “o fato de existir
na Constituição da República um conjunto de normas sobre o patrimônio cultural
não garante, por si só, sua sustentabilidade”. Isto fica bem evidente com os
exemplos apresentados alhures (quilombos Tambor dos pretos e comunidade
ribeirinha do Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro). Todavia,
antes de adentrar neste contexto, cumpre esclarecer a concepção de população
tradicional e indígena como parte integrante da diversidade cultural.
Segundo Almeida (2008) através do advento das relações políticas no
campo e na cidade e do processo de territorialização, notam-se formas de
associação que estão incorporadas por fatores de etnia, consciência ecológica
e autodefinição coletiva de diferentes grupos sociais que podem ser
denominados “terras tradicionalmente ocupadas”. Tal processo expressa a
existência de uma diversidade que se baseia suas relações com recursos
naturais. Estas relações sociais diversificadas encontram respaldo na
Constituição Federal vigente e na legislação infraconstitucional, as quais
incorporam a expressão “populações tradicionais”, o que demonstra uma
preocupação com o reconhecimento de minorias étnicas.
Apesar disso, ainda há embaraço na aplicação dos dispositivos legais
pela falta de reconhecimento jurídico-formal, ”sobretudo porque rompem com a
invisibilidade social, que historicamente caracterizou estas formas de
apropriação dos recursos baseadas principalmente no uso comum e em fatores
culturais intrínsecos, e impelem a transformações na estrutura agrária”
(ALMEIDA, 2008, p. 26).
Os movimentos sociais6 encontram-se à margem da tutela do Estado;
suas reivindicações não ganham atenção, de forma que ainda não há uma
resolução dos conflitos que envolvem as comunidades tradicionais7,

5 O art. 220 do diploma constitucional dispõe que os grupos participantes do processo civilizatório
nacional também estão tutelados pelo meio ambiente cultural. Considerando a multietnicidade
brasileira, a Constituição Federal apresenta tratamento aos índios e quilombolas – objeto de
estudo deste trabalho. Tais grupos sociais fazem parte da diversidade cultural do país, tendo em
vista suas formas de viver e seus modos de expressão. Neste sentido, índios, quilombolas e
outros povos tradicionais se traduzem em patrimônio cultural.
6 O art. 3o do Decreto 6.040/07 define povos e comunidades tradicionais como grupos
culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de
organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;
7 Ressalta-se que o art. 3 da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais – Decreto nº 6.040 de 2007 – busca a conceituação destes


movimentos social – formado por grupos familiares que compõem a unidade social – que se
utilizam de recursos naturais e da apropriação privada de bens. Além disso, a Lei nº 9.985, de
18 de julho de 2000, que e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
menciona em seu art. 17 e art. 18 as populações tradicionais. Já A Medida Provisória nº 2.052-
2 de 2000 – que regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o do art. 225 da Constituição, os artigos.
1o, 8o, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas três e quatro da Convenção sobre Diversidade
Biológica – em seu art. 7º define o conhecimento tradicional associado como informação ou
298

principalmente no que diz respeito ao conflito introduzido nas unidades de


conservação de proteção integral.
As comunidades tradicionais são grupos familiares que se utilizam de
recursos naturais, através do uso comum de florestas, recursos hídricos, campos
e pastagens e exercem atividades produtivas como extrativismo, agricultura,
pesca, caça, artesanato, etc. Almeida (2013) assevera que o significado de
“terras tradicionalmente ocupadas” tem se tornado uma expressão mais
inclusiva, tendo em vista os movimentos sociais se tornarem mais abrangentes
e complexos, podendo integrar a expressão vários sujeitos sociais como os
seringueiros, quebradeiras de coco babaçu8, quilombolas, ribeirinhos9, entre
outros. Ainda segundo o autor em comento, por conta dessa integração
conceitual, pode-se falar que ordenamento jurídico brasileiro possui um Estado
Pluriétnico, que resulta na adoção de políticas e ações governamentais que
influenciam a consciência étnica.
Entretanto há grandes dificuldades na implementação e aplicação de
disposições legais nesta ordem; isto é traduzido, por exemplo, na colisão de
direitos existente em relação às unidades de conservação e comunidades
tradicionais, na medida em que seus modos de vida são intensamente
vulneráveis aos impactos ambientais e sociais inseridos neste contexto. Esta
falta de integridade do bem–estar da população representa ameaça a
reprodução cultural devido à restrição ao acesso de recursos naturais, violência
e coerção por parte de órgãos fiscalizatórios.

4. A RESOLUÇÃO DA COLISÃO

Embora tenha amparo constitucional e em outros documentos internacionais


recepcionados pelo ordenamento pátrio, Antunes (2010) explana que a proteção
do conhecimento tradicional não encontra tanto respaldo na legislação ordinária,
sendo grande a dificuldade do Poder Legislativo em estabelecer meios e modos
que garantam proteção coletiva, em contraposição ao ordenamento jurídico
vigente que é fundamentalmente individual. Isto fica evidente com os exemplos
trazidos – quilombo tambor de preto e ribeirinhos que habitam a unidade de
conservação reserva de desenvolvimento sustentável do rio negro – pois mesmo
que tenha todo aparato legal na tentativa de conciliar estes interesses, os casos
concretos mostram que as proibições feitas pela instituição de unidades de
conservação afetam a integridade dos povos e comunidades tradicionais, que na
maioria das vezes são extintos devido aos fatores já mencionados.
Nestes casos, exige-se o encontro de medidas justas, que compatibilizem
os direitos que estão em conflito.
A complexidade dos casos leva em conta interesses sociais e ambientais,
ambos previstos na Constituição Federal. O direito difuso ao meio ambiente e o
direito a identidade cultural; valores que precisam ser sopesados para que haja
condições que permitam a existência e a reprodução de práticas culturais do

prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou comunidade local, com valor real ou
potencial, associada ao patrimônio genético.
8 A Constituição Estadual do Maranhão assegura, em seu art. 198 a exploração dos babaçuais
em regime de economia familiar e comunitária.
9 A Constituição Estadual do Amazonas, em seus arts. 250 e 251 contemplam os direitos dos

núcleos familiares que ocupam áreas das barreiras de terras firme e as terras de várzeas e
garante os meios de sobrevivência da população ribeirinha e do povo da floresta.
299

grupo tradicional, além da proteção dada à natureza. Os exemplos mostram que


a incidência de unidades de conservação em terras ocupadas por comunidades
tradicionais podem causar a extinção destas, visto que sua continuidade como
povo depende da plenitude de suas relações sociais e relações com a natureza
- o que constitui critério fundamental de dignidade e bem-estar. Vale ressaltar
que em alguns pontos até mesmo a legislação entra em conflito10 e se mostra
insegura no que diz respeito aos direitos culturais. Como se vê são variadas
as formas de expulsão das comunidades tradicionais de seus territórios –
amparadas na legislação – que vão desde problemas com orgãos fiscalizatórios;
obrigações de não fazer que limitem a plenitude da sobrevivência no local;
tomadas de decisões que não levam em conta a participação destas
comunidades etc.11. Antunes (2010) salienta que o elemento mais importante na
proteção das comunidades tradicionais e povos indígenas é o que assegure a
sustentabilidade social e ambiental, principalmente a primeira, pois é a que
fortalece os laços sociais e culturais de uma comunidade, que desenvolve sua
plenitude e sua auto-estima – em respeito ao princípio da dignidade da pessoa
humana. É neste rumo que o intérprete deve tomar. O processo interpretativo do
Direito é crucial para que se ofereça uma resposta justa e legítima, que assegure
a melhor solução a cada caso concreto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A diversidade do meio ambiente brasileiro se manifesta não somente na


forma da fauna e da flora, mas também através de modos de vidas, sociedades,
e manifestações culturais. Necessário é a interconexão destes aspectos
ambientais como forma de resguardar os mandamentos constitucionais. A
dimensão da natureza e a dimensão cultural possuem igual prestígio, porém
entram em colisão em alguns pontos. É o caso das comunidades tradicionais em
unidades de conservação. Constata-se assim, que é necessário conciliar os
interesses, compatibilizar direitos através da interpretação da norma. A
legislação, embora procure dar um tratamento digno, padece no que diz respeito
aos direitos culturais das comunidades tradicionais. É necessário afirmar a
presença das populações tradicionais em UC como agentes aliados na
consecução da preservação e conservação do meio ambiente natural.
Percebe-se que há uma relação de dependência destas comunidades
com o meio, o que mostra a necessidade de manter a equivalência de ambos os
interesses. A criação das unidades de conservação deve obedecer ao princípio

10 Por exemplo, o artigo 42 da Lei nº 9.985/2000 prevê, em qualquer caso, a realocação das
populações tradicionais residentes em UC “nas quais sua permanência não seja permitida”. Tal
artigo foge da proporcionalidade, pois realocar comunidades tradicionais, que se baseiam da
idéia de territorialidade, é ato discordante da preservação cultural e atinge direitos sociais. O
artigo em comento afronta a Convenção nº 169 da OIT, pois a presença de povos e comunidades
tradicionais deve levar em conta as particularidades relativas à territorialidade étnica e cultural.
Em tal caso, a convenção relativiza a presunção de que os povos e comunidades tradicionais
devam ser prioritariamente reassentados ou trasladados, uma vez que seu artigo 16 apenas
excepcionalmente permite a remoção das terras que ocupam, garantindo o direito de retorno
assim que o motivo cesse (norma de status supra legal que prevaleceria sobre a lei ordinária do
SNUC).
11 Ao menos, o legislador determinou através da Medida Provisória nº 2.052-2, em seu §3º do

art. 8º, que a interpretação dada aos preceitos legais sobre a biodiversidade seja feita de modo
que não impeça a preservação, utilização e o desenvolvimento do conhecimento tradicional
associado
300

do interesse público, este deve ter como norte a proteção de minorias


qualitativas, com vistas a garantir direitos étnicos fundamentais. A diversidade
biológica é necessária para a manutenção e evolução da biosfera, assim como
a preservação de populações tradicionais. O homem urbano cria mecanismos
que visam a proteção e conservação ambiental, mas que são inócuos quando
postos no concreto, pois é esquecido outros conceitos, outras dinâmicas que se
relacionam com a idéia de proteção.
Assim quando o legislador cria as unidades de conservação, este concebe
o meio ambiente de forma unitária, leva-se em conta fauna e flora – meio físico.
Mas esquece de estudos sociais, culturais, da relação do homem com seu meio.
Todas estas legislações nacionais e internacionais mostram a tentativa de
melhorar a idéia de preservação, incluindo aspectos antropológicos, culturais e
materiais. Entretanto, a melhor forma de solucionar os casos concretos
envolvendo estes dois institutos é a utilização da interpretação, Por fim, ressalta-
se que tais populações não são as reais ameaças à integridade dos territórios
especialmente protegidos. Estas já ocupavam o espaço antes mesmo da lei,
antes mesmo da Constituição.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de Quilombos, Terras Indígenas,


“Babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: Terras
tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA-UFAM. 2006.

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do. Brasília, DF, Senado, 1998.

___________________. Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003.


Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.

___________________. Decreto nº 4.339, de 22 de agosto de 2002. Institui


princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional da
Biodiversidade

___________________. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a


Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos
Indígenas e Tribais. Brasília: Diário Oficial da República Federativa do Brasil.

___________________. Decreto nº 5.758, de 13 de abril de 2006. Institui o Plano


Estratégico Nacional de Áreas Protegidas - PNAP, seus princípios, diretrizes,
objetivos e estratégias, e dá outras providências.

___________________. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a


Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais. Brasília: Diário Oficial da República Federativa do Brasil.
301

___________________. Decreto Legislativo nº 2, de 1994. de Convenção da


Diversidade Biológica. Aprova o texto da Convenção sobre Diversidade
Biológica, assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, realizada na Cidade do Rio de Janeiro, no período
de 5 a 14 de junho de 1992.

___________________. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a


Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e
aplicação, e dá outras providências.

___________________. Lei nº 9.985, de 18 de Julho de 2000. Regulamenta o


art. 225, §1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Brasília: Diário Oficial da
República Federativa do Brasil.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro – 14ª


ed. rev., atual. e ampl. e atual. Em face da Rio + 20 e do novo “Código” Florestal
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MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 17. ed. São Paulo:
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controle da gestão ambiental e territorial – Niterói: 209 f.; il. Tese (Doutorado –
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Territoriais das Comunidades Negras Rurais. São Paulo: Instituto
Socioambiental, 1999.
302

O STF E A TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL


THE STF AND THEORY OF UNCONSTITUTIONAL THINGS

Lidiana Costa de Sousa Trovao


João Vitor Martin Corrêa Siqueira
Orientador(a): Rogerio Mollica

Resumo: A pesquisa desenvolveu-se em torno das definições acerca do Estado


de Coisas Inconstitucional, teoria de origem colombiana que foi aplicada pela
Corte Constitucional Colombiana com o intuito de sanar problemas de grave
violação de direitos fundamentais. No ensejo, o Supremo Tribunal Federal
imiscuiu-se do tema relativo à superlotação dos presídios brasileiros. A decisão
proferida em 2015, que aplicou referido instituto teve irradiação em todo o
ordenamento jurídico brasileiro, principalmente em áreas sensíveis e que
enfrentam os maiores problemas de cumprimento dos ditames constitucionais,
assentadas no tripé saúde, educação e segurança pública. Utilizou-se o método
dedutivo, uso de pesquisa bibliográfica, artigos científicos nacionais, como forma
de embasar a pesquisa e expor os diversos questionamentos acerca do assunto.
Pretende-se demonstrar o posicionamento do STF quanto à aplicação da teoria
do ECI e a viabilidade de estendê-la para outras searas constitucionais relativas
à violação massiva de direitos fundamentais.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Estado de Coisas Inconstitucional. STF.

Abstract: The research was developed around the definitions of the


unconstitutional State of Things, theory of Colombian origin that was applied by
the Colombian Constitutional Court in order to solve problems of serious violation
of fundamental rights. Thus, the Federal Supreme Court has dealt with the issue
of overcrowding in Brazilian prisons. The decision issued in 2015, which applied
that institute, was irradiated throughout the Brazilian legal system, especially in
sensitive areas and facing the greatest problems of compliance with
constitutional dictates, based on the tripod health, education and public safety.
The deductive method, the use of bibliographic research, and national scientific
articles were used as a basis for the research and to expose the various
questions about the subject. The aim is to demonstrate the position of the
Supreme Court regarding the application of the ECI theory and the feasibility of
extending it to other constitutional fields related to the massive violation of
fundamental rights.
Keywords: Fundamental rights. Unconstitutional State of Things. STF.

INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, diversas violações massivas de direitos fundamentais


foram constatadas no Brasil, e também foram sentidas em outros países latino
americanos, como é o caso da Colômbia. O estudo realizado mostra que foi
nesse país que surgiu em vanguarda a expressão “Estado de Coisas
Inconstitucional”, cuja nomenclatura procurou abranger a situação de massiva e
perene violação de direitos fundamentais, consequência de anos de inércia do
poder público colombiano.
Levada ao conhecimento da Corte Constitucional Colombiana, a
manifestação judicial foi no sentido de reconhecê-las como sendo transgressões
303

sistêmicas dos ditames constitucionais, no que se referem aos direitos


fundamentais reconhecidos naquele país. Por serem realidades muito próximas,
o Brasil importou referida teoria ao reconhecê-la por meio do Supremo Tribunal
Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347, proposta
pelo Partido Socialismo e Liberdade - PSOL.
Diante de cenários similares, O Supremo Tribunal Federal, aplicou a
teoria do ECI, a fim de que providências fossem tomadas pelas autoridades
responsáveis pelos demais poderes, especialmente em relação ao caos na
segurança pública nacional em relação a superlotação dos presídios brasileiros.
No decorrer desta pesquisa se verá que a aplicação da teoria como exercício do
ativismo judicial dialógico não é tão simples, pois enfrenta franca resistência dos
demais poderes republicanos, principalmente por se sentirem invadidos nas
suas esferas de atuação.

O STF E A TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Tratando-se da manifestação do Estado de Coisas Inconstitucional no


Brasil, não há como dissocia-lo do que foi intensamente discutido no STF no
julgamento de liminar em ADPF 347, quando por meio da avaliação dos ministros
foi possível reconhecer que naquele momento se estava diante do ECI. A
importação da teoria em caso bastante semelhante ao que foi vivenciado na
Colômbia fez com que surgissem diversos questionamentos acerca da
legitimidade de sua adoção, principalmente em face de sua abrangência e que
pode provocar instabilidade na relação com os demais poderes constituídos.
Por esses meios, de acordo com Armas (2010, p. 132):

Precisamente por todo esto, se entiende que el procedimiento consista


en declarar el ECI y, simultáneamente, dictar uno o varios mandatos
dirigidos a los organismos y/o autoridades llamadas a resolver el
problema estructural identificado, a fin de que actúen dentro de un
marco de colaboración interinstitucional.

Essas premissas são objeto de discussão e de diversos questionamentos


até os dias atuais, não obstante tenha sido julgada em 2015. De lá para cá, viu-
se de tudo: ânimos acirrados em manifestações contra e a favor do
reconhecimento. Em verdade, é natural que haja debate, o que vem a ser, de
certo modo, construtivo, pois instiga ao pensamento mais amplo e a discussão
de efeitos futuros, além de observar, no tempo, quais foram os benefícios
trazidos pela declaração do ECI na Colômbia, genuinamente. Aguarda-se o
deslinde da questão, com posicionamento definitivo acerca do tema, já que o
processo ainda não obteve julgamento do mérito, o que, pelo quadro que se
observa, não ocorrerá tão cedo. Entretanto, consoante assevera Dantas (2019,
p. 56)

Uma das razões para que esse tema não tenha entrado na pauta do
dia decorre da utilização de ações individuais e das normas do
processo civil individual para o ajuizamento de demandas que buscam
suprir falhas estruturais e sistêmicas das políticas públicas estatais, tal
como ocorre com as demandas de saúde.

Conhecidos por todos, os problemas no Sistema Único de Saúde revela


a face escura no âmbito das políticas públicas, uma vez que a desestruturação
304

que vem se agravando ano após ano faz com que as demandas judiciais se
avolumem e causem desconforto no Judiciário, ante a necessidade de solucionar
os casos e a limitação encontrada para julgar o feito. No entanto, é salutar
entender que de acordo com Dantas (2019, p. 58) “[...] essas espécies de ações
escondem o verdadeiro conflito existente: as falhas estruturais sistêmicas nas
políticas públicas de saúde, em todos os níveis (municipal, estadual, federal e
nacional.).”. Por meio do entendimento de Armas (2010, p. 132):

[...] si la finalidad de la declaratoria del ECI es erradicar la causa de la


afectación masiva de derechos fundamentales, erradicada ésta, el ECI
desaparece; ergo, los mandatos deben constituir en realidad “cauces
idóneos y adecuados” para lograr la colaboración interinstitucional
entre los diversos poderes y autoridades con miras a levantar el ECI
en un plazo razonable.

O deferimento dos pedidos em ações de saúde esconde um panorama


verificado através de pesquisas na área, que apontam que os gastos com saúde
na aquisição de medicamentos e procedimentos médicos em detrimento de
outras prioridades cresceu bastante. De acordo com informações colhidas no
site do Tribunal de Contas da União - TCU (BRASIL, 2017) “na União, de 2008 a
2015, os gastos com o cumprimento de decisões judiciais para a aquisição de
medicamentos e insumos saltaram de R$ 70 milhões para R$ 1 bilhão, um
aumento de mais de 1.300%.”. Esse percentual é visto com bastante
preocupação, pois “No período de 2010 a 2015, mais de 53% desses gastos se
concentraram em três medicamentos que não fazem parte da Relação Nacional
de Medicamentos Essenciais (Rename), [...]”, e o que se considera mais grave
é que “[...] um deles não possui registro na Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa).” (BRASIL, 2017).
O próprio TCU reconhece que essas ações são curativas, e não
preventivas, como deveriam ser, o que aponta que “as disputas judiciais são
predominantemente individuais e a taxa de sucesso é alta, pois algumas se
referem a itens que deveriam ser fornecidos regularmente pelo SUS.” (BRASIL,
2017). A preocupação, em verdade, é que essas ações possuem efeitos
sistêmicos indesejados, “sobre desenho e a eficiência da política pública em
termos gerais, que passa a ser ainda mais injusta, confusa e deficiente.”
(DANTAS, 2019, p. 59).
Mesmo com toda essa dita preocupação na redução dos custos e
impactos da judicialização das questões na área da saúde, não se tem verificado
medidas efetivas para que essas demandas diminuam e com elas também seus
efeitos deletérios. Desse modo, a auditoria realizada pelo TCU em 2017 “[...]
também avaliou as ações tomadas pelos entes públicos para reduzir o impacto
da judicialização em seus orçamentos e constatou que elas são insuficientes,
tanto no Ministério da Saúde quanto na maioria das secretarias de saúde
analisadas.” (BRASIL, 2017). Portanto, não existe a real preocupação em tornar
efetivas as políticas públicas nem tampouco coibir práticas ilegais muito comuns
na judicialização da saúde, que é o engodo em relação aos destinatários de
medicamentos de alto custo e a real necessidade de tratamento com essas
drogas. Pontualmente, as informações indicam que:

Não há, por exemplo, rotinas de coleta, processamento e análise de


dados que permitam o dimensionamento da judicialização da saúde
para subsidiar a tomada de decisão. Inexistem, ainda, mecanismos de
305

detecção de fraudes por cruzamento de dados para identificação de


padrões e inconsistências. A falta desses mecanismos é
particularmente importante, visto que há indícios de fraudes no âmbito
da judicialização da saúde. Estudos apontam haver uma rede entre
pacientes, associações, médicos e advogados, com ações articuladas
para obtenção de benefícios indevidos, a exemplo da repetição
sistemática de prescrições pelos mesmos profissionais de saúde.
(BRASIL, 2017).

Apesar das demandas judiciais terem concentração no setor da saúde, o


apelo social judicializado não se restringe a essa área, e essa é uma das razões
pelas quais se sustenta que a aplicação do ECI não pode ser feita de forma
indiscriminada e para todas as situações, sob o risco tanto da banalização do
instituto quanto da má utilização dele. Lembrando também que não se pode
considerar que qualquer situação de inércia ou de inefetividade por parte do
poder público deva ser reconhecida como ECI, dada a excepcionalidade da
medida, ainda que as violações não sejam. Diga-se, inclusive, que as demandas
judiciais não são totalmente rechaçadas, uma vez que decorrem do princípio do
acesso ao judiciário, dentre outros; nem tampouco são incentivadas, por
mascararem efeitos deletérios em alguns aspectos.
Além do direcionamento de recursos em detrimento de outras áreas, o
que não faz com que o direito buscado nas demandas seja menos importante,
faz com que o coletivo seja indefinidamente individualizado. É bem verdade que
em face de casos individuais concretos, o STF também precisa se posicionar,
pois demandas individuais e coletivas não possuem hierarquia. Entretanto, no
âmbito dos princípios da administração pública, é natural que se lancem olhares
para que o coletivo se sobreponha ao particular (ou individual) em termos
processuais, pois parte-se da premissa de que a cobertura de saúde é coletiva
e não individual.

CONCLUSÃO

No decorrer da pesquisa, foi possível compreender porque Brasil e


Colômbia se sentem tão suscetíveis às decisões na ordem do ativismo judicial.
As condições de vida da população, cuja herança histórica lhes faz semelhantes,
também traz no testamento problemas graves, perenes e de difícil
solucionamento.
A aplicação da teoria do ECI em ações cujos problemas estejam eivados
de violações massivas não se mostrou impossível, como também não se
mostrou de tal modo abrangente. É preciso que seja fortalecido o pacto
federativo, a fim de que a solidariedade entre os entes não seja afastada.
Nessa esteira, também não é a intenção do Judiciário, como não foi do
STF, desequilibrar a separação dos poderes, cujo princípio constitucional
permeia os fundamentos da República. Assim, foi possível compreender que
deve haver constante diálogo entre os entes, assim como a aplicação de políticas
públicas mais efetivas e mais abrangentes.

REFERÊNCIAS

ARMAS, Renato Vásquez. La técnica de declaración del “Estado de cosas


Inconstitucional” Fundamentos y análisis de su aplicación por el Tribunal
306

Constitucional Peruano. IUS ET VERITAS: Revista de la Asociación, Lima, n.


41, p. 128-147, jul./dez. 2010.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Aumentam os gastos públicos com


judicialização da saúde. Secretaria de Comunicação do TCU – SECOM.
Brasília, 23 ago. 2017. Disponível em:
<https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/aumentam-os-gastos-publicos-com-
judicializacao-da-saude.htm>. Acesso em: 19 maio 2019.

DANTAS, Eduardo Sousa. Ações Estruturais e o Estado de Coisas


Inconstitucional. Curitiba: Juruá, 2019. p. 25-30; 33-67; 179-221.
307

O TRABALHO DO CONDENADO PRESO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO


BRASILEIRO: CRÍTICA AO DIREITO DE (NÃO) TER DIREITOS
TRABALHISTAS
THE WORK OF THE SENTENCED IN BRAZIL'S PENITENTIARY SYSTEM:
CRITICISM OF (NOT) HAVING LABOR RIGHTS

Aline Albieri Francisco

Resumo: O presente resumo expandido tem por objetivo fazer uma análise
crítica sobre o uso da mão de obra daqueles que se encontram dentro do sistema
penitenciário com a liberdade momentaneamente restringida, a fim de apontar a
necessidade do respeito à cidadania e o reconhecimento dos direitos do
apenado. Para tanto, será destacada algumas disposições da Lei de Execução
Penal no que se refere ao trabalho do condenado, analisadas em paralelo com
a Consolidação das Leis Trabalhistas e a Constituição Federal de 1988,
apontando suas diferenças, principalmente o que se refere à remuneração e a
jornada de trabalho. Por fim serão realizadas algumas críticas, a partir de ideias
de Hannah Arendt e Celso Lafer.
Palavras-chave: Trabalho do apenado. Lei Execução Penal. Constituição
Federal de 1988.

Abstract: This expanded abstract aims to make a critical analysis of the use of
labor of those who are within the prison system with their freedom momentarily
restricted, in order to highlight the need of respect for citizenship and recognition
of the rights of the inmate. To this end, some provisions of the Law of Criminal
Execution will be highlighted regarding the work of the condemned, analyzed in
parallel with the Consolidation of Labor Laws and the Federal Constitution of
1988, pointing out their differences, especially with regard to remuneration and
workload. Finally, some comments will be made, based on ideas of Hannah
Arendt and Celso Lafer.
Key-words: Inmate work. Law of Criminal Execution. Federal Constitution of
1988.

INTRODUÇÃO

O trabalho tem por objetivo analisará criticamente as normas aplicadas ao


trabalho daquele que se encontra recluso no sistema penitenciário brasileiro, em
paralelo com a CLT e com a Constituição Federal de 1988.
Para tanto, será estudada a Lei de Execuções Penais (LEP), suas
disposições sobre o trabalho do condenado, especialmente sobre a
remuneração, a jornada de trabalho, destacando algumas diferenças da
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e normas constitucionais. O trabalho
utilizar-se-á da revisão bibliográfica e análise dos textos legais.
A pesquisa a ser desenvolvida apresenta no primeiro momento
considerações sobre direitos e deveres relacionados ao trabalho exercido pela
pessoa em cumprimento da pena. Posteriormente, serão apontadas algumas
críticas, resgatando princípios e valores constitucionais e ideias de Hannah
Arendt e Celso Lafer.
O trabalho visa, por fim, resgatar a ideia de Hannah Arendt que concluiu
que cidadania é o direito a ter direitos (LAFER, 1997) e a partir disso questionar
308

se é respeitada a cidadania do preso. Em outras palavras, se o preso está sendo


reconhecido como sujeito de direito, como cidadão no âmbito da execução penal,
principalmente no exercício de atividades laborais, no direito a ter direitos
trabalhistas.
A relevância da pesquisa se verifica no fato de dar visibilidade a
problemas vivenciados pela população carcerária, pois o indivíduo que se
encontra com a liberdade momentaneamente restrita não perdeu a qualidade de
ser humano, de sujeito de direito, mantendo todos os direitos que não foram
atingidos pela sentença condenatória ou efeitos previstos em lei, devendo ser
observados a partir da interpretação constitucional.
A atualidade do tema se verifica no fato do Brasil apresentar-se com
elevado número da população carcerária, portanto, a pesquisa tem grande
reflexo social. E diante do contexto de Estado Democrático de Direito brasileiro,
é importante considerar os reclusos incluídos neste. Não obstante, a relevância
da pesquisa também se verifica no fato de empresas privadas estão interessadas
na mão de obra dos reclusos, verificando impacto econômico do trabalho
realizado pelos presos.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO DO CONDENADO RECLUSO

A análise sobre o trabalho será feita a partir da Lei 7.210, de 11/07/1984.


Nela é que, pela primeira vez, o Brasil instituiu um diploma específico e
abrangente para regular os problemas da execução penal com a natureza e as
características de uma codificação (DOTTI, 1999).
Além da LEP também há normas constitucionais, considerando que os
princípios, direitos e garantias constitucionais devem refletir em todo o
ordenamento jurídico brasileiro, o que inclui no cumprimento de pena no cárcere.
A partir disso será desenvolvido o trabalho.
Frente a isto, passa a expor sobre o trabalho. Conforme art. 39, V e art.
41, II da Lei de Execução Penal, o trabalho interno apresenta-se como um direito
e como um dever para aquele que está em cumprimento de pena no sistema
penitenciário brasileiro.
Situação diversa para os condenados por crime político, aos presos
provisórios e aos condenados a pena de prisão simples até quinze dias,
conforme art. 200 da LEP e Art.6º, §2º do Decreto-Lei nº 3.688/41, para quem o
trabalho não é obrigatório, mas sim facultativo.
A jurisprudência entende que este dever de trabalho não é o mesmo que
pena de trabalho forçado, o qual é vedado no art. 5º, XLVIII, alínea C da CR/88.
Inclusive, há decisão do STF se manifestando no sentido de que “o Estado tem
o direito de exigir que o condenado trabalhe, enquanto cumpre a sanção privativa
de liberdade”, mas não pode exigir do preso provisório, como se verifica no
julgamento da Reclamação 9293, em fevereiro de 2010.
A atividade laboral a ser desenvolvida deve observar as aptidões e
capacidades. Isso significa dizer que os maiores de 60 anos e os deficientes
físicos ou doentes devem exercer atividades apropriadas ao seu estado.
Ocorre que o direito ao trabalho não é oferecido a todos, por inúmeras
razões, como a superlotação, falta de condições financeiras. Há dados de que o
trabalho prisional é facultado somente a 30% dos presos (ZACKSESKI, 1991.
p.34). E nos anos de 1985, “cerca de 10% apenas dos presos conseguem
309

trabalhar dentro dos presídios, porque não há trabalho para todos, nem
condições de segurança para oferecer trabalho a todos” (GOMES, 2012, p.4).
Assim, apesar de trabalhar ser um direito de todos em plano teórico, na
prática somente alguns conseguem exercê-lo e esse é um problema que se
arrasta por anos no contexto carcerário brasileiro.
No tocante à remuneração pelo trabalho, ela é direito previsto no art. 29,
LEP. Segundo o qual, não pode ser inferior a ¾ (três quartos) do salário mínimo.
Aqui se destaca uma diferença, visto que não se respeita o parâmetro do art. 7º,
incisos IV e VII, CR/88 e do art. 76, CLT, de um salário mínimo.
Além disso, a LEP é expressa: “O trabalho do preso não está sujeito ao
regime da Consolidação das Leis do Trabalho”, no art. 28, §2º. Isso significa dizer
que o preso não faz jus ao 13º salário, a férias, adicional de férias e tampouco
horas extraordinárias, ao menos em primeiro plano.
A LEP não confere ao trabalhador a incidência das normas celetistas,
afirmando que não seria uma relação de emprego entre trabalhador preso e seu
empregado, não gerando efeitos da relação de emprego (GOMES, SANTOS,
2011).
No tocante a jornada de trabalho, o trabalhador preso tem jornada de 6 a
8 horas por dia, com direito a descansos aos domingos e feriados, conforme art.
33, LEP. Já na CLT há diversas jornadas de trabalho, assegurado o período de
descanso, durante a jornada de trabalho e intrajornadas.
Sobre o descanso interjornadas e intrajornadas, a LEP não é expressa
sobre a quantidade de horas, mas tão somente que deve ter distribuição
proporcional do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação, conforme art.
40, V, LEP.
Há ressalvas para os presos que trabalham na conservação e
manutenção do estabelecimento penal, por exemplo, na faxina e na cozinha.
Eles podem ter horários especiais de trabalho, segundo previsão do art. 33,
parágrafo único, LEP. Não há outros indicadores, parâmetros objetivos na lei, de
modo que o preso está sujeito a uma carga horária reduzida ou majorada.
Pode-se ainda questionar o local de refeição daqueles que trabalham.
Conforme a NR 24 do Ministério do Trabalho1, é direito do trabalhador um local
apropriado, com condições suficientes de conforto e sanitárias para ocasião das
refeições. Já para os trabalhadores presos não há previsão tão específica na
LEP.
Inclusive, muitas unidades penitenciárias não disponibilizam refeitórios ou
local com condições suficientes de conforto e sanitárias para ocasião das
refeições para aqueles operários em cumprimento de pena, se tomar como
parâmetro a NR 24.
A LEP tão somente prevê que se aplicam as precauções relativas à
segurança e à higiene. A LEP não se preocupa em dizer o que seria um mínimo
de segurança e higiene, mas deveria ser observado.
Na realidade, os presos acabam, por vezes, realizando as refeições no
mesmo local em que trabalham, sem aquelas condições mínimas de conforto

1 A NR 24 traz condições sanitárias e de conforto nos Locais de Trabalho, o que inclui os


refeitórios. Essa NR não exige refeitórios, mas estabelece condições suficientes de conforto e
sanitárias para ocasião das refeitos. Inclusive, prevê os requisitos mínimos para essas
condições, dentre os quais são: local adequado, fora da área de trabalho; piso lavável; limpeza,
boa iluminação; mesas e assentos em número correspondente ao de usuários; lavatórios e pias;
fornecimento de água potável, entre outras.
310

conforme parâmetros da NR 24. Novamente, mais um tratamento desigual para


os trabalhadores condenados, não reconhecendo ao preso o direito de ter uma
refeição em ambiente adequado.
Essa ausência ou precariedade das estruturas para o local de trabalho e
o local das refeições para os reclusos podem ser agravadas pela superlotação,
recursos escassos, falta de preparação arquitetônica do prédio, entre inúmeras
outras razões.
No tocante a faltar ao trabalho, a LEP classifica como falta grave a recusa
injustificada ao trabalho, o que poderá implicar na perda de até 1/3 dos dias
remidos (art. 57, LEP) e alteração do lapso para progressão de regime, causando
prejuízos ao cumprimento de pena do sentenciado. Isso, pois o trabalho é um
dever para o preso definitivo.
No âmbito da CLT também há consequências da falta injustificada ao
trabalho, entretanto não interfere na liberdade de locomoção como reflete na vida
do apenado, isto pois o recluso é prejudicado na progressão de regime e nos
dias remidos.
Apesar de o preso ter tratamento diferenciado, sendo excluído os direitos
trabalhistas, a LEP coloca a salvo o direito a benefícios da Previdência Social
(art. 41, III, LEP).
Por essas razões, a mão de obra dos reclusos desperta interesses de
algumas empresas privadas, que visam reduzir seus custos e aumentar seus
lucros, com mão de obra mais barata, com menos encargos trabalhistas.

ANÁLISE CRÍTICA

Diante do exposto, verifica-se que há uma exclusão do trabalhador preso


da proteção das Leis trabalhistas, colocando-o em situações discriminatórias,
desvalorizando sua mão de obra.
A LEP criou uma classe social que não tem direito a ter direitos
trabalhistas, de modo que o Estado não garante uma renda nominal mínima igual
a outros trabalhadores e criou um sistema com novos padrões, em uma estrutura
de desigualdades e em desacordo com padrões mínimos de vida e de trabalho
extramuros.
Os trabalhadores com a característica de preso detém outro status, com
restrições aos direitos da cidadania sobre uma estrutura de desigualdade,
incompatível com o Estado democrático de Direito e pós Constituição Federal de
1988.
Sobre Estado democrático de direito, destaca-se: “Para que surja o
verdadeiro Estado democrático de direito, não é suficiente a mera proclamação
solene dos direitos humanos, necessitando estes serem tutelados, sob pena de
se transformarem numa falácia” (FLENIK, KOZICKI, 2008, p.791). A partir disso
questiona-se: os valores constitucionais tornaram-se uma falácia ou o preso está
excluído da proteção constitucional, vivendo em um Estado de exceção?
A crítica está se a Lei de Execução Penal de 1984 fere a condição de
sujeito de direitos, constrangendo o preso a desigualdade, a discriminação,
colocando-o em uma condição excludente da cidadania, tolhendo seus direitos
trabalhistas e, portanto, ferindo a lógica de proteção constitucional dos direitos
fundamentais.
A partir do exposto, o desiquilíbrio da relação que envolve o recluso
começa no valor da sua remuneração pelo trabalho. O recluso pode
311

desempenhar as mesmas funções que outro trabalhador, mas sua mão de obra
pode ter valor nominal inferior, reduzida a ¾ do salário mínimo, sem horas extras,
sem férias remuneradas.
Ora, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são de
reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III, CR/88), há o direito fundamental de
todos serem iguais perante a lei (art. 5º, CF/88), além dos princípios gerais da
ordem econômica (art. 170, CF/88), que tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme ditames da justiça social e observar o princípio da redução das
desigualdades sociais, como são justificadas as desigualdades salariais para
aquele que encontra-se com sua liberdade de locomoção momentaneamente
restringida?
De certa forma, a LEP exclui o acesso pleno à ordem jurídica justa em
relação ao direito do trabalhador, deixando de amparar e proteger o indivíduo
que exerce atividade laboral dentro do sistema penitenciário como deveria ser
qualquer outro trabalhador, em razão da sua condição de apenado.
Por isso, importante resgatar algumas ideias de Hannah Arendt e Celso
Lafer sobre humanidade, a pluralidade humana e o “direito a ter direitos”, a fim
de compreender que o preso também é sujeito de direito, e deve ter pleno acesso
à ordem jurídica, dentro da envergadura constitucional de direitos.
Nesse sentido, é necessária uma “comunidade global capaz de amparar
e proteger os indivíduos resguardando-os enquanto sujeitos de direito e deveres,
isto é, dentro de uma ordem jurídica que lhe permita viver em segurança e
compartilhar o mundo” (PEIXOTO; LOBATO, 2013, p.52).
O sistema normativo da LEP não permite que o preso seja incluído em
direitos atualmente previstos no texto constitucional, entretanto, considerando a
supremacia da CF/88, a LEP deveria ser interpretada em conformidade com
princípios e normas fundamentais estabelecidas na CF/88. Isso significa dizer
aplicar a LEP à luz da igualdade, da promoção da justiça social, do respeito a
direitos fundamentais, inclusive no âmbito trabalhista. Isso, entretanto, ainda não
ocorre em plenitude.
No tocante aos reflexos da recusa injustificada ao trabalho mais uma
desigualdade. Para o recluso, as consequências vão além de questões
financeiras ou relacionadas diretamente ao exercício das funções
desempenhadas no trabalho, pois atingem a esfera da liberdade, do
cumprimento da pena, do lapso para progressão de regime do sentenciado e dos
dias remidos. Assim, os impactos são muito mais nefastos para o trabalhador
preso do que um trabalhador regido pela CLT.
Nas relações empregatícias é reconhecida a natural desigualdade, na
qual o trabalhador é parte mais vulnerável, hipossuficiente. No sistema
penitenciário a vulnerabilidade fica ainda mais evidenciada. O trabalhador
recluso está em nítida desvantagem, de modo que fere as diretrizes humanitárias
que objetivam a ressocialização do apenado.
É difícil pensar em promover a ressocialização, através do trabalho, que
deveria ter função profissionalizante, se por vezes o trabalho se reduz a
repetição, com desigualdades de tratamento e de remuneração, ferindo a
condição da dignidade humana, direitos humanos previstos no texto
constitucional, fazendo o indivíduo perder suas qualidades e o direito de ser
tratado como um semelhante.
Nesse sentido, Celso Lafer (1988, p. 22) observa que:
312

“A reflexão arendtiana em The Origins of Totatarianism mostra a


inadequação da tradição, pois os direitos humanos pressupõem a
cidadania não apenas como um meio (o que já seria paradoxal, pois
seria o artifício contingente da cidadania a condição necessária para
assegurar um princípio universal), mas como um princípio substantivo,
vale dizer: o ser humano, privado de seu estatuto político, na medida
em que é apenas um ser humano, perde as suas qualidades
substanciais, ou seja, a possibilidade de ser tratado pelos Outros como
um semelhante, num mundo compartilhado.”

Assim, colocar o trabalhador recluso à margem da proteção do trabalho é


negar-lhe direitos sociais constitucionalmente previstos, negando, portanto, sua
cidadania, fazendo o apenado perder suas qualidades substanciais, de modo
que desampara e abandona aqueles indivíduos. Por fim, nega qualquer efeito
ressocializador à pena de prisão e ao trabalho realizado em seu interior pelos
apenados.
Para Arendt, a perda da personalidade jurídica dos judeus durante o
regime nazista foi condição que beneficiou as violações ocorridas (PEIXOTO,
LOBATO, 2013, p. 53). Ainda, “com a cidadania retirada, os judeus e todos os
outros grupos perseguidos pelo nazismo ficavam diante de uma situação de
desproteção total” (PEREIRA, 2015, p. 14).
No mesmo sentido, critica-se aqui a perda das condições do indivíduo
apenado de ter direitos, ficando em uma situação desprotegida imposta pela
LEP, esta como facilitadora para precariedade e abandono dos direitos
trabalhistas aos apenados, justificando inúmeras violações da população
carcerária minoritária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Face ao exposto, verificam-se normas específicas que regulamentam o


trabalho do reeducando, de modo que no art. 28, §2º, LEP fica expresso que o
trabalho do preso não está sujeito ao regime da CLT, criando, deste modo, uma
exclusão da maior proteção ao trabalhador recluso, com claras desigualdades.
É possível concluir que há diferenças no tocante à remuneração mínima,
inferior a um salário mínimo, de modo que há vantagens econômicas àquele que
se utiliza dessa mão de obra legalmente barata dos presos, aumentando as
margens de lucro, e por outro lado, há desvalorização da mão de obra dos
reclusos, ao seu direito a um salário mínimo.
A Lei de Execução Penal coloca o preso à margem do sistema de
proteção do trabalhador, da CLT, de forma que o recluso não tem direito a ter
direitos trabalhistas, criando abismos entre a LEP e a CLT, entre o trabalhador
preso e outros trabalhadores. A LEP restringe e exclui a aplicação de vários
direitos trabalhistas ao condenado.
Tratar sobre o trabalho no sistema penitenciário ainda é um desafio, mas
propõe-se que o trabalho exercido pelos reclusos devem observar os princípios
garantidos na Constituição Federal de 1988, de modo a ser ético, a reduzir as
desigualdades e respeitar seu valor humano, a resgatar a cidadania dos presos,
dando a todos, inclusive ao individuo que se encontra dentro do sistema
penitenciário brasileiro, o direito a ter direito, incluído no Estado democrático de
direito.
Em face disso, é preciso refletir sobre as implicações desse regime
jurídico da LEP aplicável aos presos, que fere a igualdade, a cidadania, ao
313

princípio democrático, ao passo que os isolam dos direitos humanos, sendo


necessário refutar ideias de que determinados seres humanos são supérfluos,
são inferiores ou não sujeitos de direito.
Diante do exposto, é importante para o fortalecimento da democracia, dos
direitos humanos, compreender que o preso merece tratamento digno, inclusive
no tocante ao seu trabalho, com valorização da sua mão de obra, reduzindo o
abismo entre a LEP e CLT e CF/88, promovendo a isonomia dos cidadãos,
impostos em um compromisso constitucional de transformação social e o efetivo
exercício da cidadania.
Conclui-se pela necessidade de um processo de reconhecimento do
preso como um cidadão, reafirmando a dignidade da pessoa humana,
conferindo-lhe o direito a ter direitos, inclusive trabalhista.
Por fim, propõe-se uma revisão da LEP à luz dos direitos humanos, da
dignidade humana, dos valores e princípios constitucionais, resguardando os
direitos inerentes à condição de ser humano, reconhecendo o preso como um
cidadão que tem momentaneamente sua liberdade restrita, não podendo uma
condenação criminal ou a LEP eliminar direitos trabalhistas, tolher a cidadania,
seu direito a ter direitos, fortalecendo o Estado democrático de direito brasileiro.

REFERÊNCIAS

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10 out. 2019.

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314

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Ministério Público do Trabalho/Procuradoria-Geral do Trabalho, Brasília, v.
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315

OS LIMITES DO ATIVISMO JUDICIAL NO PÓS-POSITIVISMO


THE LIMITS OF JUDICIAL ACTIVISM IN POSTPOSITIVISM

Luciana da Silva Vilela


Henrique Furtado Tavares

Resumo: O presente artigo visa, inicialmente, examinar as relações existentes


entre movimentos teóricos constitucionais (jusnaturalismo, positivismo e pós-
positivismo) e suas relações com uma problemática vivenciada na
contemporaneidade do poder judiciário: o ativismo judicial. O constitucionalismo
moderno tem servido como fundamento para o proferimento de decisões
judiciais de caráter legislativo e de opinião pessoal e política, invadindo a
separação dos poderes e desconsiderando premissas constitucionais. A partir
dessas considerações, é feito um breve histórico sobre o surgimento do ativismo,
bem como das concepções das teorias construídas ao longo dos séculos, sob o
fundamento do positivismo kelseniano e do hodierno pós-positivismo. Ao final,
são realizadas ponderações críticas acerca de um ativismo baseado num pós-
positivismo anarquizado, que deixa de observar enunciados sólidos e utiliza
como base ideologias pessoais ou políticas, descontextualizando as reais
proposições da ciência jurídica.
Palavras-chave: Ativismo judicial. Positivismo. Pós-positivismo.

Abstract: This article aims, initially, to examine the relations between


constitutional theoretical movements (jusnaturalism, positivism and post-
positivism) and their relations with a problematic experienced in the
contemporary judiciary: judicial activism. Modern constitutionalism has served as
the basis for the issuing of judicial decisions of a legislative nature and personal
and political opinion, invading the separation of powers and disregarding
constitutional premises. From these considerations, a brief history is given about
the emergence of activism, as well as the conceptions of theories built over the
centuries, based on Kelsenian positivism and post-positivism today. In the end,
critical considerations are made about an activism based on anarchized post-
positivism, which fails to observe solid statements and uses as basis personal or
political ideologies, decontextualizing the real propositions of legal science.
Keywords: Judicial activism. Positivism. Postpositivism.

INTRODUÇÃO

Uma das maiores polêmicas no âmbito do Poder Judiciário da atualidade


se refere às decisões emanadas pelos órgãos julgadores que são consideradas
ativistas. Atitudes proativas de juízes acabam por transgredir princípios
conferidos pela Constituição Federal. São julgamentos abalizados em
convicções pessoais, políticas, que ferem o Estado Democrático de Direito e a
separação dos poderes, ocasionando insegurança jurídica e a prática de
autoritarismo judicial.
O estudo do ativismo judicial no âmbito do pós-positivismo é de grande
importância, pois sugere uma reflexão quanto o pensamento dos julgadores e da
sociedade, a fim de que haja consciência acerca da margem de
discricionariedade admitida pelo sistema e do papel institucional do Poder
316

judiciário para a boa prestação das atividades jurisdicionais, evitando decisões


subjetivas, arbitrárias e ilegais.
Para se atingir o desiderato pretendido, inicialmente, é feita uma breve
análise de ponderações conceituais do ativismo judicial, e, na sequência,
explanações acerca da evolução e das teorias constitucionais do jusnaturalismo,
positivismo e pós-positivismo. Por fim, salienta a necessidade de objetivar os
limites das decisões judicias no tocante ao ativismo judicial no pós-positivismo,
a fim de que a justiça seja feita, sem que haja lesão à Constituição Federal e a
confusão entre os sistemas jurídico e político.
Ao final são feitas reflexões críticas sobre as aplicações desmedidas e
anarquizadas de um pós-positivismo ilimitado, que não encontra supedâneo nas
técnicas constitucionais de aplicação da lei.
Trata-se de pesquisa exploratória, com caráter qualitativa e ênfase em
análises bibliográficas e jurisprudenciais a fim de conceituar instituto e chegar ao
desiderato pretendido.

ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS

Entende-se por ativismo judicial as práticas jurídicas aplicadas por


magistrados, desembargadores e ministros de Tribunais, em situações onde tais
profissionais exercem uma função ativa institucional no caso jurídico em análise.
Atribui-se a denominação do tema às decisões judiciais em que a
legislação não contempla expressamente a situação em seu texto,
proporcionando uma atuação mais intensa do judiciário (além das leis),
independentemente de expressões normativas ou legislativas. É uma prática do
poder judiciário que consiste em aplicar “soluções” jurídicas para além do
judiciário, interferindo em situações onde outros poderes deveriam desempenhar
sua atividade.
Conforme atribuído pelo autor Ferreira Filho (2009, p. 16), “O ativismo se
importa necessariamente na politização da atividade jurisdicional, pode
degenerar na partidarização dessa atividade. Este ativismo – acaba-se de ver –
faculta a ideologização da justiça. (...) Assim, a passagem do plano ideológico
para o plano partidário é quase insensível”. Verifica-se, portanto, o claro intuito
de proferir decisões com base em lacunas legislativas, por premissas ideológicas
e individuais do órgão julgador.
Quanto à origem histórica do ativismo judicial, alguns afirmam que foi
iniciado na Corte Norte Americana dos Estados Unidos, ao criar o denominado
controle de constitucionalidade das leis. Em 1947, o jornalista americano Arthur
M. Schlesinger Jr., veiculou uma matéria para a revista “Fortune”, sobre perfis
dos membros da corte norte-americana, que por sua vez, passava por um
problema durante o governo de Rossevelt para aprovação de plano político e
econômico denominado new deal, cujo teor envolvia medidas marcadas por
inconstitucionalidades. 1
Em consequência do embate traçado com a Suprema Corte Norte
Americana, o presidente americano Rossevelt, enviou projeto de lei ao
Congresso, que permitia o acréscimo de um juiz adicional para cada juiz que

1 MADEIRA, Daniel Leão Hitzschky; AMORIM, Rosendo de Freitas. O ativismo judicial.


Instrumento de concretização de direitos ou ingerência no princípio da separação dos poderes?
Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=20d039f53b4a6786. Acesso em:
05/10/2019.
317

tivesse idade maior que 70 anos na Suprema Corte, possibilitando, assim, mais
adeptos aos seus ideais. Todavia, a maioria dos votos da cúpula do poder
judiciário votou contra o poder político do presidente do país, declarando
constitucionais leis de aprovação do plano econômico. Então, a notícia escrita
pelo jornalista Arthur M. Schlesinger Jr. Mencionou pela primeira vez o termo
“ativismo jurídico”, relatando as condutas de alguns juízes da Suprema Corte.2
De acordo com os sistemas common law e civil law, o ativismo judicial
passa a adquirir delineamentos distintos, pois no modelo romano-germânico, o
contorno da força atribuída aos tribunais é bem menos significativa que no
modelo anglo-saxão, levados em consideração as razões históricas de suas
instituições, já no Brasil, há uma aproximação de ambos os sistemas, o que gera
contendas sobre as decisões judiciais.3
Desta maneira, faz-se necessário tecer as regulamentações acerca das
teorias sobre as decisões jurídicas, sua força cogente e permissões, conforme
demonstram as teorias do positivismo e pós-positivismo, conforme será
abordado no tópico seguinte.

JUSNATURALISMO, POSITIVISMO E PÓS-POSITIVISMO

No âmbito jurídico, existem métodos hermenêuticos de interpretação


legislativa, para que o julgador possa aplicá-las no caso concreto, visando um
maior alcance e concretude da legislação. Para tanto, faz-se necessário
compreender os fenômenos jurídicos que deram abertura à aplicação
principiológica do direito, no simples intuito apenas de fazer justiça.
Inicialmente, deve-se levar-se em consideração a existência do
jusnaturalismo, dominante até o final do século XIX, onde suas concepções eram
difundidas com base no direito natural, onde o indivíduo torna-se o foco do
direito, coibindo os abusos praticados pelo Estado, repousando em verdades
que avaliam uma maneira de agir de modo razoável, com bom senso, equidade
e racionalidade e de maneira sensata, tendo como adeptos os filósofos Tomas
Hobbes, Jean Jaques Rousseau, dentre outros.
Sendo considerado muito abstrato e sem formato de ciência, o
jusnaturalismo deu lugar ao positivismo, que, por sua vez, é equiparado a uma
legislação, afastado do conceito anteriormente dado pela filosofia, e aplica o
cumprimento da legislação propriamente dita, em sua literalidade, sem nenhuma
análise de moral pela sociedade.
O positivismo aproxima-se mais da concepção científica do direito, pois à
época, de acordo com Barzotto (BARZOTTO, 2007, p. 14) “a lei é simplesmente
um comando do soberano [...] ela é identificada como jurídica pela sua origem,
e não pelo seu conteúdo”.
O direito então, passado a ter como a forma escrita, e não mais racional,
como antes o era com o jusnaturalismo, passou a ser codificado, dada a
valoração à normatividade escrita, conforme a legislação. Assim, de acordo com
Dias (DIAS, 2010, p. 46), “A codificação traz consigo a separação definitiva entre
direito positivo e direito natural, [...] onde o direito positivo torna-se cada vez mais
a fonte central do direito na sociedade”.

2Idem.
3 SILVA, André Garcia Xerez. Ativismo judicial, “pós-positivismo” e o controle das decisões do
Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=ce5193a069bea027. Acesso em 05/10/2019.
318

Com a codificação das leis, a intenção do legislador, neste caso, seria


apenas a de identificar o fato a ser solucionado e aplicar-se as normas a ele
inerentes, o que foi determinado pela Escola da Exegese na França, devendo
fazer uma “interpretação mecânica do código”, conforme Bobbio (BOBBIO, 1999,
p. 78).
Com a evolução do positivismo, surge a teoria positivista jurídica (ou
normativa como alguns denominam), adotada por Hans Kelsen, baseado na
teoria pura do direito, estimulando o estudo do direito por toda a Europa. A
estrutura da análise do positivismo jurídico cinge-se na ausência à limitação de
normas, mas leva à consideração de um conjunto de normas que estruturam o
ordenamento jurídico. Essa estrutura organizacional acaba por separar o direito
das demais concepções ideológicas, como a filosofia, por exemplo, na ideia de
tornar o direito uma ciência independente e autônoma (KELSEN, 1998, p.26 s).
No positivismo normativista adotado por Hans Kelsen, o problema deve
ser solucionado de acordo com os objetos que compõem o mundo jurídico, de
modo que os juízes possam adotar mais de uma maneira, mas desde que
estejam de acordo com as normas que compõem o ordenamento, sem análise
às normas externas do direito (ABBOUD et al., 2015, p. 254/255).
Malgrado, no positivismo normativo kelseniano, fica evidenciada uma
relação entre direito e poder, por prever a manutenção de uma ordem jurídica,
uma solução que se encontrava à época como uma “válvula de escape” à ciência
que apoiava o nazismo e o fascismo.4 No entanto, o positivismo de Kelsen
acabou perdendo o caráter de alternativa à ideologia nazista e fascista, sendo
acusado de apoiar as ditaturas até então existentes, por não permitirem um
questionamento de outras ideologias.
Após a segunda guerra mundial, o positivismo jurídico idealizado por Hans
Kelsen deu margem à avaliação de questões, dado ao trauma ditatorial sofrido
pelo pós-guerra, ocasionando uma mitigação do positivismo absoluto idealizado
pelo cumprimento apenas e tão somente da legislação.
A essa mitigação do positivismo tradicional, dá-se o nome de pós-
positivismo. Esse sistema contemporâneo de aplicação legislativa permite uma
interpretação axiológica e atribui à Constituição uma força cogente. Também, a
aplicação principiológica surge como conteúdo normativo, devendo ser
respeitado pelo julgador.
No pós-positivismo, é exigido do profissional que analise a situação com
base na legislação aplicável, sopesando, ainda a realidade da sociedade
existente, sem que abuse de suas opiniões intelectuais ou políticas, sob pena de
estar proferindo julgamento sem o baseamento na ciência jurídica. Verifica-se
que o juiz poderá fundamentar-se em base jurídica mais ampla que a
determinada pelo positivismo, sendo-lhe conferida certa discricionariedade.
Dessa conceituação de pós-positivismo, ou constitucionalismo moderno,
como alguns o denominam exsurge a problemática central tema do presente
artigo: o ativismo judicial. Ao utilizarem de uma discricionariedade permitida pela
nova dogmática, os magistrados acabam se desviando da dicotomia legal
reservada à ciência jurídica, e baseiam-se mais estritamente à realidade prevista
na moral (com convicções pessoais e políticas próprias) sob a justificativa de

4 Posicionamento mencionado por DAL RI, Luciane. Entre positivismo e pós-positivismo:


flexibilização de elementos nos escritos de Norberto Bobbio. Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/20030/19465. Acesso em: 06/10/2019.
319

estarem abarcados pela sistemática moderna de hermenêutica constitucional, o


que acaba desviando o verdadeiro foco da atividade judicante.

CONTROLE DAS DECISÕES DO PODER JUDICIÁRIO SOB A ÓTICA DO PÓS-


POSITIVISMO

Atualmente, no Brasil, a teoria do pós-positivismo tem sido utilizado para


justificar a conduta de julgadores do direito que, deliberadamente, na tentativa
de impor sua autoridade e convicções pessoais acerca da análise de
determinada causa posta a julgamento, afastam-se dos textos normativo
jurídicos, ou então aplicam soluções que entendem demasiadamente
adequadas, sem que tenha normativo legal específico para tanto, já que detêm
certa margem de discricionariedade para proferir o julgamento.
O descontrole da interpretação legislativa e o uso demasiado de
instrumento de discricionariedade para proferir decisões acabam gerando
práticas inconstitucionais, infringindo separação dos poderes e as máximas
interpretativas determinadas pelo pós-positivismo, julgando com base em
subjetivismos contrários ao texto constitucional, sem analisar suas
consequências para a democracia do país.
A ideia do ativismo judicial, segundo BARROSO (2008, p.6) é justamente
a interferência que o Poder Judiciário faz no âmbito dos demais poderes com o
intuito de concretizar os princípios e normas constitucionais, por meio de
interpretação da Constituição Federal ou até mesmo de controle de
constitucionalidade, e/ou ainda na determinação de condutas acerca de políticas
públicas ao Estado.
Partindo dessas premissas, pode-se considerar que o Supremo Tribunal
Federal se manifesta quando as lacunas legislativas são deficientes, analisando
a constitucionalidade de casos onde caiba a atuação do Poder Judiciário. Como
exemplo pode ser citada a Súmula vinculante nº 13 que regulamentou o
nepotismo, baseados em princípios de moralidade e impessoalidade,
considerando a conduta contrária ao artigo 37 da CF/88. Neste caso, verifica-se
a necessidade de manifestação do Poder Judiciário para análise da
constitucionalidade da questão, conduta que pode ser denominada de
judicialismo,5 posto que dentro de suas competências. No entanto, na criação de
parâmetros para cumprimento, com definição de grau de parentesco e imposição
de diretrizes e regras específicas, desempenhou função legiferante, excedendo
os poderes constitucionais que lhe foram atribuídos, considerada, portanto,
como atitude ativista.
Certamente, o tema é polêmico, mas ainda há decisões judiciais
proferidas pelo Supremo que são evidentemente desfavoráveis ao país e
contrárias à legislação nacional e internacional existente, como por exemplo, a
decisão proferida pela 1ª Turma do STF em novembro de 2016 pelo HC
124.306/RJ, onde ficou decidido que a prática de aborto até o 3º mês de
gestação não deveria ser criminalizada. Frise-se que a legislação formal não foi
modificada, mas a decisão do STF teve o claro intuito de modificar a legislação
existente, tanto é que já foi interposta ADPF nº442 a fim de combater a questão.

5Judicialização é um termo utilizado quando o Poder judiciário é provocado, proferindo decisões


com teor político, baseado em princípios e regras constitucionais, fundamentado nas
competências atribuídas pela lei. É instituto diferenciado do ativismo judicial, apesar de
semelhante.
320

Fato é que houve uma decisão contrária à própria Constituição Federal,


Convenções Internacionais e leis ordinárias em vigor, típica de um ativismo
judicial nocivo, sem fundamento teórico que possa baseá-lo.
Há ainda outro caso no âmbito do Supremo Tribunal Federal onde pode
ficar constatada a decisão com cunho eminentemente legislativo quanto ao voto
da descriminalização do consumo de drogas no RE 635.659. De acordo com o
artigo 28 da Lei 11.343/2006 são puníveis as condutas de "comprar, portar ou
transportar drogas para consumo pessoal"6, no entanto, o entendimento do
Supremo modificaria a legislação até então existente no país, em uma típica
função legislativa dentro do poder judiciário, o que não pode ser permitido.
Atualmente o processo foi incluído em pauta para julgamento do Presidente em
06/11/2019.7
Ainda, mais especificamente no âmbito do judiciário de primeiro grau,
pode-se citar uma decisão do juiz leigo que proferiu sentença homologada pelo
juiz de direito, onde o magistrado declarou a nulidade de uma multa de trânsito
por estacionamento em vaga de idosos sem que o infrator, mesmo que idoso,
tivesse a credencial para estacionar na vaga, conforme determina o artigo 181
do CTB, baseado na razoabilidade. Ora, apesar de manifestar seu
posicionamento com base na razoabilidade, é perigoso que sejam proferidas
decisões contrárias à determinação expressa da lei, sob pena de estar-se
perfazendo um juízo perfunctório com liame puramente subjetivo, em detrimento
à legalidade, o que não ser permitido, por configurar um autoritarismo jurídico.8
Aos adeptos do ativismo judicial, ainda há o argumento de que pode ser
essencial para assegurar a democracia no país. Todavia, deve-se ter cuidado,
pois, na interpretação no contexto, pode ser que não haja democracia em
determinações estabelecidas apenas e tão somente pelo Poder Judiciário, sem
passar pelo crivo de aprovação legislativa determinada pela Constituição
Federal. Pelo contrário, com a permissão deliberada, podemos estar diante de
um processo de autoritarismo, sem a participação de representantes do povo,
suprimindo, assim, a democracia.
Obviamente, pela atual situação do país, onde nada funciona de forma
correta, a sociedade busca o Poder Judiciário como forma de solução de
problemas, dada a inércia dos demais poderes estabelecidos. Evidente,
portanto, que o poder judiciário, quando provocado, deverá proferir decisões, no
entanto, sem a função legiferante, poder este que não lhe foi concedido no texto
constitucional.
Então, de acordo com o Ministro Luís Roberto Barroso (2015, p.12), que
apesar de pontuar entendimentos a favor do ativismo judicial, concorda que não
pode ser suprimido o papel do Legislativo, cabendo à lei votada e sancionada
pelo Presidente fazer as escolhas entre as alternativas da sociedade, pontuando
que juízes e tribunais não devem impor suas escolhas, preferências e vontades,9
tal como deve ocorrer no caso concreto.

6 Artigo 28 da Lei 11.343/2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-


2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 08/10/2019.
7 RE 635.659. Andamento atualizado disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4034145. Aceso em 08/10/2019.
8 Julgamento proferido nos autos nº 0003775-47.2018.8.12.0110 do Tribunal de Justiça de Mato

Grosso do Sul.
9 BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.

Disponível em:
321

Fato é que os julgadores deveriam repensar no ativismo judicial como


sendo toda e qualquer decisão judicial de caráter eminentemente pessoal, cujo
sendo de justiça do interprete da lei sacrifica a norma legal existente e a
democracia estabelecida pela Constituição, sendo conivente com autoritarismos
e inserções de lei fora dos ditames estabelecidos pela Constituição Federal.
O ativismo judicial não pode ser analisado sob a conjectura de
característica natural e inerente ao Pode Judiciário e ser utilizado com ausência
de parcimônia pelos julgadores, como recentemente vem acontecendo no Brasil.
Deve ter a cautela para que a discricionariedade conferida pelo pós-positivismo
não se transforme em arbitrariedades conduzidas pelo próprio órgão que deveria
coibi-las.

CONCLUSÃO

Com a CF/88 e sob o fundamento do pós-positivismo, os magistrados,


desembargadores e ministros do Poder judiciário passaram a obter maior
autonomia para proferirem decisões judiciais. No entanto, sendo essa autonomia
irrestrita, desmedida e lastreada em fundamentos estritamente subjetivos
desvirtuando a real intenção da norma e praticando escancaradas
inconstitucionalidades.
Certamente a sociedade precisa de soluções concretas para os casos
onde há lacuna legislativa, mas a prática no ativismo judicial arbitrário e ilegal,
baseado em opiniões pessoais, políticas e desconstitucionalizadas não é a
medida mais adequada, sob pena de colocar em risco a própria democracia do
país.
As leis devem ser observadas e respeitadas, analisadas apenas sob a
ótica da Constituição Federal, como parâmetros de dignidade e justiça social,
evitando-se, assim, uma insegurança jurídica e um autoritarismo judicial
disfarçado de democracia ou discricionariedade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 11.343/2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas


sobre Drogas – Sisnad e dá outras providências. Brasília – DF. 23/08/2006.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11343.htm.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 124306. Origem: RJ.


Relator: Min. Marco Aurélio. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4637878. Acesso em:
08/10/2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 635.659.


Origem: SP. Relator: Min. Gilmar Mendes. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4034145. Acesso em:
08/10/2019.

https://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf.
Acesso em: 10/10/2019.
322

MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça. Processo 0003775-


47.2018.8.12.0110.
https://esaj.tjms.jus.br/cpopg5/show.do?processo.codigo=320005ZLF0000&pro
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2. Acesso em: 08/10/2019.

ABBOUD, Georges e outros. Introdução à teoria e à filosofia do direito. 3. ed.


rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial:


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SILVA, André Garcia Xerez. Ativismo judicial, “pós-positivismo” e o controle das


decisões do Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
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05/10/2019.
324

PERSPECTIVAS DA DEMOCRACIA MILITANTE E A APLICAÇÃO


CONSTITUCIONAL NO BRASIL
PROSPECTS OF MILITARY DEMOCRACY AND CONSTITUTIONAL
APPLICATION IN BRAZIL

Estevão Grill Pontone


Adriano da Silva Ribeiro

Resumo: A Constituição da República de 1988 deu importância aos partidos


políticos, por participarem da formação da vontade popular, financiando aqueles
que possuem representatividade no Congresso Nacional. O pluripartidarismo no
Brasil trouxe ideologias que, por vezes, desrespeitam o estado democrático de
direito e os direitos e garantias fundamentais. Em vista disto, o Estado não pode
continuar inerte às ações e palavras que são perpetradas contra a existência
desses direitos e do estado democrático. Nesse contexto, o problema com o qual
se defronta esta pesquisa: É constitucional o banimento de partidos políticos de
possuem princípios antidemocráticos? Objetiva-se compreender o conceito de
democracia que se busca assegurar, a evolução do tratamento partidário;
estudar eventual aplicação da teoria da Democracia Militante no Brasil. Para
desenvolver o trabalho, utilizar-se-á o método de pesquisa indutivo, bem como
o método comparativo, pois por meio deste se fará a análise das semelhanças e
diferenças no tratamento político/partidário.
Palavras-chave: Pluripartidarismo no Brasil. Teoria da Democracia Militante.
Banimento partidos políticos.

Abstract: The Constitution of the Republic of 1988 gave importance to the


political parties, for participating in the formation of the popular will, financing
those who have representation in the National Congress. Pluripartisanship in
Brazil has brought ideologies that sometimes violate the democratic rule of law
and fundamental rights and guarantees. In view of this, the state cannot remain
inert to the actions and words that are perpetrated against the existence of these
rights and the democratic state. In this context, the problem that confronts this
research: Is the constitutional ban on political parties having undemocratic
principles? It aims to understand the concept of democracy that seeks to ensure
the evolution of party treatment; study possible application of the theory of Militant
Democracy in Brazil. In order to develop the work, the inductive research method
will be used, as well as the comparative method, because it will analyze the
similarities and differences in the political / party treatment.
Keywords: Pluripartisanship in Brazil. Theory of Militant Democracy. Ban
political parties.

INTRODUÇÃO

O objetivo da pesquisa é compreender o pluripartidarismo no Brasil, o


estado democrático de direito e os direitos e garantias fundamentais.
Em vista disto, o problema com o qual se defronta esta pesquisa e para o
qual pretende compreender pode ser explicitado no seguinte enunciado: É
constitucional o banimento de partidos políticos de possuem princípios
antidemocráticos?
325

Logo, para responder tal indagação será necessário identificar: o conceito


de democracia que se busca assegurar, a evolução do tratamento partidário no
Brasil, comparando-o com os demais países; estudando a eventual aplicação da
teoria da Democracia Militante no Brasil, a fim de verificar a viabilidade do
banimento constitucional de partidos políticos e/ou imposição de medidas
alternativas ao banimento. Estas análises possibilitarão inferir se é possível e
constitucional o banimento de partidos políticos, quando esgotadas todas as
medidas alternativas ao banimento.
Para desenvolver o trabalho, utilizar-se-á o método de pesquisa indutivo,
pois analisará os diversos dispositivos constitucionais que permitem a liberdade
de expressão política/partidária (premissas menores) a fim de estabelecer se é
constitucional o banimento de partidos políticos (premissa maior). Além deste
método, utilizará o método comparativo, pois por meio deste se fará a análise
das semelhanças e diferenças no tratamento político/partidário em legislações
alienígenas.

A TEORIA DA DEMOCRACIA MILITANTE

Com o fim da II Guerra Mundial (1939-1945), a República Alemã cria uma


nova constituição (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha) em
1949, com limitações materiais de reforma (art.79.3), exatamente no anseio de
evitar que regimes totalitários eclodissem e suprimissem direitos e garantias
fundamentais descritos na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha.
(MENDONÇA, 2011). Nesta enseada, o artigo 21.2 da referida constituição
inovou o sistema de proteção democrático da Alemanha, ao declarar
inconstitucionais partidos políticos, que por seus objetivos ou atitudes de seus
adeptos, buscassem suprimir ou prejudicar a ordem democrática, direitos e
garantias fundamentais ou a existência do Estado Alemão.
Buscava-se constitucionalmente, suprimir quaisquer ideologias que
utilizassem da soberania popular como forma de perseguir seus objetivos
totalitários. Logo, para o sucesso deste intento, tornou-se necessário definir o
timing do banimento. Banir um partido com alta expressão no parlamento traria
sérias dúvidas sobre a imparcialidade dos juízes e a possibilidade de ativismo
judicial. Por outro lado, usar a medida de forma corriqueira, em partidos de pouca
expressão e com a mínima possibilidade de serem eleitos democraticamente,
seria irrelevante, pois o mesmo não traria riscos para o sistema eleitoral.
A Corte Constitucional Alemã, decidiu, nos casos SRP (Sozialistische
Reichspartei – Partido Socialista do Reich) e KPD (Kommunistische Partei
Deutschlands – Partido Comunista da Alemanha) em 1952 e 1956
respectivamente, banir partidos que ameaçassem os direitos e garantias e a
democracia alemã (SCHWABE, 2005), ainda que remota a probabilidade de
sucesso de seus intentos. Os banimentos de partidos políticos na Alemanha
perduraram até 1990 (unificação da Alemanha).
A teoria original, escrita por Loewenstein, tinha o objetivo de impedir que
partidos contra o regime democrático eclodissem (LOEWENSTEIN, 1937).
Contudo o pós-guerra estabeleceu um modelo para os países ocidentais, e
consequentemente os partidos políticos, de eleições livres, democráticas, com
alternância de poder e sufrágio universal, reprimindo as velhas práticas de
subversão da ordem democrática.
326

Nesta nova perspectiva, as velhas ameaças antidemocráticas já não


existiam da mesma forma, e para outras ameaças seriam necessárias novas
teorias, surgindo então a Nova Teoria da Democracia Militante (MONTEIRO,
2015).

NOVAS PERSPECTIVAS DA TEORIA DA DEMOCRACIA MILITANTE

Para Peter Niesen, a justificativa de banimento não se dá unicamente em


razão do Estado defender a sua própria existência, mas, no dever claro de
assegurar direitos e garantias das gerações futuras (NIESEN, 2002).
A nova teoria da democracia militante, proposta por Rosenblum considera
como ameaças à democracia condutas como: subversão violenta, incitação ao
ódio, mudança do caráter da nação e, apoio e controle externo (ROSENBLUM,
2007, p.16-75).
Nesta concepção, mais ampla, quaisquer partidos que pregassem: ódio à
minorias e/ou grupos de pensamento político, subversão à oligarquias e
entidades externas, tais como, Foro de São Paulo, o fim da propriedade privada,
separatismo regional ou seccional do Estado, fim do secularismo (separação do
Estado e Religião), supressão de direitos e garantias fundamentais e entre
outros, por exemplo; poderiam ser banidos da atividade política/partidária.
A possibilidade constitucional de banimento de partidos políticos
dependeria de qual tipo de democracia que cada país adota. Por isto Fox e Nolte,
propõem quatro tipos de democracia adotada pelos países: as procedimentais
tolerantes, procedimentais militantes, materiais tolerantes e materiais militantes
(FOX; NOLTE, 2000).
Nas democracias procedimentais, não há limites de revisão material da
Constituição (cláusulas pétreas), considerando o banimento de partidos, em
regra, inconstitucional e contra a liberdade de expressão. A democracia seria,
portanto, desprovida de valores intrínsecos, sendo um método que regula as
regras da política e do poder (CABRAL, 1994, p. 83).
Para esta abordagem, banir partidos políticos e/ou ideologias seria
“empurrar” valores na democracia, o que seria impossível pela sua natureza
desprovida de valores intrínsecos. O objetivo da democracia, para a democracia
procedimental, não é aceitação de valores mas, a composição de um “contrato
social” que estabeleça um conjunto de regras do poder.
Do outro lado, existem as democracias materiais, que possuem valores
intrínsecos concretizados por ampla base principiológica, existindo limites de
revisão material da Constituição e restrição da liberdade de associação e
expressão partidária, a fim de proteger valores fundamentais do Estado.
Explica Fox e Nolte que os princípios democráticos escolhidos pelo poder
constituinte não poderiam ser suprimidos pelo poder constituinte derivado,
possibilitando o banimento de partidos e/ou associações que inflamem contra
estes. Para a abordagem material, a democracia assume valores
essencialmente democráticos, a fim de proteger a existência de direitos e
garantias fundamentais para todos (FOX; NOLTE, 2000). Para Fox e Nolte
mesmo entre as democracias procedimentais e materiais existem aquelas com
maior ou menor nível de militância. Aquelas democracias que mesmo materiais,
permitem certo grau de liberdade de expressão política/partidária (materiais
tolerantes) e as procedimentais que possuindo um grau maior de militância,
327

podem eventualmente banir partidos que violem as “cláusulas democráticas”


(procedimentais militantes) (FOX; NOLTE, 2000).
Exemplo de democracia material militante, até 2017, foi a Alemanha. A
corte alemã vinha decidindo que não havia necessidade de esperar para ver se
o partido tinha chances de triunfar ao poder para bani-lo (Caso KPD – Partido
Comunista Alemão e Caso NPD - Partido Nacional Democrático da Alemanha).
Em meados de 2017, a corte constitucional alemã decidiu, alterando a
jurisprudência em decisão histórica e controvertida, que não baniria o NPD
(recriação do partido que anteriormente foi banido), afirmando: “O NPD tem
objetivos anticonstitucionais, mas, no momento, não há evidência suficiente que
mostre que o seu comportamento vai resultar em sucesso” (JUSTIÇA, 2017). No
novo entendimento da referida corte, seria necessário demonstrar evidências
suficientes que o comportamento do partido NPD resultaria em sucesso,
portanto, hoje, considera-se a Alemanha como uma democracia militante
tolerante.
O Brasil, como se verá adiante, já baniu partidos contrários ao regime
democrático, possuindo regras rígidas de revisão constitucional (MORAES,
2017, p.73). Outro exemplo é a França que, no art. 89º da Constituição de 1958,
torna irreformável por emendas constitucionais a forma republicana (FRANÇA,
1958) e a Lei Francesa de 10 de janeiro de 1936 que permite a dissolução de
organizações de cunho antidemocráticos e/ou preguem o desmembramento do
Estado (FRANÇA, 1936). Motivos que considera-se estes países, a título de
exemplo, como democracias militantes tolerantes.
Ao lado das democracias procedimentais tolerantes, encontra-se àquelas
que são tolerantes com a existência de partidos políticos contrários ao regime
democrático e/ou direitos e garantias fundamentais. A Inglaterra, por exemplo,
proibiu a transmissão de líderes e apoiadores do partido Sinn Fein na mídia por
meio do The Broadcasting Act 1981 (c. 68), mas permitiu e tolerou o
funcionamento político/partidário do partido (ligado a organização terrorista ETA)
que possuía caráter separatista e autoritário (REINO UNIDO, 1981).
Os Estados Unidos na I Emenda à Constituição de 1791 estabeleceu
ampla liberdade de expressão para o povo e os parlamentares. O governo, de
acordo com esta emenda, não teria legitimidade de banir partidos políticos pelos
pensamentos expressados por estes (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1791).
Contudo, editou o The Smith Act em 1940, tornando crime advogar a derrubada
violenta do governo ou ser membro de grupo que faça esta defesa, a referida lei
foi utilizada contra a liderança do Partido Comunista Americano (ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA, 1940); confirmada constitucionalmente em 1951 no
caso Dennis v. Estados Unidos (SUPREMO TRIBUNAL DOS ESTADOS
UNIDOS, 1950). Internal Security Act de 1950 (ESTADOS UNIDOS DA
AMÉRICA, 1950) e Communist Control Act de 1954, são outros exemplos de leis
americanas que estabeleceram uma lista de partidos comunistas subversivos à
ordem nacional, retirando vários privilégios destes, mas mantendo-os na esfera
política (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1954). Por isto considera-se os
EUA e a Inglaterra como democracias procedimentais militantes.
Observa-se que mesmo nestas democracias consideradas
procedimentais, há certo grau de militância, havendo restrição da liberdade de
expressão de partidos e/ou organizações que atentem contra a liberdade
democrática e suas proteções (direitos e garantias fundamentais).
328

Há também restrições ao funcionamento político/partidário no âmbito da


proteção internacional. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
limita os partidos políticos nos artigos 5.1, 19.3, 20.2 e 21 e 22.2 (BRASIL, 1992).
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (CIEDR) admite possibilidade de dissolução, inclusive por
medidas legislativas, de grupos que insinuem a discriminação (Artigo II, d)
(BRASIL, 1969).
Dentre os julgamentos históricos da temática no Tribunal Europeu de
Direitos do Homem (TEDH) destaca-se o Caso Refah Partisi e outros v. Turquia
(2003), que possuía à época, a maior bancada no parlamento Turco em 1996 e
foi banido pelo o Tribunal Constitucional Turco em 1998 por violar a laicidade do
Estado (uma vez que era um partido declaradamente mulçumano). O TEDH
confirmou que a decisão da Corte Constitucional Turca havia seguido dentro da
legalidade (seguindo o esquema quaternário) (TEDH, 2003). Outro exemplo é
caso Herri Batasuna e Batasuna v. Espanha (2009), oriundo da Corte
Constitucional Espanhola. O TEDH manteve a decisão da corte espanhola que
baniu partidos acusados de apoiar grupos terroristas (como o ETA) pela omissão
destes em punir os membros que apoiavam estes grupos (TEDH, 2009). A teoria
foi amplamente utilizada nos mais diversos países e sistemas de proteção
jurídica nacional e internacional.

A TEORIA DA DEMOCRACIA MILITANTE NO BRASIL

Das sete Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e
1988) é previsto a limitação material de revisão desde 1891 no art.90,§4
(BRASIL, 1891) que limita deliberações que visassem abolir a forma republicana-
federativa e a igualdade de representação dos Estados Federados no Senado.
Na Constituição de 1934 era possível a dissolução de associações com
objetivos ilícitos (Art. 113.12) (BRASIL, 1934). A Constituição de 1937 tornou
mais clara a limitação à liberdade de associação as leis penais e aos bons
costumes (Art.122.9) (BRASIL, 1937).
Contudo, somente com a Constituição de 1946 é limitada, de forma
constitucional, a liberdade político-partidária, ao dispor no Art.141,§13 :

É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer


Partido Político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o
regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia
dos direitos fundamentais do homem. (BRASIL, 1946, grifo nosso)

Analisando as Constituições Europeias vigentes a época, a Constituição


de 1946 foi a primeira a limitar, constitucionalmente, a liberdade partidária dos
partidos políticos; a frente da Italiana (1947), que proibiu a reorganização do
partido fascista (XII – Disposições Transitórias e Finais) e da Alemã (1949), como
já visto (MONTEIRO, 2015). Já havia diversas leis esparsas prevendo o
banimento de partidos políticos, mas nenhuma até então, nesta análise
comparativa (Europa), constitucionalmente prevista. A Constituição do Brasil de
1946, a frente das demais, ao usar a expressão “ação” no Art. 141,§13 (BRASIL,
1946), possibilitada a punição do partido que por meio das falas de seus adeptos
e líderes conclamava objetivos contrários à Constituição.
Esta redação “ação”, prevista no texto constitucional, não persistiu nas
Constituições Republicanas posteriores. A Carta Magna de 1967, outorgada pelo
329

Regime Militar, previu uma supressão maior das garantias partidárias, no Art.
151 (BRASIL, 1967)
A Constituição da República de 1988 previu restrições partidárias de
forma principiológica, no art.17 (BRASIL, 1988). Nesta análise, mais ampla e
atual, não poderia um partido político ter como objetivos, por exemplo: A
instauração de um regime totalitário, o fim da propriedade privada, a criação de
tribunais de exceção, o bipartidarismo, a supressão de garantias fundamentais
a criminosos, o fim da herança, a extinção da individualização da pena, o
recebimento de recursos do estrangeiro ou a sua submissão a estes organismos,
penas de trabalho forçado e dentre vários outros, considerados direitos
fundamentais da pessoa humana e princípios do pluripartidarismo e regime
democrático. Embora a supressão destes direitos acima delineados participarem
do debate político na voz dos candidatos, nenhum partido foi extinto (banido) por
violar estes preceitos, sob a Constituição da República de 1988.
Único precedente legal e constitucional, no Brasil, foi o PCB – Partido
Comunista do Brasil em 1947. Por meio da Resolução nº 1.841, de 7 de maio de
1947 (BRASIL, 1947) o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), declarou por 3 votos a
2, o cancelamento do registro partidário por violar o caráter nacional e o regime
democrático com fulcro no Art. 141,§13 da Constituição de 1946 (BRASIL, 1946).
Este banimento político-partidário perdurou por 38 anos no Brasil
(considerando o regime militar). Utilizou de forma tácita a teoria da democracia
militante, extinguindo partidos políticos que fossem contrários aos princípios
democráticos, na vigência, à época, de um regime democrático no Brasil (1945-
1964).

CONCLUSÃO

A Teoria da Democracia Militante originou-se em 1937, durante o regime


fascista/nazista, tendo como principal objetivo limitar que partidos e/ou
ideologias eclodissem de forma “democrática” e visassem por meio desta a
supressão de direitos e garantias fundamentais e dos princípios do regime
democrático.
O Brasil considera os partidos políticos como pessoas jurídicas de direito
privado, de utilidade pública, destinados à defesa democrática e dos direitos e
garantias fundamentais, não se equiparando às entidades paraestatais. Logo,
para efetivo cumprimento de suas funções são importantes instrumentos que
possibilitem a defesa e a continuidade do regime democrático, pluripartidarismo
e os direitos e garantias fundamentais para as próximas gerações, tal como
propõe a teoria da democracia militante.
Diante de tudo apresentado, não restam dúvidas que a teoria da
democracia militante é aplicada constitucionalmente no Brasil desde, no mínimo,
1946. Sendo o último instrumento constitucional a fim de evitar a instauração de
regimes totalitários que suprimam direitos e garantias fundamentais.
Instrumento, que utilizado de forma proporcional e legal, tem o poder de suprimir
as vozes de extremismos ideológicos, a fim de que o baluarte da democracia e
dos direitos fundamentais continue a ecoar no seio da nação e das futuras
gerações.

REFERÊNCIAS
330

MENDONÇA, Aachen Assis (Trad.). Lei Fundamental da República Federal


da Alemanha. Deutscher bundestag, janeiro 2011. Disponível em:
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Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
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BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto


Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em:
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Disponível em: http://legisworks.org/congress/76/publaw-670.pdf. Acesso em:
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333

PRECEDENTES JUDICIAIS VINCULANTES E O PAPEL DOS JUÍZES


ENQUANTO LEGISLADORES OCASIONAIS NO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL BRASILEIRO.
VINCULATIVE PRECEDENTS AND THE ROLE OF JUDGES AS
OCCASIONAL LEGISLATORS IN THE BRAZILIAN NEW CODE OF CIVIL
PROCESS.

Maria Lívia Rangel


Orientador(a): Peter Panutto

Resumo: Não havia, até o Código de Processo Civil de 2015, formas de


estabilização das decisões judiciais até o sistema de precedentes, os quais
dão ao Poder Judiciário uma maior margem de atuação, desde que colegiada.
Partindo do pressuposto da não completude do ordenamento jurídico, cabe
aos juízes interpretar as fontes do direito, e quando estas não suprimirem a
necessidade da demanda, cria-lo, assumindo papel de legisladores
ocasionais. Um problema surge quando o sistema não impõe limites ao Poder
Judiciário dentro desta prerrogativa, legitimando o ativismo judicial e crises
institucionais na separação dos poderes. Com enfoque no Supremo Tribunal
Federal, parte-se da hipótese de que a Corte eminentemente como órgão
político. Partindo dos métodos hipotético-dedutivo e bibliográfico, pretende-se
demonstrar que o STF, enquanto Corte política à luz do direito comparado,
não aplica efetivamente a nova sistemática.
Palavras-chave: Precedentes vinculantes. Ativismo judicial. Legisladores
ocasionais.

Abstract: Until the 2015 Code of Civil Procedure, there were no ways to stabilize
judicial decisions up to the precedent system, which give the Judiciary a greater
scope, as long as it is collegiate. Assuming the incompleteness of the legal
system, it is up to the judges to interpret the sources of the law, and when these
do not suppress the need for the demand, create it, assuming the role of
occasional legislators. A problem arises when the system does not impose limits
on the judiciary within this prerogative, legitimizing judicial activism and
institutional crises in the separation of powers. Focusing on the Federal Supreme
Court, it is assumed that the Court acts exclusively as a policy, without full
deliberation, rejecting the idea of the creation of law, generating judicial activism.
Starting from the hypothetical-deductive and bibliographic methods, it is intended
to demonstrate that the STF, as a political court in the light of comparative law,
does not effectively apply the new system.
Keywords: Binding precedents. Judicial activism. Occasional legislators.

INTRODUÇÃO

Para além das decisões proferidas em controle concentrado de


constitucionalidade, não havia, até o advento do Novo Código de Processo
Civil, formas concretas de se buscar a uniformidade na interpretação da lei
nas decisões judiciais, acarretando desrespeito aos princípios da isonomia,
previsibilidade e segurança jurídica (PANUTTO, 2017). O novo código
implementou o sistema de precedentes judiciais vinculantes oriundos do
common law, com o objetivo de estabilizar o direito.
334

Esta nova sistemática dá ao Poder Judiciário uma maior possibilidade de


deliberação diante das demandas apresentadas. Quando uma demanda chega
ao juiz, deve o magistrado se utilizar das fontes do direito para resolvê-la não
havendo a possibilidade de não julgamento da matéria. Entretanto, na realidade
judiciária é inconcebível a ideia de consenso e previsibilidade para a solução de
todos os casos; são estes os hard cases, aqueles que ocupam a zona
indeterminada do direito, sendo apresentados por meio de cláusulas abertas ou
de colisões principiológicas. Nota-se, portanto, que existe uma subjetividade
quando da solução de um caso difícil, pois não há premissa anterior na qual se
fundamentar e tampouco, um entendimento uniforme a respeito daquela matéria.
Este subjetivismo pode gerar insegurança nas relações jurídicas e não
podem os juízes deixar de julgar determinado caso pela sua complexidade
presente. Abre-se então a prerrogativa de criação do direito por parte do Poder
judiciário, podendo os magistrados atuar como legisladores ocasionais com o
objetivo de, para além da solução da demanda, estabilizar o direito.
O problema surge quando não são impostos limites a esta prerrogativa,
ficando a critério do Poder Judiciário decidir as matérias dentro das quais irão
criar o direito, podendo decidir não apenas fora da moldura, mas estabelecerem
o que será decidido fora dela (CAPPELLETTI, 1993). Expandindo o problema,
ainda, esta criação se dá de forma autoritária quando não existe uma plena
deliberação das Cortes, como no caso do Brasil, onde o Supremo Tribunal
Federal não mantém uma coerência deliberativa, situação em que cada Ministro
decide e apresenta seu voto como onze ilhas isoladas e não componentes de
um mesmo sistema.
Os limites estipulados entre a criação do direito na atuação do Poder
Judiciário como legislador são fixados pelos precedentes judiciais vinculantes,
pois estes criam a necessidade de padronização do comportamento decisório
obedecendo a uma lógica hermenêutica, sem, contudo, haver um problema
institucional na separação dos Poderes do Estado, tanto pela frequência de
criação, como nas discussões acerca da matéria deste direito.
Nas palavras de Cappelletti:

A única diferença possível entre jurisdição e legislação não é, portanto,


de natureza, mas sobretudo de frequência ou quantidade, ou seja, de
grau, consistindo na maior quantidade e no caráter usualmente mais
detalhado e específico das leis ordinárias e dos precedentes judiciários
em relação às normas constitucionais (...) Daí decorre que o legislador
se depara com limites substanciais usualmente menos frequentes e
menos precisos que aqueles com os quais, em regra, se depara o juiz:
do ponto de vista substancial, ora em exame, a criatividade do
legislador pode ser, em suma, quantitativamente mas não
qualitativamente diversa da do juiz (KELSEN, 1999).

Contudo, mesmo que o novo sistema seja a limitação substancial do papel


dos juízes enquanto legisladores, sem criação e aplicação efetiva dos
precedentes, deixa de existir a criação legítima do direito cuja prerrogativa não
possui amparo legal, tirando a credibilidade do Poder Judiciário.

DESENVOLVIMENTO

Abordando o novo sistema, é pertinente aventar as problemáticas geradas


pela falta de limitação à atividade legislativa dos juízes. O advento do Novo
335

Código de Processo Civil, ao trazer o sistema de precedentes trouxe,


consequentemente, a positivação da possibilidade de criação do direito pelos
juízes, determinando em seu rol legal1 (BRASIL , 2015), as competências para
fazê-lo.
Quando o magistrado se depara com um litígio estabelece com este um
juízo de valor e seu julgamento tende a seguir seu posicionamento político-
ideológico (POSNER, 2010), é impossível afastar da decisão as concepções
individuais juiz. A questão a ser levantada é que o juiz, quando se vale
unicamente de seus juízos de valor, afastando-se das questões legais e dos
precedentes, deixa de exercer a atividade legislativa de forma legítima e passa
a fazê-lo de forma a gerar desestabilização do direito.
Nesse cenário, há uma linha tênue entre um juiz agindo como legislador
ocasional diante de demandas as quais necessitam esta atividade, e o juiz que
atua fora das prerrogativas amparadas pela lei. O magistrado, ao atuar como
legislador não deve se afastar das fontes do direito, tampouco se limitar ao texto
normativo estritamente, já que tem o dever moral, pessoal e político tanto quanto
jurídico (POSNER, 2010). Dentro deste raciocínio, os precedentes judiciais
vinculantes servem não apenas para estabilização da jurisprudência,
respeitando os elementos integridade e coerência, mas também têm a função de
limitar à atividade do juiz enquanto legislador ocasional, em grau e em
quantidade.
Ocorre que quando os juízes membros das Cortes competentes à
formação dos precedentes não exercem de forma correta o colegiado e afastam-
se do debate, deslegitimam a nova sistemática, ao passo que não estabelecem
um consenso acerca do direito a ser criado e legitimado pela via dos precedentes
vinculantes, dificultando possíveis distinguishing e overrulling. O que os tribunais
brasileiros têm feito não é exercício desta última quando colocam uma demanda
em pauta, pois discricionariedade não quer dizer arbitrariedade e o juiz, ainda

1 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;


II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do
Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando
decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2o A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos
repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou
entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos
tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver
modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada
em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e
específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da
isonomia.
§ 5o Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica
decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
336

que inevitavelmente criador do direito naquele momento, não é um criador


completamente livre de vínculos (POSNER, 2010).
O magistrado ao exercer função jurisdicional tem ligação direta às fontes
do direito, só não unicamente a elas. Manter o direito estável e, então, decidir
em harmonia com a lei, os precedentes e as demais fontes geram segurança
nas relações jurídicas, porém, em alguns momentos, o juiz tem a escolher pela
manutenção da estabilidade do direito ou o alcance da justiça em sentido
substantivo (POSNER , 2012), sendo nesses momentos em que exercerá sua
função de legislador ocasional.
Alguns autores negam essa possiblidade de criação do direito por parte
do juiz. Ronald Dworkin, por exemplo, refuta essa argumentação e pauta a
decisão judicial exclusivamente na moral, aproximando este último conceito do
que se entende por direito (DWORKIN,1986). Para Dworkin, o juiz deve
exclusivamente interpretar as fontes, sem criar o direito, mas extrair a melhor
solução para o caso concreto a partir da integridade, ainda que esteja em uma
zona de penumbra e, portanto, sem resposta.
Entretanto, a teoria Dworkiana é questionada por Posner, adepto do
pragmatismo jurídico, quando este diz que “se a interpretação literal de uma lei
produz resultados absurdos, os juízes podem reescrevê-la”2. Não é possível que
os juízes se limitem exclusivamente à interpretação, quando o direito não é
capaz de prever todos os casos e, por ora, a interpretação não será suficiente à
solução do caso concreto.
Neste casos, Posner vê a figura do juiz enquanto legislador ocasional
como necessária à solução dos litígios, mas essa função só será legítima
mediante o efetivo debate das Cortes, pois para Posner, onde há dissenso, não
haverá estabilidade e para que se fale então em eficácia dos precedentes, há de
se falar em estabilidade das decisões. Ora, a necessidade de estabilização da
jurisprudência tem ligação direta com princípio da segurança jurídica, pois a
estabilidade não se traduz apenas na continuidade do direito legislado, exigindo
também, a continuidade e o respeito às decisões judiciais, ou melhor, aos
precedentes (MARINONI, 2016).
Nesse sentido, Posner não afasta do Poder Judiciário a possibilidade de
atuação como legislador, desde que esta atividade seja limitada e uma forma de
fazê-lo, para além do pragmatismo jurídico, é a efetiva criação e aplicação dos
precedentes vinculantes. Os Tribunais Brasileiros, com enfoque no Supremo
Tribunal Federal, não estão aptos ao exercício do papel de legislador ocasional
diante dos litígios cuja solução não se encontra nas fontes do direito
preestabelecidas, tampouco ao novo sistema de precedentes oriundo do direito
comparado.

CONCLUSÃO

Pode-se concluir que a falta de deliberação dos tribunais brasileiros


quando da criação do direito, com foco no STF, gera instabilidade nas relações
jurídicas, bem como incredulidade na justiça, gerando consequências
institucionais na separação dos Poderes, sendo necessário limitar o Judiciário
quando exerce o papel de legislador ocasional, limitação esta que pode ser dada

2 Nesta questão específica, Posner aborda os casos Burns vs. United states, 501 U.S 129, 137
(1991); Green vs. Bock Laudry Machine Co.,409 U.S. 504, 527 (1989), (juiz Scalia, voto
concorrente).
337

com os precedentes judiciais vinculantes oriundos do Código de Processo Civil


de 2015.
Entretanto, a mera previsão legal não possui condão para garantir a
efetividade do novo sistema, sendo necessário que os tribunais adequem o
procedimento deliberativo e respeitem os elementos estabilidade, integridade e
coerência, fazendo com que haja legítima criação e aplicação dos precedentes
judiciais vinculantes.
Por fim, não se nega a possibilidade de o juiz criar o direito, o contrário, o
Poder Judiciário tem prerrogativa de cria-lo quando o caso concreto assim o
demandar, devendo faze-lo, contudo, com o devido respeitado aos limites
substanciais do próprio direito. Assim, a falta de respeito à plena deliberação
colegiada exigida pelos precedentes vinculantes somada à criação ilimitada do
direito pelas Cortes Superiores, no caso do Brasil, o STF, afasta a ideia de juiz
enquanto legislador ocasional e adentra à esfera de um Judiciário arbitrário e
sem credibilidade no meio social.

REFERÊNCIAS

PANUTTO, Peter. A plena deliberação interna do Supremo Tribunal Federal para


a efetiva criação e respeito dos precedentes judiciais vinculantes estabelecidos
pelo novo Código de Processo Civil. Revista Direitos e Garantias
Fundamentais, v. 18, n. 2, mai./ago. 2017, p. 205-226.

CAPPELLETTI, Mauro. Juizes legisladores? Porto Alegre: Safe, 1993.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BRASIL. Lei nº 13105, de 16 de março de 2015.

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Press, 2010.

POSNER, Richard. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo:


Martins Fontes, 2012.p. 382.

DWORKIN, Ronald. Império do Direito. Massachusetts: Harvard University


Press, 1986.

MARINONI, Luiz Gulherme. Precedentes obrigatórios. 5. ed. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2016.
338

SAÚDE: DIREITO DE TODOS, DEVER DO ESTADO? EXERCÍCIO DE


EQUIDADE E CIDADANIA NA ATENÇÃO A PESSOAS VIVENDO COM
HIV/AIDS EM ALAGOAS
CHEERS: RIGHTS OF ALL, DUTY OF THE STATE? EQUITY AND
CITIZENSHIP EXERCISE IN CARING FOR PEOPLE LIVING WITH HIV/AIDS
IN ALAGOAS

Cecilio Argolo Junior


Orientador(a): Frederico Antonio Lima de Oliveira

Resumo: Este estudo objetivou mostrar o dever do estado de fornecer condições


básicas, contínuas regulares e permanentes para a manutenção da saúde de
pessoas que vivem com HIV/aids em Alagoas. Construído através de pesquisa
qualitativa, documental, descritiva e explicativa. A literatura utilizada se deteve
mostrar que a aids é uma infecção sexualmente transmissível e crônica, causada
pelo vírus HIV, considerada uma epidemia de números alarmantes. Alagoas vem
registrando o aumento no número de casos de aids. Por fim, a epidemia se
tornou um problema de ordem pública, cujo agravo à saúde vem avançando
impiedosamente nos 102 municípios alagoanos. A interrupção da terapêutica
profilática traz enorme prejuízo à saúde do soropositivo, além de propiciar
sequelas irreparáveis, podendo, inclusive, levar à morte.
Palavras-chave: HIV/aids. Direito à saúde. Alagoas.

Abstract: This study aimed to show the state's duty to provide basic, continuous
regular and permanent conditions for maintaining the health of people living with
HIV / AIDS in Alagoas. Built through qualitative, documentary, descriptive and
explanatory research. The literature used to show that AIDS is a sexually
transmitted and chronic infection caused by the HIV virus, considered an
epidemic of alarming numbers. Alagoas has been recording the increase in the
number of AIDS cases. Finally, the epidemic has become a public order problem,
whose health problem has been progressing mercilessly in the 102 municipalities
of Alagoas. The interruption of prophylactic therapy causes enormous damage to
the health of the seropositive, besides providing irreparable sequelae, which may
even lead to death.
Keywords: HIV/aids. Right to health. Alagoas.

INTRODUÇÃO

Este estudo traz um recorte de uma pesquisa interdisciplinar de


dissertação, entre as áreas de Direito e Saúde, com abordagem de natureza
qualitativa, apresentado em maio de 2019, ao Programa de Mestrado em Direitos
Fundamentais, pela Universidade da Amazônia, Belém, Pará. Atualmente, em
continuidade no Programa de Doutorado em Psicologia Clínica, com recorte em
pessoas com idade igual ou maior a 60 anos diagnosticadas com HIV/aids nos
anos de 2016, 2017 e 2018 no estado de Alagoas, terceiro lugar em número de
casos registrados na região Nordeste.
A redemocratização do Brasil, a partir da Constituição da República
(1988), permitiu aos movimentos sociais, à sociedade civil organizada e ao poder
público constituído construírem uma nova história político-ideológica voltada a
dignidade da pessoa humana, eixo de sustentação dos direitos fundamentais.
339

Esse pragmatismo, desenhado a partir das garantias fundamentais


trazidas à baila pelo texto constitucional, formatou um modelo de sistema público
de saúde coletiva, igualitário, universal e integral que, em tese, não deveria
existir barreiras impeditivas para o seu acesso, pois foi constituído sob a
égide para o amplo atendimento das necessidades médicas da população, em
qualquer nível de cuidado e atenção, devendo possuir infraestrutura necessária
e de pronto atendimento ao cidadão-usuário.
Consoante, a efetivação do direito social à saúde é um bem jurídico
indissociável do direito à vida. Entretanto, a saúde pública vem constantemente
dando provas de saturação ante o acúmulo de reclamações, denúncias e
fraudes. Essa realidade desenfreada, com problemas crônicos amealhados no
decorrer dos tempos, acrescida da precariedade dos serviços oferecidos à
sociedade, vêm refletindo numa das maiores epidemias que o Brasil já teve de
enfrentar nas últimas três décadas: à aids.
Em Alagoas, há dez anos consecutivos, a epidemia vem crescendo de
forma assustadora chamando a atenção do Ministério da Saúde face ao aumento
de infecções oportunistas diagnosticadas diariamente e do número de óbitos
ligados à enfermidade. Não existem políticas publicadas voltadas à saúde dessa
população. De igual forma, a aplicação de barreiras protetoras contra à
enfermidade são deficitárias.
A interrupção no tratamento por falta de insumos farmacêuticos e de
exames laboratoriais vêm interferindo, substancialmente, no enfrentamento da
infecção. Por esses motivos, a judicialização da saúde se tornou o caminho mais
célere para a efetivação do direito fundamental à saúde em Alagoas.
A base metodológica deste estudo foi construída através de um estudo
qualitativo, documental, descritivo e explicativo que integrou juridicamente a
escolha do tema, a formulação do problema, a catalogação e seleção das fontes,
a leitura, a organização dos materiais e a redação de todo texto, ao direito
constitucional a saúde de pessoas que vivem com HIV/aids em Alagoas.
Por fim, este trabalho tem por objetivo mostrar o dever do estado de
fornecer condições básicas para a manutenção da saúde de pessoas que vivem
com HIV/aids em Alagoas, ou seja, meios de garantir a manutenção da saúde e
o pleno exercício de equidade e cidadania desse grupo de pessoas vulneráveis.

1. A GEOGRAFIA SOCIOECONÔMICA DE ALAGOAS

O estado de Alagoas está localizado numa região privilegiada do Nordeste


do Brasil. Ocupa uma área de 27.848.000 km 2. Emoldurado por um cenário de
águas verde-azuladas, calmas, quentes, transparentes, as quais permitem
contemplar a vida subaquática abundante. Maceió é sua capital, “[...] cantinho
pintado por Deus, paraíso que o coração se apaixona” (BRASIL, IBGE, 2019;
CAVALCANTE, 2014).
Segundo a Síntese de Indicadores Sociais (SIS/IBGE), Alagoas é o
terceiro estado da federação com o maior índice de pobreza. A economia
encontra-se em desenvolvimento, mas sendo uma das menores do País
(BRASIL, SÍNTESE DE INDICADORES SOCIAIS, 2017). O estado possui 58
municípios enquadrados, segundo o “Plano Brasil sem Miséria”, em “extrema
pobreza”, conforme Figura 1.
340

Fonte: Ministério da Saúde/SUS/SESAU/AL, 2015.


Figura 1: Municípios alagoanos que vivem na extrema pobreza, segundo o Plano Brasil Sem
Miséria.

Tem na cana-de-açúcar um de seus principais componentes. O trade


turístico há alguns anos vem se tornando a salvação da economia, cujo setor de
serviços é que mais cresce no Estado. A exploração das belezas naturais faz
dessa região ponto obrigatório de visita ao nordeste, listando a capital como
sendo a quinta cidade mais visitada no Brasil (BRASIL, IBGE, 2018).
Alagoas possui 3.322.820 habitantes (2018). Concentra uma população
eminentemente feminina. Reflexo da maior mortalidade entre a população
masculina, principalmente decorrente de causas externas, dentre essas
estão os homicídios (WASELFISZ, 2016; CERQUEIRA et al., 2017). O estado
possui um rendimento mensal/domiciliar per capita de R$ 658,00, em 2017
(BRASIL, IBGE, 2018).
Em conformidade com o Plano Diretor de Regionalização, sob o ponto de
vista assistencial, Alagoas está dividido em 10 (dez) Regiões de Saúde (RS),
subdivididas em 2 (duas) Macrorregiões, conforme Figura 2. (ALAGOAS,
PLANO DE SAÚDE, 2018).

Fonte: SESAU/AL, 2015.


Figura 2: Regiões de Saúde de Alagoas.

Segundo Barros, Henriques e Mendonça (2001, p. 1), essa desigualdade


na distribuição de renda dos estados vem mostrando elevados níveis de pobreza
341

absoluta e indigência de sua população, aliás, “[...] um país desigual, exposto ao


desafio histórico de enfrentar uma herança de injustiça social, que excluiu parte
significativa de sua população do acesso a condições mínimas de dignidade e
cidadania”. Essa realidade vem há bastante tempo assolando Alagoas, refletindo
diretamente no campo da saúde pública.
Por fim, adiante será mostrado que a precariedade dos serviços públicos
de saúde vem dificultando o tratamento de pessoas que vivem com HIV/aids em
Alagoas.

2. A EPIDEMIA DA INFECÇÃO PELOS VÍRUS HIV versus ADOECIMENTO


POR AIDS EM ALAGOAS

A aids é uma infecção causada pelo vírus HIV. Os determinantes sociais


da infecção se tornaram grandes aliados para subsidiar as intervenções e
compreender melhor a dinâmica de disseminação dessa epidemia no Brasil
(FERREIRA; ALESSANDRO; SANTA’ANA, 2010).
Pesquisa realizada por Maranhão e Pereira mostrou a necessidade de
conhecer o soropositivo além de seus aspectos biológicos. Isso significa dizer
que não somente os medicamentos retrovirais são importantes para combater a
infecção, mas também se faz necessário conhecer as condições em que os
soropositivos vivem e trabalham, para entender os efeitos da enfermidade
(MARANHÃO; PEREIRA, 2018).
A epidemia não tem mais grupo de risco; está em todos os pontos, em
todos os lugares, em todas as classes. Muito embora, vem se concentrando em
maior proporção nas populações em situação de maior risco e vulnerabilidade
epidemiológica, econômica e social. Para Soares et al. (2017), essa
vulnerabilidade para o vírus HIV/aids se tornou um dos maiores problemas para
a sociedade uma vez que a epidemia vem se expandido em grandes proporções
e cada vez mais atingindo um número maior de pessoas (BRASIL, BOLETIM
EPIDEMIOLÓGICO, 2018; SOARES et al., 2017).
A principal forma de contaminação pelo vírus HIV se dá,
basicamente, por vias sexuais. Até o perfil epidemiológico da infecção ao
longo desses anos vem sofrendo modificações, atualmente, concentrando
maior predominância entre heterossexuais, mulheres, jovens, pobres e do
interior, tendo essa população grandes tendências ao envelhecimento após o
advento dos novos fármacos antirretrovirais (FORESTO et al., 2017; SANTOS;
ASSIS, 2011; MENEZES et al., 2018; ARAÚJO et al., 2018).
A aids é um problema de todos. E por ser também um fenômeno social,
se faz necessário levar o indivíduo a repensar suas atitudes, rever seu cotidiano
e modificar a sua conduta de relacionamentos íntimos. Evitar o adoecimento é
um ato de responsabilidade e cuidado de si próprio, condição importante
para a manutenção do bem-estar físico e psicoemocional. Por isso, não há como
negar os danos que essa epidemia vem causando (ARAÚJO et al., 2018).
O estado de Alagoas ocupa o terceiro lugar em casos de HIV e aids no
Nordeste, contabilizando de 1986, primeira notificação realizada, a novembro de
2018, 9.797 casos registrados, com 2.241 óbitos. A frequência por ano de óbitos,
segundo faixa etária, no período de 2014 a 2018, somou 738 mortes por
infecções ligadas à aids. Atualmente, o estado possui 7.556 casos registrados,
estando a maior concentração de HIV na faixa etária de 30 a 39 anos, com 2.405
casos, seguida da faixa etária de 40 a 49 anos, com 1.550 casos, terceira maior
342

prevalência do Estado (ALAGOAS, ESTATÍSTICA DE HIV/AIDS, 2019; BRASIL,


BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO, 2018).
O que chama a atenção da vigilância epidemiológica do Ministério da
Saúde é o número de casos de aids registrados nos últimos três anos no estado:
2015, 440 casos; 2016, 518 casos; e, 2017, 606 casos. Surpreendentemente,
até novembro de 2018, Alagoas registrou 280 casos. Menos da metade dos
casos registrados em 2017. Atente-se para o fato de o desabastecimento de
insumos farmaceuticos necessários ao tratamento de várias infecções
oportunistas que atingem a enfenrmidade (BRASIL, INDICADORES DE DADOS
BÁSICOS, 2019).
Consoante, as duas condições importantes para o tratamento do
soropositivo: medicamentos para evitar a manifestação da aids e exames
laboratoriais para o diagnóstico e monitoramento da infecção, juntos, ganham
força na luta contra a epidemia. Sem eles não haverá saúde, muito menos vida.
Assim, o direito ao estado de equilíbrio dinâmico entre organismo-ambiente e à
vida andam atrelados entre si, um dependendo do outro em mesma proporção e
escala de necessidades físicas, orgânicas e psicológicas, uma vez que “[...] a
saúde é componente da vida, estando umbilicalmente ligada à dignidade da
pessoa humana. Dessa forma, “[...] o direito à vida e à saúde são consequências
da dignidade humana” (LADEIRA, 2009, p. 115).
O fornecimento contínuo da Terapia Antirretroviral (TARV), bem como de
outros insumos necessários ao tratamento da enfermidade é uma das principais
características das orientações e recomendações consolidadas em 2013 pela
Organização Mundial de Saúde (OMS). As diretrizes traçadas para o uso de
medicamentos antirretrovirais são bases de proteção ao adoecimento por
infecções oportunistas. E, por serem importantes, necessitam de outros
procedimentos para o monitoramento da enfermidade (BRASIL, BOLETIM
EPIDEMIOLÓGICO HIV/AIDS, 2018).
Atualmente, o Ministério da Saúde indica 36 (trinta e seis) medicamentos
destinados ao tratamento ambulatorial e profilaxia de infecções oportunistas de
pessoas vivendo com HIV/aids. Ressalte-se que o plano de abastecimento
desses medicamentos, obrigatoriamente, deve ser mantido pelo Estado
(ARAUJO, G.M. et al., 2018; BRASIL, BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO, 2018). A
aquisição desses fármacos é bipartite, União e Estados, feita nos moldes da
Portaria n. 3.276, de 26 de dezembro de 2013. Ressalta-se que a aquisição da
TARV é realizada pelo Ministério da Saúde (BRASIL, PORTARIA n. 3.276,
2013).
Por fim, em decorrência da falta de investimento do poder público em
ações de promoção e prevenção contra a aids essas população vem buscando
“[...] a intervenção do Poder Judiciário, através do ajuizamento de ações
requerendo as prestações positivas, com a expectativa de obterem a
concretização do direito fundamental à saúde” (ANADON, 2010, p. 56).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da guisa conclusiva, a demanda exponencial de novos pacientes


diagnosticados com HIV/aids em Alagoas nos últimos anos e inseridos no
programa de tratamento antirretroviral não vem acompanhando,
proporcionalmente, o crescimento estrutural da assistência prestada pelo
Estado.
343

Por essas razões, a qualidade dos serviços de saúde oferecidos vem


declinando, especialmente em virtude do limitado número de profissionais, da
insuficiência de insumos e da estrutura física precária, o que redundou, dentre
outros problemas, na descontinuidade de realização de alguns exames
laboratoriais sorológicos, ditos específicos, necessários para o diagnóstico, e
o tratamento das infecções oportunistas nos pacientes com aids, mais
especificamente os exames sorológicos de carga viral, CD4 e dos vírus da
Hepatite, Citomegalovirus, Herpes Eisten Barr, HTLV e Toxoplasmose,
infecções, ligadas a aids, que podem levar o soropositivo a óbito.
Nesse sentido, é cediço mostrar que as garantias fundamentais devem
amparar essa população através de um conjunto de direitos sociais assegurados
e garantidos para manutenção da própria vida. Pois, consoante, a saúde é
medula espinhal de um sistema-guia de direitos subjetivos que estão atrelados
ao dever-ser. E por ser base de sustentação de outras garantias constitucionais,
representa um direito de todo o cidadão e dever do Estado. Em outras palavras,
esse instituto é um direito público subjetivo, com prerrogativas jurídicas
indisponíveis e intransferíveis.
Por fim, o Estado obriga-se a assegurar condições mínimas e necessárias
para garantir o mais completo bem-estar físico, mental, emocional e social da
população, proporcionando-lhe, assim, uma vida plena, com qualidade,
segurança e sem privações que atrapalhem o desenvolvimento
biopsicoemocional e social.

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incentivo financeiro de custeio às ações de vigilância, prevenção e controle das
DST/AIDS e Hepatites Virais, previsto no art. 18, inciso II, da Portaria nº
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346

UM PAÍS MONOCROMÁTICO E UNILATERAL: A PERMANÊNCIA DA


PERSPECTIVA DA HOMOSSEXUALIDADE COMO UMA PATOLOGIA NA
SOCIEDADE BRASILEIRA
A MONOCHROME AND UNILATERAL COUNTRY: THE PERMANENCE OF
THE PERSPECTIVE OF HOMOSEXUALITY AS A PATHOLOGY IN
BRAZILIAN SOCIETY

Rafaela Carvalho Coutinho de Oliveira

Resumo: O presente resumo que se pretende desenvolver busca mostrar a


realidade degradante enfrentada pelos homossexuais, no Brasil, em relação ao
seu espaço ocupado na sociedade, onde sofrem fortes discriminações. Objetiva-
se explicitar pontos que reforçam tais estigmas nos diferenciados âmbitos do
Estado Democrático de Direito, que apesar do seu período de redemocratização
e do reconhecimento da homossexualidade não mais numa perspectiva de
patologia, ainda não se faz presente, além da presença de ideologias enraizadas
que oprimem e excluem. Busca-se explicitar como os direitos dessas minorias
são imprescindíveis à luz dos princípios constitucionais. Analisa-se, ainda, as
consequências da homofobia na vida dos indivíduos e faz-se uma análise de
como ela tem sido tratada violentamente no corpo social. Finalmente, é objetivo
central interpretar como a visão da pluralidade sexual ainda não foi superada
como um desvio da manifestação humana e as implicações jurídicas e sociais
no que tange a essa minoria.
Palavras-chave: Homossexualidade. Patologia. Preconceito.

Abstract: The present summary intended to develop shows the degrading reality
faced by homosexuals in Brazil in relation to their space occupied in society,
where they suffer discriminations. The objective is to clarify points that reinforce
stigmas in the different areas of the Democratic Rule of Law, which despite its
period of redemocratization and the recognition of homosexuality no longer in a
pathological perspective, is not yet present, besides the presence of ideologies
that oppress and exclude. It seeks to explain how the rights of these minorities
are indispensable in the light of constitutional principles. It also analyzes the
consequences of homophobia on individuals' lives and analyzes how it has been
violently treated in the society. Finally, it is a central objective to interpret how the
view of sexual plurality has not yet been overcome as a deviation from human
manifestation and the legal and social implications regarding this minority.
Keywords: Homosexuality. Pathology. Preconception.

INTRODUÇÃO

É fato que a existência da homofobia se manifesta de diversas formas na


sociedade brasileira, expressando-se através da cumplicidade jurídica, científica
e cultural do país. Assim, observa-se que a evolução dos dispositivos ideológicos
e institucionais no Brasil, no que tange à dignificação dos homossexuais que os
equipara como pessoas de iguais direitos diante do mundo moderno, é recente
e requer notável atenção devido à realidade que é nitidamente exclusiva. Desse
modo, com o desenvolvimento da compreensão do ser humano como seres
condicionados biologicamente e socialmente - e por isso, plurais, e com o
impulso de mobilizações sociais, em 1990 a Organização Mundial da Saúde
347

(OMS) retirou a homossexualidade da sua lista internacional de doenças mentais


em uma Assembleia Geral, tendo o Brasil aderido a tal decisão em 1985, no
contexto de sua redemocratização. Anteriormente, as relações e quaisquer
comportamentos homoafetivos eram enquadrados na sociedade psiquiátrica
como um fenômeno de caráter patológico passível de tratamento médico, mas
devido à ausência de indicativos tomou-se a decisão da retirada da classificação
por concreto, o que evidencia o reflexo de uma sociedade arcaica, opressora e
preconceituosa que alimentou tal perspectiva por tanto tempo na crença de uma
verdade que jamais existiu.
Portanto, a homofobia ainda persiste no corpo social, seja através dos
altos índices de violência relatados diariamente no país ou até mesmo na forma
de organização da própria sociedade que espelha seus arcaísmos por meio das
instituições, como a Igreja. Ademais, tais estigmas também se fazem presentes
nos espaços públicos e privados, onde encontram o local para reproduções
valorativas por meio das quais a homossexualidade ainda é vista como um
fenômeno patológico, existindo assim, como única possibilidade legítima de
expressão a vivência heterossexual instituída na família, na linguagem, nos
dogmas e em todas as formas de manifestação humana.
No tocante à vertente metodológica do resumo proposto, utilizou-se a
vertente jurídico-sociológica. Em relação ao tipo de investigação, o tipo jurídico-
projetivo e o jurídico-interpretativo. Por fim, o raciocínio predominante é o
raciocínio dialético.

1. DESENVOLVIMENTO

1.1. DA HERESIA, DA VIOLÊNCIA E DA VULNERABILIDADE

A homossexualidade representa a manifestação de um pluralismo que é


inerente à constituição do ser humano, onde desde as tradições antigas do
universo greco-romano as relações entre homens e mulheres eram legitimadas
das mais diversas formas de sua interação, não havendo assim, espaço para a
hostilidade. Contudo, com a evolução de uma cultura judaico-cristã, os
homossexuais foram situados à margem da Salvação e condenados
eternamente pelo seu modo de ser e de viver. Assim, a teologia moderna
estruturou um modelo familiar representado unicamente por pai, mãe e filhos
como o ideal para a convivência conjugal, afetiva ou sexual e na crença de que
somente esse modelo garantiria o bem-estar ou a adequação entre os sujeitos,
não refletindo, portanto, as diversidades existentes e resumidos à condições
meramente biológicas com o intuito exclusivo de procriação.
Assim, a concepção do conhecimento sobre a sexualidade no Brasil é
atrelada a conveniências do poder de uma sociedade pós-colonial e patriarcal.
Dessa forma, constata-se que os homossexuais são fortemente perseguidos
mediante ofensas, agressões físicas, psicológicas e até mesmo assassinatos.
Tal realidade reflete a concepção ideológica arcaica da sociedade brasileira,
visto que segundo dados do Grupo Gay da Bahia, no relatório exposto sobre
Mortes Violentas da População LGBT no Brasil, foram registradas 420 mortes –
por homicídio ou suicídio decorrente da discriminação – de integrantes da
população homoafetiva no ano de 2018 (aumento significativa desde 2011, que
registrou apenas 130 óbitos) colocando o Brasil como campeão nessa prática.
Apesar disso, esses números ainda não retratam a totalidade, visto que a maioria
348

desses crimes são registrados pelos órgãos competentes como crimes comuns,
sem viés homofóbico. Há, ainda, aqueles delitos sexuais que sequer são
comunicados ao Poder Público, ficando perdidos na cifra negra. Nesse contexto,
tais condutas violam os direitos da personalidade, sobretudo o direito à honra, o
direito à vida privada e o direito à liberdade.
Desse modo, tendo-se o conceito de minorias definido por Antônio Celso
Baeta Minhoto como “um segmento social, cultural, ou econômico vulnerável,
incapaz de gerir e articular sua própria proteção e a de seus interesses, objeto
de pré-conceituações e pré-qualificações de cunho moral em decorrência de seu
padrão hegemônico [...]” (2013, p.9), as minorias sexuais por se encontrarem em
posição oprimida no seio de uma sociedade que se desenvolveu sob pilares
heterossexistas, merecem proteção estatal especial devido ao aspecto material
de isonomia. Assim, no tocante aos princípios constitucionais, Alexandre de
Moraes explicita que:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se


manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito
por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo
invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que,
somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício
dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária
estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
(MORAES, 2002, p. 128)

Dessa forma, à luz dos princípios pilares da Constituição Federal de 1988


referentes à Dignidade da Pessoa Humana, à Liberdade e à Igualdade, observa-
se que o artigo 3º, incisos I e IV, que explicita a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária e que promova o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminações
(BRASIL, 1988), não é devidamente concretizado. Ressalta-se, também, que o
Estado não preserva as garantias necessárias e contradiz ao caput do artigo 5º
no que tange ao princípio da igualdade, já que há uma subjugação violenta dos
grupos minoritários.
Além disso, verifica-se também a ausência de políticas públicas que
protejam juridicamente os atos repressivos e homofóbicos enraizados na cultura
brasileira que perpetua dogmas unilaterais, já que, segundo o Ministério dos
Direitos Humanos, o principal local de ocorrência dos crimes se dá por vias
públicas, como residências, bares e rodovias, os impedindo de gozar livremente
de seus direitos. Ademais, segundo a Associação Internacional de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Transsexuais e Intersexuais para a América Latina e o Caribe
(ILGA-LAC), verifica-se que as causas das práticas violentas contra as minorias
sexuais estão relacionadas à necessidade de controlar socialmente a
privacidade alheia no que tange a sua sexualidade e construção de identidade,
seguindo parâmetros estabelecidos por tradições machistas e influências
religiosas. Assim, nas ideias de Daniel Borillo, observa-se que:

Com efeito, o aspecto em que a liberdade se diferencia do direito é o


seguinte: ela não implica qualquer dever em contrapartida. Enquanto
não há direito sem obrigação, a liberdade exige apenas o respeito por
sua manifestação. É assim que, para a ideologia liberal, o Estado deve
simplesmente garantir o exercício da liberdade homossexual,
exclusivamente, nos limites da intimidade, em compensação, tratando-
349

se dos indivíduos heterossexuais, sua vida íntima – em particular, a


vida de casal e de família – supera amplamente a esfera privada,
obtendo o reconhecimento e a proteção específica do próprio Estado,
que assume o dever de sua garantia. Enquanto os casais
heterossexuais se tornam verdadeiros beneficiários dos direitos
conjugais, sociais, patrimoniais, sucessórios, extrapatrimoniais,
familiares, as uniões entre pessoas do mesmo sexo são convidadas a
permanecer na discrição de sua intimidade. (BORILLO, 2010, p.77)

Portanto, ressalta-se a sobreposição heteronormativa no corpo social, em


que os espaços para o exercício da sexualidade, que se reveste como um direito
fundamental e de personalidade, oponível contra o Estado e a terceiros -
indissociável ao desenvolvimento mínimo de vida e de dignidade do ser humano,
não encontra sequer espaço para ser praticado nas suas diversas formas de
expressão, enquandrando-se como praticas hereges e anormais.

1.2 DO DISCURSO DE ÓDIO E DO DESAMPARO

Vale ressaltar que, além da violência física, que é a mais visível e brutal,
atingindo diretamente a integridade corporal da vítima, existe também a não
física - que não deixa de ser menos grave e danosa, consistindo em repressões
acompanhadas por agressões orais e simbólicas, e apresentando-se como um
limitador do exercício da liberdade sexual, que contraria os direitos fundamentais
do indivíduo, expressão que é da autonomia de vontade, sendo também um
direito à intimidade e à vida privada. Assim, no entendimento de Thiago Dias
Oliva:
O discurso de ódio coloca em risco a garantia pública de inclusividade,
servindo ainda como ponto de convergência para manifestações
discriminatórias de indivíduos que tenham a mesma opinião do autor
do discurso. A reprodução do hate speech mina o projeto de
convivência que permite a coexistência de grupos sociais distintos de
forma respeitosa, criando uma atmosfera hostil, propícia a formas
ainda mais concretas de violência. (OLIVA, 2015, p.50)

Diante dessa perspectiva, encontra-se o discurso de ódio como uma das


principais formas de viabilizar a prática homofóbica e contrariar as garantias
constitucionais por meio da violência. Assim, tais ações estão presentes na
sociedade brasileira que são fortificadas por um viés moralista e religioso, à
exemplo da tentativa de censura proposta por Marcelo Crivella na Bienal do Livro
do Rio de Janeiro. Nesse contexto, na justificativa de “proteção às crianças”, um
grupo de fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública percorreram os
estandes do evento para retirarem os livros com temas ligados à
homossexualidade, onde logo depois da atitude que tomou grande repercussão
no território nacional, o prefeito afirmou em um vídeo publicado em seu Twitter
que: “Livros assim precisam estar embalados em plástico preto lacrado e do lado
de fora avisando o conteúdo.”. Dessa forma, o STF proibiu tal conduta
expressando na sua decisão que:

No caso, a decisão cuja suspensão se pretende, ao estabelecer que o


conteúdo homoafetivo em publicações infanto-juvenis exigiria a prévia
indicação de seu teor, findou por assimilar as relações homoafetivas a
conteúdo impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a
um só tempo, a estrita legalidade e o princípio da igualdade, uma vez
que somente àquela específica forma de relação impôs a necessidade
350

de advertência, em disposição que – sob pretensa proteção da criança


e do adolescente – se pôs na armadilha sutil da distinção entre
proteção e preconceito.

Desse modo, diante das condutas homofóbicas foi reconhecido o direito


à preferência sexual como emanação do princípio da dignidade humana e a
desconstrução de uma posição que “defenda a família”, visto que a Constituição
Brasileira de 1988 trabalha esse substantivo com uma interpretação não-
reducionista, a fim de igualar as diversidades existentes. Portanto, na fusão entre
o direito à informação e o direito à liberdade de expressão, a repulsão pelos
homossexuais confunde-se nessa linha tênue na sociedade.
Logo, em um sistema onde a heterossexualidade é institucionalizada
como padrão econômico, social, político e jurídico, nota-se uma superioridade a
todos que se encaixam em tal parâmetro, ficando os homossexuais oprimidos e
desamparados diante do próprio Estado e à margem da sociedade. Assim,
observa-se que descaso estatal perante as vítimas em meio as ofensas que
atinjam a sua dignidade são motivadas pelo desinteresse destas em levar ao
poder público tais denúncias, já que não há criminalização rígida e específica
que puna as condutas de disseminação de ódio, visto que ela é normalizada pelo
corpo social. Desse modo, pesar da Lei Estadual Nº 10.948, de 05 de novembro
de 2001 no Estado de São Paulo abrir a margem para a denúncia de condutas
homofóbicas discriminatórias, os aspectos penais à nível Federal que tutelam
tais condutas são amparados por outras normas previstas no Código Penal
brasileiro, tais como: apologias à crimes, crimes contra a honra, contra a moral
e a imagem, não existindo assim, no Brasil, justiça e proteção efetiva para o
grupo específico.
Assim, diante da perspectiva conservadora que coloca a
homossexualidade como condutas desviantes, diferenciadas e patológicas,
dispostas assimetricamente no plano da sociedade e sustentadas por discursos
de ódio, observa-se nas palavras de Daniel Borillo que:

Pensar a homofobia exige-nos compreender as práticas de preconceito


não como meramente individuais, mas, sobretudo, como
consentimentos de práticas sociais, culturas e econômicas que
constituem uma ideologia homofóbica. A homofobia pode ser pensada
como um consentimento social praticado por indivíduos, grupos e
ideologias que compactuam em algum nível um mundo sensível que
exclui e inclui! Exclui porque o consentimento sempre pressupõe a
exclusão de outras sociabilidades. E inclui porque busca, através da
política do armário e do preconceito, integrar nas bases do
consentimento a subalternização de alguns grupos e indivíduos.
(BORILLO, 2010, p.10)

Dessa forma, nota-se que os dispositivos institucionais refletidos pela


sociedade criam sistemas que alimentam as diferenças e a dominação de uns
sobre os outros.

CONCLUSÃO

Finalmente, conclui-se preliminarmente que as raízes homofóbicas da


sociedade brasileira reproduzem condutas que alimentam a perspectiva da
homossexualidade como uma patologia, seja de forma explícita ou implícita.
Explícita, pois os altos índices de violência no país que mais mata LGBT’S no
351

mundo reflete as atrocidades cometidas contra o corpo e a integridade das


pessoas que se identificam em tal grupo. E implícita, pois é através do discurso
amparado pela noção de proteção ao “bem comum” que se reproduzem as
atrocidades ideológicas excludentes que oprimem os homossexuais e que
encaixam a fluidez do ser humano em armários fechados.
Analisa-se também, o desamparo dos homossexuais diante de seus
direitos fundamentais que contraria a própria Constituição Cidadã, e do
desrespeito à sua autonomia privada, visto que são impedidos de vivenciarem
as suas liberdades, o exercício de suas particularidades e o alcance à própria
Dignidade Humana de forma justa e igualitária frente àqueles que se mostram
dominantes e detentores do poder no corpo social. No mais, há também a
problemática da ausência de políticas públicas e aparatos legislativos que
protejam essas minorias.
Logo, faz-se imprescindível a compreensão da manifestação da
sexualidade como uma característica humana plural, e não mais como um
padrão, não havendo, portanto, espaço para a hostilização ou condenação frente
aos diversos. Assim, através da proteção estatal e da mudança de perspectiva
ideológica haverá o espaço para a alteridade e a construção de um país que
desenquadrou a homossexualidade como uma doença há mais de três décadas.

REFERÊNCIAS

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homossexuais e transexuais. São Paulo: Edições Inteligentes, 2003.

BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos de personalidade. 8. ed. São Paulo:


Saraiva, 2015

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Paulo: Autêntica, 2010.

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(Re)pensando a Pesquisa Jurídica. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015
352

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HERNANDES, Bruna Molina. Discriminação Homofóbica e a Lei Estadual


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Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do
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OLIVA, Thiago Dias. Minorias sexuais e os limites da liberdade de


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VILELA, Soraia. Violência contra pessoas LGBT. GOETHE-INSTITUT


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https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/fok/vio/20824652.html. Acesso em: 07 out.
2019
353

Grupo de Trabalho:

DIREITO DO TRABALHO E PROCESSO DO


TRABALHO
Trabalhos publicados:

100 ANOS OIT – CONTRIBUIÇÃO DA MULHER NO MERCADO DE


TRABALHO.

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA DA SEGURANÇA DO TRABALHO: O


CAPITAL HUMANO COMO PRIORIDADE LEGISLATIVA

A REFORMA NA GRATUIDADE DA JUSTIÇA TRABALHISTA SOB A


PERSPECTIVA DO ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA À LUZ DA


CONVENÇÃO 94 DA OIT

A TUTELA DOS DIREITOS TRABALHISTAS DO TELETRABALHADOR, O


PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E A
RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR NOS CONTRATOS DE
TRABALHO APÓS A REFORMA TRABALHISTA (LEI Nº 13.467/2017)

ASPECTOS TRABALHISTAS DOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS:


CONSEQUÊNCIAS DO ACIDENTE DE TRABALHO NA RELAÇÃO JURÍDICA
DE EMPREGO

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ASSÉDIO MORAL E O MEIO AMBIENTE


LABORAL: BREVE ANÁLISE SOBRE OS TRANSTORNOS MENTAIS

DANO EXTRAPATRIMONIAL TRABALHISTA: ENTRE A ATECNIA


LEGISLATIVA E A INCONSTITUCIONALIDADE

ENTRE OS CICLOS DO CAPITAL E OS DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE


DA RESPONSABILIDADE NAS TERCEIRIZAÇÕES TRABALHISTAS DA
AMÉRICA LATINA

TELETRABALHO EM UM MEIO AMBIENTE LABORAL SAUDÁVEL COMO


DIREITO FUNDAMENTAL

TRABALHO NA ERA DIGITAL: VIAS PARA PENSAR A


INFOSSUBORDINAÇÃO

VALORIZAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA COMO OPÇÃO PARA


MELHORIA DO AMBIENTE NEGOCIAL NA REFORMA DO JUDICIÁRIO E NA
REFORMA TRABALHISTA
354

100 ANOS OIT – CONTRIBUIÇÃO DA MULHER NO MERCADO DE


TRABALHO.
ILO 100 YEARS - WOMAN'S CONTRIBUTION IN THE LABOR MARKET.

Carolina de Bortoli Garcia


Orientador(a): Guilherme Rocha

Resumo: A Organização Internacional do Trabalho (OIT) completa, em 2019,


100 anos de existência. Nesse contexto, o presente artigo apresenta um
apanhado histórico da Organização das Nações Unidas, e na sequência recai
sobre princípios e objetivos relativos à mulher no mercado de trabalho.
Especificamente, em relação às mulheres aborda-se o início da Revolução
Industrial, como primeira manifestação referente à desigualdade de gênero, bem
como o estado da arte sobre assuntos relevantes, como desigualdade salarial.
O contexto da temática tem como plano de apoio o princípio da igualdade. O
método de pesquisa adotado é o hipotético-dedutivo, e o trabalho foi executado
mediante instrumento qualitativo e ampla pesquisa bibliográfica, voltada à
revisão de literatura sobre o papel da OIT em relação às mulheres.
Palavra chave: Mulheres. Mercado de Trabalho. Desigualdade Salarial.

Abstract: The International Labor Organization (ILO) celebrates its 100th


anniversary in 2019. In this context, this article presents an overview of the United
Nations, and follows on principles and objectives related to women in the labor
market. Specifically, in relation to women, the beginning of the Industrial
Revolution is approached, as the first manifestation regarding gender inequality,
as well as the state of the art on relevant issues, such as wage inequality. The
context of the theme is based on the principle of equality. The research method
adopted is the hypothetical-deductive, and the work was carried out through a
qualitative instrument and extensive bibliographic research, aimed at reviewing
the literature on the role of the ILO in relation to women.
Keyword: Women. Labor market. Wage inequality.

INTRODUÇÃO

O direito internacional do trabalho, foi um dos organismos internacionais,


fundado após a Primeira Guerra Mundial, com o princípio de que a paz universal
permanente só pode basear-se na justiça social, promovendo oportunidades
entre homens e mulheres para fins trabalhista, estabelecendo um trabalho
decente, dos direitos humanos, reconhecendo as desigualdades sofridas pelas
mulheres no mercado de trabalho. Desde o início da humanidade devido às
diferenças biológicas entre homem e mulher sempre existiu distinções na divisão
de trabalho. A Revolução Industrial, no entanto, foi a exploração do trabalho
feminino, com a consolidação do capitalismo pela industrialização, pois as
mulheres eram submetidas a aceitar os salários baixos, que não era nem a
metade dos salários pagos aos homens, sendo assim, vantajoso contratar a mão
de obra feminina. Devido a esses fatos, mulheres foram à luta por melhores
condições de trabalho e também a reivindicações por igualdade dos direitos
355

trabalhistas. Sendo reconhecido pelas organizações internacionais,


especialmente a OIT, deve ser feito pagamento justo as mulheres, trazendo
benefícios ao longo de suas vidas, além de empoderar, a igualdade salarial vai
impactar outros objetivos.
O objetivo deste artigo, é mostrar que às desigualdades esta sendo
debatidas pelas organizações internacionais, e que a projetos para que tenha
esse desempenho até 2030, pois a contribuição da mulher no mercado de
trabalho é importante para o desenvolvimentos dos países, que os países
subdesenvolvidos têm mais tendência em delimitar essas situações, pois os
países desenvolvidos G7 ainda debatem para que isso mude mundialmente. O
intuito também é mostrar que aos longos do tempo mulheres luta pela igualdade,
e não apenas pela igualdade salarial e pelo direito trabalhista.
Este trabalho adota o método hipotético-dedutivo e foi desenvolvido a
partir de instrumento qualitativo. Realizou-se ampla pesquisa bibliográfica,
voltada à revisão de literatura sobre o papel da Organização Internacional do
Trabalho em relação às mulheres.

1. HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DA OIT

Em 1899, aconteceu a primeira Conferência Internacional da Paz tinha


como intuito elaborar resoluções para os conflitos de maneira pacífica, prevenir
guerras e codificar as regras de guerra. A Liga das Nações foi fundada após a
Primeira Guerra Mundial, através do Tratado de Versalhes em 1919, cujo seu
papel seria assegurar a paz entre os países. Porém, deixou de existir devido à
impossibilidade de cumprir seu papel de evitar a Segunda Guerra Mundial.
Durante a Segunda Guerra Mundial, foram necessárias diversas reuniões e anos
de planejamento para elaboração da ONU, quando os países representantes
assumiram o compromisso de seus governos continuariam lutando contra as
potências do Eixo durante a Guerra, foi elaborada a Carta das Nações Unidas
com os principais objetivos de estabelecer a defesa dos direitos fundamentais
do direito do ser humano, garantir a paz mundial, colocando-se contra qualquer
tipo de conflito armado, busca de mecanismos que promovam social das nações
e criação de condições que mantenham a justiça e o direito internacional. Em
1945, começou a existir oficialmente a Organização das Nações Unidas, como
uma segunda tentativa de criar uma união de nações com o propósito de
estabelecer relações amistosas entre os países.
Criada em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, a Organização
Internacional do Trabalho, é um dos organismos internacionais, fundado em
atendimento ao Tratado de Versalhes. A OIT atuou como uma agência ligada à
Liga das Nações, entretanto, após a Segunda Guerra Mundial, com a
desagregação da Liga das Nações, a partir de 1945 a OIT passou a integrar o
Sistema ONU.
A Organização Internacional do Trabalho funda-se no princípio de que a
paz universal e permanente só podem basear-se na justiça social. Tem como
princípios promover oportunidade para que homens e mulheres tenham local
adequado para fins trabalhistas, onde possam estabelecer um trabalho decente
e produtivo, com liberdade, equidade, igualdade e dignidade. O intuito é
promover garantias fundamentais, redução das desigualdades sociais e
desenvolvimento sustentável. A OIT é constituída por representantes do
governo, das organizações de empregadores e das organizações de
356

trabalhadores que participam em situação de igualdade, de uma organização


tripartite.
A criação da Organização Internacional do Trabalho, passou a disseminar
mundialmente, a idéia do trabalho e justiça social. Ao verso sobre a
internacionalização do Direito do Trabalho, Arnaldo Sussekind contextualiza que:

A Primeira Guerra Mundial produziu profunda modificações na posição


e no peso da classe trabalhadora das potências aliadas. A trégua social
e cooperação que se estabeleceu na Europa ocidental entre os
dirigentes sindicais e os governantes, os grandes sacrifícios
suportados especialmente pelos trabalhadores e o papel que
desempenharam no desenlace do conflito, as promessas dos homens
políticos de criarem um mundo novo, a pressão das organizações
obreiras para fazer com que o Tratado de Versalhes consagra as suas
aspirações de uma vida melhor, as preocupações suscitadas
revolucionárias existentes em vários países, a influência exercida pela
Revolução Russa de 1917, foram fatores que deram um peso especial
às reivindicações expressaram-se, tanto em ambos os lados do
Atlântico como em ambos os lados da linha de combate, inclusive
durante os anos de conflito mundial. Ao final da guerra, os governos
aliados, e principalmente os governos Francês e Britânico, elaboraram
projetos destinados a estabelecer, mediante o tratado de paz uma
regulamentação internacional do trabalho. 1

Próximo do fim da Primeira Guerra Mundial, foi criada a Conferência de


Legislação Internacional do Trabalho e a cada dois anos, a Conferências aprova
os programas bienais de trabalho e orçamento da Organização financiada pelos
Estados Membros. Tem o intuito de adotar resoluções que fornecem orientações
para a política geral e atividades futuras da OIT, pela qual questões sociais e
trabalhistas são importantes para o mundo inteiro, são debatidas com total
liberdade. Eles estudam a evolução do progresso social no mundo uma delas
são “Por uma globalização justa: Criar oportunidades para todos” (2005) 2.
Na visão dos membros da OIT precisa ser elaboradas técnicas para
realizar uma série de mudanças coordenadas de natureza diversa, que vão
desde das reformas de determinadas partes do sistema econômico quanto o
reforço da governança em escala total.
O propósito do progresso social é por um processo de globalização que
coloquem os seres humanos em primeiro lugar, respeito a dignidade e a
igualdade entre si, foi incluído a necessidade de regras da economia global que
tem o dever de oferecer a igualdade de oportunidade e de acesso, para um
desenvolvimento e reconhecer as diferenças e o dever de corrigir as
desigualdades que existe entre os países e os gêneros.

Os benefícios da globalização têm sido distribuídos desigualmente,


tanto nos países como entre eles. Há uma crescente polarização entre
ganhadores e perdedores [...] A mudança estrutural, sem dispositivos
sociais e econômicos adequados ao ajuste, tem produzido incerteza e
insegurança para trabalhadores e empresas em toda parte, tanto no
Norte como no Sul. A mulher , povos indígenas e o trabalhador pobre
sem qualificações e patrimônio estão entre os mais vulneráveis. O

1 SUSSEKIND, Arnaldo. Direito Internacional do Trabalho. 3. ed. São Paulo: Ltr, 2000.

2OIT, Organização Internacional do Trabalho. A Fair Globalization. Creating Opportunities


for All.. Genebra. 2005
357

desemprego e o subemprego continuam inflexíveis e persistentes


realidades para a maioria da população mundial[...] O desequilíbrio
entre a economia e a sociedade politicamente organizada está pondo
em xeque a responsabilidade democrática. 3

Conforme o Decreto n. 62.150, de 19.1.68 Artigo 1° da Convenção sobre


a Discriminação no Emprego e Ocupação define a discriminação como:

Qualquer distinção, exclusão ou preferência feita com base na raça,


cor,sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que
tem como efeito anular ou prejudicar a igualdade de oportunidade no
emprego ou na ocupação[...] Qualquer outra distinção, exclusão ou
preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de
oportunidades ou tratamentos em matéria de emprego ou profissão
que poderá ser especificada pelo membro interessado depois de
consultadas a organizações representativas de empregadores e
trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos
adequados.4

O desenvolvimento da sociedade moderna visa a melhorar os


mecanismos de interação humana, o alinhamento da diferenciação social, a
redução de todas as formas de desigualdade e a eliminação da
discriminação. No mercado de trabalho, podem-se enfrentar as formas de
desigualdade e discriminação contra os trabalhadores com base no gênero,
idade e saúde. A solução para esses problemas precisa ser implementada em
nível internacional por meio das disposições de criação e ratificação e
convenções de igualdade nos níveis estadual e regional. A política social e
demográfica, a assistência do emprego do governo deve evitar quaisquer formas
de discriminação. Isso requer a implementação de mudanças institucionais no
mercado de trabalho. Com isso, observam-se algumas das disposições e
recomendações práticas para melhorar a política de emprego do estado,
especialmente no que diz respeito à eliminação da desigualdade de gênero e
discriminação contra os trabalhadores com base na idade e saúde indicadores.5
Especificamente em relação às mulheres, a OIT promove pesquisas
referentes à desigualdade de gênero, salarial e a contribuição da mulher no
trabalho. De acordo com o relatório Perspectivas sociais e de emprego no
mundo: progresso global nas tendências de emprego feminino 2018:

A taxa global de participação das mulheres na força de trabalho –


48,5% em 2018- permanece 26,5 pontos percentuais abaixo da taxa
dos homens. Além disso, a taxa de desempenho feminino em 2018 –
6,0%- é cerca de 0,80 pontos percentual maior que a dos homens.
Esses dados indicam que, para cada dez homens que trabalham
apenas seis mulheres estão empregadas. 6

3 OIT, Organização Internacional do Trabalho. A Fair Globalization. Creating Opportunities


for All.. Genebra. 2005
4 OIT, Organização Internacional do Trabalho.Convenção N.111. DECRETO n. 62.150, de

1968.
5 GUIMARÃES, N, A. Os desafios da equidade: reestruturação e desigualdades de gênero

e raça no Brasil. Cadernos Pagu, 2002, Nº 17-18 Páginas 237 – 2664.


6 OIT, Organização Internacional do Trabalho. Perspectivas sociais e de emprego no

mundo:progresso global nas tendências de emprego feminino 2018. Genebra. 2018.


358

O estudo também mostra que as mulheres enfrentam desigualdades


significativas na qualidade do emprego que possuem, em comparação aos
homens, 16,6% das mulheres têm mais chances de serem trabalhadoras
familiares não remuneradas, que ajudam em um negócio doméstico, muitas
vezes em condições vulneráveis e sem registro. O percentual em relação aos
homens é de 6,4%, menos que o dobro do registro entre as mulheres. As
diferenças nas taxas de participação no emprego entre homens e mulheres estão
se reduzindo entre países em desenvolvimento e os desenvolvidos, enquanto
continua aumentar nos países emergentes.

2. A MULHER NO MERCADO DE TRABALHO

Verifica-se que a luta das mulheres contínua para redução das


desigualdades no mercado de trabalho. Todos os dias mulheres estão lutando
para conseguir o seu espaço na sociedade. O sexo é umas das características
que primeiro identifica o ser humano e que define diferenças que podem interferir
na execução, por motivos físicos e sociais.
Diversos organismos internacionais definiram a igualdade entre os sexos
como relacionada aos direitos humanos, especialmente aos direitos da mulher,
e ao desenvolvimento econômico. O ingresso da mulher no mercado de trabalho
é uma transformação estrutural na composição da força de trabalho e que é
responsável por criar ambiente favorável para outras mudanças na situação de
desigualdades de oportunidade.
A Revolução Industrial foi como para toda história humana, um marco para
trabalho feminino, pois as atividades desempenhadas pelas mulheres eram
consideradas de menor relevo. Nesta época o trabalho da mulher foi muito
utilizada e considerada mais fraca para o trabalho braçal, poderia contar com
instrumentos que fariam a produção depender menos força física, principalmente
na operação das máquinas. Porém os novos fatores introduzidos pela
industrialização, a força de trabalho de ambos os sexos foi afetada. Com a
consolidação do sistema capitalista, havia uma preferência por parte dos
empresários em relação às mulheres trabalhando nas indústrias, porque devido
à necessidade, elas tinham que aceitar salários inferiores aos homens para
executarem os mesmos serviços que o homem. Devido a esses fatos, muitas
delas passaram a lutar por melhores condições de trabalho e pela equiparação
de salários. Apesar de toda luta das mulheres, ocorrem pequenas modificações
de valores e conceitos, e a mulher no mercado de trabalho ainda permanece
marcada pela desigualdade.
A discriminação da qual a mulher ainda segue sendo vítima em diversas
regiões do mundo deve ser eliminada, segundo pesquisas a lacunas entre os
gêneros, muitas mulheres ainda são menos propensas a tipos de serviços, não
gozam os mesmo direitos e benefícios que os homens. O mercado brasileiro
ainda mostra que mulheres ainda têm um longo caminho pela frente, foram
lançadas pelas Organizações Internacionais OIT, ONU Mulheres e OCDE e
buscam mobilizar ações para que consigam alcançar a igualdade salarial entre
homens e mulheres em 2030. Segundo a Coalizão Internacional pela Igualdade
Salarial (EPIC, na sigla em inglês para ‘Equal Pay International Coalition’):

Foi lançada na América Latina e no Caribe [...]. A iniciativa tem como


objetivo mobilizar diversos atores em diferentes países para reduzir a
359

desigualdade salarial entre mulheres e homens, que é de cerca de 15%


na região.7

O objetivo da EPIC é formular estratégias e ações da igualdade salarial


em que envolvem entidades governamentais, como os ministérios responsáveis
por trabalho, emprego e gêneros. Eles estão determinados a garantir que todos
os seres humanos possam realizar o seu potencial em dignidade e igualdade,
em um ambiente saudável, promovendo a igualdade de gênero e o
empoderamento das mulheres e meninas. A disparidade salarial entre homens
e mulheres é a diferença nos salários médios pagos a representante do sexo
masculinos e feminino. È influenciadas por múltiplos motivos, pois as mulheres
tendem-se diminuir seus honorários por ser consideradas mais frágeis.
Segundo a OIT, o pagamento justo para mulheres se traduz em benefícios
ao longo de suas vidas, além de empoderar a mulher, a igualdade salarial vai
impactar outros objetivos, como promover sociedades inclusivas, reduzir a
pobreza, criar condições de trabalho decente. Essas desigualdades são
inaceitáveis do ponto de vista moral e insustentáveis. O necessário para que
mude essa situação é uma reforma de determinadas partes do sistema
econômico global, isso deve ser conseguido no contexto de economias e
sociedades abertas.
A diretora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka,
afirmou que “não há justificativa para um salário desigual para mulheres quando
seu trabalho tem o mesmo valor que o de homens. Essa injustiça tem sido
invisível por muito tempo, mas pode ser modificada8.
A então um planejamento para que essas lacunas sejam preenchidas,
estudos revelam que para cessar essa desigualdade poderia levar em torno de
100 anos, porém as Organizações Internacionais, tem como princípios
estabelecer essa igualdade, daqui 11 anos. Prevendo um mundo em que cada
país desfrute de um crescimento econômico sustentável, incluindo trabalho de
igual valor, o que deverá ser conduzido pela realidade.

CONCLUSÃO

No decorrer do presente estudo pôde-se mostrar o quanto a Organização


Internacional do Trabalho tem contribuído para melhorias de direito humanos e
direito da mulher, porém a posicionamentos que ainda devem ser impostas e
que a muitas melhorias a ser adotada referente às mulheres, especialmente as
desigualdades de gênero. Verificou-se que a partir da Revolução Industrial o
trabalho da mulher passou a ser explorada pelo trabalho feminino, pois a mão
de obra era considerada mais "barata" e que as mulheres eram obrigadas a
aceitar os salários. Foi nesta época que as mulheres manifestaram pelos seus
direitos.
Apesar do reconhecimento da igualdade de direito e obrigações entre
homem e mulher, reconheceu-se que existem fatores biológicos e sociais que
diferenciam a mulher e o homem. Estudos demonstram que ainda as mulheres

7 OIT, Organização Internacional do Trabalho.Coalizão Internacional pela Igualdade Salarial


é lançada na América Latina e no Caribe. 2018.
8 OIT, Organização Internacional do Trabalho.OIT e parceiros lançam iniciativa pela

igualdade salarial entre homens e mulheres.2017.


360

são menos propensas a tipos de serviços, que a proporcionalidade da mulher


ficar desempregada é muito mais do que os homens.
As mulheres que por mais que tenham um estudo superior, não consegue
alcançar a mesma base salarial que os homens, muitas são fragilizada por serem
mães, e precisar cuidar dos seus filhos, a muitos casos que a mulheres
trabalham sem um registro conforme lei trabalhista, muitas não tem um serviço
em local adequando e totalmente vulneráveis. Tende- se que a mulher trabalhe
a serviços domésticos, e não remuneráveis. Evidente que ainda hoje existem
posicionamentos machistas, e que lacunas devem ser preenchidas, trazendo
então as responsabilidades para as organizações internacionais com projetos
para adequar essas situações, que isso só tem a prejudicar economicamente os
países.
O princípio das organizações é ter resultados até 2030 para que consiga
proporcionar empoderamento as mulheres e meninas, e que com a contribuição
das mulheres, para que reduza a pobreza nos países, que traga
economicamente frutos aos países, apesar de ainda os países emergentes não
conseguir adequar essa igualdade entre as mulheres os homens, é possível que
os subdesenvolvidos tenha mais facilidade para essa contribuição, então o
projeto estabeleci que daqui dois anos tenha mudado essa "diferença" entre as
mulheres.

REFERÊNCIAS

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SUSSEKIND, Arnaldo. Direito internacional do trabalho.3. ed. São Paulo: Ltr,


2000.
362

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA DA SEGURANÇA DO TRABALHO: O


CAPITAL HUMANO COMO PRIORIDADE LEGISLATIVA
THE IMPORTANCE OF WORK SAFETY CULTURE: HUMAN CAPITAL AS A
LEGISLATIVE PRIORITY

Michele Aparecida Gonçalves Leme


Sabrina Moschini

Resumo: O objetivo é discutir porque o Brasil atualmente enfrenta altos índices


de acidentes e doenças decorrentes do exercício do trabalho, mesmo possuindo
diversas leis a respeito do assunto. Fatidicamente ocupa a quarta posição no
ranking dos países que mais ocorrem acidentes decorrentes do trabalho,
ressalta-se que todos os outros países deste ranking também estão em
desenvolvimento. Diante deste cenário o ordenamento jurídico brasileiro sempre
buscou legislar amplamente para que a saúde e o bem estar dos trabalhadores
fosse colocado em pauta de maior importância, com ênfase na dignidade da
pessoa humana, entretanto, nem sempre sendo eficiente, por diversos fatores,
que implicam, desde a não aplicação das leis e programas pelos detentores das
direções das organizações, como, a incompreensão por parte dos trabalhadores
que também integram o conjunto de ações para a mitigação de doenças e
acidentes do trabalho. Por tudo isso, se fez necessário uma maior interferência
do governo para que o país possa restabelecer parâmetros de um ambiente
laboral saudável e seguro, com a implantação de novos sistemas de controle
que integram diversas informações da vida laboral dos funcionários e do histórico
das empresas.
Palavras-chave: Segurança do Trabalho. Acidentes. Dignidade da Pessoa
Humana.

Abstract: Brazil currently faces high rates of accidents and diseases arising from
work, even though it has several laws on the subject. Fatidicly occupies the fourth
position in the ranking of countries that most occur accidents due to work, it
should be noted that all other countries in this ranking are also underdeveloped.
Given this scenario, the Brazilian legal system has always sought to legislate
broadly so that the health and well-being of workers is placed on a more important
agenda, with an emphasis on the dignity of the human person, however, not
always being efficient, due to several factors that imply , from the non-application
of the laws and programs by the managers of the organizations, such as the lack
of understanding on the part of the workers who are also part of the set of actions
for the mitigation of diseases and accidents at work. For all this, it was necessary
to increase government interference so that the country can reestablish
parameters of a healthy and safe working environment, with the implementation
of new control systems that integrate diverse information of the employees' work
life and the history of the companies.
Keywords: Occupational Safety. Accidents. Dignity of the Human Person.

INTRODUÇÃO

O trabalho faz parte da vida do ser humano, pois auxilia no


desenvolvimento individual e social, é a força motriz que alavanca a sociedade,
363

pessoas passam grande parte de suas vidas trabalhando, desta forma, constata-
se que a vida laboral é fundamental para o ser humano.
Dada essa importância do trabalho na vida das pessoas fez-se com que
o ordenamento jurídico demandasse maior atenção, sendo assim, além de
diversas leis voltadas para a relação de trabalho, foram elaboradas Portarias,
Normas e programas para a promoção da saúde e segurança no ambiente de
trabalho.
A Segurança do Trabalho e a Higiene Ocupacional formam um conjunto
de medidas e normas de segurança que objetivam estabelecer parâmetros para
a promoção da saúde física e mental dos trabalhadores.
Imprescindível destacar que os cuidados com o trabalhadores vão muito
além da relação de emprego e seus direitos, ou seja, tem um reflexo direto na
vida como um todo, e impactam de forma expressiva sobre a saúde física e
mental daquele que o faz. Portanto, esta preocupação do legislador com os
trabalhadores atinge diversas áreas sociais.
Desta forma, este trabalho tem por objetivo demonstrar que o legislador
sempre procurou oferecer um arcabouço jurídico que pudesse auxiliar no
desenvolvimento das relações de trabalho, priorizando a dignidade da pessoa
humana e ao mesmo tempo, acompanhar a evolução das organizações, para
que estas pudessem oferecer a seus funcionários melhores condições,
ambientes seguros e saudáveis para o bom desenvolvimento da vida laboral.

1. UM POUCO DO HISTÓRICO DO TRABALHO, DA SEGURANÇA DO


TRABALHO E SUA RELAÇÃO COM A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O trabalho é fundamental para qualquer sociedade e seus membros, tanto


de forma coletiva quanto individual. A atividade laborativa vai muito além de uma
fonte de renda, do sustento e da sobrevivência, o trabalho deve proporcionar
também realizações para os er humano. Pode-se pelo trabalho suprir muitas
necessidades materiais, proporcionar conforto, realizar sonhos, ademais
proporcionar referência ao ser humano e seus pares, familiares, porque é usual
à pessoa se apresentar e dizer o nome e logo após sua titulação ou profissão.
O ordenamento jurídico brasileiro reconhecendo a extrema importância do
trabalho e principalmente do trabalhador, teve especial preocupação com as
questões relacionadas à relação de trabalho, pois na própria Constituição
Federal de 1988 em seus dispositivos nos artigo 1º inciso IV e artigo 7º incisos
I ao XXXIV estão expressos os direitos referentes ao trabalhador, bem como
questões contratuais de forma a garantir a Dignidade da Pessoa Humana acerca
do trabalho.
Vale ressaltar que a Dignidade da Pessoa Humana não é apenas uma
condição, mas sim um Princípio Fundamental Constitucional, como conceituado
por Moraes:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se


manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito
por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo
invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que,
somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício
dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária
estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
(MORAES, 2002. p. 128).
364

Todavia, não foi sempre assim, a partir da primeira Revolução Industrial


período de 1760 a 1840, marco mais expressivo da relação de empregado e
empregador tudo era muito novo e difícil, pois a única preocupação era com a
produção em grande escala e a ferramenta mais importante, no caso, as
pessoas, eram ignoradas e substituídas ao apresentarem qualquer problema, a
saúde dos funcionários não importava para o sistema capitalista de produção,
pelo fato de se ter abundante mão de obra à disposição dos empregadores.
Com a substituição dos trabalhos artesanais e a criação das máquinas de
tecelagem e a vapor, as instalações das fábricas eram em ambientes
improvisados e precários, pois não proporcionavam conforto aos trabalhadores
e consequentemente causava diversas doenças e acidentes.
Homens, mulheres e crianças que trabalhavam mais de 14 (quatorze)
horas diárias em péssimas condições como locais com iluminações inadequada,
extremamente abafados e sujos, com máquinas desprovidas de qualquer
sistema de segurança em seu funcionamento, portanto, nasce então com a
revolução os altos índices de doenças e acidentes oriundos do trabalho.

2. A REGULAMENTAÇÃO DA SAÚDE DO TRABALHADOR

As primeiras análises relacionados a saúde dos trabalhadores não nasceu


com a Revolução Industrial, mas no período antigo, datando aproximadamente
de 384-322 a.C., na Grécia, quando Aristóteles observou as enfermidades dos
trabalhadores nas minas, mas foi Hipócrates, o pai da medicina 460-375 a.C.,
quem finalmente pode se referir às mesmas, estudando as origens das doenças
causadas pelo trabalho nas minas de estanho.
Já em 1700 na Itália foi publicado um livro que deu marco ao início da
segurança e saúde dos trabalhadores “De Morbis Artificium Diatriba” – As
doenças dos Trabalhadores, autoria do Médico Italiano Bernardino Ramazzini
(1633-1714), devido a este trabalho foi considerado o “Pai da Medicina do
Trabalho”. Nesta obra o autor descreve diversas doenças e suas relações com
o trabalho.
As primeiras leis voltadas à saúde do trabalhador foram feitas em 1802
quando se regulamentou as condições de trabalho dos aprendizes, conforme
explica Martins:

A Lei de Peel, de 1802, na Inglaterra, pretendeu dar amparo aos


trabalhadores, disciplinando o trabalho dos aprendizes paroquianos
nos moinhos e que eram entregues aos donos das fábricas. A jornada
de Trabalho foi limitada em 12 horas, excluindo-se os intervalos para
refeição. O trabalho não poderia iniciar antes das 6 horas e terminar
após as 21 horas. Deveriam ser observadas normas relativas à
educação e higiene. Em 1819, foi aprovada lei tornando ilegal o
emprego de menores de 9 anos. O horário de trabalho do trabalho dos
menores de 16 anos era de 12 horas diárias, nas prensas de algodão.
Na França, em 1813, foi proibido o trabalho dos menores em minas.
Em 1814, foi vedado o trabalho aos domingos e feriados. Em 1839, foi
proibido o trabalho de menores de 9 anos e a jornada de trabalho era
de 10 horas para os menores de 16 anos. Martins (2017,p.51)

Outra lei que teve grande impacto na vida dos trabalhadores foi a “Factory
Act” Lei das Fábricas do ano de 1833, esta lei teve maior visão para a promoção
365

da saúde dos trabalhadores, principalmente das empresas têxteis, de acordo


com o apresentado por Nogueira:

Proibia o trabalho noturno aos menores de 18 anos e restringia as


horas de trabalho destes a 12 horas por dia e 69 por semana; as
fábricas precisavam ter escolas que deveriam ser frequentadas por
todos os trabalhadores menores de 13 anos; a idade mínima para o
trabalho era de 9 anos, e um médico deveria atestar que o
desenvolvimento físico da criança correspondia a sua idade
cronológica.
Nogueira (1979,p.11)

Pelo exposto se evidência o início de um novo tempo, pois a partir desse


período novas legislações foram surgindo e a saúde e proteção dos
trabalhadores foi ganhando espaço em meio ao esmagador sistema produtivo
capitalista.
A primeira Constituição a tratar dos direitos sociais foi a do México em
1917, que estabelecia em seu artigo 123 a proibição de trabalho de menores de
12 anos, limitava a carga horária dos menores de 16 anos em 6 horas diárias,
jornada noturna de no máximo 7 horas, descanso semanal, proteção a
maternidade, salário mínimo, direito de sindicalização e de greve, indenização
de dispensa, seguro social e proteção contra acidentes de trabalho.
Em 1919 durante a Conferência da Paz, foi criada a Organização
Internacional do Trabalho OIT com base no princípio de que a paz universal e
permanente somente poderia ter como pilar a justiça social. A OIT possui uma
estrutura tripartite, onde representantes dos empregados e empregadores e o
governo estão no mesmo nível de importância e igualdade.
No Brasil a preocupação com a segurança e saúde dos trabalhadores
iniciou-se quando o país recebia influências da Europa, principalmente por
possuir imigrantes residindo no território nacional, sua legislação voltada ao
assunto teve marco em 1919 quando foi criada a Lei de Acidentes do Trabalho,
passando a ser obrigatório o seguro contra o risco profissional, já em 1923
ocorreu a criação da Caixa de Aposentadoria e pensões para os empregados
das empresas ferroviárias, início da Previdência Social.
Em 1930 Cria-se o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio MTE que
seria responsável por iniciativas e fiscalizações inerentes ao trabalho e ao
trabalhador. Decorridos 4 (quatro) anos também sob responsabilidade do
Ministério do Trabalho surge a Inspetoria de Higiene e Segurança do Trabalho,
que ao longo dos anos, passou a Departamento de Segurança e Saúde no
Trabalho (DSST) em nível federal, e Superintendência Regional do Trabalho e
Emprego (SRTE), em esfera estadual.
Passados 09 (nove) anos teve-se a Lei mais relevante em matéria do trabalho,
surge a Consolidação das Leis do Trabalho CLT de 1943 que em seu Título II,
Capítulo V, trata de segurança e saúde do trabalho.
Já em 1966 surge a renomada Fundação Jorge Duprat Figueiredo de
Segurança e Medicina do Trabalho conhecida por FUNDACENTRO, que de
forma atuante desenvolve pesquisas científicas e tecnológicas referente a saúde
dos trabalhadores.
Entre 1972 a 1974 o governo lança o Programa Nacional de Valorização
do Trabalhador que teve por objetivo criar formas de aprimoramento e proteção
do trabalhador, como oferecimento de treinamentos, estabelecimento de um
366

Sistema Brasileiro de Ocupação, e a preparação de técnicos em higiene e


segurança do trabalho, entre outros.
Em 1978 criam-se as Normas Regulamentadoras - NR’s que atualmente
são trinta e sete normas, pois desde sua criação, as mesmas são atualizadas
constantemente, acompanhando o processo evolutivo e a diversificação dos
trabalhos, estas objetivam o direcionamento e regulamentam as atividades a
serem desenvolvidos em matéria de gestão de Segurança e Medicina do
Trabalho.
Com sua ampla previsão social em 1988 foi promulgada a Constituição
Federal, que trata em seu artigo 7° sobre direitos dos trabalhadores urbanos e
rurais e em seu inciso XXII especificamente busca a redução dos riscos inerentes
ao trabalhador.
Por fim estamos diante do atual cenário da lei nº 13.467 de 2017,
conhecida como a reforma trabalhista, responsável por fazer mudanças
significativas na CLT, alterando, criando e revogando mais de cem artigos e
parágrafos, mas é relevante registrar que seguem vigentes as disposições da
CLT que vedam mudanças unilaterais nos contratos de trabalho, bem como
fixam limites à restrição dos direitos trabalhistas.

3. SEGURANÇA DO TRABALHO, HIGIENE OCUPACIONAL E MEIOS DE


CONTROLE LEGAIS

A Segurança do Trabalho e a Higiene Ocupacional são medidas e normas


de segurança que visam estabelecer parâmetros para a promoção da saúde
física e mental dos trabalhadores, que tem por objetivo proporcionar um
ambiente de trabalho seguro e saudável, levando em consideração o processo
produtivo, as tecnologias empregadas, a exposição dos trabalhadores aos
agentes prejudiciais à saúde e como tudo isso pode influenciar na vida dos
funcionários e seus reflexos na sociedade.
A gestão em segurança e saúde do trabalho é implantada nas empresas
pelo Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho - SESMT
trata-se de uma equipe de profissionais composta pelo Médico do Trabalho,
Engenheiro do Trabalho, Enfermeiro do Trabalho e o Técnico de Segurança do
Trabalho, estes profissionais analisam os casos concretos no ambiente laboral
e constantemente desenvolvem métodos e processos para evitar doenças e
acidentes decorrentes do trabalho.
Há dois fatores para ocorrência de um acidente, o primeiro é pelo ato
inseguro e o segundo é pela condição insegura.
Ato inseguro é todo aquele em que o funcionário por negligência,
imprudência ou imperícia causa lesão em si ou em outrem, simplesmente por
não se importar com questões de segurança, não utilizar equipamentos de forma
adequada e/ou desenvolver atividades sem estar habilitado.
Já a condição insegura é quando o ambiente do empregador propicia
condições que podem ocasionar acidentes, bem como, máquinas sem proteção,
não fornecimento de equipamentos de proteção individual EPI, lugares mal
iluminados dentre outros.
Para uma efetiva gestão em segurança dentro de uma empresa é
necessário a implantação de vários programas de segurança, porém tem-se os
imprescindíveis como o Programa de Prevenção dos Riscos Ambientais – PPRA
de acordo com o disposto na Norma Regulamentadora Nº 9 da portaria 3.214/78
367

e o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO conforme


disposto na Norma Regulamentadora N° 7 também da mesma portaria.
A segurança do trabalho não depende somente do empregador, qual tem
o dever de implantar os programas, fornecer, exigir e fiscalizar o uso dos EPI’s
mas também de uma forma conjunta com a participação dos empregados, pois
quando a empresa fornece determinado equipamento de proteção individual os
funcionários devem utiliza-los de forma correta. Ressalta-se ainda sua
participação na implantação da segurança, com a participação na Comissão
Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho, conhecida como CIPA de
acordo com a NR 5.
Mesmo com toda a preocupação do legislador em buscar constantemente
a criação de Leis, Normas e Portarias para a efetiva aplicação da Segurança do
Trabalho, os resultados se mostram insatisfatórios e ao mesmo tempo
alarmantes.
Segundo o Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho do
Ministério Público do Trabalho – MPT e OIT a cada 48 (quarenta e oito) segundos
ocorre um acidente de trabalho no Brasil1
De acordo com dados da OIT, o Brasil está entre os países que mais
matam por acidentes decorrentes do exercício do trabalho, ocupando a fatídica
4º (quarta) posição, ficando atrás dos líderes Indonésia em 3° (terceiro), Índia
em 2°(segundo) e China em 1º (primeiro), ou seja, destacando sua qualidade de
país subdesenvolvido2.
Constatamos que os brasileiros estão necessitados de maiores e mais
complexos programas de implantação e implementação em saúde e segurança
do trabalho, pois somente a elaboração e a outorga de Leis não fará com que o
país reduza seus altos índices de acidentes de trabalho, é indiscutível também
que no Brasil não se propaga a cultura prevencionista, tanto por parte do Estado,
do patronado quanto dos próprios funcionários, pois o que se propaga há muito
tempo é uma política coercitiva e punitiva tentando cumprir um papel que não
faz parte de seu escopo, em virtude de uma forma deturpada, busca impor de
modo ineficiente a cultura da segurança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que desde o início com a criação de diversas leis, o intuito


maior do lesgislador sempre foi atingir uma relação de trabalho mais legalizada,
segura, saúdavel fundamentada no princípio da diguinidade da pessoa humana.
Contudo, os empregadores não fizeram bom uso de todo o arsenal jurídico
disponível, muito menos dos itens que envolvem a saúde e a preservação no
meio ambiente de trabalho e os índices de acidentes só aumentaram refletindo
no aumento de processos trabalhistas.
O ideal era que o empregador fizesse bom uso de seu meio produtivo para
gerar riquezas ao país e ao mesmo tempo cultivar um ambiente de trabalho
seguro que mantivesse seus funcionários saúdaveis.

1Observatório Digital: https://observatoriosst.mpt.mp.br/. Acessado em 21/04/2019.


2FOLHA DE SÃO PAULO. Total de Acidentes de Trabalho no País Oculta Realidade.
Disponível em < https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/carreiras/2018/03/1961002-total-
de-acidentes-de-trabalho-no-pais-oculta-realidade.shtml >. Acesso em 21 de abril de 2019.
368

Nota-se também que na prática não há preocupação com o fator humano


para influenciar nas tomadas de decisões, indicando um ponto preocupante, pois
afinal a segurança é para a promoção da saúde de forma contínua e não
simplesmente para cumprir as leis.
Contudo, há outros entraves para a implantação da segurança, que vão
além do âmbito patronal, pois entre os próprios funcionários existe uma certa
resistência para aceitar e seguir protocolos de prevenção de acidentes do
trabalho e para fazer uso adequado de todos os equipamentos de proteção, tanto
individual quanto coletivo.
Não há uma cultura prevencionista de segurança e saúde no trabalho, e
sim, um receio de se ter prejuízos monetários e ações judiciais que
consequentemente oneram a saúde financeira das empresas.
Diante deste quadro, o Estado acaba por intervir para alcançar o mínimo
necessário para se ter uma vida laboral mais legalizada e segura, pois se antes
só incorreria em multa e autuação quando houvessem vistorias “in loco”, a partir
do e-Social não será mais assim, pelo fato de que toda vez que for informado
um dado divergente que aponte uma inconsistência, automaticamente será
gerado uma punição.

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Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.Vade Mecum / obra de autoria da
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370

A REFORMA NA GRATUIDADE DA JUSTIÇA TRABALHISTA SOB A


PERSPECTIVA DO ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
THE REFORM IN GRADUITY OF LABOR JUSTICE UNDER THE
PERSPECTIVE OF ACCESS TO JUSTICE AS A FUNDAMENTAL LAW

Fabiano Diniz de Queiróz Pilate


Elaine Dupas
Orientador(a): Ynes da Silva Félix

Resumo: Em novembro de 2017 entrou em vigor a Lei n.º 13.467/2017, também


conhecida como reforma trabalhista. Desde a sua aprovação pelo Congresso
Nacional o projeto suscitou em diversos pontos controversos, sendo um dos mais
polêmicos as inovações substanciais na dinâmica do instituto da Gratuidade da
Justiça em sede da Justiça do Trabalho. Embora a alteração tenha sido realizada
na justiça especializada, reverberou e atingiu diversas garantias e direitos
nacional e internacionalmente resguardados. Por conseguinte, revela-se
necessário analisar o impacto da referida mudanças na garantia do acesso à
justiça e na observância dos direitos fundamentais mais básicos, como o acesso
à tutela jurisdicional.
Palavras-chave: Reforma Trabalhista. Acesso à Justiça. Constitucionalidade.

Abstract: In November 2017 Law No. 13,467 / 2017, also known as labor reform,
came into force. Since its approval by the National Congress, the project has
raised at several controversial points, one of the most controversial being the
substantial innovations in the dynamics of the Institute of Free Justice in the Labor
Court. Although the change was made in the specialized court, it reverberated
and reached several national and international safeguards and safeguards. It is
therefore necessary to analyze the impact of such changes on ensuring access
to justice and on observance of the most basic fundamental rights, such as
access to judicial protection.
Keywords: Labor Reform. Access to justice. Constitutionality.

INTRODUÇÃO

A partir de 2016, o iniciou-se no Brasil uma crise econômica significativa,


esta teve como característica um forte declínio dos índices, observou-se a
retração do Produto Interno Bruto (PIB), a diminuição dos investimentos e
consequentemente a queda dos níveis de empregabilidade. Em março de 2017,
no auge da crise econômica, o nível de desemprego, de acordo com o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), chegou a 13,6%.
Nesse cenário, os diversos setores, sejam eles políticos ou econômicos,
mobilizaram- se para empreender uma série de mudanças que
proporcionassem o reaquecimento da economia e a recuperação do Brasil.
Uma das alternativas escolhidas como possível resposta para o problema foi a
que propunha a modernização da legislação trabalhista, em especial aquilo
contido na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O principal objetivo
daqueles que promoveram a reforma na legislação tinham como principal
objetivo diminuir o alto grau de intervenção estatal. A justificativa feita pelo
legislador reformista partia do pressuposto de que havendo maior facilidade de
contratação, os níveis de emprego aumentariam e, consequentemente, a
371

população, com maior quantidade de renda, injetaria por meio do consumo


milhares de reais que impulsionariam o crescimento econômico. Embora a
intenção aparentemente seja boa, a forma e os termos adotados na reforma
puseram em cheque uma série de direitos e prerrogativas, em âmbito material
e processual, que os trabalhadores possuíam.
Sem dúvidas o lobby de diversos setores, junto de sindicatos patronais
foi decisivo para acelerar a votação do projeto. A rapidez do processo legislativo
resultou em diversos problemas, já que não proporcionou o tempo necessário
para a discussão de alguns pontos que impactariam de forma considerável o
trabalhador brasileiro. A prática legislativa mal realizada deu ao texto um
número diverso de lacunas, inconsistências, omissões e inconstitucionalidades.
Dentre esses, se destaca as mudanças na dinâmica da assistência judiciária
gratuita no âmbito da justiça do trabalho. A mudança trazida pelos dispositivos,
790-B, 791-A e 844, § 2º da CLT, inseridos pela reforma impacta em demasia
o uso do instituto pelos trabalhadores, pois preveem casos em que será devido
o pagamento, mesmo sendo a parte hipossuficiente, de honorários
advocatícios, periciais, bem como das custas do processo.
Este trabalho pretende analisar a constitucionalidade das mudanças
realizadas no exercício da assistência judiciária, avaliando quais os impactos
que esta mudança implicarão ao acesso à justiça. Na primeira parte explanar-
se-á o teor das mudanças trazidas pela reforma. Na segunda, por sua vez,
analisaremos a posição de Mauro Cappelletti acerca do que se define como
acesso à justiça, avaliando o desenvolvimento da matéria em sede do
ordenamento jurídico brasileiro e como este se coloca como um direito
fundamental. Ao final, serão discutidos alguns dos pontos controvertidos que
são matéria do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.766),
ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR), onde é levantada a
inconstitucionalidade dos institutos da Lei n.º 13.467/2017 que alteram a
assistência judiciária gratuita.
Para a elaboração do presente, fez-se uso dos métodos indutivo e
dedutivo, onde se fez uso do levantamento e análise de material bibliográfico
diverso, bem como de material produzido pelos ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF) no julgamento da ADI 5.766.

AS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI N.º 13.467/2017

A reforma trabalhista foi desenvolvida na esteira de um projeto maior de


modernização das normas trabalhistas, tendo como objetivo precípuo a
flexibilização da relação de emprego, com a diminuição de direitos e garantias
em detrimento. (AQUINO, 2018).
Os artigos 790-B, 791-A e 844, § 2º da CLT foram elaborados nesse
sentido. O principal objetivo do reformador ao restringir as hipóteses de
gratuidade judiciária era diminuir drasticamente o número de reclamações
trabalhistas propostas e o efeito pretendido se observou. Em maio de 2018, de
acordo com o Tribunal Superior do Trabalho (TST), o número de ações
trabalhistas ajuizadas caiu em média 46%, em números isso significa 381.270
processos a menos.
A necessidade de se limitar a assistência judiciária gratuita vinha se
tornando cada vez mais imperiosa, visto que, do ponto de vista dos defensores
da reforma, existiam na Justiça do Trabalho diversos processos ajuizados com
372

pedidos total ou parcialmente infundados que se utilizavam da gratuidade


judiciária para tentar lograr algum êxito decorrente da má tutela jurisdicional. As
famosas “aventuras judiciárias” foram reiteradamente levantadas nos debates
durante a elaboração da Lei n. 13.467/2017. No entanto, conforme demonstra
o próprio TST, o número de ações judiciárias totalmente improcedentes não
chega a 6% do total de ações ajuizadas. (CUBAS, 2018).
Em se tratando da assistência judiciária gratuita, o Código de Processo
Civil possui em seu livro III, título I, capítulo II a seção IV que trata
exclusivamente do modo como a gratuidade irá se operar. Segundo o artigo 98
do CPC, toda pessoa, seja ela natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, que
seja insuficiente de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e
os honorários advocatícios tem direito à assistência judiciária gratuita. De
acordo com o § 1º do referido artigo, a gratuidade da justiça se estende desde
os custos com os selos postais aos honorários do advogado, do perito e do
intérprete. Além do previsto no CPC, cabe destacar o que disciplina a Lei n.º
5.584/1970, que trata especificamente da assistência judiciária no processo
trabalhista. Esta estabelece que o trabalhador que ganha até dois salários
mínimos faz jus à gratuidade judiciária. Ademais, consegue ser mais ampla que
o previsto no processo comum, pois não leva em consideração apenas o valor
bruto que o trabalhador que pleiteia a gratuidade aufere, mas sim a realidade
fática, garantindo a assistência judiciária gratuita aos trabalhadores que,
mesmo ganhando quantia superior ao máximo previsto pela lei, comprovem que
o pagamento das custas processuais prejudica o sustento próprio e o de sua
família.
Em relação às mudanças trazidas pela Lei n.º 13.467/2017, o artigo 790-
B prevê que os honorários do perito serão pagos pela parte sucumbente no
objeto da pericia, ainda que a parte seja beneficiária da assistência judiciária
gratuita e o artigo 791-A prevê o pagamento de honorários advocatícios pela
parte sucumbente mesmo que hipossuficiente. Por sua vez, o artigo 844, § 2º,
trata da condenação do pagamento de custas pelo reclamante que, sem motivo
justo, se ausenta da audiência inaugural. De acordo com o dispositivo, caso
isso ocorra, a reclamação proposta será arquivada e o reclamante terá que
pagar custas conforme a base de cálculo do artigo 789 também da CLT.
Além da previsão do pagamento de custas que a priori dispensadas em
caso de hipossuficiência, a reforma logrou em outras aberrações. Nos casos
em que o hipossuficiente for condenado ao pagamento de honorários e custas,
os valores referentes a sua dívida com o poder judiciário poderão ser levantados
a partir de créditos derivados de outros processos trabalhistas do qual o
beneficiário da justiça gratuita tenha sido parte ativa, tenha obtido êxito e verbas
suficientes para cobrir o valor da importância por ele devida. Além desta
possibilidade, destaca-se o previsto no § 3º do artigo 844, este prevê que nos
casos da condenação ao pagamento das custas por ausência na audiência
inaugural é condição para a propositura de nova ação da justiça trabalhista.
Portanto, o trabalhador que não quitar as dívidas ficará impossibilitado de
ajuizar outra reclamação trabalhista, mesmo que referente a relação de
emprego diversa. O juiz, ao constatar o inadimplemento deverá promover a
extinção da ação sem resolução do mérito.
373

O QUE É ACESSO À JUSTIÇA? A CONTRIBUIÇÃO DE MAURO


CAPPELLETTI E BRYANT GARTH E O FENÔMENO DO
NEOCONSTITUCIONALISMO

Mauro Cappelletti foi um jurista italiano que desenvolveu estudos e


teorias essenciais ao Direito. Seu trabalho sempre se voltou aos direitos
fundamentais, com especial composição na seara do processo e sua dimensão
social. Uma das suas obras mais célebres é Acesso à Justiça. Esta obra, dentre
outras coisas, traça os limiares básicos do que é o acesso à justiça, analisa o
fenômeno sob a perspectiva histórica e contemporânea do que é “acesso à
justiça” e presume o que este virá a ser.
Antes de tudo, cabe pontuar o modo como o acesso à justiça se
desenvolve dentro do ordenamento jurídico brasileiro. O acesso à justiça é o
gênero e, dentro do ordenamento, divide-se em duas espécies que se
manifestam em: a) assistência judiciária gratuita e b) assistência jurídica
gratuita.
Durante muito tempo foi considerado que o simples direito à ação,
previsto no ramo processual do direito, por si só fosse responsável por garantir,
guardadas as devidas proporções, o pleno acesso à justiça. Ademais, entendia-
se que, por haver a liberdade em se acionar a tutela jurisdicional, era
desnecessária qualquer tutela do Estado a garantia desse direito que, segundo
alguns autores, possui caráter de norma jusnatural. Ocorre, no entanto, que a
organização socioeconômica capitalista desde muito despoja uma parcela
considerável da população, que não possuí montante suficiente para arcar com
os altos custos de um processo judicial, do efetivo acesso à justiça.
(CAPPELLETTI e GARTH, 1998).
No Brasil, o processo de reconstitucionalização foi tardio e ocorreu no
contexto do fim da Ditadura civil-militar. A discussão acerca dos principais
aspectos relacionados ao neoconstitucionalismo só se iniciou a partir do
processo de elaboração daquela que viria a ser a Constituição Federal de 1988.
A existência do acesso à justiça e, consequentemente da sua característica de
direito fundamental, não está expressa claramente no texto constitucional, mas
em todo o complexo de direitos e garantias que asseguram não só o livre
acesso aos órgãos jurisdicionais, mas também a isonomia de tratamento e a
dignidade da pessoa humana.
Atualmente já está vencida a idéia de que a mera possibilidade de
acesso aos órgãos judiciais seja a verdadeira significação da acepção jurídica
de acesso à justiça. Hoje, muito mais do que o acesso aos tribunais, de
fundamental importância mas não apto a esgotar todas as vias política e
socialmente desejáveis de resolução de conflitos, o fenômeno do acesso à
justiça deve ser compreendido como a possibilidade material do ser humano
conviver em uma sociedade onde o direito é realizado de forma concreta, seja
em decorrência da manifestação soberana da atuação judiciária do organismo
estatal, seja, também, como reflexo da atuação das grandes políticas públicas
a serem engendradas pela respectiva atuação executiva, não olvidando-se, é
claro, o escorreito regramento a ser imprimido pela atuação legiferante. Tudo
isso, vale dizer, é de suma importância para a efetivação de uma realidade tão
mais democrática quanto justa, onde se possa ter a irrefragável certeza de uma
atuação garantista que prestigie a vida, a dignidade e o respeito incorruptível
aos direitos fundamentais do homem. Enfim, o enaltecimento do valor da justiça
374

como referência a ser seguida. (2009, p. 38-39, apud PAROSKI, p. 6)

Cappelletti e Garth defendem que a efetividade do acesso à justiça é um


conceito vago e utópico. E, por esse escopo, a efetividade trata-se de um fim
que não deve necessariamente ser alcançado, mas uma espécie de norteador
para a promoção de políticas que tenham como objetivo garantir o pleno acesso
à tutela jurisdicional.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 5.766/DF

Logo após a aprovação da reforma, diversos setores da área trabalhista,


como os juízes, advogados e ministros do TST se movimentaram para mitigar
o efeito das diversas inconstitucionalidades presentes no texto da Lei n.º
13.467/2017. Em agosto de 2017, o então Procurador Geral da República
(PGR), Rodrigo Janot, promoveu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) para que fosse reconhecida a inconstitucionalidade dos artigos 790-B,
791-A e 844, § 2º, todos inseridos na CLT por meio da reforma trabalhista.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade se caracteriza pelo direito de
submeter ato normativo federal ou estadual à apreciação do poder judiciário.
De acordo com o artigo 102, alínea a, da Constituição Federal, compete ao
Supremo Tribunal Federal (STF) como Corte Constitucional, processar e julgar
originariamente a ADI. A Ação proposta por Janot, atualmente tramita no
Supremo e está em fase de votação. Alguns dos ministros já se pronunciaram
sobre a inconstitucionalidade das normas impugnadas na ação proposta. Antes
de se discutir o mérito dos votos, é importante que se analise quais os
fundamentos jurídicos usados pelo procurador geral da república.
Na inicial da ADI, o PGR afima que Na contramão dos movimentos
democráticos que consolidaram essas garantias de amplo e igualitário acesso
a justiça, as normas impugnadas inviabilizam ao trabalhador economicamente
desfavorecido assumir os riscos naturais de demanda trabalhista e impõe-lhe
pagamento de custas e despesas processuais de sucumbência com uso de
créditos trabalhistas auferidos no processo, de natureza alimentar, em prejuízo
do sustento próprio e do de sua família (JANOT, 2017).
A mudança realizada pela reforma afronta o mais elementar mecanismo
das garantias jurisdicionais, a assistência judiciária integral e gratuita dos
hipossuficientes. As normas inseridas pela reforma atentam diversas garantias
constitucionais e infraconstitucionais, advindas da legislação laboral, que
tutelam os direitos sociais e econômicos do trabalhador. Estes integram o rol
dos direitos que importam para a garantia do mínimo existencial, visto que estas
são imprescindíveis para que haja condições materiais mínimas para que o
trabalhador pobre subsista. Ao impor a restrição, o legislador reformador não
apenas desequilibrou as relações em âmbito processual, mas também violou
uma série de princípios constitucionais da isonomia (artigo 5º, caput), da ampla
defesa (art. 5º, LV), devido processo legal (artigo 5º, LIV) e da inafastabilidade
da jurisdição (artigo. 5º, XXXV). (JANOT, 2017).
De acordo com Janot (2017, p. 16), o delineamento de hipossuficiência
como norma fundamental no processo do trabalho se encontra tradicionalmente
consolidada no artigo 14, § 1º, da Lei n.º 5.584/1970, que trata especificamente
de assistência judiciária gratuita em sede trabalhista. Percebe-se, não só pela
referida lei, mas por todo o conjunto de normas do ordenamento jurídico que a
375

hipossuficiência está ligada não apenas a falta de recursos, mas também a


garantia de uma vida digna e economicamente sustentável, onde o trabalhador
precisa escolher entre dar prosseguimento ao litigio ou ao seu próprio sustento
e o de sua família.
À época da propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade, o
procurador requereu que fosse feita por meio de decisão monocrática a
suspensão cautelar dos dispositivos impugnados pela ação. De acordo com
Janot, estava no caso em tela presente o requisito do fumus bonus iuris (fumaça
do bom direito), tendo em vista a grave violação ao direito fundamental de
acesso à jurisdição trabalhista. Dias após a propositura da ADI, o pedido de
medida cautelar foi acolhido pelo ministro relator Luís Roberto Barroso, relator
da ação, que reconheceu o “risco de imediato comprometimento do direito de
acesso dos trabalhadores ao Judiciário”.
O julgamento foi retomado em maio de 2018 e logo suspenso devido ao
pedido de vista feito pelo ministro Luiz Fux. Antes da suspensão foram ouvidas
as sustentações orais da atual procuradora geral da república, Raquel Dodge e
da Advogada Geral da União, Grace Mendonça, representando não só a União,
como o Congresso Nascional, e dos amicus curiae, como a Associação
Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA) e a Central Única dos
Trabalhadores (CUT).
A divergência quanto à constitucionalidade se prosseguiu na Corte. O
ministro relator, Luís Roberto Barroso, ao proferir o seu voto, não entendeu por
bem acolher, pelo menos em sua totalidade, os pedidos de declaração de
inconstitucionalidade feitos pelo PGR. Barroso em seu voto defendeu parte da
mesma linha de interpretação dos legisladores reformistas. No seu voto o
ministro defendeu, em linhas gerais, que as inovações são constitucionais e
servem para desestimular a litigância abusiva dos trabalhadores, visto que a
falta de cobrança de horários sucumbenciais e de custas os compele a ajuizar
reclamações muitas vezes infundadas. Defendeu, no entanto, que a cobrança
de honorários sucumbenciais deva ser realizada sobre verbas não alimentares,
como as indenizações de danos morais. Ademais, em seu entendimento, a
cobrança pela ausência do reclamante também está de acordo com a ordem
constitucional, desde que ao trabalhador seja oportunizada a justificativa em
caso de não comparecimento. A principal tese do ministro Barroso se insere na
lógica de que o excesso de processos e a judicialização massiva das relações
de trabalho e, conforme disse em seu voto, “prejudica o mercado de trabalho,
prejudica os trabalhadores e prejudica os empreendedores corretos e
honestos”.
Em orientação totalmente contrária a do ministro relator, o ministro Edson
Fachin decidiu, antes da autorização do pedido de vista do ministro Luiz Fux,
proferir o seu voto.
Segundo Fachin (2018, p. 3):

A proteção constitucional ao acesso à Justiça e à gratuidade do


serviços judiciários também encontra guarida na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, especialmente da Segunda Turma, que
associa tais garantias ao direito de ter direitos, reafirmando que
restrições indevidas a estas garantias institucionais podem converter
as liberdades e demais direitos fundamentais por elas protegidos em
proclamações inúteis e promessas vãs.
376

O ministro, além disso, destaca que o direito à gratuidade judiciária é


reconhecido como um direito em âmbito constitucional, inserindo-se como parte
do regime de garantias e direitos essenciais a vida política e social. Além disso,
Fachin considera que a restrição importa na aniquilação do único meio que o
trabalhador dispõe para que tenha garantidos seus direitos sociais trabalhistas.
Segundo o ministro, é necessário nesse contexto uma interpretação da
norma constitucional que garanta máxima efetividade do direito fundamental ao
acesso à justiça, sob risco de “por meio de sucessivas restrições, ele próprio e
todos os demais direitos por ele assegurados”. (FACHIN, 2018, p. 9).
As controvérsias trazidas pela reforma se seguem e o STF, como Corte
Constitucional e guardiã da ordem democrática, terá a última palavra. O
desfecho do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade não é
previsível. Espera-se, no entanto, que a ADI ao menos parcialmente deferida e
que a inconstitucionalidade de grande parte desses institutos, ou pelo menos
as partes manifestamente inconstitucionais que se revelam claramente
prejudiciais ao que se tem pacificado no direito brasileiro como acesso à justiça.

CONCLUSÃO

Discutir os principais problemas do direito e, especialmente, da atividade


jurisdicional é de extrema importância. A busca pelo aperfeiçoamento das
normas e institutos e a observância dos direitos e garantias fundamentais
devem sempre ser os guias da atividade do operador do direito.
A visão kelseniana de que o direito é ser e não o dever ser foi de extrema
importância para o estabelecimento do nosso ordenamento jurídico
juspositivista e constitucional. Ocorre, no entanto, que aquilo aduzido por
Kelsen não deve ser considerado como uma verdade absoluta e sem qualquer
abertura para entendimentos que interpretem sua teoria de maneira mitigada.
Embora a máxima seja verdadeira, a lei não pode ser totalmente despida de
uma finalidade social e deve apreciar as suas funções como garantidora da
pacificação e o bem- estar dos indivíduos e a lei que foge totalmente disso
talvez não seja realmente justa. Embora a ideia geral de Ferdinand Lassalle de
que a constituição, e consequentemente as normas infraconstitucionais, que
não atendam a realidade fática são apenas letra morta seja extrema, há que se
considerar que, pelo menos em parte, o que o Lassalle aduz seja verdade.
A reforma ao restringir o acesso à justiça por meio da supressão de
garantias e a inovação de institutos prejudiciais foi totalmente de encontro não
só à constituição, mas aos direitos do trabalhador. É claro que muitos
trabalhadores já fizeram uso dessas facilidades para se aproveitar do sistema
jurisdicional e existem realmente diversas ações que não passam de aventuras
que tentam usar o processo como um jogo de azar em que não se há custos
para o empregado. É mister que se adote diversos meios para coibir tais
práticas que atentam contra a própria dignidade da justiça.
O legislador ao empreender diversas mudanças na assistência judiciária
gratuita teve como objetivo, pelo menos aparente, de reprimir tais práticas e
tornar a justiça do trabalho menos desigual. O problema, no entanto, reside não
nos fundamentos, mas sim no modo como isso foi feito. Diminuir e cercear o
acesso à justiça e, em consequência, todos os demais direitos que dele resultem
é claramente um erro. O foco do legislador reformista poderia ter sido a simples
elaboração de estratégias que equilibrem o jogo processual. As multas por
377

litigância de má-fé, por exemplo, são meios a serem considerados para inibir o
uso irresponsável da jurisdição.
Os interesses de qualquer setor, trabalhadores e empregadores, mesmo
que travestidos de boas intenções não devem servir de fundamento para
qualquer tipo de medida que claramente seja inconstitucional. Embora haja a
abertura para a interpretação e a adequação da norma constitucional ao caso
concreto, existem limites, aqui caracterizados pelos próprios direitos
fundamentais, que embora não sejam absolutos, são obstáculos a mudanças
que, como no caso de restrição do acesso à justiça vão de encontro ao conteúdo
ideológico e protetivo dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade


5.766/DF. Requerente: Procurador-Geral da República. Relator: Ministro Luís
Roberto Barroso. Brasília, 2017.

AQUINO, João Victor. Contrato de Trabalho Intermitente sob a ótica do


Trabalho Decente. Jornal do 58º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho.
São Paulo: LTr, 2018. p. 59-61. Disponível em:
<http://www.ltr.com.br/congressos/jornal/direito/jornal_direito.pdf>. Acesso em
20 de junho de 2018.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do


Direito: O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista Direito
Administrativo, n.º 240. Rio de Janeiro, 2015. p. 1-42.

CASSAR, Vólia Bomfim; BORGES, Leonardo Dias. Comentários à Reforma


Trabalhista: Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. São Paulo: Editora Método,
2017.

CUBAS, Mariana Gama. Após reforma, número de novos processos


trabalhistas caiu pela metade. Carta Capital. 01 de maio de
2018. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/Apos-reforma-
numero-de-novos-processos- trabalhistas-caiu-pela-metade>. Acesso em 19 de
junho de 2016.

CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à Justiça. Porto Alegre: SAFE


- Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998.

DELGADO, Gabriela Neves; DELGADO, Mauricio Godinho. A Reforma


Trabalhista no Brasil: Com os Comentários à Lei 13.467/2017. São Paulo: LTr,
2017.

DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2017.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFE -


Sérgio Antônio Fabris - Editor, 1991.
378

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de


Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2017.

PAROSKI, Mauro Vasni. Do Direito Fundamental de Acesso à Justiça. Scientia


Iuris, Londrina, v. 10, p. 225-242, 2006.
379

A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA À LUZ DA


CONVENÇÃO 94 DA OIT
THE RESPONSABILITY OF PUBLIC ADMINISTRATION THROUGH THE
CONVENTION 94 OF ILO

Geraldo Furtado de Araújo Neto


Daniela Estolano Francelino
Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a possibilidade de


responsabilização da Administração Pública por meio da Convenção 94 da OIT.
Serão abordados os temas da terceirização, responsabilidade civil da empresa
tomadora e Administração Pública, bem como será objeto de estudo o controle
de convencionalidade com critério material, por meio do princípio pro persona. A
principal relevância do presente artigo é contribuir com a comunidade jurídica
para a sedimentação de uma ideia de controle de convencionalidade e a
importância do princípio pro persona como medida de efetivação dos direitos
humanos. Será usado o método dedutivo/indutivo, por meio da pesquisa
bibliográfica e histórica, porquanto investigar-se-á as origens da terceirização,
abordar-se-á a responsabilidade civil, o controle de convencionalidade e a
necessidade do princípio pro persona, como finalidade desse instituto.
Palavras-chaves: Terceirização. Administração Pública. Convenção 94 da OIT.

Abstract: This article aims analyze the possibility of responsabilization of Public


Administration through the Convention 94 of ILO. It will be approach outsourcing,
civil responsabilization of the companies and Public Adminstration, as well it will
be studied the control of conventionality with material criterion, through the pro
persona principle. The main relevance of this article is contribute with legal
comunity for the sedimentation of a control of conventionality idea and the
importance of pro persona principle as a measure of actualization of human
rights. It will be used the deductive/inductive method, by means of historical and
bibliographical research, because it will investigate the origins of outsourcing, it
will be approached the civil responsability, the control of conventionality and the
necessity of pro persona principle, as the purpose of this institute.
Keywords: Outsourcing. Public Administration. Convention 94 of ILO.

INTRODUÇÃO

A terceirização é um instrumento utilizado pelas empresas para


diminuição dos custos. Visa delegar a outra determinada atividade, que não se
encontra em suas finalidades, como limpeza e segurança, para, assim, poder
focar sua energia em sua atividade principal.
O TST editou a súmula 331 a fim de apaziguar o tema e conferir
segurança jurídica às empresas e trabalhadores. Para o enunciado, o tomador
de serviços deve responder pelo inadimplemento dos créditos trabalhistas por
parte do prestador.
De outro lado, é certo que a Administração também se utiliza desse
artifício. No entanto, o artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93 não admite a transferência
automática da responsabilidade para a Administração pelos créditos
380

inadimplidos da prestadora de serviço. Para reforçar isso, o STF julgou


procedente a ADC 16, declarando o dispositivo constitucional.
Este trabalho buscará empreender um controle de convencionalidade com
base no princípio pro persona, segundo o qual, entre as diversas normas a serem
aplicadas, deverá o intérprete escolher aquela que melhor otimiza os Direitos
Humanos e, assim, tentar utilizar a Convenção 94 da OIT como medida para a
garantia dos salários dos trabalhadores que prestam serviços terceirizados à
Administração Pública.
Este trabalho usará dos métodos dedutivo/indutivo, porquanto investigará
o conceito de controle de convencionalidade, o relacionamento das normas
internacionais com as nacionais e a necessidade do princípio pro persona para
efetivação dos direitos humanos, por meio da pesquisa bibliográfica e
documental.

1. A RESPONSABILIDADE DO TOMADOR DE SERVIÇOS NA


TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA

O surgimento da técnica da terceirização teria surgido ao final da segunda


grande guerra mundial, nas indústrias bélicas dos Estados Unidos, quando
apenas a produção de armas e munições ficou atribuída a elas. As demais
atividades, chamadas atividades-meio, passaram a ser desempenhadas por
empresas contratadas (FRANCO FILHO, 2017, p. 170).
A CLT, em sua promulgação em 1943, fez menção a apenas duas figuras
delimitadas de subcontratação de mão de obra: a empreitada e subempreitada
(artigo 455 da CLT), englobando também a figura da pequena empreitada (artigo
652, “a”, III, da CLT) (BRASIL, 1943). Somente em fins da década de 1960 e
início dos anos 1970 é que a ordem jurídica instituiu legislação sobre o assunto,
embora fosse restrito ao meio público.
É o que se passou com o Decreto-Lei n. 200/67 (artigo 10) e Lei 5.645/70.
Os dois diplomas estimulavam a prática de descentralização administrativa, por
meio da contratação de serviços meramente executivos ou operacionais. De
certo modo, era uma indução legal à terceirização de atividades meramente
executivas (DELGADO, 2011, p. 427-429).
A partir da década de 1970 houve a instituição da Lei do Trabalho
Temporário (Lei 6.019/74). No trabalho temporário, a atividade do “terceirizado”
sempre pôde em atividade-meio ou atividade-fim, bem como o comando do
trabalho também poderia ser exercido pelo próprio tomador de serviços, ainda
que a empresa prestadora de serviços mantivesse algum poder empregatício
residual (VIANA, 2017, p. 87).
Depois, a Lei 7.102/73 autorizava, outrossim, a terceirização permanente
do trabalho de vigilância bancária (BRASIL, 1973). Anos mais tarde a Lei
8.863/94 alargou a possibilidade de terceirização permanente não só para
bancos, mas para qualquer instituição e estabelecimento público ou privado
(BRASIL, 1994).
Após, a Lei 8.949/94 acrescentou parágrafo único ao artigo 442 da CLT,
introduzindo um novo tipo de terceirização, dispondo que “qualquer que seja o
ramo de atividades da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício
entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços
daquela” (BRASIL, 1994).
381

De todo modo, o TST fixou súmula nos anos 1980 a respeito do problema,
limitando as hipóteses de contratação do trabalhador por empresas interpostas.
Dizia a súmula 256:

Salvo os casos previstos nas Leis 6.019, de 3.1.74 e 7.102, de


20.6.1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa
interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o
tomador dos serviços.

No entanto, a súmula fixou leque exaustivo de exceção terceirizantes.


Assim, anos depois, em 1994, houve a revisão da súmula, editando-se uma
nova, a 331.

I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal,


formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo
no caso de trabalho temporário.
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa
interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da
Administração Pública direta, indireta ou fundacional.
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de
serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação
e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-
meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a
subordinação direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do
empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos
serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da
relação processual e conste também do título executivo judicial.

Tempos depois, no ano 2000, o inciso IV receberia nova redação, para


esclarecer que a responsabilidade subsidiária abrangia “órgãos da
administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas
públicas e das sociedades de economia mista”, conforme Resolução 96, de
11.9.2000, do TST.
Em 2017, no contexto e pensamento de reformas ultraliberalizantes,
adveio a Lei 13.467/2017, a qual mudou e inseriu preceitos na Lei 6.019/74,
procurando estimular a terceirização no país, valendo ressaltar que a Lei
13.429/2017 já havia alterado a Lei dos Trabalhadores Temporários.
Conforme o novo artigo 4º-A da Lei 6.019/74, há terceirização lícita em
quaisquer atividades empresariais, inclusive na sua atividade principal. Ressalte-
se que a alteração legislativa vai ao encontro da tese firmada posteriormente
pelo STF de que é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do
trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social
das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa
contratante1.
Importante mudança foi trazida, um pouco antes, pela Lei 13.429/2017,
que introduziu o artigo 5º-A, §5º, na Lei 6.019/74, fincando a positivação da
responsabilidade subsidiária do tomador de serviços pelas obrigações

1BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 958252. Recorrente: Celulose


Nipo Brasileira S/A – CENIBRA. Recorrido: Ministério Público do Trabalho. Re. Min. Luiz Fux.
Brasília, DF, 30 de agosto de 2018. Diário da Justiça, Brasília-DF, 04 de setembro de 2018.
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4952236> Acesso em 19
de julho de 2019.
382

trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços, sendo


que o recolhimento das contribuições previdenciárias observará o disposto no
art. 31 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991 (BRASIL, 2017).

2. A TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, O TRATAMENTO DA


MATÉRIA PELO TST E O JULGAMENTO DA ADC 16 E RECURSO
EXTRAORDINÁRIO 760.931 PELO STF

À época da edição da referida súmula 331 do TST, já se falava que a


Administração Pública não poderia ser responsabilizada, automaticamente, pois
havia veto legal expresso quanto à responsabilização da Administração,
conforme artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93. Vejamos o que diz o artigo:
Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas,
previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do
contrato.
§1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos
trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública
a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do
contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações,
inclusive perante o Registro de Imóveis (grifo nosso).

Em 2007, o Governador do Distrito Federal, no âmbito da sua legitimidade,


conforme artigo 103, Inciso V (BRASIL, 1988) da CRFB/88, propôs Ação
Declaratória de Constitucionalidade (popularmente chamada de ADC 16), sendo
que tanto a União quanto outros entes federativos ingressaram na ADC como
amicus curiae. O intuito era o reconhecimento e declaração da
constitucionalidade do artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93. Segundo o Governador, o
dispositivo da lei estava sofrendo ampla retaliação por parte dos órgãos do Poder
Judiciário, em especial o TST (CASTRO, 2015, p. 106).
Na sessão do dia 24 de novembro de 2010, o Ministro-Relator, Cezar
Peluso, reiterou seu entendimento pelo arquivamento, sob o fundamento que o
TST, ao editar a súmula 331, não havia declarado a inconstitucionalidade do
dispositivo da Lei de Licitações e que a declaração ou não de constitucionalidade
do artigo não seria óbice para continuar a responsabilizar a Administração
Pública com base nos princípios trabalhistas.
A Ministra Carmén Lúcia, sucessora do Ministro Menezes Direito,
apresentou divergência, votou pelo conhecimento e procedência da ação, uma
vez que a lei é taxativa e que o ônus do contratado não se transfere à
Administração Pública. Disse que a Justiça do Trabalho afasta a incidência do
artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93 sem declarar sua inconstitucionalidade, o que
significa não cumprimento de legislação.
Ao final, o Plenário do STF decidiu que o artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93 é
constitucional, com eficácia vinculante e efeitos erga omnes e que o TST não
poderia generalizar todas as situações de responsabilidade do Estado, devendo
analisar caso a caso se a inadimplência da contratada decorria de alguma
omissão estatal (CASTRO, 2015, p, 109)2.
2 Conforme a ementa: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a
administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente
e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes a execução do
contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da
Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de
383

Após o julgamento da ADC 16, o TST revisitou o tema e decompôs o item


IV da súmula 331 em dois enunciados, o primeiro para cuidar da
responsabilidade subsidiária do tomador de serviços privados e um novo item
para tratar somente da hipótese em que o tomador dos serviços é a
administração direta ou indireta. E assim ficou

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do


empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos
serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da
relação processual e conste também do título executivo judicial.
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta
respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso
evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da
Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do
cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de
serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre
de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela
empresa regularmente contratada.

Entretanto, outro assunto veio à tona após o julgamento. A Justiça do


Trabalho costumava atribuir o ônus da prova quanto à fiscalização do contrato à
Administração, uma vez que a Lei 8.666/93 tem uma série de dispositivos que
exigem do ente estatal o controle do cumprimento das obrigações trabalhista e
previdenciárias e também porque os Juízes do Trabalho observavam ser quase
impossível ao trabalhador demonstrar a culpa da Administração (CARVALHO,
2019, p. 197).
Várias Reclamações Constitucionais, remédio que serve para garantir a
autoridade de decisões do STF, foram propostas e a maioria afirma que os
Juízes e Tribunais Trabalhistas persistiam na transferência automática de
responsabilidade da empresa terceirizada para o ente público. Assim, mais uma
vez, o STF enfrentou a questão, agora no Recurso Extraordinário 760.931
(DUARTE NETO; SANCHES, 2019, p. 410).
Ao final foi elaborada a seguinte tese: “O inadimplemento dos encargos
trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao
Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em
caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, §1º, da Lei 8.666/1993”.

3. A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA À LUZ DA


CONVENÇÃO 94 DA OIT E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

Pinto afirma que, tendo como base Bobbio, os direitos humanos são
históricos e que esses se conquistam, muitas das vezes, por meio de barricadas,
em um processo cheio de vicissitudes, sendo que as necessidade e aspirações
dos trabalhadores se articulam em reivindicações e lutas, antes de tornarem
direitos reconhecidos (2016, p. 15).
No mesmo diapasão se encontra Leal e Alves, para quem resta patente
que as convenções internacionais da OIT são tratados sobre direitos humanos

Constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma


inscrita Do art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada
pela Lei nº 9.032, de 1995. (DJ, 03/12/2010)
384

(2017, p. 121), motivo pelo qual tem papel de destaque no ordenamento jurídico
brasileiro.
Quanto ao tema deste trabalho, vale frisar que a Convenção 94 da OIT é
relativa a cláusulas de trabalho nos contratos de “autoridade pública”. Foi
aprovada na 32ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra,
no ano de 1949, e que entrou em vigor no plano internacional em 20 de setembro
de 1952. No plano interno, ela foi ratificada pelo Congresso por meio do decreto
legislativo nº 20 de 18/06/1965, sendo posteriormente editado Decreto
Presidencial que autorizava a execução e cumprimento da Convenção em
14/07/1966.
O artigo 2º da Convenção diz o seguinte:

Art. 2 — 1. Os contratos aos quais se aplica a presente convenção


conterão cláusulas garantindo aos trabalhadores interessados salários,
inclusive os abonos, um horário de trabalho, e outras condições de
trabalho que não sejam menos favoráveis do que as condições
estabelecidas para um trabalho da mesma natureza, na profissão
ou indústria interessada da mesma região: […] (grifou-se)

Em um ambiente plural, em que há vários ordenamentos jurídicos,


nacionais e internacionais, que podem reger a mesma matéria, deverá haver um
controle por parte do julgador sobre qual norma prevalecer. Isso é o que se
chama de controle de convencionalidade.
Para o tipo de controle de convencionalidade que é desenvolvido neste
trabalho, a relação de validade se estabelece a partir de um critério material, de
maior proteção, sendo a declaração de inconvencionalidade possível somente
quando a proteção derivada do direito internacional dos direitos humanos seja
mais efetiva ou estabeleça restrições menos profundas aos direitos humanos
atingidos pelo ato interno. Outra diferença diz respeito ao fluxo normativo, que
no controle de convencionalidade se dá a partir do direito internacional (CONCI,
2013, p. 10).
Assim, a mera compatibilidade da lei com o texto constitucional não lhe
garante mais validade no plano interno. Para Mazzuoli, é necessária a
compatibilidade com a Constituição e com os tratados internacionais (de direitos
humanos e até os tratados comuns) ratificados pelo governo. Se estiver em
desacordo com os tratados de direitos humanos a norma pode até ser
considerada vigente, mas não poderá ser tida como válida, por não ter passado
imune a um exame de convencionalidade (2018, p. 26).
No mesmo sentido, Conci, Gerber e Pereira definem o controle de
convencionalidade como o instrumento complementar e auxiliar do controle de
constitucionalidade, consistindo na compatibilização vertical das normas
domésticas infraconstitucionais com os tratados de direitos humanos ratificados
e vigentes no país (2018, p. 111).
A questão da hierarquia é desimportante para o controle de
convencionalidade, pois decorrente de uma análise estrutural do ordenamento
jurídico interno. Verificada a contrariedade entre o tratado e os atos internos,
deve-se passar para o segundo passo, qual seja, a análise da
inconvencionalidade, que diz respeito a saber quais dos instrumentos
normativos, internos ou internacionais, são mais protetivos aos direitos humanos
envolvidos. Assim, os critérios que se impõem como estruturantes do controle
385

de convencionalidade não são de ordem formal. São, sim, de ordem material, de


conteúdo (CONCI, 2013, p. 17), com base no princípio pro persona.
Pelo exposto, entende-se que a Convenção 94 da OIT, no que tange ao
artigo 2º, é mais protetiva aos trabalhadores que prestam serviços à
Administração Pública como tomadora que o disposto no artigo 71, §1º, da Lei
8.666/93.
Como se viu, a Lei 13.429/2017 introduziu o artigo 5º-A, §5º, na Lei
6.019/74, fincando a positivação da responsabilidade subsidiária do tomador de
serviços pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a
prestação de serviços (BRASIL, 2017).
Ora, assim, se os trabalhadores que prestam serviços a tomadores
privados tem a garantia da responsabilidade subsidiária automática, sem
necessidade de comprovação de culpa da tomadora, com a mesma razão, nos
termos da Convenção 94 da OIT, deve os trabalhadores que prestam serviços à
Administração Pública ter a mesma garantia.

CONCLUSÃO

Como se viu, a terceirização é instrumento importante e usado pela


Administração Pública, passando para empresas outras a realização de
determinadas atividades inerentes a seu mister.
O STF, por meio da ADC 16, juntamente com Recurso Extraordinário
760.931, decidiu que o artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93 é constitucional, sendo
assim, não pode a Administração Pública ser condenada subsidiariamente de
forma automática, sem a caracterização da culpa do ente no ato da fiscalização
do contrato.
Contudo, conforme o raciocínio utilizado neste trabalho, chega-se à
conclusão que é possível utilizar a Convenção 94 da OIT, em seu artigo 2º, para
exigir da Administração o pagamento das verbas trabalhistas devidas quando o
prestador de serviços for inadimplente.
Com base no controle de convencionalidade aqui defendido, deve o
intérprete escolher a norma que melhor protege o direito humano, no caso, o
trabalhador. Logo, a Convenção 94 da OIT é mais protetiva que o artigo 71, §1º,
da Lei 8.666/93.
Portanto, o julgamento da ADC 16 e Recurso Extraordinário 760.931 não
impedem o reconhecimento da Convenção 94 da OIT como aplicável ao caso e,
por isso, incidir o disposto no artigo 5º-A, §5º, na Lei 6.019/74, que deixa claro
que todo o tomador de serviços, mesmo que a Administração Pública é
responsável subsidiariamente pelos créditos trabalhistas inadimplidos pelo
prestador de serviços.

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VIANA, Márcio Túlio. Para Entender a Terceirização. São Paulo: LTr, 3ª ed.,
2017.
388

A TUTELA DOS DIREITOS TRABALHISTAS DO TELETRABALHADOR, O


PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E A
RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR NOS CONTRATOS DE
TRABALHO APÓS A REFORMA TRABALHISTA (LEI Nº 13.467/2017)
THE PROTECTION OF TELEWOKER'S LABOR RIGHTS, THE PRINCIPLE OF
THE PROHIBITION OF SOCIAL RETROCESS AND CIVIL EMPLOYER'S
LIABILITY IN LABOR CONTRACTS AFTER LABOR REFORM (LAW Nº
13.467/2017)

Ulisses Arjan Cruz dos Santos


Kaleen Sousa Leite
Orientador(a): Márcia Cristina Nery da Fonseca Rocha Medina

Resumo: O avanço tecnológico impôs às relações de trabalho novos contornos


visando a redução de custos e a otimização de tarefas. Nesse cenário surge o
teletrabalho, modalidade contratual prestada fora das dependências da
empresa, que embora promova vantagens tanto ao empregado quanto ao
empregador, pode também fragilizar direitos sociais, em especial, a saúde e
segurança do trabalhador. Sob esse prisma, a presente pesquisa visou discutir
a proteção dos direitos trabalhistas do teletrabalhador, sob o viés de direito
fundamental e do princípio da vedação do retrocesso social, analisando a
responsabilidade civil do empregador aplicada a essa modalidade contratual
após as inovações legislativas da reforma trabalhista (nº 13.467/2017). A
metodologia utilizada foi o método dedutivo, mediante uso dos procedimentos
bibliográfico e documental. Ao final, concluiu ser mais condizente com a
sistemática normativa laboral a aplicação da teoria da responsabilidade civil
objetiva.
Palavras-chave: Meio ambiente de trabalho. Teletrabalho. Responsabilidade
civil.

Abstract: The Technological advancement has imposed on labor relations new


contours aimed at reducing costs and optimizing tasks. In this scenario emerges
teleworking, a contractual form provided outside the company's premises, which,
while promoting advantages for both the employee and the employer, can also
weaken social rights, especially the health and safety of workers. In this light, this
research aimed to discuss the protection of the labor rights of teleworkers, under
the bias of fundamental law and the principle of prohibition of social regression,
analyzing the employer's civil liability applied to this contract mode after the
legislative innovations of labor reform (No. 13,467 / 2017). The methodology used
was the deductive method, using the bibliographic and documentary procedures.
In the end, it concluded that the application of the objective liability theory is more
consistent with the labor normative system.
Key-words: Workingenvironment; Teleworking; Civic responsibility.

INTRODUÇÃO

Não há dúvidas de que o implemento da tecnologia no mercado de


trabalho, especificamente a internet, vem provocando a reestruturação das
relações de trabalho, impondo um novo ritmo de desenvolvimento das atividades
humanas. Nesse cenário, surge o teletrabalho como uma nova relação laboral
389

que desloca o trabalhador para fora dos muros das empresas, porém o interliga
ao centro de dados de unidades empresariais por meios de equipamentos
eletrônicos no afã de otimizar a execução de tarefas e reduzir custos e despesas
comuns em relações laborais presenciais.
Sob esse prisma, a presente pesquisa visou discutir a proteção dos
direitos trabalhistas do teletrabalhador, sob o viés de direito fundamental e do
princípio da vedação do retrocesso social, analisando a responsabilidade civil do
empregador aplicada a essa modalidade contratual após as inovações
legislativas da reforma trabalhista (nº 13.467/2017). A metodologia utilizada foi o
método dedutivo, mediante uso dos procedimentos bibliográfico e documental.
Ao final, concluiu ser mais condizente com a sistemática normativa laboral a
aplicação da teoria da responsabilidade civil objetiva.
Profundas modificações legais impactaram o direito ao meio ambiente
laboral saudável, tais como a recentemente alteração que a Consolidação das
Leis Trabalhistas (CLT) passou ao dispor sobre o teletrabalho como uma
modalidade de contrato de trabalho. Nesse sentido, a proposta é tecer
considerações sobre a tutela dos direitos trabalhistas do teletrabalhador, sob o
prisma da dignidade da pessoa humana e do princípio da vedação do retrocesso
social e por fim, analisar a responsabilidade civil do empregador aplicada a essa
modalidade contratual conforme a nova legislação da reforma trabalhista (nº
13.467/2017) mediante a interpretação sistemática do ordenamento jurídico.

1. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS DO TELETRABALHADOR


FRENTE ÀS LACUNAS PRESENTES NA REFORMA TRABALHISTA (LEI N.
13.467/2017) E O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

A Carta Magna assegura no artigo 7º, inciso XXII a todos os trabalhadores


– urbanos e rurais – o direito à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por
meio de normas de saúde, higiene e segurança”. Ocorre que diante das
constantes inovações das atividades produtivas e das diversas modalidades de
trabalho presentes na realidade brasileira, tutelar a saúde e a segurança do
trabalhador, proporcionando-lhe um ambiente de trabalho saudável é um grande
desafio.
O Estado brasileiro editou diversas normas sobre a saúde do trabalhador,
as quais se destacam como mais pragmáticas as NR’s, normas
regulamentadoras sobre segurança e medicina do trabalho de observância
obrigatória pelas empresas privadas e órgãos públicos. A CLT, Título II, Capítulo
V, mais especificamente nos seus artigos 154 a 201, apresenta um rol de
dispositivos protetivos e penalidades em caso descumprimento das regras.
No âmbito internacional, a Organização Internacional do Trabalho - OIT
promove a elaboração de tratados, convenções e resoluções visando proteger
as relações entre empregados e empregadores, as quais se destacam as
convenções n. 148, 155 e 161 que foram ratificadas pelo Estado Brasileiro,
portanto, incorporadas no ordenamento jurídico. Tal busca pela segurança e
saúde do trabalhador tem por objetivo alcançar os fundamentos constitucionais
da valorização social do trabalho e a dignidade da pessoa humana, insculpidos
no artigo 1º, incisos III e IV da Constituição Federal. Afinal, a inobservância dos
regramentos protetivos ao meio ambiente laboral, dificilmente garantirá o
desenvolvimento de uma vida digna.
390

A despeito de todo esse arcabouço jurídico acerca da ambiência laboral,


deve-se ressaltar que tais regras têm por pressuposto a prestação laboral dentro
das instalações físicas do empregador, onde a fiscalização e manutenção das
normas de segurança é promovida diretamente pela empresa. Assim, aplicá-las
ao contrato de teletrabalho, cujo labor é prestado fora do estabelecimento do
empregador, exige, notadamente, uma adequação das normas de segurança.
João Hilário Valentim (1995) aduz que deve ser estendido ao
teletrabalhador toda a gama de direitos previstos para os trabalhadores comuns,
entende-se neste caso que, em se tratando de uma relação de teletrabalho,
independentemente de sua classificação, subsiste igualmente ao empregador o
dever de cumprir com os regulamentos de higiene, saúde e segurança,
procedendo com a fiscalização nas instalações de trabalho sempre que julgar e
entender necessário.
A Reforma Trabalhista, nos artigos 75-E e 75-D, embora, tenha tentado
traçar parâmetros sobre a saúde e segurança do teletrabalhador, mostrou-se
notadamente lacunosa acerca da proteção da saúde do trabalhador comum. No
que tange a aquisição dos equipamentos de trabalho o art. 75-D dispõe que a
responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos
equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à
prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas
pelo empregado, serão previstas em contrato escrito.
Quanto ao cumprimento das normas de segurança, o art. 75-E impôs ao
empregador instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto
às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho. Contudo,
ressaltou no parágrafo único que o empregado deverá assinar termo de
responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo
empregador.
Nota-se que a redação não buscou assegurar a proteção do direito
trabalhista ao meio ambiente do trabalho ao teletrabalhador, pelo contrário, da
forma como foi escrito transparece a intenção de limitar a reponsabilidade do
empregador mera instruções, transferindo ao empregado a responsabilidade
sobre o cumprimento das normas de segurança. Observa-se, ainda, que o
legislador foi omisso quanto à responsabilidade, modo e momento da
fiscalização das normas de segurança do trabalho, dever imposto ao
empregador conforme dispositivos alhures elencados.
Sobre a importância da fiscalização, Denise Fincato (2008, p. 169)
defende que tal procedimento é imprescindível para detectar riscos e projetar as
respectivas medidas de saneamento. A apuração da responsabilidade civil nos
eventuais acidentes de trabalho também não foi respondida pela nova
legislação. Ao contrário, o artigo 75-E gerou ainda mais dúvidas. A previsão de
termo de compromisso imposto ao empregado sobre normas de segurança faz
parecer que o legislador quis afastar a responsabilidade do empregador a partir
do fornecimento de instruções.
Observa-se que a nova legislação não garantiu mais proteção ao
teletrabalhador e ainda promoveu mais insegurança jurídica. As novas regras,
há a desoneração do empregador do dever constitucional de promover um
ambiente de trabalho sadio, ficando o teletrabalhador abandonado a sua própria
sorte. Evidencia-se que a adoção literal dos novos dispositivos celetista vai de
encontro ao princípio da vedação ao retrocesso social, que segundo o Supremo
Tribunal Federal (MS 24.875), uma vez concretizado um direito social de
391

natureza prestacional, que na hipótese consiste no direito estatal de garantir um


ambiente equilibrado de trabalho, há uma dimensão negativa de impedir a
redução ou supressão desse direito.
Desde 2011 os teletrabalhadores já foram equiparados aos empregados
presenciais, conforme alteração do art. 6º da CLT pela Federal nº 12.551. Além
disso, os dispositivos constitucionais garantem a todos os trabalhadores,
urbanos e rurais, a proteção contra os riscos inerentes ao trabalho, por meio de
normas de saúde, higiene e segurança contra os riscos ocupacionais. Assim, a
aplicação da Reforma Trabalhista, no que tange ao meio ambiente do
teletrabalho (art. 75-D e art. 75-E), induz à redução desse direito social
trabalhista de proteção ao meio ambiente de trabalho, pois minimiza os deveres
do empregador de implementar normas de segurança, por consequência,
impõem a esses trabalhadores maior exposição à riscos ocupacionais e mitiga a
responsabilidade civil do empregador em caso de acidente de trabalho.

2. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR NOS CONTRATOS DE


TELETRABALHO

Quando o trabalho é exercido na modalidade home office, por exemplo,


ocorrendo um acidente, como distinguir-se entre mero acidente doméstico ou
acidente de trabalho? A jurisprudência espanhola, ainda segundo o autor,
entende que se houver horário fixo para a execução do trabalho o trabalhador
não precisa fazer prova do nexo de causalidade para ter reconhecido o acidente
de trabalho; porém se não houver prévia fixação de horário pelas partes, inverte-
se o ônus da prova, cabendo ao empregado comprovar o nexo de causalidade
do acidente com o trabalho desenvolvido. (MELO; RODRIGUES,2018, p. 61)
No ordenamento brasileiro, a responsabilidade civil é construída a partir
do dever de prevenção imposto ao empregador mediante a implementação de
medidas que eliminem os riscos ambientais (art. 7º, XXII, CF). Sobrevindo a
ocorrência de acidente é apurado se o empregador tomou todas as medidas
possíveis para evitar o infortúnio, de modo a afastar a sua culpa, conforme
dispõe a responsabilidade subjetiva do art. 7º, XXVIII da CF. Verificada a
omissão ou ação do empregador para a ocorrência do dano, é configurado o
cometimento de ato ilícito, por consequência, o dever de indenizar.
Teresinha Lorena Saad (1999, p. 241) diferencia a cobertura
previdenciária da responsabilidade civil ensinando que “a reparação
infortunística decorre da teoria do risco, amparada pelo seguro social a cargo da
Previdência Social, enquanto que a responsabilidade civil comum tem como
supedâneo a culpa do patrão ou seu preposto. As causas e os sujeitos passivos
da obrigação de reparar são distintos”
A cobertura do seguro acidentário tem por escopo indenizar o empregado
pelo risco intrínseco do empreendimento, enquanto, a responsabilidade civil
decorre do dano causado pela conduta negligente ou imprudente daquele que
tinha o dever de zelar pela segurança física do seu empregado. Assim, os
institutos não se confundem. Nesse sentido, o art. 7º, XXVIII da CF dispõe que
constitui direito do trabalhador o “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo
do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando
incorrer em dolo ou culpa”.
A Constituição disciplinou a responsabilidade civil subjetiva aos eventos
danos decorrentes da relação do trabalho. Nessa modalidade, só haverá
392

responsabilidade civil se comprovado que o empregador agiu com dolo ou culpa,


ainda que leve ou levíssima. Sobrevindo dano do risco normal da atividade
econômica, por si só, não configura o dever de indenizar, impondo à vítima,
nessa hipótese, comprovar a violação contratual ou extracontratual, sob o risco
de subsistir apenas o direito à cobertura do seguro acidentário, conforme as
normas da Previdência Social (OLIVEIRA, 2016, p. 98).
Em razão do avanço tecnológico, aumento dos fatores de risco e os
perigos desconhecidos da modernidade cada vez mais se tornou difícil e
complexa a demonstração da culpa, levando à construção doutrinária de que o
direito moderno já não visa o autor do dano, mais sim a vítima. Sob esse enfoque
desenvolveu-se a responsabilidade objetiva que segundo José Dallegrave Neto
(2008, p. 90) passou a:

(...) priorizar o ressarcimento do dano; a vítima, antes colocada num


plano secundário sendo ela, inclusive, o ônus da prova da culpa, passa
a ser vista pelo Direito como sujeito prioritariamente tutelado. O dever
de indenizar, em face da nova teoria do risco, independe da prova ou
da existência de culpa do agente. De consequência, rompe-se o dogma
positivista segundo o qual somente é indenizável o dano causado pela
culpa demonstrada pelo ofensor.

A responsabilidade civil objetiva vai ao encontro das necessidades de


acompanhar as transformações sociais decorrentes da globalização, garantindo
maiores condições de responsabilização do dano causado, ora pelo
cometimento de ato ilícito, ora pelo risco da atividade. No ordenamento jurídico
pátrio, há vários dispositivos legais que disciplinam a responsabilidade
independente de culpa. Cita-se o art. 21, XXII, d, da CF (danos nucleares); art.
225, §3º da CF (danos ao meio ambiente); art. 14, §1º, da Lei 6.938/81 (poluidor
pagador); arts. 12 e 14, do CDC/90; e o mais prestigiado na jurisprudência
laboral, o parágrafo único do art. 927 do CC/2002.
Nas palavras de Sebastião Oliveira (2016, p. 123) a regra do Código Civil
“representa a consolidação da teoria da responsabilidade objetiva no Brasil, que
passa a conviver no mesmo patamar de importância e generalidade da teoria da
responsabilidade”. José Dallegrave Neto (2008, p.104-105) destaca que a
disposição civilista se compatibiliza com a regra do art. 2º da CLT que disciplina
o princípio da alteridade de que os riscos da atividade não se transferem ao
trabalhador. Concluiu o autor que a CLT está adotando a teoria objetiva, não
para a responsabilidade proveniente de qualquer inexecução do contrato de
trabalho, mas para a responsabilidade concernente aos danos sofridos pelo
empregado em razão de mera execução regular do contrato de trabalho.
Destarte, empregado não pode sofrer qualquer dano pelo simples fato de
executar o contrato de trabalho.
Nas relações de teletrabalho, onde a prestação laboral se faz à distância,
quase sempre sem definição específica do local, podendo ser em domicílio,
telecentros ou nômade, torna-se demasiadamente complexo o cumprimento
legal do dever de prevenção e fiscalização das condições de trabalho. Assim,
para casos de acidente ou doença ocupacional, torna-se extremamente
complexo e oneroso ao teletrabalhador demandar prova acerca da culpabilidade
do empregador, especialmente, diante da redação dos novos dispositivos
celetista (art. 75-E da CLT) que levam a concluir que a mera instrução fornecida
pelo empregador eximiria a responsabilidade.
393

Afastar por completo a responsabilidade patronal quanto à prevenção,


controle e reparação dos eventuais danos implica em precarizar a relação de
trabalho, afrontando, por consequência, a dignidade do trabalhador (FINCATO,
2008, p. 162). Tal interpretação levaria à revogação tácita da norma
constitucional, XXVII do art. 7º, que sistematicamente é impossível, uma vez que
uma norma infraconstitucional não pode revogar norma constitucional. Logo,
ainda permanece inconteste a obrigação do empregador de proteger o ambiente
de trabalho quer ele presencial, quer à distância, conforme também reconhecido
pela CLT no art. 6º.
Diante da antinomia entre as normas, a interpretação impõe o método
sistemático, pelo qual os dispositivos legais devem ser interpretados como sendo
parte de um sistema e não de forma isolada ou segmentada. Nesse sentido, o
sistema normativo nos mostra que a proteção do meio ambiente do trabalho é
um direito fundamental garantido a todos os trabalhadores independente do local
da prestação, porquanto está diretamente relacionado ao direito à vida. Por sua
vez, o princípio da hipossuficiência do trabalhador e da alteridade dispõe que os
riscos da atividade devem ser suportados pelo empregador, garantindo proteção,
especialmente, em matéria de saúde e segurança do trabalho.
Sem dúvida, tal perspectiva permite melhor efetivação da dignidade da
pessoa humana e valorização do trabalho nas relações de teletrabalho. Assim,
diante de tais premissas principiológicas, entendemos cumprir ao empregador o
dever de proteção e prevenção dos riscos ambientais, não havendo falar na mera
instrução disposta pela reforma trabalhista. A obrigação vai no sentido de
garantir o cumprimento das NRs de modo a prestar uma ambiência laboral
segura, além de implementar a fiscalização nos termos da lei.
Por consequência, entendemos ser aplicável a responsabilidade civil
objetiva, em casos de infortúnios laborais, competindo ao empregador o ônus de
provar que se desincumbiu do seu dever de cautela ou que existiu causas
excludentes. Ao teletrabalhador cumpre provar a existência de dano e nexo
causal. Nesse sentido, 2ª Jornada de direito material e processual do trabalho
promovida pela ANAMATRA estabeleceu os enunciados 7.31 e 7.42.
Apurar a responsabilidade civil nos contratos de teletrabalho pressupõe,
pois, a definição sobre a quem recairá o dever de precaução sobre os riscos
laborais, circunstância que a Reforma Trabalhista, notadamente, deixou ainda
mais obscura. As novas disposições legislativas em vez de fornecer ao órgão
jurisdicional mais mecanismos para garantir ao teletrabalhador o direito
fundamental ao meio ambiente de trabalho equilibrado, fragilizou direitos

1 7.3 TELETRABALHO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR POR DANOS. A mera


subscrição, pelo trabalhador, de termo de responsabilidade em que se compromete a seguir as
instruções fornecidas pelo empregador, previsto no art. 75-E, parágrafo único, da CLT, não exime
o empregador de eventual responsabilidade por danos decorrentes dos riscos ambientais do
teletrabalho. Aplicação do art. 7º, XXII da Constituição c/c art.927, parágrafo único, do Código
Civil. (Enunciado Aglutinado nº 3 da Comissão 6).
2 7.4 TELETRABALHO. CONTROLE DOS RISCOS LABOR-AMBIENTAIS. O regime de

teletrabalho não exime o empregador de adequar o ambiente de trabalho às regras da NR-7


(PCSMO), da NR-9 (PPRA) e do artigo 58, § 1º, da Lei 8.213/91 (LTCAT), nem de fiscalizar o
ambiente de trabalho, inclusive com a realização de treinamentos. Exigência dos artigos 16 a 19
da convenção 155 da OIT. (Enunciado nº 1 da Comissão 6). Disponível no site da ANAMTRA:
<https://drive.google.com/file/d/1oZL9_JohYjNInVvehEzYDp-bl0fcF6i6/view. Acesso em 26 nov.
2018>.
394

estabelecidos pela legislação pátria que já equiparava os direitos dos


trabalhadores presenciais e a distância.
Sem a pretensão de resolver todas essas indagações acima, acredita-se
que apesar das lacunas jurídicas instauradas pela Lei n. 13.467/2017 quanto à
ambiência laboral nos contratos de teletrabalho, os regramentos jurídicos acima
delineados juntamente com os princípios informadores do direito do trabalho e
do direito ambiental, em especial, os princípios da precaução e da prevenção,
podem fornecer ao órgão jurisdicional subsídios para prestar a tutela jurisdicional
de modo atender aos ditames constitucionais da valorização social do trabalho
e da dignidade da pessoa humana em casos de infortúnios laborais.
Aos empregadores que tenham a pretensão de implementar tal
modalidade deve-se destacar que o princípio da alteridade veda transmitir ao
trabalhador os riscos do negócio (art. 2º, CLT), portanto, apesar da lacuna
jurídica, o empregador deve imprimir todos os esforços para garantir a saúde e
segurança do teletrabalhador em compensação às vantagens auferidas pela
redução de custos do labor prestado a distância, de modo a atender ao caráter
sinalagmático do contrato de trabalho.

CONCLUSÃO

O desenvolvimento do presente artigo teve o objetivo de debater sobre a


responsabilidade civil aplicada aos contratos de teletrabalho após a edição da
Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), mediante uma visão sistemática do
ordenamento jurídico, tendo como foco a proteção dos direitos trabalhistas que
não se restringe ao trabalhador de vínculo celetista, mas a todo aquele que
exerce atividade laborativa, remunerada ou não, pois sob a ótica constitucional
a todos são garantidos um ambiente de trabalho saudável e seguro necessário
à digna a e sadia qualidade de vida, pautado na persecução da dignidade da
pessoa humana do teletrabalhador e no princípio da vedação ao retrocesso
social.
Após análise crítica dos novos dispositivos criados pela Lei 13.467/2017
(Reforma Trabalhista) que disciplinam sobre as condições de trabalho e
responsabilidade civil nos contratos de teletrabalho, conclui-se que a despeito
do teletrabalho possuir as mesmas características das demais relações
empregatícias, o tratamento dado pelo legislador fragilizou o direito trabalhista
do teletrabalhador de ter um meio ambiente laboral equilibrado. Contudo,
conforme apresentado, o direito ao meio ambiente saudável é, além de direito
social constitucional, um direito humano e como tal deve ser respeitado e
protegido em sua integridade.
O teletrabalho é uma espécie de trabalho à distância, cujos elementos
configuradores são: a) o trabalho preponderantemente fora do espaço físico da
empresa; b) uso de tecnologias de informação e de comunicação; c) que não
constitua por sua natureza trabalho externo, consoante art. 75-B da CLT.
Ao analisar a responsabilidade civil nessa modalidade contratual
apresentou-se o regramento jurídico sobre as duas teorias da responsabilidade
civil subjetiva e objetiva, debatendo a sua aplicação frente aos novos contextos
da modernidade. Sendo ao final concluído ser mais compatível com os preceitos
constitucionais e princípios orientadores do direito do trabalho a aplicação da
responsabilidade civil objetiva prevista no parágrafo único do art. 927 do Código
395

Civil de 2002. Afinal, o direito moderno já não visa o autor do dano, mais sim
reparar o dano sofrido pela vítima.

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397

ASPECTOS TRABALHISTAS DOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS:


CONSEQUÊNCIAS DO ACIDENTE DE TRABALHO NA RELAÇÃO JURÍDICA
DE EMPREGO
LABOR ASPECTS OF SOCIAL BENEFITS: CONSEQUENCES OF THE
OCCUPATIONAL ACCIDENT ON THE LEGAL RELATIONSHIP OF
EMPLOYMENT

Karla Luzia Alvares dos Prazeres


Michele Del Pino
Orientador(a): Paulo Joviniano Alvares dos Prazeres

Resumo: Ante os efeitos das reformas trabalhista realizadas, esta claro que o
legislador brasileiro desconhece a realidade associada entre o capital e a força
de trabalho. Isso porque, a realidade contratual entre empregador e empregado
é povoada de questões que a legislação deixa de tratar, cabendo a doutrina e ao
Poder Judiciário desempenharem essa função, a fim de reduzir os prejuízos
causados pelas lacunas da lei. Inclusive, mesmo após as propostas impostas
pelo governo, matérias espinhosas restam esquecidas, entre essas, trago à baila
a questão da percepção de auxílio doença pelo empregado, durante o contrato
de experiência. Cumpre ressaltar que, a intenção do presente artigo é apresentar
breves linhas acerca do tema e, instigar o enfrentamento da questão confrontada
por muitos operadores do Direito no dia-a-dia, em uma analise das
consequências da percepção de alguns benefícios previdenciários no contrato
de trabalho.
Palavres-chaves: Auxilio Doença. Acidente de Trabalho. Benefícios
Previdenciários.

Summary: Given the effects of the labor reforms carried out, it is clear that the
Brazilian legislature is unaware of the associated reality between capital and the
labor force. This is because, the contractual reality between employer and
employee is populated by issues that the legislation fails to address, and the
doctrine and the judiciary should play this role in order to reduce the damage
caused by the loopholes of the law. Even after the proposals imposed by the
government, thorny matters remain forgotten, among them, I bring up the issue
of the employee's perception of sickness during the experience contract. It is
noteworthy that the purpose of this article is to present brief lines on the subject
and to encourage the confrontation of the issue confronted by many legal
operators on a daily basis, in an analysis of the consequences of the perception
of some social security benefits in the employment contract. job.
Keywords: Aid Disease. Work accident. Social Security Benefits.

1. INTRODUÇÃO

Prima facie devemos realizar distinção entre auxílio-doença comum e


auxílio-doença por acidente do trabalho. O auxílio-doença comum, concedido
pelo INSS sob o código 31, é devido àqueles empregados que sofrem um
infortúnio e/ou são acometidos por doenças, os quais não estão relacionados ao
398

exercício da atividade laboral e, que comprometem, temporariamente, a sua


capacidade ao trabalho, por um período superior a 15 (quinze) dias.
Por outro turno, o auxílio-doença por acidente do trabalho, sob o código
91, é devido quando o empregado sofre um acidente e/ ou doença diretamente
ligados à sua atividade laboral, necessitando afastar-se de suas atividades
laborais por um prazo superior a 15 (quinze) dias, exemplifica-se: marceneiro,
durante a jornada de trabalho, corta a mão na serra.
No entanto, a dúvida permanece: Quais são os efeitos na relação de trabalho,
quando o empregado, sob a égide do contrato de experiência, precisa afastar-
se do trabalho e receber o auxílio doença? A fim de responder este
questionamento, deve-se levantar, primeiramente, qual o tipo de acidente e/ou
doença o empregado está acometido.
Na hipótese do obreiro esteja incapacitado ao trabalho, em decorrência
de uma doença desvinculada a atividade laboral, sendo elegível ao auxílio
doença comum (código 31), o contrato de trabalho é suspenso, de acordo com
o artigo 476 da Consolidação das Leis Trabalhistas, cabendo ao INSS
remunerar o trabalhador até a sua alta.
De igual forma, o empregador não tem o dever de proceder o depósito do
FGTS, durante o afastamento do empregado, a partir do 16.º dia (artigo 28,
inciso II do Decreto 99.684/1990), sendo que, recuperada a sua capacidade ao
trabalho, se for interesse da empresa, o empregado poderá voltar para finalizar
o restante do contrato de experiência e ser contratado, ou ao término do prazo
da experiência, ser dispensado, diante do poder potestativo do empregador.
Por outro lado, se o trabalhador sofrer acidente do trabalho na vigência do
contrato de experiência, o empregador deverá comunicar o fato ao INSS, o qual
liberará o pagamento do auxílio-doença acidentário e, durante o afastamento do
empregado, serão devidos os depósitos do FGTS. Após a sua alta, o empregado
fará jus à estabilidade provisória de emprego, por doze meses, de acordo com o
artigo 118 da lei 8.213/1991.

2. AS CONSEQUÊNCIAS DO AUXÍLIO DOENÇA NO CONTRATO DE


TRABALHO

Inicialmente se faz necessário definir que: A expressão contrato de


trabalho pode ser também utilizada no sentido lato. Se o for, estará abarcando
todos os contratos que tenham como objeto a pactuação de prestação de
serviços por uma pessoa natural ou outrem. Abrangeria, pois, o contrato de
trabalho no sentido estrito (ou contrato de emprego, isto é, contrato que tenha
como objeto a prestação empregatícia de trabalho), englobando, ainda, o
contrato de empreitada, o contrato de prestação de serviços de estágio e outros
contratos de prestação laboral distinta da empregaticiamente pactuada
(DELGADO, 2015, p.470).
O auxílio-doença é benefício previdenciário devido ao segurado-
empregado incapacitado para o trabalho ou para a sua atividade habitual. De
acordo com o § 3º, do artigo 60, da Lei 8.213/91, cabe à empresa o pagamento
dos salários do empregado durante os primeiros 15 dias consecutivos de
afastamento por motivo de doença. Nesse período, o contrato de trabalho fica
interrompido, mantendo-se todos os efeitos do contrato. Se a incapacidade
ultrapassar 15 dias consecutivos, o segurado-empregado será encaminhado à
perícia médica do INSS (§ 4º, do artigo 60, da Lei 8.213/91) para percepção do
399

auxílio-doença. Ocorrendo reaparecimento da mesma doença no prazo de 60


dias, contados da cessão do benefício anterior, o empregador está desobrigado
de efetuar novo pagamento dos 15 primeiros dias de afastamento do
emprego. O período em que o empregado se encontra afastado do trabalho
em gozo de auxílio-doença é considerado como licença não remunerada pela
empresa.
Durante o período de gozo do auxílio-doença, o contrato de trabalho do
empregado fica com os seus efeitos suspensos, porque não há pagamento de
salários pelo empregador. Todavia, como na suspensão, o contrato de trabalho
continua em vigor e produz alguns efeitos jurídicos. Se o empregado usufrui
habitação fornecida pelo empregador, tem direito a permanecer nela durante o
período em que se encontra doente. Por outras palavras, o salário-utilidade não
pode ser suprimido durante o período de gozo do auxílio-doença, sob pena de
configurar alteração unilateral prejudicial.
Se o afastamento decorre de acidente do trabalho, o empregado tem
direito aos depósitos do FGTS mesmo no período de gozo do auxílio-doença
acidentário, em face do artigo 15, § 5º, da Lei 8.036/90 (Lei do FGTS). Quanto
ao 13º salário, o empregador não tem a obrigação legal desse pagamento,
referente ao período de concessão do auxílio-doença, cabendo ao INSS pagar
o abono anual desse período. Na suspensão são "asseguradas ao empregado,
afastado do emprego, por ocasião de sua volta, todas as vantagens que, em
sua ausência, tenham sido atribuídas à categoria a que pertencia na empresa"
(CLT, artigo 471).
De outra parte, se a doença ocorrer no período em que o empregado
estiver em gozo de férias, estas não se interrompem. Mas, se a incapacidade
decorrente da doença persistir após o retorno das férias, o empregador será
obrigado a pagar os primeiros 15 dias de afastamento do empregado. Já se o
empregado estiver em gozo de auxílio-doença, não poderá iniciar a fruição de
suas férias, porque é incompatível a fluência simultânea de ambos. Recebendo
alta médica do INSS, o empregado deve retornar imediatamente às atividades
profissionais. Em caso de inconformidade com a decisão do INSS, o segurado-
empregado deve providenciar o ingresso de recurso administrativo ou medida
judicial para prorrogação do benefício cancelado. Como a percepção do
auxílio-doença exige a incapacidade para o exercício da atividade profissional
habitual, por essa razão, o empregado não pode voltar a trabalhar enquanto
discute administrativa ou judicialmente o cancelamento do benefício
previdenciário.
Por outro lado, o empregador não tem a obrigação de pagar salários
durante esse período, uma vez que o empregado não se encontra trabalhando.
O empregador só é obrigado a pagar os salários dos 15 primeiros dias de
afastamento do trabalho, passando a ser obrigação do INSS a concessão de
auxílio-doença a partir do 16º dia, quando cumprir o segurado os requisitos
necessários à sua obtenção.

3. AS CONSEQUÊNCIAS DO AUXÍLIO DOENÇA ACIDENTÁRIO NO


CONTRATO DE TRABALHO

No Brasil, adotou-se no início a ideia de que cabia ao empregador


contratar um seguro para seus empregados, protegendo-os contra os riscos
400

decorrentes do exercício da atividade laborativa. Configurando o sinistro, o


segurador ficava sub-rogado nas obrigações do empregador. (OLIVEIRA, 2011)
A constatação de que a incapacidade laboral do empregado decorreu de
acidente do trabalho ou de doença ocupacional ou profissional gera
consequências na relação de emprego causando obrigações para a empresa
ou empregador a ela equiparado. Por isso, em determinados casos, há certa
hesitação do empregador em formalizar a comunicação de acidente de trabalho
à Previdência Social, razão pela qual a Lei 11.430/2006 criou o Nexo Técnico
Epidemiológico Previdenciário - NTEP.
Talvez a mais conhecida conseqüência da incapacidade oriunda de
acidentes do trabalho seja a estabilidade provisória introduzida pelo art. 118 da
Lei 8.213/91. Trata-se de hipótese específica de garantia de emprego
assegurada por meio de lei ordinária com fundamento no princípio da norma
mais benéfica, não havendo que se falar em inconstitucionalidade em face do
disposto no art. 7º, inc. I, da Constituição Federal.

“Art. 118. O segurado que sofreu acidente do trabalho tem


garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do
seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-
doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-
acidente.”

A Súmula 378 do TST estabeleceu os pressupostos para a concessão


da estabilidade:

“SUM-378 ESTABILIDADE PROVISÓRIA. ACIDENTE DO


TRABALHO. ART. 118 DA LEI Nº 8.213/1991.
CONSTITUCIONALIDADE. PRESSUPOSTOS
I - É constitucional o artigo 118 da Lei nº 8.213/1991 que assegura
o direito à estabilidade provisória por período de 12 meses após a
cessação do auxílio-doença ao empregado acidentado.
II - São pressupostos para a concessão da estabilidade o
afastamento superior a 15 dias e a conseqüente percepção do
auxílio-doença acidentário, salvo se constatada, após a
despedida, doença profissional que guarde relação de
causalidade com a execução do contrato de emprego.”

De acordo com a CLT, “o empregado que for aposentado por invalidez


terá suspenso o seu contrato de trabalho durante o prazo fixado pelas leis de
previdência social para a efetivação do benefício” (art. 475, caput). Nos termos
dos parágrafos do mencionado dispositivo, a Lei consolidada ainda prevê que:

“§1º Recuperando o empregado a capacidade de trabalho e sendo


a aposentadoria cancelada, ser-lhe-á assegurado o direito à
função que ocupava ao tempo da aposentadoria, facultado, porém,
ao empregador, o direito de indenizá-lo por rescisão do contrato
de trabalho, nos termos dos arts. 477 e 478, salvo na hipótese de
ser ele portador de estabilidade, quando a indenização deverá ser
paga na forma do art. 497.
§2º Se o empregador houver admitido substituto para o
aposentado, poderá rescindir, com este, o respectivo contrato de
trabalho sem indenização, desde que tenha havido ciência
inequívoca da interinidade ao ser celebrado o contrato.”
401

Portanto, na aposentadoria por invalidez fica suspenso o contrato de


trabalho, eis que, atualmente, o referido benefício previdenciário não é
definitivo. De acordo com a Súmula 160 do TST, “cancelada a aposentadoria
por invalidez, mesmo após cinco anos, o trabalhador terá direito de retornar ao
emprego, facultado, porém, ao empregador, indenizá-lo na forma da lei”.
De acordo com o art. 4º, parágrafo único da CLT, todo o período de
afastamento por motivo de acidente do trabalho é considerado na contagem do
tempo de serviço, sendo devidos os respectivos depósitos do FGTS (art. 15,
§5º, da Lei 8.036/1990).
Além disso, não é considerada falta ao serviço, para efeito do direito de
aquisição das férias, a ausência do empregado por motivo de acidente do
trabalho (art. 131, inc. III, da CLT). No entanto, não terá direito a férias o
empregado que, no curso do período aquisitivo, tiver percebido da Previdência
Social prestações de acidente do trabalho por mais de seis meses, ainda que
descontínuos (art. 133, inc. IV, da CLT).
Não é permitida a dissolução do contrato de trabalho do acidentado,
durante o seu afastamento em gozo do auxílio-doença acidentário, imotivada
nem mediante acordo entre as partes.
Plenamente possível a despedida por justa causa. Não existe qualquer
impedimento para que tal ocorra, se o empregado acidentado cometer alguma
falta grave, sendo irrelevante que o seu contrato de trabalho esteja suspenso
por causa do acidente do trabalho, inclusive porque a dissolução contratual não
afeta o gozo do benefício acidentário, que continuará a ser pago ao empregado
até que seja declarado apto para o trabalho (apenas ele não mais retornará à
empresa para a qual trabalhava por já ter sido desfeito, motivamente, o elo
laboral). Esse entendimento se coaduna com o princípio da imediatidade entre
o cometimento da falta rescisiva e o ato patronal desfazitório do liame
empregatício.

4. DO AUXÍLIO ACIDENTE E REABILITAÇÃO

Se, ficar comprovado que o trabalhador em decorrência do acidente


ou doença ficar incapacitado para o exercício da sua atividade, cabe ao
INSS promover a reabilitação profissional aos segurados.
Concluído o processo de reabilitação profissional, o INSS emitirá
certificado individual, não constituindo obrigação do INSS a manutenção do
segurado no mesmo emprego ou colocação profissional no mercado de
trabalho.
No caso de o empregado acidentado sofrer redução definitiva da sua
capacidade laborativa, ele faz jus ao chamado auxílio-acidente, após cessar o
auxílio-doença, em cujo gozo se encontrava. Essa vantagem não decorre
unicamente em caso de acidente do trabalho, mas na hipótese de o obreiro ser
vítima de acidente de qualquer natureza. O benefício consiste no pagamento
mensal de uma importância correspondente a 50% do salário-de-benefício. O
empregado retornará ao serviço, voltará a receber o salário pelo trabalho que,
de novo, prestará, e receberá mensalmente o auxílio-acidente, a título de
indenização pela sequela decorrente do evento acidentário. Somente deixará
de recebê-lo ao aposentar-se.
A empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de
2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras
402

de deficiência, habilitadas, na proporção do art. 93 da Lei 8.213/91. A dispensa


de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final do contrato por
prazo determinado de mais de 90 dias, e a imotivada, no contrato por prazo
indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição
semelhante.

5. AS CONSEQUÊNCIAS TRABALHISTAS DA APOSENTADORIA POR


INVALIDEZ

A concessão de auxílio doença ao empregado acidentado pressupõe que


a incapacidade para o trabalho é temporária, existindo, portanto, a possibilidade
de, recuperado, voltar à atividade. A duração desse benefício, no entanto, não
tem prazo pré-determinado. Depende do tempo necessário ao tratamento
médico e ao restabelecimento da aptidão funcional. Enquanto restar a
possibilidade de recuperação para a atividade que habitualmente exercia, o
serviço médico da Previdência Social vai prorrogando o período de duração.
Se, em vez da incapacidade cessar, aumentar, progredir, tornando-se o
empregado sem condições de voltar à atividade, não só para o serviço a que
se dedicava, mas também para qualquer outro capaz de lhe prover a
susbsistência, configura-se a sua invalidez. Dá-se, então, a conversão do
auxílio-doença em aposentadoria por invalidez. Não quer dizer que o auxílio-
doença sempre antecipa a aposentadoria por invalidez. Se a perícia médica
constatar que o segurado não apresenta viabilidade de recuperar-se para o seu
ou para qualquer outro trabalho do qual retire os ganhos destinados à sua
sobrevivência, poderá, em vez de opinar pela concessão do auxílio-doença,
concluir pelo deferimento da aposentadoria por invalidez.
Também a aposentadoria por invalidez suspende o contrato de trabalho,
provocando idênticas conseqüências que o auxílio-doença provoca, mantendo-
se, incólume, a relação de emprego, desativada durante algum tempo. Jamais
assume a aposentadoria caráter definitivo, por mais irreversíveis que se
apresentem as condições do empregado. Tanto que ele fica obrigado a
submeter-se a exames médico-periciais de dois em dois anos ou a qualquer
tempo, ao alvedrio do órgão previdenciário. No dia em que for detectada a sua
recuperação, o benefício será cancelado.
O benefício tem caráter provisório. Sendo assim, de acordo com
Fábio Zambitte Ibrahim, “como a efetivação nunca ocorrerá, salvo
conversão em aposentadoria por idade, não haverá o término do contrato”
(IBRAIHIM, 2012). O autor ainda sugere que, por conta disso, muitos
empregadores, pelo fato de não poderem encerrar as atividades, aguardam
pela morte do empregado; porém lhes é garantido romper esse contrato caso
haja o pagamento de todas as verbas rescisórias ao obreiro, na forma do art.
475, §1º, da CLT.
A esse respeito, a Súmula nº 160 do TST esclarece

“APOSENTADORIA POR INVALIDEZ (mantida) - Res.


121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 - Cancelada a aposentadoria
por invalidez, mesmo após cinco anos, o trabalhador terá direito
de retornar ao emprego, facultado, porém, ao empregador,
indenizá-lo na forma da lei (ex-Prejulgado nº 37).”

Sendo assim, o empregador não pode ficar aguardando o retorno do


403

segurado eternamente, sendo garantido ao segurado o retorno às atividades,


mesmo decorridos cinco anos; o que não é obrigatório é o pagamento da
indenização pelo empregador.
O art. 475, caput, da CLT prevê expressamente que o empregado
aposentado por invalidez “terá suspenso o seu contrato de trabalho durante o
prazo fixado pelas leis de previdência social”.
Temos, assim, que a legislação trabalhista adota a compreensão de que
a aposentadoria por invalidez é causa de suspensão (não interrupção) do
contrato de trabalho, assim como remete às leis de previdência social a fixação
do prazo dessa paralisação dos efeitos do contrato de trabalho.
O TST tem posição firmada no sentido de que o prazo prescricional de 5
anos (art. 7º, XXIX, da CF/88) flui regularmente durante o gozo da
aposentadoria por invalidez. É o que está sedimentado na OJ nº 375 da SDI-1
do TST:
A suspensão do contrato de trabalho, em virtude da percepção do
auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez, não impede a fluência da
prescrição quinquenal, ressalvada a hipótese de absoluta impossibilidade de
acesso ao Judiciário.
A citada OJ n. 375 do TST apenas exclui da regra geral a situação de
“absoluta impossibilidade de acesso ao Judiciário”.
O mesmo não ocorre com relação à prescrição bienal, pois essa
pressupõe a “extinção do contrato de trabalho”, e, no caso, o pacto laboral está
apenas suspenso (não desfeito).
Tema bastante controvertido é quanto à obrigação da empresa em
custear o plano de saúde do empregado durante a vigência da aposentadoria
por invalidez, que, como visto em linhas passadas, não tem prazo previamente
definido.
O empregador, de um lado, sustenta que, como a aposentadoria por
invalidez (ou auxílio-doença) suspende o contrato de trabalho, e se valendo do
próprio conceito doutrinário do que seja “suspensão”, isto é: não há trabalho
nem contraprestação pela empresa.
A tese contrária, apresentada pelo empregado, consiste, basicamente,
na fundamentação de que: a) a suspensão cessa apenas as principais
obrigações das partes (prestação do trabalho e pagamento do salário), mas não
as acessórias (benefícios, no caso do plano de saúde); b) em face da
habitualidade em que prestada, o benefício adere ao contrato de trabalho,
incorporando-se ao patrimônio jurídico do trabalhador (art. 468, caput, da CLT);
c) aplicação do princípio da boa-fé (art. 422 do CC/02), pois é o momento em
que o empregado mais necessita do plano de saúde.
O TST recentemente acolheu a última tese, de acordo com a súmula 440
(Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012):

AUXÍLIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO. APOSENTADORIA POR


INVALIDEZ. SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO.
RECONHECIMENTO DO DIREITO À MANUTENÇÃO DE PLANO
DE SAÚDE OU DE ASSISTÊNCIA MÉDICA - Res. 185/2012, DEJT
divulgado em 25, 26 e 27.09.2012. Assegura-se o direito à
manutenção de plano de saúde ou de assistência médica oferecido
pela empresa ao empregado, não obstante suspenso o contrato de
trabalho em virtude de auxílio-doença acidentário ou de
aposentadoria por invalidez.
404

O aposentado por invalidez que retornar voluntariamente à atividade


tem a sua aposentadoria automaticamente cancelada, a partir da data do
retorno (art. 46 da Lei 8.213/1991).

6. CONCLUSÃO

Do presente estudo, verifica-se a forte ligação entre direito previdenciário


e do trabalho e as consideráveis consequências dos benefícios previdenciários
no contrato de trabalho.
Constata-se também a ausência legislativa de definição acerca do
término do contrato de trabalho quando da percepção de aposentadoria por
invalidez.
Não parece justo que o empregado que não tem chance de retomar a
sua atividade profissional em decorrência de acidente/doença e goza de
aposentadoria por invalidez não tenha acesso as suas verbas rescisórias, tendo
a sua rescisão contratual tão somente com o fator morte.

REFERÊNCIAS

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 17. ed. Rio de


Janeiro: Impetus, 2012.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14 ed. São


Paulo: LTr, 2015.

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por Acidente do Trabalho


ou Doenças Ocupacionais. 6 ed. São Paulo: Ltr, 2011.

ROMAR, Carla Teresa Martins. Direito do Trabalho esquematizado. 3 ed.


São Paulo: Saraiva, 2015.

SANTOS, Maria Ferreira dos. Direito previdenciário esquematizado. 5 ed.


São Paulo: Saraiva, 2015.

SALIM, Celso Amorim et al. Saúde e segurança no trabalho: novos olhares e


saberes. Belo Horizonte: Fundacentro/ Universidade Federal de São João Del
Rei, 2003.
405

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ASSÉDIO MORAL E O MEIO AMBIENTE


LABORAL: BREVE ANÁLISE SOBRE OS TRANSTORNOS MENTAIS
CONSIDERATIONS ON MORAL HARASSMENT AND THE LABOR
ENVIRONMENT: A BRIEF ANALYSIS ON MENTAL DISORDERS

Virgínia Izabelly Amorim Carneiro da Fonseca


Itacylla Maria Lindoso Homem
Orientador(a): Adriana Mendonça da Silva

Resumo: A análise do assédio moral e do meio ambiente laboral como causa


geradora de transtornos mentais está relacionada à defesa da saúde e
segurança do trabalhador. Trata-se de um direito fundamental, previsto no art.
225 na Constituição Federal de 1998. O assédio moral é uma agressão reiterada
e sistemática, podendo ser de ordem física ou psíquica, e que atinge a saúde
mental dos trabalhadores resultando em danos psicopatológicos. Entre os
principais transtornos mentais decorrentes do assédio moral estão a Síndrome
de Burnout, a depressão, o estresse. A proteção do direito à saúde do trabalho
exige políticas públicas de enfrentamento ao assédio moral, à degradação do
meio ambiente do trabalho, assim como atuação de órgãos de controle em
matéria de segurança, higiene e saúde do trabalho, como o Ministério Público do
Trabalho, a Justiça do Trabalho e os órgãos de fiscalização das relações de
trabalho.
Palavras-Chaves: Assédio Moral. Meio Ambiente Laboral. Transtornos Mentais.

Abstract: The analysis of bullying and the work environment as a cause of


mental disorders is related to the defense of health and safety of workers. This is
a fundamental right, provided for in art. 225 in the Federal Constitution of 1998.
Bullying is a repeated and systematic aggression, can be physical or mental, and
affects the mental health of workers resulting in psychopathological damage.
Among the main mental disorders resulting from bullying are Burnout Syndrome,
depression, stress. The protection of the right to occupational health requires
public policies to combat bullying, the degradation of the work environment, as
well as the performance of control bodies in matters of occupational safety,
hygiene and health, such as the Public Prosecution Service, Labor Justice and
labor relations supervisory bodies.
Keywords: Moral Harassment. Labor Environment. Mental disorders.

INTRODUÇÃO

O estudo do assédio moral e do meio ambiente de trabalho como


causadores de transtornos mentais nas relações de trabalho é de extrema
relevância quando se considera o crescente aumento nas estatísticas de
afastamentos por doenças psíquicas como a Síndrome de Burnout, a depressão
e o estresse.
Conforme preceitua a Constituição Federal, o meio ambiente de trabalho
é todo local em que o homem pode desempenhar as suas atividades laborais,
afim de adquirir sua subsistência. Ocorre que, é no contexto do ambiente laboral
que o trabalhador vem sofrendo com uma grave violência psíquica e que afeta a
relação de trabalho, que é o Assédio Moral.
406

As situações de competitividade e exigências do mercado de trabalho


levam o trabalhador a suportar violências, inclusive de ordem moral e psíquica,
que o leva ao adoecimento. Conforme levantamento feito pelo Plano de Ação
para a Saúde Mental 2013-2020, da Organização Mundial da Saúde (OMS), pelo
menos 13% de todas as doenças são distúrbios mentais, o que equivale a um
terço das doenças não transmissíveis (MOUSINHO, 2015, p. 138).
Nesse contexto, importa o estudo sobre a caracterização do assédio
moral e suas formas de manifestação, da legislação e conceitos básicos sobre o
meio ambiente de trabalho e como pode desencadear condutas assediantes,
com comprometimento à saúde e o desempenho profissional do trabalhador,
uma vez que é um instrumento organizacional para se alcançar as metas
estabelecidas. (HAZAN, 2013, p.190).
Para a presente pesquisa, foi realizada uma revisão bibliográfica
explorando os principais autores e dados estatísticos sobre o assédio moral e os
transtornos mentais ligados à relação trabalhista.

ASSÉDIO MORAL

O assédio moral é conduta difundida pelo mundo inteiro, entretanto, muito


ainda se discute sobre seu conceito, principalmente, a respeito dos elementos
característicos da prática assediadora.
Hirigoyen (2006, p.65) afirma ser o assédio moral no trabalho, “toda e
qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo, por comportamentos,
palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à
dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu
emprego ou degradar o ambiente de trabalho”.
Essa definição é considerada pioneira, porém, foi aperfeiçoando-se com
o tempo e recebendo a atribuição de novos elementos. No ordenamento jurídico
brasileiro, vários autores1 tratam desse assunto, não existindo um único e
finalizado conceito de assédio moral.
Em relação à conduta, o assédio moral pode ser conceituado como:

[...] um conjunto de condutas abusivas e intencionais, reiteradas


e prolongadas no tempo, que visam a exclusão de um
empregado específico, ou de um grupo determinado destes, do
ambiente de trabalho por meio do ataque à sua dignidade,
podendo ser comprometidos, em decorrência de seu caráter
multiofensivo, outros direitos fundamentais, a saber: o direito à
integridade física e moral, o direito à intimidade, o direito ao
tratamento não discriminatório, dentre outros (WYZYKOWSKI et
al., 2014, p. 117).

É certo que o assédio moral está associado à ideia de “terror psicológico”,


“psicoterror”, “violência psicológica”, de tal modo, que a caracterização do
assédio moral faz-se imprescindível a presença de violência psicológica, capaz
de causar danos psíquicos e morais, considerada grave o suficiente, conforme a
sensibilidade do homem médio.
Destacam-se como tipos de assédio, o vertical, que pode ser ascendente
e descendente, o horizontal e o misto.

11 Luciana Veloso Baruki, Margarida Maria Silveira Barreto, Ana Paula Rojas.
407

O assédio moral vertical ocorre quando se está diante de uma relação


abertamente assimétrica, seja porque o assediador é empregador ou seu
representante (superior hierárquico), seja porque ele próprio torna-se vítima de
assédio cometido por seus submissos.
O assédio moral vertical ascendente ocorre quando a vítima é superior
hierárquico, que é agredido em razão de violência psicológica exercida por vários
de seus subordinados. Denomina-se assédio moral vertical descendente aquele
em que figura como assediador o empregador ou um superior hierárquico. Trata-
se da modalidade mais comum de assédio, que decorre da própria organização
da empresa e das prerrogativas do poder de direção do empregador inerentes
ao contrato de trabalho.
Assédio moral horizontal ocorre quando a violência psicológica é levada
a efeito pelos próprios colegas de trabalho. Nesta situação, a vítima (um
empregado) vê-se diante de circunstâncias, em que seus pares (outros
empregados), praticam o assédio. Nesta situação a empresa terá
responsabilidade pela conduta assediadora, na medida em que a ocorrência do
assédio moral tem fundamento na omissão (tolerância) ou do estímulo
organizacional.
Destaca-se que o assédio “pode ser praticado por apenas um colega, ou
por vários, situação em que a vítima passa a ser o bode expiatório do grupo, que
colaborando com o perverso, desafoga sua intolerância, preconceito, frustações,
inveja, agravando, sensivelmente, o sofrimento da vítima” (GUEDES, 2008, p.
39).
O assédio moral misto é praticado por aquele que já foi assediado, sofreu
a prática do assédio moral, não só do superior hierárquico, mas também dos
colegas, ou vice-versa.
Uma das consequências do assédio moral no ambiente de trabalho é o
adoecimento do trabalhador, que costuma permanecer em silêncio, sem
denunciar a prática. A ocultação do fato faz com que o trabalhador acabe
laborando doente, pois não quer transmitir qualquer fraqueza.
O assédio moral no trabalho é uma ampla espécie de violência
psicológica, cometida no local de trabalho, de maneira sistemática, abusiva e
reiterada, constituída comumente por gestos, comportamentos, olhares e
palavras sutis e covardes, levadas a efeito por empregadores, superiores
hierárquicos ou colegas de trabalho, capazes de debilitar o psíquico e físico da
vítima, praticada com finalidade de eliminar o empregado do meio de trabalho ou
de desgastar o local em que presta serviço.

MEIO AMBIENTE LABORAL E O DIREITO À SAÚDE DO TRABALHADOR

O art. 3º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a


Política Nacional do Meio Ambiente, assevera que se deve entender por "meio
ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física,
química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Trata-se de um direito fundamental previsto na Constituição Federal de
1998, que em seu art. 225, estabelece que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem


de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defender,
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
408

Os art. 200, inc. VIII e art.7º, inc. XXIII da Constituição Federal preceituam
sobre a proteção ao meio ambiente do trabalho, estando, portanto,
constitucionalmente assegurada. Estabelece como direito dos trabalhadores
a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde,
higiene e segurança.
O meio ambiente laboral é definido por todo local em que o homem presta
serviços com a finalidade de buscar sua subsistência. Barros (2013, p.1036)
define meio ambiente do trabalho como:

O local onde o homem obtém os meios para prover a sua subsistência,


podendo ser o estabelecimento empresarial, o ambiente urbano, no
caso dos que executam atividades externas e, até o domicílio do
trabalhador, no caso do empregado a domicílio, ou seja é o conjunto
de fatores físicos, climáticos ou qualquer outro que, interligados ou não,
estão presentes e envolvem o local de trabalho da pessoa.

Para Mancuso (2002, p.59):

O meio ambiente do trabalho conceitua-se habitat laboral, isto é, tudo


que envolve e condiciona, direta e indiretamente, o local onde o homem
obtém os meios para prover o quanto necessário para a sua
sobrevivência e desenvolvimento, em equilíbrio com o ecossistema.

O meio ambiente geral alcança todo cidadão e o meio ambiente de


trabalho todo trabalhador, uma vez que “todo recebem a proteção constitucional
de um ambiente de trabalho adequado e seguro, necessário á saudável
qualidade de vida” (MELO, 2008, p. 27).
Um ambiente de trabalho sadio é fundamental para diminuição de
acidentes e melhores resultados por parte do trabalhador.
A proteção do meio ambiente de trabalho é uma ferramenta para a
garantia do exercício do trabalho em condições dignas e está diretamente
relacionada à saúde do trabalhador, enquanto cidadão, não se circunscrevendo
a mero direito trabalhista vinculado ao contrato de trabalho (MELO, 2003 p.31).
O crescente número de trabalhadores que sofrem transtornos mentais em
decorrência do trabalho tem sido demonstrado nas denúncias formuladas ao
Ministério Público do Trabalho e ao Ministério do Trabalho, e, ainda, com o
aumento do número de benefícios previdenciários concedidos aos segurados
incapacitados por esses transtornos psíquicos e no acréscimo estatístico dessas
doenças nos registros do Ministério da Saúde (MOUSINHO, 215).
É de essencial importância que o meio ambiente de trabalho seja saudável
para melhor garantia dos direitos fundamentais do trabalhador. É o local onde
passa boa parte do seu dia, exigindo-se esforço físico e intelectual no
desempenho de suas funções, de tal modo que, acaba negligenciando de suas
relações pessoais e sociais, com sacrifício de momentos de descanso e lazer.
Dessa forma, a proteção ao meio ambiente de trabalho deve ser
interpretada com o artigo 7°, inc. XXII da Constituição Federal, ao referir ser
direitos dos trabalhadores a redução de riscos inerentes ao trabalho, por meio
de normas de saúde, higiene e segurança.

ASSÉDIO MORAL E SAÚDE DO TRABALHADOR: UMA ANÁLISE SOBRE OS


TRANSTORNOS MENTAIS
409

Meio ambiente laboral e saúde são temas intimamente relacionados.


Pode-se observar a relação direta do surgimento de doenças, sobretudo,
mentais, em razão do trabalho realizado em um ambiente de trabalho doente,
desgastado e opressor, o que provoca transtornos irreversíveis aos
trabalhadores, como a depressão, ansiedade, síndrome do pânico, entre outros,
e que estão associados a fatores como: más condições de trabalho, cobranças
excessivas de metas de produtividade, ritmo intenso de trabalho.
O assédio moral é um transtorno organizacional que exige alta
produtividade, impõe ritmo penoso de trabalho por meio de metas excessivas e
provoca transtornos mentais em razão da pressão suportada pelo trabalhador no
ambiente de trabalho, e que em condições adversas, como a falta de cooperação
e o não reconhecimento do esforço pessoal, causando a Síndrome de Burnout
(MOTA, 2012).
Os transtornos mentais e comportamentais também têm afastado muitos
trabalhadores das atividades laborais. Episódios depressivos implicaram, no ano
de 2017, em 43,3 mil auxílios-doença. A depressão foi a 10ª doença causadora
de afastamentos.
Enfermidades classificadas como outros transtornos ansiosos também
apareceram entre as que mais afastaram em 2017, ocupando a 15ª posição,
entre as causas de afastamento do trabalho. Foram 28,9 mil casos. O transtorno
depressivo recorrente apareceu na 21ª posição, entre as doenças que mais
provocaram afastamentos, no total de 20,7 mil auxílios.
O art. 21, inc. I, da Lei nº 8.213, de 1991, prescreve que para o
reconhecimento de doença do trabalho, a Previdência Social não exige que a
causa determinante do afastamento seja única, bastando tenha contribuído de
forma direta para esse afastamento (BRASIL, 1991).
Com fundamento na Constituição Federal e na Lei nº 8.213/1991,
entende-se que basta a comprovação de que a atividade laboral contribuiu para
o desencadeamento ou agravamento do transtorno mental, dolosa ou
culposamente, para a caracterização da responsabilidade do empregador por
acidente de trabalho que, nesse caso, seria subjetiva.
Desse modo, enfrentar o contexto do aumento crescente dos transtornos
mentais relacionados ao trabalho e garantir o direito à segurança e saúde do
trabalhador tem-se mostrado como o grande desafio do Ministro Público do
Trabalho e dos órgãos de controle para a defesa dos direitos fundamentais
relacionados ao meio ambiente e trabalho.
O local de trabalho é o ambiente que tem por objetivo promover a
dignidade do homem, a subsistência e o bem estar, proporcionar ânimo e
satisfação ao trabalhador. Entretanto, tem se tornado espaço causador de
adoecimento mental e transtornos.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde mental
depende de bem estar físico e social. Vários fatores podem comprometer a
saúde mental das pessoas, dentre eles, pode-se citar a exclusão social, a
violação dos direitos humanos e as condições de trabalho estressantes.
O ambiente de trabalho, em que ocorre a prática de assédio moral, pode
desencadear o surgimento de doenças mentais, que na verdade, formam-se
como o produto de uma série de situações negativas, cujas causas podem ser:
as competições entre os empregados, cobranças excessivas, desgaste
emocional, perseguição no trabalho, maximização da produção, abuso do poder
410

diretivo do empregador, entre outras. Nota-se, portanto, que os fatores que


acometem os trabalhadores, no que se refere à saude, não se limitam somente
a fatores químicos, biológicos ou físicos.

SÍNDROME DE BURNOUT

A Síndrome de Burnout é um transtorno mental ocasionado pelo assédio


moral, em suas diferentes modalidades. É conhecida como doença profissional
e definida pelo Ministério da Saúde como um distúrbio emocional, ocasionado
por ambientes laborais que exigem extrema competitividade e responsabilidade.
Traduzida do inglês "burnout" quer dizer queima e "out", exterior. Segundo
Bernandes (ano, p.2019) “queimar até a chama desvanecer".
Essa síndrome acomete, especialmente, os que estão envolvidos na
relação laboral e, segundo Braga (2019), em razão do ritmo acelerado e do
crescimento da pressão imposta às organizações e exigida dos trabalhadores,
sintomas de estresse, exaustão e esgotamento físico são evidenciados na
relação de trabalho.
Oficializada pela OMS, a Síndrome foi incluída na Classificação
Internacional de Doenças (CID-11) como um problema relacionado com o
emprego e desemprego.
De acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID), a
Síndrome é conceituada como uma resultante de estresse crônico. O Ministério
da Saúde também a incluiu, por meio da Portaria º 1339/99, no rol de doenças
que estão relacionadas ao trabalho.
Embora acometido pela Síndrome de Burnout e da ciência de todos os
impactos causados na vida do trabalhador, sobretudo, quando se leva em conta
sua importância no contexto familiar e de sua atuação como colaborador para a
empresa, a grande maioria dos trabalhadores acometidos da síndrome
permanecem em seus postos de trabalho, o que propicia o cometimento de erros
na execução da atividade laboral, ou seja, haverá mais custos por parte do
empregador, a possibilidade de ocorrência de acidentes de trabalho e o
agravamento do quadro clínico.
O Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) que reconheceu a patologia
como uma doença ocupacional com o Decreto nº 3.048/99, Anexo ll (Agentes
Patogênicos Causadores de Doenças Profissionais ou do Trabalhado), garante
ao trabalhador acometido da Síndrome de Burnout, a concessão de benefício
previdenciário regulamentado pela Lei nº 8.213/91, que dispõe sobre acidentes
de trabalho, equiparando-a a acidente de trabalho, uma vez que, é desenvolvida
no ambiente de trabalho e, possivelmente, pode ocasionar acidentes de trabalho,
ainda que de forma indireta.

DEPRESSÃO

É incontestável que o ambiente de trabalho, em certas condições, tem


influência direta com o adoecimento dos trabalhadores, isso ocorre em razão dos
excessos cometidos pelo empregador ao exercer o poder diretivo, ambientes
demasiadamente tensos entre profissionais que compartilham do mesmo nível
hierárquico e as pressões sofridas pelos empregados para que cumpram as
metas estipuladas, caracterizam condutas assediantes, quando praticadas
411

sistemática e reiteradamente. Além disso, as constantes crises de estresses


vivenciadas acabam acarretando outras doenças, a exemplo, a depressão.
A depressão, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde
(OPAS), é uma das principais causas de incapacidade para o trabalho. De
acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 50 milhões de
pessoas na América sofriam com depressão em 2015.
Segundo o relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS),
em 2018, estima-se que 300 milhões de pessoas, em todo o mundo, sofram com
essa patologia. 800 mil se suicidam a cada ano, um suicídio a cada 40 segundos
(acredita-se que esse número irá crescer em 50% até 2020), tendo como perfil
etário pessoas entre 15 a 29 anos.
O trabalhador que sofre com a depressão apresenta sintomas que
interferem diretamente no seu desempenho funcional e acaba comprometendo
a qualidade do serviço prestado. A ansiedade, a falta de apetite, o sentimento de
culpa, de inferioridade, a indisposição para o trabalho, a dificuldade para se
concentrar em tarefas simples e até mesmo as autolesões e pensamentos
suicidas mostram o quanto a depressão pode prejudicar, até mesmo de maneira
irreversível.
Ademais, a Organização Mundial de Saúde constatou que a depressão
se relaciona com outras patologias, como por exemplo, a diabetes e doenças
cardíacas e transcende às relações trabalhistas, não se limitando somente ao
ambiente de trabalho, atingindo, inclusive, as relações familiares e a vida social
do laborador.

ESTRESSE

Pesquisa realizada pelo Instituto de Psicologia e Controle do Stress (IPCS), que


entrevistou 2.195 brasileiros e constatou que 34% deles sofria de estresse em nível
consideravelmente alto. O avanço tecnológico, a maximização da produção, as
cobranças excessivas pelo aumento do desempenho e as jornadas exaustivas
de trabalho contribuem para o desencadeamento de transtornos mentais.
O estresse é o resultado das exigências que excedem as capacidades
humanas. Traduzido do inglês “Stress”, significa “tensão”, “pressão”, e
corresponde a uma resposta física, biológica, química, hormonal e mental do
organismo, quando o indivíduo passa por situações de perigo ou ameaça. As
mudanças bruscas e as constantes situações de assédio moral vivenciadas
pelos empregados acabam desenvolvendo o estresse.
Nuernberg (2019) afirma que o estresse é fator gerador para o
aparecimento de outras doenças e favorece o surgimento de transtornos de
ansiedade, hipertensão, doenças cardiovasculares e outras.
Segundo a International Stress Management Association (ISMA),
levantamento realizado em 2010, constatou que o Brasil é o 2º em número de
trabalhadores acometidos por estresse no ambiente laboral, totalizando em 69%
de casos, e perde, apenas para o Japão.
Outro aspecto negativo ocasionado pelo estresse é o comprometimento
da boa convivência no local de trabalho, da convivência familiar e no meio social,
principalmente quando o trabalhador é acometido por picos de estresse.
O assédio moral provoca estresse e atinge fisiologicamente o trabalhador,
que para se manter no emprego, submete-se à circunstâncias tensas e com
grande carga de pressão. O estresse ocupacional causa não somente prejuízos
412

ao trabalhador, como também, às organizações, em razão do crescimento de


afastamentos e licenças médicas, destacando-se que a Associação
Internacional de Manejo do Estresse (ISMA) aponta que 72% dos brasileiros
ativos no mercado de trabalho sofrem com algumas implicações decorrentes do
estresse (2019).

CONCLUSÃO

O assédio moral é uma conduta praticada no ambiente de trabalho que


possui uma natureza perversa, praticada por superiores hierárquicos e por
colegas de trabalho e que é capaz de provocar transtornos irreversível para vida
e saúde do trabalhador. A garantia do meio ambiente do trabalho equilibrado, do
ponto de vista físico e mental, é imprescindível para o alcance da eficácia do
direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana.
Na esfera pessoal, o trabalhador desenvolve transtornos mentais como a
Síndrome de Burnout, depressão e estresse, que afeta diversos setores da vida
humana: seu ambiente de trabalho, relação com a sua família e piora seu quadro
clínico.
Na esfera profissional, o dano se exterioriza por meio da perda da
produtividade, da ruptura das relações profissionais e, até mesmo, da relação
jurídica de trabalho. Isso porque, com o isolamento profissional, o trabalhador
passa a sentir-se desmotivado a trabalhar e a produzir, contribuindo para que o
agressor alcance seus objetivos, incluindo a demissão da vítima (DUARTE;
ALMEIDA, 2015).
Por fim, enfrentar o contexto do aumento crescente dos transtornos
mentais relacionados ao trabalho e garantir o direito à segurança e saúde do
trabalhador tem se mostrado como o grande desafio para defesa dos direitos
fundamentais relacionados ao meio ambiente.

REFERÊNCIAS

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2013.

BERNARDES, Pablo Ferreira. Síndrome de burn-out - Considerações iniciais.


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WYZYKOWSKI, Adriana et al. Assédio moral laboral e direitos fundamentais.


São Paulo: LTr, 2014.
414

DANO EXTRAPATRIMONIAL TRABALHISTA: ENTRE A ATECNIA


LEGISLATIVA E A INCONSTITUCIONALIDADE
EXTRAPATRIMONIAL LABOR DAMAGE: BETWEEN THE LACK OF
LEGISLATIVE TECHNIQUE AND THE UNCONSTITUCIONALITY

Raíssa Stegemann Rocha Creado


Letícia Delfim da Mota Galvão de Assis Cardoso
Orientador(a): Bruno Prisinzano Pereira Creado

Resumo: o artigo centra-se em analisar o dano extrapatrimonial trabalhista,


objeto de pesquisa deste estudo, pela problemática da atecnia legislativa e
inconstitucionalidade dos artigos 223-A e 223-C que dispõe, respectivamente,
sobre a reparação de danos de natureza extrapatrimonial e os bens
juridicamente tutelados que, se violados, ensejam tal reparação. A abordagem
metodológica é analítica e dedutiva, pela via doutrinária, sendo que o decorrer
da investigação científica permitiu aferir, em âmbito conclusivo, latente
discrepância entre o diploma celetista e a Constituição Federal e princípios do
Direito, considerando a dissonância entre os preceitos abarcados nos referidos
artigos em análise e aqueles que irradiam diretamente da magna carta, os quais,
em última análise, também revelam a fragilidade legislativa atual.
Palavras-chave: Dano extrapatrimonial. Limites. Inconstitucionalidade.

Abstract: the article focuses on analyzing the extrapatrimonial labor damage,


object of research of this study, by the problematic of the lack of legislative
technique and unconstitutionality of the law articles 223-A and 223-C which deals,
respectively, about the repair of non-economic damages and legally protected
assets which, if violated, entails such compensation. The methodological
approach is analytical and deductive, bibliographically, and the course of
scientific research has allowed to determine, in a conclusive context, latente
discrepancy between the labor diploma and the Federal Constitution and
principles of law, considering the precepts included in the referred articles under
analysis and those that radiate directly from the great charter, which, ultimately,
also reveal the current legislative fragility.
Key-words: Extrapatrimonial damage. Limits. Unconstitutionality.

INTRODUÇÃO

A alcunha de “Reforma Trabalhista” atribuída desde a manjedoura a atual


Lei 13.467/17, já dimensionava aos juristas e a sociedade brasileira quão
substanciais seriam as alterações ali abarcadas que, propostas pelo então
Presidente da República Michel Temer, tinham por principal fundamento e
justificativa a necessidade de reformulação das leis trabalhistas como
mecanismo de inibição do desemprego e incentivo econômico, passando a
vigorar em sua plenitude no mês de novembro de 2017.
Pautada pelo ideários de um Estado Mínimo e circunscrita ao atendimento
dos escopos econômicos, a reforma trabalhista promoveu uma série de
processos de desregulamentação e flexibilização da ordem jurídica laboral,
ressignificando as relações empregatícias no país em parâmetros juridicamente
menos protetivos e, notavelmente, com uma abrangência tutelar bastante
restrita, visto que várias foram as alterações no sentido de mitigar a presença
415

legalista estatal que garante, em tese, mínimo equilíbrio entre as partes – das
quais o empregado é hipossuficiente frente ao poderio econômico do
empregador.
Essa nova formulação jurídico-laboral naturalmente repercutiu e fez
emergir várias discussões por parte da sociedade brasileira sobre os reais
impactos da reforma e quanto o sopesamento de seus pontos vantajosos e
maléficos trariam resultados efetivamente positivos no saldo final, discussões
essas que, no campo do Direito propriamente dito, ocuparam-se de arguir a
compatibilidade da reforma com o manto principiológico jurídico, constitucional
e, para além disso, a própria lógica jurídica de integração uníssona e coirmã de
todo ordenamento, visto os aparentes conflitos entre esta última e a reforma.
Neste ínterim, a presente investigação científica encontra no dano
extrapatrimonial trabalhista seu objeto de pesquisa justamente porque sua
inauguração no ordenamento celetista pela mencionada reforma deu-se de
modo controverso, questionável face aos princípios constitucionais e à dignidade
humana.
Consequentemente, sendo os artigos 223-A e 223-C aqueles que
disciplinam a limitação de aplicabilidade do dano extrapatrimonial trabalhista em
si e os bens juridicamente tutelados cuja violação implica o dever de reparação,
a problemática científica desenha-se a partir da investigação da
constitucionalidade e adequação principiológica destes em razão de serem
artigos basilares, redigidos em linhas gerais e, por isto, mais abrangentes.
Desse modo, transcorreu-se pelo método analítico e dedutivo a pesquisa,
valendo-se documentalmente de bibliografias e jurisprudências para aferição da
hipótese científica, no intento de verificar se mencionados artigos de fato
encontram-se deslocados da irradiação constitucional e dos princípios gerais do
Direito.
Isto posto, traduz-se a relevância social e jurídica desta investigação, em
primeiro lugar, por ser a lei ferramenta concreta de veiculação das aspirações
sociais e humanas do bem-estar comum e do indivíduo, motivo pelo qual
necessita constante vigilância para que de seus preceitos originários não esteja
desvinculada, tornando-se pretensa formalidade legal.
Ademais, sendo pacífico que a divisão do direito em ramos serve a meros
fins acadêmicos, posto que é uno e indivisível enquanto ordenamento e ordem
social, mister que a averiguação de seu caráter uníssono é de suma importância,
a fim de que se mantenha a unidade e a segurança jurídica.
Em caráter conclusivo, foi possível aferir que os artigos 223-A e 223-C de
fato destoam dos princípios gerais e das premissas constitucionais, restando em
virtual confronto com a Carta Maior e a sistemática jurídica, pelos fundamentos
que seguem melhor explanados no estudo ora apresentado e que, em última
instância, se ainda não os revestem de inconstitucionalidade, no mínimo tornam
extremamente questionáveis tais dispositivos legais.

DESENVOLVIMENTO

Embora os danos cuja extensão atinge esfera diversa da patrimonial não


sejam novidade no trato da seara laboral, inconteste que a reforma trabalhista
em muito oxigenou a temática, visto que a lei 13.467/17 foi a responsável pela
inserção de um novo título celetista inteiramente dedicado ao assunto, a saber,
Título II – A da CLT, denominado “Do dano extrapatrimonial”.
416

No decorrer dos 7 artigos ali abarcados (do artigo 223-A ao 223-G), a nova
redação legislativa disciplinou o dano extrapatrimonial trabalhista, delineando-o
segundo diversos parâmetros de identificação e reparação deste, o que pela
lógica entendia-se como um grande avanço legal e garantista, afinal, o tema
passava a receber tratamento específico e mais abrangente do que propuseram-
se as legislações anteriores – cujas dificuldades começavam desde a
nominação do instituto, que perdia-se em uma vastidão de nomenclaturas
causadoras de divergências, como dano moral, dano existencial, dano estético,
dentre outros.
Neste sentido, a própria escolha do legislador pela expressão “dano
extrapatrimonial” se revelou extremamente positiva, na medida em que foi
considerado um gênero de dano no qual enquadram-se todas as espécies
supracitadas (dano moral, existencial, estético e outros), possibilitando que a
abrangência do termo se estendesse a todo tipo de dano que não o patrimonial.
Ainda no Título II, o legislador preocupou-se também em estabelecer os
limites de aplicabilidade (artigo 223-A), conceituar taxativamente o dano
extrapatrimonial trabalhista, ali definido como a ação ou omissão que macule a
esfera moral ou existencial da pessoa, seja ela física ou jurídica (artigo 223-B),
os bens juridicamente tutelados da pessoa física cuja violação ensejam
reparação pecuniária (artigo 223-C), assim como os bens tutelados em relação
as pessoas jurídicas (artigo 223-D), os agentes responsabilizáveis pela prática
do dano (artigo 223-E), a possibilidade de cumulação de indenização por danos
extrapatrimoniais e danos materiais (artigo 223-F) e os critérios a serem
analisados pelos juízes quando da fixação da reparação (artigo 223-G).
Não obstante a aparente condição benéfica, uma análise mais detida e
minuciosa denotam uma face tão menos afável quanto mais ardilosa, em que o
argumento da necessidade de modernização da legislação trabalhista em prol
do desenvolvimento e da economia tornou-se subterfúgio para consolidar a
proteção ao capital por meio do tripé liberdade-segurança jurídica-simplificação,
subvertendo o sublime valor da seara laboral de proteção ao hipossuficiente,
valor este que é base de toda estruturação jurídica do Direito do Trabalho e
atende perfeitamente aos ditames constitucionais (BEZERRA LEITE, 2018, p.
37).
Para além dessa desorganização estrutural do Direito do Trabalho, a
reforma representa também verdadeira desfiguração das conquistas sociais e
humanas advindas com a Constituição Federal de 1988 (CF/88),
convenientemente dita “Cidadã”, que regeu-se pelo princípio da dignidade da
pessoa humana para atrelar a ordem jurídica, econômica, social, financeira e
todas as demais à centralidade da pessoa humana (GODINHO, 2018, p. 779).
De se ressaltar também o curioso contraste entre a reforma trabalhista,
talhada sem participação popular e, inclusive, em alguns momentos abertamente
contrária ao clamores sociais, e a Constituição de 1988, cujo título de “Cidadã”
foi cunhada por Ulysses Guimarães, presidente da assembleia constituinte que
a elaborou, em razão da ampla e democrática participação popular na
elaboração da mesma (SILVA, 2014, p. 92).
Diante de tamanho desarranjo, e considerando que os limites legais do
dano e a reparação pecuniária do dano extrapatrimonial trabalhista constituem
pedras angulares da temática, faz-se oportuno questionar: os artigos 223-A e
223-C, disciplinadores de tais premissas, perecem essa desconexão com
relação a principiologia jurídica e os valores constitucionais?
417

O texto do dispositivo 233-A da CLT dispõe que “aplicam-se à reparação


de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho
apenas os dispositivos deste Título”, uma leitura que explicitamente permite
extrair o isolamento do dano extrapatrimonial trabalhista de qualquer outro
diploma legal com que pudesse interagir e se complementar.
Do ponto de vista material, é indiscutível que o dano extrapatrimonial resta
abrangido pelo princípio da dignidade da pessoa humana, vez que a mácula
recai sobre um valor humano íntimo, estritamente pessoal e economicamente
imensurável.
A dignidade humana enquanto fundamento da República Federativa,
como bem expressa o artigo 1°, III da CF/88, bem como a inquestionável
irradiação constitucional sobre os demais diplomas normativos, tornam
impraticável que o dano extrapatrimonial trabalhista encerre-se em si mesmo e
enclausurado no referido artigo, pois ao trazer em seu cerne a dignidade humana
o imperativo legal e principiológico preza pela máxima efetividade desta, não
podendo a reparação da transgressão à dignidade ser restringida por mero
capricho ou inabilidade legislativa – o estado deve tutelar esse supremo valor
constitucional, aplicando todas as normas cabíveis e necessárias à manutenção
e respeito da dignidade.
Já formalmente, a primeira e mais aparente afronta que tal pretensão
legislativa veicula é contra a própria CLT, que em seu artigo 8°, §1°, estabelece
o direito comum como fonte subsidiária do direito do trabalho, o que torna
plenamente viável o trato simultâneo entre ambos – ressalta-se, aliás, que o
caput deste mesmo artigo preceitua, dentre outros, a aplicação de princípios e
normas gerais do Direito, reforçando o caráter uno do Direito (BEZERRA LEITE,
2018, p. 66).
Em um segundo patamar, ao transpassarmos pelo enunciado do artigo
223-A as máximas constitucionais, relevante aduzir que uma compreensão
sistêmica da Magna Carta, pautada pela dignidade humana face aos direitos
fundamentais e sociais expressos pelos artigos 1°, 5° e 7°, caput, da CF/88,
demandam que o artigo 223-A da CLT seja interpretado segundo os princípios e
regras de diplomas legais diversos que possibilitem melhorias na condição
socioambiental dos trabalhadores, esta última também constitucionalmente
regida, vide artigos 200, VIII e 225 da CF/88 (BEZERRA LEITE, 2018, p. 66).
É neste mesmo sentido que refuta-se uma interpretação meramente literal
do artigo em análise, que despreze a configuração lógico-racional, teleológica e
sistemática do ordenamento jurídico: há de se harmonizar a reforma trabalhista
não apenas com as premissas constitucionais, mas com todo conglobado
jurídico amplo que remonta aos diplomas internacionais, tratados de Direitos
Humanos dos quais o país é signatário e textos normativos que, estejam no
contexto do Direito do Trabalho pátrio ou não, apliquem-se aos casos de violação
extrapatrimonial (GODINHO, 2018, p. 781).
Ante tantas cizânias formais e materiais, é evidente que não se pode
interpretar o artigo celetista 223-A em desconformidade com teoria geral do
direito, o direito constitucional, as premissas internacionais e mesmo as
prerrogativas do próprio direito trabalhista, sob pena de deslegitimar-se frente à
sua desconexão fática com o universo jurídico.
Em verdade, a pretensão limitadora do legislador ressoa quase que como
uma discriminação ao Direito Constitucional do Trabalho e a unicidade jurídica,
pois fosse esse isolamento proposital generalizado não teria este mesmo
418

legislador editado o Código de Processo Civil em 2015 mantendo no artigo 1°


deste diploma a máxima de que deverá ser interpretado conforme valores e
normas fundamentais estabelecidas na Constituição Federal (BEZERRA LEITE,
2018, p. 65).
Igualmente duvidosa é a redação do artigo 223-C da CLT, que trata dos
bens juridicamente tutelados contra a mácula extrapatrimonial, no qual lê-se que
“ a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a
sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente
tutelados inerentes à pessoa física”.
Uma vez que o artigo taxativamente elenca os bens jurídicos que,
violados, incorrem no dano extrapatrimonial, consequentemente, estas são
também as hipóteses que ensejarão a reparação pecuniária do dano –
outrossim, ignorando que há toda uma ampla gama de bens juridicamente
tutelados pelo ordenamento pátrio.
Novamente a dignidade da pessoa humana restaria maculada diante da
aplicação literal do artigo, posto que os direitos personalíssimos dos
trabalhadores elencados no artigo não esgotam a plena extensão da dignidade
humana, tampouco do resguardo constitucional que se destina a esta última –
uma simples interpretação ampliativa e teleológica já é capaz de dimensionar a
falta de diversos bens que também estão juridicamente resguardados, como a
integridade psíquica, gênero, nome, autoestima, dentre outros (BEZERRA
LEITE, 2018, p. 66).
A taxatividade de hipóteses de dano extrapatrimonial incorre, ainda, na
ilógica conclusão de que o artigo 223-C não abrangeu sequer o fator
“deficiência”, expresso pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.156/15)
e pela Convenção sobre direitos das pessoas com deficiência da ONU, ratificado
pelo Brasil – à isto, soma-se o fato de que a CF/88 reprime explicitamente
qualquer forma de discriminação, nos termos do seu artigo 3°, inciso IV
(GODINHO, 2018, p. 782).
Há de se destacar que houve a edição da Medida Provisória (MP) n. 808
no ímpeto de se acrescer ao artigo em questão mais bens resguardados – etnia,
idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual –, porém, tal MP não foi
convertida em Lei e naturalmente, decorrido seu prazo, não mais tinha vigência,
retomando a redação originária do artigo.
Por tais motivos, chega-se a conclusão de que a edição dos artigos 223-
A e 223-C pela reforma trabalhista, a despeito do intento do legislador ou de sua
atecnia redacional, é duvidosa e amplamente questionável do ponto de vista
hermenêutico, lógico e organizacional do Direito.
É impensável que, sendo o Direito uno e norteado por uma série de
princípios diversos, bem como estando no cerne do ordenamento jurídico a
pessoa humana e sua dignidade – razões maiores do tutelar jurídico – , haja
legitimidade na aplicação literal do disposto nos artigos ora analisados, sendo
iminente a necessidade de readequação hermenêutica do jurista que proponha-
se a manusear ou aplicar tais dispositivos como ferramenta de respeito e
concretização dos anseios constitucionais e principiológicos.

CONCLUSÃO

Considerado o caráter tutelar restritivo e o viés econômico da reforma


trabalhista, é social e juridicamente relevante o sopesamento desta Lei frente
419

aos preceitos constitucionais e principiológicos do Direito, no intento de


resguardar os valores e fundamentos máximos sob os quais assenta-se a
República Federativa e evitar qualquer desvirtuamento destes por legislação
infraconstitucional, como a reforma trabalhista parece almejar.
Ao pretender aprisionar o tratamento jurídico do dano extrapatrimonial
trabalhista ao artigo 223-A da CLT, o legislador contraria toda lógica jurídica e
sistemática estrutural do ordenamento, ignorando o caráter uno do próprio
Direito e a inafastável preservação da dignidade da pessoa humana, valor
diretamente afetado pela transgressão em âmbito pessoal (portanto,
extrapatrimonial) e que deve ser tutelado por todos os diplomas legais possíveis,
na busca por sua máxima concretização e efetividade.
Ignora, ainda, que o direito pátrio congloba-se a tratados e documentos
supranacionais, pelos quais também se rege e dos quais é signatário, legando
ao artigo, por todos estes motivos, o dissabor de necessitar ser judicialmente e
doutrinariamente corrigido, por vias hermenêuticas, para a justa e correta
aplicação aos casos concretos.
No mesmo limbo interpretativo resta o artigo 223-C, que ao tentar elencar
taxativamente os bens juridicamente tutelados, cujas transgressões ensejam a
reparação do dano extrapatrimonial, acaba excluindo uma série de outros
direitos personalíssimos que também integram a noção de dignidade da pessoa
humana e, por consequência, são constitucionalmente assegurados e
merecedores de reparação no caso de máculas.
Há que se destacar, por fim, que tal alijamento de parte dos bens
juridicamente tutelados configura verdadeira discriminação, já que privilegia
alguns em detrimento de outros e ignora a condição dos deficientes, sendo um
agravante o fato de que a Constituição veda explicitamente qualquer forma de
discriminação.
Por todos os motivos arrazoados, e considerando a indissociabilidade do
Direito de sua unicidade e princípios integradores, é que conclui-se pela
impossibilidade fática da mera aplicação literal dos dispositivos, restando aos
mesmos, seja pelos anseios discutíveis do legislador ou pela atecnia legislativa
redacional, a permanente sina de dependerem de uma interpretação coerente,
ampla e teleológica para estarem legitimamente uníssonos a todo resto do
ordenamento pátrio e supranacional.

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TUPINAMBÁ, Carolina. Danos extrapatrimoniais decorrentes das relações


de trabalho. 1 ed. São Paulo: LTr, 2018.
421

ENTRE OS CICLOS DO CAPITAL E OS DIREITOS HUMANOS: UMA


ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE NAS TERCEIRIZAÇÕES
TRABALHISTAS DA AMÉRICA LATINA
ENTRE LOS CICLOS DE CAPITAL Y LOS DERECHOS HUMANOS: UN
ANÁLISIS DE LA RESPONSABILIDAD EN EL TRABAJO TERCERIZADO DE
LA AMÉRICA LATINA

Kamayra Gomes Mendes

Resumo: No Brasil, após décadas de uso, o fenômeno terceirizante está sendo


objeto de recentes construções jurídicas, vide as leis 13.429 de 2015 e 13.467
de 2017, bem como a declaração do Supremo Tribunal Federal sobre a
terceirização da atividade-fim, em 2018. Diante desse cenário de estruturação
legislativa, este trabalho propõe-se a analisar se as tutelas que estão sendo
elaboradas, especialmente as que tratam sobre responsabilidade empresarial,
atentam-se mais aos anseios democráticos das diretrizes de proteção aos
direitos humanos ou às oscilações cíclicas de crise, tão comuns ao capital, bem
como se há alguma correspondência do modelo de regulamentação brasileira à
agendas supranacionais. Para isso, analisou o escopo jurídico existente sobre a
terceirização nos países da América Latina, de forma a propiciar reflexões sobre
como os direitos humanos estão presentes nas políticas legislativas da região,
quais tendências normativas estão ganhando espaço no continente e
georreferenciar comportamentos jurídicos dessa responsabilidade no Brasil, a
partir do estudo comparativo.
Palavras-chave: Terceirização. Direito Comparado. Responsabilidade
trabalhista.

Resumen: En Brasil, después de décadas de uso, el fenómeno de la


subcontratación está siendo objeto de construcciones legales recientes, véanse
las leyes 13.429 de 2015 y 13.467 de 2017, así como la declaración de la Corte
Suprema Federal sobre la subcontratación de la actividad final en 2018. Desde
este escenario de estructuración legislativa, este documento propone analizar si
las protecciones que se están elaborando, especialmente aquellas relacionadas
con la responsabilidad corporativa, están más atentas a las aspiraciones
democráticas de las directrices para la protección de los derechos humanos o
las fluctuaciones cíclicas de del capital, así como si existe alguna
correspondencia del modelo regulatorio brasileño con las agendas
supranacionales. Con este fin, analizó el alcance legal existente sobre la
subcontratación en los países de América Latina, con el fin de proporcionar
reflexiones sobre cómo los derechos humanos están presentes en las políticas
legislativas de la región, qué tendencias normativas están ganando terreno en el
continente y georeferenciar los comportamientos legales de esta responsabilidad
en Brasil, desde el estudio comparativo.
Palabras clave: Subcontratación. Derecho Comparado. Responsabilidad
laboral.

Os mercados internos dos países latino-americanos, influenciados pela


retórica da globalização econômica, abriram-se às práticas e arranjos
diferenciados de trabalho e produção. Sob a promessa de eficiência,
especialização, maior concorrência e geração de empregos, técnicas que já
422

eram utilizadas por transnacionais foram recepcionadas, dentre elas a


terceirização, que “dissocia a relação econômica de trabalho da relação
justrabalhista que lhe seria correspondente” (DELGADO, 2017, p. 502).
A terceirização adquiriu ao longo do tempo diversas formas e portanto, é
difícil conceituá-la ou defini-la sem cair em anacronismos. Apesar das
divergências ideológicas, políticas, teóricas e epistemológicas, para alguns como
Saratt (2000) terceirizar é utilizar uma ferramenta administrativa, advinda da
filosofia empresarial, capaz de promover a compra reiterada de serviços
especializados e que permita à empresa tomadora concentrar energia em sua
atividade principal.
Na esfera civil, no que concerne a responsabilidade contratual,
Nascimento e Nascimento (2014, p. 652) averbam que “terceirizar é transferir a
terceiros uma obrigação e um direito que originalmente seriam exercitáveis no
âmbito do contrato-originário, mas que passam, pela subcontratação, a gravitar
no âmbito do contrato-derivado”.
Apesar de haver várias interpretações possíveis para o tema, será
adotado o seguinte conceito para este trabalho:

Terceirização, conceitualmente, define-se como a técnica de gestão de


pessoas pela qual se dá a transferência, por iniciativa do contratante,
da execução de quaisquer de suas atividades - inclusive a sua
atividade principal -, a terceira pessoa para esse fim contratada, com
força de trabalho própria. Àquele primeiro se denomina tomador de
serviços; ao segundo, prestador de serviços. A execução das
atividades transferidas dá-se pela força de trabalho dos empregados
do prestador de serviços, no interesse do tomador de serviços.
(FELICIANO; TOLEDO FILHO; DIAS, 2018, p. 246).

No Brasil, após décadas de uso, o fenômeno terceirizante está sendo


objeto de recentes construções jurídicas, vide as leis 13.429 de 2015 e 13.467
de 2017, bem como a declaração do Supremo Tribunal Federal sobre a
terceirização da atividade-fim, nas ações de Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 324 e Recurso Extraordinário 95825, em 2018.
Diante desse cenário de estruturação legislativa, é pertinente a seguinte
indagação: Essas tutelas que estão sendo elaboradas, especialmente as que
tratam sobre responsabilidade empresarial, atentam-se mais aos anseios
democráticos das diretrizes de proteção aos direitos humanos ou às oscilações
cíclicas de crise, tão comuns ao capital? Há alguma correspondência do modelo
de regulamentação brasileira à agendas supranacionais, ou seja, os demais
países também estão mudando suas legislações, e se sim, para qual direção?
Este projeto propôs-se a pesquisar o escopo jurídico existente sobre a
terceirização nos países da América Latina, especialmente no campo da
responsabilidade empresarial, de forma a propiciar reflexões sobre como os
direitos sociais estão presentes nas políticas legislativas da região, quais
tendências normativas estão ganhando ou galgaram espaço no continente e
georreferenciar comportamentos jurídicos do Brasil, a partir do estudo
comparativo.
No campo metodológico, a pesquisa foi do tipo qualitativa a acervos
bibliográficos, legislações oficiais, jurisprudências e sítios eletrônicos, aptos a
formar uma base sobre o tema. O método de abordagem foi dialético, pois
buscou sintetizar pontos conflitantes que formaram a base normativa da
responsabilidade empresarial na terceirização, considerando a temporalidade e
423

historicidade dos acervos analisados. Por fim, quanto a compreensão das


estruturas jurídicas que regulamentam a terceirização de outros países, primou-
se pela utilização dos métodos de procedimento histórico e comparativo (Ancel,
1980).
O objeto desse estudo parte da análise sobre o trabalho. Especialmente
após 1970, o trabalho como “relação social que envolve diversos tipos de
relações – trocas econômicas, cooperação, dominação, subordinação – entre
indivíduos ou até entre classes sociais” (BEVORT, 2012, p. VII-VII) sofreu
diversas alterações. A globalização, fruto de uma metamorfose qualitativa e não
apenas quantitativa possibilitou que o capital adquirisse novas condições e
possibilidades de reprodução (IANNI, 2001, p. 55).
Tal globalização do trabalho, que se intensificou com o fim da Guerra Fria
e a desagregação do bloco soviético (IANNI, 2001), fez com que o modelo de
empresas, corporações e conglomerados transnacionais prevalecesse ou se
impusesse sobre as economias nacionais, o que alterou de forma significativa
as práticas trabalhistas. Delgado (2017, p. 47) complementa argumentando que
com o “desenvolvimento da chamada terceira revolução tecnológica e das
condições macropolíticas então desfavoráveis ao Estado de Bem-Estar Social,
passa-se a assistir à incorporação de novos sistemas de gestão empresarial e
laborativa. (2017, p. 47).
Esse impacto ao âmbito local que implicou na redução de
regulamentações estatais não foi um fato isolado. Como o capital não tem
vínculos culturais ou geográficos, distintamente do trabalho, acaba por se
deslocar com facilidade de um ponto a outro do planeta. Está e não está, o que
cria o paradoxo da onipresença. Por sua vez, o trabalhador possui mais
limitações. Há vínculos afetivos e culturais que permeiam o ambiente em uma
relação trabalhista, mas que tendem a sucumbir diante das necessidades
econômicas e dos novos redimensionamentos gerenciais. (MELHADO, 2006, p.
60-67 apud FELICIANO, 2013, p. 74).
E assim, a ficção contratual terceirizante chegou à América Latina,
permeada pelo sucesso de empresas dos tigres asiáticos e estadunidenses no
projeto de retorno financeiro, especialização, amenização de custos e
burocracias. Seu uso, que destoa da dualidade empregador-empregado, acabou
por gerar conflitos e instigar respostas jurídicas.
Mas como foram elaboradas essas leis e demais instrumentos normativos
sobre terceirização? São frutos de debates e diretrizes democráticas? Ou
buscaram se alinhar às necessidades mercadológicas, mesmo que significasse
precarização?
Nascimento (2011, p. 22) argumenta que “ao contrário das dominações
pré-capitalistas, a dominação capitalista é feita sempre por um intermediário, o
direito. É por meio de suas formas que as relações sociais se estabelecem”. De
igual forma, Delgado (2013, p. 79) afirma que o próprio Direito do Trabalho é
produto do capitalismo, pois ata-se à evolução histórica desse sistema
“retificando distorções econômico-sociais e civiliza a dinâmica econômica de
uma sociedade civil”.
Uma das principais formas jurídicas de controle social, através do direito
que agora se debate, é a coação que a responsabilidade civil ocasiona. A
responsabilidade brasileira na terceirização trabalhista, por exemplo, é
prioritariamente subsidiária. O parágrafo 2º do art. 4ºA da Lei n. 6.019 de 1974,
prevê que essa responsabilidade não implica em vínculo empregatício entre os
424

trabalhadores, os sócios das prestadoras de serviços de qualquer ramo e da


própria empresa contratante.
Há, porém, exceções a esse tipo de responsabilidade em algumas lei
esparsas, como as de n. 6.615 de 1978 e n. 6.533 de 1978, onde se utiliza a
responsabilidade solidária nos casos de uso de agências de locação de mão de
obra para evadir-se das responsabilidades do contrato de trabalho.
A própria Lei n. 6.019 de 1974, que trata sobre o tema no ordenamento
brasileiro, dispõe sobre a solidariedade, quando:

Art. 16 - No caso de falência da empresa de trabalho temporário,


a empresa tomadora ou cliente é solidariamente responsável
pelo recolhimento das contribuições previdenciárias, no tocante
ao tempo em que o trabalhador esteve sob suas ordens, assim
como em referência ao mesmo período, pela remuneração e
indenização previstas nesta Lei.

Essa escolha brasileira pela excepcionalidade da responsabilidade


solidária se contrapõe muitos países. Conforme Izanzo e Richter (2012, p. 44)
utiliza-se em vários ordenamentos trabalhistas a responsabilidade solidária por
três principais motivos: a insolvência de muitos contratantes, que impedem a
concretização de garantias e direitos dos trabalhadores sobre sua gerência; o
uso indevido e crescente de empresas para a evasão de custos e de
responsabilidades; e então as diferenças de condições de trabalho entre os
trabalhadores da empresa beneficiária para com os da prestadora.
É o caso da Argentina, onde a responsabilidade pelo não cumprimento de
regras laborais é solidária durante o tempo que o trabalhador ficou submetido à
tomadora. Esta mantém ainda o dever de exercer controle sobre o cumprimento
das obrigações terceirizadas, de forma que não pode delegar a terceiros suas
atividades administrativas (TORIBIO, 2017, p. 129).
Já no ordenamento colombiano, há a solidariedade do beneficiário, dono
da obra, ou tomador com a prestadora em relação ao valor dos salários e das
indenizações que façam jus os trabalhadores e que não sejam estranhas à
atuação da empresa, solidariedade que não obsta que o beneficiário estipule
com o contratante sobre as garantias de cada caso ou para que se ajuíze uma
ação de regresso pelo pagamento despendido a esses trabalhadores (artigo 34
do Código Substantivo do Trabalho Colombiano de 2011).
No Peru, o artigo 9º da lei do trabalho estabelece que a empresa tomadora
é solidariamente responsável pelo pagamento de direitos e benefícios laborais
em caso de terceirização interna e que tal compromisso se entende por um ano
após o desligamento do trabalhador de seu cargo. Já a empresa prestadora
segue com suas responsabilidades além desse prazo, podendo ser acionada no
prazo da prescrição laboral normal.
O México, por sua vez, estabelece no artigo 14 e 15 da Lei Federal do
Trabalho mexicano a regra da responsabilidade solidária em relação às
obrigações trabalhistas do contrato terceirizante ou quando este for indevido.
Na Venezuela, ao se descumprir as regras relacionadas às poucas
terceirizações permitidas – no caso de trabalho temporário - as obrigações
derivadas da relação trabalhista serão aplicadas solidariamente à tomadora ou
empresa principal também, de forma que esta tem o dever de incorporar os
trabalhadores contratados, que possuíram o direito à imobilidade laboral até
425

serem incorporados por outras entidades de trabalho (Lei Orgânica do Trabalho


de 1991, artigo 47 e 48).
O Equador segue a linha de que a responsabilidade será solidária em
relação à tomadora e a prestadora no que se refere aos trabalhadores (art. 4 do
Mandato Constituinte n. 8). Ademais, como a prática da terceirização é proibida
até pela Constituição equatoriana (art. 327), as sanções administrativas e penais
podem ser suportadas pela tomadora também.
A legislação chilena dispõe que a empresa principal será a corresponsável
pelas obrigações trabalhistas e previdenciárias, incluída qualquer compensação
legal correspondente para o término da relação de trabalho (art. 183-B do Código
trabalhista do Chile).
Acrescenta-se que, se o tomador requisitar certificados de inspeção do
Ministério do Trabalho e Previdência Social sobre a idoneidade de uma
subcontratada e fiscalizar o andamento de seu contrato a responsabilidade
passa a ser subsidiária (art. 183-D do Código do Trabalho do Chile).
De igual forma, tal tipo de responsabilidade será aplicada nos casos em
que a tomadora reteve os gastos da seguridade social e trabalho após a
notificação dada pela Direção de Trabalho das Infrações à legislação trabalhista
e previdenciária, apuradas nas auditorias realizadas nas contratadas ou
subcontratadas, o que indica boa-fé contratual.
No Uruguai, tal como o Chile, a responsabilidade é solidária, mas pode se
tornar subsidiária, quando a empresa tomadora comprove que agiu de maneira
idônea e fiscalizou a contratada (A Lei n. 18.251/2008, em seu o art. 6º).
A Lei uruguaia n. 18.099, cuja finalidade é estabelecer medidas de
proteção ao trabalhador mediante o processo de descentralização de negócios,
dispõe em seu artigo 1º que o empregador ou empresário que usa
subcontratados, intermediários ou fornecedores de mão de obra, será
solidariamente responsável pelas obrigações trabalhistas com relação a esses
trabalhadores contratados, bem como o pagamento das contribuições para a
segurança social, para a entidade provisória de acidente ou doença profissional.
Tal responsabilidade está limitada às obrigações acumuladas durante o
período de subcontratação, intermediação ou oferta de trabalho e a tomadora
pode, a depender da situação concreta, ingressar com uma ação de regresso
contra a prestadora, de forma que nos casos de insolvência sem que haja fraude
ou falta de vigilância da tomadora, esta adquire privilégios de crédito laboral.
Do exposto, nota-se uma tendência forte à recepção da terceirização nos
países analisados, mas que ao contrário do Brasil optaram por uma uma
responsabilidade empresarial solidária. O país está em época de construção
jurídica. Recentemente a relação entre empresas e direitos humanos foi tutelada
através do Decreto n. 9571 de 21 de novembro de 2018, onde no art. 3º está
presente a responsabilidade do Estado com a proteção dos direitos humanos em
atividades empresariais, que serão pautadas por algumas das seguintes
diretrizes:
(...) VI - desenvolvimento de políticas públicas e realização de
alterações no ordenamento jurídico, a fim de:
a) considerar, além dos impactos diretamente gerados pela empresa,
os impactos indiretamente gerados pela cadeia de fornecimento;
b) estimular a criação de medidas adicionais de proteção e a
elaboração de matriz de priorização de reparações e indenizações para
grupos em situação de vulnerabilidade;
VII - estímulo à adoção, por grandes empresas, de procedimentos
adequados de dever de vigilância (due diligence) em direitos humanos;
426

(...) XVI - estímulo à adoção de códigos de condutas em direitos


humanos pelas empresas com as quais estabeleça negócios ou atue
em parceria, com estímulo do respeito aos direitos humanos nas
relações comerciais e de investimentos estatais;

Não faltam apontamentos ao zelo que as empresas e o Estado devem ter


para com a linha de produção e a consequentemente a terceirização que pode
ocorrer, bem como para a proteção e garantia de condições de trabalho dignas
aos recursos humanos.
Em relação à responsabilidade empresarial, o art. 5º do Decreto
supracitado compele às empresas o dever de “I - monitorar o respeito aos direitos
humanos na cadeia produtiva vinculada à empresa” bem como divulgar
internamente os instrumentos internacionais de responsabilidade social e de
direitos humanos, como os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos
Humanos da ONU, as Diretrizes para Multinacionais da OCDE, as Convenções
da OIT, dentre outros nortes supranacionais.
Resta claro que a responsabilidade empresarial na terceirização
trabalhista merece atenção do direito do trabalho bem como das políticas
legislativas que estão sendo tomadas. Mas do que uma análise do percurso que
outros países com experiências históricas similares a do país estão escolhendo,
é necessário assimilar que as balizas transfronteiriças não servem somente para
o capital, mas que emerge campos de direitos humanos aptos a se consolidarem
no cenário latino-americano, bastando empenho local para a sua incorporação e
efetivação.
A título de reflexão:

“A flexibilização das condições de trabalho, para atender


circunstância de crise econômica momentânea ou para que se
consiga a adaptação dos meios de produção aos modernos
recursos da tecnologia, não significa, nem poderá significar, a
flexibilização do Direito do Trabalho” (LEITE, 1997, p. 34)

Ou seja, por mais que se modifiquem as formas laborais nos países e


ordenamentos, o fundamento do Direito do Trabalho, cuja ideia se respalda sob
o prisma da proteção ao trabalhador e na limitação ao poder do empregador
(NASCIMENTO, 2011, p. 62), deve permanecer e ser conciliado aos novos
meios socioeconômicos, sem que isto implique em seu esvaziamento material

REFERÊNCIAS

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______. Lei n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974. Dispõe sobre o Trabalho


Temporário nas Empresas Urbanas, e dá outras Providências. Disponível em:
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______. Lei n. 13.429, de 31 de março de 2015. Altera dispositivos da Lei no


6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas
empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de
trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Disponível em:
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______. Lei. 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis


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Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação.
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429

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Acesso em: 17.06.2019.
430

TELETRABALHO EM UM MEIO AMBIENTE LABORAL SAUDÁVEL COMO


DIREITO FUNDAMENTAL
TELEWORKING IN A HEALTHY LABOR ENVIRONMENT AS A
FUNDAMENTAL LAW

João Pedro Ignácio Marsillac

Resumo: No presente resumo expandido iremos trabalhar com maior rigor com
o conceito de meio ambiente laboral, aqui devendo ser enxergado como um dos
tipos de meio ambientes estudados no Direito Ambiental, notadamente aquele
em que o empregado empresta sua mão de obra, bem como o teletrabalho, que
ganhou uma nova roupagem com a Lei n.º 13.467/17 e devido à sua expressa
previsão legislativa, trará a segurança jurídica necessária à sua larga
implantação. O estudo do teletrabalho realizado em um meio ambiente laboral
saudável se mostra fundamental, na medida em que as novas tecnologias
utilizadas nessa forma de trabalhar podem vir associadas a riscos ocupacionais
até então desconhecido. Assim, sendo a saúde um direito fundamental, a
preservação dela em relação ao trabalhador se mostra necessária, mesmo ele
não estando dentro do núcleo produtivo da empresa.
Palavras-chave: Meio ambiente do trabalho. Teletrabalho.

Abstract: In this expanded summary we will work more closely with the concept
of the working environment, which should be seen here as one of the types of
environment studied in Environmental Law, notably that in which the employee
lends his labor, as well as teleworking, which has gained a new guise with Law
No. 13.467 / 17 and due to its express legislative provision, will bring the legal
certainty necessary for its broad implementation. The study of teleworking in a
healthy work environment is fundamental, as the new technologies used in this
way of working may be associated with occupational risks hitherto unknown.
Thus, being health a fundamental right, its preservation in relation to the worker
is necessary, even if he is not within the productive core of the company.
Key words: Work environment. Telecommuting.

1. METODOLOGIA

a) Método de abordagem: O método de abordagem é o dedutivo, ou


seja, a análise do geral ao específico, quando do estudo do Direito Ambiental,
buscando o reconhecimento do meio ambiente do trabalho como um dos biomas
daquela área. Esta análise mostra-se pertinente, eis que assim pode-se pensar
na aplicação de normas e princípios afetas á área ambiental em uma relação
estritamente contratual, como é o caso da trabalhista.
Em relação ao teletrabalho, ocorre a mesma sistemática, em especial na
análise dos variados e contraditórios conceitos, bem como na abordagem dos
problemas oriundos deste tipo labor, que, por sua natureza, é bastante
diferenciado.
Por fim, seguindo o mesmo método, encerrar-se-á fazendo uma análise
conjunta destes conceitos, em relação, principalmente, na análise das
modificações que serão necessárias no meio ambiente do trabalho para
minimizar os riscos à saúde e à privacidade dos teletrabalhadores.
431

b) Métodos de procedimento: Serão utilizados os seguintes métodos de


procedimento, de acordo com os momentos em que os mesmos se mostrarem
pertinentes.
Ab initio, o monográfico, quando da conceituação dos vários elementos
atinentes a este debate (v.g. meio ambiente, habitat laboral, teletrabalho,
telesubordinação, Direitos Fundamentais etc.). Também o histórico, quando da
análise da evolução histórica da proteção do meio ambiente do trabalho e
inserção do teletrabalho à realidade das pessoas e de que forma este evoluiu
até os dias de hoje.
Ademais, por ainda não ser o teletrabalho, até o presente momento, a
realidade na vida da maioria das pessoas (em um contexto globalizado) e pouco
ter-se notado ainda o impacto deste tipo de trabalho sobre a vida da população,
mostra-se deveras pertinente a utilização dos métodos tipológico e funcionalista
de procedimento.
c) Método de interpretação Jurídica: Exegético-sociológico, eis que, por
exemplo, a Lei não é expressa quando protege o habitat laboral, no entanto
entende-se que o legislador pretendeu sim protegê-lo, como parte integrante de
um todo chamado meio ambiente (artigos 200, VIII c/c 225 da Constituição
Federal). Neste mesmo sentido, o teletrabalho, que, muito embora não haja
legislação específica protegendo este tipo de contrato, não passou totalmente
despercebido pelo legislador, quando proibiu a discriminação do trabalho
realizado no estabelecimento do empregador e na casa do empregado (artigo 6º
da Consolidação das Leis do Trabalho).
Não obstante, analisar a letra fria da Lei, sem apontar a vontade do
legislador e quais os impactos da mesma sobre a vida das pessoas, não mostra-
se suficiente. Não é demais ressaltar o impacto social que está se operando com
o teletrabalho no dia-a-dia das pessoas.
E é isso que se busca neste estudo, de forma que este é certamente o
método de interpretação jurídica mais apropriado na realização deste trabalho.
d) Tipos e métodos de pesquisa: Bibliográfico-documental, ou seja,
para a elaboração desta dissertação será utilizada, prioritariamente, a produção
textual sobre o tema proposto, em especial as obras e artigos publicados, bem
como os sítios na internet. Face à escassa produção bibliográfica sobre o tema
no Brasil, será necessária busca por informações em literatura estrangeira. Além
disto, também, mostra-se pertinente a pesquisa a documentos, tais como a
jurisprudência dos tribunais trabalhistas pátrios e internacional e a legislação
pertinente.

2. INTRODUÇÃO – PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA

O mercado de trabalho e a economia demandam por eficiência, para a


redução de custos. E as novas tecnologias aparecem como aliada a esta
demanda, notadamente a utilização de agrotóxicos nas lavouras. No entanto,
deve-se pensar em uma abordagem não meramente econômica, mas também
humana, evitando danos à saúde daqueles que vendem sua força de produção.
Deste modo, entende-se pertinente o estudo de tais temas, que, assinala-
se, são pouco estudados conjuntamente, em especial quanto ao enfoque da
proteção jurídico ambiental do meio ambiente do trabalho como forma de
prevenir doenças.
Assim, o problema central gira em torno dessas questões:
432

 O que é meio ambiente laboral?


 Qual o objeto da proteção jurídico-laboral-ambiental?
 O que é teletrabalho, qual sua origem, evolução histórica, natureza
jurídica, vantagens e desvantagens, como ele se opera nos dias de hoje
e quais as perspectivas para o futuro?
 Como proteger os Direitos Fundamentais à saúde e a privacidade
dos teletrabalhadores, sem tirar do empregador o seu Direito ao controle
dos meios de produção?
 De que forma pode ser efetivado o Direito Fundamental ao meio
ambiente do trabalho (lato sensu) e ao ambiente laboral equilibrado, no
teletrabalho?

3. DESENVOLVIMENTO

O meio ambiente laboral, assim como todo o meio ambiente, vem


sofrendo modificações ao longo do tempo, na medida em que novas formas de
produção estão surgindo, fruto, principalmente, da evolução tecnológica.
Hodiernamente, por exemplo, não se imagina mais uma mesa de escritório sem
um computador e um telefone.
Com efeito, o Direito tem o dever de estudar essa transformação toda, na
medida em que gera impactos que podem ocasionar demandas no âmbito
judiciário. Novas doenças ocupacionais e novas formas de acidentes do trabalho
nascem devido ao desequilíbrio que essas modificações desenfreadas causam
ao meio ambiente laboral.
O problema é atual, mas está longe de ser novidade. O meio ambiente do
trabalho é intrínseco ao trabalho humano, em que pese a preocupação com sua
proteção tenha tardado a chegar. Existem relatos de que flautistas, na Grécia
antiga, usavam couro para protegerem os lábios1. Não existia qualquer
preocupação por parte do Estado, e sim dos próprios trabalhadores que,
preocupados com a própria saúde, engenhavam formas de driblar os riscos
inerentes às atividades exercidas.
Na revolução industrial, ao lado das atrocidades causadas pelo sistema
capitalista (trabalho infantil, jornadas de 16 horas, habitações fétidas) surgiram
as primeiras legislações de proteção no meio ambiente do trabalho2. Foi a reação
do proletariado contra os detentores dos meios de produção que forçou o Estado
a agir e defender os interesses daqueles que sofriam os malefícios daquele
sistema.
Sebastião Geraldo de Oliveira3 assim define essa situação:

A nova postura dos trabalhadores era fortalecida pela


situação crescente dos acidentes, mortes e doenças
profissionais provocados pelo processo acelerado de
industrialização. Somente a indústria produz no mundo,
anualmente, 50 milhões de acidentes, sendo que, destes,
100 mil são mortais e um milhão e quinhentos mil

1 ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito ambiental do trabalho e meio ambiente do


trabalho: dano, prevenção e proteção jurídica – São Paulo : LTr, 1997. p. 28.
2 PADILHA, Norma Sueli. Do meio ambiente do trabalho equilibrado – São Paulo: LTr, 2002.

p. 37.
3 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 2ª Ed., São

Paulo: LTr, 1998.


433

trabalhadores ficam inválidos para o resto da vida,


segundo levantamento da OIT no início da década de 80
[...]

Mais ainda, acontecimentos recentes demonstram a necessidade de


estudar este tema. Como, por exemplo, os casos de suicídios na França que
ocorreram em 2009. Cerca de 70 trabalhadores atentaram contra a própria vida
em face da dura imposição de alcance de metas estabelecido pelas empresas,
suas empregadoras. Tão sério é o problema, que o governo francês de imediato
adotou medidas (no dia 9 de outubro de 2009), determinando que cerca de 2.500
empresas com mais de 1000 trabalhadores tomassem medidas urgentes de
acordo com os riscos psicossociais.
Por isso, fica clara a preocupação que se deve destinar ao estudo do
Direito ambiental laboral enquanto habitat temporário do ser humano
trabalhador, de forma a entender a sua transformação e poder tornar o trabalho
o menos insalubre possível para ele. Deve-se ter em mente que o trabalho é o
meio necessário à manutenção da vida e não da sua degradação.
Em especial quando se está tratando do teletrabalho. Mas, antes de
aproximar os objetos de estudo, cumpre conceituar, ainda que brevemente, o
que é o teletrabalho. A Lei 13.467/17, como sendo “Considera-se teletrabalho a
prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do
empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação
que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo.”
Salienta-se, por oportuno, que o teletrabalho não é essencialmente aquele
realizado no domicílio do empregado (home office), apesar de assim o ser na
grande maioria das vezes, mas aquele realizado de forma descentralizada 4. Por
exemplo, aquele realizado em uma viagem de negócios, em hotéis, conectando-
se à empresa a partir da rede mundial de computadores – internet. Algumas
empresas utilizam-se, inclusive, de telecentros, que são locais em que as
pessoas vão e executam suas atividades, diferenciando-se das filiais porque não
há a presença física do empregador exercendo o controle, mas tão somente
telessubordinação, que é aquela em que o este fica indiretamente ligado ao tele-
empregado, exercendo uma subordinação mais acentuada em relação aos
contratos normais5.
Todavia, o teletrabalho não pode ser visto como um tipo de labor precário
ou informal, na medida em que os mesmos Direitos conferidos aos empregados
que estão dentro da empresa, devem ser assegurados, em tese, aos
teletrabalhadores.
A regulamentação trazida pela Lei 13.467/17 deu uma roupagem a
esse tipo de contrato, dando um novo cenário de proteção, afastando da
proteção pelo controle do horário e flexibilizando a responsabilidade pela
aquisição e manutenção de ferramentas utilizadas para a realização do
teletrabalho, por força do que prevê o artigo 75-D, , que diz:

As disposições relativas à responsabilidade pela aquisição,


manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da

4 FINCATO, Denise Pires. Saúde, Higiene e Segurança no Teletrabalho: Reflexões e Dilemas


no Contexto da Dignidade da Pessoa Humana Trabalhadora. Revista Direitos Fundamentais
& Justiça, Porto Alegre, ano 3, nº 9 – Out./Dez., HS Ed., 2009, p. 116.
5 WINTER, Vera Regina Loureiro. Teletrabalho: uma forma alternativa de emprego. São

Paulo: LTr, 2005. p. 91.


434

infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho


remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo
empregado, serão previstas em contrato escrito.

Estima-se através de estudos financiados pela Nacional Science


Foundation que a relação entre o gasto com um trabalhador e com um
teletrabalhador seja de 29:1 (se este usar o seu próprio carro) e 11:1 (se este
usar os transportes públicos)6. Este dado evidencia, a toda sorte, o impacto que
o teletrabalho poderá causar na sociedade, diminuindo o custo de produção e
melhor distribuindo as riquezas.
No entanto, este tipo de produção é temerário e, por isso, deve ser
observado de perto. Talvez estejamos diante da grande implosão do capitalismo,
já prevista há alguns séculos. Explica-se: empresários, em busca de lucro,
poderão contratar pessoas de qualquer lugar do planeta. Ou seja, vamos supor
que o salário mínimo norte-americano seja U$ 1.000,00 e que o indiano seja U$
100,00. Com este valor nos Estados Unidos, uma pessoa pode ter a mesma
qualidade de vida (em tese) do que o trabalhador que mora na Índia. Obviamente
é muito mais vantajoso contratar o indiano. No entanto, o que acontecerá com
os milhões de estado-unidenses desempregados? Certamente, um grande
recesso econômico, talvez junto de uma desvalorização da moeda.
Talvez se esteja muito próximo do momento em que as riquezas do
mundo serão distribuídas, desigualdades sociais irão diminuir e grandes
potenciais sucumbirão. Contudo, é claro, que estas são apenas hipóteses de um
futuro incerto.
A discussão acerca do meio ambiente do trabalho saudável, quando lida-
se com o teletrabalho, traz consigo um verdadeiro conflitos de valores, inclusive
atingindo Direitos Fundamentais. De um lado, é interessante para o próprio
empregado que seu patrão exerça a subordinação, na medida em que
(tecnicamente) caso o operário não esteja sendo vigiado pelo empregador, não
se poderá falar em culpa, no acidente do trabalho. Atente-se que a saúde é um
Direito Fundamental, garantido, inclusive, constitucionalmente.
Não obstante, isso potencialmente fere outro Direito Fundamental: o
direito à privacidade/intimidade (artigo 5º, inciso X, da Carta Magna). Neste
sentido, o que é mais importante: a saúde ou a privacidade/intimidade do
trabalhador? Existe alguma hierarquia entre os Direitos Fundamentais, em
especial observando-se os dois supracitados?
Acrescenta-se aos questionamentos uma questão deveras pertinente:
considerando que o problema pode ser solucionado com a renúncia de um ou
outro Direito Fundamental, opera-se a mesma viável e até onde vai a liberdade
de negociação, quando da celebração do contrato do trabalho, considerando o
grande desequilíbrio que existe entre os dois agentes desta relação7?
A resposta a essa pergunta esbarra em outra problemática: as normas de
Direito do Trabalho são normas sociais e estas, por excelência, alem de
irrenunciáveis, são irretroatíveis, em função do princípio da vedação do
retrocesso legislativo, apontado pelo professor Carlos Alberto Molinaro nos seus

6 MASI, Domenico de. O futuro do trabalho. Fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. /


Domenico de Masi; tradução de Yadyr A. Figueiredo. 3. ed. – Rio de Janeiro. Ed. Da UnB,
2000. p. 293-94.
7 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Considerações sobre o Desenvolvimento dos Direitos da

Personalidade e sua Aplicação às Relações do Trabalho. Revista Direitos Fundamentais &


Justiça, Porto Alegre, ano 3, nº 6 – Jan./Mar., HS Ed., 2009, 171.
435

estudos8. Portanto, alem do empregado, em tese, não poder negociar ditas


normas de Direito Fundamental, a Lei não poderia, também na teoria, criar meios
para que essa transação ocorra, sob forte princípio da vedação do retrocesso
legislativo.
Ademais, o teletrabalho coloca em xeque, também, a própria proteção de
dados pessoais, tanto do empregador quanto do empregado. A proteção de
dados, como parte integrante do Direito Fundamental à privacidade, deve ser
protegido, sob pena, inclusive, de gerar danos morais a quem a violar9.
O grande problema é que, desrespeitando-se um Direito Fundamental,
estar-se-á ferindo o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, na medida em
que o primeiro tem dentro de si o segundo. Isso significa que todo Direito
Fundamental projeta de alguma forma a dignidade da pessoa humana.
Resumindo, nas palavras de Ingo Sarlet, a dignidade da pessoa humana, como
valor que é, está ligada a todo Direito Fundamental10.
Deste modo, entende-se pertinente o estudo de tais temas, que, assinala-
se, são pouco estudados individual ou, conjuntamente, sendo inexistentes ou
escassas as obras e os trabalhos acadêmicos sobre a interseção apontada.

5. CONCLUSÃO

O teletrabalho, por ser realizado fora do núcleo produtivo da empresa e,


portanto, longe dos olhos do empregador, está fortemente suscetível a doenças
e acidentes até então desconhecido. A recente Lei 13.467/17, popularmente
conhecida como “reforma trabalhista”, não confere a necessária proteção aos
indivíduos que emprestam sua força de labor nesse tipo de contrato.
Contudo, o meio ambiente do trabalho saudável é um direito fundamental
e ele deverá ser protegido com a máxima eficácia, devendo, portanto, as normas
de Direito Ambiental serem aplicadas para que tal proteção seja plena,
notadamente os princípios aplicáveis a essa seara.
O meio ambiente do trabalho, conforme previsão constitucional é um dos
biomas a serem protegidos por essa área do Direito, com o mesmo rigor de
proteção. Em paralelo, a casa do teletrabalhador é uma extensão do meio
ambiente da empresa, analisando em seu contexto mais amplo e, por isso,
deverá ser protegido, a despeito da previsão do art. 75-D, que flexibiliza a
responsabilidade pela aquisição e manutenção de equipamentos e ferramentas
utilizadas.

6. REFERÊNCIAS

ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Considerações sobre o Desenvolvimento


dos Direitos da Personalidade e sua Aplicação às Relações do Trabalho.
Revista Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 3, nº 6 –
Jan./Mar., HS Ed., 2009.

8 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: Proibição de retrocesso. Porto Alegre:


Livraria do Advogado, 2007.
9 RUARO, Linden Regina. Responsabilidade Civil do Estado por Dano Moral em Caso de Má

Utilização de Dados Pessoais. Revista Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano
1, nº 1 – Out./Dez., HS Ed., 2007, 241.
10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. Ed. Ver atual e ampl.,

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 84.


436

FINCATO, Denise Pires. Saúde, Higiene e Segurança no Teletrabalho:


Reflexões e Dilemas no Contexto da Dignidade da Pessoa Humana
Trabalhadora. Revista Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 3,
nº 9 – Out./Dez., HS Ed., 2009.

MASI, Domenico de. O futuro do trabalho. Fadiga e ócio na sociedade pós-


industrial. / Domenico de Masi; tradução de Yadyr A. Figueiredo. 3. ed. – Rio
de Janeiro. Ed. Da UnB, 2000.

MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: Proibição de


retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador.


2ª Ed., São Paulo: LTr, 1998.

PADILHA, Norma Sueli. Do meio ambiente do trabalho equilibrado – São


Paulo: LTr, 2002.

ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito ambiental do trabalho e meio


ambiente do trabalho: dano, prevenção e proteção jurídica – São Paulo :
LTr, 1997.

RUARO, Linden Regina. Responsabilidade Civil do Estado por Dano Moral em


Caso de Má Utilização de Dados Pessoais. Revista Direitos Fundamentais &
Justiça, Porto Alegre, ano 1, nº 1 – Out./Dez., HS Ed., 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. Ed. Ver


atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

WINTER, Vera Regina Loureiro. Teletrabalho: uma forma alternativa de


emprego. São Paulo: LTr, 2005.
437

TRABALHO NA ERA DIGITAL: VIAS PARA PENSAR A


INFOSSUBORDINAÇÃO
WORK IN THE DIGITAL AGE: WAYS TO THINK INFOSUBORDINA-TION

Leandro Faria Costa


Bianca Braga Menacho
Orientador(a): Silvio Beltramelli Neto

Resumo: Em face das novas relações laborais surgidas com o advento da


Revolução 4.0, o Direito é chamado a intervir, evidenciando limites e perigos da
aplicação de padrões interpretativos longevos em face de um panorama
completamente novo. Especificamente no campo do Direito do Trabalho, tem se
apresentado como grande desafio a caracterização do tipo de relação presente
no contrato estabelecido entre aplicativos digitais e prestadores de
serviços/empregados, fenômeno que está se convencionando denominar, em
alusão a uma das empresas ícones deste tipo de negócio, “uberização”. O
presente estudo pretende analisar, sob a ótica do capitalismo informacional e
dos fundamentos atuais de direito a possibilidade de inserção dos motoristas de
aplicativo na categoria de trabalhadores subordinados – mais especificamente
de subordinação estrutural – para possibilitar a efetiva proteção trabalhista da
categoria e garantir maior segurança jurídica quanto ao reconhecimento do
vínculo.
Palavras-chave: Revolução 4.0. Direito do Trabalho. Subordinação.

Abstract: In view of the new labor relations that emerged with the advance of
Revolution 4.0, Law is called upon to intervene, highlighting the limits and
dangers of applying long-standing interpretative standards in the face of a
completely new scenery. Specifically in the field of Labor Law, the
characterization of the relationship nature in the contract between digital
applications and service providers / employees has been a challenge; the
phenomenon is conventionally being named after one of the companies’ icons of
this kind of business, being, therefore, called, “uberization”. The present study
intends to analyze, from the perspective of informational capitalism and the
current fundamentals of law, the possibility of insertion of application drivers in
the category of subordinate workers – specifically structural subordination - to
enable the effective labor protection of the category and ensure greater legal
certainty regarding the recognition of the bond.
Keywords: Revolution 4.0. Labor law. Subordination.

INTRODUÇÃO

Com a pretensão de analisar a possibilidade de caracterização do


trabalho contido em aplicativos digitais como subordinada, e compreender a
responsabilidade e poderes deveres das empresas empregadoras em relação
aos seus prestadores de serviços/ empregados, analisam-se abaixo as
características essenciais para a concepção do contrato de trabalho. Objetiva-
se, por fim, verificar a viabilidade da subsunção dos aludidos prestadores de
serviço nos elementos que caracterizam um trabalhador subordinado,
considerando as características do capitalismo informacional em que essas
relações foram fundadas, bem como as novas interpretações dos elementos da
438

subordinação em seu conceito doutrinário de subordinação potencial.


O debate a respeito do requisito da subordinação como um elemento
definidor da relação de emprego surge a partir da problemática de delimitação
do objeto ao qual se presta o Direito do Trabalho. Dessa forma, no contexto atual,
com o surgimento dos trabalhadores classificados na esfera da “uberização”,
manifesta-se o questionamento sobre a categorização desses
prestadores/trabalhadores em uma relação jurídica trabalhista específica para
subsequente proteção normativa.

1. PANORAMA GERAL DA REVOLUÇÃO 4.0

O Homem se orienta pelo seu tempo e o modo de produção em que está


inserido. As transformações dessas estruturas alteram a própria noção de
indivíduo e redefinem os limites nos quais são moldadas as práticas sociais.
A introdução da tecnologia na vida cotidiana é fundamental na construção
de novas condições de sociabilidade e desenvolvimento da própria ideia de
comunidade. Desde a pré-história em que as ferramentas de ferro foram
utilizadas para o domínio do meio ambiente e normalização das questões
sociais, até a Modernidade, em que internet é a principal plataforma de
comunicação e elemento fundamental das relações econômicas, as alterações
dos paradigmas político e econômico nascem atreladas a ideia de inovação1.
Assim, a discussão sobre a problemática da transformação do sistema
gravita naquilo que caracteriza a própria noção de capitalismo, o trabalho. Toda
análise, seja da conjuntura ou da estrutura funcional do sistema, carece,
primeiramente, do entendimento da maneira como a sociedade organiza o labor
e produz seus desdobramentos a partir dele, ou seja, demanda compreender
como uma atividade física ou intelectual influencia na organização das relações
de poder inscritas no contexto da vida em sociedade.
O que se estabelece com hierarquização patrão-funcionário/dono do meio
de produção-trabalhador condiciona e acaba por replicar determinado padrão
comportamental dos indivíduos, ou mesmo das instituições, enquanto
representações do corpo político investido de legitimidade social. Os embates
entre capital e trabalho explicam a dialética inerente à própria dinâmica
operacional existente. Portanto, verifica-se a viabilidade de parâmetros de
extensão dos arranjos da coletividade no trabalho. Pensar, dessa forma, em crise
do trabalho é, basicamente, refletir sobre as contradições inerentes e
decorrentes do próprio capitalismo.
As revoluções industriais são reflexos da constante e imperativa
necessidade do homem e do sistema capitalista em aperfeiçoar-se na busca de
formas mais efetivas de lucro, possibilitando uma acumulação de capital mais
substancial, superando o passado e projetando um futuro calcado na ideia de
progresso técnico-científico. São registros da organização de produção e da
relação estabelecida por quem a opera e comanda2.
A dita primeira revolução industrial ocorreu, fundamentalmente, na
Inglaterra. Havia um conjunto de fatores políticos, econômicos e sociais, que vão
desde a política de cercamento até uma situação política relativamente estável,
que propiciaram o florescimento da atividade industrial.

1 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2015. 532 p.
2 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2015. 532 p.
439

A máquina a vapor foi o símbolo da alteração de status produtivo


experimentada no final do século XVIII por essa potência internacional. Mais do
que uma nova maneira de conduzir os processos, a revolução industrial
significou uma mudança nos costumes e na operabilidade dos dispositivos de
ação estatal. O modelo fordista representou a subordinação do homem moderno
ao ritmo da máquina, de tal maneira que a sua subjetividade foi atrelada ao
instrumento em si próprio3.
A segunda revolução industrial, por sua vez, advém no contexto das
guerras mundiais, em que a necessidade de desenvolvimento bélico significava
não só envergadura econômica por parte de um país, mas também capacidade
em defender a soberania dos Estados-Nações. Teve como principal
representante os Estados Unidos, financiador das dívidas externas dos países
que investiram capital na construção de metalúrgicas, siderúrgicas, estaleiros e
principal credor mundial no pós-guerra4.
A eletricidade e o petróleo estabeleceram-se como fatores de agregação
e facilitação do comércio. O taylorismo, como método de produção, adequou as
necessidades do tempo e instituiu a produção just-in-time e a especialização do
trabalhador na tarefa desempenhada5.
A terceira revolução industrial floresce no contexto do começo do século
XX, em que há a reafirmação do poder estadunidense somado ao fortalecimento
do Japão e do crescimento acentuado de um grupo de países asiáticos batizados
de “Tigres Asiáticos”. É o momento da robótica e da internet na indústria,
abrangendo progressos na agricultura, na pecuária, no comércio e na prestação
de serviços. Nesse sentido, a globalização foi um importante auxílio para a
produção, massificando produtos e permitindo o acesso a recursos tecnológicos
sem precedentes6.
O que se entende por quarta revolução industrial, na acepção adotada
pelo Fórum Econômico Mundial, é um fenômeno que institui uma nova maneira
de descrever as alterações dos processos produtivos. Mesmo que mais
avançada e perceptível nos países com economias historicamente
desenvolvidas, o padrão de incremento científico e modificação das
circunstâncias perpassa toda a economia mundial. Sustenta-se que as
dicotomias das teorias econômicas (liberalismo e keynesianismo) não suportam
a complexidade do fenômeno por negligenciarem aspectos relevantes da sua
dinâmica de funcionamento7.
Não mais se percebe o desenvolvimento de uma área em específico. Ao
unir os sistemas digitais, físicos e biológicos, potencializou-se as formas de

3 DATHEIN, Ricardo. Inovação e Revoluções Industriais: uma apresentação das mudanças


tecnológicas determinantes nos séculos XVIII e XIX. Publicações DECON Textos Didáticos
02/2003. DECON/UFRGS, Porto Alegre, Fevereiro 2003. p 4-6
4 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2015. 532 p.
5 ANTÓNIO BRANDÃO MONIZ; BETTINA KRINGS; PHILIPP FREY. Indústria 4.0 implicações
de um conceito para o trabalho. In: ENCONTRO NACIONAL DO TRABALHO “AS MUDANÇAS
NO CHÃO DA FÁBRICA”, 10., 2018, Lisboa. Comunicação. Lisboa: Universidade nova de
lisboa, 2018. p. 12 - 20.
6 ANTÓNIO BRANDÃO MONIZ; BETTINA KRINGS; PHILIPP FREY. Indústria 4.0 implicações
de um conceito para o trabalho. In: ENCONTRO NACIONAL DO TRABALHO “AS MUDANÇAS
NO CHÃO DA FÁBRICA”, 10., 2018, Lisboa. Comunicação. Lisboa: Universidade nova de
lisboa, 2018. p. 12 - 20.
7 SCHWAB, Klaus. The fourth industrial revolution. Geneva: World Economic Forum, 2016.
p. 26-40
440

ganho de produtividade. A própria ideia de Homem como ser natural foi


modificada porque o corpo é visto como o signo da relação natureza-tecnologia.
Os efeitos no trabalho é uma das questões mais importantes da quarta
revolução industrial. A articulação mundial para a modernização da produção
impacta diretamente na quantidade de pessoas empregadas e na eventual
qualidade dos postos de serviços advindos dela.
Paulatinamente, a composição do quadro geral das empresas passa a
depender, cada vez menos, do trabalho humano. Se nas outras revoluções
industriais havia o controle das operações das máquinas pelos homens, o
sistema hoje possui uma inteligência que supervisiona o próprio labor não-
humano. Eis a era da Internet das Coisas (IoT). Por outro lado, o desemprego é
um fato notório em todas as economias que experimentam essas mudanças8.
Os padrões globais da Quarta Revolução Industrial apontam, inicialmente,
para uma repetição e aprofundamento da desigualdade de renda, além da
precarização do trabalho. As melhorias na produção não incidem,
necessariamente, na qualidade laboral. Ao contrário, houve a piora significativa
nas condições pelo arrocho salarial, aumento da jornada de trabalho, criação de
vagas temporárias que dificultam o estabelecimento jurídico de uma relação de
emprego.

2. O RECONHECIMENTO DO CONTRATO DE TRABALHO

As condições de trabalho estabelecidas a partir dessa nova arquitetura do


capitalismo mundial possibilitam a ressignificação da interpretação jurídica até
então vigente. Da forma como é compreendido hoje, o reconhecimento do
contrato de trabalho está condicionado a certos elementos como o imposto pelos
artigos. 2º caput e 3º da CLT, sendo eles: (i) atividade realizada por pessoa física
ou natural; (ii) pessoalidade, ao menos em relação ao trabalhador; (iii)
habitualidade; (iv) onerosidade e (v) subordinação 9. Entretanto, tais elementos
não são características do empregado em si, como definido por alguns
difundidos acadêmicos10, mas do próprio contrato de trabalho, tendo em vista a
necessidade de se delimitar, primeiramente, a relação jurídica para que sejam
caracterizados os sujeitos que a compõem.11 A ausência dos elementos
indicados leva a não qualificação da relação jurídica de contrato de trabalho
estabelecida.
Analisando os elementos supracitados e aplicando-os aos motoristas de
aplicativo é inequívoca a presença da onerosidade, presença de pessoa natural
e da habitualidade da relação, tendo em vista que, por meio de pessoa natural
não prestam serviço isolado à companhia e sim efetuam trabalho com
estabelecimento de vínculo constante entre as partes, ainda que remunerado

8 Ibidem. p. 27-29.
CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método,
2014, p. 264.
10 GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Curso de direito do trabalho. Rio de Janeiro:
Forense, 2006. n.
55, p. 136.
11 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método,
2014. p. 261.
441

através de terceiros.12
Quanto ao elemento da pessoalidade, ainda que haja a tendência de
descaracterizá-lo através de apontamentos como o de que vários motoristas são
autorizados a utilizar o mesmo veículo, ele se mantém pelo estabelecimento
regulamentar de alguns aplicativos que postulam o cadastro na plataforma digital
como prerrogativa para a realização da função laboral.13
O elemento da subordinação é, por fim, também passível de ser levado
a desfiguração. Sob o pretexto de que o motorista possui total autonomia na
execução do trabalho, o que implicaria na faculdade de exercício de uma
segunda atividade profissional, esse elemento não se concretizaria devido à
ausência de submissão às regras de conduta, a possibilidade de recusa de
viagens e de concessão de descontos aos usuários.14 Contudo, tal argumento
não reflete a realidade, tendo em vista que o valor recebido pelas empresas por
cada corrida é, usualmente, calculado pelo preço “sugerido” no aplicativo, não
pelo valor acordado entre o motorista e o cliente. Ademais, o motorista sofre
sanções por parte da empresa caso recuse um determinado número de corridas
consecutivamente ou permaneça off-line por determinado período, podendo
inclusive ter seu cadastro removido do aplicativo15. Do mesmo modo, tendo em
vista que a exclusividade não figura como requisito da relação de emprego, não
constitui viabilidade fático-jurídica a sustentação do não enquadramento da
atividade como contrato de trabalho baseado na premissa do motorista possuir
a opção de trabalhar para outras empresas.
Ainda analisando a subordinação, tem-se como consolidado o
entendimento jurisprudencial 16 atual – baseado na doutrina da “dependência”
(art. 3º da CLT) – que a subordinação não se pauta na dependência econômica
ou técnica, e sim na dependência jurídica, tendo em vista que a primeira se trata
de uma característica que pode existir ou não em relações de trabalho, não
podendo, assim, ser considerada elemento suficiente para a caracterização de
vinculo jurídico. Desta forma, não se confunde igualmente a subordinação com
a capacidade negocial do indivíduo, ainda que esta seja levada em conta como
critério de diferenciação para o caso de trabalhadores que possuam ampla
capacidade de negociação, visto que tal condição privilegiada ocorre de maneira
excepcional.17
Segundo De Ferrari, a subordinação é “a possibilidade que tem uma das
partes de imprimir, quando o creia necessário, uma certa direção na atividade
alheia”18, causando determinação das modalidades de prestação de trabalho,
contando com ampla sujeição do trabalhador, enquanto exerce o trabalho

12 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª RegiÃo. Relatório nº 1000123-


89.2017.5.02.0038. Relator: RELATORA: JUIZA BEATRIZ DE LIMA PEREIRA. 38.ª Vara do
Trabalho de SÃo Paulo. São Paulo, p.7.
13 Ibidem, p. 6.
14 Ibidem, p. 8.
15 Ibidem, p. 7.
16 Assim, acertadamente: “...o conceito de ‘dependência’ referid(o) no art. 3º da CLT, há
muito já restou definid(o) pela jurisprudência de que não se trata de ‘dependência econômica’
mas sim ‘jurídica’, ou seja, subordinação.” (TRT – 4ª Reg., 4ª T., RO n. 0083700-
12.2003.5.04.0201, Rel. Juíza Flávia Lorena Pacheco, julg. em 09.12.2004).
17 GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Curso de direito do trabalho. Rio de Janeiro:
Forense, 2006. n. 55, p. 137.
18 Apud Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, Relação de emprego – Estrutura legal e supostos,
São Paulo, LTr, 1999, p. 470.
442

pactuado, conforme diretrizes traçadas pelo tomador de serviço. 19


Analisando a jurisprudência majoritária, nota-se que nem mesmo a
inserção do trabalhador na estrutura empresarial em exercício da atividade fim
da empresa em observância às determinações e poder de organização do
empresário basta à caracterização de subordinação. Entretanto, em combate ao
entendimento, insere-se a figura da subordinação estrutural – esta mais
adequada a representação atual da “uberização” – integrativa ou reticular para
qualificar a relação de contrato de trabalho subordinado – vinculados à doutrina
germânica e o entendimento do contrato de trabalho resultado da integração do
trabalhador na empresa-instituição como condição bastante para qualificar o
contrato de trabalho.20
Não obstante, não se caracteriza subordinação a mera sujeição do
trabalhador a diretrizes ou obrigações gerais, tendo em vista a natureza
obrigacional sob a qual contratos se estabelecem. 21 Entretanto, é reconhecido
que o liame obrigacional da prestação autônoma de serviços de seguir meras
diretivas ou orientações gerais se estabelece de forma diversa da subordinação
jurídica estrita, ou da subordinação contratual – condição de trabalho em que os
demais requisitos para estabelecimento de relação de emprego não estão
presentes, ainda que haja caracterizada a necessidade de seguir regras
impostas pelo tomador de serviço (como o horário ou local da prestação de
serviço).22 Assim, apenas analisando a reunião considerável (critério subjetivo
avaliado pelo julgador em questão) dos “indícios de subordinação jurídica”[8] em
casos de difícil caracterização da relação de trabalho pode-se indicar a
existência da subordinação do contrato de trabalho.
O estatuto de um dos aplicativos de transporte, por exemplo, faz uma série
de restrições e estabelece regulamentações naturais às relações de trabalho. O
documento, em suas informações iniciais, exime-se de responsabilidade no que
tange à relação cliente-motorista. As ações e omissões de um motorista em
razão das condutas do cliente serão resolvidas no âmbito privado, sem
interferência da empresa. Ocorre, por exemplo, que o motorista será o único
responsável por quaisquer obrigações e responsabilidades resultantes da
prestação de serviço de transporte. Assim, as possibilidades jurídicas de
responsabilização civil são mitigadas por parte do aplicativo pela negação do
próprio relação de trabalho existente com o motorista23. Estabelece-se, até, uma
dificuldade processual na obtenção de respostas por parte da empresa de
tecnologia. O litisconsórcio passivo no caso de ação regressiva, por exemplo, é
vedado pela falta de legitimidade.
Entretanto, a discussão acerca da relação jurídica perpassa o próprio
conceito de subordinação. Interpretar aquilo que ocorre no plano fático demanda
discriminar os requisitos pelos quais o fato social acaba por amoldar-se à norma
jurídica.
Assim, são indícios de subordinação jurídica, que podem variar segundo

19 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método,
2014. p. 261.
20 ICHINO, Pietro. Il contrato di lavoro. Milano: Giuffrè, 2000. n. 82, p. 271-272.
21 ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina,
1997. v. 1, n. 33, p. 187.
22CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método,
2014. p. 267.
23 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do trabalho: situações laborais individuais.
Coimbra: Almedina, 2006. p. 33.
443

a natureza da atividade, ramo da empresa e serviço prestado: (ia forma de


remuneração por tempo de trabalho e a regularidade dos pagamentos, que se
apresentam na forma da figura da habitualidade e onerosidade
supramencionadas; (i) as ferramentas e equipamentos de trabalho pertencerem
ao trabalhador, e, no caso de alguns aplicativos, como por exemplo a Uber, há
a utilização de seu carro e telefone móvel como ferramentas de trabalho); (iii)a
emissão de ordens diretas do tomador de serviços ao prestador de serviços,
dadas pelo regulamento seguido pelo motorista, bem como sua obrigação de
permanecer online e não recusar determinado número de corridas sob pena de
perda do cadastro no aplicativo. [1]
Segundo o entendimento doutrinário que considera as condições do
capitalismo de produção para delimitar o conceito de subordinação, esta poderia
ser entendida como decorrente dos dois fatores de produção (capital e trabalho)
que se encontram submetidos juridicamente ao empresário. Dessa forma, o
poder jurídico que o empresário exerce sobre o capital se encontraria
representado pelo direito de propriedade, competindo, a partir disto, exercer um
poder jurídico sobre o segundo fator de produção, o trabalho. 24. Assim “[...] o
fundamento da subordinação se dá pela noção de propriedade, pois somente o
proprietário goza do poder de direção”25. Nesta linha de raciocínio conclui-se que
no capitalismo informacional, o detentor dos meios de produção não é
propriamente o motorista, visto que o carro que detém (ou aluga) não passa de
mera ferramenta de trabalho e não de meio de produção em si; aquele que está
dotado do meio de produção é a empresa, através da operação exclusiva do
aplicativo. 26
Há de se considerar, ainda, na doutrina 27, o fundamento da alteridade,
que justifica a existência de um poder por parte do empregador de dirigir os
serviços prestados pelo empregado e, por consequência, justifica a existência
de uma subordinação deste em razão daquele. A alteridade representa a
aceitação dos riscos da atividade por parte do empregador que reúne, em sua
empresa, os diversos fatores de produção, e deve considerar como um deles o
próprio trabalho.
No caso da Uber, por exemplo, como apresentado em julgados
nacionais28, se contratam seguros de acidentes pessoais em favor de seus
usuários verdadeiramente clientes, ou seja, aqueles que se utilizam do
transporte por intermédio do motorista, o que, em última instância, revela
assumirem a responsabilidade pela integridade física dos usuários. Entretanto,
ainda que haja a assunção de riscos em relação aos usuários clientes, a
empresa não estende essa responsabilidade para os próprios motoristas –

24 CUEVA, Mario de La. Derecho mexicano del trabajo. 3. ed. Tomo Primeiro. Mexico:
Editorial Porrua, 1949, p. 509.
25 MACHADO, Sidnei. A noção de subordinação jurídica. Uma perspectiva reconstrutiva.
São Paulo: LTr, 2009, p. 32.
26 CUEVA, Mario de La. Derecho mexicano del trabajo. 3. ed. Tomo Primeiro. Mexico:
Editorial Porrua, 1949, p. 511.
27 GASPAR, Danilo Gonçalves.A CRISE DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA CLÁSSICA
ENQUANTO ELEMENTO DEFINIDOR DA RELAÇÃO DE EMPREGO E A PROPOSTA DA
SUBORDINAÇÃO POTENCIAL. 2011. 281 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de
Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p 124.
28 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª RegiÃo. Relatório nº 1000123-
89.2017.5.02.0038. Relator: RELATORA: JUIZA BEATRIZ DE LIMA PEREIRA. 38.ª Vara do
Trabalho de SÃo Paulo. São Paulo, p. 9.
444

mesmo que em seu estatuto, de forma a não tratar os motoristas como


empregados, também os chame de “clientes”29. Dessa maneira, a empresa se
afasta do cumprimento adequado do fundamento da alteridade trazido pelo
Direito do Trabalho.
Assumindo o empregador os riscos do empreendimento, é compreensivo
que a este seja atribuído o direito de dispor dos fatores que se congregam em
forma de unidade técnica de produção. Assim sendo, considerando que a força
de trabalho não pode ser desassociada de sua fonte, o trabalhador, decorre,
logicamente, a situação subordinada em que este terá de ficar relativamente
àquele que pode dispor do seu trabalho. De um lado, há o dever de direção do
empregador em relação ao empregado, advindo da própria assunção de riscos
da atividade empresária a que se propôs; de outro, a obrigação do empregado
de ser dirigido pelo empregador, segundo os fins que almeja no campo da
atividade econômica.30
Assim, ao detentor dos fatores de produção (dentre os quais se inclui a
força de trabalho) surge a prerrogativa de dirigir a prestação de serviços dos
trabalhadores através dos poderes diretivo, regulamentar, fiscalizatório e de
direção. Ao poder diretivo destina-se organizar sua atividade; ao poder
regulamentar, a própria exteriorização do poder diretivo através da edição de
regras de diretrizes organizacionais; ao poder fiscalizatório incumbe revelar a
possibilidade do empregador acompanhar e vigiar a prestação de serviços
executada pelos trabalhadores no âmbito de sua estrutura empresarial; por fim,
o poder disciplinar possibilita ao empregador impor sanções aos empregados
que descumprirem alguma das obrigações impostas por no contrato 31. Deste
modo, é através do poder disciplinar que o empregador tem a possibilidade de
punir aqueles que não observam as regras diretivas por ele emanadas.
A incongruência entre o pretenso tratamento civil à relação aplicativo-
motorista e a realidade fática é ressaltada quando “os termos e condições de
uso” prevê sanções e restrições típicas de relações de subordinação, ou seja, de
trabalho. A empresa reserva o direito de restringir ou mesmo desativar o
motorista do acesso a plataforma digital por um critério razoável ou exclusivo da
empresa de aplicativo digital.
Dessa forma, afiguram-se criticáveis as alegações de empresas que
gerenciam trabalho por aplicativos, no sentido de que3233 a relação que
estabelece com os motoristas ocorre através do modelo de economia partilhada,
tendo em vista que não há divisão do uso de serviços e produtos em forma de

29 UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA (São Paulo). TERMOS E CONDIÇÕES


GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL. Disponível em:
<https://www.academia.edu/29424079/TERMOS_E_CONDIC_O_ES_GERAIS_DOS_SERVIC_
OS_DE_INTERMEDIAC_A_O_DIGITAL_-_2016.06>. Acesso em: 11 out. 2019.
30GASPAR, Danilo Gonçalves.A CRISE DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA CLÁSSICA
ENQUANTO ELEMENTO DEFINIDOR DA RELAÇÃO DE EMPREGO E A PROPOSTA DA
SUBORDINAÇÃO POTENCIAL. 2011. 281 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de
Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 257.
31Ibidem, p. 228.
32 UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA (São Paulo). TERMOS E CONDIÇÕES
GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL. Disponível em:
<https://www.academia.edu/29424079/TERMOS_E_CONDIC_O_ES_GERAIS_DOS_SERVIC_
OS_DE_INTERMEDIAC_A_O_DIGITAL_-_2016.06>. Acesso em: 11 out. 2019.
33 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª RegiÃo. Relatório nº 1000123-
89.2017.5.02.0038. Relator: RELATORA: JUIZA BEATRIZ DE LIMA PEREIRA. 38.ª Vara do
Trabalho de SÃo Paulo. São Paulo, p.8.
445

serviço colaborativo horizontal 34 e sim o exercício, como já explicado, do poder


disciplinar, fiscalizatório e regulamentar da empregadora.

3. AS VIAS PARA PENSAR A INFRASSUBORDINAÇÃO

Caracterizada a subordinação, tem-se como uma alternativa de


classificação da relação a figura da subordinação estrutural proposta por
Maurício Godinho Delgado, como sendo aquela através da qual o trabalhador
acolhe, estruturalmente, a dinâmica de organização e funcionamento do tomador
de serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas.35
Entretanto, no contexto atual, a categorização da figura do motorista de aplicativo
torna-se mais precisa no conceito de subordinação potencial, tendo em vista que
parte-se do pressuposto de que não é a dependência econômica que distingue
a relação de emprego das demais relações de trabalho, sendo a dependência
econômica apenas um indício sintomático, diferentemente da subordinação
estrutural. 36
Não é requisito necessário da subordinação potencial que o trabalhador
receba ordens diretas e pessoais do tomador de serviços, assim, basta a sua
inserção na dinâmica organizacional deste, o que se qualifica justamente através
das indicações técnicas de caráter geral. 37
Destarte, por mais que o trabalhador não receba ordens diretas e pessoais
do tomador de serviços, e no caso em questão receba inclusive a nomenclatura
de “cliente” por este,38a sua inserção na estrutura organizacional do tomador de
serviços, com a indicação genérica das técnicas, procedimentos e regras por
parte do “cliente”39, revela a existência de um trabalho potencialmente
subordinado. Afinal, tendo em vista que a mercadoria com que a empregadora
atua não é o aplicativo, e sim o serviço de transporte,40 como o excedente do
capitalista é extraído na circulação de sua mercadoria não há como caracterizar
os motoristas como “clientes”.
Por fim, a titularidade dos instrumentos de trabalho por parte do
trabalhador não é elemento bastante capaz de modificar a sua condição de
trabalhador subordinado, ainda que tratado como “cliente” da empresa. Sob essa
perspectiva, convém destacar que o uso dos instrumentos de trabalho de

34 Ibidem, p. 9.
35 GASPAR, Danilo Gonçalves.A CRISE DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA CLÁSSICA
ENQUANTO ELEMENTO DEFINIDOR DA RELAÇÃO DE EMPREGO E A PROPOSTA DA
SUBORDINAÇÃO POTENCIAL. 2011. 281 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de
Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 243.
36 DELGADO, Maurício Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista
LTr. São Paulo, LTr, ano 70, n.6, p. 657-667, jun. 2006, p. 667.
37 GASPAR, Danilo Gonçalves.A CRISE DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA CLÁSSICA
ENQUANTO ELEMENTO DEFINIDOR DA RELAÇÃO DE EMPREGO E A PROPOSTA DA
SUBORDINAÇÃO POTENCIAL. 2011. 281 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de
Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011, p. 200.
38 CARVALHO, Joana Campos.ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA ATIVIDADE DA UBER
EM PORTUGAL.Disponível em:
<http://www.concorrencia.pt/vPT/Estudos_e_Publicacoes/Revista_CR/Documents/Revista%20
C_R%2026.pdf#page=221>. Acesso em: 10 out. 2019, p. 96.
39 Ibidem, p. 63.
40 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª RegiÃo. Relatório nº 1000123-
89.2017.5.02.0038. Relator: RELATORA: JUIZA BEATRIZ DE LIMA PEREIRA. 38.ª Vara do
Trabalho de SÃo Paulo. São Paulo.
446

propriedade dos trabalhadores pelos empregadores tem sido algo comum nos
dias atuais, revelando-se uma estratégia ou para reduzir custos ou para tentar
mascarar uma verdadeira relação de emprego.41

CONCLUSÃO

Se um trabalhador realiza uma atividade econômica ou profissional a título


lucrativo e de forma habitual, pessoal, direta e predominantemente para um
tomador de serviços (ou para diversos tomadores de serviço ao mesmo tempo,
como no caso dos trabalhadores que atendem a diversos aplicativos da mesma
categoria) de quem depende economicamente, sem que, para tanto, organize
sua atividade (não se caracterizando verdadeiramente como trabalhador
autônomo economicamente dependente já que presta seus serviços sem auxílio
de terceiros remunerados) é evidente que o referido trabalhador está inserido na
atividade empresarial do tomador de serviços, não cabendo o argumento de que
o motorista seria mero colaborador da empresa em razão de obter, como ocorre
na Uber, por exemplo, 75% a 80% do valor das corridas para si, tendo em vista
que arcará com o valor do aluguel do veículo, manutenção deste (caso seja seu),
valor referente a gasolina, serviço de internet e telefonia, etc.
A complexidade do tema aponta para a necessidade de alargar a
discussão da subordinação enquanto estrutura basilar do desenvolvimento do
capitalismo. O atual estágio multidimensional indica que ela por si só não
comporta a complexidade dos processos existentes. Logo, o presente resumo
objetiva demonstrar os caminhos pelos quais a infosubordinação tem sido
pensada segundo autores da área e as respostas pela jurisprudência aos
estímulos socio-jurídicos.

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trabalhista. São Paulo: LTr, 2005, p. 53.

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DO TRABALHO “AS MUDANÇAS NO CHÃO DA FÁBRICA”, 10., 2018,
Lisboa. Comunicação. Lisboa: Universidade nova de lisboa, 2018. p. 12 - 20.

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª RegiÃo. Relatório nº 1000123-


89.2017.5.02.0038. Relator: RELATORA: JUIZA BEATRIZ DE LIMA
PEREIRA. 38.ª Vara do Trabalho de SÃo Paulo. São Paulo.

CARVALHO, Joana Campos.ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA ATIVIDADE


DA UBER EM PORTUGAL.Disponível em:

41GASPAR, Danilo Gonçalves.A CRISE DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA CLÁSSICA


ENQUANTO ELEMENTO DEFINIDOR DA RELAÇÃO DE EMPREGO E A PROPOSTA DA
SUBORDINAÇÃO POTENCIAL. 2011. 281 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de
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447

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SCHWAB, Klaus. The fourth industrial revolution. Geneva: World Economic


Forum, 2016. 26-40
448

VALORIZAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA COMO OPÇÃO PARA


MELHORIA DO AMBIENTE NEGOCIAL NA REFORMA DO JUDICIÁRIO E NA
REFORMA TRABALHISTA
VALUING COLLECTIVE NEGOTIATION AS AN OPTION FOR IMPROVING
THE BUSINESS ENVIRONMENT IN JUDICIAL REFORM AND LABOR
REFORM.

Ana Cecilia Sampaio De Martino


Orientador(a): Samantha Ribeiro Meyer Pflug Marques

Resumo: Muitos países têm enfrentado o desafio de modernizar as relações de


trabalho sem perder a competitividade no mercado internacional. A negociação
coletiva é um instrumento importante que permite fomentar essa
competitividade, gerando mais empregos e aumentando o poder de compra da
população. Alguns países nórdicos prestigiaram a negociação coletiva com esse
intuito de manter suas economias competitivas. No Brasil não foi diferente, as
últimas reformas que envolveram o Direito do Trabalho vieram acompanhadas
desse discurso de que as mudanças valorizariam a negociação coletiva e
aumentariam o número de postos de trabalho. O que se questiona no presente
artigo, é se, de fato, isso ocorreu no Brasil.
Palavras-chaves: Negociação coletiva. Valorização. Litigiosidade.

Abstract: Many countries have faced the challenge of modernizing labor


relations without losing competitiveness in the international market. Collective
bargaining is an important instrument for fostering this competitiveness,
generating more jobs and increasing the purchasing power of the population.
Some Nordic countries have honored collective bargaining in order to keep their
economies competitive. In Brazil, it was no different, the latest reforms involving
labor law were accompanied by this discourse that the changes would value
collective bargaining and increase the number of jobs. What is questioned in this
article is whether, in fact, this occurred in Brazil.
Keywords: Collective bargaining. Valuation. Litigation.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o aumento do número de processos ajuizados tem


levado o Poder Judiciário brasileiro a enfrentar grandes desafios, como a
morosidade na entrega da prestação jurisdicional, o que se deu ante as
mudanças sociais, a transformação tecnológica e a promulgação da Constituição
de 1988 que ampliou o acesso à justiça.
A previsão constitucional trouxe uma abertura para o ajuizamento de
ações judiciais e um esgotamento do sistema processual brasileiro, que não
estava preparado para essa alteração de paradigma.
Por outro lado, o artigo 7º, XXVI, da Constituição Federal de 1988
também enalteceu a autonomia da vontade coletiva como forma de
autocomposição dos conflitos trabalhistas, reconhecendo a negociação coletiva
como direito fundamental do trabalhador.
Verifica-se que em 2016, a Confederação Nacional da Indústria (CNI)
realizou o Diálogo Brasil-Países Nórdicos, onde a Noruega e da Dinamarca
apresentaram no painel “Reformas das relações de trabalho e políticas para o
449

mercado de trabalho", demonstrando que a negociação coletiva poderia ser


usada como instrumento importante para propiciar um ambiente de negócios,
fomentando a competitividade da economia, aumento de empregos e
contribuindo para o crescimento da renda1.
No Brasil, os argumentos utilizados nas últimas reformas trabalhistas
foram os mesmos, em especial na reforma do Judiciário, através da Emenda
Constitucional 45 de 2004, e da realizada através da Lei 13.467/2017, que
enalteceram a valorização da autocomposição. Diante disso, o presente artigo
tem objetivo de verificar se, realmente, as mudanças trouxeram uma valorização
dos instrumentos coletivos.

1. AUMENTO DA LITIGIOSIDADE

As transformações sociais, o consumismo e o rápido avanço tecnológico


modificaram a sociedade moderna. A alteração também se deu em razão da
mudança da atividade econômica, corolário do desenvolvimento do sistema de
produção e distribuição em série de bens, segundo CUNHA (2011).
Assim, as mudanças sociais, juntamente com a redemocratização trazida
pela Constituição Federal de 1988, foram capazes de originar conflitos
igualmente massificados, o que levou a um aumento exagerado no número de
processos ajuizados.
Ressalta-se, que não há como ignorar a importância da ampliação do
acesso à justiça que consagrou de forma clara e inequívoca, a tutela judicial
efetiva, de acordo com MENDES e BRANCO (2017, p. 343).
Uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, mostrou outras
causas que também resultam o aumento da litigiosidade no Brasil, como o setor
público, a advocacia e a mídia que podem fomentar a judicialização. O primeiro
quando cria e viola direitos já existentes; a advocacia quando explora novas
alternativas de atuação, muitas vezes individualizando demandas que poderiam
ser coletivizadas; e a mídia que ao procurar levar as informações à população,
muitas vezes expõe as questões jurídicas de forma equivocada.
De acordo com o Relatório Geral da Justiça do Trabalho, que reúne dados
estatísticos referentes aos processos que tramitaram nos três graus de
jurisdição, no ano de 2017 no Tribunal Superior do Trabalho, os assuntos mais
recorrentes na Justiça do Trabalho foram: Aviso Prévio, com 917.877 processos,
Multa do Artigo n.º 477 da CLT, com 912.103 processos, e Multa de 40% do
FGTS, com 806.010 processos. Já no Relatório Geral da Justiça do Trabalho de
2018, a informação que consta é que houve um aumento de demanda
processual no TST em 16% em comparação ao ano anterior.
O aviso prévio e a multa de 40% são direitos elementares, que exigem,
em regra, apenas a prova documental, ou seja, ou foi pago ou não foi, o
empregador tem ou não o recibo de quitação, portanto, é uma questão de fácil
verificação, não seria necessário abarrotar a Justiça com tantos processos com
assuntos como esses.

1Disponível em: https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/competitividade/paises-


nordicos-prestigiam-negociacao-coletiva-como-forma-de-manter-suas-economias-competitivas/.
Acessado em: 26.04.2019.
450

Hoje, em que pese muitas alternativas foram encontradas para tentar


possibilitar a vasão desse crescente número de processos, como no caso das
súmulas vinculantes (art. 103-A da CF/1988 ), técnicas para julgamento de
recursos repetitivos nos tribunais superiores (art. 543-B e 543-C do CPC/1973;
1036 a 1041 do CPC/2015), fato é que, como verificado pelos dados trazidos,
não temos ainda elementos suficientes para responder satisfatoriamente a
diminuição de processos nas Varas e Tribunais trabalhistas.

2. DOS INSTRUMENTOS COLETIVOS

O artigo 8º da Constituição Federal sinaliza que o sindicato é uma


entidade associativa sui generis, já que prevê em seu inciso III que cabe ao
sindicato representar a categoria, independentemente do representado ser sócio
ou não. O sindicato tem natureza de pessoa jurídica de direito privado, mas ante
o interesse público- social, representa um múnus público constitucional, pois
negocia condições de trabalho para toda categoria.
O artigo 8º, inciso VI, da Constituição Federal prevê como uma das
funções do sindicato a de negociar e, o artigo 7º, inciso XXVI, da Lei Maior, tem
que as convenções coletivas de trabalho “são direitos dos trabalhadores urbanos
e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.
Garcia (2017, p. 723) traz que a autonomia coletiva é exercida por meio
da negociação coletiva dando origem aos acordos coletivos e convenções
coletivas. A previsão está na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no caput
do seu artigo 611.
No âmbito internacional, a negociação coletiva está na essência da
Convenção 98 da OIT (direito de sindicalização e negociação coletiva) e da
Convenção 154 da OIT (direito ao fomento à negociação coletiva), ambas
ratificadas pelo Brasil. Ressalta-se que, o artigo 4º da Convenção 98 prevê a
necessidade de fomento da negociação coletiva.
As convenções coletivas possuem natureza jurídica híbrida, tendo o
aspecto de contrato e natureza normativa, pois criam normas gerais e abstratas.
E ainda, são consideradas normas autônomas, pois derivam de decisões dos
próprios trabalhadores e empregadores, votadas em assembleias, convocadas
para esse fim, pelas entidades que os representam.
Mascaro (2012, p.403) destaca que as convenções se distinguem da lei
pelo processo de formação, pela esfera de aplicação e pela fonte de poder. Para
Arouca (2013, p.197) a negociação coletiva é um sistema de avanços e recuos.
Verifica-se que a negociação coletiva é uma alternativa que pode ser
melhor utilizada diminuindo assim, o ajuizamento de demandas no Poder
Judiciário trabalhista.

3. A JUSTIÇA DO TRABALHO

3.1 A REFORMA DO JUDICIÁRIO

A Constituição Federal de 1988 trouxe grandes avanços democráticos


para o Direito do Trabalho, principalmente ao prever a presença de grupos
sociais na feitura de normas jurídicas que farão parte do ordenamento jurídico
brasileiro.
451

Ocorre que, a Lei Maior também preservou alguns institutos paradoxais,


em especial, quanto aos dispositivos corporativistas de organização sindical,
exemplificativamente, tem-se no caput do seu artigo 8º o princípio da liberdade
de associação profissional dos trabalhadores, mas manteve no inciso II do
mesmo artigo, a unicidade e o enquadramento sindical.
A Emenda Constitucional n° 45/2004, na seara do Direito do Trabalho
ampliou significativamente a competência da Justiça do Trabalho ao alterar o
artigo 114, mantendo um largo campo para de competência.
Para DELGADO (2017, p.132) a Emenda Constitucional supra também
restringiu o poder normativo na Justiça do Trabalho, nas ações de dissídios de
natureza econômica, criando o requisito do comum acordo, nos termos do §2º
do artigo 114.
Alguns autores entendem que a inserção do requisito do comum acordo
veio para valorizar a negociação coletiva, pois, dessa forma, obrigaria os atores
sociais a negociar de forma exaustiva, já que dificilmente a outra parte aceitaria
que um processo fosse ajuizado em face dela, mas há opiniões em sentido
contrário, entendendo que, de fato, o empregador não negocia e também não
concede o comum acordo, o que deixa os trabalhadores e seus representantes
“de mãos atadas”.
Cumpre lembrar, como bem salienta Mascaro (2012, p. 433) que a
principal função da negociação é compositiva e deve ser usada como forma de
superação dos conflitos entre as partes.

3.2 DA REFORMA TRABALHISTA (LEI 13.467/2017)

A Lei 13.467 de 2017, de 13 de julho de 2017, também denominada de lei


da reforma trabalhista ou sindical, trouxe impacto substancial para o Direito do
Trabalho nos campos do direito material, processual e do Direito Sindical.
Entre as alterações realizadas, um dos temas de maior relevância foi a
valorização do denominado “negociado versus legislado”, que culminou na
inserção dos artigos 611-A e 611-B na CLT, embora não se possa deixar de
observar que em vários pontos também houve a limitação da autonomia sindical,
afrontando o poder de negociar do sindicato, como a permissão do banco de
horas realizado diretamente com o trabalhador (§§ 5º e6º do artigo 59 da CLT).
Registra-se, que após a promulgação da lei, algumas incoerências foram
ajustadas com a edição da Medida Provisória n. 808 de 2017, mas que perdeu
sua eficácia, por não ter sido aprovada pelo Congresso Nacional, no prazo legal,
retornando a redação original da Lei 13.467/2017.
Desde a Constituição de 1988, os instrumentos coletivos prevaleciam
sobre a legislação (normas heterônomas) se pactuados para melhorar as
condições sociais do trabalhador, de acordo com a interpretação constitucional
com traz Garcia (2017, p.726) podendo somente haver a flexibilização das
condições de no art. 7º, incisos VI, XIII e XIV.
Isso ocorre porque o caput do artigo 7º da Constituição Federal consagrou
o princípio da vedação ao retrocesso social, conforme traz Delgado (2017, p.63)
contendo na legislação heterônoma, o mínimo que deve ser garantido ao
trabalhador, e nos instrumentos normativos a finalidade de melhorar a condição
social do trabalhador.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já vinha sinalizando a
possibilidade de ampliar as matérias negociáveis coletivamente, ainda que não
452

fosse para beneficiar o trabalhador, como no caso decorrente de adesão do


empregado ao plano de demissão incentivada, (RE 590.415, rel. min. Roberto
Barroso, j. 30-4-2015, P, DJE de 29-5-2015, Tema 152). Ainda que,o Tribunal
Superior do Trabalho tenha (tinha) uma orientação jurisprudencial diferente do
entendimento do Supremo Tribunal Federal, prevendo que o programa implica
quitação exclusivamente das parcelas e valores constantes do recibo (OJ-SDI1-
270 do TST).
Na fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal Federal, foi
enfatizado que no âmbito das relações coletivas, vigora princípio da equivalência
dos contratantes coletivos, de forma distinta do direito individual, que tem como
princípio da insuficiência do trabalhador.
Outro julgado que o Supremo Tribunal Federal deu validade ao acordo
coletivo e reconheceu sua prevalência sobre a lei, ressaltando que normas
autônomas podem reduzir direito dos trabalhadores, foi ao examinar a supressão
das horas in itinere [RE 895.759 AgR-segundo, rel. min. Teori Zavascki, j. 8-12-
2016, 2ª T, DJEde 23-5-2017]. Garcia (2017, p.727) afirma que o Supremo
Tribunal Feral prestigia e reconhece a prevalência da negociação em matérias
relacionadas a salário e jornada. Ressalta-se que o Tribunal Superior do
Trabalho já havia julgado por diversas vezes a matéria entendendo que o
pagamento de horas in itinere não poderiam ser suprimidas por norma coletiva.
(TST, Ag E-ED-RR-3554-90.2011.5.12.0003, Relator Ministro: Cláudio
Mascarenhas Brandão, Data de Julgamento: 17/12/2015, Subseção I
Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT
29/01/2016). Entendimento superado.
Como já salientado, em 13 de julho de 2017, houve a promulgação da Lei
13.467/2017, que contou como um dos argumentos para a aprovação que a
reforma valorizaria a negociação coletiva.
Apesar do artigo 611-A aparentar um aumento nas possibilidades de
negociação coletiva, muitos incisos já estavam previstos, na Constituição
Federal, na CLT ou em lei esparsa, como no caso do inciso I do artigo 611-A da
CLT corresponde ao inciso XIII do artigo 7º da Constituição Federal; do inciso II
do artigo 611-A da CLT ao § 2º do art. 59 da CLT; do inciso XV já era permitido
pelo art. 2º da Lei nº 10.101/2000, entre outros.
Além disso, houve também um esvaziamento do poder negocial, pois
muitas funções que eram apenas do sindicato, passaram a ser permitidas por
acordo individual escrito como no caso de estabelecer horário de trabalho de
doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso (art. 59-A
da CLT); banco de horas individual (§5º, art. 59 da CLT) ou homologação sem a
necessidade da presença do sindicato para contratos também superiores a um
ano (art. 477-A da CLT).
Como se verifica, o argumento de que a reforma traria a valorização da
negociação coletiva foi falacioso, pois o que ocorreu foi um esvaziamento das
funções do sindicato. Muito do que este poderia fazer para proteger o
trabalhador, foi tolhido pela lei, exemplo bastante elucidativo é a demissão em
massa, que a jurisprudência trabalhista apenas admitia após negociação coletiva
e a reforma trabalhista a equiparou a dispensa individual, sem levar em conta o
impacto econômico e social que isso pode causar seja aos trabalhadores, às
suas famílias e até a uma cidade, já que muitas dependem de uma única
empresa.
453

CONCLUSÃO

A negociação coletiva sempre pôde ser utilizada como forma de solução


de litígios, retirando do Poder Judiciário a necessidade de intervenção nos
litígios. Mas, as mudanças legislativas ocorridas na reforma do Poder Judiciário
e na reforma trabalhista tiveram como “marketing” a valorização da negociação
coletiva, mas nada mais fizeram do que esvaziar a função dos sindicatos.
Assim, o que poderia ser utilizado com vantagem para desafogar o Poder
Judiciário, foi, mais uma vez, boicote ao Direito do Trabalho e aos Sindicatos,
sabendo que, o próximo passo é tentar acabar com a própria Justiça do
Trabalho, como demonstra a proposta de Emensa a Constituição apresentada
em 08 de outubro de 2019 por Paulo Eduardo Martins, deputado do PSC do
Paraná.

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455

SÁNCHEZ, Jesús-María Silva, trad. port. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. A


expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. 3. Ed. Revista dos Tribunais, 2002.
456

Grupo de Trabalho:

DIREITO E NOVAS TECNOLOGIAS


Trabalhos publicados:

A TERCEIRA ABOLIÇÃO: A EMANCIPAÇÃO NEGRA DO ALGORÍTIMO

A.I – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO REALIDADE PARA A CELERIDADE


PROCESSUAL

GERENCIAMENTO DE SANGUE DO PACIENTE. ANÁLISE DAS NOVAS


TECNOLOGIAS DA MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS À LUZ DA
AUTONOMIA DE VONTADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

GLOBALIZAÇÃO E A APLICABILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS NO


MUNDO ON-LINE

O EMPREGO DA TECNOLOGIA EM PROL DA VIGILÂNCIA ESTATAL


BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DA PROTEÇÃO JURÍDICA DOS DADOS
PESSOAIS

O ESTADO BRASILEIRO COMO EMPREENDEDOR: O SETOR DE PESQUISA


E INOVAÇÃO E O ATENDIMENTO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O EXERCÍCIO DA CIDADANIA DADO PELAS INFLUÊNCIAS DAS REDES


SOCIAIS NO PROCESSO ELEITORAL.

O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA AO DIREITO: IMPACTOS


DO PROJETO VICTOR

OS IMPACTOS DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E O DIREITO À


PRIVACIDADE
457

A TERCEIRA ABOLIÇÃO: A EMANCIPAÇÃO NEGRA DO ALGORÍTIMO


LA TROISIÈME ABOLITION: LA ÉMANCIPATION NOIR DU ALGORITHME

Lucas Tabanez Murta de Souza


Lorrayne Caroline Alvez Pereira

Resumo: Este resumo expandido pretende dissertar a respeito do algoritmo


como novo obstáculo para o desenvolvimento dos direitos sociais e garantias
dos negros na sociedade contemporânea. Sendo assim, objetiva-se analisar do
ponto de vista da sociologia e do ordenamento jurídico brasileiro como a
reprodução do racismo por algoritmos e inteligência artificial pode lesionar os
direitos fundamentais da população negra, além de suas sequelas na sociedade
brasileira. Para isso, busca-se em obras doutrinárias a respeito do protesto negro
ao longo da história e percebe-se uma notável diferença na ocupação do negro
dentro da economia no Brasil. Portanto, é notável que a primeira abolição,
responsável por colocar um fim legal a instituída escravidão, não abriu as portas,
as fechou. O fracasso na segunda abolição fez necessário uma terceira, a
abolição dos algoritmos racistas. A pesquisa será, na classificação de Witker
(1985) e Gustin (2010), jurídico-projetiva e o raciocínio dialético.
Palavras-chave: População negra. Algoritmo. Racismo.

Résumé: Ce résumé élargi désire pour approche le algorithme comme nouveau


obstacle contre le développment des droits sociaux et garanties des noirs dans
la société contemporaine. De cette façon, il prétend analyse du point de vue de
la sociologie et du droit brésilien comme la reproduction du racisme par le
algorithme et intelligence artificielle peut blesser les droits fondamentaux de la
poulation noire, et aussi sa dommage dans la société brésilienne courant. En
effet, avec des œuvres théoriques, c’est clair la différence d’occupation noirs
dans la économie brésilienne. Ensuite, la première abolition, responsable par
finaliser l’esclavage, n’a ouvré pas les porte, les a fermés. Il faut, après l’échec
de la deuxième abolition, une troisième, la abolition des algorithmes racistes. La
recherche sera, dans la classification de Witker (1985) et Gustin (2010), le type
juridique-projetif et le raisonnement dialectique.
Mots-clés: Population noire. Algorithme. Racisme.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa origina-se no estudo da condição do negro do ponto


de vista estrutural-marxista de Florestan Fernandes. Assim, é notório que não
houve de fato uma auto emancipação negra frente a condição de marginalizado.
Em consequência, percebe-se uma reprodução da sociedade racista nas novas
tecnologias. Nesse sentido, o tema-problema da pesquisa que se pretende
desenvolver é dissertar a respeito do algoritmo como novo obstáculo para o
desenvolvimento dos direitos e garantias dos negros na sociedade
contemporânea (FERNANDES, 1920).
Dessa forma, a partir das reflexões preliminares sobre o tema, é lícito
ponderar que o significado do protesto negro não se exauriu após a abolição feita
pela Lei Áurea, ao contrário, a abolição da instituição da escravidão, já destituída,
não abriu novas portas para a população negra, as fechou. Dessa forma, os
anseios de embranquecimento preenchido pela política de imigração do governo
458

imperial marginalizavam aqueles que desejavam se empregar. A consequência


disso se percebe dentro da estrutura social marxista. Quando se concebe uma
realidade econômica onde os negros estão em posições de pobreza e
submissão, há a criação de um racismo velado que não precisa forçosamente
ser expresso, criando inferiorização entre a própria população negra
(FERNANDES, 1920). Por conseguinte, com a introdução de novas tecnologias
de comunicação, há uma reprodução do racismo social instituído veladamente
nos algoritmos e inteligências artificiais. Com isso, fazer cessar a reprodução da
discriminação da classe negra reputa-se como primordial a fim de efetivar os
direitos e garantias para os marginalizados.
Para esse fim, O objetivo do trabalho é analisar do ponto de vista da
sociologia e do ordenamento jurídico brasileiro como a reprodução do racismo
por algoritmos e inteligência artificial pode lesionar o já fragilizados direitos
sociais e garantias da população negra, além de suas sequelas na sociedade
brasileira contemporânea.
A pesquisa que se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-
sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação
de Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-projetivo. O raciocínio
desenvolvido na pesquisa será predominantemente dialético. Por fim, em
intenção de alcançar a terceira abolição toma-se a base de Paulo Freire, na qual
aqueles oprimidos anteriormente não são os opressores dos opressores, mas,
para além do já posto, tornar-se-ão restauradores da humanidade (FREIRE,
1987).

A PRIMEIRA ABOLIÇÃO

Todo o passado reflete em como uma nação atua na contemporaneidade.


No Brasil essa realidade apresenta de maneira evidente. A história do país fora
escrita sobre o genocídio indígena (SILVA, 2004), um longo período
escravocrata, e o desprezo estatal pós abolição. Em 1550, quando a exploração
do território brasileiro tornara efetiva, a mão de obra escrava fora procurada no
continente africano, visto que a comunidade jesuíta protegeu os índios do
trabalho forçado pelas mãos europeias. Os confrontos étnicos locais tornaram-
se um facilitador ao tráfico negreiro, já que os povos entregavam grupos rivais
vencidos em guerras para os traficantes de pessoas e lucravam com isso
(ROSSI, 2018).
Nos navios negreiros, a falta de dignidade humana permanecera, mais de
500 mil negros morreram nas embarcações (ROSSI, 2018). Com a chegada ao
Brasil, o tratamento igualmente degradante foi continuado e a objetificação
humana evidente. Eram expostos em mercados de escravos os povos negros.
As “mercadorias humanas” apresentavam-se expostas para fossem vendidas e,
os compradores, utilizassem quaisquer métodos que julgassem necessários
para a obediência daqueles que foram subjugados.
A elite brasileira apropriou-se do trabalho escravo no período colonial e
imperial por 338 anos. Com longo período de exploração do corpo negro a elite
possuidora dos escravos acumulou privilégios que permanecem hodiernamente,
como cita Florestan “[...] os privilégios construídos no período escravista, estas
ficam intocáveis e intocadas” (FERNANDES. 1920, p. 30). A população negra
exerceu diversas funções, em sua quase totalidade postos de base, e de
diferentes maneiras. Existiam também os escravos de ganho que tinham como
459

função andar pelas ruas e buscar tarefas remuneradas, tendo a quantia


arrecadada passada para os senhores (BRASIL, 2011).
No final do século XVIII e início do século XIX, surgiu uma forte pressão
por parte Inglaterra para que acabasse o tráfico negreiro, em 1850 foi criada a
lei que proibia a entrada de novos negros na condição de escravos no Brasil, em
1871 foi outra data importante a qual entrara em vigor a lei do Ventre Livre
(THEODORO, 1998). Não obstante ao apoio inglês, os próprios negros
influenciaram a revolução, com frequentes revoltas nas senzalas (FERNANDES,
1920). Em 13 de maio de 1888 foi sancionado pela então princesa Isabel a Lei
Áurea. No entanto apresenta-se segundo Florestan Fernandes “O 13 de Maio
delimita historicamente a eclosão da única revolução social que se realizou no
Brasil” (FERNANDES., 1920, p. 51). Sendo perceptível, nesse texto de
Fernandes, como a luta de classes trouxe a ao Brasil uma importante mudança
social.
Entretanto, a falta de estruturação para a abolição da escravidão,
principalmente pelo fato dos abolicionistas pós escravidão não terem tido uma
preocupação com o destino dos recém libertos, trouxe duras consequências ao
povo negro que estava despreparado para competir a mão de obra dos
imigrantes (FERNANDES, 1920). Além do despreparo, havia o racismo, já que
os imigrantes europeus não foram trazidos como forma de clarear o país (EDITH
et al., 2002). E, por fim, as condições de trabalho permaneciam degradantes,
como cita Florestan: “O negro se defrontou com condições de trabalho tão duras
e impiedosas como antes” (FERNANDES, 1920, p. 79).
Atualmente, a população negra permanece sendo fragilizada com o
racismo, uma notícia veiculada pelo portal O Globo afirma que “(...)estudo de
2016 do Instituto Ethos, em parceria com o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), apontou que, nas 500 maiores empresas brasileiras, os
homens negros ocupavam apenas 4,7% dos cargos executivos, e as mulheres
negras apenas 0,6%.” (COSTA, 2018). Assim, a população negra permanece
em cargos subalternos na sociedade com capacidade de ascensão limitada,
ainda que com especialização, com taxas crescentes de números de pessoas
negras nas universidades (COSTA, 2018).

O ALGORÍTIMO COMO REPRODUTOR DO RACISMO

A condição da população negra no Brasil já se demonstra a


prioristicamente degradante. E, quando se analisa sobre a perspectiva marxista,
perceber-se-á que, a passos largos, a ocupação da etnia na economia acaba por
gerar uma superestrutura, isto é, uma ideologia racista, na qual o homem branco
é dotado de habilidades especiais para alcançar o sucesso, enquanto o negro
nasceu para ser submisso. Dessa forma, Florestan Fernandes apela para uma
segunda abolição das ideologias de superioridade branca, as quais permanecem
sólidas e esquecidas nas raízes da economia (FERNANDES, 1920).
Com isso, nota-se que a sociedade racista se perpetua e, em movimento
de autopoiese se reinventa e fortalece. Desse modo, a autopoiese social,
conceito desenvolvido por Niklas Luhmann, se desenvolve a partir de uma nova
informação, ou condição, no caso, a partir do algorítmo e da inteligência artificial.
A partir disso, concebe-se a criação de uma nova instituição de propagação do
racismo, ou seja, faz-se necessário uma terceira abolição.
460

Primeiro, para demonstrar o movimento de autopoiese social, faz-se


forçoso o entendimento do funcionamento da inteligência artificial. Em
consonância com esse fim, Kate Crawford, pesquisadora da Microsoft, explica,
em entrevista ao El País, que para programar um algoritmo, isto é, ensiná-lo a
distinguir entre duas figuras, são disponibilizados milhões de imagens até estar
propriamente adaptado. E, embora entender a inteligência artificial como uma
reprodução da inteligência humana, há, em verdade, a criação de programas
especializados em identificar padrões (CRAWFORD, 2018).
Apesar de parecer uma discussão alheia a questões raciais, no entanto,
o problema se caracteriza exatamente no banco de dados utilizados para ensinar
a estes dispositivos determinado padrão. Explica Crawford (2018):

São usadas base de dados. Uma das mais populares e mais usadas
pelas empresas tecnológicas é o Image Net, que contém 13.000
imagens. Em 78% delas aparecem homens, e em 84%, brancos. Essas
são as referências para qualquer sistema treinado com esse kit. [...] Os
sistemas de inteligência artificial parecem neutros e objetivos, mas não
são.

Como é notório, a fim de se criar uma automatização de padrões, é


primeiro necessário um parâmetro que, nesse caso, foi legado pela sociedade.
Nessa linha Crawford conclui (2018): “Analisando centenas de textos extraem-
se esses padrões, esses estereótipos sociais que os algoritmos depois
replicam”. Entretanto, replicar na rede mundial de computadores significa
aumentar significativamente a extensão de ideologias de superioridade racial.
Outrossim, vê-se outra replicação dos estereótipos sociais registrado pela
inteligência artificial da Microsoft, Tay, que foi criada em 2016 objetivando-se
potencializar esse sistema. Todavia, a experiência teve uma resposta estranha
às expectativas da empresa. No início, Tay buscava alcançar um público entre
18 e 24 anos com a proposta de ficar mais inteligente a medida de sua interação
com os demais usuários do Twitter. As consequências da comunicação entre a
inteligência artificial e os jovens veio um dia depois com o seguinte tweet:
“@icbydt bush fez o 11/09 e Hitler teria feito um trabalho melhor que o macaco
que nós temos agora. Donald Trump é nossa única esperança” (HUNT, 2016,
tradução nossa). Assim, se se percebe Tay como um novo canal de
comunicação, é notável a reprodução dos mesmos estereótipos por vezes
repetidas. Isso, devido ao fracasso da segunda abolição (FERNANDES, 1920).
Em outra situação reportada pelo El País, o algoritmo do Google Photos,
que etiquetava pessoas, confundiu negros com gorilas. Segundo explica Salas,
o infortúnio seria devido à dificuldade de identificação da inteligência artificial em
distinguir a pele humana em relação aos macacos. Em pouco tempo, a Google
se desculpou pelo acontecido sobre a prerrogativa de ser bastante recente a
tecnologia de etiquetar imagem, apresentando, como solução, retirar a etiqueta
de gorila e de macaco e de chimpanzés (SALAS, 2018).
Em primeira análise, aparenta-se ser um erro comum, próprio de
tecnologias recentes, como afirma a Google, entretanto, existem outros fatores
para a aparição desses enganos. Como constata Salas: “Os inovadores, os
inventores, tendem a ser homens brancos de boa família, e isso de alguma forma
acaba aparecendo no fruto do seu trabalho”. Dessa forma, os desenvolvedores
não poderiam prever esse engano, pois nunca ocorreria com eles, pois nunca
461

terão a experiência de serem marginalizados e inferiorizados pelo seu tom de


pele.
Nesse sentido, o movimento de autopoiese social denota-se como
perigoso, haja vista que há a propagação de ideologias intolerantes. Nas
palavras de Luhmann (1997, p.618):

Die moderne Gesellschaft ist überintegriert und dadurch gefährdet. Sie


hat in der Autopoiesis ihrer Funktionssysteme zwar eine Stabilität
ohnegleichen; denn alles geht, was mit dieser Autopoiesis verträglich
ist. Zugleich ist sie aber auch in einem Maße durch sich selbst irritierbar
wie keine Gesellschaft zuvor.1

No contexto de reprodução do racismo a nível global, é a estabilidade da


sociedade moderna o grande problema. A partir disso, a ultra integração criada
pela revolução comunicacional reinventa vez por vez o sistema do racismo, cada
vez mais sútil, porém com os mesmos efeitos. A questão trazida pelos algoritmos
e inteligências artificiais aparenta-se supérflua, mas, em verdade, sucede um
grande aparelhamento de propaganda para consolidar a posição do homem
branco como superior e a população negra submissa.
Em consequência disso, o sistema jurídico, como subsistema da
sociedade, acaba por selecionar informações e, uma delas, é a ideologia de
supremacia branca. Por essa razão, quando há a potencialização do racismo na
comunicação da sociedade, mais provável é o direito selecionar esse novo
elemento e, em movimento de autopoiese, criar estereótipos que podem
condenar minorias e, principalmente, a já condenada minoria de pardos e negros
no Brasil.
E, muito embora as relações pareçam um pouco abstrata, Cathy O’Neil
explica, com os novos dispositivos, se continua a prender negros pelas quais
brancos não são, disfarçando isso de ciência. Aos poucos, percebe-se que a
evolução tecnológica não é para todos, mas para aqueles poderosos aptos a
manipular este poder a sua própria visão de mundo. No entanto, a solução do
problema é uma auto emancipação desse oprimido. Como aborda Paulo Freire
(1987, p. 16):

A violência dos opressores que os faz também desumanizados,


não instaura uma outra vocação - a do ser menos. Como
distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou
tarde, a lutar contra quem os fez, menos. E essa luta somente
tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua
humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem
idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores
dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos.

Desse modo, em consonância com as propostas de Freire e Fernandes,


faz-se mister o protesto negro enquanto luta contra a reprodução de estereótipos
e opressão. Para isso, não se busca colocar as minorias como novos opressores,

1
“A sociedade moderna está ultra integrada e, portanto, em perigo. Ela tem na autopoiese seus
sistemas funcionais, de fato, uma estabilidade sem igual; pois tudo passa, quando compatível com
a autopoiese. Ao mesmo tempo, é também, em certa medida, irritável por si só, como nenhuma
sociedade antes”. (LUHMANN, 1997, p. 618, tradução nossa).
462

mas aqueles que desejam restaurar a tolerância na sociedade, agora já bastante


irritável.

O DIREITO COMO MOVIMENTO CONTRA-HEGEMÔNICO.

Primeiro, antes de considerar propostas a fim de tornar o direito brasileiro


um instrumento do movimento contra-hegemônico, é necessário considerar a
legislação preexistente a esse respeito. Assim sendo, considera-se tópico para
essa discussão um princípio singular abordado pela Constituição Federal de
1988: a dignidade humana.
Dessa forma, no artigo 1°, parágrafo terceiro, a Constituição trata como
fundamental e, portanto, inalterável o direito à dignidade da pessoa humana. No
entanto, é difícil limitar o princípio a um conceito fixo. E, apesar de ser uma
dúvida cruel para a própria doutrina brasileira, mais adiante, na redação,
encontram-se algumas pistas. Se se considera o parágrafo primeiro do artigo
terceiro, percebe-se que um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil é criar uma sociedade livre, justa e solidária.
Nesse contexto, o legislador sabiamente partiu de um pressuposto, já
demonstrado no desenvolvimento, de desigualdade de oportunidade, injustiça e
indiferença presente na sociedade brasileira até então. Mesmo assim, as
desvantagens descritas foram criadas pela hegemonia branca, a qual poderia
gozar da sociedade livre, justa e solidária a custa dos negros e pardos.
Com isso, o poder constituinte decidiu abordar em seus direitos e
garantias, mais especificamente no inciso XLI do artigo 5°, a seguinte redação:
“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais” (BRASIL, 1988). Além disso, mais tarde, criou-se a lei n° 7.716,
sobre os crimes de preconceito. A despeito da notabilidade da tentativa, a
redação da lei trata apenas dos sintomas do racismo velado no Brasil e torna-se
difícil punir penalmente um pensamento que, por vezes, se demonstra em atos
tão sutis como solidariedade para com o negro, isto é, a cristalização da visão
dessa minoria como perigosa, marginalizada e distantes, a verdadeira escória
da sociedade (BRASIL, 1989).
Evidentemente, essa legislação não previu as consequências do uso
desregrado do algoritmo. Por essa razão, as novas tecnologias digitais foram
monopolizadas pela elite internacional branca que, mesmo com todos os
recursos do mundo, não poderiam se atentar a como excluíam os negros, pois,
na maioria das vezes, essa minoria pobre não existia em seu mundo.
A fim de construir um uso contra-hegemônico do algoritmo, o professor
Lara da Dom Helder Câmara explica:

Uma sociedade infodemocrática necessariamente deve começar a


partir de um primado: os códigos abertos, também denominados open
codes devem ser a regra e não a exceção. Isso porque o acesso
disponível para todos encampa a possibilidade de controle social, ao
mesmo tempo que não restringe as possibilidades de apreensão do
conhecimento tecnológico ao aprisiona-lo em grandes bancos de
dados privados (LARA, 2019, p. 150).

Embora tornar os dados públicos seja interessante, não se pode confundir


com a ideia de todas e todos consultarem o algoritmo abertamente, haja visto
que os códigos são uma linguagem elitizada. Assim, como é demonstrado no
463

direito, disponibilizar as redações das leis para que todos tenham acesso não
necessariamente significa a possibilidade de todos compreenderem. Um
brasileiro com seu celular pode facilmente entrar no site do planalto e ler sobre
a Constituição, mas, em verdade, ele nada saberá sobre a interpretação da
redação, tanto tecnicamente quanto culturalmente.
Em casos assim, é difícil encontrar uma solução efetiva para o problema
que não esteja em um viés do “tudo ou nada” para o algoritmo, isto é, colocar o
legislador entre a decisão de permitir a propagação de todos os dados ou vedar
completamente seu uso. Nesse contexto, a Lei Geral de Proteção de Dados foi
concebida. Nela, primeiramente, fica considerados, em seu artigo 5°, inciso II,
como dado pessoal sensível: origem racial ou étnica, reconhecendo o papel
desenvolvido por essa informação na sociedade (BRASIL, 2018).
Não obstante, também ficou criada pelo artigo 55-A a Autoridade Nacional
de Proteção de Dados. A despeito da estranheza da redação ao explicitar a
criação da autarquia sem aumento de despesas, esta pode ser a solução para
uma ética para o algoritmo no Brasil (BRASIL, 2018).
Primeiro, em consonância com o conceito de auto emancipação da
sociedade negra, deve-se criar um conselho dentro da autarquia, composto por
profissionais do direito e de ciência da computação, a fim de fiscalizar a aplicação
de algoritmos de uso comum pelos cidadãos, ou seja, aqueles determinantes
para o entretenimento e notícias consumidos pela sociedade. A análise seria
feita mediante a uma taxa para cobrir os custos de análise e, posteriormente,
seria concedido a empresa o selo antirracismo, o qual pode ser de bastante
interesse do ponto de vista das relações públicas. Com isso, busca-se evitar a
reprodução do racismo e, a partir de um projeto de um movimento democrático
e legal, promover uma emancipação negra das amarras do algoritmo
restaurando, por fim, a humanidade tanto do oprimido quanto do opressor
(FREIRE, 1987).

CONCLUSÃO

Com efeito, a dialética criada pelo imperialismo europeu sobre a África e


a massiva imigração forçada de sua população para outras partes do mundo,
criou uma tensão em relação ao princípio da isonomia elevado pela revolução
francesa. Dessa forma, sustentou-se por muito tempo uma marginalização aos
negros na sociedade brasileira, a qual, pela primeira abolição da escravidão,
apenas restringiu o acesso a trabalho dos negros, sendo levados a ocupação de
posições submissas na economia e, logo, criando uma ideologia de
superioridade branca velada (FERNANDES, 1920).
Nesse contexto de opressão, o algoritmo e a inteligência artificial surgem
para catalisar a autopoiese do racismo na sociedade hodierna, entretanto, a
negligência a esse processo pode provocar sequelas no próprio direito. Sendo
assim, faz-se fundamental uma ética do algoritmo que considere o conceito de
auto emancipação negra e restauração do lugar de humano do oprimido, a fim
de evitar a geração de mais opressão pela opressão. Assim, insere-se o direito
como instrumento do movimento contra-hegemônico.

REFERÊNCIAS
464

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em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso
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preconceito de raça ou de cor. Disponível em:
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2019.

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hegemônico do do big data e dos algoritmos. 2019. Monografia (obtenção do
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465

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WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis en derecho: pautas metodológicas y


técnicas para el estudiante o investigador del derecho. Madrid: Civitas, 1985.
466

A.I – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO REALIDADE PARA A CELERIDADE


PROCESSUAL
A.I - ARTIFICIAL INTELLIGENCE AS A REALITY FOR PROCESSUAL
CELERITY

Paulo Roberto Esgolmin Coutinho


Orientador(a): Eudes Vitor Bezerra

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo explanar o tema inteligência


artificial afinado a sua aplicabilidade na persecução de um dos princípios
basilares do nosso ordenamento jurídico, o princípio da celeridade processual,
instituído pela Emenda Constitucional n° 45, de 30/12/2004, que acrescentou o
inciso LXXVIII ao acervo de direitos e garantias fundamentais esculpidos no art.
5°. Ocorre que, no entanto, sobredita implantação encontrou o Poder Judiciário
com uma estrutura despreparada para processar e julgar as demandas a seu
crivo submetidas. Neste cenário, a inteligência artificial irrompe como um
algoritmo capaz de avolumar o funcionalismo do Judiciário e assim mesmo que
não possa desvanecer sua morosidade, poderá atenuá-la de modo significativo.
Palavras-chave: Inteligência artificial. Celeridade processual. Morosidade
judiciária.

Abstract: The present work aims to explain the artificial intelligence theme in
tune with its applicability in the pursuit of one of the basic principles of our legal
system, o princípio da celeridade processual, instituído pela Emenda
Constitucional n° 45, de 30/12/2004, que acrescentou o inciso LXXVIII ao acervo
de direitos e garantias fundamentais esculpidos no art. 5°. However, the
aforementioned implementation found the Judiciary with an unprepared structure
to process and judge the demands submitted to its sieve. In this scenario, artificial
intelligence emerges as an algorithm capable of increasing the judiciary's
functionalism and even if it cannot fade its delays, it can significantly attenuate it.
Keywords: Artificial intelligence. Procedural speed. Judicial delay.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho possui como objetivo instaurar um estudo


aprofundado sobre a evolução progressiva da computação cognitiva,
esclarecendo sobre a pertinência de sua intervenção em nossa órbita jurídica.
Elucidaremos o tema sob o enfoque da atual morosidade judiciária confrontante
com o princípio da celeridade processual. Para tanto, o método de pesquisa
adotado será o indutivo-científico.
Como principal ponto de indagação, abordaremos a problemática do
Poder Judiciário consoante a sua prestação morosa do poder-dever de
subsunção. Presta-se a esclarecer a pertinência de se aplicar a inteligência
artificial ao âmbito jurídico, visando assim, demonstrar métodos computacionais
que multipliquem maneiras para a resolução dos conflitos jurídicos e sua forma
de evitá-los.
Portanto, buscar-se-á clarificar sobre a iminente influência da inteligência
artificial, como meio imprescindível de obtermos uma celeridade na prestação
jurisdicional promovida pelo sistema judiciário. Com a finalidade de validar o
presente estudo e, demonstrar a plausibilidade e a coerência do tema, a
467

pesquisa utilizou como fontes de pesquisa artigos científicos nacionais e


internacionais, assim como levantamentos estatísticos.

A MOROSIDADE JUDICIÁRIA

O sistema brasileiro adotou como forma de organização das funções


estatais o Princípio da Separação dos Poderes. À vista disso, cada Poder possui
uma função típica, ao passo que coube ao Poder Judiciário a harmonização das
contendas existentes em sociedade, aplicando o seu poder-dever de jurisdição,
ressalvados os casos expressamente previstos em que a lei permite a autotutela.
Sendo assim, com exceção de raríssimas situações autorizadas por lei,
foi atribuída ao Poder Judiciário a responsabilidade de pacificar as contendas
sociais, aplicando o direito ao caso concreto e solucionando o litígio entre as
partes, visto que, a Constituição Federal consagrada o Princípio da
Inafastabilidade do Controle Jurisdicional em seu art. 5°, XXXV, que possibilita
ao cidadão submeter o seu conflito ao crivo do Judiciário.
Ocorre que, o aumento de demanda, no entanto, encontrou o Poder
Judiciário com uma estrutura despreparada para processar e julgar as causas
no tempo necessário. Destarte, podemos constatar de forma incontroversa uma
crise não só no Judiciário, mas sim no próprio direito, uma vez que, a ordem
jurídica está intimamente conectada com a moral, e esta se encontra atualmente
pautada no individualismo.
Instaurou-se assim, um círculo vicioso. As obrigações não são cumpridas
em seu tempo hábil porque a prestação jurisdicional tarda, a prestação
jurisdicional tarde em decorrência do volume de processos que é
desproporcional a capacidade de julgar, e o volume de processos decorre
daqueles que concorrem por omissão em cumprir voluntariamente com suas
obrigações.
A morosidade judiciária é apontada como substancial atravanco que
distancia a sociedade do nosso sistema judiciário, não promovendo segurança
jurídica. Evidenciou-se essa fragilidade com o advento da Constituição Federal
de 1988, onde por sua vez, como sobredito, consagrou o Princípio do Acesso a
Justiça (art. 5°, XXXV, da CF/88), que ampliou o rol de garantias, sem, contudo,
criar mecanismos para resguardar sua eficácia.
É neste contexto que constatamos a atual situação do Poder Judiciário,
onde contemplamos uma jurisdição que oferece aos cidadãos soluções eficazes
e céleres para a aplicação da subsunção e por via de consequência, criando uma
desconfiança social. Cenário este propício para inovações tecnológicas que
visem propiciar a tutela jurisdicional mecanismo que lhe auxiliem em promover
soluções ágeis e eficientes.

ESTATÍSTICAS DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Com o intuito de demonstrar a morosidade judiciária de maneira


sistematizada, o presente trabalho realizou um levantamento estatístico sobre o
tempo de duração do trâmite processual em nosso sistema judiciário, apetecidos
em ilustrar a tardança em que o Estado-Juiz demora a solucionar um conflito
submetido a sua análise. Sendo analisado sobre três indicadores: o tempo médio
até a sentença, o tempo médio até a baixa e a duração média dos processos
pendentes, senão vejamos:
468

PRINCÍPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL

Em razão da latente morosidade judiciária na composição dos conflitos,


foi aprovada a Emenda Constitucional n° 45/2004, que acrescentou mais um
inciso ao acervo de direitos e garantias fundamentais, “segundo o qual, (...) são
assegurados a todos a razoável duração do processo e os meio que garantam a
celeridade de sua tramitação” (art. 5°, LXXVIII, in fine, da CF/88). (grifo nosso)
Na esteira do acima exposto, Humberto Theodoro Junior possui o
seguinte entendimento:

O que se compreende nas garantias em questão, que se interligam


umbilicalmente, não é o direito à celeridade processual a qualquer
custo, mas a uma duração que seja contida no espaço de tempo
necessário para assegurar os meios legais de defesa, evitando
dilações indevidas, mantido o equilíbrio processual no patamar do
conjunto das garantias formadoras da idéia de processo justo, na
perspectiva da Constituição1.

Em que pese o acesso à prestação jurisdicional não refletir apenas um


direito, mas sim uma conquista social que não deve ser mitigada, constata-se
um exorbitante número de demandas judiciais, onde resultou em obstáculos para
a fiel consecução do princípio em desate, tendo em vista que os Tribunais não
dão conta do inúmero contingente de demandas, promovendo uma verdadeira
insegurança na sociedade.
O intuito do legislador nada mais foi que, melhorar a prestação
jurisdicional buscando auferir uma confiabilidade, atendendo aos anseios
sociais, visto que, a morosidade dos processos implica verdadeira denegação
da justiça. Não basta garantir ao jurisdicionado o acesso ao judiciário, é
necessário garantir a possibilidade de obtenção de uma decisão justa e eficaz e
forma célere.
Ao decorrer dos anos, infindáveis pedidos judiciais ajuizados contribuíram
para a crescente “crise judiciária” resultando na delonga entrega da prestação

1THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – teoria geral do direito
processual civil, processos de conhecimento e procedimento comum – vol. I/Página 78.
Humberto Theodoro Júnior. 57. Ed.ver., atual. E ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.
469

jurisdicional. Verdadeiramente, muitas ações propostas são desnecessárias,


pois poderiam ter sido solucionadas por outros meios alternativos de resolução
de conflitos, fato este que atenuaria substancialmente a demora processual.
Com efeito, o Estado e os Órgãos jurisdicionais que auxiliam no
comprometimento processual, são concorrentemente investidos de atividade
pública que enseja ofertar a garantia jurisdicional, incumbidos
concomitantemente em providenciar maneiras para a sua efetiva prestação
célere.
Contudo, logo se considera que uma rapidez ávida não pode ser utilizada,
sob pena de um risco na segurança jurídica, até porque “a busca de decisões
perfeitas bate-se contra a necessidade de respostas rápidas do processo. Se o
primeiro objetivo exige tempo, o segundo escopo impõe a restrição desse
elemento” (MARINONI, 2006, p. 5842).
Enfim, o Estado-Juiz aspira por transformações, com o fito de uma
transmutação no atendimento dos processos com agilidade e efetivação, de
forma cooperada e ordenada, em função do número crescente de processos a
ele submetidos.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Como os seres humanos pensam? Quais são os motivos que os levam a


tomar suas decisões cotidianas? A Inteligência Artificial nasceu tentando
aprender como os seres humanos pensam, a idéia fundamenta-se em
desenvolver sistemas inteligentes capazes de pensar similarmente ao ser
humano, sem que, tenham sido programadas para este fim, ou seja, sem
intervenção humana.
Segundo Pontes3, as pesquisas no campo da inteligência artificial podem
elaborar algoritmos inteligentes que permitem aos computadores armazenarem
grande quantidade de conhecimento sobre operações corporativas, onde esses
sistemas são capazes de praticar as negociações reconhecendo padrões de
difícil percepção para o ser humano, além de fornecer capacidade adicional de
aprender com sucessos e fracassos obtidos.
Sendo assim, a Inteligência Artificial consiste em uma tecnologia que
proporciona a uma máquina a competência de assimilar situações e tomar
decisões fundadas em dados por ela processados, assim como nas experiências
adquiridas anteriormente, estando em constante aprendizado.
A Inteligência Artificial possibilita que máquinas aprendam com
experiências adquiridas, se ajustem a novas entradas de dados e perfaçam
tarefas como seres humanos. Por exemplo, um dos seus resultados alcançados
é o Machine Learning, traduzido como “aprendizado da máquina”, sendo uma
tecnologia que explora um exponencial volume de dados, construindo assim um
sistema de aprendizado, representando uma forma de fazer melhor no futuro
com base nas experiências do passado4.
É, portanto, uma vertente que se revela como a capacidade que uma
máquina possui de tomar decisões, a partir de um raciocínio que se afigura ao

2MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: RT, 2006.
3PONTES, R. Inteligência artificial nos investimentos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
4 COELHO, Lucas. Machine Learning, o que é, conceito e definição. Disponível em:
https://www.cetax.com.br/blog/machine-learning. Acesso em: 18 de dezembro de 2018.
470

pensamento humano. Nesta ramificação em específico, espera-se que as


decisões emanadas pelos equipamentos inteligentes tenham sustentáculo na
cognição de dados e na identificação de padrões com o mínimo ou sem nenhuma
intervenção humana.
Assim, em suma, Inteligência Artificial define-se como uma
tecnologia/máquina que apresenta uma forma de pensar igualitária ao ser
humano.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO INSTRUMENTO ATENUADOR DA


MOROSIDADE JUDICIÁRIA

A utilização de um sistema inteligente que compactua e processa de


determinados dados, pode em certos casos prever resultados legais. Assim,
docentes norte-americanos criaram um algoritmo capaz de predizer as decisões
da Suprema Corte com 70% de precisão, inutilizando desta maneira demandas
protelatórias, influenciando diretamente na celeridade da prestação
jurisdicional5.
Cativando esses dados, a tecnologia tem aptidão de aconselhar se é mais
benéfico o ajuizamento de uma ação ou uma proposta de acordo, com base no
tipo de recurso, competência e região6. Sendo assim, é fazível que se obtenha
de forma contundente o posicionamento de determinado tribunal em casos
análogos, quais teses serão julgadas procedentes ou improcedentes, quais
magistrados arbitram valores maiores em indenizações e quais não, dentre
outras possibilidades.
A idéia ainda que muitos acreditem ser utópica, de uma plataforma
norteada pela aplicação da inteligência artificial, tem como função essencial
funcionar como uma espécie de assistente virtual, que tornaria o processo mais
rápido e eficaz7. A referida otimização de lapso temporal, certamente
influenciaria na confiança social acerca da efetividade e da celeridade Judiciária,
atingindo por reflexo a estabilidade judicial.
Nesta conjuntura, notamos que a inteligência artificial promete tornar a
aplicação do direito muito menos custoso, sendo revelada uma economia tanto
para o escritório como para possíveis clientes.
Quanto a economia dos clientes, exemplo real da área é o “DoNotPay”,
uma Startup inglesa que atua como um advogado gratuito, se valendo de uma
combinação de “chatbot” com inteligência artificial, assim, o “advogado-robô”
segundo levantamento, já logrou êxito em cerca de 160 mil contestações de
multas de trânsito no Reino Unido e em Nova York.
À vista disso, é exeqüível constatar-se que a utilização da inteligência
artificial aplicada no âmbito do direito, não pode ser visualizada como algo
especulativo, mas sim, real, podendo abranger os mais diversos campos com o
transcorrer dos anos.

CONCLUSÃO

5 SOBOWALE, Julie. “How artificial intelligence is transforming the legal profession”.


6DINIZ,Laura; LEORATTI, Alexandre. Inovação digital p case sobre o futuro do direito.
Disponível em: https://jota.info/especiais/inovação-digital-cases-sobreofuturo-do-direito-
27052017. Acesso em: 29 de outubro de 2018.
7 FERREIRA, Wanise. IBM e Finch levam a computação cognitiva para área jurídica.
471

Ao longo do presente trabalho, demonstrou-se claramente a possibilidade


de a inteligência artificial desenvolver atividades que se prestem pertinentes no
auxílio da persecução da celeridade processual, fazendo-se despicienda a
tomada de inúmeras atitudes no meio jurídico que apenas procrastinam a
efetividade na prestação jurisdicional.
Aspiramos que a computação cognitiva realizará feitos inestimáveis.
Apesar disso, precisamos nos aprofundar e entender os seus limites.
Hodiernamente, a substancial fronteira a ser ultrapassada pela inteligência
artificial se choca com o fato dela necessitar aprender com os dados a ela
inseridos, ou seja, não há outra maneira atualmente de incorporar conhecimento
a ela, isto implica dizer que, qualquer imprecisão nos dados inseridos refletirá
em seus resultados.
Caso o aplicador do direito não se amolde as praticáveis inovações que
poderão surgir, este ficará a mercê de incompatíveis evoluções que não irá se
enquadrar devidamente, inexistindo assim sobrevivência acadêmica no
mercado. Neste sentido afirma o autor italiano Renato Borusso “se o jurista se
recusar a aceitar o computador, que formula um novo modo de pensar, o mundo,
que certamente não dispensará a máquina, dispensará o jurista”.
Por fim, podemos concluir que, a inteligência artificial deixou de ser um
simples devaneio, para efetivamente se tornar uma possibilidade concreta de
mesmo que não desvanecer a morosidade judiciária, atenuá-la de modo
significativo, dado que, por meio de suas infindáveis ramificações, permeia uma
órbita extenuante de aplicações e utilidades a serem descobertas.

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Ver., atual. E ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.
473

GERENCIAMENTO DE SANGUE DO PACIENTE. ANÁLISE DAS NOVAS


TECNOLOGIAS DA MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS À LUZ DA
AUTONOMIA DE VONTADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
PATIENT BLOOD MANAGEMENT. ANALYSIS OF NEW TECHNOLOGIES OF
EVIDENCE-BASED MEDICINE IN THE LIGHT OF AUTONOMY OF WILL AND
DIGNITY OF THE HUMAN PERSON.

Aurelio Tomaz da Silva Briltes


Lucio Flavio J. Sunakozawa

Resumo: Sob a ótica dos tratamentos médicos isentos de sangue autólogo e a


concepção das novas tecnologias da medicina baseada em evidências
científicas, o sangue alogênico é um recurso biológico esgotável. Dados
mundiais de bancos de sangue, em especial no Brasil, demonstram frequente
diminuição de doações, compatibilidade e saúde de doadores e ao mesmo
tempo o surgimento de novas doenças (tropicais). No mesmo momento,
evidências científicas demonstram que os aumentos de transfusões de sangue
estão relacionados ao aumento na morbimortalidade e maiores custos
hospitalares (SANTOS, 2014). Assim, necessário cada vez mais procurar outras
terapias, quer clínicas, quer cirúrgicas. Estas terapias existem, porém são pouco
conhecidas e raramente utilizadas, apesar de estar regulamentada no Sistema
Único de Saúde, e disponível a todas as pessoas, independente da classe social,
de questões sexuais, de religião, ou qualquer outra forma de discriminação.
Ainda, na prática, verifica-se uma dificuldade da classe médica, diante do
paternalismo, em respeitar a autonomia de vontade do paciente, por alegar
equivocadamente colisão de direitos fundamentais (vida x dignidade da pessoa
humana). O presente estudo abordará as questões relacionadas à autonomia de
vontade à luz da Dignidade da Pessoa Humana e das tecnologias aplicadas na
Medicina Baseada em Evidências, tudo com base nas novas tecnologias ora
disponíveis e regulamentadas no Brasil, cuja a premissa inicial é que o melhor
banco de sangue para uma pessoa é ela mesma.
Palavras-chaves: Novas Tecnologias. Medicina Baseada em Evidencias.
Autonomia da Vontade.

Abstract: From the perspective of autologous blood-free medical treatments and


the scientific evidence-based conception of medicine, allogeneic blood is an
exhaustible biological resource. Worldwide data from blood banks, especially in
Brazil, show frequent decrease in donations, donor compatibility and health, and
at the same time the emergence of new (tropical) diseases. At the same time,
scientific evidence shows that increases in blood transfusions are related to
increased morbidity and mortality and higher hospital costs (SANTOS, 2014).
Thus, it is increasingly necessary to look for other therapies, both clinical and
surgical. These therapies exist, but are little known and rarely used, despite being
regulated in the Unified Health System, and available to all people, regardless of
social class, sexual issues, religion, or any other form of discrimination. Still, in
practice, there is a difficulty of the medical class, facing paternalism, in respecting
the patient's autonomy of will, for mistakenly claiming collision of fundamental
rights (life x dignity of the human person). The present study will address issues
related to autonomy of will in light of the Dignity of the Human Person and
Evidence-Based Medicine, all based on the new technologies now available and
474

regulated in Brazil, whose initial premise is that the best blood bank for A person
is herself.
Keywords: New technologies. Evidence-Based Medicine. Autonomy of Will.

INTRODUÇÃO

A medicina transnacional é o intervalo entre a problemática, os estudos,


as hipóteses, possibilidades de experimentos, das pesquisas e análises, da
regulamentação dos protocolos e consequentemente de sua validação na
respectiva agência sanitária em proveito do sucesso nas terapias e diagnósticos
ora desafiados e experimentados. Esse intervalo pode durar meses, anos, ou até
décadas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kpCGZxIu_Uc.
No Brasil, os tratamentos médicos sem utilização de sangue autólogo, ou
seja, de outra pessoa, já estão regulamentados em dois protocolos oficiais do
Ministério da Saúde, quais sejam: no RENAME, Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais, e no RENEM, Relação Nacional de Equipamentos e
Materiais Permanentes Financiáveis para o SUS. Ainda, em cada protocolo, há
inúmeras possibilidades de alternativas de tratamentos de saúde sem transfusão
sanguínea.
Digno de nota é que diante de várias possibilidades e alternativas,
associado ao grande risco que os tratamentos médicos com transfusão de
sangue proporciona, aliado ainda ao seu alto custo, os tratamentos médicos
então chamados de alternativos, passam a ser encarados pela medicina, não
como alternativa, e sim como essencial.
Nesse sentido, quanto às transfusões de sangue e seus riscos o Manual
Técnico para Investigação da Transmissão de Doenças pelo Sangue, publicado
pela ANVISA em 2004, no Brasil, diz: “o sangue pela sua característica de
produto biológico, mesmo quando corretamente preparado e indicado, carrega
intrinsicamente vários riscos, sendo impossível, portanto, reduzir a zero a
possibilidade de ocorrência de reações adversas após uma transfusão”.
Já em 2007, a ANVISA, afirmou, agora através do Manual Técnico de
Hemovigilância – Infecções e Reações Transfusionais Imediatas e Tardias Não
infecciosas: a terapia transfusional é um processo que mesmo em contextos de
indicação precisa e administração correta, respeitando todas as normas técnicas
preconizadas, envolve risco sanitário com a ocorrência potencial de incidentes
transfusionais, sejam eles imediatos, ou tardios. (...) Antes de prescrever o
sangue ou hemocomponentes a um paciente é essencial sempre medir os riscos
transfusionais potenciais e compará-los com os riscos que se tem ou não se
realizar a transfusão.
Assim, as novas tecnologias, com base nas evidências médicas, levando
em consideração a segurança do tratamento e nos benefícios ao paciente,
associado ainda na economia de recursos públicos, disponibilizam por si só, qual
seria a melhor opção de tratamento. Um outro fator que deve ser considerado
está relacionado na seguinte premissa: risco por risco, qual tratamento ofertado
(tecnologia) possui menos risco? Os tratamentos com transfusão de sangue
garantem o resultado? Entre os tratamentos sem transfusão de sangue e os
tratamentos com transfusão de sangue, quais são as consequências e eventuais
efeitos adversos (tardios, mediatos e imediatos)? Qual é a vontade do paciente?
Diante dessas premissas é que o presente artigo procurará esclarecer.
475

DESENVOLVIMENTO

Os custos operacionais dos tratamentos com transfusão de sangue levam


em conta alguns fatores, quais sejam: logística entre os bancos de sangue e o
produto oferecido (bolsa de sangue). Para tanto o custo médio de um bolsa de
sangue tem os seguintes componentes: gastos com testes de triagem,
reagentes; gastos com transporte e armazenamento; gastos com equipamentos
e profissionais, estrutura física dos bancos de sangue, dentre outros.
Ainda, é louvável considerar que nos testes de triagem, não é possível,
apesar de toda tecnologia envolvida, de atestar 100% que aquele produto
biológico está isento de vírus ou bactérias diante, inclusive, da janela
imunológica. Ainda, efeitos adversos naturais, por incompatibilidade genética,
por erro humano, por fatores de conservação, associado ainda ao aumento de
tempo de internação e potencial risco de infecção do procedimento devem ser
levados em consideração.
Diante desse cenário, a medicina baseada em evidências, proporciona
diversos protocolos médicos, quer clínicos, quer cirúrgicos, de evitar ou reduzir
as técnicas transfusionais.
Interessante ainda mencionar que diversas técnicas não transfusionais
são mais simples, mais seguras e mais eficazes, associada ainda ao baixo custo,
seja pelo próprio valor financeiro para aquisição e utilização, quer pelos efeitos
adversos relacionados ao menor tempo de internação, proporcionando maior
rotatividade de leitos hospitalares, e consequentemente aumento do número de
pessoas atendidas.
Hospitais de referências em grande parte do mundo, quer nos Estados
Unidos, com informações disponíveis em: https://www.sabm.org/, quer na
Europa, com informações disponíveis em: https://nataonline.com/, e
recentemente na Austrália, com informações disponíveis em:
https://www.blood.gov.au/, disponibilizam as referidas técnicas a todas as
pessoas, independentemente do motivo, bastando a vontade do paciente, e
claro, a qualificação profissional.
Assim, os tratamentos médicos com sangue autólogo, diante dos perigos
experimentados e advindos das técnicas transfusionais, associado ao avanço da
medicina (ciência, tecnologia e inovação) não pode ser encarado como o
tratamento único e imediato a ser oferecido. E mais, conjugações de outros
fatores, tais como qual o melhor tratamento? Os tratamentos são de meio ou
resultado? Ainda, diante da imprecisão na indicação, e o centro das atenções,
que é o paciente, seu bem-estar e o respeito a sua vontade (vida digna), patamar
esse, considerando a pessoa como sujeito de direitos e não como objeto devem
ser considerados.
Nesse cenário, farta literatura médica, disponibilizam técnicas, quer
clínicas, quer cirúrgica ao alcance de todos. Tais fontes de informações
científicas, podem ser verificadas em https://www.jw.org/pt/biblioteca-
medica/cirurgia-sem-sangue/.
Enquanto questões constitucionais e legais da autonomia do paciente no
direito de escolha de tratamentos médicos, o cenário apresentado no tópico
anterior, analisaremos as questões constitucionais e legais enfrentadas na
escolha dos tratamentos médicos e sua íntima ligação com a dignidade da
pessoa humana exteriorizada pela autonomia de vontade com fundamentos no
estado democrático de direito enquanto princípios fundamentais, previstos no
476

artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil e está intimamente


relacionada com a condição de existência humana, perfazendo assim uma
premissa lógica da origem dos direitos fundamentais.
Ela, a dignidade, concede unidade aos direitos e garantias fundamentais,
sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de
predomínio das concepções transpessoalistas do Estado e Nação, em
detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral
inerente à própria pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação
consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao
respeito por parte das demais pessoas, constituindo um mínimo invulnerável que
todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente,
possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre
sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto
seres humanos. (MORAES, 2004).
Já enquanto Direito da Personalidade os mesmos estão reconhecidos no
inciso X, artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil. Ainda esses
direitos estão regulados nos artigos 11 a 21 do Código Civil Brasileiro. Essa
enumeração descrita no Código Civil não é taxativa, entretanto é tão ampla que,
praticamente, teve em mira abarcar toda violação à intimidade, à vida privada,
quer dizer, aos direitos da personalidade, que se aninham na pessoa, como seu
maior tesouro. (VILLAÇA, 2005).
Nesse sentido o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 15 traz uma questão
de ética médica, na qual o dever de informação e o consentimento informado
devem ser respeitados, inclusive porque qualquer cirurgia apresenta maior ou
menor risco de vida, e assim haverá a necessidade de autorização do paciente
(VENOSA, 2005).
Enquanto autonomia de vontade a luz do artigo 15 do Código Civil, artigo
17 do Estatuto do Idoso, e artigo 10, caput, Lei de Transplantes de Órgãos e
Tecidos, destaca-se que a autonomia de vontade do paciente é reconhecida e
prestigiada, pois a pessoa, independentemente de seu estado clínico é sujeito
de direitos, não podendo ser discriminada em razão de idade, sexo, raça, cor,
nacionalidade, estado de saúde ou religião.
Essa percepção se coaduna com a personalidade, que é projeção da
dignidade da pessoa humana e não está condicionada a nenhum fator externo,
ou seja, a enfermidade da pessoa, por mais grave que seja, não extraio status
de ser humano e, de maneira lógica sua respectiva autonomia para agir diante
de sua dignidade.
Já numa análise sobre as questões existenciais da democracia e não
retrocesso da liberdade e o ativismo judicial e a ADPF 618/2019, a manifestação
de vontade, postulado clássico da liberdade individual e suas formas de
comprovação no mundo jurídico, não desaparece por encontrar-se a pessoa sem
consciência. Exemplo lógico é representado no Direito Civil pelo instituo do
testamento. Nesse sentido documentos que tem como objetivo preservar a
vontade da pessoa, mesmo durante seu estado de inconsciência deve ser
respeitado. Nesse sentido é plenamente válido o documento de antecipação de
vontade na qual uma pessoa registra qual deva ser sua vontade quanto aos
cuidados médicos que pretende ou não pretende aceitar.
Assim, a regra do artigo 15 obriga os médicos, inclusive nos casos mais
graves, a não atuarem sem previa autorização do paciente, que tem a
prerrogativa de recusar a se submeter a um tratamento perigoso. A sua
477

finalidade é proteger a inviolabilidade do corpo humano. Em tempo, registra-se


a importância do fornecimento, por parte do médico, de informações detalhadas
sobre seu estado de saúde (GONÇALVS, 2003).
Conclui-se, portanto, que o artigo em comento visa preservar a
integridade do corpo humano diante do próprio risco que os tratamentos médicos
possuem, inclusive por não serem de resultado. O bem jurídico maior tutelado é
a própria vida digna, não somente seu fator biológico, pois se assim fosse nítida
está a violação do Estado Democrático de Direito enquanto mínimo existencial
de minoria não respeitada diante do consentimento informado (AZEVEDO,
2007).
Nesse sentido,

No Estado Democrático de Direito, a nenhuma maioria, organizada em


torno de qualquer ideário ou finalidade – por mais louvável que se
mostre -, é dado tirar ou restringir os direitos e liberdades fundamentais
dos grupos minoritários dentre os quais estão a liberdade de se
expressar, de se organizar, de denunciar, de discordar e de se fazer
representar nas decisões que influem nos destinos da sociedade como
um todo, enfim, de participar plenamente da vida pública, inclusive
fiscalizando os atos determinados pela maioria. Ao reverso, dos
governos democráticos espera-se que resguardem as prerrogativas e
a identidade própria daqueles que, até numericamente em
desvantagem, porventura requeiram mais força do Estado como
anteparo para que lhe esteja preservada a identidade cultural ou, no
limite, para que continue existindo.
Aliás, a diversidade deve ser entendida não como ameaça, mas como
fator de crescimento, como vantagem adicional para qualquer
comunidade que tende a enriquecer-se com essas diferenças. O
desafio do Estado moderno, de organização das mais complexas, não
é elidir as minorias, mas reconhecê-las e, assim o fazendo, viabilizar
os meios para assegurar-lhes os direitos constitucionais.
Para tanto, entre outros procedimentos, há a de fomentar
diuturnamente o aprendizado da tolerância como valor maior, de modo
a possibilitar a convivência harmônica entre desiguais. (STF, Pleno,
ADIn 1351-3, rel. Min. Marco Aurélio, voto do relator, j. 7.12.2006).

Necessário ainda, a pesquisa discorrer sobre a Democracia, pois se trata


do regime de governo atualmente adotado pela República Federativa do Brasil.
Tal regime, segundo (BOBBIO, 2000) tem como principal característica a
constituição pactuada de um conjunto de regras fundamentais chamadas de
universais processuais que determinam quem tem autorização para tomar
decisões coletivas e quais procedimentos devem ser utilizados:

1)todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária sem


distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de
direitos políticos [...]; 2) o voto de todo o cidadão deve ter igual peso;
3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para
votar [...]; 4) devem ser livres também no sentido de que devem ser
colocados em condições de escolher entre diferentes soluções [...]; 5)
seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a
regra da maioria numérica [...]; 6) nenhuma decisão tomada por maioria
deve limitar os direitos da minoria [...].”

Em tempo, também consigna (BOBBIO, 2000) que o princípio da maioria


presente na democracia não deve ser considerado de forma absoluta, devendo
ser entendido como “[...] um princípio igualitário na medida em que pretende
478

fazer com que prevaleça a força do número sobre a força da individualidade


singular”.
Nesse sentido o princípio da igualdade, consagrado pela Constituição
Federal de 1988 e cuja definição predominante em toda doutrina nacional,
proveniente de Rui Barbosa, diz que a igualdade está em tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade.
Desnecessário, portanto, admitir que a igualdade material não reside apenas e
tão somente em disposição legal que afirme que “todos são iguais perante a lei”.
Ainda (BARBOSA, 1987), grande defensor da igualdade entre os
indivíduos, a desigualdade no exercício de um direito implica na desigualdade
no próprio direito, uma vez que o valor de um direito só poderia ser medido pela
possibilidade jurídica de o exercer.
Com o escopo de conservar a ordem social, a igualdade é um valor que
tem por base o tratamento igual entre os iguais e desigual entre os desiguais,
sendo que o propósito da doutrina igualitária não é somente estabelecer quando
duas coisas devem ser consideradas equivalentes, mas sim promover a justiça
entre os indivíduos.
Miguel Reale afirma que Bobbio desenvolveu sua teoria política sempre
com o questionamento quanto à essência da democracia, que uns fundamentam
na liberdade, ao passo que outros recorrem à igualdade. Reale conclui que, para
Bobbio, “[...] é um dos mais relevantes legados de seu fecundo magistério,
liberdade e igualdade são valores necessariamente complementares”.
Assim, a aceitação da desigualdade é elemento essencial para a
existência do Estado Democrático de Direito, que “constitui-se, em si mesmo e,
sob certo ponto de vista, principalmente, instrumento de defesa das minorias”. A
“Democracia não é ditadura da maioria! De tão óbvio, pode haver o risco de
passar despercebido o fato de não subsistir o regime democrático sem a
manutenção das minorias, sem a garantia da existência destas, preservados os
direitos fundamentais assegurados constitucionalmente”. STF, Pleno, ADIn
1351-3, rel. Min. Marco Aurélio, voto do relator, j. 7.12.2006.
Um exemplo atual, em vias de pronunciamento jurisdicional, o Ministério
Público Federal, por meio da Procuradoria-geral da República ajuizou a Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental, instrumento adequado para que o
Supremo Tribunal Federal resolva definitivamente a questão e confira segurança
jurídica à comunidade médica e aos adeptos da comunidade religiosa
Testemunhas de Jeová, e ainda, aos que por convicções pessoais, de foro íntimo
não queiram receber tratamento o transfusional.
Insta reforçar que o Conselho da Justiça Federal, em 2011, elaborou o
Enunciado 403 na V Jornada de Direito Civil, conferindo ao art. 15 do CC a
interpretação de que o direito à inviolabilidade de consciência e de crença aplica-
se à pessoa capaz que recusa tratamento médico (inclusive a transfusão de
sangue), desde que a oposição diga respeito exclusivamente a ela.
No mesmo raciocínio, a Recomendação CFM 1/2016 “dispõe sobre o
processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência
médica”, ressaltou a necessidade de se respeitar a autonomia do paciente maior
e capaz que recusa a transfusão de sangue.
Embora toda essa evolução conduza ao respeito à autonomia do
paciente, reconhecendo a liberdade de decidir, segundo as suas convicções
religiosas, pela realização ou não de determinado tratamento, a Resolução CFM
1.021/1980 continua sendo observada por instituições de saúde, que, no caso
479

de recusa por paciente membro da religião Testemunha de Jeová, fazem uso até
mesmo da força para realizar a transfusão de sangue.
A dignidade da pessoa humana é princípio fundamental da República, que
atua como vetor de interpretação dos sistemas jurídicos. Na dimensão individual
(dignidade como autonomia), a dignidade da pessoa humana atua na
capacidade de autodeterminação do indivíduo, que tem o direito de escolher os
rumos da sua vida e definir os seus comportamentos. Na dimensão social
(dignidade como heteronomia), por sua vez, a dignidade da pessoa humana
pode ser excepcionalmente limitada pelo Estado, especialmente para evitar que
escolhas individuais interfiram em direitos próprios, de terceiros ou mesmo de
toda a comunidade. (BARROSO, 2019).

CONCLUSÃO

Desse modo a vontade do paciente quanto à recusa e legitimidade da


recusa por escolhas existenciais de liberdade, em específico, de crença
religiosa, apesar que ao nosso entendimento, o foco é a liberdade e autonomia
de vontade, não importando o motivo (sanitário, religioso, financeiro e
econômico, dentre outros) é plenamente valida, seja pela dignidade da pessoa
humana; seja pelo tratamento médico não ser ação de resultado, e sim de meio;
seja pelos riscos acentuados advindos do tratamento transfusional; seja pelo
custo benefício (na seara econômica do erário); seja diante da qualidade dos
tratamentos alternativos à transfusão de sangue autólogo; seja diante das
pesquisas científicas da medicina baseada em evidências; seja, ainda, pela
disponibilidade dos protocolos da rede pública de saúde no Brasil, e por fim, pelo
respeito da autonomia de vontade, mínimo existencial do Estado Democrático
de Direito.

REFERÊNCIAS

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1989.

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princípios jurídicos. São Paulo. Malheiros, 2018.

AZEVEDO, Álvaro Villaça, O Direito Civil na Constituição, in Princípios


Constitucionais Fundamentais, Estudo em Homenagem ao Professor Ives
Gandra da Silva Martins, Lex Editora, São Paulo, 2005, pp. 85 a 92,
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os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São
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_____. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas


480

de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais.


Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/testemunhasjeova-sangue.pdf,
acesso em 20 de setembro de 2019.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições


dos clássicos, p. 427. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. 11. ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2000.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil. Brasília, DF. Senado Federal, 1988.

_____. Código Civil Brasileiro. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.

_____. Lei 9.434 de 04 de fevereiro de 1997. Lei de Transplante de órgãos e


Tecidos.

_____. Lei 10.741 de 01º de outubro de 2003. Estatuto do Idoso.

BRILTES, Aurélio Tomaz da Silva; e SILVA, Ludmilla de Paula Castro.


Inovações Tecnológicas da Medicina Baseada em Evidências e os
Tratamentos Médicos isentos de Sangue: Medidas Científicas Para
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https://drive.google.com/file/d/1tsRlHzY0-cdR3xMBGUNBCve3rFMTq6u4/view

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, Parte Geral, Ed.


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SANTOS, Antônio Alceu dos et al. Opções terapêuticas para minimizar


transfusões de sangue alogênico e seus efeitos adversos em cirurgia
cardíaca: Revisão sistemática. Rev Bras Cir Cardiovasc [online]. 2014,
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481

TRATAMENTOS MÉDICOS E CIRURGIAS. Disponível em: <


https://www.jw.org/pt/biblioteca-medica/cirurgia-sem-sangue/ >. Acesso em: 20
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VENOSA, Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, Parte Geral, Ed. Atlas, São
Paulo, 5.a edição, 2005, vol. 1, p. 210.
482

GLOBALIZAÇÃO E A APLICABILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS NO


MUNDO ON-LINE
GLOBALIZATION AND THE APPLICABILITY OF HUMAN RIGHTS IN THE
ONLINE WORLD

Ari Rogério Ferra Júnior


Elisaide Trevisam
Orientador(a): Luc Quoniam

Resumo: Diante da necessidade do enfrentamento à problemática da proteção


dos direitos humanos no mundo digital da atual sociedade globalizada, o
presente artigo tem como objetivo analisar como os direitos humanos se
manifestam e são efetivados no mundo digital. Explorando os conceitos e
expressões das novas tecnologias, com enfoque na Internet e na reorganização
da sociedade em torno de um mundo digital, serão abordados conceitos como a
Era da Informação, Aldeia Global e Sociedade em Rede, pela perspectiva da
globalização. Conforme a concepção do direito e de direitos humanos,
denominados Digital Rights (ou Direitos Digitais), será observada a evolução do
Direito para lidar com as novas demandas trazidas pela Sociedade Digital. Para
atingir um resultado satisfatório, foi utilizado o método dedutivo, a partir de uma
metodologia descritiva quanto aos fins e bibliográfica quanto aos meios.
Palavras-chave: Direitos humanos. Globalização. Sociedade digital.

Abstract: Given the need to address the issue of the protection of human rights
in the digital world of today's globalized society, this present paper intends to
analyze how Human Rights are manifested and realized on the digital world. We
explore the new technologies’ concepts and expressions, having as a main point
the Internet and the society’s reorganization around the digital world. For this, we
study some concepts through globalization’s perspective, such as the Information
Age, Global Village and Network Society. Also, we will analyze law’s evolution to
deal with the new demands that came with the Digital Society, having as a starting
point the conception of law and human rights. For this, to achieve a satisfactory
result, we use the deductive method was used, with a descriptive and
bibliographic research.
Keywords: Human rights. Globalization. Digital society.

INTRODUÇÃO

Os avanços tecnológicos, em especial a Internet, globalizaram as


relações humanas, onde uma simples conexão faz com que o usuário se sinta
um cidadão do mundo, sem controle das suas liberdades. Muitas concepções,
atualmente, procuram definir o que significa essa nova sociedade da qual o
mundo se organizou, qual seja, a Sociedade Digital.
A Internet é um grande fenômeno do século XX que está sendo
amplamente difundida no século XXI. Utilizada como um meio de conectividade
da humanidade, propaga a quebra de distâncias com mensagens instantâneas,
com o comércio pelas gigantes do e-commerce, entre outros inúmeros exemplos.
Como consequência lógica, os direitos humanos devem ser respeitados,
promovidos e exercidos pela Sociedade Digital, em qualquer rede que seja.
483

É preciso, então, enfrentar essa nova Sociedade Digital pela perspectiva


dos direitos humanos. Diante disso, o presente artigo tem como objetivo analisar
como os direitos humanos se manifestam no mundo digital, através da
compreensão da nova Sociedade Digital globalizada e transformadora pelas
novas tecnologias sob uma perspectiva da Globalização, com ênfase na Internet.
De modo a alcançar um resultado satisfatório, no presente trabalho foi
empregado o método dedutivo, partindo do conceito geral de direitos humanos
até os direitos digitais. Trata-se de uma pesquisa descritiva quanto aos fins e
bibliográfica quanto aos meios.

1. A GLOBALIZAÇÃO E A SOCIEDADE DIGITAL

A sociedade humana vive em constante mudança e, com base na


velocidade da informação que circula atualmente com maior rapidez, esta pode
ser considerada produto da revolução desenvolvida pela globalização, realidade
que a sociedade e o mundo enfrentam na atualidade. Sabe-se que as
informações são instantâneas e todos estão conectados pois, uma mensagem
atravessa o mundo com um simples toque.
Conforme Torrado (2000), para tratar do tema das questões relacionadas
à globalização, é necessário entender o alcance e o significado do termo utilizado
pois a globalização lida com um grupo complexo de problemas relacionados a
várias áreas, quais sejam, teórica econômica, política, ética, filosófica,
sociológica, jurídica, dentre outras.
Existem inúmeras expressões que se propõem a tipificar o tema
globalização, tais quais, “transnacionalização, internacionalização,
universalização, planetização, regionalização...”. Ou ainda, expressões
complexas, como “Era da Informação”, “Aldeia Global”, “Sociedade da
informação”, dentre outras. (TORRADO, 2000). Entretanto, os termos mais
utilizados são “globalização” e “mundialização”, que em alguns casos são
colocados como sinônimos, em outros como diferentes e, até mesmo, postos
como contraditórios. (TORRADO, 2000). No presente trabalho, será utilizado o
termo globalização.
Por globalização, Torrado (2000) entende que significa a mudança nas
relações entre sociedades, nações e culturas que tem gerado uma dinâmica
interdependência no processo econômico, político e cultural, em que os eventos,
decisões e atividades que acontecem em determinado lugar do planeta gerem
impacto em outros lugares, em outras sociedades e, até mesmo, outras
sociedades. Define-se, então, globalização como o processo político,
econômico, social e ecológico que se processa em nível planetário em virtude
da inter-relação entre as pessoas e os lugares. A globalização junta esses
múltiplos processos e, no tocante a este trabalho, principalmente, o processo
tecnológico.
Esse processo gera um impacto generalizado sobre os indivíduos e a
coletividade. Para Torrado (2000), esta globalização fundou um novo tipo de
sociedade, qual seja, a sociedade em rede:

La revolución de las tecnologías de la información y de la


reestructuración del capitalismo han inducido una nueva forma de
sociedad, la sociedad red, que se caracteriza por la globalización de
las actividades económicas decisivas desde el punto de vista
estratégico, por su forma de organización en redes, por la flexibilidad e
484

inestabilidad del trabajo y su individualización, por una cultura de la


virtualidad real construida mediante un sistema de medios de
comunicación omnipresentes, interconectados y diversificados, y por la
transformación de los cimientos materiales de la vida, el espacio y el
tiempo, mediante la constitución de un espacio de flujos y del tiempo
atemporal, como expresiones de las actividades dominantes y de las
elites gobernantes. Esta nueva forma de organización social, en su
globalidad penetrante, se difunde por todo el mundo. (TORRADO,
2000)1

O que se pode perceber é que as tecnologias, em especial a Internet,


contribuíram para o encurtamento das distâncias e o progresso tecnológico
colocou a todos no planeta interligados em uma aldeia global. A sociedade
globalizada pela Internet e, amplificada pela world wide web (www), diminuiu as
fronteiras e a limitação geográfica, conectando a todos nessa aldeia global. O
mundo vive uma sociedade digital.
A informática surgiu com a ideia de beneficiar a auxiliar o homem, ou seja,
basicamente, ela é a ciência que estuda o tratamento automático e racional da
informação (KANAAN, 1998). O avanço tecnológico da informação perseguiu o
objetivo de criar uma Aldeia Global, que permitiu que as pessoas tenham acesso
a um fato simultâneo. Logo, os indivíduos estão cada vez mais conectados a
uma única rede (MCLUHAN, 1964).
A Internet está amplamente presente da vida do ser humano, muito além
que um simples meio de comunicação e é formada por uma rede mundial de
Indivíduos que estão inseridos nela, composta por pessoas físicas, empresas,
instituições e governos. Isso resultou em uma profunda mudança na maneira de
encarar as relações entre os Indivíduos. Como se observa, a sociedade está́
evoluindo, cada vez mais, para uma Sociedade Digital.
Essa Sociedade Digital gera uma necessidade de inclusão digital. A
inclusão digital é o termo utilizado para o processo de democratização do acesso
às tecnologias da informação, de modo a permitir a inserção de todos na
sociedade da informação, ou seja, aquele que está incluído na Sociedade Digital
usufrui dessa tecnologia para melhorar as condições de vida a fim de buscar
novas oportunidades.
Enquanto vislumbra-se o avanço da Internet, tem-se que estar ciente das
transformações tecnológicas que atingem o Direito, surgindo, então, a
necessidade de evolução jurídica para lidar com os desafios desta sociedade da
informação. Isto implica que os desafios desta Era Digital desencadeiam
questões jurídicas que devem ser enfrentadas pelo Direito na sociedade digital.
Conforme Castells (2003), a revolução tecnológica transformou o cenário social
da vida humana e a as tecnologias da informação remodelaram a base material
da sociedade. Esse novo sistema de informação fala uma língua que é universal
e que promove a integração global.

1 A revolução nas tecnologias da informação e a reestruturação do capitalismo têm induzido uma


nova forma de sociedade, a sociedade em rede, que se caracteriza pela globalização de
atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico, por sua forma de organização em
redes, pela flexibilidade e instabilidade do trabalho e sua individualização, por uma cultura de
virtualidade real construída através de um sistema de meios de comunicação onipresentes,
interconectados e diversificados, e pela transformação dos fundamentos materiais da vida,
espaço e tempo, através da constituição de um espaço de fluxos e tempo atemporal, como
expressões das atividades dominantes e das elites dominantes. Essa nova forma de organização
social, em sua globalidade penetrante, se espalha pelo mundo. (TORRADO, 2000).
485

2. GLOBALIZAÇÃO: DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS DIGITAIS

A ideia de globalização indica a ideia de integração e, também, a ideia de


um fenômeno homogêneo que afeta a todos os envolvidos da mesma forma. A
Internet está diretamente ligada à integração entre as pessoas e à globalização,
o que gera repercussão no sistema de direitos. Incide que os usuários da Internet
aumentaram de maneira progressiva nos últimos anos, e a sociedade tornou-se
cada vez mais dependente desta. Em 2005, os usuários da Internet alcançaram
a marca de 1 (um) bilhão de usuários em todo o mundo, já em 2010, o número
superou a quantia de 2 (dois) bilhões de usuários. Em 2014, a quantia subiu para
3 (três) bilhões. Em julho de 2016, mais de 46% da população mundial estava
conectada a Internet (FINKLEA, 2017, p. 2). Portanto, não há como negar que a
Internet é um dos grandes fatores dessas novas tecnologias que revolucionaram
a sociedade; é muito mais que um meio de comunicação eletrônica, já́ que é
formada por uma rede mundial de indivíduos.
Diante dessa realidade, convém explicitar que o Direito não pode se furtar
de responder às transformações tecnológicas, pois elas estão modificando a
sociedade. Se os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres
humanos, devem, portanto, ser promovidos e respeitados, inclusive, no mundo
digital.
A internet potencializou alguns direitos, contudo, o Direito precisa avançar
no debate de questões polêmicas que surgiram com essa nova Sociedade
Digital. Questões que envolvem os direitos humanos dos indivíduos, tais como a
privacidade, liberdade de expressão, inclusão digital, segurança da informação,
proteção de dados pessoais, neutralidade da redes, combate a espionagem
entre países, defesa dos assediados digitais, criptografia das mensagens, e-
citizen, dark web, combate a fakes news, e-reputação, democratização do
conhecimento, dentre outros, devem ser harmonizados pelo Direito, posto que
são direitos humanos dos indivíduos.
Ao entender o significado da Sociedade Digital, o Direito Digital e os
Direitos Humanos, o próximo desafio do Direito é enfrentar as mudanças
tecnológicas que influenciaram a sociedade buscando evoluir semelhantemente
ao processo denominado por Silveira e Rocasolano (2010, p. 190) de
dynamogenesis:

A dynamogenesis dos valores e o direito referem-se ao processo


continuado no qual os valores estão imersos e que pode-se reunir nas
seguintes etapas, [...], 1) conhecimento-descobrimento dos valores
pela sociedade; 2) posterior adesão social aos valores e consequência
imediata; e 3) concretização dos valores por intermédio do direito em
sua produção normativa e institucional. (SILVEIRA; ROCASOLANO,
2010)

Sendo assim, a questão que está em pauta aqui está relacionada aos
Direitos dos Indivíduos que acessam a Internet, posto que esta é uma rede
mundial de Indivíduos. Inúmeros direitos humanos se aplicam ao mundo digital,
como exemplo, igualdade de direitos, acesso à Internet e ativos de informação.

3. OS DIREITOS DIGITAIS E A APLICABILIDADE NO MUNDO ON-LINE


486

Para Godwin (2003), o esforço para ensinar as pessoas sobre law of the
Net (Direito na rede) se deve à luta para garantir que se cultive na Rede as
proteções que se aplicam a outras mídias, como freedom of expression
(liberdade de expressão). Mas porque a Internet é importante para o Direito? O
autor responde que as decisões que tomamos sobre a Internet não afetam
apenas a Internet, mas vão além, pois geram consequências para todos os
milhares de indivíduos que utilizam da rede. São respostas para estas perguntas
que permitem estruturar a Sociedade Digital com base na tolerância e liberdade.
Defende Godwin (2003) que a Internet e os computadores podem
proporcionar mais benefícios do que malefícios, posto que, muito além da
eficiência industrial, esta marca uma mudança na cultura mundial. A Internet
permitiu um palco mundial aos indivíduos que possuem acesso à rede. Cita
Godwin (2003) que as empresas e os governos possuem rational and irrational
fears (medos racionais e irracionais), por exemplo, empresas que possuem
interesses em propriedade intelectual pensam que a Internet oferece aos
indivíduos um potencial para serem infratores de direitos autorais ou para facilitar
a violação destas.
O que ocorre, porém, é que a Internet modificou a maneira que a
sociedade se organiza e novas respostas devem ser dadas pelo Direito, uma vez
que, segundo Pinheiro (2016), é necessário compreender o mecanismo de
funcionamento das novas tecnologias de comunicação, em especial a Internet,
e suas consequências na sociedade. Defende a autora que o Direito é o
resultado do conjunto de comportamento e linguagem e, após essa
compreensão, é que leis podem ser feitas, aplicadas e soluções serem dadas a
casos concretos. Justamente essa velocidade de mudanças faz com nasça o
Direito Digital.
Ocorre que Godwin (2003) já previa anos atrás que a Rede poderia ser
usada para disseminar informações falsas ou para propagar o discurso do ódio.
Nos dias atuais, percebe-se que as fakes news fazem parte do dia a dia dos
usuários e influenciam milhares de pessoas em suas decisões. As redes sociais
como o Twitter e o Facebook permitem a interação simultânea entre os seus
membros e isso permite que grandes autoridades, por exemplo, propaguem os
seus discursos pelas ferramentas de comunicação. Discursos que nem sempre
são saudáveis. Porém, ainda segundo Godwin, a vida da lei tem sua base na
experiência e isso gera a necessidade de proteção contra violações. É onde
surgem os Cyber Rights, que, segundo Godwin (2003), seriam um conjunto de
valores, de base pluralista e supraconstitucional, aplicáveis aos usuários da
Internet, independente do seu Estado de origem.
Também conhecidos como Digital Rights, representam uma evolução do
Direito para o Direito Digital em uma sociedade cada vez mais globalizada que,
assim, exige uma visão maior do Direito Internacional, Público e Privado. O
Direito da Sociedade Digital é um direito que está além das fronteiras e
estabelece a necessidade de uniformização dos procedimentos por parte dos
Estados, através de um debate internacional que tenha como fundamento a
proteção e da manifestação dos direitos humanos na Sociedade Digital.
De acordo com Ziccardi (2012), a extensão da proteção dos direitos
humanos no mundo digital é um assunto muito relevante no cenário atual e como
exemplo pode-se citar o acesso à Internet, a qualidade de serviço, garantia de
inclusão digital, neutralidade da rede e igualdade de acesso; direito à liberdade
e segurança na Internet; direito ao desenvolvimento através da Internet;
487

liberdade de expressão e informação na Internet; liberdade de religião e crença


na Internet; liberdade de reunião e associação on-line; direito à privacidade na
Internet; direito à proteção de dados digitais; direito à educação na Internet;
direito à cultura e acesso ao conhecimento na Internet; direito ao trabalho e à
Internet; direito à saúde e serviços sociais na Internet, além de outros inúmeros
direitos humanos que podem ser conectados à Internet e ao mundo digital.
A Internet não pode ser encarada como uma ameaça ao bem-estar da
nação, posto que, é uma ferramenta que pode ser usada para preservar e
promover o bem-estar e propagar direitos. As pessoas que utilizam do mundo
on-line podem organizar e corrigir espontaneamente os descuidos ou erros das
pessoas, visto que, o poder que é dado pela Net, enseja também a
responsabilidade de abraçar valores inerentes à rede.
Estar em Rede significa que a tendência de se especializar no
pensamento próprio, na individualização, carece de ser colocada de lado. Em
um mundo em que todos possuem um poder maior de participar dos discursos
públicos da nação, todos precisam trabalhar para a construção da nova
Sociedade em Rede, ou, Sociedade Digital. Um exemplo da transformação que
o Direito e a Sociedade Digital passam é que os governos estão proporcionando
a cidadania digital, utilizando de ferramentas que permitem o peticionamento
e/ou o plebiscito on-line, para garantir ao indivíduo o direito de estar conectado
à Internet através de um novo direito essencial. (PINHEIRO, 2016)
Surge, portanto, a necessidade de o Direito renovar seus institutos e criar
outros capazes de garantir a segurança jurídica das relações sociais na vida
digital. O que significa que os profissionais do Direito devem ser os responsáveis
por garantir esses direitos (PINHEIRO, 2016).
Diante dessa reflexão até aqui desenvolvida, conclui-se que é preciso
repactuar o compromisso das instituições com os indivíduos da aldeia global
conectada, que são os cidadãos desta atual Sociedade Digital, no tocante à
proteção e às garantias dos direitos humanos. Assim, direitos humanos como a
universalidade e igualdade; direitos e justiça social; acessibilidade; expressão e
associação; privacidade e proteção de dados; vida, liberdade e segurança;
diversidade; igualdade de rede; padrões e regulamentação; governança, dentre
outros, devem ser efetivados, também, no mundo digital.

CONCLUSÃO

Ao compreender as grandes transformações ocasionadas pela


globalização, percebe-se que a atual Sociedade Digital em que o mundo se
conecta atualmente, foi revolucionada pelas novas tecnologias, principalmente,
a Internet. Sendo assim, a Sociedade Digital exige um olhar sob a perspectiva
de uma nova dimensão para o direito, em que a aplicabilidade dos direitos
humanos no mundo on-line seja efetiva.
Consequentemente, o Direito deve evoluir para o Direito Digital, no qual a
compreensão das mudanças permita dar soluções aos casos concretos
enfrentados pelos indivíduos dessa nova realidade. É em virtude dessas
mudanças que surge o que se denomina Direito Digital. Destarte, a capacidade
de enfrentar essa nova circunstância será vital para as respostas à efetivação
dos direitos humanos nessa sociedade digital.
Pode-se concluir, pois, que os direitos humanos devem ser respeitados,
promovidos e exercidos pela sociedade em geral. Faz-se necessário que os
488

direitos humanos, que são usufruídos pelas pessoas no mundo off-line, também
sejam respeitados no mundo on-line, ou seja, dentro da Internet, em qualquer
Rede que seja, para que, assim, os direitos globalizados pelas novas tecnologias
sejam efetivados na Sociedade Digital como forma de efetivação de uma
sociedade democrática.

REFERÊNCIAS

CASTELLS, M. A galáxia da internet: Reflexões sobre a internet, os negócios e


a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

FINKLEA, K. Dark Web. In: Congressional Research Service, 2017. Disponível


em: https://fas.org/sgp/crs/misc/R44101.pdf. Acesso: 20 ago 2019.

GODWIN, M. Cyber Rights: defending free speech in the digital age. Cambridg:
The MIT Press, 2003.

KANAAN, J. C. Informática global. São Paulo: Pioneira, 1998.

MCLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem:


Understanding Media. São Paulo: Cultrix, 1969.

NEGROPONTE, N. Being Digital. New York: Vintage, 1996.

PINHEIRO, P. P. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2016.

SILVEIRA, V. O. DA; ROCASOLANO, M. M. Direitos humanos: conceitos,


significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010.

TORRADO, J. L. Globalización y derechos humanos. In: Anuario de filosofia del


derecho, v. 17. Espanha: Ministerio de Justicia; BOE; Sociedad Española de
Filosofia Jurídica y Política, 2000.

ZICCARDI, G. Resistance, liberation technology and human rights in the digital


age. Holanda: Springer, 2012.
489

O EMPREGO DA TECNOLOGIA EM PROL DA VIGILÂNCIA ESTATAL


BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DA PROTEÇÃO JURÍDICA DOS DADOS
PESSOAIS
THE USE OF TECHNOLOGY ON BEHALF OF BRAZILIAN’S STATE
SURVEILLANCE: AN ANALYSIS OF THE PERSONAL DATA’S LEGAL
PROTECTION

Nathalia Vasconcelos Guimarães


Rhana Augusta Aníbal Prado

Resumo: A presente pesquisa se dispõe a trabalhar sobre a proteção de dados


e a sua consideração (ou não) como um direito fundamental no ordenamento
jurídico brasileiro perpassando a análise frente aos instrumentos jurídicos e
legislativos, principalmente os mais recentes, e sua compatibilidade com as
demandas sociais e políticas da sociedade contemporânea. Além disso,
pretende-se argumentar sobre a segurança pública, que, na
contemporaneidade, se ampara nos aparatos tecnológicos, visando ao
progresso no combate à criminalidade. Contudo, em meio à adesão e
observância de resultados efetivos na esfera da vigilância estatal, informações
pessoais excessivas da população se tornam acessíveis ao Poder Público,
possibilitando um controle e monitoramento, discutido a partir do viés dos direitos
fundamentais, o que, ratifica a necessidade do debate acerca da proteção de
dados.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Proteção de Dados. Segurança
Pública.

Abstract: The present research intends to analyze personal data protection and
its possible categorization as a fundamental right in the Brazilians complex of
legislations, through the analysis regarded to legal and legislative instruments in
the most recent ones, and their compatibility with the socials and political
demands from the contemporary society. Besides that, the research seeks to
discuss about the public security that nowadays is based on technological
equipment that can provide an effective combat against crime. Nevertheless,
those technological apparatus are capable to receive personal data in massive
scales, allowing not only an effectual state surveillance, but can also permit
political persecutions and excessive monitoring by public enforcement.
Keywords: Data Protection. Fundamental Rights. Public Surveillance.

INTRODUÇÃO

A integração da sociedade com os dispositivos tecnológicos é consolidada


em franco aumento e, por essa razão, observa-se que a dinâmica das relações
sociais sofre uma reestruturação. Em conformidade com essa perspectiva, a
segurança pública pode ser apontada como uma das esferas que contempla
intensamente uma reorganização.
O modus operandi da vigilância estatal incorpora artifícios modernos
pautados na captação de dados biométricos, como o reconhecimento facial, e
aprecia resultados de combate à criminalidade e ao terrorismo significativos e
eficazes. Porém, concomitantemente, há de se considerar a dualidade em torno
desses artefatos, cujas utilidades tendem a se moldarem ao interesse humano e
490

governamental, possibilitando sérias violações a direitos fundamentais, tais


como privacidade e intimidade.
Diante da aprovação pelo Senado, em julho de 2019, da PEC (Projeto de
Emenda Constitucional) número 17, que insere a proteção de dados pessoais
acessíveis na lista de garantias individuais da Constituição Federal de 1988,
deve ser salientada a importância do questionamento de sua categorização
como direito fundamental. O limite tênue entre as informações pessoais e
digitais, bem como entre a privacidade e a vigilância estatal indicam ser
indispensável apreciar os anseios populacionais por progressos no âmbito da
segurança pública (combate à criminalidade), não podendo as autoridades
nacionais ignorarem a ideia de fortificação da inviolabilidade dos dados pessoais
e da tutela jurídica da intimidade e privacidade.
Nesse sentido, o presente resumo expandido possui como tema-problema
a mais adequada tutela jurídica dos dados pessoais no ordenamento brasileiro,
examinando nos dispositivos legais existentes a evolução de tal tutela. Ademais,
reflexiona-se em relação à inviolabilidade dos direitos fundamentais que pode
ser concatenada com a segurança pública, uma vez que esta adota recursos
tecnológicos no combate à criminalidade, mas também facilita possíveis abusos
na vigilância e monitoramento excessivos pelo poder público.
A pesquisa se propõe a verificar a tutela jurídica atualmente fornecida aos
dados pessoais no ordenamento jurídico nacional, bem como interligar essa
proteção necessária à segurança pública, que se utiliza de inovações
tecnológicas para obter progressos. Logo, o problema objeto da investigação
científica proposta consiste em analisar a necessidade de uma distinta proteção
jurídica dos dados pessoais no ordenamento jurídico brasileiro e como essa
alteração é capaz de resolver a tensão entre a privacidade desses dados e a
necessidade de uma vigilância estatal de qualidade.
A pesquisa se propõe a verificar a tutela jurídica atualmente fornecida aos
dados pessoais no ordenamento jurídico nacional, bem como interligar essa
proteção necessária à segurança pública, que se utiliza de inovações
tecnológicas para obter progressos.
Ademais, de forma específica, se propõe: (i) a verificar qual o amparo
jurídico atual; (ii) examinar a compatibilidade e suficiência da tutela existente
atualmente; (iii) averiguar exemplos que corroborem com a proposta de uma
classificação capaz de reforçar a inviolabilidade da proteção informacional
supracitada; (iv) investigar implicações da tutela jurídica dos dados na
exequibilidade do serviço de segurança pública; (v) refletir o uso da tecnologia
na vigilância policial realizada pelo Estado e as informações pessoais a ele
disponibilizadas.
No que se refere à metodologia utilizada, a pesquisa que se propõe
pertence à vertente metodológica jurídico-sociológica. No tocante ao tipo de
investigação, foi escolhido, na classificação de Witker (1985) e Gustin (2010), o
tipo jurídico-diagnóstico. E o raciocínio desenvolvido na pesquisa será
predominantemente indutivo.
Quanto à natureza dos dados analisados, constituem-se dados primários
a Constituição Federal de 1988, a legislação pertinente, tal como a LGPD (Lei nº
13.709/18), dados acerca da segurança pública e textos referentes ao emprego
da tecnologia na segurança empregadoras da tecnologia. Serão dados
secundários livros, artigos de opinião e de revistas.
491

1. A EVOLUÇÃO DOS DADOS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A legislação brasileira, segundo o professor e advogado membro da


Comissão de Direito para Startups da OAB/MG, Luiz Felipe Siqueira (2019),
historicamente mencionou a proteção de dados em um primeiro momento na
Constituição da República, ao tratar sobre o habeas data, depois no artigo 43 do
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), em seguida em 2011 na Lei de
Acesso à Informação (12.414/11) e recentemente conceituado sobre a proteção
de dados no Decreto de 2016 sobre o Marco Civil da Internet. O Marco Civil,
ainda que retardado por 5 anos, desde sua exposição de motivos a sua
regulação, propõe uma tentativa de estabelecer princípios, garantias, direitos e
deveres para o uso da rede mundial de computadores (World Wide Web) no
país.
Dentro de três décadas, a velocidade com que as mudanças afetaram a
comunicação e os modos de convivências pessoais cresceu exponencialmente.
E junto com ela a produção de dados armazenados, produzidos voluntariamente
pelos consumidores da nova tecnologia. Esses dados gerados vêm servindo
como matéria base para, de um lado, cientistas analisaram o comportamento
humano e por outro lado, empresas venderem seus produtos e influenciar direta
e indiretamente na vida social.
Entretanto não só para a iniciativa privada os dados poderão ser usados,
o Estado é um dos principais detentores e interessados nesse novo tipo de
produto, principalmente para o planejamento de políticas públicas e para
monitoramento de comportamento humano, que por sua vez impacta
diretamente nas relações de segurança pública. Contudo todas essas
mudanças, segundo Caio Lara, professor doutor da Escola Superior Dom Helder
Câmara, só foi possível:

com o desenvolvimento das tecnologias de big data, que segundo a


International Data Corporation (2011) ‘descrevem uma nova geração
de tecnologias e arquiteturas projetadas para extrair economicamente
o valor de volumes muito grandes e de uma variedade de dados,
permitindo alta velocidade de captura, descoberta, e/ou análise’.
(LARA, 2019, p. 35)

Todavia, como todo desenvolvimento e seguindo os passos das


revoluções industriais anteriores, surgiram dificuldades a serem enfrentadas com
a dispersão exponencial do acesso à internet, e de acordo com Lara:

Com os mecanismos cada vez mais sofisticados de mineração de


dados, especialmente das preferências pessoais em redes sociais
(web mining), e todos os problemas gerados com a violação da
intimidade e privacidade dos usuários, o universo jurídico teve que
reagir a estes novos fenômenos. Regras jurídicas específicas e suas
respectivas sanções começaram a surgir no final do milênio passado,
mas regras mais rigorosas e pretensamente com mais poder de
controle sobre os abusos são inovação recente. (LARA, 2019)

A exposição de motivos do Marco Civil da Internet, em 2011 foi um dos


primeiros indícios que o ordenamento jurídico estava reagindo a esses novos
fatos sociais, ao atentar para criação de um modelo de normatização e
governança em cima da proteção de dados no ciberespaço atinando às
premissas da construção dessa rede (BOFF, FORTES; 2014), ou seja uma
492

ruptura do pensar legislativo anterior em busca da proteção à privacidade na era


moderna.
Hoje uma das discussões que permeia o Marco Civil e a recente Lei Geral
de Proteção de Dados (13.709/18) é justamente a proteção dos usuários e seus
dados pessoais. Segundo Boff e Fortes:

No Brasil, assim como em outros diversos Estados, o direito à


privacidade é assegurado constitucionalmente como direito humano
fundamental. A Constituição Federal brasileira não se restringe apenas
ao direito à privacidade, apresentando abrangência em relação à
preservação da vida privada e da intimidade da pessoa, a
inviolabilidade da correspondência, do domicílio e das comunicações,
em consonância com o previsto no artigo 5º, inciso X: [...] e no inciso
XII [...] (BOFF, FORTES, 2014)

O Brasil, só agora estabelece regras sobre a proteção de dados e seus


princípios norteadores, constantes na LGPD, numa tentativa de consertar uma
defasagem do ordenamento que há muito tempo é discutida na União Europeia.
Na Europa, o marco decisivo na proteção de dados é a cartilha de conhecida
como GDPR (General Data Protection Regulation), que é uma atualização da
legislação anterior da década de 90, e inspirou a criação da LGPD.
Dito isso, o Brasil passa por uma crise na efetivação e garantia dessa
proteção às informações na nuvem, já que segundo Boff e Fortes (2014) há uma
“renúncia da privacidade e com o fornecimento de dados pessoais tão valiosos,
que compensam a oferta de serviços de forma gratuita, como o fazem as grandes
corporações do Vale do Silício, Google e Facebook.” Esse modus operandi tende
a ferir garantias fundamentais e constitucionais por deixar desprotegido o
consumidor que “voluntariamente” se submete a tal situação para usar o produto.
Portanto, mesmo com a vigência em 2020 da LGPD ainda não será
suficiente para solucionar os problemas diários relacionados a essa nova ordem
comunicativa mundial. É necessário não só uma legislação infraconstitucional,
mas também a inclusão da proteção de dados junto ao rol de direitos
fundamentais na Carta Magna brasileira. Pois, como muitos teóricos afirmam,
eles fazem parte dos direitos fundamentais de terceira geração, (OLIVEIRA
JUNIOR, 2017), os da fraternidade que resguardam os direitos da coletividade e
transindividuais dentre eles o da tecnologia e da comunicação. E para tentar
amparar a população redigiram a PEC 17, aprovada até agora, em dois turnos
pelo Senado, corroborando ainda mais a urgência e necessidade da
implementação dessa segurança, expressamente sobre dados pessoais na
internet, junto ao artigo 5° da Constituição da República.

2. A APLICAÇÃO TECNOLÓGICA NA VIGILÂNCIA ESTATAL

Ratificando o que está supracitado no texto, a consolidação de uma


sociedade desenvolvida nos moldes dos avanços tecnológicos consiste em uma
realidade. As relações pessoais, as de consumo, a dinâmica educacional e de
tramitação de processos, se reestruturam e renovam conforme os diversos
aparatos tecnológicos acessíveis, exemplificados pelas redes sociais, sites de
compras online, plataformas educacionais a distância e o Victor, ferramenta de
inteligência artificial recém-implementada pelo Supremo Tribunal Federal.
Dessa forma, evidentemente, os Estados, incluindo o Brasil, também se
revelam como importantes adeptos às técnicas e mecanismos supracitados. O
493

surgimento de dispositivos modernos voltados para a vigilância estatal e


segurança pública, em escala mundial, demonstra uma revolução nessa esfera,
afinal surge a necessidade da máxima proteção jurídica dos dados pessoais nos
ordenamentos internos, assim como o questionamento do atual status jurídico
dos dados pessoais, se é concebível a sua inserção na classificação dos direitos
fundamentais.
Ainda que alguns procedimentos sejam facilitados no meio policial, como
a realização dos boletins de ocorrência online, certos equipamentos de
monitoramento demandam uma reflexão para sua implantação. Em 2019,
durante o Carnaval, cerca de 28 câmeras foram instaladas em pontos estratégico
de Copacabana visando à identificação facial, possibilitando a prisão de 8
pessoas com mandados de prisão e recuperando 3 veículos roubados. Esses
resultados positivos incentivam a expansão e adesão dessa política de
segurança pública, que também já é utilizada em Salvador (BA) e Campinas
(SP), segundo Agrela (2019). Por isso, entre os empregos da inteligência
artificial, o reconhecimento de facial surge como uma tendência na defesa do
bem-estar populacional e na atividade policial.
No entanto, o acesso informacional por parte do poder público, ainda que
para realizar um serviço estatal essencial, obriga o exercício mínimo do uso
consciente e responsável da tecnologia que, por vezes, só será devidamente
observado mediante a devida proteção legal. O Brasil que implanta rapidamente
uma rede de vigilância moderna pode não estar preparado para ser cauteloso no
uso das funcionalidades disponibilizadas pelos equipamentos, especialmente, se
regulamentações e fiscalizações não forem realizadas adequadamente.
Na China, aplicação do mecanismo de reconhecimento facial pelos
órgãos governamentais tem gerado constantes violações à privacidade,
intimidade e vida íntima em prol da proteção populacional. Apesar da
contribuição do Big Data no combate à criminalidade, identificando sujeitos e
condutas criminosas em multidões e proporcionando a segurança e defesa
almejadas pela população nos mais diversos ambientes, questiona-se: os
indivíduos brasileiros defendidos estão realmente convictos a se disporem de
seus direitos fundamentais e da proteção de seus dados em prol dessa
segurança?
Nessa conjuntura, a experiência chinesa com a utilização de câmeras
reconhecimento revela que houve a concessão excessiva de informações aos
órgãos governamentais e que pode vir a ultrapassar a finalidade de segurança
pública. Shoppings, banheiros públicos, estações de transporte e lojas, a
proposta é que todos os ambientes e atividades realizadas pelo cidadão
forneçam o máximo de dados ao poder público, de forma indistinta, quer já tenha
ocorrido um comportamento criminoso ou não.
Assim, permite-se o acesso às informações mais íntimas de qualquer
cidadão que circule onde se localizam as câmeras com tais funcionalidades,
estando os dados disponibilizados ao governo para que os utilize conforme seus
interesses, tal como a mitigação da criminalidade e terrorismo. Contudo, tais
propensões também podem ou não ser usadas a ajudar a violência policial,
perseguir grupos sociais minoritários, ativistas e opositores do governo atual,
segundo Caio Lara (2019).
Ademais, a evidente manipulação dos dados populacionais pelo governo
chinês, que podem ser utilizados para perseguição e monitoramento de certos
grupos, como os contrários ao governo, certas etnias, entre outros, é apenas um
494

dos possíveis e inadequados usos dessas informações captadas no banco de


dados referido. Nesse sentido, segundo Lara (2019), deve-se considerar que a
globalização possibilita que tais violações crassas sejam oportunizadas nos
países que venham a aderir a tal aparato, abrindo espaço a uma utilização
inadequada e consequentemente deixando toda a população vulnerável.
Essa vulnerabilidade é ainda mais ampliada se o país apoiante não possui
uma estrutura de tutela jurídica dos dados pessoais particularmente voltada à
inviolabilidade daqueles, com respeito à intimidade e à privacidade de seu povo.
Corroborando nesse sentido, o pesquisador Caio Lara (2019), reforça que na
China:

o sistema mais atual é o reconhecimento facial. Bancos, aeroportos,


hotéis e até mesmo sanitários públicos estão tentando verificar a
identidade de pessoas, por meio da análise facial. (...) A intenção é
conectar as câmeras de segurança que já vigiam ruas, shopping
centers e polos de transporte público às câmeras privadas dos edifícios
residenciais e de escritórios e integrar tudo isso em um uma imensa
plataforma nacional de segurança com dados compartilhados. Com a
tarefa nada fácil de monitorar 1,4 bilhão de pessoas, o sistema
pretende fundir a um imenso banco de dados de informações pessoais
dos cidadãos, uma "nuvem policial", que pretende recolher dados como
fichas criminais e médicas e vinculá-los ao rosto e aos documentos de
identidade de cada chinês. As câmeras de rua automaticamente
classificam os transeuntes por gênero, roupas e até comprimento de
cabelo, e o software, em processo de mineração de dados, permite que
pessoas sejam rastreadas de uma câmera a outra apenas com base
em seus traços faciais (DENYER apud LARA, 2019, p. 74).

Destarte, essas informações provocam um alerta de que, apesar do


emprego tecnológico reforçar a segurança pública nas cidades, tal utilização
deve ser feita de forma transparente e mantendo os direitos individuais e
respeitando os direitos fundamentais. O policiamento pode se tornar mais
eficiente, porém revela-se a existência dos desafios a serem enfrentados em prol
de sua modernização e de seus avanços.
Entende-se que as funcionalidades da inteligência artificial (IA) e do
reconhecimento facial tendem a serem disseminadas e massificadas
globalmente. O faturamento mundial do mercado de software para a IA tem um
crescimento previsto de 1048% em relação ao faturamento de 2018, que foi de
9,5 bilhões de dólares, diversificando variados ramos e indústrias, sendo
adotada, progressivamente em mais segmentos. Por essa razão, problemáticas
relativas à ética dos algoritmos e à privacidade dos cidadãos aumentam, se
tornando ainda mais sensível ao se interligar à segurança pública nacional, nas
palavras de Agrela (2019).
Portanto, da forma com que tem sido conduzida na prática essa inovação
tecnológica, a tutela de tais direitos é dificultada pelas manipulações dos dados
biométricos. Afinal, a ideia de um banco de dados informativos governamental
que favoreça o desvio do interesse público no aspecto da vigilância estatal
evidencia que abusos e desvios de finalidade por parte do poder público são
circunstâncias passíveis de serem enfrentadas em um futuro próximo.

3. CONCLUSÃO
495

Diante do exposto, conclui-se que a proteção jurídica e os meios de


vigilância estatal devem agir de forma colaborativa e complementar. Agindo de
tal modo que, os resultados efetivos de combate à criminalidade e terrorismo,
proporcionem à população melhores condições de vida, reduzindo os temores e
perigos de uma segurança pública não eficiente, através do emprego de recursos
tecnológicos, e por meio desses deve ser garantido não só a privacidade, mas
também a intimidade e a vida digna da população em questão.
Porém, naturalmente, essas inovações surgem dentro de um sistema
jurídico, por vezes, incapaz de suprir as necessidades sociais, que sofrem
constantes alterações, visto que foi criado dentro de outra lógica e de outra
cultura. E por estar imiscuída em outra lógica, a sistemática jurídica tem como
ponto essencial na discussão atual o uso dos dados pessoais, pois o conflito
entre a privacidade e a segurança pública ganhou novos contornos na era digital.
Fazendo-se necessário não só interpretações jurisprudenciais acerca do assunto
e do artigo 5º da Constituição, que não mais conseguem suprir a lacuna, mas a
consolidação definitiva do direito à privacidade na internet e com status de norma
constitucional, para a população ter a devida salvaguarda e segurança jurídica
sobre o tema.
A defesa legal supracitada não se opõe ao progresso do policiamento,
mas busca interligar tais assuntos de forma que mesmo o poder público se sinta
fiscalizado e intimidado para agir em prol dos interesses da Administração
Pública, porém não ignorando nesse processo o bem-estar e os direitos de
indivíduos.
Para tanto, o tema se mostra relevante tendo em vista que as grandes
mudanças tecnológicas no último século nos levaram a um novo patamar, tanto
de conectividade e integração, como de novidades jurídicas. A segurança
pública se destaca como um tema sensível e que requer avanços, ao mesmo
tempo em que tais avanços não podem enfraquecer a inviolabilidade dos direitos
fundamentais, sendo criado, desse modo, o dilema da pesquisa.

REFERÊNCIAS

AGRELA, Lucas. Inteligência Artificial começa a chegar à Segurança Pública.


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O ESTADO BRASILEIRO COMO EMPREENDEDOR: O SETOR DE


PESQUISA E INOVAÇÃO E O ATENDIMENTO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL
DE 1988
THE BRAZILIAN STATE AS AN ENTREPENEUR: THE RESEARCH AND
INNOVATION SECTOR AND COMPLIANCE TO THE 1988 FEDERAL
CONSTITUTION

Felipe Cesar José Matos Rebêlo

Resumo: O presente trabalho objetiva realizar uma análise acerca do real papel
que o Estado pode preencher dentro do setor de pesquisa e inovação. Muitas
vezes criticado pela sua atuação, pode se revelar uma fonte decisiva para
investimentos em inovação, contribuindo com o próprio desenvolvimento do
país, até com uma parcela de contribuição superior à iniciativa privada. Nesse
sentido, é analisado o papel do Estado não só como um direcionador a novas
pesquisas em inovação (P&D), como também como um investidor concreto em
tecnologias que auxiliarão diretamente a iniciativa privada, com ganhos reais
para a sociedade civil como um todo. Utiliza-se o método hipotético-dedutivo, e
caminha-se a pesquisa pelo fator efetivamente decisivo do Estado para que haja
a contemplação dos fins constitucionais.
Palavras-chave: Estado. Inovação. Pesquisa.

Abstract: This work aims to analyze the real role that the State can fulfill within
the research and innovation sector. Often criticized for its performance, it can
prove to be a decisive source for investment in innovation, contributing to the
country's own development, even with a share of contribution superior to private
initiative. In this sense, the role of the State is analyzed not only as a driver for
new research in innovation (P & D), but also as a concrete investor in
technologies that will directly aid private enterprise, with real gains for civil society
as a whole. The hypothetical-deductive method is used, and the research is
guided by the decisive factor of the State in order to contemplate the
constitutional ends.
Keywords: State. Innovation. Research.

INTRODUÇÃO

O trabalho que aqui se desenvolve busca tratar de um fenômeno muito


abordado na doutrina científica, mas nem sempre alvo de afirmações unânimes
quanto ao seu conteúdo. Refere-se à possibilidade positiva do Estado se referir
como um grande empreendedor e norteador da atividade econômica e
desenvolvimento tecnológico de um país, a despeito da atuação privada.
Nesse sentido, são abordados os principais questionamentos sobre a
matéria, as principais alegações que apontam por uma conjuntura favorável à
atuação estatal como base fundante fundamental para o setor de pesquisa e
desenvolvimento (P&D), com vistas ao desenvolvimento de um país. Com base
nesses pontos levantados, se faz a devida reflexão acerca de sua sobreposição
a realidade brasileira nacional, articulando-se um panorama geral do quadro
evolutivo último do P&D no Brasil, bem como da relação do setor estatal em
investimentos e direcionamento dessa atividade específica. Não se pode olvidar
que a própria Constituição Federal trata do desenvolvimento da tecnologia e de
498

pesquisas a serem apontadas nesse sentido, ao mesmo tempo que delimita


parcela do orçamento como direcionado a esse campo específico.
Por consequência, a abordagem também considera o preceito
constitucional, buscando auferir a aplicabilidade das medidas tomadas pelo setor
público, e pelo setor privado em consonância com aquele, em termos de
adequação ao espírito constitucional.
A principal doutrina atinente à matéria é considerada, tanto nacional
quanto estrangeira, eivando-se pelo caminho de desvendar o papel de extrema
relevância que o Estado pode exercer na concretização dos investimentos
citados, nem sempre palatável ao olhar crítico, que hodiernamente costuma
valorizar, em primeiro plano, a iniciativa privada como fonte de desenvolvimento
de pesquisas e investimentos, mormente em P&D.
O método de abordagem é o método hipotético-dedutivo, pois o trabalho
intelectivo se baseia na apreciação da hipótese formulada, confrontando-se esta
com o conhecimento existente, expresso pelas doutrinas nacional e internacional
afeitas ao tema. De outra via, o método de procedimento na pesquisa é o que se
baseia pelo levantamento bibliográfico, expresso pelo método dissertativo-
argumentativo, pois se pretende apresentar o tema com a devida profundidade,
pautando-se pelas doutrinas nacional e internacional afeitas ao tema, e se pauta
pelas inclinações orientadoras não só da realidade fática, como da própria
Constituição de 1988. Busca-se, com todo o proposto, a edificação do argumento
sob apreciação sob bases sólidas e cientificamente concatenadas.

1. O ESTADO EMPREENDEDOR: UMA REALIDADE PALPÁVEL

Em diversas ocasiões são apontadas as características da iniciativa


privada como capazes de propiciar o devido investimento a setores necessários
na sociedade, com o fulcro de se aprimorar a atividade econômica e fomentar as
condições sociais. O capítulo constitucional da Ordem Econômica já se
constituiria um exemplo nesse contexto, quando se faz a consagração de um
modelo de free market baseado na livre iniciativa e na livre concorrência.
Essa visão, de certa forma preenchida em seu bojo pelo contexto do pós-
fordismo, costuma minimizar a atuação estatal nesse mesmo mister. Essa
realidade deixa de ser casuística, e passa a ser regimental, caso se considerem
apenas os argumentos levantados por exponenciais da atividade empresarial,
como no caso de investimentos feitos no setor de pesquisa em celulose a partir
da década de 1960, no Brasil (MOTOYAMA, 2004, p. 28). Há quem diga,
inclusive, que o setor empresarial é o grande responsável pela inovação, desde
que o setor público apenas faça o mínimo, ou seja, proporcionar condições
estruturais para aquele processo ser desencadeado (SALERNO; KUBOTA,
2008, p. 28).
Não obstante, pesquisas tem sido feitas e tem apontados resultados
interessantes para esse contexto retratado. A título de pontuação de caso
específico, o trabalho desenvolvido pela pesquisadora Mariana Mazzucato tem
apontado resultados incisivos e concretos que demonstram certa força do poder
público no direcionamento de investimentos, mormente no setor de pesquisa e
tecnologia.
Tem se verificado o Estado como um fator determinante para as escolhas
a serem feitas, ou direcionando o setor privado em pesquisas e investimentos,
ou ele mesmo atuando de forma maciça na realização de ambas as atividades.
499

Outrossim, até a conjugação das duas realidades como algo comensurável tem
sido demonstrado, como assevera Mariana Mazzucato. Trata-se de um debate
acerca dos efeitos crowding out ou additionality nessa relação entre o público e
o privado (AVELLAR, 2009, p. 630-631):

O intuito dessa discussão é identificar a existência de um fenômeno


chamado “efeito crowding out” (efeito substituição), em que as
empresas privadas simplesmente alocam recursos às atividades
inovativas que já seriam previamente alocados, mesmo sem o
incentivo do governo. Nesse caso, a política de fomento à inovação,
seja qual for o instrumento executado, seria incapaz de estimular as
empresas a aumentarem seu gasto em atividades inovativas,
limitando-se a reduzir o custo dessas atividades. Por outro lado, se o
programa público de incentivo à inovação estimula as empresas a
gastar em atividades inovativas um montante superior ao previamente
alocado, pode-se concluir que a intervenção do governo foi capaz de
ampliar o gasto privado, constituindo-se assim o chamado “efeito
additionality” (efeito alavancagem) pelo fato de os gastos públicos e
privados não serem substitutos, mas sim estimularem um gasto privado
maior do que o que seria realizado sem a presença de tal programa.

O setor privado, em si, se distancia do investimento em pesquisa nessa


fase inicial, ainda mais em mercados altamente competitivos (CORREIA;
MOITA, 2018, p. 20), pois a incerteza é muito grande, e o ganho imediato sofre
com muitas condicionantes (FUCK; RIBEIRO; BONACELLI; FURTADO, 2007, p.
86). Aquilo que for mais benéfico para o acionista em termos imediatistas é o
que conta nessa fase da pesquisa em inovação. A comercialização imediatista
lucrativa é o que conta (BUENO; BALESTRIN, 2012, p. 518). O Brasil se revela
um exemplo para esse caso (CRISÓSTOMO; GONZÁLEZ, 2006, p. 111-112).
Muitas das facilidades oferecidas pela telefonia móvel, bem como pela
infraestrutura de computadores domésticos, são oriundas de investimento
estatal em pesquisas e laboratórios ligados ao setor bélico. Ou, então, com base
no investimento estatal em pequenas empresas privadas, que acabaram
negociando o produto de suas inovações tecnológicas com empresas que,
postumamente, iriam dominar o setor respectivo. Diante de um cenário em que
a corrida armamentista se fez presente em muitos períodos, mormente no da
Guerra Fria, o governo norte-americano acabou investindo maciçamente em
pesquisas abordando tecnologia e inovação, sempre com o escopo do equilíbrio
do poder o de seu desvirtuamento a seu favor. Nesse cenário, a atuação estatal
acabou ganhando uma relevância ímpar para o próprio aprimoramento da
atividade privada, com reflexos na sociedade civil. A própria Apple não se ergueu
como uma potência tecnológica e comercial sem a devida ingerência estatal. A
participação estatal, principalmente em investimentos englobando pesquisas
sobre itens típicos dos smartphones, como o GPS e a tela touchscreen, foram
determinantes nesse cenário (inclusive no ramo bélico), sem contar pesquisas
em outras empresas que depois vieram a ter sua tecnologia assimilada por
aquela primeira empresa citada (MAZZUCATO, 2014, p. 148-149).
De outra monta, o caso brasileiro merece uma abordagem a parte quanto
ao seu enquadramento nessa moldura até aqui descrita.

2. O ESTADO BRASILEIRO E SEU INVESTIMENTO EM NOVOS


CONHECIMENTOS/TECNOLOGIAS
500

Diante do quadro ilustrado, em que a atuação estatal pode ter um papel


muito relevante na dinâmica interna de um país, buscou-se averiguar o exemplo
brasileiro, perscrutando suas peculiaridades, próximas ou não ao até agora
estudado.
Com efeito, na seara do P&D, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), tem demonstrado um papel de suma importância
como fator de investimento estatal, fomentado novos caminhos para o
aprimoramento da pesquisa em tecnologia, e seu direcionamento com fins
benéficos ao país. A própria Mariana Mazzucato enfoca esse papel decisivo do
BNDES no cenário brasileiro (MAZZUCATO, 2014, p. 169-170). Contudo, nem
sempre a situação do BNDES desenvolveu-se nesse sentido. Por sinal, é
Solange Corder (2004, p. 133-150) quem proporciona dados precisos acerca da
evolução no investimento desse banco em setores sensíveis da pesquisa e
tecnologia, mormente com vistas à inovação, através de pesquisa estruturada
no início da primeira década dos anos 2000.
O Brasil, tecnicamente, não dispõe de um sistema financeiro engajado
nas atividades tecnológicas. Essa realidade sofre uma advertência positiva por
meio de duas instituições: a FINEP (Financiadora de Estados e Projetos), muito
importante para financiamentos em universidades (VENCATO, 2004, p. 105) e o
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). A FINEP
possui por especialização o financiamento às atividades de P&D. Nessa monta,
a evolução do quadro disponibilizado para investimentos cresceu enormemente
a partir de meados de 2004. Em 2000, havia a disponibilização de um montante
de R$ 120,3 milhões, passando a R$ 286 milhões em 2004. Por sua vez, em um
primeiro momento, o próprio BNDES era voltado indiretamente à modernização
tecnológica. Quando passou a sofrer modificações estruturais em sua linha de
ação, mormente a partir da primeira metade da década inicial dos anos 2000,
em 2004, a situação modificou-se decisivamente. Deu-se a adoção de uma
política de crédito tendo o desenvolvimento tecnológico como uma de suas
prioridades.
A própria modificação da rede de ensino contribuiu para mudanças
benignas. Nos últimos anos, a pesquisa no Brasil deixou de ser individual para
se configurar como coletiva. Nos anos de 1980 destacou-se o estímulo inicial
(HELLER; NASCIMENTO, 2005, p. 25), como entende a doutrina de forma mais
clara. O investimento estatal na pós-graduação permitiu a formação de cientistas
mais qualificados para a realização de projetos, concatenando-se, portanto, um
processo mais estruturado e profissional, e, acima de tudo, mais próspero para
o aprimoramento da inovação.
A Petrobras mesmo merece acolhida no ponto aqui suscitado. Por meio
de seus específicos departamentos, como o de Serviços de Engenharia (Segen)
e o Centro de Pesquisa (Cenpes), a empresa estatal acabou por desenvolver
uma série de obras pioneiras nas três últimas décadas, sendo o Gasoduto
Bolívia-Brasil o maior exemplo dessa amplitude inovadora.
O próprio ordenamento jurídico, ao decorrer dos anos, tem sido
desenvolvido no sentido de proporcionar com maiores facilidades um cenário de
inovação que possibilite o crescimento, não se notando, apenas, a Constituição
Federal como marco nessa realidade (BERCOVICI; SIQUEIRA NETO, 2013, p.
29). Ainda encontram brilho nesse quadro relacionado os seguintes diplomas
legais: Lei da Inovação (Lei 10.973/04) – marco importante no delineamento das
bases legais para a interação entre universidades e empresas com o fito de
501

alcançar o desenvolvimento científico e tecnológico, Lei 11.080/04 (que cria a


Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), a Lei do Bem (Lei 11.196/05,
que cria incentivos fiscais à inovação) e seu caráter positivo no dispêndio com
P&D e pessoal técnico ocupado, a Lei 11.487/07 (que amplia os incentivos fiscais
já concedidos pela Lei do Bem), a Lei 12.349/10 (Lei do Poder de Compra
Nacional), a Lei 13.243/16 – consolidação do Marco Legal da Ciência,
Tecnologia e Inovação, sem se esquecer da normatização estadual e municipal
pertinente em acompanhamento à legislação federal retratada.
Agora, resta observar como essa iniciativa retratada relaciona-se ao
delimitado pela Constituição Federal.

3. O DESENVOLVIMENTO AO ALCANCE DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO


FEDERAL

A Constituição Federal de 1988 define-se como comprometida com a


questão do desenvolvimento do país. O art. 3º demonstra essa preocupação.
Nesse sentido, a preocupação com pesquisas em P&D, bem como seu
desenvolvimento em termos de inovação, pode auxiliar nesse processo de
desenvolvimento almejado.
Com efeito, primeiramente, a dependência é tecnológica. Resta como
importante para o avanço no sentido do desenvolvimento, que os países ditos
periféricos superem essa deficiência, para que se tenha um equilíbrio
envolvendo as demais forças mundiais (FURTADO, 2000, p. 164).
O legislador pátrio não permaneceu insensível a esse ponto e, portanto,
procura estimular da forma devida a questão suscitada e imprescindível,
servindo-se, para tanto, dos arts. 218 e 219 da Constituição Federal. Tais
dispositivos serviram para a consolidação ao menos institucional da Ciência e
Tecnologia no Brasil, após a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia em
1985. Principalmente o art. 218, conforme retratado anteriormente, destaca essa
necessidade da atuação do Estado andar junto com a questão da inovação, e,
como não poderia deixar de ser, em uma atuação ligada ao setor privado. O
parágrafo único do art. 218, trazido por meio da emenda constitucional n. 85 de
2015, assevera e comprova essa realidade.
Não é demais enfocar que o art. 3º ressaltado, ao explicitar a busca do
desenvolvimento equilibrado pelo Estado, deve atuar na busca de uma
transformação das atuais estruturas, dever esse a ser preenchido pela
Administração Pública.
A esfera privada pode contribuir com isso, mas é de suma importância o
Estado atuar como norte no processo, já que é sua função primária buscar o
desenvolvimento nacional equilibrado. Sem se esquecer, obviamente, de
fomentar medidas no sentido de impedir o desperdício do gasto público apenas
com lucros auferíveis pela iniciativa privada, em que a sociedade não obtém
retorno. Essa é uma precaução que não pode nunca ser afastada para a devida
concreção constitucional. Pesquisas em tecnologia e inovação são úteis se
beneficiam a esfera privada e o consumidor em si, mas é mais útil ainda caso se
beneficie a sociedade como um todo em termos de proporcionar o
desenvolvimento. Diante da atuação constatada do setor público na questão
tecnológica, conforme enfocado no presente artigo, sua atuação sim pode ser
direcionada nesse posicionamento, e em um ponto crucial, referente a
dependência tecnológica, entrave para a efetiva superação do desenvolvimento.
502

Cabe a devida integração nacional no processo. Cumpre integrar tanto


em termos políticos, como sociais e econômicos. Uma política nacional de
desenvolvimento passa pela atuação coordenadora do Estado, ainda mais
diante de um modelo de economia globalizada.
Os objetivos estatais estão delimitados, a Constituição Federal faz essa
previsão. Portanto, cumpre realmente a Administração Pública incorporar o
estabelecido, buscando a devida integração regional das esferas políticas
nacionais, reduzindo-se as mazelas dos menos afortunados, com o consequente
equilíbrio na análise comparativa com as regiões mais prósperas (BERCOVICI,
2005, p. 67).
E, nesse interim, o processo tecnológico e de inovação pode assumir
ponto crucial, equalizando e superando diferenças, assumindo caráter
instrumental para fins maiores. A chamada tripla hélice, conhecida pelos atores
principais envolvidos na questão aqui retratada (academia, governo e setor
privado), deve atuar de forma complementar e incisiva, com vistas a possibilitar
o escopo constitucional e da própria sociedade, condizente com a superação do
subdesenvolvimento (BERCOVICI; SIQUEIRA NETO, 2013, p. 28-29).
Alavancando economicamente regiões menos privilegiadas, e fortalecendo-se
igualmente as unidades da federação, ampliando o leque de oportunidades
oferecidas à Administração Pública para o atingimento dos fins e objetivos
constitucionais propugnados.
Por conclusão, o capítulo IV da Constituição, atinente à Ciência,
Tecnologia e Inovação, precisa ser observado. Mormente no art. 218, há a
preocupação com o desenvolvimento científico, a pesquisa tecnológica e a
capacitação tecnológica. Aliás, a própria pesquisa assume duas faces distintas:
a pesquisa científica básica e a pesquisa tecnológica.
O principal documento jurídico pátrio, em seu capitulo atinente à Ciência
e Tecnologia reconhece essa necessidade. Cabe agora ao Poder Público atuar
na sua efetiva concretização.

CONCLUSÃO

A pesquisa em tecnologia e desenvolvimento se revela um fator


importante não só para desenvolvimento da sociedade como um todo, mas para
o desenvolvimento de um próprio país. A Constituição Federal reconhece esse
cenário.
Tem se atribuído, na maioria das ocasiões, ao setor privado, o caráter de
preponderância e pioneirismo nos investimentos relativos a P&D. Não obstante,
muitos argumentos têm sido ignorados nessa discussão, e merecem a devida
ponderação.
Os atores privados, conforme discutido, buscam resultados a curto prazo,
diferentemente do setor público, que admite maiores investimentos e paciência
nos estágios iniciais de pesquisa, até ulteriores avanços na técnica.
Mesmo que, muitas vezes, esses investimentos tenham única e
exclusivamente um viés militar, acabam proporcionando gastos plausíveis para
a sociedade, e especificamente para a iniciativa privada. O caso retratado da
Apple elucida esse ponto.
Mesmo com esse aproveitamento pela iniciativa privada, esse surfar na
onda dos investimentos públicos (utilizando-se uma terminologia adotada por
Mariana Mazzucato), essa atuação pública mais progressista e com uma base
503

maior para o futuro, pode servir de sustentáculo para o desenvolvimento de um


país.
Com efeito, a dependência tecnológica se revela um entrave para a
superação do subdesenvolvimento. A Constituição encarna essa assertiva, mas,
para sua concretização, necessário o poder Público e o próprio consenso social
optarem por levantar as bandeiras do projeto nacional de desenvolvimento. A
Constituição confunde-se com este último em termos de concretização.
O mesmo documento jurídico elucida a necessidade de integrar regiões,
reduzindo as desigualdades. Tendo-se como fundante a concepção de que o
Estado atua sim como verdadeiro fomentador de avanços tecnológicos e
científicos capaz, portanto, será de fazer o devido direcionamento dos avanços
em prol do desenvolvimento nacional necessário.
É possível o direcionamento dos recursos setores tecnológicos essenciais
ao desenvolvimento de regiões menos favorecidas. Obtendo êxito os estágios
iniciais de investimento e pesquisa (P&D), o setor privado acompanhará o
restante do processo que logrou um bom funcionamento, e aí o Estado poderá
optar por concluir os seus objetivos jurídicos direcionando finalmente a atividade
privada para não fugir do escopo final, não abandonar o processo antes da sua
conclusão (proporcionar o devido desenvolvimento).
Assim sendo, é possível cumprir o capítulo constitucional da Ordem
Econômica, em que existe a contemplação de um sistema capitalista, marcado
pela operância da livre concorrência, mas com o devido direcionamento e
incentivo pelo setor público àquela atividade desenvolvida, nos termos dos fins
constitucionais: proporcionar o desenvolvimento nacional, o equilíbrio econômico
e social regional, e a conseguinte melhoria da condição cidadã. O
contingenciamento orçamentário governamental nos tempos atuais não pode
ignorar tais assertivas.

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505

O EXERCÍCIO DA CIDADANIA DADO PELAS INFLUÊNCIAS DAS REDES


SOCIAIS NO PROCESSO ELEITORAL.
THE EXERCISE OF CITIZENSHIP GIVEN BY INFLUENCES OF SOCIAL
NETWORKS IN THE ELECTION PROCESS.

Carlos Eduardo Pereira Furlani

Resumo: O trabalho apontará diante das novas tecnologias quais são as


influências junto ao processo eleitoral. Destacar-se-á o desenvolvimento das
redes sociais na atuação direta do eleitor, bem como estas tecnologias de
informação que alteraram profundamente a forma e o modo de atuação dos
possíveis governantes e a participação política destes perante as opiniões
públicas. Tomaremos por base o papel dos agentes políticos praticados nas
redes sociais pela internet com o intuito de propiciarem à sociedade uma maior
ampliação de suas campanhas e divulgação de suas posturas políticas.
Questionar-se-á se a Internet é o meio pelo qual se possibilitou o revigoramento
democracia e o aprimoramento do exercício da cidadania tanto para quem
concorre ao cargo político almejado quanto para quem elege via voto as suas
preferências. Por fim, apontar-se-á o posicionamento de que estas redes sociais
possibilitam ao cidadão, enquanto eleitor, a liberdade necessária para o
exercício da cidadania no processo eleitoral.
Palavra-chave: Tecnologias. Processo Eleitoral. Cidadania.

Abstract: The work will point out to the new technologies what are the influences
on the electoral process. It will be highlighted the development of social networks
in the direct action of the voter, as well as these information technologies that
profoundly altered the form and mode of action of potential rulers and their
political participation before public opinion. We will base on the role of political
agents practiced in social networks through the Internet in order to provide society
with a greater expansion of their campaigns and dissemination of their political
attitudes. It will be questioned whether the Internet is the means by which the
reinvigoration of democracy and the enhancement of the exercise of citizenship
has been made possible, both for those who run for the desired political office
and for those who vote their preferences. Finally, it will be pointed out the position
that these social networks allow citizens, as voters, the necessary freedom to
exercise citizenship in the electoral process.
Keyword: Technologies. Electoral process. Citizenship.

1. INTRODUÇÃO

As mudanças sociais e culturais materiais nas sociedades atuais tem


propiciado o imbricamento entre sociedade e tecnologia, transformando a
comunicação e seus fenômenos em atos praticados pelos cidadãos na
contemporaneidade, mediante o suporte digital (tela), especialmente, diante dos
processos eleitorais. A tecnologia passou a se apresentar como um âmbito em
que ocorrem atividades humanas, de modo virtualizado, e não como algo externo
ou alheio à sociedade (CASTELLS, 2012).
Assim, com o advento das tecnologias e com ela a internet, permitiu-se
que os cidadãos minimamente interessados nos acontecimentos do mundo
506

pudessem ter acesso a uma verdadeira divulgação das questões sociais,


culturais e, sobretudo, nas questões políticas.
Os novos processos eleitorais ganharam uma nova configuração a partir
dos efeitos e dos usos das redes sociais propiciados pela internet, o que
promoveu claras e determinantes mudanças nesta comunicação política, bem
como nas instituições da democracia representativa, sobretudo, nos processos
eleitorais.

2. DESENVOLVIMENTO

2.2. Democracia, campanhas eleitorais e novas mídias

2.2.1. Democracia

Nas palavras de Castanho (2014, p. 23):

Democracia é poder do povo, que é o detentor supremo do poder,


participando do processo político diretamente ou por meio de eleições,
nas quais ele elege candidatos e partidos que o representarão no
parlamento e que atuarão em prol de seus interesses na formação de
uma sociedade livre e justa, com respeito aos direitos fundamentais.

Para ilustrar as presentes definições do processo democrático será


analisado o posicionamento de autores doutrinários que fizeram suas
contribuições para o bom funcionamento democrático, enriquecendo o debate
sobre o tema e promovendo a consolidação da democracia pautada no voto
depositado nas urnas (CASTANHO, p. 24).
Para Bobbio (1997, p. 19), a democracia é o reino das liberdades. É a
única forma política de organização de poder garantidora da liberdade que exige
ampla participação e autonomia. Na interpretação de Ferreira, (2001, p. 04) é
pacífica na doutrina a noção de que a democracia é uma forma de governo que
se diferencia das demais por apresentar uma maneira plural de exercer o poder
soberano, a partir da relação entre governantes e governados.
Podemos articular tais conjecturas à ideia moderna de democracia como
forma central de organização da vida política tem pouco mais de um século. É
uma ideia predominante nos governos, invocada pelos partidos e pelos políticos
– que são unânimes em ressaltar o caráter democrático das teorias que eles
defendem, “sendo raro o governo, a sociedade ou o Estado que não afirme ser
“democrata” –, mas que também passou por muitos percalços ao longo do século
XX, em particular com as inomináveis consequências trazidas pelos governo
totalitários (CAGGIANO, p. 109).
A síntese desse momento é feita por Caggiano:

Dentre os diferentes – e não muito afastados – conceitos


doutrinários, de qualquer forma, emergem os elementos
liberdade e igualdade a nortear os rumos democráticos
e a sua concretização mediante eleições livres e
competitivas com amplos espaços para oposição. Estes
últimos valores, aliás, por muito tempo sustentaram o
sufrágio universal como a conquista maior da
humanidade.
507

A democracia moderna, pois, é essencial e necessariamente


representativa. Ferreira Filho (1972, p. 18) afirma:

No século XVII, contudo, inventou-se a democracia


indireta ou representativa. Nesta o povo se
governaria na medida em que escolhesse, em
eleições livres, representantes que em seu nome e
lugar deliberassem. [...] a democracia
representativa não só́ foi consagrada pelo
constitucionalismo como ainda é tida, hoje, como o
modelo democrático por excelência.

Assim, no intuito de garantir a participação e a aplicação do sufrágio


universal, a forma do voto, a distribuição do corpo eleitoral, dentre tantas e outras
regras e princípios, que exsurge o Direito Eleitoral. Âmbito jurídico em que
somente pode ser reconhecido a partir do sistema constitucional positivo, nos
termos e limites estabelecidos pelo processo constituinte e pela ordem
democrática nacional se dá a composição das campanhas eleitorais, permitindo
e preservando a escolha do eleitor. Essa liberdade na escolha do representante
é fundamental para a democracia, por ser “[...] a concretização mais vigorosa da
liberdade de manifestação do pensamento.” (RIBEIRO, p. 268).

2.2.2. CAMPANHAS ELEITORAIS E NOVAS MÍDIAS

Nas últimas campanhas eleitorais ficou perceptível a grande mobilização


nas redes sociais, essencialmente, no que concerne aos posicionamentos contra
ou favor dos diversos candidatos que se propuseram a concorrer aos processos
eleitoreiros.
As redes sociais tornaram-se a esperança de alavancar suas intenções
políticas, com o advento de poucos recursos de campanha e com muitos canais
para divulgação via internet para alcançar os seus eleitores.
A grande questão que se instaura é se estes presentes e atuais processos
eleitorais virtuais consagrariam os candidatos com mais engajamento junto ao
mundo digital? Além disso, também podemos questionar: qual é a eficácia e
alcance de uma campanha eleitoral nas redes sociais ou, de forma geral, em
redes sociais e sites da internet? e qual é a real penetração e a real taxa de
conversão desse eleitor em voto?
No que tange as dimensões continentais como a do Brasil, há uma
diferença brutal na entrega de uma campanha digital em um comparativo com
as de alcance televisivo e do rádio em âmbito nacional, por um simples fator: a
infraestrutura precária das telecomunicações, essencialmente quanto ao acesso
a internet e as redes sociais, embora seu crescimento a cada dia seja
estrondoso.
Em que pese ao primeiro questionamento de engajamento dos candidatos
junto ao mundo digital, compreende-se que o ponto central é a exorbitante
capacidade de divulgações das redes sociais a das operadoras de internet
entregarem ao eleitor, assertivamente, a comunicação de um candidato, seus
posicionamentos, suas campanhas e sua definitiva intenção, quase que em
tempo real.
Outro ponto importante, no qual se faz menção é a eficácia e alcance das
campanhas eleitorais na era digital. Mensurar tal questionamento se faz
508

necessário refletir como realizar as formas de se medir esse alcance, bem como
qual o retorno de uma campanha junto ao leitor essencialmente digital, pois,
como ainda são muito novas, e pouco testadas e, não raro, falham em suas
previsões, pode-se levar a conclusões/rumos distorcidos nas campanhas dos
candidatos que atuam diretamente e unicamente vinculados a esta eixo no
processo eleitoral. Há um risco considerável de achar que a campanha foi bem-
sucedida, quando, na realidade, pouco engajou o eleitor.
Por fim, como o cerne e objetivo central dos candidatos é o
questionamento de qual a real incidência das redes sociais no voto do eleitor, o
que analisaremos se é ou não possível para o êxito de qualquer candidato! Em
resposta à conjunta dada para os três questionamentos se faz necessário
esclarecer que as redes sociais são quase que unânimes quanto ao seu
crescimento e utilização pelos inúmeros atores no processo eleitoral.
Deste modo, se faz necessário esclarecer que as emissoras de TV e o
Rádio, ainda, por possuir uma melhor infraestrutura de mercado e eficiência,
ainda são meios cruciais para a definição das eleições futuras. Além de mídias
históricas, cuja mensuração já foi testada e comprovada nestes últimos pleito de
2002 para cá, o alcance nacional destas novas mídias (redes e Instagram via
internet) ainda é pequeno, mesmo que com mais rapidez, as Tvs e Rádios, por
sua infraestrutura ainda enquadra-se como, mesmo com a ascensão da internet
na preferência da população.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há que se ponderar sobre as novas tecnologias, notadamente, da


Internet, que as mesmas representam o futuro da cidadania, sobre as esferas
políticas e jurídicas aplicáveis a sociedade civil, podendo está ser interpretada
de diversas formas. Podemos apontar estas formas como uma de ordem
positiva, o que significa a utilização de cunho autêntico, democrático e ético pelas
ferramentas no incentivo à participação política, que, em um última instância,
resultaria em uma participação com vocação planetária.
Em contrapartida, podemos apontar a forma negativa, a qual trata do
cidadãos como meros sujeitos passivos, manipulados pelos poderes público e
privado. Neste sentido, aponta Alessandra Aldé, do site (SERPRO, 2018) onde
avalia que a internet é um espaço rico de informações políticas, mas alerta que
é preciso saber pesquisar. “A internet não obriga ninguém a ser diferente do que
é. Não é o fato de você ter acesso a uma tecnologia que faz com o uso dela seja,
necessariamente, transformador”, conclui.
Ela destaca ainda que o mais importante que a web traz para essa
geração é a oportunidade de acesso. “A internet é uma tecnologia democrática,
as pessoas que antes tinham interesse em descobrir informações e não tinham
meios viáveis têm essa possibilidade hoje e podem fazer bom uso”, afirma.
Por derradeiro, insta destacar o que muito fora discutido e pesquisado nos
últimos processos eleitorais, onde o resultado foi, conforme trás o site da
(Agencia Brasil, 2018) que pesquisadores e analistas ouvidos destacaram a
relevância e a influência, nas eleições presidenciais do último ano no Brasil em
2018, fundamentando-se essencialmente pela disseminação de notícias falsas
(ou fake news, no termo em inglês popularizado no Brasil) pelas redes sociais.
Reforça-se ainda a presente assertiva do site de notícias, segundo os
consultores em direitos digitais que atuou no Conselho Consultivo do TSE sobre
509

Internet e Eleições, Danilo Doneda, as redes sociais e a disseminação de


notícias falsas tiveram maior relevância do que se esperava. “Alguns indicativos
são o volume de material que pode ser classificado como desinformação, que foi
extremamente relevante”, avalia.
O poder político deriva da sociedade civil. O povo possui direitos políticos
efetivos e deve conhecê-los e saber usá-los, para que ocorram avanços na
sociedade. Um governo democrático tem que respeitar os cidadãos e neles fazer
despertar a consciência de que eles possuem o poder. Deve-se resgatar o
sentido de povo como elemento constitutivo do Estado, e não um objeto de suas
ações ou um ser passivo que acata suas ordens e reformas sem protestar.
Urge que a sociedade civil e o seu povo, constituído pelos cidadãos,
busque uma ressignificação, para além de sua concepção clássica, agindo e se
organizando para conquistar a inclusão e o respeito aos direitos fundamentais.
Governar democraticamente é organizar a maneira de repartir o poder com os
cidadãos e fazer a todos corresponsáveis pela tomada de decisões que busquem
a satisfação das necessidades coletivas. Democracia, não é simplesmente um
sistema político, mas um modo de conviver socialmente, resolvendo os conflitos
de forma pacífica.

4. BIBLIOGRAFIA

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Merlin Clève, Luís Roberto Barroso organizadores. São Paulo: Editora dos
Tribunais, 2011.
512

O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA AO DIREITO: IMPACTOS


DO PROJETO VICTOR
THE USE OF ARTIFICIAL INTELLIGENTE IN THE JURIDICAL FIELD:
IMPACTS OF THE VICTOR PROJECT

Maria Fernanda Machado Bizzo


Gabriela Rangel Aguiar

Resumo: O presente resumo expandido tem como objetivo analisar como a


inteligência artificial tem sido implementada na área jurídica. Esse sistema é
implementado em outros países, como a ferramenta COMPASS nos Estados
Unidos. Contudo, em âmbito nacional, a principal ferramenta a ser discutida é a
denominada VICTOR, adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Diante de
tamanha proporção que se tem alcançado com a inteligência artificial,
implementando-as em todas as áreas, é comum que se tenha receio sobre seus
impactos no mundo jurídico e na aplicação constitucional dos direitos humanos.
Por essa razão, a análise busca observar os benefícios e os malefícios dessa
nova tecnologia.
Palavras-chave: Inteligência Artificial. Projeto VICTOR. Direito e Tecnologia.

Abstract: The following research aims to analyze how artificial intelligence has
been implemented in the juridical field. This system is used in another countries,
such as the United States, with the tool named COMPASS. However, in Brazil,
the main artificial intelligence tool to be discussed is named VICTOR,
implemented by the Supreme Federal Court. Since it has taken huge proportions,
impacting all areas, some concerns lie on its effects on the law and its
fundamental principles. Therefore, this research seeks to expose the positive and
negative effects of this new technology, whether it came to help or to mess up
the system.
Keywords: Artificial Intelligence. VICTOR project. Law and Technology.

INTRODUÇÃO

A pesquisa que se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-


sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação
de Witker e Gustin, o tipo jurídico-analítico. O raciocínio desenvolvido na
pesquisa será predominantemente dialético. Utiliza-se como marco teórico o
artigo de Mamede Said Maia Filho e Tainá Aguiar Junquilho, intitulado de
“Projeto Victor: perspectivas de aplicação da inteligência artificial ao direito”.
Ademais, faz-se uso de notícias jornalísticas como fontes secundárias.
O tema da inteligência artificial tem sido cada vez mais discutido no âmbito
acadêmico, pois sobre sua utilização recaem muitas expectativas sobre um
futuro que todos consideravam distante, entretanto, que já se encontra entre nós.
Sobre sua utilização, existem muitos questionamentos que deixam vários
especialistas ainda receosos sobre como esse tipo de tecnologia pode afetar
mais ainda a vida do ser humano, em todas as áreas possíveis.
O conceito “inteligência artificial’’ foi originalmente definido pelo cientista
John McCarthy, como “a ciência e engenharia de produzir máquinas
inteligentes”. Atualmente, a inteligência artificial utiliza de códigos programados
para executarem funções de forma parecida ao raciocínio humano, com alto grau
513

de eficiência e rapidez. Essa característica condiz com o que o mundo


contemporâneo demanda.
A partir da Terceira Revolução Industrial, o mundo e o mercado estão
sempre pressionando o ser humano, já que exige mais rapidez para a execução
das tarefas, o que é uma consequência das mudanças que ocorrem em questão
de horas. Há sempre um bombardeio de novidades diariamente, pela
possibilidade de maior circulação de informações e mudanças, o que mudou as
relações sociais. O tempo e a distância diminuíram. De acordo com alguns
especialistas, atualmente vivemos no mundo após a Quarta Revolução Industrial
ou Indústria 4.0., conceito desenvolvido pelo alemão Klaus Schwab, diretor e
fundador do Fórum Econômico Mundial.
Assim, ao demandar cada vez mais rapidez, eficiência, agilidade e
adaptações às mudanças que ocorrem a todo momento, as inteligências
artificiais atendem os requisitos do chamando “mundo 4.0’’, podendo ser definido
como:

um conceito de indústria proposto recentemente e que engloba as


principais inovações tecnológicas dos campos de automação, controle
e tecnologia da informação, aplicadas aos processos de manufatura. A
partir de Sistemas Cyber-Físicos, Internet das Coisas e Internet dos
Serviços, os processos de produção tendem a se tornar cada vez mais
eficientes, autônomos e customizáveis. (2018)

Assim, o Direito, mesmo não sendo uma área ligada diretamente as


tecnologias dessa espécie (como inteligência artificial, robótica e internet das
coisas), é afetado por essa Indústria 4.0, assim como todas as outras áreas. É o
que se pode observar com a implantação de várias dessas tecnologias pelo
mundo, principalmente a partir do ano de 2016, quando houve um aceleramento
da ciência de dados e da inteligência artificial em vários setores.
Podemos citar como exemplos de inteligência artificial no Direito a
plataforma cognitiva Watson, que já são utilizadas em escritórios advocatícios e
teve início nos Estados Unidos. Também tem crescido a criação das chamadas
Law Techs, empresas que prestam um serviço ou desenvolvem um produto de
base tecnológica relacionado ao meio jurídico.
Um dos exemplos mais famosos de utilização da inteligência artificial e
análise de dados no Judiciário é o software COMPASS, implantado pelos
Tribunais dos Estados Unidos que o utilizam para prever quem será um futuro
criminoso. Os programas influenciam todas as decisões judiciais, de fianças a
condenações.
No Brasil, temos como exemplo o Sistema AGU de Inteligência Jurídica
(Sapiens), que iniciou sua implantação em 2014. No Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, o uso da ferramenta Radar possibilitou, com apenas um clique no
computador, um total de 280 processos julgados. Atualmente, a ferramenta de
maior impacto é a utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, denominada de
VICTOR, objeto principal desta pesquisa.

1. O USO DA IA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: PROJETO VICTOR

Após a análise do direito comparado, é necessário percebermos que a


realidade da tecnologia de inteligência artificial nos processos judiciais não está
longe dos brasileiros: a ministra Carmen Lúcia anunciou, no dia 30 de agosto de
514

2018, que o projeto VICTOR já está em funcionamento. Esse projeto foi


desenvolvido em parceria com a Universidade de Brasília, por vários
profissionais e estudantes altamente qualificados.
O projeto recebe esse nome em homenagem à Victor Nunes Leal, que foi
ministro do Supremo Tribunal Federal por 39 anos. O ministro foi responsável
pela sistematização da jurisprudência do tribunal, facilitando a aplicação dos
precedentes judiciais aos recursos. Inicialmente, este é o trabalho de VICTOR:
converter imagens em textos, identificar teses de repercussão geral, separar o
começo e fim de um documento, separar e classificar as peças processuais.
De acordo com o próprio Supremo, o projeto irá aumentar o nível de
precisão da triagem para 95% (atualmente a precisão é de 84%). Assim, a IA é
capaz de economizar horas de trabalho de servidores públicos, tendo em vista
que, por exemplo, a conversão de imagem em texto, feita por um servidor,
demora 3 horas para ser realizada, enquanto o projeto é capaz de fazê-lo em 3
segundos. Ademais, com a identificação das teses de repercussão geral, a nova
tecnologia será capaz de reduzir o tempo de julgamento de em recurso em mais
ou menos dois anos.
Logo, preza-se pela economia processual e pela razoável duração do
processo. Entretanto, felizmente, ainda não é possível falar em substituição do
servidor público pela máquina, eis que o trabalho da inteligência artificial,
inicialmente, é apenas realizar tarefas burocráticas. Dessa forma, a tecnologia
surge, realmente, para solucionar um imbróglio de toda a justiça brasileira: a
mora excessiva. De acordo com a Ministra Carmen Lúcia (2019),

[...] para classificar e analisar os cerca de 42 mil processos que


chegaram ao STF no primeiro semestre, seriam necessárias quase 22
mil horas de trabalho de servidores e estagiários. Lembrou, ainda, que
o tempo que os servidores dedicavam a essas tarefas de classificação,
organização e digitalização dos processos será transferido para etapas
mais complexas do processamento judicial.

Necessário ressaltar, então, que neste primeiro momento a tecnologia


não deve ser temida. Na verdade, é extremamente necessária:

O objetivo do projeto não é que o algoritmo tome a decisão final acerca


da repercussão geral, mas sim que, com as máquinas “treinadas” para
atuar em camadas de organização dos processos, os responsáveis
pela análise dos recursos possam identificar os temas relacionados de
forma mais clara e consistente (STF, 2018). Isso vai gerar, em
consequência, mais qualidade e velocidade ao trabalho de avaliação
judicial, com a redução das tarefas de classificação, organização e
digitalização de processos. (MAIA FILHO; JUNQUILHO, 2018).

Todavia, não se pode olvidar de que a tecnologia continuará evoluindo,


trazendo cada vez mais novas funcionalidades que podem ensejar prejuízos.
Isso é possível pelo acesso aos precedentes que a inteligência artificial possui.
Assim, deve-se pensar nas questões e problemas que o projeto poderá trazer.
Para o VICTOR identificar a tese de repercussão geral, é necessário que
seja alimentado com todos os precedentes do tribunal, para que possa
enquadrar aquele recurso em alguma tese existente ou identificar demandas
semelhantes. Isso trará muita celeridade ao processo, eis que torna mais fácil e
rápida a elaboração de súmulas (a partir da identificação de demandas
repetitivas), diminuindo, consequentemente, a quantidade de processos que
515

chegam aos tribunais superiores, em vista de que já se terá, prontamente, um


enunciado capaz de resolver o problema.
Contudo, o problema pode surgir a partir de várias perspectivas.
Conforme relata o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal:

quatro áreas que têm levantado questionamentos de natureza ética-


jurídica: (i) a responsabilidade civil por atos autônomos de máquinas;
(ii) a proteção de Direitos Autorais e a produção de obras por
máquinas; (iii) a noção de devido processo legal e de isonomia perante
possíveis vieses algorítmicos; (iv) o direito à privacidade e a utilização
de dados pessoais por sistemas de Inteligência Artificial. (2019)

Faz-se mister analisar a questão da isonomia, tendo em vista os


problemas anteriormente apresentados a respeito das decisões tomadas. Ao
enquadras os temas na repercussão geral, seria possível que o VICTOR
sugerisse aos tribunais de instâncias inferiores como decidir, baseando-se nos
precedentes do Supremo. Contudo, as estatísticas podem acabar produzindo um
julgamento errôneo, eis que o precedente nem sempre será aplicável e a
máquina não é capaz de ter esse discernimento:

Em face de os vieses se apresentarem como uma característica


intrínseca do pensar humano, pode-se concluir, de igual modo, que um
algoritmo criado por seres humanos enviesados provavelmente
padecerá do mesmo 'mal', não de forma proposital, mas em
decorrência das informações fornecidas ao sistema. Dessa maneira,
surgem os chamados vieses algorítmicos, que ocorrem quando as
máquinas se comportam de modos que refletem os valores humanos
implícitos envolvidos na programação, então, enviesando os
resultados obtidos. (2019)

No que tange à proteção de dados, o Brasil já promulgou a lei


13.709/2018, que ainda não entrou totalmente em vigor. Há que se atentar para
essa questão, eis que o comércio de dados é o petróleo do século XXI e seria
certamente lucrativo ter acesso às demandas que o indivíduo enfrenta perante à
justiça brasileira. Contudo, a maior preocupação hodierna é no que diz respeito
às decisões e estatísticas nas teses de repercussão geral.
Assim, como no Brasil existe, estatisticamente, maior condenação de
negros e pessoas de baixa renda, como seria possível impedir a disseminação
desses estereótipos condenatórios quando um robô é o responsável por ler
esses dados e enquadrá-los ou não como teses de repercussão geral?
Sugerindo, de acordo com os precedentes condenatórios, uma nova
condenação baseada puramente em estatística?
A resposta para esta questão se encontra, exatamente, no que diz
respeito aos responsáveis por programar a inteligência artificial. Não se pode
olvidar, por fim, de que os humanos programam as máquinas. Dessa forma,
possuindo um dever de cautela ao programar a inteligência artificial, atentando
para eventuais estatísticas erroneamente condenatórias, e restringindo-se a
aplicação do VICTOR a tarefas meramente burocráticas, é possível prevenir o
ferimento de direitos fundamentais e princípios processuais, como a isonomia.
Essa cautela é necessária, haja vista a previsão de que a IA seja utilizada
também por outros tribunais, como o Superior Tribunal de Justiça. Consoante
conclui Fux,
516

Cumpre ressaltar, entretanto, que a máquina não decide, tampouco


julga. Afinal, isso é atividade humana. Em verdade, o objetivo do
projeto é que as máquinas treinadas atuem em camadas de
organização dos processos auxiliando com que os responsáveis pela
análise dos recursos possam identificar os temas relacionados de
forma mais clara e consistente, isto é, o intuito é auxiliar e não substituir
os servidores. (2019)

CONCLUSÃO

Assim, inicialmente, pela pesquisa anteriormente apresentada, é possível


concluir que a inteligência artificial VICTOR está sendo de grande auxílio ao
judiciário brasileiro. É responsável por aumentar a celeridade dos julgamentos,
viabilizando o princípio da duração razoável do processo de forma significativa.
É também capaz de reduzir o trabalho do servidor, quando realiza a conversão
de imagens para textos, para que o agente público possa focar em atividades
que exigem mais da cognição que é própria ao humano.
Contudo, no que tange a classificação de teses como sendo de
repercussão geral e ao armazenamento de dados, é necessário atentar para
uma programação certeira, que visará impedir eventuais abusos, como os
decorrentes de estatísticas que possam ferir o princípio da isonomia, e também
resguardar a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/2018).
Dessa forma, será necessário aumentar a produtividade do judiciário
brasileira, em tantas instâncias quanto forem possíveis, enquanto se resguarda
a própria Constituição e os direitos humanos. Frise-se, por fim, que a era da
tecnologia aplicada ao Direito é inerente ao nosso século, restando aos
julgadores garantirem a humanidade e constitucionalidade da aplicação dessas
novas tecnologias.

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FUX MOSTRA BENEFÍCIOS E QUESTIONAMENTOS DA INTELIGÊNCIA


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517

%2C%20ou, por%20diversos%20te%C3%B3ricos%20da%20%C3%A1rea>.
Acesso em: 5 set. 2019.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO DIREITO: TUDO O QUE VOCÊ PRECISA


SABER. Juris Correspondente. 12 dez. 2018. Disponível em:
<https://blog.juriscorrespondente.com.br/inteligencia-artificial-no-direito-tudo-
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MAIA FILHO, Mamede Said; JUNQUILHO, Tainá Aguiar. Projeto Victor:


perspectivas de aplicação da inteligência artificial ao direito. Revista de
Direitos e Garantias Fundamentais. v. 19, n. 3, 2018. Disponível em:
<http://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/1587>. Acesso
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SILVEIRA, Cristiano Bertulucci. O Que é Indústria 4.0 e Como Ela Vai


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WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis em derecho: pautas


metodológicas y técnicas para el estudiante o investigador del derecho.
Madrid: Civitas, 1985.
518

OS IMPACTOS DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E O DIREITO À


PRIVACIDADE
THE IMPACTS OF THE PROTECTION LAW AND THER RIGHT TO PRIVACY

Luciano Ehlke Rodrigues


Rodrigo Thomazinho Comar

Resumo: O objetivo deste resumo é o de traçar um breve panorama a respeito


da Lei 13.709/2018 e os possíveis impactos desta no direito à privacidade. A
metodologia eleita seguirá o critério dedutivo partindo-se de uma premissa maior
que se enastra com o Direito à privacidade para investigar em que medida o
tratamento de dados violará o sagrado direito à privacidade.
Palavras-chave: Sociedade da Informação. Direitos fundamentais. Proteção de
dados pessoais.

Abstract: The purpose of this summary is to provide a brief overview of Law


13.708/2018 and its possible impacts on the right to privacy. The chosen
methodology will follow the deductive criterion based on a larger premise based
on the Right to Privacy to investigate the extent to wich data processing will
violate the sacred right to privacy.
Keywords: Information Society. Fundamental rights. Protection of personal data.

INTRODUÇÃO

Desde os anos de 1990 a raça humana vive na Sociedade da Informação


preconizada por Castells (1998). Antes dos computadores de mesa, os humanos
utilizavam-se das máquinas de escrever, das cartas e do telefone. Contudo,
acompanhamos a rápida evolução dos algoritmos e o mundo viu-se
interconectado por meio da web. Ora, se antes o costume era enviar uma carta
para um amigo ou ente familiar, hoje a velocidade das informações é instantânea
e, simplesmente, enviamos um “whatsApp” e respondemos com a mesma
sincronia. Ocorre que milhões de seres humanos não vivem mais sem estarem
conectados o tempo todo. Em razão disso, na medida em que trocamos
informações, mensagens, e-mail´s, isto se processa por meio de dados que, por
sua vez, deixam “rastros”. Para que exista uma proteção ou um controle daquilo
que vai para a “web” é que foi editada a Lei 13.709/2018, também conhecida
como Lei Geral de Proteção de Dados, que entrará em vigor somente em
fevereiro de 2020. A finalidade do presente estudo é investigar em que medida
o tratamento de dados gerará impactos no direito à privacidade erigido a Direito
Fundamental conforme art. 5º, X, da Constituição da República Federativa do
Brasil. Para tal desiderato, utilizar-se da coleta de dados em artigos científicos
através de revisão bibliográfica.

METODOLOGIA

Investigação sobre os possíveis impactos da Lei Geral de Proteção de


Dados no Direito em caso de violação ao Direito à Privacidade, por meio da
utilização de pesquisa bibliográfica.

DESENVOLVIMENTO
519

O tratamento de dados pessoais merece especial atenção após o advento


da Lei 13.709/2018, que entrará em vigor em fevereiro/2020, porquanto trará
profundas alterações na forma como tal prática vem sendo adotada no Brasil.
Todo este arcabouço normativo exigirá de seus destinatários uma série de
cautelas e procedimentos a serem adotados com vistas à real observância e
cumprimento com os ditames do espírito da norma. Ato contínuo, mister se faz
ressaltar que, em caso de descumprimento, o que equivale a dizer que, quando
houver vazamento de dados sem o consentimento do titular dos dados, por certo
que o artigo 1º1 já preconiza que o objetivo da norma é de proteger os direitos
fundamentais à privacidade, entre outros. BIONI (2018) já incursionou com
maestria no instigante tema afeito à proteção de dados esquadrinhando o
princípio do consentimento como o vetor autorizador para que ocorra o
tratamento de dados pessoais dos usuários. O efeito prático da norma é de evitar
que os dados pessoais dos usuários trafeguem pela web sem que o titular
desses dados tenha manifestado sua vontade de que isto ocorra, bem como
quais dados estariam autorizados a ser tratados. Na mesma linha de raciocínio,
a proteção conferida aos seres humanos é o direito à privacidade, ou seja, o
direito de não ser exposto ou importunado sem a sua vontade. Ana Frazão
(2018) tem divulgado uma série de artigos2 acerca da Lei Geral de Proteção de
Dados, cabendo destacar que:

Passando para o exame do texto da lei, a primeira observação


importante é que fica claro que o regime de proteção de dados não tem
por finalidade apenas a de tutelar a privacidade dos usuários. A própria
lei menciona, logo em seu art. 1º, que o seu objetivo diz respeito a
proteger “os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o
livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Em
seguida, a lei disciplina, em seu art. 2º, os seus fundamentos, os quais
são, além da privacidade, a autodeterminação informativa; a liberdade
de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; a
inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; o
desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; a livre
iniciativa; a livre concorrência e a defesa do consumidor; os direitos
humanos; o livre desenvolvimento da personalidade; a dignidade e o
exercício da cidadania pelas pessoas naturais. Ao se referir
expressamente ao livre desenvolvimento da personalidade, à
cidadania e à dignidade, a lei certamente procura evitar muitas das
destinações atuais que vêm sendo conferidas aos dados pessoais, os
quais, processados por algoritmos, são capazes de fazer diagnósticos
e classificações dos usuários que, por sua vez, podem ser utilizados
para limitar suas possibilidades de vida. Mais do que isso, a partir de
tais dados, as empresas podem discriminar usuários ou mesmo tentar
manipular suas opiniões, crenças ou valores em vários âmbitos,
inclusive o político.

1 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por
pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger
os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da
personalidade da pessoa natural.
Parágrafo único. As normas gerais contidas nesta Lei são de interesse nacional e devem ser
observadas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. (Incluído pela Lei nº 13.853, de
2019)
2https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/nova-lgpd-

principais-repercussoes-para-a-atividade-empresarial-29082018 acesso em 02.abr.2019


520

Partindo-se dessas premissas, podemos obtemperar que a intenção do


legislador foi a de enaltecer e conferir proteção aos direitos fundamentais
concernentes à liberdade e privacidade do usuário-cidadão no que se refere a
divulgação de dados pessoais. A violação ao comando normativo implicará em
evidente desvirtuamento do direito à privacidade e, em consequência, o
arbitramento de multa a cargo da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de
Dados), o que revela maior cautela no tratamento dessas informações,
porquanto poderá interferir até mesmo na sustentabilidade das Empresas sob a
perspectiva econômica. Ao tratar do tema específico do tratamento de dados
pessoais, FERNANDES (2017, p. 386) preconiza que:

Fica o responsável pelo tratamento comunicar a cada destinatário a


quem os dados pessoais tenham sido transmitidos qualquer retificação
ou apagamento dos dados pessoais ou limitação do tratamento a que
se tenha procedido em conformidade com os artigos 16º, 17º, 17(1) e
o 18º, salvo se tal comunicação se revelar impossível ou implicar um
esforço desproporcionado. Se o titular dos dados solicitá-lo, o
responsável pelo tratamento fornece-lhe informações sobre os
referidos destinatários. Tal posicionamento explicita que o manuseio
dos dados pessoais de cada indivíduo, sem sua anuência, se
caracteriza como uma violação de seu direito fundamental a intimidade.

Cabe destacar o notório caso envolvendo a Cambridge Analítica que


ganhou notoriedade mundial quanto ao risco de vazamento e manipulação de
dados de eleitores norte-americanos nas últimas eleições. Ao que revela a
pesquisa, para FERNANDES (2017), os dados podem ser referenciados como a
nova commodity, o que enseja profunda reflexão não somente da comunidade
acadêmica, mas também de todos os seres humanos no sentido de que os dados
pessoais dos usuários merecem uma efetiva proteção e atenção.

CONCLUSÃO

A pesquisa realizada demonstrou que o tema afeito à nova Lei Geral de


Proteção de Dados e os possíveis impactos ao Direito à Privacidade como um
Direito Fundamental merecem profundas reflexões por parte de cada um dos
usuários da internet e das redes sociais, no sentido de que devemos todos
estarmos atentos quando o assunto referir-se ao tratamento de dados pessoais
sem que os responsáveis pelo tratamento desses dados apresentem a
justificativa prévia da necessidade de tal procedimento. Caso isso não ocorra,
por certo que poderá ensejar em violação ao Direito à Privacidade, ensejando,
por esse modo, a consequente reparação de ordem moral, sem prejuízo da
aplicação de multa a cargo da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de
Dados), como instrumentos efetivadores do Direito Fundamental à Privacidade
de cada ser humano.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
521

FERNANDES, David Augusto. Dados pessoais: uma nova commodity, ligados


ao direito a intimidade e a dignidade da pessoa humana. Revista Jurídica
Unicuritiba, vol. 04, n.º 49, Curitiba, 2017. pp. 360-392.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã/ Yuval
Noah Harari; tradução Paulo Geiser. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.

NASCIMENTO, Valéria Ribas do Direitos fundamentais da personalidade na


era da sociedade da informação. Transversalidade da tutela à privacidade.
Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p265.pdf Acesso
em 08. Set. 2019.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Mpv/mpv869.htm#art1 (MP criando a ANPD vinculada à Presidência
da República. Acesso em 20. abr.2019
522

Grupo de Trabalho:

DIREITO INTERNACIONAL
Trabalhos publicados:

A CONVENÇÃO DE MONTREAL E AS TEORIAS DE APLICAÇÃO DO DIREITO


INTERNACINAL

A MISSÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ESTABILIZAÇÃO NO HAITI E O


NÃO RECONHECIMENTO DOS HAITIANOS COMO REFUGIADOS NA
IMIGRAÇÃO PARA O BRASIL

A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS REFUGIADOS AMBIENTAIS À LUZ DA NOVA


LEI BRASILEIRA DE MIGRAÇÃO

AS MEDIDAS DE PROCESSOS E MÉTODOS DE PRODUÇÃO (PMPS) NO


COMÉRCIO INTERNACIONAL COMO POLÍTICA PÚBLICA PARA A
PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

"CASO GOMES LUND VERSUS BRASIL: UMA ANÁLISE DA JUSTIÇA


DE TRANSIÇÃO E DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL BRASILEIRA."

CATÁSTROFE SOCIOAMBIENTAL: TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E


ROMPIMENTO DE BARRAGENS DE MINERAÇÃO

O TRATAMENTO JURÍDICO INTERNACIONAL DAS PESSOAS COM


TRANSTORNOS MENTAIS ENCARCERADAS E SUA APLICAÇÃO NO BRASIL

ROTA DE INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA E DIREITOS HUMANOS: UMA


ABORDAGEM NECESSÁRIA
523

A CONVENÇÃO DE MONTREAL E AS TEORIAS DE APLICAÇÃO DO


DIREITO INTERNACINAL
MONTREAL CONVENTION AND THEORYS ON THE APPLICATION OF
INTERNATIONAL LAW

Lívia Cristina dos Anjos Barros


Gustavo Santiago Torrecilha Cancio

Resumo: A interação entre sujeitos de ordenamentos jurídicos diferentes


demanda por normatização, seja para unificação de regras ou meios de
resolução de conflitos. Nesse sentido, a Convenção de Montreal estabeleceu
unificação de regras de transporte aéreo internacional visando harmonização
normativa que influem no comércio e também a proteção do consumidor. Com
esse tratado exequível, insurgiu-se a antinomia com o Código de Defesa do
Consumidor. Em 2017, na Corte Suprema, ocorreu o julgamento dos Recursos
ARE 766.618/SP e RE 636.331/RJ para resolução do embaraço da norma
aplicável, restado decidido pela primazia da norma internacional. Com a
abundância de possibilidades de uma norma ser aplicada no mesmo espaço e
tempo, o sistema jurídico é convocado a discutir a coordenação das fontes
normativas. Assim, por meio do método dedutivo bibliográfico, o resumo revisa
algumas das correntes doutrinárias a respeito da aplicabilidade do direito
internacional e relacioná-las ao caso da Convenção de Montreal.
Palavras-chaves: Direito do consumidor. Convenção de Montreal. Direito
Internacional.

Abstract: The interaction between subjects of different legal systems demands


for standardization, either for unification of rules or means of conflict resolution.
Thus, the Montreal Convention established unification of international air
transport rules aiming at harmonizing regulations that influence trade and also
consumer protection. With this enforceable treaty, the antinomy with the
Consumer Protection Code arose. In 2017, in the Supreme Court, Appeals ARE
766.618 / SP and RE 636.331 / RJ were judged to resolve the embarrassment of
the applicable rule, remaining decided by the primacy of the international
standard. With the abundance of possibilities for a standard to be applied in the
same space and time, the legal system is called upon to discuss the coordination
of normative sources. Thus, through the bibliographic deductive method, the
abstract reviews some of the doctrinal currents regarding the applicability of
international law and relates them to the case of the Montreal Convention.
Keywords: Consumer Law. Montreal Convention. International Law.

INTRODUÇÃO

A internacionalização do mundo capitalista, intensificado pela


globalização, provocou aproximação das relações comerciais entre nações,
empresas e indivíduos. Consequentemente, sob o propósito de dirimir conflitos
extraterritoriais, os Estados formam demandas a pautar produção normativa
para eventuais conflitos ou pela necessidade de harmonização. Nesse caminho,
tornou-se abundante a possibilidade de uma norma ser aplicada no mesmo
espaço e tempo que outras. Com tal, o país e seu sistema jurídico é convocado
524

a discutir a coordenação das fontes normativas, sobretudo o impacto da norma


internacional em sede do direito interno.
Em 2017, na Corte Suprema brasileira, ocorreu o julgamento conjunto do
Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 766.618/SP e o Recurso
Extraordinário (RE) 636.331/RJ, que objetivava a determinação da norma
aplicável em um conflito entre o Código de Defesa do Consumidor e a
Convenção de Montreal. Tal julgamento serviu como um paradigma de reflexão
em torno da coordenação de normas internacionais e interna.
O estudo se deu de maneira exploratória e descritiva, percorrendo
bibliografias e documentos comumente mencionados. A análise de obras,
artigos, declarações, convenções internacionais foram indispensáveis para
abordagem dedutivo, a qual iniciou em conceitos gerais até sua particularização.
No intuito de investigar a aplicabilidade da Convenção de Montreal,
apresenta-se ao longo do resumo as teorias nascidas da disciplina do direito
internacional que fundamentam sua aplicação, a teoria monista, dualista e o
conjunto de posições conhecida como pluralista, esta será a primeira abordagem
do trabalho. Em segundo momento, buscará relacionar os fundamentos da
decisão estudada com tais teorias.

AS TEORIAS PARA APLICABILIDADE DA NORMA INTERNACIONAL

O caso da antinomia da Convenção de Montreal e CDC ilustram uma


problemática nascida da inserção do conteúdo de uma lei internacional no
ordenamento interno, por isso, para explorar contribuições teóricas e práticas a
respeito de tal problemática, faz-se necessário estudos das doutrinas clássicas,
modernas e contemporâneas sobre natureza e hierarquia da norma
internacional.
A teoria dualista, apelidada por Alfred von Verdross, em 1914 e também
construída por Carl Heinrich Triepel, em 1899, parte do princípio que o Direito
Internacional e o Direito Interno são sistemas distintos, independentes, não
possuindo inter-relação jurídica, sendo assim, “inconcebível o conflito entre as
duas ordens jurídicas, por estarem em campos separados no momento da sua
aplicação” (MENEZES, 2005, p.178). O direito internacional, assim, não teria
validade interna a não ser que passasse por um processo de internalização.
Para fundamentar que se comportavam em círculos distintos, a doutrina
apresenta que as fontes e destinatários de ambos direitos eram diferentes,
motivo pelo qual nunca se contrariam em contraposição, pois estariam em o
campo de atuação e aplicação diversos. Com relação a fonte do direito
internacional, para a presente corrente, se expressa por meio de vontade coletiva
dos Estados concordantes, e no Direito Interno, a fonte é a vontade imperativa
do Estado sobre os particulares. Quanto ao campo de atuação, o direito
Internacional se presta a regular as relações somente entre os estados
soberanos e exclusivamente no plano internacional, enquanto o Direito interno
criado para regular relações no âmbito dos Estados entre os indivíduos. No que
diz respeitos aos sujeitos, o Estado é sujeito de direito internacional por
excelência e o indivíduo sujeito de direito interno. Enquanto os estados
obedecem ao princípio da coordenação entre os estados soberanos, o direito
interno obedece um sistema de subordinação. Por tais, considera sistemas
incomunicáveis, sem relação de subordinação. Para que a ordem internacional
vigore é necessária transformação para o plano interno.
525

Em seguida, tem-se a teoria monista. Essa teoria tem seu maior expoente
em Hans Kelsen, o qual se opunha as ideais dualistas. Sua teoria entendia que
não havia divisão entre as duas ordens jurídicas, de modo que elas fazem parte
de um único sistema, “não havendo distinção entre as teorias, mas uma relação
hierárquica que subordina um ordenamento a outro. O sistema monista é
baseado na unicidade do sistema jurídico em uma relação jurídica normativa
hierarquizada, na identidade de fontes e também de sujeitos” (MENEZES, 2005,
p. 181).
Por isso é que para a esta teoria, o Direito Internacional se aplica
diretamente na ordem jurídica dos Estados independente de transformação, pois
o sistema uno, baseado na identidade de sujeitos (indivíduos que compõe os
sistemas) e de fontes, para Mazzuoli (2016, p. 103) tais fontes serão sempre
objetivas e não dependentes da vontade dos estados. Seria, por isso, que para
teoria há dois círculos contíguos, harmônicos, sendo o maior o direito
internacional, assim, há assuntos que são jurisdição exclusiva do direito externo,
tal qual a região do círculo menor não o atinge (MAZZUOLI, 2016, p.103). Nesse
passo, em eventual conflito, para Kelsen (2000, p. 527) “O conflito entre uma
norma estabelecida de Direito internacional e uma de Direito nacional é um
conflito entre norma superior e norma inferior. Tais conflitos ocorrem dentro da
ordem jurídica nacional sem que a unidade dessa ordem seja por isso posta em
risco”.
Todavia, nem todos autores seguiram a teoria defendida por Kelsen
maneira fiel a ele, fizeram-se então distinção de preferencias de normas em caso
de conflito entre as normas. Nesse sentido, a teoria monista se bifurca em duas
outras teorias, a monista nacionalista e a monista internacionalista. A primeira
consiste na primazia da norma nacional de cada Estado soberano, onde
considera-se o princípio da supremacia da Constituição. “Para eles, é no Texto
Constitucional que deve ser encontrada as regras relativas á integração e ao
exato grau hierárquico das Normas internacionais (escritas e costumeiras) na
órbita interna”, acrescenta Mazzuoli (2016, p. 105). De modo que o direito
interno, no exercício da sua soberania, é que autoriza o direito internacional. Por
isso, para a corrente, o direito internacional seria mera consequência do direito
interno e adoção do direito externo seria algo discricionário.
Enquanto a teoria Monista primazia do direito internacional, resultado de
um antivoluntarismo – aquela em que os Estados só se vinculam a norma
internacional por mera vontade - conta com apoio de Hans Kelsen, Verdross e
Josef Kunz. Eles sustentam a unicidade da ordem jurídica sob prevalência do
direito internacional, pois representa ordem hierarquicamente superior. Portanto,
a solução para conflito entre as normas é que o ato internacional sempre
prevalece sobre a disposição interna. A ordem jurídica interna deve ceder a favor
da internacional, sendo esta o fundamento de validade, domínio territorial,
pessoal e temporal de validade das ordens internas de cada estado. Para essa
teoria, a consequência lógica de ter normas internas contrárias a norma
internacional é a responsabilização do Estado, a sanção, para manter
predomínio da norma internacional.
Mas, ainda dentro dessa corrente, tem-se a corrente monistas moderada
que nega a norma interna seja derrogada dada inserção da internacional.
Acredita-se, nesta teoria, que o juiz pode aplicar tanto um como a outra norma.
Assim, procede a equiparação hierárquica do tratado a lei ordinária. Em caso de
526

conflito, subordinando-o a Constituição e procedendo aplicação sob os critérios


clássicos de resolução de conflito.
Entretanto, a dicotomia entre dualismo e monismo, em tempos atuais, tem
sido criticada. Armin von Bogdandy (2012, p. 21-40), por exemplo, critica que a
pirâmide do monismo kelseniano perdeu sua utilidade. Assim, ela juntamente
com dualismo, devem ser substituídos pelo pluralismo jurídico. Por isso, a última
teoria aqui apresentada é a do pluralismo de ordens jurídicas, a qual rompe com
essa ideia de separação entre regime jurídico nacionais e internacionais, busca
promover a ideia de que existe uma interação entre os ordenamentos distintos.
Nessa toada, Von Bogdandy (2012, p. 21-40) continua argumentando que
a noção de ordem piramidal das normas não é compatível com as experiências
da diversidade da norma, de tal modo que o pluralismo tem maiores
possibilidades de fornecer conceitos que ajudem compreender como os juristas,
os políticos e os cidadão se desenvolvem e atuam nesse âmbito. Ele defende
“nenhuma constituição é um universo em si mesmo, se não mais um elemento
de um pluriverso normativo”. Além dele, Angela Calixto e Luciani Carvalho (2017,
p. 4) pontuam que ainda:

[...] com advento de uma sociedade globalizada e interdependente e a


consequente formação de um sistema multinível de proteção de
direitos, tornou-se necessária a releitura do conceito de soberania
absoluta do Estado e a crítica sobre a visão direito divido em duas
ordens distintas´[...] (CALIXTO; CARVALHO; 2017, p.4)

Nesse sentido, André de Carvalho Ramos (2012, p. 500) apresenta que o


pluralismo consiste em:

[...] na coexistência de normas e decisões de diferentes matrizes com


ambição de regência do mesmo espaço social, gerando uma série de
consequências relacionadas à convergência ou divergência de
sentidos entre as normas e decisões de origens distintas. As ordens
jurídicas plurais, então, são aquelas que convergem e concorrem na
regência jurídica de um mesmo espaço (a sociedade nacional).

Forma-se, então, um sistema jurídico integrado e cooperativo no cenário


internacional. Como destacado por Queiroz (2009) apud Angela Calixto e Luciani
Carvalho (2017, p. 15), que nessa corrente:

[...] o ordenamento se constrói de forma conjunta e compartilhada, os


ordenamentos se complementam e se harmonizam para o
cumprimento de suas funções constitucionais. Reconhece-se a
coexistência e genuidade de diversas ordens jurídicas concomitantes,
as quais aceitam a legitimidade de outra dentro da sua esfera de
competência sem admitir, entretanto, a superioridade sobre a outra.

Ademais, essa doutrina preconiza que em eventuais conflitos entre as


duas ordens não se resolve com a supremacia de uma pela outra, mas a partir
do diálogo entre as duas fontes do direito e a aplicação da norma que mais
protege o sujeito (AGUIAR, 2014, apud CALIXTO; CARVALHO, 2017, p. 19).
Assim, a doutrina permite a supremacia da norma mais favorável a pessoas, seja
internacional, seja, interna.
Essa inter-relação entre as diversas ordens jurídicas não se dá segundo
um modelo interno/externo, onde cada ordem trataria as outras como externas
527

ao sistema, mas segundo um modelo centro/periferia, ou seja, cada ordem


enxerga as demais como integrantes do mesmo sistema global.
Portanto, o pluralismo jurídico busca eliminar conflitos entre sistemas
internos e internacionais, uma definição trazida Von Bogdandy é que o pluralismo
pode ser considerado como um acoplamento entre ordenamentos jurídicos
(2012). Além disso, ela apresenta uma melhor proposta frente a pluralidade
normativa e a complexidade da sociedade contemporânea, de modo que permite
a flexibilização do direito, permitindo-o rápida adaptação ás mudanças do mundo
globalizado.

A CONVENÇÃO DE MONTREAL E O JULGAMENTO NO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL

O presente trabalho parte do marco jurisprudencial ocorrido em 2017,


trata-se do julgamento do recurso extraordinário com agravo 766.618/SP e o
recurso extraordinário 636.331/RJ, a respeito do conflito entre Convenção de
Montreal e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) diante de uma contenda
de voo internacional. Na ocasião, disputava-se a limitação da indenização dos
danos materiais e a definição do prazo de prescrição, ambos casos a Convenção
se comportava como menos protetiva que o CDC.
No caso estudado, o STF decidiu diversamente aos julgados
antecedentes (antes era pela a aplicação do CDC), passou a aplicar a
Convenção sob o principal fundamento da existência do artigo 178 1 da
Constituição (que consigo traz o princípio da reciprocidade) e do exercício da
pacta sunt servanda. No julgamento, a premissa adotada foi de que amplos
diplomas se comportavam hierarquicamente iguais, isto é, com a paridade
normativa entre o CDC e a norma internacional, por essa última não se tratar de
normas de direitos humanos. Por isso, a discussão se desenhou em torno dos
critérios tradicionais de antinomia, fundamento constitucional do artigo 178 e
defesa do consumidor.
A interpretação sobre o art. 178 foi, primeiramente, defendida pelo
ministro Luís Roberto Barroso, posteriormente acompanhado por oito dos
Ministros. Como relator de um dos recursos, sua perspectiva é de que o artigo
estaria impelido a fazer prevalecer a Convenção. Para ele, o artigo trata-se de
regra sobredireito, sendo assim, um critério especial de solução de antinomias.
Por isso, a consequência do artigo 178 é que “em matéria de transporte
internacional, conflitos entre lei e tratado resolvem-se em favor do segundo”, uma
vez que “cuidando-se de um comando constitucional o art. 178 prepondera sobre
outros critérios (como o da especialidade) caso apontem soluções diversas para
o mesmo caso” (stf, 2017b, p. 7).
De maneira contrária a posição vencedora, os ministros Marco Aurélio e
Celso de Mello pautaram seus votos pela preferência da norma nacional. Em seu
voto, Celso de Mello justifica que a norma internacional viola o princípio da
indenização integral, prevista na constituição, (o princípio da indenizabilidade
irrestrita do art. 5º, v e x) e direito fundamental de proteção do consumidor, a
qual se comporta como cláusula pétrea. Ele ainda criticou a adoção do critério
da especialidade da norma para o presente caso, em razão do disposto no inciso

1 “a lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo [...] devendo, quanto à ordenação do
transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da
reciprocidade” (CF, 1998)
528

XXXII do art. 5º da CF/88, o que anularia um direito fundamental do consumidor.


Em seguida, fez a defesa de que se aplicar o critério hierárquico, de modo que
a cláusula de proteção ao consumidor é um compromisso do constituinte com o
cidadão brasileiro, “devendo ser concretizado a todo instante”. Por fim, defendeu
a prevalência do CDC para não degradar o compromisso de defesa do
consumidor. Concluiu dizendo:

O exame das convenções e protocolos internacionais que venho de


referir revela a existência de tratamento jurídico claramente favorável
às empresas de transporte aéreo internacional, ainda que a Convenção
de Montreal, de 1999, tenha buscado reduzir o desequilíbrio
consagrado em anteriores atos internacionais. ” (STF, 2017, p.102)

De início, é possível concluir que a teoria utilizada pelo STF para aplicação
da norma internacional foi a monista moderada, a qual tem sido posição
jurisprudencial consolidada pela Adin 1.480/DF, reconhecendo a paridade
normativa do direito internacional público a lei ordinária através do devido
procedimento doméstico de inserção da norma. No entanto, aqui defende-se que
utilização de outra teoria, que poderia vir a ser mais adequada ás novas
demandas contemporâneas.
Ocorre que o diploma internacional é menos protetivo ao ser humano, pois
restringe a indenização por danos materiais e o prazo de prescrição. Ainda
assim, observa-se que ambos diplomas oferecem conteúdo normativo relevante
a nação, no aspecto econômico e social. Isso porque a valorização do
compromisso internacional, a priori, implica em confiança no comércio de
transporte aéreo e atrai investimentos para o ramo no Brasil, além de
juridicamente ser um compromisso assumido pelo país. Por outro lado, a
aplicação do direito interno protege o consumidor e promove equiparação entre
sujeitos de direito (fornecedor e consumidor), assim consequente promoção da
igualdade.
Nesse sentido, ainda que a primazia da lei internacional seja salutar a
preservação do desenvolvimento econômico e sustentabilidade da ordem
internacional, é imperioso que proteção do consumidor seja observada, o que
pode se dar pelo exercício da doutrina pluralista. Principalmente porque em uma
hipotética situação com a presença de um hipervulnerável (como idoso,
deficiente e entre outras), o diploma a ser aplicado não pode ficar restrito ao
documento internacional menos protetivo.

CONCLUSÃO

A internacionalização do consumo produziu não só características


universais da debilidade do consumidor, mas também plúrimas fontes
normativas, por isso a existência de diversos documentos internacionais de
proteção do consumidor como resoluções da ONU, previsões no direito
comunitário, os meios do direito internacional privado e a solução do direito
internacional público, de forma descentralizada e plural. Nesse caminho, o
pluralismo jurídico apresenta adequação as situações complexas que podem vir
ser enfrentada pelo ordenamento jurídico frente a pluralidade de normas. Com
ela, as ordens internas ou internacionais não se excluem, mas são acopladas,
se complementam.
529

Vislumbrar um diploma normativo uniforme, com efeito rígido (hard law)


como a Convenção de Montreal, se torna oportuno na defesa dos direitos do
consumidor global, pelo menos em casos de transporte aéreo. Desse modo, a
primazia da norma internacional é justificada pela proteção necessária do
consumidor internacional.
A Convenção de Montreal foi primada, segundo interpretação do STF, por
vontade do constituinte (de acordo com o art. 178 da CF) ao valorizar os
compromissos e a reciprocidade internacional. A existência do quadro de
vulnerabilidade de um consumidor internacional e o desejo por desenvolvimento
comercial no ramo de transportes aéreo – em razão da globalização –
demandam atuação dos órgãos nacionais pela aplicação de norma internacional.
Em razão da crescente internacionalização das relações consumeristas-
jurídicas, cedo ou tarde as normativas tocarão – e devem influir – no
ordenamento interno. Por isso, o jurista nacional encontra-se sob duas missões:
compreender a aplicabilidade da norma internacional e até reconhecer sua
primazia. Sabe-se que os ordenamentos internos e internacionais estão cada
vez mais fluídos, o que deve estimular juristas em fazer a adaptação
(internalização) do direito internacional, a fim de conferir coerência ao sistema
jurídico. Dentro dessa análise, o respeito o princípio da pact sunt servanda tem
sido relevante, pois garante confiabilidade e segurança a sociedade
internacional, conciliando valores morais universais (como teoria objetivista
alega) e consentimento (como da teoria voluntarista).
Ademais, a norma suprema do Estado brasileiro, segundo interpretação
pelo julgamento, deseja respeito aos preceitos internacionais em caso de
transporte internacional – por seguinte em caso de consumo. Observa-se que
parte da doutrina brasileira confronta com a jurisprudência no tocante a
supralegalidade do direito internacional público, militando para primazia da
norma internacional (em todas hipóteses). Tal defesa (para elevação da
hierárquica) se dá, não só razão do respeito aos compromissos internacionais
assumidos, mas também para construção da consciência jurídica universal.

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530

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531

A MISSÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ESTABILIZAÇÃO NO HAITI E O


NÃO RECONHECIMENTO DOS HAITIANOS COMO REFUGIADOS NA
IMIGRAÇÃO PARA O BRASIL
UNITED NATIONS MISSION FOR HAITI STABILIZATION AND HAITIAN'S NO
RECOGNITION AS REFUGEES IN IMMIGRATION TO BRAZIL

Ádria Saviano Fabricio da Silva


Orientador(a): César Augusto S. da Silva

Resumo: A emigração haitiana de seu país de origem é histórica, entretanto há


apenas poucos anos foi de fato possível compreender as consequências da
opção do Brasil como um dos países para os quais os haitianos decidem imigrar
com mais frequência. A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti,
a MINUSTAH, constitui um dos grandes fatores para tal mudança de rumos.
Nesse sentido, esse trabalho trata da relação entre a imigração haitiana para o
brasil e a MINUSTAH, de modo a formar um ponto de convergência entre o
Direito Internacional dos Refugiados e o Direito Internacional Humanitário. A
metodologia científica utilizada é a análise descritiva por meio da indução com o
uso do levantamento bibliográfico. Vale dizer que se verificou não uma simples
relação de causa e consequência, mas sim uma complexa teia política e
normativa a qual acaba por influenciar, na prática, a vida de milhares de
haitianos.
Palavras-chave: Direito Internacional dos Refugiados. Imigração Haitiana.
Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti.

Abstract: Haitian emigration from its home country is historic, but only a few
years ago it was in fact possible to understand the consequences of Brazil's
choice as one of the countries to which Haitians decide to immigrate most often.
The United Nations Stabilization Mission in Haiti, MINUSTAH, is one of the major
factors for such a change of direction. In this sense, this work deals with the
relationship between Haitian immigration to Brazil and MINUSTAH, in order to
form a point of convergence between International Refugee Law and
International Humanitarian Law. The scientific methodology used is descriptive
analysis through induction using the bibliographic survey. It is worth noting that
there was not a simple relationship of cause and consequence, but a complex
political and normative web that ends up influencing, in practice, the lives of
thousands of Haitians.
Keywords: International Refugee Law. Haitian Immigration. United Nations
Stabilization Mission in Haiti.

INTRODUÇÃO

Na atual inquietação que dominou o mundo acerca dos refugiados, é


essencial demonstrar que quando um nacional deixa o seu país para partir para
outro, pode se dividir, dentre outras classificações, entre refugiado e imigrante.
Zygmunt Bauman, em sua obra “Vidas Desperdiçadas”, diferenciava tais
indivíduos a partir do motivo que originou tal mobilidade, de modo que definia
brevemente refugiados como pessoas em busca de asilo e imigrantes como
produtos rejeitados da globalização – acentuando a origem econômica da
mobilidade, a qual se diferenciaria de uma crise humanitária – portanto, de
532

qualquer modo, não se está pretendendo, seguramente, qualquer tipo de


dissimulação que não represente um sentimento genuíno de necessidade. Na
referida conjuntura, o refúgio é solicitado na medida em que permanecer em sua
nação de origem se torne algo tão perigosamente insustentável, que qualquer
situação de miséria ou risco pareça imensamente melhor do que aquela que se
apresente a sua frente.
Tal raciocínio é tão correto, que verificamos há pelo menos uma década
o movimento migratório de milhões de pessoas que preferem encarar a morte,
mesmo inseguros na esperança de ainda sobreviverem, a permanecer para
certamente morrer. O movimento migratório impulsionado por motivos de
perseguição de raça, religião, nacionalidade, liberdade de expressão política ou
questões sociais ocorre não através da esperança de uma vida mais viável, mas
sim pelo próprio risco da viabilidade da vida.
Neste trabalho buscamos elucidar como o perigo de morte e a sua
iminência são os fatores que conduzem as atitudes dos indivíduos que
conhecemos por refugiados e não a sua denominação legal determinada e
regida pela regulamentação nacional do país ao qual o refúgio é solicitado. Para
tanto, analisaremos o refúgio pela perspectiva humanitária, através do método
indutivo com a utilização da pesquisa bibliográfica, e sob a ótica central dos
direitos humanos, como um estado de ser – essencialmente material –,
caracterizado pela necessidade urgente de acolhimento e não por um “dever-
ser” manifesto em lei – substancialmente formal.

A DEFESA DA DEMOCRACIA COMO JUSTIFICATIVA PARA A MINUSTAH

A discussão internacional em torno da democracia e do regime


democrático enquanto direito do homem desenvolve-se em consonância com a
criação da Organização dos Estados Americanos, na medida em que o referido
órgão ganhava visibilidade e legitimidade política. Após um século de
desentendimentos ideológicos baseados em divergências de interesses, a ideia
de intervenção pacífica finalmente se legitima a partir da possibilidade de
coexistência entre o respeito à soberania (não-intervenção) e a defesa da
democracia, cenário este nunca antes vislumbrado. A negativa de
simultaneidade dos dois princípios regentes do direito internacional desde o
início do século passado era tão presente nas discussões sobre o
desenvolvimento das nações americanas, estimulada devido desde o
desinteresse de presidentes americanos enquanto os Estados Unidos da
América voltava a sua política internacional para outros assuntos ou quando não
era conveniente garantir a democracia em sua política de combate ao
comunismo, à desconfiança dos países americanos em pôr sob o julgo do Estado
imperialista o seu governo frágil.
A defesa da democracia exercida nos limites do respeito à
autodeterminação e à não intervenção foi amplamente debatida, sendo
considerada em um início duvidoso, uma concepção utópica em meio aos
conflitos das grandes guerras e, por fim, com a guerra fria. A efetivação da
proposta só foi possível com o indeclinável Compromisso de Santiago à Carta
Democrática Interamericana, em 1991, acordo no qual foi definido como objetivo
dos Estados Americanos a primazia da defesa da democracia como um ideal
mais precioso a ser resguardado mediante o respeito mútuo entre os Estados,
mas primariamente resguardado. Nessa conjuntura, a OEA obteve legitimidade
533

para agir contra situações que representassem perigo às instituições


democráticas como a “interrupção abrupta ou irregular do processo político
institucional democrático ou do legítimo exercício do poder” (Resolução 1080),
atuação que representa o estopim histórico para a ideia de intervenção pacífica
ou operação de paz em âmbito regional. A interpretação doutrinária e prática do
paradoxo antes irreconciliável, oportunamente modificada, agora se torna
fundamento de harmonia de todo o sistema.
Nascendo de uma revolução de escravos e trazendo forte insegurança
aos imperialistas, o Estado haitiano nunca deixou o sistema escravagista, o
despotismo e a autocracia para trás, sendo os governantes eterna fonte de
turbulências políticas e de miséria para a sua população. No pequeno país
caribenho sucederam-se tentativas fracassadas de democracias e golpes de
Estado desde a independência do país em 1804, passando por um novo
tratamento escravagista baseado na rivalidade entre os mulatos e negros
nativos, pela incompetência e pelo desinteresse de governantes em desenvolver
um Estado forte, por uma intervenção militar americana e por tiranias disfarçadas
de democracias. Nessa esteira, consciente a OEA das tentativas infrutíferas de
garantir o procedimento eleitoral, em 1990 oferece o auxílio para garantir a
realização das eleições, reafirmando o seu compromisso com o ideal
democrático, com o envio de cerca de 200 (duzentos) observadores da OEA e
200 (duzentos) observadores da ONU.
Na sequência, o regime brevemente implementado de Jean-Bertrand
Aristide vem ao fim, em 1991, e nasce a primeira oportunidade de a OEA
demonstrar o controle sobre a situação utilizando os mecanismos recém
implementados. Respeitando a regulamentação prevista para a crise, a OEA
convoca os ministros das relações exteriores para deliberar acerca das atitudes
a serem tomadas em seguida, oportunidade em que alguns países tendem ao
ativismo ao defenderem a intervenção – ultrapassando os limites da legalidade
– e outros defendem a legalidade estrita sob a égide da não intervenção e do
respeito à soberania (a intervenção pela defesa da democracia nos limites da
legalidade).
Pela primeira vez, portanto, uma organização multilateral interferia nos
assuntos internos de uma nação em crise, sem que qualquer outro mecanismo
legitimasse as suas ações a não ser o recentemente acordado compromisso de
Santiago e o histórico de discussões por trás deste. Em continuidade a estes
esforços e para a sua efetivação, a OEA definiu recomendações e instituiu
missões civis (OEA-DEMOC) a fim de restaurar o processo democrático e
aplicou embargos econômicos e comerciais. Com o fracasso da organização em
extinguir a crise haitiana, o próximo passo era pedir auxílio à ONU, a qual
requisitou o envolvimento do seu Conselho de Segurança. Mais uma vez,
seguiram-se debates acerca da legitimidade do departamento em interferir em
assuntos de ordem internas do país, de acordo com o art. 52 da Carta da ONU,
o qual descreve os mecanismos regionais de manutenção da paz e a sua
indispensabilidade.
Após um primeiro momento de negativa quanto ao envolvimento do
Conselho de Segurança na medida em que se renovaram as tentativas do foro
regional, sem que, contudo, obtivessem êxito, o protagonismo da ONU voltou
para o centro dos debates demonstrando-se uma solução ideal. A ideia de uma
“missão multidimensional” nasceu da carta do presidente Aristide à organização
enviada ao Secretário-Geral das Nações Unidas, em 1992. Nesse contexto:
534

“Uma missão de caráter internacional só seria aceita, se inserida no contexto de


um programa multilateral de cooperação, destinado à implementação de projetos
previamente negociados e aprovados pelas autoridades haitianas”, (CÂMARA,
1998).
A universalização da crise haitiana foi um dos fenômenos mais
importantes para o desenvolvimento das Missões de Paz, pois, assim,
considerando a crise política e humanitária do pequeno país caribenho como
uma emergência com a qual todos os países deveriam se preocupar e agir para
solucionar, ou seja, um problema de todos, a atuação da ONU se tornara
essencial e obrigatória. A OEA e a ONU atuariam em conjunto, entretanto, nos
limites de sua legitimidade própria, quais fossem, a defesa da democracia e a
proteção dos direitos humanos, respectivamente. Os próximos passos para
impedir um desastre (uma possível intervenção não-pacífica) se deram em
direção a fundamentar as Missões de Paz e estabilizar a sua regulamentação
própria para que estas se tornassem ferramentas ideais para a solução pacífica
de crises humanitárias em nações que delas necessitassem. Além disso, as
missões de paz deveriam se tornar instrumentos democratizantes,
apaziguadores e institucionalizadores da segurança jurídica e da proteção das
instituições, nas mãos de um órgão historicamente inseguro.
A Missão Civil Internacional no Haiti, de Dante Caputo, surgiu naquela
ocasião como uma grande precursora das Operações de Manutenção da Paz
que conhecemos hoje, tendo sido planejada como uma missão multinacional
conjunta OEA-ONU para promover o apaziguamento interno e o respeito aos
direitos humanos no país. Durante a execução da Missão, foram analisados e
amplamente debatidos elementos como o apoio dos detentores do poder às
medidas determinadas, o respeito à Constituição nacional, o envio de
observadores civis de ambas as organizações e a logística a ser utilizada, sendo,
por fim, elaborado um documento intitulado Princípios para a Cooperação entre
a Organização dos Estados Americanos e as Nações Unidas na Missão Civil
Internacional no Haiti, bem como definido o modus operandi da operação através
de um Memorandum de Entendimento OEA-ONU.
A Operação também tinha como objetivo auxiliar na execução de três
grandes metas presentes na constituição haitiana de 1987, provenientes do
projeto de fortalecer as instituições nacionais, quais sejam: a reforma do sistema
judiciário, a profissionalização das forças armadas e a formação de uma força
policial independente do exército. Entretanto, ao longo dessa tentativa de
regularização da conjuntura democrática, temendo as forças do
intervencionismo internacional, o governo de fato desenvolveu uma série de
ações violentas e dilatórias. Um “plano de ajuda ao Haiti” passou, então, a ser
debatido, pela primeira vez com a proposta de intervenção militar com o objetivo
de “atuar nas áreas de reconstrução econômica do Haiti e colaborar com as
forças de ordem nacionais, no esforço de apaziguamento interno durante o
período de transição para a democracia”. (CÂMARA, 1998, pp. 133/134),
propósito que se manteve idealizado para a MINUSTAH.
Com todas as perturbações já causadas, imperava uma necessidade
política das organizações de conquistarem soluções e, principalmente, de os
países que dominavam os debates sobre a crise haitiana conseguirem um
desfecho favorável aos seus interesses, em detrimento de uma fundamentação
jurídica razoável. Para tanto, questionou-se novamente a possibilidade de
repassar a questão unicamente ao comando do Conselho de Segurança e a
535

iniciativa partiu novamente do presidente de direito Aristide. Buscava-se o


fundamento para a intervenção do Conselho de Segurança na premissa de que
o crescente fluxo de deslocamento de refugiados para países vizinhos estaria
ameaçando a paz e a segurança da região.
Nesse momento, então, se destaca a participação brasileira nas
discussões, quando fez constar a característica de “excepcionalidade” da
atuação do Conselho de Segurança na ocasião, a fim de que não se instaurasse
um precedente para futuras ingerências nos mesmos termos, sem que houvesse
fundamentação jurídica suficiente e debate. Embora ainda se esperasse
avanços nas tratativas políticas por meio da diplomacia, tal como tentou-se
realizar com o Acordo da Ilha dos Governadores, com as novas investidas de
terror e violência por parte das forças paramilitares haitianas, o Conselho de
Segurança decide aprovar a resolução 867, criando uma Missão Militar
Internacional, a MINUHA, ingerência que só viria a obter frutos no futuro.
Em vias de perder a credibilidade internacional em relação à resolução da
crise haitiana e apesar dos embargos econômicos que afetavam ferozmente a
economia do país caribenho (resolução 841), após nova expulsão dos
observadores internacionais por parte do governo de fato, o Conselho de
Segurança enfim determina a criação de uma força multinacional com base no
pretexto do perigo da crise de refugiados, por meio da resolução 940, a fim de
conter a crise haitiana utilizando todos os meios possíveis e estabelecendo um
precedente importante para a ingerência estrangeira em assuntos internos na
região sob fundamentos jurídicos frágeis e contrariando claramente o princípio
da não-intervenção. Apesar do fundamento ilegítimo, obteve-se uma suposta
estrutura pacífica para a intervenção militar norte-americana com base em
acordos realizados para uma “invasão consentida”, oportunidade em que
nitidamente foram utilizadas interpretações incompatíveis e desencontradas
para legitimar interesses, os quais não objetivavam a diminuição do sofrimento
do povo haitiano.
Quanto ao posicionamento brasileiro em relação às medidas adotadas e
o seu modus operandi legalista habitual, desde o início da crise haitiana, o Brasil
apoiou a liderança da OEA nas negociações, pois esta seria o ente legítimo para
tratar da questão, como guardiã da democracia na região. Mantendo, assim, a
sua posição durante todo o desenrolar dos debates de modo coerente, o Brasil
foi defensor das negociações diplomáticas e contra quaisquer determinações de
ingerência que afetassem a soberania do Haiti, tendo em vista a questão ser
interna e nacional, não restando justificativas suficientes à intervenção militar ou
aos embargos econômicos que restringissem essencialmente a livre
determinação do cenário político interno haitiano. Como já comentado, o
agravamento e a extensão da crise levaram o Brasil a apoiar em parte as ações
determinadas tendo em vista os objetivos iniciais de reestabelecer a democracia
e fortalecer as instituições democráticas, entretanto, o nosso país preocupava-
se em impedir que a fórmula construída para a excepcional crise haitiana fosse
reutilizada no futuro para situações semelhantes em termos de legitimar
quaisquer ações interventivas com base em interpretações arbitrárias.

PONTOS DE CONVERGÊNCIA ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL


HUMANITÁRIO E O DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS
536

A ideia do homem como cidadão do mundo, a qual descreve BOBBIO em


sua obra “Era de Direitos”, reflexo do pensamento Kantiano de aspecto universal,
coloca em pauta justamente o conceito do direito que ultrapassa fronteiras, os
direitos humanos, a defesa da própria humanidade acima dos muros das nações.
Quando o refugiado haitiano deixa o seu país, é porque este falhou em garantir-
lhe seus direitos humanos de primeira necessidade. As Operações de
Manutenção da Paz da ONU poderiam ser, nesses termos, um retrato desses
conceitos, como uma grande comunidade que busca assegurar os direitos
humanos através de uma ação conjunta. Os objetivos das Operações de
Manutenção da Paz são claros e previamente determinados como princípios
nobres que regem todo o exercício, desde a instalação até a retirada. Durante o
período de atuação, os membros envolvidos, orientados pelos regulamentos de
Direito Internacional Humanitário, ensinam à polícia e às forças militares os
fundamentos de manutenção de ordem sempre alicerçados no respeito aos
direitos humanos. Ao retirar-se do país foco da Operação, a Organização das
Nações Unidas afirma que os objetivos foram cumpridos e está na hora de deixar
a nação caminhar com as próprias pernas.
O imigrante haitiano, na medida de suas possibilidades de mobilidade, se
move no plano terrestre em busca de uma qualidade melhor de vida para si e,
assim que possível, para sua família, motivados pelo temor contínuo da
inviabilidade de sobrevivência de um Estado-fantasma (SEITENFUS, 2014, p.
446) que sucumbe há décadas em razão da instabilidade política, da
precariedade da economia e da destruição da dignidade humana. Mesmo os
nacionais mais qualificados, acabam optando por emigrar justamente pela
indisponibilidade flagrante de condições mínimas para guardarem a sua
integridade física, social e moral.
Tal aspecto poderia surpreender os críticos xenofóbicos desavisados,
porém é de conhecimento dos especialistas em Direito Internacional dos
Refugiados que o grupo de haitianos que constantemente chega ao Brasil pela
rota internacional que se inicia na República Dominicana e dá entrada em nosso
país atualmente pela vasta fronteira com a Bolívia, dissipando-se pelo território
nacional com a organização interna, é heterogêneo, contendo desde nacionais
com nível superior e possuindo a expertise de diversos idiomas, a nacionais sem
qualquer estudo. Ambos os extremos acabam nivelando-se pelo trabalho que
lhes é oferecido em nosso país quando de sua chegada.
Quando verificamos que mesmo os haitianos com maior poder aquisitivo
estão emigrando, de “classe superior” àquela que é considerada majoritária – a
miserável –, representando e confirmando o título de país mais pobre das
américas, então compreendemos a catástrofe humanitária que experencia essa
nação, agravada pela degradação ambiental e pelo terremoto de 2010. A
extrema pobreza, as turbulências políticas e as diversas crises econômicas de
uma nação que se tornou extremamente dependente economicamente do
exterior, com a destruição paulatina de sua produção interna, definiram o
definhar da nação haitiana. Na criação e na instalação da MINUSTAH, imaginou-
se uma reconstrução da paz e da estabilidade política do país, entretanto foi
renegada à ignorância o fortalecimento das instituições democráticas e a
recuperação da economia de uma nação que na década de 70 havia se tornado
autossuficiente na alimentação de sua população, mas que na atualidade via a
sua produção de alimentos praticamente desaparecer diante da dependência
externa.
537

Na situação pós terremoto de 2010, e com a intensificação da relação


política e humanitária entre o Brasil e o Haiti devido à liderança da MINUSTAH,
o governo brasileiro compreendeu que deveria lidar com a consideração do
nosso país como uma importante opção na ótica migratória desses indivíduos.
Afim de evitar as consequências de uma imigração ilegal, tentamos regularizar
o procedimento, entretanto, na prática, acabamos por desenvolver um esquema
nitidamente precário, com a possibilidade de que a solicitação de visto fosse feito
na capital Porto Príncipe limitado à quantidade de 100 vistos mensais – clara
barreira à acolhida humanitária prevista dentre os princípios que regem a lei da
migração e a Constituição Federal brasileira. No processo de definição de tal
procedimento, os haitianos não foram considerados refugiados, pois não existia
um fundado temor de perseguição, tendo o governo brasileiro ignorado a própria
lei que rege o Estatuto dos Refugiados de 1951.
Art. 1º da Lei nº 9.474/97:
Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é
obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em
outro país (grifo nosso).

Outrossim, os haitianos restariam enquadrados em um refúgio ambiental


que não tem previsão legal, tendo em vista o terremoto de 2010 e a degradação
ambiental que assola historicamente o país em conjunto e em consequência da
miséria. Ato contínuo, considerou-se, ainda assim, a necessidade da acolhida
humanitária, por meio da qual essa população migrante pudesse obter
residência temporária através da permanência – visto humanitário de validade
de 5 (cinco) anos.
Dentre as consequências imagináveis que advêm do não reconhecimento
dos haitianos como refugiados, na prática verificamos uma não-proteção, um rol
de garantias que não é determinado a eles, uma importância estratégica e
organizacional que não lhes é oferecida – nitidamente aparente quando da falta
de estrutura e de cuidado para a assimilação desse contingente populacional no
território nacional –, caracterizando, portanto, uma quantidade notável de direitos
que lhes são surrupiados por falta de previsão legal. Como visto, o referido
cenário gera uma impossibilidade da aplicação da Convenção de 1951 Relativa
ao Estatuto dos Refugiados e de seu Protocolo de 1967, sendo que da mesma
forma, ignora-se o previsto na Declaração de Cartagena de 1984, como
demonstrado abaixo, revelando ser o procedimento brasileiro para a questão
uma decisão meramente política.

Declaração de Cartagena de 1984:


[...] se toma necessário encarar a extensão do conceito de refugiado
tendo em conta, no que é pertinente, e de acordo com as
características da situação existente na região, o previsto na
Convenção da OUA (artigo 1., parágrafo 2) e a doutrina utilizada nos
relatórios da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos. Deste
modo, a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua
utilização na região é o que, além de conter os elementos da
Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também
como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países
porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido
ameaçadas pela [...] violação maciça dos direitos humanos ou
outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a
ordem pública (grifo nosso).
538

CONCLUSÃO

Nessa conjuntura, vale salientar que a preocupação em fortalecer o


princípio da não-intervenção e a segurança jurídica da norma internacional, deve
imperar, mesmo com os avanços realizados na direção oposta. Isto porque o
compromisso com a carta da OEA em relação abstenção de interferência nos
assuntos internos e externos de qualquer país, além de ser um objetivo regional,
é uma das premissas da nossa Constituição Federal. A única possibilidade de
ingerência prevista prevê um quadro grave atentatório à segurança e à paz
regionais, sendo que a carta da OEA ainda determina a proibição de atuações
inconsistentes juridicamente, tendo em vista a imprevisibilidade dos
desdobramentos e danos de tais ações para a região.
A aplicação do Direito Internacional Humanitário na conjuntura das
missões de paz nasce com o fundamento de um direito internacional de
ingerência que se legitima na medida em que a organização internacional age,
interferindo em questões domésticas dos países, em nome da proteção de uma
população que está sujeita a sofrimento decorrente de uma violação massiva
dos direitos humanos. Sob esse falso manto de legitimidade, o Conselho de
Segurança passa a interferir com intervenções militares nas crises internas dos
países sem fundamentação jurídica que sustente as suas ações e com
justificativas vazias legalmente. Diante da grave violação de direitos humanos
que assola o Estado-fantasma Haitiano e do desinteresse de seus
administradores em conduzir o poder político sem a ingerência da tutela
estrangeira, historicamente esta população tende a sempre considerar a
emigração como uma esperança. Quando o governo brasileiro nega aos
haitianos o título de refugiados, estes passam a ser considerados meros
imigrantes, de modo que se em seu país de origem foram lhes obstados as
garantias mais essenciais para a sua sobrevivência, em sua chegada ao Brasil,
a negativa se reitera.
Por fim, com a análise aqui apresentada, verificou-se que, preocupando-
se com a catapulta política e buscando a visibilidade internacional em primeira
prioridade, o Brasil abdica de suas promessas de auxilio e solidariedade, e da
própria eficiência da operação de paz, na medida em que engrinalda os seus
anseios políticos em detrimento da acolhida humanitária. O ponto de
convergência no qual se encontram estes dois grandes universos – do Direito
Internacional Humanitário e do Direito Internacional dos Refugiados – apenas
demonstra a complexa relação de poder e interesses que rege a implementação
de procedimentos falhos, apesar da perfeição teórica da norma jurídica
internacional, resultando em prejuízos irreversíveis aos direitos humanos.

REFERÊNCIAS

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Estudos Estratégicos, 1998. 240p; v2.
540

A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS REFUGIADOS AMBIENTAIS À LUZ DA NOVA


LEI BRASILEIRA DE MIGRAÇÃO
THE LEGAL PROTECTION OF ENVIRONMENTAL REFUGEES IN THE
LIGHT OF THE NEW BRAZILIAN MIGRATION LAW

Rildo Amorim da Silva Junior


Emilly Bianca Ferreira dos Santos

Resumo: O presente trabalho teve como objetivo principal averiguar o


tratamento dispensado aos refugiados ambientais no Brasil, sobretudo após a
edição Lei 13.445/17. Ao final, concluiu-se que o conceito de refúgio não é
estanque, tendo sido consideravelmente ampliado pelos diplomas internacionais
até chegar ao regramento atual. No entanto, apesar dessa volatilidade do
conceito, a comunidade internacional ainda não reconhece o instituto do refúgio
ambiental como uma categoria abrangida pela definição de refugiado. No âmbito
interno, apesar de o Brasil ter adotado em sua legislação a definição regional
ampliada do conceito de refúgio, não reconheceu aos Refugiados ambientais o
status de Refugiado, como se pôde observar no episódio da migração em massa
de haitianos para o país em decorrência do terremoto de 2010. Atualmente, o
Brasil ainda não reconhece a categoria dos Refugiados ambientais, entretanto,
dispensou um tratamento especial ao grupo por meio da concessão dos Vistos
Humanitários previstos na Lei 13.445/17.
Palavras-chave: Refúgio. Refugiados ambientais. Lei de migração.

Abstract: The present work had as main objective to investigate the treatment
given to environmental refugees in Brazil, especially after the Law 13.445/17
edition. In the end, it was concluded that the concept of refuge is not watertight,
having been considerably expanded by international diplomas until reaching the
current rule. However, despite this volatility of the concept, the international
community still does not recognize the environmental refuge institute as a
category covered by the definition of refugee. Internally, although Brazil has
adopted in its legislation the expanded regional definition of the concept of refuge,
it did not recognize environmental refugees as Refugee status, as observed in
the episode of mass migration of Haitians to the country as a result of the 2010
earthquake. Brazil does not yet recognize the category of Environmental
Refugees, however, it has given a special treatment to the group through the
granting of Humanitarian Visas provided for in Law 13.445/2017.
Keywords: Refuge. Environmental refugees. Migration law.

INTRODUÇÃO

Os deslocamentos populacionais ligados a catástrofes ambientais


superaram os provocados por conflitos armados (OIM, 2012). Segundo o
relatório State of Environmental Migration 2010, em 2008, 20 milhões de pessoas
tiveram que se deslocar em decorrência de uma catástrofe natural. E as cifras
não pararam de aumentar. Somente em 2009 houve 15 milhões de refugiados
“ambientais” e em 2010 o número subiu para 38 milhões.
No Brasil, 72.406 haitianos entraram pelas fronteiras entre 2010 e 2015
(OBMIGRA, 2016), em decorrência do Terremoto que atingiu o Haiti no ano de
2010. Hoje, o deslocamento climático ou ambiental é uma das principais causas
541

das migrações humanas, o que desafia a construção de um sistema de proteção


adequado a esse grupo que tem o adjetivo “forçado” em seu migrar.
Apesar do termo “Refugiados Ambientais”, aos deslocados forçados por
catástrofes naturais não é reconhecido o status jurídico de Refugiado, sendo a
principal justificativa a falta de previsão normativa. Por esse motivo, são regidos
pelas leis comuns de migração, que nem sempre dispensam um tratamento
humano condizente com a situação vulnerável desse grupo, como era o caso do
Brasil.
No entanto, no ano de 2017, foi promulgada a Lei 13.445 – Nova Lei
brasileira de migração –, que revogou o antigo Estatuto do Estrangeiro, e trouxe
mecanismos mais protetivos a esse grupo, cujo maior exemplo é o chamado
Visto Humanitário. Este trabalho tem como objetivo verificar o tratamento
dispensado aos refugiados ambientais no Brasil, sobretudo após a edição da
nova lei.

REFÚGIO: GÊNESE E EVOLUÇÃO

Até o século XX, o Direito Internacional não possuía regras ou instituições


específicas voltadas aos grupos que buscavam abrigo em outros países, após
fugirem de seus Estados de origem. O tratamento dispensado a esses grupos
dependia, então, das leis nacionais, em especial as referentes ao Asilo Político
(RAMOS, 2015).
O tema começa a ganhar a atenção especial do Direito Internacional a
partir da década de 1920, notadamente em decorrência dos acontecimentos do
pós-Primeira Guerra, sendo intensificada a partir da Segunda Guerra Mundial,
quando milhares de pessoas começam a se deslocar na Europa, fosse para fugir
do regime nazista ou para servir de mão de obra escrava para as potências em
guerra (MAZZUOLI, 2017).
Como marcos do pós-primeira guerra, tem-se a autorização, em 1921,
pelo Conselho da Sociedade das Nações, para a criação de um Alto
Comissariado para Refugiados (PIOVESAN, 2010); e a fundação, em 1931, do
Escritório Internacional Nansen para Refugiados, que atuava nos átrios da
Sociedade das Nações e tinha como missão dar apoio humanitário aos
refugiados (RAMOS, 2015).
A regulamentação global do instituto, contudo, começa com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, que estabeleceu, em seu art. 14, que
“Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar
asilo em outros países”.
Mas foi em 1951, três anos após a Declaração Universal, que foi aprovada
a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, que constitui a carta magna que
define em caráter universal a condição de refugiado, dispondo sobre seus
direitos e deveres (PIOVESAN, 2010).
Nos termos do art. 1º da Convenção de 1951, o termo “refugiado” é
aplicado a toda pessoa que:

Em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro


de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do
país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor,
não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem
nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência
542

habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido


ao referido temor, não quer voltar a ele.

Logo de plano, verificou-se que a redação da Convenção de 1951 possuía


limitações temporal e geográfica. Isto porque ela restringia o conceito de
Refugiados aos “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951” 1 o
concedia apenas às pessoas provenientes da Europa2 (MAZZUOLI, 2017).
Segundo PIOVESAN (2010), tal definição mostrou-se inoperante com o
decorrer do tempo, e não mais correspondia aos interesses da sociedade
internacional, sobretudo porque começaram a surgir mais e mais casos de
perseguição e fluxo de refugiados em vários continentes, principalmente nos
continentes africano e americano.
Então, com a finalidade de ampliar o alcance da definição de refugiados
da Carta de 1951, em 31 de janeiro de 1967, foi elaborado o Protocolo sobre o
Estatuto dos Refugiados, que já em seu artigo 1º suprime as limitações impostas
pela Convenção de 1951, in verbis:

§2. Para os fins do presente Protocolo, o termo "refugiado", salvo no


que diz respeito à aplicação do §3 do presente artigo, significa qualquer
pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da
Convenção, como se as palavras "em decorrência dos acontecimentos
ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e..." e as palavras "...como
conseqüência de tais acontecimentos" não figurassem do §2 da seção
A do artigo primeiro.

Portanto, atualizando-se o conceito da convenção de 1951 com o


Protocolo de 1967, considera-se refugiado qualquer pessoa que temendo ser
perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões
políticas, se encontra fora do país de nacionalidade e que não pode ou, em
virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não
tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência
habitual, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

AMPLIAÇÃO REGIONAL DO TERMO “REFUGIADO”

Segundo PIOVESAN (2010), desde a adoção da Convenção de 1951 e


do Protocolo de 1967, contata-se o esforço de ampliar e estender o conceito de
refugiado, sobretudo nos sistemas regionais africano e americano.
Nesse contexto, em 1969, foi aprovada a Convenção da Organização da
Unidade Africana sobre refugiados. Esta Convenção estabeleceu pela primeira
vez a chamada ‘definição ampla de refugiado’ (RAMOS, 2015), conforme se
pode observar no artigo I – 2:

O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a


uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a
acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa
parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem

1 B. 1) Para os fins da presente Convenção, as palavras "acontecimentos ocorridos antes


de 1º de janeiro de 1951", do art. 1º, seção A, poderão ser compreendidas no sentido de ou a)
"acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa"; ou b) "acontecimentos
ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa ou alhures";
2 Ibid.
543

nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual


para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de
nacionalidade.

Seguindo os passos da Carta Africana, os Estados latino-americanos


também acolheram uma definição ampliada de refugiado, e o fizeram por meio
da Declaração de Cartagena de 1984, conforme se pode observar na conclusão
terceira do referido instrumento:

Reiterar que, face à experiência adquirida pela afluência em massa de


refugiados na América Central, se toma necessário encarar a extensão
do conceito de refugiado tendo em conta, no que é pertinente, e de
acordo com as características da situação existente na região, o
previsto na Convenção da OUA (artigo 1., parágrafo 2) e a doutrina
utilizada nos relatórios da Comissão Interamericana dos Direitos
Humanos. Deste modo, a definição ou o conceito de refugiado
recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os
elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere
também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus
países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido
ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os
conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras
circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.

As convenções americana e africana, além de ampliarem o conceito de


refugiado, têm em comum o fato de que preveem a violação maciça dos direitos
humanos como caracterizadora da situação de refúgio, o que, segundo
PIOVESAN (2010), insere a matéria no universo conceitual dos direitos humanos
e adapta a normativa internacional à luz das realidades regionais.

REFUGIADOS AMBIENTAIS

O tema dos refugiados ambientais ganhou notoriedade em 1985, com


Essam El-hinnawi, quando ainda atuava no Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (PNUMA). Muitos atribuem a ele o pioneirismo no tocante à
definição do fenômeno dos refugiados ambientais. Na obra Environmental
Refugees, publicada em 1985, é possível visualizar o embrião deste instituto:

Em um sentido amplo, todas as pessoas deslocadas podem ser


descritas como refugiados ambientais, dado que foram forçadas a sair
de seu habitat original (ou saíram voluntariamente) para se protegerem
de danos e/ou para buscar uma maior qualidade de vida. Entretanto,
para a finalidade deste livro, refugiados ambientais são definidos como
aquelas pessoas forçadas a deixar seu habitat natural, temporária ou
permanentemente, por causa de uma marcante perturbação ambiental
(natural e/ou desencadeada pela ação humana), que colocou em risco
sua existência e/ou seriamente afetou sua qualidade de vida. Por
“perturbação ambiental”, nessa definição, entendemos quaisquer
mudanças físicas, químicas, e/ou biológicas no ecossistema (ou na
base de recursos), que o tornem, temporária ou permanentemente,
impróprio para sustentar a vida humana. De acordo com esta definição,
pessoas deslocadas por razões políticas ou por conflitos civis e
migrantes em busca de melhores empregos (por motivos estritamente
econômicos) não são consideradas refugiados ambientais. Existem
três grandes categorias de refugiados ambientais. Primeiro, há aqueles
que foram deslocados temporariamente por causa de um stress
544

ambiental. [...] A segunda categoria de refugiados ambientais


compreende aqueles que tiveram de ser permanentemente deslocados
e restabelecidos em uma nova área. [...] A terceira categoria de
refugiados ambientais é constituída de indivíduos ou grupos de
pessoas que migram de seu habitat original, temporária ou
permanentemente, para um novo dentro de suas fronteiras nacionais,
ou no exterior, em busca de uma melhor qualidade de vida.

Apesar do preciosismo do autor em tentar fornecer vários elementos para


caracterização do instituto, é unânime na doutrina especializada que uma das
maiores dificuldades enfrentadas pelo instituto é a falta de uma definição oficial,
não havendo sequer consenso quanto à correta aplicação do termo (RAMOS,
2011).
No entanto, em 2007, a Organização Internacional para Migração
considerou os “refugiados ambientais” (chamados pela organização de
“migrantes induzidos pelo meio ambiente”) como

pessoas ou um grupo de pessoas que, por razões prementes de súbita


ou progressiva alteração no meio ambiente prejudiciais à sua vida ou
condições de vida, são obrigadas a deixar sua moradia habitual ou
optam por fazê-lo temporária ou permanentemente, e que se deslocam
seja dentro do seu país ou para o exterior (ACNUR, 2011, p. 244-245).

Para este trabalho, serão consideradas refugiados ambientais “as


pessoas que fugiram de suas casas por causa de mudanças ambientais que
tornaram suas vidas ameaçadas ou insustentáveis” (DERANI apud JUBILUT,
2007, p. 169), uma vez que tal definição engloba duas características primordiais
do instituto: o deslocamento forçado e a alteração do ambiente.

A (DES) PROTEÇÃO INTERNACIONAL

Atualmente, os refugiados ambientais não fazem jus a uma proteção


jurídica específica, ficando a cargo dos instrumentos gerais de direitos humanos
internos e internacionais a sua proteção (CLARO, 2011). Dentro dos Estados,
acabam sendo regidos pelas leis de migração comum, como se migrantes
voluntários fossem.
O principal entrave no que tange à proteção dos refugiados ambientais no
âmbito do Direito Internacional dos Refugiados refere-se à limitação conceitual
do termo em relação à definição clássica de refugiado (SILVA et al., 2018). Isso
significa dizer que eles não são juridicamente considerados refugiados por não
estarem contemplados na proteção específica prevista no Estatuto dos
Refugiados e no seu Protocolo de 1967, ou seja, em uma daquelas categorias
clássicas: perseguição ou fundado temor de perseguição por raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões politicas.

LEI Nº. 9.474/97: O MODELO BRASILEIRO DE PROTEÇÃO AOS


EEFUGIADOS

No Brasil, diferentemente de alguns outros países, há uma lei específica


para a proteção dos refugiados. Trata-se da Lei 9.474, editada pelo Brasil em
1997, que define os mecanismos para implementação do Estatuto dos
545

refugiados no Brasil e estabelece critérios para a concessão do status de


refugiado no país.
Logo no artigo 1º, é possível vislumbrar o conceito de refugiado adotado
no país:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:


I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se
fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-
se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve
sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em
função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é
obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em
outro país.

A partir da leitura do dispositivo legal, verifica-se que, nos dois primeiros


incisos, o Estado brasileiro está em plena sintonia com a Convenção de 1951 e
o protocolo de 1967. Já no terceiro inciso, é possível constatar que o Brasil
adotou a chamada definição ampla de refugiado, consignada na Declaração de
Cartagena de 1984.

O CASO DOS HAITIANOS NO BRASIL

A partir de 2010, devido ao terremoto que assolou o Haiti, houve um


aumento significativo no fluxo migratório de haitianos para o Brasil. Segundo
dados do Sistema de Tráfego Internacional, em 2013 já haviam chegado mais
de 20.000 haitianos ao Brasil, aproximadamente 55.000 em 2014 e 65.000 ao
final de 2015.
Ao chegarem ao Brasil, em decorrência de toda situação catastrófica por
que passaram, os grupos de haitianos começaram a solicitar refúgio ao governo
brasileiro. Pela primeira vez, portanto, o Brasil definiria, no caso concreto, seu
posicionamento acerca dos “refugiados ambientais”.
Embora o Brasil tivesse adotado expressamente a definição ampliada de
refugiado no Estatuto do Estrangeiro de 1997 (art. 1º, III), a resposta dada pelo
Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) a eles foi a de que não se
enquadravam no termo ‘refugiado’. (FERNANDES; FARIA, 2017).
O caso foi encaminhado ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que,
em janeiro de 2012, após realização de uma reunião extraordinária, publicou a
Resolução Normativa n. 97/2012, que dispunha sobre a concessão dos vistos
permanentes aos nacionais do Haiti por razões humanitárias.

A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA PARA MIGRAÇÃO

LEI Nº. 6.815/80 – ANTIGO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO


No Brasil, os migrantes que não são considerados refugiados, ficam ao
alvedrio da legislação brasileira para migração. A referência jurídica nacional
para o tratamento desse grupo era a Lei n. 6.815/1980, conhecida como
“Estatuto do Estrangeiro”, vigente à época da edição da Resolução 97/2012,
tratada no tópico anterior.
546

Formulada durante o período de exceção democrática, esta lei foi


concebida como um projeto de salvaguarda da segurança nacional que, segundo
o que se dizia a época, se via ameaçada pela atuação dos estrangeiros
(FERNANDES; FARIAS, 2017). Este fato pode ser constatado logo nos primeiros
artigos da lei, in verbis:

1° Em tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as


condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair,
resguardados os interesses nacionais.
Art. 2º Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança
nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, sócio-
econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador
nacional.
Art. 3º A concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação
ficarão sempre condicionadas aos interesses nacionais.

Criados antes da Constituição de 1988, vários artigos do Estatuto do


estrangeiro não foram acolhidos no espírito da Magna Carta, por serem
claramente incompatíveis com a mesma.

LEI 13.445/17 – NOVA LEI BRASILEIRA DE MIGRAÇÃO

Houve várias tentativas de modernizar a legislação relativa à migração no


Brasil, dentre as quais, destacam-se: o Projeto de Lei n. 5.655/2009, que foi
inclusive objeto de consulta pública coordenada pelo Ministério da Justiça e
encaminhada pelo Executivo ao Congresso Nacional em 2009, mas que não
avançou nas Casas; PL 2.516/2015, proposto por uma comissão de
especialistas formada por 11 pessoas, criada pelo Ministério da Justiça, com o
objetivo de propor um novo projeto de lei sobre a migração internacional; PLS n.
288/2013, proposto pelo senador Aloísio Nunes, por iniciativa do Senado,
aprovado em 2015 e encaminhado à Camara dos Deputados, sendo apensado
ao PL 2.516/2015.
Finalmente, em maio de 2017, foi sancionada a nova Lei de Migração, que
revogou o antigo Estatuto do Estrangeiro, e passou a ser o documento nacional
que define os direitos e deveres do imigrante e visitante no Brasil, bem como
regulamenta a entrada e a permanência de estrangeiros e ainda estabelece
normas de proteção ao brasileiro no exterior.
Apesar dos vários vetos que a lei teve, é considerada um avanço se
comparada com o antigo Estatuto do Estrangeiro e se analisada sob a ótica da
conjuntura mundial, em que muitos países têm fechado as portas para os
imigrantes. Dentre as mudanças mais sensíveis estão a instituição da politica
dos Vistos humanitários, a instituição do repúdio à xenofobia e ao racismo, e o
tratamento do imigrante a partir de uma perspectiva humanitária (art. 3º).

OS REFUGIADOS AMBIENTAIS NA NOVA LEI BRASILEIRA DE MIGRAÇÃO

Além das consideráveis mudanças trazidas pela Lei 13.445/2017, há uma


de grande relevância para o presente trabalho. Trata-se da previsão expressa
da concessão de Vistos Humanitários ao nacional de qualquer país em situação
de “desastre ambiental”, conforme se pode observar no art. 14, § 3º, in verbis:
547

§ 3º. O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser


concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de
grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de
calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave
violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário,
ou em outras hipóteses, na forma de regulamento. [grifei].

Embora o Brasil não tenha considerado os Refugiados Ambientais como


passíveis de proteção pelo Estatuto do Refugiado, a previsão legal desse grupo
na Lei de Migração pode ser vista como uma conquista no país, visto que, até
então, nenhum diploma nacional fazia referência expressa a sua existência.
Além disso, a nova lei entendeu que este grupo passa por graves crises
humanitárias, não havendo como tratá-los como um turista, por exemplo, motivo
pelo qual lhes possibilita a concessão do Visto Humanitário.
Em que pese a Lei não ter regulamentado o instituto do Visto Humanitário
em seu bojo, o que ficará a cargo de Decretos, esta é a primeira lei a fazer uma
previsão expressa a esse tipo de visto, o que não havia no já revogado Estatuto
do Estrangeiro. Com o exemplo do caso dos haitianos, espera-se que a
concessão desses vistos não seja amarrada pela burocracia, mas que traga
mecanismos capazes de assegurar uma proteção especial àqueles que migram
em decorrência de catástrofes naturais.

CONCLUSÃO

A partir do presente estudo, pôde-se constatar que a definição de


refugiado não é um conceito estanque, tendo sofrido significativas modificações
desde a sua carta de nascimento com a Convenção de 1951. Tanto é verdade
que foi preciso o Protocolo de 1967 para ampliar o seu âmbito de proteção,
abarcando, a partir de então, qualquer pessoa que estivesse enquadrada na
definição conjugada dos dois documentos.
Mesmo com o dinamismo presente nos contextos das migrações atuais,
a comunidade internacional ainda não reconhece aos Refugiados ambientais o
status de refugiado, sob o pretexto de ausência de previsão legal. No entanto,
conforme foi constatado no decorrer da pesquisa, a definição de refugiado não
é imutável, e pode ser alterada para proteger novos grupos que porventura
venham a sofrer graves violações de direitos humanos nos seus estados origem.
No caso do Brasil, constatou-se que, embora tenha importado a definição
ampliada de refugiados em sua legislação interna atinente ao refúgio, não
reconheceu o instituto do refúgio ambiental quando teve a oportunidade de fazê-
lo, no caso dos haitianos, deixando este grupo ao alvedrio do antigo Estatuto do
estrangeiro.
No entanto, apesar de não os ter considerado como refugiados,
concedeu-lhes o chamado Visto humanitário, nos termos da Resolução n. 97 do
CNIg. Este tipo de visto foi incorporado na Lei 13.445/2017 – nova lei de
migração – e hoje pode ser concedido a vítimas de desastres naturais, em uma
clara referência aos Refugiados ambientais.
Esta foi a primeira vez que uma lei nacional fez referência aos refugiados
ambientais. Apesar da conquista, espera-se que os Vistos humanitários se
desamarrem da burocracia que foi vista na Resolução Normativa n. 97 do CNIg,
e sejam instrumento de proteção efetiva.
548

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137, mai. 2018
550

AS MEDIDAS DE PROCESSOS E MÉTODOS DE PRODUÇÃO (PMPS) NO


COMÉRCIO INTERNACIONAL COMO POLÍTICA PÚBLICA PARA A
PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
THE PROCESSES AND PRODUCTION METHODS (PPMS) MEASURES IN
INTERNATIONAL TRADE AS PUBLIC POLICY FOR THE PROMOTION OF
SUSTAINABLE DEVELOPMENT

Luísa Ortiz Thomazella

Resumo: Este trabalho apresenta e discute os processos e métodos de


produção (PMPs) associados a aspectos não físicos dentro da disciplina jurídica
da Organização Mundial do Comércio (OMC). Explora a possibilidade de
implementação de medidas envolvendo esses aspectos para a promoção do
desenvolvimento sustentável e proteção ambiental com base nas exceções
gerais do Artigo XX do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio de 1994 (GATT
94). Identifica e analisa objetivamente os problemas mais expressivos relativos
a tais medidas, estabelecendo-as no contexto do debate atual e dentro da
atividade regulatória estatal. Apresenta e compara os casos mais relevantes
envolvendo essas medidas que foram solucionados no âmbito do GATT e da
OMC, além de identificar a forma como as exceções gerais foram aplicadas. Por
fim, identifica a necessidade de ampliação do conteúdo das exceções gerais e
de uma nova forma de abordagem da OMC com relação à regulação doméstica
dos Estados membros.
Palavras-chave: processos e métodos de produção. OMC. Exceções não
comerciais.

Abstract: This paper presents and discusses the processes and production
methods (PMPs) associated with non-physical aspects within the World Trade
Organization (WTO) legal discipline. It explores the possibility of implementing
measures involving these aspects for the promotion of sustainable development
and environmental protection based on the general exceptions of Article XX of
the 1994 General Agreement on Tariffs and Trade (GATT 94). Objectively
identifies and analyzes the most significant problems related to such measures,
establishing them in the context of the current debate and within state regulatory
activity. It presents and compares the most relevant cases involving these
measures that have been resolved under the GATT and WTO, and identifies how
the general exceptions were applied. Finally, it identifies the need to broaden the
content of the general exceptions and a new form of WTO approach to domestic
regulation of member states.
Keywords: Processes and production methods. WTO. General exceptions.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas algumas questões começaram a ganhar destaque,


influenciando as relações comerciais entre os países e demandando
acolhimento pelos órgãos internacionais, p. ex. a preocupação com o meio
ambiente, com a sustentabilidade e a escassez dos recursos naturais, que
demandam cooperação entre os Estados.
Em busca da promoção dessas questões, alguns Estados adotam
medidas que afetam o comércio internacional, o que por sua vez gera conflitos
551

perante a Organização Mundial do Comércio (OMC) no âmbito de seus acordos.


Dentre essas medidas, as medidas dos Processos e Métodos de Produção
(PMPs) não físicos chamam atenção por seu difícil enquadramento dentro da
disciplina jurídica da OMC.

1. MEDIDAS DE PMPs

Essas medidas geralmente estão associadas a objetivos sociais e ao


comércio de produtos sem implicar qualquer alteração física, aparência, forma
ou conteúdo no produto final. Elas são implementadas, como forma de corrigir
as falhas de mercado internas, e normalmente visam proteger o mercado
nacional restringindo a importação de produtos que não observem certos
aspectos determinados pelo país importador e, por outro, como políticas públicas
específicas para a promoção de um certo objetivo relevante.
Essas medidas de aspecto não físico têm três desdobramentos principais
(CONRAD, 2011, p. 3-4): tem o poder de afetar a economia e a lógica econômica
para intervenção do Estado no mercado; interferem na atividade regulatória
interna do Estado; e envolvem também questões legais. Ainda, quando inseridas
no contexto internacional, elas afetam bens estrangeiros com relação a produção
e comercialização (ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND
DEVELOPMENT, 1997, p. 9). Logo, na medida que ultrapassam fronteiras
nacionais territoriais, elas têm potencial para afetar a regulação de outros
Estados.
Por interferirem no comércio internacional, elas têm sido objeto de vários
casos julgados pelo Sistema de Solução de Disputas da OMC. Predomina o
entendimento que elas podem caracterizar violações a acordos e princípios da
OMC, como às regras da obrigação de tratamento nacional e nação mais
favorecida, dependendo da forma pela qual são implementadas. Assim, surge o
problema de definir os limites da atuação soberana de cada estado no comércio
internacional.

1.1 MEDIDAS DE PMP COMO POLÍTICA PÚBLICA

Nas ultimas décadas verificou-se a proliferação de novas regulações,


principalmente de uma maneira a estimular a responsabilidade social das
organizações do setor privado (WINDHOLZ e HODGE, 2013, p. 16-17).
Em 1972 os EUA promulgaram o Ato de Proteção de Mamíferos Marinhos
para reduzir o número de golfinhos mortos na pesca do atum albacora. A medida
previa a imposição de vários embargos às importações provenientes de países
que não aderissem a sua regulação.
O ato constituiu uma política pública, pois, política pública é "uma regra
formulada por alguma autoridade governamental que expressa uma intenção de
influenciar, alterar, regular, o comportamento individual ou coletivo através do
uso de sanções positivas ou negativas” (LOWI apud REZENDE, 2004, p. 13).
Ainda, é medida de regulação, pois serve ao Estado para a promoção do fim
social relevante: a proteção da fauna e o desenvolvimento sustentável.
Destaca-se que sustentabilidade define uma forma de crescimento que se
sustenta ambiental, social e economicamente (FREITAS, 2012, p. 65-74),
evitando ou anulando prejuízo ao desempenho futuro, pautado pelo uso
consciente de recursos naturais, pela proteção ambiental, por boas práticas
552

produtivas, evitando desperdício e uso consciente de recursos no processo


produtivo, bem como pela preocupação ou objetivo de promover o
desenvolvimento humano e garantir a todos um meio ambiente saudável.
Portanto, as medidas de PMPs, como já destacado, podem ser criadas
para a promoção do desenvolvimento sustentável a depender de seus objetos e
contornos.

2. DESDOBRAMENTOS PERANTE A OMC

O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) da OMC foi criado para


eliminar as barreiras e diminuir as tarifas do comércio de produtos e, seus os
objetivos restringem a proteção dos mercados domésticos dos membros do
acordo. Contudo, existem algumas exceções para adoção de medidas
prejudiciais ao comércio desde que “necessárias à proteção da saúde e da vida
das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais” e “relativas à
conservação dos recursos naturais esgotáveis” (artigo XX) e que não constituam
“meio de discriminação arbitrário ou injustificável entre os países onde as
mesmas condições existem” ou “restrição disfarçada ao comércio internacional”.
Verifica-se que muitos dos casos da OMC envolvendo medidas de PMPs
e as referidas exceções relacionam-se com a proteção ambiental, vários deles
com repercussões no Brasil (caso da Gasolina, caso dos Pneus Reformados e
o caso do Asbesto (Amianto)) e considerados compatíveis com as exceções não
comerciais.
Ademais, o Brasil apresenta extensa atividade regulatória sobre o
mercado objetivando favorecer seu crescimento sem comprometer o
desenvolvimento de políticas sociais. Ao mesmo tempo, em razão de seu
processo histórico, das proporções continentais e da distância de economias
mais desenvolvidas, o país criou e emprega um modo próprio com relação aos
seus produtos e serviços. Característica que dificulta e afeta a dinâmica da
importação de bens e reflete na forma como o Estado regulamenta o mercado,
a produção e metas sociais importantes.
Nesse ponto, a situação brasileira é preocupante. Pois, existe uma
enorme quantidade de regulações e políticas fiscais pouco atrativas adotadas
nas últimas décadas. As políticas brasileiras acabam optando por fornecer
subsídios às empresas e obstaculizar o comércio, quando na verdade poderiam
estimular parcerias com investidores estrangeiros que atraíssem algumas etapas
produtivas para o país e evitar litígios na OMC contra o Brasil.
Assim, o estudo de como os PMPs ambientais se inserem juridicamente
no comércio internacional e de como os países desenvolvem suas políticas
públicas sociais é de fundamental importância para as relações comerciais de
qualquer Estado, principalmente no caso de países em desenvolvimento, como
o Brasil. Esse tem sido o entendimento inclusive da própria OMC. A Organização
se viu compelida a lidar com a questão da regulação doméstica tendo em vista
o aumento da interferência nas questões comerciais e a interdependência
econômica entre os países. E, embora vários casos já tenham sido avaliados,
ainda não se encontrou uma solução a nível global.

3. PERSPECTIVA PARA CONCILIAÇÃO


553

O processo de globalização não gerou apenas desenvolvimento


comercial, mas também gerou a globalização das falhas do mercado: se o
funcionamento do mercado apresenta falhas, transpor o comércio para o nível
internacional faz com que as falhas sejam ampliadas. Ao mesmo tempo existe
uma lacuna regulatória global, pois inexiste organismo internacional com essa
função. E, enquanto instituições internacionais capazes de prover a regulação a
nível global inexistem, a regulação doméstica não deveria ser prejudicada pelas
restrições da OMC.
Além disso, o dano ambiental e, guardadas as devidas proporções, outros
danos sociais, são externalidades negativas do mercado e, portanto, não devem
ser ignorados e tampouco gerar vantagens competitivas ou comparativas para
produtores ou países (CONRAD, 2011, p. 465). Logo, medidas regulatórias
representam uma ferramenta adequada para excluir essas vantagens, criando
igualdade de condições.
Por natureza, a OMC é o ponto comum que conecta Estados com
diferentes posturas e práticas regulatórias e isso deve ser explorado para facilitar
a construção de soluções efetivas para a globalização das falhas do mercado. A
regulamentação doméstica, desde que efetivamente contribua com os objetivos
do sistema multilateral de comércio e coadune com razões econômicas
fundamentais, deveria ser presumida de acordo com a OMC.

CONCLUSÃO

Embora não haja consenso quanto à forma lidar com as questões


ambientais dentro do sistema multilateral de comércio, é geral o reconhecimento
de sua importância e da necessidade de uma solução que permita aos Estados
ter liberdade para geri-las conforme as necessidades e características de sua
realidade econômica e social.
Por isso, entende-se que a opção pelo uso de ferramentas regulatórias já
existentes é bastante pertinente e adequada como uma solução que permite ao
mesmo tempo a realização de interesses sociais. Enquanto não existe no cenário
internacional nenhum outro meio possível de acomodar os o desenvolvimento
do comércio e a atuação dos Estados na promoção seus interesses legítimos, é
fundamental permitir que a atividade regulatória doméstica esteja em
conformidade com as regras da OMC e, ao mesmo tempo, realize essa função.

REFERÊNCIAS

CONRAD, Christiane R. Processes and production methods (PPMs) in WTO


law: interfacing trade and social goals. United Kingdom: Cambridge University
Press, 2011, 537 p.

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2 ed., Belo Horizonte:


Fórum, 2012.

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Disponível em:
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GD(97)137&docLanguage=En. Acesso em: 25 set. 2017.

REZENDE, F. C. Por Que Falham as Reformas Administrativas? Rio de


Janeiro: Ed. FGV, 2004.

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Tuna. [DS29/R]. jun. 1994. Disponível em:
http://www.worldtradelaw.net/reports/gattpanels/tunadolphinII.pdf. Acesso em:
20 ago. 2017.

WINDHOLZ, Eric; HODGE, Graeme A.. Conceituando regulação social e


econômica: implicações para agentes reguladores e para atividade regulatória
atual. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 264, p. 13-56, set.
2013. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/14076/31331. Acesso
em: 19 out. 2017
555

CASO GOMES LUND VERSUS BRASIL: UMA ANÁLISE DA JUSTIÇA


DE TRANSIÇÃO E DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL BRASILEIRA.
GOMES LUND VERSUS BRAZIL CASE: AN ANALYSIS OF TRANSITIONAL
JUSTICE AND INTERNATIONAL BRAZILIAN RESPONSIBILITY.

Hélcio Carlos Valente de Melo e Silva Neto


Ana Beatriz Henriques de Oliveira

Resumo: O objetivo deste resumo expandido é apresentar, de maneira geral,


um estudo sobre a Justiça de Transição no Brasil após o regime militar (1964 -
1985), por meio da análise específica do caso Gomes Lund vs Brasil na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, estudando aspectos dos direitos
fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil e nos
Tratados Internacionais dentro do referido tema. O trabalho abordará as normas
jus cogens e o Crime de Desaparecimento Forçado; a responsabilidade
internacional dos Estados e o caso Gomes Lund vs Brasil; a Justiça de Transição
no Brasil e a Lei de Anistia.
Palavras-chave: Jus Cogens. Responsabilidade Internacional. Justiça de
Transição.

Abstract: The purpose of this expanded abstract is to present, in general, a study


on Transitional Justice in Brazil after the military regime (1964 - 1985), through
the specific analysis of the case Gomes Lund v Brazil in the Inter-American Court
of Human Rights, studying aspects of fundamental rights provided for in the
Constitution of the Federative Republic of Brazil and in the International Treaties
within the aforementioned theme. The work will address the jus cogens norms
and the Forced Disappearance Crime; the international responsibility of the
States and the Gomes Lund v Brazil’s case; Transitional Justice in Brazil and the
Amnesty Law.
Keywords: Jus Cogens. International Responsability. Transitional Justice.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa apresentar um estudo geral sobre a Justiça de


Transição no Brasil após o regime militar (1964-1985), de maneira a analisar
especificamente os Crimes de Desaparecimento Forçados ocorridos sobre a
égide desse governo totalitário e como tais atos ilícitos são percebidos no âmbito
da jurisdição internacional.
Por meio de um exame da jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Gomes Lund vs Brasil, será possível estabelecer se
a Justiça de Transição se consolidou efetivamente no país e, em caso negativo,
quais os deveres do Estado brasileiro para aproximar-se dela concretamente.

2. DESENVOLVIMENTO E DISCUSSÃO

As normas jus cogens são amplamente conceituadas como normas


imperativas de Direito Internacional geral, isto é, possuem caráter de
obrigatoriedade e dispensam a ratificação por parte do Estado, assim como não
são passíveis de derrogação e independem, portanto, do conteúdo de legislação
interna para a sua aplicação.
556

As referidas normas derivam do direito consuetudinário, qual seja aquele


direito que tem origem nos costumes: práticas desenvolvidas e reiteradas pela
comunidade internacional que ganham caráter de imperatividade, mesmo não
havendo sido submetidas a qualquer processo legislativo formal, fato que não
obsta sua possível positivação. Nesse sentido, até a própria definição de normas
jus cogens pode ser encontrada positivada em instrumentos internacionais como
na Convenção de Viena de 1969 em seus artigos 53 e 64.
Sobre a supracitada seara, a codificação de normas jus cogens pode em
muito contribuir para sua consolidação perante a comunidade internacional da
feita que a codificação do Direito Internacional visa a organização de normas que
se encontram muitas vezes dispersas ou incompletas, transformando-as num
conjunto coerente e devidamente sistematizado (FERREIRA DE ALMEIDA,
2011).
Ademais, a característica que realmente captura a essência do presente
artigo é o caráter imperativo das normas jus cogens, que impedem que um
Estado se exima de qualquer forma de obedecê-la, até mesmo quando
incompatível com o direito interno, implicando inclusive em sua
responsabilização internacional, tal como posteriormente será verificado na
análise do Caso Gomes Lund vs Brasil.
Resta dizer que normas jus cogens não portam uma mera
obrigatoriedade, já que verdadeiramente qualquer norma de Direito Internacional
deve ser assim compreendida, mas o caráter de imperatividade jus cogens
diferencia-se drasticamente das demais normas internacionais, uma vez que
pressupõe limitação à autonomia de vontade dos Estados. Tal limitação é
justificada em nome de valores éticos que apenas alcançarão a imperatividade
se forem absolutos e universais (GRANDINO RODAS, 2013).
De fato, as normas jus cogens são imprescindíveis à ordem pública
internacional, a qual objetiva a construção e desenvolvimento de um conjunto
normativo sobre matéria universal que vai além da capacidade jurisdicional
individual dos Estados e que ao mesmo tempo sobressai-se a esta com
aplicação, portanto, universal (KOWALSKI,2012). Visto isso, as normas jus
cogens, além de serem condizentes com os objetivos da mencionada ordem
pública internacional, também reforçam os princípios internacionais de igualdade
e de solidariedade entre países. Ademais, representam, acima de tudo, a
concretização da Dignidade Humana como padrão universal.
No contexto atual existem diversas normas consideradas jus cogens,
como as proibições de Tortura, Escravidão, Genocídio e mais recentemente até
o Acesso à Justiça, entre outras. Neste seleto grupo, insere-se também a
proibição ao Crime de Desaparecimento Forçado, o qual corresponde a uma das
violações à Direitos Humanos mais frequentes durante a Ditadura Militar
brasileira.
O supracitado crime relaciona-se intrinsicamente às liberdades
indispensáveis à humanidade e está amplamente previsto em instrumentos
jurídicos internacionais, dentre os quais a Convenção Internacional para a
Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado; a
Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos
Forçados; a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de
Pessoas.
Por meio da análise destes instrumentos jurídicos internacionais é
possível a conceituação do Crime de Desaparecimento Forçado, qual seja a
557

privação da liberdade de um indivíduo levada à cabo por agentes de governo ou


por terceiros autorizados, expressa ou tacitamente, pelo Estado; somado a isso
deve haver a recusa em admitir a detenção da pessoa ou a negação em revelar
seu paradeiro (FIGUEIREDO RODRIGUES, 2011)
Importa, portanto, verificar a importância e gravidade desta violação para
a comunidade internacional, da feita que vários outros direitos são violados a
partir dessa prática, não somente os da vítima direta, mas também de seus
familiares. Direitos Fundamentais como à Dignidade, à Integridade, à Saúde são
extremamente mitigados nessas condições, sem falar que em diversos casos ao
longo da história o Desaparecimento forçado de Pessoas acontece
simultaneamente com o Crime de Tortura e que em grande parte, os
desaparecidos não são encontrados com vida ou mesmo não são sequer
encontrados.
Ao considerar todos os aspectos do referido crime e que a sua proibição
é tida como norma imperativa de Direito Internacional geral permite-se concluir
que não importa que um Estado ratifique ou não a proibição; que é
desconsiderada qualquer derrogação desta norma por parte deste e que, além
disso, está sujeito à Responsabilização Internacional caso atue, comissiva ou
omissivamente, de maneira a violar a proibição do Desaparecimento Forçado de
Pessoas.
Para que ocorra a responsabilização devem ser obedecidos certos
requisitos, quais sejam: a pratica de fato internacionalmente ilícito, podendo ser
delito (crimes transnacionais, envolvendo mais de uma jurisdição), crimes
internacionais (previstos no Estatuto de Roma de 1998) ou qualquer ato ilícito,
como os de matéria civil, comercial, etc. Além disso, exige-se o nexo de
causalidade e a ação ou omissão do Estado perpetrado por qualquer um de seus
três poderes (CARVALHO RAMOS, 2005).
Como consequência um Estado pode ser sujeito á três medidas, as quais
não precisam ser aplicadas individualmente: a cessação do ato ilícito; garantias
de não repetição e a reparação dos danos.
Apesar de haver mais de um mecanismo de responsabilização, quais
sejam o unilateral que ocorre entre Estados, como nos casos de embargo
econômico, remoção de representação consular, etc., este resumo demonstrará
apenas a responsabilização de modalidade coletiva sofrida pelo Brasil no caso
Gomes Lund. Esse tipo de responsabilização é aplicado por um órgão
internacional, podendo ser uma recomendação (caráter não vinculante) ou
sentença (caráter vinculante), como aquelas aplicadas pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
O caso Gomes Lund vs Brasil representou um marco histórico para a
Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois trata-se da primeira
condenação relacionada ao regime militar do Brasil, maior e mais poderoso país
da américa latina. Para tanto, a Corte IDH precisou aplicar uma exceção ao
requisito de admissibilidade que diz respeito ao esgotamento das vias internas,
uma vez que se constatou que a demora no trâmite de recursos internos e a
negligência com os casos que envolviam o regime militar no judiciário brasileiro
eram fatores importantes que obstavam o acesso de muitos requerentes à justiça
efetiva e consequentemente à jurisdição internacional.
Em 7 de agosto de 1995, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional
(CEJIL) em conjunto com a Human Rights Watch/Americas apresentaram uma
petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, representando os
558

interesses dos combatentes da Guerrilha do Araguaia e seus familiares. A


Comissão Interamericana de Direitos Humanos expediu Relatório de
Admissibilidade do caso em 2001 e em 2008 aprovou o Relatório de Mérito n.º
91/08, contendo diversas notificações ao Estado brasileiro, o mesmo foi
notificado e recebeu o prazo de 2 meses para que executasse ações em
obediência às referidas recomendações e então as informasse à Comissão.
Após o descumprimento das recomendações da Comissão
Interamericana de maneira satisfatória no prazo concedido pelo Estado, o caso
foi submetido à Corte IDH, onde seria analisada a responsabilidade do Estado
brasileiro pelo desaparecimento forçado, pela tortura e detenção arbitrária de 70
pessoas, perpetradas pelo exército brasileiro durante o regime militar com fulcro
de extinguir a Guerrilha do Araguaia.
Dentre as considerações importantes feitas pela Comissão IDH à Corte
IDH, era o fato de que a Lei de Anistia brasileira ( Lei n.º 6.683/79) vinha
representando, desde sua criação, a justificativa pela qual o Brasil deixou de
investigar penalmente, de julgar e aplicar sanções aos responsáveis pela prática
dos crimes supracitados contra guerrilheiros, camponeses e seus familiares.
Ademais, nem mesmo os recursos judiciais cíveis, apresentados por muitos
familiares, foram eficazes em garantir o acesso efetivo às informações sobre o
que teria acontecido na Guerrilha do Araguaia e que fim teriam levado as 70
vítimas do Estado brasileiro.
O Estado apresentou exceções, dentre as quais vale mencionar o pedido
de incompetência da Corte IDH devido à falta de esgotamento dos recursos
internos e o pedido de arquivamento do caso, solicitando subsidiariamente que
o Tribunal reconhecesse as ações consagradas em âmbito nacional, uma vez
que estas melhor representam as necessidades brasileiras de “reconciliação
nacional” e estão melhor adaptadas ao contexto nacional.
Não obstante as alegações do Estado naquele contexto, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos declarou-se competente para analisar os
Desaparecimentos Forçados ocorridos durante o regime militar-com observância
à data do reconhecimento da competência contenciosa da Corte pelo Estado
que se deu em dezembro de 1998- pelo fato de que o Crime de Desaparecimento
Forçado possui caráter de crime permanente, tendo início com a privação da
liberdade e a consequente falta de informações sobre o paradeiro da vítima,
como melhor explicitado no tópico 2 deste artigo.
No que tange a gravidade dos crimes analisados no caso, ressalta-se
novamente a característica jus cogens das violações:

A Corte verificou a consolidação internacional na análise desse crime,


o qual configura uma grave violação de direitos humanos, dada a
particular relevância das transgressões que implica e a natureza dos
direitos lesionados. A prática de desaparecimentos forçados implica
um crasso abandono dos princípios essenciais em que se fundamenta
o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e sua proibição
alcançou o caráter de jus cogens. (CORTEIDH, 2010, p. 39).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos após extensa análise dos


fatos e mérito do Caso Gomes Lund vs Brasil decidiu que o Estado era de fato
responsável por inúmeras violações de Direitos Humanos contra as vítimas e
seus familiares, tais quais: Direito à Vida; à Integridade; às Liberdades Pessoais;
559

às Garantias e Proteções Judiciais; às Liberdades de Pensamento e de


Expressão.
Neste contexto, foram exigidas do Brasil reparações às partes lesadas,
com aplicação do artigo 63.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o
qual dispõe que toda violação de obrigação internacional deve corresponder ao
dever de reparação adequado por parte de Estado. Entre elas: obrigações de
investigar, julgar e punir os responsáveis e de determinar o paradeiro das
vítimas; medidas de reabilitação, satisfação e garantias de não repetição e
obrigações de indenizar mais as custas e os gastos.
Sobre a Responsabilidade Internacional do Brasil no caso Gomes Lund,
a Corte IDH ainda ressalta que as disposições da Lei de Anistia são
incompatíveis à Convenção Americana de Direitos Humanos e impedem o
efetivo saneamento das diversas violações de aos direitos ora relatados, assim
como representam entraves à garantia de justiça a todos as vítimas do regime
militar e seus familiares. Desta forma, é dever do Estado brasileiro assegurar
que nenhum obstáculo normativo impeça o devido cumprimento das obrigações
internacionais às quais se submete.
A Lei de Anistia (Lei 6.683/1979) foi promulgada no então Governo de
Figueiredo. Contudo, a tal aclamada anistia se demonstrou muito mais restrita e
parcial do que ela realmente deveria ser, haja vista que, em regra, apenas os
chamados “crimes políticos de sangue” e conexos foram perdoados, enquanto
os crimes políticos cometidos por aqueles que eram contra o governo militar e
eram classificados como terrorismo e atentado pessoal, não foram perdoados,
como era determinado pelo Art. 1º, §2º da lei:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido


entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram
crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que
tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da
Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder
público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos
Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com
fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados
pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado
pessoal. (BRASIL. Lei 6683/79).

Em suma, isso significava que o verdadeiro anistiado era o Estado e não


a totalidade o povo brasileiro.
Diante dos já conhecidos fatos que acarretaram o fim do período de
governo militar e com o advento da constituinte, os direitos fundamentais e
individuais foram integrados na carta magna brasileira e, a partir de então, a
população passou a ter mais noção dos absurdos que sofreu no decorrer da
ditadura civil militar. A sensação de uma impunidade, que realmente existe, para
com o Estado que governou naquele período apenas aumentou e as famílias
prejudicadas começaram a exigir respostas e reparações daqueles que tanto os
prejudicaram, seja de maneira penal, civil ou até mesmo com o esclarecimento
sobre tudo que foi feito e ainda está obscuro.
Desse modo, em 1995, foi sancionada a Lei 9140/1995 que abria a
CEMDP – Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, pelo então
560

presidente Fernando Henrique Cardoso. Essa comissão ficou responsável de


investigar casos de crimes motivados por crimes políticos contra vítimas que
foram mortas durante o regime militar, incluindo também casos de sequestros,
torturas, prisões e violação dos direitos de estrangeiros que moravam no Brasil.
A CEMDP foi vista de forma positiva no sentido de que era a primeira vez que o
Brasil, oficialmente como Nação, reconhecia e assumia sua responsabilidade
sobre todos os abusos cometidos durante a época militar, contudo ainda não era
suficiente, uma vez ela não identificava ou punia os responsáveis pelos crimes.
Em decorrência desta Comissão, outras surgiram com o objetivo de esclarecer
fatos da época e tentar reverter impunidades deixadas pela anistia, até que em
2011 a CNV – Comissão Nacional da Verdade foi criada.
A CNV foi instituída com o objetivo de investigar graves violações
de direitos humanos cometidas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro
de 1988. Através de entrevistas com familiares das vítimas e antigos presos
políticos, investigações dentro das forças armadas e pesquisas documentais a
comissão elaborou relatórios e laudos periciais que constataram as violações no
Brasil e no exterior, praticadas por "agentes públicos, pessoas a seu serviço,
com apoio ou no interesse do Estado" brasileiro. Todavia, apesar da CNV lutar
pela responsabilização individual daqueles que realizaram abusos, a própria
corte suprema brasileira, o Supremo Tribunal Federal, não de demonstra solícito
em auxiliar as famílias e se mostrando a favor da Lei de Anistia. Como Abrão e
Torelly narram:

Isso significa que a Comissão da Verdade tem poderes para apurar


todas as violações ocorridas, verificando um certo grau de
responsabilidade, uma responsabilidade individual em sentido amplo.
Não uma responsabilidade estritamente jurídica ou judicial, mas sim no
escopo do exercício do direito à verdade que é pertencente às vítimas
e a toda a sociedade. O próprio STF brasileiro negou o direito à
proteção judicial das vítimas, impedindo a investigação criminal dos
fatos cobertos pela Lei de Anistia, mas afirmou o direito à verdade da
sociedade. (ABRÃO; TORELLY,2012, p.15).

Assim sendo, não se observa qualquer aspecto de Justiça de Transição


que tenha ocorrido de fato no Estado Brasileiro. Nenhuma ditadura pode ferir os
direitos fundamentais, cometer crimes e ficar impune diante da sociedade e da
justiça. A mera responsabilização simbólica do Estado não pode servir como
uma sanção individual para os verdadeiros agentes que praticaram crimes em
nome do governo; observando o fato de que o Brasil atuou na contramão dos
outros vizinhos da América Latina, pois foi o único que não atuou, na prática,
valorizando o direito a verdade e a memória.
Vale ressaltar que para segundo (ABRÃO; TORELLY,2012) é necessário
que para existir a Justiça de Transição se faz necessário que haja a
complementaridade, a circularidade e a contextualidade. A complementaridade
determina que verdade, memória, justiça e reparação são elementos que se
misturam, tendo suas funções complementando uma a outra, ou seja, sendo
interdependentes; ou seja, olhando sobre a ótica do Brasil, não basta a CNV
fazer seu trabalho, é imprescindível que o judiciário brasileiro faça a reparação
daqueles que um dia foram prejudicados. No que tange a Circularidade, é
necessário que as revelações da CNV provoquem o judiciário para que, dessa
forma, novas memórias sejam produzidas e a justiça se manifeste, pois esse
conceito afirma que os resultados de um instrumento remetem a imprescindível
561

necessidade de aplicação dos outros. E por fim a contextualidade que fala sobre
a obrigatória análise do contexto em que se passou a transição do local, levando
em consideração a história, a política, a economia e em que momento essa
transição se dará; no caso do Brasil, a ditadura se deu em uma caça a uma
suposta ameaça comunista em um período intenso de guerra fria

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das bibliografias estudadas e da observação histórica acerca do


Caso Gomes Lund vs Brasil, foi possível observar em que medida o processo de
redemocratização, a assinatura dos tratados internacionais e o os anseios
populacionais conseguiram realizar a justiça de transição dentro do território
brasileiro. A busca por justiça é constante e a legitimidade dela é incontestável.
As vítimas não apenas aquelas que tiveram seus direitos fundamentais
ignorados por uma ideologia política arbitrária de quem estava no poder, são
também os pais, os cônjuges e os filhos que até os dias atuais buscam direito a
memória, a verdade e a justiça. O advento das Comissões Nacionais, as
assinaturas de tratados, o processo de constitucionalização e o início da
responsabilização do Estado já têm servido de alento a quem tanto perdeu anos
atrás.
Contudo, como foi abordado durante o texto, para a justiça de transição
ser realizada, alguns parâmetros devem acontecer, ou pelo menos deveriam ter
acontecido. O fato de a Suprema Corte brasileira não ter interesse de se
aprofundar nos casos particulares, por respeito a uma lei de anistia que não
representa atualmente o amadurecimento que o Direito Interno e Externo
possuem, é inadmissível. Vale ressaltar que é de vontade de todo e qualquer
povo que a justiça não chegue apenas a periferia ou a quem comete crimes
contra o patrimônio, mas também a aqueles que ocupam ou já ocuparam cargos
do alto escalão no governo, ou seja, aqueles que torturaram, mataram e
ignoraram todo e qualquer direito humano em nome do Estado.
Ademais, da mesma maneira que outros países da América Latina os
quais passaram por semelhante processo de ditadura militar e conseguiram
fazer a justiça de transição, exige-se a mesma competência e o mesmo empenho
por parte do Estado Brasileiro, pois como o próprio Estado Argentino diz “No hay
verdad sin justicia” (Não há verdade sem justiça). Portanto, entende-se que é
dever do Estado Democrático de Direito consertar a imagem deixada por um
governo autoritário, buscando a preservação dos direitos humanos repudiando
todo e qualquer crime que tenha caráter de extrema violência e, acima de tudo,
ser ativo e operante na guarda de nossos direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS

ABRÃO, Paulo; TORELLY; Marcelo D. A Terceira Fase da Luta pela Anistia.


Revista de Direito Brasileira, 2012.

ALMEIDA, Francisco Antonio de M. L. Ferreira de. Codificação e


Desenvolvimento Progressivo do Direito Internacional Penal. Universidade
de Coimbra, 2012.
562

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KOWALSKI, Mateus. A “Ordem Pública Universal” Como Fim da História.


Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2012.
563

CATÁSTROFE SOCIOAMBIENTAL: TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E


ROMPIMENTO DE BARRAGENS DE MINERAÇÃO
SOCIO-ENVIRONMENTAL CATASTROPHE: INTERNATIONAL CRIMINAL
COURT AND MINING DAM BREAKING

Vinícius Gurgel Araújo


Maria Gabriela Vaz de Oliveira

Resumo: A presente pesquisa busca analisar, inicialmente, a contraposição


entre a visão biocêntrica, em que o ser humano é parte integrante do
ecossistema, e a antropocêntrica, que toma o homem como centro, em um
contexto de proteção internacional do meio ambiente. Em segundo lugar,
dissertar sobre como o Tribunal Penal Internacional funciona. Além disso,
analisar a proposta de Polly Higgins, através do Ecocide Act, de incluir o ecocídio
como um novo crime e suas incongruências com o Estatuto de Roma. Ainda,
analisar o Policy Paper on Case Selection and Prioritization e o critério de
seleção de casos do tribunal. Ademais, investigar porque o Tribunal Penal
Internacional deve julgar os crimes causadores dos desastres ambientais e
consequentemente o ecocídio, protegendo, assim, a humanidade e o meio do
qual o homem faz parte, o meio ambiente. Por fim, busca-se entender por que o
rompimento de barragens de rejeitos deve ser enquadrado como ecocídio.
Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional. Rompimento de barragens de
mineração. Biocentrismo.

Abstract: The presented work seeks to analyze, initially, the opposition between
the biocentric vision, that takes the human being as part of the ecosystem, and
the anthropocentric vision, that takes the human being as center, in a context of
international protection of the environment. Secondly, dissert about how the
International Criminal Court works. Besides that, analyze the Polly Higgins
proposal, through the Ecocide Act, of including the ecocide as a new crime and
its incongruities with the Rome Statute. More, analyze the Policy Paper on Case
Selection and Prioritization and its court case selection criteria. In addition,
investigate why the International Criminal Court should judge the crimes that
causes environmental disasters and by consequence the ecocide, protecting, like
this, humanity and the environment, that man is part of. Lastly, seeks to
understand why the mining dam breaking must be framed as ecocide.
Keywords: International Criminal Court. Mining dam breaking. Biocentrism.

1. INTRODUÇÃO

O tema-problema da pesquisa que se pretende desenvolver é o dever do


Tribunal Penal Internacional agir quando se tratando do rompimento de
barragens de rejeito de mineração e o enorme dano humano e ambiental
associado a ele. O problema objeto da investigação científica proposta é: o
Tribunal Penal Internacional pode julgar os crimes envolvidos no rompimento de
barragens de mineração?
A partir das reflexões preliminares sobre o tema, é possível afirmar
inicialmente que tendo em vista o enorme dano ambiental e humano causado
pelos rompimentos de barragens, é necessário que sejam punidos os
responsáveis pelo ocorrido. O Estatuto de Roma, devido ao princípio da
564

legalidade, não permite que pessoas sejam penalizadas por crimes que não
existem no Estatuto, o que dificulta a ação do Tribunal nesse caso. Portanto,
tendo em vista o caráter complementar do Tribunal Penal Internacional, é
necessário que, na falta de ação da justiça nacional de onde acontecer o caso,
o órgão haja para punir os envolvidos nessa catástrofe socioambiental.
O objetivo geral do trabalho é analisar como a gravidade dos crimes
socioambientais que causaram o rompimento de barragens de rejeito de
mineração urgem pela atuação do Tribunal Penal Internacional. A pesquisa que
se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-sociológica. No tocante ao
tipo de investigação, foi escolhido, na classificação de Witker (1985) e Gustin
(2010), o tipo jurídico-projetivo. O raciocínio desenvolvido na pesquisa será
predominantemente hipotético-dedutivo.

2. DESENVOLVIMENTO

Jorge Mario Bergoglio, também conhecido como Papa Francisco é o 266º


Papa da Igreja Católica Apostólica Romana e é o atual chefe de Estado do
Vaticano. Assumiu o cargo após a abdicação de Bento XVI. Francisco pertence
à ordem dos Jesuítas e é o primeiro Papa nascido na América Latina. Na sua
primeira missa como Papa, ele reiterou o defendido por Francisco de Assis, que
é necessário o respeito por todas as criaturas de Deus e o ambiente em que
vivem, apelando aos outros governantes que desenvolvessem seus países sem
destruir o criado por Deus. Em 2015, publicou Laudato si, na qual criticou a
degradação ambiental, defendeu o cuidado com a casa comum do ser humano
e uma Ecologia Integral, aliada a educação ambiental.

‘Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos
sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e
verduras’. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa
do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou.
Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores,
autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano
ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos
no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres
mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e
devastada, que ‘geme e sofre as dores do parto’ (Rm 8, 22).
Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso
corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos
respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos. (PAPA FRANCISCO,
2015)

No trecho da Carta Encíclica Laudato si, é possível notar uma noção de


pertencimento do ser humano à natureza. O Papa defende que a natureza faz
parte da constituição do ser humano e que o uso irresponsável do meio
ambiente, aliado à ganância e violência humana, é o que provoca os problemas
ambientais que a humanidade vivencia. O líder da Igreja Católica diz que o
homem não estabelece uma relação de posse ou domínio com a natureza, na
verdade é seu dever cuidar dos bens naturais criados por Deus.
Assim, Francisco é um defensor do uso responsável do meio ambiente e
em um contexto onde os rompimentos de barragem geram um imenso dano
ambiental e humano, é necessário que a humanidade repense sua
responsabilidade perante a natureza. O homem tem o dever de zelo com o meio
ambiente e quando essa proteção é substituída pela degradação, é necessário
565

que medidas sejam tomadas para punir os responsáveis pela destruição


ambiental e seus reflexos nas comunidades humanas, preferencialmente no
âmbito nacional e subsidiariamente no âmbito internacional.

Assim foram surgindo enfoques antropocêntricos ou biocêntricos na


discussão ética da ecologia. Uns partem do pressuposto de que o ser
humano detém um protagonismo no mundo. Buscam a solução para
os problemas ambientais na perspectiva do papel central do ser
humano em relação à natureza. Outros defendem que o ser humano é
apenas um elemento a mais no ecossistema da natureza, um elo ao
lado de outros na cadeia de reprodução da vida. Por isso, o
protagonismo pertence à vida. Para estes, a crise ecológica precisa ser
equacionada numa perspectiva biocêntrica. (JUNGES, 2001, p. 33)

No contexto atual, em que o meio ambiente carece de medidas de


proteção efetivas no âmbito internacional, é necessário que a noção
antropocêntrica de mundo seja substituída gradativamente pela biocêntrica, já
que entender o ser humano como integrante do ecossistema viabiliza uma noção
de pertencimento e fortalece uma vontade do homem de proteger aquilo do que
faz parte. Com isso, a mudança de uma noção de centralidade do mundo para
uma noção de parte integrante de um todo maior é o que pode permitir um
fortalecimento de ações que visem proteger o meio ambiente e punir aqueles
responsáveis pelo seu uso irresponsável ou pela sua degradação.
Com o debate crescente acerca do papel do ser humano em relação ao
meio ambiente e da proteção dos ecossistemas, um dos maiores marcos para o
movimento ambientalista foi a Conferência da Organização das Nações Unidas
para o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo em 1972. Nesse evento,
ficou acordada a Declaração de Estocolmo, importante documento que
reconheceu a necessidade de proteção do meio ambiente. Dentro dessa
declaração foram estabelecidos diversos princípios que regem a interação do
homem com o ambiente, dentre os quais deve ser alvo de consideração especial
o Princípio 1:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao


desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de
qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-
estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio
ambiente para as gerações presentes e futuras (UNITED NATIONS
CONFERENCE ON THE HUMAN ENVIRONMENT, 1972, p.4,
tradução nossa)1

Por isso, tendo em vista que o homem tem a obrigação de garantir um


meio ambiente digno tanto às gerações presentes quanto às gerações futuras,
quando se tratando da exploração mineral dentro dos Estados, é dever do ser
humano garantir que essa extração de recursos naturais se dê de maneira
sustentável. Portanto, ao tomar como ponto de partida uma visão biocêntrica, o
ser humano é integrante do meio ambiente, deve agir para que a biodiversidade
seja preservada e garantir que tanto a humanidade quanto as gerações futuras
possam usufruir plenamente de uma vida digna e um meio ambiente equilibrado.

1 Man has the fundamental right to freedom, equality and adequate conditions of life, in an
environment of a quality that permits a life of dignity and well-being, and he bears a solemn
responsibility to protect and improve the environment for present and future generations.
566

Antes de ser fundada uma Corte Penal Internacional de caráter


permanente, houve a criação de vários tribunais ad hoc para julgar crimes contra
a humanidade e crimes de guerra, dentre os quais é pertinente destacar o
Tribunal de Nuremberg, o Tribunal de Ruanda e o Tribunal da Iugoslávia.
Entretanto, muito se criticou o fato de que os crimes julgados por esses tribunais
não estavam previamente previstos em nenhum Estatuto de Direito Internacional
quando foram cometidos, ferindo assim o Princípio da Legalidade do Direito
Penal. Nesse contexto, surge a necessidade da criação do Tribunal Penal
Internacional (TPI), de caráter permanente, responsável por julgar crimes que
tenham alcance internacional e por frear a impunidade de indivíduos que
realizem atos que afetem gravemente populações civis.
O Estatuto de Roma que rege o TPI, em seu artigo 25, sobre a
responsabilidade criminal individual determina que “[...] o Tribunal será
competente para julgar as pessoas físicas”. Além disso, o artigo 26 garante que
“O Tribunal não terá jurisdição sobre pessoas que, à data da alegada prática do
crime, não tenham ainda completado 18 anos de idade”. Conclui-se que o TPI
não pode julgar pessoas jurídicas nem menores de 18 anos.
O preâmbulo do Estatuto de Roma, firmado em 2002, reconhece os laços
comuns entre todos os povos, representados por uma cultura e herança
compartilhados e que provocam uma preocupação quanto a conservação dessa
história compartilhada. (BRASIL, 2002). Esse trecho clama pela preservação do
meio ambiente compartilhado por todo o mundo, palco de toda a cultura e
evolução histórica humana. Logo, ressalta-se a responsabilidade dos países
perante um bem de interesse internacional, que, se explorado de maneira
irresponsável, pode causar danos a outros povos, a outros ecossistemas e às
gerações futuras.
O Estatuto de Roma estabelece o TPI como um órgão de atuação
complementar a jurisdição nacional, cabendo primariamente aos países julgar os
delitos cometidos em seu território. De acordo com o artigo 17 §1º do Estatuto,
caso os Estados não tenham o interesse de levar o processo adiante, a fim de
condenar os atos criminosos, ou os países não tiverem a capacidade de o fazer,
cabe ao TPI entrar em ação. No referido artigo, no §2º, a alínea b estipula que
será entendido que o Estado não tem o interesse de levar adiante o processo
quando houver demora injustificada, percebendo que não há a intenção real de
se punir os responsáveis pelos crimes (BRASIL, 2002).
O Tribunal Penal Internacional é regido por uma série de princípios do
Direito Penal, sendo relevante a discussão o Princípio da Legalidade, presente
no artigo 22 do Estatuto que rege o Tribunal. Nesse contexto, o primado nullum
crimen sine lege determina que não há crime sem lei prévia e taxativa que o
descreva. Por isso, o TPI apenas pode condenar os indivíduos que tenham
cometidos crimes existentes no Estatuto de Roma na época da realização da
conduta. Sendo assim, é vedada a retroatividade da lei penal para prejudicar o
réu (BRASIL, 2002).
No artigo 30 do Estatuto, acerca dos Elementos Psicológicos do crime, o
documento reconhece, no §2º, alínea b, que a intenção de cometer o crime, em
relação a seus efeitos, está ligada a ter a consciência de o fato irá acontecer em
uma ordem natural de eventos. (BRASIL, 2002). Além disso, o indivíduo tem
intenção quando, em relação a conduta, se propuser a adotá-la, no que
determina a alínea a do mesmo parágrafo. Por fim, o §3º do referido artigo define
567

como conhecimento a noção de que “um efeito irá ter lugar em uma ordem
natural de eventos” (BRASIL, 2002).
O termo ecocídio foi utilizado pela primeira vez por Arthur Galston na
Conferência sobre Guerra e Responsabilidade Nacional realizada em
Washington em 1970. Galston denunciou os efeitos negativos do uso de
compostos incorporados no Agente Laranja, substância utilizada durante a
Guerra do Vietnã pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. Com isso, o cientista
utilizou do termo ecocídio pela primeira vez como um dano massivo e destruição
de ecossistemas, se referindo ao ocorrido no Vietnã.
Em 2010, Polly Higgins, advogada atrelada a causas ambientais,
apresentou uma proposta de inclusão do ecocídio como um novo crime ao
Estatuto de Roma, que rege o Tribunal Penal Internacional. O Ecocide Act foi
apresentado juntamente a delegação do Vanuatu, na Assembleia dos Estados
Partes do Estatuto de Roma. Esse documento trazia a definição de ecocídio
como “um dano extensivo ao, destruição ou perda dos ecossistemas de um
determinado território, tanto por ação humana quanto por outras causas, numa
extensão que o aproveitamento pacífico do meio ambiente pelos habitantes do
território seja ou venha a ser diminuído severamente” (HIGGINS, 2010, p.157,
tradução nossa)2.
Portanto, mesmo atrelado ao meio ambiente, a criminalização do ecocídio
proposta está conectada diretamente ao prejuízo provocado pela degradação
ambiental aos moradores da região. Essa relação se mostra essencial para a
inclusão do novo tipo penal dentro do Estatuto, já que o TPI foi criado
justamente para julgar crimes que afetem a paz, a segurança e o bem estar da
humanidade conforme determina o Preâmbulo do Estatuto (BRASIL, 2002).
Assim, a relação entre o bem-estar da humanidade e a preservação do meio
ambiente se faz necessária para evitar a degradação ambiental em âmbito
internacional.
Todavia, a proposta apresentada por Higgins, apesar de ter uma boa
intenção, carece de compatibilidade em certos pontos com o Estatuto de Roma.
O Ecocide Act determina, em seu artigo 8º, que companhias, organizações,
parceria ou outro tipo de entidade legal podem ser responsabilizadas pelos
crimes (HIGGINS, 2010, p.160). Essa responsabilização de pessoa jurídica vai
contra o artigo 25 do Estatuto de Roma, já citado previamente, que determina
que apenas pessoas físicas podem ser acusadas de crimes.
Além disso, a definição de ecocídio dada pelo documento estipula que o
dano atrelado ao crime pode ser realizado por ação do homem ou por outras
causas, e, portanto, carece de taxatividade. Consequentemente, a redação do
conceito dado pelo Ecocide Act abre margem para que sejam incluídos como
ecocídio os danos causados por desastres naturais, como o tsunami e o
terremoto. No entanto, é impossível criminalizar conduta que não tenha origem
com uma ação humana, já que as consequências de desastres ambientais
provocados pela força da natureza não podem ser evitadas ou penalizadas.
Em 2016, foi divulgado o Policy paper on case selection and prioritization,
pelo escritório da promotoria do Tribunal Penal Internacional, contendo
2 extensive damage to, destruction of or loss of ecosystem(s) of a given territory, whether by
human agency or by other causes, to such an extent that peaceful enjoyment by the inhabitants
of that territory has been or will be severely diminished.
568

orientações que seriam usadas para a seleção dos casos. É válido ressaltar o
artigo 41 desse documento que determina:

O impacto dos crimes pode ser analisado sob a luz da vulnerabilidade


aumentada de vítimas, o terror subsequente instilado, ou o dano social,
econômico e ambiental infligido às comunidades afetadas, entre
outros. Nesse contexto, a Promotoria irá dar consideração especial
para processor crimes do Estatuto de Roma que são cometidos por
meio de, ou que resultam na destruição do meio ambiente, exploração
ilegal de recursos naturais ou na desapropriação ilegal de terras, entre
outros. (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2016, p.14, tradução
nossa)3

Esse documento é, sem dúvidas, um avanço no que diz respeito ao


reconhecimento da gravidade que é o dano ambiental pelo TPI. Entretanto, essa
diretriz de seleção de casos não pode ser vista como uma criminalização de
ações que destruam o meio ambiente, já que não é competência de o escritório
da promotoria decidir quais os crimes serão julgados pelo tribunal e farão parte
do Estatuto de Roma. Logo, é notável que esse documento apenas traz uma
consideração especial para crimes que resultem na destruição ambiental ou o
utilizem como meio de relação de conduta ilícita.
O Estatuto, em seu artigo 121, as mudanças apenas podem ser feitas se
aprovadas por dois-terços dos Estados Partes em uma Assembleia ou Comissão
de Revisão. (BRASIL, 2002). Dessa maneira, mesmo com a existência do Policy
paper on case selection and prioritization, ainda é necessário que para a
criminalização de condutas que causem danos ao meio ambiente sejam
aprovados nos termos do artigo 121 para serem julgados pelo Tribunal. Assim,
apenas se grande parte dos países aceitarem as mudanças será possível
ampliar a capacidade do Tribunal de julgar condutas que destruam o
ecossistema e prejudiquem o bem-estar da humanidade.
Barragens de mineração são métodos de contenção dos rejeitos
decorrentes da exploração de recursos minerais. Existem diversos métodos de
construção de barragens, sendo o mais barato e comumente usado pelas
empresas de mineração o método de alteamento à montante. No caso de
Brumadinho (2019) e Mariana (2015), era utilizado o método à montante, o que
representa um descaso com a população civil residente próximo às barragens,
já que ela é mais propensa à rompimentos.
Nesse contexto, é evidente a ineficácia do Estado brasileiro no que tange
a tutela e proteção do meio ambiente, além do quase inexistente uso do jus
puniendi para tentar frear a degradação ambiental. Essa situação se destaca ao
se analisar o processo judicial relativo ao ocorrido em Mariana, que envolve as
empresas responsáveis pelo desastre, Vale, Samarco e Billiton, ainda tramita na
Vara Federal de Ponte Nova ainda sem data de julgamento (SOUTO, 2019).
Assim sendo, é possível ver que há uma demora injustificada no processo
de punição dos responsáveis pelos desastres ambientais, o que permite encaixar
o caso dos rompimentos de barragens em um desinteresse do Estado brasileiro

3 The impact of the crimes may be assessed in light of, inter alia, the increased vulnerability of
victims, the terror subsequently instilled, or the social, economic and environmental damage
inflicted on the affected communities. In this context, the Office will give particular consideration
to prosecuting Rome Statute crimes that are committed by means of, or that result in, inter alia,
the destruction of the environment, the illegal exploitation of natural resources or the illegal
dispossession of land.
569

de se continuar o inquérito, nos termos do artigo 17 do Estatuto de Roma.


Portanto, verifica-se a necessidade da interferência do Tribunal Penal
Internacional nos casos de destruição das barragens de rejeitos de mineração.
Entretanto, dentro do Estatuto de Roma, não há crime que seja tenha
tipicidade formal em relação ao caso de rompimento de barragens, ou seja, não
há um encaixe perfeito entre conduta e crime tipificado pelo Estatuto. Logo, de
acordo com o princípio da legalidade, se não há crime estipulado anteriormente
pelo documento que rege o Tribunal, não é possível punir os responsáveis pelo
rompimento de barragens de mineração com a composição atual do Estatuto.
Apesar de o conceito de ecocídio do Ecocide Act ser problemático em
relação ao Estatuto de Roma, abrindo margem para a penalização de desastres
naturais, ele acerta em determinar que o crime é “um dano extensivo ao,
destruição ou perda dos ecossistemas de um determinado território [...] por ação
humana [...] numa extensão que o aproveitamento pacífico do meio ambiente
pelos habitantes do território seja ou venha a ser diminuído severamente”. Nesse
sentido, o rompimento de barragens se enquadra como ecocídio, já que
representa um grave dano ao meio ambiente, o ocorrido é de responsabilidade
humana, e prejudica o aproveitamento dele pelos moradores locais.
Portanto, ressalta-se a necessidade de criar o tipo ecocídio e inseri-lo no
Estatuto de Roma, já que esse tipo de crime representa uma ameaça a
humanidade como um todo, prejudicando o meio no qual ela está inserida, a
história cultural que o meio ambiente carrega e o bem-estar das gerações
futuras. O Estatuto de Roma em seu preâmbulo determina que crimes que
constituam uma ameaça ao bem-estar da humanidade devem ser julgados pelo
TPI, e é a partir da inserção do ecocídio em sua redação que será possível de
maneira efetiva fazer com que os Estados cumpram seu papel de protetores do
meio-ambiente.

3. CONCLUSÃO

Tomando como ponto de partida o escrito pelo Papa na sua Carta


Encíclica Laudato Si, pode-se concluir uma necessidade de proteção ambiental,
tendo em vista que o homem não estabelece uma relação de dominação sobre
a natureza, e sim uma relação de pertencimento. Com isso, fica evidente uma
visão biocêntrica de mundo, tomando o ser humano como parte integrante do
ecossistema. Assim, espelhando-se no marco que foi a Declaração de
Estocolmo, é possível falar em uma necessidade de proteção ambiental no
âmbito internacional, já que o homem deve proteger o ecossistema do qual faz
parte em uma realidade onde ações tomadas por Estados particulares refletem
em toda a humanidade.
O Tribunal Penal Internacional é um órgão com jurisdição sobre todos os
países que ratificam o Tratado de Roma e, portanto, tem um importante papel no
que tange a garantia do bem-estar da humanidade e da paz. Nesse contexto,
afetar o meio ambiente é afetar também a humanidade, como defendido
anteriormente, o que delega ao TPI a responsabilidade de proteger os indivíduos
que venham a ser afetados por desastres ambientais e indiretamente o próprio
meio ambiente.
Houve uma tentativa de incluir o ecocídio como um novo crime no
Estatuto, entretanto carecia de compatibilidade com as outras normas contidas
no documento, o que ajudou na sua rejeição. Sobretudo, a não aprovação do
570

Ecocide Act não tira a necessidade de inclusão do ecocídio como um novo crime.
Assim, em um contexto onde os rompimentos de barragens e seu dano reflexo
nas populações civis não são punidos de maneira efetiva pela justiça nacional,
é necessário que um novo tipo penal seja incluído no Estatuto de Roma para
tentar frear, mesmo que de maneira indireta, a degradação cada vez maior do
meio ambiente.

4. REFERÊNCIAS

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571

WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis en derecho: pautas metodológicas y


técnicas para el estudiante o investigador del derecho. Madrid: Civitas, 1985.
572

O TRATAMENTO JURÍDICO INTERNACIONAL DAS PESSOAS COM


TRANSTORNOS MENTAIS ENCARCERADAS E SUA APLICAÇÃO NO
BRASIL
THE INTERNATIONAL LEGAL TREATMENT OF IMPRISONED PERSONS
WITH MENTAL DISORDERS AND THEIR APPLICATION IN BRAZIL

Nádia Beatriz Farias da Silva Magioni


Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: Este artigo apresenta uma análise acerca do regime jurídico


internacional dos presos e presas com transtornos mentais, abordando os
direitos específicos previstos nos documentos internacionais denominados
Regras de Mandela e nas Regras de Bangkok, que preveem regras mínimas a
serem respeitadas pelos Estados, e as compara com a legislação do Direito
Brasileiro, fazendo uma correspondência de análise. Além disso, após a análise
da correspondência das normas internacionais e suas previsões mínimas com a
legislação interna, sob o aspecto jurídico, analisa-se a realidade fática de
aplicação das mencionadas normas no país. Para tanto, utiliza-se a pesquisa
bibliográfica e descritiva e com método dedutivo.
Palavras-chave: Presos no Brasil. Transtornos mentais. Tutela internacional.

Abstract: This article presents an analysis of the international legal regime for
prisoners with mental disorders, addressing the specific rights provided for in the
international documents called Mandela Rules and the Bangkok Rules, which
provide for minimum rules to be respected by states, and compares them with
brazilian law, making an analysis correspondence. In addition, after analyzing the
correspondence of international standards and their minimum forecasts with
domestic legislation, under the legal aspect, we analyze the factual reality of the
application of these standards in the country. Therefore, we use the bibliographic
and descriptive research and deductive method.
Keywords: Prisoners in Brazil. Mental disorders. International guardianship.

INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a analisar a tutela jurídica internacional específica


dos direitos humanos do homem encarcerado com transtornos mentais. A
relevância do debate deve-se à grande parcela da população encarcerada que
sofre de transtornos mentais e a relevância do tratamento jurídico específico
sobre o tema.
Justifica-se a análise do tema, inicialmente, pelo alto número de
encarcerados com problemas mentais, aliado à falta de medidas e políticas
governamentais específicas voltadas a essa população, o que acaba por
ocasionar a comum realidade de ampla violação de sua dignidade, de vários
direitos humanos. Trata-se de parcela da população ultravulnerável, na medida
em que além das barreiras de acesso decorrentes da própria deficiência,
passam, ainda, pelas dificuldades decorrentes do encarceramento.
Este estudo tem como objetivo analisar o regime jurídico internacional de
proteção dos direitos humanos do preso portador de transtornos mentais, e
compará-lo com o tratamento jurídico e com a realidade do Brasil.
573

A SUPERAÇÃO DA VISÃO DO TRANSTORNO MENTAL COMO CRIME E DA


DELINQUÊNCIA COMO DOENÇA

O cárcere e os transtornos mentais têm mantido íntima relação histórica,


seja com a visão inicial de que os indivíduos detentores de doenças mentais
deveriam permanecer presos, pois perigosos à sociedade, seja pela visão
posterior de que a delinquência seria uma doença geneticamente determinada.
Na antiguidade e na Idade Média, a maneira mais frequente de explicar
os distúrbios mentais deu-se por meio de questões religiosas, ligadas a castigos
e maldições. Durante o absolutismo e até o final do século XVIII, mesmo com o
advento do renascimento e a expansão do sistema capitalista, os portadores de
transtornos mentais, de certa forma inúteis à nova ordem econômica, por serem
improdutivos, eram vistos como uma ameaça, assim como os criminosos. Esses
eram isolados da sociedade por meio do encarceramento, na maior parte das
vezes em prisões comuns e em alguns casos em manicômios (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003, pp. 15-17).
O médico francês Phillipe Pinel liderou movimento propulsor do
tratamento humanitário aos portadores de transtornos mentais, combatendo o
aprisionamento e maus tratos desses em prisões. No Brasil, o tratamento dessas
permaneceu vinculado ao modelo europeu do isolamento dessas pessoas, em
instituições fechadas, mesmo após a superação de tal prática em muitos outros
países (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 19).
Observa-se, assim, que de um lado as pessoas com transtornos mentais
foram por séculos equiparadas aos criminosos, recebendo idêntico tratamento
com o encarceramento. Por outro lado, como a seguir se demonstrará, também
houve a crença de que os indivíduos encarcerados, delinquentes, seriam
doentes, sendo a delinquência uma característica genética.
Inspirado na teoria evolucionista de Darwin, Cesare Lombroso (2013, pp.
4-5) buscou analisar o indivíduo delinquente a partir de traços físicos e
fisiológicos, como o tamanho da mandíbula, e a estrutura óssea e do crânio.
Esse defendeu que a tendência para o crime é inata, a delinquência uma doença,
e o criminoso sofre uma tendência hereditária para o mal.
Lombroso (2013, pp. 6-7) foi extremamente criticado, em especial por
desconsiderar o livre arbítrio e porque novas pesquisas de medicina legal e
sociologia afirmaram que o meio social do indivíduo e fatores psicológicos seriam
determinantes para a tendência delinquente.
A teoria de Lombroso foi superada pela Criminologia Crítica, que
abandonando o estudo do crime a partir do indivíduo delinquente, passou a
analisar o processo de criminalização, a questionar quem seria o criminalizado;
essa constata que o este homem criminoso não existe como realidade
ontológica, sendo um conceito social e político (ANDRADE, 2003, p. 41, apud
AYRES, 2017).

OS DIREITOS ESPECÍFICOS DOS PRESOS COM TRANSTORNOS MENTAIS


EM DOCUMENTOS INTERNACIONAIS

São dois os documentos internacionais que tratam da saúde mental e do


tratamento diferenciado da pessoa encarcerada deficiente e com transtornos
mentais, quais sejam, as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento
de Presos, também denominadas de Regras Nelson Mandela, e as Regras das
574

Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas não Privativas


de Liberdade para Mulheres Infratoras, também denominadas de Regras de
Bangkok.
As Regras de Mandela podem ser classificadas como soft law, e tem como
objetivo estabelecer regras mínimas e princípios básicos para a estruturação da
organização penitenciária e o tratamento dos detentos, normas essas que
devem servir de estímulo para que se busque a promoção de sua aplicação;
essas não buscam descrever de forma pormenorizada um sistema penitenciário,
mas sim regras mínimas a serem aplicadas indistintamente em todos os lugares
(RAMOS, 2018, pp. 217-218).
A ideia central que norteia tal documento internacional é a de que o preso
deve ter respeitada sua dignidade, não lhe devendo ser impostas restrições
maiores além daquelas inerentes à prisão, como as restrições ao direito à
liberdade e à autodeterminação.
As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos,
também denominadas de Regras Nelson Mandela, preveem diversos direitos
dos detentos à prestação de serviços médicos nas regras 24 a 35 do referido
documento.
Inicialmente, prevê que os detentos têm direito à prestação de serviços
médicos, a serem fornecidos pelo Estado, de acordo com os mesmos padrões
de serviços de saúde disponíveis à sociedade em geral, tendo acesso a esses
de forma gratuita e sem discriminação.
A regra 25, por sua vez, prevê que todos os estabelecimentos prisionais
devem ter um serviço de saúde voltado à promoção da saúde física e mental dos
detentos, e que deve ter particular atenção aos presos com necessidades
especiais e com problemas de saúde que dificultam sua reabilitação. Essa regra
prevê, ainda, que dentro desse serviço de saúde deve haver equipe
multidisciplinar, com independência clínica, com conhecimento de psicologia e
psiquiatria.
As regras de Mandela também preveem que o recluso, ao ser admitido no
estabelecimento penal, deve ser avaliado por médico ou profissional de saúde,
sendo que esse profissional deve dar especial atenção às situações quando
identificar sinais de estresse psicológico ou de qualquer outro tipo causado pela
reclusão, incluindo, ainda, mas não exclusivamente, o risco de suicídio e de
autolesões, além de sintomas de abstinência decorrentes do uso de drogas,
álcool e medicamentos, devendo tomar as medidas adequadas e tratamento
individualizado (regra 30).
Há, ainda, a previsão na regra de número 32 que na relação entre o
médico e profissionais de saúde com o recluso, aqueles tem o dever de proteger
a saúde mental e física do detento e de prevenir e tratar as doenças, com base
em fundamentos clínicos. Além disso, o médico deve comunicar o diretor do
estabelecimento quando observar que o prolongamento da prisão afetar de
forma desfavorável a saúde física ou mental do recluso (regra 33).
As regras 109 e 110, por sua vez, preveem expressamente regras
mínimas relativas ao tratamento de detentos com transtornos mentais e com
problemas de saúde.
A regra 109 prevê que não devem ser detidas em prisões as pessoas
consideradas inimputáveis já durante o trâmite do processo criminal, ou as que,
posteriormente, forem diagnosticadas com deficiência mental, ou problemas de
saúde grave, sendo que o aprisionamento pode agravar a sua condição. Afirma
575

que tais pessoas devem ser transferidas para estabelecimento destinado a


doentes mentais o mais depressa possível.
Tal regra determina, ainda, ser possível que os detentos com doenças ou
anomalias mentais sejam examinados e tratados em instituições especializadas
sob vigilância médica, caso necessário. Os estabelecimentos prisionais devem,
ainda, proporcionar tratamento psiquiátrico a todos os reclusos que necessitem.
A regra número 110 prevê ser desejável a tomada de medidas a fim de
que o tratamento psiquiátrico seja mantido após a colocação em liberdade do
reeducando. Claramente reconhecem as Regras de Mandela, nesse ponto, que
a grande causa de encarceramento das pessoas com transtornos mentais é a
própria deficiência mental, enfatizando a necessidade de continuidade do
tratamento após o fim do encarceramento, a fim de que a reabilitação continue
e seja eficaz.
As Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e
Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras, também
denominadas de Regras de Bangkok, destinam-se ao tratamento específico das
mulheres encarceradas. Tais regras resultam do trabalho de especialistas
realizado em Bangkok, tendo sido aprovadas pela Assembleia Geral da ONU em
dezembro de 2010. Essas foram editadas com o intuito de complementar as
regras de Mandela, especificamente no tratamento das mulheres encarceradas,
também possuindo caráter não-vinculante aos Estados, tratando-se de soft law;
entretanto, constituem importante fonte de interpretação e orientação (RAMOS,
2018, p. 231).
Como a seguir de analisará, várias das Regras de Bangkok voltadas à
saúde mental são semelhantes e até idênticas às Regras de Mandela, no
entanto, aquele documento internacional preocupou-se em detalhar ainda mais
sobre a importância da tutela da saúde mental.
As Regras de Bangkok, assim como as de Mandela, também preveem,
inicialmente, a necessidade de realização de exame médico de ingresso no
estabelecimento penal, que indique a necessidade de cuidados básicos de
saúde, inclusive em relação à saúde mental, incluindo transtornos de estresse
pós-traumático, risco de suicídio, de auto-lesões e a dependência de drogas
(regra número 6).
No tópico específico referente aos cuidados com a saúde mental, previu-
se o dever de disponibilização às detentas que possuam necessidades de
cuidado da saúde mental, programas de atenção à saúde mental que seja
prestado de forma individualizada e que seja sensível às questões de gênero e
à compreensão dos traumas, bem como programas de reabilitação (regra 12). A
regra 13, por sua vez, previu que os funcionários dos estabelecimentos prisionais
devem ser alertados dos momentos em que as presas sintam especial angústia,
para que sejam sensíveis à situação dessas e assegurem que a elas seja
prestado o apoio adequado.
As regras 15 e 16 preveem, ainda, o dever de que os serviços de saúde
disponham de programas de tratamento especializados a mulheres usuárias de
drogas, assim como serviços de atenção à saúde mental e assistência social,
visando prevenir o suicídio e as autolesões, sendo que essas ações devem
sempre ter em vista o cuidado de serem voltadas à perspectiva de gênero
daquelas mulheres em situação de risco.
Há, ainda, a previsão de que os funcionários das prisões devem ser
treinados para detectar a necessidade de atenção à saúde mental e o risco de
576

suicídio e autolesões entre as mulheres presas, prestando apoio e


encaminhando-as a especialistas (regra número 35).
Mencionadas regras deixam clara a preocupação com os índices de
depressão e suicídio entre as mulheres presas.
No que se refere às presas condenadas, afirma mencionado documento
que deve haver a respectiva classificação das detentas, que contemple as
necessidades específicas, e que também observe o planejamento e execução
de programas apropriados para a reabilitação e reintegração na sociedade. Na
classificação das presas, é essencial que se leve em consideração o histórico de
transtornos mentais e uso de drogas (regras número 40 e 41).
Além disso, preceitua a regra número 41 que às reclusas com transtornos
mentais deve ser assegurado que sejam acomodadas em locais não restritivos,
com o menor nível de segurança possível, garantindo, ainda, que essas recebam
tratamento adequado ao invés de serem colocadas em unidades com elevados
níveis de segurança.
Com o fim de promover o bem-estar mental de todas as detentas, prevê
a regra número 43 que se deve incentivar o contato das presas com seus
familiares por meio de visitas.
A regra número 60, por sua vez, dispõe que devem ser disponibilizados
serviços e recursos que intervenham nas principais causas que levam as
mulheres ao sistema criminal, como tratamento à saúde mental, cursos
terapêuticos e orientação para vítimas de violência doméstica e sexual, e
programas de educação e de capacitação para melhorar as possibilidades de
emprego.
Observa-se, assim, que as Regras de Bangkok reiteram várias das
disposições trazidas pelas Regras Mínimas da ONU, complementando-as ao
trazer normas específicas em relação às questões do gênero feminino, e, em
relação à saúde mental, e demonstra grande preocupação com o tratamento dos
funcionários do sistema penitenciário, e com as políticas de prevenção ao
suicídio e autolesões.
Ambas os referidos documentos, além de possuir a preocupação com o
tratamento da saúde mental do preso no geral, estabelecem que aquele que
possuir transtorno mental não deve ficar no estabelecimento penal comum,
devendo ser acomodado em locais que recebam tratamento adequado, ao invés
de serem colocados em unidades com elevados níveis de segurança.

A REALIDADE BRASILEIRA DO ENCARCERAMENTO DE PESSOAS COM


TRANSTORNOS MENTAIS

O Censo Demográfico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia


e Estatística) constatou que cerca de 45.606.048 milhões de pessoas no Brasil
possuem algum tipo de deficiência, 23,9% da população geral, sendo que 1,40%
da população possui deficiência mental (OLIVEIRA, 2012).
Pesquisa feita em 2006 no Estado de São Paulo indicou a prevalência
significativa de transtornos mentais na população carcerária. Referido estudo
indicou que 61,7% dos detentos tiveram ao menos uma ocorrência de transtorno
mental ao longo da vida, e cerca de 11,2% dos presos homens e 25,5% das
mulheres apresentavam transtornos mentais graves (CONSTANTINO; ASSIS;
PINTO, 2016, s.p.).
577

O Departamento de Psiquiatra da UNIFESP, em pesquisa em 2014,


apontou que a prevalência de transtornos mentais graves entre os encarcerados
é de 5 a 10 vezes maior do que na população brasileira em geral. Constatou-se
que 68,9% das presas já tiveram algum tipo de transtorno mental, e 54% dos
detentos homens já tiveram algum distúrbio mental (OLIVEIRA, 2016, s.p.).
No direito penal brasileiro, constatado que aquele que a quem é imputada
uma conduta delituosa possui transtorno mental, esse pode vir a ser considerado
incapaz de responder por sua conduta delituosa, caso seja incapaz de entender
que o fato é ilícito ou de agir conforme esse entendimento, ficando isento de
pena (art. 26 do Código Penal). Caso a pessoa seja parcialmente incapaz de
entender a ilicitude de sua conduta e de determinar-se conforme seu
entendimento, também denominado de semi-imputável, sua pena é reduzida de
um a dois terços (artigo 26, parágrafo único, do Código Penal).
Aplica-se aos indivíduos considerados inimputáveis a sanção denominada
medida de segurança, que se constitui numa reação do Estado, que tem
fundamento no poder de punir, e que se baseia no grau de periculosidade do
agente causador de uma conduta delituosa. A medida de segurança, nos termos
dos art. 96 e 97 do Código Penal, pode se constituir em internação em hospital
de custódia ou tratamento ambulatorial (BITENCOURT, 2012, s.p.).
Caso o diagnóstico do transtorno mental ocorra apenas durante a
execução da pena, prevê a Lei de Execução Penal, em seu artigo 183, que o
Juiz determinará a substituição da pena pela medida de segurança, que também
poderá ser em regime de internação ou tratamento ambulatorial, a depender da
perícia médica.
O sistema criminal brasileiro, no entanto, não abrange as regras mínimas
específicas das pessoas com transtornos mentais e relativas ao cuidado com a
saúde mental, previstas nas Regras de Mandela e de Bangkok. A legislação
criminal prevê apenas a necessidade de cumprimento da medida de segurança
em Hospital de Custódia ou similar e prevê como direito do detento o direito à
assistência à saúde nos artigos 11 e 14 da Lei de Execuções Penais, que
compreende a assistência médica, farmacêutica e odontológica, não havendo
qualquer menção específica à tutela da saúde mental, ao tratamento
especializado e individualizado em psiquiatria e psicologia, à ênfase na
reinserção social das pessoas com transtornos mentais, ou ao atendimento
multidisciplinar desses detentos.
Observa-se, assim, que em relação aos presos detentores de problemas
mentais, a legislação brasileira a respeito do tratamento aos presos provisórios
e condenados encontra-se muito aquém da tutela internacional, que se propõe
apenas a tecer regras mínimas de tratamentos dos presos e presas; essas
regras mínimas não encontram guarida na Lei de Execuções Penais brasileira,
tratando-se de clara situação de proteção insuficiente.
Deve-se, ainda, mencionar que a colocação de internos em Hospitais de
Custódia, da forma como é feita no país, tem sido extremamente criticada pelos
profissionais de saúde após a edição da legislação antimanicomial (Lei nº
11.216/2001), que veda o abrigo de pessoas com transtornos mentais em
instituições com características asilares em seu art. 4º, §3º.
A doutrina especializada acerca do tema critica o tratamento jurídico penal
brasileiro do preso portador de transtornos mentais, afirmando que se trata de
tratamento ultrapassado, que vai de encontro à luta antimanicomial e às políticas
578

públicas da área da saúde mental (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2011, p.


77).
Para o tratamento de pessoas com transtornos mentais em conflito com a
lei, ensina Tânia Marchewka, que a reabilitação psicossocial assistida e alta
planejada, prevista no art. 5º da Lei n. 10.216/2001, exigem a implantação de
sistema alternativo, que reduza os leitos nos hospitais psiquiátricos, construa
residências terapêuticas, e desenvolva programas de volta para casa,
ambulatórios, centros de atenção psicossocial - CAPS, programas de inclusão
pelo trabalho, centros de cultura, leitos em psiquiátricos em hospitais comuns
(MARCHEWKA, 2011, p. 66).
Além da tutela jurídica insuficiente, também a realidade fática daqueles
que cumprem medida de segurança no Brasil é periclitante, sendo comum a
realidade de cumprimento de pena em penitenciárias comuns, sem qualquer
tratamento psiquiátrico, violando todas as regras internacionais a respeito do
tema e vários dos direitos humanos dessa parcela da população.
Também a realidade dos Hospitais de Custódia e alas psiquiátricas em
penitenciárias no país não tem respeitado vários dos direitos humanos das
pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei. Relatórios de visitas
feitas aos Hospitais de Custódia de Sergipe e da Bahia, nos anos de 2005 a
2007, por exemplo, revelam situações estruturais extremamente precárias,
sendo que os pacientes eram deixados à própria sorte, dentro de celas com
grades, com quase quatro vezes mais pessoas do que a ocupação máxima, sem
higiene, com falta de remédios, sem práticas psicoterápicas, sem camas, entre
diversas outras situações absolutamente violadoras de seus direitos humanos
(MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2011, p. 75).
A realidade fática geral que permeia o tratamento das pessoas com
transtornos mentais encarceradas no Brasil usualmente reflete uma brutal
violação de seus direitos mínimos de existência digna, sendo comum encontrar
relatos de pessoas presas sem qualquer assistência médica psiquiátrica, mesmo
em quadros graves de surtos. Além disso, observa-se que a própria legislação
pátria sobre o tema encontra-se aquém dos documentos internacionais que
regem a matéria.

CONCLUSÃO

O estudo acerca dos direitos humanos dos presos com transtornos


mentais no país se mostra extremamente relevante, notadamente em razão da
reiterada e brutal violação aos direitos dessa parcela populacional. Aos detentos
e detentas brasileiros no geral comumente já são retirados muito mais do que o
direito à liberdade e consequente autodeterminação, mas, ainda, são
comumente retirados condições mínimas de existência digna.
Tal parcela populacional pode ser considerada hipervulnerável, pois além
das barreiras decorrentes da própria deficiência, esses ainda têm de lidar com o
tratamento hostil e massificador do encarceramento.
A legislação brasileira nesse ponto encontra-se muito aquém na garantia
dos direitos mínimos internacionalmente previstos e destinados aos
encarcerados com transtornos mentais, não prevendo normas destinadas à
tutela da saúde mental, e ao tratamento especializado e individualizado da
pessoa com transtorno mental, e, ainda, se omitindo quanto à necessidade de
reinserção social daquele que cumpre medida de segurança.
579

Além disso, a realidade fática no tratamento dessas pessoas é brutal.


Grande parte dos encarcerados cumpre sua sanção em presídios comuns, sem
qualquer tratamento psiquiátrico ou psicológico. Além disso, os hospitais de
custódia e alas psiquiátricas em presídios existentes no país constituem em
grande parte dos casos depósitos de seres humanos, superlotados, sem higiene
e sem tratamento médico suficiente e individualizado.

REFERÊNCIAS

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https://jus.com.br/artigos/60857/processo-de-criminalizacao-a-tipificacao-da-
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BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - Parte Geral 1. 17ª


Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>.
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Departamento de Gestão da Educação na Saúde, 2. ed., Brasília: Ministério da
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Wernersbach. O impacto da prisão na saúde mental dos presos do estado do
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<https://www.scielosp.org/article/csc/2016.v21n7/2089-2100/pt/>. Acesso em
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Cidadão. Parecer sobre medidas de segurança e hospitais de custódia e
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OLIVEIRA, Luiza Maria Borges. Cartilha do Censo 2010. Pessoas com


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OLIVEIRA, Renata. Transtornos mentais atingem 68% das mulheres


encarceradas no estado de São Paulo. Jun. 2016, s.p.. Disponível em:
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580

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4. ed., São Paulo:


Saraiva, 2018.
581

ROTA DE INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA E DIREITOS HUMANOS:


UMA ABORDAGEM NECESSÁRIA
LATIN-AMERICAN INTEGRATION ROUTE AND HUMAN RIGHTS: AN
NECESSARY APPROACH

Aldo Almeida Nunes Filho


Ynes da Silva Felix

Resumo: A Rota de Integração Latino-Americana (RILA) atravessará regiões


pobres de Brasil, Paraguai, Argentina e Chile e trará impactos econômicos,
sociais e culturais a estas localidades e suas populações. Partindo dessa
constatação, o presente trabalho busca compreender quais os direitos afetados
e quem deve garantir a proteção e a promoção destes no contexto da RILA. Com
a utilização de pesquisa bibliográfica e documental, de abordagem qualitativa,
parte-se do método hipotético-dedutivo para debater a integração latino-
americana a partir da RILA e as necessidades de promoção dos Direitos
Humanos pelos atores envolvidos no contexto do projeto. A partir das projeções
de aumento do fluxo de capitais nas regiões pelas quais passará a RILA,
estabelece-se que, os Direitos Humanos de segunda geração merecem especial
atenção e sua promoção e garantia devem ser assegurados pelos Estados
Partes da RILA, conforme determinam os pactos internacionais de Direitos
Humanos.
Palavras-chave: Integração Regional. Rota de Integração Latino-Americana.
Direitos Humanos.

Abstract: The Latin American Integration Route (RILA) will cross poor regions of
Brazil, Paraguay, Argentina and Chile and bring economic, social and cultural
impacts to these locations and their populations. Based on this finding, this paper
seeks to understand which rights are affected and who should guarantee their
protection and promotion in the context of RILA. Using bibliographic and
documentary research, with a qualitative approach, it starts from the hypothetical-
deductive method to discuss the latin american integration from RILA and the
needs of human rights promotion by the actors involved in the context of this
project. Based on the projected increase in capital flows in the regions through
which RILA will pass, it is established that second generation Human Rights
deserve special attention and their promotion and guarantee must be ensured by
the RILA States Parties, as determined by the international Human Rights pacts.
Keywords: Regional Integration. Latin-American Integration Route. Human
Rights.

INTRODUÇÃO

A integração regional é uma realidade dinâmica de cooperação entre os


países da América Latina, que vem sendo responsável por uma inserção ativa
desses Estados no contexto da globalização econômica, já que, partindo de
realidades semelhantes no que toca aos seus povos pré-coloniais (e, depois,
pós-colonialização europeia) e a aspectos políticos, linguísticos e culturais como
um todo, os países latino-americanos têm utilizado suas similaridades para
estabelecer o paradigma da cooperação, por intermédio de iniciativas de
integração regional, como a Rota de Integração Latino-Americana (RILA),
582

importante projeto de infraestrutura em implantação por parte de Brasil,


Paraguai, Argentina e Chile.
O tema de estudo que se apresenta, além de contextualizar a RILA no
cenário da integração regional e da globalização econômica, traz como enfoque
a relação entre esses sinais de progresso e os direitos humanos, uma vez que,
para além das discussões de cunho econômico, o trabalho está centrado em
compreender quais os possíveis impactos e as necessidades de promoção dos
direitos humanos para as populações locais que a rota pode trazer, além da
vinculação dos Estados Partes do projeto como necessários promotores destes
direitos, tendo em vista serem obrigados a isso pelos documentos internacionais
de garantias.
Com a utilização da metodologia de revisão bibliográfica e da análise
documental, com abordagem qualitativa, o trabalho lança mão de dois tópicos
para o desenvolvimento do estudo, nos quais se debate a integração latino-
americana, os Direitos Humanos, os possíveis impactos e a promoção de tais
direitos por parte dos atores envolvidos em seu contexto.

1. A ROTA DE INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA

De início, é necessário entender de onde surgiu a iniciativa de uma


implantação infraestrutural de grande impacto entre países do sul do continente
sul-americano, e, para isso, parte-se da afirmação de Felix de que “Os processos
de integração regional surgem num contexto de rearticulação dos países”, e que
este movimento ocorreu “em especial, para enfrentar a concorrência provocada
pelo processo de expansão acelerada na área da economia e, também, da
política, da cultura e do comportamento social, fenômeno identificado como
globalização.” (2001, p. 76).
Com efeito, é a América Latina que vai capitanear as “iniciativas de
integração sub-regionais caracterizadas pela cooperação e tentativa de
integração econômica entre Estados”, e, simultaneamente, propõe a criação de
“uma comunidade hemisférica baseada na identidade histórica e cultural”
(MARIANO, 2015, p. 18).
Essa integração revela-se com a criação da Unasul (União de Nações Sul-
Americanas), do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul), da CAN (Comunidade
Andina), entre outros tantos exemplos de instrumentos para a cooperação entre
países latino-americanos.
Nesse contexto, de retomada de planos de integração regional na
América Latina, identificou-se a necessidade de se estudar o recente movimento
de integração de quatro países da América do Sul – Brasil, Paraguai, Argentina
e Chile –, a partir do projeto da Rota de Integração Latino-americana (RILA), que
conta com apoio estatal por parte dos países mencionados, além de grande
incentivo de setores da iniciativa privada.
A Rota de Integração Latino-americana (RILA)1, portanto, consiste num
corredor bioceânico, parte de um plano de integração da América do Sul por
meio de projetos de infraestrutura, com o objetivo de interligar via rodoviária,
ferroviária e hidroviária as costas atlântica e pacífica do subcontinente, de forma
a agilizar o processo de escoamento das produções dos países sul-americanos

1 Apesar da nomenclatura do projeto se referir à América Latina, o âmbito de seu


desenvolvimento se restringe a quatro países da América do Sul: Brasil, Paraguai, Argentina e
Chile.
583

para os demais continentes, evitando-se grandes deslocamentos por água


através dos caminhos já conhecidos do comércio marítimo, sabidamente o Canal
do Panamá2 ou o contorno pelo sul, via Patagônia.
A RILA, portanto, tem ultrapassado barreiras, tendo em vista que, em
dezembro de 2015, foi assinada pelos presidentes de Brasil, Paraguai, Argentina
e Chile, reunidos na XLIX Reunião Ordinária do Conselho do Mercado Comum
e Cúpula de Chefes dos Estados Partes do MERCOSUL e Estados Associados,
a Declaração de Assunção sobre Corredores Bioceânicos, em cujo texto os
países afirmam seu compromisso com a integração da América do Sul.
Reconhecem, na sequência, a importância da aproximação física entre
eles, mediante política de “convergência na diversidade” e que a ferramenta
central para esta aproximação é a implantação dos Corredores Bioceânicos,
tidos por autoridades dos países do traçado da rota como uma guinada rumo ao
desenvolvimento de regiões antes isoladas e carentes de projetos de
infraestrutura, como ressalta João Carlos Parkinson de Castro:

O Corredor Rodoviário Bioceânico Porto Murtinho – Portos do Norte do


Chile é, portanto, uma iniciativa que, desde sua origem, goza de
elevado apoio político e, como era esperado, alimenta enormes
expectativas tanto no setor privado quanto na população local. De fato,
a infraestrutura tem condições de transformar a realidade, na medida
em que romperá com o isolamento do chaco paraguaio, aliviará as
durezas do cotidiano de Porto Murtinho, valorizará Salta e Jujuy como
pontos logísticos e levará carga para os portos chilenos, estimulando o
crescimento do setor de serviços. Criará, portanto, novas
oportunidades de comércio e investimento nos territórios cobertos pelo
Corredor, melhorando as condições de vida da população. (2019, p.
20)

Observa-se, ainda, em outros trechos da Declaração de Assunção sobre


Corredores Bioceânicos, a forte vocação econômica da proposta, que se inicia
com uma menção ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento
(COSIPLAN)3, uma ao MERCOSUL, e se confirma na parte dispositiva da

2 “O Canal do Panamá está localizado na América Central na República do Panamá. Localiza-


se estrategicamente entre os Oceanos Pacífico e Atlântico através de um istmo com 83 km de
extensão e 26 metros de altura. Devido à extrema complexidade natural, sua construção tornou-
se um grande desafio de engenharia, sendo que a primeira tentativa francesa entre 1881-1889
fracassou e foi finalizada pelos militares norte-americanos no período 1904-1914” (MELO, 2013,
p. 11).
3 “[...] em 10 de agosto de 2009 foi criado o Conselho Sul-americano de Infraestrutura e

Planejamento (Cosiplan), como órgão de coordenação e articulação de programas e projetos de


integração da infraestrutura regional dos países. Entre seus objetivos gerais vale destacar o
desenvolvimento da infraestrutura para a integração regional, reconhecendo os logros e os
avanços da IIRSA [Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana], a qual
é incorporada no seu marco de trabalho. Neste contexto, a IIRSA passa a ser considerada como
um fórum técnico de planejamento da integração física regional do subcontinente, com funções
de planejamento, avaliação e monitoramento da execução dos projetos de integração física
regional. No âmbito do processo de institucionalização do Cosiplan, foi estabelecido o Plano de
Ação Estratégica 2012-2022 (PAE) e a Agenda de Projetos Prioritários de Integração (API).
Quanto ao PAE, constitui-se em um conjunto de objetivos e ações que resumem o
encaminhamento estratégico do Cosiplan, o qual estabelece que o conceito de eixo de integração
e desenvolvimento seja ampliado ‘de forma a privilegiar o desenvolvimento sustentável e agir na
redução das assimetrias existentes na região’ reconhecendo a importância de se replicar a
experiência da IIRSA enquanto estratégia de integração física da região. Quanto à API, trata-se
de acordo com o Cosiplan, de ‘um conjunto limitado de projetos estratégicos e de alto impacto
584

declaração, a partir do item 2, em que os países acordam a necessidade de


iniciar um plano para a agilização dos procedimentos em fronteira que
possibilitem avançar para uma maior eficiência, sistematização e
homogeneização dos mecanismos de inspeção e controle entre os quatro
países.
Tem-se, a partir dessas constatações, portanto, que o que se busca
alcançar a partir de referida integração não é, em primeiro plano, o
desenvolvimento humano das populações residentes nas áreas afetadas pelo
corredor, mas sim o aumento da competitividade dos países da região nos
mercados da Ásia Pacifico e da Europa, embora esta integração entre os países
do MERCOSUL possa ser encarada como uma oportunidade para a efetivação
dos direitos humanos (RIBEIRO; MACIEL, 2017, p. 184).
A prioridade dada à capacidade econômica do projeto, portanto, não
exclui a possibilidade de um desenvolvimento de outras potencialidades a partir
deste, levando-se em conta suas grandes proporções, como bem ressalta João
Carlos Parkinson de Castro (2019, p. 21), quando diz que “O Corredor Rodoviário
Bioceânico não oferece apenas uma oportunidade de transformar a realidade
local. Além de romper com as fronteiras físicas, passa a valorizar o interesse
coletivo das populações beneficiadas pelo Corredor.”.
Importante, por isso, identificar quais populações serão afetadas pelo
traçado da RILA, que é descrito na Declaração de Assunção sobre Corredores
Bioceânicos da seguinte forma:

[...] Com essa visão, acordam: 1. Instruir seus Ministérios das Relações
Exteriores a conformar Grupo de Trabalho entre os quatro países que
integre os Ministérios de Infraestrutura, Obras Públicas, Transportes e
outras instituições vinculadas, com o propósito de impulsionar a
realização dos estudos técnicos e formular as recomendações
pertinentes para a pronta concretização do corredor viário Campo
Grande - Porto Murtinho (Brasil) - Carmelo Peralta - Mariscal
Estigarribia - Pozo Hondo (Paraguai) - Misión La Paz - Tartagal –
Jujuy - Salta (Argentina) –Sico - Jama - Puertos de Antofagasta
– Mejillones - Iquique (Chile). (grifo nosso)

Nota-se que a maioria das regiões pelas quais passa a Rota – nos quatro
países – são áreas de menor desenvolvimento e acesso, se comparadas às
regiões centrais de cada país, o que, por si, permite concluir que são localidades
com maior vulnerabilidade (trata-se de países com situações sociais, políticas e
econômicas diferentes entre si e, também, internamente) e que merecem
atenção, pois, da mesma forma que podem se beneficiar com medidas que
promovam melhoria de acesso e qualidade de vida, também podem ser ainda
mais prejudicadas caso a exploração comercial da RILA não leve em conta a
promoção de direitos humano nessas localidades.

2. DIREITOS HUMANOS NA RILA

Ao se levar em conta a historicidade dos direitos humanos, é possível


afirmar que sua concretização se dá de forma não linear, sendo que, na maior
parte das vezes, são eventos históricos disruptores que provocam elevações nas

para a integração física e o desenvolvimento socioeconômico da região’ [...]” (COSTA;


GONZALEZ, 2014, p. 35).
585

garantias e a consolidação de novos direitos. Nas palavras de Piovesan (2011,


p. 103):

Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de um


espaço simbólico de luta e ação social. [...] Invocam uma plataforma
emancipatória voltada à proteção da dignidade e à prevenção do
sofrimento humano [e] [...] não apresentam uma história linear, não
compõem a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma
causa perdida de antemão, mas a história de um combate. Enquanto
reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e
podem nascer.

Dentre os mais importantes pontos de ruptura e mudança de paradigma


do pensamento histórico-filosófico, para Norberto Bobbio (2004, p. 94), estão as
declarações de direitos dos últimos séculos4, por meio das quais “[...] a
proclamação dos direitos do homem dividiu em dois o curso histórico no que diz
respeito à concepção da relação política.”
Nesse contexto, a evolução histórica dos direitos humanos é dividida pela
doutrina em três principais gerações5, a partir das quais se garantiram, em
diferentes momentos históricos, os principais direitos que hoje se reconhecem.
São ainda admitidas em novos estudos, embora de forma segmentada, quarta e
quinta gerações.
Para os fins deste estudo, o enfoque será dado, especialmente, sobre a
segunda geração, a dos direitos sociais, por ser a que guarda maior relação com
as necessidades de promoção a partir da RILA.
Nesse sentido, os direitos situados na segunda geração – econômicos,
sociais e culturais – para Silveira e Rocasolano (2010, p. 175), “[...] situam a
pessoa humana, a partir de uma perspectiva individual, como integrada numa
coletividade”.
O fato é que a segunda geração de direitos humanos modifica o papel do
Estado; dessa vez, com uma postura ativa, muito além de meramente fiscalizar
regras jurídicas. O Estado passa de uma ameaça aos direitos individuais a um

4 “À luz de uma perspectiva histórica, observa-se que até então intensa era a dicotomia entre o
direito à liberdade e o direito à igualdade. No final do século XVIII, as Declarações de Direitos,
seja a Declaração Francesa de 1789, seja a Declaração Americana de 1776, consagravam a
ótica contratualista liberal, pela qual os direitos humanos se reduziam aos direitos à liberdade,
segurança e propriedade, complementados pela resistência e opressão. O discurso liberal da
cidadania nascia no seio do movimento pelo constitucionalismo e da emergência do modelo de
Estado Liberal, sob a influência das ideias de Locke, Montesquieu e Rousseau. Diante do
absolutismo, fazia-se necessário evitar os excessos, o abuso e o arbítrio do poder. Nesse
momento histórico, os direitos humanos surgem como reação e resposta aos excessos do regime
absolutista, na tentativa de impor controle e limites à abusiva atuação do Estado. A solução era
limitar e controlar o poder do Estado, que deveria se pautar na legalidade e respeitar os direitos
fundamentais” (PIOVESAN, 2011, p. 196-197).
5 “A teoria das gerações dos direitos humanos foi lançada pelo jurista francês de origem checa,

Karel Vasak, que, em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos de


Estrasburgo (França), no ano de 1979, classificou os direitos humanos em três gerações, cada
uma com características próprias. Posteriormente, determinados autores defenderam a
ampliação da classificação de Vasak para quatro ou até cinco gerações. Cada geração foi
associada, na Conferência proferida por Vasak, a um dos componentes do dístico da Revolução
Francesa: ‘liberté, egalité et fraternité’ (liberdade, igualdade e fraternidade). Assim, a primeira
geração seria composta por direitos referentes à ‘liberdade’; a segunda geração retrataria os
direitos que apontam para a ‘igualdade’; finalmente, a terceira geração seria composta por
direitos atinentes à solidariedade social (‘fraternidade’)” (RAMOS, 2014, p. 51).
586

outro patamar: o de contribuinte para a realização de direitos fundamentais


(RAMOS, 2014).
A exigência de ação ativa por parte dos Estados Partes da RILA fica ainda
mais clara quando considerado que todos os Estados que promovem esta
iniciativa de integração assinaram tratados como a Carta da Organização das
Nações Unidas (ONU), a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a
Convenção Interamericana, todos afirmando, de modo reiterado, em seus textos,
o compromisso dos signatários com a promoção prioritária dos direitos humanos.
Afinal, passou a ficar explícito que a mera inserção “de liberdade e
igualdade em declarações de direitos não garantiam a sua efetiva concretização,
o que gerou movimentos sociais de reivindicação de um papel ativo do Estado”
(RAMOS, 2014, p. 52), a fim de assegurar padrões mínimos de sobrevivência.
Nesse ponto, Celso Lafer, de forma mais específica, para explicar a
peculiaridade dessa geração ante a primeira postula que:

De segunda geração, são, pois, os direitos ao trabalho, à saúde, à


educação, dentre outros, cujo sujeito passivo é o Estado, que tem o
dever de realizar prestações positivas aos seus titulares, os cidadãos,
em oposição à posição passiva que se reclamava quando da
reivindicação dos direitos de primeira geração. (LAFER, 1988, p. 127,
grifo nosso)

Completa, ainda, Fábio Konder Comparato (2013, p. 66), ao analisar o


surgimento dessa geração, que ela põe fim ao abstrativismo antes consolidado
quando se falava nos titulares de direitos, reconhecendo-se, a partir de então,
como diretamente titulares os grupos de vulneráveis.
A forma exata pela qual deve se dar esta prestação, entretanto, ainda
deve ser objeto de estudos aprofundados, que visem a determinar quais ações
concretas serão necessárias para a efetiva consolidação da promoção dos
direitos humanos a partir da RILA.
O que é possível informar, contudo, são pontos chave de estudo a serem
desenvolvidos e que podem agir como delimitadores para a busca dessas
garantias, eis que foram distribuídos, por Almeida, Teixeira e Figueira,
pesquisadoras da Rede Universitária da RILA6, em seis tópicos de atenção
principais, já considerados os aspectos particulares das populações do entorno
da Rota:
1. Condições de vida de crianças, adolescentes e jovens das
comunidades locais: riscos e vulnerabilidades sociais – Tem como
objetivo conhecer as condições de vida e os riscos e vulnerabilidades
sociais à que estão expostas crianças e adolescentes.
2. Espaços de participação do território e seus agentes locais – Os
espaços poderão ser institucionalizados ou não, estes podem ser
fóruns, conselhos, colegiados, agremiações, comitês, coletivos,
associações, assembleias, movimentos sociais ou redes que sejam
reconhecidos pelos atores locais e governamentais como espaços
abertos ao debate, à participação e à realização de ações conjuntas
para a melhoria da realidade local.
3. Educação: perfil das escolas e de suas condições – Conhecer as
escolas do território, suas necessidades e seus desafios.

6 Esta rede universitária – UNIRILA – é a responsável por boa parte dos estudos de viabilidade
técnica do projeto da RILA. Maiores informações podem ser encontradas no endereço eletrônico
de divulgação da Rede: http://www.uems.br/midiaciencia/unirila/. Acesso em: 07 mai. 2018.
587

4. Rede Intersetorial para a promoção dos direitos humanos – Tem o


potencial de desenvolver estratégias e buscar uma abordagem
integrada do desenvolvimento do território. Parte importante da rede
intersetorial é formada pela rede de proteção social, ou seja, por
instituições, atores e equipamentos que podem atuar de forma direta
ou indireta no dia-a-dia para garantir os direitos humanos em áreas
como a assistência social, crianças e adolescentes, direito à cidade,
etc. É o caso das Unidades Básicas de Saúde (UBS), Conselho
Tutelar, Centros da Criança e do Adolescente (CCA), do Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS), organizações comunitárias,
entre outros.
5. População Indígena da região – Importante conhecer quem é a
população indígena pertencente ao território da Rota Bioceânica. Seus
costumes, tradições e principalmente o seu risco social e
vulnerabilidades diversas.
6. Potencialidades Produtivas do Território: possibilidades de direitos –
Compreender as principais fontes de potencialidades produtivas das
populações que estão situadas no território da Rede Bioceânica. (2019,
p. 294)

Ademais, o que se pretende ressaltar, e que melhor explica Flávia


Piovesan, ao constatar que “A globalização econômica tem agravado ainda mais
as desigualdades sociais, aprofundando as marcas da pobreza absoluta e da
exclusão social” (PIOVESAN, 2017, p. 62), é que “é preciso reforçar a
responsabilidade do Estado no tocante à implementação dos direitos
econômicos, sociais e culturais” (PIOVESAN, 2017, p. 62). Afinal, ratifique-se
que

[...] enquanto a primeira geração de direitos humanos (os direitos


cívicos e políticos) foi concebida como uma luta da sociedade civil
contra o Estado, considerado como o principal violador potencial dos
direitos humanos, a segunda e terceira gerações (direitos
econômicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida,
etc) pressupõem que o Estado seja o principal garante dos
direitos humanos. (SANTOS, 1997, p. 111, grifo nosso)

Daí a importância da cooperação internacional para a concretização de


qualquer expectativa a respeito de efetiva promoção que se almeje a partir da
RILA, pois, ao escrever que “A Declaração Universal de 1948, na qualidade de
marco maior do movimento de internacionalização dos direitos humanos,
fomentou a conversão destes direitos em tema de legítimo interesse da
comunidade internacional”, (PIOVESAN, 2002, p. 41), a autora deixa explícito
que a efetivação dos direitos humanos passa, inevitavelmente, pela cooperação
internacional destes países que receberão a RILA, partindo do pressuposto de
que

a cooperação internacional seja um instrumento fraterno capaz de


acelerar o processo de efetivação dos direitos humanos e que, por
meio dela, seja possível não apenas buscar o desenvolvimento
econômico, mas também, de fato, efetivar direitos, especialmente os
direitos humanos. [...] [O que orienta] novas possibilidades de
cooperação internacional, fundada em outros pressupostos que não
apenas os interesses econômicos [...], em uma ordem mundial menos
desigual, mais participativa e estável. (MARTINI; WÜNSCH, 2017, p.
44-47)
588

É sabido, portanto, que, para a promoção dos direitos humanos a partir


da RILA, é necessário garantir que as ações futuras nesse sentido impactem
diretamente as regiões pelas quais a Rota passará. Para isso, a ação ativa dos
estados brasileiro, paraguaio, argentino e chileno será fundamental.

CONCLUSÃO

Frente ao que se expôs, afere-se que a integração regional latino-


americana, desenvolvida como uma evolução adaptativa dos primeiros
processos globais de regionalização do subcontinente, foi de suma importância
para o desenvolvimento dos países da região, notadamente os quatro sul-
americanos que são objeto de análise deste trabalho – Brasil, Paraguai,
Argentina e Chile – e ainda hoje permite o desenvolvimento de projetos
integradores de grande impacto, como é o caso da RILA.
O desenvolvimento da RILA é uma realidade que é economicamente
promissora ao mesmo passo que preocupa pelo potencial impacto do projeto –
dada sua grande dimensão – e incentiva o estudo e discussão de sua
implantação, sendo, por isso, necessário analisar o projeto não simplesmente
em relação ao seu importante aspecto econômico – motivo maior de sua
implantação – mas também com atenção a direitos globalmente reconhecidos e
a forma com que a iniciativa da RILA os afetarão e aos seus sujeitos.
O estudo dos direitos humanos, analisados a partir de sua segunda
geração, demonstra que os Estados passaram a ser diretamente responsáveis
pelo respeito e a promoção dos Direitos Humanos dentro de seus povos, sendo
que, há muito assimilado globalmente, o papel estatal em relação a estes direitos
é, atualmente, perfeitamente exigível e quase nunca contestado, pois é lugar
comum, desde a inauguração da segunda geração de Direitos Humanos que os
Estados devem protegê-los e promove-los.
Desta forma, é possível vislumbrar que o potencial econômico que se
apresenta possa ser proveitosamente explorado, ao mesmo tempo em que se
garantem e promovem os direitos das populações locais, para que estas, além
de diretamente afetadas pela implantação do projeto, possam ser, ao menos
indiretamente, beneficiados por ela.

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SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos


Humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010.
590

Grupo de Trabalho:

DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E


PROCESSO PENAL I
Trabalhos publicados:

“NE BIS IN IDEM”: FEMINICÍDIO E MOTIVO TORPE.

A APLICAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO DIREITO PENAL: UMA


ANÁLISE DO SISTEMA COMPAS E SUA INFLUÊNCIA NA CONSOLIDAÇÃO
DO PUNITIVISMO ATRAVÉS DO FORTALECIMENTO DA SELETIVIDADE
CARCERÁRIA E DAS VIOLAÇÕES DE GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS

A APLICAÇÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO NOS


CRIMES PREVISTOS NA LEI DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A IRREGULARIDADE NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA EM FACE DA


DECRETAÇÃO DE PRISÃO DE OFÍCIO POR PARTE DO MAGISTRADO

A POSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVL DO MENOR EMANCIPADO

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A FUNÇÃO SOCIAL DA LEI 11.340/2006

ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA EXECUÇÃO CAUTELAR DA PENA EM


SEGUNDA INSTÂNCIA

APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA EM PROTEÇÃO AOS


TRANSEXUAIS FEMININOS: GÊNERO COMO ELEMENTO DE PROTEÇÃO À
VÍTIMA

CRIMINALIZAÇÃO DO NEGRO: DA ESCRAVIDÃO À INSALUBRIDADE DO


CÁRCERE

ESTADO DE INOCÊNCIA EM PAUTA: ANÁLISE DAS DECISÕES JUDICIAIS


DO MARANHÃO NO PERÍODO DE 2016 A 2019.

ESTUDO CRÍTICO ACERCA DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/2006 À LUZ DA


TEORIA DA PROTEÇÃO DO BEM JURÍDICO PENAL

ESTUPRO VIRTUAL: UM CIBERCRIME QUE PROTEGE A DIGNIDADE


SEXUAL
591

“NE BIS IN IDEM”: FEMINICÍDIO E MOTIVO TORPE.


“NE BIS IN IDEM”: FEMINICIDE E VIL CAUSE.

Ariele Gomes Farias


Orientador(a): Elaine Glaci Fumagalli Errador Casagrande

Resumo: A lei nº 13.104/2015 trouxe inúmeros avanços no enfrentamento à


violência contra a mulher, visto que trouxe uma responsabilização criminal
diferenciada aos agentes que praticarem o crime de homicídio contra mulher por
razões do sexo feminino. Todavia, o referido diploma normativo gerou dúvidas
quanto sua aplicabilidade, no que tange à natureza jurídica da qualificadora do
feminicídio. O presente estudo busca solucionar a discussão quanto à natureza
jurídica da qualificadora, bem como as consequências jurídicas de sua
aplicabilidade.
Palavras-chave: Homicídio. Feminicídio. Motivo Torpe.

Abstract: Law No. 13.104 / 2015 brought numerous advances in addressing


violence against women, as it brought a differentiated criminal liability to agents
who commit the crime of homicide against women for female reasons. However,
the referred normative diploma raised doubts as to its applicability, regarding the
juridical nature of the qualifier of femicide. This study seeks to resolve the
discussion as to the legal nature of the qualifier, as well as the legal
consequences of its applicability.
Keywords: Murder. Feminicide. Vil Cause.

INTRODUÇÃO

A cada dia que passa o Brasil sobe sua colocação no ranking mundial de
violência de gênero, em específico, a violência contra a mulher.
Analisando todo o contexto interno, o Brasil adotou medidas para diminuir
os altos índices de violência de gênero, especificamente, da violência contra a
mulher. Uma das medidas adotadas foi a publicação, no ano de 2006, da lei nº
11.343/2006 - Lei Maria da Penha, instituto protetivo às mulheres. Contudo,
mesmo após a instituição da referida lei, os índices de violência contra a mulher
não paravam de subir, o que motivou, no ano de 2013, a instituição da Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito - CPMI da Violência Contra a Mulher.
Dessa CPMI, surgiram diversos projetos normativos, um deles foi o
projeto que, posteriormente, culminou na lei nº 13.104/2015. A referida lei alterou
o artigo 121 do Código Penal, instituindo a qualificadora do feminicídio. Porém,
ao instituir tal qualificadora, o legislador não determinou qual seria sua natureza
jurídica e, sua omissão culminou em anos de discussões doutrinárias e
jurisprudenciais.
A omissão com relação à natureza jurídica da qualificadora de feminicídio
resultou em muitas discussões sobre sua aplicabilidade prática, uma das
discussões levantadas foi a (in) aplicabilidade do bis in idem nos casos de crimes
de homicídio qualificado cometidos no âmbito de violência doméstica e a
coexistência das qualificadoras de motivo torpe e feminicídio no mesmo caso
concreto, pois, no direito brasileiro não se tem um posicionamento uniforme
sobre o assunto, cada magistrado ao aplica-las no caso concreto, possuía certa
discricionariedade com relação à (in) aplicabilidade do bis in idem.
592

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça se posicionou sobre o


assunto, através do informativo nº 625, inclusive revendo um posicionamento
anteriormente adotado, com relação à natureza jurídica da qualificadora de
feminicídio, bem como, sobre a possibilidade de coexistência das qualificadoras
de motivo torpe e feminicídio, conforme objeto desta pesquisa.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA LEI Nº 13.104/2015

O Brasil é um país com altos índices de violência de gênero e,


internacionalmente, ocupa uma posição elevada no ranking quando o assunto
são crimes envolvendo violência de gênero, em especial contra mulher.
Considerando todo o contexto interno e os altos índices de violência, foi
instaurado no ano de 2013, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI
da Violência Contra a Mulher, objetivando a investigação da situação da violência
contra a mulher no Brasil e, apuração das denúncias de omissão por parte do
poder público na aplicação dos instrumentos legais instituídos para a proteção
das mulheres em situação de violência.
O relatório da CPMI da Violência Contra a Mulher publicou seu relatório
final em junho de 2013, oportunidade esta em que apresentou 13 (treze) projetos
de lei e um projeto de Resolução do Congresso Nacional. Dentre estes projetos,
fora proposto o projeto de lei nº292, objetivando alterar o Código Penal, para
inserir como causa qualificadora do homicídio, o feminicídio.
O referido Projeto de Lei fora motivado, principalmente, pelos alarmantes
dados da ocorrência de mortes violentas de mulheres no Brasil, mortes ocorridas
no cenário de violência doméstica e familiar, sendo os autores desses crimes
bárbaros, na sua maioria, os parceiros íntimos ou ex-companheiros das vítimas.
Considerando todo o cenário, o Projeto de Lei nº 292/2013, propôs a
alteração do Código Penal, com relação ao crime de homicídio, para a inserção
do feminicídio como qualificadora do referido crime, quando este ocorrer contra
mulheres, em razão de seu gênero ou no contexto de violência doméstica.
A CPMI da Violência Contra Mulher entendeu que o feminicídio é uma
situação gravíssima, representando uma conduta humana que, em que pese
fosse punida pela legislação brasileira, através do crime de homicídio, tal punição
aplicada isoladamente, como vinha sendo realizada, não conseguia atingir os
objetivos da pena, a saber repressivo e preventivo, uma vez que, mesmo punido
o crime continua a acontecer em larga escala. A Comissão Concluiu que, era
necessário criar uma forma mais gravosa de punição para essa conduta, uma
vez que, o feminicídio foi compreendido como:

[...] a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da


vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse,
igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-
parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher,
por meio da violência sexual associada ao assassinato; como
destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de
seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a
tortura ou a tratamento cruel ou degradante. (BRASIL, 2013 p 1003).

O Projeto de Lei nº 292/2013, se concretizou através da lei nº 13.


104/2015, que foi a responsável por implementar ao Código Penal, a tipificação
da qualificadora de feminicídio ao crime de homicídio.
593

A publicação de tal diploma normativo representa um avanço significativo


no enfrentamento às desigualdades de gênero. Representando assim, um
rompimento histórico brasileiro de legislações discriminatórias às mulheres e a
criação de leis que buscam proteger às mulheres e acabar com as situações de
discriminação de gênero.

2. HOMICÍDIO QUALIFICADO E A QUALIFICADORA DO MOTIVO TORPE

Conforme Masson (2018), o homicídio pode ser definido como a


eliminação da vida humana extrauterina realizada por outro ser humano.
O Código Penal Brasileiro, no parágrafo 2º de seu artigo 121, contemplou
as hipóteses que qualificariam o crime de homicídio, atribuindo ao homicídio, se
cometido em alguma dessas circunstâncias, um patamar superior de pena. O
crime de homicídio qualificado, conforme Mirabete e Fabbrini (2016) foi tipificado
no Código Penal Brasileiro, pois, o contexto em que ocorre demonstra uma
necessidade de maior reprovabilidade do agente, diferente do que ocorre nos
casos de homicídio simples. O crime de homicídio qualificado torna-se mais
grave que o homicídio simples, à medida que, os motivos que levaram o agente
a cometer o crime, bem como, os meios e recursos empregados demonstram ter
o agente maior periculosidade e a vítima estar em considerável desvantagem.
A qualificadora que será objeto de estudo no presente trabalho é a
qualificadora de motivo torpe, que se encontra prevista no inciso I, parte final do
§ 2º do artigo 121 do Código Penal.
Motivo torpe, para Mirabete e Fabbrini (2016) é compreendido como [...]
“o motivo abjeto, repugnante, ignóbil, desprezível, vil profundamente imoral, que
se acha mais abaixo na escala dos desalvores éticos e denota maior depravação
espiritual do agente” [...].
A partir deste conceito doutrinário, é possível extrair que, o motivo torpe é
aquele motivo capaz de ofender consideravelmente a moral ou o sentimento
ético da sociedade média.
Para ilustrar o conceito de motivo torpe, colaciono o julgado apresentado
por NUCCI (2017 p.769) em sua obra “Código Penal Comentado”, do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal, onde se reconheceu a torpeza em um crime
fundado em razões de ganho patrimonial:

[...] “Quanto à qualificadora do motivo torpe, também há de ser


mantida, pois, como á visto, em sua primeira versão dos fatos, a ré
confessou que mandou matar a vítima para não ter que dividir com ela
os direitos sobre o lote em que viviam” (RSE 2005.07.1.005255-8,1.ª
T., rel. Edson Smaniotto, 03.08.2006,v.u.) [...] (NUCCI, 2017 p.769).

O motivo torpe é classificado por DAMÁSIO (1992) como uma


qualificadora de motivo determinante do crime. Isto significa dizer que, a
qualificadora do motivo torpe está relacionada com a vontade e motivação do
agente. Logo, têm-se que sua natureza jurídica é de ordem subjetiva,
relacionada com a motivação do agente.
Vê-se, portanto, que considerando as circunstâncias em que os crimes de
homicídio qualificado pelo motivo torpe, merecem tratamento diferenciado, o que
conforme já explicado alhures, confirma a justificativa para criação de um tipo
penal para tratamento mais gravoso a estas situações.
594

3. DEFINIÇÃO DE FEMINICÍDIO E SUA NATUREZA JURÍDICA

Como abordado anteriormente, o feminicídio foi tipificado como


qualificadora do crime de homicídio, através da lei nº 13. 104/2015.
O termo feminicídio exsurge, da concepção inserida através do projeto de
lei criado pela CPMI da Violência Contra a Mulher, onde se entendeu que o
feminicídio é a ultima instancia de controle da mulher pelo homem, onde este
expressa seu sentimento de posse ilimitada, escolhendo se a mulher deve viver
ou morrer, inclusive, manifestada pela inferiorização da mulher a um objeto, com
a finalidade de subjugar sua dignidade e intimidade sexual, destruindo sua
identidade, por meio da desfiguração de seu corpo ou mutilação, com
tratamentos cruéis e degradantes.
Utilizando dessa essência, a lei nº 13. 104/2015, inseriu no artigo 121, o
inciso VI e o parágrafo 2º-A do Código Penal.
Do aludido artigo, é possível extrair que, feminicídio é definido pela pelo
Código Penal Brasileiro como uma qualificadora do crime de homicídio,
caracterizada pela morta da mulher, ocorrida por razões da condição do sexo
feminino. São compreendidas como razões da condição do sexo feminino, as
ocorridas nas hipóteses prevista no § 2º-A do artigo 121 do Código Penal, ou
seja, morte da mulher envolvendo o contexto de violência doméstica e familiar
e/ou nas situações em que a mulher é morta por menosprezo ou discriminação
à condição dela ser mulher.
O conceito de feminicídio é muito amplo, necessitando, inclusive de outros
diplomas legais para compreensão de sua abrangência.
Quando o aludido artigo determina que, resta caracterizado o feminicídio
quando este ocorre no contexto de violência doméstica, faz referência a um
importante diploma normativo brasileiro, ou seja, a lei nº 11.340/2006,
popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”.
A referida lei promoveu um grande avanço legislativo no enfrentamento
às desigualdades de gênero. Seu texto normativo prevê conceitos
importantíssimos para o avanço do presente trabalho.
Um dos preciosos conceitos trazidos pelo referido diploma normativo, é o
conceito e a abrangência do contexto de violência doméstica e familiar, restando
configurada a violência quando praticada contra mulher, não importando se a
conduta é omissiva ou comissiva, desde que seja baseada no gênero e venha a
causar a mulher lesão, morte, sofrimento – seja ele físico, sexual, psicológico –
, dano moral ou patrimonial. Tais condutas podem ser praticadas no âmbito da
unidade doméstica, âmbito familiar ou em qualquer relação íntima de afeto –
independentemente de coabitação.
O referido diploma normativo, seu 7º artigo conceitua as diferentes formas
de violência doméstica e familiar existentes.
Deste modo, é possível verificar que, a violência contra mulher pode
ocorrer de diversas maneiras e, não apenas a violência física como é largamente
noticiado.
Outra forma de caracterização do feminicídio trazida pelo § 2º -A do artigo
121 do Código Penal, é a ocorrência da morte da mulher em razão de
menosprezo ou discriminação à condição de ser mulher.
O conceito de discriminação contra a mulher é extraído a partir da leitura
do primeiro artigo da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher, cuja sigla em inglês é CEDAW (1979), que foi
595

aprovada pela ONU – Organizações das Nações Unidas, onde prevê que será
considerada discriminação todo e qualquer ato de distinção, exclusão ou
restrição baseado no sexo que, objetive prejudicar ou anular o reconhecimento
ou exercício pela mulher.
Conforme se extrai da pesquisa apresentada pela EDITORA IMPETUS
(2015), há diversas espécies de feminicídio, doutrinariamente dividias em:
a) Feminicídio “intra lar”: trata-se da situação em que o conjunto fático
indica que o crime ocorreu no contexto de violência doméstica e familiar, sendo
o crime praticado por um homem contra uma mulher (artigo 121, §2º-A, inciso I
do Código Penal);
b) Feminicídio homoafetivo: Ocorrerá nas situações em que o crime é
praticado no âmbito de violência doméstica e familiar, como ocorre no feminicídio
“intra lar”, porém, neste caso, figurarão no polo ativo e no polo passivo duas
mulheres, diferentemente do que ocorre na categoria acima (artigo 121, §2º-A,
inciso I do Código Penal);
c) Feminicídio simbólico heterogêneo e homogêneo: Compreende a
ocorrência do crime em que, a motivação do agente para o crime é o menosprezo
ou a discriminação à condição de mulher, significa dizer que, o agente pratica o
crime motivado a destruir a identidade da vítima e de sua condição em pertencer
ao sexo feminino.
Com relação a esta categoria, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, já se
posicionou de forma a admitir como sujeito ativo deste crime, tanto homem,
quanto mulher, exigindo apenas, a presença do estado de vulnerabilidade
caracterizado por uma relação de poder e submissão. (HC 277.561 – AL, Rel.
Min, Jorge Mussi, julgado em 06/11/2014);
Logo, será doutrinariamente considerado feminicídio heterogêneo se, nas
circunstâncias de ocorrência deste crime, figurarem como sujeito ativo um
homem e como sujeito passivo uma mulher. Do mesmo modo, será considerado
para a doutrina feminicídio homogêneo se, nas circunstâncias do crime,
figurarem como sujeito ativo e passivo duas mulheres.
A qualificadora de feminicídio possui natureza hedionda, vez que, o artigo
1º da lei nº 8.072/90 determinou que o crime de homicídio qualificado é
considerado crime hediondo, portanto, já que o feminicídio é uma qualificadora
do crime de homicídio qualificado, este também é hediondo. sendo-lhe, portanto,
aplicável todas as regras previstas naquele diploma normativo.
Doutrinariamente, o crime de homicídio qualificado pelo feminicídio é
classificado como crime próprio, na medida em que, exige, para sua
caracterização, uma condição especial do sujeito passivo (vítima), isto é, exige
que a vítima seja mulher.
Aprofundando o estudo sobre a qualificadora do feminicídio, tem-se que
não foi possível determinar, com exatidão, no momento de publicação da lei, qual
a sua natureza jurídica, ficando a cargo da doutrina e jurisprudência determiná-
la.
A polêmica em torno da natureza jurídica da qualificadora, surgiu no direito
brasileiro na medida em que a lei ao institui-la, não deixou claro a qual ordem
esta pertenceria, visto que, ao descrever no §2º - A do artigo 121 do Código
Penal, quais seriam as situações que ensejariam a caracterização da condição
de razões do sexo feminino, deixou à discricionariedade dos operadores do
direito determiná-la, gerando, com isso, inúmeras discussões nos tribunais
brasileiros e na doutrina.
596

Desde 2015, quando da publicação da lei, até meados de 2018, o direito


brasileiro se deparou com inúmeras discussões e entendimentos sobre o
assunto, vez que, os operadores do direito possuíam entendimentos diferentes
sobre o assunto.
Conforme é possível vislumbrar nas doutrinas que, Mirabete e Fabbrini
(2016) defendem em seus manuais de direito penal que, a qualificadora do
feminicídio possui natureza subjetiva, vez que, para ele, as situações que
caracterizam o feminicídio estão relacionadas com a motivação do agente,
sendo essa motivação o fator determinante da ocorrência do crime. Tal
posicionamento possui reflexos na aplicabilidade de outras circunstâncias que
qualificam o crime, pois, se considerarmos que o feminicídio possui natureza
jurídica subjetiva, refletirá na impossibilidade da coexistência de outras
qualificadoras de mesma natureza jurídica (motivo torpe, motivo fútil, etc.) no
caso concreto.
Esse posicionamento, já foi adotado anteriormente pelos Tribunais de
Justiça Brasileiros, nas situações em que ocorreu crime de homicídio qualificado
no âmbito de violência doméstica e familiar, com a coexistência das
qualificadoras de motivo torpe e feminicídio. Vejamos. O TJSP – Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo reconheceu o afastamento da qualificadora de
motivo torpe, pois o mesmo não poderia coexistir com o feminicídio, já que essa
também possui natureza subjetiva:

[...]“ Hipótese, todavia, de afastamento da qualificadora do motivo


torpe, porquanto o fato referido na denúncia – como configurador da
aludida qualificadora – caracteriza, na realidade, o feminicídio na
modalidade envolvendo violência doméstica e familiar. A qualificadora
do feminicídio tem natureza subjetiva, não podendo ser cumulada com
a qualificadora relativa ao motivo torpe, sob pena de “bis in idem”.
Recurso parcialmente provido” (RSE 0003128-47.2015.8.26.0052-SP,
14ª C.Crim., rel. Laerte Marrone, 10.11.2016, m.v.) [...] (NUCCI, 2017
p.782).

Em posicionamento contrário a este, Nucci (2017) defende em seus


manuais de direito penal que a qualificadora de feminicídio, na verdade trata-se
de uma qualificadora de ordem objetiva, uma vez que, sua razão de existência
está ligada ao gênero da vítima: ser mulher, ou seja, é o mesmo que dizer que,
a qualificadora do feminicídio apenas encontra motivo para estar inclusa no
ordenamento jurídico, pela proteção que oferta às mulheres. Para Nucci, não há
de se falar aqui que o feminicídio é uma qualificadora de ordem subjetiva, única
e exclusivamente porque ao redigir a lei, o legislador brasileiro inseriu a
expressão “por razões da condição de sexo feminino”. A mulher pode ser morta
por inúmeros motivos, sejam eles torpes fúteis e até moralmente relevantes e,
não há de se considerar que, a motivação do crime é única exclusivamente
porque a mulher é mulher.
A qualificadora de feminicídio foi criada para proteger as mulheres,
utilizando da mesma essência utilizada para criar a Lei ‘Maria da Penha’.
Logo, adotando o posicionamento de Nucci, tem-se que, se a
qualificadora do feminicídio for considerada de natureza objetiva,
consequentemente não restará configurado o “bis in idem” em considerar uma
qualificadora de ordem objetiva (feminicídio) e outra de ordem subjetiva (motivo
torpe), já que, neste contexto as qualificadoras serão de naturezas distintas.
597

Tal posicionamento, inclusive foi adotado pelos Tribunais de Justiça


Brasileiros. Vejamos. O TJPR– Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
reconheceu a compatibilidade entre as qualificadoras:

[...]“(...) Compatibilidade entre a qualificadora de motivo fútil , de


natureza subjetiva, e a qualificadora de feminicídio de caráter objetivo
(...)” (Ap. 1643753-3-PR, 1ª C.Crim., Rel. Miguel Kfouri Neto,
25.05.2017, v.u) [...] (NUCCI, 2017 p.781).

No ano de 2018, o Superior Tribunal de Justiça - STJ, revendo o


posicionamento anteriormente adotado e, seguindo a mesma linha do
posicionamento defendido por NUCCI (2017), decidiu positivamente por
unanimidade de votos, no julgamento do HC nº 433.898-RS de Relatoria do
Ministro Nefi Cordeiro (DJE 11/05/2018), a possibilidade de coexistência das
qualificadoras de motivo torpe e feminicídio sem caracterizar o bis in idem.
Vejamos.
HOMICÍDIO QUALIFICADO. QUALIFICADORAS COM NATUREZAS
DIVERSAS. SUBEJTIVA E OBJETIVA. POSSIBILIDADE. MOTIVO
TORPE E FEMINICÍDIO. BIS IN IDEM. AUSÊNCIA.
Não caracteriza bis in idem o reconhecimento das qualificadoras de
motivo torpe e de feminicídio no crime de homicídio praticado contra
mulher em situação de violência doméstica e familiar. (HC 433.898-RS,
Rel. Min, Nefi Cordeiro, por unanimidade, julgado em 24/04/2018, Dje
11/05/2018).

O referido julgado concedeu força para que, a teoria de que a qualificadora


do feminicídio possui natureza jurídica de qualificadora seja amplamente
adotada, uma vez que, sabe-se que os posicionamentos adotados pelas cortes
superiores possuem maior aceitabilidade pelos tribunais inferiores.

CONCLUSÃO

Com base nas análises e considerações realizadas no decorrer do


presente trabalho, em especial com relação à natureza jurídica do feminicídio,
percebe-se que apesar dos respeitáveis entendimentos doutrinários e
jurisprudências, que defendem que a qualificadora do feminicídio é uma
qualificadora de natureza subjetiva e, como consequência, não é possível sua
cumulação com uma qualificadora de mesma natureza, como no caso em análise
a de motivo torpe (subjetiva).
Porém, é necessário defender e compartilhar o entendimento que a
qualificadora do feminicídio na verdade é uma qualificadora de natureza objetiva,
atendendo assim à finalidade pela qual o tipo penal foi criado, isto é, maior
proteção da mulher que, durante anos foi vítima de uma sociedade culturalmente
machista, visando diminuir os altos índices de violência de gênero existentes no
país.
O diploma normativo responsável pela modificação do código para inserir
a qualificadora do feminicídio não é, uma legislação qualquer, traz consigo todo
um contexto de luta ao enfrentamento da violência contra gênero, bem como um
avanço legislativo na medida em que fornece uma proteção especial às
mulheres.
598

A qualificadora do feminicídio é de ordem objetiva, uma vez que, quando


o legislador inseriu a expressão "por razões do sexo feminino", também
estabeleceu quais situações que caracterizariam a ocorrência dessa
qualificadora, deste modo, têm-se que somente restará caracterizada se,
ocorrerem alguma das situações descritas na legislação. Em contrapartida, se o
feminicídio for considerada qualificadora de natureza subjetiva, as situações que
iriam caracterizá-lo, não estariam descritas na lei, mas seria relacionada com a
motivação do agente.
Logo, se o feminicídio for aplicado como natureza subjetiva, perderá toda
sua razão de existir, não fornecendo a proteção jurídica à mulher como foi
esperado. Assim, resta-nos abrir frentes de discussão sobre o assunto no Direito
Brasileiro, revelando-se necessária e indispensável tal questionamento para que
se possa vislumbrar o estabelecimento de um novo paradigma e,
consequentemente, para a formação de uma nova concepção do tratamento
jurídico pátrio a ser aplicado aos animais não humanos, operável por uma
alteração do status jurídico dos animais não humanos no direito nacional.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Método, 10 ed. Rev., ampl. E atual 2018.

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http://www4.planalto.gov.br. Acesso em 24.out.2018.

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LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: JusPODIVM,


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599

MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 6ª ed. Ver. Atual.ampli. Rio de


Janeiro: Forense; São Paulo: Médito, 2018.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal,


volume 02: parte especial, Arts 121 a 234-B do Código Penal. São Paulo: Atlas,
33 ed. Atual. E ampl., 2016.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, volume 02: parte especial. São


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NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. Rio de Janeiro:


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SENADO. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Disponível em:


<https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-
violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-
a-violencia-contra-as-mulheres>.Acesso em 13.abr.2019
600

A APLICAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO DIREITO PENAL: UMA


ANÁLISE DO SISTEMA COMPAS E SUA INFLUÊNCIA NA CONSOLIDAÇÃO
DO PUNITIVISMO ATRAVÉS DO FORTALECIMENTO DA SELETIVIDADE
CARCERÁRIA E DAS VIOLAÇÕES DE GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS
THE APPLICATION OF ARTIFICIAL INTELLIGENCE IN CRIMINAL LAW: AN
ANALYSIS OF THE COMPAS SYSTEM AND ITS INFLUENCE ON THE
CONSOLIDATION OF PUNITIVISM BY STRENGTHENING PRISON
SELECTIVITY AND VIOLATING CRIMINAL PROCEDURAL GUARANTEES

Gabriela Rangel Aguiar


Débora Neves de Oliveira

Resumo: O presente trabalho visa discutir a utilização da inteligência artificial no


âmbito do Direito Penal, possuindo como objeto de estudo o COMPAS
(Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions), software
que se propõe a averiguar corretamente a probabilidade de reincidência dos
indivíduos. Para isso, este resumo expandido compromete-se, inicialmente, a
realizar uma explicação técnica de funcionamento desta ferramenta, elucidando
a maneira de utilização dos algoritmos desse sistema, conjugada com um exame
do questionário disponível na ferramenta. Após, é realizada uma análise das
consequências do uso desse software na esfera social, sendo abordado então o
caráter preconceituoso que a aplicação desse sistema pode alcançar, reforçando
consequentemente alguns estereótipos já difundidos socialmente. Dentro desse
contexto é também averiguado como a execução do COMPAS pode interferir na
consolidação de garantias fundamentais aos indivíduos.
Palavras-chave: COMPAS. Estereótipos. Garantias fundamentais.

Abstract: This paper aims to discuss the use of artificial intelligence in Criminal
Law, having as object of study the COMPAS (Correctional Offender Management
Profiling for Alternative Sanctions), software that proposes to correctly verify the
probability of recurrence of individuals. To this end, this expanded summary
initially undertakes to provide a technical explanation of the operation of this tool,
elucidating the use of the algorithms of this system, combined with an
examination of the questionnaire available in the tool. After, an analysis of the
consequences of the use of this software in the social sphere is performed, being
approached then the prejudiced character that the application of this system can
reach, consequently reinforcing some stereotypes already socially diffused.
Within this context it is also investigated how the execution of COMPAS can
interfere with the consolidation of fundamental guarantees to individuals.
Key words: COMPAS. Stereotypes. Fundamental guarantees.

INTRODUÇÃO

Entende-se que na contemporaneidade vivemos a Quarta Revolução


Industrial ou Industria 4.0. Alguns conceitos que podem ser ligados a essa
Revolução Industrial são: Internet das coisas (Internet of Things – IoT), Big Data
Analytics e principalmente Inteligência Artificial. A Inteligência Artificial pode ser
definida de acordo com Paulo Sá Elias (2017), como:
601

(...) a teoria e desenvolvimento de sistemas de computadores capazes


de executar tarefas normalmente exigindo inteligência humana, como
a percepção visual, reconhecimento de voz, tomada de decisão e
tradução entre idiomas, por exemplo.

O termo Quarta Revolução Industrial foi desenvolvido pelo alemão Klaus


Schwab, diretor e fundador do Fórum Econômico Mundial e pode ser definido,
segundo Cristiano Bertulucci Silveira (2016), em:

(...) um conceito de indústria proposto recentemente e que


engloba as principais inovações tecnológicas dos campos de
automação, controle e tecnologia da informação, aplicadas aos
processos de manufatura. A partir de Sistemas Cyber-Físicos,
Internet das Coisas e Internet dos Serviços, os processos de
produção tendem a se tornar cada vez mais eficientes,
autônomos e customizáveis.

A consequência da Quarta Revolução Industrial é expandir a


automatização para todas as áreas, mesmo que não sejam áreas diretamente
ligadas às tecnologias. As tecnologias que fazem parte do conjunto da Indústria
4.0 não estão restritas aos universos da nanotecnologia, neurotecnologia,
biotecnologia, robótica, inteligência artificial e armazenamento de energia. E
essa é justamente a grande preocupação de especialistas que estudam o tema,
por ser uma inovação ainda não é possível prever as consequências e os
impactos que a tecnologia, principalmente a inteligência artificial trará para o
mundo.
As profissões de cunho intelectual são as que trazem mais dúvida sobre
a aplicação desse tipo de inovação, pois por muito tempo se mantiveram com a
mesma forma de execução, sem grandes interferências tecnológicas. A Industria
4.0. é tida como a maior Revolução Industrial desde a Primeira Revolução
Industrial e por isso preocupa sobre seus impactos nas formas do ser humano
se relacionar com tudo na sociedade. É o que afirma o autor do livro ‘’A Quarta
Revolução Industrial’’, Klaus Schwab:

Estamos a bordo de uma revolução tecnológica que transformará


fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos
relacionamos. Em sua escala, alcance e complexidade, a
transformação será diferente de qualquer coisa que o ser humano
tenha experimentado antes

Uma das áreas de cunho intelectual em que já se pode observar a


aplicação das mudanças trazidas pela Quarta Revolução Industrial é a área
jurídica, que tem se modificado pela implementação da inteligência artificial na
sua forma de atuar. Como por exemplo a utilização do sistema ‘’Victor’’ pelo
Supremo Tribunal Federal e a ferramenta ‘’Radar’’ utilizada pelo Tribunal de
Justiça de Minas Gerais (TJMG).

DESENVOLVIMENTO

1. CORRECTIONAL OFFENDER MANAGEMENT PROFILING FOR


ALTERNATIVE SANCTIONS (COMPAS) – COMO O DESENVOLVEDOR PODE
PROPAGAR SUAS IDEIAS E PRECONCEITOS POR ESSA FERRAMENTA
602

O Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions


(COMPAS) é um software, que utiliza um questionário, pelo qual através de
algoritmos matemáticos tem o objetivo de definir qual a chance do indivíduo
avaliado ser reincidente no futuro, classificando o grau de periculosidade do
mesmo. Esse sistema tem sido utilizado nos Estados Unidos, e
consequentemente influenciado na aplicação da pena. Os algoritmos podem ser
definidos, de acordo com Paulo Sá Elias (2017) como:

Algoritmo (algorithm), em sentido amplo, é um conjunto de instruções,


como uma receita de bolo, instruções para se jogar um jogo, etc. É uma
sequência de regras ou operações que, aplicada a um número de
dados, permite solucionar classes semelhantes de problemas. Na
informática e telemática, o conjunto de regras e procedimentos lógicos
perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um
número de etapas. Em outras palavras mais claras: são as diretrizes
seguidas por uma máquina. Na essência, os algoritmos são apenas
uma forma de representar matematicamente um processo estruturado
para a realização de uma tarefa. Mais ou menos como as regras e
fluxos de trabalho, aquele passo-a-passo que encontramos nos
processos de tomada de decisão em uma empresa, por exemplo.

O grande vício desse sistema é a forma como engloba preconceitos de


quem o desenvolve, não sendo, portanto, algo imparcial, mas algo que na prática
tem contribuído para o aumento da desigualdade social, por perpetuar
julgamentos e sentenças injustas e baseadas em preconceitos. Como alertam
especialistas:
(...)algoritmos não são imparciais. Os próprios algoritmos podem conter
os preconceitos presentes nos criadores do algoritmo ou nos dados
que foram usados para treinar o algoritmo. O desempenho dos
algoritmos depende muito dos dados utilizados para desenvolvê-los.
Os preconceitos que estão presentes nos dados serão refletidos pelos
algoritmos. Tais desvios, intencionais ou não, podem ser inerentes aos
dados, como também oriundos do próprio desenvolvedor do algoritmo.
Isso pode ter efeitos tão ruins como os vícios que eles pretendiam
eliminar. (SÁ ELIAS, 2017)

Além dos algoritmos matemáticos utilizados não serem imparciais,


executando-se de acordo com as opiniões de quem os criou, perpetuando dados
preconceituosos, as perguntas do questionário COMPAS tendem a incriminar as
minorias da sociedade. Alguns exemplos das questões que devem ser
respondidas no questionário são ‘’se alguém na família já foi preso, se a pessoa
vive numa área de alto índice de criminalidade, se possui amigos que fazem
parte de gangues, assim como analisam o histórico profissional e escolar do
acusado. A avaliação se baseia num sistema de pontos que vai de um até dez.
A Suprema Corte de Wisconsin advertiu ainda que o COMPAS pode dar uma
pontuação consideravelmente maior para infratores de minorias étnicas. É o que
Julia Angwin (2016), da ProPublica, organização americana independente
dedicada ao jornalismo investigativo confirma em sua pesquisa:

Quando analisamos um acusado negro e outro branco com a mesma


idade, sexo e ficha criminal - e levando em conta que depois de serem
avaliados os dois cometeram quatro, dois ou nenhum crime -, o negro
tem 45% mais chances do que o branco de receber uma pontuação
alta.
603

Outro problema encontrado no sistema é de que a fabricante do


software, a Northpointe, Inc. mantêm sob forte sigilo seus algoritmos que
processam o sistema de pontuação, pois geralmente algoritmos são processos
complexos e obscuros, já que constantemente significam um segredo de
negócios, o que dificulta mais a correção desses desvios, já que quanto mais
simples e auditáveis forem os algoritmos, maior a chance de se alcançar o
resultado desejado com o sistema COMPAS, que seria a diminuição de
decisões judiciais subjetivas.
Mas pode-se dizer que o sistema tem contribuído com a seletividade penal
e carcerária e afirmado o Direito Penal do Autor, que vai em desacordo com os
direitos fundamentais e os progressos já conquistados pela sociedade atual. Um
dos exemplos que pode ser citado é o caso julgado pela Suprema Corte de
Winconsin em julho de 2016, de Eric Loomis, que

pretendeu a reforma de sentença de primeiro grau em razão da


mesma tê-lo considerado um possível reincidente criminal, o que foi
feito com o uso de um software, o COMPAS. Naquela ocasião
Loomis alegou que não teve acesso às fórmulas matemáticas do
software e que, por isso, não poderia se defender adequadamente.
A fabricante do software, a Northpointe, Inc. mantêm sob forte sigilo
seus algoritmos que processam o sistema de pontuação.

Por isso, ao se considerar expandir as tecnologias para a área jurídica,


principalmente a penal, deve ser observada a forma como os dados são
processados pelos algoritmos. Deve se evitar a perpetuação da desigualdade
social já presente na seara penal, visando melhorar os vícios ainda presentes
nesses sistemas.

2. A CRIMINOLOGIA E A PSICOLOGIA PREVENTIVA NO ÂMBITO


PENAL

Dentro desse contexto é preciso afirmar que o COMPAS, atualmente se


caracteriza como instrumento relevante da criminologia que colabora para
favorecimento do caráter punitivista do âmbito penal. Por esse motivo, faz-se
necessário, inicialmente, distinguir a criminologia do Direito Penal per si, sendo
este último conceituado como:

o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar


os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade,
capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência
social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em
consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as
regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa
aplicação”. (CAPEZ, Fernando, 2003, p. 1).

De acordo com a definição supracitada, o Direito Penal é determinado


como um ramo do Direito que produz uma forma de controle social, com o
objetivo de proteger os bens jurídicos considerados mais importantes para a
sociedade. A Criminologia, por sua vez, possui uma atuação mais específica,
sendo uma ciência social com caráter empírico, ou seja, que tem por objeto a
observação de fatos verificáveis, que ocorrem no mundo real, e que possui o
intuito de analisar: o crime, o criminoso, a vítima e o controle social. Uma
604

concepção importante desse instituto seria sua propriedade preventiva de


atuação, que visa verificar quais seriam os fatores responsáveis por impulsionar
o cometimento de ato delituoso e, dessa maneira, procurar preventivamente,
formas para evita-lo.
Ainda que entrelaçada com o Direito Penal é preciso compreender que a
Criminologia não se reduz a esse ramo. Tal afirmativa é justificada no fato de
que, mesmo que tais matérias possuam um objeto comum de estudo – o crime-
suas finalidades são diversas. Enquanto o Direito Penal propõe uma regulação
de comportamento delituoso através das sanções, a Criminologia se dedica a
uma investigação de natureza social sobre o tema, possuindo como propósito a
averiguação de elementos externos àqueles presentes no ordenamento jurídico
Em razão da conexão entre as duas ciências, a Criminologia passa a ser
utilizada como ferramenta dentro do âmbito do Direito Penal. Pode-se afirmar
que a abordagem preventiva dessa ciência que visa justamente evitar o
cometimento de um crime e a continuidade delituosa, se configura como atrativa
para um ramo no qual o cerne se estabelece na regulação de um ato criminoso.
E é nesse contexto que instrumentos como o COMPAS passam a ganhar
relevância na Criminologia, pois a realização do questionário disponível no
software aduz exatamente fatores sociais externos que ensejariam uma postura
delitiva. No entanto, o caráter criminológico desse mecanismo torna-se falho ao
desconsiderar as outras condições externas ao sistema jurídico e priorizar
apenas a utilização de algoritmos. Tal uso inadequado, portanto, consolida o
punitivismo persistente no âmbito penal.

3. A CONTRIBUIÇÃO PARA A SELETIVIDADE PENAL

Como dito anteriormente, a consolidação do punitivismo no Direito Penal


pode ocorrer através da utilização errônea dos preceitos da Criminologia, sendo
o COMPAS uma exemplificação desse fato. Tal afirmação é justificada na ideia
de que o contexto estudado por tal software, ao se restringir ao conteúdo dos
questionários e ao uso de algoritmos, pode produzir na análise de fatores sociais
determinantes para o cometimento de um crime, uma visão estereotipada de
quem o realiza.
Ao averiguar os locais com maiores índices de criminalidade, por
exemplo, é certa a presença de regiões periféricas nessa estatística. Este
acontecimento tem respaldo no contexto histórico de desigualdades sociais e
formação de classes. Muitas vezes, o pouco alcance do apoio estatal faz com
que tais áreas não recebessem de maneira efetiva, acesso a direitos básicos,
como saúde, moradia e educação, e vivessem à margem da sociedade.
Essa marginalização produziu diversas consequências, dentre elas o
aumento de criminalidade em tais locais. Por esse motivo, ainda que as causas
remetam a séculos passados, existem atualmente, fatores como: lugares, grupo
de pessoas e classes sociais, são associados a índices de criminalidade
maiores. Tal fato isolado se caracterizaria apenas como um fator social de
análise, porém, ao adotar uma visão imprecisa do aspecto preventivo da
Criminologia, utilizando-se instrumentos como o COMPAS, cria-se uma falácia
de que a atuação para evitar a continuidade dos crimes deve acontecer somente
para essas pessoas específicas.
Nesse sentido, tal software ao ser utilizado para punir preventivamente
quem se encaixa nos perfis estipulados como “criminosos”, assume um caráter
605

preconceituoso e generalizante. Dessa maneira, é possível afirmar que, ainda


que diversos grupos da sociedade cometam crimes, àqueles realizados por
classes sociais mais baixas são mais comumente percebidos pela população.
Este fato associado a maior vulnerabilidade dessa parte da população frente ao
poder policial, gera uma sensação precipitada nos demais de que crimes são
exclusivamente cometidos por esse grupo. Tal acontecimento influi até mesmo,
no comportamento das pessoas e das autoridades policiais em relação a esses
indivíduos, que por vezes, são tratados como infratores, ainda que não sejam,
apenas por se encaixarem no estereótipo de um.
Todo esse contexto propicia uma acentuação da seletividade penal, pois
em um contexto de criminalização secundária que de acordo com Zaffaroni
(2013) “é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas” -que é na maioria
das vezes produzida pelas agências policiais-essa ação punitiva é feita de modo
restrito para certas pessoas. Esses atos são vistos desde um maior índice de
abordagens policiais e investigações sobre esse grupo específico, até como
estes são tratados perante tais autoridades, sendo muitas vezes violentados e
maltratados.
Essa conjuntura de acontecimentos propicia um impacto no perfil da
população carcerária. Isso é justificado no fato de que, se as ações investigativas
e punitivas das forças que possuem o poder de restringir a liberdade são
cegamente focadas em um só perfil, logicamente aqueles que terão sua
liberdade restringidas serão majoritariamente aqueles que são alvos de tais
ações.

4. A APLICAÇÃO DE TAL SISTEMA E AS GARANTIAS


CONSTITUCIONAIS

Ao analisarmos as consequências que esse software promove, é possível


afirmar que sua utilização pode trazer grandes impactos no cumprimento efetivo
das garantias constitucionais. Essa afirmação é embasada na natureza parcial
que o uso dos algoritmos pode acarretar ao perpetuar as opiniões de quem os
criou, conjugada com a falta de transparência do fabricante do COMPAS sobre
estes. Toda essa conjuntura, como dito anteriormente, pode reproduzir atos
discriminatórios contra as minorias sociais.
Tais atos, no entanto, podem assumir uma faceta de violação aos direitos
fundamentais garantidos para os cidadãos. Ao considerarmos a grande
influência que a utilização dessa ferramenta nos Estados Unidos da América
produz no setor midiático, é plausível presumir que há possibilidade desse
sistema adquirir espaço em outros lugares do mundo, inclusive no Brasil.
Dentro desse contexto e realizando um paralelo com a legislação
brasileira, principalmente com a Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar
que a utilização desse instrumento no país poderia se caracterizar como uma
ameaça ao princípio fundamental da presunção de inocência, garantido por tal
documento em seu artigo 5°, inciso LVII. Essa afirmação se justifica no fato de
que, ao avaliar a chance de reincidência de um indivíduo medindo seu grau de
periculosidade apenas através de um questionário, ainda que não haja uma
sentença penal efetiva, tal pessoa já estará sendo vista através do software
como possível culpada de algum fato criminoso.
Esse parecer produzido pelo COMPAS tem como decorrência uma
mudança nas relações sociais e jurídicas que esse indivíduo possuirá, visto que
606

a sua pontuação de reincidência e periculosidade afetará o modo como a


sociedade o enxerga. Tal modificação interfere na regra de tratamento derivada
desse princípio, pois a formulação de um entendimento que direciona a
criminalidade a um indivíduo, consequentemente o apresenta como culpado
perante o âmbito social. Tal decorrência faz com que a pessoa, ainda que não
tenha a culpabilidade comprovada, seja tratada como culpada apenas por um
fator estatístico, situação que ao gerar atos preconceituosos e discriminatórios,
interfere na consolidação da dignidade humana desse indivíduo.

CONCLUSÃO

A automatização expandiu-se para todos os setores da vida humana e os


impactos que isso acarretará ainda não podem ser definidos, principalmente nas
áreas que estão sendo atingidas pela primeira vez de forma significativa com as
novas tecnologias da inteligência artificial, como a área jurídica. Com o aumento
significativo das decisões baseadas em big datas e algoritmos é preciso observar
com maior cautela o respeito ao processo legal e as normas constitucionais, para
que a tecnologia não sirva apenas como uma forma de propagação da já
existente desigualdade social.

No jogo do desenvolvimento tecnológico, sempre há perdedores. E


uma das formas de desigualdade que mais me preocupa é a dos
valores. Há um risco real de que a elite tecnocrática veja todos as
mudanças que vêm como uma justificativa de seus valores", disse à
BBC Elizabeth Garbee, pesquisadora da Escola para o Futuro da
Inovação na Sociedade da Universidade Estatal do Arizona (ASU).

Pela forma como a avaliação fornecida pelo questionário do COMPAS


pode ser utilizada, como: definir se pessoa vai ser solta com pagamento de
fiança, se será presa ou se terá direito de liberdade condicional esses vicios traze
sérios problemas para a realidade no âmbito jurídico, já que pode
demasiadamente aumentar as desigualdades sociais nas decisões judiciais.
Como afirma Caio Lara em sua tese de doutorado ‘O ACESSO TECNOLÓGICO
À JUSTIÇA: POR UM USO CONTRA-HEGEMÔNICO DO BIG DATA E DOS
ALGORITMO’:

Em nome da eficiência tecnológica de combate ao crime, uma nova


dimensão de opressão do Estado sobre os indivíduos está sendo
inaugurada. Mesmo com o big data tomando espaço nessa seara,
deve-se tomar cuidado para que não ocorra o reforço da seletividade e
da vulnerabilidade do sistema penal. Isso porque, ao apontar crimes
e/ou indivíduos criminosos, nota-se um espectro de incidência que se
fundamenta a partir de estereótipos circundantes na sociedade.
Pensando na realidade brasileira, antes de se tentar a utilização do big
data dentro do sistema criminal, deve haver um esforço para se levar
em conta a estrutura discriminatória presente, em que os negros
compõem a maior parte do sistema e são atribuídos a eles um
tratamento negligente e classificador, nos termos em que Foucault
(2010) vai enunciar como indivíduo patológico, perigoso ou daninho.
(LARA, 2019)

A crescente vontade de implementar as tecnologias no âmbito jurídico não


pode fazer com que os princípios constitucionais e direitos humanos sejam
ignorados no processo criminal. Pelo contrário, com a crescente implementação
607

de inteligências artificiais, principalmente no âmbito penal, é necessário que os


princípios constitucionais e o devido processo legal sejam ainda mais
observados, já que com a implementação desses sistemas há maior chance de
perda de valores, princípios e humanização do processo.

REFERÊNCIAS

CAMARGO, Marcelo. A seletividade penal: dos Jardins à periferia. Jus


Brasil, 4 set. 2017, Disponível
em:<http://www.justificando.com/2017/09/04/seletividade-penal-dos-jardins-
periferia/>. Acesso em: 6 out. 2019

CHIARADIA, Lucas. Algoritmos e inteligência artificial exigem atenção do


Direito. Jus Brasil, 16 out. 2017. Disponível em:
<https://lucaschiaradia.jusbrasil.com.br/artigos/529556666/algoritmos-e-
inteligencia-artificial-exigem-atencao-do-direito?ref=amp>. Acesso em: 24 set.
2019

GEBRIM, Gianandreia. Direito Penal e Processual Penal sob uma ótica


constitucionalista, Jus Brasil, 13 set. 2017, Disponível em:<
https://jus.com.br/artigos/60553/direito-penal-e-processual-penal-sob-uma-
otica-constitucionalista>. Acesso em: 6 out. 2019

LOPES, Guilherme Cano. In: SILVEIRA, Cristiano Bertulucci. O Que é


Indústria 4.0 e Como Ela Vai Impactar o Mundo. [S. l.], 15 set. 2017.
Disponível em: <https://www.citisystems.com.br/industria-4-0/.> Acesso em: 6
set. 2019.

MAYBIN, Simon. Sistema de algoritmo que determina pena de condenados


cria polêmica nos EUA. BBC, 31 out. 2016, Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37677421>. Acesso em: 6 set. 2019

PERASSO, Valeria. O que é a 4ª revolução industrial - e como ela deve


afetar nossas vidas. [S. l.], 22 out. 2016. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-37658309. Acesso em: 5 set. 2019.

PEREIRA, Jeferson. A função da criminologia moderna no conceito


prevencionista, Jus Brasil, 3 fev. 2017, Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/55800/a-funcao-da-criminologia-moderna-no-
conceito-prevencionista/2>. Acesso em: 6 out. 2019

SÁ ELIAS, Paulo. Algoritmos e inteligência artificial exigem atenção do


Direito. Conjur, 22 nov. 2017, Disponivel
em:<https://www.ab2l.org.br/algoritmos-e-inteligencia-artificial-exigem-atencao-
do-direito/>. Acesso em: 6 set. 2019
608

A APLICAÇÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO NOS


CRIMES PREVISTOS NA LEI DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
THE APPLICATION OF CONDITIONAL SUSPENSION OF PROCEEDINGS
ON THE CRIMES PROVIDED IN THE LAW OF DOMESTIC VIOLENCE

Cleidineia Mariano da Silva


Waldemar Thives Schnepper

Resumo: O presente trabalho tem por escopo analisar a aplicação da suspensão


condicional do processo nos crimes descritos na lei 11.340/2006 de violência
doméstica. O referido instituto abrange crimes que tramitam no procedimento
sumaríssimo e outros delitos previsto no Código Penal e em leis extravagantes.
Trata-se, neste trabalho, do contraponto da aplicação ou não do sursis
processual previsto na lei dos Juizados Especiais Criminais. Ocorre que, o
legislador introduziu o art. 41 na lei n° 11.340/2006 determinando expressamente
a impossibilidade de aplicação de benefícios dos institutos despenalizadores,
porém diante do novo entendimento existi a possibilidade de aplicação da
referida matéria. Para tanto, utilizou-se a metodologia dedutiva, partindo de
pesquisa bibliográfica, jurisprudência, artigos científicos, legislações gerais
sobre o assunto e análises de casos concretos.
Palavras-chave: Suspensão. Agressão. Proteção à Vítima.

Abstract: The present work has as scope to analyse the application of


conditional suspension of proceedings on the crimes provided in the law
11.340/2006 of domestic violence, the referred institute encompasses crimes that
conducting in the sumaríssimo proceeding and others crimes described in Penal
Code and baffling laws. That´s a work, of counterpoint the application of
conditional suspension or not of procedural sursis described in the law of Special
Criminal Court. Occur that, the legislator introduced the article 41 of Law n°
11.340/2006 determining expressly the impossibility of application benefits
despenalizadores institutes, however in the face of new understanding there is
the possibility of an application referred subject. Therefore, utilized the deductive
methodology, starting from bibliographic research, jurisprudence, scientific
articles, general laws about the issue and analyses of specific cases.
Keywords: Suspension. Agression. Victim Protection.

INTRODUÇÃO

Inobstante a falta de mecanismos e instrumentos por parte do Estado,


protetivos e coibitivos em favor de mulheres vítimas de violência doméstica,
abarcada pela Lei Maria da Penha, a qual trouxe em seu bojo legal, meios de
minimizar e proteger a parte vulnerável nas relações afetivas.
A introdução da referida norma, foi introduzida após a ocorrência de fato
criminoso sofrido por Maria da Penha Maia Fernandes, diante da omissão do
Estado, o delito sofrido por essa ensejou em uma reclamatória, junto a comissão
de proteção aos direitos humanos.
A reclamação de Maria da Penha, levada a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, cominou na
responsabilização do Estado brasileiro por omissão, negligência e por tolerância
a todos os delitos ocorridos em ambiente familiar.
609

A vítima, protegida pelas normas internacionais de Direitos Humanos, foi


favorecida com a procedência do seu reclamo, ocasionou em recomendação ao
Estado Brasileiro, para que este procedesse com a introdução de normas e
instrumentos que erradicassem, coibissem e minimizassem a violência contra às
mulheres no âmbito doméstico.
Nesse contexto, no dia 07 de agosto do ano de 2006, foi sancionada a lei
11.340, com o objetivo de proteção às mulheres, vítimas de violência doméstica
e familiar. O objetivo da legislação é proteger a parte vulnerável nos
relacionamentos familiares, conciliando em instrumentos e mecanismos
punitivos mais severos em desfavor do agressor, em contrapartida protege-se as
mulheres que necessitam da tutela jurisdicional do Estado.

DESENVOLVIMENTO

A lei Maria da Penha tem sua natureza jurídica de cunho material e


processual, tratando-se de norma hibrida, ou chamada de lei mista. Importante
elucidar o contido no artigo 41 da lei 11.340/2006 o qual infere a proibição de
algumas medidas despenalizadoras previstas na lei dos Juizados Especiais
Criminais, com a redação, disciplinada no respectivo artigo, e que é matéria de
expressiva complexidade de aplicação.
A referida sistemática trouxe em seu bojo uma discussão ocasionada por
inúmeros debates sobre sua constitucionalidade. Este artigo aduz que:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar


contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a
Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. (BRASIL, 2006)

No entanto, o Supremo Tribunal Federal ao julgar o HC 106212 por


unanimidade dos ministros, pacificaram o entendimento que o artigo 41 da lei
11.340/2006 é compatível com a Constituição de 1988 e sua aplicação afasta os
benefícios despenalizadores que a lei 9.099/95 dispõe em conteúdo legal.
Contudo, o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Celso Limongi, no
seu voto no HC 154801/MS, julgado em 14/12/2010, relatou que a
Constitucionalidade da Lei 11.340/2006 não significaria a vedação de todos os
instrumentos processuais previstos na lei 9.099/95. Como é caso da suspensão
condicional do processo, previsto no artigo 89. Ademais, ele salienta que o artigo
41 da 11.340/2006, não especifica quais seriam os instrumentos vedados.
Em corroboração a esse entendimento, a doutrina manifesta sua
extensividade do benefício nos casos de incidência de violência doméstica,
Arruda, assevera que:

A aparente proibição, contudo, há de ser interpretada “cum grano


salis”, pois, inobstante previsto na Lei 9099/95, o benefício é extensível
a todos os processos penais, independentemente do rito a ser adotado,
neles se incluindo, por óbvio, os referentes à violência doméstica
contra a mulher.
Daí se concluir que o legislador quis vedar aos processos abarcados
pela Lei Maria da Penha apenas a aplicação dos institutos
despenalizadores EXCLUSIVOS do microssistema dos juizados
criminais, tais como a transação e a composição civil, e não a todos os
feitos indiscriminadamente. Por isso, a suspensão condicional do
processo, por não ser exclusiva dos crimes de menor potencial
ofensivo (e sim aplicável a todos os ritos processuais), não possui o
610

óbice de aplicabilidade insculpido no multicitado art. 41. (Arruda, 2011,


p. 12)

A lei dos Juizados Especiais Criminais por possuir um caráter restaurativo,


criou institutos despenalizadores como a transação penal, a composição civil dos
danos e o sursis processual. Esses benefícios só podem ser aplicados aos
delitos de menor potencial ofensivo, descritos no Decreto Lei 3.688 de 1941 e
aos crimes que a lei determina pena máxima não superior a dois anos, ou pena
mínima menor ou igual a um ano.
Entretanto, o instituto da suspensão condicional do processo abrange
crimes previsto em outras legislações, podendo ser aplicado em delitos que não
são considerados de menor potencial ofensivo, cujo o processo se dará em
outros ritos abarcados nas diversas normas vigentes.
O autor do fato ao se beneficiar deste instituto, suspensão condicional do
processo, receberá em seu desfavor medidas restritivas de direito determinados
em audiência especifica para este fim. Essas restrições trazem uma vigilância
maior do Estado sobre o acusado e se houver qualquer descumprimento das
restrições a ele impostas, ou se sobrevir um processo em seu desfavor, ele perde
esse benefício.
Para a vítima haverá uma maior proteção quando o sursis processual for
aplicado, resguardando seus direitos protetivos. Pois, o acusado terá direitos
restringidos como, a proibição de frequentar determinados lugares, não deverá
manter contato com a ofendida e com os familiares dela por nenhum meio de
comunicação, entre outras. Salienta-se que essas restrições poderão ser
determinadas de dois a quatro anos.
Neste caso, o ministério público oferecerá as restrições pertinentes
podendo o juiz aceita-la ou aplicar medidas diversas. Destaca-se ainda que o
sursis processual só poderá ser aplicado se houver aceitação por parte do
acusado. Nesse viés, faz-se necessário a análise do referido instituto, descrito
no art. 89 da lei 9.099/95, o qual beneficiará o réu com a suspensão da
punibilidade e não gerará antecedentes criminais, podendo ser aplicado aos
crimes cuja a pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano, preenchidos
os requisitos subjetivos por parte do beneficiado, esses delitos podem estar
contidos na lei doa Juizados ou não, assim, disciplina o referido dispositivo legal:

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou
inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público,
ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por
dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado
ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais
requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77
do Código Penal). (BRASIL, 1995)

Ressalta-se que somente poderá haver a suspensão condicional do


processo, se o acusado não tiver sido condenado em outro processo ou se há
outro processo criminal em andamento contra ele, o indiciado será submetido a
restrições de direitos e a suspensão só será efetivada após o cumprimento dela,
nos termos do artigo 89, § 1º e seus incisos, § 2º, os quais descrevem o seguinte:

§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do


Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo,
611

submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes


condições:
I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;
II - proibição de frequentar determinados lugares;
III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização
do Juiz;
IV - Comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para
informar e justificar suas atividades.
§ 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada
a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do
acusado. (BRASIL,1995)

Não obstante, que o art. 41 da lei 11.340/2006 é extremamente literal ao


informar que a lei 9.099/95 não pode ser aplicada nos crimes de violência
doméstica. Porém, ao analisar de forma expressiva e dentro da questão
relacionada ao direito processual, nota-se que se levar por esta linha há um
equívoco na interpretação, pois, a suspensão condicional do processo é mais
benéfica para a vítima e mais vigilante em desfavor do agressor.
Nesse sentido, percebe-se que a suspensão tem restrições de dois a
quatro anos, e sobre vindo uma condenação de um crime de menor potencial
ofensivo com pena de dois a seis meses, a restrição de direitos será muito
sucinta, bem desproporcional ao próprio instituto da suspensão condicional do
processo.
Há casos em que o réu quando condenado a pena ínfima e em muitos
destas condenações não há inclusive restrições de direitos protetivas em favor
da vítima impostas ao infrator. Nessa linha de entendimento importante suscitar
o entendimento jurisprudencial relacionado aos recursos do processo: 0029966-
42.2014.8.16.0019, julgado na data de 14/03/2019, e os do processo: 0002647-
62.2015.8.16.0117, julgado na data de 11/04/2019, pela 1ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Paraná:

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL (ART. 129, § 9.º, CP).


CONDENAÇÃO À PENA DE TRÊS (3) MESES E QUATRO (4) DIAS
DE DETENÇÃO, EM REGIME ABERTO. RECURSO DA DEFESA. 1)
INAPLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA.
DESACOLHIMENTO.CRIME DE LESÃO CORPORAL COMETIDO
CONTRA A CONVIVENTE EM ÂMBITO FAMILIAR. (...). (TJPR, 2019,
online)

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL (ART. 129, § 9.º, CP


– POR DUAS VEZES). CONDENAÇÃO À PENA DE TRÊS (3) MESES
E QUINZE (15) DIAS DE DETENÇÃO, EM REGIME ABERTO.
RECURSO DA DEFESA. 1) INAPLICABILIDADE DA LEI MARIA DA
PENHA. DESACOLHIMENTO.CRIMES DE LESÃO CORPORAL
COMETIDOS CONTRA A COMPANHEIRA E A ENTEADA EM
ÂMBITO FAMILIAR. (...). (TJPR, 2019, online)

Diferentemente da aplicação da suspensão condicional do processo, o


Superior Tribunal de Justiça, em meados do mês de junho de 2015, publicou a
súmula 536, a qual em seu texto afasta a aplicação do instituto da suspensão
condicional do processo nos crimes de violência doméstica, inclusive
descriminando a aplicabilidade do artigo 89, mesmo este tendo sua aplicação
fora dos Juizados Especiais Criminais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
612

Diante da pesquisa suscitada, conclui-se que dentre os posicionamentos


supracitados, pormenorizados entre decisões judiciais, existe grande discussão
com relação a aplicação do instituto da suspensão condicional do processo nos
casos de violência doméstica, em face da disposição literal do artigo 41 da lei
11.340/2006.
Salienta-se, que tal entendimento formulado pelo STJ, rechaçando a
aplicação do instituto, diante da interpretação literal do artigo 41 da lei
11.340/2006, concernente a proibição da aplicação dos institutos
despenalizadores, com essa interpretação, abarca também a suspensão
condicional do processo, a qual em muitos casos a condenação do infrator é
muito inferior a uma proteção disciplinada pelo sursis processual, como exposto
nas elucidações acima descrita.
Por fim, nas condições propostas ao autor do fato por esse instituto,
aderiu-se ao entendimento de que a sua aplicação poderá assegurar uma
proteção maior à vítima de violência doméstica e uma restrição mais agravada
ao infrator. Pois, o Estado ficará um período maior de vigilância sobre a conduta
desprendida pelo agressor.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Thiago Souto de. A possibilidade da suspensão condicional do


processo aos delitos de violência doméstica. Disponível em:
https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/13129/THIAGO_SOUTO_DE_
ARRUDA.pdf. Acesso em 30 de setembro de 2019.

BRASIL, Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados


Especiais Civis e Criminais e dá outras providências. Disponível em:
http://planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm. Acesso em 06 de outubro de
2019.

, Lei n° 11.340 de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a


violência doméstica e familiar contra ás mulheres e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/L11340.htm. Acesso em 06 de outubro de 2019.

BRASIL. Tribunal de justiça do Paraná. Apelação Criminal. Acordão do


Processo: 0002647-62.2015.8.16.0117. Relator: Desembargador Miguel Kfouri
Neto. Órgão Julgador: 1ª Câmara Criminal. Dj: 11/04/2019. Dísponível em:
https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/4100000008844891/Ac%C3%B3rd%C3
%A3o-0002647-62.2015.8.16.0117. Acesso em 15 de outubro de 2019.

. Tribunal de justiça do Paraná. Apelação Criminal. Acordão do


Processo: 0029966-42.2014.8.16.0019. Relator: Desembargador Miguel Kfouri
Neto. Órgão Julgador: 1ª Câmara Criminal. Dj 14/03/2019. Dísponível em:
https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/4100000008375251/Ac%C3%B3rd%C3
%A3o-0029966-42.2014.8.16.0019. Acesso em 14 de outubro de 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Jurisprudência molda os limites para


concessão do sursis processual. Disponível em:
613

http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Jurisprudencia
-molda-os-limites-para-concessao-do-sursis
processual.aspx?fbclid=IwAR2uu5PjrIZEWXc02br1B065cydm2loCfV6IJkafIyb6i
SX1Cw0Y44FiHaw. Acesso em 05 de outubro de 2019 de 2019.

. Supremo Tribunal Federal. STF declara constitucionalidade do artigo


41 da Lei Maria da Penha. 2011. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=175260.
Acesso em 05 de outubro de 2019.

SANTOS BITENCOURT, Antonio Carlos dos. O Sursis Processual na lei de


Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Revista da EMERJ, v. 12,
n°48, p. 75 a 86, ano 2009.
614

A IRREGULARIDADE NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA EM FACE DA


DECRETAÇÃO DE PRISÃO DE OFÍCIO POR PARTE DO MAGISTRADO
THE IRREGULARITY IN THE CUSTODY HEARING BEFORE THE REMAND
BY THE MAGISTRATE

Luís Carlos Gracini Júnior


Orientador(a): Fausy Vieira Salomão

Resumo: A audiência de custódia foi introduzida pela Resolução n. 213 do CNJ,


matéria assumida pelo Brasil em tratados internacionais de Direitos Humanos.
Consiste na releitura do artigo 310 do CPP, comparecimento em juízo do preso.
Analisando a homologação do flagrante. Prosseguindo na necessidade da prisão
preventiva ou medidas cautelares diversas (art.319 CPP). Diante de prisões
ilegais, desnecessárias e desrespeito às garantias Constitucionais, é
instrumento de contenção do poder punitivo, potencializar a função do processo
penal – e jurisdição – para proteção dos direitos humanos. Comumente, o
procedimento da custódia tem um viés pelo judiciário de mera formalidade,
imputando prisões de ofício e falta de fundamentação de decisões. Este estudo
busca observar a ilegalidade da prisão de ofício pelo magistrado após a
realização da custódia. Na metodologia dedutiva, analisando o escopo do
procedimento de Custódia, fundamentando um processo penal garantista, por
uma pesquisa doutrinária, bem como complemento da Legislação penal pátria.
Palavras-chave: Audiência de Custódia. Prisão Ilegal. Prisão de Ofício.

Abstract: The custody hearing had its practice begun in Brazil through
Resolution n. 213 of the National Justice Council – CNJ, topic addressed by our
country in international Human Rights treaties. It consists of the re-reading of the
article 310 of the CPP, about the appearing in court of the prisoner. Analyzing the
approval of the flagrant. Continuing the need of pre-trial detention or various
precautionary measures (art.319 CPP). Faced with illegal and unnecessary
arrests and disrespect for Constitutional guarantees, it is an instrument to contain
punitive power, enhancing the function of criminal proceedings - and jurisdiction
- for the protection of human rights. Usually, the custody procedure has a bias by
the judiciary of mere formality, imputing pretrial arrests and lack of reasoning
decisions. This article tries to study deeply the illegality of the magistrate's pretrial
arrests after the completion of the custody. In the deductive methodology,
analyzing the scope of the Custody procedure, substantiating a guarantor
criminal process, by a doctrinal research, as well as complement of the homeland
criminal legislation.
Keywords: Custody Hearing. Illegal arrest. Remand.

INTRODUÇÃO

A audiência de custódia foi introduzida na estrutura judiciária brasileira


pela Resolução n. 213 do CNJ, qual traçou um plano de implementação para
inserção prática dos compromissos assumidos por nosso país frente aos
tratados internacionais de Direitos Humanos.
Diante disso no corpo da Nossa Constituição Federal em seu artigo 5º
inciso LXI “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente salvo nos casos de
615

transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Em uma


releitura de cunho especial processual penal foi remetido ao artigo 283 do CPP
ampliando-se “...ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de
prisão temporária ou prisão preventiva”
Pretende-se a análise da audiência de custódia, sob a ótica da fase pré-
processual e a prisão preventiva decretada sem o requerimento do Membro do
Ministério Público e do Delegado de Polícia. Para tanto, tal decreto de ofício,
demonstra uma ilegalidade e constrangimento ilegal à parte reclusa.
A audiência de custódia é um instituto que prioriza a humanização e a
dinamização do processo penal contemporâneo e, além disso instrumento de
proteção dos direitos humanos.

DESENVOLVIMENTO

Introduzida na estrutura processual penal brasileira pela Resolução n. 213


do CNJ a audiência de custódia, assume um papel relevante ao procedimento
de custódia e acautelamento. Em linhas gerais, nos momentos da prisão.
A novel resolução vem alinhada com a postura do Brasil em relação aos
tratados internacionais, adequando-se aos dispostos da Convenção Americana
de Direitos Humanos, que instrui em seu artigo 7.5 toda pessoa detida deva ser
encaminhada a autoridade judicial, ser julgada em prazo razoável, e ser posta
em liberdade, sem prejuízo da continuidade do processo. (LOPES JR, 2019,
p.622).
Adiante, como preceito do artigo 8º da mencionada resolução do
Conselho Nacional de Justiça, a estrutura da audiência de custódia, deve ser
semelhante à de uma audiência preliminar, apenas de caráter informativo, sem
interrogatório do acautelado. Assim, nesta fase preliminar, não são passíveis de
questionamento da materialidade do fato ou instrução probatória. De forma que
versa exclusivamente para a análise das condições do que ocorreu a prisão,
excesso policial e ilegalidades no flagrante, na manutenção da prisão preventiva
e da possibilidade de conversão em medidas diversas da prisão.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, até junho de 2017 foram
realizadas 258.485 audiências de custódia no Brasil, das quais 115.497
(44,68%) resultaram em concessão de liberdade e 142.988 (55,32%) em prisão
preventiva. Em 12.665 (4,90%) audiências de custódia houve a alegação de
violência no ato da prisão1. (CNJ, 2017).
O conceito de prisão nasce da realidade, no direito penal, do Estado
cassar/ceifar por completo a liberdade de locomoção e física dos seus
jurisdicionados. As duas formas de prisão que ensejam a audiência de custódia
são a prisão cautelar (prisão preventiva) e a prisão pré-processual (prisão
temporária ou em flagrante).
A prisão em flagrante delito é aquela que ocorre quando o crime está
sendo cometido ou acaba de ser cometido. O termo flagrante vem do latim
flagrans (que é ardente/queimante) o que denota que a cena penal ou a ação do
autor ainda é marcante, quente. (LIMA, 2016, p.895).
Noutro norte, temos a prisão preventiva, cujos requisitos são objetivos e
constam no artigo 312 do Código de Processo Penal:

1 Dados retirados da plataforma digital interativa do site do Conselho Nacional de Justiça, qual
de forma explicativa mapeia as audiências e os dados relativos ao procedimento da custódia em
todo território brasileiro.
616

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da


ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução
criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver
prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Ou seja, conceitualmente é a decisão da autoridade judicial, de natureza


cautelar processual, podendo ocorrer em qualquer fase processual desde que
presentes seus requisitos legais. Fundamentalmente nas fases preliminares
processuais deva ser requerida pelas autoridades policiais ou pelo Ministério
Público.
Mais adiante, temos a prisão temporária, que também deve ensejar a
realização de audiência de custódia. A prisão temporária é normatizada pela Lei
7.960/89, qual disciplina a possibilidade de prisão temporária do acusado
necessária para a investigação processual bem como adequação à finalidade de
apontada para a produção probatória pela autoridade policial. Em linhas gerais,
o acusado é preso por tempo determinado, sendo que sua prorrogação deva ser
devidamente fundamentada, para garantir a efetivação dos meios de prova.
Nessas três modalidades, o procedimento da audiência de custódia deve
ser observado nos parâmetros estabelecidos pelo código de processo penal em
seu artigo 310 atrelado às orientações do CNJ.
Na leitura do Professor Aury Lopes Júnior (2019), comparando o
procedimento antes e após a introdução do instituto:

Na sistemática pré-convenção americana de Direitos Humanos, o


preso em flagrante era conduzido à autoridade policial onde,
formalizado o auto de prisão em flagrante, era encaminhado ao juiz,
que decidia, nos termos do artigo 310 do CPP, se homologava ou
relaxava a prisão em flagrante (em caso de ilegalidade) e, à
continuação, decidia sobre o pedido de prisão preventiva ou medida
cautelar diversa (art. 319). Essa é a disciplina do CPP como Acabamos
de ver.
A inovação agora é inserir, nesta fase, uma audiência, onde o preso
seja – após a formalização do auto de prisão em flagrante feito pela
autoridade policial – ouvido por um juiz, que decidirá nesta audiência
se o flagrante será homologado ou não e, ato contínuo, se a prisão
preventiva é necessária ou se é caso de aplicação das medidas
cautelares diversas (art. 319). (p.621/622).

Para tanto, o referido diploma legal tem como previsão o encaminhamento


do preso à autoridade policial, o mais breve possível, para a apuração de
possíveis ilegalidade na prisão, como excessos policiais, apuração de possível
tortura ou ilegalidade procedimental. E em seguida a análise da necessidade da
prisão, devidamente fundamentada e requerida, bem como análise para outras
medidas diversas da prisão.
O procedimento de realização da audiência de custódia tem como o
fundamento, a humanização e dinamização do processo penal. Perfazendo o
uso dos princípios da proporcionalidade e trazendo ao juízo processante uma
imagem imparcial do acautelado. É o ponto de contato pessoal entre o
acautelado e o juízo.
Entretanto, na maioria dos casos, há um desvio de finalidade em tal
procedimento. Muitos juizes entendem e cumprem as audiências preliminares de
custódia como mera formalidade processual, ou, até mesmo, sob a alusão de
617

obrigatoriedade de apenas seguir a orientação e obrigatoriedade imposta pelo


Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No que, em tese, tange na ilegalidade do procedimento e no desvio de
finalidade.
Debruçar-se-á sistemática no campo da audiência de custódia realizada
após a prisão em flagrante, o que enseja a possibilidade da ocorrência da
ilegalidade da prisão de ofício por parte do magistrado.
O termo “de ofício”, ex oficio, relaciona que o magistrado agiu por sua
escolha, por atuação direta e parcial. Ou seja, significa que não foi provocado
para atuar, no caso em tela, prender ou manter preso.
Em linhas gerais, LOPES JR e ROSA complementam:

Mas o ponto mais importante é: não pode haver conversão de ofício da


prisão em flagrante em preventiva (ou mesmo em prisão temporária).
É imprescindível que exista a representação da autoridade policial ou
o requerimento do Ministério Público. A “conversão” do flagrante em
preventiva equivale à decretação da prisão preventiva. Portanto, à luz
das regras constitucionais do sistema acusatório (ne procedat iudex ex
officio) e da imposição de imparcialidade do juiz (juiz ator = parcial),
não lhe incumbe “prender de ofício”. (2019).

Como o ilustre doutrinador leciona, é o momento crucial da audiência.


Quando não há o requerimento da parte titular da ação penal, Ministério Público,
nem da autoridade policial para a manutenção da prisão, e ocorre o decreto
prisional de ofício.
Com efeito, o flagrante possui as funções de interromper a prática delitiva
e servir de instrumento probatório para complemento da colheita de elementos
indiciários. Adimplidas suas funções, a necessidade de manutenção da prisão
deve ser devidamente necessária, fundamentada ou requerida. (TÁVORA, 2012,
p. 429).
A legislação processual penal, tem como a análise os fundamentos do
artigo 311. Veja-se:
Art. 311 - Em qualquer fase da investigação policial ou do processo
penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no
curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do
querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade
policial. (Grifo).

Por interpretação única do referido artigo, a autoridade judiciária pode


decretar a prisão a qualquer tempo na ação penal e a requerimento dos polos
ativos da ação penal, em fase pré-processual. Nos casos de prisão em flagrante
ou prisão temporária. Restando a ilegalidade do decreto quando inexistir
requerimento.
Assim, compreende-se que a titularidade da fase inquisitiva processual,
antes do recebimento da denúncia, é de titularidade do Ministério Público e da
autoridade policial (delegado). Sendo estes os agentes provocadores da
autoridade judiciária para os atos e diligências necessárias.
Por força do artigo 251 do Código de Processo Penal, o impulso judicial e
força jurisdicional só pode ser exercida unilateralmente pelo juiz, quando é
instaurado o processo criminal.
Noutro norte, além de situação de prisão de ofício que compõe uma
ilegalidade do decreto prisional, tem-se relativizado as decisões judiciais,
618

impondo aos acusados/flagranteados/acautelados o constrangimento ilegal por


um decreto sem a devida fundamentação.
A análise judicial nesta audiência pautada apenas com relação a atuação
dos entes policiais no momento da captura, já gera constrangimento e
irregularidade no procedimento. Toda decisão deve ser devidamente
fundamentada, baseada no princípio da proporcionalidade, mais especialmente
no princípio da homogeneidade das medidas cautelares. Além da prisão de
ofício, o decreto prisional que carece de fundamentação completa, alinhado com
a falta de análise e fundamentação de medidas diversas da prisão (art. 319),
compõem outras irregularidades mais comuns ao procedimento.
Fato é que, ao juízo de piso, mostra-se ser muito mais simples encarcerar
do que pensar em medidas amenas, muito mais simples abarrotar presídios, por
prisões cautelares pena, do que pensar no dano que causado a nossa sociedade
ao superlotar presídios.

CONCLUSÃO

A introdução no processo penal de uma medida assecuratória das


garantias fundamentais da pessoa humana, traz uma dinâmica processual penal
mais coerente ao jurisdicionado criminal.
A privação da liberdade de locomoção deve ser sempre observada pela
égide Constitucional, sendo sempre medida extrema em todas as hipóteses.
Nesse campo, diante da prisão, cabe ao juiz a entrevista com o acautelado
e conduzir a audiência de custódia, dirimindo todas as dúvidas quanto a sua
prisão, reforçando suas garantias, adequação à outras medidas e, alguns casos,
a necessidade de manutenção da privação de liberdade. Baseando-se na sua
imparcialidade
Concluindo-se que o disposto no artigo 310 do CPP, bem como na
literalidade do artigo 311 daquela lei, vedam a manutenção da prisão em fase
pré-processual unilateralmente pelo juiz competente. Em linhas gerais, não se
pode prender de ofício sem o requerimento do Ministério Público e da autoridade
Policial quando não foi instaurada a ação penal.
Conter ou limitar o poder punitivo não significa compactuar com a
impunidade, e sim pugnar pelo respeito às regras processuais, constitucionais e
convencionais que disciplinam a atividade do sistema de justiça criminal.
Portanto, enquanto não houver releitura, revogação ou
inconstitucionalidade dos referidos artigos do Códex processual penal, prisões
de ofício serão vedadas, manifestadamente ilegais. Fato que imputa uma linha
tênue entre a parcialidade e imparcialidade do julgador.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em
14 de outubro de 2019;

BRASIL. Decreto Lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941. Institui o Código de


Processo Penal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del3689compilado.htm>. Acesso em 14 de outubro de 2019;
619

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Dados estatísticos/mapa de


implantação da audiência de custódia. Disponível em : <
http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-
custodia/mapa-da-implantacao-da-audiencia-de-custodia-no-brasil >. Aceso em
15 de outubro de 2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Dispõe sobre a apresentação de toda


pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas. Resolução n. 213,
de 15 de dezembro de 2015. Disponível em
<http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n213-15-12-2015-
presidncia.pdf>. Acesso em 15 de outubro de 2019.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed.
– Salvador: Ed. JusPodivm, 2016;
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. – São Paulo: Saraiva
Educação, 2019;

LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Limite Penal: juiz não pode
converter flagrante em preventiva de ofício na audiência de custódia.
Consultor Jurídico. 11 out. 2019. Disponível em
<https://www.conjur.com.br/2019-out-11/limite-penal-juiz-nao-converter-
flagrante-preventiva-oficio-custodia>. Acesso em 13 de outubro de 2019.

PAIVA, Caio. Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro. 3. ed.


Belo Horizonte: Editora CEI, 2018.

TÁVORA, Nestor. Código de Processo Penal: para concursos. 3. ed. –


Salvador: Ed. JusPodivm, 2012;
620

A POSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVL DO MENOR EMANCIPADO


THE POSSIBILITY OF CIVIL PRISON FOR AN EMANCIPATED MINOR

Bianca da Silva Nunes


Orientador(a): Elaine Glaci Fumagalli Errador Casagrande

Resumo: O presente trabalho aborda a prisão civil, que possui a finalidade de


coibir o devedor ao pagamento de seu débito, sendo admitida atualmente,
somente nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentar. Relata ainda a existência da emancipação, que torna o menor apto
para a realização de todos os atos da vida civil, podendo o mesmo ser réu em
uma ação de alimentos. Define o conceito do menor, demonstrando quais são
os direitos e princípios considerados fundamentais que rodeiam tanto o
adolescente, quanto o direito aos alimentos, considerando como hipótese e
procurando solucionar o tema, em que um menor emancipado é devedor de
alimentos e, portanto, sujeito a prisão. Acolhe o entendimento de que tal prisão
deveria ser admitida, porém de forma diversa, e excepcional, sendo esta a
prisão domiciliar, que possui o objetivo de resguardar o adolescente de
qualquer medida mais gravosa, ou ainda, inadmissível.
Palavras-chave: Prisão civil. Menor. Emancipação.

Abstract: The present work deals with civil prison, has the purpose, curb the
debtors to payment from your debt, currently accepted, just in cases voluntary
and inexcusable of feed duty. Still describe the existence of emancipation, which
makes a minor able to realize every rights from a civil life, which may be the same
as in a maintenance action, constituting a debtor. The concept of minor, describe
which rights and values are considered essential that surroundings teenagers
and legal rights to food, considering as hypothesis and trying to solve the theme,
that an emancipated minor is a food debtor, which makes him able to be arrested.
Accept the understanding that such prison should be assumed, but in diverse
way and exceptional, being that a house arrest, which the goal is protect the
teenager from any severe measure or inadmissible.
Keywords: Civil Prison. Minor. Emancipation.

INTRODUÇÃO

No Brasil a única hipótese da prisão civil permitida, é aquela em face do


devedor de alimentos, que de forma injustificável não realiza o pagamento do
mesmo e, portanto, poderá ser submetido ao cumprimento da prisão em
estabelecimento prisional, no regime fechado, separado dos demais presos. Pois
neste caso em específico não há cometimento de crime, e sim, de
inadimplemento, considerado pela nossa legislação como hipótese menos
gravosa.
Acontece que, o nosso ordenamento também prevê um instituto
denominado emancipação, o qual o menor após completar dezesseis anos
poderá utiliza-lo de diversas maneiras, desde que atenda aos requisitos
estipulados em cada caso específico, sendo assim, o mesmo não será mais
assistido e poderá realizar todos os atos da vida civil, como se maior fosse, o
que inclui ser réu em ação de alimentos, figurando no polo passivo da demanda,
sendo denominado devedor, ou ainda, alimentante. Porém, por ainda ser menor
621

de idade e, portanto, não ter alcançado a maioridade penal, que não deve ser
confundida com a emancipação, não poderá ser recolhido em estabelecimento
prisional, nem em entidade exclusiva para adolescentes, pois não cometeu ato
infracional, ou outras condutas elencadas no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Sendo assim, configura-se um embate, que ainda não possuí previsão
legal para a sua resolução, restando o judiciário em face de dois princípios
fundamentais, o da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, e o direito
aos alimentos, que é imprescindível para manutenção da vida e a configuração
de sua dignidade. Devendo o judiciário no caso em concreto escolher qual
prevalecerá sobre o outro, e qual medida poderia ser aplicada.
Portanto, o presente trabalho busca demonstrar e detalhar, através de
uma compilação de doutrinas e legislação atual, bem como as decisões dos
Tribunais acerca do tema, todos os institutos que envolvam a hipótese
mencionada, sendo estes: a prisão civil, o menor e a configuração de sua
emancipação, os alimentos e as suas nuances, bem como, o inadimplemento da
figura do menor emancipado, e como será possível a resolução do conflito,
diante dos princípios que se colidem. O trabalho busca não só demonstrar a
lacuna existente no nosso Ordenamento Jurídico, mas também uma resposta a
tais questionamentos.

1. PRISÃO CIVIL

Definida por Santos; Sá (2009) como o recolhimento à prisão de um


cidadão, sendo oriunda de uma dívida, não se confunde com a prisão penal, pois
não envolve crime. É somente mais um meio coercitivo do Estado, para que o
devedor enfim quite o seu débito.
Seu regime de cumprimento, todavia, se dá em estabelecimento prisional,
em regime fechado devendo o sujeito permanecer separado dos presos comuns,
pois como fora citado anteriormente em nada se relaciona a sua conduta com o
crime, muito menos decorre de qualquer condenação penal, trata-se apenas de
um instituto relacionado de forma íntima com o Direito Civil, porém como não há
atualmente no Brasil um estabelecimento próprio para o inadimplente, sua prisão
é realizada desta forma: “[...] Não visa à aplicação de uma pena, mas tão
somente a sujeição do devedor a um meio extremamente violento de coerção,
diante do qual, é de presumir, cedam às resistências do inadimplente.”
(BASTOS, 1989 apud MESSA, 2017, p. 720).
Hoje no Brasil por conta da ratificação do Pacto de San José da Costa
Rica, a prisão civil só é admitida nos casos de inadimplemento de obrigação
alimentar, ainda que na Constituição Federal de 1988 exista a hipótese do
depositário infiel. Já que o tema foi submetido à apreciação do Supremo Tribunal
Federal, que concluiu através do julgamento do HC 87.585/TO:

Que o Pacto de San José da Costa Rica, subscrito pelo Brasil, torna
inaplicável a legislação com ele conflitante, não havendo mais base
legal para a prisão civil do depositário infiel, sendo admitida apenas na
hipótese de dívida alimentar. No mesmo sentido, foram editadas a
Súmula 419 do STJ: “Descabe a prisão civil do depositário infiel” e a
Súmula Vinculante 25 do STF: “É ilícita a prisão civil de depositário
infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. (CAPEZ, 2018-A,
p. 313).
622

Decidindo então o Tribunal, estabelecendo um desfecho ao tema que


atualmente no Brasil, prevalece apenas a hipótese da prisão civil em face do
devedor de alimentos.

2. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS

Tratando-se do devedor de alimentos, nossa Constituição em seu art. 5°


inciso LXVII deixa bem claro que, o inadimplemento do responsável, deve ser de
forma voluntária e inescusável, no momento em que o mesmo é constatado, o
juiz seguindo o procedimento estipulado no art. 528 do Novo Código de Processo
Civil, mandará intimar o executado pessoalmente, para que em três dias pague
o débito, necessitando realizar a prova do pagamento, caso não o efetue, deverá
então se justificar dos motivos existentes que o fizeram permanecer
inadimplente. O §2° deste mesmo artigo completa o entendimento detalhando
que: “Somente a comprovação de fato que gere a impossibilidade absoluta de
pagar justificará o inadimplemento.”
Caso o executado não realize o pagamento dentro do prazo estipulado, a
prova de forma correta, ou ainda, não preencha o requisito que justifique a
permanência da sua situação de devedor, o juiz mandará protestar o
pronunciamento judicial, assim discorre o §2° do art. 528 Novo Código de
Processo Civil. O juiz realizará essa conduta amparado pelo art. 517 que
determina: “A decisão judicial transitada em julgado poderá ser levada a protesto,
nos termos da lei, depois de transcorrido o prazo para pagamento voluntário[...]”.
Além do protesto o §3°, prevê a hipótese de decretação da prisão do devedor,
que como citado anteriormente, não realiza o pagamento e nem se justifica de
maneira que tenha sido aceita pelo poder judiciário:
O Superior Tribunal de Justiça, através de sua súmula n°309, pacificou
que: “O débito alimentar que autoriza prisão civil do alimentante é o que
compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que
vencerem no curso do processo.”

3. MENOR DE IDADE

A Legislação através do Estatuto da Criança e do Adolescente considera


menor de idade, tanto as crianças quanto os adolescentes, tendo em vista que
para o nosso ordenamento jurídico, a maioridade somente será atingida,
visualizando o critério cronológico, isto é, após o indivíduo completar dezoito
anos. Tanto a maioridade penal, quanto a maioridade civil serão disciplinadas
desta maneira, salvo em casos excepcionais, dos quais serão objeto de estudo
posteriormente. Logo, disciplina o Código Civil em seu art. 5°: “A menoridade
cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à pratica de
todos os atos da vida civil.” E o Código Penal no art. 27: “Os menores de 18
(dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas
estabelecidas em legislação especial.”

4. EMANCIPAÇÃO

A emancipação é um instituto que abrange apenas o direito civil, e por sua


vez não possui alcance nas demais áreas do direito, sendo assim, qualquer
menor de idade que possuir dezesseis anos completos, pode utilizar-se desta
623

forma, para que ainda que na sua idade não tenha atingido a maioridade de fato,
que se configura a partir dos dezoito anos de idade completos, adquira então a
plena capacidade, não necessitando mais de assistência para a realização de
todos os atos da vida civil. Logo, sua conceituação pode se dar da seguinte
maneira:
A emancipação pode ser conceituada como o ato jurídico que antecipa
os efeitos da aquisição da maioridade e da consequente capacidade
civil plena, para data anterior àquela em que o menor atinge a idade de
18 anos, para fins civis. Com a emancipação, o menor deixa de ser
incapaz e passa a ser capaz. Todavia, ele não deixa de ser menor.
(TARTUCE, 2018, p. 79).

Após a conceituação do instituto da emancipação, é de extrema


importância diferencia-la da menoridade penal, tendo em vista que ambas não
se confundem, tão pouco se assemelham. A emancipação como exposto
anteriormente possuí efeitos somente na esfera cível, e pode ser utilizada
apenas para menores relativamente capazes, isto é, aqueles que possuem
dezesseis anos completos. Já a maioridade penal, somente é alcançada após o
indivíduo completar dezoitos anos, não existindo em matéria penal, qualquer
modalidade que a antecipe. Como demonstra o Enunciado n° 530, aprovado na
VI Jornada de Direito Civil, evento realizado em 2013:

“A emancipação, por si só, não elide a incidência do Estatuto da


Criança e do Adolescente”. Sendo assim, a título de exemplo, um
menor emancipado não pode tirar carteira de motorista, entrar em
locais proibidos para crianças e adolescentes ou ingerir bebidas
alcoólicas. Tais restrições existem diante de consequências que
surgem no campo penal, e a emancipação somente envolve fins civis
ou privados. (TARTUCE, 2018, p. 79).

Desta forma, ainda que o sujeito seja emancipado e esteja apto para a
realização de todos os atos abrangidos pelo direito civil, independentemente e
de maneira distinta, só poderá então se sujeitar ao Código Penal Brasileiro, após
completar dezoitos anos, atingindo assim a sua maioridade, para fins penais.
Ficando sujeito até então ao Estatuto da Criança e do Adolescente, e se por
ventura vier a praticar qualquer fato definido como crime, o qual lhe será
considerado como ato infracional, cumprirá as penalidades previstas no Estatuto,
a depender do delito praticado.

5. SOLUÇÃO DO CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS

A Proteção Integral da Criança e do Adolescente e o direito fundamental


aos alimentos, são considerados princípios de relevante importância, tendo em
vista que ambos possuem previsão constitucional. “[...] tem-se a Proteção
Integral da Criança e do Adolescente e o direito fundamental aos alimentos
(essencial à vida) como princípios (normas- princípios), pois irradiam por todo o
sistema.” (PINTO, 2013, p. 1362).
Na hipótese do presente trabalho, se deparamos então com um conflito,
entre os princípios expostos anteriormente, dessa maneira: “[...] quando há
choque entre princípios, a solução direciona-se num balanceamento de valores,
um sopesamento entre aqueles conflitantes.” (PINTO, 2013, p. 1362).
624

Desta forma, inevitavelmente uma parte restará prejudicada em


detrimento da outra: “Porém, custos são inevitáveis quando princípios colidem.
A ponderação torna-se então necessária.” (ALEXY, 2018, p. 04).
Seguindo o entendimento da obra de Larenz (1997) o judiciário então,
deve-se utilizar do chamado princípio da ponderação para a resolução do caso
em concreto, pois há a necessidade da aplicabilidade da lei, e o judiciário não
poderá, se manter inerte, após ter sido acionado, com a desculpa de que há um
conflito entre princípios que são considerados fundamentais:

Em caso de conflito, se se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um


outro direito (ou um dos bens jurídicos em causa) tem que ceder até
um certo ponto perante o outro ou cada um entre si. A jurisprudência
dos tribunais consegue isto mediante uma ponderação dos direitos ou
bens jurídicos que estão em jogo conforme o peso que ela confere ao
bem respectivo na respectiva situação. Mas ponderar e sopesar é
apenas uma imagem; não se trata de grandezas quantitativamente
mensuráveis, mas do resultado de valorações que – nisso reside a
maior dificuldade – não só devem ser orientadas a uma pauta geral,
mas também a situação concreta em cada caso. (LARENZ, 1997, p.
575).

A justificativa para a aplicação do método segundo o autor Larenz (1997)


é que não há uma tabela com a ordem hierárquica de todos os bens jurídicos,
para a aplicação no instante em que os mesmos se conflitam, principalmente se
são qualificados do mesmo modo. “[...] mais precisamente, esses princípios
podem justamente por esse motivo entrar facilmente em colisão entre si, porque
sua amplitude não está de antemão fixada.“ (LARENZ, 1997, p. 575).

6. Regime Prisional do Menor Emancipado Devedor de Alimentos

Segundo o entendimento da obra de Pinto (2013), o autor demonstra que


a inadmissibilidade da prisão civil ao menor emancipado, não deve ocorrer, no
entanto, o seu regime de cumprimento, obedecendo ao Estatuto da Criança e do
Adolescente e consequentemente considerando o Princípio da Proteção Integral
da Criança e do Adolescente, terá que ser de forma diferenciada.
Partindo do pressuposto de que haverá a prisão civil do menor
emancipado devedor de alimentos, analisaremos então segundo a doutrina
juntamente com a legislação, qual é a forma diferenciada que a mesma poderá
ser aplicada, tendo em vista que nos dias atuais possuímos apenas duas
alternativas para o seu cumprimento, a internação do menor em entidade
socioeducativa, ou sua prisão em estabelecimento prisional. No entanto o
Estatuto da Criança e do Adolescente só permite a internação em entidade
exclusiva para adolescentes nos seguintes casos, os quais estão elencados no
art. 122:

A medida de internação só poderá ser aplicada quando: I – tratar-se de


ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II – por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III – por
descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente
imposta.

Como tratamos de um rol taxativo e nenhum deles prevê a possibilidade


do inadimplemento do devedor de alimentos, a internação se tornaria
625

descartável, a outra hipótese que nos resta é a prisão do menor em


estabelecimento prisional, o que também é vedado expressamente pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente. Pois como o adolescente ainda é um ser
considerado em desenvolvimento, não poderia assim ser submetido ao Código
Penal Brasileiro, nem a qualquer estabelecimento prisional comum, conforme
prevê o art. 227, §3° inciso V, da Constituição Federal e o art. 185 do Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Configurando-se esse embate, o autor Pinto (2013) resolverá o caso da
seguinte maneira, apresentando primeiramente a justificativa de que o correto
seria a existência de um estabelecimento adequado, porém analisando nossa
situação atual, ressalta que:

[...] considerando que, no Brasil, não há nem ao menos


estabelecimentos capazes de receber menores infratores, dando-lhes
as acomodações e o acompanhamento psicológico necessários (e que
seria prejudicial colocar o menor devedor de alimentos junto daqueles),
inocente seria imaginar que sejam construídas casas de albergado (ou
outros estabelecimentos) com as referidas condições, apenas para
receber emancipados devedores de alimentos. (PINTO, 2013, p.
1468).

A alternativa apresentada com base na lição realizada através do


jusfilósofo 1 alemão é de que: “Se houver uma razão suficiente para o dever de
um tratamento desigual, então, o tratamento desigual é obrigatório.” (ALEXY,
2008, p.410). O que resulta na aplicação de forma excepcional da prisão
domiciliar, demonstrada a seguir:

Portanto, em razão das condições peculiares dos emancipados, id est,


incompleto desenvolvimento físico e psicológico, além dos princípios
protetivos dos adolescentes de demais razões expostas, não deverá
ser aplicado o regime fechado à prisão civil do emancipado, restando
a prisão domiciliar como a mais apropriada para os menores
emancipados devedores de alimentos. (PINTO, 2013, p. 1485).

O autor Pinto (2013) em seu entendimento tem embasamento de decisões


do Superior Tribunal de Justiça que na época de sua escrita, e até os dias de
hoje, vem admitindo a prisão domiciliar do devedor de alimentos, em situações
de idosos, ou em indivíduos que possuam doenças graves, ou sejam portadores
de necessidades especiais, que necessitem de cuidados que não podem ser
prestados em estabelecimentos prisionais: “[...] ou ante a inexistência de casas
de albergado, além da interpretação que entende não taxativas as hipóteses de
cabimento da prisão domiciliar presentes no art. 117 da Lei de Execuções
Penais.” (PINTO, 2013, p. 1485). Justificando o autor o seu posicionamento
através das concessões de Habeas Corpus pelo Superior Tribunal de Justiça
(HC 86716/SP, HC 44754/SP e HC 188286/RS), para todos os casos elencados
acima.
Por fim o autor ressalta que ainda que o menor emancipado seja
submetido de forma excepcional a prisão domiciliar, é necessário que se respeite
o seu direito a educação, desta forma: “[...] o juiz deve autorizar o emancipado,
a frequentar escolas ou outros cursos (respeitando o seu direito à educação),

1 Humanista em que suas pesquisas são no âmbito filosófica e que seu objeto é o Direito.
626

além de outras medidas que entender cabíveis, sempre levando em


consideração o melhor interesse do menor.” (PINTO, 2013, p. 1505).

CONCLUSÃO

Diante do exposto, e seguindo a mesma linha de raciocínio e


entendimento do autor Pinto (2013), conclui-se que no caso em concreto em que
o alimentante, ou seja, o devedor responsável por prover alimentos, for
emancipado e inadimplente, poderá sim ser decretada a sua prisão, porém em
regime diferenciado, demonstrado a seguir.
Como estamos tratando no caso em concreto de um menor, apenas
emancipado, que pode figurar no polo passivo de uma ação de alimentos,
tornando-se devedor, o mesmo de maneira alguma poderá cumprir sua pena em
regime fechado, em estabelecimento prisional, por vedação expressa presente
tanto na Constituição Federal, quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Desta forma, se deparamos com um embate, pois aqui, possuímos dois
princípios considerados fundamentais, e com previsão Constitucional explícita,
que é o Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente e o Direito
aos Alimentos. Sendo assim, na tentativa de solucionar o conflito entre
princípios, utilizaremos o método da proporção já apresentado por Larenz
(1997), que demonstra que nas hipóteses de colisão, cabe ao judiciário avaliar,
no caso em concreto, qual direito deverá se sobrepor em relação ao outro.
Com base no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que vem
conferindo habeas corpus, autorizando a prisão domiciliar, para idosos, pessoas
que apresentem doenças graves, ou necessidades especiais, das quais o
tratamento em estabelecimento prisional se torne impossível. Acrescentando
ainda que também tem concedido o mesmo tratamento a pessoas nas hipóteses
de inexistência de estabelecimento adequado, entendendo que o rol autorizador
da prisão domiciliar, não é taxativo. Com força da súmula vinculante n°56 a qual
prevê que: “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a
manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se
observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.”
Levando em consideração que o menor não poderá ser internado em
entidade exclusiva para adolescentes, pois não cometeu nenhum ato infracional,
nem poderá ser colocado em um estabelecimento prisional, juntamente com
adultos, não existindo então na atualidade estabelecimento adequado para o
mesmo. Não aplicar nenhuma medida em face do mesmo, demonstraria o
descaso em relação a quem necessita receber alimentos, fundamentais à vida,
como já comentado.
Como a prisão civil tem apenas objetivo de coibir o sujeito a realizar o
pagamento, e não de penalizá-lo, sendo o processo julgado ainda por um juiz da
esfera cível, que poderá utilizar a analogia, como assim autoriza a Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 4°: “Quando a lei for
omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais do direito.” Não havendo previsão legal para a hipótese
estudada no presente trabalho, citando como exemplos nos dias de hoje, atletas
ou artistas, que se emancipam por possuírem condições de prover o seu
sustento. Acolhe-se então a figura da prisão domiciliar, sendo monitorada
eletronicamente, permitindo o juiz que o menor se mantenha em teu seio familiar
e frequente escolas, em respeito ao seu direito à educação.
627

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Princípios Formais e outros aspectos da Teoria Discursiva


do Direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da


Silva. 5.ed. alemã. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.

BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:


Saraiva, 1989, v. 2.

BRASIL. Código Penal. Vade Mecum, 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei federal n°8069, de 13 de


julho de 1990. Vade Mecum, 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

BRASIL. Código Civil. Vade Mecum 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

BRASIL. Decreto-lei n°4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às


Normas do Direito Brasileiro. Vade Mecum, 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

BRASIL. Novo Código de Processo Civil. Vade Mecum 19.ed. São Paulo:
Saraiva, 2018.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei federal n°8069, de 13 de


julho de 1990. Vade Mecum, 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n°309. O débito alimentar que


autoriza prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações
anteriores ao ajuizamento da execução e as que vencerem no curso do
processo. Vade Mecum, 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n°56. A falta de


estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em
regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os
parâmetros fixados no RE 641.320/RS. Vade Mecum, 19.ed. São Paulo:
Saraiva, 2018.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 25.ed. São Paulo: Saraiva,


2018-A
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego 3.ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

MESSA, Ana Flávia. Curso de Direito Processual Penal. 3.ed. São Paulo:
Saraiva, 2017.
628

PINTO, Otávio Almeida Matos de Oliveira. A prisão civil do menor


emancipado devedor de alimentos: dilema entre direitos fundamentais.
1.ed. Pará de Minas: Virtual Books, 2013.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 9.ed. São Paulo: Editora Método,
2018.

SÁ, Leo Mauro Ayub de Vargas e; SANTOS, Marcos Wasum dos. A Prisão
Civil no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII,
n.66, jul. 2009. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6375.
Acesso em: 12 mar. 2019.
629

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A FUNÇÃO SOCIAL DA LEI 11.340/2006


DOMESTIC VIOLENCE AND THE SOCIAL FUNCTION OF LAW 11.340/2006

Kawane Cristina Viola


Mayara Santos Vicente
Orientador(a): Bruno Torquete Barbosa

RESUMO: O presente trabalho pretendeu apresentar que a violência doméstica


praticada contra a mulher trava discussões na sociedade no sentido de, abordar
e elaborar reflexões sobre o assunto. A principal vertente abordada nas
discussões é que a violência contra a mulher é em razão do seu gênero, sendo,
portanto, indispensável a criação de Políticas Públicas para assegurar a
proteção dessas mulheres que sofrem abusos e violências, seja de forma física
ou moral, para que possam de certa forma, sentirem-se se amparadas e
protegidas pelo Estado.
Palavras-chaves: Violência Doméstica. Políticas Públicas. Estado.

Abstract: This paper aims to present that domestic violence against women
causes discussions in society in order to approach and elaborate reflections on
the subject. The main aspect discussed in the discussions is that violence
against women is due to their gender, and therefore the creation of Public
Policies is indispensable to ensure the protection of these women who suffer
abuse and violence, whether physical or moral, to that may in some way feel
protected and protected by the state.
Keywords: Violence Domestic. Public Policies. State.

INTRODUÇÃO

O ponto nodal deste trabalho é a junção de diversos tópicos que são


relacionados com a desigualdade nas relações gênero, sendo possível identificar
a importância do assunto quando se atenta ao fato de o homem e a mulher
possuem diferenças.
Ao longo dos anos, foi necessário que várias “Marias” fossem em busca
de suas lutas e de seus direitos. Em vários momentos de sua caminhada, as
mulheres travaram guerra aos homens, e em outros momentos, optaram pela
racionalidade competitiva para conseguir conquistar seu espaço tão almejado na
sociedade.
Apesar de tantas conquistas, as mulheres ainda sofrem muito com a
discriminação, um bom exemplo é no local de trabalho, onde muitas vezes
mulheres ocupam o mesmo cargo que os homens, entretanto, receberem
salários inferiores, além de serem minorias nos cargos de liderança e gerencia.
Entretanto, existe um local onde várias “Marias” lutam entre amor e o ódio,
entre carinhos e tapas, entre as flores da intimidade e a sobrecarga do insulto,
dentro de sua própria casa. Sem sombra de dúvidas, é o local onde o calvário
de várias mulheres é o esboço da mais desvairada das dores, do amor que se
torna ódio, e que depois torna a ser amor de novo, a dor de ver a confiança dada
se transformar em desilusão, e posteriormente a expectativa de uma melhora.
Por muitas vezes a súplica pela segurança e o amparo são diversos assim
como são os problemas que atravessam, sendo que uma parte dessas mulheres
630

que decidem recorrer à ajuda, procuram por delegacias, promotorias, fóruns,


escritórios de advocacia.
Durante anos, essas mulheres que eram vítimas da agressão, procuraram
tirar força de onde não tinham para seguir em frente, para se manterem firmes
em suas atitudes, contando apenas com sua força interior até a promulgação da
lei que vinha para ampara-las.
Ainda assim, mesmo após 13 anos da criação da lei, a violência contra a
mulher é algo presente no dia a dia, sendo apresentadas através de denúncias,
casos conhecidos através da divulgação, mas ainda assim coberta de diversos
tabus, e talvez algumas brechas.
Um grande passo foi dado com a elaboração da lei, entretanto existe muita
mudança a ser feita, principalmente mudar o pensamento de uma sociedade que
foi construída baseada no machismo, no patriarcalismo, onde o homem era base
de todas as coisas da família, sendo incontestável que a mudança desses
pensamentos refletiria de forma positiva a forma em que a mulher é vista na
sociedade.
Dessa forma, nasceu a preocupação de exteriorizar a inferioridade da
mulher na sociedade, a violência física e psicológica sofrida, advindas de
relacionamentos abusivos, as Políticas Públicas, as criações de delegacias da
mulher, criação de casas de abrigo, além das Políticas Públicas na recuperação
do agressor e a criação da Lei.
Sendo esses temas abordados de maneira prática e objetiva, sendo
possível trazer uma atenção de um público em geral para o assunto.

1. O IMPULSO IDEOLÓGICO DA INFERIORIDADE DA MULHER

Desde os primórdios a sociedade vê o homem como o provedor da família,


sendo ele o responsável por todas as atividades ativas que mantem a sociedade,
sendo por isso considerado desde sempre peça fundamental e indispensável
para a sociedade.
Ainda em consonância com o pensamento mencionado acima, a mulher
perante a sociedade sempre teve um papel passivo, nunca tendo voz ativa, vista
pela sociedade como responsável pelos serviços do lar, cuidado dos filhos, tendo
papel social inativo.
De acordo com Izumino (2004) foi implantada a ideia de que a mulher
sempre foi frágil, necessitando sempre do apoio do homem para realizar suas
atividades, que já tinham seu destino predestinado quando nascidas, sendo
crescer, casar, ter filhos e ser dona de casa, sendo somente o homem
responsável pelas atividades que geram o sustento familiar, observa-se sem
dúvidas o modelo de patriarquismo adotado.
Dessa forma sempre foi imposto uma superioridade do homem sobre a
mulher, na qual incentiva a cultura de que a mulher deve se sujeitar as vontades
do homem, por muitas vezes contra suas vontades e seus ideais.
Ainda reforçando essa ideia, Vidigal (2019), faz a menção dos direitos
básicos que a mulher demorou em conquistar perante a sociedade, sendo um
exemplo clássico o direito ao voto, conquistado somente no ano de 1934.
Ademais, é importante frisar que apesar da luta diária, é possível
identificar que os homens e as mulheres são tratados de forma diversa perante
a sociedade. Nesse entendimento Heleieth I. B. Saffioti (1987), a identidade da
mulher no meio social, assim como a identidade do homem, é formada através
631

do encargo de diferentes obrigações que lhe são impostas, sendo um exemplo,


o homem como provedor da família, e a mulher como dona de casa, fazendo tal
distinção pela diferença de sexo. Sendo assim, a sociedade define quais são as
áreas que a mulher pode atuar, bem como os homens pode exercer, sendo
escancarada essa distinção.
Conforme Hermanm (2004) é possível notar ainda, que com grande
ocorrência, mulheres deixam de ser assalariadas, pois seus conjugues
acreditam que mulher foi feita para ficar dentro do lar, desempenhando
atividades de uma dona de casa, sendo esse o momento onde a mulher se torna
refém do conjugue, vez que ele tem sido o responsável pela renda para manter
a família.
Ainda, de acordo com Heleieth I. B. Saffiotti (1987), o fato do homem ser
possuidor de uma força física maior que das mulheres, é um fator muito utilizado
para justificar as discriminações em desfavor das mulheres, onde alegam que
não conseguem desempenhar trabalhos com máquinas, e nos quais necessitam
de esforço físico.
A Constituição Federal preleciona em seu artigo 5º que todos devem ser
tratados com igualdade, sendo homens, ou mulheres, sem qualquer distinção,
entretanto, sabemos que na prática, a realidade é totalmente diferente.
Conforme mencionado anteriormente, é muito comum em empresas ter
mulheres ganhando menos que homens desempenhando a mesma função,
ainda de acordo com Martins (2009), é imperioso mencionar que por vezes são
submetidas a exames que agridem sua integridade física bem como psicológica.
Ocorre que foi implantado um pensamento de que se mulher for muito
mais bem-sucedida que o homem é falta de respeito, segundo Heleieth. I. B.
Saffioti (1987), a mulher deve sempre ficar a sombra do homem, tendo que
manter informações, como um salário melhor, ou ter conhecimento maior que o
marido em determinado assunto em segredo, a fim de não humilhar o homem.
Portanto, conclui-se que a desigualdade de gênero é o principal motivo
para as condutas discriminatórias impostas pela sociedade, que leva de certa
forma a crer que a violência causada contra a mulher é por que de certa forma
“mereceu” passar por aquilo.

2. O PONTO DE VISTA ECONÔMICO

De forma muitas vezes obscura, a sociedade encara a agressão entre


uma briga de casa como um fato comum, segundo Martins (2009), é possível
identificar em dizeres populares o emprego do desprezo pela agressão, sendo
como exemplo mais conhecido “em briga de marido e mulher não se mete a
colher”. Onde muitas vezes pessoas próximas a vítima e ao agressor não fazem
a denúncia, e a vítima muitas vezes tem receio em fazê-lo.
É forçoso mencionar que na cerimônia da lei de feminicidio, a ex-
presidente Dilma Roussef (2014), mencionou em seu discurso que em briga de
marido e mulher se mete a colher sim, principalmente se resultar em
assassinato, tendo em vista a grande onda de assassinatos que aumentaram
significativamente, em razão do ser mulher. Muitos desses casos se iniciaram
com uma pequena agressão, onde por multas vezes poderia ter evitado o
resulta trágico final.
Ainda, segundo Maria Amélia de Almeida (2002), o presente tema é
tratado como se fosse uma questão problemática muito distante da realidade
632

de “pessoas de bem”, sendo isso um grande fruto das desigualdades


financeiras, vez que a sociedade acredita cruelmente que casos de violência
doméstica ocorre somente em famílias carentes, sobre o efeito de droga e
álcool. Entretanto essa ideia criada pela sociedade de que tal fato ocorre
somente em lares carentes é totalmente ilusória.
A violência doméstica não escolhe classe social, raça, idade, prova
maior disso é a quantidade de casos registrados de violência como pessoas de
classe média-alta, um exemplo disso é o caso de Melissa Gentz que sofreu
uma agressão de grande porte por seu namorado Erik Bretz, ambos viviam nos
Estados Unidos, e pelo fato da vítima ter se negado entregar seu celular ao
agressor, este desferiu vários golpes em sua namorada, deixando a vítima com
seu rosto visivelmente lesionado.
Existem muitas Melissas, muito Eriks, e não é a classe social que os
escolhem, ou influência de álcool, ou drogas que fazem situações como esta
ocorrerem, pois visivelmente se trata de ponto de vista, conhecimento de que
a mulher tem sim seu espaço na sociedade.
De acordo com os dados semestrais da Central de atendimento a
mulher, comente no 1º semestre do ano de 2018, houve acerca de 1.159
denúncias de cárcere privado, 258 homicídios, 47 denúncias de tráfico de
pessoas, 13.343 denúncias de violência física e 13.202 de violência
psicológica, ou seja, apesar da criação de vários meios para facilitação da
denúncia, pontos de apoio, o número de vítimas ainda é grande.
Ocorre que é necessário mencionar que a maioria das vítimas dependem
consideravelmente financeiramente de seus agressores, sendo esse um dos
maiores fatores das vítimas não relatarem a agressão.
Segundo Heleieth I. B. Saffioti (1987) a subordinação da mulher ao
homem é um fato já consciente pela sociedade, não escolhendo a classe social,
desde a zona rural a urbana, não fazendo distinção somente pela vítima, que é
a mulher.
Ainda, conforme Nascimento (2019), já no ano corrente é possível que a
conduta violenta persiste, vez que segundo pesquisas, uma média de cinco
ocorrências foram registradas por dia, sendo a contagem realizada até a data
de 24 de janeiro, contabilizando um total de 107 casos de feminicidio
consumado, ou tentados, ou seja, nenhuma medida de punibilidade que vem
sendo aplicada, tem diminuído a quantidade de casos registrados.
Em consonância com esse pensamento, Raquel Marques (2019) afirma:

Quando se fala em aumentar penas e tipificar crimes, estamos


trabalhando com o que será feito após o acontecimento. Não estamos
nos preocupando com o principal, que é o antes, com a prevenção.
Temos de pensar que esse homem é comum. E que ele um dia se
apaixonou, dividiu a casa, teve filhos, mas que, no inconsciente dele,
a mulher é extensão do seu patrimônio (MARQUES, 2019.).

Portanto, fica claramente demonstrado que as medidas de punibilidade


não são suficientes para coibir as agressões contra as mulheres, sendo
necessária a criação de institutos para prevenir a ocorrência, e não remedia-la.

3. A FUNÇÃO SOCIAL DA LEI 11.340/2006


633

No dia 22 de agosto de 2006 entrou em vigor a lei 11.340, a qual é


conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, levando esse nome em
razão da incansável batalha que a biofarmacêutica Maria da Penha Maia
Fernandes, teve que enfrentar, vez que sofria inúmeras violências advindas de
seu esposo que por fim resultaram em uma tentativa de homicídio que lhe
causou uma paraplegia inconvertível.
Em seu livro, Maria da Penha (1994), relata que seu marido tentou mata-
la duas vezes, sendo a primeira que resultou em sua paraplegia, no qual o
mesmo forjou um assalto, e a segunda vez, tentou eletrocuta-la durante o banho.
Os fatos ocorreram no ano de 1983, e somente após 19 anos e 6 meses após o
fato, Marcos Antônio foi preso, entretanto cumprindo somente dois nãos de
prisão.
Tal injustiça gerou uma repercussão geral, onde o CEJIL – Centro pela
Justiça e o Direito Internacional e o CLADEM – Comitê Latino – Americano e do
Caribe para a Defesa dos Direitos de Mulher, realizaram uma denúncia sobre o
ocorrido a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos.
Entretanto, conforme relatado por Maria da Penha (2007), a luta pela
justiça não foi uma conquista de fácil acesso, pois mesmo depois da Comissão
ter solicitado informações s obre o ocorrido ao Governo Brasileiro por quatro
vezes, não obteve respostas em nenhuma de suas solicitações.
Sendo assim, a OEA não viu outra opção, senão a condenar o Brasil além
de efetuar um pagamento de uma multa a Maria da Penha, responsável pela
omissão e a negligência em relação à violência doméstica ocorrida, ademais
orientou que fossem tomadas medidas que corroborassem para que
simplificasse os procedimentos judiciais penais, tendo em vista que no caso em
comento, o tempo processual para penalizar foi demasiado.
Depois de diversas reuniões entre ONG’s que tinham como objetivo
combater a violência doméstica, diversas audiências públicas e alterações, no
ano de 2006, chegou o texto final a Lei nº 11.340, que foi sancionado pelo
Presidente da época, Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 07 de agosto, entrando
em vigor em 22 de setembro do mesmo ano.
Assim sendo, a lei vem com um objetivo de garantir que as medidas
constantes em seu texto possibilitem as mulheres possam alcançar enquanto
seres humanos sua dignidade, que lhe é assegurando constitucionalmente.
Parece desnecessário a criação de uma lei que visa garantir o direito da
dignidade da pessoa humana, no caso do gênero feminino, quando é um direito
prelecionado na constituição, entretanto, conforme foi mencionado diversas
vezes, o preconceito da discriminação do gênero está enraizado na sociedade.
Sendo assim, o fato de assentir que a mulher vítima de violência,
enquadrada nos termos da lei Maria da Penha, é de fato a parte mais fraca,
hipossuficiente, não tira o seu direito de administrar sua vida e seus negócios,
tratando-se somente, de garantir um amparo estatal, a fim de proteger sua
vontade, alteridade e dignidade humana.
Por fim, é claro que é indispensável que o Estado e os cidadãos sejam
presente e se comprometam a criar medidas que diminuam consideravelmente
a quantidade de ocorrências de violência contra mulher, deixando de ser
considerado um fato comum. Sendo indispensável a necessidade de mudar a
visão patriarcal de que a mulher não deve ser subordinada ao homem, abrindo
espaço para ela na sociedade.
634

CONCLUSÃO

Durante todo o trabalho foi relatado o fato da mulher ainda ser


considerada indivíduo inferior na sociedade, sendo este o principal fator que
influencia a violência física e psicológica contra a mulher.
A elaboração das Políticas Públicas, a criação de órgãos para oferecer
o amparo, com as delegacias especializadas da mulher, a criação da casa
abrigo para aquelas que precisam de um refúgio, as políticas públicas que
foram criadas para recuperar os agressores, a função social da lei.
Todos esses pontos foram expostos a fim de sanar dúvidas acerca da
lei, mostrar a necessidade da criação da lei, sendo indispensável para
solucionar as questões da violência doméstica, bem como, elucidar que ainda
há pontos a serem reparadas a fim de que a lei atinja sua função social.
Ocorre que é indispensável que se compreenda que para que haja
supressão da violência de caráter social, econômica, política, incluindo a
violência urbana, requer o fim da violência praticada contra a mulher, sendo a
violência doméstica o primeiro contato do ser humano com a violência, tendo
em vista que a infância é formadora de caráter dos adultos do futuro, que
quando experimentam situações violentas, nas quais viram os agressores do
amanhã.
É indispensável que a violência contra a mulher não seja mais vista com
algo normal, mas que seja levada com seriedade, a fim de que se torne
intolerável. Não são as diferenças naturais entre o homem e a mulher que
corroboram com o emprega da violência, mas sim a cultura patriarcal sobre a
mulher.
Em razão dessa cultura é que é necessária a ação de educar os homens
desde a infância, a fim de que possa ser criada uma sociedade livre de rótulos,
sendo indispensável a busca pela igualdade de gênero.
Portanto é necessário que haja um movimento da sociedade ao Estado,
procurando prevenir, conscientizar, educar e erradicar a violência contra a
mulher, a fim de que os números dos casos sejam consideravelmente
diminuídos.

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637

ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA EXECUÇÃO CAUTELAR DA PENA EM


SEGUNDA INSTÂNCIA
CONSTITUCIONAL ANALYSIS OF THE PRECAUTIONARY EXECUTION OF
THE SENTENCE AT SECOND INSTANCE

Rebeca Felix Cardoso


Orientador(a): Elaine Graci Fumagalli Errador Casagrande

Resumo: Atualmente, no Brasil, estamos vivenciando um período intenso de


insegurança jurídica, tendo em vista as diversas decisões do Egrégio Supremo
Tribunal Federal que divergem com nossa magna carta, em especifico o
entendimento dado no Habeas Corpus número 126.292/2016. Desta feita, se faz
necessário um estudo aprofundado sobre os princípios e garantias
fundamentais, pressupostos fundamentais da pena e limites do poder punitivo
do estado, os quais estão intimamente ligados à execução cautelar da pena,
para que, posteriormente, seja analisada a relação destes com a decisão do
Supremo Tribunal Federal, que permite a execução cautelar da pena aplicada
após sentença penal condenatória confirmada em segunda instancia.
Palavras-chave: Antecipação da pena. Princípios e garantias fundamentais.
Execução da pena em segunda instancia.

Abstract: Brazil, nowadays, has been living an intense time about juridic
insecurity, in view of multiple decisions that diverges from the Federal
Constitution most especifically, the understanding given from the “Habeas
Corpus” number 126.292/2016. Therefore, it's been made necessary a profound
study about fundamental principles and warrants that are intimately bound to the
precautionary execution of the sentence, in order that, posteriorly, an analysis
about it's relations with the Supreme Federal Tribunal might be done, making
possible to apply the precautionary execution sentence after
confirmed"condemnatory criminal sentence" at second instance.
Keywords: Anticipation of the penalty. Fundamental principles and guarantees.
Execution of the sentence in the second instance.

INTRODUÇÃO

Partindo da premissa, resta-se crível a instabilidade e insegurança jurídica


presente na atualidade quanto à decisão do Supremo Tribunal Federal no
Habeas Corpus número 126.292/2016, no qual foi decidido que é possível a
execução da pena já a partir de sentença em segunda instância, decisão esta
que comprova a valorização da segurança coletiva e a inobservância dos direitos
e garantias fundamentais do condenado, estes previstos em nossa Constituição
Federal.
Assim, diante da importância da analise das implicações jurídicas da
questão, serão apresentados estudos aprofundados de cada princípio regente
da prisão cautelar, os quais estão intimamente ligados à execução cautelar da
pena em segunda instancia, objetivando um estudo da colisão de princípios,
visando, assim, um melhor entendimento do tema, logo, uma melhor analise
quanto à decisão proferida pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, como
também quanto aos limites do poder sancionador e atuação estatal com relação
ao tema supracitado.
638

1. EXECUÇÃO CAUTELAR DA PENA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE


1988.

Inicialmente, tendo em vista a importância do desenvolvimento histórico


para o melhor entendimento do tema, deve-se ressaltar que a antecipação da
pena mostra-se relevante desde os primórdios, nas antigas sociedades, servindo
como auxilio para futura medida processual, visando manter o acusado no
distrito da culpa, para poder processa-lo, e posteriormente, se necessário, puni-
lo.
Analisando as principais civilizações da antiguidade, a antecipação da
pena se faz presente na: Civilização clássica romana com a presença do
encarceramento, que objetivava assegurar o domínio físico do acusado visando
uma futura punição; na Idade Média, na qual se tinha a presença das
penitencias, atuando em conjunto com as medidas da santa inquisição, as quais
visavam o confesso e o posterior arrependimento; e na Idade Moderna, esta
responsável pela humanização da pena, buscando-se dela o caráter disciplinar.
No Brasil, com as ordenações Manuelinas e Filipinas, a antecipação da
pena se faz presente, sendo que, para sua eficácia era necessário apenas um
“dar querela”, que significa noticiar o crime. Posteriormente, a Constituição do
império, como também a promulgada em 1941, trouxe um rol taxativo contendo
as causas específicas de antecipação da pena.
Ademais, com a promulgação da Constituição Federativa do Brasil de
1988 o processo penal sofreu diversas alterações, visando à proteção e garantia
de direitos fundamentais inerentes a todo ser humano, protegendo, assim, a
liberdade. Desta forma, percebe-se que a Magna Carta de 88 visa, ao mesmo
tempo, a proteção de todos os cidadãos, garantindo a ordem pública, como
também a proteção do agente infrator, tendo em vista que a liberdade é a regra,
e a prisão é a exceção.
Pode-se conceituar prisão cautelar como um instrumento restritivo da
liberdade, de caráter provisório e urgente, diverso da prisão propriamente dita,
visando este o controle e acompanhamento do acusado, durante a persecução
penal.
Assim, para a aplicação da exceção, principalmente de forma cautelar, se
faz necessário à observação de pressupostos essenciais, trazendo a tona, como
fundamentação, a necessidade e conveniência de tal prisão. Como pressupostos
para garantir a legalidade da supracitada prisão, pode-se destacar: o “Fumus
Boni Iuris” que, em sua literalidade dignifica a “fumaça do bom direito”, a qual
representa a necessidade da presença de indícios de materialidade e autoria; o
“Periculum in mora”, que significa “perigo da demora”, traz a exigência de
cautelar de impedir dano grave ou de difícil reparação; A conveniência da
instrução criminal, que pode ser entendida como a necessidade de se resguardar
o devido processo legal, ou seja, contraditório e ampla defesa; e a Segurança na
aplicação da lei penal, que se entende como sendo nos casos em que se tem
provas de que o acusado ou indiciado irá, se em liberdade, tentar se subtrair à
aplicação da condenação dada pela Justiça, seja, por tentativa de fuga ou de se
desfazer de seus bens, aqui para se negar ao ressarcimento dos prejuízos
causados pelos seus atos. Deve-se ressaltar que as referidas provas devem ser
cabais e seguras.
639

Resta-se crível que a junção dos pressupostos supracitados efetiva a


execução da pena, especialmente no caráter cautelar, e que o Estado é o único
titular legitimado a exercer o poder punitivo, cabendo, somente a ele, assegurar
a segurança social e a paz, sem esquecer-se de proteger a liberdade individual
de cada indivíduo presente na sociedade. Contudo, tem-se que num Estado
Democrático de Direito, o exercício do poder punitivo do Estado só será
legitimado se houver respeito aos direitos e garantias fundamentais. Verificando-
se, assim, a necessidade de um planejamento de Política Criminal capaz de
estabelecer mecanismos coercitivos adequados a realidade social do estado.
Em razão disso, forçosa a analise sistemática dos princípios mais
relevantes à limitação do “ius puniendi” de um Estado Democrático de Direito.
Dentre eles, tem-se: o princípio da legalidade, que discorre quanto à
necessidade do ato constituir crime e da pena estar predefinida em lei; o princípio
da intervenção mínima, trazendo a tona o caráter subsidiário do direito penal; e
o princípio da culpabilidade, o qual aponta a importância quanto à razoabilidade
e proporcionalidade da sanção penal.
No mais, a junção dos pressupostos fundamentadores da aplicação de tal
medida com o cumprimento dos limites do poder sancionador do estado, nos traz
a plenitude de uma devida aplicação da lei penal em um estado democrático de
direito.

2. CONFLITO ENTRE O PRINCÍPIO DA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E


O PRINCIPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.

Como já supracitado, a execução cautelar da pena se dá com a junção de


pressupostos fundamentais com o cumprimento dos limites do “ius puniendi’ do
estado. Contudo, com a analise de tal enfoque, observa-se que a existência de
uma possível antecipação da pena antes do transito em julgado da sentença
penal condenatória, nos traz conflito entre princípios fundamentais contidos em
nossa magna carta, são eles o principio da garantia da ordem pública e o
principio da presunção de inocência.
Inicialmente, conceituando tais princípios, tem-se que o principio da
garantia da ordem pública não se resume apenas em evitar a ocorrência de
outros delitos, protegendo, assim, os bens jurídicos tutelados tanto de forma
individual quanto coletiva, mas também resguardando a credibilidade e
respeitabilidade das instituições públicas, devendo, assim, a conveniência da
medida ser regulada pela sensibilidade do juiz.
Com a base do que seria o princípio da garantia da ordem pública, resta
explicar o princípio conflitante deste enfoque, ou seja, o princípio da presunção
de inocência.
A consagração de tal princípio bem insculpida na Constituição Federal em
seu art. 5, LVII, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o transito
em julgado da sentença penal condenatória”, isto significa que o processo deve
assegurar todas as necessidades e garantias práticas de defesa do inocente,
não podendo considerar ninguém culpado até o transito em julgado da sentença
penal condenatória.
Deve-se, também, ressaltar que a doutrina subdivide tal princípio em duas
regras fundamentais, como explica Lima (2015, p.44). A primeira, conhecida
como “regra probatória”, trata do ônus de provar a culpabilidade, sendo este de
quem acusa, de forma que o acusado não tem o dever de provar sua inocência,
640

restando dúvidas, o acusado é considerado inocente. A segunda, regra de


tratamento, diz respeito à excepcionalidade da privação da liberdade, sendo
justificada apenas em hipóteses estritas, a regra é que se responda o processo
penal em liberdade, sendo as prisões cautelares medidas excepcionais.
Desta feita, analisando ambos os princípios, resta-se clara a contradição
aqui presente, visto que um prevê a possibilidade de intervir no direito a liberdade
do agente infrator se este causar risco de prejuízo a ordem pública, e o outro
visa garantir a liberdade do indivíduo, direito este fundamental e inerente a todo
ser humano.
Assim, diante de uma relação de conflito entre princípios, a resolução
deste trata-se de é uma questão de ponderação, de preferência, aplicando-se o
princípio ou o valor na medida do possível, e, deste modo, o julgador deverá se
embasar no principio da proporcionalidade, analisando seus subprincípios, quais
são; princípio da adequação, que visa balizar a conduta do legislador quando
estejam em testilha limitações aos direitos fundamentais. A adequação dos
meios aos fins traduz-se na exigência de qualquer medida a restritiva deve ser
hábil, idônea, adequada àquilo se que persegue, sob pena de aferir-se sua
inconstitucionalidade; da necessidade, também conhecido como o princípio da
indispensabilidade, da menor ingerência possível ou da intervenção mínima,
dispõe que, dentre as medidas consideradas disponíveis pelo princípio da
adequação, deve-se escolher a menos onerosa, aquela que em menor dimensão
restrinja e limite os direitos fundamentais do indiciado; e da proporcionalidade
em sentido estrito, que, segundo Canotilho (2001), os meios e fim são colocados
em adequação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar
se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim, tratando-se,
então, de uma justa medida.
Na medida da perfeição, o julgador deverá usar o princípio da
concordância pratica ou harmonização, buscando a combinação dos princípios
conflitantes, evitando, assim, o sacrifício total de uns em relação aos outros.

3. EXECUÇÃO CAUTELAR DA PENA EM SEGUNDA INSTÂNCIA, COM


ENFOQUE NA DECISÃO DO HABEAS CORPOS N.º 126.292 E SUAS
CONSEQUÊNCIAS

No dia 17 de fevereiro de 2016, o STF, em decisão tomada pelo Plenário, julgou


o Habeas Corpus 126.292, e o entendimento veiculado pela Corte foi no sentido
de que a sentença penal condenatória confirmada em segunda instância permite
a execução provisória da pena aplicada, ocasião está contraria aos princípios
constitucionais aqui já estudados, como também ao artigo supracitado.
Segundo o voto do relator ministro Teori Zavascki, a decisão de segunda
instância é suficiente para permitir a execução provisória; isto porque não haveria
possibilidade de rediscussão de fatos e provas na via recursal extraordinária,
seja em recurso extraordinário, Súmula 279 do STF, seja em recurso especial,
Súmula 7 do STJ.
Tal decisão fora responsável pela mudança no entendimento da Corte, a
qual condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação,
ressalvando-se a possibilidade de prisão preventiva.
Ao trazer em destaque a proteção da coletividade em confronto ao avanço
da criminalidade, o STF pretendeu retomar a confiabilidade do Poder Judiciário,
641

e, consequentemente, garantir a imagem pública da Justiça, buscando atender


aos anseios sociais por punição.
Nesse aspecto, Barroso afirma que três seriam as consequências práticas
da decisão: a garantia de funcionalidade do sistema de justiça criminal, a
redução da seletividade do sistema penal e a quebra do paradigma de
impunidade. Havendo, assim, uma considerável redução à interposição de
recursos protelatórios.
Ocorre que, ao incorporar os anseios sociais – como o de impunidade e
insegurança social - como motivação para mitigar uma garantia constitucional, o
Supremo Tribunal Federal, traz ao Processo Penal uma gradativa perda de
legitimidade, como também, traz ao Poder Judiciário “um ar” de autoritarismo,
ocasião esta inadmissível em um Estado Democrático de Direito.
Ademais, não se deve colocar a necessidade de punir e redução da
criminalidade acima de um direito já assegurado pela Magna Carta aos cidadãos,
ocasião esta geradora de uma enorme insegurança jurídica, pois, se o Supremo
Tribunal Federal, também conhecido como “guardião da Constituição”, não a
protege e viola o seus preceitos fundamentais, quem a respeitaria?
Ocorre que, por outro lado a constituição, é o regulamento jurídico da
sociedade, e, assim, deve se levar em conta que a mesma é dinâmica, e, como
tal, a constituição deve ser harmonizada com a evolução dela. A economia muda,
as relações interpessoais, a evolução tecnológica, toda essa dinâmica leva a
uma frequente releitura da norma, e a uma nova interpretação da norma é
chamada pela doutrina de Mutação Constitucional.
Assim, seguindo os ensinamentos do doutrinador Masson, tal mutação é
uma alteração da Constituição que não incide sobre seu texto, e sim opera nas
normas que pairam subjacentes a ele, de forma que o texto permaneça intacto,
integro, enquanto o sentido que dele se extrai é modificado.
Ademais, resta-se crível que a sociedade do ano de 1988 é
completamente diferente da sociedade contemporânea. Tal sociedade anterior
viveu o pós-período ditatorial, e seus objetivos e anseios eram proteger os
cidadãos do autoritarismo. Já a sociedade atual vive rodeada do crescimento
relevante da criminalidade, juntamente com a falta de credibilidade na justiça,
ocasião esta que fundamenta o seu clamor pela punição do agente infrator.
A Constituição deve sempre ser vivenciada e construída conjuntamente
com a jurisprudência, de modo a atender e corresponder ao progresso de um
povo.
Num ambiente democrático a liberdade é o corolário do sentido da justiça:
dar exatamente a punição na medida de sua culpabilidade. Quanto menor a
reprovação quantificada no ordenamento, menor a pena imposta em face da
liberdade do indivíduo.
Desta feita, evolução humana no que tange aos direitos e garantias
individuais são construídas ao longo do tempo e por isso mesmo possuem um
alto preço, se por um lado a evolução da sociedade requer cada vez mais
respostas da jurisdição ao resolver os contenciosos, de outro deve estar
sempre incólume os direitos do cidadão conseguidos ao longo da evolução
social e jurídica.

CONCLUSÃO
642

No mais, com toda a analise abordada neste trabalho de conclusão de


curso, resta-se crível que nossa Constituição suprema possui diversos princípios
e garantias fundamentas, estes voltados a toda pessoa humana, logo, também
ao condenado, como também, possui garantias voltadas ao coletivo, a toda
sociedade num geral. Assim, é fato que o acordão proferido pelo Supremo
Tribunal Federal referente ao HC 126.292, nos trás, de forma explicita, uma
inobediência ao que diz no artigo 5º LVII da Constituição Federal, qual seja:
“ninguém pode ser dito como culpado até que transite em julgado através de
sentença penal condenatória”, assim, tal preceito, através do recente
entendimento, está sendo ignorado, o que é grave, já que consta claramente
expresso na lei maior. Assim, por este lado, resta-se crível que tal decisão é
extremamente antidemocrática e possui cunho ditatorial, possuindo preceitos
contrários a proteção da liberdade de ir e vir, um dos maiores direitos que a
Constituição Federal do Brasil assegura aos seus cidadãos.
Contudo, não se deve deixar de ressaltar que, diante a problemática em
análise, estamos claramente diante de um conflito de princípios, e que, na
supracitada decisão, se tem como prioridade a proteção dos cidadãos em um
conceito geral, logo, o principio da garantia da ordem pública, menosprezando,
assim, as garantias fundamentais do condenado, como, por exemplo, o principio
da presunção de inocência.
Ademais, num aspecto geral, independente da solução a ser adotada
nesses conflitos sempre existirá a restrição, por vezes total, de um ou dois
valores, não se respeitando, assim, um dos princípios em conflito. Posto que,
tais as circunstancias envolvendo colisão de direitos fundamentais são de
complexa solução, dependendo de maiores discussões, da analise do caso
concreto, como também dos argumentos fornecidos pelas partes envolvidas,
visando sempre o principio da proporcionalidade e ponderação, os quais irão
avaliar quais dos interesses, “abstratamente” do mesmo nível, possui “maior
peso” diante das circunstancias do caso concreto.
Assim, resta-se crível que o método de interpretação tradicional não é
suficiente para dar uma solução às situações em que há colisão de dois ou mais
princípios ou garantias fundamentais.
Por fim, podemos concluir que as garantias e princípios fundamentais não
são absolutos, visto que, se assim fossem, não existiria a possibilidade de
princípios contrários a estes, logo, não haveria a hipótese de conflito. Ademais,
como já supracitado, a sociedade vive em constante evolução, e, como um
estado democrático de direito, seus princípios e garantias regentes devem a este
acompanhar, sofrendo, assim, as devidas mutações.

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APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA EM PROTEÇÃO AOS


TRANSEXUAIS FEMININOS: GÊNERO COMO ELEMENTO DE PROTEÇÃO
À VÍTIMA
APLICABILIDAD DE LA LEY MARIA DA PENHA EN LA PROTECCION DE
LOS TRANSSEXUALES FEMALE: GENERADOR COMO ELEMENTO DE
PROTECCION PARA LA VICTIM

Pedro Henrique de Jesus Silva


Orientador(a): Lucilo Perondi Júnior

Resumo: O artigo visa analisar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha em


proteção aos transsexuais femininos, tendo o gênero como elemento de
proteção da vítima. Objetiva-se analisar se a referida Lei pode ser utilizada como
mecanismo de proteção às pessoas transexuais femininas, levando em
consideração o conceito não binário de gênero. Optou-se pela pesquisa
bibliográfica doutrinária, jurisprudencial e legal, utilizando-se o método dedutivo.
Justifica-se a pesquisa para constatar a possibilidade jurídica de proteger às
transexuais femininas através da Lei 11.340 de 2006, haja vista que o gênero
decorre da autodeterminação individual, e é uma construção social e não pura e
simplesmente biológica.
Palavras-chave: Gênero. Transexuais. Lei Maria da Penha.

Resumen: El artículo tiene como objetivo analizar la aplicabilidad de la ley Maria


da Penha en la protección de las transexuales femeninas, teniendo el género
como elemento protector de la víctima. El objetivo es analizar si la ley antes
mencionada puede utilizarse como mecanismo para proteger a las mujeres
transgénero, teniendo en cuenta el concepto no binario de género. Optamos por
la investigación bibliográfica doctrinal, jurisprudencial y jurídica, utilizando el
método deductivo. Se justifica la investigación para verificar la posibilidad legal
Dy proteger a las transexuales femeninas a través de la ley 11.340 de 2006, dado
que el género proviene de la autodeterminación individual, y es una construcción
social y no pura y simplemente Biológico.
Palabras clave: Género. Transexuales. Ley Maria da Penha.

INTRODUÇÃO

Muito se discutia acerca da possibilidade de aplicar ou não a Lei 11.340


de 07 de agosto de 2006 – Lei maria da Penha, em favor dos transexuais
femininos, surgiam indagações como “Seria analogia em malam partem?”; “Não
estaria violando o princípio da legalidade?”; “Transexual é mulher?”
Neste cenário de dúvidas e incertezas acerca do termo gênero utilizado
na Lei supracitada, muitos juízes deixavam de aplicar o referido instituto legal em
favor das mulheres transexuais. No entanto, após o reconhecimento da
possibilidade de jurídica de alterar o nome/gênero independentemente de
cirurgia de redesignação sexual, nos registros de nascimento, a jurisprudência
tem se modificado e reconhecendo o direito das mulheres transexuais de serem
protegidas pela Lei Maria da Penha, rompendo com o imperativo do conceito
binário de gênero, o qual será aqui objeto de estudo.
646

Diante dessa problemática, objetiva-se analisar se a referida Lei pode ser


utilizada como mecanismo de proteção às pessoas transexuais femininas,
levando em consideração o conceito não binário de gênero.
Para tanto, o primeiro tópico, aborda se contexto histórico de criação da
Lei 11.340- Lei Maria da Penha. O tópico seguinte, trata sobre os conceitos
indispensáveis para compreensão do tema proposto. No terceiro momento, por
sua vez, é abordada a dignidade da pessoa humana e a igualdade como
mecanismos sistêmicos que lastreiam o ordenamento jurídico e servem como
mecanismos de interpretação da norma infraconstitucional. Ao final, aborda -se
a aplicabilidade da Lei Maria da Penha aos transexuais femininos.
Justifica-se a presente pesquisa para constatar a possibilidade jurídica de
proteger às transexuais femininas através da Lei 11.340 de 2006, haja vista que
o gênero decorre da autodeterminação individual, e é uma construção social e
não pura e simplesmente biológica.
A metodologia de trabalho centrou-se nos principais aspectos
estabelecidos para uma pesquisa interdisciplinar, a qual envolve temas de
Direito Constitucional, Direito Penal e Direito Homoafetivo e de Gênero. Foi
utilizado como técnica de pesquisa revisão bibliográfica doutrinária,
jurisprudencial e legal, bem como estudos especializados. Para o
desenvolvimento do estudo e suas correlatas conclusões, utilizou-se o método
dedutivo.

CONTEXTO HISTÓRICO

Antes de adentrar na discussão propriamente dita acerca da possibilidade


ou não da aplicação da Lei nº 11.340, denominada de Lei Maria da Penha, aos
transexuais femininos, se faz necessária a abordagem história, a fim de sabe o
contexto em que a mesma foi criada, bem como a vontade legislativa em elaborar
a referida Lei.1
Com a retomada dos movimentos feministas em 1975, foram colocados
em discussão os direitos humanos voltados para proteção da mulher na tentativa
de denunciar e dialogar como os diversos países vinham tratando de forma
omissa e negligente o referido assunto. Buscou-se, ainda, inserir os direitos das
mulheres no âmbito dos direitos humanos, a fim de dar-lhes maior credibilidade
perante os Estados.
Em 1979, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou o documento
contra a segregação feminina, qual seja Convenção sobre Eliminação de todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher. Convenção que fora ratificada pelo
Brasil em 1984.
Além disso, o Brasil tornou-se signatário da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, denominada de
Convenção de Belém do Pará de 1994, da Convenção Americana de Direitos
Humanos e concordou com a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos
Humanos em 1998, subordinando-se ao Estatuto da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos.
Em 29/05/1983, Maria da Penha foi vítima de tentativa de homicídio, por
meio de um tiro de espingarda desferido por seu marido, enquanto dormia. Em

1 Dados retirados da Monografia (especialização) - Curso de Especialização em Processo


legislativo. Histórico, produção e aplicabilidade da Lei Maria da Penha [manuscrito]: Lei nº
11.340/2006 / Andréa Karla Cavalcanti da Mota Cabral de Oliveira. - 2011.
647

razão disso, ficou paraplégica. No entanto, não se limitou a isso, pois após ter
saído do hospital, quando ainda se recuperava, ela sofreu novas agressões e foi
mantida em cárcere privado. Não obstante isso, ele tentou eletrocutá-la no
banheiro, quando essa tomava banho, além de tê-la obrigado a fazer seguro de
vida em seu favor.
Diante de tal fatalidade, em 1984, Maria da Penha iniciou luta por justiça
junto a órgãos judiciais brasileiros, mas somente sete anos depois, seu ex-
marido enfrentou julgamento e foi condenado a 15 anos de prisão, porém
apelação da defesa, a sentença foi anulada em 1992 e o agressor foi a novo
julgamento; desta vez, condenado a 10 anos de prisão, também saiu do tribunal
em liberdade.
O CEJIL - Centro para a Justiça e o Direito Internacional, tomou
conhecimento do caso em tela, por meio do livro publicado pela vítima, e
formalizou denúncia, em conjunto com Maria da Penha e o CLADEM - Comitê
Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, junto à
OEA, haja vista o descumprimento de acordos internacionais: Comissão
Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, os quais o Brasil ratificou e é
signatário.
Diante da acusação, a CIDH publicou o Relatório nº 54/2001, admitindo a
denúncia como justificada, além de aceitar como legítima a culpabilidade do
Brasil no item VII “Conclusões”, e aconselha, no item VIII “Recomendações, que
se tomem atitudes para coibir a violência doméstica contra a mulher, conforme
trechos abaixo: 2
Que, com fundamento nos fatos não controvertidos e na análise acima
exposta, a República Federativa do Brasil é responsável da violação
dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados
pelos artigos 8 e 25 da Convenção Americana em concordância com a
obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo
1(1) do referido instrumento pela dilação injustificada e tramitação
negligente deste caso de violência doméstica no Brasil (CIDH, 2001).

Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância


estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência
doméstica contra mulheres no Brasil (CIDH, 2001).

Assim sendo, em atenção às recomendações supracitadas, o Presidente


da República Federativa do Brasil, à época Luís Inácio Lula da Silva, sancionou
projeto de lei de iniciativa do Executivo, da Câmara dos Deputados, de nº 37 de
2006, que entrou em vigor em 22/09/2006, nos termos do § 8º, do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Lei nº 11.340/2006 – Lei
Maria da Penha, em referência à mulher que lutou contra à impunidade e que
passou a representar outras mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil.

CONCEITOS INDISPENSÁVEIS

A fim de partir para a discussão proposta é extremamente importante o


estudo e exposição de alguns termos, significados e expressões para melhor

2 Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório anual 2000. Disponível em:


http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/299_Relat%20n.pdf. Acesso em 27/03/2019.
648

compreensão do tema proposto, pois não se pode falar em gênero e transexuais


sem que haja um estudo minucioso desses institutos.
A identidade de gênero está atrelada ao gênero pelo qual a pessoa se
identifica, se reconhece e se apresenta, podendo ser ele masculino, feminino,
ambos ou nenhum. É processo de aceitar ou não o sexo atribuído em seu
nascimento, no entanto não pode e nem deve se limitar as isso, haja vista que
pode estar relacionada ao modo de vestir-se, ao sentimento pessoal do corpo, a
forma de se apresentar perante a sociedade, ao comportamento, enfim, são
variadas as manifestações de gênero que o indivíduo pode apresentar. Nesse
sentido:
La identidad de género es la vivencia interna e individual del género tal
como cada persona la siente, la cual podría corresponder o no con el
sexo asignado al momento del nacimiento, incluyendo la vivencia
personal del cuerpo (que podría involucrar – o no – la modificación de
la apariencia o la función corporal a través de medios médicos,
quirúrgicos o de otra índole, siempre que la misma sea libremente
escogida) y otras expresiones de género, incluyendo la vestimenta, el
modo de hablar y los modales. La identidad de género es un concepto
amplio que crea espacio para la auto‐identificación, y que hace
referencia a la vivencia que una persona tiene de su propio género.
Así, la identidad de género y su expresión también toman muchas
formas, algunas personas no se identifican ni como hombres ni como
mujeres, o se identifican como ambos.3

Partindo de tais premissas não se pode relacionar sexo com identidade


de gênero, uma vez que identidade de gênero é comportamento e identificação
com um determinado gênero ou nenhum, ao passo que sexo está diretamente
relacionado ao aparelho reprodutor masculino e feminino, ou seja, está atrelado
às características biológicas do sujeito, é o que se denomina de perfil biológico
binário. Senão vejamos:

En un sentido estricto, el término sexo se refiere a las diferencias


biológicas entre el hombre y la mujer, a sus características fisiológicas,
a la suma de las características biológicas que define el espectro de
las personas como mujeres y hombres o a la construcción biológica
que se refiere a las características genéticas, hormonales, anatómicas
y fisiológicas sobre cuya base una persona es clasificada como macho
o hembra al nacer39. En ese sentido, puesto que este término
únicamenteestablece subdivisiones entre hombres y mujeres, no
reconoce la existencia de otras categorías que no encajan dentro del
binario mujer/hombre.4

É no campo da identidade de gênero que se enquadram as pessoas


transexuais, travestis, intersexuais e cisgêneras, no entanto, só será objeto de
estudo neste trabalho o transexual feminino, como sujeito de proteção ou não da
Lei Maria da Penha.
Por ser o transexual feminino o objeto de estudo, é necessária à sua
conceituação: o transexual possuí psiquismo contrário ao sexo físico que
apresenta em seu fenótipo.5 Partindo das definições de transexualidade, criada

3 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva nº 24/2017. p. 16 e 18.


Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2018/1/art20180111-04.pdf##LS. Acesso
23/09/2019.
4 Ibidem. P. 15 e 16.
5 Luiz Alberto David Araújo. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva,
649

por Maria Helena Diniz (2011), pode-se definir o transexual feminino como
pessoa que rejeita sua identidade genética, bem como sua própria anatomia,
identificando-se como pertencente ao sexo oposto.6

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA e a IGUALDADE

Embora não haja no texto da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006 – Lei


Maria da Penha, de forma expressa o termo transexuais femininos, afim de
proteger tais pessoas, entende-se como desnecessária tal regulamentação, uma
vez que tal direito a inviolabilidade a integridade física, psíquica, moral e
patrimonial é decorrência da lógica jurídica do princípio da igualdade e da
dignidade da pessoa humana.
Para Emanuel Adilson, a igualdade impede que se negue aos integrantes
de determinado grupo a possibilidade de desfrutarem de algum direito, apenas
em razão do seu modo de vida.7
Assim, qualquer omissão do Poder Público, principalmente do Poder
Legislativo que viole tal princípio estão sujeitas a apreciação do Poder Judiciário,
mais precisamente pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que o referido
princípio está normatizado no artigo 5°, da Carta Magna. Nesse sentido:

O sistema jurídico deve assegurar tratamento isonômico e proteção


igualitária a todos os cidadãos. No entanto, o legislador intimida-se na
hora de positivar direitos que atendam às minorias alvo de preconceitos
e da discriminação. A omissão da lei dificulta o reconhecimento de
direitos, sobretudo frente a situações que se afastam de determinados
padrões convencionais, o que faz crescer a responsabilidade do Poder
Judiciário.8

Quanto à dignidade da pessoa humana, esta é parâmetro fundamental do


Estado Democrático de Direito, o qual garante a todos uma vida com o mínimo
de dignidade possível. É, também, princípio maior dentro do ordenamento
jurídico brasileiro e encontra-se normatizado no artigo 1º, inciso III, da
Constituição da República. Além disso, é preceito básico a ser considerado,
vinculando todos os Poderes da República. Senão vejamos:

[...] A garantia da dignidade da pessoa humana decorre, desde logo,


como verdadeiro imperativo axiológico de toda a ordem jurídica, o
reconhecimento de personalidade jurídica a todos seres humanos,
acompanhado de previsão de instrumentos jurídicos (nomeadamente,
direitos subjetivos) destinados à defesa das refrações existenciais da
personalidade humana, bem como a necessidade de proteção desses
direitos por parte do Estado.9

Ante colisões à dignidade, esse princípio sempre será observado para


orientar as possíveis soluções do conflito. A dignidade da pessoa humana
garante a todos os cidadãos o mesmo respeito dado pela norma, sendo

6 Maria Helena Diniz. O estado atual do Biodireito, São Paulo: Saraiva, 2011, p.316.
7 Emanuel Adilson. Igualdade na veia: doação de sangue e direitos da personalidade.
Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: RT, 2017, p. 358.
8 Maria Berenice. Direito Homoafetivo PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e responsabilidade:

teoria e prática do Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM, 2010.


9 Paulo da Mota. O direto ao livre desenvolvimento da personalidade. Coimbra: Coimbra, 1999.

p. 151 e 152.
650

irrelevante qualquer diferenciação, pois não pode a norma infraconstitucional


afastar o gozo de direitos, haja vista que mesma deve estar em consonância com
o que determina o texto constitucional.

APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA AOS TRANSEXUAIS FEMININOS

Partindo da definição extensiva de identidade de gênero, que abarca


todas as formas de gênero, bem como da interpretação dada ao Princípio da
Igualdade, bem como da Dignidade da Pessoa Humana, postos de forma
exaustiva nos tópicos acima, entende-se ser possível a aplicação da Lei 11.340,
de 07 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha, em casos de violência doméstica
quando a vítima for transexual feminina.
O postulado acima se alicerça no modo interpretação sistemática da
norma, pelo qual a norma deve estar em harmonia com todas as normas do
ordenamento jurídico, e ainda encontra respaldo na hermenêutica constitucional
do que não é explicitamente vedado, é permitido, ou seja, quando a norma não
apresenta restrição é meramente exemplificativa, cabendo o julgador interpretá-
la e dar-lhe aplicabilidade.
Comporta salientar, que tais premissas foram utilizadas pelo Supremo
Tribunal Federal – STF, quando da análise de diversos casos de violação
legislativa aos comandos constitucionais, a fim de dar maior proteção e
segurança jurídica às pessoas LGBTIs.
Para José Miguel a interpretação contrária a tal entendimento, baseada
em valores morais, já não tem adesão unânime, justamente por ser inadmissível
aceitar uma situação de sofrimento e restrição de direitos à um determinado
grupo de pessoas que anseiam viver em plenitude enquanto sujeitos de
direitos.10
Nesse sentido, têm-se os seguintes julgados dos Tribunais Pátrios:

Ementa: PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO DO


MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA DECISÃO DO JUIZADO DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA
VARA CRIMINAL COMUM. INADMISSÃO DA TUTELA DA LEI MARIA
DA PENHA. AGRESSÃO DE TRANSEXUAL FEMININO NÃO
SUBMETIDA A CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL (CRS).
PENDÊNCIA DE RESOLUÇÃO DE AÇÃO CÍVEL PARA
RETIFICAÇÃO DE PRENOME NO REGISTRO PÚBLICO.
IRRELEVÂNCIA. CONCEITO EXTENSIVO DE VIOLÊNCIA BASEADA
NO GÊNERO FEMININO. DECISÃO REFORMADA.
1 O Ministério Público recorre contra decisão de primeiro grau que
deferiu medidas protetivas de urgência em favor de transexual mulher
agredida pelo companheiro, mas declinou da competência para a Vara
Criminal Comum, por entender ser inaplicável a Lei Maria da Penha
porque não houve alteração do patronímico averbada no registro civil.
2 O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação
individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela
forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa. A
alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização
são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem

10
José Miguel Onaindia. La decisión sobre el género y los princípios constitucionales. In: Carolina Von
Opiela. Derecho a la identidad de género; Ley 26.743. Buenos Aires: La Ley, 2012, p.23.
651

constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de


condicionantes para que seja considerada mulher.
3 Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher a vítima
transexual feminina, considerando que o gênero é um construto
primordialmente social e não apenas biológico. Identificando-se e
sendo identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo
estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os quais
sobressaem no relacionamento com seu agressor e justificam a
aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese.
4 Recurso provido, determinando-se prosseguimento do feito no
Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com
aplicação da Lei Maria da Penha.
(Recurso em sentido estrito provido. 1ª TURMA CRIMINAL Publicado
no DJE: 20/04/2018. Pág.: 119/125 - 20/4/2018 20171610076127 DF
0006926-72.2017.8.07.0020 (TJ-DF) relator Des. GEORGE LOPES).
11

Ementa: PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO MINISTERIAL.


LEI MARIA DA PENHA. PLEITO DE MEDIDA PROTETIVA. VÍTIMA
TRANSEXUAL. DECISÃO COMBATIDA QUE JULGOU EXTINTO O
PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. PEDIDO DE
REFORMA DA SENTENÇA MEDIANTE RETORNO DOS AUTOS À
COMARCA DE ORIGEM, PARA REABERTURA PROCESSUAL E
RESPECTIVO JULGAMENTO DO FEITO. POSSIBILIDADE.
AGRESSÕES PERPETRADAS CONTRA VÍTIMA DO GÊNERO
FEMININO DENTRO DE UMA RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO. CASO
EM APREÇO QUE ATRAI A INCIDÊNCIA DA LEI N. 11.340/06.
RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
(Classe: Apelação,Número do Processo: 0306824-16.2015.8.05.0080,
Relator (a): Aliomar Silva Britto, Primeira Câmara Criminal - Primeira
Turma, Publicado em: 12/11/2018). 12

Ementa: MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DE


MEDIDAS PROTETIVAS IMPETRANTE BIOLOGICAMENTE DO
SEXO MASCULINO, MAS SOCIALMENTE DO SEXO FEMININO.
VIOLÊNCIA DE GÊNERO. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA.
SEGURANÇA CONCEDIDA.
(TJSP; Mandado de Segurança Criminal 2097361-61.2015.8.26.0000;
Relator (a): Ely Amioka; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito
Criminal; Foro Central Criminal Barra Funda - Vara do Foro Central de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Data do Julgamento:
08/10/2015; Data de Registro: 16/10/2015)13

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Postos tais esforços acima constatados, não se pode mais deixar garantir
proteção penal, mais precisamente aplicar a Lei 11.340 de 2006 – Lei Maria da

11Tribunal de Justiça do Distrito Federal: Disponível em:


https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos
web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordao
.
Acesso em 27/03/2019.
12Tribunal de Justiça da Bahia: Disponível em: https://www.tjba.jus.br/jurisprudencia/. Acesso em

27/03/2019.

13Tribunal de Justiça de São Paulo: Disponível em:


https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?conversationId=&cdAcordao=8898974&cdForo=0&uui
dCaptcha=sajcaptcha_507a8946d9754102bb79927bbc0e54d4&vlCaptcha=MZFR&novoVlCapt
cha=. Acesso em 27/03/2019.
652

Penha, aos transexuais femininos, em casos que versem sobre violência


doméstica, haja vista que a elementar do tipo penal, qual seja o gênero deve ser
analisada de maneira extensiva, levando em consideração o conceito não binário
de gênero.
Deve-se, ainda, intensificar e buscar cada vez mais iniciativas para um
contínuo aprimoramento e adaptação da legislação e demais normatizações em
vigor, visando à superação de práticas violentas que ofendam a honra, o
patrimônio, a integridade física e psíquicas ou até mesmo a vida das mulheres.
Por sua vez, deve-se ainda facilitar o controle social e a participação
popular nas políticas públicas, dando maior eficiência e efetividade na busca de
promoção dos direitos e garantias constitucionais em favor da mulher, sendo ela
transexual ou cisgênera, conforme determina o texto constitucional, bem como
os tratados de direitos humanos ratificados pelo país.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Luiz Alberto David. A Proteção Constitucional do Transexual. São


Paulo: Saraiva, 2000.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório Anual


2000. Disponível em :
http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/299_Relat%20n.pdf. Acesso em
27/03/2019.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva


nº 24/2017. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/arquivos/2018/1/art20180111-04.pdf##LS. Acesso
23/09/2019.

DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 3ª ed. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 8ª. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011.

GARCIA, Thiago. Princípios Constitucionais. Diversidade Sexual e o


Direito Homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009

MAZZARROBA, Orides, MONTEIRO, Cláudia Servilha, Manual de


Metodologia da pesquisa no Direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MOTA, Paulo da. O Direto Ao Livre Desenvolvimento da Personalidade.


Coimbra: Coimbra, 1999.

OLIVEIRA, Andréa Karla Cavalcanti da Mota Cabral de. Histórico, Produção e


Aplicabilidade da Lei Maria da Penha: Lei nº 11.340/2006 / Distrito Federal –
2011.
653

ONAINDIA, José Miguel. La Decisión Sobre el Género y los Princípios


Constitucionales. In: OPIELA, Carolina Von. Derecho a La Identidad de
Género; Ley 26.743. Buenos Aires: La Ley, 2012.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA BAHIA, Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/.


Acesso em 27/03/2019.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, Disponível em:


http://www5.tjba.jus.br/portal/. Acesso em 27/03/2019.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL, Disponível em:


https://www.tjdft.jus.br/. Acesso em 27/03/2019.
654

CRIMINALIZAÇÃO DO NEGRO: DA ESCRAVIDÃO À INSALUBRIDADE DO


CÁRCERE
CRIMINALIZATION OF BLACK PEOPLE: FROM SLAVERY TO PRISON
UNSANITARY

Ithala Oliveira Souza


Naynne Soares de Lima
Orientador(a): Ilzver de Matos Oliveira

Resumo: A pesquisa, realizada de forma interdisciplinar entre as áreas das


ciências sociais aplicadas e saúde, buscou demonstrar a relação entre uma
política inacabada de abolição da escravidão com a marginalização do corpo e
da cultura negra, bem como a insalubridade presente no cárcere, em uma
contínua política de embranquecimento da nação. Em primeiro momento, é
realizado um estudo sobre a invisibilidade do escravo e do emancipado, para
posterior demonstração da criminalização do corpo e cultura e cultura negra, e
por fim, uma análise da ausência de assistência à saúde dentro dos presídios. O
egresso não foi preparado para a sociedade livre ou inserido nas relações
capitalistas, à mercê da própria sorte, foi excluído de qualquer exercício de
cidadania, reconhecido como elemento subalterno e indigno de direitos, mas
sujeitos passíveis de penas pelo âmbito penal.
Palavras-chave: Criminalização. Insalubridade. Negro.

Abstract: The research, conducted in an interdisciplinary manner between the


areas of applied social sciences and health, sought to demonstrate the
relationship between an unfinished policy of abolition of slavery with the
marginalization of the body and black culture, as well as the unhealthiness
present in prison, in a continuous nation's whitening policy. Firstly, a study on the
invisibility of the slave and the emancipated is carried out, for later demonstration
of the criminalization of the black body and culture and, finally, an analysis of the
lack of health care inside the prisons. The egress was not prepared for a free
society or inserted in capitalist relations, at the mercy of his own fate, was
excluded from any exercise of citizenship, recognized as a subordinate and
unworthy element, but subject to punishment by the criminal sphere.
Keywords: Criminalization. Insalubrity. Black people.

INTRODUÇÃO

Recorte de uma pesquisa desenvolvida no segundo semestre de 2019, da


Iniciação Cientifíca intitulada: “Da cifra dourada ao corpo negro: a seletividade
do sistema punitivo” CNPQ, vinculado ao Grupo de Pesquisa Políticas Públicas
de Proteção aos Direitos Humanos (GPPDH) UNIT/CNPq.
A inserção do negro na sociedade é uma situação baseada na
subserviência, isolamento e rejeição - da sua cidadania e sua cultura -, diante
dessa realidade, o objetivo geral dessa pesquisa é relacionar as consequências
de uma abolição irrefletida com a criminalização do corpo negro e a precarização
da sua saúde acentuada pelas condições insalubres no cárcere.
A população brasileira é majoritariamente negra, sua cultura é
essencialmente negra, mas onde estão os negros? Por quê o sentimento em ver
655

um desabrigado negro, um cárcere repleto de negros em condições


degradantes, não choca tanto quanto um desabrigado pedinte branco? Por quê
a ascensão branca é tão ordinária e a negra tão surpreendente? Por quê a mídia
tão facilmente associa o negro ao criminoso? Por quê o corpo negro é a principal
vítima das mazelas sociais? Por quê a academia sofre uma carência gritante de
negros? Todos esses porquês, são as justificativas para a realização dessa
pesquisa.
Em relação a metodologia utilizada, optou-se pela abordagem da
Natureza Social, pesquisa qualitativa em fontes bibliográficas e documentais, a
partir dos métodos histórico e descritivo, a fim de ressaltar a influência do período
escravocrata no sistema de controle social atual.

DE ESCRAVO PARA CRIMINOSO

Para tratar sobre a relação entre o racismo e o sistema penal no Brasil,


impende situar-se acerca do contexto histórico, a discussão sobre criminalidade
não pode estar dissociada do passado escravocrata e suas consequências. A
abolição da escravatura, a inexistência de políticas públicas inclusivas e a
chegada dos imigrantes europeus como forma substitutiva da mão de obra
escrava, são causas intrínsecas para a atual seletividade social e punitiva.
Finda a escravidão, o sentimento libertário dos escravos se confundia com
uma pretensa igualdade. Para muitos, a alforria significava distanciamento de
um passado de escravidão e reencontro com familiares, para outros,
representava o início de uma nova vida sem servir a mais ninguém. Depois da
libertação, pouca ou nenhuma medida foi tomada para a inserção do liberto na
sociedade, assim, a escravidão ganhava uma nova roupagem de desigualdade
social. Fernandes (2008, p.29) aduz a ausência de responsabilidade pelos
mantenedores do período escravocrata e descaso para a vida do liberto:

Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e


segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer
instituição assumissem encargos especiais, que tivessem por objeto
prepara-los para o novo regime de organização de vida; O liberto se
viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo,
tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes,
embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar
essa proeza nos quadros de uma economia competitiva.

A Lei 3.353 de 13 de maio de 1888, a famigerada “Lei Aurea” representou


um marco libertário, mas não previu nenhum tipo de medida inclusiva para
integrar o negro socialmente, efetivar direitos fundamentais e consequentemente
possibilitar o exercício da cidadania. O egresso das senzalas, supunha com a
liberdade ter alcançado a cidadania, o poder de invocar seus direitos, mas obteve
somente uma grande decepção. Essa pretensa cidadania marcou a imobilidade
social, ainda presente nos dias atuais.
Assim, restou a seguinte indagação: “O que fazer com os negros? ”.
Eximidos de qualquer responsabilidade, com a abolição, a atenção dos senhores
se voltaram aos seus próprios interesses, constituiu um período de revolução
social feito pelo branco e para o branco. O novo sistema político, nada oferecia
ou os favorecia, a eles couberam apenas o papel de “elementos residuais do
sistema social” (AZEVEDO, 1987, p. 22).
656

O questionamento acima, quando feito, objetivava não articular formas de


inserir os negros na sociedade, mas inquirir qual o destino dessa massa de
nacionais livres, negros e pobres, vistos como um obstáculo ao progresso. Em
suma, havia liberdade, mas não havia cidadania. “Libertaram” o escravo à sua
própria sorte, sem fontes de subsistência ou preparo mínimo para uma realidade
desconhecida por ele. Nascimento (2016, p.51) esclarece:

Qual foi o “problema” criado pelas classes dominantes brancas com a


‘libertação’ da população escrava? Não foi, como devia ser, identificar
e implementar a providência econômica capaz de assegurar a esta
nova parcela do povo brasileiro sua própria subsistência. Nem foi o
aspecto político o cerne do ‘problema’, isto é, de que maneira o negro,
cidadão recém proclamado, participaria nos negócios da nação que ele
fundara com seu trabalho. E muito menos significava, o ‘problema’
posto para elite dominante, a procura de instrumentos válidos e
capazes de integrar e promover a colaboração criativa na construção
da cultura nacional desse grupo humano recém incorporado à sua
cidadania. [...] o ‘problema’ só podia ser, como de fato era, cruamente
racial: como salvar a raça branca da ameaça do sangue negro.

Aos negros foram acometidos a pecha de causadores de males da saúde,


como, Doenças Sexualmente Transmissíveis, alcoolismo e transtornos mentais
(MAIO e MONTEIRO, 2005, p. 425)., uma combinação do plano cultural e
condições desfavoráveis de vida; foram vinculados a uma propensão natural à
criminalidade e foram culpabilizados pelo atraso da nação. Esses estigmas
construídos em torno dos negros os reposicionaram como excluídos de qualquer
exercício de cidadania.
A Constituição de 1891, imbuída desse processo de descarte dos negros,
excluiu do direito ao voto, um dos principais mecanismos de exercer a cidadania,
o analfabeto e o mendigo, características predominantes entre os libertos.
Assim, previa:

Art 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem


na forma da lei.
§ 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou
para as dos Estados:
1º) os mendigos;
2º) os analfabetos;
3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de
ensino superior;
4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou
comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência,
regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.
§ 2º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis.. (grifo nosso)

O Processo Imigrantista intensificou-se após o período abolicionista,


como mecanismo de substituição da mão de obra escrava. Deve-se pontuar que
havia população recém liberta para suprir com as demandas do mercado de
trabalho, porém, essa era tida como incapaz, característica atribuída à sua
herança de escravidão (AZEVEDO, 1987, p.13).
Anos seguintes a Lei Áurea, o Decreto nº 528 de 28 de junho de 1890,
regularizou a chegada e o permanecimento dos imigrantes na nação,
estabeleceu direitos não previstos aos egressos, de modo a garantir a
efetividade dos auxílios prometidos para o seu estabelecimento. Tal
657

regulamento, previa a livre entrada dos trabalhadores, exceto aqueles originários


da Ásia e África.
O decreto também previa uma proteção especial de seis meses aos
imigrantes recém chegados (art. 12), ofertada pelo Governo e pela Inspetoria
Geral das Terras e Colonização, bem como auxílios para aquisição de
propriedade, vendidas em valor infimamente inferior. A eles também eram
fornecidos os meios necessários para a subsistência, pelo prazo de nove meses,
como sementes e ferramentas, enquanto não obtivessem resultados em suas
próprias culturas (art. 24 e 25).
Havia uma preferência pelos imigrantes europeus, que aos olhos dos
fazendeiros detinham maior capacidade de trabalho, em detrimento dos libertos,
mesmo em ocupações já familiarizadas por esses (Fernandes, 2008, p.51). Essa
prevalência, reafirmou o local do ex escravo como subalterno, elemento de
atraso e inviabilizou a sua entrada efetiva no mercado de trabalho.
Em resumo, os egressos não podiam votar ou inserir-se no mercado de
trabalho, foram a eles atribuídos o rosto da criminalidade e de inimigo do Direito
Penal, bem como o corpo propagador de enfermidades e símbolo de atraso
social. Decorrente do desabono a ele submetido, abandonados à mercê da
própria sorte, sem a realização de medidas que os integrassem socialmente, os
libertos procuraram formas de resistirem e manterem a si e sua cultura vivos.
Imerso pelo medo branco, a cultura negra e o próprio negro começaram
a ser criminalizados. Assim, arquitetava-se um sistema punitivista a partir de
discursos racistas, com o objetivo de manter o negro em situação de
subserviência.

2. INIMIGO DA SOCIEDADE

A abolição libertou os negros, mas não lhes proporcionou o direito de


exercer a cidadania. Houve uma libertação sem amparos, direitos, alimentos ou
teto. Sem qualquer auxílio governamental, os egressos descobriram que a
abolição era contrária à escravidão, mas não necessariamente favorável a eles.
Diante da inviabilidade de inserção no mercado de trabalho, uma grande
parcela da população dos egressos ficou imersa no ócio, abandonados pelo
governo, em situação de gradativo enfavelamento urbano, precárias condições
de vidas e perseguição policial. Tais fatores, operavam como catalisadores para
a síndrome do medo branco e uma justificativa para o intensificar o aparelho
repressivo e ideológico (CATOIA, 2018, p.9).
O Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, punia o desemprego, a
pobreza e a prática de mendigagem, situações atinentes a uma parcela
considerável de negros. Puniu a vida desregrada e o indivíduo tido como vadio,
causados pela própria negligência governamental.

Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em


que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio
certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação
prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons
costumes:
Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias.
§ 1º Pela mesma sentença que condemnar o infractor como vadio, ou
vagabundo, será elle obrigado a assignar termo de tomar occupação
dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena.
658

Com a libertação de escravos, o Brasil tornou-se uma nação


essencialmente negra, e a legislação buscou reprimir toda e qualquer prática
cultural de origem negra no território nacional. Os mecanismos de controle social
mantinham os emancipados em situação de subserviência.

O sistema de controle social passou a dominar todas as manifestações


culturais negras, que tiveram, em contrapartida, de criar mecanismos
de defesa contra a cultura dominadora [...] o escravo resistia com as
armas que dispunha, e as suas culturas desempenharam um papel
muitas vezes apenas simbólico, outras vezes como veículo ideológico
de luta na sociedade escravista. (MOURA, 1992, p.38).

Uma das principais expressões culturais afro-brasileiras é a capoeira, uma


arte corpóreo-musical, desenvolvida em meio à dominação violenta branca e
necessidade de defesa dos escravos, como afirma o mestre Almir das Areias
(1983, p. 8, apud. Campos, 2009, p.93): “Capoeira é música, poesia, festa,
brincadeira, diversão e, acima de tudo, uma forma de luta, manifestação e
expressão do povo, do oprimido e do homem em geral em busca da
sobrevivência, liberdade e dignidade”.
A capoeira representa resistência e o anseio por liberdade, marcada pela
musicalidade, agilidade, ginga e fluidez dos movimentos. Hoje, a roda de
capoeira, é considerada como bem da cultura imaterial do Brasil, presente no
Livro de Registro das Formas de Expressão1 desde 2008, conforme Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas era tida como uma atividade
criminosa pelo Código Penal de 1890:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e


destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar
em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma
lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando
pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:
Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes.
Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer
o capoeira a alguma banda ou malta.

Os mestres carregavam alta carga de marginalidade, por serem


considerados os responsáveis pela disseminação de uma prática vista como
fatal por àqueles que não sabiam como se defender. Vale frisar que os negros
não eram considerados sujeitos de direito para o exercício da cidadania, mas
eram reconhecidos como criminosos em âmbito penal, assim, passíveis de
serem presos.
O aparato estatal, também foi utilizado para criminalizar e perseguir a
prática religiosa afro-brasileira, divergente da atual Constituição Federal de
1988, as práticas religiosas não gozavam de proteção constitucional. A título de
exemplo da intervenção do poder público, na Bahia, as atividades religiosas
ficavam condicionadas ao cadastramento, e posterior aprovação, dos terreiros
nas Delegacias de Crimes contra os Costumes, Jogos e Diversões Públicas
(CAODH, 2016, p.3).

[...] até mesmo na Bahia, onde a população afro-brasileira constitui


mais de 70% da população total do estado, a religião desta maioria

1 Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/66. Acesso em: 08 de set. 2019.


659

esteve sujeita ao registro na polícia e ao pagamento de taxas de


licenças para o funcionamento dos terreiros, além, naturalmente, da
sujeição ao controle das autoridades.(NASCIMENTO,2016, p.82)

O Código Penal de 1890 não traz expressamente a proibição das religiões


de matrizes africanas, mas tipificou como crime, arts. 157 e 158, contra a saúde
pública o espiritismo e o curandeirismo, práticas associadas às manifestações
das aludidas matrizes.
Os emancipados, desapossados da sua dependência, não receberam
meios para manejar a realidade nua e crua que os atingiram. Diante do
desamparo, as alternativas para sobrevivência eram mínguas, e em razão da
criminalização do corpo e da cultura negra, houve um encarceramento em
condições subumanas, degradantes e insalubres.
A pobreza e a violência são faces de uma mesma moeda, não por acaso
os setores mais humildes são majoritariamente negros; os bairros mais violentos
de uma cidade geralmente são os mais pobres; os crimes de aferição rápida de
lucro, como os relativos a Lei de Drogas e patrimoniais, são os que mais
encarceram e não por acaso a população carcerária é essencialmente negra. O
sistema penal cumpre de selecionar as condutas consideradas como desviantes
e as pessoas dos setores mais humildes são criminalizadas (ZAFFARONI, 2011,
p.70-76).

INSALUBRIDADE NO CÁRCERE

O princípio da dignidade da pessoa humana é um valor moral e espiritual


intrínseco à pessoa, e mesmo privado de liberdade, é devido ao cidadão um
tratamento respeitoso e humano. Em tese, àquele punido com a privação de
liberdade, permanece com seu status de cidadão, a pena não se estende a perda
da cidadania, mas diante da situação atual de negligência e abandono das
prisões brasileiras, a pena ultrapassa a privação de locomoção e infere na sua
própria dignidade. (GUERRA; EMERIQUE, 2006, p. 385)
A maioria das instituições carcerárias brasileiras não possuem
profissionais e equipamentos adequados para um atendimento farmacêutico,
médico e odontológico de qualidade, em contrariedade com o previsto pela da
Lei da Execução Penal (art. 14, 1984), que garante assistência aos presos com
o objetivo de retorno ao convívio em sociedade.
O adoecimento dos presos é facilitado pela falha governamental em
proporcionar uma condição básica de higiene e alimentação, majorados pelo
estresse do confinamento, o que acarreta em problemas de saúde sistêmica,
bucal e mental (TETZNER et al., 2014, p. 361). Dados de uma pesquisa realizada
no sistema prisional de Campinas, em São Paulo, afirmam a maior prevalência
de pneumonia, tuberculose, hepatites, diarreias, traumas, doenças sexualmente
transmissíveis e doenças mentais, na população carcerária (ASSIS, 2007, p. 75).
Os profissionais acima citados, são os responsáveis pela promoção de
atenção básica de saúde, a fim de prevenir doenças infectocontagiosas,
facilmente propagadas em ambientes de confinamento. O cirurgião-dentista, por
sua vez, além de conscientizar os presos da importância da higiene bucal,
diagnostica precocemente doenças sistêmicas a partir do exame oral, sendo
importante a atuação interdisciplinar da equipe de saúde (TETZNER et al., 2014,
p. 363).
660

Em relação aos dados demográficos da população carcerária brasileira,


há predominância de jovens entre 18 e 28 anos, negros, de camadas sociais
populares e com ensino fundamental incompleto (INFOPEN, 2017, p.32).
Estudos salientam a desigualdade entre brancos e negros ao tratar sobre
assistência médica e sanitária, própria do racismo institucional. Apesar do
descaso sofrido pela população carcerária branca, os negros são atingidos com
maior intensidade, tanto na saúde sistêmica como mental (ORGANIZACIÓN
MUNDIAL DE LA SALUD, 2001, p. 7).
Assim, o racismo institucional, consiste na falha coletiva de uma
organização para oferecer um serviço profissional e adequado em razão da sua
origem étnica, cor ou cultura. Dialoga veementemente com o fracasso na
promoção na saúde da população carcerária negra, por diversos motivos
negligenciada, mesmo com a existência de políticas públicas para promover a
sua inserção no SUS.
Há situações em que o acesso ao atendimento com integralidade e
equidade é negligenciado em ambiente hospitalar, onde o médico se recusa a
examinar ou destrata o paciente, sem atentar-se ao fato da vulnerabilidade da
população negra. Devido ao processo histórico de exclusão social, econômica,
política e cultural, essa população torna-se mais suscetível a diversos tipos de
patologia e deve ser tratada de forma que atenda às suas demandas e
especificidades. (KALCKMANN et al., 2007, p. 151); (BRASIL, 1990).
Na área da saúde, a prática do chamado racismo institucional prejudica
principalmente a população negra e indígena. Nessas populações específicas,
existe uma invisibilidade das doenças mais prevalentes, além da dificuldade de
acesso aos serviços de saúde e a falta de qualidade desses serviços, que
acarretam em uma taxa mais elevada de adoecimento e a mortalidade de negros
do que a da população branca. Acentuada pela situação carcerária que envolve
superlotação das celas, desnutrição, estresse e violência sofrida pelos indivíduos
ali presentes (KALCKMANN et al., 2007, p. 147).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil se emoldura como uma sociedade baseada na democracia racial,


onde não há diferenças entre as raças, mas o corpo negro é constantemente
atirado ao chão vermelho e raramente visto em situações de ascensão ou
prestígio social. Em uma tática eficaz de imobilidade social dos negros, a nação
se sedimentou onde uma minoria tem mantido o monopólio de todas as espécies
de poder.
O genocídio do corpo negro não ocorre apenas quando a lei pune e mata
seu ser e sua cultura, mas também quando não fornece possibilidade de
melhorias de vida ou igualdade material, e um dos principais exemplos desse
extermínio é a abolição da escravidão, que se constituiu em um assassinato
massa gradativo, para posterior tentativa de embranquecimento da nação.
O negro foi omitido das condições mínimas de exercício de cidadania, a
raça foi omitida como censo populacional e sua cultura foi abatida e
criminalizada, em uma investida de negar a autodeterminação e identificação
dos negros Esses, encontram-se situados à míngua do direito, da saúde e das
políticas públicas, são vistos e tidos como os causadores de males, de atraso
social e de criminalidade.
661

A superlotação sufocante, acompanhada pelo abandono estatal,


depreciam as condições para atender as exigências mínimas legais,
principalmente em relação à saúde. Essa situação reflete a manutenção da
apatia em relação às necessidades e direitos dos negros, que foram ignorados
enquanto escravos, cidadãos livres e encarcerados.
Em uma análise penal, o negro e sua cultura são os principais objetos de
repreensão e punição, dentro do cárcere um dos principais problemas
enfrentados é a (in) assistência à saúde. O racismo institucional, a falha de
políticas públicas e atuação do SUS na população carcerária negra possuem
uma íntima relação. Em uma nação tendenciosa, governada por uma minoria
branca, sua maioria, negra, está sujeita à ausência de representatividade,
cidadania e direitos.

REFERÊNCIAS

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João Figueiredo. Brasília: 1984. Disponível em:
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______, Ministerio Publico Federal, Lei n° 8.080, de 19 de Setembro de 1990.


Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da
saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e
dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 09 de out. 2019
662

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02, de 18 de novembro de 2016. Nota técnica referente à imposição de
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Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito


penal brasileiro, volume 1: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011.
664

ESTADO DE INOCÊNCIA EM PAUTA: ANÁLISE DAS DECISÕES JUDICIAIS


DO MARANHÃO NO PERÍODO DE 2016 A 2019.
STATUS OF INNOCENCE IN QUESTION: ANALYSIS OF JUDICIAL
DECISIONS OF MARANHÃO DURING THE PERIOD FROM 2016 TO 2019.

Amanda Passos Ferreira


Orientador(a): Thiago Allisson Cardoso de Jesus

Resumo: A seara do processamento criminal no Brasil é envolta por fragilidades


e dilemas que geram descrédito no referido sistema. Desse modo urge tratar
acerca dos direitos fundamentais que estão descritos como componentes do
núcleo do Estado Democrático de Direito. A pesquisa tem como fito ponderar
acerca do Estado de inocência no contexto das decisões criminais proferidas
pelo TJ/MA, considerando a construção insculpida na Constituição Brasileira de
1988. Tendo em vista que o acusado é um sujeito de direito a quem se deve
assegurar a ampla defesa, o estado de inocência somente pode ser afastado se
houver prova concreta da culpabilidade de um delito, ou seja, com o trânsito em
julgado de uma sentença penal condenatória. Elegeu-se como problema de
pesquisa: Em que medida as decisões proferidas pelo Poder Judiciário no
Maranhão coaduna com a efetivação do Estado de Inocência?
Palavras-chave: Estado de Inocência. Maranhão. Judiciário.

Abstract: The reach of criminal prosecution in Brazil is shrouded for weakness


and dilemmas that generate discredit in that system. Thereby is important to talk
about the fundamental rights that are that are described as components of the
center of Democratic State of Right. The reasearch has as purpose to talk about
the Innocence Status in the context of criminal decisions decided by the TJ/MA,
considering the making writing in the Brazilian Constitution of 1988. Give that
defendant is a bloke of rights to whom must ensure the broad defense, the
innocence status only can be removed if there is concretproofof the guilt of an
offense, in other words, with the res judicata. Chosen as a research issue: To
what extent the decisions decided by the Judiciary Branch in Maranhão coincide
with the effectuation of Innocence Status?
Key-words: Status of Innocence. Maranhão. Judiciary.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição da República prevê como garantia fundamental em seu


artigo 5º tida como cláusula pétrea que “ninguém será considerado culpado até
o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Com base na Convenção
Americana de Direitos Humanos, artigo 8º, promulgada no Brasil pelo decreto
678/92, entende-se que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se
presuma sua inocência”. Nesse sentido, viola-se o estado de inocência quando
o imputado é, inclusive, exposto, publicamente ou tratado como culpado, não
obstante à inexistência do trânsito em julgado. Trata-se de projeto em
andamento financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA.
O objetivo do trabalho é analisar, no contexto das decisões judiciais
criminais do Poder Judiciário Maranhense, os argumentos que reafirmam e os
que restringem o núcleo essencial do Estado de Inocência, perscrutando
665

racionalidades e motivações intrínsecas na construção da decisão judicial em


xeque, verificando incidências pontuais na concessão ou não de medidas
cautelares diversas da prisão, decretação de prisão preventiva, o uso de
linguagem estigmatizante e aplicação dos corolários do estado de inocência.
Com base na sociologia reflexiva em Bourdieu e Foucault, a pesquisa
possui caráter exploratório, de abordagem qualitativa e quantitativa, com uso de
técnicas de pesquisa bibliográfica e documental bem como análise de conteúdo
e do discurso, almejando construir as relações que contribuam para as
discussões do problema delimitado, sendo selecionados julgados criminais dos
últimos 03 (três) anos do Tribunal de Justiça do Maranhão, como recorte
metodológico para fins de pesquisa, e publicização dos resultados parciais, o
presente artigo estrutura-se em duas seções, a primeira tratará acerca das
garantias fundamentais e os parâmetros de contenção do poder punitivo estatal
e a segunda seção, analisará, as decisões judiciais em matéria criminal do
Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (TJ/MA), dos últimos três anos, sob
o prisma da efetividade do Estado de Inocência entendido como regra de
tratamento, considerando os processos hermenêuticos constitutivos dessas
decisões, assim como a afirmação e a mitigação do conteúdo de proteção da
referida garantia.

2. ESTADO DE INOCÊNCIA: ANÁLISE DA HISTORICIDADE DAS


GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA CONTENÇÃO DO PODER PUNITIVO
ESTATAL NO BRASIL.

Acredita-se que o estado de inocência teve seu marco influenciado pelos


ideais iluministas que foram essenciais para a elaboração da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão durante a Revolução Francesa, dado que o
Direito Romano tratava o sujeito em conflito com a lei como inimigo da
sociedade.
Mauricio Zanoide (2010) aduz que o estudo histórico demonstra-se
imprescindível na medida em que por ele se pode examinar, com vagar, institutos
jurídicos, que a despeito de terem sido criados por razões e com finalidades
totalmente diversas de um ideário do estado de inocência, que surge como
“princípio da presunção de inocência”, sendo uma resposta do povo como
refutação às atrocidades praticadas pelo Estado, em que o monarca detinha
poder absoluto e não havia observância de regras processuais, resultado em
prisões arbitrárias e injustas. Conforme os ensinamentos de Michel Foucault
(2010):

As diferentes partes da prova não constituíam outros tantos elementos


neutros; não lhes cabia serem reunidos num feixe único para darem
certeza final da culpa. Cada indício trazia consigo um grau de
abominação. A culpa não começava uma vez reunida todas as provas:
peça por peça, ela era constituída por cada um dos elementos que
permitiam reconhecer um culpado. Assim, uma meia prova não deixava
inocente o suspeito enquanto não fosse completada: fazia dele um
meio culpado; o indício, apenas leve, de um crime grave, marcava
alguém como “um pouco” criminoso. (FOUCAULT, 2002, p. 37)
666

Tal período de barbárie em que vigoravam circunstâncias remotas como:


mentalidade extremamente punitivista, bem como a vingança privada, não havia
espaço para o estado de inocência.
Mais adiante, na Idade Média, os indivíduos podiam ser submetidos a
reprimenda em decorrência da sua má fama, sendo taxados de delinquentes
prováveis, eram sempre considerados suspeitos de crimes como furtos, roubo e
homicídio.
Cesare Beccaria, em sua obra “Dos Delitos e das penas”, abordava o
estado de inocência ao dispor que:

Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do


juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que
ele se convenceu de ter violado os pactos com os quais estivera de
acordo. Qual o direito a não ser o da força, que autoriza a um juiz
aplicar a pena a um homem enquanto não tenha a certeza de que é
culpado ou inocente? (BECCARIA, 2015, p. 38)

Ademais, verifica-se que a grande parte, dos sistemas processuais foi de


certa forma, influenciados pelo Estado Romano, em contraponto, Beccaria
entende que, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se provou.
No primeiro período da história do Brasil, a era colonial, o qual foi marcado
por ações violentas, tais como a usurpação das terras pertencentes aos povos
que aqui já habitavam, foram as Ordenações do Reino de Portugal a introduzir
normas jurídicas a serem aplicadas no Brasil, em que no processo penal
vigorava a presunção da culpa.
Os julgadores da época pautavam-se em meros indícios de autoria para
dar abertura à persecução penal, não se admitindo maior juízo apurativo acerca
da veracidade da acusação, em síntese, existia o delito, apontava-se um culpado
e dava-lhe a sentença.
Em razão da mentalidade extremamente punitiva do período histórico em
voga, acredita-se que o Estado visava corresponder aos anseios sociais e
interesses locais, a fim de garantir ordem nas colônias. A liberdade do acusado
diferente do que a Constituição Brasileira prevê atualmente, era exceção, ou
seja, ao ser dado como autor de algum fato delituoso, o indivíduo era
imediatamente preso, salvo se possuísse uma espécie de título capaz de livrá-lo
da condução ao cárcere, tal título geralmente era fornecido às classes
diretamente ligadas aos Fidalgos.
Ao passo que, a legislação brasileira do período de 1603 a 1916, fora
diretamente influenciada pelas Ordenações Filipinas, que se estenderam para
além do período colonial, em que previa tortura como meio de prova, contudo
ficando a critério do magistrado a sua aplicação, de acordo com o CXXXIII, do
Livro V das Ordenações Filipinas, in verbis:
Dos Tormentos
Não se podem dar certas quando e em que casos o preso deve ser
metido a tormento, porque pode ser contra ele hum só indício, que será
tão grande e tão evidente, que baste isso, convém, a saber, se ele tiver
confessado fora do Juízo, que fez malefício, porque he acusado, ou o
houver contra ellehuma testemunha, que diga que lhovio fazer, ou fama
publica, que proceda de pessoas de autoridade e dignas de fé, ou se
preso se assentou da terra pólo dito malefício, antes que dele fosse
querelado, com outro algum pequeno indicio. E poderão ser contra elle
muitos indícios tão leves e fracos, que todos juntos não bastarão para
667

ser metido a tormento; por tanto, ficará no arbítrio do Julgador, o qual


verá bem, e examinará toda a inquirição dada contra o preso.

Tratando desse momento na história do Brasil, é possível observar a


inexistência de princípios e garantias constitucionais, bem como a total
(in)observância do estado de inocência, tal período fortemente marcado pelo
modelo inquisitório imperava a presunção da culpa do acusado. Além disso, insta
ressaltar que não havia distinção entre órgão julgador e órgão acusador,
misturando-se ambas as funções na figura do Juiz Inquisidor.
Em 1988 com o advento de uma suposta redemocratização do Brasil, a
conhecida, Constituição cidadã, foi considerada a mais democrática e extensa
dentre todas as Constituições brasileiras anteriores. Foram previstas uma série
de garantias, tais como a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, e também princípios, como contraditório
e ampla defesa, a proibição da prova ilícita e a publicidade dos atos processuais,
ocasionando diversos debates acerca de tais garantias.

3. ESTADO DE INOCÊNCIA NA PRÁTICA JUDICIÁRIA DO MARANHÃO:


ANÁLISE DE JULGADOS.

Passa-se à análise dos julgados do TJ/MA, em que foi possível observar


dissonâncias no que se refere a prisão preventiva e a garantia do estado de
inocência, sob o respaldo de “garantir a ordem pública”, segundo o disposto no
art. 319 do Código de Processo Penal, podendo conceder ao julgador, vasta
discrionaridade. É notório que o conteúdo da expressão ordem pública remonta
descompassos com as concepções doutrinárias que versam sobre matéria de
Garantias Fundamentais, em virtude da suposta busca por efetividade do
sistema criminal.
Nessa senda, o Habeas Corpus nº 022621/2016 (número único: 0003858-
30.2016.8.10.0000), não foi acatada a alegação de ausência de motivação da
decisão que decreta a prisão preventiva do crime de roubo, sendo assim,
mantida pelo órgão julgador em sede de segunda instância, sob o fundamento
de que com base em dados concretos o magistrado demonstra a real
necessidade da referida medida. Assim afirma a ementa:
HABEAS CORPUS. ART. 157, § 2º, INCISOS I E II C/C ART. 288,
PARÁGRAFO ÚNICO, AMBOS DO CÓDIGO PENAL. PRISÃO
PREVENTIVA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO.
INOCORRÊNCIA. REQUISITOS PRESENTES. CONDIÇÕES
PESSOAIS FAVORÁVEIS. INSUFICIÊNCIA. AUSÊNCIA DE
CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PEDIDO DE ALTERAÇÃO PARA
CUMPRIMENTO DE PRISÃO PREVENTIVA EM LOCAL PRÓXIMO À
FAMÍLIA. ORDEM DENEGADA.
(TJ-MA – HC: 022621/2016 MA 0003858-30.2016.8.10.0000,
Relator: José Luiz de Oliveira Almeida, Data de Julgamento:
21/06/2016, PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de
Publicação: 21/06/2016 00:00:00)

No caso aludido, o Estado de Inocência foi utilizado como princípio


constitucional, haja vista que a redação da Constituição da República do Brasil
de 1988, em seu artigo 5º inciso LVII, verse de maneira clara acerca do referido
como regra de tratamento, o que não admite o seu sopesamento. É certo que
668

princípios não são meramente absolutos e permitem flexibilizações, porém pode-


se observar que axiologicamente o estado de inocência perpassa o conceito de
princípio e afirma-se como regra de tratamento consubstanciado na concepção
do Estado Democrático de Direito fundamentando-se na dignidade da pessoa
humana, em virtude do estado inerente ao ser humano.
Trata-se pois de garantia do indivíduo de que este irá vigorar durante todo
o processo penal, até o advento de uma decisão penal condenatória, ou seja,
até o trânsito em julgado a redação da Constituição da República de 1988 não
admite que à pessoa em conflito com a lei penal seja imputado o tratamento
como culpado.
Nesse seguimento, entendeu o TJ/MA em julgamento de Habeas Corpus,
nº 56.828/2016, ser incabível a substituição da prisão preventiva por outras
medidas cautelares, pautando-se no que “acredita ser o melhor”, com base no
HC 110.313/MS, Rel. Min. Carmém Lucia. Desse modo, pode-se constatar
incidências pontuais no que diz respeito a não concessão de medidas cautelares
diversas da prisão. Nesse sentido, entendem Lênio Streck e Oliveira:
Vale dizer, de que modo a apresentação de tal argumento reflete uma
condição – até certo ponto – objetiva dos fatos apresentados a
julgamento e, até que ponto, ela apenas reflete uma opção pessoal,
subjetiva-solipsista, do julgador (STRECK e OLIVEIRA, 2012, p. 64.).

Outro caso analisado, a Apelação nº 0320942018 (número único:


0000306-12.2017.8.10.0036) acordão proferido pela PRIMEIRA CÂMARA
CRIMINAL carece de fundamentação em sua completude, haja vista que, o
magistrado limitou-se a proferir argumentos genéricos, soltos com linguagem
estigmatizante para o não provimento do recurso em pauta. Por conseguinte,
resta comprovado o trato indiferente e não garantista no que concerne o
processo criminal acusatório da pessoa humana em conflito com a lei penal.
De outro modo, no HC 002088/2016, o paciente estava preso há quase
dois meses e meio, contudo o parquet ainda não havia apanhado elementos
suficientes para o oferecimento da denúncia, desse modo, entendeu o julgador
que a prisão preventiva foi um instrumento de punição antecipada, em que
causou prejuízo aos princípios e garantias fundamentais de um Estado
Democrático de Direito, como o nosso.
A partir da sistematização de saberes acerca do processo de construção
de decisões judiciais criminais no fito da efetivação e mitigação do Estado de
Inocência, é possível observar que nem sempre o arcabouço jurídico interno de
proteção à pessoa humana é efetivado na íntegra, seja na aplicação ou edição
das normas, para tanto, há um Órgão Jurisidiconal cuja função é salvaguardar
as normas constitucionais.
Contudo o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento do habeas corpus 126.292, de relatoria do Ministro Teori Zavascki,
em que concluiu, por maioria dos votos, que o início da execução da pena
condenatória poderia se dar após a confirmação da sentença pelo segundo grau,
embora inexistisse decisão transitada em julgado. Sendo assim, entende-se que
tal decisão flexibilizou o estado de inocência estando em desconformidade com
o texto expresso no artigo 5º, inciso LVII da Constituição da República de 1988.
Levando em conta a realidade jurídica brasileira o entendimento do STF
gera inúmeros pontos controvertidos, dado que axiologicamente é incompatível
com a Constituição, podendo servir de padrão para outros magistrados.
669

Assim, é necessário pensar o redimensionamento do trato dado pelo


Poder Judiciário Maranhense, assim como formas e propostas para o fomento
de um Observatório de Garantias direcionado ao monitoramento, pesquisa e
análise com fito de contribuir para a melhor atuação do Sistema de Justiça
Criminal do Maranhão.

4. CONCLUSÃO

A Constituição da República de 1988 não abre espaço para ponderações acerca


do estado de inocência, ao destacar que “Ninguém será considerado culpado”
lexicologicamente determina um regramento a ser adotado sem qualquer tipo de
sopesamento no que dispensa o tratamento ao indivíduo em conflito com a lei
penal, em outras palavras a Constituição proíbe integralmente que o Estado trate
alguém como culpado antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.
Portanto sob a ótica técnica jurídica, o estado de inocência deve ser
utilizado como regra de tratamento, prevalecendo sobre a dúvida acerca dos
fatos relevantes para a decisão do processo. O parâmetro é a Constituição,
percebe-se desse modo, uma crise de vínculos, pois não se reconhece esse
parâmetro como centro.
Tendo em vista que o Poder Judiciário é o responsável por interpretar e
julgar as causas segundo a Constituição Brasileira de 1988, diantedos
paradoxos que o integram, analisaram-se, por meio dos julgados, os argumentos
que reafirmam e os que mitigam o núcleo essencial do Estado de Inocênciana
prática judiciária do Maranhão com os dispostos da Constituição, verificando
obscuridades e dissonâncias na (in)efetividade do estado de inocência.
O presente trabalho tem como fito a contribuição para as práticas
judiciárias do Estado do Maranhão, por meio de reflexões e análises, que
constataram diretrizes e lógicas incompatíveis com a axiologia constitucional de
proteção à pessoa humana em conflito com a lei penal.
Nos resultados parciais alcançados, depreende-se que: a) o texto das
decisões proferidas pelo Poder Judiciário do Maranhão, em grande parte não
afirmam o conteúdo do Estado de Inocência; b) verifica-se que há grande
quantidade de decisões, cuja linguagem mitiga os direitos e garantias
fundamentais de um Estado Democrático de Direito; c) a maioria das decisões
flexibilizam o Estado de Inocência, utilizando termos como: “presunção de
inocência” e “presunção de não culpabilidade”, estando em desconformidade
com o texto enunciado no artigo 5º, inciso LVII da Constituição da República de
1988; d) ao tratar do Estado de Inocência como princípio, ao invés de dever de
tratamento é afetado a garantia do indivíduo de que este irá vigorar a seu favor
durante todo o processo penal, até o advento de uma decisão penal
condenatória; e) os julgados, em sua maioria, refletem decisões que fazem
referência aos entendimentos do STJ e do STF, o que prejudica a
individualização do processamento criminal; f) o ativismo judicial influencia a
atividade interpretativa do órgão julgador, gerando ampla discricionariedade.

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670

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672

ESTUDO CRÍTICO ACERCA DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/2006 À LUZ DA


TEORIA DA PROTEÇÃO DO BEM JURÍDICO PENAL
CRITICAL STUDY ABOUT ARTICLE 28 OF LAW 11.343/2006 IN THE LIGHT
OF THE THEORY OF CRIMINAL WELL LEGAL

Fernanda Souza Freitas de Siqueira

Resumo: Na construção da dogmática penal contemporânea, mais


especificamente após a Constituição Brasileira de 1988, é evidente que a teoria
da proteção do bem jurídico é premissa lógica. O bem jurídico penal tem a função
político-criminal de delimitar o objeto da tutela penal legitimando o ius puniendi.
Tal instituto, no entanto, traz consigo a seguinte problemática: como fixar
concretamente o critério para seleção dos bens jurídicos, considerando que
esses variam de acordo com a sociedade que os circunscrevem. Alguns autores
tentam trazer uma solução que viabilize a aplicação da teoria da proteção do
bem jurídico penal na prática. Numa orientação restritiva e preventiva da
aplicação do bem jurídico penal, cabe questionar, analisando criticamente, a
existência do art. 28 da Lei de Tóxicos, posse de substância entorpecente para
consumo, como objeto da tutela penal.
Palavras-chaves: Tóxicos. Posse. Bem jurídico.

Summary: In the construction of contemporary penal dogmatics, more


specifically after the Brazilian Constitution of 1988, it is evident that the theory of
protection of the juridic good is a logical premise. The criminal juridical good has
the political-criminal function of delimiting the object of the criminal tutelage
legitimizing the jus puniendi. Such an institute, however, brings with it the
following problem: how to concretely fix the criterion for the selection of juridic
goods, considering that these vary according to the society that surrounds them.
Some authors try to bring a solution that makes it possible to apply the theory of
protection of the criminal juridic good in practice. In a restrictive and preventive
orientation of the application of the criminal juridic good, it is worth questioning,
critically analyzing, the existence of art. 28 of the Toxic Act, possession of
narcotic substance, as object of the criminal tutelage.
Keywords: Toxic. Possession. Juridic Good.

INTRODUÇÃO

Em eras pretéritas, o delito era sinônimo de pecado, desobediência à


vontade divina, uma vez que a sociedade era direcionada pelos mandamentos
religiosos, majoritariamente da Igreja Católica. O movimento iluminista, por sua
vez, quebra com essa “eticização” do Direito, determinando o delito como
violação do contrato social.
Ulteriormente, o Direito Penal Moderno, alicerçado no movimento da
Ilustração, aprimorou o conceito de delito como conduta que transgride direito
alheio proibida em lei penal, ou seja, delito seria a ação contrária ao direito do
outro. Destaca-se nesse momento então, século XIX, a seguinte tese de
condição de existência para tal transgressão: para justificar a repressão seria
necessário que essa tivesse relevância para a conservação do bem-estar social.
Nesse panorama, erige a doutrina do bem jurídico que postula a
necessidade de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico para configurar crime.
673

Na atualidade, tal teoria praticamente não encontra oposição, de forma que será
aqui abordada como axioma do Direito Penal Moderno.
Diante do objetivo evidenciado pelo princípio da exclusiva proteção de
bens jurídicos – buscar afastar do âmbito penal condutas apenas moralmente
reprováveis ou contrárias à mandamentos religiosos – cabe discutir a existência
de alguns tipos legais como legítimas ofensas a bens jurídicos.
Um desses tipos legais discutíveis é o artigo 28 da Lei 11.343/2006 (Lei
de Tóxicos), posse de substância entorpecente para consumo pessoal, que será
objeto de análise do presente resumo expandido.

DESENVOLVIMENTO

Durante grande parte da história humana, inclusive ainda na


contemporaneidade busca-se um conceito de delito que supra a necessidade de
efetividade que o Direito Penal exige. Por muitos séculos, tal conceito se viu
atrelado diretamente à concepções moralistas e religiosas, relação que, perante
o ideal de justiça, se mostrou extremamente falha. Com a evolução do
pensamento humano, principalmente pós-Iluminismo, surgiu um conceito, que
até o presente momento, se mostra um tanto eficaz na construção de um Direito
Penal mais objetivo. As primeiras considerações acerca do conceito de bem
jurídico já haviam sido levantadas por Birnbaum ainda no século XIX. No entanto,
a acepção de bem jurídico, como utilizada hodiernamente, ganhou destaque com
a teoria de Claus Roxin. O conceito de bem jurídico trazido por esse autor teve
o intuito de impor um limite à criminalização de comportamentos considerados
imorais ou contrários aos valores políticos e religiosos, restringindo o âmbito de
atuação do legislador e impondo um objetivo de proteção de bens jurídicos para
legitimar o tipo penal (ROXIN, 2013, p. 23). À luz da teoria de Roxin, o Direito
Penal tem como missão a tutela de bens jurídicos de forma a garantir à
sociedade condições necessárias para um desenvolvimento livre e pacífico,
sendo imprescindível ressaltar, no entanto, que tal tutela apenas se mostra
legítima quando outro ramo do ordenamento jurídico não for suficiente para
realizá-la. A aplicação da teoria do bem jurídico afasta o legislador penal de
arbitrariedades e de influências das próprias concepções de moralidade, isto é,
o bem jurídico desvincula o Direito Penal de influências transjurídicas. Com
identidade de raciocínio, Luiz Regis Prado (2019, p. 107) indica que: “a missão
imediata e primordial do Direito Penal reside na proteção de bens jurídicos
oriundos da realidade social, em sintonia com o quadro axiológico constitucional
ou decorrente da concepção de Estado democrático de Direito”. O conceito de
bem jurídico se encontra no limiar entre a política criminal e a dogmática do
Direito Penal como ponto de união, uma vez que a seletividade dos bem jurídicos
penais decorre de certa orientação político-criminal.
No contexto brasileiro, a Constituição Federal de 1988 favorece uma visão
garantista em detrimento da antiga visão punitivista, exemplo claro disso é o
extenso rol de direitos e garantias fundamentais presentes na mesma. Ao
encontro dos preceitos constitucionais, estão os princípios penais, que
constituem o eixo da matéria penal, alicerçando o conceito de delito e
delimitando o ius puniendi. Tais princípios penais, conforme descreve Prado
(2019, p. 95-96) servem de salvaguarda das liberdades e direitos fundamentais
do indivíduo, e ainda afirma que “para selecionar o que no contexto social deve
ou não merecer a proteção da lei penal, e proceder à sua configuração (bem
674

jurídico), o legislador ordinário deve necessariamente se referir aos princípios


penais de natureza constitucional”.
No desígnio de analisar criticamente o art. 28 da Lei 11.343/2006, que
criminaliza a posse de substância entorpecente para consumo pessoal,
intentando obter uma resposta quanto à legitimidade ou não do (suposto) bem
jurídico tutelado em tal dispositivo legal, cabe destacar alguns princípios penais-
constitucionais que se mostram mais relevantes para a análise proposta.
O princípio penal- constitucional da exclusiva proteção de bens jurídicos
resguarda a, já explicitada anteriormente, missão do Direito Penal moderno.
Abrangendo a noção de lesividade (nullun crimen sine injuria), o princípio em tela
determina como pressuposto fundamental para concepção de delito a lesão ou
perigo de lesão a determinado bem jurídico. No tipo penal em análise, defende-
se como bem jurídico tutelado a saúde pública. No entanto, a tese de que a
posse para consumo pessoal afeta a saúde pública abstratamente já encontra o
primeiro óbice na impossibilidade de constatação empírica, uma vez que não
apresenta comprovação, isto é, estudos que demonstrem faticamente que o uso
pessoal de entorpecente gera aumento de gastos à saúde pública. Ademais,
ainda que gere os ditos gastos prejudicando a saúde da coletividade
indiretamente, tanto quanto, ou ainda mais – segundo estudos – álcool e tabaco
geram, e não obstante, não são criminalizadas a sua posse. Em ambos, a
abordagem é apenas de alerta e conscientização da população ao invés de
criminalização da conduta. Numa última consideração, ainda que se entenda a
acepção de saúde pública como o conjunto das saúdes individuais, a lesão
resultante da conduta tem por objeto a própria saúde do agente, ou seja, a ação
se configura como uma auto lesão não sendo, portanto, digna da tutela penal.
Os dois últimos argumentos aqui abordados remetem aos seguintes
princípios penais-constitucionais: intervenção mínima (e assim, o seu corolário,
fragmentariedade) e alteridade, respectivamente. O princípio da alteridade
determina que o Direito Penal não pune ações que não extrapolam a esfera
individual do próprio agente, ou seja, que não causam danos a terceiros,
justificando a impossibilidade da criminalização de conduta prejudicial apenas ao
próprio agente, exemplo disso no ordenamento jurídico é o fato daquele que
instiga ou auxilia o suicídio é punido, mas o próprio agente que tenta se suicidar
não. Por sua vez, o princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade limita
a atuação do Direito Penal à tutela de bem jurídico legítimo, aquele que não pode
ser protegido de forma menos gravosa. Pelo fato do ramo do Direito em questão
impor restrições mais sérias à direitos fundamentais, ele deve funcionar como a
ultima ratio. Esse princípio penal-constitucional em particular representa uma
prova clara da orientação político-criminal preventiva e restritiva do ius puniendi,
decorrência lógica da definição material de Estado democrático de Direito. O
princípio da fragmentariedade é corolário da intervenção mínima, corroborando
para uma tutela seletiva dos bens jurídicos, assim, só devem ser objetos da tutela
penal ações ou omissões mais gravosas realizadas contra bens valiosos. A
renúncia a uma análise seletiva dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito
Penal implica a perda de um referencial crítico na atividade legislativa.
O conjunto axiológico aqui apresentado configura um limite necessário
para evitar um totalitarismo de tutela que acaba por ferir as liberdades
individuais. De acordo com Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 26, apud
ANDRADE, 2017) “essas liberdades constitucionais individuais devem ser objeto
675

da maior garantia positiva como critério de criminalização e, inversamente, da


menor limitação negativa como objeto de criminalização por parte do Estado”.
Há ainda quem defenda que o dispositivo legal em tela objetiva evitar a
circulação de entorpecentes, no entanto esse mesmo evidencia o propósito da
posse de entorpecente como exclusivamente para consumo pessoal, de forma
que as ações que realmente implicam na circulação da droga (tráfico,
fornecimento ainda que gratuito, entre outras) já se encontram tipificadas em
outros artigos da referida lei. A expansividade do perigo nesse caso é
incompatível com a destinação individual.
Por fim, o que se parece, após analisar o panorama do art. 28 da Lei
11.343/2006, é confundir o papel do Direito Penal – garantir a pacífica ordem
externa da sociedade – com o papel de educação moral, o que não é legitimo
nem adequado. Como consequência de tal confusão, o Direito Penal converte-
se em um sistema de gestão primária dos problemas sociais se
desnaturalizando. Nesse sentido afirma Serra (2018):

O processo de difusão da insegurança subjetiva em relação aos riscos,


levado a cabo pela midiatização e publicização daqueles, é apontado
por Jesús María Silva Sánchez como um fator fundamental para o
direcionamento das expectativas e do clamor público em direção do
Direito Penal (a causar sua intensiva expansão), de modo a ao menos
reduzir esse sentimento de insegurança na sociedade. [8]Esse
movimento de expansão é denunciado criticamente por grande parte
da doutrina, já que, como consequência direta, em primeiro lugar,
marca o abandono, pela política criminal moderna, da perspectiva
liberal, garantista, que caracterizava o Direito Penal clássico, o qual se
restringia apenas à defesa do chamado “mínimo ético”, para agora
inchar-se de modo a também tutelar muitos interesses vagos.

CONCLUSÃO

O conceito de bem jurídico, na dogmática penal moderna, se apresenta


como conceito central do tipo, o fundamento principal e inicial do tipo penal.
Assim, a ilegitimidade desse tem consequência idêntica a não existência de um
bem jurídico a ser tutelado, visto que pelo próprio conceito é algo digno e assim
legítimo da tutela penal
A partir da análise crítica realizada acerca do art. 28 da Lei 11.343/2006
à luz da teoria do bem jurídico, conclui-se que tal criminalização pune a mera
desobediência à lei formal, sendo a ação em si inócua. Isso, pois, após a
explanação acerca dos princípios penais-constitucionais, entende-se como
pressuposto do Direito Penal moderno que não se pode punir o agente por
condutas que aos olhos de outrem constitua mera imoralidade, principalmente
devido à natureza do próprio ramo do Direito em questão, que configura uma
ferramenta causadora de transtornos irreversíveis.
A descriminalização da conduta em análise possibilita estudar, e assim,
aplicar políticas públicas mais eficientes para controlar o uso de substâncias
psicoativas. Uma vez que, ainda que diante de uma lesão a bem jurídico, pela
característica fundamental ultima ratio do Direito Penal, faz-se imprescindível
analisar a possibilidade de tal ação lesiva já não poder ser contida por um ramo
do Direito menos gravoso à liberdade. Nesse sentido, sugere-se, no lugar da
criminalização, uma política pública de conscientização da população dos riscos
do uso de entorpecentes. Cabe aqui ressaltar o dito por Luiz Regis Prado (2019,
676

p. 109): “O uso excessivo da sanção criminal (inflação penal) não garante uma
maior proteção de bens; ao contrário, condena o sistema penal a uma função
meramente simbólica negativa”
Diante do exposto, Beccaria (1765, p. 127, apud PRADO, 2019, p. 107-
108) sintetiza:

é melhor prevenir os crimes, que puní-los. (...) O proibir uma enorme


quantidade de ações diferentes não é prevenir os crimes que delas
possam resultar, mas criar outros novos: é decidir por capricho, a
virtude e o vício, que nos são ensinado como eternos e imutáveis

E, ainda:

As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da


salvação pública são, por sua própria natureza, injusta; e tanto mais
justas são as penas, quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e
a maior liberdade que o soberano conserva para os seus súditos

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Dark Blacker de. Análise crítica e dogmática do art. 28 da lei nº


11.343 de 2006. 2017. Disponível em:
<conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49089/analise-critica-e-dogmatica-
do-artigo-28-da-lei-n-11-343-de-2006>, Acesso em: 10 out. 2019

PAIVA, Guilherme. A natureza jurídica da conduta incerta no art. 28 da lei


de drogas: apontamentos acerca dos institutos de despenalização e
descriminalização. 2015. Disponível em:
<https://gmacau.jusbrasil.com.br/artigos/246913624/a-natureza-juridica-da-
conduta-incerta-no-art-28-da-lei-de-drogas>, Acesso em: 10 out. 2019

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e constituição. 8 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019.

ROXIN, Claus. Novos estudos de direito penal. Organização Alaor Leite.


Tradução de Luís Greco et alii. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Disponível em:
<http://www.marcialpons.com.br/wp-content/uploads/2014/08/L-37_tira-
gosto_Novos-estudos-de-direito-penal_Claus-Roxin.pdf>, Acesso em: 10 out.
2019

SERRA, Carlos Eduardo da Silva. Bem jurídico: uma reflexão sobre seu papel
como limite à legitimidade da intervenção penal no âmbito da “sociedade do
risco”. Revista Liberdades, ed. 25, p. 51-64, jan.-jun. 2018. Disponível em:
<http://www.revistaliberdades.org.br/_upload/pdf/30/EscolasPenais1.pdf>,
Acesso em: 10 out. 2019.
677

ESTUPRO VIRTUAL: UM CIBERCRIME QUE PROTEGE A DIGNIDADE


SEXUAL
VIRTUAL RAPE: A CYBERCRIME THAT PROTECTS SEXUAL DIGNITY

Renata de Andrade Pereira


Orientador(a): Ronaldo Alves Marinho da Silva

Resumo: O crescimento frenético da internet e da utilização de redes sociais


vêm influenciando as relações modernas e acarretando transformações no
âmbito do Direito. A Lei 12.015/2009 ocasionou mudanças no texto do delito de
Estupro, alterando a descrição típica do artigo 213 do Código Penal Brasileiro, o
que permitiu uma análise extensiva da conduta ilícita. Com isso, passa-se a
verificar a viabilidade jurídica da tipificação do crime de Estupro Virtual, foco
principal deste artigo, onde não há a obrigatoriedade do contato físico para a
consumação do crime. Para abordar esse tema, esse trabalho objetiva
compreender e descrever a importância desta temática frente ao ordenamento
jurídico, em face da comunicação de fatos delituosos praticados no ambiente
online, mediante constrangimento ilegal, que afetam a vida e a liberdade sexual
das vítimas. Para alcançar os objetivos delineados para a pesquisa, foram
utilizados revisão bibliográfica e legislativa, com consultas a obras fundamentais
e artigos científicos.
Palavras-chave: Estupro. Crime cibernético. Alteração legislativa.

Abstract: The frenetic growth of the internet and the use of social networks have
been influencing the modern relations and causing transformations in the scope
of the Law. Law 12.015 / 2009 caused changes in the text of the Rape offense,
altering the typical description of article 213 of the Brazilian Penal Code, which
allowed an extensive analysis of illicit conduct. With this, it is possible to verify
the legal viability of the typification of the crime of Virtual Rape, the main focus of
this article, where there is no obligation of physical contact for the consummation
of the crime. To address this theme, this paper aims to understand and describe
the importance of this theme in relation to the legal system, in view of the
communication of criminal acts practiced in the online environment, through
illegal embarrassment, which affect the lives and sexual freedom of victims. To
achieve the objectives outlined for the research, a bibliographic and legislative
review were used, with consultations to fundamental works and scientific articles.
Keywords: Rape. Cybercrime. Legislative change.

INTRODUÇÃO

O reconhecimento e a proteção da dignidade do ser humano pelo Direito


é resultado da evolução do pensamento da sociedade1. Desta forma, se faz
necessário, por meio do Estado Democrático de Direito, resguardar a dignidade
de todos os seus cidadãos e cidadãs, inclusive a dignidade sexual. A intervenção
penal no âmbito da sexualidade tem sua existência baseada na proteção do
direito de todo ser humano de ter ou não ter relações sexuais com quem quiser,
como quiser e quando quiser. Consequentemente, os crimes sexuais, ainda que

1LEMISZ, Ivone Ballao. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana. DireitoNet, 2010.


Disponível em: <encurtador.com.br/gwJRS>. Acesso em: 10 jul. 2019.
678

praticados em meios virtuais, devem ser punidos visto que são condutas que
importam numa grave violação à liberdade de autodeterminação sexual de
outrem.
O crescimento exponencial de usuários na rede mundial de computadores
(web) trouxe consigo um número cada vez maior de indivíduos que se utilizam
desse meio para a prática de condutas ilícitas, que pelo meio empregado passou
a ser definido pela doutrina como crimes virtuais ou cibernéticos. Estes crimes
são condutas tradicionais ou novos tipos penais que violam bens jurídicos,
causam prejuízos econômicos, sociais e etc., e que necessitam da adequação
do Direito para enfrentar essa nova realidade, aí incluída a proteção da liberdade
sexual no âmbito virtual.
O conceito do crime de estupro foi ampliado com o passar do tempo,
inicialmente limitado a prática do coito vagínico, tendo a mulher como vítima,
após a reforma legislativa da Lei 12.015/2009 passou a incluir a prática, mediante
constrangimento ou grave ameaça, de qualquer ato libidinoso, incorporando o
tipo penal de Atentado violento ao pudor e identificado que a vítima tanto pode
ser a mulher, quanto o homem. Além disso, a nova legislação renomeou o título
que antes era dos crimes contra os costumes e passou a ser dos crimes contra
a dignidade sexual, demonstrando que a proteção não se direcionava a honra
ou aos bons costumes, mas ao direito inerente a personalidade humana, a sua
dignidade no aspecto sexual.
Ademais, o estupro sempre teve identificação como um crime de gênero,
onde a violência e a objetificação da mulher se encontravam presentes, visto o
histórico de uma sociedade patriarcal e machista. Apesar de incorporar como
sujeito passivo do crime o homem, as vítimas em sua quase totalidade ainda são
as mulheres, seguindo com nítida característica de violência de gênero. Segundo
pesquisa realizada pelo IPEA, 88,5% das vítimas de estupro no Brasil são do
sexo feminino (CERQUEIRA; COELHO, 2014).
Atualmente, após a nova redação, considera-se estupro: “Constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal ou a praticar
ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” 2. Portanto, com a nova
descrição da conduta típica, houve uma ampliação no âmbito da proteção das
vítimas, além do crime não englobar mais apenas a conjunção carnal. Neste
mesmo sentido, a satisfação sexual do autor pode advir da coação para que a
sua vítima pratique ou permita que se pratique com ela qualquer ato libidinoso.
A partir disso, a mudança no texto da lei conduziu a interpretação da
prática do crime de estupro sem necessariamente existir o contato físico do autor
do constrangimento ou de terceiro com a vítima, bastando que a vítima realize
qualquer ato libidinoso, inclusive nela mesma, mediante constrangimento
praticado por violência ou ameaças, o que conduziu a doutrina e jurisprudência
pátria a denominar tais condutas praticadas por meio virtual de “estupro virtual”,
onde o ambiente virtual é um elemento essencial. Rogério Greco, em sintonia
com a doutrina majoritária sobre o tema, explana:

Entendemos não ser necessário o contato físico entre o agente


e a vítima para efeitos de reconhecimento do delito de estupro,
quando a conduta do agente for dirigida no sentido de fazer com
que a própria vítima pratique o ato libidinoso, a exemplo do que

2 BRASIL. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em:


<encurtador.com.br/dnsU9> Acesso em: 06 jul. 2019.
679

ocorre quando o agente, mediante grave ameaça, a obriga a se


masturbar.3

Em vista disso, a presente pesquisa tem o objetivo geral de analisar e


refletir acerca deste novo alcance na definição do crime de estupro, diante de
um ambiente virtual que se encontra extremamente presente na realidade,
pretendendo, assim, trazer um conhecimento maior sobre esse tema,
esclarecendo algumas informações a respeito de como este crime pode se
consumar. Nesse sentido, o escopo dessa pesquisa é, principalmente, trazer à
tona as mudanças determinadas pela Lei 12.015/2009 em relação ao artigo 213
do Código Penal.

BREVE ANÁLISE DA CONDUTA ILÍCITA

Antecipadamente, o que se fica esclarecido é que o “estupro virtual” é um


crime bastante real, que vitimiza diversas mulheres na atualidade, porém a
grande maioria não possui a ciência de que situações como estas são tipificadas
como crime de estupro, uma vez que esse entendimento é recente e possui
posições contrárias. De acordo com o IPEA, apenas 10% dos casos de estupro
no país chegam ao conhecimento da autoridade pública, uma taxa alarmante de
subnotificação que apresenta um desafio a ser enfrentado por políticas públicas
adequadas (CERQUEIRA; COELHO, 2014).
Preliminarmente, cabe ressaltar que não há expressamente a figura deste
delito na letra da lei. A redação do artigo 213 não menciona o termo “estupro
virtual”, mas os casos que se encaixam neste delito relacionam-se com os
seguintes trechos: “constranger alguém, mediante violência” e “praticar ou
permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Quando se fala de violência
nestas circunstâncias, trata-se da violência moral, aquela que causa danos ao
psíquico da vítima, visto que a mesma sofre inúmeras ameaças, consideradas
como coação moral irresistível, a fim de forçá-la a fazer o que o criminoso deseja.
Já em relação ao ato libidinoso, Fernando Capez compreende que seja “outra
forma de realização do ato sexual, que não a conjunção carnal”4, afirmando ser
o ato destinado a lascívia, o apetite sexual. Nos casos em que a vítima for
vulnerável, o agente responderá pelo crime do artigo 217-A do Código Penal.
É implícito ao crime de estupro que não haja o consentimento da vítima,
dessa maneira, no caso do estupro virtual é indispensável verificar o grau de
resistência da mesma, sendo necessário constatar que a vítima não queira, por
livre e espontânea vontade, praticar determinadas atividades libidinosas,
somente cedendo em razão das chantagens e do constrangimento. Por essa
razão, nesses casos, é fundamental analisar se houve ou não o consenso da
vítima em relação aos atos sexuais praticados, analisando com muita cautela o
teor das provas apreendidas.

A IMPORTÂNCIA DO AMBIENTE VIRTUAL

3GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte especial. v. 3. 13. ed. Niterói: Impetus, 2016. p.
48.
4 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. v. 3. 16 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
680

Neste tipo de crime, como já foi citado, o âmbito virtual é a peça chave.
Apesar da vítima e o autor se encontrarem geograficamente separados, a
internet, através das redes sociais, tem o poder de facilmente simular uma
proximidade, é como se estivessem fisicamente juntos. Nesse quesito, há uma
maior facilidade no momento de se comprovar todo o constrangimento e grave
ameaça que tipificam o crime, uma vez que o meio probatório será tudo aquilo
que estiver registrado nos endereços IP dos dispositivos eletrônicos
apreendidos, por exemplo, fotos, mensagens e filmagens. Desta forma, as
provas deste crime são muito mais acessíveis do que às provas do estupro
presencial.
Em geral, as vítimas são ameaçadas com a divulgação de imagens ou
vídeos íntimos, sendo estas, a munição do crime. O ofensor exige que a vítima
pratique atos libidinosos para que ele não exponha suas fotos íntimas, ou seja,
estes atos são desenvolvidos mediante grave ameaça, com o objetivo de
satisfazer um desejo sexual do autor, tudo por meio do ambiente virtual.
Nesse sentido, as mulheres têm medo de denunciar situações como estas
por conta do desconhecimento, pelos vários aspectos de suas vidas que são
afetados, pelo fato da sua imagem poder ser comprometida, com danos a sua
autoestima, suas relações pessoais e trabalho. Logo, as vítimas se encontram
em um labirinto de chantagens, onde o ofensor possui um domínio psicológico
sobre elas, demonstrando que não precisa haver, necessariamente, o contato
físico para tipificar a infração.

O NOVO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL PÁTRIO

A primeira prisão de um acusado pelo crime de “estupro virtual” no Brasil


ocorreu no Piauí, em 2017, no qual o autor, através de um perfil falso na rede
social Facebook, ameaçava exibir imagens íntimas da vítima, exigindo desta o
envio de novas fotos despida e até mesmo a introdução de objetos em suas
regiões íntimas. Embora neste caso não tenha ocorrido o contato físico, o juiz,
em sintonia com a mais moderna doutrina, entendeu que ocorreu o crime de
“estupro virtual”, pois a ofendida foi obrigada a praticar ato libidinoso em si
mesma, mediante coação moral irresistível5.
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS)
decidiu também de forma inédita, em dezembro de 2018, pela condenação de
um estudante de medicina a quatorze anos, dois meses e onze dias de prisão
por “estupro virtual de vulnerável” e por armazenar imagens pornográficas de
crianças ou adolescentes. Neste caso, de acordo com o Ministério Público do
Rio Grande do Sul (MPRS), o pai da vítima - um menino de dez anos de idade –
descobriu que mensagens estavam sendo trocadas por este com o sujeito e,
assim, levou o caso ao conhecimento da Polícia Civil. Então, a corporação
passou a investigar e rastear as conversas, identificando o autor como sendo um
universitário da capital gaúcha.
O promotor que ofereceu a denúncia ao tribunal entende que se trata de
um caso “sem precedentes, cuja análise permeia a tutela da dignidade sexual de
uma criança em sintonia com a evolução legislativa convencional, constitucional

5 ROMERO, Maria. Homem ameaça divulgar nudes e é preso por “estupro virtual” em Teresina.
G1 PI. 04 ago.2017. Disponível em: <encurtador.com.br/DPQ02> Acesso em: 08 jul. 2019.
681

e infraconstitucional destinada a sua proteção integral e com as exigências


impostas nas inovações ético-jurídicas da pós-modernidade”6.
Estas decisões serviram para reforçar para a sociedade que a internet não
é uma “terra sem leis” e que os delitos cometidos em ambientes virtuais serão
investigados e seus autores serão punidos. Além disso, muitas mulheres ainda
têm medo de denunciar, sendo assim, os casos relatados acima e a prisão dos
criminosos responsáveis servem de alerta para que novas vítimas que se
encontrem ou possam se encontrar em situações parecidas passem por cima do
seu sentimento de vergonha e impunidade e denunciem, afinal, diferentemente
do estupro físico, este crime deixa facilmente vestígios tornando mais fácil a
investigação e identificação do(s) autor(es).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O avanço da tecnologia e o crescimento exponencial dos usuários na


internet e nas redes sociais vem revolucionando as relações humanas, e com
isso, gerando a necessidade do Direito se adaptar a essa nova realidade. O
ambiente virtual pode trazer muitos benefícios à população porém também
possui o seu lado negativo uma vez que se tornou um meio de cometimento de
condutas criminosas onde os agentes buscam se esconder por trás das redes.
Nesse cenário, surgem os crimes virtuais e dentre eles encontra-se a
conduta analisada no presente artigo. Logo, diante do exposto, nota-se ser de
extrema importância a população possuir o conhecimento de que o estupro
virtual é uma conduta criminosa gravíssima. Entendendo o legislador que não
precisa haver necessariamente a violência física para se consumar este crime,
ele pode, sim, acontecer no âmbito virtual. Através desta pesquisa, entende-se
que há base legal e fundamentos jurídicos para a aplicação do entendimento da
maioria da doutrina reconhecendo a aplicação e a tipificação do crime de estupro
virtual.
Sendo assim, torna-se clara a necessidade de se haver a propagação de
debates, ativismos e políticas públicas no sentido de levar à sociedade um
conhecimento mais aprofundado sobre esta temática, que ainda é pouco
debatida. Além da demanda de reforçar a importância da denúncia em casos
como esse, para que cada vez mais estes criminosos, que se escondem por trás
do anonimato e das artimanhas das redes sociais, sejam identificados e
responsabilizados penalmente.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 9 ed. São Paulo:


Saraiva, 2015.

BOND, Letícia. Justiça gaúcha condena estudante por "estupro virtual de


vulnerável". Agência Brasil, 2018. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2018-12/justica-gaucha-
condena-estudante-por-estupro-virtual-de-vulneravel>. Acesso em: 15 jul.2019.

6 BOND, Letícia. Justiça gaúcha condena estudante por "estupro virtual de vulnerável". Agência
Brasil, 2018. Disponível em: <encurtador.com.br/djmpG>. Acesso em: 17 jul.2019.
682

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/Del2848compilado.htm> Acesso em: 06 jul. 2019.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília. 2016. Disponível em:
<https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_08.09.2016/CON
1988.pdf.> Acesso em: 14 ago. 2019.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 3, parte especial: arts. 213
a 359-H. 16 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

CARAMIGO, Denis. Estupro virtual: um crime real. Canal Ciências Criminais,


2016. Disponível em:
<https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/323390332/estupro-
virtual-um-crime-real > Acesso em: 18 mai.2019.

CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma


radiografia segundo os dados da Saúde. Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas. 2014. Disponível em: encurtador.com.br/wDGMT. Acesso em: 16
set.2019.

Estupro virtual, em que vítimas são ameaçadas com divulgação de imagens


íntimas cresce. G1, 2018. Disponível em:<encurtador.com.br/iwFKQ>Acesso
em 18 mai. 2019.

FERREIRA, Sabryna. O que é estupro virtual?. Jusbrasil, 2018. Disponível


em:<https://posocco.jusbrasil.com.br/noticias/497174996/o-que-e-estupro-
virtual.>Acesso em mai.2019.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte especial. 13. ed. Niterói:
Impetus, 2016.

JÚNIOR, Marivaldo Moreira de Santana. Estupro virtual: entenda o crime.


Dubbio, 2018. Disponível em: <https://www.dubbio.com.br/artigo/654-estupro-
virtual-entenda-o-crime.> Acesso em 10 jul.2019.

LEMISZ, Ivone Ballao. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana.


DireitoNet, 2010. Disponível em:
<https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5649/O-principio-da-dignidade-da-
pessoa-humana>. Acesso em: 10 jul. 2019.

QUEIROZ, Paulo. Crimes contra a Honra e contra a Dignidade sexual. São


Paulo: Juspodivm, 2019.
683

Grupo de Trabalho:

DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E


PROCESSO PENAL II
Trabalhos publicados:

GRAVIDEZ NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

INDIVÍDUOS LGBT NO SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL E A


OPORTUNIDADE DE FRUIÇÃO DO DIREITO AO TRABALHO

JUSTIÇA RESTAURATIVA E AS DIMENSÕES SUBJETIVAS DE UMA


INFRAÇÃO PENAL: UMA ANÁLISE ACERCA DOS LIMITES E
POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.

JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO CAMINHO PARA A SOLUÇÃO DOS


CONFLITOS CRIMINAIS?

LIMITAÇÕES AO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS PREVISTO


NO ARTIGO 5º, XXXVIII, “C” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O JUIZ DAS GARANTIAS COMO MEIO DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA


IMPARCIALIDADE NO PROCESSO PENAL

O MÉTODO APAC À LUZ DA LAICIDADE ESTATAL E DO DIREITO À


LIBERDADE RELIGIOSA DO CONDENADO

O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A IMPORTÂNCIA DA CRIMINOLOGIA

PRECEDENTES HISTÓRICOS DA REPRESSÃO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO

REFLEXÕES ACERCA DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E O DILEMA DA


DIGNIDADE SEXUAL

SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO:


A REALIDADE DA MULHER ENCARCERADA.
684

GRAVIDEZ NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO


PREGNANCY IN THE BRAZILIAN PRISION SYSTEM

Júlia Maganha
Orientador(a): Guilherme Aparecido da Rocha

Resumo: Verificando a situação atual do sistema penitenciário brasileiro, que


encontra-se em crise devido à superlotação, falta de recursos, também à
desigualdade entre os encarcerados e o desrespeito aos Direitos Humanos, o
trabalho pretende demonstrar os deveres do Estado em relação às condições
das prisões femininas, a fim da mãe permanecer com seu filho e as condições
básicas necessárias da gestante. Objetiva-se demonstrar que, mesmo presa, a
mãe é uma mulher de direitos. Conclui-se que a falta de espaço não é causa
única do comprometimento da estrutura das penitenciárias femininas; a falta de
preparo dos servidores, de aplicação dos recursos, também o não cumprimento
dos direitos das detentas, são outros fatores que corroboram com a deterioração
do sistema carcerário. O método de pesquisa adotado é o hipotético-dedutivo.
Na pesquisa, legislações nacionais e internacionais foram consultadas e
interpretadas, abordando o tema central.
Palavras-chave: Sistema prisional. Gestantes. Execução penal.

Abstract: Verifying the current situation of the Brazilian penitentiary system,


which is in crisis due to overcrowding, lack of resources, and also the inequality
between the incarcerated and the disrespect for human rights, the work aims to
demonstrate the duties of the state in relation to prison conditions. female, in
order for the mother to stay with her child and the necessary basic conditions of
the pregnant woman. The objective is to demonstrate that, even when arrested,
the mother is a woman of rights. It is concluded that the lack of space is not the
only cause of the impairment of the structure of the female prisons; The lack of
preparation of the servers, the application of resources, and the non-compliance
with the rights of detainees are other factors that corroborate the deterioration of
the prison system. The research method adopted is the hypothetical-deductive.
In the research, national and international legislations were consulted and
interpreted, addressing the central theme.
Keywords: Prision system. Pregnant. Penal execution.

INTRODUÇÃO

O Brasil, que possui a terceira maior população carcerária do mundo, tem


complicações com a situação carcerária, mas este problema é demonstrado nos
presídios masculinos. As penitenciárias femininas sofrem de maneira alarmante,
de forma agravada para as gestantes e/ou lactantes que se encontram reclusas.
A situação do sistema penitenciário feminino é afrontosa aos Direitos
Humanos. As mulheres, submetidas ao aprisionamento, ficam com as condições
residuais do sistema masculino, que é a “prioridade” no investimento estatal; ou
seja, o que fica “inútil” para o cárcere de homens é destinado ao das mulheres,
que além do abandono do Estado, ficam “esquecidas” pelos familiares.
Diante deste cenário, objetiva-se analisar se o Estado brasileiro está
preparado, economicamente e estruturalmente, para manter as gestantes e
lactantes, e seus filhos, durante o período de cárcere, como a legislação prevê
685

e de acordo com as condições básicas para o mesmo. Também é objetivo


demonstrar quais são os deveres do Estado e os direitos da mulher presa e,
consequentemente, do seu filho, bem como o que é feito para que seja cumprido.
A organização do trabalho foi estabelecida para que, em primeiro lugar,
possa-se indicar características gerais do sistema penitenciário nacional. Na
sequência, serão analisados aspectos distintivos dos estabelecimentos
prisionais masculinos e femininos. O terceiro e quarto tópicos da pesquisa
recaem sobre os deveres do Estados e os direitos das mulheres encarceradas,
respectivamente. Por derradeiro, aborda-se a visão da gravidez no sistema
carcerário, por meio das regras de Bangkok.
O método de pesquisa adotado é o hipotético-dedutivo e o instrumento é
qualitativo. Foram utilizadas referências bibliográficas que viabilizaram ampla
revisão do tema proposto, à luz dos objetivos fixados. O referencial teórico que
ampara a crítica estabelecida é o biopoder, de Michel Foucault.

1. SISTEMA PRISIONAL

A prisão é um instrumento de pena generalizado, desde que, em 1791, o


Sistema Penal da França a instituiu como sanção. Esta é baseada, em suma, na
privação de liberdade e a perda desta possui o mesmo “preço” para toda a
sociedade, pois é pertencente ao todo de maneira igualitária (FOUCAULT, 1978,
p. 261). Segundo Foucault, outra função do aprisionamento é a “transformação
do indivíduo”, pois desde os tempos antigos é utilizada como uma detenção legal
com poder corretivo.
A população carcerária brasileira, em relação a 2005, dobrou, aponta o
Projeto Sistema Prisional em Números, realizado pelo Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP), em 18 de junho de 2018. Este projeto, realizado
juntamente com o INFOPEN1, demostra que o Brasil é o 3º país com maior
ocupação nos presídios, ficando atrás das Filipinas (316%) e do Peru (230,7%).
Dos 1.456 estabelecimentos penais brasileiros, 474 constataram mortes no
período de março de 2017 a fevereiro de 2018, no mesmo espaço de tempo 81
apontaram casos de maus-tratos aos detentos, geradores pelos servidores, além
de 436 unidades com casos de lesões corporais ocasionadas aos encarcerados
por funcionários da prisão. Também, a pesquisa do INFOPEN, aponta que, em
2019, haviam 399 grávidas presas, representando 1,18% do total.
Os dados evidenciam que a solução do Sistema Prisional do Brasil não é a
construção de novas unidades, pois a superlotação não é o único problema.
Questões como o tratamento do servidor versus detento, assistência médica,
psicológica, social e educacional, a ressocialização, a oportunidade de
empregos após o cumprimento da pena, entre outros, são os demais pontos para
que as condições de quem cumpre pena restritiva de liberdade sejam melhores.
Durante o passar da história, a pena evoluiu, simultaneamente às
modificações das relações humanas, e vem remodelando a tendência repressiva
da mesma, visto que a punição possuía o intuito de castigar e vingar o detento
pela infração que foi praticada, dando espaço para sanções penais alternativas
à prisão.
Após passar por diversos períodos marcantes onde a pena teve outras
vertentes, como em meados de 1680 a.C., com o Código de Hamurabi (“olho por
1O INFOPEN é um banco de dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da
Justiça.
686

olho, dente por dente”), os Tribunais da Inquisição, na Idade Média – onde


possuía uma acepção de castigo espiritual e vingança, onde objetivava o
arrependimento do infrator –, na Revolução Francesa (1789 – 1799), com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, uma visão mais humanitária
foi criada para o detento. Ainda assim, mesmo com a evolução nos conceitos
penais e sanções conquistadas durante a Revolução Industrial (1760 – 1860),
apenas em 1830 a regulamentação da individualização da pena foi instituída.
No Brasil, em 1890, com o Código Penal, novas modalidades de prisão
foram implantadas, excluindo as perpétuas e coletivas. As execuções das penas,
nesse modelo, têm relação com três sistemas: o sistema celular (Filadélfia), o
silent system (Auburn) e o progressivo (inglês/irlandês).
O sistema inglês é o mais próximo do utilizado no Brasil, apesar de algumas
adaptações. Este surgiu na Inglaterra, no século XIX, e considerava que o preso,
verificada sua boa conduta e trabalho, poderia ter aproveitado, finalmente
conquistando sua liberdade condicional.
Nos dias atuais, as questões a serem tratadas não são mais as
modalidades de cumprimento de pena, mas as condições do estabelecimento w
tratamento onde o encarcerado cumpre a punição privativa de liberdade. A
Constituição Federal, em seu artigo 5º, XLIX, determina que “é assegurado aos
presos o respeito à integridade física e moral”, porém os direitos fundamentais
dos detentos estão sendo violados através da superpopulação dos presídios, a
falta de assistência, não respeitando a integridade física e moral dos mesmos.
Outra previsão da legislação a ser citada é o artigo 88, da Lei de Execução
Penal2, onde demonstra que a realidade não condiz com a previsão legal:

Art. 88 – O condenado será alojado em cela individual que conterá


dormitório, aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único – São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de areação,
insolação e condicionamento térmico adequado à existência
humana;
b) área mínima de 6 m² (seis metros quadrados).

Apesar do pensamento humanista que paira sobre as questões do


sistema carcerário, no Brasil, ainda existe fatores que geraram a crise, tais como
a falta de investimento, o abandono Estatal, o desrespeito e descaso do poder
público e a superlotação. Dessa maneira, a instituição que tinha por objetivo
substituir as sanções desumanas, como tortura e morte, tornou-se um ambiente
insalubre, devido à falta de higiene e falta do espaço, ficando para trás o ideal
de ressocialização dos detentos.

2. DIFERENÇA ENTRE OS PRESÍDIOS MASCULINOS E FEMININOS

O sistema carcerário brasileiro, movido por um idealismo patriarcal


machista, possui, assim como em outras esferas sociais, uma grande diferença
no tratamento entre homens e mulheres. Assim como em outras sociedades, a
ótica cultural sobre a mulher é de cuidadora da família e cheia de sentimentos,
deixando de lado a razão. A partir do momento em que esta “falha” em sua
função é abandonada pela sociedade. A situação agrava-se quando é
encarcerada, pois sofre duas vezes com a rejeição: por ser mulher e estar presa.
2 Lei de Execução Penal – Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984.
687

O cárcere feminino possui algumas particularidades, comparado ao


masculino, portanto necessitam de estrutura diferenciada, para atender
necessidades específicas, como maternidade, permanência do bebê e a
separação entre a mãe e o filho.
O Estado, com tanto descaso com as presas, aparentemente, puni de
maneira agravada as mesmas. Fato este reafirmado com a perda de direitos
fundamentais, como a proibição de visita íntima, justificando esta medida com o
controle de natalidade, obstando a mulher de ser mãe, apenas pela condição de
encarcerada. Segundo Lima:

[...] a interpretação da opção ou não pela visita íntima passa, num


primeiro momento, pela desigualdade de gênero, que se reproduz
intra-gênero, tornando as mulheres não somente diferentes pelos
homens, pelo valor social atribuído à instituição do casamento ou laços
de conjugalidade. Assim, são submetidas na condição das mulheres
presas, a uma norma que vincula sua sexualidade ao casamento ou
laços comprovados de conjugalidade com o parceiro, ou que pode
excluir as mulheres que, mesmo possuindo companheiros e/ou
namorados, não podem usufruir esse direito” (2006, p. 57).

Numa sociedade onde o sistema é extremamente masculinizado, as


mulheres são exceção, tornando-se invisíveis e seus assuntos não são
prioridades sociais. Sistema este que maximiza as relações de poder e
dominação pelo homem em relação à mulher, firmando os estereótipos de
inferioridade intelectual, a predestinação de ser esposa e mãe, falta de
conhecimento político e outros assuntos sociais e a dependência do sexo em
âmbito emocional, econômico e social.
Apesar das situações práticas que ocorrem no sistema carcerário
brasileiro, a Lei de Execução Penal observa as necessidades específicas de
cada gênero, com o intuito de reformular o sistema carcerário. Uma das
mudanças expressivas foi a promulgação da Lei n.º 12.121/2009, esta determina
que os estabelecimentos penais femininos tenham apenas agentes mulheres. A
Lei n.º 11.942/2009 também assegura direitos às mulheres presas, no caso
condições mínimas de assistência às mães reclusas e seus recém-nascidos. No
artigo 14, § 3º, da mesma lei, ressalta-se a tutela de acompanhamento médico:
“será assegurado acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-
natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido”.

3. DEVERES DO ESTADO

A sanção penal, na modalidade prisão, é uma forma de condenar o infrator


pelo ato, pelo crime praticado, e não por sua personalidade. Desta maneira,
todos os direitos e garantias constitucionais lhe são asseverados. Pode-se
concluir que o Estado é responsável por assegurar o bem-estar e que o
estabelecimento prisional seja adequado para o período de cumprimento de
pena.
A Lei n.º 7.210/1984, em seus artigos 10 e 11, prevê que é dever do
Estado a assistência ao preso, com o objetivo de prevenir o crime e conduzir o
retorno à vida em sociedade.
688

Art. 10 – A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado,


objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em
sociedade.
Parágrafo único – A assistência estende-se ao egresso.
Art. 11 – A assistência será:
I – material;
II – à saúde;
III – jurídica;
IV – educacional;
V – social;
VI – religiosa.

Assim como a LEP, a Constituição Federal também prevê o dever de


assistência à saúde (artigo 196, CF), e à falta desta é um dos aspectos mais
proeminentes no âmbito do sistema prisional brasileiro. No encarceramento
feminino, o desfalque no assistencialismo é agravado, visto as previsões
específicas sobre o atendimento da mulher presa são escassas, inclusive
quando grávida.

4. OS DIREITOS DA MULHER PRESA

A Cartilha dos Direitos e Deveres da Mulher Presa3, da Defensoria Pública


do Estado de São Paulo, do CNJ, versa sobre as obrigações do Estado em
relação às encarceradas e como a Defensoria age em favor das mesmas (CNJ,
2011).
Neste documento constam os direitos assegurados à mulher no decorrer
da execução da pena. Neste item existem explicações sobre a progressão de
regime de cumprimento de pena, saída temporária, livramento condicional,
indulto e comutação; o direito ao trabalho, à visita, à maternidade, à saúde e ao
atendimento jurídico.
Com foco no direito à maternidade, pode-se destacar que a grávida presa
tem direito ao pré e pós-natal. Assim que a gravidez for descoberta, a detenta
deverá ser transferida para unidade que possua equipe médica e estrutura para
acompanhamento da gestação. O parto deverá ser realizado em unidade
hospitalar da Secretaria da Administração Penitenciária ou rede de saúde
pública. Após o parto, tanto a presa quanto o bebê, deverão permanecer em
unidade que possua berçário e equipe para acompanhamento de ambos, tal
como o “teste do pezinho” e vacinação.

5. A VISÃO DA GRAVIDEZ NO SISTEMA CARCARÁRIO POR MEIO DAS


REGRAS DE BANGKOK

A Assembleia Geral da ONU, em dezembro de 2010, aprovou as Regras


de Bangkok (CNJ, 2016). Estas têm por objetivo estabelecer princípios e normas
de uma organização penitenciária com condições que respeitem os Direitos
Humanos (OLIVEIRA, 2017). O Brasil, como membro das ONU, tem a
“obrigação” de respeitar as Regras, porém, caso não o faça, não pode sofrer
sanções por isso. Ao aplica-las, o país assume um compromisso internacional

3Cartilha da Mulher Presa. Disponível em: <http://cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-


penal/cartilha-da-mulher-presa>. Acesso em 15 de maio de 2019.
689

que não pode mais ser transgredido. O Controle de Convencionalidade4,


atualmente, é usado como uma maneira de adequação das normas nacionais
aos tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos.
As regras em questão foram criadas para oferecimento de opções para o
tratamento das encarceradas, reconhecendo que o tratamento igualitário e
equitativo é necessário. O princípio básico desta é considerar as necessidades
diferentes entre as detentas, sendo assim ficam estabelecidas normas para o
ingresso, registro, higiene pessoal, atendimento médico, cuidados à saúde física
e mental, alocação, capacitação de funcionários, individualização da pena,
revistas, flexibilização do regime, instrumentos de contenção, incentivo e
priorização das relações sociais e assistência ao período pós-cárcere, bem como
o contato com o mundo exterior, e os cuidados especiais com as estrangeiras,
deficientes, indígenas, gestantes e lactantes (OLIVEIRA, 2017).
A Regra n.º 42 trata sobre as gestantes presas e a flexibilidade das prisões
para atendimento de suas necessidades. Ela prevê, especificamente, que:

O regime prisional deverá ser flexível o suficiente para atender às


necessidades das mulheres gestantes, lactantes e mulheres com
filhos. Nas prisões serão oferecidos serviços e instalações para o
cuidado das crianças a fim de possibilitar às presas a participação em
atividades prisionais (2016, p.31).

O Brasil dedicou-se para auxiliar na elaboração das Regras de Bangkok


e sua aprovação, porém, após sua inserção no Direito Internacional, poucas
foram as aplicações significativas na legislação brasileira. As principais foram: a)
a inclusão dos incisos IV, V e VI no artigo 318, do Código de Processo Penal; b)
o indulto especial e comutação de penas às mulheres presas que, menciona, por
ocasião o dia das mães, e dá outras providências; e c) inserção do parágrafo
único, no artigo 292, do Código de Processo Penal, que veda o uso de algemas
em mulheres em trabalho de parto, durante o parto e no período imediatamente
posterior (CERNEKA, 2012).
A justiça brasileira, aos poucos, tem aplicado as Regras de Bangkok em
duas decisões. Até abril de 2017, constavam 15 julgados no Superior Tribunal
de Justiça com referências ao tratado, sendo apenas 05 (cinco) favoráveis.
Apesar da melhora no passar dos anos, as ações concretas ainda não são
suficientes para alcançar a garantia que o ordenamento penitenciário se adeque
às necessidades da mulher encarcerada.

CONCLUSÃO

A garantia de direitos é diretamente ligada com a economia e com a


destinação de melhorias, inclusive de vagas, visando à diminuição da
superlotação. Este, porém não é o único problema que gera a crise do sistema
prisional brasileiro. Há, em verdade, um conjunto de situações degradantes que
comprometem as condições dos reclusos, muitas vezes ferindo os Direitos
Humanos, tais como a dignidade humana, o acesso à saúde e ao trabalho,
dentre outros.

4Todos os tratados internacionais de Direitos Humanos retificados pelo Estado e em vigor no


Brasil têm nível de norma constitucional, tanto por hierarquia material quanto por hierarquia
material e formal (MAZZUOLI, 2018, p. 823)
690

A conscientização do Estado, bem como da população, é indispensável,


pois além da carência assistencial estatal, os estigmas sociais são incontáveis.
Muito mais que a condenação pelo delito, a população condena a personalidade
do infrator e não apenas o fato cometido, deixando uma “marca” no indivíduo. O
mesmo ocorre, injustamente, com os filhos das detentas, inclusive os que ainda
não nasceram.
É inevitável a busca por melhorias, muito além da legislação é o
cumprimento delas, porém as políticas públicas não acompanham o crescimento
da população prisional, nem as especificidades das necessidades femininas. As
conquistas provindas de Leis, julgados e tratados internacionais são muitas,
porém, ainda, não são suficientes. Esta mudança poderá ocorrer se o Estado,
aliado com a população, concorrer para que os direitos das presas gestantes e
mães sejam garantidos e atendidos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de


1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em
25 de março de 2019.

______. Lei 7.210, de 11 de julho de 1984. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm> Acesso em 25 de março
de 2019.

______. Lei 11.942, de 28 de maio de 2009. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11942.htm>
Acesso em 10 de maio de 2019.

______. Lei 12.121, de 15 de dezembro de 2009. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12121.htm>
Acesso em 30 de março de 2019.

CERNEKA, Heidi Ann. As regras de Bangkok- está na hora de fazê-las viver!.


Disponível em <http://www.carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/09/As-
Regras-de-Bangkok-ibccrim.pdf> Acesso em 15 de março de 2019.

CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Cartilha da Mulher presa, 2011.


Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-
penal/cartilha-da-mulher-presa> Acesso em 15 de maio de 2019.

CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok. 2016. Disponível


em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/27fa43cd9998bf5b43aa2c
b3e0f53c44.pdf> Acesso em 15 de março de 2019.

FOUCALT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 1987. Trad. Lígia M.


Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes.
691

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos


humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais


Comentadas, vol. 1, 8ª ed., [S.I.]: Forense, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2ª ed. São Paulo:


Editora Revista dos Tribunais, 2006.

OLIVEIRA, Fabio Silva de. Regras de Bangkok e encarceramento feminino,


2017. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/regras-de-
bangkok-encarceramento/>. Acesso em 04 de abril de 2019.
692

INDIVÍDUOS LGBT NO SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL E A


OPORTUNIDADE DE FRUIÇÃO DO DIREITO AO TRABALHO
LGBT INDIVIDUALS IN THE NATIONAL PENITENTIARY SYSTEM AND THE
OPORTUNITY OF THE RIGHT TO WORK

João Pedro Rodrigues Nascimento


Orientador(a): Ynes da Silva Félix

Resumo: O pensamento naturalizado quando se reflete sobre a sexualidade é


que gênero, sexo biológico e orientação sexual estão ligados. As percepções
sociais e relações de poder hegemônicas são construídas a partir da perspectiva
heterossexual, o que disseminou um ideal cultural centrado no masculino. Se
tais mecanismos operam livremente na sociedade livre, tal sistema de opressão
se intensifica dentro das prisões. Assim, o trabalho tem por escopo analisar se,
na atual conjuntura do sistema penitenciário nacional, garante-se ao preso LGBT
a oportunidade de fruição do direito ao trabalho. Para tanto, utiliza enfoque
dedutivo, com os métodos de pesquisa bibliográfico e documental.
Palavras-Chave: LGBT. Prisão. Direito ao trabalho.

Abstract: The natural thinking when we reflect about sexuality is that gender,
biological sex and sexual orientation are linked. Social hegemonic perceptions
and power relations are built from the heterosexual perspective, which has
spread a male-centered cultural ideal. If such mechanisms operate freely in free
society, such a system of oppression intensifies within prisons. Thus, the work
aims to analyze whether, in the current conjuncture of the national penitentiary
system, the LGBT prisoner is guaranteed the opportunity of enjoyment of the right
to work. To this end, it uses a deductive approach, with bibliographic and
documentary research methods.
Keywords: LGBT. Prison. Labor Right.

1. INTRODUÇÃO

O pensamento naturalizado quando se reflete sobre a sexualidade é que


gênero, sexo biológico e orientação sexual estão irremediavelmente ligados.
Assim, reconhece-se como natural que um indivíduo que possua um órgão
genital masculino adote as posturas sociais relacionadas ao homem e sinta
atração afetiva pelo sexo oposto àquele designado por seu órgão genital. No
entanto, apesar das expectativas, no campo da sexualidade, convive-se com
uma grande diversidade.
Dessa forma, indivíduos com condutas corporais diversas da “natural” são
excluídos do grupo social soberano, atribuindo-se a eles uma identidade
socialmente construída e os piores valores humanos. A exclusão vai além de
suas qualidades individuais como pessoas, operando em razão de pertencerem
a um grupo coletivamente considerado diferente e inferior ao grupo dominante.
As percepções sociais e relações de poder hegemônicas são construídas
a partir da perspectiva heterossexual, o que disseminou um ideal cultural
centrado no masculino. Se tais mecanismos operam livremente na sociedade de
homens “civilizados”, tal sistema de opressão se intensifica dentro das prisões.
Sendo esta uma instituição de criação e manutenção de poder, além de
local de vigilância constante dos corpos (FOUCAULT, 2018), as violências do
693

poder heterossexual e a estigmatização de indivíduos que performam


identidades de gênero e orientações sexuais não hegemônicas são
potencializadas.
Por sua vez, há que se destacar que o trabalho foi definido,
historicamente, junto a outros mecanismos, como um agente de transformação
carcerária. Assim, longe de ser um elemento acessório, seu exercício faz parte
da própria estrutura do cumprimento da pena privativa de liberdade. A utilização
do trabalho pelo cárcere funciona como uma pedagogia que tem por objetivo
precípuo incutir no condenado os valores socialmente difundidos do trabalho,
garantindo que, longe do ócio, o indivíduo não cometa mais delitos.
Atento às premissas supramencionadas, a questão central do trabalho
gravita em torno da seguinte pergunta: na atual conjuntura do sistema
penitenciário nacional, garante-se ao preso LGBT1 a oportunidade de fruição do
direito ao trabalho?
Assim, em um primeiro momento, o estudo descreverá a evolução do
trabalho no sistema penitenciário nacional, para, então, destacar as principais
problemáticas ao seu acesso. Por fim, volta-se ao seu objeto de estudo principal,
qual seja verificar se são garantidas aos presos LGBT as mesmas oportunidades
de acesso ao trabalho ofertadas aos presos heterocisnormativos.
A fim de alcançar os objetivos mencionados, será utilizada a pesquisa
descritiva no que tange aos fins e bibliográfica e documental quanto aos meios,
com uma análise realizada por meio de obras e artigos científicos. O método
adotado será dedutivo, partindo de conceitos gerais e buscando sua
particularização.

2. O TRABALHO NA EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL

Os processos de execução penal no Brasil historicamente refletem


mecanismos de ordem, disciplina e neutralização dos indivíduos encarcerados.
Conforme destaca Roig (2005, p. 15) “desde os regulamentos penitenciários da
sociedade escravista brasileira do século XIX até a hodierna normatização [...] o
sistema disciplinar imposto em nossas unidades prisionais segue uma
perspectiva utilitarista, subserviente aos escopos de controle social”.
A partir da proclamação da República, o discurso penal volta-se para a
disciplina e a valorização do trabalho como forma de adaptação à sociedade
(ALVES, 2017). Na segunda metade do século XIX, a prisão enquanto pena,
através das Casas de Correção, surge ao mesmo tempo como instrumento de
proteção da classe dominante, tendo em vista o controle social de cativos
insurgentes, mendigos e capoeiras, e como forma de emenda e reforma moral
do condenado (ROIG, 2005).
Embora naquele período já existissem iniciativas de ressocialização do
indivíduo condenado, através do trabalho, já se percebia a sobreposição das
perspectivas disciplinadoras, repressoras e econômicas, que impediam a sua
concretização (COSTA, 2014). A prisão no Brasil representou, desde o princípio,

1 Convencionou-se utilizar, neste trabalho, a sigla LGBT para designar a comunidade de


Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, tão somente em razão da utilização da
sigla na Resolução Conjunta n. 1/2014, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação no Brasil. Os autores não ignoram a
visibilidade e a luta de Intersexuais, Queers, Assexuais, Pansexuais ou outras expressões de
orientação sexual e/ou identidade de gênero.
694

um instrumento de submissão e aplicação do poder dominante a determinados


indivíduos, com forte matriz racial e social, sendo incapaz de assegurar a mínima
dignidade aos condenados. Nesse sentido, destaca Roig (2015, 400):

Enfim, todas as agitações sociais verificadas ao longo do século XIX


contribuíram para a edificação de uma política criminal disciplinatória,
repressora da população escrava e de profunda vigilância a segmentos
sociais seletivamente alcançados, política esta tendente a assegurar o
regresso conservador.

Em 1940 entra em vigor o Decreto-Lei n. 2.848/1940, que institui o Código


Penal, determinando, ainda hoje, as regras básicas do sistema penitenciário e
trazendo direitos e deveres dos presos. Após sucessivas alterações, referido
documento passou a dispor que o condenado ao cumprimento de uma pena
privativa de liberdade, que se subdivide em regimes fechado, semiaberto e
aberto, é obrigado ao exercício de um trabalho interno ou externo ao
estabelecimento penitenciário, independentemente do regime de execução da
pena.
Por sua vez, a Lei de Execuções Penais – LEP (Lei n. 7.210 de 1984)
regulamentou detalhadamente o sistema penitenciário nacional e os direitos e
deveres dos presos. Segundo o artigo 1º, a execução penal tem por finalidades
efetivar as disposições da sentença criminal e proporcionar condições para a
harmônica integração social do condenado, sendo-lhe assegurados todos os
direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (BRASIL, 1984).
Segundo o Capítulo III, da LEP, o condenado à pena privativa de liberdade
está obrigado a exercer o trabalho, na medida de suas aptidões e capacidades,
podendo este ser realizado dentro dos presídios ou em serviços externos. Este
trabalho é considerado um dever social e um requisito indispensável à dignidade
humana do preso, devendo ter um duplo caráter, educativo e produtivo.
A Lei de Execuções Penais dispõe, ainda, que o exercício do trabalho é
uma das alternativas para a remição de parte do tempo de execução da pena do
condenado, sendo esta entendida como o “efeito de abreviar o tempo da
condenação, mediante o abatimento do cômputo temporal da pena privativa de
liberdade, através do trabalho efetivo, à razão de um dia de pena por três de
trabalho” (FUDOLI, 2009, p. 33).
Importante ressaltar, igualmente, que a Constituição Federal de 1988 foi
um marco na proteção dos direitos dos indivíduos privados de sua liberdade,
funcionando como ponto axiológico conformador de todo o ordenamento jurídico.
Além da dignidade da pessoa humana, fundamento da República que deve
balizar todo o cumprimento da pena privativa de liberdade, a CF/88 dispõe que
é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX).
Além da Constituição e legislações acima referidas, a Resolução nº 14,
de 11 de novembro de 1994, editada pelo Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária, intitulada as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no
Brasil, também elenca direitos e deveres dos indivíduos que cumprem penas
privativas de liberdade no país. O documento, ao assegurar ao preso o respeito
à sua individualidade, integridade física e dignidade pessoal, determina que a
este será garantido o ensino profissional em nível de iniciação e de
aperfeiçoamento técnico. Além disso, o exercício do trabalho deve considerar as
necessidades futuras do condenado e as oportunidades oferecidas pelo
mercado de trabalho, assim como a remuneração deverá possibilitar a
695

indenização pelos danos causados pelo crime, a aquisição de objetos de uso


pessoal, ajuda à família e constituição de renda a lhe ser entregue no término do
cumprimento da pena.
No entanto, o sistema penitenciário nacional tem sido incapaz de
assegurar a fruição de direitos e o cumprimento dos deveres dos internos, sendo
as disposições legais acerca do sistema prisional de difícil implementação
prática. Certo é que o atual cenário do sistema penitenciário nacional fere a
dignidade humana dos indivíduos custodiados e invalida qualquer escopo
ressocializador da pena.
Conforme já citado, de acordo com o Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias (2017, p. 56), em junho de 2016, somente 15% da
população prisional brasileira estava envolvida em atividades laborais, o que
representava, à época, o total de 95.919 pessoas. Dentre essas, 87% realizavam
atividades dentro dos presídios, como prestação de serviços para empresas,
organizações sociais e poder público, além de atividades de apoio e gestão do
próprio estabelecimento.
Ademais, o levantamento realizado pelo canal de notícias G1, em parceria
com o Núcleo de Estudos de Violência (NEV) da Universidade de São Paulo e o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca que, dos 737.892 presos,
apenas 139.511 exercem algum tipo de trabalho (18,9%), representando uma
quantidade de menos de 1 a cada 5 presos trabalhando no país (2019).
O modelo de cumprimento da pena privativa de liberdade no Brasil teve
suas bases construídas no século passado, sofrendo até mesmo influências de
regimes ditatoriais, razão pela qual questiona-se, até mesmo, a sua real
compatibilidade com a Constituição Federal de 1988 e os ditames de proteção
aos direitos humanos (ROIG, 2015).
Assim, a partir da análise histórica do surgimento e consolidação da prisão
enquanto pena máxima no ordenamento jurídico nacional, percebe-se que esta
sempre foi atrelada ao trabalho. No entanto, o trabalho no sistema penitenciário
nacional não possui o condão de ressocializar os indivíduos apenados, tendo a
prisão por escopo principal a simples punição do indivíduo.
E isso não só pela criação e reprodução de inúmeras violações de direitos
humanos pelo próprio sistema prisional, privando os condenados ao gozo dos
direitos mais elementares à dignidade humana, mas também pela ausência de
ofertas adequadas de estudo ou trabalho para os internos. Desse modo, o
caráter retributivo da pena supera e se fortifica em detrimento da ressocialização
dos apenados.

3. INDIVÍDUOS LGBT NO SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL E A


OPORTUNIDADE DE FRUIÇÃO DO DIREITO AO TRABALHO

Conforme os Princípios de Yogyakarta2, compreende-se o termo


orientação sexual como a capacidade que cada pessoa possui de vivenciar a
atração emocional, afetiva ou sexual, por indivíduos de gêneros diferentes,
mesmo gênero ou mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais
com essas pessoas.

2Documento elaborado em 2007, em Yogyakarta/Indonésia, por um grupo de especialistas em


Direitos Humanos, que reflete os princípios consolidados de Direito Internacional dos Direitos
Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero.
696

Ademais, segundo o mesmo documento, identidade de gênero pode ser


entendida como a experiência individual que cada pessoa tem em relação ao
gênero, que pode concordar, ou não, com o sexo que lhe é atribuído ao
nascimento, incluindo o sentimento de corpo (com ou sem alteração cirúrgica),
modos de falar, vestimentas e maneirismos.
Ou seja, há várias formas de compreender a sexualidade humana, seja
em relação à identidade de gênero ou à orientação sexual. As inter-relações
entre sexo biológico, papel de gênero, comportamento sexual e orientação
sexual nada mais representam que convenções sociais e relações de poder
aplicadas sobre os corpos individuais, que podem variar a partir da influência de
elementos que não são diretamente ligados à sexualidade, como a raça e a
classe social (FRY, 1982; FACCHINI, 2012).
Os modos de manutenção da dominação masculina direcionados às
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – hoje reunidos sob a sigla
LGBT – perpassam a estigmatização, a patologização e a criminalização de
condutas desviantes da lógica héteronormativa. O processo de legitimação da
violência heterossexista poderia ser decomposto em três núcleos de violência: a
simbólica, através da construção de discursos sociais de inferiorização, a
institucional, pela adoção de posturas de criminalização e patologização, e a
interpessoal, através da violência física e/ou sexual (CARVALHO, 2012;
PASSAMANI, 2009).
Na prisão, em sendo um instituto de criação e manutenção de um poder
vigilante e onipresente, que não tem por objetivo “recuperar os detentos e
devolvê-los à sociedade, mas puni-los com a maior severidade possível”
(PASSAMANI, 2009, p. 83-94), tais modos de dominação reorganizam-se entre
os detentos LGBT e os demais heterossexuais, construindo relações de poder e
estigmatização.
Assim, a reconsideração teórica de gênero e orientação sexual, enquanto
vivências que afloram em diversos ambientes e discursos, inclusive no cárcere,
“mostra-se frutífera na análise das relações de poder imbricadas na
normalização de corpos, desejos e seus significados (CANHEO, 2017, p. 9).
Como exemplo desse emaranhado de dominação que aflige a
comunidade LGBT dentro do sistema penitenciário nacional, relembra-se
matéria veiculada no site de notícias BBC em que presos LGBT no Centro de
Detenção Provisória Pinheiros 2, em São Paulo, eram impedidos de tomar água
no mesmo copo que um heterossexual, usar o mesmo prato ou sequer encostar
na mesma vassoura usada para varrer o pátio do presídio (SOUZA, 2019).
No que toca ao direito ao trabalho, embora a situação geral de garantia
de acesso ao trabalho digno e profissionalizante no sistema penitenciário
nacional seja preocupante a nível nacional, quando se leva em consideração um
recorte de orientação sexual e identidade de gênero a situação de supressão de
direitos e a desestruturação do sentido ressocializador da pena é potencializada.
Conforme os Princípios de Yogyakarta, indivíduos LGBT têm direito a um
tratamento humano durante a detenção em sistemas prisionais, devendo os
Estados impedir que esta provoque uma maior marginalização motivada pela
orientação sexual/identidade de gênero, expondo-as a risco de violência, maus-
tratos ou abusos físicos, mentais ou sexuais. O mesmo documento dispõe,
ainda, que toda pessoa tem direito ao trabalho digno e produtivo e a condições
de trabalho justas, sem discriminação por orientação sexual/identidade de
gênero.
697

No Direito interno, o Decreto Federal n. 9.450, de 24 de julho de 2018,


que institui a Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional
(PNAT), determina que são princípios da PNAT a dignidade da pessoa humana
e o respeito às diversidades em razão de gênero e orientação sexual nas
penitenciárias nacionais, conforme o artigo 2º, incisos I e III.
Da mesma forma, a Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014, do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e do Conselho Nacional
de Combate à Discriminação, estabelece os parâmetros de acolhimento de
LGBTs em privação de liberdade no Brasil, dispondo, em seu artigo 9º, que serão
garantidos à pessoa LGBT, em igualdade de condições com os demais presos,
o acesso e a continuidade de sua formação profissional, sob a responsabilidade
do Estado.
Nada obstante, tais regramentos não são suficientes para garantir
efetivamente o acesso livre e igualitário de indivíduos LGBT ao trabalho, uma
vez que a manutenção das relações de poder e dominação a que estão
submetidos impede a fruição dos direitos.
A título de exemplo, cite-se matéria veiculada no site de notícias “Campo
Grande News”, retratando que detentos LGBT sofrem inúmeros preconceitos
dentro do Instituto Penal de Campo Grande/MS, sendo impedidos de trabalhar
por falta de aceitação dos outros presos, sendo que dos 30 indivíduos que
compartilham a ala específica para LGBTs, apenas 5 conseguiram obter um
trabalho. Na oportunidade, a chefe da Divisão de Promoção Social do Instituto
Penal destaca “a inserção no trabalho ainda não tem. É por conta da população
dos nossos internos que não aceitam. Os próprios internos não aceitam” (sic)
(SANCHEZ, 2019).
Dessa forma, vê-se que, ao se tomar um recorte de identidade de gênero
e orientação sexual dentro dos presídios, em que pesem os documentos
nacionais e internacionais que asseguram o direito ao trabalho livre dentro dos
presídios, não há ainda uma adequada fruição desse direito aos indivíduos LGBT
que cumprem pena privativa de liberdade, em razão da manutenção de relações
de poder, dominação e estigmatização.

4. CONCLUSÃO

O trabalho sempre esteve atrelado à prisão enquanto forma de submissão


do condenado às regras disciplinares, conjugando, em sua perspectiva moderna,
as finalidades de punição pelo ato criminoso cometido, mas também de
ressocialização do indivíduo delinquente. Por esta razão, tanto os regramentos
internacionais, quanto os nacionais elegem o trabalho como fundamental para o
adequado cumprimento da pena privativa de liberdade.
Quando se pensam os indivíduos que cumprem penas privativas de
liberdade sob uma ótica de identidade de gênero e orientação sexual percebe-
se que a situação de desestruturação de direitos é potencializada, em razão das
intensas estigmatizações e preconceitos que afligem a comunidade LGBT, ainda
mais brutais quando no sistema penitenciário.
No cenário atual, começa-se a debater a temática, a fim de assegurar a
dignidade das pessoas LGBT encarceradas. Tal fato é comprovado pelos
instrumentos normativos já desenvolvidos especificamente para a sua proteção,
especialmente a Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014. No entanto, o
caminho ainda é longo.
698

No que toca ao exercício do direito ao trabalho, vê-se que, em um aspecto


legal, são garantidas as mesmas possibilidades de obtenção de um trabalho
oferecidas a presos heterocisnormativos. No entanto, na prática, indivíduos
LGBT ainda sofrem inúmeros impedimentos ao seu exercício, em razão do
preconceito e estigmatização.
Longe de tentar trazer soluções rápidas para a problemática do
preconceito dentro do sistema penitenciário nacional, importa pensar, cada vez
mais, em medidas que pretendam, por meio do trabalho, da ressocialização e da
observância das normas nacionais e internacionais, garantir a dignidade humana
das pessoas LGBT que cumprem penas privativas de liberdade.

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701

JUSTIÇA RESTAURATIVA E AS DIMENSÕES SUBJETIVAS DE UMA


INFRAÇÃO PENAL: UMA ANÁLISE ACERCA DOS LIMITES E
POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
RESTORATIVE JUSTICE AND SUBJECTIVE DIMENSIONS OF A CRIMINAL
VIOLATION: AN ANALYSIS OF THE LIMITS AND POSSIBILITIES OF
APPLICATION IN CASES OF DOMESTIC VIOLENCE.

Amanda Passos Ferreira


Gabriella Barbosa Pereira Ribeiro
Orientador(a): Hilza Maria Feitosa Paixão

Resumo: O estudo trata da aplicação da justiça restaurativa aos casos de


violência doméstica, versando sobre os aspectos históricos e culturais da
violência praticada dentro do ambiente familiar, bem como as dimensões
subjetivas da infração penal. Analisa-se desta forma, as práticas restaurativas
como maneira de resolução da violência doméstica, analisando argumentos e
posicionamentos. A violência doméstica é um problema mundial e nenhum país
isentou-se de sua esfera social. Desta forma, urge tratar da importância da
Justiça Restaurativa, analisando a implementação dos círculos de
restaurativismo e paz nos tribunais brasileiros Como resultados parciais,
depreende-se que há ambiência apropriada no Brasil para implementá-la.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Violência doméstica. Reconhecimento
jurídico.

Abstract: The research talk about the application of restorative justice in cases
of domestic violence, talking about the the historical and cultural aspects of
violence practiced within the family environment, as well as the subjective
dimensions of criminal infraction. Thus, restorative practices are analyzed as a
way to solve domestic violence, analyzing arguments and positions. Domestic
Violence is a worldwide problem and no country has been exempt from its social
sphere. Thus, it is urgent to address the importance of Restorative Justice,
analyzing the implementation of restorative and peace circles in Brazilian courts.
As partial results, it appears that there is an appropriate ambience in Brazil to
implement it.
Keywords: Restorative Justice. Domestic Violence. Legal Recognition.

1. INTRODUÇÃO

O conceito da Justiça Restaurativa surgiu durante as décadas de 1970 e


1980 nos Estados Unidos e Canadá, junto com a prática então chamada Victim
Offender Reconciliation Program – VORP, traduzindo-se em Programa de
Reconciliação Vítima-Ofensor, desde então o programa foi modificado e
metodologias antigas foram remodeladas e ganharam abordagens tidas como
restaurativas.
Nessa senda, Howard Zehr entende que “A Justiça Restaurativa
proporciona, ainda, uma forma concreta de pensar sobre a justiça no âmbito da
teoria e prática da transformação de conflitos e construção da paz.” 1

1ZEHR, Howard. JUSTIÇA RESTAURATIVA. Howard Zehr; Tradução: Tônia Van Acker. – São
Paulo: Palas Athena, 2015, p. 60.
702

A Justiça Restaurativa, segundo Zehr, representa uma nova lente para a


resolução de conflitos na esfera criminal, partindo de uma concepção muito
antiga de delito, baseada no senso comum. Embora seja aplicada de modo
diferente em cada cultura, tal abordagem tem sido comum à maioria das
sociedades tradicionais. Levando em consideração que a complexidade do ser
humano e de suas relações sociais, portanto, é possível observar que o conflito
faz parte da sociedade, Zehr dispõe que o crime ou o comportamento nocivo é
uma violação de pessoas e de relacionamentos interpessoais, em que,
subjacente a esta visão do comportamento socialmente nocivo, está um
pressuposto sobre a vida social: estamos todos interligados.
O crime de violência doméstica é um fato complexo envolto em efeitos
negativos no âmbito social, haja vista que se trata de violências praticadas no
seio familiar, que abrange os crimes de agressão física, verbal, abuso sexual,
emocional, psicológico, entre outros, cujos alvos são crianças, idosos, mulheres
e homens. Desse modo, a pesquisa tem por objetivo analisar a aplicação da
Justiça Restaurativa e o reconhecimento jurídico da vítima de violência
doméstica, pautando-se nos princípios e diretrizes do restaurativismo. Os
objetivos específicos são: Averiguar a questão do reconhecimento jurídico da
vítima e a possibilidade da aplicação da Justiça Restaurativa no âmbito da
violência doméstica; Identificar as dimensões pessoas e interpessoais do crime;
Ponderar acerca da responsabilização do agressor, levando em consideração os
anseios das vítimas. Fundada na sociologia reflexiva em Bordieu e Foucault, a
pesquisa possui caráter exploratório, de abordagem qualitativa, com uso de
técnicas de pesquisa bibliográfica e documental bem como análise de conteúdo,
almejando construir relações que contribuam para as discussões do problema
delimitado.
A primeira seção trata acerca da Justiça Restaurativa e as dimensões
pessoais e interpessoais do crime abordada por Howard Zehr, em que são
elencados fatores subjetivos acerca das condutas delituosas, ao passo que a
segunda seção aduz quanto as raízes históricas da violência doméstica,
abordando-a de modo geral abrangendo a violência praticada contra os grupos
vulneráveis no seio familiar. A terceira seção fala do reconhecimento jurídico da
vítima de violência doméstica, levando em consideração que na maioria das
vezes, a vítima é excluída do andamento do processo penal, pois a finalidade é
apenas a punição e responsabilização do autor do delito, desse modo, muitas
vezes, a pessoa vitimizada continua suscetível a sofrer outra violência.
Por fim, a última seção dispõe quanto à aplicação da Justiça Restaurativa
em determinados casos de violência doméstica como meio de não exclusão da
vítima do processo penal, tendo em vista que a justiça restaurativa está mais
concentrada nas necessidades da vítima do que na punição, embora não exclua
processo criminal, mas sim contribua para a emancipação da vítima.

2. JUSTIÇA RESTAURATIVA E AS DIMENSÕES SUBJETIVAS DA INFRAÇÃO


PENAL.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) conceitua a Justiça restaurativa


como uma técnica de solução de conflito e violência que se orienta pela
criatividade e sensibilidade a partir da escuta dos ofensores e das vítimas,
afigurando-se na seara criminal como um processo colaborativo em que as
703

partes, agressor e vítima, afetadas mais diretamente por um crime, determinam


a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão.
Um dos valores que norteiam a Justiça Restaurativa é a não dominação,
de acordo com Raffaella Pallamolla, considerando a organização do
procedimento de forma a minimizar as diferenças e as desigualdades sociais,
culturais e históricas, no momento do encontro entre atingidos pelo conflito penal.
Nesse sentido, Cesar Barros fala que “muito diferente dos padrões
ordinários da justiça penal, de corte nitidamente dissuasório, retributivo-punitivo,
baseada no excesso de formalismos, na estrita legalidade, em uma relação
traumática, adversarial, por vezes hostil, marcada pelo distanciamento, cujos
atores principais são estatais – polícia, promotor de justiça e juiz – já que o delito
é visto, num bipolar, como uma desconformidade autor-Estado, id est, como uma
ofensa contra o Estado.”
Desse modo, é possível constatar que a Justiça Restaurativa ressalta as
dimensões pessoais e interpessoais do crime, tendo em vista que amplia o
círculo das partes interessadas no processo, ampliando-os a ir além do Estado
e do ofensor a fim de incluir também aqueles diretamente vitimados e os
membros da comunidade.
O sistema de justiça penal se preocupa com responsabilizar os ofensores,
mas isto significa garantir que recebam a devida punição, a dimensão subjetiva
da infração penal, consiste na constatação do dolo e eventuais requisitos
subjetivos do injusto, Welzel esclarece que: “Ao lado do dolo, como momento
geral pessoal-subjetivo, que produz e configura a ação como acontecimento
dirigido a um fim, apresentam-se, frequentemente, no tipo especiais momentos
subjetivos, que dão colorido num determinado sentido ao conteúdo ético-social
da ação” 2
O processo criminal dificilmente estimula o acusado a compreender as
dimensões das consequências de seus atos ou desenvolver empatia em relação
á vítima. (ZEHR, 2017)
Pelo contrário, o processo criminal, em grande parte, estimula que o
acusado defenda seus próprios interesses, sendo, portanto, desestimulado a
reconhecer a sua responsabilidade. Howard Zehr trata que as estratégias
neutralizadoras, que consistem em estereótipos e racionalizações que os
ofensores adotam para se distanciarem das pessoas que agrediram, nunca são
questionadas, sendo assim, o senso de alienação social do acusado só aumenta
ao passar pelo processo penal e pela experiência prisional.
A dimensão interpessoal do crime permite que se vislumbre que há
possibilidade do crime de violência doméstica ser mero resultado de algum
conflito familiar, levando em consideração a complexidade que permeia as
relações humanas, a inobservância das dimensões pessoais e interpessoais do
crime pode gerar consequências, tais como a naturalização da conduta
criminosa, a perpetuação do processo de vitimação, dentre outros.

2. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL: ANÁLISE DOS ASPECTOS


HISTÓRICOS E O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA VÍTIMA.

A palavra violência é derivada do termo em latim, violentia, que tem como


definição “abuso de força”. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002)

2 Welzel, Derecho Penal, trad. de F. Balestra, p. 83.


704

definiu a violência como o “uso intencional da força ou poder em uma forma de


ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo ou
comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão,
morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações”. Nesse
sentido, entende-se como violência intrafamiliar:

“Toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a


integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno
desenvolvimento de um membro da família. Pode ser cometida
dentro e fora de casa, por qualquer integrante da família que
esteja em relação de poder com a pessoa agredida. Inclui
também as pessoas que estão exercendo a função de pai ou
mãe, mesmo sem laços de sangue.” (MINISTÉRIO DA SÁUDE,
2002)

Tratar da violência doméstica no Brasil não é falar de algo emergente,


mas sim de algo que está enraizado culturalmente– de tal forma que ela é tida,
muitas vezes como natural ou banal no seio familiar, podendo ser reconhecida
por meio dos abusos de força e maus-tratos (físicos, sexuais e psicológicos)
contra mulheres, idosos, crianças e homens.
Ademais, está ainda intrínseco no entendimento cultural da sociedade
brasileira que, as mais diversas formas de violência doméstica podem ser
usadas como meios de punição, visando castigar e educar a pessoa vítima de
violência, que geralmente se trata de alguém vulnerável, sem chances de
autodefesa.
Segundo Ana Sofia Schmidt3, considera-se vítima de crime toda pessoa
física ou jurídica e ente coletivo prejudicado por um ato ou omissão que constitua
infração penal, levando-se em conta as referências feitas no conceito de crime
pela criminologia.
No direito processual penal brasileiro, há diferença nos tipos ação penal,
sendo dividida em ação penal pública e privada, a primeira é um instrumento
utilizado pelo Ministério Público para postular ao Estado a aplicação de uma
sanção decorrente de uma infração penal, podendo ser incondicionada, que é a
regra no processo penal e independe de representação ou requisição e
condicionada, que é a intentada mediante denúncia do MP nas infrações que
interferem diretamente no interesse público, contudo dependem de
representação do ofendido; a segunda trata do interesse particular da vítima pela
reparação do dano.
O processo penal é sistematizado dessa forma: a ocorrência da infração
penal; investigação preliminar; oferecimento da inicial, em que será ou não
rejeitada; a citação do acusado para responder à acusação, em que poderá ou
não ser absolvido sumariamente; a instrução criminal, onde ocorre a oitiva da
vítima, bem como das testemunhas da acusação e da defesa, por fim
interrogatório do réu. Nessa senda, observa-se que a vítima só era reconhecida
juridicamente no ato da denúncia e na instrução criminal quando é chamada para
ser ouvida pelo juiz.
Dessa forma, pode-se entender que a vítima de violência doméstica no
Brasil costuma ser esquecida durante o caminhar do processo, em que o papel
de defender as garantias que foram violadas é assumido pelo Ministério Público,

3OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 87
705

que passa a atuar não apenas como custo legis, mas como parte no
processamento criminal. .
Em 1985, a Assembléia Geral das Nações Unidas, com a resolução nº
40/34 definiu o conceito de vítima e fixou as diretrizes quanto aos direitos no que
diz respeito ao processo criminal do dado que tenha sofrido.
Assim, entende-se que tal resolução preconizava o reconhecimento
jurídico da vítima no processo, contudo no Brasil, em nome de uma suposta
preocupação com a vítima, o que se procurou fazer foi agravar a situação dos
acusados, o que constatadamente não atende à expectativa de proteção da
vítima e ainda coloca em cheque conquistas importantes de um Estado
democrático de direito, como o nosso.
Tendo em vista a repercussão midiática de crimes de grande comoção
social, o legislador editou leis mais severas, a exemplo das Leis 8.072/90 e
8.930/94, a primeira instituindo a Lei de Crimes Hediondos e a segunda
ampliando-lhe o rol, na linha do chamado movimento da Lei e da Ordem,
contudo, sem considerar os diversos reflexos decorrentes do crime, como o
aspecto de reparação do dano.
Embora tais previsões formais e outras diversas modificações legislativas
demonstrem uma preocupação maior com a vítima de crimes, é necessário a
implementação de tais garantias, especialmente no que concerne a efetividade
do acesso à justiça, possibilitando à vítima deveres processuais para que assim
tenha seu direito completamente assegurado.

3. A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM DETERMINADOS


CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.

É importante destacar que o sistema judicial não pode fazer valer-se a


qualquer custo, por exemplo, nas relações baseadas em laços familiares há uma
constatação prática de que grande parte das vítimas tende a não incriminar o
acusado no processo, optando muitas vezes pelo silêncio, tendo em vista que
Sistema Processual não atende aos seus respectivos anseios, que geralmente
é o interrompimento da violência, não necessariamente o encarceramento do
autor do fato delituoso.
Os princípios básicos do uso da Justiça Restaurativa se encontram na
Resolução 2002/12 do Conselho Social e Econômico da ONU e são referência
internacional no âmbito da regulamentação da justiça restaurativa e suas
práticas. Tais princípios servem como uma espécie de guia para os Estado que
desejam implementá-la, tendo em vista que permitem a adaptação da justiça
restaurativa dentro dos trâmites nacionais, oferecendo importantes orientações
quanto à forma de ser aplicada, implementada e abordada. Segundo Raffaella
Pallamolla, esses princípios não ambicionam indicar como os países devem
proceder à institucionalização da justiça restaurativa.
O processo de mediação entre vítima-ofensor visa possibilitar que estes
implicados encontrem-se num ambiente seguro, estruturado e capaz de facilitar
o diálogo. (PALLAMOLLA, 2009)
Conforme Zehr (2017) de fato, a maioria dos conflitos orbita em torno de
uma percepção de injustiça, desse modo, os princípios da Justiça Restaurativa
oferecem uma estrutura concreta para tratar as questões de injustiça presentes
no conflito, a Justiça Restaurativa auxilia a transformação do conflito e a
construção da paz.
706

No Estado do Rio Grande do Sul o programa “Justiça Restaurativa para o


século XXI”, que foi implementado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul (TJRS), de acordo com o Relatório Analítico Propositivo
“Pilotando a Justiça Restaurativa: O papel do Poder Judiciário” do Conselho
Nacional de Justiça, é extremamente bem estruturado, embora sua forma de
gestão seja considerada complexa. De modo que, as etapas de implementação
abrangem a Justiça Restaurativa em quatro níveis essenciais, desde as
unidades jurisdicionais e os projetos pilotos, passando pelo Poder Executivo, até
a comunidade. Desse modo, o projeto tem o potencial de atingir resultados em
nível individual e institucional, desde que monitorados e avaliados.
O Programa Justiça Restaurativa para o Século 21 implantou, no ano de
2015, 12 unidades Jurisdicionais de Referência em Justiça Restaurativa (UNIR),
sendo quatro na comarca da capital, nos Juizados da Infância e Juventude; na
Vara de Execuções Criminais (Presídio Central); na Vara de Execução de Penas
e Medidas Alternativas; e no Juizado da Violência Doméstica contra Mulher,
assim como em mais 8 comarcas do interior.
É importante ressaltar que os Juizados da Violência Doméstica, conforme
o Relatório Analítico do CNJ, realizam círculos de construção da paz envolvendo
homens agressores e mulheres vítimas de violência doméstica, muito embora
possa haver a participação da mulher vítima no programa sem que haja,
necessariamente, a participação do marido ou companheiro agressor.
Assim sendo, observa-se que os projetos no estado do Rio Grande do Sul,
utilizam, em sua maioria, a metodologia dos processos circulares, tanto para
situações nas quais inexiste conflito interpessoal, quanto para situações em que
as vítimas não aderem ao procedimento.
É importante destacar que o encaminhamento das situações de violência
doméstica para as práticas restaurativas depende da discricionariedade do juiz
in casu, a juíza Madgéli Frantz Machado, juíza líder do “Programa Justiça
Restaurativa para o século 21”, recebe conflitos familiares provenientes da
Delegacia da Mulher, em sequência agenda audiência de acolhimento e
verificação do pedido de medida protetiva, nos casos em que há pedido. Nessa
ocasião, magistrada avalia a possibilidade encaminhamento para a Justiça
Restaurativa.
O diálogo a respeito do problema pode servir de apoio aos participantes,
auxiliar na solução, evitar a propagação de conflitos, reduzirem a reincidência e
contribuir para o coesionamento da vida comunitária. ( Paz, 2012)
A implementação das práticas restaurativas em tais conflitos familiares,
aumentam as chances das vítimas de violência doméstica a procurarem ajuda,
uma vez que permite a escuta ativa e contribui para a compreensão sobre o fato
criminoso. Esse modelo em virtude de visar o ímpeto dos problemas domésticos,
seja em razão da vulnerabilidade e da relação dos envolvidos, pode ser eficaz
no rompimento do ciclo de violência.

CONCLUSÃO

A Justiça Restaurativa se preocupa com as necessidades das vítimas


possibilitando o envolvimento com o processo e ampliando sua participação,
com um olhar humano e democrático, com o fito de restabelecer relações.
Em um cenário de crescentes dados estatísticos de violência doméstica,
afigura-se a justiça restaurativa como um mecanismo que sonda as
707

necessidades da vítima, mediante seus princípios, valores e técnicas, reputando


como finalidade a pacificação social e o empoderamento e emancipação da
vítima ante a busca da superação do delito, da estigmatização e das
consequências do crime.
Vale ressaltar que há casos e situações em que o restaurativismo penal
termina por ser inadequada a sua aplicabilidade levando em consideração a
gravidade do delito. É importante frisar que as técnicas restaurativas não podem
ser consideradas como um mecanismo de exclusão da conduta enquanto crime,
ou até mesmo um meio de barganha, mas um instrumento que privilegia a
revitalização dos vínculos fragmentados atentos às singularidades de cada
situação específica.

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SANTA CATARINA. Universidade Federal de Santa Catarina. Conselho


Nacional de Justiça. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa,
Direitos e Garantias Fundamentais - PILOTANDO A JUSTIÇA
RESTAURATIVA: O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO. (2018) Florianópolis.

SÉRIE Pensando o Direito: O papel da vítima no processo penal. 24. ed.


Brasília- DF: IBCCRIM, 2010. 89 p. v. único. ISBN 21755760. E-book.

WELZEL, Hans. El nuevo sistema del Derecho Penal. Trad. Cerezo Mir.
Montevideo/Buenos Aires, Editorial B de F, 2004.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a


justiça. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2008.
709

JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO CAMINHO PARA A SOLUÇÃO DOS


CONFLITOS CRIMINAIS?
RESTORATIVE JUSTICE: A NEW WAY TO SOLVE CRIMINAL CONFLITCS?

Saulo Tarsis Paiva Vieira


Bruno Bertolotti

Resumo: O presente resumo tem como objetivo o estudo da Justiça


Restaurativa, modelo de abordagem frente ao acontecimento de ilícitos penais
que tem por objetivo a superação dos traumas produzidos pelas condutas
criminosas, baseando-se no diálogo, na assunção da responsabilidade por parte
do ofensor e no atendimento às necessidades da vítima. A Justiça Restaurativa
tem se colocado como uma alternativa ao modelo retributivo, modelo
convencional, que se baseia na aplicação de sanções, principalmente penas
privativas de liberdade. Atualmente, bastante difundidas, tais práticas estão
presentes também no Brasil, onde encontram plena compatibilidade com o
ordenamento jurídico vigente, inclusive alcançando resultados mais que
satisfatórios, mostrando-se como uma solução plausível diante da falência do
atual sistema punitivo.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Resolução de conflitos. Aplicabilidade.

Abstract: This research aims to study the Restorative Justice, a model of


approach to the event of criminal offenses that aims to overcome the trauma
produced by criminal conduct, based on dialogue, the assumption of
responsibility by the offender and the meeting the needs of the victim. Restorative
justice has been placed as an alternative to the retributive model, conventional
model, which is based on the application of sanctions, especially custodial
sentences. Currently, widespread, such practices are also present in Brazil,
where they find full compatibility with the current legal system, including achieving
more than satisfactory results, proving to be a plausible solution to the failure of
the current punitive system.
Keywords: Restorative Justice. Conflict resolution. Applicability

INTRODUÇÃO

É bastante nítido, nos dias atuais, o fracasso do modelo penal punitivista.


Infelizmente, os métodos tradicionais de lidar com a criminalidade não nos dão
a segurança de que aqueles que são submetidos às penas privativas de
liberdade não voltarão a delinquir. Pelo contrário, os nossos cárceres são
“universidades” do crime, pois, ao invés de cumprir o seu papel de atuar na
diminuição da criminalidade, seja através do viés intimidatório ou do
ressocializador, acaba por produzir, a cada dia, um sem número de criminosos.
Estamos, portanto, diante de um panorama de crise do atual sistema
punitivo, sendo de muita importância a reflexão sobre novos e modernos
métodos para se evitar a criminalidade.
Um novo modelo que tem alcançado resultados positivos é a Justiça
Restaurativa, que possui um enfoque na superação dos traumas produzidos
pelas condutas criminosas através do diálogo, da assunção de responsabilidade
por parte do ofensor e do atendimento das necessidades da vítima.
710

Esse breve resumo pretende analisar como as práticas restaurativas


podem complementar o sistema formal de justiça. Em outras palavras, discute-
se se o sistema de justiça em vigor, preponderantemente preocupado com a
sanção que será imposta ao ofensor e que nem sempre atende aos anseios de
quem sentiu na pele essa transgressão, pode, e em que medida, ser
complementado pelo sistema restaurativo, que não se preocupa apenas com a
reparação material do dano, como também com a reparação moral e relacional,
em busca de uma convivência pacífica futura. Tal ponderação levou em
consideração que em nosso ordenamento jurídico prevalece os princípios da
legalidade, da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal pública.

DESENVOLVIMENTO

A necessária reflexão sobre o modelo de justiça criminal atual,


principalmente no que diz respeito à pena da prisão, nos leva a conclusão de
que tal modelo não apresenta resultados satisfatórios, pois mostra-se ineficaz,
se não completamente, em altíssimo grau.
A imposição de penas, que deveria ter como resultados a intimidação e a
ressocialização, apresenta efeito totalmente diverso, pois, na prática, as penas
restritivas de liberdade ensejam elevadíssimos índices de reincidência, enormes
custos para o Estado, afrontando claramente a dignidade da pessoa humana e
surtindo efeitos sociológicos e psicológicos nefastos, além de índices de
criminalidade cada vez mais elevados.
A observação de que o modelo punitivista, no qual se baseia o nosso
sistema penal moderno, é ineficiente e fadado a falência não é atual. Já à época
de seu surgimento, a utilização da prisão como pena era alvo de muitas críticas.
Em seu brilhante tratado histórico sobre a pena, enquanto forma de coerção e
suplício e meio de disciplina e aprisionamento ser humano, Michel Foucault
datou o início da utilização do encarceramento como modo de punição no século
XIX, pois foi naquele momento que a prisão acabou substituindo outras formas
anteriormente utilizadas, como o suplício e as penas proporcionais aos crimes,
dentro de uma reforma humanista do sistema penal que remonta ao século
XVIII1.
O filósofo francês, na obra Vigiar e punir, observa que durante o século
XVIII, os suplícios, forma de pena implementada contra o corpo dos delinquentes
cujo objetivo era o de provocar dor e sofrimento, passou a ser muito criticado
pelos humanistas, que protestavam por uma justiça criminal que punisse e não
se vingasse dos criminosos.
Tal transformação ocorreu no âmbito de um contexto em que houve um
considerável crescimento econômico, e, por consequência, um relevante
aumento de riqueza. Desta feita, a justiça criminal passa a objetivar os crimes
contra o patrimônio, deixando, em um segundo plano, os crimes de homicídio e
agressões.
Apesar de considerar que durante o período humanitário ocorreu o
abandono do caráter cruel e irracional da aplicação da pena, o que promoveu
uma maior proporcionalidade entre o crime e a respectiva sanção, Foucault
enfatiza que os humanitaristas estavam mais interessados em atender os
anseios da burguesia do que em efetivamente punir mais adequadamente os

1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.


711

delinquentes. Assim, tal transformação no sistema punitivo teve como objetivo


fomentar uma diminuição dos crimes patrimoniais.
Todavia, o sistema punitivista, que se baseia no encarceramento e na
privação da liberdade, cumpria um segundo objetivo, que envolve toda uma
técnica de poder, técnica esta que se encontra permeada em toda a nossa
sociedade: a disciplinarização dos indivíduos. As prisões efetivavam a última
medida de controle do indivíduo, aplicada quando as demais instituições
disciplinares, qual sejam, a família, a escola, o quartel e a fábrica, fracassavam.
À tais instituições disciplinares, atendendo aos interesses e anseios da
classe que alcançava o poder político – a burguesia –, competia a formação de
indivíduos que se submetessem, sem questionamentos ou posicionamento
crítico, à nova ordem que se impunha, entregando sua força e energia para que
se efetivasse a reprodução do capital. Assim nasciam os “corpos dóceis” 2.
Tal sistema penal, meramente preocupado com o encarceramento
daqueles que transgridem a norma criminal, tem provocado uma série de efeitos
deletérios. Dentre tais efeitos destacam-se: (i) a não redução das taxas de
criminalidade, muito pelo contrário, mesmo que se multiplique o número de
prisões e de encarcerados, a criminalidade só aumenta; (ii) a multiplicação de
reincidentes, pois a grande maioria dos apenados com a privação da liberdade,
após o cumprimento de sua pena, voltam a transgredir; (iii) a prisão “fabrica”
delinquentes em razão das condições a que submete os apenados; (iv) o
favorecimento a organização de delinquentes solidários entre si e
hierarquizados, etc.
Entretanto, para além de tais constatações, devemos ter o entendimento
de que tal sistema foi construído para atender as ambições da burguesia. Assim,
temos que a construção jurídica, ocorrida no século XIX, sobre os tipos penais,
nada mais era do que a expressão de um Estado burguês que buscava a
proteção de seu bem mais valioso, o capital.
O Estado colocou-se como o único ente capaz de produzir normas
jurídicas, surgindo um direito monista. Em outras palavras, entendia-se que o
direito somente poderia emergir do Estado, que somente tal figura teria a
capacidade de produzir o direito. Ou seja, o Estado burguês, na defesa de seus
interesses, editava normas que podem ser consideradas como “um mecanismo
estático, instituído e instrumentalizado das classes dominantes”3.
Entretanto, ante a falência do atual sistema punitivista, é necessário
assumir uma abordagem crítica, no sentido de se realizar um rompimento com a
norma consagrada, com o paradigma retributivo, alçando-se para uma forma
diferente e emancipadora.
Não é absurdo afirmar que, frente ao direito positivado, que nada mais é
do que a imposição dos interesses das camadas dominantes, a sociedade, ávida
pela recuperação dos padrões éticos e pela restauração das comunidades, tão
traumatizadas e fragilizadas pela criminalidade crescente, procure por direitos
alternativos, que possam propiciar a pacificação dos conflitos e a cicatrização
das feridas sociais.
Busca-se, portanto, não a aplicação do direito estatal, punitivista, que tem
como escopo principal a atribuição da culpa e a imposição da pena, mas um

2FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 127.
3SCREMIN, Mayra de Souza. Do positivismo jurídico à teoria crítica do Direito. In: Revista da
Faculdade de Direito UFPR, v. 40, n. 0, 2004. p. 150.
712

direito que promova a “restauração” dos conflitos, dos traumas, não só a nível
individual (vítimas dos delitos), mas, porque também não, ao nível comunitário.
Em oposição ao modelo retributivista, encontra-se o paradigma
restaurador.
As práticas restaurativas não são, necessariamente, uma novidade
quando se trata de formas possíveis de resolução de conflitos. Isto porque,
desde tempos imemoriais as sociedades humanas utilizavam-se de práticas de
teor restaurativo quando determinada ação, individual ou coletiva, desafiava a
ordem e a paz social.
De acordo com Marcus Rolim, costumamos pensar todo um longo período
da História, mais especificamente, aquele anterior ao surgimento do Estado,
como um momento em que os conflitos ocasionados pelas infrações eram
solucionados mediante “práticas de vingança pessoal e pela imposição de
medidas violentas e arbitrárias”. Ou seja, “que as tradições que antecedem o
direito penal moderno foram, tão somente, um sinônimo para a vontade do mais
forte”4.
Contudo, vários autores, entre eles Howard Zehr, um dos principais
teóricos do paradigma restaurativo, observam que tais práticas, descritas acima,
na verdade coexistiram com práticas não-violentas.
Assim, como afirma Rolim, antes da Justiça Estatal, “Pública”, existiu, ou
melhor, coexistiu, juntamente com a Justiça Privada, “práticas de justiça
estabelecidas consensualmente nas comunidades, e que operavam através de
processos de mediação e negociação”5.
Jaccoud afirma, por sua vez, que as sociedades comunais, ou seja, as
sociedades pré estatais, “privilegiavam as práticas de regulamento social
centradas na manutenção da coesão do grupo”6.
Tal autora, professora da Escola de Criminologia da Universidade de
Montreal (Canadá), afirma que práticas que podem ser descritas como
restaurativas, por serem baseadas na conciliação e no estabelecimento de um
acordo restaurativo entre as partes envolvidas, são encontradas em vários
códigos decretados ao longo da história da civilização humana.
Porém, a partir do advento do Estado Moderno, com a formação das
monarquias nacionais na Europa, observou-se um movimento de esvaziamento
das práticas comunitárias de justiça, estabelecendo-se um monopólio estatal
sobre os conflitos tidos como criminais. Conforme afirma Rolim, “as vítimas
deixam de ter qualquer papel importante no processo penal pois são substituídas
pela autoridade do Estado”7.
A própria ideia de crime é alterada, passando a ser entendida não como
uma ofensa à vítima, capaz de causar uma perturbação na comunidade, mas
como uma conduta que afronta o texto legal. Não se tratava mais de reatar o
equilíbrio após a ruptura das relações sociais causadas pela conduta indesejável
do infrator, mas sim de puni-lo.

4 ROLIM, Marcus. A Síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no


século XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p. 236-237.
5 ROLIM, Marcus. A Síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no

século XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p. 237.


6 JACCOUD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa.

In: BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (Org.).
Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. p. 163.
7 ROLIM, Marcus. A Síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no

século XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p. 237.


713

Contemporaneamente, as práticas restaurativas ressurgiram na década


de 1970, retomando o padrão utilizado pelas antigas comunidades, onde
ocorriam encontros entre a vítima, o agressor e terceiros interessados, sempre
na presença, e sob a coordenação de um facilitador.
Segundo Jaccoud, o ressurgimento contemporâneo dos modelos
restaurativos deve-se a vários fatores, destacando-se, entre eles, três correntes
de pensamento. “Trata-se dos movimentos de 1) de contestação das instituições
repressivas, 2) da descoberta da vítima e 3) de exaltação da comunidade”. Não
descarta, contudo, os movimentos reivindicatórios dos povos nativos, no caso
dos Estados formados durante um processo de colonização, “que demandaram
que a administração da justiça estatal respeitasse suas concepções de justiça”8.
No mundo contemporâneo a Justiça Restaurativa tem como marco de
implantação as décadas de 70 e 80 do século XX, nos Estados Unidos, Europa
e Ásia. Este movimento teve como fonte de inspiração preponderante, porém
não exclusivo, as antigas tradições pautadas em diálogos pacificadores e
construtores de consenso oriundos de culturas africanas e das primeiras nações
do Canadá e da Nova Zelândia.
Motivados, sobretudo, pela percepção da ineficiência do modelo de justiça
criminal convencional, diante do seu fracasso em “responsabilizar expressiva ou
significativamente os infratores ou em atingir adequadamente as necessidades
e interesses das vítimas”9, países como Austrália, Canadá, Estados Unidos,
África do Sul, Argentina, Colômbia, dentre outros, passaram a adotar práticas
restaurativas.
Os primeiros estudos teóricos, bem como observações da prática
judiciária, sob o prisma restaurativo, foram realizados em nosso país em 1999,
no Rio Grande do Sul.
A justiça restaurativa nada mais é do que um modelo de política criminal,
que, em síntese, repudia a visão simplesmente retributivista, que enfatiza a
necessidade de se punir o infrator, focando na possibilidade de promover a
pacificação da comunidade afetada pela prática criminosa, partindo da aplicação
de técnicas de mediação, conciliação e transação.
O que se procura com as práticas restaurativas não é se chegar a uma
pena que será aplicada ao infrator, mas sim o que fazer para restaurar a
situação, para pacificar a comunidade atingida pela prática delituosa.
Por ser um novo modelo, que ainda se encontra em construção, não há
uma definição unânime sobre Justiça Restaurativa, porém os vários autores que
se dedicam ao seu estudo convergem em vários pontos.
Conforme Slakmon, De Vitto e Gomes Pinto:

[...] podemos avançar com um conceito preliminar, dizendo que ela, a


justiça restaurativa, pode ser definida como um procedimento de
consenso, em que a vítima e o infrator, e quando apropriado, outras
pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como
sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de

8 JACCOUD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa.


In: BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (Org.).
Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. p. 164.
9 MORRIS, Alisson. In: BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT, Sérgio Rabello

Tamm (Org.). Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. p. 441.
714

soluções para a restauração dos traumas e perdas causados pelo


crime. 10

A partir da afirmação acima, destaca-se alguns pressupostos básicos da


Justiça Restaurativa: a) a reparação do dano causado; b) a participação das
partes interessadas; e c) a transformação dos envolvidos, seja o ofensor, o
ofendido, ou a sociedade.
Nesta visão, de forma bastante sucinta, salienta-se que o alvo principal da
Justiça Restaurativa seria estabelecer uma aproximação entre ofensor e vítima,
para que o conflito causado possa ser solucionado por meio do diálogo entre as
duas partes. Ao ofensor caberia restaurar os prejuízos que sua conduta trouxe
para a vítima por meio da assunção de sua responsabilidade.
Trata-se, portanto, de “uma tentativa de criação de um novo modelo de
justiça criminal, desvinculado do excessivo formalismo – típico da modernidade
– e procurando pensar em solucionar a situação-problema, e não simplesmente
em atribuir culpa a um sujeito”11.
Assim, para a Justiça Restaurativa, a solução dos conflitos repousa não
nas mãos do Estado, mas pertence aos próprios envolvidos. São eles que
“chegarão a uma resposta mais adequada para o problema por meio do diálogo,
da assunção da responsabilidade, da restituição do dano causado”12.
Apesar do modelo restaurativo apresentar-se como o contraponto ao
modelo retributivo, destaca-se que, apesar do encarceramento não ser o objetivo
final a ser buscado, não se exclui totalmente tal possibilidade, visto que esta
pode ser a solução vislumbrada pelas partes como mais viável.
Salienta-se que a Justiça Restaurativa não pode, evidentemente, ser
aplicada a todos os ilícitos penais, sendo que muitos deles, por sua natureza e
pelos bens jurídicos que protegem, não se adequariam aos princípios do modelo
restaurativo.
Assim, a defesa pela aplicação de práticas restaurativas em nosso
sistema jurídico criminal não significa o abandono do sistema convencional,
sendo que este, apesar de todos os seus pontos negativos, ainda seria
necessário quando diante de práticas delituosas não afeitas ao sistema
restaurativo.
Diferentemente dos países onde prevalece o sistema common law,
marcado pela grande discricionariedade atribuída ao promotor, em virtude do
princípio da oportunidade, nosso ordenamento jurídico apresentava certa
dificuldade de recepcionar as práticas restaurativas, já que vigora em nosso
direito processual penal o princípio da legalidade, da indisponibilidade e da
obrigatoriedade da ação penal pública.13

10 SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; GOMES PINTO, Renato Sócrates
(Org.). Justiça Restaurativa, p. 114. Apud HUESO, Cauê Costa. Aplicabilidade da Justiça
Restaurativa no direito penal brasileiro. 2015. 99 f. Dissertação (Mestrado em Direito Penal),
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. p. 45.
11 ACHUTTI, Daniel. Modelos contemporâneos de justiça criminal: justiça terapêutica,

instantânea e restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 101. Apud PAULA,
Francine Machado de. A crise do sistema penal: a justiça restaurativa seria a solução? Revista
da AJURIS. Porto Alegre, v. 43, n. 141, Dezembro, 2016, p. 132.
12 PAULA, Francine Machado de. A crise do sistema penal: a justiça restaurativa seria a solução?

Revista da AJURIS. Porto Alegre, v. 43, n. 141, Dezembro, 2016, p. 132.


13 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: BASTOS,

Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (Org.). Justiça Restaurativa:
coletânea de artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. p. 29.
715

Todavia, as inovações da Constituição de 1988 e, principalmente, o


advento da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.009/95) contribuíram para abrir
espaços no sistema jurídico nacional, que têm permitido a acomodação do
modelo restaurativo em nosso país, pois permitiram uma flexibilização do
princípio da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal pública 14.
A Constituição de 1988, em seu artigo 98, inciso I, abriu espaço para a
mediação, método alternativo ou complementar de resolução de conflitos e,
como já visto anteriormente, um dos pilares da Justiça Restaurativa.
A mediação vem ocupando lugar especial no processo de modernização
da justiça, permitindo a desjudicialização da solução de alguns conflitos e a
descentralização dos serviços oferecidos.
Além disso, a Lei 9.099/95 confere abertura para que as práticas
restaurativas possam ser realizadas, mediante a possibilidade da composição
de danos (art. 72) em um procedimento que pode ser conduzido por um
conciliador (art. 73).
É importante ressaltar que o instituto da suspensão condicional do
processo, também deve ser mencionado, pois de acordo com o § 2º do artigo
89, da Lei nº 9.099/95, cabe ao juiz especificar outras condições a que fica
subordinada a suspensão, condições estas que poderiam perfeitamente serem
definidas num encontro restaurativo.
Além da Lei nº 9.099/95, também o Estatuto da Criança e do Adolescente
abre uma possibilidade para a aplicação do modelo restaurativo, uma vez que
em vários de seus dispositivos, recomenda-se, implicitamente, o uso de práticas
restaurativas, particularmente quando dispõe sobre a remissão (art. 126).

CONCLUSÃO

A Justiça Restaurativa, ainda incipiente no Brasil, representa um novo


modelo de justiça penal, ainda que sendo um conceito aberto, apresentando
várias facetas, porém destacando-se por práticas e objetivos, dentre os quais se
destacam a busca a conciliação e a reconciliação entre as partes, a resolução
do conflito, a reconstrução dos laços rompidos pelo delito, a prevenção da
reincidência e a responsabilização.
Vale ressaltar que a adoção de práticas restaurativas não implica,
necessariamente, na exclusão da punição convencional, que pode ocorrer nos
moldes legais, sempre se respeitando as garantias inerentes ao devido processo
legal. Sendo, portanto, perfeitamente possível a aplicação de tais práticas em
nosso país, visto que pode ser completamente compatível com o nosso
ordenamento jurídico.
Trata-se de uma forma inovadora de solucionar conflitos penais, fazendo
com que as partes envolvidas possam discutir sobre o ilícito praticado, chegando
a uma solução dialogada, que tem proporcionado a pacificação das
comunidades.
Observa-se, portanto, que ante a uma clara falência do sistema punitivo
baseado no encarceramento, visto que seus objetivos principais e mais dignos,
a prevenção do crime e a ressocialização do indivíduo, não se cumprem, a
Justiça Restaurativa apresenta-se com relevância, a partir da constatação de

14PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: BASTOS,
Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (Org.). Justiça
Restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. p. 29.
716

que maiores penas apenas refletem em maior população carcerária, e não em


menor criminalidade.
Em contrapartida, os projetos nos quais as práticas restaurativas foram
utilizadas vem apresentando resultados encorajadores, que nos permitem
afirmar que a Justiça Restaurativa se tem demonstrado satisfatoriamente eficaz.

REFERÊNCIAS

ACHUTTI, Daniel. Modelos contemporâneos de justiça criminal: justiça


terapêutica, instantânea e restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,


1977.

JACCOUD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a


justiça restaurativa. In: BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT,
Sérgio Rabello Tamm (Org.). Justiça Restaurativa: coletânea de artigos.
Brasília: MJ e PNUD, 2005.

MORRIS, Alisson. In: BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT,


Sérgio Rabello Tamm (Org.). Justiça Restaurativa: coletânea de artigos.
Brasília: MJ e PNUD, 2005. p. 441.

ROLIM, Marcus. A Síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança


pública no século XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

SCREMIN, Mayra de Souza. Do positivismo jurídico à teoria crítica do Direito.


In: Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 40, n. 0, 2004.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes: justiça restaurativa para o nosso tempo.


São Paulo: Palas Athena, 2008.
717

LIMITAÇÕES AO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS


PREVISTO NO ARTIGO 5º, XXXVIII, “C” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988
LIMITATIONS TO THE PRINCIPLE OF VERDICT SOVEREIGNTY
ENVISAGED IN ARTICLE 5, XXXVIII, “C” OF THE FEDERAL CONSTITUTION
OF 1988

Bruna Gregio Soares de Manzano Linjardi


Rejane Alves de Arruda

Resumo: Consagrado na Constituição Federal de 1988, o Tribunal do Júri


adquiriu status de garantia fundamental trazendo consigo princípios para regê-
lo. Dentre estes, o da soberania dos veredictos, que será objeto deste estudo,
cuja finalidade será analisar as limitações, presentes na legislação processual
penal, à sua irrestrita aplicabilidade. A partir de uma pesquisa bibliográfica,
jurisprudencial e de método indutivo, procede-se à análise da maior ou menor
eficácia do princípio da soberania dos veredictos neste procedimento, que tem
finalidade a apuração e julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Após
verificação da legislação, bem como julgados dos tribunais superiores, constata-
se que a harmonia entre direitos e garantias fundamentais é essencial no estado
democrático de direito, razão pela qual o princípio da soberania dos veredictos
deixa de ter um caráter absoluto e cede a princípios como o do devido processo
legal, da segurança jurídica e da justiça que deve permear a atividade
jurisdicional.
Palavras-chave: Princípio da Soberania dos Veredictos. Garantia Fundamental.
Limites à Soberania dos Veredictos.

Abstract: Consecrated in the Federal Constitution of 1988, the Jury Court


acquired fundamental guarantee status bringing principles to govern it. Among
these, the sovereignty of the verdicts, which will be the object of this study, whose
purpose will be to analyze the limitations, present in the criminal legislation, to
their unrestricted applicability. From a bibliographical, jurisprudential and
inductive method research, we proceed to the analysis of the greater or lesser
effectiveness of the principle of verdict sovereignty in this procedure, which aims
to investigate and prosecute intentional crimes against life. After verifying the
legislation as well as judgments of the higher courts, founds that the harmony
between fundamental rights and guarantees is essential in the democratic rule of
law, which is why the principle of verdict sovereignty ceases to be absolute and
yields to principles. Such as due process of law, legal certainty and justice which
should permeate the judicial activity.
Keywords: Principle of Verdict Sovereignty. Fundamental Guarantee. Limits to
Verdict Sovereignty.

INTRODUÇÃO

O instituto do Tribunal do Júri veio consagrado no Art. 5º, inciso XXXVIII,


dentro do capítulo dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal
de 1988. Trouxe, juntamente com ele, outras garantias que se mostraram
verdadeiros princípios constitucionais. É no princípio da soberania dos
718

veredictos, mais precisamente em suas limitações, que o presente trabalho


manterá seu foco do estudo.
Tal tema possui relevância porque se reconhece que a soberania dos
veredictos não tem o condão de tornar uma decisão, oriunda do Tribunal do Júri,
imutável ou irrecorrível. A legislação vigente é bem clara ao permitir que seja
utilizado recursos ou ações autônomas para remediar eventuais ilegalidades ou
erros judiciários que o Júri possa vir a cometer.

1. BREVES CONSIDERAÇÕES AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO


TRIBUNAL DO JÚRI

O crime doloso contra a vida, por se tratar de um ato lesivo cometido por
um ser humano em relação a outro, merece um julgamento pelos seus pares,
seus iguais.
Portanto, o constituinte incluiu no capítulo “Dos direitos e garantias
fundamentais” e especificamente no Art. 5º, inciso XXXVIII, o instituto do Tribunal
do Júri, com quatro garantias expressamente previstas:
a) Plenitude de defesa (Art. 5º, XXXVIII, “a”): um dos mais importantes
princípios do processo penal, se não o mais importante, é o da ampla defesa. No
Tribunal do Júri, o princípio da ampla defesa vem com um caráter especial. O
constituinte deu ao Tribunal do Júri uma defesa não somente ampla, mas
também plena.
Nas palavras de Tourinho, “ampla defesa é um defesa vasta, espaçosa,
(...) já a plenitude de defesa significa uma defesa, além de vasta, completa,
plena.” Desse modo, a defesa pode utilizar inúmeras possibilidades para a sua
realização, valendo-se de argumentos supralegais, como políticos, sociológicos,
filosóficos, religiosos, culturais e, até, clemência.
b) Sigilo das votações (Art. 5.º, XXXVIII, “b”): a decisão dos jurados deve
ser dada em local reservado, longe dos olhares do público e do réu.
Esta garantia visa o sigilo, tanto do ato da votação, quanto o sigilo dos
votos em si. Para tanto, deve-se apurar os votos até que se revele sua maioria,
ou seja, “a apuração dos votos se processará em caráter sigiloso, parando a
contagem quando qualquer quesito receber quatro votos em dado sentido”
(ARRUDA; CALVES; PEREIRA, 2015).
c) Soberania dos Veredictos: eis o princípio a ser tratado neste trabalho,
sendo, oportunamente, discutido.
d) Competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (Art.
5º, XXXVIII, “d”): o constituinte estabeleceu uma competência mínima para o
Tribunal do Júri: o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, consumados ou
tentados.

2. O PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS, PREVISTO NO ART. 5º,


XXXVIII, ALÍNEA “C”, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

De acordo com Plácido de Silva, soberania significa:

Poder supremo, ou poder que se sobrepõe ou está acima de qualquer


outro, não se admitindo limitações, exceto quando dispostas
voluntariamente por ele, em firmado tratados internacionais, ou em
dispondo regras e princípio s de ordem constitucional. Assim, a
soberania é o supremo poder ou poder político de um Estado, e que
719

nele reside como um atributo de sua personalidade soberana. (SILVA,


1984).

Interessante também o ensinamento de que “(...) soberano é o poder que


cria o direito; soberano é o poder que constitui a constituição; soberano é o titular
do poder constituinte. E isto quer quanto ao poder constituinte originário quer
tanto o poder constituinte derivado” (CANOTILHO, 1995).
Partindo destas elucidações, entende-se por soberania dos veredictos a
impossibilidade de um juiz togado substituir-se aos jurados na decisão da causa
(ROMANO, 2012). Nenhuma outra decisão, de nenhum outro órgão do judiciário,
em nenhum momento, pode substituir a decisão do Tribunal do Júri.
Tal princípio constitucional, contudo, limita-se ao meritum causae, ou seja,
jamais outro órgão do Judiciário poderá proferir outra decisão de mérito
substituindo a decisão outrora tomada pelo tribunal do povo.
Contudo, o princípio aqui estudado não pode eliminar o princípio do duplo
grau de jurisdição, de sorte que a decisão dos jurados, mesmo que soberana, é
perfeitamente recorrível. (ROMANO, 2012).
No mesmo norte, em se tratando de um recurso que vise a alteração do
mérito da decisão, por exemplo, não poderá ser julgado pelo Tribunal de Justiça,
cabendo a este, somente, remeter os autos a novo julgamento do perante um
novo Tribunal do Júri.
Sobre o assunto, esclarece Lênio Luis Streck (1995):

Porém, em uma perspectiva garantista do processo penal, não há


como evitar que as decisões, nas hipóteses de serem manifestamente
contrária à prova dos autos, venham a ser revistas na instância
superior. É um direito que assiste as partes envolvidas, mormente ao
réu. Se existe uma garantia constitucional de acesso à justiça e duplo
grau de jurisdição, sob qual fundamento poder-se-ia negá-la no âmbito
dos julgamentos do Júri?

Sendo assim, a legislação prevê o cabimento do recurso de apelação e a


revisão criminal que, dentro dos limites da lei, podem “alterar” ou, até mesmo,
anular decisão proferida pelo Tribunal do Júri.

3. LIMITAÇÕES AO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS

O veredicto, embora soberano, deve respeitar o princípio do duplo grau


de jurisdição. Daí porque a deliberação do Júri não se demonstra irrecorrível. Por
outro lado, ainda que irrecorrível, em face da possibilidade de revisão pro reo,
admite-se a aplicação do instituto da Revisão Criminal em matéria atinente ao
Tribunal do Júri.

3.1 RECURSO DE APELAÇÃO

A apelação é a maneira mais incisiva de limitação ao princípio da


soberania dos veredictos. Sendo assim, esse recurso também oferece um maior
risco à garantia constitucional, o que levou a ter a sua constitucionalidade
questionada.
Foi com o advento da Constituição Federal de 1946 que o princípio da
soberania dos veredictos passou a garantia constitucional. Assim,
acompanhando a efetivação deste princípio no texto constitucional, o Código de
720

Processo Penal sofreu uma alteração em seu Art. 593, inciso III, a qual persiste
até hoje, elencando todas as hipóteses de cabimento do recurso de apelação no
Tribunal do Júri1.
Como os juízes togados não podem alterar o mérito que outrora fora
decidido pelos jurados, o recurso de apelação assume grande peculiaridade no
Tribunal do Júri.
Verifica-se que nos recursos interpostos fundamentados nas alíneas “a” e
“d”, cabe ao tribunal togado, somente e tão somente, cassar a decisão tomada
pelos jurados e remeter o caso a outro julgamento com um novo Tribunal do Júri.
Ou seja, é vedado ao tribunal togado proferir uma nova decisão de mérito.
O recurso com fundamento na alínea “a” somente é cabível em situações
em que houve o error in procedendo, ou seja, somente se avalia se houve
alguma irregularidade processual que enseje em nulidade processual. Ainda em
relação a esta fundamentação, “admite-se o apelo tantas vezes quanto for
necessário, e quando houver nulidade posterior à pronúncia. Sendo anterior, é
irrelevante, salvo se se tratar de nulidade absoluta” (TOURINHO, 2012).
A Apelação com fulcro na alínea “d” também só permite que o tribunal
togado remeta o caso a novo julgamento. Neste ponto, há grande discussão
acerca da constitucionalidade desta alínea. E para os que defendem vertente da
inconstitucionalidade, há a alegação que o tribunal togado não poderia, em
respeito ao princípio da soberania dos veredictos, adentar ao mérito da decisão
tomada pelos jurados, isso porque, se o acusado chegou a ser pronunciado, é
porque existiam indícios suficientes de autoria e materialidade. Assim, ao
prolatar decisão condenatória, os jurados nada mais fizeram do que confirmar e
aceitar o lastro probatório que a decisão da pronúncia tomou.
Contudo, entendimento majoritário, é no sentido de que, nesta hipótese,
o tribunal togado não adentra ao meritum causae, mas somente remete o caso
a um novo julgamento perante o Tribunal do Júri.
Neste apelo, o Tribunal reconhece o error in judicando, isto é, para
fundamentar-se neste inciso, a decisão deve, e é imperioso que assim o seja,
ser manifestamente contrária à prova dos autos. Por isso, “é preciso que a
decisão dos jurados se afaste completamente do acervo probatório. (...) Exige-
se, contudo, que a decisão dos jurados não encontre arrimo em alguma prova”
(TOURINHO, 2012).
Outra questão muito discutida, sobre esse inciso, encontra-se no §3º do
mesmo artigo. Ele estabelece que o apelo com fulcro na alínea “d” seja julgado
provido, remetendo-se o caso a novo julgamento. Entretanto, a nova decisão dos
jurados não pode ser impugnada sob o mesmo fundamento.
No que toca às alíneas “b” e “c”, estas não merecem maiores delongas.
Isso porque, nessas hipóteses, o tribunal togado somente sana erro cometido
pelo juiz-presidente do Tribunal do Júri.
Na hipótese da alínea “b”, ao prolatar a sentença, o juiz-presidente, de
alguma forma foi contrário à decisão dos jurados, ou então, contrário à lei.

1Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: (...)


III - das decisões do Tribunal do Júri, quando: a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia;b) for a
sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; c) houver erro ou
injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança; d) for a decisão dos jurados
manifestamente contrária à prova dos autos. (...).
721

Ou seja, “não obstante à soberania dos veredictos, nada impede possa o


Tribunal ad quem corrigir o desacerto, pois, nesse caso, não se retifica a decisão
dos jurados, mas a do Juiz-Presidente” (TOURINHO, 2012).
Já na alínea “c” encontramos o apelo sob a hipótese do juiz-presidente ter
cometido um erro ao aplicar a pena ou medida de segurança. O erro, ou injustiça,
somente pode ser cometido pelo juiz-presidente porque cabe a ele, e somente
ele, dosar a pena.
Portanto, caso o apelo seja fundamentado tanto na alínea “b”, quanto na
“c”, o tribunal togado somente fará a retificação de erro comedido pelo juiz-
presidente, não havendo interferência no princípio da soberania dos veredictos.

3.2 REVISÃO CRIMINAL

Prevista no Código de Processo Penal, Revisão Criminal é uma a ação


autônoma de impugnação de competência originária dos Tribunais ou das
Turmas Recursais, que visa, em suma, após o trânsito em julgado, e a qualquer
tempo, rescindir uma sentença de natureza condenatória ou, quando muito,
absolutória imprópria.
Verifica-se que a revisão criminal somente pode ser proposta em favor do
condenado e, mesmo que pareça uma ofensa ao princípio da soberania dos
veredictos, fato é que a revisão criminal é perfeitamente cabível em decisões
proferidas pelo Tribunal do Júri.
O que se analisa, na revisão, é o direito de liberdade que é uma
expressiva garantia constitucional e obviamente se sobrepõe a todas as outras.
Segundo TOURINHO (2012):

Como ação penal destinada à tutela do direito de liberdade, a revisão


criminal pro defensionis é, ao demais, direito e garantia decorrentes da
própria Constituição. Trata-se de corolário imediato da plenitude do
direito de defesa tão solenemente proclamada no art. 141, § 25, da Lei
Maior. (Referência à Constituição de 1946). (Apud,BUENO).

Não obstante, mesmo que em um caso em que já se tenha havido o


cumprimento de pena imposta pelo Tribunal do Júri, e respeitando as hipóteses
de cabimento da revisão criminal, não seria de interesse do condenado recuperar
seu status dignitatis? Indiscutível que sim.
Decisões judiciais, sejam elas da justiça comum ou do Tribunal do Júri,
são tomadas por seres humanos que são passíveis de erros. Assim, seria fazer
justiça manter uma pessoa presa e/ou condenada por crime que não cometeu?
Por um erro do judiciário? Evidente que não.
Em que pese a soberania dos veredictos ser uma garantia constitucional,
esta não deve suplantar, em hipótese alguma, ao direito de liberdade, havendo,
também neste ponto, outra forma de limitar o princípio da soberania dos
veredictos.

3.3 O ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO RECURSO


ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS Nº 117.076/PR

Em relação ao que foi estudado e abordado no presente trabalho, em


decisão recente, o STF entendeu que os jurados “não estão vinculados a critérios
722

de legalidade estrita”, Enaltecendo, portanto, o princípio da soberania dos


veredictos.
Na decisão em comento, o STF reverteu decisão anterior que, por força
de recurso de apelação da acusação com fulcro no Art. 593, III, “d” havia anulado
julgamento em que houve a absolvição do réu por clemência, tornando válida,
portanto, a primeira decisão absolutória tomada pelo conselho de sentença.
Para tanto, note-se um trecho do que foi julgado:

Isso significa, portanto, que a apelação do Ministério Público,


fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com aprova
dos autos (CPP, art. 593, III, “d”),caso admitida fosse, implicaria
frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania
dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do
acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão
obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados
togados(CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente
motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva
garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art.5º,
XXXVIII, “b”), daí resultando a incognoscibilidadeda apelação
interposta pelo “Parquet”.

Constata-se que o Ministro Celso de Mello, relator da decisão, foi bem


claro ao mencionar que o recurso da acusação, caso fosse provido, estaria
violando os preceitos constitucionais da soberania dos veredictos e da plenitude
de defesa.
Corroborando este entendimento, Tourinho já ensinava que a alínea “d”
do inciso III do Art. 593, deveria passar por uma reforma pontual no sentido de
vedar o apelo sob esse fundamento para a acusação:

A nosso juízo, em uma eventual reforma setorial do nosso estatuto


processual penal, dever-se-á permitir à Defesa o apelo com fulcro na
letra d, vedando-se-o à Acusação. Já que a Lei Maior resguarda a
soberania dos veredictos e a liberdade individual, e considerando
que esta suplanta aquela, nada obsta, em homenagem ao direito de
liberdade, seja mantida a soberania dos veredictos quando o réu
foi absolvido, não podendo a Acusação apelar com fundamento
na letra d. Ao mesmo tempo, se houve sentença condenatória
manifestamente contrária à prova dos autos, ainda em homenagem ao
direito de liberdade, permitir-se-á o apelo à Defesa (TOURINHO,
2012). Grifo nosso.

Aqui encontram-se duas garantias constitucionais tuteladas, a da


liberdade individual e da soberania dos veredictos. Portanto, segundo
entendimento supra, mesmo que o Júri tenha decidido de maneira contrária às
provas dos autos absolvendo o réu, a acusação não poderia recorrer nesse
sentido a fim de restringir a liberdade individual que lhe foi assegurada.

CONCLUSÃO

Em análise ao que foi estudado, os limites impostos pela legislação ao


princípio da soberania dos veredictos, possuem um respaldo legal e não devem
ser ignorados.
723

Se a deliberação dos jurados fosse imutável, estar-se-ia diante de uma


arbitrariedade que impossibilitaria a reforma de uma decisão mesmo diante uma
nulidade ou um erro inescusável.
Assim, é possível afirmar que tais limitações ao princípio da soberania dos
veredictos constituem instrumentos que o legislador criou para que a garantia
constitucional fosse aplicada sempre em prol do réu, não lhe restringindo
nenhuma outra garantia constitucional.

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Veredictos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

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Apresentação: Celso Laifer. Rio de Janeiro: Nova era, 2004, 7ª reimpressão.

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25 set. 2019.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo


Penal. Rio de Janeiro: RJ. Presidência da República. Disponível em:
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set. 2019.

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Disponível em:
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724

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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal


Comentado. Vol. 2. 14. ed. Rev. e de acordo com a Lei 12.403/11 - São Paulo:
Saraiva, 2012.
725

O JUIZ DAS GARANTIAS COMO MEIO DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA


IMPARCIALIDADE NO PROCESSO PENAL
THE JUDGE OF GUARANTEES AS A MEANS OF EFFECTUATION THE
PRINCIPLE OF IMPARTIALITY

Fabiana da Fonseca Furtado

Resumo: Em uma tentativa de suprir as demandas político-sociais atuais,


adequando o direito processual penal à realidade brasileira tramita pelo Senado
Federal o Projeto de Lei n. 8.045/2010, o anteprojeto do Novo Código de
Processo Penal. Nesse cenário, o presente resumo expandido visa compreender
se a figura do juiz das garantias, previsto no anteprojeto do Novo Código de
Processo Penal, é um meio de efetivação do princípio da imparcialidade no
processo penal brasileiro. Para tanto, utiliza-se o método de dedutivo aliado a
técnicas de pesquisa bibliográfica com a análise do princípio da imparcialidade,
da figura do juiz no processo penal brasileiro atual e do instituto do juiz das
garantias. Por fim, defende-se que a adoção do juiz das garantias é um meio de
efetivação do princípio da imparcialidade e, principalmente, um direito do
indivíduo de um processo penal justo.
Palavras-chave: Direito Processual Penal. Juiz das Garantias. Direitos
Humanos.

Abstract: In an attempt to meet the current social and political demands,


adapting the criminal proceedings to the Brazilian reality, at the Federal Senate
is the Bill n. 8.045/2010, referent to the New Criminal Proceedigns Code. In this
scene, this expanded summary has the goal to understand if the figure of the
judge of guarantees, foreseen in the New Code of Criminal Proceedings Project,
is a means of effectuation the principle of impartiality in Brazilian criminal
proceedings. To this end, will be used the deductive method combined with
bibliographic research techniques with the analysis of the principle of impartiality,
the figure of the judge in the current Brazilian criminal proceedings and the
institute of the judge of guarantees. Finally, it argues the adoption of the judge of
guarantees is means of applying the principle of impartiality and is important for
the human rights to a fair criminal proceedings.
Keywords: Criminal proceedings. Judge of guarantees. Human rights.

INTRODUÇÃO

O Código de Processo Penal, promulgado em 1941, passou por


alterações pontuais nos últimos anos com o objetivo de se adequar às realidades
sociais do país e após setenta e sete anos de sua vigência o cenário se alterou
historicamente, teoricamente e, na prática, em atenção aos proveitos esperados
de toda a intervenção estatal.
Em razão disso, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n°
8045/2010, que tem por objetivo a modernização da legislação processual penal
no Brasil, a eficiência e a harmonia com os tempos atuais, principalmente com a
Constituição Federal de 1988 e o Estado Democrático de Direito.
O projeto traz diversas alterações para o Novo Código de Processo Penal
e dentre elas, há a adoção da figura do juiz das garantias, sujeito que atuará na
fase pré-processual.
726

A ideia de adoção da figura do juiz das garantias no processo penal


brasileiro tomou mais força também com o Projeto de Lei n. 4.981/2019, que
busca alterar o Código de Processo Penal atual e instituir o juiz das garantias
como sujeito da fase pré-processual.
Diante desse cenário, a problemática se baseia na busca de compreensão
do instituto do juiz das garantias, previsto no Projeto do Novo Código de
Processo Penal e adotado por muitos países como Alemanha e Espanha,
verificando se seria um meio adequado para a efetivação do princípio da
imparcialidade do juiz dentro da perspectiva do Processo Penal Brasileiro.
O objetivo do trabalho se preocupa com a análise acerca da figura do juiz
das garantias no processo penal que é de extrema importância para o debate
sobre os direitos humanos, o sistema penal brasileiro e os princípios norteadores
do processo penal, ou seja, além de se revestir de um aspecto prático
importante, a busca pela justiça e a verdade real, confere importância no meio
acadêmico no que diz respeito ao estudo do (novo) processo penal brasileiro.
O método a ser utilizado é o dedutivo, aliado a técnicas metodológicas de
pesquisa bibliográfica, apoiando-se em técnicas de pesquisa qualitativa,
buscando elucidar os conceitos de imparcialidade, da figura do juiz no
ordenamento jurídico atual e do juiz das garantias.
O presente trabalho será dividido em quatro tópicos, nos quais serão
abordados, respectivamente: o princípio da imparcialidade no processo penal, a
figura do juiz no processo penal, o juiz das garantias e a figura do juiz de
garantias como meio de efetivação princípio da imparcialidade no processo
penal.

O PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE NO PROCESSO PENAL

A imparcialidade deve nortear todas as fases do processo, bem como


aquelas que o antecedem, em observância ao princípio do juiz natural que
assegura que “ninguém pode ser processado nem sentenciado senão pela
autoridade competente1”, sendo assim, o indivíduo somente pode ser julgado por
órgão estabelecido de forma prévia em lei.
TÁVORA e ALENCAR (2019, p. 73) definem a imparcialidade como
“característica essencial do perfil do juiz consistente em não poder ter vínculos
subjetivos com o processo de modo a lhe tirar o afastamento necessário para
conduzi-lo com isenção”.
Para CAPEZ (2018, p. 65), a “imparcialidade é uma capacidade subjetiva
do órgão jurisdicional, um pressuposto para constituição de uma relação
processual válida”. O autor ainda destaca que a imparcialidade do magistrado é
essencial, tendo em vista que “ele não vai ao processo em nome próprio, nem
em conflito de interesses com as partes”.
Com base nesses conceitos, a imparcialidade pode ser compreendida
como distanciamento do juiz dos interesses das partes, na busca por não se
contaminar com as vontades dos litigantes, a própria razão de ser da existência
do processo, não a confundindo com a neutralidade.
Pois, não é crível exigir que o Estado-juiz não tenha suas próprias
opiniões e ideologias, elementos que formam o próprio caráter do indivíduo, ou

1Art. 5º, inciso LIII. Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente.
727

seja, é essencial que o juiz seja imparcial na condução do processo, mas para
isso não é necessário que ele seja neutro.
Como destaca MAYA (2014, p. 53), “a neutralidade, compreendida como
ausência de valores, de ideologias, apresenta-se como uma utopia, algo
inalcançável diante da essência do homem, ser humano constituído por razão e
emoção”. E mais, o autor ainda ressalta que a impossibilidade de uma atuação
jurisdicional neutra viabiliza ao juiz o exercício de forma responsável de seu livre
convencimento, ao se utilizar da motivação racional ao invés de se refugiar sobre
máscaras (MAYA, 2014, p. 61).
A legítima e democrática prática da jurisdição tem como consequência a
imparcialidade com que os juízes dizem o direito no caso concreto, por essa
razão é indispensável o apontamento de circunstâncias nas quais o juiz se aparta
do julgamento da lide por não ser imparcial o bastante para decidi-la.
O Código de Processo Penal atual traz garantias da imparcialidade do juiz
com os institutos do impedimento e da suspeição, pois há diversos motivos que
podem gerar a desconfiança acerca da imparcialidade do juiz e que, por essa
razão, o tornam impedido ou suspeito.
O impedimento2 é um motivo previsto na lei que enseja o afastamento
compulsório do juiz, pois lhe arrebata a imparcialidade objetiva, podendo ser
alegado a qualquer tempo. As causas de impedimento estão previstas em um rol
taxativo e geram a inexistência do feito.
Lado outro, a suspeição3 retira a imparcialidade subjetiva do juiz, estando
sujeita à preclusão. As causas são previstas em um rol meramente
exemplificativo e podem ensejar a nulidade do processo.
A imparcialidade é um direito e muito mais do que isso, é imprescindível
para o próprio conceito de jurisdição, entendida como o poder do Estado, que
figura como terceiro imparcial, de dizer o direito no caso concreto, com a
finalidade de colocar fim a um conflito de interesses.
Não bastasse isso, a Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU,
1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966) e a
Convenção Americana de Direitos Humanos, preveem a imparcialidade como
garantia de um processo justo e da dignidade de qualquer pessoa, ademais a
imparcialidade com a qual o indivíduo deve ser tratado, na visão dos direitos
humanos, é o próprio reconhecimento da condição de pessoa humana e
pressuposto para a aplicação de um processo justo.

2 Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: I - tiver funcionado seu
cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau,
inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar
da justiça ou perito; II - ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido
como testemunha; III - tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou
de direito, sobre a questão; IV - ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim
em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no
feito. (BRASIL, Código de Processo Penal. 1941).
3 Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das
partes: I - se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles; II - se ele, seu cônjuge,
ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo
caráter criminoso haja controvérsia; III - se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim,
até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser
julgado por qualquer das partes; IV - se tiver aconselhado qualquer das partes; V - se for credor
ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes; Vl - se for sócio, acionista ou administrador
de sociedade interessada no processo. (BRASIL, Código de Processo Penal. 1941).
728

O JUIZ NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Na sistemática processual penal atual, com a opção pelo sistema penal


acusatório, cabe ao Estado-juiz apreciar e gerir as provas e, principalmente,
aplicar o Direito no caso penal, de forma independente e imparcial.
No sistema acusatório as funções de acusar, defender e julgar são
devidamente separadas, de maneira rigorosa, sendo que a produção de provas
cabe estritamente às partes (Ministério Público ou ofendido) e não ao juiz, ao
contrário do sistema penal inquisitório.
Todavia, é possibilitada ao juiz a produção de provas, de ofício, antes da
fase processual, faculdade dada em razão do poder instrutório e acautelatório,
com a produção antecipada de provas urgentes e relevantes (art. 156, I, do
Código de Processo Penal) e a decretação das prisões acautelatórias temporária
ou preventiva (art. 311, do Código de Processo penal).
Já na fase processual ao juiz são atribuídos o poder de disciplina que visa
coordenar e inspecionar a atividade das partes, como a recusa às perguntas da
parte que puderem induzir a resposta e o poder de impulsão que consiste nas
providências adotadas pelo juiz para que processo tenha um andamento regular,
com a citação do acusado.
Há ainda o poder de instrução que permite ao juiz, de ofício, mesmo antes
do início da ação penal, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a
realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
Por fim, o juiz também tem poderes anômalos, ou seja, aqueles que não
são típicos, como é o caso do princípio da obrigatoriedade previsto no artigo 28,
do Código de Processo Penal.

O JUIZ DAS GARANTIAS

Previsto no projeto do Novo Código de Processo Penal, a figura do juiz


das garantias é aquele responsável por resguardar os direitos e as liberdades na
fase preliminar.
Ao juiz de garantias compete, conforme Projeto de Lei n° 8045/20104,
decidir sobre as liberdades e direitos das pessoas nessa fase preliminar, como
nos casos de pedido de quebra de sigilo, de interceptação telefônica, de quebra
do recinto do domicílio, da prisão preventiva ou temporária, o deferimento ou
indeferimento dessas medidas incumbirá ao juiz de garantias.
Essa figura só estará presente até o momento do recebimento da
denúncia, pois, a partir daí, caberá ao juiz do processo à colheita de provas na
fase de instrução e ao julgamento com a prolação da sentença.
Infere-se que essa figura não se confunde com um juiz de instrução e
muito menos será responsável pela presidência do inquérito policial, já que esta
atribuição permanecerá sob a ótica da Polícia.
O instituto do juiz de garantias já é realidade em países de tradição jurídica
romana, como Itália, Alemanha, Espanha e Portugal. Ele opera com atribuições
de participação na fase pré-processual e de atuação eficaz no processo sendo
que o juiz que atua na fase de investigação preliminar está impedido de participar
na fase processual, ou seja, opera-se pela exclusão da competência.

4 Art.14.
729

Levando em consideração as estruturas sociais, políticas e econômicas e


o ordenamento jurídico adotado pelos países, o modelo do juiz de garantias
apresenta muitas versões.
Na Espanha e na França, antes da fase processual atua um juiz instrutor,
provido de poderes investigatórios. Na Alemanha e na Itália, países nos quais as
titularidades da investigação e do processo pertencem ao Ministério Público, há
o instituto do juiz garante (ou juiz de garantias), destituído de poder instrutório,
mas responsável por zelar pelos direitos do investigado, conduzir a audiência
preliminar e controlar as medidas restritivas de direitos.
Enquanto que em Portugal há a adoção de um sistema misto, no qual o
juiz da investigação preliminar tem competência para investigar, ficando adstrita
a provocação do Ministério Público, e para operar na garantia dos direitos
fundamentais (juiz instrutor e de garantias na mesma pessoa).
Os Tribunais Europeus chamam a atenção para a imprescindibilidade da
aparência da imparcialidade, muito perceptível nas estruturas processuais
adotadas pelos países mencionados anteriormente, pois o juiz deve se manter
afastado do processo, cuidando para que as partes realizem suas funções, como
a produção e apresentação de provas pela acusação e a produção de provas e
apresentação da defesa.

O JUIZ DAS GARANTIAS COMO MEIO DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA


IMPARCIALIDADE NO PROCESSO PENAL

A importância da existência do juiz de garantias vai de encontro com a


distinção clara das funções do magistrado, se o juiz que preside o processo
participa da fase investigatória, ele acaba por ficar contaminado, perde sua
imparcialidade, pois há uma vinculação psicológica, ainda que
inconscientemente, às provas que foram colhidas.
Não é crível afirmar que o juiz, ao entrar na fase processual, excluiria tudo
o que viu e ouviu até aquele momento. Dai a necessidade de dar independência
ao juiz do processo, deve ser um juiz não contaminado, com total e absoluta
imparcialidade, porque é assim que se respeita a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 e os diplomas internacionais em Direitos Humanos
mencionados anteriormente.
O problema no sistema adotado no Brasil é que o mesmo juiz que participa
da fase pré-processual realiza o julgamento e isso nada mais é do que um
resquício do sistema inquisitório no Direito Processual Penal Brasileiro vigente,
porque o juiz que participa dessa primeira fase não fica adstrito apenas a julgar,
estando contaminado.
Ora, por exemplo, na audiência de custódia, prevista na resolução do
Conselho Nacional de Justiça, na qual o preso é apresentado ao juiz, o mais
rápido possível após a sua prisão em flagrante, o magistrado se vê familiarizado
com os elementos de materialidade e autoria do crime, além das circunstâncias
do caso concreto, antes da fase processual se iniciar.
Por óbvio, o magistrado que participa da fase pré-processual forma em
seu interior imagens, pré-conceitos e pré-compreensões que se transformam em
prejuízos decorrentes da existência desses pré-juízos formados na fase
investigatória.
Ao se passar por toda a fase preliminar e após o recebimento da denúncia,
o réu espera haver um magistrado que zele pelo princípio do contraditório, ouça
730

aquilo a que tem a dizer o acusado e decida com imparcialidade. Porém, no


sistema processual penal adotado pelo Brasil, o juiz adentra a fase processual
com conceitos já formados acerca daquele processo, como aqueles adquiridos
em virtude da audiência de custódia.
É uma questão de inconsciente, e até psicanalítica, algo que vai muito
além do próprio Direito, que cruza o inconsciente e se manifesta pela linguagem
declinada nas decisões e nas sentenças.
O juiz não deve ir atrás das provas, pois o ônus de provar cabe àquele
que acusa, no caso, o próprio Ministério Público nos casos de ação penal pública
ou o querelante, nos casos de ação penal privada.
Quanto às críticas a respeito dessa figura, o professor LOPES JR. (Aury,
2010, p. 7,8), destaca que

Uma reforma de verdade exige, principalmente, mudança de cultura e


de estruturas. Cabe ao Estado (...) estruturar-se para atender à nova
realidade. A existência de um período de transição (...), permitirá suprir
as deficiências materiais e pessoais. Além disso, diversas medidas
podem contribuir para a implantação do novo modelo, como o
estabelecimento de um rodízio entre os juízes (...); o alargamento da
competência do juiz das garantias (na organização judiciária de cada
Estado), para que ele também atue no JECrim, na vara de família etc.,
não sobrecarregando os demais; a regionalização do juiz das garantias
(em comarcas pequenas, um juiz pode atender as cidades próximas,
até que seja superado o problema das comarcas únicas).

Assim, as críticas existentes ao instituto do juiz das garantias, que se


baseiam, resumidamente, na falta de recursos humanos (magistrados) e
financeiros, caem por terra.
Ademais, como assevera o autor (LOPES JR., 2010, p. 8), a não opção
pela figura do juiz das garantias tem como consequência prática a atribuição de
poderes investigatórios aos juízes. O que fere de morte o próprio sistema penal
acusatório, beirando o absurdo, haja vista a perspectiva constitucional e
democrática do processo penal.

CONCLUSÃO

A imparcialidade é essencial em todo e qualquer processo,


independentemente da sua natureza, não se confundindo com a neutralidade,
sendo que a sistemática processual penal deve ter a imparcialidade como norte.
Apesar dos novos parâmetros apontados pela Carta da República de
1988, em especial a adoção do sistema penal acusatório, seguimos operando
em uma cultura inquisitória, ferindo de morte o princípio da imparcialidade.
Isso porque, o binômio deveria ser simples: “se há provas suficientes, eu
condeno e se não há, absolvo”. E, no caso de dúvidas, de rigor a aplicação do
princípio in dúbio pro reo.
Nesse sentido, a inclusão da figura do juiz de garantias na fase pré-
processual, seja ela inquérito policial ou de investigação pelo Ministério Público,
é imprescindível para o bom andamento do processo penal.
Em suma, a adoção da figura do juiz das garantias no processo penal,
além de ser uma exigência do garantismo, é também a posição mais adequada
aos princípios que orientam o sistema acusatório e a própria estrutura dialética
do processo penal.
731

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso
em: 16 set. 2019.

_____. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de


1941. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-
Lei/Del3689.htm> . Acesso em: 16 set. 2019.

BRASÍLIA. Senado Federal. Projeto de Lei nº 8.045/2010. Novo Código de


Processo Penal. Disponível:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=
490263> . Acesso em 10 ago. 2019.

LOPES JR., Aury. Breves considerações sobre a polimorfologia do


sistema cautelar no PLS 156/2009 (e mais algumas preocupações). Boletim
IBCCRIM, São Paulo, v. 18, n. 213, edição especial CPP, p. 7 e 8, ago., 2010.

MAYA, André Machado. Imparcialidade e Processo Penal: da prevenção da


competência ao Juiz das Garantias. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2014.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969. Convenção


Americana sobre Direitos Humanos. Disponível em:
<https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>.
Acesso em 22 set. 2019.

SARAIVA, Izabela Novaes. O juiz de garantias: histórico, conceito e


críticas. Conteúdo Jurídico, Brasília - DF: 22 mai. 2014. Disponível em:
<http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.48199&seo=1>. Acesso
em: 16 set. 2019.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito


Processual Penal. 14 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2019.
732

O MÉTODO APAC À LUZ DA LAICIDADE ESTATAL E DO DIREITO À


LIBERDADE RELIGIOSA DO CONDENADO
APAC METHOD IN THE LIGHT OF STATE LAW AND CONDEMNER'S
RELIGIOUS FREEDOM

Gabriela Moscatini Pinto

Resumo: O presente artigo consiste em estudo detalhado referente aos direitos


do condenado que opta por cumprir a pena no sistema APAC (Associação de
Proteção e Assistência ao Condenado). Um ambiente em que são garantidos os
direitos humanos do indivíduo preso, proporcionando-lhe a humanização das
penas. Poderia ser um método eficaz, utilizado como alternativo aos cárceres
tradicionais, se não fosse evidente a obrigatoriedade religiosa. Inserida no
estudo da Criminologia e aspectos sociais, a presente pesquisa, busca reflexão
sobre a adoção da religião como meio disciplinador, e ainda, se a liberdade
religiosa e o Estado Laico, superam a garantia dos direitos humanos intrínsecos.
Concluiu-se que, de certo modo, tendo em vista a precariedade do sistema
carcerário tradicional, e a necessidade de medidas de caráter urgente, o método
apaqueano pode ser considerado um modelo plausível de cumprimento de pena,
conferindo ao recluso, a maioria de seus direitos e garantias previstos em lei.
Palavras-chave: Laicidade. Religião. APAC.

Abstract: This article is a detailed study of the rights of the convict who chooses
to serve the sentence under the APAC (Association for Protection and Assistance
to the Convict) system. An environment in which the human rights of the arrested
individual are guaranteed, enabling them to humanize their sentences. It could
be an effective method, used as an alternative to traditional jails, if religious
obligation were not evident. Inserted in the study of Criminology and social
aspects, this research seeks reflection on the adoption of religion as a disciplinary
means, and also, if religious freedom and the secular state, surpass the
guarantee of intrinsic human rights. It was concluded that, in a certain way, given
the precariousness of the traditional prison system and the need for urgent
measures, the Apaquean method can be considered a plausible model of
punishment, conferring to the prisoner most of his rights and guarantees provided
by law.
Keywords: Secularism. Religion. APAC.

INTRODUÇÃO

A Associação de Proteção e Assistência ao Condenado, criada por Mário


Ottoboni, surge com o objetivo principal de humanização das penas. Ou seja, de
acordo com a legislação brasileira, os devidos direitos e garantias do indivíduo
preso visam ser resguardados pelo método APAC durante o cumprimento de
pena. No entanto, utilizando-se mecanismos religiosos, o método apaqueano
acaba por atingir o direito à liberdade religiosa do indivíduo encarcerado, bem
como afronta ao Estado Laico, ambos também garantidos pela legislação
brasileira.
Assim, a discussão aqui gerada se torna considerável, na medida em que,
o cumprimento de pena do indivíduo encarcerado sempre será cercado de
alguma irregularidade. O que, na teoria, seria inaceitável, uma vez que, todos os
733

seus direitos e garantias são resguardados, não somente constitucionalmente,


mas em diversos textos legislativos brasileiros. A prisão deveria, em tese,
corresponder à privação da liberdade de ir e vir do indivíduo, e nada mais.
Porém, alguns fatores, a ser discutidos nesta pesquisa, influenciam para que
outros direitos e garantias sejam privados, fazendo com que a pena acabe por
desumanizar o indivíduo.
Sem pretender dar respostas definitivas, buscou-se indagar, na presente
pesquisa, se há a possibilidade de ponderar o direito à liberdade religiosa e a
valorização humana no âmbito carcerário. Ou seja, tendo em vista a necessidade
de medidas de caráter urgente, em relação à situação dos cárceres, almeja-se
sugerir e esboçar caminhos reflexivos sobre a possibilidade de a APAC ser um
modelo alternativo plausível ao tratamento desumano nos cárceres tradicionais,
ou ainda, se a mesma, ferindo a liberdade religiosa e o Estado Laico, não se
diferencia de modo algum do cárcere tradicional.

1. A RELIGIOSIDADE NO ÂMBITO JURÍDICO BRASILEIRO

Preliminarmente, é necessário que haja exploração dos dispositivos legais


pertinentes ao tema. Neste caso, inicia-se o estudo pela Constituição Federal
de 1988, onde o artigo 5º da Constituição Federal aborda as garantias e direitos
fundamentais de cada cidadão. O inciso VI de referido dispositivo trata da
inviolabilidade da liberdade de consciência e crença, além de assegurar os cultos
religiosos. Na realidade, o direito à liberdade religiosa corresponde à extensão
da liberdade de pensamento e manifestação, pois esta mesma liberdade engloba
todas as garantias referentes à possibilidade de se praticar crenças, dogmas,
cultos, etc1.
Ademais, no inciso VII, do mesmo dispositivo, assegura-se a prestação
de assistência religiosa e espiritual em ambientes de internação coletiva. Assim,
mesmo encarcerado, o indivíduo tem o seu direito resguardado, com respaldo
na legislação brasileira.
O último inciso pertinente ao estudo, VIII, ressalta que ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e
recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Portanto, não se pode privar um indivíduo de suas garantias e direitos,
com base na sua opção religiosa, não é legítimo invocar a religião para
desrespeito ou descumprimento de normas dispostas. A liberdade religiosa, para
que seja efetiva, demanda o respeito entre ideologias individuais. A liberdade
política, cultural, social, educacional, entre outras, são primordiais para a
existência da liberdade religiosa¹.
A Declaração de Direitos Humanos (1948), também aborda, em seu artigo
18º, as mesmas liberdades anteriormente citadas, sendo elas, a liberdade de
pensamento, de consciência e de opção em relação à religião. Além disso, o
Pacto San José da Costa Rica, invoca, em seu artigo 12º, quatro itens
responsáveis pela legislação referente à Liberdade de Consciência e religião, os
quais corroboram também com todos os textos legislativos acima descritos.

1KEVENY DE LIMA FREITAS, Marcyo; BORBA VILAR GUIMARÃES, Patrícia. Direito à vida
frente à liberdade de crença religiosa: uma análise jurídica da recusa à transfusão de sangue em
testemunhas de Jeová. Natal: Revista de Filosofia de Direito do Estado e da Sociedade - FIDES,
2016. p. 92
734

Além disso, a Lei de Execuções Penais a respeito do tema. A Lei 7.210/84


é favorável à liberdade religiosa, bem como à assistência religiosa, durante o
cumprimento da pena, garantindo a possibilidade de participação em serviços
organizados e a posse de livros de instrução religiosa, tudo isso, dentro do
ambiente prisional.
Portanto, infere-se que a religiosidade de um indivíduo, vai além de
crenças e cultos, corresponde, na realidade, a uma agregação de princípios
incumbidos de pensamentos, ações, consciência. A religião corrobora para a
criação de ideias e pensamentos, ratificando a filosofia oportuna ao indivíduo 2,
motivo pelo qual constitui uma garantia dentro do âmbito jurídico brasileiro.
A origem da palavra “laicidade” se deu nos tempos da Antiguidade.
Refere-se ao que não é clerical, ao que pertence ao povo, como um todo, e não
somente à hierarquia de determinada religião.
O Estado Laico é o Estado que permite o afastamento da religião em
relação ao âmbito político e administrativo³ havendo, portanto, liberdade e
igualdade entre todas as religiões, dentro de um mesmo âmbito nacional. A
laicidade, portanto, vai além do antagonismo entre pensamentos, abrangendo o
princípio da igualdade, da liberdade de crença e religião.
No Brasil, a Proclamação da República em 1889, foi pioneira em proibir a
intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria
religiosa3, momento no qual houve a separação definitiva entre Estado e Igreja.
A partir deste momento, a laicidade estatal passou a ser reproduzida em todos
os textos legislativos seguintes. Atualmente, no Ordenamento Jurídico Brasileiro,
o princípio da laicidade é abordado no artigo 19, inciso I da Constituição Federal
Brasileira. Na realidade, a separação entre Igreja-Estado, dentro do âmbito
nacional brasileiro, não induz à incompatibilidade de ambos, mas oportuna o
auxílio mútuo entre eles4. Sendo uma sociedade altamente pluralística, em
termos religiosos, étnicos, e de crença, o Brasil é propenso à diversidade cultural,
e consequentemente, à diversidade religiosa, fato este que determina a
necessidade de existência de garantias e liberdade religiosas, tal como a
existência de um Estado Laico. Ora, a pluralidade social no Brasil deve
corroborar para a laicidade estatal, assim como para a segurança e garantia da
liberdade religiosa em território nacional. E, portanto, deve o Brasil, se abster de
qualquer relação direta com qualquer religião específica, protegendo o Estado
de qualquer influência religiosa, impedindo a intolerância e a convivência social
desarmonizada5.
Nesta altura do estudo, é necessário que se entenda a relevância das
religiões no âmbito social brasileiro, sendo inegável a existência de um prestígio
da religião predisposto pela sociedade brasileira. Ora, com a chegada dos
portugueses em território brasileiro, iniciou-se a mescla entre diversas religiões,

2MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 8 ed. São Paulo: Atlas,
2007. p. 119.
3DE SOUZA, Ney. A influência da religião européia na cultura brasileira: Da religião mágica à

religião crítica. Ano XXIII. Ed. PUC-SP: Revista de Cultura Teológica, 2015. 108-120 p. v. N. 86.
4 GANEM, Cássia Maria Senna . ESTADO LAICO E DIREITOS FUNDAMENTAIS : Constituição

de 1988 : O Brasil 20 anos depois. Os Alicerces da Redemocratização. Senado Federal , Brasília,


v. Volume I, p. 1-16, jan. 2015.
5PEDRO RAMIREZ CUNHA, Leonardo; NOGUEIRA LOPES, Ligia; LUIZA JOHNLEI WU, Linda.

Laicidade do Estado e a Ostentação de Símbolos Religiosos. Curitiba: Constituição, Economia e


Desenvolvimento; Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2013, vol.
5, n. 9, Jul.-Dez. p. 382-411.
735

de cultos, crenças e dogmas divergentes. Catolicismo, Judaísmo, Paganismo,


Religiões Indígenas e Africanas, exemplos de religiões que passaram por
diversas experiências sincréticas durante o período colonial no Brasil.6.
Nota-se, portando, que a história brasileira iniciou-se por uma
miscigenação, tanto social, quanto católica. O Brasil é diversidade. Pressupõe-
se assim, que, desde a época colonial, a população brasileira foi submetida à
importância das relações sociais-religiosas. A religião faz parte da história do
povo brasileiro, daí vem o seu prestígio.
Fundando-se em tal preponderância social, pode-se fazer uma
associação analógica entre as regras e princípios morais contidos nos livros
sagrados e os dispositivos legais assentados no Ordenamento Jurídico
Brasileiro. Em que pese o Brasil ser um Estado Laico, deve-se considerar a forte
influência católica em questão e, por tal motivo, a breve comparação neste
estudo, direcionar-se-á aos dogmas da Igreja Católica.
É exorbitante a semelhança entre as “leis” impostas por Deus ao homem
e as regras do Sistema Jurídico Brasileiro7, de certo que, é muito comum, que
tais regras versem sobre os mesmos elementos e assuntos. A título de exemplo:
o artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso I, versa sobre a igualdade
entre homens e mulheres, no mesmo sentido, expõe Atos, capítulo 10, versículo
34: “Então, falou Pedro, dizendo: Reconheço, por verdade, que Deus não faz
acepção de pessoas;” 8; a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
no 3º artigo, garante o direito à vida, equivale-se Êxodo, capítulo 20, versículo
13: “Não matarás”8. . Na realidade, uma análise minuciosa revelaria diversos
exemplos semelhantes entre ambos os textos. Ora, a religião determina-se como
uma forma de oferecer orientação moral para a sociedade.
É por tal paridade, somada à história religiosa no Brasil, que, na sociedade
brasileira, há uma predisposição à aceitação da religião, principalmente
relacionando-se ao âmbito social.

2. O MÉTODO APAC

A APAC é uma modalidade alternativa de cumprimento de pena. A


Associação foi criada em 1972, em São José dos Campos, interior do Estado de
São Paulo, tendo sido idealizada pelo advogado Mario Ottoboni, na qual os
preceitos pelos quais foi fundada são seguidos de forma a objetivar,
principalmente, a recuperação do indivíduo preso. A associação possui
fundamento legal tanto na Constituição Federal, em que se valoriza o princípio
do Estado Democrático de Direito referente à Dignidade da Pessoa Humana,
quanto na Lei de Execuções Penais, que dispõe, essencialmente em seu artigo

6OLIVEIRA DE ANDRADE, Maristela. A Religiosidade Brasileira: o pluralismo religioso, a


diversidade de crenças e o processo sincrético. Número 14. Ed. Paraíba: CAOS - Revista
Eletrônica de Ciências Sociais, 2009. 106 - 118 p.
7PEREIRA DE AGUIAR, Itamar; HAVENA ARAGÃO LIMA, Bruna; RIBEIRO MIRANDA DOS

SANTOS, Guilherme. Religião e sociedade: as relações entre o estado e as concepções


religiosas na formação do ordenamento social e jurídico. Ed 12. Bahia: Cadernos de Ciências
Sociais Aplicadas (CCSA), 2013. 10-31 p.
8BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João

Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1966.


736

3º, sobre a impossibilidade da pena atingir os direitos do condenado que


ultrapassem o direito à liberdade9.
A APAC é uma associação sem fins lucrativos, com patrimônio e
personalidade jurídica, próprios. E assim, o patrimônio de referida associação é
paralelo ao Estado, sendo formado por: contribuições dos associados, donativos
sem fins determinados, rateios e subscrições destinados às necessidades
extraordinárias, convênios e parcerias, subvenções governamentais e verbas
oriundas dos juizados especiais.10
Não obstante, devido à escassez de recursos, as APACS se utilizam
preferencialmente de trabalhos voluntários. Além de se atribuírem funções aos
próprios condenados11.
O principal propósito que se pretende alcançar com o método APAC é
assegurar a humanização nas prisões, sem aniquilar o aspecto punitivo da pena,
buscando ainda, diminuir o índice de reincidência, bem como auxiliar o
condenado no processo de reintegração social12.
Neste sentido, primeiramente, tem-se a transferência ou alocação do
preso no Centro de Reintegração Social. Em relação ao procedimento de
transferência, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, estabeleceu as
normas pertinentes por meio de uma Portaria. Em suma, o individuo condenado
à pena privativa de liberdade, independente do regime ou da duração do
encarceramento, deverá: manifestar interesse na transferência, por escrito ou
em ato processual devidamente documentado, e o propósito de se ajustar às
regras do CRS; além de manter vínculos familiares ou sociais, há pelo menos
um ano, na região do Estado onde estiver localizado o CRS, mesmo que outro
tenha sido o local da prática do fato13. Uma vez transferido, o condenado,
culpado ou réu, passa a ser denominado de: recuperando.
No método APAC, o recuperando estará sujeito à observância de doze
elementos fundamentais, que devem ser seguidos rigorosamente, quais sejam:
a participação da comunidade, recuperando ajuda recuperando, trabalho,
religião, assistência jurídica, assistência à saúde, voluntário e sua formação,
família, Centro de Reintegração Social, mérito, Jornada da Libertação em Cristo
e valorização humana.
Nota-se que todos os elementos estão correlacionados, alguns inclusive
abordam o mesmo tema, como a “religião” e a “Jornada de Libertação em Cristo”,
ou ainda, a participação da família, da comunidade e a necessidade de
voluntários. Todos os doze elementos se relacionam de forma a motivar e até
mesmo, facilitar a reintegração do reeducando. Cabe salientar, porém, que há
grande prestígio aos elementos referentes à religião.

9FALCÃO, Ana Luísa Silva; CRUZ, Marcus Vinícius Gonçalves da. O método APAC – Associação
de Proteção e Assistência aos Condenados: análise sob a perspectiva de alternativa penal. In:
CONGRESSO CONSAD DE GESTÃO PÚBLICA, 8, 2015, Brasília.
10ESTATUTO DA APAC artigo 2º: FBAC. Disponível em: <http://www.fbac.org.br/>. Acesso

em: 16 de agosto 2017.


11SILVA, Jane Ribeiro, ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AO CONDENADO

(MINAS GERAIS). A execução penal à luz do método APAC. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça
do Estado de Minas Gerais, 2012.
12FALCÃO, Ana Luísa Silva; CRUZ, Marcus Vinícius Gonçalves da. O método APAC –

Associação de Proteção e Assistência aos Condenados: análise sob a perspectiva de alternativa


penal. In: CONGRESSO CONSAD DE GESTÃO PÚBLICA, 8, 2015, Brasília.
13TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS: Portaria Conjunta nº477/PR/2016;
737

A religião, segundo o método APAC, se dá pela oportunidade que o


indivíduo tem de zelar pelo espírito, pela paz interior e pela religiosidade, ao
mesmo tempo em que cumpre a pena imposta judicialmente. Pretende-se
proporcionar o resgate de valores espirituais, para alcançar-se a libertação de
situações ou circunstâncias que ocasionaram o encarceramento do individuo.
Nos presídios tradicionais, os condenados dormem em pé, estão
submetidos à violências físicas, psicológicas e sexuais, sujeitos às tentações das
substâncias ilícitas, bem como à doenças infecciosas14. Há uma segregação
nítida entre o condenado e a sociedade, e o regresso do individuo para o âmbito
social é repleto de insatisfação e descrença. O egresso volta à sociedade,
saturado de revolta, e, tal se dá devido principalmente ao descaso das
autoridades competentes com os presídios, a falta de recursos, o crescimento
demográfico infrene, o aumento da criminalização e marginalização e ainda, o
preconceito de uma sociedade relativamente conservadora. O cárcere,
denominado aqui de tradicional, não reeduca o preso, e nem o aproxima da
sociedade, ao contrário, provoca o afastamento e o repúdio entre eles. Assim,
como esperar que os presidiários se adaptem às regras e padrões sociais se
existe a segregação entre a sociedade e o sistema prisional, que possui as suas
próprias regras sociais e culturais?15 Como esperar que estes indivíduos
respeitem normas sociais, se não tiveram seus direitos fundamentais
respeitados?
Para os egressos, que permaneceram tanto tempo excluídos do convívio
social, o retorno à sociedade é difícil, mas a APAC demonstra ser um sistema
mais flexível que o tradicional e que, talvez, possa oferecer um acolhimento de
maior abrangência social em relação ao indivíduo.
No entanto, ao se deparar com quesitos obrigatórios, primeiramente, tem-
se que os reeducandos são obrigados a participar dos cultos matinais e das
Jornadas com Cristo, ainda que diversos textos legislativos brasileiros proíbam
esta obrigatoriedade. Além disso, ressalta-se aqui a impossibilidade de aderir a
todos os dogmas religiosos existentes, objetivando a recuperação do individuo,
pois a APAC está exclusivamente marcada pelo cristianismo em suas condutas
e estrutura.
Neste sentido, qual seria a sua posição em relação às religiões que não
adotassem a crença em Cristo? Poderia o individuo não adepto ao Cristianismo
ou outra religião da mesma corrente, escusar-se da participação deste elemento,
sendo que, já fora esclarecida a sua obrigatoriedade?
Por fim, constata-se que a religião, nesse método, não deixa de ser um
instrumento disciplinar, podendo ser eficiente na medida em que auxilie no
comportamento do indivíduo dentro do cárcere ou ainda, que possa auxiliá-lo
mais tarde, no seu desenvolvimento pessoal16. No entanto, tomar a religião como
um fim corretivo ou um meio disciplinador não deixa de ser uma violência moral.
Este tipo de instrumento acaba por violar a liberdade do individuo.

14SILVA, Jane Ribeiro, ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AO CONDENADO


(MINAS GERAIS). A execução penal à luz do método APAC. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça
do Estado de Minas Gerais, 2012.
15BITENCOURT, Cezar Roberto. Criminologia crítica e o mito da função ressocializadora da

pena. In: BITTAR, Walter. A criminologia no século XXI. Rio de Janeiro: Lumen Juris & BCCRIM,
2007
16BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Meditação no cárcere: libertando-se da prisão interior. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, v.75, p.339- 368, 2009.


738

Partindo-se da premissa de que as condições infraestruturais, a


superlotação dos presídios e o despreparo das instituições e dos profissionais
atuantes na execução penal ferem os direitos humanos e fundamentais do
individuo encarcerado17, o método APAC é inovador, no âmbito carcerário
brasileiro, no sentido de dedicar-se à reintegração do individuo dentro da
sociedade.
Num quadro comparativo, tem-se a proteção dos direitos humanos do
individuo preso, com a ausência de torturas; garantia de boa alimentação,
trabalho e estudo; respeito à lotação de cada instalação; o apreço à identidade
do individuo, não havendo tratamento indigno, de modo geral, tem-se a definitiva
humanização da pena. De outro lado, porém, há o desrespeito à liberdade de
crença, bem como a violação do principio à igualdade, haja vista a segregação
daqueles ateus e a afronta ao Estado Laico, já que não há liberdade, e muito
menos igualdade entre religiões, dentro do método.
Ambos os modelos de cárcere extrapolam do único objetivo da pena: a
privação da liberdade de locomoção, da liberdade de ir e vir do individuo, e tão
somente esta. Ora, um atinge os direitos básicos e fundamentais do individuo
preso e o outro afronta a sua liberdade de crença e pensamento.
Ora, a privação da liberdade deveria restringir-se à limitação do “ir e vir” do
individuo, nada mais que isso. Ainda assim, por um lado, o cárcere tradicional
retira seus direitos básicos e intrínsecos como ser humano e de outro, o método
APAc afasta a sua liberdade de crença, de pensamento. Ambos os sistemas são
falhos no âmbito do cumprimento de pena, uma vez que, deixam de asseverar
direitos legalmente previstos. E portanto, não deveria o condenado ser
compelido a optar pelo cumprimento de pena no local que lhe parecesse menos
gravoso, já que o cumprimento no método APAC é opcional e muitas vezes
acaba sendo escolhido como uma fuga às violações do cárcere tradicional, mas
sim, deveria o condenado cumprir a pena em local onde não lhe fosse retirado
nenhum de seus direitos.
De forma alguma, desmerece-se aqui o direito à liberdade religiosa ou
desprestigia-se o Estado Laico, porém, deve-se pretender pelo sistema que mais
se adeque à situação atual brasileira, de forma que, a mesma atinja os principais
objetivos da pena, restringindo o mínimo possível em relação aos direitos
conferidos ao condenado, respeitando-o como pessoa, sem abrir mão dos
ditames constitucionais.

3. REFERÊNCIAS

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento.


Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1966.

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11, pp. 268-286, mai/ago, 2016.
741

O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A IMPORTÂNCIA DA


CRIMINOLOGIA
THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM AND THE IMPORTANCE OF
CRIMINOLOGY

Maria Gabriela dos Santos

Resumo: O sistema prisional brasileiro não é tratado com a devida seriedade e


prioridade para o Estado. Levando em conta a quantidade de pessoas
encarceradas atualmente no Brasil e os elevados índices de incidência de
crimes, há de se reconhecer que prender não está sendo o melhor caminho.
Uma solução que busca a redução drástica da taxa de criminalidade, oferecendo
condições de vida melhor e mais justas para todos, fazendo parte dela a
segurança pública, é o ramo da Criminologia. A Criminologia é uma ciência que
possui como objeto de estudo o crime e tudo que o envolve, sendo basicamente,
a criminalidade, a vítima, o controle social do ato criminoso, o criminoso em si e
como ressocializá-lo. Além de ser empírica, é interdisciplinar, pois abrange
diversas áreas além do Direito Penal, sendo considerada de extrema importância
no combate ao crime e uma ferramenta poderosa para a sua diminuição.
Palavras-chave: Sistema prisional. Criminologia. Direito Penal.

Abstract: The Brazilian prison system is not treated with due seriousness and
priority to the state. Observing the actual numbers of people incarcerated in Brazil
and the high incidence rates of crimes, shows us that prison is problably not the
best way. An answer who seeks a drastic reduction of the crime rate and offer
better and fairer living conditions for all, making public safety part of it, it’s the
branch of Criminology. Criminology is a science that has as object of study the
crime and everything that surrounds it, that is, basically, the crime, the victim, the
social control of the criminal act, the criminal itself and how to re-socialize it.
Besides being empirical, it is interdisciplinary, since it covers several areas
besides Criminal Law, being considered of extreme importance in the combat
against crime and a powerful tool for its reduction.
Keywords: Prison system. Criminology. Criminal Law.

INTRODUÇÃO

O atual sistema prisional brasileiro foi criado baseando-se no conceito de


que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando
prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”, segundo o
Art. 10 da Lei de Execuções Penais (BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de jul.de 1984.).
Porém, está longe da realidade. É fácil para qualquer cidadão perceber isso,
especialmente através das grandes mídias e do vasto acesso à informação que
temos hoje em dia sobre as falhas do sistema prisional. As dificuldades do
Estado em executar o papel de ressocialização se dá em parte pela superlotação
dos presídios e pela influência do crime organizado, devido à falta de segurança
necessária, agravando ainda mais o problema penitenciário em nosso país.
As consequências de anos desse sistema prisional falho, para não se
dizer cruel, onde há um encarceramento em massa dos indivíduos de classes
subalternas, das minorias raciais, dos injustiçados pelo sistema econômico e
social são nefastas e serão mostradas através de dados de pesquisa e doutrina
742

mais adiante durante esse trabalho, apenas com o intuito de punir não está
resolvendo a questão criminal no nosso país e é extremamente necessário
mudar a maneira de lidar com o problema.
O interesse em resolver o problema na ressocialização dos presos e na
estrutura das prisões, entre tantos outros ramos sobre a questão criminal no
Brasil pode abranger, é pensar na sociedade como um todo. Isso reflete no país
violento que vivemos, onde não há uma segurança pública minimamente
decente e satisfatória. A sociedade inteira sofre com a criminalidade a cada
pessoa que não é recuperada na instituição prisional. Há uma negação geral de
uma verdade que é necessária aceitar para ser mudada: a violência e a
criminalidade são filhas das injustiças sociais. (NOVO, Benigno Núñez. A
Realidade do sistema prisional brasileiro. Empório do Direito, 2017. Disponível
em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-realidade-do-sistema-prisional-
brasileiro-1508760311. Acesso em 05 out. 2019.).
Atualmente, a Criminologia se encontra no que se chama Criminologia
Moderna, tendo como objeto o delito, o delinquente, a vítima e o controle social.
Com a ampliação acerca da visão de seu objeto de pesquisa, a Criminologia
Moderna se tornou a junção das Escolas penais passando pelo conceito
principais da Escola Clássica de que o crime está presente na sociedade de
maneira nata, da Escola Positivista que afirmava que o crime está associado a
determinado gene criminoso e chegando finalmente à Escola Sociológica que
afirma que o crime é resultado de um conjunto de fatores socioeconômicos que
impelem o indivíduo à prática criminosa. (BATISTA, 1998. P.35).

1. O ENCARCERAMENTO EM MASSA NAS PRISÕES BRASILEIRAS E A


FALTA DE CONTROLE DO PODER PUNITIVO ESTATAL

A população carcerária brasileira quase dobrou em dez anos, passando


de 401,2 mil para 726,7 mil, de 2006 a 2016. Os dados do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) publicados no dia 08 de
dezembro de 2017 registraram o total de aproximadamente 726 mil presos,
sendo 40% deles ainda provisórios. O Brasil é o terceiro país do mundo com o
maior número de pessoas presas, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
Levando em conta a cor da pele, o levantamento mostra que 64% da população
prisional é composta por pessoas negras. Em relação à faixa etária entre os
detentos, 55% deles possuem entre 18 e 29 anos. Quanto à escolaridade, 75%
não chegaram ao ensino médio e menos de 1% dos presos possui graduação.
No total, há 45.989 mulheres presas no Brasil, cerca de 5%, de acordo com o
Infopen, sendo dessas prisões, 62% estão relacionadas ao tráfico de drogas.
Quando levados em consideração somente os homens presos, o percentual é
de 26%. (VERDÉLIO, Andreia. Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior
população carcerária do mundo. Agência Brasil, 2017. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-
brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas/. Acesso em: 06 de out de 2019).
Baratta afirma que a maioria dos presos decorre de grupos sociais
excluídos da sociedade por mecanismos de mercado, que regulam o mundo
todo. Para ele,
A reintegração na sociedade do sentenciado significa, portanto, antes de
tudo, corrigir as condições de exclusão social, desses setores, para que conduzi-
los a uma vida pós-penitenciária não signifique, simplesmente, como quase
743

sempre acontece, o regresso à reincidência criminal, ou à marginalização


secundária e, a partir daí, uma vez mais, volta à prisão (2015, p. 03).
Se há a ressocialização e se a mesma está sendo cumprida, como
explicar o demasiado aumento apresentado pelos dados? Se não há vagas
suficientes para abrigar todos os presos como demonstrado, em que condições
se pode propor alguma medida ressocializadora? Se é que a medida existe? Os
dados por si só demonstram a finalidade basilar da legislação de Execução Penal
Brasileira não está correspondendo com a realidade das instituições carcerárias.
Quanto ao sistema penal e aos discursos jurídico-penais, há ferrenhas
críticas por parte do jurista penal Zaffaroni, pois ele afirma que “enquanto o
discurso jurídico-penal racionaliza cada vez menos, os órgãos do sistema penal
exercem seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em
massa” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl, p. 13). Ou seja, apesar de discursos penais
existirem, eles ainda não protegem certos direitos fundamentais, como o direito
à vida. No seu livro “Em busca das penas perdidas”, ele discute sobre como a
criminologia dos dias de hoje e os discursos garantistas ainda não conseguem
refletir e influenciar sobre a realidade, os chamando de “falsos”.
Segundo Zaffaroni (2007, p. 13), nas últimas décadas ocorreram
transformações na política criminal, mais especificamente na esfera penal, onde
os debates entre políticas de abolição e de redução do sistema penal acabaram
passando ao debate da expansão do poder de punir estatal. Atualmente, o
Estado tem para si o papel de solucionar as demandas que até ele chega, tendo
o “dever” de decidi-las. Há uma constatação feita pelo jurista argentino em dizer
que a realidade operacional dos sistemas penais da América Latina os impedem
de se adequar a quaisquer discursos penais por serem autônomos, terem
“características estruturais próprias de seu exercício de poder”. Para Zaffaroni,
não há possibilidade de mudanças no sistema penal atual, sem mudá-lo
completamente.

A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para


maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a
concentração de poder, a verticalização social e a destruição das
relações horizontais ou comunitárias não são características
conjunturais, mas estruturais do exercício do poder de todos os
sistemas penais. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas
perdidas, p. 15).

Sabe-se, então, a importância de discutir e buscar as origens e os


fundamentos reais do poder de punição estatal, visualizando assim, na
legislação se há algum dispositivo esclarecendo o motivo de punir.
O certo é que, desde o momento da confiscação da vítima, o poder público
adquiriu uma enorme capacidade de decisão (não de solução) nos conflitos [...].
Para tal, exerce um constante poder de vigilância controladora sobre toda a
sociedade e, em especial, sobre os que supõe ser, real ou potencialmente,
daninhos para a hierarquização social (ZAFFARONI, 2007, p. 31).
Partindo do pressuposto de que o sistema punitivo não é a única, e nem
a melhor saída, o movimento abolicionista reúne autores que propagam diversas
propostas para substituir o sistema penal por outros sistemas que não sejam
punitivos para a resolução de conflitos (CARVALHO, 2007, p. 04).
744

2. A FUNÇÃO DA CRIMINOLOGIA COMO FORMA DE DIMINUIR A TAXA


DE VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE NA SOCIEDADE

A criminologia tem como objetivo de estudo o crime, a criminalidade e


suas causas, a vítima, formas de controle social e dos atos criminosos, bem
como também o perfil do criminoso e como ressocializá-lo. Conceitua a
criminologia, Lola Aniyar de Castro (1983, p. 52) como:

[...] a atividade intelectual que estuda os processos de criação das


normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com o
comportamento desviante; os processos de infração e de desvio
destas normas; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas
infrações ou desvios tenham provocado: o seu processo de criação,
a sua forma e conteúdo e os seus efeitos.

Este conceito da criminologia é considerado predominante entre os


autores brasileiros. Embora seja incorporado nesse conceito sociologia,
filosofia e até mesmo psicologia, para Gilberto de Macedo (1977, p. 4), não
deve reduzir uma esfera a outra, sendo a criminologia e o Direito Penal inter-
relacionada. Ou seja, apesar da Criminologia ser um estudo interdisciplinar que
abrange várias ciências, possui uma ligação mais direta ao Direito Penal.
A política criminal vigente se moldou de tal forma, que criou um processo
de estigmatização do preso, etiquetando os detentos dentro e fora do ambiente
prisional, pois são vistos como ex-presidiários, sendo desumanizados e
enxergados como sinônimo de tudo que é abominado socialmente. É disso que
surge a indagação sobre a verdadeira função ressocializadora da pena. Ao
declarar a ressocialização como objetivo da pena de prisão, o sistema penal
atende ao propósito de cumprir com uma suposta finalidade social. Ao não
esclarecer como alcançar essa finalidade, a ressocialização se constrói como
um discurso, que na prática causa consequências irreparáveis à vida do
condenado, que entra para o sistema penal e consolida sua exclusão social.
O melhor exemplo de atuação da Criminologia no sistema penitenciário
brasileiro e na execução penal é a APAC (Associação de Proteção e Assistência
aos Condenados) uma entidade civil, sem fins lucrativos, que se dedica à
recuperação e reintegração social dos condenados a penas privativas de
liberdade, bem como socorrer a vítima e proteger a sociedade. Opera, assim,
como uma entidade auxiliar do Poder Judiciário e Executivo, respectivamente na
execução penal e na administração do cumprimento das penas privativas de
liberdade. Sua filosofia é ‘Matar o criminoso e Salvar o homem’, a partir de uma
disciplina rígida, caracterizada por respeito, ordem, trabalho e o envolvimento da
família do sentenciado. (FARIA, Ana Paula. APAC: Um Modelo de Humanização
do Sistema Penitenciário. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 87, abr 2011.
Disponível em: http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9296.
Acesso em 06 de out de 2019.).
O método socializador da APAC apresenta uma atitude inovadora e
aparentemente muito eficaz, sendo capaz de dissipar as ‘mazelas das prisões’,
ressocializando os condenados e inseri-los na sociedade. Os reeducandos são
corresponsáveis pela sua recuperação, organizando-se através dos Conselhos
de Sinceridade e de Solidariedade (CSS), um para cada regime, e por
coordenadores de cela. Os Conselhos cuidam da administração, limpeza,
745

manutenção, disciplina e segurança. Problemas internos de disciplina são


resolvidos pelos próprios reeducandos, pelos CSS e pela direção.
Esse modelo prisional é a prova de que o recuperando ser tratado como
o nome afirma, pode sim ser ressocializado e devolvido à sociedade como um
verdadeiro cidadão, capaz de contribuir e seguir a vida apesar do crime que
tenha cometido. É uma chama de esperança para a Criminologia e os Direitos
Humanos. O ser humano que tenha cometido o mais terrível crime teve uma
longa vivência, traumas e experiências que muitas vezes foram proporcionados
pela família que ele viveu e no lugar aonde ele cresceu. Mas tudo é político, a
realidade da sociedade e as condições as quais vivemos é ofertada pelo Estado,
então tudo é decorrência dele. A Constituição nos guarda os deveres, mas
também os direitos essenciais e fundamentais como seres humanos que somos.
Se tratados como tal, até o criminoso mais problemático e aparentemente longe
da redenção pode sim ser recuperado.
A incompetência do gerenciamento do Estado em relação aos presídios e
o modelo prisional vigente precário, resulta em um local onde não existem as
mínimas condições de respeito aos direitos humanos. E sem respeito à pessoa
humana, como a garantia da dignidade e da integridade física, o que se produz
a cada dia são pessoas desprovidas de humanidade.

CONCLUSÃO

A Constituição da República Federativa de 1988, o Código Penal e a Lei


de Execução Penal Brasileira atualmente silenciam-se diante às formas que as
penas são aplicadas no sistema prisional do país e ao que a ressocialização
deveria ser, contribuindo para a manutenção do nosso sistema penal falho,
enquanto claramente se percebe que não há recuperação das pessoas que
cometem crimes e consequentemente não reduz os índices de criminalidade na
sociedade. Declarando dessa forma a finalidade da pena de prisão, apesar de
oculta por não ser oficialmente afirmada, de que a real punição somente chega
aos indivíduos marginalizados pelo sistema, as minorias sociais. Ao não alcançar
essa finalidade, a ressocialização se consolida como um mero discurso do poder
punitivo, causando consequências irreparáveis à vida do apenado que ingressa
ao sistema penal, tornando a pena sua definitiva exclusão social.
É extremamente urgente discutir sobre o grave problema encarceramento
em massa em nosso país e trazer questionamentos e conclusões sobre o poder
punitivo do Estado, o sistema penal brasileiro atual e a realidade das prisões
brasileiras. Sob o enfoque da função de ressocialização da pena e a
problematização sobre como ela é feita, buscando entender os motivos de não
ser tão bem-sucedida na prática, como é prometida em nossas leis. Abordar
também sobre a importante função da criminologia, pois é um estudo que não
auxilia apenas na execução da pena e na ressocialização do condenado, mas
também atua na prevenção do crime. Podendo assim, agir através de políticas
públicas reduzindo as taxas de criminalidade e solucionando o problema do
crime na sociedade.
Enfim, o maior objetivo desse trabalho é o de questionar o sistema penal
atual como um todo, criticar a forma como o Estado aplica o seu poder punitivo
e acima de tudo, ressaltar os Direitos Humanos, os princípios constitucionais
relativos aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Mostrar que
a realidade é bem diferente do que as nossas leis tutelam. As nossas leis podem
746

mudar, acompanhando a evolução da sociedade e me esforcei para conseguir


demonstrar, ao final desse trabalho, o quanto tudo pode ser diferente e
transformado para que tenhamos um país melhor, só basta seguir em direção à
Criminologia. O mundo pode ser um lugar melhor se nós verdadeiramente
desejarmos que ele seja.

REFERÊNCIAS

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Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1998.

CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena: entre os supérfluos fins e a


limitação do poder punitivo. In CARVALHO, Salo de. (Org.). Crítica à execução
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Revan, 1989.


747

PRECEDENTES HISTÓRICOS DA REPRESSÃO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO


HISTORICAL PRECEDENTS OF GENDER-BASED VIOLENCE REPRESSION

Louise Eberhardt
Orientador(a): Rejane Alves de Arruda

Resumo: O objetivo deste trabalho é estudar a elaboração e implementação de


instrumentos normativos voltados à repressão da violência de gênero contra a
mulher. Partindo da hipótese de que a violência de gênero é um problema atual
e que atinge mulheres de todos os setores sociais, buscou-se analisar como as
previsões legais no plano nacional e internacional contribuíram para que
houvesse a estruturação de um sistema de proteção da mulher vítima de
violência. Foi adotado o método hipotético dedutivo, através de pesquisa
exploratória e descritiva, bibliográfica e documental, com uma análise temática
por meio de obras, artigos científicos e legislações, concluindo-se que a
sistematização de tratados internacionais voltados à temática subsidiaram leis
nacionais de combate à violência de gênero com destaque à Lei Maria da Penha
e a Lei do Feminicídio.
Palavras-chave: Violência de Gênero. Lei Maria da Penha. Feminicídio.

Abstract: The objective of this article is to study the elaboration and


implementation of normative instruments aimed at the repression of gender
violence against a woman. Assuming that gender violence is a current problem
that harm women from all social sectors, we seek to analyze how legal predictions
at the national and international levels contributed to the structuring of a
protection system for women victims of violence. It was adopted the hypothetical
deductive method, through exploratory and descriptive, bibliographic and
documentary research, with a thematic analysis through scientific works and
legislative articles, concluding that the systematization of international
agreements focused on gender violence such as the Maria da Penha Law and
the Law on femicide.
Keywords: Gender-based violence. Maria da Penha Law. Femicide.

INTRODUÇÃO

As concepções de gênero são reflexos de uma construção social e


histórica que se relaciona com a estruturação cultural e política de cada
sociedade. Verifica-se historicamente que essa formação dos relacionamentos
humanos é marcada pela violência e inferiorização da mulher, caracterizada pela
dominação do homem.
Diante dessa determinação social dos papéis masculino e feminino,
acompanhada de padrões de comportamento introjetados no cotidiano nascem
as relações violentas entre os sexos. A violência de gênero se manifesta no dano
que pode ser gerado nos campos físico, psicológico, sexual e patrimonial,
impedindo com a que a mulher exerça livremente seus direitos.
Analisando as legislações nacionais ao longo da história, nota-se que
essa inferiorização da mulher também se refletia nos textos normativos. Por
muitos anos as mulheres foram reduzidas ao sujeito passivo dos crimes sexuais,
inclusive sendo rotuladas conforme sua vida sexual.
748

Entretanto, no século XX o cenário internacional passa a demonstrar uma


crescente preocupação com a proteção dos direitos humanos como resposta às
violações ocorridas nas guerras mundiais. Nesse contexto, também insurgem
movimentos sociais voltados à proteção dos direitos das mulheres.
Com a sistematização de tratados internacionais e posteriormente a
adequação da legislação nacional, principalmente com a Lei Maria da Penha,
visando resguardar garantias voltadas às mulheres, elas se empoderam dos
seus direitos e passam a ocupar os espaços anteriormente destinados somente
aos homens trilhando o caminho com rumo à igualdade de gênero.

DAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E DOS CÓDIGOS PENAIS BRASILEIROS

Fazendo uma análise das legislações brasileiras pretéritas à lei Maria da


Penha, é possível perceber que ao serem abordados direitos voltados às
mulheres era notável uma proteção de teor patriarcalista.
Essa carga culturalmente machista resta evidente com a estruturação do
termo “mulher honesta” ao longo do tempo, expressão que é utilizada desde as
Ordenações Filipinas e persistiu no Código Penal Brasileiro até 2005.
As Ordenações Filipinas, foram um ordenamento imposto por Portugal ao
Brasil Colônia e vigorou de 1603 até 1830, sendo posterior aos regramentos das
Ordenações Afonsinas e Manuelinas. Nessa esfera legal, cabia à mulher a
condição de sujeito passivo dos crimes sexuais, trazendo nas descrições dos
crimes as características de “mulher virgem”, “mulher honesta” e, ainda, “viúva
honesta”.
A lei penal subsequente foi o Código Criminal do Império, de 1830, que
trazia em seu Capítulo II – Dos Crimes Contra a Segurança da Honra, Secção I
(Estupro), as seguintes redações:

Art. 219. Deflorar mulher virgem, menor de dezasete annos.


Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a deflorada,
por um a tres annos, e de dotar a esta.
Seguindo-se o casamento, não terão lugar as penas.
[...]
Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com
qualquer
mulher honesta.
Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.

Além disso, dispõe também do crime de sedução da mulher honesta,


entretanto, em seu artigo 225, previa a isenção das penas em caso do
casamento entre o réu e a vítima.
Adentrando o período republicano no Brasil, foi editado o Código Penal de
1890, que novamente dispunha sobre a mulher honesta ao tratar dos crimes
contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao
pudor, tendo seu artigo 268, o crime de “estuprar mulher virgem ou não, mas
honesta”. Tal disposição persistiu mesmo com as reformas republicanas
consagradas no Decreto 22.213 de 1932.
Sobreveio então, em 1940, o Decreto-Lei nº 2.848, o Código Penal, que
segue em vigor na atualidade. Apesar de passar por diversas reformas ao longo
dos anos, persistiu utilizando a terminologia “mulher honesta” até o ano de 2005,
quando foi suprimida pela Lei 11.106/05.
749

Na lição de Nelson Hungria, que foi o presidente da Comissão Revisora


do Anteprojeto do Código Penal de 1969, sobre a elementar normativa mulher
honesta:

“como tal se entende, não somente aquela cuja conduta, sob o ponto
de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que
ainda não rompeu com o minimum de decência exigida pelos bons
costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a
mulher francamente desregrada, aquela que inescrupulosamente,
multorum libidini patet, ainda não tenha descido à condição de
autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns
e outros, por interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia
accepta).” (HUNGRIA e LACERDA, 1980, p. 50).

Restando evidente, como o Estado Brasileiro persistiu, durante séculos,


regulando as características atribuídas às mulheres, inclusive seus mecanismos
de proteção, de acordo com uma visão machista e conservadora.

DA PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DAS MULHERES

Considerando o manifesto atraso legislativo brasileiro que persistia


perpetrando a visão androcêntrica social em seu escopo normativo, o âmbito
internacional teve papel fundamental ao fomentar a criação de mecanismo de
proteção aos direitos das mulheres, com destaque à Lei Maria da Penha.
Apesar de possuir poucos efeitos práticos à época, necessário se faz
destacar o embrião do que atualmente se consolidou como direito das mulheres,
que foi a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de 1791, assinada por
Marie Gouze - sob o famoso pseudônimo de Olympe de Gouges -, que foi
guilhotinada após sua condenação como contra revolucionária e denunciada
como uma mulher “desnaturada” em 1793.
A declaração escrita por Olympe tem seu título justamente contrapondo a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em 1789, de forma
a questionar a ausência de direitos das mulheres. Inovadora para o momento,
logo em seu artigo 1º a declaração de Gouges já consagra que “a mulher nasce
livre e têm os mesmos direitos do homem”, indo completamente contra o
pensamento que se consolidava de inferiorização e submissão feminina.
Feito o devido destaque, impende compreender então que o primeiro
tratado internacional que dispôs amplamente sobre os direitos das mulheres
somente foi efetivado em 1979, com a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher.
Sendo então promulgada no Brasil em 1984, com o Decreto nº 89.460, a
referida convenção tem como principais objetivos promover os direitos da mulher
na busca da igualdade de gênero e reprimir quaisquer discriminações contra a
mulher nos Estados-partes, buscando efetivar os ideais de igualdade de gênero
trazidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
No contexto de proteção regional do continente americano, tem-se grande
relevância a Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969, conhecida
como Pacto de San José da Costa Rica, que reafirma o respeito aos direitos de
todos independentemente de quaisquer diferenças, mas principalmente, pela
criação da Comissão e da Corte Interamericanas de Direitos Humanos, sendo
órgãos fundamentais para fiscalização dos Estados signatários.
750

Completando o sistema internacional de proteção aos direitos das


mulheres, advém a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra Mulher, adotada em Belém do Pará em 1994, que define a
violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que
cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na
esfera pública como na esfera privada.
Além disso, o texto traz grandes reafirmações dos direitos das mulheres,
como, em seu artigo 5º, que exemplifica o impacto da violência sobre tais direitos:

Toda mulher poderá exercer livre e plenamente seus direitos civis,


políticos, econômicos, sociais e culturais, e contará com a total
proteção desses direitos consagrados nos instrumentos regionais e
internacionais sobre direitos humanos. Os Estados Partes reconhecem
que a violência contra a mulher impede e anula o exercício desses
direitos. (CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR,
PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, 1994).

Passa a ser percebida então a crescente preocupação internacional com


a garantia e efetivação dos direitos inerentes às mulheres, com destaque à
assistência e proteção Estatal no tocante ao contexto de violência doméstica e
familiar.

DA LEI MARIA DA PENHA E DO FEMINICÍDIO

Partindo dessa estruturação normativa internacional sobre os direitos das


mulheres, em 20 de agosto de 1998, o Estado Brasileiro foi denunciado à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela Senhora Maria da Penha
Maia Fernandes, representada pelo Centro pela Justiça e pelo Direito
Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da
Mulher (CLADEM), baseada na competência que lhe conferem os artigos 44 e
46 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o artigo 12 da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher.
Conforme narra à denúncia, em 6 de junho de 1983, Maria da Penha foi
vítima, no seu domicílio em Fortaleza, de tentativa de homicídio por parte de seu
então esposo,que disparou contra ela com um revólver enquanto ela dormia, ato
que culminou uma série de agressões sofridas durante sua vida matrimonial. Em
decorrência dessa agressão ela sofreu várias lesões e teve de ser submetida a
inúmeras operações cirúrgicas, passando a sofrer de paraplegia irreversível e
outros traumas físicos e psicológicos.
Quando denunciado à Comissão, o caso já se estendia por mais de 15
anos sem uma condenação definitiva, e com o réu em liberdade. O Estado
Brasileiro, por sua vez, não apresentou resposta alguma à Comissão.
Após a análise do caso, a Comissão Interamericana de Diretos Humanos,
por meio do Relatório nº 54/01, de 4 de abril de 2001, emitiu as seguintes
recomendações ao Estado Brasileiro:

“1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do


responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da
Senhora Maria da Penha Fernandes Maia.
751

2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de


determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos
injustificados que impediram o processamento rápido e efetivo do
responsável, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas
e judiciárias correspondentes.

3. Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra
o responsável civil da agressão, as medidas necessárias para que o
Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica e material
pelas violações aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em
oferecer um recurso rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade
por mais de quinze anos; e por impedir com esse atraso a possibilidade
oportuna de ação de reparação e indenização civil.

4. Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância


estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência
doméstica contra mulheres no Brasil. A Comissão recomenda
particularmente o seguinte:

a) Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais


e policiais especializados para que compreendam a importância de não
tolerar a violência doméstica;

b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser


reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de
devido processo;

c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e


efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de
sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências
penais que gera;

d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa


dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à
efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência
doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na
preparação de seus informes judiciais.”. (COMISSÃO
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001).

Assim, impulsionado pelo atendimento da recomendação do órgão de


proteção internacional, o Estado Brasileiro sancionou em 07 de agosto de 2006,
a lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, vigente desde 22 de
setembro de 2006 com intuito de criar mecanismos para coibir e prevenir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, e dispondo sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, bem como
estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de
violência doméstica e familiar.
Integrando essa sistematização legal que visa prevenir e punir a violência
de gênero, incluiu-se no Código Penal uma nova qualificadora ao tipo penal do
homicídio, através da Lei nº 13.104, em 9 de março de 2015, conhecida como
Lei do Feminicídio. Entende-se como feminicídio aquele homicídio cometido
contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, conforme a lei:
Art. 121, § 2º - A Considera-se que há razões de condição de sexo
feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
752

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. (BRASIL,


2015)

Apesar de ser um tipo penal novo, o feminicídio representa uma criação


destinada exemplificar algo que é terrivelmente persistente na sociedade, que é
o fato de que a violência sofrida pelas mulheres chega à morte. A ministra chefe
da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência – à época em que a
lei foi sancionada – Eleonora Meniucci explica que:

Trata-se de um crime de ódio. O conceito surgiu na década de 1970


com o fim de reconhecer e dar visibilidade à discriminação, opressão,
desigualdade e violência sistemática contra as mulheres, que, em sua
forma mais aguda, culmina na morte. Essa forma de assassinato não
constitui um evento isolado e nem repentino ou inesperado; ao
contrário, faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes
misóginas caracterizam o uso de violência extrema. Inclui uma vasta
gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e
diversas formas de mutilação e de barbárie (BRASIL. 2015).

O feminicídio tem como principal fundamento o fato que é um crime


diferente do homicídio por suas raízes históricas, ele representa a expressão
fatal dos séculos de violência invisibilizada sofridos pelas mulheres, e
consequentemente aceitos pela sociedade. Mais do que um instrumento legal, é
um instrumento social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estruturação dos papeis de gênero permitiu que durante anos a mulher


fosse vista como inferior ao homem e incapaz de viver sozinha,
concomitantemente foi sendo deixada fora do mercado de trabalho, restando
apenas o casamento como forma de sobrevivência. Além disso, por muito tempo,
as leis destinavam a mulher apenas o papel de sujeito passivo dos crimes
sexuais, destacando uma sistematização baseada na vida sexual feminina.
Assim, partindo da crescente preocupação internacional com os direitos
humanos, e, sobretudo, com os direitos das mulheres, tratados e convenções
foram sendo elaborados e passaram a pautar o interesse do Estado Brasileiro
em positivar a proteção às mulheres. Somasse a isso, a recomendação da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Maria da Penha,
culminando na elaboração da Lei 11.340 em 2006, que estruturou um sistema
normativo de prevenção e punição à violência contra a mulher.
A Lei Maria da Penha trouxe mecanismos legais que permitiram maior
eficácia na proteção das mulheres vítimas de violência, com destaque à criação
das medidas protetivas de urgência, bem como estruturou uma rede de apoio
multidisciplinar voltado ao amparo às vítimas. Além disso, extinguiu a aplicação
de benefícios aos réus visando uma punição mais severa desses crimes.
Por fim, integra-se à esse arcabouço de prevenção e punição da violência
sofrida pela mulher, a qualificadora do feminicídio, que restou por demonstrar a
busca do Estado Brasileiro em reverter o panorama histórico de negligência da
violência de gênero.

REFERÊNCIAS
753

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Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

______. Decreto-Lei nº 1.973, de 01 de agosto de 1996. Promulga a


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10/03/2018. Acesso em 20 ago 2019

______. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção


Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm Acesso em 20
ago 2019

______. Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-


Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o
feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º
da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos
crimes hediondos. Brasília: 2015. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm.
Acesso em 20 ago 2019

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754

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TELES, Maria A. De Almeida. MELO, Mônica. O que é violência contra a


mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003.
755

REFLEXÕES ACERCA DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E O DILEMA DA


DIGNIDADE SEXUAL
Des Réflexions Concernant La Vengeance Pornographique Et Le Dilemme De
La Dignité Sexuelle

Renan Tolentino Saraiva


Gabriela Emanuele de Resende

Resumo: É notório que o desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente


sob a forma de recursos cibernéticos, colaborou para que diferentes paradigmas
fossem inaugurados no que diz respeito às relações interpessoais e jurídicas
existentes, trazendo singulares desafios para uma adequação mais efetiva do
Direito à realidade. Nessa perspectiva, foi promulgada a Lei 13.718/18
responsável por tipificar o crime da pornografia de vingança, objeto central da
pesquisa proposta, intentando-se a realização de uma análise crítica ao
confrontar o referido delito às garantias constitucionais referentes ao meio
ambiente digital, à dignidade da pessoa humana e à intimidade.
Plavras-chave: Pornografia de vingança. Meio Ambiente Digital. Dignidade
Sexual.

Resumée: Ça fait marquant que le développement de nouvelles technologies,


particulièrement sous la forme de ressources cybernéthiques, a contribué pour
l’inauguration de différents paradigmes concernant les relations interpersonelles
et juridiques existantes, en apportant singulières défis pour une adéquation plus
efficace du Droit à la réalité. À ce titre, a été promulguée la Loi 13.718/18 chargé
de définir le crime de vengeance pornographique, objet majeur de la recherche
proposée qui se consacre à la réalisation d’une annalyse critique par une
confrontation entre le délit mentioné et les garanties constitucionelles en ce qui
concerne à l’environnement digital, dignité de l’être humain et l’intimité.
Mots clés: Vengeance pornographique. Environnement Digital. Dignité Sexuelle.

1. INTRODUÇÃO

Os papéis sociais de homens e mulheres, ainda que em tempos


hodiernos, são pré-determinados, isto é, oriundos de uma construção histórico-
cultural vigente. É notória a inaudita influência da cultura judaico-cristã sobre
essa construção, por meio de figuras bíblicas femininas subordinadas ao poder
marital e com a sexualidade reduzida à mera reprodução. Tem-se como exemplo
da marginalização da sexualidade feminina trazido pela Bíblia a passagem que
menciona no livro de Deuteronômio que o homem casado que violava uma
mulher virgem deveria se casar com ela, nesse mesmo sentido as escravas
violadas deveriam ser doravante tratadas como esposas, conforme dispõe o livro
de Eclesiastes (BÍBLIA SAGRADA, 2015). Ademais, no livro de Provérbios
existem três estereótipos de mulher, quais sejam: a mãe, a esposa e a mulher
da vida. Destaca-se também a figura de Maria, mãe de Jesus, enquanto exemplo
de mulher que deu origem ao filho de Deus sem a necessidade da conjunção
carnal.
A ascensão do cristianismo e seu consequente domínio trouxeram, pois,
uma perspectiva idealizada da mulher enquanto esposa submissa ao patriarca e
com sua sexualidade diminuída para fins exclusivos de reprodução, devendo,
756

assim, ter como papel precípuo o de cuidado da prole. O contexto social


brasileiro, enquanto país colonizado por católicos e com índices populacionais
compostos majoritariamente por cristãos (VEJA, 2012), não se mostrou, ao longo
dos anos, distante do panorama bíblico acima exposto. Nessa diretiva, até o ano
de 2005 o casamento entre o agente do crime de estupro e a vítima gerava
extinção da punibilidade, nos termos do atualmente revogado art. 107, VII, do
Código Penal (CONSULTOR JURÍDICO, 2006). Em se tratando de tempos
atuais, permanecem como crimes o autoaborto, artigo 124 do Código Penal, e o
aborto provocado por terceiro, artigos 125 e 126 do Código Penal (BRASIL,
1940), mantendo-se ressalvados somente o aborto necessário, o aborto de
gravidez em caso de estupro e o aborto de fetos anencéfalos, em consonância
com decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2012).
É notório, portanto, que ainda no contexto hodierno, a sexualidade
feminina permanece reduzida e, por vezes, marginalizada, sendo em muitos
casos usada contra a própria mulher. Exemplo disso é a pornografia de vingança,
a qual consiste na propagação de material íntimo sem o consentimento daquele
que consta nessa divulgação, ainda que sua produção tenha sido feita de modo
consensual. Tal prática, embora seja garantido constitucionalmente o direito a
um meio ambiente digital equilibrado, atinge majoritariamente as mulheres,
gerando danos psicológicos e, até mesmo, patrimoniais imensuráveis.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. METODOLOGIA DE PESQUISA

Analisando-se a metodologia adotada no desenvolver da pesquisa aqui


proposta, infere-se ter sido majoritariamente adotado o tipo de investigação
jurídico-projetivo, na vertente jurídico-sociológica, havendo enfoque teórico-
analítico, conforme preceitua a categorização elaborada por Gustin e Dias (2010)
e Witker (1985).
Como marco teórico, adotou-se a célebre citação de Simone de Beauvoir,
notável intelectual francesa, responsável por traduzir o objetivo central do
presente estudo ao asseverar que

no dia que for possível à mulher amar-se em sua força e não em sua
fraqueza; não para fugir de si mesma mas para se encontrar; não para
se renunciar, mas para se afirmar, nesse dia então o amor tornar-se-á
para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal
(BEAUVOIR, 1967, p. 245).

3.1. MARCO CIVIL DA INTERNET E A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA

Anunciada como uma das mais relevantes invenções humanas, a internet


se desenvolveu de maneira célere e pujante e, em menos de um século, tornou-
se ferramenta indispensável para o desenvolver das mais diversas atividades
corriqueiras, remodelando o modo de interação entre indivíduos. Corroborando
com o entendimento ora exposto, a amostragem de dados realizada pela
pesquisa “Digital in 2018: The Americas” (EXAME, 2018) demonstrou que 62%
da população brasileira possui perfis ativos em redes sociais e, segundo
pesquisa do IBGE (2017), a internet é utilizada em média em 74,9% dos
domicílios brasileiros, alcançando o marco de 81,1% na região sudeste. Aliado
757

à intensificação do uso da internet, pode-se observar relevante crescimento dos


casos de crimes cibernéticos, elevando o Brasil à posição de segundo país que
mais registrou crimes virtuais no mundo em 2017, conforme divulgado pela
Norton Cyber Security (UOL, 2018).
Partindo-se do pressuposto de que o meio ambiente digital reproduz os
padrões sociais e mazelas da sociedade, a criminalidade cibernética logo se
tornou um problema de difícil coibição, principalmente ao salientar-se que os
conteúdos disponibilizados na rede perfazem-se eternizados em razão da
impossibilidade de sua retirada de circulação imediata e por completo. Tendo em
vista a defasagem legislativa no que tange à internet e seus desdobramentos,
foi promulgada em 2014 a Lei nº 12.965, intitulada Marco Civil da Internet, cujas
origens remontam a um projeto de lei advindo de plataforma digital de iniciativa
popular, de modo a tornar explícito o interesse de tornar mais efetiva a proteção
jurídica concernente ao meio ambiente digital. O referido diploma legal surgiu
com o fito de criar diretrizes e princípios norteadores para a relação entre
provedores de conexão e clientes e, de certo modo, regulamentar o uso da
internet no país. Apesar de a Lei nº 12.965/14 trazer significativas mudanças nos
procedimentos de transferências de dados e sua segurança, foi com a Lei nº
13.709 de 2018, popularmente conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados,
que criou-se um microssistema de proteção de dados, elucidando-se padrões
para sua administração, processamento e repasse.
Entretanto, relativamente à seara penal, poucas adequações foram
realizadas para encampar a prática de delitos virtuais às punições previstas no
Código Penal. Tais modificações mostram-se relevantes tendo em vista o fato
de que um dos bens jurídicos mais afetados pela prática dos delitos
mencionados é, exatamente, a dignidade sexual. O supracitado bem jurídico
esteve no cerne de significativos debates nos Estados Unidos em razão da
prática da chamada revenge porn, livremente traduzida como pornografia de
revanche. O termo se refere à divulgação a terceiros, não consentida pela vítima,
de material com conteúdo pornográfico, usualmente na forma de fotos, vídeos
ou conversas, pouco importando se a produção do material se deu com ou sem
o consentimento da vítima. Apesar de ter sido o termo consagrado pelo uso,
muito se discutiu acerca da expressão “pornografia de vingança” por conta de
fatores semânticos, tendo em que vista que as palavras “revanche” ou “vingança”
importam na interpretação forçosa de que a vítima teria agido inicialmente ou
que essa teria provocado a reação do agente, o que nem sempre se verifica na
prática. Robustece esse raciocínio a afirmativa de Katherine A. Mitchell (2019)
ao enunciar que a disseminação não consensual de recursos imagéticos não
necessita derivar de propósito vingativo ou animosidade pessoal, já que vários
agressores participam desse ato simplesmente em razão de motivações
econômicas ou de entretenimento.
Quando da realização da pornografia de vingança, o agente disponibiliza
na rede conteúdos de teor íntimo com o intuito de ridicularizar ou meramente
expor a vítima, deliberadamente divulgando o seu rosto ou alguma característica
física facilmente atribuível à ela, servindo como forma de extorsão, chantagem
emocional ou mesmo punição. Na maioria dos casos verificados, o agente
infrator é parte do círculo de convívio da vítima, o que não exclui a possibilidade
de ser esse um hacker, especialmente em se tratando de ataques a
personalidades da mídia. De acordo com dados obtidos pela pesquisa “Drafting
an effective “revenge porn law: a guide for legislators” (FRANKS, 2016, p. 11),
758

realizada nos Estados Unidos pela Cyber Civil Rights Initiative com 1606
participantes, aponta que 23% dos entrevistados se identificaram como vítimas
de revenge porn, sendo 90% delas mulheres. A mesma pesquisa indica que 57%
das vítimas afirmaram ter sido o material pornográfico divulgado na rede por um
ex-namorado e 23% por um ex-amigo. Além das fotos e vídeos, em 59% dos
casos foi divulgado o nome completo da vítima e em 20% dos casos o seu
número de telefone e, dentre os entrevistados que sofreram com a pornografia
de vingança, 93% afirmou ter sofrido significante estresse emocional. Ante à
recorrência da conduta pormenorizada, os Estados Unidos promulgaram a
“Intimate Privacy Protection Act”, comumente conhecida como IPPA, de modo a
cominar penas mais gravosas e proteger mais eficazmente as vítimas.
No Brasil, durante muito tempo, aquele que publicasse recursos visuais
de teor pornográfico na internet, sem o consentimento daqueles retratados no
vídeo ou imagem, era punido a teor de responsabilidade civil com fulcro no
Código Civil, mais especificamente pela prática de ato ilícito, conforme
preceituam seus arts. 186 e 187, surgindo o dever de reparar o dano causado à
vítima, em acordo ao art. 927 do aludido diploma (BRASIL, 2002). Havia também
a possibilidade de se enquadrar a conduta do agente como crime contra honra,
em consonância às disposições do Código Penal, notadamente na forma do art.
138, crime de calúnia; art. 139, crime de difamação ou art. 140, crime de injúria
(BRASIL, 1940). As supraditas formas de punição passaram a ser amplamente
questionadas em razão da aplicação de penas demasiado brandas para um fato
grave e de consequências inquietantes, abrindo-se espaço para produtivos
debates que deram origem à tardia tipificação da pornografia de vingança no
Brasil, mediante promulgação da Lei nº 13.718 de 2018.

3.2. TIPIFICAÇÃO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA

Tem-se utilizado a expressão “sociedade da informação” como termo


substituto do conceito de “sociedade pós-industrial”, abrangendo-se, assim, os
avanços tecnológicos da microeletrônica e das telecomunicações. As
transformações oriundas desse novo estilo de sociedade constituem uma
tendência dominante mesmo em economias menos industrializadas, definindo o
novo paradigma da tecnologia da informação (WERTHEIN, 2000). A partir
dessas inovações, contudo, surgem também diferentes relações interpessoais e
sociais meritórias de atenção jurídica para que não se figurem casos de lacunas
legislativas. Isso porque o avanço das novas tecnologias traz em seu bojo
retrocessos capazes de ferir princípios constitucionais como a dignidade da
pessoa humana. Exemplo disso são os crimes cibernéticos que assolam o meio
ambiente digital.
Nessa diretiva, como já demonstrado na pesquisa aqui disposta, o Marco
Civil da Internet surgiu com o fito de conferir maior proteção para as situações
ocorridas no espaço digital. Nesse mesmo sentido, a Lei n. 12.720/12, oriunda
do infeliz episódio ocorrido com a atriz Carolina Dieckmann, trouxe nova
tipificação na forma do art. 154-A do Código Penal, o qual determina como crime:

Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à


rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de
segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou
informações sem autorização expressa ou tácita do titular do
dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita:
759

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (BRASIL,


1940)

A tipificação supramencionada, embora consista em um crime


plurinuclear, isto é, composto por vários verbos, mostrou-se incapaz de abranger
as situações de pornografia de vingança, vez que trata de invasão de dispositivo
informático e não da divulgação do conteúdo íntimo em si. Perdurou, portanto,
até o ano de 2018, distância entre a norma e a realidade, sobrevindo cada vez
mais casos de pornografia de revanche. Caso que ganhou amplitude nacional
foi o de Rose Leonel, a qual teve fotos íntimas expostas online pelo ex-namorado
após uma ameaça de separação. Os danos foram imensuráveis, como a perda
do emprego e a necessidade de enviar o filho para fora do país para que ele não
tivesse que lidar com a situação. No ano de 2013, Rose fundou a ONG Marias
da Internet com o fito de promover orientação jurídica e apoio psicológico a
mulheres em situação semelhante (FOLHA DE S. PAULO, 2017).
Diante dos inúmeros casos ocorridos de pornografia de vingança e da
lacuna legislativa existente, no ano de 2018 foi promulgada a Lei 13.718/18,
responsável por incluir no Código Penal o artigo 218-C, o qual dispõe que:

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor


à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive
por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou
telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que
contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça
apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima,
cena de sexo, nudez ou pornografia:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui
crime mais grave. (BRASIL, 1940)

O mencionado artigo tratou de tipificar de forma plurinuclear o crime de


pornografia de vingança com o fito de abranger o máximo de situações possíveis.
Embora seja notório que as mulheres são o principal alvo desse tipo de conduta
em decorrência da marginalização da sexualidade feminina e do machismo
estrutural imperante, trata-se de crime comum, abarcando também casos em
que a vítima é do sexo masculino. É válido, ainda, mencionar que o fato de o
material íntimo ter sido produzido com o consentimento da vítima não gera
extinção da punibilidade, consistindo em crime a divulgação desse material
independente do consentimento prévio quanto a sua produção. A justificativa
principiológica para a nova tipificação se pauta nos princípios da dignidade da
pessoa humana, da inviolabilidade da honra e no direito à privacidade e à
intimidade, sendo válido destacar que a privacidade diz respeito à vida privada
e às relações interpessoais, enquanto a intimidade consiste no espaço criado
pelo indivíduo alheio ao conhecimento do outro (ARAÚJO; JUNIOR, 2018).
Ademais, encontra-se em trâmite o Projeto de Lei 5.555/2013 o qual
propõe a alteração da Lei n. 11.343/06 por meio da criação de mecanismos para
o combate de condutas ofensivas contra a mulher na internet ou em outros meios
de propagação da informação. Ademais, o Projeto de Lei 6.630/2013, apenso ao
5.555/2013, propõe o aumento de pena de um terço para a divulgação de
material íntimo com o fim de vingança ou humilhação (CONSULTOR JURÍDICO,
2018),

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
760

Ante o exposto, pode-se inferir que os avanços tecnológicos foram


responsáveis por fornecer nova roupagem às relações intersubjetivas que,
hodiernamente, têm se alicerçado cada vez mais em meio ambiente digital,
sobretudo em decorrência da popularização das redes sociais. Todavia, ainda
que se possa atribuir à internet e a seus desdobramentos a força motriz
responsável por romper antigos paradigmas, muito do que se verifica na
realidade física é reproduzido na realidade virtual. Com o transcorrer do tempo,
pode-se verificar, dentre os variados registros, inúmeros casos de criminalidade
cibernética e de opressão de gênero na rede. Mais recentemente, uma única
conduta mostrou-se hábil a encampar ambos os fatores aludidos: a pornografia
de vingança.
Partindo-se do pressuposto de que a função precípua do Direito é
adequar-se o mais fielmente possível à realidade fática, de modo a acompanhar
transformações e melhor tutelar bens jurídicos, as mudanças oriundas do
desenvolver da internet merecem especial atenção de juristas. Em razão da
morosidade legislativa, durante certo lapso temporal, a conduta descrita como
pornografia de vingança recebeu punições em sede de responsabilidade civil,
ensejando tão somente reparações pecuniárias, ou em sede de
responsabilidade penal pela prática de crimes contra a honra, sendo cominadas
penas incompatíveis com a intensidade da conduta. Por se tratar de um tema
relevante mas carregado de implicações histórico-culturais, os debates acerca
de crimes como a pornografia de vingança mostram-se ainda embrionários,
contudo, tem sido possível verificar relativa mobilização social e legislativa com
o fito de tratar mais eficazmente a questão em tela, tendo ocorrido a elaboração
de dispositivos legais especialmente destinados a punir o referido delito, a
exemplo da Lei 13.718/18, representando passos iniciais rumo à solução da
problemática ora exposta.

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direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

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preceito fundamental 54. Feto anencéfalo – interrupção da gravidez – mulher
– liberdade sexual e reprodutiva – saúde – dignidade – autodeterminação –
direitos fundamentais – crime – inexistência. Mostra-se inconstitucional
interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta
tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Relator:
Ministro Marco Aurélio, 12 de Abril de 2012. Disponível em:
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763

SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO SOB A PERSPECTIVA DE


GÊNERO: A REALIDADE DA MULHER ENCARCERADA.
BRAZILIAN PENITENTIARY SYSTEM FROM A GENDER PERSPECTIVE:
THE REALITY OF INCARCERATED WOMEN.

Aline Guedes Santos


Orientador(a): Guilherme Aparecido da Rocha

Resumo: O presente artigo busca uma compreensão em torno de algumas


experiências vivenciadas pelas mulheres que se encontram encarceradas,
procurando contribuir para a produção de conhecimento especifico sobre esta
realidade. Para tal objetivo, utilizaram-se pesquisas bibliográficas que
problematizaram o sistema penitenciário sob a perspectiva de gênero e a
realidade da mulher encarcerada. Serão discutidos: prisão e o sistema
penitenciário, relação de gênero e a mulher encarcerada. A partir desse estudo,
pode-se perceber que há grande necessidade de mais discussões acerca desse
assunto, a respeito das condições das detentas, os direitos das mulheres
encarceradas e a diversidade humana que carece de respeito. Notam-se as
dificuldades encontradas pelas mulheres dentro do ambiente carcerário,
contexto no qual se sugere ajuda psicossocial, que poderia proporcionar reflexos
significativos para a sociedade e ao próprio individuo.
Palavras chaves: Sistema penitenciário. Gênero. Mulher encarcerada.

Abstract: The present article seeks an understanding around some experiences


lived by women who are incarcerated, seeking to contribute to the production of
specific knowledge about this reality. For this purpose, we used bibliographical
research that problematized the penitentiary system from the perspective of
gender and the reality of incarcerated women. The following will be discussed:
prison and the penitentiary system, gender relations and incarcerated women.
From this study, we can see that there is a great need for further discussions on
this subject, regarding the conditions of detainees, the rights of incarcerated
women and the human diversity that needs respect. It is noted the difficulties
encountered by women within the prison environment, a context in which
psychosocial help is suggested which could provide significant reflexes to society
and to the individual himself.
Keywords: Penitentiary system. Genre. Imprisoned woman.

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata do estudo das penitenciarias femininas, abordando


a realidade enfrentada pela mulher encarcerada. Com os índices de
criminalidade crescendo e o sistema penitenciário tornando-se cada vez mais
polêmico, é importante abordar, especificamente, o contexto das penitenciárias
femininas, assunto que pouco recebe destaque no âmbito das pesquisas
científicas.
Através da perspectiva de gênero, o estudo busca problematizar e
aprofundar o conhecimento específico acerca de como são as condições
vivenciadas por essas mulheres, quais as necessidades e os enfrentamentos
que as demandam um local diferente dos estabelecimentos prisionais utilizados
por homens.
764

O objetivo da presente pesquisa é analisar como as peculiaridades da


relação de gênero impactam a vida perante o cárcere. Precisamente, objetiva-
se verificar as condições esperadas, em confronto com as efetivamente
aplicadas à mulher privada da liberdade.
O método de pesquisa adotado foi o hipotético-dedutivo, mediante
utilização de instrumento qualitativo e ampla consulta bibliográfica. Procedeu-se
à análise de dados do Governo do Rio Grande do Sul para obtenção elemento
específico (quantidade de psicólogos atuantes no sistema carcerário), em
comparação à quantidade de presos neste Estado.

1. A QUESTÃO DE GÊNERO NO ÂMBITO PRISIONAL

A criminalidade e o seu aumento constante ao longo do tempo tem sido


motivo de medo para a sociedade. A importância atribuída a esse assunto por
meio das pesquisas de opinião têm levado o governo e a sociedade civil a
encarar a criminalidade e a violência como um dos obstáculos mais relevantes
para o crescimento socioeconômico. A dificuldade está em programar e aplicar
políticas que previnam e atenuem os índices dos crimes.
Com o contexto social, dominante do gênero masculino, sobre o qual os
sistemas penitenciários foram construídos, ou seja, uma penitenciária voltada
totalmente para um único gênero fica evidente a desigualdade existente, não
abrangendo as necessidades das mulheres, pois essas carecem de um
tratamento especifico para suas características. As penitenciárias existentes no
Brasil possuem um modelo direcionado para os homens, sendo esses
responsáveis por 94,2% da população carcerária (INFOPEN, 2014).
A questão de gênero não diz respeito ao feminino e masculino, mas trata-
se de algo além da percepção externa do corpo. Trata-se, em verdade, de uma
construção pessoal do indivíduo em como realmente é identificado e como isso
é visto por si próprio e pela sociedade. Além disso, abrange também a questão
do respeito e do atendimento necessário para suprir suas carências.
Constata-se, nesse contexto, que as mulheres não recebem destaque
pela prática de atos criminosos, e sua entrada nessas atividades é descrita, de
maneira geral, como subordinada à participação em crimes praticados por
homens, como partícipes, ou como aquela que maltrata crianças ou que se
envolve em crimes passionais. Essa afirmação retira da mulher todo e quaisquer
protagonismos que ela tenha em relação ao delito cometido, supondo que a
mulher tem submissões emocionais e afetivas nas suas relações e isso as induz
na sua inserção nas atividades ilícitas.
Ainda que a população carcerária feminina seja muito menor do que a
população masculina, é importante observar que a taxa de aumento da inserção
dessas mulheres no sistema prisional é maior (INFOPEN, 2016). É importante
mencionar, ainda, que existe uma omissão do Estado com relação ao
encarceramento de mulheres no sistema prisional brasileiro. Isto demonstra que
tal tema merece um estudo detalhado, de modo a explorar a evolução da mulher
dentro da prática delitiva.

2. PRISÃO E O SISTEMA PENITENCIÁRIO

A prisão é um mecanismo de punição recebida em decorrência da prática


de determinados crimes. Os conceitos de prisão são variados. Muitos
765

doutrinadores identificam a prisão restringindo seu aspecto às características da


privação de liberdade (NUCCI, 2012).
Não se faz referência, por vezes, ao artigo 5°, inciso LXI da Constituição
Federal e ao artigo 283 do Código Processual Penal com redação dada pela Lei
n°12403/11. A prisão demanda uma ampla compreensão, conforme explora
Renato Brasileiro de Lima:

A prisão deve ser compreendida como a privação da liberdade de


locomoção, com o recolhimento da pessoa humana ao cárcere, seja
em virtude de flagrante delito, ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente, seja em face de transgressão militar
ou por força de crime propriamente militar, definidos em lei (LIMA,
2012, p. 1168).

O local onde as pessoas ficam presas são as penitenciárias, que possuem


algumas das seguintes características: superlotação falta de oportunidade e
desrespeito aos direitos das mulheres (INFOPEN, 2016).
Em junho de 2016, o INFOPEN, realizou um Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias, que revelou dados preocupantes acerca das
penitenciárias brasileiras. Existiam 726.712 pessoas privadas de liberdade, e,
em relação ao numero de vagas, é possível observar que há um déficit total de
358.663 mil vagas. A maior parte dos estabelecimentos penais foi projetada para
o público masculino. No Brasil 74% das penitenciárias são para homens, 7%
para mulheres e outros 17% são mistos. Além disso, os presos, em sua grande
maioria, possuem escolaridade baixa. Segundo os dados, 51% não completaram
o ensino fundamental e outros 15% não terminaram o ensino médio.

3. RELAÇÃO DE GÊNERO

A relação de gênero é um assunto problematizado pela sociedade há


muito tempo. Pode-se dizer que desde a origem humana fica evidente esta
discriminação de gênero: quando o homem saia em busca de alimento e a
mulher permanecia cuidando da casa e dos filhos, ou seja, os homens eram
encarregados pela sobrevivência da família, enquanto a mulher era encarregada
da maternidade e do bem estar familiar. Tais posicionamentos revelam uma
estrutura de estereótipos sexistas, cercada de mitos e de uma mentalidade
patriarcal (BARROS, 2000).
A hierarquia de gênero afeta negativamente as mulheres, dando lhes um
sinônimo de inferioridade e subordinação à mulher. Os papéis desenvolvidos por
ambos na sociedade são essenciais, no entanto, a cultura machista implantada
na sociedade e enraizada pelo sistema patriarcal leva ao pensamento de que as
mulheres não podem ocupar o mesmo espaço e nem estar no mesmo patamar.
Com isso, a cegueira social existente leva a sociedade à inobservância dos
direitos das mulheres.
Discutindo criminalidade feminina e a imagem que é atribuída à mulher,
Argimon, Lopes e Mello concluem, a partir de estatísticas, que a maioria é não-
branca, com filhos, possuem mínima escolaridade e praticaram condutas de
menor potencial ofensivo. Verifica-se, ainda, que mais da metade delas
respondem por tráfico de drogas (2010).
O sistema penitenciário brasileiro aponta uma negação de gênero,
desvalorizando a mulher no ambiente penitenciário e negando enfrentar os
766

obstáculos necessários para suprir as carências femininas. Ainda que a


população carcerária masculina seja maior, a feminina vem aumentando cada
vez mais, e os problemas existentes nas penitenciárias masculinas afetam
também as femininas (INFOPEN, 2016).
Santa Rita aponta que os principais problemas que afetam o Sistema
Prisional Brasileiro, tanto o masculino como o feminino são: condições precárias
de aprisionamento; assistência jurídica e materiais insuficientes; estrutura física
sem manutenção; e baixa oferta de cursos profissionalizantes e/ou atividades
educacionais. Porém, a mesma autora destaca que nas penitenciárias femininas
os problemas se agravam pela discriminação de gênero, pois a maioria das
estruturas que abrigam as detentas são improvisadas e em muitos estados essas
ficam em alas, no interior de complexos prisionais masculinos, não tendo assim,
um local específico para seu abrigamento (2006).
Além de a mulher ocupar uma posição de inferioridade ao homem no
cárcere, acaba não se auto enxergando mais como mulher, por meio dos
processos de subjetivação e coisificação.

4. A MULHER ENCARCERADA

Em junho de 2016, o INFOPEN, realizou um Levantamento Nacional de


Informações Penitenciárias Femininas, explorando as suas mais diversas
condições e características. Com base nesses dados é possível compreender
como são essas penitenciárias, as dificuldades enfrentadas, além da clareza
sobre o perfil das mulheres privadas da sua liberdade.
O perfil da mulher encarcerada conta em sua grande maioria com as
seguintes características: faixa etária de 18 a 29 anos, negra, ensino
fundamental incompleta e solteira. Além desses fatores, conta também com
grande numero de deficientes intelectuais, na qual 60% da população deficiente
(intelectual, física, auditiva, visual ou múltipla) não se encontram em locais
adaptados corretamente para suas deficiências. Há também 529 cidadãs
estrangeiras nas penitenciárias. Além disso, 74% das mulheres das mulheres
privadas de liberdade possuem filhos, analisando dados da mesma época 53%
dos homens possuem filhos, o que demonstra que há desigualdade persistente
na sociedade quanto à distribuição de filhos entre homens e mulheres no sistema
prisional. E pela visão do perfil criminal, a maioria está cumprindo pena pelo
crime de trafico de drogas e com 70% das mulheres privadas de liberdade
condenadas a até, no máximo, oito anos de prisão (INFOPEN, 2016).
Ao serem inseridas no cárcere essas mulheres precisam criar estratégias
para sobreviver, muitas se agarram ao trabalho, aprendizagens de artesanato,
participação em oficinas de oração e canto, entre outros. Elas cuidam da
aparência e do espaço, a fim de torná-lo o mais confortável de acordo com o seu
ambiente doméstico (FRINHANI; SOUZA, 2005).
É importante destacar a questão da sexualidade, visto que a ausência
masculina é considerada um fator grave para permanência no cárcere, pois
faltam relacionamentos afetivos e sexuais com o sexo oposto. As visitas íntimas
na maioria das penitenciárias femininas não são permitidas, e nos raros casos
quando permitida, admite-se que seja somente com companheiro fixo (MOURA;
FROTA, 2006).
Com isso, fica evidente que há discriminação de gênero, pois para os
homens as visitas íntimas são permitidas com naturalidade, já para as mulheres,
767

a visita íntima é tida como privilegio para poucas, o que favorece


consequentemente relações afetivas e sexuais entre as detentas. Nesse sentido,
Guedes expõe que para a maioria delas, essas experiências começam no
cárcere, e muitas vezes não tem o caráter de “escolha” (GUEDES, 2006, p.7).
Portanto, a homossexualidade passa a ser uma estratégia de
sobrevivência no cárcere, que não é específica da essência do indivíduo, é algo
que está intimamente ligado com seu corpo e seu desejo, ou seja, para que
sejam preservados os relacionamentos afetivos e sexuais (GUATTARI; ROLNIK,
2005).
Diante de todo o cenário exposto, evidencia-se que a mulher encarcerada
necessita de apoio psicológico. Cada mulher se encontra nessa situação devido
muitos motivos, as inserções nas atividades ilícitas muitas vezes estão
diretamente relacionadas com o seu perfil. Por trás de cada detenta há uma
quantidade inimaginável de historias que a levaram até ali.
Segundo Guedes, perceber os sujeitos como construtores de sua própria
história, é permitir que eles compreendessem os fenômenos que os cercam, e
também é abrir espaço para que se percebam como sujeitos sócios históricos
ativos nesse processo. Portanto, o trabalho dos psicólogos no contexto prisional
é importante por estar voltado para a compreensão da totalidade do sujeito, por
procurar proporcionar bem estar psicossocial, acolhimento e escuta terapêutica,
bem como entender a trajetória da vida desses sujeitos e o que os levou a
praticar esses atos criminosos (2006).
O trabalho desse profissional deve ser voltado para o resgaste do
“humano”, oferecendo mais informações e perspectivas para um futuro diferente
da sua atual realidade. Porém, esses objetivos nem sempre são alcançados,
pois na maioria das vezes o trabalho do psicólogo não é reconhecido nesse
espaço e os recursos oferecidos para o desenvolvimento do referido trabalho é
escasso.
Não se localizou pesquisa exata referente à quantidade de psicólogos que
atuam nos sistemas prisionais brasileiros. Contudo, foi localizado, por meio de
levantamento específico, a quantidade de psicólogos que atuam no sistema
prisional do Rio Grande do Sul: eram 118 profissionais em 2006 (POLICENA;
COELHO, 2008). O Estado possuía, em 2018, 36.161 presos (VALESCO;
CAESAR, 2018), ou seja, uma relação de um psicólogo para cada grupo de
306,4 presos.
Mas o psicólogo que atua nessa área se depara com uma realidade
diferente. As mulheres encarceradas são julgadas e objetificadas pelos agentes
responsáveis por elas, deixando de lado o entendimento que além de detentas
essas mulheres também são seres humanos, que encontraram suas
dificuldades, que possuem sentimentos, além disso, é importante enfatizar que
esse preconceito não esta somente inserida dentro do sistema penitenciário,
mas na sociedade também essas mulheres não são mais vistas como seres
humanos.
As práticas institucionais pouco criativas e inovadoras, através das
restrições ao acesso ao trabalho, aos grupos terapêuticos, às visitas íntimas
entre outras práticas disciplinares exercidas pelos agentes penitenciários,
acabam por manter esse processo de objetificação mantendo as detentas no
lugar de sempre estarem criminosas. Desta forma, dificilmente são tratadas com
respeito e dignidade, passando a ser vistas como “coisas” e sendo marcadas
apenas por seus atos criminais e como pessoas sem possibilidade de mudança.
768

CONCLUSÃO

Tratar das particularidades do sistema penitenciário feminino possibilitou


compreender melhor a realidade da mulher encarcerada. Desta forma,
evidencia-se a importância de observar a mulher enquanto privada de sua
liberdade, pois isso pode acarretar em consequências para a sociedade como
um todo.
Estar no cárcere proporciona novas experiências, que afetarão
diretamente a convivência da mulher no mundo. Suas formas de pensar e suas
atitudes sofrerão modificações que não podem ser desconhecidas do Estado, já
que este é responsável pela pessoa durante o período da privação da sua
liberdade.
Assim sendo, esse artigo possibilitou uma visão do perfil das mulheres
que estão privadas de sua liberdade e quais as suas dificuldades dentro do
sistema penitenciário. Enquanto inserida em um modelo patriarcal, onde as suas
necessidades são ignoradas, as mulheres são colocadas em posições de
dificuldade, o que evidencia o preconceito e a desigualdade de gênero.
É importante enfatizar que essas mulheres cometeram atos ilícitos que as
levaram ao cárcere. No entanto, as políticas adotadas dentro dos
estabelecimentos penais são utilizadas de forma errônea, não preservando o
intuito das prisões que possuem caráter ressocializador, além de utilizarem
técnicas abusivas, que propagam a descriminalização, exclusão e preconceito.
Fica evidente a negação de gênero, a dificuldade de exigência de seus
direitos e a desvalorização das mulheres presas, visto que ficam marcadas pelo
estigma de presidiárias e de indivíduos sem a possibilidade de mudança. Esses
fatores são fundamentais e geram o aumento da criminalidade, pois a busca
incessante pela inclusão, respeito e mérito fazem com que as mesmas busquem
por meio do crime. Em outras palavras, buscam o poder por meio do crime.
O desenvolvimento do referido artigo, também possibilitou compreender
que a cultura machista, sexista e o patriarcado não estão presentes tão somente
na sociedade civil, está em todo lugar, inclusive, nas penitenciárias, começando
pelo fato de não haver um preparo para a recepção dessas mulheres no cárcere,
seja através das instalações que não são adaptadas para as mulheres, seja no
tratamento delas enquanto detentas ou no despreparo para ressocialização
dessas mulheres para reinseri-las na sociedade com melhores expectativas.
Abordando o assunto penitenciária sob a perspectiva de gênero é possível
notar que o sistema carcerário enfrenta diversas dificuldades, como a
superlotação, falta de oportunidades, mortes dentro dos estabelecimentos
penais, entre outros. Evidencia-se que o cárcere feminino é uma problemática a
ser cuidada com mais responsabilidade, pois as mulheres carecem de um
sistema penitenciário adequado, em vista das suas necessidades e suas
dificuldades, além de tratar de forma clara e não somente mascarar como já é
feito, já que pouco se ouve falar sobre o cárcere feminino.
Por fim, o abordaram-se de forma perfunctória a necessidade e
importância da psicologia no âmbito penitenciário. No entanto, por se tratar de
matéria interdisciplinar, torna-se difícil o Direito isoladamente falar com
propriedade a respeito desse assunto e compreender de forma mais complexa.
Por isso a presente pesquisa terá sequência a partir de estudo a ser realizado
em coautoria com discente do programa de psicologia da mesma instituição que
769

a autora do presente excerto, o que viabilizará ganho qualitativo ao objeto


abordado.

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771

Grupo de Trabalho:

DIREITO POLÍTICO E ECONÔMICO


Trabalhos publicados:

A DEMOCRACIA E SEU APRIMORAMENTO: A PARTICIPAÇÃO DAS


MULHERES NO PROCESSO ELEITORAL DEMOCRÁTICO

A INFLUÊNCIA EXERCIDA PELA SOCIEDADE DE CONSUMO NO


NARCISISMO DO INDIVÍDUO CONTEMPORÂNEO

AS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA JURÍDICA DE JOHANNES ALTHUSIUS


PARA ESTRUTURAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO

CONSTITUCIONALISMO, DEMOCRACIA E ATIVISMO JUDICIAL

DIREITO E MORAL, DE HERBERT HART.

FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA, LIVRE CONCORRÊNCIA E LIBERDADE


ECONOMICA: A INTERDISCIPLINAR ENTRE O DIREITO E A ECONOMIA

MULTINACIONAIS E REGRAS INTERNACIONAIS DE PROPRIEDADE: A


EXPANSÃO TERRITORIAL DOS INVESTIMENTOS E SUA PROTEÇÃO
JURÍDICA.

O CONFLITO ENTRE FAKE NEWS E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

O DIREITO TRANSINDIVIDUAL A SUSTENTABILIDADE NO MEIO AMBIENTE


CIBERNÉTICO

O ETNOCÍDIO INDÍGENA NA FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO:


CONSEQUÊNCIAS LEGISLATIVAS CONTEMPORÂNEAS

O VOTO DISTRITAL E A REFORMA POLÍTICA NO BRASIL:


TRANSFORMAÇÃO OU PRESERVAÇÃO DO STATUS QUO?

REFORMA POLÍTICA E A ADOÇÃO DO VOTO DISTRITAL PURO: UMA VISÃO


DE CONJUNTO PARA MITIGAR A PSEUDO REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NO
BRASIL

VANTAGENS DO SISTEMA ELEITORAL PROPORCIONAL DE LISTA ABERTA


EM RELAÇÃO AO SISTEMA MAJORITÁRIO PARA A ELEIÇÃO DE
DEPUTADO FEDERAL NO BRASIL
772

A DEMOCRACIA E SEU APRIMORAMENTO: A PARTICIPAÇÃO DAS


MULHERES NO PROCESSO ELEITORAL DEMOCRÁTICO
DEMOCRACY AND ITS IMPROVEMENT: WOMEN'S PARTICIPATION IN THE
DEMOCRATIC ELECTION PROCESS

Lucio Flavio Joichi Sunakozawa


Gabriela Oshiro Reynaldo
Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: A democracia é um dos temas mais debatidos e analisados, por


teóricos e estudiosos de várias correntes doutrinárias, desde a antiguidade
clássica até os cenários contemporâneos. O processo eleitoral, não sendo
exclusiva da democracia, também é utilizada por regimes autoritários e
totalitários, para reafirmar o poder e camuflar a ausência de democracia. O
trabalho objetiva analisar, através de coletas bibliográficas, sobre a democracia
e a participação das mulheres, por meio da representação indireta, considerada
ainda como o caminho mais preciso e eficiente para exercício da igualdade
democrática. As mulheres, por esse processo eleitoral democrático, possuem
uma trajetória histórica marcada pela desigualdade e desafios para sua inserção
e participação. Vários fatores são apontados, ao final, que carecem ainda de
maior atenção pela sociedade e por todos os segmentos sociais e políticos,
inclusive de ordem legal, para o aprimoramento de uma democracia plena e
efetiva.
Palavras-chave: Democracia. Mulheres. Eleitoral.

Abstract: Democracy is one of the most debated and analyzed topics by


theorists and scholars of various doctrinal currents, from classical antiquity to
contemporary scenarios. The electoral process, not being exclusive to
democracy, is also used by authoritarian and totalitarian regimes to reaffirm
power and camouflage the absence of democracy. This paper aims to analyze,
through bibliographic collections, about democracy and women's participation
through indirect representation, still considered as the most accurate and efficient
way to exercise democratic equality. Women, through this democratic electoral
process, have a historical trajectory marked by inequality and challenges for their
insertion and participation. Several factors are pointed out, in the end, that need
even greater attention by society and all social and political segments, including
the legal order, for the improvement of a full and effective democracy.
Keywords: Democracy. Women. Electoral.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho, enquadra-se no GT 01 – DIREITO POLÍTICO E


ECONÔMICO, tem por finalidade analisar sobre a participação das mulheres no
processo eleitoral democrático, à luz da legislação vigente, dentro da perspectiva
da democracia representativa e sua efetivação da igualdade.
A metodologia utilizada, nesta atividade, cinge-se à abordagem dedutiva
e de cunho bibliográfico, numa perspectiva analítica e sintética, sobre os
fenômenos e influencias dessa participação igualitária da mulher, desde a
773

antiguidade clássica, perpassando pelos teóricos clássicos da democracia, aos


atuais cenários contemporâneos da política brasileira.
A democracia, por seus diferentes conceitos e contornos, é um dos temas mais
debatidos e estudados, seja no campo da política, filosofia, sociologia ou do
direito, por diversos pensadores ao longo da existência do homem em
sociedade, pois, o poder pelo povo, para o povo e do povo, ou seja, “a decisão
política encontra sua origem genética nos destinatários do poder, no povo”
(CAGGIANO, 2011).
Esse pressuposto de organização social, por consequência, leva a uma
expectativa do respeito e limites do poder, centrado no constitucionalismo, para
resguardar a liberdade individual, o cerne para exercício da democracia, assim
lecionada:

Elementar a lição que nos coloca diante de um movimento, o


constitucionalismo que impacta o século XVIII e, a passos largos, vai
se alongando para, em todas as partes, recomendar e inspirar a
presença de Constituições, documentos escritos, fundantes, que, do
pedestal de lei suprema, obrigam o Poder, cingindo o seu exercício a
balizas e limites pré-determinados, resguardando, pois, os direitos
humanos fundamentais de ações arbitrárias e, pelo cerceamento do
poder abusivo, salvaguardando a liberdade individual. Este, aliás, um
dos primeiros registros de Manoel Gonçalves Ferreira Filho ao iniciar
as aulas do curso de Direito Constitucional (CAGGIANO, 2011).

A igualdade, sobretudo, também forma a base da democracia, como já


detectada por diversos pensamentos, inclusive com uma igualdade inferior, daí
que a meritocracia deve ser visto também pelo ângulo inverso da demeritocracia,
ou seja, aos indivíduos devem ser observados a igualdade de falta de méritos e
não somente de méritos, para oportunizar uma democracia ampla, como se pode
realizar com as minorias (SARTORI, 1994).
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2001), a democracia só se edifica
a partir de um ideal elevado, pautado na virtude humana, como apontada por
Montesquieu (1985), assim:

“a virtude como o princípio, a mola mestra, da democracia. Enquanto


modelo ideal, a democracia pressupõe que o povo escolha pelo voto
os seus representantes, que irão governá-lo. Pretende que nessa
escolha o eleitor não leve em conta senão as qualidades do candidato
e seu programa de atuação. Reclama que o eleito aja em vista
exclusivamente do interesse geral, doa o que doer, custe o que custar.
E tanto povo, como governante, nada devem esperar em troca de sua
participação, exceto a satisfação do dever cumprido.”

Preambularmente, portanto, este trabalho procura analisar e demonstrar,


adiante, a participação e representação das mulheres, através do sistema
eleitoral, diante da questão do binômio liberdade-igualdade, necessário e vital,
para arejar e aperfeiçoar, sempre, o melhor sistema de governo que se conhece,
desde a antiguidade, que é a democracia, como será desenvolvido nos tópicos
seguintes.

2. AS MULHERES NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA: DESIGUALDADE NO


EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA
774

É na antiguidade clássica, através da mitologia grega (DETIENNE;


SISSA, 1990, p. 178-179), que retrata a luta pelo direito de voto exercido pelas
mulheres da Ática, na época do rei Cécrope I, o primeiro rei de Atenas, entre
1558 a 1508 a.C. O rei ao fundar uma cidade, nela brotou uma oliveira e jorrou
uma fonte de água. O rei ao consultar ao oráculo de Delfos, obteve a resposta,
a oliveira significava Atena e a fonte de água Poseidon, por isso, todos deveriam
escolher entre os dois qual seria o nome da cidade
Todos os cidadãos foram convocados a votar, homens e mulheres; os
homens votaram em Poseidon (exceto, Zeus), as mulheres em Minerva, e
Minerva venceu por um voto. Daí nasceu a desigualdade entre homens e
mulheres, pois, Netuno ficou muito irritado, e atacou a cidade com as grandes
ondas. Segundo relatos de Varrão (SANTO AGOSTINHO, 2000)1 para apaziguar
essa ira, as mulheres de Atenas aceitaram três castigos: 1) que elas perderiam
o direito ao voto; 2) que nenhum filho teria o nome da mãe; e, 3) que ninguém
as chamaria de atenienses.
Logo, nasceu aí o desafio lançado pela mitologia, onde o direito das
mulheres para, após um exercício legitimo de sufrágio, passou a ser desigual,
juntamente, com a ausência de direitos dos metecos (estrangeiros residentes na
Grécia) e com os escravos, perante os direitos de um homem considerado
cidadão grego.

3. AVANÇOS DA DEMOCRACIA A PARTIR DO SÉCULO XX: A LUTA PELA


INCLUSÃO E IGUALDADE

Foi após longo período de “hibernação da mulher na política”, segundo a


professora Monica Herman Salem Caggiano (2019), para conquistar a cidadania
e integrar-se no corpo eleitoral de primeiro grau, ou seja, o direito ao sufrágio
apenas para votar, somente no século XX. Todavia, o direito à cidadania ainda
não é pleno para as mulheres, apesar do avanço nesse século passado, ainda
há um árduo percurso do jus honorum das eleições, como é ressalvado, assim:

No entanto, já portadora do status de cidadã, sua participação no


panorama político continua reservada à presença nas urnas, na
qualidade de eleitora, ou seja, ainda como cidadã de primeiro grau.
Escassos os avanços quanto ao exercício do jus honorum – o outro
lado do direito de sufrágio – a face da participação política efetiva, o
indicador da possibilidade de ocupar postos de tomada de decisões.
(CAGGIANO, 2019).

A democracia no século XX, ainda não fechou seu ciclo, diante da


complexidade de sua formatação e variação de pensamentos e métodos para
serem aplicados, como se confere adiante.
A democracia que é um sistema institucional2, para que o indivíduo possa
escolher quem possa exercer o poder (SHUMPETER, 1961), que se embasa

1 No Capítulo 9 - Quando a cidade de Atenas foi fundada, e a razão que Varrão dá para o seu
nome – Livro XVIII do volume III do livro Cidade de Deus de Santo Agostinho (2000, p. 1717-
1718).
2 “A democracia é um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para chegar
a uma decisão política (legislativa ou administrativa) e, por isso mesmo, incapaz de ser um fim
em si mesmo, sem relação com as decisões que produzirá em determinadas condições
775

numa teoria de competição, por outro lado, Giovanni Sartori (1994) observa que
essa modalidade também é defendida por Robert Dahl, mas com certa
divergência de Schumpeter, pois “Dahl começa onde Schumpeter pára, isto é,
Dahl procura uma difusão e um reforço pluralistas, na sociedade como um todo,
da competição entre elites”. (SARTORI, 1994).
Segundo DAHL (1997), a democracia possui caracteristícias jamais
coincidentes com um sistema político real, daí, porque a necessidade de admitir
a existência de um sistema com características minimamente democráticas que
se pode denominar de poliarquia. As poliarquias masculinas, onde as mulheres
e até mesmo um grande número da população masculina, também, não
exerciam o direito de voto, são uma prova de que as condições mínimas para a
democracia que se denominará de poliarquia plena, ocorreu somente a partir do
século XX.
Em passado recente, apenas, na segunda década do século XX que,
apenas a Nova Zelândia (1893) e a Austrália (1902), estendeu o sufrágio às
mulheres, em suas eleições nacionais. Já na França e na Bélgica, na Europa, só
conquistaram o direito ao sufrágio nas eleições nacionais depois da Segunda
Guerra Mundial. E, mais recente ainda, é o caso da Suíça, onde o sufrágio
universal foi consagrado legalmente para os homens em 1848, e o sufrágio nas
eleições nacionais só foi garantido às mulheres somente em 1971.
Para Sartori (1994), não basta a competição, mas uma teoria normativa
de democracia com base na seleção, elite e eleição. Um sistema seletivo de
minorias eleitas para comandar o poder político. Ou seja, a democracia deve ser
uma poliarquia seletiva. O ingresso em posições de comando numa democracia
deve se dar apenas pela elite. Mosca (1983) defende que na sociedade existe a
elite de uma classe dominante e a que vai ser dirigida por aquelas. Por elite,
segundo Sartori (1994) entende serem os melhores, os mais qualificados,
portanto, a democracia deve ser uma poliarquia de mérito, assim explanada:

Gostaria que não houvesse equívoco sobre o fato de que, ao


desvalorizar a meritocracia, obtemos simplesmente a demeritocracia;
que, ao desvalorizar a seleção, obtemos simplesmente uma seleção
às avessas; e que, ao desvalorizar a igualdade de méritos, obtemos
simplesmente a igualdade de falta de méritos. (SARTORI, 1994).

A equalização deve ser por cima e não por baixo (SARTORI, 1994), pois,
a igualdade de méritos (em relação à capacidade) beneficia a sociedade como
um todo, enquanto a igualdade na falta de méritos é uma igualdade perniciosa,
porque coletivamente prejudicial.
De outro pensar, Arend Lijphart (1984), através de estudos da democracia
em 36 países, extraiu as características principais da organização institucional
que as classificou em dois modelos de democracia, sendo o primeiro o modelo
majoritário: 1) a concentração do Poder Executivo em gabinetes majoritários sob
o controle de um só partido; 2) predomínio do Poder Executivo sobre o Poder
Legislativo; 3) sistema bipartidário; 4) sistema eleitoral majoritário; 5) um sistema
pluralista de grupos de interesse; 6) governos unitários e centralizados; 7)
concentração do Poder Legislativo em uma única câmara; 8) flexibilidade

históricas. E justamente este deve ser o ponto de partida para qualquer tentativa de definição.”
(SCHUMPETER, 1961).
776

constitucional; 9) ausência do recurso de revisão constitucional; e 10) bancos


centrais dependentes do Poder Executivo.
Ainda, Lijphart em seus estudos, apontou um segundo modelo de
democracia que baseou-se em características consensuais, com as seguintes
descrições: 1) oposição com relação ao primeiro modelo, com ênfase a um maior
equilíbrio de poderes entre o Poder Executivo e Legislativo; 2) a formação de
gabinetes multipartidários; 3) sistema eleitoral proporcional; 3) federalismo: 3) a
existência de uma constituição escrita; 4) bicameralismo: 5) recurso da revisão
constitucional; e, 6) banco central independente.
Por seu turno, é em Bobbio (2002), que a premissa de um Estado
democrático está assentada nos pilares de um Estado Liberal, como
mecanismos de garantias da liberdade, assim:

[...] o Estado liberal é o pressuposto não só histórico, mas também


jurídico do Estado democrático. Estado liberal e Estado democrático
são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo
à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades
para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que
vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o
poder democrático para garantir a existência e a persistência das
liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que
um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da
democracia e de outra parte é pouco provável que um estado não
democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais. A
prova histórica desta interdependência está no fato de que Estado
liberal e Estado democrático, quando caem, caem juntos.

As teorias sobre democracia, pois, são construções de pensamentos


quase que irretocáveis sob os seus pontos de vistas positivos e negativos, bem
como as justificativas para os seus principais modelos, todavia, é de se notar
que, dentre esses maiores teóricos e estudiosos da democracia, não há sequer
um estudo especifico, de relevo mesmo, para a questão da participação das
mulheres, em especial, para além do exercício da votação, mas, pois faltantes
os direitos de serem votadas e, assim, exercerem o poder político em sua
plenitude, bem como o protagonismo das decisões democráticas.

4. DESAFIOS PARA O DIREITO DE PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NO


PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO DIANTE DO ESTADO DEMOCRÁTICO
BRASILEIRO

A democracia não possui monopólio sobre o instrumento do processo


eleitoral, pois, esse contorno pode se dar por diversas matizes políticas,
inclusive, nos regimes totalitários e autoritários (CAGGIANO, 2004). A
explicação ainda, tem fundamento nas relações de legitimidade ou ratificação de
um poder, ainda que autoritário ou antidemocrático, como a seguir está bem
lecionada pela altissonante doutrina:

“Assim é que, enquanto para as democracias ocidentais a eleição


assume o papel de fonte de legitimidade do poder, de técnica de
controle e elemento inerente à garantia da participação no pólo
decisório, em territórios totalitários a esse processo se acopla uma
conotação instrumental específica, configurando um instrumento de
exercício do poder sob o controle dos órgãos governamentais, com
vistas à unidade política e moral do povo. Sob regimes autoritários,
777

também visualizada como instrumento de eventual legitimação dos


governantes, a eleição se apresenta com a conotação de mecanismo
de reafirmação das relações de poder.” (CAGGIANO, 2004).

Daí que a cidadania plena das mulheres, para reafirmação da


possibilidade democrática do exercício de poder, passa pelo processo de
desafios e conquistas no processo eleitoral, pois “não é possível conceber uma
democracia sem pensar na forma representativa. A democracia direta, salvo
excepcionais mecanismos, se demonstra inviável em decorrência do
agigantamento e da complexidade das sociedades atuais” (CONEGLIAN, 2008).
No direito brasileiro, contemplando a participação das mulheres no direito
de votar, foi consagrado constitucionalmente somente em 1934, através do
artigo 108 da Constituição da República Federativa do Brasil, logo após o voto
feminino estar previsto no Código Eleitoral de 1932.
Entretanto, um pouco antes, a primeira autorização para uma mulher votar
no Brasil, foi em 1927, no estado do Rio Grande do Norte, mediante a
interpretação decorrente de uma lei que dizia para o exercício do voto deveria
ser observada o requisito sem distinção de sexo. Mas, tal lei não foi reconhecida
pelo Senado Federal, tendo sido anulados todos os votos de mulheres
registrados nas eleições de 1928 naquele estado. A partir de tal negativa, a
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino criou o Manifesto Feminino,
declarando os direitos da mulher.
Assim, no estado do Rio Grande do Norte, as mulheres passaram a votar
e a serem votadas na gestão do Governador do Estado, Juvenal Lamartine
(1928-1930). Mulheres votaram e foram votadas para o legislativo municipal. E,
como um marco histórico, Alzira Soriano foi eleita Prefeita de Lajes, cidade do
interior daquele estado, e referida como a primeira mulher da América Latina a
assumir o governo de uma cidade.
Um dado alarmante para a democracia, é sobre a corrida eleitoral da
mulher, visto que na Câmara dos Deputados, dos 513 deputados federais,
apenas 54 são mulheres (10,52%), colocando, atualmente, o Brasil na 152ª
posição no ranking de 190 nações em que as mulheres ocupam espaços
decorrentes de processos eleitorais, demonstrando a pouca presença de
mulheres no parlamento brasileiro, na lista de representatividade feminina no
mundo, na frente do Brasil encontra-se na primeira posição Ruanda (61,3%),
seguido de Cuba (48,9%), Nicarágua (45,7%), Suécia (43,6%), Argentina
(38,1%) e Estados Unidos (19,4%). Ainda, para complementar os dados de
desigualdades, em relação ao trabalho, apenas 37,8% das mulheres ocupam
cargos gerenciais no Brasil3.
Nesse discurso de igualdade de gênero, na legislação eleitoral brasileira,
está garantida as cotas para candidatas mulheres a um cargo político, assim:

Lei n. 12.035/2009 que ampliou para 30% e tornou obrigatória a


presença da candidata-mulher nas listas partidárias ou das coligações.
É o sistema de cotas aplicado em apoio ao efetivo exercício dos direitos
políticos da mulher. Mais ainda, cabe recordar o acréscimo do item IV
ao art. 45 da Lei partidária (Lei n. 9096/95, alterada pela Lei n.
13.165/2015) impondo aos partidos políticos, por intermédio dos atos

3 Dados sobre as Eleições de 2018 do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e das
Desigualdades (https://ceert.org.br/noticias/genero-mulher/23025/eleicao-2018-a-mulher-e-sua-
escassa-representatividade-na-politica-brasileira).
778

propagandísticos pela rádio e TV, a “promover e difundir a participação


política feminina, dedicando às mulheres o tempo que será fixado pelo
órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 10% (dez
por cento) (CAGGIANO, 2019).

As mulheres apesar de representarem 51% da população brasileira


(CASTANHO, 2014), ainda não encontraram o espaço norteado pela legislação
eleitoral, pois “ainda padece de uma sub-representação que, no espírito da
mudança trazida pelo art. 44, V, merece ser revista. Assim, programas que
incentivem e proporcionem maior participação feminina nessa seara devem ser
criados”.
Maurice Duverger (1970), nesse sentido, já acenava o domínio dos
partidos pelos detentores do poder, denominada por Robert Michels (1982) de
oligarquização antidemocrática4, “sob todas as suas formas, fica nas mãos dos
dirigentes do partido: ministros, deputados, administradores só existem através
dele, e somente agem de acordo com suas diretivas", por isso, a legislação
eleitoral deve prever sanções mais duras sobre o que tem ocorrido no Brasil,
quanto às candidatas ”laranjas” que apenas servem para cumprir o número
mínimo de mulheres exigido nos pleitos eleitorais, ou quando muito, para fins de
justificativas dos gastos com o percentual de gênero. Os partidos políticos,
segundo Rubens Beçak (2013), se tornaram marcantes a partir de meados do
século XIX, indissociáveis para a democracia, assim explicados:

Esses grupamentos surgem (DALLARI, 2012, 162-169; FERREIRA


FILHO, 2011, p. 114-115), inicialmente, como resultado da
convergência de interesses, verdadeiros “clubes”. É de se notar,
portanto, que nesse primeiro momento, os partidos políticos são
hostilizados e vistos como ameaça real à existência de um bem comum
(FERREIRA FILHO, 2011, p. 114). São mesmo entendidos como
entidades dissociativas e que buscam a prevalência de um interesse
particular por sobre o coletivo (DALLARI, 2012, p. 163). Porém, na
progressão histórica, sua existência institucionalizou—se. Pode-se
dizer que, se a sua gênese se faz em meados do século XIX
(DUVERGER, 1970, p. 19; DALLARI, 2012, p. 163), a realidade já era
completamente diferente um século depois.12,13 Desse modo
valorizados, assumem a posição de verdadeiro eixo de expressão do
pluralismo político (TORRES DEL MORAL, 2010, p. 89-107) obtendo,
sobretudo a partir de seu reconhecimento constitucional, já para
meados do século XX, nível institucional percebido como inseparável
da democracia. Dali para a frente, o epíteto “democracia” passou a
presumir, primeiramente, a existência da representação (do tipo
público, i. e. “não vinculada”) e, depois, a sua explicitação pelos
partidos políticos (FERREIRA FILHO, 2011, p. 119-121). Sua
associação com a democracia tornou-se indissoluta (GARCÍA—
PELAYO, 1986. P. 112-113).

Com outra visão, em oposição ao endeusamento dos partidos políticos


como uma solução para o aprimoramento da democracia, o professor Cláudio
Lembo (1999) sustenta que nem o voto distrital misto é capaz de proporcionar o

4 Robert Michels (1982) chama a atenção para a oligarquização dos partidos, tornando-se
antidemocrática, quando: “Os chefes que, no início, surgem “espontaneamente” e só exercem
as funções de chefe a título acessório e gratuito tornam-se chefes profissionais. Esse primeiro
passo logo vem seguido de um segundo, não tardando os chefes profissionais em tornarem-se
chefes estáveis.”
779

máximo da democracia, por isso, as candidaturas avulsas são uma saída para
tal objetivo:

Essa tipologia partidária é artificial. Fere o caráter nacional. Oliveira


Vianna, acertadamente, referiu-se ao homem brasileiro como titular de
personalidade “insolidária”. Os brasileiros não gostam dos ambientes
coletivos. São, por formação, individualistas. Agem, mesmo quando
pensam no bem da coletividade, isoladamente. Ora, se assim é, torna-
se oportuno adotar em nosso sistema político a figura da “candidatura
avulsa”. Antes de captar, particularmente no modelo tedesco, o voto
distrital misto, dever-se-ia recolher na mesma Alemanha o exemplo do
candidato independente ou avulso, particularmente para os pleitos
municipais.

A lei vigente brasileira, entretanto, ainda não adotou a possibilidade do


voto distrital misto ou da candidatura avulsa, logo, muito a ser feito ainda, no
tocante ao direito da mulher e sua participação no processo eleitoral em vigor,
que passa pela conscientização crítica dos cidadãos, homens e mulheres,
fortalecer a importância dos valores democráticos, através dos processos
eleitorais e participações ativas em partidos.
Portanto, para para o pleno processo eleitoral democrático brasileiro que
vise, realmente, “obter uma conquista democrática real de espaços e direitos”
(CASTANHO, 2014). E, ainda, seguindo uma tendência globalizante, as
mulheres devem se utilizar das novas tecnologias para seus desideratos
políticos e democráticos, tais como “o potencial da Internet para reaquecer o
espaço público, criar novas formas de vínculo comunitário e dinamizar a
participação política” (CASTANHO, 2014).

5. CONCLUSÃO

A democracia é o melhor sistema político que possibilita a participação do


poder e a condução do Estado, pelos próprios componentes da sociedade. E o
processo eleitoral democrático é um grande instrumento para o aprimoramento
da democracia, mormente pela via da representação, que pode se consolidar
com maior participação, de forma igualitária e livre, das mulheres que,
atualmente, apesar de serem a maioria na sociedade brasileira, ainda, não
passam de uma minoria nos cargos eletivos majoritários (senadores, deputados
federais, estaduais e vereadores).
Todavia, diante das leis eleitorais vigentes são insuficientes e ineficazes,
com sanções quase inexistentes para o caso de não participação das mulheres,
que são excluídas antes mesmos dos pleitos eleitorais, pois persiste uma
maléfica atuação da maioria dos dirigentes partidários que excluem as mulheres
das corridas eleitorais, ou ainda, pouco incentivo ou apoio lhes dão para
atingirem um patamar de igualdade com os candidatos homens.
Logo, pela própria história de lutas e desafios enfrentados pelas mulheres,
a desigualdade com relação às mulheres pela real e efetiva democratização nos
processos eleitorais, parecem ser um entrave de natureza sociocultural muito
comum em várias nações, pelos próprios cidadãos, sociedade, partidos e
governo, que está retratada na mitologia grega, onde as mulheres não eram
consideradas cidadãs, assim como os metecos e escravos, por uma questão
meramente do poder estar ligado à uma suposta supremacia machista.
780

Portanto, apesar de vários modelos de democracia destacados, mas é


notável como ainda a doutrina, salvo por alguns mais atentos neste século XXI,
inclusive, apontando para uso de tecnologias avançadas para a disseminação
da cidadania pelas mulheres, por outro lado, ainda o cenário nacional carece de
estudos mais aprofundados sobre as causas e origens da desigualdade em
relação às mulheres e outras minorias, cuja legislação eleitoral aparece sem
prestigiar a representatividade igualitária do gênero de forma incisiva e eficiente,
para ratificar o processo eleitoral democrático como realmente um grande
instrumento da democracia.

6. REFERÊNCIAS

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deliberação. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal,
jul./set. 2013. Vol. 50, n. 199.

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SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Trad. Ruy


Jungmann. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
782

A INFLUÊNCIA EXERCIDA PELA SOCIEDADE DE CONSUMO NO


NARCISISMO DO INDIVÍDUO CONTEMPORÂNEO
THE INFLUENCE OF CONSUMER SOCIETY ON THE NARCISSISM OF THE
CONTEMPORARY INDIVIDUAL

Paula Carolina Menezes Pacheco


Izabella Pantoja Rocha
Orientador(a): Filipe Rodrigues

Resumo: O Presente resumo tem o objetivo de fazer uma análise entre a relação
da lógica de consumo das sociedades contemporâneas, levando em
consideração as várias faces do capitalismo, e como esta cultura de consumo
influencia na formação de um indivíduo de caráter superficial e narcisista.
Inicialmente é abordado o comportamento do mercado moderno e como o
mesmo afeta os indivíduos e as suas relações, realizando uma crítica às
necessidades do homem contemporâneo e a supervalorização que este faz da
mercadoria. Também é realizada a análise da forma que tais necessidades
modificam o sentido que este indivíduo agrega à sua vida, em seu íntimo e em
suas relações interpessoais, e de que maneira o ciberespaço, considerando
estarmos na era da informação, trabalha exercendo influência no conceito de
felicidade para o homem narciso.
Palavras chaves: Sociedade de consumo. Narcisismo Contemporâneo.
Ciberespaço.

Abstract: The purpose of this abstract is to analyze the relationship between the
logic of the consumerism of contemporary societies, taking into account the
various faces of capitalism, and how this consumer culture influences the
formation of a superficial and narcissistic individual. It is initially approach the
conduct of the modern market and how does it affect individuals and their
relationships, the study criticizes the needs of contemporary man and the
overvaluation of goods. It is also analyzed the way these needs modify the sense
that this individual adds to his life, within himself and his interpersonal relations,
ant in what way cyberspace, considering we are in the information era, influences
on the concept of happiness for the narcissistic man.
Keywords: Consumer society. Contemporary narcissism. Cyberspace.

INTRODUÇÃO

A pesquisa apresentada foi elaborada com o intuito de analisar o modelo


de mercado atual e a sua ligação com a era da tecnologia, permitindo que se
correlacione os seus efeitos na formação do indivíduo e como ele se estabelece
perante a sociedade. Para tal, foi utilizado como método de pesquisa leitura de
artigos científicos e livros voltados para o estudo filosófico do capitalismo, seu
desenvolvimento e sua interferência nas relações humanas. Além do estudo
teórico foi utilizado recurso audiovisual para enriquecimento da pesquisa, sendo
ele o curta metragem “Felicidade” de Steve Cutts.
O consumo – relação econômica do indivíduo e o mercado – não é
recente, no entanto, com o passar do tempo a sociedade foi progredindo e
consequentemente suas prioridades foram se modificando, para que se
adequassem a esse avanço, e isto acabou gerando consequências na forma
783

como o consumo é visto e praticado atualmente.


Uma relação que antes possuía uma ligação maior com a ideia,
meramente, de posse passou a representar algo mais profundo e complexo,
visto que a posse passou a simbolizar prestígio e a “solução” para a busca eterna
dos indivíduos pela felicidade.
Fazendo uma análise histórica do consumo e da posse, é possível
observar que existe uma conexão direta sobre a ideia de detenção de riquezas.
No entanto, com a democratização do consumo, que como abordaremos, será
observada no pós revolução industrial, este se tornou uma cultura do homem
contemporâneo, esta, visa preencher nos indivíduos, e o faz de maneira rasa e
temporária, a sua necessidade de se sentirem completos.
Todo esse trajeto de transformação do corpo social em uma sociedade
de consumo modificou também as bases sobre as quais esses pessoas se
organizam, o indivíduo passa a valorizar mais as aparências, ser feliz torna-se
menos importante do que parecê-lo, e a base que a sociedade/ indivíduo começa
a considerar é a estética.
Veremos durante a pesquisa que o que fortalecerá o alter ego narcisista
da sociedade de consumo, será sua constante insatisfação; com isso percebe-
se o crescimento de uma sociedade composta de indivíduos que são
dependentes da aprovação dos demais, para que ele possa ter preenchido esse
vazio que sente por conta de sua insatisfação recorrente, e que enxergam o outro
como um objeto que deve cobiçar o que ele possui, para que as suas
inseguranças sejam reduzidas.
O referido quadro se intensificará com o avanço do ciberespaço, visto que
esse ambiente permitirá ao indivíduo narciso viver uma nova vida, uma vida
virtual, onde tudo parece perfeito, logo onde ele pode finalmente simular a sua
felicidade. Cada vez mais superficiais, as relações dos indivíduos passarão a se
basear em likes, e quanto mais curtido, virtualmente, uma pessoa for, mais feliz
ela será, e toda essa lógica gerará um ciclo vicioso, onde as pessoas aumentam
sua carga de trabalho, para consumir cada vez mais e poder exibir a sua
felicidade instantânea, sendo esse um ciclo constante.

DESENVOLVIMENTO

O enfraquecimento dos modelos sociais de servidão, consequência do fim


da idade média iniciou o surgimento do capitalismo, nesse modelo a relação
homem x mercadoria foi se modificando, houve um aumento da produção, que
valorizou o mercado.
Esse crescimento do nível produtivo trouxe consigo a revolução industrial,
e sua ascensão desencadeou a formação do capitalismo industrial, com isso,
novos modelos de cadeia produtiva surgiram, como o Fordismo, que trouxe uma
nova forma de consumo e maneira de produzir. A produção passa a ser em
massa; a influência das relações de consumo dentro da sociedade foi se
tornando cada vez mais superficiais e essencialmente materialistas.
A expressão sociedade de consumo que surgiu em 1920 assumindo
um papel maior de influência nas relações dentro da sociedade, sendo
essencialmente materialista, a qual pode ser entendida por alguns autores
“(...) como o consumo de massas e para as massas, alta taxa de consumo e
descarte de mercadorias per capita, presença da moda, sociedade de
mercado de insaciabilidade e o consumidor como um dos principais
784

personagens sociais.” (BARBOSA, 2010, p.8).


A contemporaneidade transformou o mercado e ele passou a ser
influenciado para estimular o consumo, instigando a sociedade a consumir de
uma forma desenfreada o indivíduo reduziu a sua preocupação com o outro,
passando a valorizar as aparências, parecer feliz tornou-se mais importante do
que realmente sê-lo, principalmente porque as mercadorias, que se encontravam
dentro dessa sociedade de consumo, prometiam facilitar a missão de alcançar a
felicidade, o que tornou a compra da felicidade a nova prioridade do corpo social.
A mercadoria passou a ser objeto de desejo do homem contemporâneo,
esta passou a ser supervalorizada, criando em torno dela um fetiche, que seduz
o indivíduo a ponto de modificar seus objetivos dentro da vida em sociedade.
Karl Marx em sua obra O capital, faz uma análise da relação entre
mercado e dinheiro, e nela retrata justamente sobre a supervalorização da
mercadoria que faz com que esse produto nem pareça fruto da força de trabalho
humana, mas na verdade ela representa os caracteres sociais do próprio
trabalho do homem, criando um vínculo entre coisa e homem.

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto,


simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os
caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres
objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades
sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete
também a relação social dos produtores com o trabalho total
como uma relação social entre os objetos, existente à margem
dos produtores. (MARX, 2013, p. 122)

Dessa maneira, quando essa mercadoria chega ao seu estado final,


seu valor de venda torna-se muito maior do que seria considerado justo, Marx
denominou esse fenômeno de fetiche da mercadoria.
O indivíduo se torna escravo de um ciclo vicioso, e cada vez mais infeliz
em busca de algo que não se encontra em prateleiras. Essa comercialização
dos desejos gera também um fenômeno de medicalização da felicidade, afinal
a sociedade de consumo gera indivíduos doentes, que não se permitem sentir
nada que seja diferente de felicidade, se automedicando contra suas emoções
naturais.
Podemos visualizar esse retrato em alguns curtas do ilustrador e
animador Steve Cutts, que é um ferrenho crítico da sociedade do espetáculo,
em especial no curta A felicidade, o animador faz uma crítica a sociedade
escrava da falsa ideia de felicidade engarrafada. No curta, Cutts retrata os
indivíduos como ratos, que passam a trajetória inteira da animação em busca
de dinheiro para satisfação do consumo, é como se esses ratos fossem
hipnotizados pela felicidade instantânea que o consumo promete, o ponto alto
da animação é o seu final quando ao pensar alcançar o dinheiro que buscava
o rato se vê preso em uma ratoeira que na verdade é o ambiente de trabalho
da personagem, que reiniciará o ciclo.
A ideia de Cutts na referida animação é demonstrar os diversos males
que a sociedade de consumo pode ocasionar e como ela aprisiona o indivíduo.
Essa sociedade não valoriza o ócio e desfavorece o cuidado consigo mesmo,
nela as pessoas passam a não conseguir aproveitar os detalhes mínimos da
vida.
A sociedade pode ser entendida como um grande espetáculo, conforme
é retratado no texto de Guy Debord (2003) ocorre à criação de uma realidade
785

baseada na representação, se tornando objeto de pura contemplação e não


mais em um mundo vivido.
Esse espetáculo se tornou parte da sociedade de uma forma unificada,
podendo ser definido como “O espetáculo não é um conjunto de imagens,
mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.” (DEBORD,
2003, p.9), não podendo ser entendido apenas como uma técnica de
disseminação de imagens pelos meios de massa, mas sim como uma visão
formada do mundo.
A consequência disso foi o fortalecimento de um indivíduo egocêntrico e
essencialmente narcisista, que nunca estará satisfeito dentro dessa sociedade
de consumo, e é justamente esse sentimento de insatisfação que irá movimentar
o mercado, afinal é por conta desse sentimento que o indivíduo narcisista iniciará
sua incessante busca pela felicidade, entrando assim em um ciclo vicioso, onde
ele viverá para trabalhar, para que assim possa consumir, para que os outros o
aprovem e seu vazio existencial seja preenchido.
Isso se fortalecerá com o desenvolvimento do Ciberespaço, que cria um
ambiente propício de ambientação de Narciso, um ambiente de aparências e de
mera contemplação, onde tudo parece perfeito e inatingível.
O indivíduo torna-se objeto do capitalismo, a realidade passou a ser
baseada na representação, na mantença de um espetáculo, e isso é
consequência do poder que foi dado às tecnologias pela sociedade, com a
crescimento do Ciberespaço a vida real se torna a virtual, ou pelo menos os
indivíduos entendem que essa é a vida que vale ser vivida.

CONCLUSÕES

Nesse sentido, a maneira como a sociedade passou a lidar com o outro e


com o consumo influenciou inclusive no grau de importância que ela atribuía às
diversas questões do dia a dia, dando mais relevância para questões banais e
menos visibilidade para política e cultura.
Loiane Verbicaro trata em seu texto Notas sobre a crítica à democracia
em Nietzsche, que ocorre um “estrangulamento e a vulgarização da cultura,
pois a vida gasta à busca de ganho esgota as energias e estiola os sentidos
daqueles que poderiam criar algo de novo e ainda ajuda a transformar o
caráter dos homens em fingimento, artimanha, improbidade, hipocrisia” (2017,
p.54).
Os principais valores que constituem a sociedade passaram a ser ditados
pelo trabalho, essa é a prioridade do indivíduo contemporâneo, que assumindo
tal preferência, responsabiliza-se pelo seu isolamento. Então esse mundo
capitalista passa a girar em torno não somente de bens materiais concretos, mas
também na existência de critérios imateriais, como a aquisição de serviços e
informações, passando os valores a estarem relacionados muito mais a questões
simbólicas e superficiais, do que a própria necessidade do indivíduo (CASTRO,
2009).
O homem passa a se acostumar com a solidão, afinal a sua nova maneira
de enxergar o mundo gera influência nas suas relações sociais, que são cada
vez mais superficiais, afinal as relações passam a se basear no interesse.
Além disso, a tecnologia intensamente presente na vida deste indivíduo
destrói a capacidade desse ser humano de se relacionar com o diferente, afinal
a máquina torna-se a companhia perfeita, já que ela foi elaborada para agradar
786

e exaltar esse ser narciso, indiferente ao mundo, e que por conta dessa busca
solitária e egoísta pela felicidade é um homem doente.
Prova disso, é a ressignificação do trabalho, que torna-se
incessantemente estimulado pela sociedade de consumo, vive-se para trabalhar
e se trabalha para consumir. O trabalho acaba atuando sobre esse indivíduo
solitário, como uma forma de suprir dores, de distração do indivíduo perante as
dificuldades impostas no mundo, este se torna um escape, atuando “com o ônus
de absorver todas as energias disponíveis e inviabilizar o progresso. Ele é um
anestésico (...)” (VERBICARO, 2017, p.55).
Sendo assim, pode-se perceber que o homem tornou-se mera
engrenagem do sistema, pois ele se tornou escravo dela, ou melhor, o seu
ego se tornou, e isto ocorre por que vivemos em uma sociedade exibicionista,
a chamada sociedade do espetáculo.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Livia. Sociedade de consumo. 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

CASTRO, Julio Cesar Lemes de. Sob o signo de Narciso: identidade na


sociedade de consumo ciberespaço. Revista da Comunicação Verso e
Reverso. Vol. 23, n.52. Rio Grande do Sul. 2009.

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2003.

Felicidade. Direção: Steve Cutts. Produção: Steve Cutts. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=e9dZQelULDk. Acesso em: 29/11/2018.

MARX, Karl, 1818-1883. O capital [recurso eletrônico]: crítica da economia


política: Livro I: O processo de produção do capital/ Karl Marx; tradução
Reginaldo Sant’Anna. - 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
recurso digital.

VERBICARO, Loiane Prado. Notas sobre a crítica à democracia em Nietzsche.


In: VI Encontro Internacional do CONPEDI Costa Rica,2017, São José . Anais
do VI Encontro Internacional do CONPEDI Costa Rica. Florianópolis:
CONPEDI, 2017. v. 1. p. 47-62.
787

AS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA JURÍDICA DE JOHANNES ALTHUSIUS


PARA ESTRUTURAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO
THE CONTRIBUTIONS OF JOHANNES ALTHUSIUS'S LEGAL THEORY TO
STRUCTURING CONSTITUTIONALISM

Leonardo Delatorre Leite


Orientador(a): Gerson Leite de Moraes

Resumo: A evolução histórica e o desenvolvimento filosófico do


constitucionalismo são temas necessários para compreensão plena dos
mecanismos e características do Estado Democrático de Direito, bem como da
historicidade dos Direitos Humanos. Dentre os pensadores que contribuíram
imensamente para construção de uma perspectiva jurídica pautada na defesa
dos direitos e garantias fundamentais frente ao poder estatal, o teórico alemão
Johannes Althusius (1563-1638) ocupa uma posição de destaque. Sua
concepção política centrada na teoria simbiótica social, no jusnaturalismo
teológico e na perspectiva bíblica da teologia da aliança foram as bases do
federalismo, enquanto um sistema político pautado na descentralização
administrativa, e da organização de uma cosmovisão constitucionalista
intrinsecamente marcada pelo apreço da autonomia das instituições voluntárias
e das associações privadas em relação ao Estado. Portanto, o estudo das obras
de Althusius ainda é de grande valia para a filosofia do direito e para ciência
política.
Palavras-chave: Jusnaturalismo. Federalismo. Teoria simbiótica.

Abstract: The historical evolution and philosophical development of


constitutionalism are necessary for a full understanding of the mechanisms and
characteristics of the democratic rule of law, as well as the historicity of human
rights. The German theorist Johannes Althusius (1563-1638) holds a prominent
position among the thinkers who contributed immensely to the construction of a
legal perspective based on the defense of fundamental rights and guarantees
against state power. His political conception centered on the symbiotic social
theory, theological jusnaturalism and the biblical perspective of the theology of
the alliance were the bases of federalism, while a political system based on
administrative decentralization, and the organization of a constitutionalist
worldview intrinsically marked by an appreciation of the autonomy of voluntary
institutions and private associations in relation to the State. Therefore, the study
of Althusius' works is still of great value to the philosophy of law and to political
science.
Keywords: Jusnaturalism. Federalismo. Symbiotic theory.

INTRODUÇÃO

A Cosmovisão cristã foi determinante na construção de uma mentalidade


jurídica pautada na defesa dos direitos individuais e do constitucionalismo; desde
os escolásticos tardios até os pensadores contemporâneos, a filosofia do
cristianismo contou com pensadores que foram essenciais na estruturação de
uma visão política pautada na liberdade política. Johannes Althusius foi um dos
grandes expoentes da cosmovisão cristã no âmbito das ciências socias e seu
pensamento engloba diversos conceitos que hoje são debatidos e
788

constantemente recorridos na filosofia contemporânea e na teologia política


moderna, tais como: federalismo, constitucionalismo, contratualismo,
jusnaturalismo, teoria simbiótica, organicismo, soberania das esferas e Teologia
da aliança. A teoria do direito de Johannes Althusius resgata elementos da ética
bíblica, das ideias aristotélicas acerca da filosofia política e das noções
teológicas neocalvinistas para a construção de uma cosmovisão jurídica
centrada nos seguintes aspectos: Soberania de Deus, teoria simbiótica da
natureza humana, teoria da aliança na esfera sociopolítica, contratualismo e o
respeito aos preceitos da autonomia das associações privadas. No entendimento
de Althusius, os seres humanos foram criados com uma disposição para a
sociabilidade1; formando e construindo associações mediante contratos e
acordos mutuamente consentidos, tendo em vista a necessidade de promoção
do bem-estar geral.
Portanto, trata-se de uma perspectiva da política enquanto um dever de
promover e resguardar a interação social, ou seja, uma função encarregada da
defesa da “simbiose”. “A política é a arte de reunir os homens para estabelecer
vida social comum, cultivá-la e conservá-la”.

(Althusius) Afirma que existem diversos tipos de associações na


sociedade, cada uma com sua própria estrutura interna, sendo tanto
de caráter privado (ex. guilda profissional, igreja, etc.) como de caráter
público (ex. cidades, províncias, etc.). Para a comunicação dos
benefícios da “simbiose”, é importante reconhecer que todas essas
associações privadas são estruturas independentes, no sentido de, em
termos do que seria ideal, não serem meras “partes” de um “todo” (no
caso, a comunidade política) (...) Em outras palavras, para Althusius, a
política é normativamente o dever de promover a interação social
respeitando a estrutura interna de cada associação. Somente dessa
forma é que a sociedade comunicará adequadamente os benefícios da
vida simbiótica para uma plenitude de vida.2

As ideias de Althusius acerca da autonomia das associações e do respeito


aos direitos fundamentais e individuais foram relevantes na evolução do
constitucionalismo e dos pressupostos da liberdade política e do liberalismo
econômico; sendo, portanto, imprescindível uma abordagem sistemática da obra
do autor e de seus impactos para época, bem como seus legados para
contemporaneidade.

PROBLEMA DE PESQUISA

1 “Para viver essa vida nenhum homem é autossuficiente ou bastante provido pela natureza. Pois
o homem nasce privado de toda a assistência, desnudo e inerme, como se tivesse perdido todos
os bens num naufrágio, fosse lançado nas desgraças dessa vida e não se sentisse capaz de,
por seus próprios meios, alcançar o seio da mãe, suportar a inclemência do tempo, nem mover-
se do lugar onde foi arremessado. Sozinho nesse começo de vida terrível, com tanto pranto e
lágrimas, seu futuro se afigura uma ingente e miserável felicidade. Carente de conselho e auxílio
de que, não obstante, ele não tem como ajudar a si próprio senão com a intervenção e socorro
de outros. Mesmo que seu corpo seja bem desenvolvido, ele não se vale da luz da alma; nem
na idade adulta, é capaz de encontrar, em si mesmo e diante de si, aqueles bens externos de
que necessita para levar uma vida cômoda e santa (ALTHUSIUS, 2003, p. 103-104). Nesse
trecho de sua obra, Althusius destaca a necessidade humana de construção e desenvolvimento
comunitário.

2 Comentários de Leonardo Ramos e Lucas Freire Grassi. Introdução do Livro “Estado e


soberania: ensaios sobre cristianismo e política”. São Paulo: V ida Nova, 2014, p.15.
789

Quais são os fundamentos da teoria jurídica de Johannes Althusius e de


que forma contribuíram para a estruturação do Estado de direito e para
construção dos ideais de liberdade política e do constitucionalismo?

OBJETIVOS

 Apresentar os principais pontoa da teologia política de Johannes


Althusius
 Destacar a eminência do pensamento de Althusius para a
construção dos pressupostos do Estado de Direito
 Caracterizar o jusnaturalismo teológico
 Analisar a ética política calvinista e suas contribuições para o livre-
mercado e para o liberalismo político
 Refletir sobre a Cosmovisão cristã e suas contribuições para o
pensamento político contemporâneo
 Relacionar a ética bíblica com a oposição ao totalitarismo, às
doutrinas coletivistas e ao planejamento estatal
 Apresentar um panorama da teoria jurídica de Althusius para a
estruturação do constitucionalismo e para historicidade dos direitos humanos

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Johannes Althusius foi um teólogo e pensador calvinista que viveu durante


a Revolta Holandesa, um movimento contrário às medidas absolutistas e
tirânicas da Espanha, que se encontrava sob o domínio do Rei Filipe II. Althusius,
como grande adepto dos direitos naturais, defendeu o direito de resistência
contra autoridades autoritárias, pois a tirania governamental representava a
quebra da aliança entre o Estado e o povo.
Esse pensador formulou duas teorias muito recorridas no âmbito da
ciência política: teoria simbiótica e a teoria da aliança acerca da sociedade. Em
sua concepção, os homens são inclinados por natureza a estabelecerem
associações- casamentos, famílias, cidades, províncias e Estados. Cada um
desses agrupamentos é formado por um contrato ou aliança entre os seus
membros perante Deus e diante dos outros. “Cada associação é um lugar de
autoridade e liberdade que liga tanto governantes quanto súditos aos termos do
seu contrato de fundação e aos mandamentos das leis fundamentais de Deus e
da natureza[...]” (HALL, 2017, p.50)3.
Althusius foi um dos mais célebres nomes da filosofia política cristã e
contribuiu imensamente para ideias essenciais no mundo contemporâneo, tais
como: Constitucionalismo, teoria dos direitos fundamentais, desobediência civil,
governo representativo, Federalismo, livre comércio, autonomia negocial privada
e as garantias processuais no âmbito jurídico.

Althusius foi o primeiro importante teórico reformado a fornecer uma


teoria abrangente da realidade social que enquadrasse o argumento
político de Calvino dentro de um sistema mais completo. Toda
autoridade vem de Deus, e, na estrutura da criação, ele determinou
que toda autoridade terrena seria relativa e, portanto, dividida em

3HALL, David et al. Calvino e Cultura. Traduzido por Cláudio Chagas. São Paulo: Cultura Cristã,
2017, p. 50.
790

diversas “áreas” da vida. Assim, foi necessário aos seres humanos


desdobrar ao longo da história a sua convivência na formalização de
diversas associações, cada uma com seu pacto ou contrato interno de
autoridade. O governo civil é uma dessas associações, mas as outras
associações de outro tipo não, por exemplo, “partes” de um Estado. A
família, a empresa, o clube esportivo e assim por diante são “todos”
separados, cada um com sua função específica. 4

Portanto, em Althusius, é possível vislumbrar uma defesa contundente da


autonomia das instituições e associações voluntárias em face da centralização
governamental e do planejamento estatal. A sua obra é marcada por um
profundo sentimento de respeito ao desenvolvimento natural da sociedade, bem
como da admiração para com limitação do poder político através do respeito ao
processo simbiótico social. A constituição seria o instrumento utilizado para
garantir a paz social e estabelecer restrições às ações públicas do governo.

Cada nova camada de soberania política é formada por alianças


juradas diante de Deus por representantes das unidades menores, e
essas alianças acabam tornando-se as constituições escritas do
governo. As constituições definem e separam os cargos executivos,
legislativos e judiciais do governo e governam as relações entre os
seus governantes e súditos, clérigos e magistrados, associações e
indivíduos (...)5

Quanto à lei natural, embora Althusius reconhecesse sua existência e


eminência, destacou que, apesar de ser inata e inscrita no coração dos homens,
apresenta fragilidades e poderia ou não ser aplicada. Sendo assim, o autor
resgata a concepção de que a expressão máxima da Lei autêntica e suprema se
encontra no Decálogo e nos ensinamentos bíblicos.

Mas Althusius também reconheceu que, ao longo da história, pessoas


e povos alcançaram diferentes formulações e aplicações da lei natural.
Mesmo em reconhecidas sociedades cristãs hoje em dia, as pessoas
têm “graus diferentes desse conhecimento e inclinações naturais”.
Essa lei não está evidentemente inscrita igualmente nos corações de
todos. O conhecimento disso é comunicado mais abundantemente a
alguns e mais moderadamente a outros, de acordo com a vontade e
julgamento de Deus”. (...) As comunidades têm “costumes, naturezas,
atitudes e pontos de vista” amplamente variados que são afetados pela
“idade, pela condição”, pelas circunstâncias e pela educação “de seus
membros” Não há código universal de lei natural escrita para consultar.
Então, como podemos ter certeza das normas e dos conteúdos da lei
natural? Poderemos conhecer as normas do natural se estudarmos as
Escrituras e a tradição, a revelação e a razão com muito cuidado,
argumentou Althusius (WITTE JR, 2007, p.158-159).

Destarte, na concepção desse teórico reformado, a virtude da justiça,


pautada nos preceitos da Lei natural e principalmente nos fundamentos
principiológicos das Escrituras, representa o parâmetro de atuação do Estado e
de seus magistrados, bem como de sua constituição. A aliança entre o povo, os

4 Comentários de Leonardo Ramos e Lucas Freire Grassi. Introdução do Livro “Estado e


soberania: ensaios sobre cristianismo e política”. São Paulo: V ida Nova, 2014, p.15-16.
5 HALL, David et al. Calvino e Cultura. Traduzido por Cláudio Chagas. São Paulo: Cultura Cristã,

2017, p. 51.
791

governantes e as autoridades baseia-se em critérios objetivos de respeito aos


direitos fundamentais e aos valores da justiça e da piedade. Há, portanto, uma
clara conexão entre ética, política, direito e teologia. A Teologia da Aliança se
faz extremamente presenta na filosofia jurídica de Althusius.

A teologia de Althusius é amalgamada em princípios bíblicos e


naturalmente leva à organização política da sociedade. A quebra da
aliança, que no caso de Althusius, é a aliança bíblica, oferece a
oportunidade de resistência ao tirano. É portanto, uma teologia
politicamente engajada. Vale lembrar, que para Althusius, a sociedade
é simbiótica e construída do menor patamar (família) para o maior
(Estado), por meio da representação e em uma relação de piedade e
obediência do magistrado em relação à vontade de Deus expressa nas
Escrituras, portanto, quando há uma quebra do pacto, o povo tem o
direito de resistência. É claro que o direito de resistir às obras malignas
produzidas por um governo despótico é um remédio amargo, mas
certamente efetivo, para combater quem está causando danos ao
corpo social (MORAES, 2017, p. 30)

Sua defesa da teoria simbiótica o levou a defender uma perspectiva


política pautada na concepção de soberania popular e na observância e garantia
dos direitos individuais.

Johannes Althusius (1557-1638), um dos primeiros teóricos modernos


a se lançar contra o absolutismo, já no início do século XVIII afirmava
que o poder do Estado não se deve pensar como ilimitado e absoluto
nas mãos do monarca. A soberania é do povo reunido, não do rei.
Althusius era de formação religiosa, calvinista, mas separava a
instância teológica da instância política, provendo reflexões a respeito
dos limites do poder estatal, no que se destacava em face dos demais
pensadores de seu tempo, ainda então muito ligados ao Absolutismo.
(MASCARO, 2016, p. 137).

Ainda sobre a soberania popular, Althusius escreve em sua obra:

Atribuí os chamados direitos de soberania não ao magistrado supremo,


mas à comunidade ou associação universal. Muitos juristas e cientistas
políticos sustentam que eles são apropriados apenas ao príncipe e ao
magistrado supremo, pois caso sejam assegurados e comunicados ao
povo ou à comunidade eles perecem e deixam de existir. Só uns
poucos e eu afirmamos o contrário, isto é, que tais direitos dão próprios
do corpo das associação universal, pelo fato de conferirem espírito,
alma e coração a ela. E esse corpo fenece, como mencionei, se os
direitos forem retirados. Reconheço no príncipe o administrador, o
supervisor e o governador dos direitos de soberania. Mas o proprietário
e usufrutuário da soberania não pode ser diferente do povo total,
associado num corpo simbiótico constituído de muitas associação
menores (...) Quem permitiria que em tal estado perfeito se concedesse
ao rei esse pleníssimo poder de mandar chamado absoluto? Já
dissemos que o poder absoluto é tirânico. (ALTHUSIUS, 2003, p.100)

Quanto a administração dos magistrados superiores, Althusius assume


uma postura essencialmente constitucionalista. O autor afirma a necessidade de
que os membros do governo e da esfera pública atuassem com prudência e
respeito aos preceitos da Lei Natural, das Sagradas Escrituras e das leis
humanas. Interessante frisar que a concepção política de Althusius resgata um
792

conceito já presente em obras anteriores do pensamento calvinista, o chamado


“direito de resistência”. É lícito o estabelecimento de uma resistência diante de
autoridades que se tornam tirânicas e abusivas.

A natureza da administração justa e correta deve ter sido


suficientemente clara de tudo o que foi dito. Vamos agora esclarecer o
oposto, que é a tirania, e acrescentemos os remédios com os quais a
comunidade pode libertar-se deste grande mal e proteger-se contra
ele. A tirania é o oposto da administração justa e correta. O tirano é
aquele que, violando tanto a palavra quanto o juramento, começa a
abalar as fundações e afrouxar os laços do corpo associado da
comunidade (ALTHUSIUS, 2003, p.349).

Com o que foi abordado até agora, é possível desenvolver uma visão
panorâmica do pensamento de Johannes Althusius, um teólogo profícuo para a
ciência política e para compreensão de alguns aspectos da organização jurídica
contemporânea.

METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada com base em uma análise de artigos científicos


e obras, localizadas em bibliotecas fixas e móveis. Essa modalidade de pesquisa
encontra-se relacionada com a busca de dados, informações, conhecimentos,
interpretações teológicas e análises filosóficas. A investigação foi histórico-
comparativa, objetivando uma abordagem sistemática da teologia política de
Johannes Althusius e de suas contribuições para a estruturação do
constitucionalismo e do liberalismo econômico.
Foi realizada uma consulta no banco de dados BDTD (Biblioteca Digital
Brasileira de Teses e Dissertações). Neste, foram encontradas diversas
dissertações relacionadas ao calvinismo, sendo que foram selecionadas para
respectiva pesquisa apenas as teses e dissertações que explicitassem e
compreendessem a teologia política calvinista no âmbito do jusnaturalismo, do
direito de revolução e do constitucionalismo.

Ano de defesa Autor Tema Tipo Área


2007 IVAN SANTOS A Ética protestante Dissertação Religião
RUPPELL no
JÚNIOR Pensamento de
João Calvino
2007 FERNANDO DE Calvino e Cultura: Dissertação Religião
ALMEIDA Uma abordagem
histórico-teológica
sob a perspectiva da
graça comum
2007 JOSÉ Ética do Povo e Dissertação Religião
ROBERTO DA Ética Política:
SILVA Nicolau Maquiavel,
João Calvino e
Contemporaneidade
2007 FRANK VIANA O pensamento Tese Filosofia
CARVALHO político
monarcômaco: da
limitação do poder
real ao
contratualismo
793

2010 GLAUCO O imaginário Tese Sociologia


BARREIRA Protestante e o
MAGALHÃES Estado de Direito
FILHO
2014 GERSON Filosofia e política Dissertação Religião
LEITE DE em João Calvino
MORAES
2015 ADELSON LUIZ LUIZGARCIA Dissertação Religião
GARCIA A contribuição do
pensamento social
de João Calvino
para a formação do
cidadão.

ÁNALISE DE RESULTADOS

A obra de Althusius foi de grande importância para a estruturação do


Estado de Direito, bem como para a construção do ideal de liberdade política e
do liberalismo econômico. A defesa da autonomia das associações privadas e
da teoria simbiótica favoreceu uma mentalidade marcada pelo respeito aos
direitos individuais e fundamentais; estabelecendo limites para a atuação do
poder público. A perspectiva aliancista de Althusius acerca da sociedade política
fomentou uma cosmovisão jurídica contratual de defesa da existência de direitos
e deveres entre as autoridades e os cidadãos; sendo que a violação do contrato
permite o direito de resistência e a desobediência civil. Sua importante defesa
das chamadas “esferas de soberania” (termo este empregado posteriormente
por Abraham Kuyper) contribuiu para uma diferenciação e especificação do
papel de cada associação na sociedade; evitando assim uma intromissão
opressiva pública em instituições voluntárias e privadas, traçando assim, uma
construção filosófica do constitucionalismo e do ideal de limitação do poder
político.

CONCLUSÃO

A cosmovisão cristã foi essencial na construção de uma mentalidade de


respeito para com o ideal de direitos individuais, liberdade política e liberalismo
econômica. Tal fato pode ser encontrado de forma mais específica na obra do
grande pensador Johannes Althusius, cujos pensamentos permanecem úteis
para contemporaneidade. Sem dúvida, Althusius foi um dos grandes filósofos da
articulação bem como da estruturação do Estado Moderno e de seus princípios
jurídicos. Seus escritos ainda ecoam e auxiliam no entendimento de questões
primordiais acerca da ciência política contemporânea. Neste trabalho, tentou-se
mostrar como a filosofia jurídica de Althusius foi de eminência imprescindível
para a cosmovisão constitucionalista, e de como influenciado pelo calvinismo e
pelo aristotelismo, defendeu uma perspectiva pautada na concepção orgânica
da sociedade enquanto fundamentada na Teologia da Aliança ou Teologia
Federal. Portanto, conclui-se que a despeito de algumas críticas considerarem a
perspectiva desse pensador holandês um tanto quanto defasada, na prática se
vislumbra o quanto o respetivo autor permanece atual e necessário para retomar
uma perspectiva de liberdade política e do constitucionalismo

REFERÊNCIAS
794

ALTHUSIUS, J. Política metodicamente apresentada e ilustrada com exemplos


sagrados e profanos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

DOOYEWEERD, Herman. Estado e soberania: ensaios sobre cristianismo e


política. Tradução de Leonardo Ramos e Lucas Freire Grassi, Guilherme de
Carvalho. São Paulo: Vida nova, 2014.

HALL, David et al. Calvino e Cultura. Traduzido por Cláudio Chagas. São
Paulo: Cultura Cristã, 2017.

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 5.ed. São Paulo: Atlas,


2016.

Moraes, Gerson Leite de. Aspectos filosóficos e teológicos no pensamento


de Johannes Althusius. Revista de Ciências da Religião: história e sociedade,
São Paulo, v.15, n.1. p.12-35, janeiro/junho. 2017.

WITTE JR, J. The reformation of rights: law, Religion, and human rights in
Early modern Calvinism. Cambridge University Press, 2007.
795

CONSTITUCIONALISMO, DEMOCRACIA E ATIVISMO JUDICIAL


CONSTITUTIONALISM, DEMOCRACY AND JUDICIAL ACTIVISM

Eliotério Fachin Dias

Resumo: O presente trabalho busca homenagear a trajetória acadêmica e


profissional do Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao longo de décadas,
iniciando pelo delineamento histórico do Constitucionalismo, analisar por meio
dos princípios democráticos dos direitos fundamentais, em brevíssima síntese,
sobre o Constitucionalismo, a Democracia, a Judicialização da Política e
Ativismo Judicial, que, além de atribuir ao Poder Judiciário, um largo campo
interpretativo, amplia-lhe consideravelmente o seu poder jurisdicional, cuja
aplicação prática torna-se extremamente desafiadora para o Século XXI. No
Brasil recente, o Judiciário tem exibido posições claramente ativistas, em casos
de aplicação direta da Constituição, em situações não expressamente
contempladas em seu texto, independentemente de manifestação do legislador
ordinário, ao ultrapassar o limite do texto normativo, e criar nova solução, e
usurpar a competência do legislador.
Palavras-chave: Ativismo Judicial. Judicialização da Política. Supremo Tribunal
Federal.

Abstract: The present work seeks to honor the academic and professional
trajectory of Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, for decades, starting with the
historical outline of Constitutionalism, to analyze, through the democratic
principles of fundamental rights, in a very brief synthesis, about Constitutionalism,
Democracy, Judicialization of Judicial Policy and Activism, which, in addition to
attributing to the judiciary a broad interpretative field considerably broadens its
jurisdictional power, the practical application of which becomes extremely
challenging for the 21st century. In recent Brazil, the judiciary has displayed
clearly activist positions, in cases of direct application of the Constitution, in
situations not expressly contemplated in its text, regardless of the manifestation
of the ordinary legislator, by exceeding the limit of the normative text, and creating
a new solution, and usurp the competence of the legislature.
Keywords: Judicial Activism. Judicialization of Politics. Federal Court of Justice.

INTRODUÇÃO

O processo de identificação da justiça e da legalidade resultou da erosão


do paradigma do Direito Natural, no Século XIX, com a passagem do Estado
absolutista para o Estado de Direito, “cuja subversão, deixa de ser, em
consonância com os procedimentos e as técnicas do constitucionalismo
moderno, entendido como um dispositivo fundamental para o controle do
processo do poder” (LAFER, 1988, p. 95).
O constitucionalismo, firmado e consagrado no Século XX,
concomitantemente à expansão da democracia, direciona-se “a estabelecer em
toda a parte regimes constitucionais, quer dizer governos moderados, limitados
em seus poderes, submetidos a Constituições escritas” (FERREIRA FILHO,
2008, In CAGGIANO, 2011, p. 8).
796

O constitucionalismo significa poder limitado e traduz-se em respeito aos


direitos fundamentais, o poder fundado na vontade da maioria e supremacia da
lei – Estado de Direito, Rule of Law, Rechsstaat (BARROSO, 2009).
Já, a democracia traduz-se em soberania popular e governo da maioria
(BARROSO, 2009, p. 38) e, apresenta-se como o standard maior da civilização
ocidental1 (CAGGIANO, 2011, p. 9). Mas, pode ocorrer de a maioria vulnerar
direitos fundamentais, quando isto ocorre, cabe ao Judiciário agir.

[...] é nessa dualidade presente no Estado constitucional democrático


que se coloca a questão essencial: podem juízes e tribunais interferir
com as deliberações dos órgãos que representam as maiorias políticas
– isto é, o Legislativo e o Executivo -, impondo ou invalidando ações
administrativas e políticas públicas? (BARROSO, 2009b, p. 9)

A estrutura do Poder Judiciário independe do sistema político, incluindo


os tribunais que interpretam os princípios constitucionais,

[...] os atores políticos, podem diferir em políticas, mas concordam em


manter o monopólio do poder dentro de um quadro de possibilidades
preestabelecidas por eles mesmos. A política se profissionaliza, e os
políticos se tornam um grupo social que defende seus interesses
comuns acima dos interesses daqueles que eles dizem representar:
forma-se uma classe política, que, com honrosas exceções,
transcende ideologias e cuida de seu oligopólio (CASTELLS, 2018, p.
10).

Sob esta roupagem, a Constituição estrutura e organiza juridicamente, à


lei compete prescrever as políticas públicas e aos Tribunais é atribuída a
responsabilidade para o alinhamento da lei aos valores estabelecidos para
comandar a democracia praticada. Assim, o Judiciário protagoniza o papel de
“guardião da democracia” (CAGGIANO, 2011, p. 9).
Embora Winston Churchill tenha se referido, em 1947, em seu célebre
frase, que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as
outras formas que foram experimentadas de tempos em tempos” (CASTELLS,
2018, p. 10). As democracias funcionam melhor e sobrevivem mais tempo, onde
as constituições são reforçadas por normas democráticas não escritas
(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 21).
O referencial clássico atribuía à democracia a peculiaridade de alojar o
supremo poder no povo, ou à maioria, o seu legítimo titular. “Não há democracia,
se o povo não se governar a si próprio”. Ninguém contestará hoje, “ser a
democracia o principio de atribuição do poder adotado pelo constitucionalismo”,
assevera Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2010, p. 43, 44).

1. DEMOCRACIA E SUAS ESPÉCIES

Diante da complexa e incômoda tarefa de se oferecer um conceito de


democracia, podemos apontar, em brevíssima síntese, sobre as mais diferentes
espécies: a democracia formal e a democracia procedimental; a democracia
pelos partidos; a democracia política, social, industrial ou a democracia
econômica; a democracia eleitoral, a democracia refendária, a democracia

1GICQUEL, Jean. Droit constituionnel et institutions politiques. 18 ed. Paris: Montechrestien,


2002, p. 185.
797

participativa e a democracia consociativa; e, a democracia deliberativa, que atrai


a atenção de juristas, sociólogos, políticos e cientistas políticos. E ainda, a
democracia deliberativa, reflexo da penetração das obras de John Rawls e de
Habermas, que agrega

[...] em relação da comunidade social, a idéia de tomar parte na tomada


de decisões coletivas, por intermédio de processos envolvendo o
debate e deliberação. E, se a tanto, demanda-se a presença de espaço
adequado e instrumental próprio, estes elementos a sofisticada era da
Internet certamente favorece e estimula. Resulta deste novo mundo
perfilhado na web o modelo democrático digitalizado, multiplicando-se
os estudos sobre a Democracia digital ou a E.democracia
(CAGGIANO, 2011, p. 13).

As dificuldades para o delineamento de uma noção mais precisa de


democracia extravasam o campo conceitual e invadem o cotidiano, cuja
aplicação prática torna-se extremamente desafiadora para o século XXI. Desde
longo tempo, Robert A. Dahl já mostrava reservas e seu descrédito quanto “à
identificação das verdadeiras democracias”, cujo maior número de elementos
democráticos apresentasse o rótulo de poliarquia (CAGGIANO, 2011, p. 13).
A relação existente entre a poliarquia e a diversidade social provoca
ocasional confusão. Em nenhuma sociedade conhecida, todos os membros
concordam em relação a todas as políticas, durante todo o tempo, constituindo-
se tal diversidade de opiniões em um fato da sociedade humana. Assim, torna-
se necessário que as organizações sociais possuam meios para solucionar os
conflitos delas decorrentes (DAHL, 1985).
A democracia moderna – a democracia representativa – é “uma forma de
governo misto, que combina o lado positivo de cada uma das três formas
clássicas, evitando o lado negativo de cada uma delas” (FERREIRA FILHO,
1996, p. 195). Significa que as deliberações coletivas, que dizem respeito a toda
coletividade, não são tomadas diretamente por aqueles que dela fazem parte,
mas, por pessoas eleitas para tal. As principais deliberações políticas são
tomadas por representantes eleitos, pouco importando se esses órgãos
decisórios sejam o Parlamento, o Presidente da República ou, os Conselhos
regionais (BOBBIO, 1986, p. 43, 44).
Segundo Rosseau, “uma verdadeira democracia jamais existiu, nem
existirá”, pois requer muitas condições difíceis de serem reunidas. Pois, em
primeiro lugar, deveria ser num Estado muito pequeno, no qual fácil ao povo
reunir-se; e, que cada cidadão pudesse facilmente conhecer todos os demais.
Em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes impede a
multiplicação dos problemas e as discussões espinhosas. "Se existisse um povo
de deuses, governar-se-ia democraticamente. Mas um governo assim perfeito
não é feito para os homens" (BOBBIO, 1986, p. 41).
As transformações que se sucedem no mundo são vertiginosas e
enumerá-las redundaria em uma variada lista e extensa. Advertidos por uma
elementar perspectiva histórica, cada época tende a considerar-se um ponto de
inflexão. No alvorecer do Século XXI, estamos ante uma democracia diferente
daquela que conhecemos. “Se não se trata de uma mudança completa de forma
política, pode a democracia tender a universalizar-se e é reconhecível em certos
traços essenciais, em que sentido se vê emergir outra democracia?”
(CHERESKI, 2015, p. 27).
798

2. SEPARAÇÃO DOS PODERES E A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

A visão clássica da separação dos poderes é uma versão juridicista de


Montesquieu. Esquematicamente erige os Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário, em torno da noção de lei. O primeiro faz a lei, o outro a executa e o
terceiro a aplica, contenciosamente. Tal concepção tem e teve o seu mérito. A
lei, expressão da vontade, rege o Estado, sujeita o Executivo ao seu
cumprimento estrito, que somente pode fazer o que a lei permite; impõe ao
Judiciário decidir os litígios, sempre com base no contencioso. Tais Poderes são
“harmônicos e independentes, ou seja, “não são delegáveis de um para o outro,
as tarefas a cada um cometidas pela Constituição” (FERREIRA FILHO, 1994, p.
2). De fato, é isto que o modelo de democracia liberal nos propõe, a saber:

[...] respeito aos direitos básicos das pessoas e aos direitos políticos
dos cidadãos, incluídas as liberdades de associação, reunião e
expressão, mediante o império da lei protegida pelos tribunais;
separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário; eleição
livre, periódica e contrastada dos que ocupam os cargos decisórios em
cada um dos poderes; submissão do Estado, e de todos os seus
aparelhos, àqueles que receberam a delegação do poder dos
cidadãos; possibilidade de rever e atualizar a Constituição na qual se
plasmam os princípios das instituições democráticas (CASTELLS,
2018, p. 9).

Todavia, normas incompletas ou programáticas invadiram o espaço


constitucional, ensejando uma atividade adicional, tanto para o Poder Executivo,
impondo-lhe a criação e instalação de programas previstos na Constituição.
Quanto para o Legislativo, outorgando-lhe competências no sentido de dar
efetividade às disposições constitucionais. Além de atribuir ao Poder Judiciário,
um largo campo interpretativo, ampliando-lhe consideravelmente o seu poder
jurisdicional (CAGGIANO, 2011, p. 17).
Ao Judiciário, cabe dizer o direito (este é o sentido de jurisdictio, jurisdição,
de jus (direito) e dicere (dizer). Porém, vez ou outra, deve apreciar os atos de
outro Poder. Contudo, não o faz, para concordar ou fiscalizar o outro Poder, “mas
apenas para assegurar o império da lei” (FERREIRA FILHO, 1994, p. 3).
Hodiernamente, porém, algumas questões de larga repercussão política
ou social têm sido decididas pelos órgãos do Poder Judiciário, e não pelas
instâncias políticas tradicionais, o Congresso Nacional e o Poder Executivo, por
meio da judicialização ou judicialização da política (BARROSO, 2009b, p. 19).
A judicialização é “empregada para designar a adoção de procedimentos
próximos aos típicos da Justiça para a preparação da tomada de decisões por
órgãos administrativos ou legislativos”. Entende-se por judicialização da política,

[...] a tendência a atribuir, ou submeter, aos tribunais judiciários a


decisão de mérito a respeito de ações administrativas ou normas
obrigatórias. Ou seja, decisões ‘políticas’, porque concernentes ao
interesse da comunidade. (...) Em outras palavras, consiste a
judicialização em atribuir ao Judiciário decisões que, nos termos da
doutrina clássica da separação dos poderes, incumbiriam ao Executivo
ou ao Executivo (FERREIRA FILHO, 1996, p. 189).

A judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema


de controle de constitucionalidade adotados no Brasil, que permitem que
799

discussões de largo alcance político e moral sejam trazidas sob a forma de ações
judiciais, ou seja,

[...] a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do


constituinte. O ativismo judicial, por sua vez, expressa uma postura do
intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição,
potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do
legislador ordinário. (...) Os riscos da judicialização e, sobretudo, do
ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça
e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir
determinadas matérias (BARROSO, 2009, p. 25).

A judicialização e o ativismo judicial são ‘primos’. No contexto brasileiro,


a judicialização é “um fato, uma circunstância que decorre do modelo
constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política”.
Já, o ativismo judicial é uma atitude,

[...] a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a


Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. (...) A idéia de
ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e
intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins
constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos
outros dois Poderes (BARROSO, 2009, p. 22).

Uma coisa é “a judicialização da política, que é consentâneo com a


Constituição, outra coisa é o ativismo judicial que é uma violação dos princípios
constitucionais e do Estado de Direito” (FERREIRA FILHO, 2019). O ativismo
judicial permite observar maior atuação do Poder Judiciário em diversas
questões, como no campo das políticas públicas (CAGGIANO, 2017, p. 163).

3. ATIVISMO JUDICIÁRIO OU ATIVISMO JUDICIAL

A expressão ‘ativismo judicial’ surgiu em 1947, num artigo de Arthur


Schlesinger Jr., sob o título “The Supreme Court: 1947”, publicado na revista
Fortune, um conhecido periódico sobre negócios, no qual se discutia o perfil dos
juízes que à época integravam a Suprema Corte, classificando-os como
“ativistas”, “campeões da autocontenção” e “moderados”.

[...] o The Oxford Companion to the Supreme Court of the United States
relaciona o ativismo à atuação dos juízes que ultrapassa os poderes a
eles conferidos ao “empreenderem na criação da lei, e não meramente
na sua interpretação, em oposição a autocontenção judicial, que
aconselha os juízes a resistir à tentação de influenciar políticas
públicas através de decisões judiciais (HALL, 1992, p. 454;
TRINDADE, OLIVEIRA, 2016).

Inicialmente, de viés crítico, o termo ‘ativista’ assume, hodiernamente, o


sentido de militância por uma causa e uma militância que se escora em pretexto
e variáveis doutrinas. “O ativista põe sua opinião acima da lei, ou de modo velado
por meio de interpretações que negam o significado do texto, (...) ou por modo
frontal, criando normas que a Constituição ou a lei não previram. Trata-se, a meu
ver, de arbítrio” (FERREIRA FILHO, 2019).
Segundo Elival da Silva Ramos, quanto ao ativismo judicial, está a se
referir à ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, mas,
800

[...] também, da função administrativa e, até mesmo, da função de


governo, (...) e sim da descaracterização da função típica do Poder
Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções
constitucionalmente atribuídas a outros Poderes. (RAMOS, 2015, p.
119).

Assim, incumbe ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de


feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza
objetivas (conflitos normativos), para além dos limites impostos pelo próprio
ordenamento (RAMOS, 2015, p. 129).

O ativismo judicial não seria mais do que a atuação da Corte em


decisões fundadas em princípios e regras constitucionais, de defesa
da Constituição contra as invasões e excessos dos outros poderes. A
Suprema Corte tinha o papel de exercer a liderança moral perante a
população, como uma instância oracular. O cerne da sua missão seria
o fortalecimento e atualização do código simbólico que estrutura o
conjunto da sociedade, dado pela idéia de dignidade humana.
(KROENER, 2016, p. 242).

No Brasil recente, o Judiciário tem exibido, em determinadas situações,


uma posição claramente ativista. Veja-se “um caso de aplicação direta da
Constituição, a situações não expressamente contempladas em seu texto e
independentemente de manifestação do legislador ordinário, o da fidelidade
partidária”, em que

O STF, em nome do principio democrático, declarou que a vaga no


Congresso pertence ao partido político. Criou, assim, uma nova
hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se
encontram expressamente previstas no texto constitucional
(BARROSO, 2009, p. 22).

Outro exemplo, o de declaração de inconstitucionalidade atos normativos


emanados do Congresso, com base em critérios menos rígidos que os de
patente e ostensiva violação da Constituição: o caso da verticalização.

O STF declarou a inconstitucionalidade da aplicação das novas regras


sobre coligações eleitorais à eleição que se realizaria em menos de um
ano da sua aprovação. Para tanto, precisou exercer a competência –
incomum na maior parte das democracias – de declarar a
inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, dando à regra da
anterioridade anual da lei eleitoral (CF, art. 16) o status de cláusula
pétrea. É possível incluir nessa mesma categoria a declaração de
inconstitucionalidade das normas legais que estabeleciam cláusula de
barreira, isto é, limitações ao funcionamento parlamentar de partidos
políticos que não preenchessem requisitos mínimos de desempenho
eleitoral. (BARROSO, 2009, p. 28).

Para o Ministro Luís Roberto BARROSO (2009, p. 25), três objeções


podem ser opostas à judicialização e, sobretudo ao ativismo judicial no Brasil: a)
os riscos para a legitimidade democrática; b) o risco de politização da justiça; e,
c) a capacidade institucional do Judiciário e seus limites. No primeiro caso, em
relação à legitimidade democrática, os membros do Poder Judiciário – juízes,
desembargadores e ministros – “não são agentes públicos eleitos”. Assim, “onde
801

estaria, então, sua legitimidade para invalidar decisões daqueles que exercem
mandato popular, que foram escolhidos pelo povo?” Nesse aspecto, o
fundamento normativo decorre do fato de que a Constituição brasileira atribui
expressamente esse poder ao Judiciário e, especialmente ao STF.
Quanto ao segundo caso, cabe reavivar que o juiz: “(i) só deve agir em
nome da Constituição e das leis, e não por vontade própria; (ii) deve ser
deferente para com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando
a presunção de validade das leis; (iii) não deve perder de vista que, embora não
eleito, o poder que exerce é representativo.” I.e., esse poder emana do povo e
em seu nome deve ser exercido, “razão pela qual sua atuação deve estar em
sintonia com o sentimento social, na medida do possível” (BARROSO, 2009, p.
28).
Em relação à capacidade institucional do Judiciário e seus limites, a maior
parte dos Estados democráticos do mundo organiza-se no modelo de separação
de poderes, cujas funções estatais são legislativas (criação do Direito Positivo);
administrativas (concretização do Direito e prestação de serviços públicos); e,
judicante (aplicação do Direito); atribuídas a órgãos distintos, especializados e
independentes. Portanto, a jurisdição constitucional bem exercida é, “antes uma
garantia para a democracia do que um risco.” Assim, a importância Poder
Judiciário como seu interprete maior da Constituição, “não pode suprimir, por
evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo”
(BARROSO, 2009, p. 29).
Elival da Silva Ramos (2015) declara que, o Tribunal ultrapassa o limite
do texto normativo e passa a criar, rompendo o equilíbrio existente entre a norma
e a interpretação, para criar nova solução, usurpando a competência do
legislador.
Segundo Marcelo Mazotti (2012, p. 125), comumente empregado com
viés negativo e sentido reprovador, o ativismo judicial ocorre quando o
magistrado: i) julga de acordo com as suas ideologias, convicções ou valores
pessoais, em detrimento do sentido normativo; ii) cria o direito ao invés de
interpretá-lo ou aplicá-lo; iii) age politicamente, formulando e concretizando
políticas públicas de competência dos demais poderes; iv) julga em
desconformidade com o posicionamento em sua própria jurisprudência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consagrado no Século XX, o constitucionalismo, concomitantemente à


expansão da democracia, direciona-se a estabelecer regimes constitucionais,
limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas; significa poder
limitado, fundado na vontade da maioria e supremacia da lei, traduz-se em
respeito aos direitos fundamentais.
A democracia apresenta-se como o standard maior da civilização
ocidental, e traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Pode,
entretanto, ocorrer de a maioria vulnerar direitos fundamentais da minoria,
cabendo ao Poder Judiciário o papel de guardião.
Hodiernamente, algumas questões de larga repercussão política ou social
têm sido decididas pelos órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias
políticas tradicionais, o Congresso Nacional e o Poder Executivo, por meio da
judicialização ou judicialização da política, empregada para designar a adoção
802

de procedimentos próximos aos típicos da Justiça para a preparação da tomada


de decisões por órgãos administrativos ou legislativos.
A judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do
constituinte; por sua vez, o ativismo judicial expressa uma postura do intérprete,
um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o
sentido e alcance de suas normas, indo além do legislador ordinário.
O ativismo judicial assume, hodiernamente, o sentido de militância por
uma causa, cujo ativista põe sua opinião acima da lei, ou de modo velado por
meio de interpretações que negam o significado do texto, ou de modo frontal,
criando normas que a Constituição ou a lei não previram.

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saúde, fornecimento gratuito de medicamente e parâmetros para a atuação
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<https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/viewFile/22912/pdf> . Acesso
em: 17 Set. 2019.
804

DIREITO E MORAL, DE HERBERT HART.


LAW AND MORALITY, FROM HERBERT HART

Wendell Pereira Barreto Garcez


Luana Bittencourt Vieira Nunes

Resumo: O presente trabalho tem por mote a análise crítica de um dos temas
mais antigos e polêmicos da Ciência do Direito: A relação entre Direito e Moral.
Tamanha é a importância deste controverso vínculo nessa esfera, que as
discussões e ensaios feitos acerca do tema promoveram a estruturação de
teorias que versam sobre a própria essência do Direito. Sendo notória sua
pertinência perante a ciência jurídica e à sociedade acadêmica, este trabalho
propõe a apreciação analítica desses dois tipos de regramentos sociais, que
norteiam o que se entende por "Direito". Para o presente estudo, selecionamos
como base teórica os estudos de Herbert Hart (H.L.A. Hart) contidos em sua
notável obra O Conceito de Direito.
Palavras-chave: Direito. Moral. Hart.

Abstract: This paper aims to critically analyze one of the oldest and most
controversial themes in the science of law: the relationship between Law and
Morality. Such is the importance of this controversial link in this sphere that the
discussions and essays made on the subject promoted the structuring of theories
that deal with the very essence of Law. Being relevant to Legal Science and
academic society, this paper proposes the analytical appreciation of these two
types of social rules, which guide what is understood by "Law". For the present
study, we selected as theoretical basis the studies of Herbert Hart (H.L.A. Hart)
contained in his remarkable work The Concept of Law.
Keywords: Law. Morality. Hart.

INTRODUÇÃO

Herbert Lionel Adolphus Hart, nascido em 1907 em Harrogate, Inglaterra,


foi um dos autores do final do Positivismo Jurídico e um dos juristas mais
importantes para a concepção dos fundamentos iniciais do que, mais tarde, seria
denominado como Pós-Positivismo. Filho de um alfaiate judeu de ascendência
alemã e polonesa, Hart foi aprovado tanto no New College de Oxford quanto,
mais tarde, no Chancery Bar. A partir da sua integração à associação de Oxford
como Tutor em Filosofia em 1945, o jurista pode desenvolver-se
academicamente sua percepção acerca de temas jurídicos pelo viés da Filosofia
da Linguagem. Sua relevância pode ser observada por meio das críticas feitas
por Ronald Dworkin à filosofia jurídica contidas nas obras de Hart. Estas,
apresentadas no livro do ilustre pós-positivista O Império do Direito, com efeito,
desenharam os contornos inaugurais do movimento.1
Em sua obra mais famosa, O Conceito de Direito, Hart pode explorar, ou
melhor, superar certos limites da então análise positivista, desenvolvendo,
assim, uma perspectiva sobre positivismo essencialmente distinta do

1
LACEY, Nicola. A Life Of H.L.A. Hart: The Nightmare And The Noble Dream. Oxford
University Press, 2004.
805

kelseniana2. A partir da década de cinquenta, época da chamada “Virada


Linguística”, houve uma considerável evolução acerca do entendimento sobre o
vínculo entre a filosofia e a linguagem, acurando o que atualmente é conhecido
por Filosofia Analítica. Neste contexto, surgem autores como, entre outros, o
próprio idealizador da Virada e pupilo do mestre George Edward Moore, Ludwig
Wittgenstein, o qual muito inspirou Hart quando utilizou-se, para estruturar suas
teses, dos pressupostos advindos da Filosofia da Linguagem Ordinária
característicos de um epistemologia pragmática.
Ainda que Herbert Hart não seja tão afamado quanto os autores do
movimento Pós-Positivista que o sucedeu, como por exemplo, o já citado
Dworkin e o estadunidense Richard Posner; é inegável que sua contribuição para
com o aprimoramento da Ciência do Direito. Por meio da filosofia analítica,
principalmente, no que diz respeito ao Positivismo Lógico e à Filosofia
Linguística, Hart utilizou-se desses elementos para fundamentar a construção
não só do seu próprio próprio juízo sobre temas polêmicos, como por exemplo:
“Qual o conceito de Direito?”; “Qual é a relação entre Justiça e Moral?”; “Qual é
a ligação entre Direito e Moral?”. Sendo este último exemplo, mediante uma
metodologia exploratória, em conjunto de propósitos expositivos sobre a obra do
autor, somados à colheita de informações por meio de consulta bibliográfica; o
tema a ser apreciado neste trabalho.

O CONCEITO DE DIREITO” DE HERBERT HART

Em 1961, Hart apresentou à comunidade acadêmica um livro que


introduziu na Filosofia e Ciência do Direito a utilização de uma nova metodologia
assentada na filosofia da linguagem. Ao longo dos dez capítulos que compõem
o livro “O Conceito de Direito”, Hart argumenta sobre como poderíamos
caracterizar o Direito; realizou críticas à fundamentação positivista pregressa,
principalmente o imperativismo de Austin; fundamentou o Direito como a união
de normas primárias e secundárias; revisou e apresentou sua ideia de
perspectiva interna e externa das normas, além do aspecto interno e externo das
mesmas; teceu comentários críticos quanto à perspectiva formalista e ceticista
do Direito apresentado; discutiu a relação entre Direito e Justiça; discutiu
também a relação entre Moral e Justiça; e ainda estendeu seus estudos à
possíveis críticas à sua teoria quando aplicada ao âmbito do Direito
Internacional.
Verdadeiramente, ofereceu uma mudança de perspectiva
importantíssima a todo um pensamento jurídico ocidental que recebia, e ainda
recebe, influências das doutrinas européias. Por isso, não menos, seu livro ainda
é estudado e suas lições podem ser percebidas nos escritos atuais.
Apesar disso, as lições de Hart não são imunes ao desgaste histórico, um
fenômeno inevitável em face do eterno processo de desenvolvimento e
mudanças sociais, assim, algumas de suas ideias, por vezes, parecem um tanto
superadas, sofrendo por um anacronismo jurídico. Entretanto, argumentamos
que algumas de suas lições são pertinentes até o presente. Esta afirmação faz
referência ao estudo de Hart sobre a relação entre Direito e Moral.

2
KOZICKI, Katya; PUGLISE, William Soares. Da Teoria da Norma à Teoria do Ordenamento:
O Positivismo Jurídico entre Kelsen e Bobbio. Arraes Editores, 2016.
806

Porém, antes de esmiuçarmos as lições e ensinamentos apresentados no


capítulo nove de “O Conceito de Direito”, devemos antes revisitar algumas lições
e conceituações apresentadas nos capítulos anteriores, necessárias a uma
melhor compreensão da relação acima mencionada.
Iniciamos nossa jornada pela obra destacando como Hart resolveu
responder à pergunta: “O que é o Direito?”, ou “Como posso conceituar o
Direito?”; ou ainda, “Qual a essência do Direito?”. Tais questionamentos são
apresentados no primeiro capítulo do livro: Questões persistentes. Neste
capítulo, Hart apresenta ao leitor que possui certa curiosidade acerca dos
questionamentos realizados sobre o que é o Direito. Questiona não haver este
tipo de discussão em outras áreas científicas, afinal, não há grandes reflexões
filosóficas sobre o que é a medicina, ou o que seria a química. Hart apresenta
ainda uma crítica às apaixonadas discussões sobre a “natureza” do direito, sobre
como estas discussões são realizadas como se apresentassem “grandes
verdades sobre o Direito”. Hart, de certa forma apresenta uma afeição à prática
jurídica, atribuindo aos juristas efetivas contribuições sobre a compreensão do
Direito.3
Hart, ainda que crítico de John Austin, identifica neste primeiro capítulo
que de fato a ideia que “onde há o direito, há em certo sentido condutas não-
voluntárias” poderia ajudar a compreender o tema, porém, neste ponto, já
argumenta e recusa o imperativismo de Austin, que sustentava que explicava o
direito como obrigações fundamentadas em um sistema de ameaças, estas
ordens coercitivas seriam proferidas por uma autoridade, um soberano; o
cumprimento frequente das ordens pelos súditos resultaria em um hábito que
fundamentaria o exercício do poder pelo soberano. Hart o faz refletindo sobre a
diferença entre “ser obrigado à” e “ter a obrigação de”, com o clássico exemplo
de uma assaltante que ordena à sua vítima que sejam entregues os pertences.
Neste exemplo, a vítima teria a obrigação de realizar a entrega ou condicionaria
a entrega dos pertences à uma possibilidade de sofrimento futuro?
Posteriormente, no capítulo cinco, Hart utilizaria este pensamento para
fundamentar a existência de normas primárias e secundárias. Normas primárias
estabelecem padrões de conduta e obrigações. Normas secundárias são
derivadas das normas primárias e outorgam poderes, sendo divididas entre
normas de reconhecimento, alteração e julgamento4. Estas normas secundárias
marcariam a passagem do mundo pré-jurídico ao mundo jurídico e seriam uma
resposta à incerteza, estabilidade e ineficiência de um sistema jurídico
puramente composto de normas primárias5, este último sistema que se
aproximaria do imperativismo de Austin.
Retornando ao exemplo do assaltante é possível ainda fazer os seguintes
questionamentos: havendo a exclusão desta possibilidade de sofrimento futuro,
há, consequentemente, a exclusão da obrigação? Já que a obrigação é
condicionada à possibilidade de coerção; ainda questiona-se: transferindo este
exemplo para um sistema jurídico, um agente público que, por algum recurso
escuso, consegue se eximir de responsabilidades decorrentes de omissões em
sua função, deixa de ter a obrigação cumprí-las?

3 Herbert Hart, O Conceito de Direito, 2009, p. 1-3.


4 Ibid., p.107.
5 Ibid., p.118-128.
807

Os últimos questionamentos realizados poderiam ter diferentes respostas


se fundamentados nas lições de Hart ou nas lições de Austin. No capítulo dois,
Hart comenta6:

Não precisamos nos ocupar aqui dessas sutilezas. Embora as palavras


“ordem” e “obediência” estejam associadas à ideia de autoridade e da
deferência diante desta, usaremos as expressões “ordens apoiadas
por ameaças” e “ordens coercitivas” para nos referirmos a ordens que,
como aquela dada pelo assaltante, são apoiadas apenas por ameaças,
e usaremos os termos “obediência” e “obedecer” para designar a
aquiescência dessas ordens. Entretanto, pelo menos devido à grande
influência de a definição de comando adotada por Austin exerceu sobre
os juristas é importante assinalar que a situação simples, na qual se
usam apenas ameaças de danos e nada mais para forçar a obediência
não é uma conjuntura na qual falaríamos naturalmente de “comandos”.
Essa palavra, não muito comum fora do contexto militar, denota
fortemente a existência de uma organização hierárquica relativamente
estável de homens, como exército ou grupo de discípulos, na qual o
comandante ocupa posição preeminente [...] Um aspecto mais
importante - por constituir uma distinção crucial entre diferentes formas
do “imperativo” - é não ser necessário, quando se dá um comando, que
exista a ameaça latente de dano na hipótese de desobediência. A
posição de comando se caracteriza pelo exercício da autoridade sobre
homens, e não pelo poder de infligir dano; e, embora possa se conjugar
à ameaça de dano, o comando é, antes de tudo, não um recurso ao
medo, mas uma chamada ao respeito pela autoridade.

E logo a seguir, no mesmo capítulo, Hart complementa7:

É óbvio que a ideia de comando, por ser fortemente ligada à ideia de


autoridade, está muito mais próxima da noção de direito que a ordem
apoiada por ameaças usada pelo assaltante de nosso modelo, embora
aquela ordem seja um exemplo do que Austin equivocadamente
denomina comando, ignorando as distinções feitas no último parágrafo.
Entretanto, o comando é demasiado semelhante ao direito para que
possa servir a nosso objetivo; pois o elemento de autoridade envolvido
no direito sempre foi um dos obstáculos para uma explicação fácil do
que é essa ciência. Portanto, não podemos usar vantajosamente, para
elucidar o conceito de direito, a noção de um comando, que também
implica a autoridade. Na verdade, quaisquer que sejam os defeitos da
análise de Austin, uma de suas virtudes é que os elementos da
situação que envolve o assaltante não são obscuros nem necessitam
de muita explicação, ao contrário da noção de autoridade [...]

Retornado ao primeiro capítulo “Questões persistentes”, observamos que


Hart resolve apresenta a problemática da conceituação do Direito relacionada à
três questões recorrentes8: em que o direito difere das ordens apoiadas por
ameaças e como se relaciona com estas? Em que a obrigação jurídica difere do
dever moral e como se relaciona com este? O que são as normas e até que
ponto elas são os elementos essenciais do direito?

6 Ibid., p. 25-26.
7 Ibid., p. 26.
8 Ibid., p. 17.
808

Evidentemente as respostas paras estas questões não são simples e


exigem o desenvolvimento de um raciocínio extenso, complementa-se ainda que
tão importante quanto essas perguntas foi a forma como estas surgiram da
tentativa inicial de Hart de conceituar o direito, o que, com efeito, serve melhor a
este ensaio que a resposta à estas perguntas.
Ao tentar conceituar o Direito, Hart afirma que a necessidade de se
conceituar, de traçar linhas demarcatórias de, algo é uma necessidade humana
decorrente da incapacidade de explicar ou explicitar as distinções que separam
um tipo de outro tipo de algo. Hart invoca a afirmação de Santo Agostinho sobre
a noção de tempo: “O que é, então, o tempo? Se ninguém me interroga, eu sei;
se quero explicá-lo a alguém que me pergunta, já não sei”9. Neste ponto, o autor
se utiliza de bases metodológicas da filosofia da linguagem de Wittgenstein e
Austin para desenvolver seu raciocínio, ao argumentar que distinguimos
“aquelas coisas” de “outras coisas” em comparação à uma família que engloba
uma maior características comuns de ambas as “coisas”, ou ainda em
comparação à famílias de “coisas” com características distintas10. Hart resolve
assim, ao invés de tentar conceituar o Direito em termos fechados, apresentar
características únicas deste que o torne diferente de outros sistemas normativos
dentro de uma “família” de “normas de comportamento”, porém alerta a
dificuldade em fazê-lo, afinal o conceito de norma seria tão vago quanto o próprio
conceito de Direito. É importante destacar que para Hart, norma e regra são
sinônimos. Historicamente falando, ainda não havia sido desenvolvido o conceito
pós-positivista neoconstitucionalista da subdivisão de normas em regras e
princípios.

O DIREITO E A MORAL

Após realizar uma diferenciação entre as o hábitos e as normas, jurídicas


e de outros tipos, sendo que as normas sempre serão concebidas como
preceitos que impõem necessariamente alguma obrigação11, antes de
analisarmos o capítulo nove “O Direito e a Moral”, faz-se necessário apresentar
a diferenciação realizada por Hart no capítulo oito “Justiça e Moral” entre
obrigações jurídicas e obrigações morais.
Neste capítulo Hart afirma haver certas semelhanças entre as normas
jurídicas e as normas morais, estas semelhanças seriam suficientemente
marcantes a ponto de podermos afirmar que ambas encontram-se dentro da
mesma classificação como “normas”, possuindo em comum o fato de: a) serem
vinculantes; b) haver pressão social para seu cumprimento; c) seu cumprimento
ser uma atitude tida como comportamento mínimo para convivência em
sociedade, não podendo ser premiado o mero cumprimento das normas; d)
regem o comportamento social cotidiano; e, e) são necessárias ao convívio
comum12.
Hart apresenta certas características que diferenciam a norma moral da
norma jurídicas, e também das outras formas de normas sociais. As normas
9 Ibid., p.18.
10 Ibid., p.18-19.
11 v. Ibid., p.112-117.
12 Ibid., p. 223-230.
809

morais são peculiares quanto à sua: a) Importância; b) Imunidade à modificação


deliberada; c) Caráter voluntário das infrações morais; e, d) A forma de pressão
moral13.
No capítulo nove “O Direito e a Moral”, Hart sustenta ser preocupante a
afirmação que “um sistema jurídico deve necessariamente mostrar alguma
conformidade específica com a moral”, ou ainda a compreensão que “existe uma
obrigação moral de obedecer a lei”14, pois, por vezes, fazendo referência ao
capítulo anterior, existem diversos momentos da história humana onde
concepções moralistas, quando implementadas como políticas públicas ou
utilizadas como guia da formação de normas jurídicas resultaram tragédias,
exemplifica-se a situação com os danos possíveis de uma equivalência entre
justiça social e justiça legal, onde, em certo ponto da história americana era
comum que houvesse segregação racial nos transportes públicos15.
Sobre a primeira afirmação, Hart argumenta que independentemente das
discussões é inegável afirmar que o desenvolvimento do direito tem de fato sido
influenciado, em todos os tempos e lugares, tanto pela moral quanto pelos ideias
convencionais de grupos16. Hart estabelece o que denominou de conteúdo
mínimo do Direito Natural consiste em conexões entre condições naturais e
sistemas normativos que não são mediadas por razões, mas sim necessidades,
são relacionadas à causa de uma população agir de determinada forma, mas
não à razão daquele agir. São os conteúdos mínimos: a) A vulnerabilidade
humana; b) A igualdade aproximada; c) O altruísmo limitado; d) Os recursos
limitados; e, e) A compreensão e força de vontade limitadas17.
Entretanto, das lições apresentadas por Hart, a segunda afirmação é
apresentada aqui com papel de destaque, pois ao questionar a existência de
uma “obrigatoriedade moral de obedecer a lei”, ou ainda diferenciar a obrigação
moral da obrigação jurídica, Hart estabelece dentro de sua lógica a existência de
um vínculo entre certos comportamentos humanos e sistemas normativos, não
necessariamente jurídicos. Destaca-se ainda, que, Hart explicitamente não
chegar a discutir se obrigações jurídicas ou morais são excludentes umas das
outras, ou passíveis de coexistência ou ainda que se comportem ou devam ser
imaginadas conforme o pensamento tridimensional atual, havendo assim a
possibilidade de exploração desta ideia como fundamentação dentro de um
pensamento positivista de uma possibilidade de um sistema pluralista.
É pouco provável que Hart tivesse a intenção ou a perspectiva, ao
formular esta ideia, de alguma forma utilizar esta fundamentação para uma
possível elaboração ou justificação de um sistema jurídico plural, o que
verdadeiramente não era prioridade no contexto social europeu, porém reviver
este questionamento nos parece relevante, em face à grande diversidade
existente em nosso continente.

13 v. Ibid., p. 224-233.
14 Ibid., p. 239.
15v. Herbert Hart, O Conceito de Direito, 2008, p. 201-217; v. Ronald Dworkin, O Império do
Direito, p. 36-38; v. Caso Brown vs Board of Education, 347 U.S. (1954).
16 Herbert Hart, Op. cit., 2008, p. 239.
17 Ibid., p. 250-258.
810

CONCLUSÃO

Observa-se que o autor reconhece a comparência autônoma desses dois


regramentos sociais, não afastando muito dos pareceres positivistas que
antecedem a obra O Conceito de Direito. Contudo, Hart admite a pertinência
metodológica de uma distinção entre Direito e Moral, uma vez que, evitando as
colisões de aspectos fático-objetivos, faz-se necessária tal distinção a fim de
possibilitar a identificação no tangente à amoralidade ou imoralidade de
ordenamentos jurídicos.
No que diz respeito à existência de um vínculo entre o Direito e a Moral,
nota-se que o entendimento de Hart aproxima esta relação a uma espécie de
autêntica contingência e, portanto, o mesmo não entreviu relações conceituais
essenciais entre os conteúdos de ambos os institutos. Entretanto, é evidente a
manifestação da Moral como um sistema normativo alternativo ao direito, que
possui obrigações e diretrizes próprias, natureza esta que não se deve olvidar.
Faz-se indispensável ressaltar que tal compreensão sobre as dimensões
desses institutos, quando foi elaborada por Herbert Hart, foi pouco explorado ou
sequer recebeu a devida atenção por parte da comunidade acadêmica na época,
posto que há um aspecto homogeneidade no que concerne à cultura europeia.
Esta, difundida pelo planeta sob a bandeira da política colonizadora e imperialista
dos países europeus, como os Países Ibéricos, Inglaterra, França e Alemanha;
encontra-se ainda hoje arraigada no Direito pátrio. Não só o ordenamento
jurídico brasileiro, mas também seus intelectuais, juristas e doutrinadores bebem
insaciavelmente da fonte positivista e pós-positivista europeia, afastando-se das
teorias pluralistas que estão sendo desenvolvidas nos países vizinhos. Percebe-
se que, metaforicamente, o Brasil, ao se olhar no espelho, enxerga em si com
uma (falsa) clareza os traços do ancestral europeu mais determinantes do que o
da própria miscigenação. Diferentemente do Brasil, outros países latino-
americanos, a exemplo da Bolívia 18, têm buscado estruturar em seus
ordenamentos e práticas jurídicas o pluralismo incontestavelmente presente no
seio das suas populações.
Esta infeliz brasileira realidade dificulta que os horizontes pluralistas, que
são evidentemente mais acessíveis à realidade do países que nega sua
"latinidade", sejam sequer vislumbrados pelos juristas nacionais, que dificilmente
pautam-se em autores juristas latinos para compor suas teses. Sendo assim, em
um ambiente de grande diversidade cultural, como a América Latina, o
aprofundamento dos estudos de hartianos, principalmente em solo brasileiro,
sobre a temática abordada neste trabalho seria de enorme relevância.
A teoria de Herbert Hart possibilitaria o diálogo entre a realidade brasileira
e uma possível teoria pluralista na medida que autores de grande influência
nacional estudaram e produziram teorias que indiretamente relacionam-se às
suas teorias positivistas. À guisa de exemplo, o jurista Lenio Streck
fundamentou-se nos ensinos de Robert Dworkin, que, por sua vez foi
influenciado por Hart. Seria, portanto, mais exequível a construção de um esboço

18FERRAZZO, Débora. Pluralismo Jurídico e Descolonização Constitucional na América


Latina. Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal de Santa Catarina para a obtenção do Título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr.
Antonio Carlos Wolkmer. Florianópolis, 2015.
811

pluralista a partir desses autores pátrios que têm por base indiretamente Hart,
ao passo que este propõe uma relação entre Direito e Moral diversa na
tradicional e clássica de Hans Kelsen.

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Ubiratan Bagas dos Reis


Marisa Rossignoli

Resumo: O presente artigo tem como objetivo o estudo sobre as premissas


básicas constitucionais acerca da função social da empresa e do princípio da
livre concorrência, direcionado à análise de harmonização ou não dos institutos.
Investiga-se a compatibilidade dos preceitos adotados pela Lei 13.874/2019 –
Lei de Liberdade Econômica em relação à ideia de função social da empresa,
comparativamente com os conceitos da Economia, em especial, a ideia de
mercado perfeito, mercado eficiente, bem-estar social, oferta e demanda
vulneráveis. O artigo é pautado no método dedutivo e hipotético dedutivo,
pesquisa qualitativa de obras e artigos científicos sobre a visão da empresa de
sucesso na sociedade atual.
Palavras-chaves: Função Social da Empresa. Livre Concorrência. Mercado
Concorrencial.

Abstract: This article aims to study the constitutional basic premises about the
social function of the company. It's principle of free competition, towards
harmonization analysis or not of the institutes. The compatibility of the precepts
adopted by Law 13.874/2019 - Law of Economic Freedom in relation to the idea
of social function of the company is compared to the concepts of Economy, in
particular, the perfect market idea, efficient market, social welfare, vulnerable
supply and demand. The article is ruled on the deductive method and deductive
hypothetical, qualitative research of works and scientific articles against the vision
of the successful company in today's society.
Keywords: Social Function of the Company. Free Competition. Competitive
Market.

INTRODUÇÃO

Apresenta-se comum, no âmbito das relações empresariais, a alegação


de que algumas das novas acepções das funções da empresa não seriam
compatíveis com a voracidade do mercado, bem como, antagonicamente, tem-
se por equivocado, o entendimento de que os ideais liberais são nefastos aos
consumidores por serem propensos a proteger as empresas.
A divergência sobre o entendimento para a melhor forma de atuação das
empresas frente às novas necessidades, do modo de visão do mundo, estimula
o debate que envereda, na maioria das vezes, para a análise de prevalência de
um princípio em detrimento do outro.
Quando se depara com um caso de conflito de princípios, em regra,
subsumi à hipótese de aplicação do juízo de ponderação, todavia, no presente
artigo, esta discussão é relativizada, não pela sua relevância, mas para oferecer
aos estudos da Ordem Econômica Constitucional, palmilhar por trilhas
independentes que culminam em um mesmo ponto. Os caminhos aqui
explorados são a função social da empresa e o princípio da livre concorrência,
813

com a relação das novas normas introduzidas pela Lei 13.874/2019 - Lei de
Liberdade Econômica.
Surge, inexoravelmente, a indagação: seria possível a empresa exercer
sua função social ao mesmo tempo que disputa lealmente por mais espaço no
mercado com outras empresas ou haveria uma incompatibilidade de nortes a
serem seguidos, mormente pela dita voracidade do mercado?
A importância do tema é constatada ao se deparar com os novos desafios
a serem enfrentados pelas empresas. A interatividade, a velocidade da
informação, a força das redes sociais e todas as demais tecnologias impulsionam
para o maior cuidado no trato com os consumidores e, de igual importância, com
os concorrentes.
Para responder esta questão, analisa-se o arcabouço constitucional sobre
a função social da empresa e sobre o princípio da livre concorrência, avançando
para os estudos de normas infraconstitucionais e dos bens jurídicos por eles
tutelados, para ao final, apresentar as considerações obtidas no decorrer dos
estudos.
A investigação decorre das constantes imputações às empresas no
sentido de que não haveria espaço para o sucesso de uma companhia a não ser
que adote práticas desleais, não só entre seus concorrentes, mas, de forma
ainda mais grave, com relação aos funcionários e consumidores.
Embora o tema de fundo não seja novo, a abordagem referente a função
social diferencia da maioria dos demais estudos por investigar sua relação com
institutos próprios da Economia, o que permite uma análise interdisciplinar, sem
perder a robustez do conteúdo jurídico inerente a pesquisa realizada.
Com uso do método dedutivo e revisão bibliográfica, apresenta-se a
discussão sobre a função social e sua previsão no texto constitucional para na
sequência analisar o princípio da livre concorrência, também com um olhar para
o texto constitucional, principalmente os artigos 170 e 173 da Constituição
Federal de 1988. Após esta análise, verifica-se pontos da lei da liberdade
econômica no que se refere à estes tópicos.

1. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

A Constituição Federal de 1988 preconiza que são fundamentos da


República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária,
garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, erradicar a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º).
No capítulo destinado a Ordem Econômica e Financeira, o artigo 170
estabelece os princípios definidos pelo legislador constituinte como inerentes ao
ideal de economia a ser seguida pela pátria, com atenção em atribuir uma carga
valorativa social, consubstanciada, como se observa pela redação dada ao
dispositivo, que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho
humano e nos princípios função social da propriedade, defesa do consumidor e
redução das desigualdades regionais e sociais.
Importante anotar que se está diante das partes que constituem o
mercado, oferta (fornecedores de bens e serviços) e demanda (consumidores),
oriundas de uma evolução histórica que não pode ser ignorada. Não se pode,
atualmente, se referir aos fornecedores como no início dos estudos jurídicos.
814

A denominada Teoria da Empresa, do Direito Comercial, não supre mais


as contemporâneas necessidades, sendo necessária uma nova interpretação,
como bem pontuado pela doutrina:
A Teoria da empresa não só preencheu as brechas do direito comercial,
mas ampliou, inovando a atividade empresarial, que passa a abranger toda a
organização dos meios de produção, serviços e do próprio ato de comercializar,
além de uma correta organização do capital, bem como do trabalho. À luz das
considerações acima expostas, percebe-se que o termo empresa é mais amplo
e por isso teve condições de adaptar-se às inovações e realidades
mercadológicas (SANTIAGO; MEDEIROS, 2017, p. 109).
A função social está fundamentada na premissa de atender aos direitos
de segunda geração, restando os direitos de terceira geração para uma função
solidária da empresa, que não será tratada neste artigo. Aqui cabe a
diferenciação entre os fundamentos e objetivos da República Federativa, estes
previstos no artigo 3º e aqueles no artigo 1º da Constituição Federal.
Os fundamentos já são inerentes ao sistema constitucional, institutos
substantivos (soberania, cidadania, trabalho, livre-iniciativa e pluralismo)
enquanto que os objetivos são compromissos assumidos que deverão ser
consolidados ao longo do tempo, institutos verbais (“construir uma sociedade”,
“erradicar a pobreza”, “promover o bem de todos”) (LAZARI, 2019, p. 307-308).
A função social da empresa não permite a ideia da busca do lucro puro e
simples, devendo atuar de forma a efetivar os direitos fundamentais de
segunda dimensão, quais sejam, os sociais, os econômicos e os culturais, de
titularidade coletiva e com caráter positivo, pois exigem a tutela estatal, diante
da sua própria evolução (MENDES, BRANCO, 2014 p.137).
A empresa não pode ficar “inerte á realidade social, educacional, cultural
do meio em que se encontra, devendo contribuir com o cumprimento dos direitos
e objetivos constitucionais, que, por óbvio, vão além do estatuto da empresa.”
(PAYÃO, RIBEIRO, 2016, p. 248).
A função social e o bem-estar social permitem a análise da demanda do
mercado, cujos fundamentos axiológicos se encontram constitucionalmente
alinhados e aptos a seguir na análise de proteção da demanda vulnerável,
Com a revolução industrial e massificação de oferta de bens e serviço,
surgiu a necessidade de olhar para o consumidor (demanda) com outros olhos,
já que “passamos praticamente o século XX inteiro aplicando às relações de
consumo o Código Civil de 1916 e que entrou em vigor 1917, fundado na tradição
do direito cível europeu do século anterior.” (NUNES, 2014, p.346-347).
Reconhecida a vulnerabilidade do consumidor, o legislador constituinte
prescreveu o prazo de 120 (cento e vinte) dias para elaboração do código de
defesa da demanda vulnerável, ou seja, àquela parte da demanda que
necessitaria de proteção estatal.
Observa-se que, consumidor está para Direito assim como a demanda
está para a Economia. As pessoas necessitam adquirir bens e serviços
cotidianamente, cuja alocação eficiente enseja, para os estudioso da Economia,
o aprofundamento e uso constante das relações e efeitos incidente sobre o
consumidor, cuja matéria está diretamente relacionada a teoria do consumidor,
entre elas: utilidade total e utilidade marginal, curva de demanda individual e
equilíbrio do consumidor, excedente de consumidor etc (OLIVEIRA, 2006, p.
110-132).
815

Cabe, aqui também, a ponderação acerca de reflexos negativos no


mercado, a exemplificar esta realidade, observa-se que “poder de mercado e
externalidades são exemplos de um fenômeno geral denominado falha de
mercado – incapacidade de alguns mercados não-regulamentados de alocar
eficientemente os recursos” (MANKIW, 2001, p. 157).
Desta forma, pode-se se traçar o paralelo entre consumidor/demanda e
empresa/oferta, daí a correlação entre as ciências da Economia e Direito, em
uma interdisciplinaridade de altíssimo valor acadêmico, mormente quando se
analisa uma falha de mercado, tal como a conduta abusiva de player.
A lei tutela a demanda vulnerável do mercado de condutas ou práticas
adotadas pelos fornecedores (oferta), que também praticavam atos nefastos
entre si, sempre daquele que detinha uma posição dominante, com violação ao
princípio da concorrência.

2. PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA

Em primazia à livre concorrência, o Estado somente deverá intervir na e


sobre a atividade econômica quando houver a necessidade de equalizar e
afastar eventuais distorções. A livre competição é um elemento de observância
imperativa pelo Estado, mormente quando se tratar da concorrência, já que
inerente a competição entre os players
Apresenta-se equivocado o entendimento de que a livre concorrência seja
intocável, absoluta. Isto porquanto, não é possível sustentar a liberdade
econômica plena ou a intervenção totalitária do Estado, já que estes extremos
são insuficientes e indesejáveis, distantes de um termo ideal entre a economia
de mercado saudável e a intervenção do Estado no e sobre o domínio
econômico.
Não se olvida da adoção do sistema econômico capitalista, todavia, é
preciso harmonizar com outros valores de igual importância, tais como: (i) a
valorização do trabalho humano; (ii) a livre iniciativa; (iii) a dignidade da pessoa
humana; (iv) a soberania nacional; (v) a propriedade privada; (vi) a defesa meio
ambiente; (vii) a redução das desigualdades regionais e sociais (Art. 170, CF/88).
Estes direitos sociais devem ser prestigiados, “já que o sistema impulsiona o
verdadeiro crescimento” (ELALI, 2009, p.232).
Não se pode deixar de observar que a função social da empresa se
manifesta no artigo 170 da Constituição Federal de 1988. Atualmente, as
empresas não estão limitadas a simplesmente gerar lucro, decorrente de suas
atividades de produção de bens e serviços, mas, deverá observar a nova ordem
vigente e desempenhar uma importante função social, que pode ser entendida
como a atividade transcendente, deslocada do interesse individual, voltada à
realização do interesse social (FERREIRA, 2007, p. 84).
Valores como a liberdade e a propriedade devem ser conciliados com a
busca pelo pleno emprego e a redução das desigualdades sociais e regionais,
como assim assevera André Elali (2009, p. 232).
Dentre os princípios da ordem econômica, o da livre-iniciativa permite que
qualquer pessoa empreenda em qualquer negócio ou exerça qualquer profissão,
como bem assevera Juliana Domingues e Eduardo Gaban (2016, p.54),
pontuando a diferença entre livre iniciativa e livre concorrência “sendo o primeiro
a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição
de riquezas, significando a síntese da liberdade de escolha, o livre acesso às
816

atividades econômicas, ao passo que o segundo representa uma limitação e uma


instrumentalização do exercício do primeiro” (2016, pág. 56).
A livre-concorrência preconiza uma competição leal entre os players,
pautada na ética, onde a conquista do mercado decorre da eficiência na oferta
de bens e serviços, licitamente, sendo permitida a intervenção estatal quando se
constatar falhas de mercado.
O artigo 173, da Constituição Federal de 1988, ressalva que a exploração
direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária
aos imperativos da segurança nacional ou do relevante interesse coletivo,
conforme definidos em lei, sendo que o parágrafo 4º prevê que a lei reprimirá o
abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação
da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
As normas que deveriam ser elaboradas para defesa do mercado se
materializaram nos “ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre
concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e
repressão ao abuso do poder econômico” não se tratando meramente lei
antitruste. (GRAU, 2015, p. 208)
Em um mercado perfeito, a oferta e a procura harmonizam aos desejos
ou à disponibilidade de cada um dos participantes em concretizar a transação,
mediante certo preço (preço de mercado - Pm).
“Nessas circunstâncias e com muitos ofertantes, os produtores são
tomadores de preço, pois não conseguem, individualmente, influenciar o nível de
preço de mercado” (VIEGAS, ALMEIDA, 2013, p.21). Um preço acima do Pm,
atrairia um maior números de ofertantes, decorrente do lucro extra obtido. Esse
maior número de ofertantes ensejaria uma maior variedade de escolha a
influenciar na diminuição do preço até alcançar o Pm ideal. O inverso é
justificável na exata medida em que o preço abaixo do Pm ensejaria a saída de
ofertante e, consequentemente, o aumento do preço em razão da pouca oferta
do produto ou serviço, até que se alcance o Pm.
Assim traçada a ideia nuclear da oferta, da procura e do preço, poder-se-
á avançar a averiguação das estruturas de mercado. O regime de concorrência
perfeita apresenta-se com características próprias, o grande número de
participantes (oferta e procura), a ausência de participante com capacidade de
alterar unilateralmente as condições da atividade econômica, os produtos
homogêneos, o livre acesso, a ausência de economias de escala e a ausência
de externalidades (NUSDEO. 2015, p. 213-214). Obviamente que este mundo é,
até certo ponto, inalcançável nos dias atuais, mas não deixa de ser um norte a
ser almejado.
O mercado eficiente consubstanciaria na maior potencialidade de bem-
estar social, ou visto de outra forma, seria o mercado eficiente aquele ausente
de falhas, tais como: existência de custos de transação, assimetria de
informações, barreiras à entrada de novos competidores (violação a livre-
iniciativa), concentração de poder econômico, aumento arbitrário etc.
Eis o norte a ser seguido pelo legislador, sendo se salutar importância
observar se a Lei de Liberdade Econômica está pautada nestas premissas que
visam atender às expectativas da coletividade e aos anseios dos
empreendedores.

3. LEI DE LIBERDADE ECONÔMICA


817

A Lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, instituiu a Declaração de


Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado. Em
seu Capítulo III, intitulado DAS GARANTIAS DE LIVRE INICIATIVA, o artigo 4º
estabelece a vedação do abuso do poder regulatório, de maneira a impedir a
intervenção indevida do Estado no mercado.
Em sintonia do até agora pontuado, o Estado não poderá criar reserva de
mercado ou profissional em prejuízo dos demais correntes, criando por assim
dizer, oligopólios e oligopsônios, bem como, redigir enunciados que impeçam a
entrada de novos competidores nacionais e estrangeiros no mercado, ferindo-
se, a ideia de livre-iniciativa prevista no artigo 170 da Constituição Federal de
1988.
A propositura de especificação técnica, que não seja necessária para
atingir o fim desejado, não poderá ser exigida do particular, no mesmo sentido,
é vedada a redação de enunciados que impeçam a inovação e a adoção de
novas tecnologias e processos de produção de bens e serviços, com exceção a
situações de alto risco, todavia, aqui cabe a ponderação de que o termo “alto
risco” é demasiadamente genérico e poderá ensejar muita discussão acerca do
seu limite por parte do Estado em considerar sua a abrangência.
Aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios
importa na irracionalidade de intervenção estatal na produção, assim como, a
criação de demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade
profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros, agrega sobre
o preço final do bem, um custo que poderia ser excluído.
A autuação estatal não poderá restringir o uso de publicidade e
propaganda sobre o setor econômico, ressalvadas as hipóteses vedadas em lei
federal. Aqui cabe a ponderação, a título de exemplo, das publicidades e
propagandas direcionadas aos hipossuficientes, tais como crianças e
adolescentes.
Dentro da ideia de função social da empresa e livre concorrência, a lei de
Liberdade Econômica tende a privilegiar uma autonomia maior ao mercado,
excepcionando, por assim dizer, os poderes regulatórios do Estado. As
consequências deste novo direcionamento normativo aparecem como um
desafio aos estudos, seja pela complexidade do tema, seja por sua interação
com outras ciências, tal como a Economia, que rege por princípios próprios que
não obedecem a lógica do dever-ser da norma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo permite desenvolver a ideia de que as empresas podem, como


incremento e diferencial “de” e “no” mercado, utilizar-se de estratégia moderna,
conceitos novos e potentes diretrizes, atingindo o sucesso de mercado, em
consonância com as normas jurídicas vigentes. O desenvolvimento de suas
atividades não precisa estar exclusivamente pautado na incessante busca pelo
lucro, já que este é o fim desejado por qualquer player e propulsor de qualquer
empreendimento ou investimento.
A constatação que se observa é outra, qual seja, no sentido de trazer
harmonia entre a busca por espaço no mercado e a observância da função
social, mormente por se constatar que a lei proíbe a conduta abusiva por parte
daquele que atua no mercado.
818

O legislador constituinte inseriu a proteção da demanda de forma


reiterada e categórica, devendo o Estado promover a defesa do consumidor,
parte vulnerável da sociedade, que em meio a modificações e evoluções dos
meios de produção de bens e serviço, ficou afugentado face ao poder econômico
das grandes empresas que surgiram com a revolução industrial.
A demanda é parte fundamental do mercado e longamente estudada pela
Economia, o que permite concluir que o alinhamento das ciências, em uma
interdisciplinaridade de altíssimo valor acadêmico, propicia o avanço para o
desenvolvimento e aperfeiçoamento das relações de mercado.
As condutas ou práticas abusivas se apresentam como falhas de
mercado, mormente por serem prejudiciais à concorrência e a ideia de buscar o
crescimento e o desenvolvimento de maneira escorreita, licitamente. Assim, a
livre concorrência não é absoluta e deve ser equalizada à busca pelo bem-estar
social, na busca pelo mercado eficiente.
A função social da empresa e o princípio da concorrência são elementares
para o sucesso da empresa do mercado, sendo inimaginável que o sucesso
decorra somente da busca pelo lucro.
A Lei 13.874/2019 inseriu no ordenamento jurídico a Declaração de
Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado,
pautada na intervenção mínima do Estado, inclusive no que se refere ao poder
regulatório.
Concluindo-se, portanto, que diante das novas concepções e conceitos
empresariais, o diferencial do sucesso empresarial palmilha nas ações que
realmente podem promover o bem-estar social, mas é preciso fazer ressalvas de
que o Estado deverá estar presente, pois historicamente, a sua ausência pode
ensejar condutas anticoncorrenciais danosas e bolhas no mercado que levaram,
como de fato podem levar, a um cenário de colapso econômico, causando
graves danos a sociedade, como inflação, recessão, desemprego etc.

REFERÊNCIAS

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ELALI, André. Um exame da desigualdade da tributação em face dos princípios


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RIBEIRO, Maria de Fátima (Orgs.). Direito empresarial contemporâneo.
Marília: Unimar, São Paulo: Arte & Ciência, 2007. capítulo 4. pp. 79-107.

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819

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MENDES, Gilmar Mendes, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito


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CANOTILHO, José Joaquim Gomes; SARLET, Ingo Wolfgang ; STRECK. Lenio
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LAZARI, Rafael de. Manual do direito constitucional. 3 ed. Belo Horizonte:


Editora D’plácido, 2019)

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SANTIAGO, Mariana Ribeiro; MEDEIROS, Elisângela Aparecida de. Função


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(Coord). Direito econômico concorrencial. São Paulo: Saraiva, 2013. –
(Série GVlaw: Direito econômico).
820

MULTINACIONAIS E REGRAS INTERNACIONAIS DE PROPRIEDADE: A


EXPANSÃO TERRITORIAL DOS INVESTIMENTOS E SUA PROTEÇÃO
JURÍDICA.
MULTINATIONALS AND INTERNATIONAL PROPERTY RULES: THE
TERRITORIAL EXPANSION OF INVESTMENTS AND THEIR LEGAL
PROTECTION.

Beatriz Sakuma Narita


Ricardo Begosso

Resumo: Neste trabalho, os autores propõe a realização de uma análise, através


de uma perspectiva histórica, das corporações multinacionais e quais são as
regras internacionais de proteção da propriedade dos investidores estrangeiros,
valendo-se de bibliografia existente sobre o assunto. A importância do tema
reside no fato de que, em um contexto de mundialização do capital e de forças
produtivas, a presença de empresas e corporações estrangeiras nos territórios
de cada país é cada vez mais intensificada. O trabalho será estruturado em dois
capítulos, sendo que o primeiro analisará o conceito de multinacionalidade e a
expansão das grandes corporações e, o segundo, a transformação das regras
internacionais de proteção à propriedade. Após o desenvolvimento do texto, a
conclusão a que os autores chegam é de que para compreender o papel das
multinacionais e seus impactos, não é possível dissociar as suas atividades da
condução dos regimes internacionais de propriedade pelos países mais
desenvolvidos.
Palavras-chave: Multinacionais. Investimentos estrangeiros. Proteção jurídica.

Abstract: In this paper, the authors propose an analysis, through a historical


perspective, of multinational corporations and what are the international rules for
the protection of foreign investors' property, using existing literature on the
subject. The importance of the object lies in the fact that, in a context of
globalization of capital and productive forces, the presence of foreign companies
and corporations in the territories of each country is increasingly intensified. The
work will be structured in two chapters, the first will analyze the concept of
multinationality and the expansion of large corporations and, the second, the
transformation of international rules of property protection. After the development
of the text, the conclusion reached by the authors is that in order to understand
the role of multinationals and their impacts, it is not possible to dissociate their
activities from the conduct of international property regimes by the most
developed countries.
Key-words: Multinationals. Foreign investments. Legal protection.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, os autores propõe a realização de uma análise, através


de uma perspectiva histórica, das corporações multinacionais e quais são as
regras internacionais de proteção da propriedade dos investidores estrangeiros,
valendo-se de bibliografia existente sobre o assunto. A importância do tema
reside no fato de que, em um contexto de mundialização do capital e de forças
produtivas, a presença de empresas e corporações estrangeiras nos territórios
de cada país é cada vez mais intensificada.
821

Nesse sentido, a fim de cumprir com o objetivo do texto, os autores propõe


a divisão deste artigo em duas partes. A primeira visa abordar o conceito de
multinacionalidade e a expansão das grandes corporações. Já a segunda propõe
a análise da bibliografia que aborda a transformação das regras internacionais
de proteção à propriedade.
Levando-se em consideração as análises realizadas no decorrer do
trabalho, a conclusão atingida pelos autores é a de que para compreender o
papel das multinacionais e seus impactos, não é possível dissociar as suas
atividades da condução dos regimes internacionais de propriedade pelos países
mais desenvolvidos1. É típico, afinal, de países confiantes em suas vantagens
tecnológicas, comerciais e políticas, que seus interesses coincidam com uma
ordem econômica mais aberta e que suas empresas não encontrem barreiras de
acesso a mercados externos.

DESENVOLVIMENTO
1. O CONCEITO DE MULTINACIONALIDADE E A EXPANSÃO DAS
GRANDES CORPORAÇÕES

No Brasil há muitos estabelecimentos estampando marcas estrangeiras,


seja em grandes polos, como São Paulo e Rio de Janeiro, como também em
cidades pequenas do interior. No atual estágio de desenvolvimento da
sociedade, as pessoas tem cada vez mais acesso a empresas – ou corporações
– multinacionais ou transnacionais.
Assim, neste trabalho, partindo de elucidações elaboradas por Samuel
Huntington.2, temos que uma organização transnacional é caracterizada pela
expansão de suas operações, enquanto uma organização internacional se
caracteriza pela fragmentação de seu controle entre duas ou mais
nacionalidades, e uma organização multinacional assim é classificada quando
seu staff é composto por indivíduos de mais de um país.
A partir daí decorre uma diferença relevante, por exemplo, entre
organizações internacionais e transnacionais. Se para as organizações
internacionais o desafio é alcançar o maior grau de acordo possível entre grupos
controladores que remetem a interesses nacionais específicos, para as
transnacionais a exigência central é alcançar e garantir o acesso de suas
operações em outras unidades nacionais3.
Contextualizando historicamente, Huntington descreve que o
transnacionalismo é característico da expansão do poder dos Estados Unidos da
América. Afinal, em contraste com a expansão do controle territorial do Império
Britânico, a dominação dos EUA se deu, desde o início, muito mais em
conformidade com o a política de Open Doors. As “portas abertas” buscadas
pelos EUA em países como a China nada mais são do que o princípio da garantia
de acesso às operações dos negócios estadunidenses4.

1 GILPIN, Robert. U.S. Power and the Multinational Corporation: The Political Economy of Foreign
Direct Investment. New York: Basic Books, Inc., 1975, p. 60.
2 HUNTINGTON, Samuel P. Organizações Transnacionais na Política Mundial. In: CARVALHO,

Gilberto (coord.). Multinacionais: os limites da soberania. Rio de Janeiro: FGV/Instituto de


Documentação, 1982, p. 13.
3 Ibid, p. 16.
4 Ibid, p. 24-25.
822

Muito distante da expansão através da conquista, que o Império Britânico


e outros impérios coloniais precedentes praticavam, o acesso das organizações
transnacionais dos EUA a outras unidades nacionais e o poder para nelas operar
esteve diretamente atrelado ao fim do direito de exercer controle político. Atos
formais, com suas manifestações legais, passaram a expressar os termos e as
condições de acesso estipulados entre as organizações e os governos locais5.
Outra grande referência no estudo das grandes empresas que se
expandem mundo afora, a historiadora estadunidense Mira Wilkins discorda da
maior conveniência do termo “transnacional”. Segundo ela, os Estados não são
transcendidos em momento algum pelas empresas que realizam operações
transfronteiriças. Na verdade, a autora favorece o uso do termo “multinacional”,
mas não teme utilizar os três termos (multinacional, transnacional e
internacional) como sinônimos6.
Essa posição pode até apontar para uma larga divergência entre
Huntington e Wilkins sobre o papel do Estado, mas não tanto a respeito da
atividade das empresas analisadas. Se, para o primeiro, são as operações que
caracterizam a transnacionalidade, a compreensão de Wilkins acerca das MNEs
(Multinational Enterprises) indica um sentido semelhante, porém mais
aprofundado.7
Nota-se que ambos evidenciam a relevância das operações das
empresas, ou sobre o modo de operação destas, ao contrário de chamar atenção
meramente aos índices e fluxos de investimento. Para que uma empresa seja
multinacional, segundo Wilkins, ela deve se estender sobre as fronteiras ao
mesmo tempo em que persistem as relações “parentais” com a firma que lhes
serve de centro para as expansões de operações consequentes8.
Após a análise acima, os autores propõe, também, abordar o investimento
estrangeiro direto (IED) expondo resumidamente um conjunto de teorias que
procuram explicar quais são os fatores determinantes dos investimentos além
das fronteiras iniciais em que uma empresa opera, considerando principalmente
o fato de que não só fatores mercadológicos, mas também fatores institucionais
devem ser levados em consideração. Sem a pretensão de esgotar o assunto, as
teorias escolhidas para tratarem do assunto são a da economia neoclássica,
analisando especialmente as obras de Mira Wilkins9 e Michael Porter, da teoria
eclética, através das análises de Robert Gilpin 10 e a teoria do ciclo do produto,
de Raymond Vernon.
Finalizaremos a primeira parte do trabalho com algumas considerações
de Geoffrey Jones sobre os três graves choques enfrentados pela economia
global e que afetaram diretamente os impulsos de multinacionalização e que
desarticularam os componentes necessários para os negócios internacionais.

5 Ibid, p. 27-28.
6 WILKINS, Mira. Multinational Enterprise to 1930: Discontinuities and Continuities. In:
CHANDLER JR., Alfred D.; MAZLISH, Bruce (edited by). Leviathans: multinational corporations
and the new global history. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 45.
7 Ibid, p. 46.
8 Ibid, p. 50.
9 GILPIN, Robert. Global political economy: understanding the international economic order. New

Jersey: Princeton University Press, 2001, p. 279-280.


10 Ibid, p. 284-285.
823

Foram eles: a Grande Depressão dos anos 1930; a Segunda Guerra Mundial; e
a queda da receptividade às multinacionais nos países do Terceiro Mundo11.

2. A TRANSFORMAÇÃO DAS REGRAS INTERNACIONAIS DE


PROTEÇÃO À PROPRIEDADE

Através da reconstrução histórica abordada no primeiro capítulo, é


possível concluir que as multinacionais tiveram um papel muito importante para
a integração da economia mundial, operando em um contexto mais liberal.
Entretanto, conforme Geoffrey Jones, no século XX, especialmente entre as
décadas de 1930 e 1970, há momentos em que tal paradigma de expansão das
multinacionais é contestado.
Como mencionamos, o fenômeno da multinacionalidade possui nos
investimentos o seu veículo de transmissão, mas estes não representam a
totalidade da sua natureza. De qualquer forma, é no âmbito da propriedade que
via de regra se manifesta o locus da atividade da corporação que se expande
internacionalmente. Ao se espalhar através das fronteiras, as empresas o fazem
através da construção (investimentos greenfield) de novas propriedades ou da
aquisição de outras já existentes (investimentos brownfield)12.
Assim, para alcançar os objetivos desta pesquisa, na segunda parte do
trabalho os autores buscam explorar brevemente o regramento jurídico que
permeou a fase supracitada. Para tanto, é abordada a questão da propriedade
privada no direito no contexto da revolução inglesa liberal e, por fim, parte-se
para o direito internacional, a fim de investigar como se deu a proteção à
propriedade privada dos estrangeiros a nível internacional.
As regras jurídicas da propriedade constituem um elemento central do
direito, mas foram estabelecidas antes em âmbito nacional do que internacional.
A evolução do liberalismo, desde a Revolução Inglesa (1642-1660) atesta a
importância dos direitos de propriedade para o fim do feudalismo, adentrando o
nascimento da modernidade da qual derivaria o capitalismo contemporâneo:

O período da Revolução Inglesa, de 1642 a 1660, é, na descrição de


Christopher Hill, uma época de intensa mobilidade e fermentação
intelectual. Parecia haver uma possibilidade real de reestruturar toda a
sociedade inglesa. A Revolução Inglesa, no entanto, não realizou as
grandes esperanças nela depositadas, nem afetou a estrutura social
do país. Como destacou Morgan, a soberania popular na Inglaterra,
muito presente no discurso político-revolucionário, foi limitada na
prática para evitar a “anarquia”, sendo sempre reconduzida ao seu
exercício pela Câmara dos Comuns. O Protetorado de Cromwell
buscou reestabelecer o controle perdido concretizando a revolução

11 JONES, Geoffrey. Multinationals from the 1930s to the 1980s. In: CHANDLER JR., Alfred D.;
MAZLISH, Bruce (edited by). Leviathans: multinational corporations and the new global history.
New York: Cambridge University Press, 2007, p. 84-90.
12 Segundo o economista sul-coreano Ha-joon Chang, o IED, ou em inglês, FDI (Foreign Direct

Investment): “(...) affects the productive capabilities of the company that is receiving it, whether it
is greenfield FDI, that is, a foreign company setting up a new subsidiary (like the Intel subsidiary
in Costa Rica in 1977) or it is brownfield FDI, that is, a foreign company taking over na existing
company (like Daewoo, the Korean carmaker bought by GM in 2002)”. [CHANG, Ha-Joon.
Economics: The User’s Guide. Bloomsbury Press: New York, 2014, p. 308].
824

liberal, mas derrotando as opções de implementação de um sistema


comunal de propriedade (...).13

Excluída a hipótese de propriedade comunal, prevaleceu na Inglaterra o


sistema liberal de propriedade privada individual. Essa digressão histórica
poderia ser dispensável não fosse a Inglaterra o berço do capitalismo e o centro
de sua difusão em nível planetário dois séculos mais tarde, nos anos 1800.
Na esfera do direito internacional, por sua vez, a evolução dos direitos de
propriedade se deu por caminhos distintos. Conforme indica parte da bibliografia
sobre o assunto, não foram as revoluções liberais que impulsionaram a
construção de um regime protetor dos investimentos de estrangeiros, ainda que
o marco fundamental deste possa ser encontrado no mesmo período histórico
da Revolução Inglesa.
Se aquela ocorreu no intervalo entre 1642 e 1660, o primeiro ímpeto
relevante em direção à proteção da propriedade internacional data do ano de
1648 com o Tratado de Vestfália. A Guerra dos Trinta Anos, que assolara a
Europa através de uma carnificina sistêmica envolta em lutas ideológicas e
revoltas rurais e urbanas, foi encerrada por este tratado que estabeleceu as
diretrizes para as relações internacionais subsequentes.
De acordo com Arrighi:

O sistema mundial de governo criado em Vestfália teve também um


objetivo social. À medida que os governantes legitimaram seus
respectivos direitos absolutos de governo sobre territórios mutuamente
excludentes, estabeleceu-se o princípio de que os civis não estavam
comprometidos com as disputas entre os soberanos. A aplicação mais
importante desse princípio deu-se no campo do comércio. Nos tratados
que se seguiram ao Tratado de Vestfália, inseriu-se uma cláusula que
visava restabelecer a liberdade de comércio, abolindo barreiras
comerciais que se haviam desenvolvido no curso da Guerra dos Trinta
Anos. Acordos subsequentes introduziram normas para proteger a
propriedade e o comércio dos não combatentes.14

Portanto, após um conflito social e economicamente devastador no


continente europeu, as propriedades e o comércio de civis não combatentes
passaram a ser protegidos pelo direito internacionalmente reconhecido pelos
soberanos da região.
Quando da metade do século XIX, momento de plena expansão dos
investimentos externos britânicos, os direitos internacionais relativos à
propriedade se encontravam bem estabelecidos e impostos em áreas como a
América Latina e a China. Esses direitos já operavam como modeladores e
facilitadores dos fluxos internacionais do capital15.
A expansão desses direitos, contudo, não ocorreu uniformemente. Devido
às suas especificidades históricas envolvendo principalmente suas relações com
as potências europeias, América Latina16 e Ásia17 apresentaram modelos de

13 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São


Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 105.
14 ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2013, p. 43.


15 LIPSON, Charles. Standing Guard: Protecting Foreign Capital in the Nineteenth and Twentieth

Centuries. Berkley and Los Angeles: University of California Press, 1985, p. 4.


16 Ibid, p. 17.
17 Ibid, p. 14.
825

resistência diferentes. Os autores pretendem, então, ressaltar alguns casos


marcantes como a Doutrina Calvo18, que em fins da década de 1860, inaugurou
uma tentativa precoce de enfrentamento de tais exigências do direito
internacional imposto pelos países exportadores de capital, em particular pelos
britânicos. Também analisaremos pontos marcantes da Constituição Mexicana
de 1917, que estabeleceu a titularidade da Nação sobre a terra mexicana e os
materiais contidos nela, outorgando a transmissão dessa titularidade a
indivíduos mediante a constituição de propriedade privada, por exemplo. 19
Ainda em 1917, também é importante mencionar a experiência soviética,
que causou um abalo no regime internacional de proteção ao patrimônio
estrangeiro. Na ocasião, foi abolida a propriedade privada, nacionalizaram-se os
bancos e transferiu-se a propriedade de todas as fábricas, indústrias de petróleo,
de mineração, para o Estado, sem oferecer qualquer medida de compensação
aos proprietários anteriores. A partir disso decorreu uma série de disputas com
os países exportadores de capital, e os Estados Unidos somente reconheceram
a União Soviética no ano de 1933, dezesseis anos após a revolução 20.
Ato contínuo, os autores abordarão as estratégias norte-americanas após
sua ascensão como potência mundial, que passaram a tentar garantir esses
direitos de propriedade através de seu poderio militar, antagonizando os países
adeptos da Doutrina Calvo. Ressalta-se que no período entreguerras, foram os
EUA os responsáveis por proteger os investimentos externos no hemisfério
ocidental, enquanto em outras localidades essa função coube ao domínio de tipo
colonial21.
Em seguida, os autores pretendem demonstrar o período pós-guerra,
ocasião em que houve a independência de vários Estados e também mais
capacidade dos Estados na economia, desafiando cada vez mais os princípios
liberais.
Além disso, pretende-se demonstrar a transformação das regras
internacionais de proteção à propriedade a partir da década de 1960. Isso
porque, nessa época o equilíbrio de forças passou a pender para o lado dos
países do Terceiro Mundo de forma geral, o que enfraqueceu sensivelmente a
rigidez dos direitos internacionais de propriedade22. Para tanto, procura-se
abordar especialmente as várias tentativas no âmbito da ONU de dar mais
soberania aos países importadores de capital (como a Carta de Direitos e
Deveres Econômicos dos Estados23, por exemplo).
É importante destacar que o último quarto do século XX trouxe uma nova
favorável à consolidação de um regime de direitos internacionais de propriedade
em benefício dos países exportadores de capital. O Banco Mundial jogou um
papel importante criando a Multilateral Investment Guarantee Agency (MIGA).
Entre as variadas funções da agência, encorajar acordos bilaterais entre países
desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como a resolução amigável de

18 LOWENFELD, Andreas. International Economic Law. New York: Orxford University Press,
2008, p. 473.
19 Ibid, p. 472.
20 Ibid, p. 471-470-471.

21 LIPSON, Charles. Standing Guard: Protecting Foreign Capital in the Nineteenth and Twentieth
Centuries. Berkley and Los Angeles: University of California Press, 1985, p. 80-82.
22 Ibid, p. 143.
23 Ibid, p. 89.
826

disputas e a adoção de regimes jurídicos favoráveis aos investimentos


estrangeiros estavam entre os principais24.
Nas décadas subsequentes, mais de mil tratados bilaterais de
investimentos (BITs) foram aprovados, garantindo a segurança dos investidores.
O direito internacional costumeiro, tradicional, que ergue padrões mínimos e
comuns de tratamento da propriedade de investidores externos foi gradualmente
recuperado no âmbito dessas tendências. Acordos regionais, como o NAFTA,
também foram determinantes para a fragmentação da unidade do Terceiro
Mundo e de sua capacidade de contestar o regime internacional vigente25.
Desde os anos 1980, aliás, o crescimento das atividades das corporações
multinacionais impulsionou e foi impulsionado pela liberalização econômica em
ascensão. Em grande parte, a crise das dívidas em países do Terceiro Mundo
durante aquela década foi responsável por enfraquecer a resistência à ajuda
externa, que naturalmente vinha acompanhada de condicionalidades as quais
também operavam contra os sistemas rígidos de controle de capitais existentes.
Apenas nesse momento é que o grau de abertura e integração da economia
global recuperou o patamar anterior ao da Primeira Guerra Mundial

CONCLUSÃO

Após o desenvolvimento das análises supracitadas, é possível concluir


que, atualmente, nos deparamos com os resultados dessas tendências
liberalizantes em prol do investimento estrangeiro. O contexto econômico que
desfrutamos nos dias de hoje decorre largamente da fragmentação dos esforços
de países atrasados, dos quais faz parte o Brasil, no fim do século passado.
Para compreender o papel das multinacionais e seus impactos, não é
possível dissociar as suas atividades da condução dos regimes internacionais
de propriedade pelos países mais desenvolvidos. É típico, afinal, de países
confiantes em suas vantagens tecnológicas, comerciais e políticas, que seus
interesses coincidam com uma ordem econômica mais aberta e que suas
empresas não encontrem barreiras de acesso a mercados externos.

REFERÊNCIAS

ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso


tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013

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York, 2014

GILPIN, Robert. Global political economy: understanding the international


economic order. New Jersey: Princeton University Press, 2001

24 LOWENFELD, Andreas. International Economic Law. New York: Orxford University Press,
2008, p.589.
25 Ibid, p. 591.
827

GILPIN, Robert. U.S. Power and the Multinational Corporation: The Political
Economy of Foreign Direct Investment. New York: Basic Books, Inc., 1975

HUNTINGTON, Samuel P. Organizações Transnacionais na Política Mundial.


In: CARVALHO, Gilberto (coord.). Multinacionais: os limites da soberania. Rio
de Janeiro: FGV/Instituto de Documentação, 1982

JENSEN, Nathan. Nation-States and the Multinational Corporation: a political


economy of foreign direct investment. New Jersey: Princeton University Press,
2006

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JR., Alfred D.; MAZLISH, Bruce (edited by). Leviathans: multinational
corporations and the new global history. New York: Cambridge University
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MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo,


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PICCIOTTO, Sol. Regulating Global Corporate Capitalism. New York:


Cambridge University Press, 2011

WILKINS, Mira. Multinational Enterprise to 1930: Discontinuities and


Continuities. In: CHANDLER JR., Alfred D.; MAZLISH, Bruce (edited by).
Leviathans: multinational corporations and the new global history. New York:
Cambridge University Press, 2007
828

O CONFLITO ENTRE FAKE NEWS E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO


THE CONFLICT BETWEEN FAKE NEWS AND FREEDOM OF SPEECH

Sinay Pires Vargas Filho


Flávia Raquel Dal Monte Barbuto

Resumo: O presente artigo abrange a percepção de diferentes autores a


respeito das fake news, apresentando inovações tecnológicas que causam
reflexos para a sociedade, provocando uma adequação do reordenamento
jurídico. Este trabalho abordará as ferramentas utilizadas para a disseminação
das fake news, como big data, shitstorms e candystorms, e as consequências
que elas podem acarretar. Terá como objetivo observar suas repercussões em
intervenções de liberdade de expressão, acompanhada de uma abordagem
sobre suas afrontas à atual legislação. Este artigo assim o fará, empregando o
método dedutivo, aliado a técnicas de pesquisa bibliográfica, utilizando-se de
estudo de casos reais apresentados e de avaliações sobre artigos jurídicos de
nosso sistema judiciário.
Palavras-chave: Fake News. Inovações tecnológicas. Redes sociais.

Abstract: This article covers the perception of different authors concerning fake
news, presenting technological innovations that cause reflections to the society,
provoking an adaptation of the legal reordering. This work will address the tools
used to disseminate fake news, such as big data, shitstorms and candystorms,
and the consequences that they can bring. It will aim to observe its repercussions
in interventions of freedom of expression, accompanied by an approach to its
affronts to the current legislation. This article will do it using the deductive method,
combined with techniques of bibliographic research, using the study of real cases
presented and evaluations on legal articles of our judicial system.
Keywords: Fake news. Technology innovations. Social networks.

1. INTRODUÇÃO

A internet e outros meios de comunicação têm sido utilizados a cada dia


com maior intensidade, para a proliferação de informações falsas, quer seja com
a veiculação de notícias, como de imagens montadas com o intuito de induzir
pessoas ao erro (IBGE, 2017). A velocidade de propagação do conhecimento
pelos diferentes equipamentos de comunicação, assim como as postagens,
tomam dimensões que fogem do controle, quando combinada e/ou associadas
a outra ferramenta tecnológica digitais, big data (banco de dados) (SILVEIRA et
al., 2015), utilizado para produção de fake news (notícias comprovadamente
falsas), segundo Allcott e Gentzkow (2017), shitstorms (reações verbais
difamatórias ou tempestades de reações negativas) (DUDEN, 2018) ou
candystorms (onda de popularidade e simpatia nas redes sociais) (MARKETING,
2016), além de outros como: “montagem, sobreposição ou supressão de
imagens” (OIKAWA et al., 2016), utilizadas com a finalidade enganar pessoas.
Segundo a UNESCO (2019), as fake news são campanhas de
desinformação, que podem causar reflexos irreversíveis na vida da sociedade,
afetando processos eleitorais, interferindo em campanhas de vacinação e
fomentando atos de violência, assim como disseminando ódio e o preconceito,
829

sabotando princípios básicos preconizados por diferentes sistemas políticos,


permitindo a violação de direitos das minorias. Sendo assim, é possível limitar
as fake news sem afetar as liberdades de expressão?
O objetivo deste trabalho foi conhecer o que tem se pesquisado por fake
news e seus reflexos jurídicos nos últimos cinco anos no Brasil, levando-se em
conta os mecanismos para coibir as fake news e seu impacto no direito de
liberdade de expressão na área política. Para o estudo, optou-se pela utilização
do método dedutivo, aliado a técnica de pesquisa bibliográfica, a busca ocorreu,
exclusivamente, na base Scielo.org, a estratégia utilizada foi a busca da palavra-
chave fake news, os critérios de inclusão foram artigos em português, inglês e
espanhol relacionados com o tema contribuíssem de forma relevante sobre o
tema no Brasil, publicados entre o ano 2014 e 2019.

2. DESENVOLVIMENTO

Caroline Delmazo e Jonas C.L. Valente (2018), através de uma


colaboração Brasil/Portugal, elaboraram esse artigo para demonstrar a facilidade
em que a propagação de fake news pode ocorrer, elencando a forma em que
estas espalham-se pelas diversas plataformas, e mapeando as principais
reações encontradas por estes, ao que, os autores elegeram chamar de
“problemas das notícias falsas.”
O texto retrata a importância da utilização da clickbait, vulgarmente
conhecido como “caça-clique”, que como uma isca para atrair a atenção de
determinado assunto, provoca uma grande disseminação da informação, pelo
teor de seu título chamativo, fazendo com que o usuário leia aquela publicação,
que não necessariamente é verídica, mas, por seu teor sensacionalista acaba,
com um clique repassando a notícia.
Os autores conceituam as fake news, com base na definição de Darnton:
“São notícias falsas, histórias fabricadas, boatos, manchetes que são isco de
cliques, relembra o surgimento dos pasquins, na Itália do século XVI, que se
transformaram em um meio para difundir notícias desagradáveis, em sua maioria
falsas, sobre personagens públicos.”
Evoluem com o estudo que trata do surgimento das notícias falsas em
contexto histórico, mas que, passou por uma mudança muito grande, pois
mesmo que no passado tenha tido um peso significativo, com as redes sociais e
a discriminação de notícias falsas feitas em massa, o nível de desinformação
atinge patamares assustadores. Apresentam de forma sintética a série de
reações que tais notícias causam e como afetam profundamente os sistemas
políticos, como pode ser visto nas últimas eleições americanas.
Apontam ainda, dois casos emblemáticos de como as fake news são
aplicadas, como: o caso da Macedónia e Pizzagate, ambos casos relevantes que
ocorreram nas eleições americana. Não obstante, mostram como algumas redes
sociais tentam diminuir os impactos dentro de suas plataformas, principalmente
pelo meio de cortes financeiros dessas redes e a desarticulação das páginas que
divulgam fake news, além de fazer uma observação apontando que existe o
interesse dos Governos em eliminar esse tipo de notícias, apesar de ser uma
tarefa extremamente delicada por definir o que deve ser mantido e o que deve
ser retirado, para que não haja nenhum tipo de desrespeito à liberdade de
expressão.
830

Há de se observar neste artigo, que a todo momento eles deixam claro


que no passado já havia dificuldade em combater tais notícias, mas na
atualidade, por se tratar de um tema impactante para várias esferas e que deve
ser tratado com muita atenção para que não interfira em forma alguma nos
direitos de liberdade de expressão da população, como veremos mais a frente,
é ainda muito difícil e muito sensível observar os seus fenômenos, o que fazem
trabalhos como estes serem ainda mais relevantes, como veremos no decorrer
da explanação sobre o estudo do caso no Twitter.
A característica de uma fake news é repassar notícias falsas com um
grande interesse em atingir públicos específicos. Antigamente o meio utilizado
eram os jornais, já nos tempos atuais, a melhor forma possível para que esse
grande público seja atingido é via redes sociais, estas, são utilizadas como
veículo para o fomento das fakes news, pois, através de aplicativos como
Facebook, Twitter, Instagram, WhatsApp, entre outros, as informações são
passadas sem qualquer tipo de fonte originária.
A partir do estudo do artigo “Cascatas de Fake News Políticas: um estudo
de caso no Twitter”, foram apuradas diferentes notícias de cunho político, por
meio de um método de coleta de dados automatizados, análise de redes e uma
análise qualitativa de fake news, em que jornais publicavam manchetes
polêmicas que invertiam totalmente os acontecimentos reais, induzindo o leitor
a confiar nas informações, fazendo com que compartilhassem essas inverdades
com sua gama seguidores.
A capacidade de influência que uma pessoa carrega em suas redes é um
grande fator para a propagação da desinformação, criando uma corrente de
seguidores que serão sempre influenciadas pelo mesmo tipo de notícia, como
neste caso, a opinião política. Características como a homofilia no conteúdo da
informação, fazem com que os seguidores sejam enganados e continuem
difundindo a informação
Muito mais do que um texto de sátira ou boatos de boca a boca, muitas
fake news são construídas com o intuito de enganar e mudar opiniões, sendo
mascaradas como uma notícia realista numa narrativa jornalística, por isso hoje
o cuidado deve ser redobrado ao se espalhar esse tipo de informação, sem uma
fonte confiável.
Por fim, passamos à análise do terceiro trabalho, que apresenta um foco
quase que absoluto em apresentar o que seriam os conceitos de big-data, fake
news e shitstorms, e demonstrar quais iniciativas que os três poderes
(Legislativo, Executivo e Judiciário) estão, ou deveriam estar, obrigados a
realizar a fim de coibir tais práticas.
Essas necessidades tornaram-se emblemáticas após as chamadas fake
news demonstrarem um impacto direto nas eleições de diversos países, como
aquela que elegeu Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos e mais
recentemente, a forte campanha de desinformação e fake news que levaram Jair
Messias Bolsonaro ao cargo maior Brasileiro.
Em meio às novas tecnologias, foram abordados os principais fenômenos
utilizados na disseminação das fake news na atualidade, iniciando pelo big data,
onde são apontadas duas teorias divergentes, a primeira é de caráter técnico e
apresenta um banco de dados com uma enorme capacidade de armazenamento
digital, alimentados por quantidades igualmente massivas de dados (SILVEIRA
et al., 2015). Além da sua grande capacidade de armazenamento, o big data é
caracterizada por cinco qualidades específicas (DEMCHENKO et al., 2013),
831

como: velocidade, volume, veracidade, variedade e valor, que são utilizados para
potencializar seus efeitos. A segunda teoria, baseia-se em uma análise mais
teórica, tratando de causas e consequências filosóficas, sociológicas e
econômicas, partindo de um aspecto social, e enveredando por mudanças de
paradigmas a de caráter mundial (VAN DIJCK, 2018).
Nem sempre as informações possuem a participação seletiva da
sociedade, podendo gerar consequências que nem sempre seriam aceitáveis.
As informações ficam disponibilizadas pelo usuário e através de meios de
captação, são armazenadas em banco de dados, onde a partir de uma análise,
muitas vezes são utilizados com fins comerciais, políticos e sociais para que
consigam de alguma forma influenciar em decisões (VAIDHYANATHAN, 2011).
É importante destacar que até 2018, apenas 14 Estados brasileiros tinham
delegacias especializadas em crimes “cibernéticos” (CRIMES NA WEB, 2018).
Não obstante, há uma grande tendência ao aumento de crimes a partir da
internet, e pouca eficácia no combate, pois quase não há órgãos estatais
especializados neste tipo de crime. Em 2017, o Brasil foi considerado o segundo
país com maior prejuízo financeiro de crimes “cibernéticos” (DFNDR, 2018).
A criação do Marco Civil da internet, não se mostrou tão eficaz nas
eleições de 2018 para inibir as questões abrangendo o big data, uma vez que a
legislação atual permite que o uso de dados sejam utilizados a partir da
concordância do usuário ao se cadastrar e concordar com os termos
preconizados na plataforma digital, amparado pelo no art. 7, Incisos I e VII do
Marco Civil da Internet, Lei 12.965/14, que trata dos direitos assegurados ao
cidadão no exercício de sua cidadania.
Embora o big data tenha sido criado com propósitos econômicos, essa
finalidade inicial tem sido desvirtuada, pois estas informações têm sido utilizadas
em diferentes áreas, onde a partir de suas informações, vem sofrendo
modificações que podem vir a violar certos direitos constitucionais à intimidade
(art. 5, inciso X, da CF), tendo em vista que a tentativa de conferir a veracidade
das informações podem implicar neste tipo de violação.
Demonstra que é possível traçar o perfil sem que este tenha acessado
qualquer tipo de publicação, apenas com base em seu comportamento online a
partir das curtidas em publicações que são disponibilizadas com o intuito de
identificar os interesses individuais. O usuário, acaba permitindo que seus dados
sejam acessados, mesmo sem ter o conhecimento que estão fazendo parte de
uma amostra de coleta de informações, fato é que essas informações acabam
sendo utilizadas numa estratégia de distribuição para influenciar um público alvo.
Com base no que o usuário está reagindo, são elaboradas estratégias que visam
o convencimento sobre determinado assunto, para difundir notícias falsas.
Com o advento do big data os acessos às redes sociais e os diferentes
aplicativos encobrem a aplicação de recursos financeiros, dificultando o controle
por parte da justiça eleitoral frente a esse fenômeno, pela falta de instrumentos
jurídicos, que possam controlar os efeitos desses processos, assim como existe
uma dificuldade de mensurar o poder econômico que movimenta a esse banco
de dados do big data, o que antes poderia ser facilmente detectado como abuso
de poder econômico como, comitês de alto custo de manutenção, espaços na
televisão, contratação de campanhas de marketing, etc., agora são facilmente
mascarados.
Os fenômenos candystorm e shitstorm possuem uma característica em
comum, que é a intenção de causar determinado efeito, através de emoções,
832

com a diferença que a shitstorm seja utilizada de forma violenta, tendo o conceito
de uma “tempestade de indignação em um meio de comunicação da internet”
(CALDAS, 2019), utilizando-se o fenômeno para difamar e insultar pessoas e
instituições. Já a candystorm é utilizada para exaltar e elogiar algo ou alguém,
fazendo com que o usuário interaja com aquela informação ou fato de maneira
positiva.
É importante não confundir o significado de notícias falsas não
intencionais com fake news, que são intencionalmente produzidas para enganar
o público de diferentes maneiras, com intenção de criar um ambiente de
desarmonia entre pessoas e grupos.
Existem três fatores que dificultam restringir a propagação das fake news,
que são: a dificuldade de identificá-las, tendo em vista que são acompanhadas
de diferentes subterfúgios para ocultar partes da notícia; a dificuldade de
identificar a fonte geradora da informação e a dificuldade de descobrir os meios
pelas quais as notícias são replicadas nas redes sociais (Facebook, Twitter,
Instagram), muitas vezes iniciadas pelo aplicativo WhatsApp, que possui um
sistema de mensagens criptografados que dificultam a identificação da origem
da fake news.
Um ponto em comum, é a dificuldade no combate e o quão perigosas para
a democracia é a disseminação das fake news, onde mesmo com o empenho
dos representantes das redes sociais em criar medidas para inibir tais práticas,
ainda acabam sendo hipossuficientes, uma vez que os usuários autorizam o uso
de seus dados logo que fazem seu cadastro nas redes, logo, esses usuários que
não possuem a consciência de que estão sendo manipulados, e acabam sendo
induzidas ao erro, tornando-se replicadores das fake news.

3. CONCLUSÃO

Como foi visto, todos artigos apontados, de uma forma ou de outra


demonstraram que as fake news produzem em diferentes áreas, o que dificulta
ainda mais a elaboração de uma forma de combatê-las. Foi evidenciado o peso
que estas possuem nas camadas sociais, por mostrarem-se formadoras de
opinião, podendo influenciar massas desinformadas ou indecisas;
Pode-se constatar pela abordagem dos autores que enriquecem este
artigo, de forma resumida, existem inúmeras ferramentas sendo utilizadas nas
redes sociais, para atingir grupos diversos de pessoas, com informações de
cunho intencionalmente falsos, que são compartilhadas quase que por reflexo,
sem prévia analise ou critério, acelerando a propagação dessas notícias.
Entretanto, tudo que tem sido feito para conter essa avalanche de fake news é
insuficiente , não só pela velocidade com que estas são replicadas como pela
dificuldade de verificação da veracidade do que está sendo veiculado, além de
que, na grande maioria das vezes, é praticamente impossível se chegar ao autor
que deu origem ao fato.
Isto posto, chegamos a um impasse pois, como impedir que notícias falsas
sejam disseminadas, se ainda não existem mecanismos de controle automáticos
para detectar e excluir tais informações, sem cercear ou censurar o Direito de
Expressão do cidadão. Eis a questão, pois tudo que vem sendo criado com esse
fim, rapidamente se torna obsoleto , porque surgem constantemente inovações
nas redes sociais que, com um simples aceite do usuário, passa a ter um caráter
de permissão e qualquer interferência para evitar ou conter essa nova forma de
833

propagação de fake news pode ser vista com uma outra maneira de limitar o
Direito de Expressão.
Os governos também encontram dificuldade em combatê-las por
encontrar insuficientes ferramentas no âmbito jurídico para tal, pois, se trata de
uma linha muito tênue entre o combate a notícias falsas e atentar contra os
direitos personalíssimos, como a liberdade de expressão. Por conta deste, a
iniciativa privada tem cada dia sido mais utilizada para tentar dar um resultado
na verdadeira enchente de notícias que são plantadas desde que este fenômeno
se iniciou, mesmo assim, a questão formulada, não fica totalmente respondida,
carecendo da elaboração e aprofundamento do tema, que deve ser
desenvolvidos com a participação dos responsáveis pelas redes sociais,
governos e usuários, ou seja a sociedade como um todo.
Tirou-se portanto desta conclusão, que por óbvio as fake news são
extremamente prejudiciais para todas categorias que constituem uma
democracia, concluindo o que todos artigos ressaltaram em comum, se não
combatidas com seriedade e regularidade estas constituem uma afronta ao
sistema democrático de Governos e mais ainda a liberdade de cada um de tomar
suas decisões pautadas em informações verídicas e não em fake news.

REFERÊNCIAS

CALDAS, Camilo Onoda Luiz; CALDAS, Pedro Neris Luiz. Estado, democracia
e tecnologia: conflitos políticos e vulnerabilidade no contexto do big-data, das
fake news e das shitstorms. Perspect. ciênc. inf., Belo Horizonte, v. 24, n.
2, p. 196-220, June 2019. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
99362019000200196&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 16 out. 2019.

DELMAZO, Caroline; VALENTE, Jonas C.L. Fake news nas redes sociais
online: propagação e reações à desinformação em busca de cliques. Media &
Jornalismo, Lisboa, v. 18, n. 32, p. 155-169, abr. 2018. Disponível em:
<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-
54622018000100012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 17 out. 2019.

FERREIRA, ALEXANDRE et al. Counteracting the contemporaneous


proliferation of digital forgeries and fake news. An. Acad. Bras. Ciênc., Rio de
Janeiro, v. 91, supl. 1, e20180149, 2019. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0001-
37652019000200902&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 16 out. 2019.

RECUERO, Raquel; GRUZD, Anatoliy. Cascatas de Fake News Políticas: um


estudo de caso no Twitter. Galáxia (São Paulo), São Paulo, n. 41, p. 31-47,
ago. 2019. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-
25532019000200031&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 16 out. 2019.
834

O DIREITO TRANSINDIVIDUAL A SUSTENTABILIDADE NO MEIO


AMBIENTE CIBERNÉTICO
TRANSIVIVAL LAW SUSTAINABILITY IN THE CYBER
ENVIRONMENT

Helíssia Coimbra de Souza

Resumo: O meio ambiente cibernético vem sendo reconhecido como um novo


prisma a ser juridicamente tutelado, envolvendo as bases éticas e morais já
consolidadas quanto ao meio ambiente ecológico para a realidade virtual. A
cidadania disruptiva das redes promove impactos no âmbito jurídico que
desafiam a modernização e flexibilização dos ordenamentos jurídicos, sendo a
sociedade dos dados compreendida como participante ativa dos processos
existentes, transpondo de receptores passivos e coniventes com os firmamentos
para cidadãos de um universo virtual em constante expansão, agregando
temáticas não viabilizadas pelas mídias tradicionais, realizando movimentos
interacionistas com resultados expressivos, buscando somar esforços para
conexões prósperas e sustentáveis no meio ambiente digital.
Palavras-chave: Direito. Sustentabilidade. Cibernético.

Abstract: The cyber environment has been recognized as a new prism to be


legally protected, involving as ethical and moral bases already consolidated as
the ecological environment for a virtual reality. Disruptive citizenship of networks
promotes legal impacts that challenge the modernization and flexibility of legal
systems, being a data society understood as an active participant in current
processes, transposing passive and conniving recipients with firms into a
constantly expanding virtual universe, aggregating themes not made possible by
traditional media, performing interactionist movements with expressive results,
seeking to add configurations for prosperous and sustainable connections in the
digital environment.
Keywords: Right. Sustainability. Cybernetic.

INTRODUÇÃO

O gerenciamento das relações humanas era cirúrgico e funcional as


necessidades apresentadas pelas pequenas comunidades rurais, contudo, o
íntimo palpitante pela evolução iniciou o processo urbanização, transpondo para
dinâmicas transnacionais, até o atingimento do ápice informacional com a
estruturação da internet baseada nos dados (web semântica). Na era
contemporânea temos o desafio de compreender e auxiliar na tutela do meio
ambiente cibernético enquanto bem jurídico plural em constante expansão,
educando as gerações que já nascem estimuladas para a conectividade,
mediando os espaços disponíveis para navegação e compartilhamento de
conteúdo, bem como, havendo necessidade frente aos ilícitos verificados,
aplicando sanções correspondentes para inibir outras práticas que
desestabilizem o equilíbrio do meio ambiente virtual para as presentes e futuras
gerações.
Desse modo, as bases éticas e morais já reconhecidas na coexistência
física são elevadas para as mídias digitais, ressalvadas as particularidades na
interação informática que ensejam visão inovadora e escalável dos juristas
835

quanto a elaboração de princípios e diretrizes correspondentes aos anseios dos


cidadãos digitais.

OBJETO

O presente artigo tem o propósito de abordar com análise sistêmica e


reflexiva o desenvolvimento do meio ambiente virtual, sendo este considerado o
mais novo prisma no que tange as tutelas jurídicas, e para organização
explicativa quanto aos espaços e formas de interação cibernéticas, ter-se-á uma
linha evolutiva da sua arquitetura inicial até a sociedade dos dados.

PROBLEMÁTICA

A internet de 1980 que fora concebida com a finalidade de reunir


comunidades globais em sincronia, proporcionando uma nova visão de como
organizar páginas e documentos, promover acesso democrático e funcional as
informações, transpôs na virada do milênio para o modelo de uma grande rede
social, mais profunda e sutil de analisar, sendo essa construção centrada em
portais elaborados com dinamismo para múltiplos usos, de simples
entretenimento até as navegações complexas que visam formação acadêmica e
atuação profissional.
Na atualidade, entre o decênio 2010 a 2020, fora alcançada a web
semântica, também conhecida como a terceira onda da internet segundo Pollock
(2010, p. 10), que “traz como grande questão problema as formas de
organização para concretizar o ciclo informacional” que perpassa pela inserção,
coleta, tratamento e exclusão, quando não mais necessário, dos conteúdos
disponíveis, objetivando garantir o fim sustentável de compreensão das
máquinas, semântica das redes e inclusão de novos usuários.

REFERENCIAL

As exposições ainda tímidas no tocante ao meio ambiente cibernético,


precisamente quanto a sustentabilidade das dinâmicas estabelecidas em rede,
motivam a elaboração deste resumo que aclara o firmamento da inclusão digital
enquanto direito humano pela Organização das Nações Unidas, assim como o
estabelecimento de diretrizes que positivam a responsabilidade coletiva pelo
desenvolvimento de uma internet segura e resiliente. No cenário brasileiro
motivado pelo Marco Civil, lei nº 12.965 de 2014, fora estabelecido o sistema de
governança de rede, sendo o Comitê Gestor da Internet responsável pelas
políticas que abarcam os interesses públicos e privados dos cidadãos digitais,
tendo em sua composição membros dos principais setores alinhados com a
administração efetiva e potencial uso da rede para os fins comuns.
Desse modo, o direito transindividual a sustentabilidade no meio ambiente
cibernético que motiva a presente pesquisa precisa ser analisado e integrado as
legislações de forma multidisciplinar, sendo verificado por Leite; Lemos (2014, p.
193) que “o modelo disruptivo da internet ainda não compreendido pelas
autoridades responsáveis para uma regulação da sociedade informacional traz
sérios efeitos colaterais, agravando a vulnerabilidade em rede e as chances de
guerra virtual.”
836

O exercício da referenda cidadania digital requer soma de esforços, não


para coibir os ideais de liberdade e partilha com que a internet fora concebida,
mas para garantir que cada usuário saiba o momento de romper suas
hostilidades em prol da benquerença, e assim, como já firmado pela Carta
Magna no art. 225 que estabelece a ordem para o meio ambiente natural, o
ciberespaço igualmente tenha enquadramentos inovadores, garantindo a
concretização das pilhas de protocolo TCP/IP, viabilizadoras de uma melhor
comunicação entre computadores e usuários em rede. Ademais, tem-se que o
referendado direito ao meio ambiente cibernético equilibrado, para ser tutelado
de forma correspondente as dinâmicas encontradas nos seus espaços de
conexão, requer embasamentos técnicos e legais que concretizem de forma
propositiva a cultura da big data, sendo melhor aclarada nesta pesquisa através
do desenvolvimento da visão sistêmica e contemporânea proposta pelo
dataísmo de Harari (2016, p. 392), qual seja, “a valoração de cada organismo
humano pelos dados gerais e sensíveis apresentados.”

HIPÓTESES/CONCLUSÃO

Por todo exposto acima, tem-se como objetivo de o presente trabalho


fazer uma análise incisiva: a) quanto a fundamental importância de um meio
ambiente ecologicamente equilibrado, elevando as bases da Constituição
Federal de 1988 para a cultura cibernética; b) verificando as formas de inclusão
e permanência dos usuários, de modo a garantir a sustentabilidade destes
ecossistemas cibernéticos para as presentes e futuras gerações; c) através dos
princípios e diretrizes estabelecidos pela lei, nº 12.965 de 2014, sendo o Marco
Civil da Internet considerado a constituição que norteia os processos
informáticos; d) por meio da estruturação de uma linha evolutiva, desde o
surgimento da internet em 1980, passando pelo milênio que fomenta as redes
sociais, até o decênio 2010 a 2020 que constitui a web 3.0 ou web semântica; e)
compreendendo o ápice da cultura cibernética centrada no big data, sendo a
valoração dos dados expostas de forma a ampliar o modelo filosófico do
dataísmo; f) reafirmando as bases de governança que permeiam a coexistência
física para os espaços de conexão virtual, demonstrando o entendimento global
da Organização das Nações Unidas quanto a inclusão e desenvolvimento
colaborativo do meio ambiente cibernético, sendo este um direito humano
fundamental que deve ser facilitado por políticas públicas inovadoras e
multidisciplinares.

PASSO-A-PASSO DO ARGUMENTO

O alicerce da conclusão expõe de modo reflexivo e ponderado a temática


do direito transindividual a sustentabilidade no meio ambiente cibernético,
firmando os seguintes pontos centrais: a) a sociedade, historicamente,
transforma-se muito mais rápido que o direito, sendo papel dos juristas criar
bases norteadoras, não podendo ser exigido um alcance integral de todas as
demandas; b) o direito transindividual de acesso à internet requer um modelo de
políticas públicas centrada na governança administrativa conectada; c) pontuado
pelo Marco Civil em seu artigo 2º, a colaboração é um dos fundamentos para a
sustentabilidade dos espaços e relações que ocorrem dentro desses meio,
assim, é dever de cada usuário romper suas posições individualizadas em prol
837

de bens comuns; d) a internet tem sua cultura contemporânea centrada no


gerenciamento da big data, sendo de fundamental importância a compreensão
dos dados enquanto garantidores da singularidade de cada usuário; e) a ótica
dataísta, para além da cultura de processamento dos dados que circula na
grande rede, firma a importância das práticas que visam o futuro do meio
ambiente online, sendo o bem-estar digital reafirmado pela negativa mútua,
autoridades e cidadãos, de condutas dos usuários arrogantes que tentam
desequilibrar a harmonia cibernética.

REFERÊNCIAS

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, de 05.10.1988.


Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.

MARCO CIVIL DA INTERNET, de 23.04.2014. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>.

HARARI, Yuval. Homo deus. 15ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

LEITE, George; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet. 1ª ed. São Paulo:
Atlas, 2014.

POLLOCK, Jeffrey. Web semântica para leigos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Alta
Books, 2010.
838

O ETNOCÍDIO INDÍGENA NA FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO:


CONSEQUÊNCIAS LEGISLATIVAS CONTEMPORÂNEAS
INDIGENOUS ETHNOCIDE IN FORMATION PROCESS OF BRAZILIAN
STATE: PRESENT-DAY LEGAL EFFECTS

Wendell Pereira Barreto Garcez


Yasmim Rodrigues Thury

Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo discutir e analisar, sob a luz de uma
perspectiva pluralista, a construção de processos de extermínio e sua relação
com o olhar para o “outro” indígena. Desse modo, o etnocídio alicerçado na
subalternidade e exploração indígena, gera uma vulnerabilidade
multidimensional caracteriza-se principalmente pelo fato de não terem
assegurados direitos básicos que permitam manter seus modos e costumes
sociais mais elementares. Assim como as consequências atuais de uma política
integralizadora constatada no Estatuto do índio de 1973 e nos avanços ainda
insuficientes da Constituição de 1988, que baseado no eurocentrismo e no
colonialismo que formam o Estado brasileiro, propagam uma uniformização
cultural, representando apenas uma nova faceta de um etnocídio.
Palavras-chave: Etnocídio. Política Integralizadora. Processo Colonizador.

Abstract: This research has as an objective to discuss and analyze, in the light
of a pluralistic perspective, the construction of extermination processes and their
relation with the look to the “other” indigenous. Furtherly, the ethnocide
maintained by indigenous subordination and exploitation, generates a
multidimensional vulnerability characterized mainly by the fact that they have not
guaranteed basic rights that allow them to maintain their most basic social
manners and customs. As well, as the current consequences of an integralyzed
policies found in the indigenous state of 1973 and in the still insufficient advances
in the Constitution of 1988, which based in eurocentrism and colonialism that
forms the brazilian state, spreading a cultural standardization , representing just
a new face of an ethnocide.
Keywords: Ethnocide. Assimilation Policy. Settlement Process.

INTRODUÇÃO

Inicialmente afirma-se que este ensaio pode parecer um tanto “agressivo”


ou “hostil”, por vezes, “radical”, àqueles que não estão familiarizados com a
realidade indígena brasileira, ou ainda não estão acostumado às misérias e
sinistros que envolvem a luta por emancipação democrática de grupos sociais
minoritários vulneráveis. Este ensaio destina-se a apresentar aos ouvintes uma
perspectiva nortista das consequências de um processo de etnocídio em
desfavor da população indígena, procedimento etnocida institucionalizado e
perpetuado desde o início da formação do Estado brasileiro, sendo inclusive
tema de amplo debate quando colocado em conflito com o caráter democrático
apresentado pela Constituição de 1988, que, ao final, recepcionou o Estatuto do
Índio de 1973, assim, por consequência, recepcionando não apenas sua política
integralizadora, o que comentamos ser apenas um nome bonito para o processo
de morte de uma cultura, agora ainda mais institucionalizado, não apenas em
matéria, mas formalizado sob uma nova máscara “integralizadora, mas também
839

recepcionando termos pejorativos como por exemplo a redação que se refere


aos cidadãos indígenas como “silvícolas”, ou seja, selvagens, uma tentativa de
desqualificação daquele indivíduo como cidadão, transformando-o em um
selvagem. Para tanto, explorar-se-á na pesquisa os textos de Pierre Clastres e
Antonio Carlos Wolkmer, e, por meio da Metodologia Empírico-dialética conflitar-
se-á a realidade com a norma jurídica a fim de percebermos como esta se
apresenta em vezes conflitante, principalmente quando observarmos os ideais
democráticos previstos na Constituição Cidadã e como ao mesmo tempo ela
recepcionou uma legislação deveras retrógrada. Por fim, afirma-se que este
ensaio é uma perspectiva de acadêmicos do norte do país, não refletindo, assim,
oficialmente nenhum movimento indígena.

ETNOCÍDIO E A EXCLUSÃO DO OUTRO INDÍGENA

Eventualmente, ao acendermos as chamas do debate quanto à formação


do Estado brasileiro e como este promoveu, entre todas suas fases: colônia,
reinado, império, república oligárquica, ditadura e atualmente república
supostamente democrática, políticas públicas de extermínio indígena, diversas
bandeiras ideológicas são levantadas. Não será posto em debate nos tópicos a
seguir a ideia de um revisionismo histórico que possibilite apagar os horrores
realizados pela sangrenta formação deste país, mas sim, a partir do
reconhecimento dos erros cometidos no passado, planejar críticas ao atual
momento para uma possibilidade de mudança futura. Entre algumas das
bandeiras ideológicas citadas acima, por algum tempo houve a discussão se o
tipo de violência propagada contra os grupos indígenas no Brasil, e América
Latina, tratava-se apenas de genocídio ou algo a mais; diga-se de passagem,
um questionamento pertinente não apenas ao processo de extermínio indígena
no Brasil mas à perseguições aos grupos sociais minoritário vulneráveis, num
sentido genérico, em todo um âmbito ocidental, dito restrito assim, por este
âmbito exercer maior influência acadêmica em nossos estudos, havendo,
infelizmente uma dificuldade de um diálogo ocidente-oriente, apesar de ainda
haver algum.
Portanto, é necessário que seja realizada a caracterização e diferenciação
entre o conceito de genocídio e, principalmente, de etnocídio, este último termo
que ilustra o título desta pesquisa e possui um forte papel na denúncia de
violações de direitos e garantias individuais e coletivas.
Em 1946, em Nuremberg, foi criado o conceito jurídico de genocídio, pela
primeira vez em nossa história houve um julgamento onde indivíduos fossem
responsabilizados criminalmente por este tipo de ato, reservando-se aqui dos
debates acerca da instauração de um tribunal de exceção. Referimo-nos aqui ao
extermínio sistemático dos judeus europeus pelos alemães nazistas; apesar não
se tratar do primeiro processo de extermínio na história humana. O primeiro
conceito jurídico de genocídio, portanto, foi relacionado ao crime de racismo,
nele teve sua origem, portanto é seu produto. Pierre Clastres comenta em seu
livro “Arqueologia da Violência” como o período pós-segunda guerra mundial
proporcionou políticas coloniais de extermínio em países de “Terceiro Mundo”
muito semelhantes àquela julgada em Nuremberg, entretanto, diferentemente,
houve indiferença quanto à comoção mundial1.

1 Pierre Clastres, Arqueologia da Violência, 2004, p. 55.


840

Clastres é incisivo em seu livro ao afirmar que apesar da comoção


mundial, e, adicionamos conveniente sentimento de culpa sob o qual a europa
propagou uma Democracia Liberal, relacionada aos horrores do holocausto,
potências européias já realizavam este tipo de atitude contra “povos inferiores”
do continente americano. Desde 1492, houve uma “máquina de destruição de
índios”2 no processo colonizador da América. Entretanto, é perceptível que
existe uma certa hierarquia quanto aos extermínios em massa de populações,
verdadeiramente, algum fato que diferencia as atitudes contra um povo daquelas
contra outro povo. Por que tanta comoção quanto aos campos de concentração
nazista e nenhum quanto aos séculos de extermínio indígena?
A primeira resposta a esta pergunta parece um tanto óbvia: Não há aos
olhos daqueles que detêm o poder a semelhança quanto aos indivíduos
diferentes desses dois povos, infelizmente para aqueles que ordenam, alguns
são mais humanos que outros. Por outro lado, críticos desta resposta podem ser
afirmar que houve, por meio, digamos, da ideia de um processo racionalização
weberiano, algum desenvolvimento quanto à percepção das garantias
individuais e coletivas propagadas pelos direito humanos, e que está melhor
percepção apenas surgiria no período pós-segunda guerra. Aparentemente, um
contra-argumento interessante, mas ainda não explicaria a falta de comoção
quanto aos genocídios realizados após o julgamento de Nuremberg, muito
menos o permanente genocídio indígena na América Latina, constantemente
denunciado e da mesma forma ignorado.
Assim, percebemos haver um fator em comum quando analisamos estes
processos de extermínios ignorados: todos encontram-se realizados em países
considerado “inferiores” em quaisquer das classificações hierárquicas mundiais
apresentadas, por exemplo, o Brasil, ou países da América Latina, outrora fomos
países de segundo mundo, enquanto outros eram terceiro, muito antes éramos
do grupo dos países “abaixo” da linha do equador, países do sul, outra vez fomos
um país subdesenvolvido ou “em desenvolvimento” (em referência à estes
“países-modelo”), atualmente somos um país emergente? Ou futuro país
“neocolonizado”? Quem sabe? Talvez a resposta se encontre em alguma pasta
de conveniências dos Governos dominantes mundiais.
No entanto, apesar de concorrentes, nenhum destes fatores institui
definitivamente esta diferença. Clastres atribuí aos estudos etnológicos na
América, principalmente a experiência americana de Robert Jaulin, a formulação
do conceito de etnocídio com base nas seguintes diferenças3:

[..] É primeiramente à realidade indígena da América do Sul que se


refere essa idéia. Dispomos aí, portanto, de um terreno favorável, se é
possível dizer, à pesquisa da distinção entre genocídio e etnocídio, já
que as últimas populações indígenas do continente são
simultaneamente vítimas desses dois tipos de criminalidade. Se o
termo genocídio remete à idéia de "raça" e à vontade de extermínio de
uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição
física dos homens (caso em que se permaneceria na situação
genocida), mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio, portanto,
é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos
diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em suma, o

2 Op. cit., p. 56.


3 Ibid.
841

genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em


seu espírito. Em ambos os casos, trata-se sempre da morte, mas de
uma morte diferente: a supressão física e imediata não é a opressão
cultural com efeitos longamente adiados, segundo a capacidade de
resistência da minoria oprimida. Aqui não é o caso de escolher entre
dois males o menor: a resposta é muito evidente, mais vale menos
barbárie que mais barbárie. Dito isto, é sobre a verdadeira significação
do etnocídio que convém refletir.

O etnocídio então remete a uma outra distorção da perspectiva do Outro,


uma alteridade corrompida onde é percebida pelo etnocida uma “má-diferença”,
nas palavras de Clastres. Enquanto no genocídio há o ódio pelo outro, com
desejo de sua destruição e extermínio, desejo de negação do outro, o etnocida
relativiza a “maldade” presente na diferença outro, eleva-se a o modelo do ideal,
do bom, conduzindo o outro à uma identificação em si. Clastres afirma serem o
genocídio e o etnocídio duas formas perversas do pessimismo e do otimismo ao
encarar o outro4.
Caracterizado assim o conceito de etnocídio e o movimento integralizado
colonizador realizado na América Latina, cabe ainda destacar que no Brasil além
da tentativa de adequação cultural dos nativos à tradição européia portuguesa,
houve ainda uma verdadeira desintegração da tradição normativa indígena, pois
esta não contribuiu de fato, para a formação de um Direito nacional, sendo desde
sempre ignorada, consequência da percepção dos nativos não como cidadãos
ou sujeitos de direito, mas sim “como objetos do direito real”5
A política brasileira não ofereceu outro comportamento ao anteriormente
citado nos séculos seguintes ao descobrimento do Brasil, mantendo assim uma
política-pública de exclusão de minorias.
Até o presente momento, a difusão da ideia de uma Democracia Liberal,
que inicialmente foi apresentada como consequência da culpa européia
decorrente das políticas intervencionistas alemãs na segunda grande guerra, foi
utilizada em solo brasileiro para a perpetuação de uma ideologia conservadora,
originada de uma elite patrimonialista burguesa, a que nada interessa a
reparação jurídica por uma usurpação cultural e territorial história que forneceu
ao antepassados desta mesma elite o domínio e o poder.
A seguir, analisaremos as consequências jurídicas atuais de um processo
histórico brasileiro etnocida contra indígenas.

CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DE UM PROCESSO HISTÓRICO


INTEGRALIZADOR

A partir do início do século XX, houve um notável (ainda que tardio)


processo evolutivo de salvaguarda de direitos e de políticas de integração
indígena ao aparato protetor dos Estados. Fruto desse processo, a comunidade
indígena latino-americana passou a conquistar maior espaço nas tomadas de
decisões a nível local, municipal e nacional, aumentando sua articulação em
mobilizações e conseguindo espaço na política.
Ao analisarmos o Estatuto do Índio de 1973, criado durante a ditadura
militar no Brasil, imperam os valores integracionistas, onde a exploração

4 v. Pierre Clastres, Arqueologia da Violência, 2004, p. 57-63.


5 Antonio Carlos Wolkmer, História do Direito no Brasil, 2003, p. 45.
842

econômica proveniente de uma política de desenvolvimento sem precedentes e


escrúpulos se sobrepunha à integridade física, cultural e étnica. Este é entendido
como o ápice do regime tutelar e da cidadania assimilacionista no Estado
brasileiro. A ideologia integracionista foi relacionada à arcabouço jurídico de
classificação dos indígenas em isolados, em vias de integração e integrados.
Aos últimos cabia a incorporação plena à sociedade nacional e, portanto, o
desligamento da proteção jurídica especial. Segundo Araújo6, o saldo normativo
da era militar foi substancialmente prejudicial para os povos indígenas.
Evidentemente, a mobilização dos povos indígenas para confrontação à
cidadania assimilacionista e à normatização insatisfatória das reivindicações
políticas ganhou visibilidade no fim da década de 1970 e ao longo de 1980, no
contexto da formação do movimento e das organizações indígenas. O processo
de mobilização político-organizacional dos povos indígenas tinha por
fundamento a ideia de protagonismo indígena concretizado por meio da
construção de mecanismos de representação, estabelecimento de alianças e
divulgação das reivindicações à opinião pública, de modo constituir relações
sócio-estatais não mais pautadas no “paternalismo” travestido de tutela, mas sim
pela assunção da capacidade plena dos indígenas e de suas coletividades na
autogestão dos seus modos de vida e problemas sociais7
A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB)
de 1988, como expressão axiológica maxima da sociedade, possibilitou a criação
de política étnica inspirada no reconhecimento jurídico do
multiculturalismo.Assim, ela dispõe de um capítulo específico dedicado aos
índios, proporcionando a conquista de avanços jurídicos para os povos
indígenas no marco dos direitos constitucionais, demarcando mudanças
paradigmáticas de tratamento sociojurídico em via da normatização de direitos
coletivos que reordenam o papel do Estado.
No artigo 2318 da CRFB, é plasmado um dos mais importantes direitos
indígenas: o direito à diferença, quebrando o paradigma da assimilação ou
integração que até então dominava o cenário do ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, os povos indígenas conquistaram a cidadania diferenciada, sendo
assegurado a estes, além dos direitos universais do cidadão brasileiro e dos
direitos humanos em geral, direitos específicos relativos às suas culturas, às
tradições, aos valores, aos conhecimentos e aos ritos, traduzindo-se em um
importante dispositivo jurídico de confrontação e superação à tutela oficial e de
reconhecimento dos indígenas como cidadãos com capacidade civil plena.
Contudo, há notório déficit no ordenamento jurídico infraconstitucional da
recepção dos “novos direitos” dos povos indígenas, haja vista que desde o início
da década de 90 do século passado a constitucionalização dos direitos
possibilitou a promulgação de legislação infraconstitucional diversa em
regulamentar os direitos de segmentos populacionais com base nos parâmetros
constitucionais e de tratados internacionais, a exemplo do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA – Lei Nº. 8.069/90). A população indígena, em contraponto,
6Ana Valéria Araújo; Joenia Batista Carvalho, Povos indígenas e as “leis dos brancos”: o
direito e a diferença, 2006, p. 23-43.
7João Pacheco de Oliveira; Carlos Augusto de Rocha Freire, A Presença Indígena na formação
do Brasil, 2006, p. 11-39.
8 Art. 231: são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. (caput)
843

não teve respeitada a diversidade cultural ao ponto de terem reformulada a


política étnica geral que regulamenta normas sobre diversos aspectos de suas
vidas. Na prática, o texto constitucional ainda não tem sido utilizado como fonte
primária para aplicar a legislação indigenista, e muitos operadores do Direito
ainda tomam o Estatuto do Índio, de 1973, como parâmetro para as decisões
judiciais.
Ainda que pese isso, para os adeptos da concepção de que ele é
inconstitucional, há compreensão hermenêutica de que as categorias indígenas
relativas ao grau de integração presentes no Estatuto do Índio “... não [foram
recepcionadas] pela nova ordem constitucional, uma vez que a CF/88 não faz
distinção alguma entre índios isolados, em vias de integração e integrados...” 9 ,
o que abole a distinção e torna inconstitucional a permanência do preceito no
diploma infraconstitucional.
O projeto de lei n° 169, de 2016, é a proposta de novo Estatuto dos Povos
Indígenas, de autoria do senador Telmário Mota (PDT – RR), no sentido de trazer
um novo marco legal à questão. Visto que regula a situação jurídica dos índios,
de seus povos e de suas comunidades, com o propósito de proteger e fazer
respeitar sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Entretanto, ainda se situa em um entrave burocrático que oculta desígnios
obscurecidos no plano político, entre eles o de não tornar protegidas a
propriedade das terras indígenas aos próprios índios, conferindo apenas a
posse, para que a exploração econômica não seja inviabilizada, representando
mais uma expressão da inobservância do interculturalismo pelo Estado
brasileiro. Assim, trata-se de uma tentativa de delinear as condições de
passagem do Estado nacional brasileiro do caráter colonial ou assimilador para
o multicultural, na medida em que o preceito teórico-normativo é desestabilizado
e reordenar as ideias de cidadania universal, bases da cidadania liberal ocidental
É espaço pouco explorado pelos juristas no âmbito acadêmico nacional,
o contexto sociocultural dos povos indígenas pela lógica da garantia dos Direitos
Humanos. Neste sentido, além da situação de extrema pobreza que muitas
comunidades indígenas se encontram, essas populações ainda ficam à margem
da sociedade, estando sujeitas a perda de seu território e de sua identidade
cultural. Esses processos podem ser assimilados pela perspectiva ontológica
relacional na ideia básica de Viveiros de Castro10, quando fala da
“interpressuposição” como “uma relação de implicação recíproca assimétrica”,
deixando claro que essa determina os dois pólos de qualquer dualidade como
igualmente necessários, visto que mutuamente condicionantes, mas não faz
deles polos simétricos ou equipolentes.
Esta multiplicação da dualidade pela sua virtualização corresponde à
“teoria das multiplicidades”, exige que se desenvolva uma nova ideia de relação,
não mais baseada na semelhança ou na identidade, mas na diferença e na
disparidade ,em um desequilíbrio dinâmico. Assim Povos e comunidades
tradicionais, a exemplo dos povos indígenas, têm ampliado as mobilizações
identitárias e político-organizacionais para garantir o advento de identidades
coletivas que reivindicam a conquista e implementação de direitos coletivos

9 Helder Pontes, O índio e a Justiça Criminal brasileira, 2010, p.177.


10 Eduardo Viveiro de Castro, O nativo relativo, 2002, p.120.
844

marcantes para a legitimação de territorialidades específicas e etnicamente


construídas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise feita (de prismas nortistas, consequentemente


excluídos das políticas públicas nacionais ou muitas vezes invisibilizados por
elas) das condições que suscitaram um etnocídio das populações indígenas,das
questões quanto ao contexto histórico de subjugação, exploração e violação de
seus direitos e de suas consequências hodiernas tanto na esfera jurídica quanto
na realidade. Evidenciou-se o longo caminho a percorrer a fim de se tornar mais
eficaz na salvaguarda dos seus direitos.
Trazendo a tona a problemática da valorização destes povos em textos
normativos que reacendem a “romantização” das práticas culturais por vias que
reduzem a inserção social. Não houve intuito propriamente, de cristalizar ou
definir uma solução para o impasse, mas fomentar argumentos que estimulem
o debate e a problematização das autoridades sócio-estatais e, principalmente,
dos interessados direitos, os povos e comunidades tradicionais, nas novas
frentes de conquistas de direitos que precisam ser lutadas. Trazendo a tona a
problemática da valorização destes povos em textos normativos que reacendem
a “romantização” das práticas culturais por vias que reduzem a inserção social
Portanto, protagonismo, igualdade e diferença são os principais
marcadores da negociação intercultural dos “novos direitos” entre indígenas e
não-indígenas, da possibilidade de verificação (e superação) das
universalidades etnocêntricas que se escondem por trás dos textos normativos
e potencialização mútua do reconhecimento identitário e da redistribuição
socioeconômica.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Ana Valéria; CARVALHO, Joenia Batista. Povos indígenas e a lei


dos “brancos”: o direito à diferença. Brasília: MEC/SECAD; LACED/Museu
Nacional. 2006.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro:


Museu Nacional/Contra Capa. 2002.

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São Paulo: Cosac e Naify. 2004.

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Indígena na formação do Brasil. Brasília: MEC/SECAD. 2006.

PONTES, Bruno Cézar Luz Pontes. O índio e a Justiça Criminal brasileira.


Curitiba: Juruá. 2010.

WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 3ª ed. rev. e atual.


Rio de Janeiro: Forense. 2003.
845

O VOTO DISTRITAL E A REFORMA POLÍTICA NO BRASIL:


TRANSFORMAÇÃO OU PRESERVAÇÃO DO STATUS QUO?
THE DISTRICT VOTE AND POLICY REFORM IN BRAZIL:
TRANSFORMATION OR PRESERVATION OF THE STATUS QUO?

Gustavo Santiago Torrecilha Cancio

Resumo: Este trabalho tem por objetivo central investigar os sistemas eleitorais
existentes e analisar o funcionamento do voto distrital e sua possível aplicação
no Direito Eleitoral brasileiro. A pesquisa justifica-se pela relevância hodierna
que tem se dado ao voto distrital puro e misto, sendo, inclusive, uma das pautas
rotineiras da reforma política que se pretende adotar no ordenamento jurídico
pátrio. Essa conjuntura enseja uma importante reflexão acerca das intenções
que existem de operacionalizar o sistema para beneficiar a classe política que
ocupa o status quo ou para melhorar o processo democrático brasileiro. Como
procedimentos metodológicos foram adotados a revisão bibliográfica e
documental do tema, assim como os métodos descritivo e exploratório para
delinear as características do fenômeno trabalhado.
Palavras-chave: Voto distrital. Direito Eleitoral. Sistemas eleitorais.

Abstract: This paper aims to investigate the existing electoral systems and
analyze the functioning of the district vote and its possible application in Brazilian
Electoral Law. The research is justified by the current relevance that has been
given to the pure and mixed district vote, and is even one of the routine agenda
of political reform that is intended to adopt in the homeland legal system. This
conjuncture gives rise to an important reflection on the intentions that exist to
operationalize the system to benefit the political class that occupies the status
quo or to improve the Brazilian democratic process. As methodological
procedures were adopted the bibliographical and documentary revision of the
theme, as well as the descriptive and exploratory methods to delineate the
characteristics of the worked phenomenon.
Keywords: District vote. Electoral law. Electoral Systems.

1. INTRODUÇÃO

A operacionalização da democracia e do processo eleitoral democrático


passa pela discussão acerca de qual sistema eleitoral seria mais adequado para
a concretização das premissas basilares de qualquer regime democrático. O
Direito Eleitoral brasileiro não foge a dessa cizânia e os debates acerca de uma
reforma política para a modificação do sistema eleitoral vigente normalmente
está presente nas conjunturas políticas de tempos em tempos.
Em linhas gerais, o Direito Eleitoral experimenta três sistemas tradicionais:
o majoritário, o proporcional e o misto. Em que pese existam variações desses
modelos, como o sistema distrital puro e o sistema distrital misto, na verdade os
formatos se amoldam ao majoritário e ao misto com a diferença de que o país,
estado ou município são divididos em distritos. Outra diferenciação ocorre com
o sistema proporcional, com o sistema de lista aberta e o sistema de lista
fechada.
No Brasil, tanto o sistema majoritário quanto o sistema proporcional são
utilizados no processo político democrático. Mas não raramente, ambos os
846

sistemas são postos em xeque na democracia brasileira, seja pelos próprios


representantes políticos seja pelos cidadãos de um modo geral.
O debate que se faz presente hodiernamente é com relação à
implementação do voto distrital misto para as eleições municipais que ocorrerão
no ano de 2020 e para as eleições estaduais e federais de 2022, estando inserida
a discussão na perene controvérsia sobre a necessidade de reformas políticas
no processo eleitoral brasileiro.
É dentro dessa perspectiva que a presente pesquisa se apresenta, com a
intenção de esclarecer, em um primeiro momento, os aspectos elementares dos
principais sistemas eleitorais existentes. Em seguida, dar-se-á destaque para o
sistema distrital, cerne dos debates no Direito Eleitoral brasileiro, trazendo como
modelo de implementação o modelo alemão. Por derradeiro, far-se-á uma
reflexão se a proposta do voto distrital misto é, de fato, uma transformação ou
uma preservação da classe política vigente.

2. OS SISTEMAS ELEITORAIS

Em uma democracia, os representantes do povo são eleitos segundo um


arcabouço de regras que indica quem será o vencedor da corrida eleitoral. Tais
regras formam os chamados “sistemas eleitorais”. De acordo com Gomes (2016,
p. 143) “sistema eleitoral é o complexo de técnicas e procedimentos empregados
na realização das eleições, ensejando a conversão de votos em mandato, e,
consequentemente, a legítima representação do povo no poder estatal”.
Os três principais sistemas eleitorais conhecidos são: o majoritário, o
proporcional e o misto, cada qual com suas próprias características peculiares
que serão doravante discriminadas nos próximos tópicos.

2.1. O SISTEMA MAJORITÁRIO

O sistema majoritário funda-se na premissa da representação da maioria,


segundo a qual cada circunscrição eleitoral (abrangência territorial da eleição:
município, estado, distrito federal ou país) equivale a um distrito e nele será eleito
o candidato que alcançar a maioria (absoluta ou relativa1) dos votos válidos.
Em uma classificação didática, duas são as espécies de sistema
majoritário: a simples ou turno único e a de dois turnos. No sistema majoritário
de turno único será eleito o candidato que atingir o maior número de votos entre
os participantes da eleição, independentemente dessa maioria ser absoluta ou
relativa. Já na eleição em dois turnos, para que o candidato seja eleito em
primeiro turno, deve-se atingir metade mais um dos votos válidos (50% + 1).
Caso não alcance esta votação, será realizado um novo turno (segundo turno)
entre os dois primeiros colocados.
No Brasil, conforme os artigos 28, caput, 29, inciso II, 32, § 2º, 46 e 77, §
2º, da Constituição Federal, o sistema majoritário é aplicado nas eleições para:

1 Ponto importante a ser destacado é a diferença entre maioria absoluta e relativa. A primeira
significa a metade dos votos válidos mais um, ou seja, o candidato para ser eleito por maioria
absoluta deverá conquistar 50% (cinquenta por cento) mais um voto, do total de votos válidos
apurados. Já a segunda significa a maioria dos votos recebidos em comparação com seus
concorrentes, ou seja, a maioria relativa não leva em conta o total de votos válidos, mas sim
quem alcançou a maioria dos votos em relação aos concorrentes, não sendo necessário, por
exemplo, metade dos votos mais um (50% mais um).
847

Presidente e seu vice; Senador da República e seus suplentes; Governador e


seu vice; e Prefeito e seu vice (BRASIL, 1988).
Com efeito, nas eleições para presidente e governador serão aplicados a
maioria absoluta e o sistema de dois turnos. Já para prefeito é usada nos
municípios com mais de 200 mil eleitores. A maioria relativa ou absoluta, por seu
turno, é utilizada nas eleições para senador e para prefeito – nos municípios com
número inferior a 200 mil eleitores (MELATTI; MORAES, 2019).

2.2. O SISTEMA PROPORCIONAL

O sistema proporcional tem como vértice central a representatividade dos


diversos grupos, pensamentos e tendências existentes em uma sociedade, na
tentativa de garantir a distribuição das vagas entre as diversas forças políticas
nas Casas Legislativas e assegurando a participação das minorias.
O sistema em questão possui a participação dos mais distintos partidos
no Poder Legislativo, evitando que apenas um ou outro partido mantenha o
domínio da representatividade popular. Segundo Gomes (2016, p. 145) “tal
sistema não considera somente o número de votos atribuídos ao candidato,
como no majoritário, mas sobretudo os direcionados à agremiação. Pretende,
antes, assegurar a presença no Parlamento do maior número de grupos e
correntes que integram o eleitorado”.
O voto nesse sistema possui, assim, um caráter duplo, uma vez que, ao
votar no candidato, o eleitor também está escolhendo o partido político, além de
poder realizar o chamado “voto de legenda”, no qual vota-se apenas no partido.
Dessa forma, o ideal buscado pelo sistema proporcional é de que haja um grau
de correspondência entre a vontade popular e a distribuição de vagas entre as
distintas correntes e partidos (MELATTI; MORAES, 2019).
É nisso que consiste a ideia de representatividade democrática. Gomes
(2016, p.145) assinala que essa é a razão “pela qual o sistema proporcional
tende a ensejar a multiplicação de partidos, a fragmentação partidária. E o
excesso de partidos contribui para emperrar a ação governamental”.
Existem duas variações do sistema proporcional: a lista aberta e a lista
fechada. Hodiernamente, o sistema aplicado no Direito Eleitoral brasileiro é o do
voto em lista aberta, isto é, o eleitor vota no candidato que quer ou no partido
(voto de legenda). Com efeito, a lista de eleitos é formada de acordo com a
votação nominal de cada candidato. Em síntese, se um partido tem direito a duas
cadeiras no parlamento, serão eleitos os dois mais votados do partido/coligação.
Nesse sistema de lista aberta, conforme dispõe o art. 109, § 1º, do Código
Eleitoral, “o preenchimento dos lugares com que cada partido ou coligação for
contemplado far-se-á segundo a ordem de votação recebida por seus
candidatos”.
Já o voto em lista fechada é uma variante do sistema eleitoral
proporcional, em que o eleitor vota no partido e não no candidato. A ordem dos
candidatos é, pois, predeterminada pelo partido político, não cabendo ao eleitor
a modificação dessa ordem e lista. Uma variante da lista fechada é a lista flexível.
Nesse caso, o partido determina os candidatos e a ordem na lista, e o eleitor,
por meio do voto, pode alterar a ordem predeterminada dos candidatos –
funcionando na prática como um misto do sistema de lista aberta e de lista
fechada. O eleitor pode escolher em votar na lista predeterminada do partido ou
848

em um candidato específico, alterando a ordem pela votação recebida por cada


candidato.
É um sistema semelhante ao de lista aberta, em que se vota na legenda
ou no candidato. Diferentemente do sistema de lista aberta, no qual o candidato
é quem atrai o voto, nesse sistema de lista fechada a força fica concentrada no
partido, de modo que o eleitor deixa de dar um voto personalíssimo ao candidato
e passa a dar o voto à agremiação partidária, fortalecendo assim os partidos
políticos (MELATTI; MORAES, 2019).

3. O SISTEMA DISTRITAL

O sistema eleitoral distrital, ou voto distrital, evidencia um modo específico


de elegibilidade dos representantes políticos num Estado de Direito: por distritos.
O distrito pode representar um único estado, e um estado, por outro lado, pode
estar guarnecido de vários distritos (TELES; SALES; ARIS, 2017).
Enquanto o sistema distrital evidencia a implantação de um modo de
eleições único, no qual se consagra vencedor o detentor da maioria dos votos
da divisão geográfica (distrito) que concorreu, o voto distrital compreende
apenas o método de sufrágio, vale dizer, de seleção de candidatos – razão pela
qual admite sua plena harmonia com o sistema eleitoral proporcional, por
exemplo.
Independentemente da forma de aplicação do voto distrital – com a
inserção de um sistema eleitoral próprio, puro, ou misto a outro sistema –, a sua
abordagem é imprescindível quando se trata de reforma política. Por essa razão,
a primeira parte deste capítulo analisará o surgimento do sistema/voto distrital e
sua aplicabilidade em outros países que também adotam o regime democrático.
O voto distrital está relacionado diretamente aos sistemas eleitorais, bem
como aos partidos políticos e à democracia que, por meio da liberdade de
escolha, assegura autêntica representatividade entre eleitor e eleito, permitindo
que aquele acompanhe a atuação deste e verifique se, efetivamente, há o
cumprimento das promessas de campanha para a garantia de melhoramentos
sociais regionais (TELES; SALES; ARIS, 2017).
O voto distrital foi criado na Alemanha, a partir de estudos e negociação
política, após a Segunda Guerra Mundial. Nessa primeira eleição, em 1949, o
cidadão tinha direito a um único voto: ou votava em seu candidato distrital ou, se
este tivesse menos chances de vencer, optava por votar em outro, que fizesse
oposição ao candidato indesejado por esse eleitor. Esse voto único tinha duas
finalidades: “A eleição do candidato no distrito e a soma de votos para a legenda
partidária, com base na qual se calculavam os quocientes partidários” (CINTRA,
2000, p. 8).

3.1. O VOTO DISTRITAL PURO

O sistema distrital puro possui natureza majoritária, pois é eleito o


candidato mais votado. No entanto, na eleição para as Casas Legislativas, o
sistema distrital divide a circunscrição eleitoral (cidade, estado, DF e país) em
distritos. O número de distritos corresponde ao número de vagas em disputa.
O eleitor irá escolher o candidato dentre a lista de candidatos do seu
distrito, podendo a maioria, nesse caso, ser absoluta ou relativa. Nos Estados
Unidos a maioria simples é adotada.
849

O Brasil já adotou esse sistema durante quase todo o Império e também na


República Velha (MELATTI; MORAES, 2019).

3.2. O SISTEMA DISTRITAL MISTO

O sistema distrital misto, aplicado na Alemanha e no México, é constituído


de uma combinação entre o sistema majoritário e proporcional, visando à eleição
para as Casas Legislativas. Da mesma forma em que no puro, a circunscrição
eleitoral é dividida em distritos que correspondem ao número de vagas;
entretanto, no dia da eleição, ao eleitor é apresentada duas listas: uma lista
apenas com os candidatos daquele distrito e uma outra lista proporcional que
abrange toda a circunscrição eleitoral (MELATTI; MORAES, 2019).
Nesse sistema misto, no voto proporcional (toda a circunscrição eleitoral)
o eleitor vota na legenda e não no candidato, ou seja, ele vota em um candidato
dentre a lista do seu distrito e também vota em uma lista partidária. Para a
escolha dos eleitos existem três possibilidades que vimos anteriormente: lista
aberta, lista fechada e lista flexível.
A composição do parlamento se faz pela soma dos eleitos nas duas listas
de votação, no distrital e no proporcional. A vantagem desse sistema é que ele
não exclui totalmente as minorias (como o puro) e, ao mesmo tempo, ajuda a
reduzir os custos de campanha, pois os candidatos se concentram no seu
distrito. Além disso, contribui para a renovação dos quadros, uma vez que, por
serem mais baratas e em território definidos, as lideranças comunitárias daquele
distrito podem ter mais chances de competir sem necessitar de grandes recursos
financeiros.

4. O VOTO DISTRITAL E A REFORMA POLÍTICA NO BRASIL:


TRANSFORMAÇÃO OU PRESERVAÇÃO DO STATUS QUO?

Em seu livro Sistemas Eleitorais x Representação Política, Monica


Herman Salem Caggiano (1990) alerta que a introdução do voto distrital misto
engendra uma série de medidas direcionadas à adaptação à nossa realidade
brasileira, dentre as quais uma questão fundamental é a identificação dos
distritos.
Nesse sentido, Caggiano adverte que o sistema distrital dá margem para
corrupção, pois os distritos precisam ser moldados e, conforme sua
configuração, há uma perceptível possibilidade de mutilação do sistema eleitoral,
como ocorre na denominada técnica Gerrymandering2.
Essas características abrem margem para fraude eleitoral e uma
facilidade para manipular o sistema. No artigo Reforma Política: um mito
inacabado, Caggiano (2017), assinala que

Em verdade – nos intervalos que se abrem entre processos eleitorais


–, este sensível escaninho vem impulsionado pela eterna mobilização
direcionada à remodelação das técnicas e dos modelos de escrutínio,

2 Gerrymandering provém de Elbridge Gerry, governador do Massachusetts e vice-presidente


dos EUA. Em 1812, a legislatura de Massachusetts redesenhou os limites dos círculos eleitorais
para favorecer os candidatos do partido republicano jeffersoniano. Os jornalistas que
observavam o novo mapa eleitoral notaram que um dos novos círculos tinha a forma de uma
salamandra (em inglês: salamander), ao qual puseram o nome Gerry-mander. O termo teve êxito
e hoje continua a usar-se no jargão da ciência política.
850

na persecução utópica de um sistema eleitoral que venha a assegurar


o perfeito alinhamento das expectativas da sociedade aos resultados
extraídos das urnas (CAGGIANO, 2017, p. 5).

Essa controvérsia aparece na atualidade com relação à implementação


do voto distrital misto para as eleições municipais que ocorrerão no ano de 2020
e para as eleições estaduais e federais de 2022, estão inseridas nessa discussão
na constante cizânia sobre a necessidade de reformas políticas no processo
eleitoral brasileiro.
Dentro dessa perspectiva, ao se falar em reforma política para a
implementação do sistema distrital misto há uma necessidade de cautela. Os
interesses na manutenção pelo establishment do status quo da classe política é
um fato que deve estar em pauta no momento do cidadão brasileiro analisar se,
de fato, é uma transformação benéfica para o processo democrático brasileiro
ou se é apenas mais uma forma de reforçar a recondução dos representantes
que já fazem parte desse espectro político.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por certo existem pontos positivos e aspectos desfavoráveis na


possibilidade de implementação do voto distrital misto no Brasil. Se por um lado
o sistema distrital misto pode aproveitar o melhor dos outros dois sistemas
(majoritário e proporcional) tal situação pode ensejar um status de representação
diferenciado entre o candidato que foi eleito pelo voto majoritário e aquele que
veio do voto proporcional.
Argumenta-se que o voto distrital tende a aniquilar partidos menores, o
que para um sistema eleitoral brasileiro que apresenta um quadro de inchaço
partidário (35 partidos políticos registrados no TSE) poderia ser considerada
uma diminuição benéfica de partidos políticos. Outro fundamento é de que o voto
distrital reduziria os custos da eleição, fato que desconsidera que não é o
tamanho da circunscrição que determina necessariamente os gastos, na qual
leva-se em conta fundamentalmente os riscos e as chances de vencer as
eleições.
Um outro ponto positivo que se coloca para o sistema distrital é a
proximidade que se gera com a representação política, o que possibilitaria uma
maior fiscalização pelo cidadão ativo. Entretanto, há de se considerar que a
diminuição da circunscrição em pequenos distritos possibilita o aumento de
fraudes, corrupção, coronelismo, troca de favores, e também os problemas que
advém da identificação geopolítica dos distritos (técnica Gerrymandering).
Fundamenta-se para rechaçar o sistema distrital que este seria de difícil
compreensão e assimilação pelo eleitor, mas o sistema que vige atualmente no
Brasil igualmente suscita dúvidas no eleitorado brasileiro. O que se pode concluir
é que a escolha pela reforma política e por um novo sistema eleitoral passa pela
vontade da classe política de manutenção do status quo e do establishment e
não de uma real transformação do sistema em si.

REFERÊNCIAS

AJAJ, Claudia, Voto distrital misto – um mito, In: LEMBO, Claudio (Coord.);
CAGGIANO, Monica Herman Salem (Org.), O voto nas Américas. Barueri, Minha
Editora; São Paulo, 2008.
851

BATINI, Silvana, Direito eleitoral. Rio de Janeiro, FGV, 2015.

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de Brasília, 2a. ed. Trad. Sérgio Bath, 1980.

CAGGIANO, Monica Herman Salem, Sistemas Eleitorais x Representação


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CINTRA, Antonio Octávio. O sistema eleitoral alemão como modelo para reforma
do sistema
eleitoral brasileiro. Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Brasília,
2000.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso de Direito Constitucional, S.Paulo,


Saraiva, 2006.

GOMES, José Jairo, Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

LEMBO, Cláudio, Participação Política e Assistência Simples, Forense


Universitária, 1991.

LEMBO, Claudio (Coord.); CAGGIANO, Monica Herman Salem (Org.), Reforma


política – um mito inacabado. Barueri, Editora Manole, 2017.

MELATTI, Alexandre Guimarães; MORAES José Luiz Souza de, Direito Político
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SANDE, Paulo de Almeida, O Sistema Político da União Européia, Cascais,


Portugal, Principia Publicações Universitárias e Científicas, 2000.

SCHMITT, Carl, Teoria de La Constitucion, México, Ed. Nacional, 1970.

TOINET, Marie-France, Le Système Politique des États-Unis, Paris, PUF, 1990.

VALDÉS, Roberto L. Blanco, Los Partidos Políticos, Madrid, Tecnos. 1997.


852

REFORMA POLÍTICA E A ADOÇÃO DO VOTO DISTRITAL PURO: UMA


VISÃO DE CONJUNTO PARA MITIGAR A PSEUDO REPRESENTAÇÃO
POLÍTICA NO BRASIL
POLICY REFORM AND THE ADOPTION OF PURE DISTRICT VOTE: A SET
VIEW TO MITIGATE PSEUDO POLICY REPRESENTATION IN BRAZIL

Horácio Monteschio
Fernando Gustavo Knoerr

Resumo: o presente texto busca discutir a representação política no Brasil, a


qual, pelo sistema proporcional para escolha dos representantes para compor o
legislativo brasileiro já de muito tempo tem se demonstrado ineficaz. As razões
para afirmar que o sistema proporcional já não cumpre com seu desiderato
democrático são as mais variadas. A adoção de um novo sistema de escolha
para o parlamento brasileiro, com a adoção do voto distrital puro, ou seja, a
exemplo do que ocorre para escolha dos senadores, pelo sistema majoritário, se
faz por demais necessária com o objetivo de se efetivar a representação
democrática.
Palavras-chave: Reforma política. Sistema proporcional e representação
política.

Abstract: The present text seeks to discuss the political representation in Brazil,
which, by the proportional system for choosing the representatives to compose
the Brazilian legislature has been ineffective for a long time. The reasons for
claiming that the proportional system no longer fulfills its democratic aim are the
most varied. The adoption of a new system of choice for the Brazilian parliament,
with the adoption of the pure district vote, that is, as for what occurs for the choice
of senators, by the majority system, is very necessary in order to effect the
democratic representation.
Keywords: Political reform. Proportional system e political representation.

INTRODUÇÃO

As democracias modernas têm enfrentado enormes desafios nos últimos


anos. No caso brasileiro, não entrando na questão de voto majoritário para
cargos do Poder Executivo tendo em vista este tema foge por completo o objetivo
do presente trabalho, mas o presente texto tem o escopo de reafirmar a
necessidade de alteração do sistema de escolha para o Poder Legislativo
brasileiro. Se de um lado se encontra o sistema proporcional, o qual já
demonstra, por si só, o seu descompasso com os anseios dos eleitores
representados, a outra proposta de representação adotada em outros países
como Estados Unidos, Alemanha, Japão, Itália, Rússia, Nova Zelândia, entre
outros, se consubstancia no sistema de voto distrital.
A questão envolvendo a representação no parlamento brasileiro, a
exceção do Senado Federal, já não é de data recente, mas que com os
acontecimentos experimentados nas últimas eleições se apresenta como
temática recente e de impostergável discussão e decisão.
Se de um lado o sistema proporcional acaba por criar uma falsa
possibilidade de representação política, pelo viés das coligações partidárias,
bem como pelos imensos “distritos” representados pelos estados da federação,
853

o que acaba por afastar o representado do seu representante, de outro lado, este
sistema acaba por viabilizar a eleições em pequenos partidos assistindo assim
a presença de uma minoria no parlamento.
Por outro lado, o sistema eleitoral em que há a presença do voto distrital
acaba por tornar a representação mais próxima do representado, tendo em vista
que o eleito é escolhido dentro de um perímetro eleitoral menor, com maior
proximidade com os seus eleitores, o que acaba por reduzir atual hiato existente
entre representante e representado, como também reduz os gastos de
campanha. De outro vértice, o sistema distrital tem suas deficiências
especificamente no que concerne a redução das minorias nos parlamentos, bem
como minimizar o pluripartidarismo.
Cabe ressaltar o fato de que as experiências contempladas em outros
países não podem servir de paradigma para o Brasil, tendo em vista a
precariedade com que o sistema partidário brasileiro se constituiu e constitua
sedimentado.
O sistema distrital, o qual contempla a possibilidade de escolha em
candidato e em lista elaborada pelo respectivo partido. Este modelo se mostra
totalmente inadequado, pelo simples fato de que os partidos políticos, no Brasil,
são verdadeiros feudos, mais especificamente, aqui o “partido tem dono”,
portanto, o eleitor acaba votando em uma lista do proprietário da legenda, sem
qualquer vinculação com o eleitor.
O método adotado neste trabalho é o dedutivo com uma revisão
bibliográfica. A problematização se encontra presente no fato de que a
democracia brasileira corre o risco de total descredito se não houver uma
alteração de escolha dos representantes dos legislativos, exceção feita ao
Senado Federal que seus representantes são escolhidos pelo sistema
majoritário, pois estamos diante de uma ausência de representação política.
A resposta a essa questão se apresenta com a adoção do sistema distrital
puro, pelo fato de que aproxima o eleitor do representado, reduz os gatos de
campanha, retira a possibilidade de votar em um candidato e eleger outro e, pela
circunstancia de que no Brasil os partidos políticos possuem “proprietários” a
rejeição do voto distrital misto.

1. VOTO DISTRITAL

Antes de ingressar no tema que circunscreve o presente texto é preciso


elaborar, ainda de que forma sucinta um conceito do que vem a se constitui o
voto distrital. Nestes termos é possível defini-lo como sendo um meio pelo qual
o eleitor de determinado distrito elege o seu representante pelo sistema
majoritário, ou seja, cada representante do parlamento é eleito de forma
individualizada dentro dos limites geográficos de um distrito pela maioria dos
votos (simples ou absoluta). Destarte, para que esse sistema tenha sua
operacionalidade o território o país é dividido em determinado número de distritos
eleitorais, normalmente com população semelhante entre si, cada qual elegendo
um dos políticos que comporão o parlamento.
O voto distrital, ainda que de forma quase que imperceptível aos olhos
mais atentos, se faz presente no Brasil. Para comprovar essa assertiva, basta
lembrar que não há possibilidade do eleitor do Estado de São Paulo votar em
determinado candidato a deputado, seja ele estadual ou federal, do Estado do
854

Paraná. Destarte, os Estados da federação brasileira funcionam como


verdadeiros “grandes distritos”.
É relevante acentuar o fato de que os deputados federais são eleitos para
representar todo Estado brasileiro, independentemente do Estado pelo qual foi
eleito, mas são eleitos pelos representantes dos respectivos Estados.
A adoção do voto distrital representa a consagração da possibilidade do
cidadão brasileiro exercer um maior controle sobre os seus representantes
políticos. Neste sentido, cabe citar Oscar Dias Correia, que afirma:

O deslocamento do centro de influência para os distritos facilitará o


surgimento de líderes distrital. O domicílio eleitoral exigível servirá de
aviso imediato par alertar um assalto futuro e constituirá o passo mais
importante para evitar as recomendações estranhas, venham de onde
vier. A escolha de candidatos vinculados ao meio é argumento
reconhecido unanimemente para a aceitação do voto distrital.1

O aprimoramento do sistema eleitoral brasileiro, calcado na sua maior


eficiência da representação política passa, inexoravelmente, pela instituição de
instrumentos de controle da atuação política e partidária dos ocupantes do Poder
Legislativo, quiçá impedindo que os parlamentares possam fazer emendas ao
orçamento, as quais, somente servem como moeda de troca para votações
importantes e para acentuar a prática do lobby perante o Poder Executivo.

2. ALTERAÇÃO DO ATUAL SISTEMA DE ESCOLHA DOS


REPRESENTANTES DO PARLAMENTO BRASILEIRO

Dentro do sistema legislativo adotar-se-á o voto distrital para as eleições


para o parlamento, em substituição ao anacrônico sistema proporcional,
apresentando-se como outro instrumento apto a dar um maior controle sobre as
atividades exercidas pelos parlamentares. Com essa adoção está-se a fazer
frente à afirmação formulada por Jacques Rancière:

A representação nunca foi um sistema inventado para amenizar o


impacto do crescimento das populações. Não é uma forma de
adaptação da democracia aos tempos modernos e aos vastos
espaços. É, de pleno direito, uma forma oligárquica, uma
representação das minorias que têm título para se ocupar dos negócios
comuns. Na história da representação, são sempre os estados, as
ordens e as possessões que são representados em primeiro lugar, seja
porque se considera seu título para exercer o poder, seja porque um
poder soberano lhes dá voz consultiva. 2

Assim pelo atual sistema, o parlamentar (estadual e federal) é eleito


dentro de um enorme distrito no qual os eleitores não têm a possibilidade de
conhecer, de serem representados pelos eleitos. Nesta mesma linha de
raciocínio, pelo atual sistema proporcional, dentro de um distrito de abrangência
estadual, acaba-se votando em determinado candidato e elegendo outro.
É inegável que pelo sistema proporcional, dentro dos atuais e imensos
“distritos”, os quais assumem os contornos dos respectivos estados, que a busca

1 CORREIA, Oscar Dias. Voto distrital. In: CAVALCANTI, Themistocles Brandão (Org.). O
voto distrital no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1975, p. 342.
2 RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 69.
855

do voto em região distante da base eleitoral do candidato traz em seu bojo


aspectos intrigantes. O primeiro deles diz respeito a cooptação de lideranças,
partidárias ou não, mas que farão o trabalho de “cabos eleitorais” mediante
remuneração, a qual pode ser ou não declarada perante a Justiça Eleitoral, em
razão da precariedade do controle de gastos.
Desta forma, se indaga: qual a razão que leva um ‘líder” político local em
apoiar um candidato longínquo, forasteiro “paraquedas”? Ou seja, que só se faz
presente em período eleitoral. É mais do que evidente que em decorrência do
valor que está sendo pago pelo trabalho da “liderança” cooptada. Quanto mais
distante do reduto eleitoral, o voto fica mais caro. Esta é a realidade, portanto,
não é um partido, neste sentido cabe destacar Holgado González, sobre a
importância democráticas dos partidos e dos seus respectivos integrantes.

Partidos não democráticos não podem aspirar a governar


democraticamente, portanto, ao verificar esta situação, a exigência
constitucional europeu após a Segunda Guerra Mundial foi antes de ter
regimes não democráticos, para conseguir remediar a situação através
da marcação de partidos políticos democráticos.3

O que dizer então do candidato que compra o mandato? Ou seja, aquele


(a) que não possui nenhum trato político, mas que tem muito dinheiro, apoio
político e familiar, por isso e precisa do mandato para garantir o “status” pessoal,
garantir uma boa remuneração para financiar suas compras luxuosas, ou
mesmo, para obter foro privilegiado. Este é de mais fácil constatação no
parlamento, pois a folha de trabalhos se restringe a presença em convescotes e
eventos sociais, somente se destacando as fotos sorridentes. Desta forma a
representação política fica comprometida, neste sentido cita-se Manoel
Gonçalves Ferreira Filho:

Em toda sociedade identifica-se um círculo de poucos que controla as


forças sociais e, assim orienta a vida social. Esse controle decorre da
preponderância que assumem esses poucos nos vários setores da
atividade humana que têm importância para a vida em sociedade,
preponderância essa decorrente ora das qualidades que levam o
indivíduo a destacar-se pela competência e capacidade, ora
simplesmente pela ocupação de cargos ou posições-chave, muitas
vezes obtidas sem capacidade ou competência particular.
Dentro dessa elite social, também variando de composição no tempo e
no espaço, em razão de inúmeros fatores, acha-se a elite governante,
a que, de fato rege a sociedade e detém, globalmente o poder. 4

Portanto, os elevados índices de abstenção de votos brancos e nulos,


alinhados aos mandatos fixos, às famigeradas coligações eleitorais e às
comissões provisórias, bem como ao abuso indiscriminado do poder político e
econômico são institutos que tornam os políticos donos dos respectivos partidos

3 Unos partidos que no sean democráticos no pueden aspirar a gobernar democráticamente,


de ahí que al comprobarse esta situación, la exigência constitucional europea después de la
segunda guerra mundial fue antes de tener regímenes no democráticos, lograr solucionar la
situación tiniendo partidos políticos democráticos. (GONZÁLEZ, Holgado. Financiación de
partidos y democracia paritária. Revista de Estudios Políticos, Nueva Época, n. 115, jan./mar.
2002, p. 129, tradução nossa).
4 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia possível. São Paulo: Saraiva, 1979, p.
24.
856

e têm deixado o eleitor à margem do sistema eleitoral, razão pela qual a sua
alteração proporcionará medida de salutar importância a ponto de revigorar o
atual sistema de representação política. Para rechaçar essas práticas nocivas
perpetradas no interior dos partidos políticos cabe citar Jaime Cárdeanas Gracia:

As obrigações das partes no ambiente externo compreendem agindo


através dos canais institucionais, utilizando meios pacíficos de luta
política e respeitar as regras e Procedimentos democráticos na sua
ação contra as outras partes. Internamente, as partes têm o direito de
organizar livremente, desde que não afetam os direitos fundamentais
dos militantes ou outros cidadãos e não prejudicar os princípios
democráticos do Estado de direito. Seu em dever primário é
internamente para respeitar a democracia dentro dele, isto é, tendo
com escrupulosamente procedimentos democráticos e respeitar os
direitos fundamentais dos seus membros.5

Com o sistema republicano em sua expressão mais legitima de “res


pública”, que a coisa pública pertence a todos, não assiste razão a perpetuações
no poder, servindo-se das mazelas produzidas pelos seus próprios beneficiários.
É preciso aprimorar o atual sistema para escolha dos representantes do
Poder Legislativo brasileiro, pois o atual controle sobre a atuação política deve
receber, pelos gastos que são exigidos da população para a sua manutenção,
um cuidado cada vez maior, no pleno exercício do mandato.
Esse controle mais acurado passa, além da maior participação popular,
pelo interesse nas questões políticas. Pela adoção do voto distrital, para as
eleições dos representantes do parlamento, essa verificação e participação
ficarão mais eficientes.
É de fundamental importância destacar que pelo voto distrital, a própria
Justiça Eleitoral e o Ministério Público Eleitoral terão maiores condições de
cotejar os gastos reais de campanha com aqueles que foram efetivamente
prestados. A realidade é solar quando for prestado um valor incompatível com o
“volume” de campanha realizado pelo candidato.
Propõe-se a adoção do voto distrital em substituição do sistema
proporcional, eliminando de uma vez por todas a figura do “eleito sem voto”, em
detrimento do “derrotado com voto” ao argumento de que as minorias sempre
terão sua representatividade, seja no sistema proporcional ou majoritário.

3. VANTAGENS E DESVANTAGENS DO VOTO DISTRITAL

Ao contrário do que possa parecer o sistema de voto distrital, nos moldes


que se coloca em discussão, com a presença de distritos menores, nos quais os
representantes escolhem seus representados de forma direta já este presente
no Brasil até a década de 30 do século passado.
5 Las obligaciones de los partidos en ámbito externo comprendem las de actuar por las vias
institucionales, utilizar medios pacíficos para la lucha política y respetar las reglas y los
procedimentos democráticos en su actuación frente al resto de los partidos. En el ámbito
interno, los partidos tienen el derecho de organizarse libremente, siempre y cuando no afecten
los derechos fundamentales de los militantes ni de otros ciudadanos y no lesionen los
princípios democraticos del Estado de derecho. Su obligación primordial em ámbito interno
consiste en respetar la democracia en su seno, esto es, contar com procedimientos
democraticos y respetar escrupulosamente los derechos fundamentales de sus militantes.
(GRACIA, Jaime Cárdeanas. Partidos políticos y democracia. México: Instituto Federal
Electoral. 2001, p. 34, tradução nossa).
857

O novo código eleitoral (Dec. 21.076, de 24-02-1932), de cuja redação


participou Assis Brasil, adotou o princípio da representação
proporcional na eleição para a Câmara dos Deputados, com
diplomação dos candidatos que, na lista partidária, alcançassem o
quociente. Portanto, somente com a Revolução de 1930, que criou a
Justiça Eleitoral, extinguiu o processo de “reconhecimento”, alargou o
sufrágio e instituiu o voto feminino, foi abolido entre nós o sistema
distrital.6

O sistema distrital não obteve êxito no Brasil, não por defeitos congênitos
do sistema, mas sim por anomalias adquiridas no seu exercício. Sob tal aspecto
é oportuno citar a doutrina de Icléa Hauer da Silva:

Nossa experiência com o voto distrital malogrou em virtude não de


defeitos atribuíveis ao sistema em si, mas de razões estranhas a ele.
Igualmente o decantado fracasso da RP não nos parece imputável a
ela e sim a manobras eleitorais de que se utiliza o poder para conservar
a sua força, tais como o voto vinculado e as sublegendas, dentre
outras.7

Por outro lado, o estabelecimento do voto distrital, como sistema de


eleição parlamentar no Brasil representará um grande avanço no sentido de
alcançar uma maior eficiência no sistema democrático. As vantagens pela
adoção do voto distrital são extraídas da doutrina de Luis Roberto Barroso, na
qual enumera as suas vantagens associadas ao sistema distrital majoritário, nos
seguintes termos:

a) Maior facilidade de formação de maiorias políticas, circunstância que


propicia governos mais estáveis e funcionais;
b) fortalecimento dos principais partidos políticos, evitando a
fragmentação partidária;
c) tendência a bipolarização entre centro-esquerda e centro-direita,
com neutralização das propostas políticas mais radicais;
d) aumento da representatividade dos parlamentares, por haver
apenas um eleito por distrito, que ficará sujeito a maior visibilidade e
controle;
e) inexistência de competição entre correligionários, como ocorre no
sistema proporcional de lista aberta vigente no Brasil. 8

Cabe destacar que pela formação dos distritos sempre haverá vencedores
e vencidos, a exemplo do que já existe no atual sistema proporcional. A falta de
representação parlamentar não pode ser corrigida por um sistema legislado,
casuísta que somente vem beneficiar uma parcela da política eleitoral brasileira.
A democracia se fundamenta pela elaboração de propostas ofertadas ao
eleitor de maneira honesta e factível, não assistindo razão para assuntos
meramente retóricos ou laterais a serem colocados à apreciação, pois lhe falta
conexão entre a representação política em face ao representado. Há que se
destacar o fato de que a permanência do atual modelo de representação

6CUNHA Sérgio Sérvulo da. O que é Voto Distrital? Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris
Editor, 1991, p. 24.
7 SILVA, Icléa Hauer. O voto distrital. Rio de janeiro: URFJ, Faculdade de Direito, 1985, p. 59.
8 BARROSO, Luis Roberto. A reforma política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e
partidário para o Brasil. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 3, jul./set. 2006, p. 314.
858

proporcional deixa o legislador, ainda mais fraco, diante da evidente dissonância


perante os seus representados.
No caso brasileiro, o voto distrital deverá ser puro, ou seja, o (s) mais
votado (s) dos respectivos distritos serão eleitos aqueles que obtiverem 50% dos
votos válidos, em caso contrário será realizado um segundo turno de votação
com os dois candidatos mais votados no distrito. No Brasil, se mostra, a toda
evidência não ser ainda possível a adoção do voto distrital misto, ou seja, aquele
em que o eleitor vota, em um primeiro momento, no candidato e depois vota em
uma lista, pela simples razão da fragilidade das representações partidárias no
Brasil, ainda mais com o regime das comissões provisórias em plena vigência.
Se no Brasil já é vivenciado o sistema de representação política no qual
prepondera o casuísmo explícito, imagine se houvesse a possibilidade em lista.
O “dono do partido” fará a formação da lista a partir da sua composição familiar,
em detrimento dos filiados.
Em face da fragilidade da administração dos partidos políticos no Brasil é
somente com o voto distrital puro que será mitigada a atual crise de
representatividade vivida no Brasil, ou seja, somente será adotada a forma de
voto distrital pura na qual o candidato (s) mais votado (s) será (ão) eleito (s),
tendo em vista que se fosse ainda possível a adoção do voto distrital misto a
composição da lista ficaria sua elaboração a exclusivo critério “dono do partido”.
Vale sublinhar que o voto distrital não está imune a desvios pessoais,
basta lembrar o evento registrado nos Estados Unidos da América, na qual
surgiu uma situação pitoresca envolvendo a divisão dos distritos, em que um dos
responsáveis pela constituição dos distritos acabou por criar um distrito com o
formato de uma salamandra, claro que para atender aos seus interesses
políticos, criando, assim, a caricatural expressão Gerrymandering, assim
descrita por Adriano Sant’Ana Pedra:

Gerrymandering (nome dado por um editor norte-americano que, ao


ouvir de um cartunista de seu jornal que o desenho do distrito de Essex,
em Massachusetts, assemelhava-se a uma salamandra (salamander),
respondeu que seria melhor chamá-lo de gerrymander, fazendo um
trocadilho com o nome do responsável pelo novo desenho do distrito,
o governador de Massachusetts, Elbride Gerry9) É uma manobra muito
utilizada na qual se procura desenhar as circunscrições eleitorais de tal
forma a concentrar os eleitores de um candidato desejado e dividir
aqueles de candidatos indesejados. Também chamado de geometria
eleitoral e distritalização tendenciosa, é um dos maiores vícios das
eleições majoritárias em distritos uninominais. 10

Como antídoto a essa possível prática, cabe ressaltar que o Brasil diante
das práticas avançadas que vem experimentando, principalmente no que tange
a apuração dos votos em tempo recorde, ainda contando com a identificação do
eleitor usando o sistema de biometria o Tribunal Superior Eleitoral, possui
competência e imparcialidade suficientes para a constituição dos distritos, sem
qualquer prejuízo de representatividade.

9
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Sistemas eleitorais: tipos, efeitos jurídicos-políticos e aplicação
ao caso brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 44.
10 PEDRA, Adriano Sant’Ana. Sistema eleitoral e democracia representativa. In: AGRA, Walber
de Moura; CASTRO, Luiz Braga de; TAVARES, André Ramos. Constitucionalismo: os
desafios no terceiro milênio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 20.
859

Portanto, a divisão dos distritos e eleitores deve ficar a cargo da Justiça


Eleitoral, porque se tal desiderato restar delegado à classe política, com toda a
certeza verificar-se-ia no futuro casos tão esdrúxulos quanto o narrado e que
ficou conhecido como Gerrymandering, nos Estados Unidos.
Ao lado do fim do regime das Comissões Provisórias com prazo
indeterminado, a adoção da cláusula de barreira ou de desempenho e a adoção
do voto distrital outro tema que é de fundamental relevância está consignado no
financiamento das campanhas políticas. Temas como os demais que vêm
produzindo distorções nocivas ao sistema político pátrio.
A superação da crise crônica que está inserida a democracia e o processo
político brasileiro somente será alcançada com a efetiva e real reforma política
que venha a adota o voto distrital puro, ou seja, se constituindo os distritos
eleitorais, de forma impessoal e objetiva, feita pela Justiça Eleitoral, sendo eleito
o representante para o parlamento aquele que obtiver o maior número de votos,
abolindo por completo o antidemocrático sistema proporcional para eleições
legislativas no Brasil.
Na atualidade as pontuais reformas políticas que são realizadas no Brasil
contemplam em sua essência a manutenção dos atuais detentores de mandatos
eletivos. Na real se produzem mudanças para “ficar do jeito que está” e garantia
a perpetuação do poder.

CONCLUSÕES

Sendo fiel aos objetivos traçados na parte introdutória, as conclusões que


se chega é a de que há uma ausência de representação política no Brasil, pois
o eleitor não se sente representado.
A primeira vista pode se afirmar que esse fenômeno é devido pela própria
essência do sistema proporcional, no qual é possível votar em determinado
candidato e acabar elegendo outro. O segundo ponto a ser colocado em
destaque se refere ao tamanho dos atuais distritos eleitorais, os quais se
consubstanciam nos respectivos Estados da Federação, nos quais não há
efetivamente uma identificação entre eleitor e representante.
Sobreleva enfatizar que o voto distrital é a melhor opção para se tentar
solucionar a crise de representatividade existente no Brasil. Justifica-se esta
opção tendo em vista a própria precariedade do sistema partidário brasileiro, pois
se a lista partidária, a ser produzida no sistema distrital mista, ficará a cargo dos
“donos do partido” portanto as posições privilegiadas serão ocupadas pelos seus
escolhidos.
Ademais, é possível o aliciamento de apoios dos mais variados dentro da
possibilidade de ausência de controle da atividade do candidato, razão pela qual
é possível até dizer da possibilidade de compra do mandato eletivo. O voto
distrital não é a solução para todas as mazelas políticas brasileiras, mas
representa um importante passo para reduzir a crise de representação vivida nos
dias atuais.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. A reforma política: uma proposta de sistema de


governo, eleitoral e partidário para o Brasil. Revista de Direito do Estado, Rio
de Janeiro, n. 3, jul./set. 2006.
860

CORREIA, Oscar Dias. Voto distrital. In: CAVALCANTI, Themistocles Brandão


(Org.). O voto distrital no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1975.

CUNHA Sérgio Sérvulo da. O que é Voto Distrital? Porto Alegre : Sergio
Antônio Fabris Editor, 1991.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia possível. São Paulo:


Saraiva, 1979.

GONZÁLEZ, Holgado. Financiación de partidos y democracia paritária. Revista


de Estudios Políticos, Nueva Época, n. 115, jan./mar. 2002.

GRACIA, Jaime Cárdeanas. Partidos políticos y democracia. México: Instituto


Federal Electoral. 2001.

PEDRA, Adriano Sant’Ana. Sistema eleitoral e democracia representativa. In:


AGRA, Walber de Moura; CASTRO, Luiz Braga de; TAVARES, André Ramos.
Constitucionalismo: os desafios no terceiro milênio. Belo Horizonte: Fórum,
2008.

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

SILVA, Icléa Hauer. O voto distrital. Rio de janeiro: URFJ, Faculdade de


Direito, 1985.

SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Sistemas eleitorais: tipos, efeitos jurídicos-
políticos e aplicação ao caso brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999.
861

VANTAGENS DO SISTEMA ELEITORAL PROPORCIONAL DE LISTA


ABERTA EM RELAÇÃO AO SISTEMA MAJORITÁRIO PARA A ELEIÇÃO DE
DEPUTADO FEDERAL NO BRASIL
ADVANTAGES OF THE OPEN LIST PROPORTIONAL REPRESENTATION
SYSTEM OVER THE MAJORITY SYSTEM FOR FEDERAL DEPUTY
ELECTION IN BRAZIL

Alexandre Lagoa Locatelli

Resumo: Discussão sempre presente no ramo do direito eleitoral é se o nosso


sistema eleitoral utilizado na eleição de deputado federal é considerado o melhor
sistema ou se seria mais adequado a sua pronta alteração. Desse modo,
utilizando o método dedutivo e pesquisa bibliográfica tanto nacional quanto
estrangeira, pretendemos estudar quais as vantagens teóricas e o ganhos de
utilizarmos o sistema eleitoral proporcional de lista aberta em relação ao sistema
majoritário, levando em conta sempre o referencial de um país que tem como
ideal a democracia em seus institutos, a procura de eleições limpas e justas e o
fundamento constitucional de pluralismo político.
Palavra-chave: Sistema eleitoral. Sistema eleitoral proporcional de listas
abertas. Sistema majoritário.

Summary: An ever-present discussion in the field of electoral law is whether our


electoral system used in the election of federal deputy is considered the best
system or if it would be better suited its prompt amendment. Thus, using the
deductive method and both national and foreign bibliographic research, we intend
to study the theoretical advantages and gains of using the open list proportional
representation electoral system in relation to the majority system (FPTP), always
taking into account the referential of a country that has democratic ideal in its
institutes, the search for clean and fair elections and the constitutional foundation
of political pluralismo.
Key word: Electoral system. Open list proportional representation system.
Majority system

INTRODUÇÃO

Pretendemos analisar as vantagens do sistema eleitoral proporcional de


lista aberta, utilizado na eleição de deputado federal, em relação ao sistema
majoritário. Com isso, intentamos verificar se essas vantagens justificam sua
manutenção ou se seria preferível uma reforma do sistema, com vistas a
simplificar o processo.
Assim, inicialmente, iremos fazer uma breve conceituação dos dois
sistemas para na sequencia podermos apontar quais as vantagens que advém
da adoção do sistema proporcional, verificando se condizem com os ideais
democráticos que o Brasil persegue.
A nossa hipótese é que o sistema proporcional gera um resultado mais
satisfatório do que o majoritário, uma vez que mantem proporção entre os votos
e os eleitos, garantindo que as minorias tenham vozes no congresso, sem
desrespeitar a maioria formada.
É cristalina a importância e pertinência do tema, tendo em vistas as
inúmeras tentativas de alteração do sistema eleitoral após a constituição de
862

1988, em especial as recentes reformas após 2015, com o fim das coligações
nas eleições proporcionais, cláusula de barreira e tentativa de mudança na
fórmula eleitoral sobrestada por ADI.
Utilizamos o método dedutivo, com pesquisa prioritariamente bibliográfica,
consubstanciada em literatura nacional e estrangeira para nosso estudo.

CONCEITUAÇÃO DO SISTEMA PROPORCIONAL DE LISTA ABERTA E


MAJORITÁRIO

De maneira recorrente vemos tentativas de alteração do sistema eleitoral


no Brasil. Para citar apenas algumas que ocorrem após a Constituição de 1988,
podemos destacar: a adoção da urna eletrônica; proibição de coligação em
eleições proporcionais e a cláusula de barreira de 10% do quociente eleitoral.
Por conta de tantas tentativas de alteração, não há como não nos
questionarmos se o nosso sistema proporcional de lista aberta ainda é o melhor
sistema para a eleição de deputado federal ou se um sistema mais simples,
como o majoritário, seria a melhor solução.
Nesse sentido, devemos primeiro conceituar os dois sistemas para depois
analisarmos as principais vantagens do sistema eleitoral de listas aberta em
relação ao sistema majoritário.
O sistema majoritário é de fácil entendimento. “Os sistemas eleitorais
majoritários têm como propósito assegurar que os candidatos que receberam
mais votos sejam eleitos” (NICOLAU, 2012, p.21).
Esse sistema é conhecido pela expressão em inglês “First Past The Post”,
traduzido para “o primeiro a cruzar a linha de chegada ganha”, em uma clara
referência às corridas de cavalo
No sistema majoritário, apenas o candidato que recebeu o maior número
de votos consegue se eleger – os demais, mesmo que tenham recebido grandes
votações, não terão assegurados um mandato. Nota-se, claramente, que nesse
sistema eleitoral apenas a maioria tem representatividade, ficando a minoria
excluída da representação eleitoral (VELOSO, 2016, p.77)
Ou seja, naquela região (distrito, cidade, estado, zona eleitoral) vence o
candidato que tiver o maior número de votos.
Já no sistema proporcional, por seu turno, “cada partido ou coligação
apresenta uma lista de candidatos. Por intermédio de uma fórmula matemática
distribuem-se as cadeiras de uma circunscrição eleitoral segundo a proporção
de votos obtidos pelos partidos/coligações” (NICOLAU, 2017, p.12).
Nós utilizamos a lista aberta. Nessa espécie de sistema proporcional os
partidos apresentam suas listas, mas o eleitores são livres para votarem
naqueles candidatos que preferem. Os partidos ganham vagas proporcionais
aos votos obtidos (pelo próprio partido, bem como pela soma de todos os
candidatos). Uma vez que se sabe quantas cadeiras o partido obteve, ficam com
a vaga os concorrentes mais votados dentro desse partido. Se o partido obteve
três vagas, os três primeiros colocados desse partido ficam com a vaga. Por isso
que se diz que a lista é aberta.
Se a lista fosse fechada, a questão da proporcionalidade seria mantida,
mas os partidos deixariam pré-definida a ordem dos candidatos. Se o partido
obtivesse três vagas seriam eleitos os três primeiros que o partido estipulou em
sua lista. Em outras palavras, com lista aberta o eleitor consegue definir a ordem
dos candidatos dentro do partido e com lista fechada não.
863

O sistema proporcional visa garantir um resultado de representação muito


próximo ao resultado das urnas. Se um partido obteve 20% dos votos ele deve
ficar com aproximadamente 20% das cadeiras. No sistema majoritário não existe
garantia dessa proporção.
Vale observar, por fim, que o sistema proporcional, respeitadas suas
variações, é o mais utilizado no mundo para a função legislativa que aqui
denominamos deputado federal. Para citar apenas alguns países que o utilizam:
Argentina, Chile, Marrocos, Portugal, Espanha e Itália1. Até por esse motivo,
antes que se pretenda modificar o sistema que é o mais usado no mundo, é
preciso que se entenda exatamente suas vantagens.

VANTAGENS DO SISTEMA PROPORCIONAL AO MAJORITÁRIO

Como já dito e reforçado por Enzweiler (2008), o sistema majoritário não


se preocupa com a representatividade. Ele é muito mais indicado para eleição
ao Executivo, em que se elege apenas uma pessoa.
As minorias não têm voz no sistema majoritário, uma vez que uma
apertada maioria pode obter a totalidade das cadeiras. O fato das minorias não
conseguirem assegurar representatividade fere profundamente a democracia e
pode levar ao caos político, com segregação e rupturas internas. Uma
democracia com efetivo debate e participação de todos é muito mais evoluída.
Ainda, no sistema majoritário existe um “desperdício” dos votos dos não
eleitos. Se só os mais votados são eleitos, todos os votos para os não eleitos
não significam nada, enquanto no proporcional todos os votos valem para formar
uma bancada proporcional.
Em decorrência, nos países em que a votação não é obrigatória, o sistema
majoritário ainda faz com que poucos queiram participar do pleito, já que acham
que seu voto não terá peso (uma vez que muitos eleitores pensam que seu
candidato vai ganhar ou perder independente do seu voto – no sistema
proporcional todos os votos contam).
Nesse sentido, arrematando as críticas ao sistema majoritário:
“Não será hora, afinal, de abrirmos a mente para a possibilidade de que o
primeiro a cruzar a linha de chegada [expressão para designar sistema
majoritário] seja muito bom para corridas de cavalo, mas talvez não a melhor
coisa para as eleições?” (DAHL,2015, p.61)
De outra banda, o sistema proporcional traz consigo uma série de
vantagens democráticas.
Juliano Machado Pires (2009) analisando os ensinamentos de Assis Brasil
aponta que, o sistema que adotamos contempla as principais qualidades
desejáveis: ser o mais simples possível, diminuir as chances de fraude eleitoral,
assegurar representação de opinião de minorias e garantir a estabilidade da
posição da maioria.
O nosso sistema não é o mais simples de todos (o próprio sistema
majoritário é bem mais simples), mas é seguro dizer que é o mais simples
possível para assegurar um resultado satisfatório. Com o conhecimento que
temos hoje é muito difícil imaginar um sistema mais simples que ofereça
melhores resultados.

1 Fonte: http://aceproject.org/epic-en?question=ES005&f=g acesso em 05/09/2019, 17:19


864

A questão de fraudes eleitorais não dependem unicamente do sistema.


Podemos dizer que o sigilo da votação e o uso de urnas eletrônicas praticamente
afastaram as possibilidades de fraudes eleitorais no Brasil de hoje.
A terceira qualidade apontada pelo autor talvez seja a principal: dar vozes
às minorias, mas sem deixar de respeitar a maioria.
Pires (2009), deixa muito claro que não se busca que a maioria dos
eleitores não possa eleger a maioria dos representantes e sim que se evite que
a maioria dos eleitores eleja a totalidade dos representantes.
No sistema proporcional não é possível que uma singela maioria eleja
todos os representantes como é comum no majoritário. Com isso, é assegurado
o debate, a representação de todos os grupos e o diálogo perene. Ainda, se evita
o atropelo/tirania da maioria, ou seja, se impede que a maioria faça o que bem
entende com as minorias, sob a premissa de estar fazendo valer “a vontade da
maior parcela do povo”.
Num sistema em que apenas a maioria tem poder de legislar é possível
que essa maioria cometa atrocidades, como foi o caso da escravidão negra.
O sistema também possui a quarta qualidade apontada, vez que respeita
a estabilidade da maioria, tendo em vista que a maioria terá a bancada
proporcional aos seus votos. Durante o governo é possível arranjo entre partidos
para votações, uma vez que em cada questão debatida as maiorias e minorias
são diferentes. As pessoas não tem apenas uma pauta, elas podem ser
favoráveis a determinado ponto e desfavoráveis a outro.
Outro ponto que merece ser esclarecido é se a eleição de um candidato
com menos votos que outro fere a democracia. De início, deve-se esclarecer que
esse fenômeno se dá para respeitar a proporcionalidade – caso contrário seria
o sistema majoritário.
Entretanto, trata-se de uma opção do sistema ao preferir o resultado
proporcional dos votos do partido ao do candidato. Dá-se maior valor ao partido
do que ao candidato individualmente considerado, posto que o sistema entende
que o eleitor está optando por determinada plataforma política que será
representada por todos os candidatos daquele partido (esse é um dos motivos
de se defender que não possa existir a migração de partido após a eleição no
sistema proporcional – em que pese esse tema não ser objeto desse artigo,
imperioso fazer referido destaque).
Não se pode considerar que isso fira a democracia, vez que não existe
uma condicionante que para algo ser democrático obrigatoriamente deve ser
eleito o candidato com mais voto. No caso, “elegemos” o partido com mais voto.
É uma convenção plenamente possível, inclusive, vale citar que a democracia
não necessariamente existe apenas por representação, pode ser democracia por
sorteio ou por participação direta. Portanto, continua sendo democracia a eleição
de um candidato com menos votos que outro, desde que respeitando as fórmulas
(sistema eleitoral) previamente estipulada.
O que pode ser apontado como menos democrático, isso sim, é a tirania
da maioria do sistema majoritário.
Portanto, vê-se que cada sistema possui suas vantagens e desvantagens,
cabendo a cada pais selecionar aquele sistema que melhor colida com seus
ideais e instituições.
Por fim, cabe deixar uma reflexão:
Nenhuma instituição molda a paisagem política de um país democrático
mais que seu sistema eleitoral e seus partidos. Nenhuma apresenta variedade
865

maior. As variações são imensas, a tal ponto que um cidadão conhecedor do seu
sistema partidário e dos arranjos eleitorais de seu país poderá achar
incompreensível o panorama político de outro país ou, se compreensível, nada
atraente. (DAHL, 2001, p.147).
Com isso, temos de pensar com mais calma e profundidade, de maneira
crítica, levando em conta o saber acumulado ao longo dos anos antes de se
reformar o sistema que adotamos a tanto tempo e, como já dito, o mais utilizado
no mundo, até porque, como apresentado nesse trabalho, o sistema possui
enormes vantagens se comparado ao sistema majoritário.

CONCLUSÃO

Pelo Exposto, notamos que nessa comparação apenas entre o sistema


proporcional de lista aberta e o sistema majoritário, para eleição de deputado
federal, o primeiro sistema propicia um resultado mais satisfatório.
De fato, priorizando a proporção dos votos obtidos pelos partidos para a
composição das vagas, é possível representar as minorias, dando vozes a todos
e gerando debates entre todas as opiniões.
Dessa forma, o sistema proporcional de lista aberta gera um resultado
justo e democrático, sem tirania da maioria, em que pese estar cristalizado no
senso comum que o fato de os candidatos mais votados não serem eleitos seja
antidemocrático.
A hipótese está satisfeita, restando claro que o sistema atende aos
anseios democráticos de nossa sociedade, perfazendo acerto do legislador ao
estabelecer um sistema capaz de representar proporcionalmente todos os
grupos politicamente organizados com interesses distintos.
Destarte, concordamos com a manutenção desse sistema.

REFERÊNCIAS

ACEPROJECT. Disponível em <http://aceproject.org/epic-


en?question=ES005&f=g acesso em 05/09/2019, 17:19>

DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Brasília: editora UNB, 2001.

______, Robert. A constituição norte-americana é democrática? Tradução:


Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.

ENZWEILER, Romano José. Dimensões do sistema eleitoral – o distrital misto


no brasil, Florianópolis, conceito editorial, 2008

NICOLAU, Jairo Marconi. Sistemas eleitorais. 6 ed. Rio de Janeiro : Editora FGV,
2012.

______, jairo Marconi. Representantes de quem?: os (des)caminhos do seu voto


da urna à câmara dos deputados. 1 ed – Rio de Janeiro, Zahar, 2017.

PIRES, Juliano Machado. A invenção da lista aberta: o processo de implantação


da representação proporcional no Brasil. (mestrado em direito). Biblioteca digital
da Câmara dos Deputados. Brasília, 2009.
866

VELOSO, Carlos Mario da Silva. Elementos de direito eleitoral. 5 ed. São


Paulo, Saraiva, 2016.
867

Grupo de Trabalho:

DIREITO TRIBUTÁRIO E PROCESSO


TRIBUTÁRIO
Trabalhos publicados:

A CRIMINALIZAÇÃO DA DÍVIDA TRIBUTÁRIA NO BRASIL

A FUNÇÃO EXTRAFISCAL DO TRIBUTO NA BUSCA DA SUSTENTABILIDADE


AMBIENTAL

A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DO ITBI NA INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL


SOCIAL FRENTE AO TEMA 796 DO STF

A LEI DE LIBERDADE ECONÔMICA E A APLICAÇÃO DOS MANDAMENTOS


DOS ARTIGOS 109 E 110 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

APLICAÇÃO DO ICMS ECOLÓGICO COMO FATOR DE PROTEÇÃO


AMBIENTAL

CONCORRÊNCIA TRIBUTÁRIA INTERNACIONAL: O DILEMA DOS


PRISONEIROS?

DIREITO FUNDAMENTAL À IMUNIDADE TRIBUTÁRIA SUBJETIVA: UMA


ANÁLISE A PARTIR DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÚMERO
608.872/MG

O ABUSO DO ESTADO NA COBRANÇA DE IMPOSTO SOBRE


PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E PROPÓSITO NEGOCIAL

POLÍTICAS PÚBLICAS TRIBUTÁRIAS E O DESAFIO DA ZONA FRANCA DE


MANAUS PARA A REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS E REGIONAIS

TRIBUTAÇÃO, JUSTIÇA E REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS: UMA


ANÁLISE A PARTIR DAS TEORIAS DE JUSTIÇA
868

A CRIMINALIZAÇÃO DA DÍVIDA TRIBUTÁRIA NO BRASIL


CRIMINALIZATION OF TAX DEBT IN BRAZIL

Renata Gomes de Albuquerque Sá

Resumo: Este trabalho pretende abordar as repercussões da modificação do


entendimento do STJ, que passou a criminalizar a conduta do agente que não
recolhe ICMS em operações próprias, configurando o delito de apropriação
indébita tributária. Em seguida, será exposta a orientação da doutrina tributária
sobre o tema bem e será apresentado um breve panorama do recurso a ser
julgado pelo STF. Por fim, expõe-se o posicionamento autoral no sentido de que
o mero inadimplemento tributário não configuraria conduta delituosa e qualquer
tentativa de transformá-lo em crime configuraria um retrocesso, além de violar a
Constituição da República e o Pacto de San José da Costa Rica, que vedam a
prisão civil por dívida no ordenamento jurídico pátrio.
Palavras-chave: ICMS. Apropriação indébita. Criminalização da dívida
tributária.

Abstract: This paper aims to address the repercussions of the change in the
understanding of the STJ, which began to criminalize the conduct of agents who
do not collect ICMS in their own operations, configuring the offense of
misappropriation of taxes. It will then be exposed to orientation of tax doctrine on
the subject as well and will be presented a brief overview of the resource to be
tried by the Supreme Court. Finally, it exposes the author's position in the sense
that the mere tax default not would configure conduct criminal and any attempt to
turn it into crime would set a setback, in addition to violating the Constitution and
the Pact of San José, Costa Rica, which prohibit the civil arrest for debt in the
legal system homeland.
Keywords: ICMS. Missappropriating. Criminalization Of Tax Debt.

INTRODUÇÃO

Pretendemos tratar, inicialmente, da nova orientação do Superior Tribunal


de Justiça consignado em 2018, que entendeu pela tipicidade do não
recolhimento do ICMS em operações próprias, porém declaradas ao Fisco, as
quais configurariam o crime de apropriação indébita tributária.
Em seguida, abordaremos o entendimento doutrinário sobre a
criminalização da dívida tributária, apresentando os fundamentos da proibição
da prisão por dívida civil no Brasil, a orientação dos principais autores sobre o
tema, bem como seus comentários ao consignado na referida decisão.
À guisa de conclusão, pretendemos explicitar nosso entendimento no
sentido da impossibilidade de se impor sanções penais ao devedor de tributos,
seguindo o entendimento da doutrina abalizada de que o crime de apropriação
indébita exige dolo específico e a prática de fraude pelo sujeito passivo.
Finalmente, registramos que o presente artigo se funda em pesquisa
eminentemente teórica, utilizando-se das fontes jurídicas ortodoxas, como a
legislação, a doutrina especializada e a jurisprudência.

1. O JULGAMENTO DO HC 399.109/SC
869

No dia 20 de agosto de 2018, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça


realizou o julgamento do Habeas Corpus nº 399.109/SC, modificou o
entendimento até então majoritário na jurisprudência pátria no que concerne ao
crime de apropriação indébita tributária1.
O Ministro Relator entendeu como típica a conduta do agente que não
recolhe ICMS em operações próprias, não obstante declarado em guias
específicas. Deste modo, a partir desta decisão, que obriga juízes e tribunais, o
mero inadimplemento de tributos indiretos passou a se subsumir ao tipo do crime
de apropriação indébita tributária, previsto pelo art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.
No caso analisado pela Corte, os contribuintes, na qualidade de
administradores de sociedade empresária, apresentaram as Declarações de
Informações de ICMS e Movimento Econômico (DIMEs) à Secretaria de Fazenda
de Santa Catarina; porém, deixaram de promover o recolhimento do imposto aos
cofres públicos em alguns meses.
Após denúncia do Ministério Público, o juízo de primeira instância
entendeu pela absolvição sumária, entendendo que a conduta do empresário
que, na condição de contribuinte de direito do ICMS, declara devidamente suas
operações, nos termos da legislação fiscal, mas deixa de recolher o valor devido
no prazo legal configuraria mero inadimplemento tributário, o qual não pode ser
criminalizado, sob pena de se constituir hipótese de prisão civil por dívida.
No entanto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao julgar a apelação
criminal, reformou a decisão absolutória, determinando o prosseguimento do
feito por considerar formalmente típica a imputação contida na denúncia. O

1 HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS POR MESES SEGUIDOS.


APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE.
DECLARAÇÃO PELO RÉU DO IMPOSTO DEVIDO EM GUIAS PRÓPRIAS. IRRELEVÂNCIA
PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. TERMOS "DESCONTADO E COBRADO".
ABRANGÊNCIA. TRIBUTOS DIRETOS EM QUE HÁ RESPONSABILIDADE POR
SUBSTITUIÇÃO E TRIBUTOS INDIRETOS. ORDEM DENEGADA. 1. Para a configuração do
delito de apropriação indébita tributária - tal qual se dá com a apropriação indébita em geral - o
fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido
não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não
pressupõe a clandestinidade. 2. O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é
aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente
descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta
dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não
recolher o valor do tributo devido. A motivação, no entanto, não possui importância no campo da
tipicidade, ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial. 3. A descrição
típica do crime de apropriação indébita tributária contém a expressão "descontado ou cobrado",
o que, indiscutivelmente, restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, porquanto nem todo
sujeito passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou contribuição social
responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, mas somente aqueles que "descontam"
ou "cobram" o tributo ou contribuição. 4. A interpretação consentânea com a dogmática penal do
termo "descontado" é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade
tributária por substituição, enquanto o termo "cobrado" deve ser compreendido nas relações
tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não
possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer
hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito. 5. É inviável a absolvição
sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não
recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, notadamente quando a denúncia
descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como
ocorreu no caso. Eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar há que ser esclarecida com a
instrução criminal. 6. Habeas corpus denegado. (HC 399.109/SC, Rel. Ministro ROGERIO
SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/08/2018, DJe 31/08/2018)
870

acórdão também mencionou que a jurisprudência daquela corte possui


entendimento pacífico de que é criminosa a conduta de não repassar o ICMS
cobrado do consumidor final aos cofres públicos, hipótese que supera a mera
inadimplência fiscal, impossibilitando a absolvição sumária.
Quando a questão chegou ao STJ, o Ministro Relator Rogerio Schietti
Cruz afirmou que para a configuração do delito de apropriação indébita tributária,
o fato de o agente registrar, apurar e declarar o imposto devido não tem o condão
de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não
pressupõe a clandestinidade.
Note-se que o Ministro destacou quatro aspectos essenciais para a prática
do crime, nos termos da notícia veiculada sobre o julgamento:

1º) (...) para o delito de "apropriação indébita tributária", o fato de o


agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais
o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma
influência na prática do delito;
2º) O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele
que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária,
conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990 (....);
3º) Assim como no crime de apropriação indébita, o delito de
"apropriação indébita tributária" exige, para sua configuração, que a
conduta seja dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na
consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo.
Porém, a motivação não possui importância no campo da tipicidade,
ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial (...);
4º) A descrição típica do crime de "apropriação indébita tributária"
contém a expressão "valor de tributo ou de contribuição social,
descontado ou cobrado", o que, indiscutivelmente, restringe a
abrangência do sujeito ativo do delito, haja vista que nem todo sujeito
passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou
contribuição social responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei n.
8.137/1990, mas somente aqueles que "descontam" ou "cobram" o
tributo ou contribuição.

Quanto ao quarto aspecto, esclarece o Ministro Relator, na hipótese do


ICMS retido em operações próprias ou em substituição, o encargo é
reembolsado dentro da cadeia de produção, de modo que o substituto e os
substituídos não suportam, economicamente, o valor da exação que somente
será arcado pelo consumidor
Por seis votos a três, o colegiado acompanhou o entendimento do Ministro
Relator. Saliente-se, ainda, que tal decisão uniformiza a jurisprudência da Corte,
visto que havia divergência entre decisões da 5ª e da 6ª Turma sobre o tema.
Registre-se, ainda, por oportuno, que a questão chegou ao Supremo
Tribunal Federal, no Recurso em Habeas Corpus nº 163.334, interposto pelos
pacientes em face do acórdão supramencionado do STJ, o qual ainda não foi
definitivamente julgado.

2. O ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DA


CONDUTA DE NÃO PAGAMENTO DE TRIBUTOS

Impende mencionar que o art. 5º, LXVII, da Constituição da República de


1988 estabelece que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável
pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do
871

depositário infiel”. Outrossim, a Convenção Americana de Direitos Humanos2, à


qual o Brasil aderiu sem reservas, em seu art. 7º, item 73, afirma que não haverá
prisão civil por dívida.
Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, que alterou a
Constituição Federal, inserindo o § 3º em seu artigo 5º4, o STF reconheceu o
status supralegal do Pacto de São José da Costa Rica, de modo a tornar ilícita
a prisão civil por dívida do depositário infiel no julgamento do Recurso
Extraordinário nº 466343/SP5.
Nesse sentido, ao se considerar a ilegalidade da prisão civil por dívida no
ordenamento do país, independentemente da natureza do débito, parcela da
doutrina afirma que a eventual prisão pelo inadimplemento de tributos seria
vedada no direito brasileiro.
Antonio Carlos Martins Soares6, por exemplo, entende que, se a lei
pretendesse criminalizar o mero não pagamento de impostos e contribuições
sociais, independentemente da observância de fraude no comportamento do
contribuinte, estaria equiparando o simples inadimplemento da dívida ao ilícito
penal.
A própria figura prevista no art. 2º, II, da Lei nº 8137/1990 gera
divergências. Antonio Soares7 se orienta no sentido de que, para a existência do
delito de apropriação indébita tributária, a conduta do contribuinte deve resultar
concretamente no prejuízo do Fisco, mediante fraude, a qual estaria implícita no
dolo específico desta conduta típica.
Pedro Roberto Decomain8 defende que o dispositivo legal ora
mencionado não viola o comando constitucional que veda a prisão civil por
dívida, porquanto a hipótese veiculada na norma não seria de prisão civil, mas
decorrente de conduta havida pela lei como crime.
O autor9 acrescenta, ainda, que a falta do recolhimento oportuno do ICMS
já configura o crime previsto naquela norma, pois o valor relativo a este tributo
estaria sempre embutido no preço da mercadoria e sempre seria cobrado do

2 Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em São José,


Costa Rica, em 22 de novembro de 1969.
3 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade

judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.


4 § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em

cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional
nº 45, de 2004)
5 PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida

coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas


subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso
improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a
prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. (STF. RE 466343,
Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, REPERCUSSÃO
GERAL - MÉRITO DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009)
6 SOARES, Antonio Carlos Martins. A natureza jurídica dos crimes contra a ordem tributária

previstos nos arts. 2º, II, Lei 8.137/90 e 95, “c” e “d” da Lei 8.212/91. Doutrina Adcoas. nº 4,
abril/1999, ano II. São Paulo: Editora Esplanada, 1999. p. 91.
7 Ibidem
8 DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária: alguns aspectos da Lei 8.137,

de 27/12/90. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina. v. 1, ano


1. Curitiba: Juruá Editora, 1995. pp. 134-135
9 Ibid., p. 137-138
872

respectivo adquirente, ressalvadas as exceções de venda pelo preço de


aquisição ou por valor menor (nas quais não há qualquer quantia acrescida).
No mesmo sentido se orienta Renato Marcão10, explicitando que, para
restar configurado o crime, deve ocorrer o comportamento que consiste em
descontar ou cobrar, legalmente, o valor devido à Fazenda, em momento anterior
ao inadimplemento, eis que tais valores chegariam ao poder do contribuinte de
forma lícita, porém, este dolosamente se apropriaria deles de forma indevida.
Ademais, Andrade Filho11 afirma que a referida norma não pretende
alcançar o fato de alguém ser devedor de tributo, visto que o crime nela descrito
impõe a prisão não por dívida, mas por sonegação. Ademais, a configuração do
tipo exige ainda o dolo, que consistiria na” deliberada conduta de impedir que as
autoridades fiscais tomem conhecimento dos fatos tributáveis e da existência da
obrigação tributária”, como explica o autor12.
Hugo de Brito Machado13 aduz que esta norma deve ser interpretada
conforme a Constituição, para albergar somente situações nas quais o não
pagamento do tributo envolva artifício, praticado pelo sujeito passivo, que
impossibilite a cobrança pelos meios ordinários de cobrança dos tributos pela
Fazenda.
Diante da notícia do resultado do julgamento do STJ, grande parcela da
doutrina especializada já se manifestou de forma contrária ao posicionamento
adotado pelo Tribunal. Paulo Ayres Barreto, em entrevista ao Jornal da USP no
Ar14 considera a decisão um retrocesso, que criminaliza uma conduta do
empresário que normalmente não é dolosa, já que estes carecem, muitas vezes,
de recursos para efetuarem todos os pagamentos necessários, inclusive do
ICMS.
O professor afirma, ainda, que a decisão julga as relações comerciais
entre empresa e consumidor de maneira utópica, pois o cliente nem sempre paga
e, mesmo sem o valor devido, o empresário não é exonerado de realizar o
pagamento dos tributos15. Do mesmo modo, advogados especializados na área
tributária aduzem que esse tipo de responsabilização equivaleria a um meio
oblíquo de cobrança de tributo, obrigando o contribuinte a pagar mesmo que a
exigência seja ilegal ou que suas bases não estejam corretas16.
Menciona-se que o prestigiado professor Heleno Torres elaborou um
parecer17, apresentado ao Ministro Luis Roberto Barroso, nos autos do Recurso

10 MARCÃO, Renato. Crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consume:


comentários e interpretação jurisprudencial da Lei n. 8.137, de 27-12-1990. São Paulo: Saraiva,
2017. p. 212.
11 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária e

contra a previdência social. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 84.


12 Ibid, p. 83.
13 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 3ª ed. São Paulo: Editora Atlas,

2011. p. 421.
14 JORNAL DA USP. Criminalizar falta de recolhimento de ICMS é retrocesso.
<https://jornal.usp.br/atualidades/criminalizar-falta-de-recolhimento-de-icms-e-retrocesso/>.
Acesso em: 14 fev. 2019.
15 Ibidem.
16 MUNIZ, Mariana. Deixar de recolher ICMS próprio, ainda que declarado, é crime, diz STJ.

Disponível em: <https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/deixar-recolher-icms-


proprio-e-crime-23082018>. Acesso em: 14 fev. 2019.
17 TORRES, Heleno Taveira. Parecer Jurídico. Consulente: FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS

DO ESTADO DE SÃO PAULO - FIESP, admitida como amicus curiae nos autos do Recurso
Ordinário Constitucional (ROC) em Habeas Corpus (RHC 163334), para a elaboração de
873

em Habeas Corpus nº 163.334, versando sobre limites constitucionais e legais


para a tipificação do crime de apropriação indébita, no qual afirma que o caso
analisado pelo Pretório Excelso é um típico exemplo cristalino das pretensões
arrecadatórias de uma “ardilosa cultura do medo”, que pouco refletiria o propósito
de justiça ou de fim da impunidade em matéria de crimes tributários.
Explica o professor que o caso concreto a ser julgado não trata de
imputação de crime mediante fraude que resulta em sonegação com atos não
declarados à Fazenda; em verdade, cuida-se de obrigação tributária confessada,
por declaração do contribuinte, mas que não foi paga por razões a apurar18.
Finalmente, analisa o jurista que parece muito simplista ao Estado,
detentor da lei e de todos os meios necessários à efetividade dos meios de
cobrança, preferir usar da coação, pela difusão do medo do punitivismo penal,
para acelerar o recebimento de tributos, mormente quando declarados19.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente estudo, verificamos que grande parcela da doutrina


tributária se posiciona de maneira contrária à criminalização do inadimplemento
de tributos, corrente à qual nos perfilhamos, por entender que a conduta típica
prevista no art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, exige que seja praticada fraude pelo
contribuinte.
O crime de não recolhimento de tributo descontado ou cobrado exige a
caracterização do dolo específico do sujeito passivo, isto é, que ele pratique
algum artifício que impossibilite a cobrança, por parte do Fisco, pelos meios
ordinários.
A tentativa de se definir como crime o não pagamento de uma dívida e,
por meio de tal norma, contornar o obstáculo da vedação da prisão civil por
dívida, previsto tanto na Constituição Federal quanto na Convenção Americana
de Direitos Humanos, configura abuso contra as liberdades públicas, praticado
pelo legislador e, mais recentemente, pela interpretação da jurisprudência
brasileira.
Isso porque o bem jurídico protegido nesse crime é o patrimônio da
Fazenda Pública e esta, por mais que disponha de prerrogativas e garantias
processuais específicas, não pode utilizar o argumento de déficit público ou
necessidade de garantia de seu crédito para violar liberdades individuais dos
cidadãos.
Nesse sentido, não se admite a configuração do tipo penal nesse crime
específico, sem a ocorrência de fraude. Caso a lei pretendesse criminalizar o
mero não pagamento de impostos e contribuições sociais, estaria equiparando
o simples inadimplemento da dívida ao ilícito penal.
Destarte, a jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros vinha se
orientando do mesmo modo até o recente julgamento do Habeas Corpus nº
399109/SC pelo STJ, que entendeu ser crime o não recolhimento de tributo por
parte dos sócios de uma empresa que declararam, mas deixaram de recolher o

PARECER JURÍDICO, "pro bono ", sobre os limites constitucionais e legais para a tipificação do
crime de "apropriação indébita", previsto no inciso II do art. 2°, da Lei nº 8.13 7 /1990, no caso
de tributo (ICMS) declarado e não pago. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/parecer-
fiesp-apropriacao-indebita-icms.pdf. >. Acesso em: 14 fev. 2019.
18 Ibidem
19 Ibidem
874

ICMS sobre operações próprias, isto é, as quais não houve repasse do ônus
tributário para terceiro.
Mencionamos, por oportuno, que se trata de precedente judicial perigoso
e, ainda, com o condão de uniformizar a jurisprudência nacional, o qual privilegia
a tentativa, agora intentada por parte do Estado de Santa Catarina, de coagir o
contribuinte ao pagamento do ICMS sob a ameaça de sofrer ação penal e
posterior pena de prisão.
Entendemos que o Direito Penal, a priori, só deveria atuar em caráter
excepcional, apenas quando os demais ramos do direito se mostrarem
insuficientes ou inoperantes no regramento da conduta humana; ele sempre
deve ser a ultima ratio.
Desta forma, é forçoso admitir que essa tentativa atual de se criminalizar
o não pagamento de tributos configura a utilização deste ramo do direito como
uma maneira de compensar a má gestão ou a ineficiência estatal, o que não
pode prevalecer num Estado Democrático de Direito.

4. REFERÊNCIAS

ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a


ordem tributária e contra a previdência social. 7ª ed. São Paulo: Atlas,
2015.

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Não recolhimento de ICMS


pode caracterizar crime. Disponível em:
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ticias/Not%C3%ADcias/N%C3%A3o-recolhimento-de-ICMS-pode-caracterizar-
crime>. Acesso em: 09 out. 2019.

JORNAL DA USP. Criminalizar falta de recolhimento de ICMS é retrocesso.


<https://jornal.usp.br/atualidades/criminalizar-falta-de-recolhimento-de-icms-e-
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MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 3ª ed. São


Paulo: Editora Atlas, 2011.

MARCÃO, Renato. Crimes contra a ordem tributária, econômica e relações


de consume: comentários e interpretação jurisprudencial da Lei n. 8.137,
de 27-12-1990. São Paulo: Saraiva, 2017.

MARTINES, Fernando. Criminalizar não pagamento de ICMS é


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875

SOARES, Antonio Carlos Martins. A natureza jurídica dos crimes contra a


ordem tributária previstos nos arts. 2º, II, Lei 8.137/90 e 95, “c” e “d” da Lei
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TORRES, Heleno Taveira. Parecer Jurídico. Consulente: FEDERAÇÃO DAS


INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO - FIESP, admitida como amicus
curiae nos autos do Recurso Ordinário Constitucional (ROC) em Habeas
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fiesp-apropriacao-indebita-icms.pdf.>. Acesso em: 09 out. 2019.
876

A FUNÇÃO EXTRAFISCAL DO TRIBUTO NA BUSCA DA


SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL
THE TAX EXTRAFISCAL FUNCTION IN THE PURSUIT OF SUSTAINABLE
ENVIRONMENTAL

Abner da Silva Jaques


Orientador(a): Vladmir Oliveira da Silveira

Resumo: A tutela do meio ambiente na sociedade de riscos é tarefa de difícil


atendimento para o Estado, razão pela qual são necessários novos instrumentos
capazes de atribuir efetividade em sua atuação. Nesse sentido, a pesquisa tem
por objetivo propor uma alteração no paradigma de utilização das normas
tributárias, a fim de afastar a ideia de que ela deva ser meramente coercitiva e
assumir uma postura premial aos agentes que colaborem com a tutela do meio
ambiente. Desse modo, busca-se responder se os tributos ecológicos se tratam
de instrumentos aptos a serem instituídos pelo Estado para a proteção ambiental
e para a busca do atendimento do direito ao desenvolvimento sustentável. A
justificativa decorre da compreensão que o direito enquanto instrumento
coercitivo de comportamentos não tem sido suficiente para lidar com os riscos
decorrentes da globalização e do capitalismo. Será utilizado o método de
hipotético-dedutivo, a partir de pesquisas bibliográficas e documentais.
Palavras-chave: Desenvolvimento Sustentável. Extrafiscalidade. Direito
Tributário.

Abstract: Environment's protection in the risk's society is a difficult task for the
State, that is why we need new instruments capable of assigning effectiveness in
its operation. In this sense, this paper intends to promote a change in the
paradigm of tax norms’ utilization, in other to change the idea that the norm
should have only a coercive aim in order to adopt the idea of rewarding someone
who collaborates with the environment’s protection. Therefore, we will try to
answer if the ecological taxes are capable instruments to be used by the State in
order to ensure a environmental protection and to achieve the right to a
sustainable development. This research is justified by the fact that the law, as a
coercive instrument of behavior, has not been sufficient to deal with globalization
and capitalism’s risks. For this, we will use the hypothetical-deductive method
and a bibliographic and documentary research.
Keywords: Sustainable development. Extrafiscality. Tax Law.

INTRODUÇÃO

Os efeitos da globalização no desenvolvimento dos países são


eminentemente contrapostos, porquanto embora sob a perspectiva econômica
quantitativa seja benéfica, em contrapartida, para a garantia da dignidade
humana e a promoção da qualidade de vida enquanto direito humano é
prejudicial. Isto porque, após a revolução industrial, adotou-se a concepção de
que, muito em decorrência do regime capitalista de economia, o homem e a
natureza são engrenagens do sistema de produção, ou seja, sobrepõem sobre
eles (e seus valores) interesses de ordem econômica.
A consequência dessa compreensão após um grande desenvolvimento
capitalista e tecnológico foi a instauração de uma sociedade de riscos, cuja
877

relação de ‘causas e consequências’ prepondera na modernidade líquida,


resultando-se assim, constantemente, em problemas ambientais que demandam
inúmeros esforços no tratamento complexo de seus efeitos.
Nessa esteira de riscos, o debate sobre a proteção do meio ambiente
enquanto patrimônio difuso dos seres humanos e componente do objeto de tutela
do direito ao desenvolvimento sustentável ganha força, haja vista que, diante da
dimensão de solidariedade/fraternidade, reconhece-se um dever cooperativo de
todos os agentes sociais (nações, empresas, seres humanos, entre outros) na
promoção de um meio ambiente ecologicamente sustentável e na busca da
perpetuação desse patrimônio às futuras gerações.
Assim, a partir da função promocional do direito – na ótica de Norberto
Bobbio – a pesquisa objetivará propor o uso da função extrafiscal do tributo pelo
Estado enquanto forma indutora de comportamentos benéficos na busca pela
sustentabilidade ambiental, dando-se espaço, portanto, aos denominados
tributos ecológicos. Deste modo, o problema que circunda o estudo consiste na
tentativa de responder se os tributos ecológicos se tratam de instrumentos aptos
a serem instituídos pelo Estado interno para a proteção ambiental e para a busca
do atendimento do direito ao desenvolvimento sustentável.
A justificativa da pesquisa decorre da compreensão de que o direito
enquanto instrumento coercitivo de comportamentos não tem sido suficiente
para lidar com os riscos ambientais decorrentes da globalização e do
capitalismo, sendo necessário, portanto, novas formas de atuação do Estado
visando a proteção do meio ambiente. Nessa esteira, como hipótese inicial,
entende-se que a busca de um desenvolvimento ambiental sustentável
pressupõe uma atuação preventiva e precavida do Estado para incentivar os
seres humanos a não apenas deixarem de lesar o meio ambiente, mas também
que realizem atos concretos para a sua proteção.
Para o enfrentamento da temática será utilizado do método de abordagem
hipotético-dedutivo, apoiado no direito humano ao desenvolvimento sustentável
e sua dificuldade na tutela em decorrência de problemas ambientais na
sociedade dos riscos, Assim, serão utilizadas pesquisas bibliográficas e
documentais.

DESENVOLVIMENTO

A discussão acerca da proteção ao meio ambiente e à busca de um


desenvolvimento sustentável é tema caro no referencial da tutela dos direitos
humanos fundamentais, na medida em que reconhece não apenas a
necessidade de proteção aos bens considerados difusos, mas, sobretudo, à
necessidade de romper com um Estado-nação e adotar-se um novo modelo de
cooperação na busca de valores inerentes à consecução da dignidade humana,
sendo essa construção solidária parte do processo de dinamogenesis1 dos
direitos humanos, em sua terceira dimensão.
1 Compreende-se como processo de dinamogenesis a teoria segundo a qual serve para “[...]
expressar o desenvolvimento e o reconhecimento dos direitos humanos nas estruturas sociais,
por que eles são positivados em textos normativos e porque são criadas instituições para garanti-
los [...]. No processo da dinamogenesis, a comunidade social inicialmente reconhece como
valioso o valor que fundamenta os direitos humanos (dignidade da pessoa humana).
Reconhecido como valioso, este valor impulsiona o reconhecimento jurídico, conferindo
orientação e conteúdos novos (liberdade, igualdade, solidariedade, etc.) que expandirão o
conceito de dignidade da pessoa. Essa dignidade, por sua vez, junto ao conteúdo dos direitos
878

Esse processo de evolução dinâmica dos direitos humanos é


intensificado, no que diz respeito à importância de proteção do meio ambiente,
em razão da intervenção do homem na natureza por meio de avanços
tecnológicos e científicos, principalmente para atender as demandas capitalistas.
Em decorrência disso, “[...] a crise ambiental problematiza os paradigmas
estabelecidos do conhecimento e demanda novas metodologias capazes de
orientar um processo de reconstrução do saber que permita realizar uma análise
integrada da realidade” (LEFF, 2002, p. 62). Neste sentido, a construção histórica
dos direitos de solidariedade/fraternidade figura como meio de proteção aos
riscos ambientais que passam a existir em razão da relação de ‘causa e
consequência’ dos atos dos homens movidos pelas exigências dos processos
de globalização (ROCASOLANO; SILVEIRA, 2010, p. 177).
É por isso que Beck (2010, p. 24) reforça que “[...] a promessa de
segurança avança com os riscos e precisa ser, diante de uma esfera pública
alerta e crítica, continuamente reforçada por meio de intervenções cosméticas
ou efetivas no desenvolvimento técnico-econômico”, de modo que na
contemporaneidade é inadmissível que as pessoas possam “[...] continuar sem
consciência do fato de que suas atividades locais são influenciadas, e às vezes
até determinadas, por acontecimentos ou organismos distantes” (GIDDENS,
2012, p. 91), justamente porque a preocupação com o meio ambiente demanda
novas agendas sociais ao direito doméstico e internacional e, principalmente,
uma visão transdisciplinar dos agentes sociais no sentido de compreender a
realidade global além das fronteiras individuais.
Para o atendimento desse direito, entende-se pela necessidade de, na
sociedade atual, tratar o meio ambiente não mais por meio de gerenciamento de
riscos – método utilizado na globalização para sustentar o modelo capitalista –,
mas sim com base na identificação, criação e incentivo de mecanismos capazes
de relacionar os interesses do desenvolvimento econômico e ambiental na busca
de uma justiça social e responsável para com as gerações futuras, a partir da
atuação conjunta de todos os atores sociais.
Em razão de ser o direito composto por um número infinito de normas
estruturadas e inseridas em um sistema massivo de regras de condutas
(CARRAZZA, 2005), o que importa à pesquisa é o instrumento da função
promocional do direito, pois se verifica nele uma possibilidade interessante de
cooperação entre Estado e cidadãos na tomada de ações tendentes à garantia
de um desenvolvimento sustentável e no atendimento do direito ao meio
ambiente equilibrado.
Sob sua perspectiva, compreende-se que ao direito não bastam apenas
regras eminentemente prescritivas e de cunho sancionatórias, mas também é
importante a existência de conteúdos normativos tendentes a conferir um próprio
sentido teleológico e, portanto, uma função social à norma (BORGES, 1988).
Esse fenômeno em que reconhece a norma jurídica indutora de condutas
é tratada por Bobbio (2007, p. 15) como função promocional do Direito, que
projeta, para a transformação do controle social, mormente quando diante de
uma situação reflexiva, a necessidade de atuação ativa do Direito para a
promoção de ações vantajosas visando o atendimento de um objetivo elementar.

humanos concretos, é protegida mediante o complexo normativo e institucional representado


pelo direito” (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 199).
879

A introdução da técnica do encorajamento reflete uma verdadeira


transformação na função do sistema normativo em seu todo e no modo
de realizar o controle social. Além disso, assinala a passagem de um
controle passivo – mais preocupado em desfavorecer as ações nocivas
do que favorecer as vantajosas – para um controle ativo – preocupado
em favorecer as ações vantajosas mais do que em desfavorecer as
nocivas.

Diante dos riscos ambientais e da pouca eficiência que se tem extraído


das normas repressivas de condutas, entende-se pela importância de remodelar
o papel dos agentes sociais, sobretudo do Estado no exercício de sua
competência de criar e aplicar normas, para o incentivo à prática de
comportamentos sociais que sejam desejados, ou seja, busca-se com a função
promocional do direito justamente facilitar a prática, principalmente pelos seres
humanos, de atos tendentes à proteção do meio ambiente (BOBBIO, 2007).
Desse modo, tem-se a pretensão de Bobbio (2007) como sendo a
transposição da ideia de direito enquanto mero regulador de força para o ideal
de direito como instrumento capaz de ser utilizado para a promoção econômica
e social. Reconhece-se, portanto, a partir da função promocional do direito, que
o Estado, na condição de regulador das relações sociais e das condutas
humanas, passa a ter a sua disposição uma sistemática de direito que lhe
permite exercer o controle social de modo diferenciado com vistas na obtenção
de práticas desejáveis.
A partir dos ensinamentos acima, aproximando a teoria da função
promocional do direito ao objeto de pesquisa, tem-se que o direito tributário
brasileiro se trata de importante instrumento indutor para a prática de condutas
que visem a proteção do meio ambiente. Tanto é verdade que Schoueri (2011,
p. 159), ao analisar a classificação extrínseca do tributo, preleciona que ele “[...]
já não mais depende [...] de critérios que lhe são internos, controlados, mas se
avança para a relação com o meio em que a norma está inserida”, ou seja, é
totalmente justificável a instituição de tributos cuja finalidade seja importante ao
ordenamento jurídico-social.
Na própria Constituição Federal, por meio do inciso VI, do artigo 170, há
previsão para que a ordem econômica possa assegurar a “[...] defesa do meio
ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação” (BRASIL, CRFB, 1988). Ainda que essa sistemática de intervenção
do Estado em matéria de direito tributário seja pouco usual, o que mais importa
é a compreensão de que “[...] sendo a tributação um fenômeno histórico, político,
econômico e social, as contribuições oferecidas por essas aproximações não
podem ser deixadas de lado na construção de um sentido ao todo tributário”
(SCHOUERI, 2011, p. 11) pois o poder de tributar sempre foi considerado a
maior influência do Estado em relação aos seus súditos.
Nesse sentido, Fernández (1998) assevera que o direito tributário possui
papel elementar na proteção do meio ambiente, justamente em razão da
possibilidade de ser amplamente utilizado enquanto norma indutora de
comportamentos ecologicamente benéficos. E essa forma de incentivo de
condutas desejáveis que assume o direito tributário é deveras benéfica
porquanto impõe, ainda que de maneira indireta, uma atuação cooperativa entre
o Estado e contribuinte na preservação do meio ambiente. Assim, é certo que
referidas normas tem por finalidade modificar o comportamento dos
880

contribuintes, incentivando-os a realizarem condutas que sejam ecologicamente


corretas e, portanto, que auxiliem na garantia do meio ambiente às futuras
gerações (NABAIS, 2005).
Essa deve ser a diretriz de um Estado contemporâneo que, diante dos
problemas decorrentes da globalização, mormente os relacionados aos danos
ambientes, não pode ficar mais restrito à regulamentação normativa de todo ato
humano, como se procedeu em toda a evolução do direito, em que o signo da
soberania consistia na relação de dominação do Estado e do controle social
sobre tudo aquilo que ocorria em seu território, partir da descrição pormenorizada
de condutas que deveriam ser desincentivadas.

CONCLUSÃO

No presente trabalho foi abordada a necessidade da proteção ambiental


na sociedade de riscos. Por sua análise, verificou-se que, em razão do processo
de dinamogenesis dos direitos humanos e, portanto, do surgimento dos direitos
da solidariedade, o meio ambiente passou a figurar como sendo patrimônio
difuso dos seres humanos, cujo dever de proteção é atribuído a todos os agentes
sociais. Contudo, em decorrência dos efeitos da globalização e do modelo de
mercado vigente (capitalismo), o controle dos riscos ambientais passou a ser
tarefa inestimável, na medida em que é preponderante a compreensão de que a
natureza e os seres humanos se tratam de engrenagens de toda uma cadeia
produtiva.
Assim, viu-se que o direito possui papel de destaque, sobretudo o direito
tributário, porquanto pode ser utilizado enquanto instrumento indutor de
comportamento humano. Sob essa perspectiva, buscou-se afastar da concepção
da norma enquanto função exclusiva de coerção e, em contrapartida, defender
que a função promocional do direito é mais eficaz no combate aos problemas
ambientais e na diminuição dos riscos decorrentes da modernidade líquida.
A partir da função promocional do direito, compreendeu-se que as normas
tributárias brasileiras tem potencial para figurarem como instrumentos
importantes na consecução do desenvolvimento sustentável, pois propõe, ainda
que indiretamente, uma atuação conjunta do Estado, que incentiva a prática de
condutas benéficas com base na utilização de normas indutoras (tributos
ecológicos), e dos contribuintes, que realizam condutas positivas, na medida em
que a consequência será uma ‘premiação’ por seu ato protetivo ao meio
ambiente.

REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução


de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34; 2010.

BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988. Brasília: Diário Oficial da União, 1988.

BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito.


Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007.
881

BORGES, José Souto Maior. O Direito como Fenômeno Lingüístico, o


Problema da Demarcação da Ciência Jurídica, sua Base Empírica e o Método
Hipotético-Dedutivo. Recife: Anuário do Mestrado em Direito da Universidade
Federal de Pernambuco, n. 4, jan./dez. 1988.

CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21 ed. São


Paulo: Malheiros, 2005.

FERNÁNDEZ, María Jesús García-Torres. Análisis del canon de vertidos de la


ley 7/1994 de 18 de mayo, de proteccion ambiental de la comunidad autonoma
andaluza, tras la ley 25/1998 de 14 de julio. In: La ley de andalucia: suplemento
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número 4772, p. 01-07.

GIDDENS, Anthony, A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK,


Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política
tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2002.

NABAIS, José Casalta. Por um estado fiscal suportável estudos de direito


fiscal. Coimbra: Almedina, 2005

ROCASOLANO, Maria Mendez; SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. Direitos


humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção


econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
882

A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DO ITBI NA INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL


SOCIAL FRENTE AO TEMA 796 DO STF
ITBI TAX IMMUNITY IN SOCIAL CAPITAL INTEGRALIZATION FACING THE
STF 796 THEME

Vinícius Mendes e Silva


Bruno Torquete Barbosa

Resumo: Buscas por proteção patrimonial e o enquadramento correto em


tributações, são elementos extremamente importantes para a sociedade. Na
criação de sociedades tipo holding visando a consolidação de um patrimônio, o
presente trabalho pretende dar a correta aplicação do dispositivo constitucional
que prevê imunidade tributária, no que concerne ao ITBI, na transferência de
bens imóveis com o objetivo de integralização do capital social da sociedade.
Optou-se por trazer entendimentos jurisprudenciais a este respeito sendo o
Tema 796 do Supremo Tribunal Federal que serve como balizador da análise.
Em termos de metodologia científica optou-se pelo método dialético-jurídico,
sendo a pesquisa essencialmente bibliográfica e jurisprudencial.
Palavras-chaves: Imunidade. Integralização de Capital Social. ITBI.

Abstract: Searches for asset protection and the correct framing in taxation are
extremely important elements for society. In the creation of holding companies
aimed at consolidating a patrimony, the present work intends to give the correct
application of the constitutional device that provides tax immunity, regarding the
ITBI, in the transfer of immovable property with the objective of integrating the
social capital of the company. It was decided to bring jurisprudential
understandings in this respect and the theme 796 of the Supreme Court that
serves as a catalyst for the analysis. In terms of scientific methodology we opted
for the dialectical-legal method, being the research essentially Bibliographic and
jurisprudential.
Keywords: Immunity. ITBI. Share Capital Payment.

INTRODUÇÃO

Atualmente, uma das ferramentas utilizadas pelos empresários, quando


da constituição de empresas, é a integralização do capital social com bens
imóveis, especialmente nas sociedades do tipo holding.
Esta operação societária é permitida pela legislação nacional, conforme
extrai-se da regra disposta no artigo 997, inciso III do Código Civil, ao declarar
que o capital social pode compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de
avaliação pecuniária.
No que tange à avaliação acima citada, tem-se que o valor dos bens que
passarão a compor o capital social, devem corresponder ao mesmo valor
constante da declaração de imposto de renda pessoa física do sócio, para evitar
a tributação do lucro imobiliário, conforme autorização legal constante no artigo
142, do Decreto nº 9.580/2018.
Em razão desta transferência de bens imóveis, em regra, incidiria o
imposto de transmissão de bens imóveis entre vivos, de agora em diante
chamado de ITBI. Todavia, como se verá adiante, a Constituição Federal e o
Código Tributário Nacional possuem regras próprias para o caso de
883

integralização de capital social com bens imóveis, afastando, desta operação, a


tributação pelo ITBI.

1 DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA – ARTIGO 156, PARÁGRAFO 2º, INCISO


I DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Como visto, em algumas situações, há a transferência de bens imóveis


dos sócios para a pessoa jurídica, mediante a integralização das quotas sociais
e, esta transferência, por ser onerosa e versar sobre imóvel, atrai a incidência do
Imposto de Transmissão de Bens Imóveis - ITBI, previsto no artigo 156, inciso II,
da Constituição Federal.
Todavia, pelo fato destes bens imóveis serem transmitidos em
integralização de capital social, há uma imunidade tributária, prevista no artigo
156, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal:
§ 2º O imposto previsto no inciso I:
I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao
patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a
transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação,
cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a
atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses
bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;

Note que a imunidade não se aplica se a atividade preponderante for a


locação de bens ou arrendamento mercantil. Todavia, sobre este assunto, o
artigo 37 e seus parágrafos do Código Tributário Nacional, disciplina o que vem
a ser atividade preponderante:

Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa


jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou
locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à
sua aquisição.
§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida
neste artigo quando mais de 50% (cinquenta por cento) da receita
operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores
e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações
mencionadas neste artigo.
§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a
aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a
preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3
(três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.
§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á
devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre
o valor do bem ou direito nessa data.
§ 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou
direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do
patrimônio da pessoa jurídica alienante.

O Professor Hugo de Brito Machado, ao abordar a imunidade do artigo


156, parágrafo 2, inciso I, da Constituição Federal, buscou destacar a coerência
sistemática entre a norma constitucional e o artigo 36, do Código Tributário
Nacional, mesmo tendo este sido redigido antes da Carta Magna de 1988.
Segundo autor, apesar da diferença de palavras, a norma a rigor é a mesma:
884

Ela se refere à transmissão dos bens imóveis ou direitos a eles


relativos da pessoa de quem constitui uma pessoa jurídica, ou eleva
seu capital social, como forma de pagamento do capital subscrito. É
operação geralmente conhecida como incorporação de bens ao capital
social. Os bens, nessa operação, constituem o meio de pagamento do
capital subscrito. Diz-se que o capital social, neste caso, foi
integralizado em bens diferentes de dinheiro. (2015, p. 378)

Yoshiaki Ichinara, ao tratar da matéria em obra específica, leciona que a


imunidade deve ser garantida em relação a todas as transmissões com o intuito
de integralização de capital social, sendo irrelevante o tipo jurídico de sociedade
para fins de sua aplicação:

Primeiramente, todas as transmissões de bens imóveis e direitos sobre


imóveis, ao patrimônio de pessoas jurídicas, para realização de capital
social, são imunes do ITBI. Como o texto constitucional fala em
pessoas jurídicas, irrelevantes o tipo ou a natureza jurídica da
sociedade, se sociedade anônima, solidária, de capital e indústria ou
sociedade de responsabilidade limitada, etc. (2000, p. 235)

Nota-se que a finalidade da imunidade tributária em comento é a de


facilitar a mobilização e desmobilização de bens de raiz, facilitando, de certa
forma, a criação de sociedades, empresárias ou não, na medida em que busca-
se não embaraçar com o ITBI a movimentação dos imóveis, quando
comprometidos com tais situações.
No mesmo sentido discorre Cláudio Carneiro: “é hipótese de imunidade
tributária objetiva, pois visa a promover a capitalização e o desenvolvimento
econômico das empresas, realizando o capital sem o recolhimento do imposto”.
(2017, p. 107)
Extrai-se das lições doutrinárias e do próprio texto constitucional, aliado
ao que prevê o Código Tributário Nacional, que a única condicionante à não
aplicação da regra de imunidade tributária do ITBI, na integralização do capital
social, diz respeito à atividade preponderante da empresa.
Todavia, em razão de um processo versando sobre a imunidade aqui
tratada, oriundo da comarca de São João Batista, no Estado de Santa Catarina,
o assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal, entrando em repercussão geral,
dando origem ao tema 796.

2 TEMA 796 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DEMAIS. TRIBUNAIS


DO BRASIL

Essa matéria tem por assunto o alcance da imunidade tributária do ITBI,


prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição, sobre imóveis incorporados ao
patrimônio de pessoa jurídica, quando o valor total desses bens excederem o
limite do capital social a ser integralizado.
Isto ocorre porquê, como dito no início, o valor utilizado pelo sócio, ao
avaliar o bem imóvel que será integralizado, vale-se do valor atribuído ao mesmo
na declaração de imposto de renda, sob pena de pagamento do lucro imobiliário.
O caso em discussão no Supremo Tribunal Federal versa sobre a
diferença entre o valor atribuído ao imóvel para fins de integralização do capital
social e seu valor de mercado, entendendo a Fazenda Pública Municipal de São
885

João Batista, que a norma constitucional limitaria a imunidade até o valor


integralizado, fazendo incidir o ITBI sobre a diferença.
A Procuradoria Geral da República deu parecer favorável ao
entendimento da Fazenda Pública Municipal, assim ementado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL.


ITBI. IMUNIDADE. ART. 156, § 2o, I, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ALCANCE. TELEOLOGIA DA NORMA
CONSTITUCIONAL QUE PREVINE A TRIBUTAÇÃO.
DESPROVIMENTO.
1 – A interpretação teleológica do preceito conduz ao entendimento de
que a imunidade do art. 156, § 2o, I, da Constituição, na transmissão
dos bens necessários para a formação do capital social de sociedade
limitada, não se es- tende para além do valor estipulado no contrato
social a esse título.
2 – Parecer pelo desprovimento do recurso.1

Em que pese o entendimento da Procuradoria Geral da República, o certo


é que não é possível tentar aplicar à imunidade um caráter relativo quando a
Constituição Federal não o faz. A norma deve ser encarada, respeitados os
limites insculpidos no próprio Texto Maior, de forma absoluta.
Frise-se que tal pretensão não poderia ser efetivada nem ao menos por
meio de alteração legislativa por emenda constitucional, já que as limitações ao
poder de tributar alcançam o patamar de cláusulas pétreas, não sendo possível
a supressão ou vedação de seus conteúdos. (SABBAG, 2015, p. 290)
Segundo a Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Regina Helena Costa,
a análise das normas imunizantes deveria se dar por meio de processo
interpretativo:

A partir da identificação do objetivo (ou objetivos) da norma imunizante,


deve o intérprete realizar a interpretação mediante a qual aquele será
atingido em sua plenitude, sem restrições ou alargamentos do aspecto
eficacional da norma, não autorizados pela própria Lei Maior. (2015, p.
127)

Assim, tem-se que a melhor e, talvez a única possível, interpretação a ser


dada ao artigo 156, parágrafo segundo, inciso I da Constituição Federal, seja a
restritiva, pois esta foi a vontade do constituinte, ao prever a norma imunizante,
destacando expressamente as hipóteses de sua não aplicação, como ocorre nos
casos de a atividade preponderante ser compra e venda, locação ou
arrendamento mercantil dos imóveis incorporados.
Sobre o assunto, alguns Tribunais de Justiça já manifestaram-se favorável
à interpretação restritiva da norma constitucional, conferindo a imunidade
tributária, veja:

REEXAME NECESSÁRIO DE SENTENÇA - MANDADO DE


SEGURANÇA - TRIBUTÁRIO - ITBI - INCORPORAÇÃO DE IMÓVEL
AO CAPITAL SOCIAL DE EMPRESA - BENS IMÓVEIS
TRANSFERIDOS AO PATRIMÔNIO DA PESSOA FÍSICA DO SÓCIO

1MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – Procuradoria Geral da República, Parecer n. 188451/2015


– ASLCIV/SAJ/PGR em Recurso Extraordinário 796.376 – SC, Procurador Rodrigo Janot. Data
21/09/2.015 – Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=307792393&tipoApp=.pdf –
Acesso: 05/10/2.019.
886

- HIPÓTESE DE IMUNIDADE - EXEGESE DO ART. 156, § 2º, I, DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL - SENTENÇA RATIFICADA. Nos termos
do disposto no inciso I do § 2º do art. 156 da CF/88 o Imposto sobre a
Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) não incide sobre a transmissão
de bem imóvel a sócio, em retorno de suas quotas de capital social,
pouco importando a forma de integralização destas. Trata-se, pois, de
imunidade, e como tal deve ser interpretada, que não se confunde com
a figura da isenção: enquanto a imunidade decorre diretamente da lei
constitucional, vedando a criação do imposto (trata-se de não-
incidência qualificada, portanto), a isenção decorre sempre de norma
infraconstitucional, ou seja, da própria lei instituidora ou de outra de
igual natureza, dispensando o pagamento do tributo que, em princípio,
é tido como devido.2

APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE


SEGURANÇA. ITBI. INCORPORAÇÃO DE IMÓVEL AO PATRIMÔNIO
DE PESSOA JURÍDICA EM INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL
SOCIAL. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 156,
§2º, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E LEGISLAÇÃO DO
MUNICÍPIO DE RIBAS DO RIO PARDO. RECURSOS OBRIGATÓRIO
E VOLUNTÁRIO PROVIDOS.
Reforma-se a sentença que julgou improcedente o pedido de
declaração da imunidade tributária total do ITBI - Imposto de
Transmissão de Bens Imóveis Inter Vivos, decorrente da integralização
do capital realizada pela empresa impetrante através da incorporação
de imóvel.
O ITBI incidirá sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados
ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital somente na
hipótese de a atividade preponderante do adquirente ser a compra e
venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou
arrendamento mercantil, não podendo, dessa forma, o aplicador do
direito criar hipóteses não previstas no ordenamento jurídico para
restringir as situações previstas de imunidade tributária. 3(grifou-se)
AGRAVO DE INSTRUMENTO – MANDADO DE SEGURANÇA – ITBI
– Interposição contra decisão que indeferiu a liminar - Alegação de
inexigibilidade do crédito ante a imunidade do tributo por força de
integralização do capital social em imóveis – Inocorrência – Empresa
que tem por objeto a participação em outras sociedades como quotista
ou acionista e a compra, venda e administração de bens próprios, tanto
moveis como imóveis – Incidência do tributo condicionada à verificação
da atividade preponderante que justificaria a exação, precedida de
regular procedimento administrativo – Inteligência do art. 37, § 1º do
CTN - Integralização de capital havida por alteração do contrato social
em 2016 – Ciência por parte da impetrante do indeferimento
administrativo do pedido de não incidência do ITBI em dezembro de
2017 - Decisão reformada – Recurso provido.4
TRIBUTÁRIO - APELAÇÃO – AÇÃO ANULATÓRIA – MUNICÍPIO DE
SÃO PAULO – ITBI – EXERCÍCIO DE 2009. Sentença que julgou
procedente a ação. Apelo do Município. INTEGRALIZAÇÃO DE

2 ReeNec 764/2011, DES. MARIANO ALONSO RIBEIRO TRAVASSOS, SEGUNDA CÂMARA


DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO, Julgado em 05/07/2011, Publicado no DJE 21/07/2011.
3 Relator(a): Des. Sérgio Fernandes Martins; Comarca: Ribas do Rio Pardo; Órgão julgador: 1ª

Câmara Cível; Data do julgamento: 29/11/2016; Data de registro: 02/12/2016.

4 TJSP; Agravo de Instrumento 2046580-30.2018.8.26.0000; Relator (a): Rezende Silveira;


Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Pitangueiras - 1ª Vara; Data do
Julgamento: 05/06/2018; Data de Registro: 05/06/2018.
887

IMÓVEIS AO CAPITAL SOCIAL - IMUNIDADE NOS TERMOS DO


ART. 156, §2º, I DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. Pretensão de
reconhecimento da imunidade do ITBI – Cabimento - Aplicabilidade do
art. 37, §1º, do Código Tributário Nacional – Laudo pericial que concluiu
que a autora não exerce atividade preponderante imobiliária, fazendo
jus à imunidade. SUCUMBÊNCIA - Condenação do Município ao
pagamento da verba de sucumbência - Cabimento - A sucumbência,
regulada no art. 85 do Código de Processo Civil de 2015, está contida
no princípio da causalidade, segundo o qual aquele que deu causa à
instauração do processo deve arcar com as despesas dele decorrentes
- No caso, o Município lançou o ITBI em nome de pessoa jurídica imune
e, para impugnar o lançamento, teve a apelada que arcar com o ônus
de contratar advogado para o ajuizamento do presente feito, sendo
devido o recebimento das verbas sucumbenciais. HONORÁRIOS
RECURSAIS – Majoração nos termos do artigo 85, §11 do Código de
Processo Civil de 2015 POSSIBILIDADE – Observância ao disposto
nos §§ 2º a 6º do artigo 85, bem como aos limites estabelecidos nos
§§ 2º e 3º do respectivo artigo – Majoração em 2% (dois por cento) com
relação à verba honorária já fixada – Honorários que passam a
corresponder a aproximadamente R$ 51.556,00. Sentença mantida.
Recurso desprovido.5
REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO
TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ITBI. IMUNIDADE
INCIDENTE SOBRE OS BENS IMÓVEIS TRANSFERIDOS A TÍTULO
DE INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL. ATIVIDADE
EMPRESARIAL PREPONDERANTE. ARRENDAMENTO RURAL.
SITUAÇÃO NÃO ABARCADA PELA EXCEÇÃO. O arrendamento
mercantil não se confunde com o arrendamento rural, sendo
regulamentados por normas distintas. A intenção do constituinte em
excepcionar do benefício da imunidade do ITBI (art. 156, § 2º da Carta
Maior) tão somente a modalidade de "arrendamento mercantil" é
manifesta, e esta circunstância deve ser observada pelo intérprete.
Considerando que restou demonstrado que a empresa não possui
como atividade preponderante a compra e venda de bens ou direitos,
locação de imóveis ou arrendamento mercantil, mas sim como
"arrendamento de bens imóveis rurais", a confirmação da sentença que
concedeu a segurança é medida que se impõe, porquanto exsurge
manifesto seu direito à imunidade do ITBI na transferência de bens
imóveis para fins de integralização do capital. 6

Dessa forma, tem-se que a interpretação mais adequada ao caso em


análise, é aquela exarada pela doutrina supra citada, bem como pelo que se
extrai dos acórdãos dos Tribunais de Justiça estaduais.

CONCLUSÃO

Assim, demonstrado que a integralização de capital social com bens


imóveis é prática usual no mundo empresarial, tem-se que a Constituição
Federal, prevendo e desejando garantir, da melhor forma, o desenvolvimento

5TJSP; Apelação 1038647-29.2016.8.26.0053; Relator (a): Eurípedes Faim; Órgão Julgador: 15ª
Câmara de Direito Público; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 3ª Vara de Fazenda
Pública; Data do Julgamento: 21/05/2018; Data de Registro: 21/05/2018.
6TJMG - Ap Cível/Reex Necessário 1.0248.13.000929-8/001, Relator(a): Des.(a) Yeda Athias ,
6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/08/2015, publicação da súmula em 21/08/2015
888

econômico do país, amparado pelas normas dispostas no artigo 170 e seguintes


do texto constitucional, a par da existência do ITBI, criou regra imunizante,
quando da integralização de capital social com bens imóveis.
Algumas Fazendas Públicas Municipais, com intuito arrecadatório,
passaram a negar a aplicação da imunidade tributária do ITBI, sob a alegação
de que o valor do imóvel ultrapassa aquele utilizado como capital social,
tributando a diferença, aplicando interpretação extensiva ou teleológica ao texto
constitucional.
Todavia, esta interpretação contraria os ensinamentos doutrinários sobre
o tema, inclusive corroborados por decisões de diversos Tribunais de Justiça do
país e, apesar de o assunto ter chegado ao Supremo Tribunal Federal – Tema
796.
Dessa forma, reunindo o quanto exposto pela doutrina especializada, bem
como pelos acórdãos dos Tribunais de Justiça, aliado às regras de
hermenêutica, conclui-se que a melhor interpretação a ser dada à imunidade
tributária do artigo 156, parágrafo segundo, inciso I da Constituição Federal, é a
de que imunidade do ITBI é aplicável até mesmo nos casos de o valor do imóvel
superar ao declarado no capital social, desde que corresponda ao valor
declarado no imposto de renda do sócio, evitando-se fraudes e a empresa não
tenha como atividade preponderante as hipóteses elencadas no texto
constitucional.

REFERENCIAS

CARNEIRO, Cláudio. Impostos federais, estaduais e municipais. 5. ed. São


Paulo: Saraiva, 2015

COSTA, Regina Helena. Imunidades Tributárias. 3. ed. São Paulo: Malheiros,


2015

ICHINARA, Yoshiaki. Imunidades Tributárias. São Paulo: Atlas, 2000.

MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. 3. ed.


São Paulo: Atlas, 2015.

SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 7. ed. São Paulo: Saraiva,


2015
889

A LEI DE LIBERDADE ECONÔMICA E A APLICAÇÃO DOS MANDAMENTOS


DOS ARTIGOS 109 E 110 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
THE ECONOMIC FREEDOM LAW AND THE APPLICATION OF THE
COMMANDMENTS OF ARTICLES 109 E 110 OF THE NATIONAL TAX CODE

Ubiratan Bagas dos Reis


Maria de Fátima Ribeiro

Resumo: O presente estudo visa analisar a interpretação e integração da


legislação tributária e os novos parâmetros adotados pela Lei 13.874/2019 - Lei
de Liberdade Econômica, principalmente em referência a previsão de
inaplicabilidade ao direito tributário e financeiro, das disposições dos artigos 1º,
2º, 3º e 4º do diploma legal. Delineados os contornos principiológicos tributários
e econômicos, se faz a abordagem acerca dos regimes de concorrência e as
circunstâncias que provocam desequilíbrios concorrenciais, bem como o
entendimento atual do alcance do disposto nos artigos 109 e 110 do Código
Tributário Nacional que vedam a alteração da definição, do conteúdo e do
alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado. Por fim, se analisa a
aplicação ou não da Lei 13.874/2019 à legislação tributária vigente. O artigo é
pautado no método dedutivo, pesquisa qualitativa de obras e artigos científicos
sobre o tema em questão.
Palavras-chaves: Direito Tributário. Liberdade Econômica. Interpretação.

Abstract: This article has as objective the study about the interpretation and
integration of tax legislation and the new parameters adopted by Law
13.874/2019 - Economic Freedom Act, mainly referring to the forecast of
inapplicability towards tax and financial law, Articles 1, 2, 3 and 4 of the legal
diploma. After the tributary and economic principles were outlined, the approach
to competition regimes is taken and the circumstances that cause competitive
imbalances are also approached, as well as the current understanding of the
scope of article 110 of the National Tax Code that prohibits changing the setting,
of content and scope of institutes, concepts and forms of private law. Lastly, the
application or not of Law 13.874 / 2019 to the current tax legislation is analyzed.
The article is based on the deductive method, qualitative research of scientific
works and articles about the topic in question.
Key-words: Tax Law. Economic Freedom. Interpretation.

INTRODUÇÃO

Os estudos referentes à interpretação e à integração da legislação


tributária já se encontram ausentes de maiores discussões, até mesmo pela
profundidade em que foram esmiuçadas. Pontua-se que, historicamente, o
Estado tende a aumentar o campo suscetível de incidência de tributos e o
contribuinte tende a evitar o quanto possível o pagamento.
Se de um lado o contribuinte se utiliza dos preceitos constitucionais para
evitar uma maior voracidade do Estado arrecadador, de outro lado, o Estado
denuncia pelo uso abusivo das formas de Direito Privado, como instrumento
ilegítimo para pratica de fraudes e manipulações para se esquivar do dever
fundamental de pagar imposto (NABAIS, 2015).
890

Não se olvida, também, que a incidência de tributos interfere nos preços


dos bens e serviços ofertados, razão pela qual, inerente à própria atividade
comercial e industrial, a possibilidade de ofertar um bem ou serviço com valor
atrativo, se possível com a menor carga tributária possível.
Não somente a tributação interfere no mercado, mas outras normas
jurídicas também influenciam. Ciente deste aspecto das normas, recentemente
o governo Federal editou a Medida Provisória nº 881 que visava potencializar os
ideais de economia de mercado aberto, cujo objetivo era a de auxiliar, com
efeitos imediatos, na recuperação da estagnada economia brasileira, em
especial com relação ao desemprego.
A Medida Provisória nº 881 foi convertida na Lei nº 13.874/2019,
instituindo a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece
normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica
e as disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador,
nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do parágrafo único do art. 170 e do
caput do art. 174 da Constituição Federal.
O §3º, do artigo 1º da Lei de Liberdade Econômica prevê que as
disposições dos artigos 1º, 2º, 3º e 4º, da Lei, não se aplicam ao direito tributário
e ao direito financeiro, ressalvado o inciso X do caput do art. 3º.
Daí surge a incógnita de eventual compatibilidade com o atual
entendimento adotado acerca do disposto nos artigos 109 e 110 do Código
Tributário Nacional, cabendo a indagação: A adoção de definição, conteúdo e
alcance de institutos, conceitos e forma de direito privado, contemplados pela
Lei nº 13.874/2019, serão aplicáveis ao direito tributário?
Almeja-se, neste singelo resumo, a estruturação científica válida para
contribuir, não só acadêmica, mas, sobretudo, pragmaticamente, para o
desenvolvimento de instrumentos eficazes para evitar discussões de ordem
tributária, especialmente com relação a incidência dos tributos aos fatos
econômicos e competência do legítimo Ente federativo para cobrança da
exação.
Com uso do método dedutivo e revisão bibliográfica, apresenta-se a
discussão sobre a interpretação e integração da legislação tributária e a
definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e forma de direito
econômico. Após esta análise, verifica-se pontos da lei da liberdade econômica
no que se refere à estes tópicos.

A INTEGRAÇÃO ENTRE DIREITO TRIBUTÁRIO E DIREITO ECONÔMICO

O primeiro ponto a ser aqui abordado é o de que o tributo deverá interferir


o quanto menos possível no mercado, ser neutro, cabendo o sucesso ou o
fracasso de cada um dos players resultado do seu comportamento.
Diego Bomfim assevera que o Estado dever ser agente garantidor da livre
concorrência, “que seus próprios atos não sejam tomados como instrumentos
causadores de desequilíbrios concorrenciais, advindo dessa interpretação o
princípio da neutralidade concorrencial do Estado e seu corolário em matéria
tributária, o princípio da neutralidade tributária” (2011, p.186).
Mesmo em matéria tributária, o Estado somente deverá intervir na e sobre
a atividade econômica para corrigir falhas de mercado, isto porquanto, o tributo
influi no preço, ou seja, “relevante o cômputo da incidência tributária, já que parte
da receita obtida com a venda deles será destinada ao governo, na forma de
891

tributos que incidirão sobre a venda (indiretos) ou sobre o lucro/resultado


(diretos)”( JUNIOR; ZANIN, RIBEIRO, 2016, p.187-188).
Não é recomendável, portanto, que a tributação seja um desestimulante
da atividade econômica, como fator de discriminatório entre contribuintes que
estejam em situação semelhante. Maria de Fátima Ribeiro assevera que:

A relação entre a tributação e a ordem econômica cada vez mais exige


um exame da relação jurídica, não apenas quanto aos critérios da
incidência da norma tributária, mas também dos efeitos da tributação
sobre o mercado e sobre o sistema econômico. Desta forma, os
princípios constitucionais tributários e os princípios da ordem
econômica se encontram em constante interação e comunicação
(2014).

Enfatiza-se que a Constituição Federal de 1988 prevê no § único, do art.


145, que sempre que possível os impostos serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária,
especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados
os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as
atividades econômicas do contribuinte.
Prioriza-se, com o efeito necessário e obrigatório, a capacidade
contributiva, como forma de evitar o desrespeito a isonomia tributária (FOLLONI,
2014, p. 210), ou, na seara da Economia, na qual as pessoas deveriam pagar
tributos de acordo com a sua utilização, chamado por economistas de princípio
dos benefícios (MANKIW, 2001, p.255). Cabe, aqui, uma interação com o
princípio da capacidade contributiva, já que os atos de concentração tendem a
propiciar maior domínio econômico e, consequentemente, maior influência e
potencial uso dos serviços públicos inerentes a sua atividade econômica.
Neste sentido de prevenção ressalta-se o artigo 146-A da Constituição
Federal, cujos critérios seriam preventivos, não parecendo ser o caso de remédio
para as hipóteses de falhas nas concorrências entre os participantes, bem como,
não outorga fundamento de validade para novos tributos (BOMFIM, 2011, p.
188).
De fato, a Constituição Federal de 1988 repartiu a competência tributária
a cada Ente da Federação, ao passo que, ao analisar os artigos 153, 155 e 156,
se observa que o Legislador Constituinte adotou conceitos de Direito Privado
para definir o fato econômico tributável.
As normas tributárias infraconstitucionais devem recorrer aos preceitos
previstos na Constituição Federal de 1988, não somente com relação à
repartição da competência tributária, mas com aos demais aspectos, com o uso
da interpretação sistemática das normas constitucionais, inclusive no que se
refere à ordem econômica (Art. 170, CF/88).
A exemplificar a integração do direito tributário e econômico, o §2º, do
artigo 173, da Constituição Federal, assegura a lealdade de concorrência,
especialmente no preço de serviço, prevendo que as empresas públicas e as
sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não
extensivos às do setor privado.
As normas tributárias e as normas econômicas devem caminhar
harmoniosamente dentro do possível, evitando-se a insegurança jurídica ao
contribuinte, quando da sua relação com o Estado arrecadador e, quando o
892

cidadão atua na iniciativa privada (player), em relação do Estado regulador da


atividade econômica.
Delineados os contornos principiológicos tributários e econômicos, se faz
necessária avançar os estudos, abordando o entendimento atual do alcance do
disposto nos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional.

CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO E OS ARTIGOS 109 E 110 DO CÓDIGO


TRIBUÁRIO NACIONAL

A par da celeuma de ser ou não regra de interpretação, reza o artigo 109


do Código Tributário Nacional que os princípios gerais de direito privado utilizam-
se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos,
conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
O artigo110, do Código Tributário Nacional, preconiza que a lei tributária
não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e
formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela
Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas
do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências
tributárias.
O tema referente ao conceito de Direito Privado não se restringe somente
a aplicação do exercício ao poder de tributar de cada Ente federativo, mas,
sobretudo, para definição da ocorrência do fato gerador. Quando se analisa o
arquétipo constitucional, se observa que o fato econômico descrito é aquele cuja
delimitação é feita por outras searas do direito privado.
Em diversas oportunidades, as discussões tem por objeto o alcance dos
institutos utilizado pela Constituição Federal de 1988, como por exemplo, folha
de salário, locação de bens móveis e a prestação de serviços, faturamento,
leasing e prestação de serviço, software e conceito de mercadoria etc
(SCHOUERI, 2017, p.790-811).
A lei tributária abrange as relações jurídicas tal como definidas pelo Direito
Privado, já inserida em um contexto econômico, signo presuntivo de riqueza,
aferida pela capacidade contributiva do sujeito passivo, fundada nas normas
constitucionais que atribuem legitimidade ao Estado (MELO, 2001, p.152).
Dentro da interpretação dinâmica, a legislação tributária pauta-se na
evolução dos tempos, daí a correta afirmação de que “se é evidente que o
legislador tributário não pode distorcer o conceito de direito privado, não pode
deixar de lado a possibilidade de evoluir” (SCHOUERI, 2017, p. 814).
“ A mutabilidade dos acontecimentos, as transformações sociais obrigam
à apreensão dos fenômenos sociais segunda a atualidade, pois é cediço que
não só os fatos como os conceitos (noções de bons costumes, ordem pública
etc) são plenamente alteráveis” (MELO, 2001, p. 136).
Assim, a aplicação dos artigos 109 e 110 do CTN é pautada para se evitar
o abuso das formas de Direito Privado, ou seja, no “art. 109, para evitar o abuso
das formas, se lhe facultou atribuir efeitos tributários aos mesmo, embora
limitadamente” e quanto ao art. 110 “se proíbe possa o legislador atribuir efeitos
tributários infraconstitucionais alterá-los para o fim de alargar pro domo sua os
fatos geradores previstos na Constituição”. (COÊLHO, 2010, p. 580).
Os conceitos de Direito Privado são adotados no limite de suas
conceituações constitucionais, evitando-se para haja um abuso das formas pelo
sujeito passivo a fim de evitar ilicitamente o pagamento do tributo devido (art.
893

109, CTN), bem como evitando o alargamento por parte do Estado para tributar
aquilo que não seja de sua competência (art. 110, CTN).
A Lei nº 13.874/2019 preconizou que alguns de seus artigos não seriam
aplicáveis ao direito tributário e financeiro, fato que merece agora maior atenção,
mormente por se tratar de diretrizes inerente aos fatos econômicos suscetíveis
de incidência tributária.

A LEI 13.874/2019 E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO TRIBUTÁRIO

A Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, instituiu a Declaração de


Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado,
sendo que o artigo 1º estabelece a proteção à livre iniciativa e ao livre exercício
de atividade econômica e as disposições sobre a atuação do Estado como
agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do
parágrafo único do art. 170 e do caput do art. 174 da Constituição Federal.
O § 1º prevê que o disposto nela será observado na aplicação e na
interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho
nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na
ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas
comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente.
Ao passo que, o § 3º, do art. 1º, dispõe que o quanto previsto nos arts.
1º, 2º, 3º e 4º da Lei, não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro,
ressalvado o inciso X, do caput, do art. 3º, sendo necessária breve abordagem
das matérias abordadas pelos artigos 2º, 3º e 4º e sua correlação com princípios
tributários.
O artigo art. 2º, estabelece que são princípios que norteiam o disposto na
Lei: (i) a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;
(ii) a boa-fé do particular perante o poder público; (iii) a intervenção subsidiária
e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e (iv) o
reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.
A liberdade é inerente ao cidadão, inclusive quanto à matéria tributária. A
boa-fé do particular é assegurada no procedimento tributário, tal como abordado
pelo artigo 148, do CTN, i.e., somente quando não mereçam fé as declarações
ou os esclarecimentos prestados pelo contribuinte caberá a autoridade
fazendária promover o lançamento tributário por arbitramento. O princípio da
neutralidade tributária é inerente a intervenção excepcional do Estado e, por fim,
a própria Constituição apresenta um capítulo limitando o poder de tributar do
Estado.
O art. 3º elenca os direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais
para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, assegurado a
todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Eventual abuso das formas de Direito Privado já se encontram
sedimentado pela aplicação do artigo 109 do CTN, assim, os atos praticados
pelo livre exercício de qualquer atividade econômica não afasta os efeitos
tributários dali decorrentes.
O art. 4º reza que é dever da administração pública e das demais
entidades, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à
legislação sobre a qual versa a Lei nº 13.874/2019, exceto se em estrito
cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de
894

maneira a lesar o mercado, descrevendo, em seus incisos, condutas que de


algum modo atentam contra os princípios da livre concorrência e a da livre
iniciativa.
Neste aspecto, tem-se que o §2º, do artigo 173, da Constituição Federal
de 1988, que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não
poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado, até
porque, ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta
de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos
imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme
definidos em lei.
Observa-se que, a depender da perspectiva a ser adotada, os preceitos
adotados pela nova Lei 13.874/2019 poderão guardar relação com os princípios
constitucionais tributários e as normas previstas no Código Tributário Nacional.

CONCLUSÃO

O presente artigo teve como objetivo análise da aplicação dos preceitos


adotados pela Lei 13.874/2019 que institui a Declaração de Direitos de Liberdade
Econômica, estabelecendo normas de proteção à livre iniciativa e ao livre
exercício de atividade econômica.
Abordou-se a problemática advinda pelo §3º, do artigo 1º, da Lei de
Liberdade Econômica que prevê que as disposições dos artigos 1º, 2º, 3º e 4º,
não se aplicam ao direito tributário e ao direito financeiro, ressalvado o inciso X
do caput do art. 3º.
Verificou-se que em se tratando de matéria tributária, o Estado somente
deverá intervir na e sobre a atividade econômica excepcionalmente já que a
tributação é um desestimulante da atividade econômica, como fator de
discriminatório entre contribuintes que estejam em situação semelhante.
A Constituição Federal de 1988 repartiu a competência tributária a cada
Ente da Federação, sendo que as normas tributárias e econômicas devem ser
interpretadas harmoniosamente para segurança jurídica dos contribuintes.
Os artigos 109 e 110, do Código Tributário Nacional, abordam
satisfatoriamente a aplicação dos conceitos de Direito Privado, seja para evitar
o abuso das formas pelo sujeito passivo (art. 109, CTN), seja para evitar o abuso
do poder de tributar parte do Estado (Art. 110, CTN).
Adentrando aos artigos 1º, 2º, 3º e 4º, da Lei 13.874/2019, apontou suas
correlações com princípios constitucionais tributários e normas
infraconstitucionais previstas no Código Tributário Nacional.
A princípio, a conclusão plausível é no sentido de que a interpretação
dinâmica dos conceitos de Direito Privado não podem ser sumariamente
excluído do direito tributário, sob pena de se evitar a evolução do próprio sistema,
cabendo a jurista avaliar, a cada caso, se os ditames empresariais estão sendo
aplicados de acordo com a ordem constitucional.
O fundamento de validade, para efeitos tributários, guardam inerente
relação com a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas
de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição
Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito
Federal ou dos Municípios.
895

REFERÊNCIAS

BOMFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva, 2011.


COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 11
ed. rev e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

FOLLONI, André. Isonomia na tributação extrafiscal. Revista Direito GV, São


Paulo, p. 201/220, jan.-jun. 2014. Disponível em; <
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SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 7ª ed. – São Paulo: Saraiva,


2017.
896

APLICAÇÃO DO ICMS ECOLÓGICO COMO FATOR DE PROTEÇÃO


AMBIENTAL
APPLICATION OF ECOLOGICAL ICMS AS A FACTOR OF ENVIRONMENTAL
PROTECTION

Graziele Regos da Silva


Orientador(a): Lídia Maria Lopes Rodrigues Ribas

Resumo: O presente artigo investiga, por meio de exemplificações, legislações


e embasamentos doutrinários, demonstrar a eficácia que o ICMS Ecológico pode
gerar no incentivo ao Direito em garantir, através de meios legais, que a
preservação ambiental aconteça adequadamente. Este, em primeira análise, é
feito através de pesquisas doutrinárias tanto no âmbito do direito tributário como
também no que acerca o direito ambiental em seus fundamentos, como também
trará exemplificações concretas do funcionamento do instrumento do ICMS
Ecológico, através de leis que já estão em vigência. A problemática enfrentada
pela pesquisa é, a partir dessa incidência do ICMS Ecológico, se estes resíduos
recebem a devida atenção quanto ao seu tratamento, desde o início de sua
distribuição, até sua devida destinação ao momento em que entra em desuso do
consumidor e torna-se lixo. A pesquisa foi realizada pela técnica da pesquisa
bibliográfica, legislações pertinentes e os conceitos necessários para atingir o
objetivo almejado.
Palavras-chave: ICMS Ecológico. Direito Ambiental. Preservação Ambiental.

Abstract: This present article investigates, by means of exemplifications,


legislations and doctrinaire bases, to demonstrate the effectiveness that the
ecological ICMS can generate in the incentive to the right in guaranteeing,
through legal means, that the environmental preservation happens appropriately.
This, in first analysis, is done through Doctrinarian research in both the scope of
tax law and also in what about environmental law in its foundations, and will also
bring concrete examples of the operation of the ecological ICMS instrument,
through laws that legislate already in force. A problem faced by the research is,
from this incidence of the Ecological ICMS, whether these wastes receive due
attention regarding their treatment, from the beginning of its distribution, until its
destination when it comes into consumer disuse and becomes trash. A research
was performed by the technique of bibliographic research, relevant legislations
and the concepts necessary to achieve the desired objective.
Keywords: Ecological ICMS. Environmental law. Environmental preservation.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca investigar as relações entre tributação e meio


ambiente, e sua aplicação no ICMS Ecológico como um instrumento de política
pública sustentável. Isto posto, cumpre elucidar que o tributo constitui um
elemento altamente impregnado pelos valores da solidariedade e da justiça. Na
atualidade considera-se que o tributo, além de ser um mecanismo destinado a
financiar as despesas públicas – finalidade fiscal –, pode cumprir também uma
importante finalidade de caráter extrafiscal – ordenatória, sendo este caráter
analisado nesse trabalho.
897

Nesse tom, a função do direito tributário na proteção do meio ambiente


manifesta-se através dos denominados tributos ambientais – ou ecotributos -, e
quando bem definidos, são instrumentos que podem harmonizar os interesses
econômicos e os objetivos ambientais com maior eficiência e eficácia. Nessa
oportunidade, os tributos, em função de sua própria natureza, devem exercer
uma finalidade eminentemente voltada ao bem comum, podendo ser otimizada
sua utilização como instrumento de implementação das políticas de proteção ao
meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável.
Além disso, o direito tributário e o direito financeiro são também locus
adequado para a implementação de políticas públicas de diversas naturezas,
sendo a política ambiental apenas mais uma dessas. Nesse sentido, a reflexão
sobre o papel que pode desempenhar o direito tributário na proteção do meio
ambiente é objeto de um crescente interesse nas agendas políticas e nos
âmbitos jurídico e econômico. As possibilidades envolvidas na implementação
dos tributos com finalidade ambiental são variadas, e aqui elas são apenas
indicadas, para que se trate especificamente de uma forma de distribuição da
receita obtida com a tributação (caso do ICMS Ecológico ou do IPTU verde).
Esta distribuição de receitas tem, de fato, finalidade ambiental; e, como
tal, não se aplica de maneira estrita às considerações típicas do Direito
Tributário,1 mas atende aos ditames do Direito Ambiental.
Portanto, o problema a ser examinado neste trabalho é a incidência do
ICMS ecológico como um instrumento de direito financeiro e tributário disponível
para a implementação efetiva de medidas ambientais. O ICMS é uma espécie
de Imposto sobre o Valor Agregado sobre circulação de mercadorias, de
competência dos Estados, entes subnacionais da federação brasileira. Do que é
arrecadado pelos Estados, 25% são divididos com os Municípios, sendo que 1/4
desse valor pode ser dividido conforme critérios estabelecidos lei estadual (CF,
art. 158, parágrafo único).
Aqui se insere a questão do ICMS Ecológico, pois muitos Estados
brasileiros estabeleceram critérios de rateio de parte (1/4) desses valores em
conformidade com as políticas ambientais de preservação. Assim, os Municípios
que tivessem maior índice de preservação ambiental, receberiam maior parcela
no rateio do ICMS, tais como as políticas de prevenção e preservação do seu
território.
Ressalta-se que ao utilizar esse tributo como uma ferramenta extrafiscal
na intervenção econômica, os estados brasileiros têm incentivado
comportamentos econômicos municipais que visam proteger valores
socioambientais, utilizando o ICMS não apenas em sua arrecadação, mas
principalmente para o direcionamento de políticas públicas que invistam no
desenvolvimento sustentável. Por fim, analisar-se-ão os efeitos e a eficácia
dessa incidência como um incentivo às políticas preservacionistas e o que se
pode inferir a partir dos tópicos apresentados.
A execução desta pesquisa utilizou como método a exploração de revisão
bibliográfica em consonância com a análise das leis estaduais e municipais
pertinentes ao tema e definição de conceitos importantes.

1 A distribuição de receitas é do Direito Financeiro, que engloba o Direito Tributário. Muitos


identificam o último com o primeiro; hodiernamente, contudo, é praxe tratar o Direito Tributário
como subconjunto do Direito Financeiro.
898

1 DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE


EQUILIBRADO

Os chamados direitos de solidariedade, nos quais se encontram o direito


ao desenvolvimento e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, foram
reconhecidos somente na terceira geração dos direitos fundamentais. Ou seja,
depois que a primeira geração reconheceu os direitos de liberdade pública, e
que a segunda geração reconheceu os direitos sociais do homem, houve uma
ampliação na busca pela qualidade de vida e solidariedade entre os seres
humanos, nascendo a terceira geração que trouxe os direitos de solidariedade.
A partir de então, a manutenção do equilíbrio ecológico se converteu
numa preocupação de todos, fazendo com que nosso Poder Constituinte de
1988, tutelasse a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida
como direito fundamental, garantindo no artigo 225 da Constituição Federal que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem


de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para os presentes e futuras gerações.

Em 31 de agosto de 1981, o ordenamento jurídico brasileiro instituiu a


Política Nacional do Meio Ambiente, por meio da lei nº 6.938 que definiu o meio
ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas” (art. 3º, I). A referida política dividiu o meio ambiente em aspectos que
facilitam as concepções sobre atividade degradante e o bem imediato agredido.
Segundo Celso Fioriollo (2003, p. 20-21), ao tutelar a qualidade de vida do meio
ambiente como instrumento para a garantia da qualidade de vida, a Constituição
de 1988 delegou ao Poder Público (União, Estados, Municípios e Distrito
Federal), e a toda a sociedade o dever de preservar o meio ambiente,
abrangendo todas as dimensões (meio ambiente natural, artificial, cultural e do
trabalho). O meio ambiente natural, prisma principal do presente artigo, é aquele
compreendido pelos recursos naturais tais como água, solo, ar atmosférico,
fauna e flora, sendo que sua tutela se encontra no §1º, incisos I e VII do artigo
225 da Constituição Federal de 1988.
Sendo assim, a Constituição Federal de 1988, foi bastante inovadora, pois
dedicou um de seus capítulos exclusivamente ao meio ambiente, fazendo
referências explícitas e implícitas por todo seu texto. Por exemplo, temos no
artigo 5º, inciso LXXII, que qualquer cidadão pode propor ação popular para
anular o ato lesivo ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Já no
seu artigo 23, temos que é competência comum a União, Estados, Distrito
Federal e os Municípios na proteção das paisagens naturais notáveis e ao meio
ambiente, o combate à poluição e a preservação de florestas, da fauna e da flora.
Em seguida, o artigo 24 da Carta magna concede competência
concorrente à União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislarem sobre
“florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos
recursos naturais, proteção ao meio ambiente e ao controle da poluição”; bem
como sobre “responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, aos
bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”.
Logo mais, no inciso VI do artigo 171 da CF/1988, é considerada a
defesa do meio ambiente como importante princípio da ordem econômica, de
899

modo que, se não observado, haverá aplicação da responsabilidade dos


culpados no art. 173, §5º. O capítulo destinado à política urbana, a ser executada
pelo Poder Público municipal, visa ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182). Desse
modo, a propriedade urbana deve atender às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor para cumprir sua função social
(art.183, §3º, Constituição Federal/1988).
Portanto, depreende-seque para garantir o bem-estar de seus tutelados,
o Poder Constituinte estabelece a preservação do meio ambiente como requisito
ao atendimento da função social da propriedade urbana. Posteriormente, o artigo
225 da CF/1988 imputa à coletividade e ao Poder Público o dever de defender e
preservar o meio ambiente, tendo em vista ser esse bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida.
Ademais, no plano da ciência jurídica existem inúmeras definições sobre
o termo meio ambiente e critérios encontrados sobre os elementos ou aspectos
relacionados. Existe, no entanto, uma concordância quanto ao caráter poliédrico
e multidisciplinar do conceito jurídico de meio ambiente. A posição jurídica sobre
a temática deve ter como ponto de partida a ideia de que a realidade ambiental
está ancorada primeiramente na ecologia. O legislador cada vez com maior
frequência utiliza um vocabulário técnico próprio da ecologia, como, por
exemplo, equilíbrio ecológico, habitat, ecossistema, entre outros. Dessa
maneira, é importante identificar e delimitar o conteúdo do conceito “ecológico”
de meio ambiente, uma vez que a tributação ambiental deverá ter como
finalidade a proteção do entorno natural e a promoção da sustentabilidade
ambiental. Sobre os alcances do conceito ecológico de meio ambiente – e
mesmo sendo cientes de que qualquer tipo de classificação resulta arbitraria –
pode-se afirmar que o conceito está atrelado à noção estrita de ambiente,
despojada de qualquer elemento artificial.
Nesse sentido, a noção estrita de ambiente está atrelada a sua matriz
ecológica, compreensiva dos fatores abióticos (água, ar e solo) e bióticos (fauna
e flora); trata-se do entorno físico ou natural. Sob isso, convém ressaltar a
influência da Declaração de Estocolmo, a constitucionalização do ambiente
passou a ser uma tendência internacional. Com o consenso por parte da
comunidade internacional sobre a importância do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado como um direito humano indispensável para viver
em condições de dignidade, de forma paulatina, diversos países começaram a
tutelar o meio ambiente nas suas Constituições Políticas. Desde uma
perspectiva objetiva a qualidade do meio ambiente passa a ser um fim
constitucional que determina a obrigação por parte do Estado de zelar pelo
respeito e pela proteção do meio ambiente.
O Estado passa a desempenhar um importante papel na adoção de
políticas públicas que protejam e garantam de forma efetiva o direito ao meio
ambiente, e que ao mesmo tempo permitam o desenvolvimento econômico, de
forma que se propicie uma sustentabilidade ambiental. A constitucionalização do
meio ambiente revela a adoção de uma nova postura ética, na qual os recursos
naturais não podem ser vistos unicamente desde uma perspectiva econômica.
No Brasil, a doutrina e a jurisprudência são pacíficas no sentido de reconhecer
o direito ao meio ambiente como integrante do rol dos direitos e garantias
fundamentais da pessoa humana, constante da Constituição Federal de 1988
(CF/88).
900

2. DIREITO TRIBUTÁRIO AMBIENTAL E O ICMS ECOLÓGICO COMO MEIO


EFICAZ DE PROTEÇÃO AMBIENTAL

A partir destas análises, faz-se necessária um recorte histórico quanto à


formação da proteção ambiental na legislação brasileira. Nesse sentido, convém
colecionar que a Constituição Federal de 1969, por meio do seu artigo 8º, inciso
XVII, alíneas “c”, “h” e “i”, conferiu à União competência para legislar sobre a
defesa e proteção de saúde, florestas e águas. Consequentemente, com
fundamento nesse dispositivo legal, foi criada a Política Nacional do Meio
Ambiente em 31 de agosto de 1981, estabelecida pela Lei nº 6.938.
Nesse sentido, ressalta-se que tal competência foi recepcionada pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, encontrando-se prevista
no inciso IV do artigo 22, nos incisos VI e VII do artigo 24 e, mais adiante no
capítulo VI, no artigo 225. Além disso, a Lei nº 6.938/81 também criou o
SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente), que proporcionou eficazes
mecanismos capazes de conferir ao meio ambiente uma maior proteção, isto é,
que tornassem possível o desenvolvimento sustentável.
Dessa forma, foram definidos ainda todos os objetivos, a sistematização,
e as diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente, de forma a destacar que
a política ambiental deve ser parte integrante das políticas governamentais, e
que as atividades públicas e privadas devem ser exercidas em consonância com
a manutenção do equilíbrio ecológico, segundo o art. 8º da Lei nº 6.938/1981.
Assim sendo, conforme dispõe a Política Nacional do Meio Ambiente, o
Poder Público deve observar os seguintes princípios: a) consideração de que o
meio ambiente é um patrimônio público; b) racionalização do uso do solo, do
subsolo, da água e do ar; c) planejamento e fiscalização do uso dos recursos
ambientais; d) acompanhamento do estado da qualidade ambiental; e)
recuperação de áreas degradada; f) educação ambiental em todos os níveis de
ensino, entre outros. Isto posto, a esta política estabeleceu as áreas prioritárias
de ação governamental relativa à qualidade e ao equilíbrio ecológico, em
consonância com os interesses da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos
Territórios e dos Municípios. Foram estabelecidos também os critérios e
parâmetros de qualidade ambiental, como também as normas relativas ao uso e
ao manejo dos recursos ambientais.
Há que ser frisado que, com a sistematização dessa Política, houve a
formação de certa consequência pública sobre a necessidade de se preservar o
meio ambiente, ou seja, a população e o Poder Público voltaram sua atenção à
questão da utilização adequada dos recursos ambientais, em razão da difusão
de dados e informações de cunho ambiental propiciadas com o advento da Lei
nº 9.938.1981. Importante destacar que com o advento desta lei, foram
regulamentadas medidas pelas quais o Poder Público pode executar a política
ambiental em sua concretude, ou seja, foram criados alguns instrumentos de
intervenção ambiental e de controle repressivo.
Nesse contexto, temos que entre os mecanismos encontrados pelo Poder
Público para controle do cumprimento das diretrizes da política pública urbana,
encontra-se o ICMS Ecológico, uma inovadora alternativa que respeita as
diretrizes do Sistema Tributário Nacional no que tange à proibição de vinculação
de receitas, fomenta o orçamento municipal sem criar novo tributo e, mais
importante, contribui na preservação do meio ambiente.
901

Nesse cenário, conforme dispõe no artigo 182 da Constituição Federal de


1988: “a política nacional de desenvolvimento urbano, executada pelo poder
público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei. Tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes”. Nesse mesmo artigo traz em § 2º que, a
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as exigências do
plano diretor, de forma que a proteção ao meio ambiente é critério para o
atendimento da função social mencionada, uma que é imprescindível para a
garantia do bem-estar de seus habitantes.
Conforme os ensinamentos de Carlos Ari Sundfeld (2002, p. 48-49), a
Constituição de 1988 traçou os principais pontos do campo temático do direito
urbanístico brasileiro, pois delimitou a política espacial das cidades, os
instrumentos para sua implementação, a função social da propriedade urbana,
ressaltou a importância ambiental e da regularização fundiária para atingir o
desenvolvimento urbano, da licença urbanística e do plano direto. Assim sendo,
conforme com o que já foi relatado, ao regrar o meio ambiente com foco nas
complexas necessidades sociais, a Constituição de 1988 estruturou a política de
desenvolvimento urbano, a ser executada pelo Poder Público conforme diretrizes
gerais fixadas em lei.
Com isso, partindo da definição destacada no artigo 182 da Constituição
Federal de 1988, foi regulamentada em julho de 2011, a Lei nº 10.257, também
conhecida como Estatuto da Cidade estabelecendo as diretrizes gerais da
execução das políticas públicas voltadas à propriedade urbana. Esse Estatuto
sublinhou que a preservação do meio ambiente faz parte do cumprimento da
função social da propriedade urbana, podendo a ordem urbanística sofrer
limitações em prol do equilíbrio ambiental e bem-estar geral da coletividade.
Diante disso, o artigo 4º do referido estatuto, sistematizou ainda mais
quanto ao planejamento municipal, com isso, pode-se aduzir que o Estatuto da
Cidade teve por objetivo adequar as os mecanismos de política tributária e
financeira aos objetivos do desenvolvimento urbano, pois delineou os
investimentos geradores de bem-estar geral dos cidadãos.
Como instrumento tributário de intervenção urbanística, o ICMS Ecológico
relacionou a tributação com os objetivos do Estado Social, tendo provocado
impactos positivos na preservação do meio ambiente e na promoção da justiça,
já que o rateio dos recursos obedece a rigorosos índices de cálculo, a ser
minudenciado a seguir.
Portanto, as ferramentas do ICMS Ecológico, comprovam a eficácia da
utilização de instrumentos tributários e financeiros na proteção do direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, pois apresenta um
ponto de intersecção entre a Economia e a ecologia, ciências outrora observadas
como linhas distintas.

2.1. ICMS ECOLÓGICO COMO MEIO EFICAZ DE PROTEÇÃO AMBIENTAL

Como já afirmado anteriormente, o tributo pode ser usado como um


instrumento de preservação do meio ambiente. Nesse contexto, a doutrinadora
Regina Helena Costa (1999, p. 73) reverbera que a tributação ambiental pode
ser entendida como a utilização de instrumentos tributários com a finalidade de
gerar receitas para custeio de serviços públicos de natureza ambiental e para
orientar o comportamento social para preservação do meio ambiente. Pois bem,
902

tanto o direito tributário, quanto o direito ambiental estão sistematizados na


Constituição Federal de 1988, sendo que o Poder Público foi extremamente
rígido na delimitação das competências tributárias, de modo que os Entes
Federativos só podem instituir tributos expressamente previstos na Carta Magna.
Todavia, o texto constitucional abriu duas exceções quando delegou a
competência residual da União Federal para instituir, mediante lei complementar,
impostos não previstos no artigo 153 da CF/88 e outras fontes destinadas a
garantir a manutenção ou expansão da seguridade social (art. 195, §6º da
CF/88). Ocorre que, o inciso II do artigo 155 do Texto Constitucional, designou
que a competência para instituir imposto sobre o ICMS é dos estados e do
Distrito Federal. Já o artigo 158 da CF/88, consolidou em seu inciso IV, parágrafo
único, que os estados possuem poder de legislar sobre ¼ do percentual a que
os municípios têm direito de receber do ICMS.
Por conseguinte, cada estado da Federação ganhou competência legal
para instituir o ICMS em seus respectivos territórios, havendo que regulamentar
os critérios de repasse do ¼ constitucional aos seus municípios. Dessa forma,
os estados começaram a disciplinar a distribuição da parcela da receita
pertencente aos Municípios, como foi o caso do Mato Grosso do Sul com a Lei
Complementar nº 077 de 07 de dezembro de 1994, que apresentou a ferramenta
extrafiscal posteriormente denominada como “ICMS Ecológico”.
Desta feita, a partir dos anos 2000, os estados brasileiros passaram a
internalizar ainda mais as políticas públicas ambientais na redistribuição do
ICMS criando cadastros estaduais de unidades de conservação,
regulamentando mananciais de abastecimento público sob sua
responsabilidade, executando melhor gestão das fundações ambientais e
adotando mais iniciativas voltadas à promoção do desenvolvimento sustentável.
Outrossim, houve sancionamento de repasse de recursos do quarto
constitucional, com melhoria dos métodos de avaliação dos municípios e com
novas fórmulas de cálculo para a aferição do índice de participação dos
municípios. Entretanto, toda essa regulação não é coercitiva, sendo que utilizou
o subsídio fiscal para corroborar a interação dos pilares ambiental, social e
econômico dos estados brasileiros de forma que toda a sociedade acaba sendo
beneficiada a qualidade das áreas já protegidas com o intuito de aumentar a
arrecadação.
Destarte, sendo país rico em diversidade natural, o ICMS Ecológico fez
com que determinados municípios aumentassem drasticamente suas receitas,
encarando suas respectivas áreas verdes (que outrora não poderiam ser
exploradas de forma alguma) não mais como um empecilho ao desenvolvimento,
mas sim como mais uma forma extrafiscal de arrecadação orçamentária.
Portanto, mais uma vez comprova-se a eficácia do ICMS Ecológico como
ferramenta de compensação financeira, fazendo com que os municípios
concentrem recursos oriundos de uma política de zoneamento ambiental.
Diante disso, os estados têm utilizado o mecanismo extrafiscal do ICMS
Ecológico para interagir aos interesses públicos e privados rumo ao
desenvolvimento sustentável, em pleno século XXI, na chamada era dos limites.
Desta forma, pode-se afirmar que suas políticas públicas tributário-ambientais
têm atendido às expectativas constitucionais de garantir um meio ambiente
ecologicamente equilibrado para todos. Isto é, a tributação extrafiscal pode ser
utilizada como uma forma eficaz para ajudar a justiça social no cumprimento de
903

seus objetivos, considerando o campo da receita como ideal para o Estado


transformar e modernizar os métodos de intervenção.
Portanto, considerando que o ICMS Ecológico tem fundamento
constitucional (garantia ao meio ambiente ecologicamente equilibrado), e seu
rateio obedece todos os critérios tributários, pode ser considerado, pois, como
tributo ambiental, até porque possui uma espécie extrafiscal que o permite fazer
parte da elaboração das políticas públicas em prol da preservação eficaz do meio
ambiente. Assim sendo, resta evidente que a política tributária estadual tem
conseguido reduzir os riscos ambientais á atividade econômica, pois o rateio do
recurso do ICMS Ecológico tem permitido a mudança de atitudes por parte dos
agentes econômicos em nome da preservação ambiental.

CONCLUSÃO

Portanto, o Direito ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado é um


direito positivado na Constituição Federal como um direito fundamental,
conforme exposto. Ressalta-se que no Brasil, a doutrina e a jurisprudência são
pacíficas no sentido de reconhecer o direito ao meio ambiente como integrante
do rol dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, constante da
Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Esse direito está altamente impregnado nos princípios de solidariedade e
justiça, pois atualmente os tributos extrafiscais são instrumentos que podem
harmonizar os interesses econômicos dos municípios com os objetivos
ambientais, com maior eficácia e eficiência.
Nesse sentido, o ICMS o ICMS Ecológico, por causa da sua natureza
peculiar, exerce uma finalidade eminentemente voltada ao bem comum, uma vez
que é implementada como um instrumento de implementação das políticas de
proteção do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável. Tal ferramenta,
como exposto neste texto acadêmico, é uma das formas mais eficazes e efetivas
para a conservação ambiental

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Marelhos, 2003.
904

CONCORRÊNCIA TRIBUTÁRIA INTERNACIONAL: O DILEMA DOS


PRISONEIROS?
INTERNATIONAL TAX COMPETITION: A PRISIONER'S DILEMMA?

Jaqueline de Paula Leite Zanetoni


Jonathan Barros Vita

Resumo: A contribuição deste estudo será verificar se a concorrência tributária


internacional está fadada a ser um dilema dos prisioneiros, na qual a ausência
de cooperação tributária entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento
faz com que estes hajam contra seus interesses de longo prazo. Após a
contextualização da temática no cenário atual, o presente trabalho analisou o
dilema dos prisioneiros e os agentes racionais envolvidos na concorrência
tributária internacional no plano das discussões realizadas pelas organizações
internacionais. Por fim, concluiu-se que sem cooperação há uma perda eficiência
econômica global. A pesquisa foi produzida mediante levantamento bibliográfico,
com aplicação do Law and Economics através do método empírico-dialético.
Palavras-chave: Dilema dos prisioneiros. Competição Tributária. Incentivos
Fiscais.

Abstract: This study aims to verify whether international tax competition is


doomed to be a prisoners' dilemma, in which the lack of tax cooperation between
developed and developing countries make them to act against their long-term
goal. After contextualizing the theme under the current scenario, the present
paper analyzed the prisoners' dilemma and the rational agents involved in the
international tax competition in the framework of the discussions held by
international organizations. It was concluded that without cooperation there is a
loss overall economic efficiency. The research was produced through
bibliographic survey, applying Law and Economics through the empirical
dialectical method.
Key words: Prisoners' dilemma. Tax Competition. Tax Incentives.

INTRODUÇÃO

Um dos aspectos da soberania de um país é o poder de exigir as


contribuições necessárias para o funcionamento da máquina estatal, implicando
o necessário estabelecimento de tributos.
Conversamente, os países utilizam-se de baixa tributação ou oferecem
incentivos fiscais a fim de promover o desenvolvimento local. Logo, é importante
observar que muitas jurisdições de baixa tributação não são necessariamente
paraísos fiscais e dependem de investimentos estrangeiros para fortalecer sua
economia com a criação de emprego, aumento de renda e, consequentemente,
incentivar a circulação de moeda nacional.
Não obstante, as empresas multinacionais baseiam seus investimentos
estrangeiros diretos em fatores econômicos (localização geográfica, tamanho do
mercado e custos de produção); estabilidade política e econômica do país;
infraestrutura e eficácia do regime regulatório. Naturalmente, as implicações
905

tributárias relevantes fazem parte do processo de tomada de decisão em relação


à estrutura ideal e ao retorno do investimento. 1
Movendo-se mais adiante e especificamente, nas últimas décadas, os
modelos de negócios sofreram profundas modificações e as empresas
multinacionais se tornaram mais móveis à medida que o foco passou de uma
manufatura substancial para serviços e intangíveis. 2 Em uma era de fronteiras
abertas com uma economia globalizada, algumas empresas multinacionais
conduziram com sucesso suas estratégias de planejamento tributário através da
exploração de lacunas e brechas nas regras tributárias internacionais, a fim de
transferir artificialmente os lucros para jurisdições de baixa tributação,
especialmente em paraísos fiscais. 3
O cálculo desses fatores resultou na não tributação da renda
transfronteiriça devido ao planejamento tributário agressivo, à elusão/evasão
fiscal4 e ao uso das estruturas mencionadas em vários relatórios da OCDE,
especialmente no início do século XXI.
Não obstante, a desigualdade entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento aumentou devido à competição tributária internacional após a
grande recessão. 5 Considerando o cenário em apreço, as práticas de
elusão/evasão fiscal por empresas multinacionais são uma questão global; no
entanto, a transferência de lucros dos países em desenvolvimento pode ter um
impacto negativo significativo em suas perspectivas de desenvolvimento
sustentável.
Cientes de que a concorrência tributária internacional sob a forma de
práticas tributárias prejudiciais pode distorcer os padrões comerciais e de
investimento, corroer as bases tributárias nacionais e transferir parte da carga
tributária para bases tributárias menos móveis, as organizações internacionais
há tempos concentram seus esforços na solução dos problemas relacionados à
concorrência tributária.
Assim, a contribuição deste estudo será fornecer uma avaliação crítica
sobre a concorrência tributária internacional como importante política tributária
na era globalizada, seguindo as discussões realizadas pelas organizações
internacionais.
Desta forma, a partir desta pesquisa objetiva-se demostrar a necessidade
de melhor diálogo e cooperação internacional a fim de promover uma
concorrência incentivada, instituída com bases sólidas, resultando assim, na
criação de ambientes favoráveis aos negócios, facilitação da alocação eficiente
de investimentos e a redução das desigualdades regionais.

1 NOUDARI, Khadija Baggerman/OFFERMANSS, René. Foreign Direct Investment in


Developing Countries: Some Tax Considerations and Other Related Legal Matters. Bulletin
for International Taxation (IBDF), pp. 310-321.
2AVI-YONAH, Reuven S./XY, Haiyan. Global taxation after the crisis: Why BEPS and MAATM

are inadequate responses, and what can be done about it? University of Michigan Public Law
Research Paper n. 494, 2016, p. 4.
3 Para mais informações: http://www.oecd.org/ctp/beps-about.htm (acesso 27 de maio de 2019).
4 Para os conceitos de elusão e evasão fiscal ver: TORRES, Heleno Taveira. Direito tributário

e direito privado. Autonomia privada, simulação e elusão tributária. São Paulo: RT, 2000.
5 World Investment Report 2015 - Reforming International Investment Governance, United

Nations Conference on Trade And Development (UNCTAD), p. 200, disponível em:


https://unctad.org/en/PublicationsLibrary/wir2015_en.pdf (acesso 27 de maio de 2019).
906

Nesse sentido, será apresentado o dilema dos prisioneiros 6 e os agentes


racionais envolvidos na concorrência tributária internacional, haja vista que a
ausência de cooperação supostamente resultaria que tais agentes atuem contra
seus interesses de longo prazo, sendo um clássico dilema da Teoria dos Jogos7,
mais especificamente, o chamado dilema dos prisioneiros.
É dizer, pensa-se na competição tributária internacional como um dilema
dos prisioneiros, onde diante da ausência de cooperação, todos os agentes
racionais parecem ter um incentivo para agir contra seus interesses de longo
prazo. 8 Em que pese as divergências doutrinárias em relação ao tema aqui
abordado, este estudo se propõe a abordar as principais falhas e benefícios da
concorrência tributária em relação aos agentes envolvidos no cenário
internacional. Logo, para quem a competição tributária é conveniente?
Finalmente, para atingir os objetivos traçados nesse artigo, o qual foi
construído sob a técnica de pesquisa bibliográfica, sob o método empírico-
dialético e o sistema de referência utiliza-se de ferramentas específicas do Law
and Economics9.

1. O DILEMA DOS PRISIONEIROS E OS AGENTES RACIONAIS


ENVOLVIDOS NA CONCORRÊNCIA TRIBUTÁRIA INTERNACIONAL

1.1. UMA BREVE INTRODUÇÃO AO DILEMA DOS PRISIONEIROS

Um dos exemplos clássicos da aplicação da Teoria dos Jogos é conhecido


como o "dilema dos prisioneiros". Neste jogo 10, dois indivíduos (A e B) são
acusados de serem cúmplices em um determinado crime. Ambos são mantidos
isolados e sem qualquer possibilidade de comunicação, sendo oferecidas -
separadamente - aos prisioneiros A e B as seguintes escolhas:
 5 anos de prisão se ambos confessarem o crime;
 1 ano de prisão se ambos negarem o crime ante a falta de provas
robustas para um crime de maior potencial ofensivo;
 se um confessar e o outro negar, será aplicado a penalidade de 10
anos de prisão para o indivíduo que negou o crime e a concessão de
liberdade para o que confessou.
Observe que, somente duas escolhas foram apresentadas para A e B: (i)
confessar e (ii) negar. Para melhor entendimento, a matriz do jogo e os possíveis
pay offs (recompensas) podem ser representada pelo diagrama abaixo:

6 O Dilema dos Prisioneiros foi inventado em 1950 por Merrill Flood e Melvin Dresher,
posteriormente adaptado e divulgado por A.W.Tucker. Utilizada no campo da concorrência
tributária internacional por Avi-Yonah in Globalization, tax competition, and the fiscal crisis
of the welfare state. The Harvard Law Review Association, 2000.
7 Para mais sobre a Teoria dos jogos no campo da ciência política: MORROW, James. Game

Theory for Political Scientists. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1994.
8 Ver: AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, tax competition, and the fiscal crisis of the

welfare state. The Harvard Law Review Association, 2000.


9 Como exemplos bem acabados de sistemas de referência baseados nos clássicos autores

americanos: CALIENDO, Paulo. Direito tributário e análise econômica do direito: uma visão
crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008; POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9a
ed. New York: Wolters Kluwer, 2014; CARVALHO, Cristiano Rosa de. Teoria do sistema
jurídico: direito, economia, tributação. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2005.
10Para mais informações: CARVALHO, Cristiano. Teoria da decião tributária. São Paulo:
Editora Saraiva, 2013, pp. 104-115.
907

confessa nega

confessa 5, 5 0, 10
B
nega 10, 0 1,1

Com base nos pays offs apresentados, o prisioneiro A provavelmente irá


considerar as seguintes hipóteses: (i) se o prisioneiro B negar, a melhor escolha
seria negar eis que a penalidade aplicada é de 1 ano de prisão. Todavia, poderia
confessar (trair o prisioneiro B) e livrar-se de qualquer penalidade (veja-se que
trair apresentou-se como a melhor opção); (ii) se o prisioneiro B confessar, a
melhor escolha seria confessar eis que a penalidade ar plicada é de 5 anos de
prisão. Novamente, trair o outro jogador e confessar o crime apresentou-se como
melhor opção através de uma escolha racional.
O prisioneiro B provavelmente irá considerar as mesmas hipóteses
através de uma analise racional dos pays offs apresentados.
Dessa forma, a matriz de ganhos do dilema dos prisioneiros também ser
representada através da seguinte equação: T > R > C > P (onde T é a tentação
para trair, ou seja, quando um jogador confessa e o outro nega; R é a
recompensa pela cooperação mútua; C é o castigo pela deserção mútua; e P é
a paga do ingénuo, ou seja, quando um jogador nega e o outro confessa. 11
O dilema dos prisioneiros pode envolver tanto um jogo estático - jogado
uma única vez ou jogos sequenciais ou dinâmicos que se repetem diversas
vezes. 12
Neste jogo, portanto, a estratégia dominante é confessar, pois apresenta
um melhor resultado independentemente da decisão do outro jogador. Assim,
pode-se dizer que os dois jogadores vão escolher confessar eis que esta
apresenta-se como a estratégia dominante, portanto, o confessar-confessar é a
solução de equilíbrio (ou Equilíbrio de Nash).
O Equilíbrio de Nash se apresenta no dilema do prisioneiro nas situações
em que ambos os indivíduos decidem por confessar o crime (5,5) e geralmente
é resultante de um jogo estático eis que se levam em consideração a escolha
provável de cada jogador individualmente. Já nos jogos sequenciais ou
dinâmicos, o resultado esperado é que ambos jogadores neguem o crime (1,1)
eis que são baseadas nos interesses em ser retribuído de acordo com o ponto
de vista ótimo de Pareto.13

1.2. APLICAÇÃO PRAGMÁTICA DO DILEMA DOS PRISIONEIROS À


COMPETIÇÃO TRIBUTÁRIA INTERNACIONAL

Com base no dilema dos prisioneiros aqui apresentado, as escolhas


derivadas da concorrência tributária internacional é essencialmente a mesma.

11CARVALHO, Cristiano. Teoria da decião tributária. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp.
104-115.
12CARVALHO, Cristiano. Teoria da decião tributária. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp.

104-115.
13CARVALHO, Cristiano. Teoria da decião tributária. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp.

104-115.
908

Dessa forma, se agentes racionais cooperassem entre si, provavelmente a


necessidade de incentivos fiscais e/ou baixa tributação seria melhor adequada e
uniforme no cenário internacional, não prejudicando de forma preocupante as
receitas tributárias de muitas jurisdições em especial dos países em
desenvolvimento. 14
Considere uma empresa multinacional escolhendo entre duas jurisdições
para alicerçar seu investimento estrangeiro. Assim, através de regras não
transparentes ou de aplicação deficiente, um país pode exteriorizar efeitos
adversos para seu rival. 15
Em outras palavras, a estrutura dos incentivos fiscais arquitetada a fim de
atrair investimentos estrangeiros para si é a do dilema dos prisioneiros: cada
jogador prefere impactar os recursos financeiros do seu governo e limitar a sua
receita fiscal com base no seu interesse individual onde uma análise estritamente
racional induz a um resultado inferior ao invés de unirem-se para criar uma rede
de cooperação internacional. 16
No caso concreto da concorrência tributária internacional, os jogadores
podem ser representados pelos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Corroborando com o entendimento aqui exposto, dentro de um cenário de
tomada de decisões/escolhas individuais, os países em desenvolvimento
concedem incentivos fiscais para receber investimentos estrangeiros de modo
que empenham-se em impedir qualquer tentativa dos países desenvolvidos de
aumentar os impostos.
Não obstante, os países em desenvolvimento são principalmente o estado
de origem (fonte) e, por esse motivo, preocupam-se com a redução da tributação
baseada na fonte e não com a mudança da renda doméstica de empresas de
propriedade local para jurisdições de baixa tributação (ou mesmo para
jurisdições de não tributação). 17
Paralelamente , os países desenvolvidos não tributam ativamente a renda
atual por temer que as empresas multinacionais estabeleçam sua sede em outra
jurisdição eis que o status de residente é facilmente alterado. 18 Em outras
palavras, os países desenvolvidos se beneficiam (ainda que indiretamente) do
aumento da riqueza dos investidores residentes em seu território de modo que
tentam obstar o aumento de impostos por parte dos países em desenvolvimento.
Ademais, diversos estudos mostram que alguns países desenvolvidos
utilizam-se intencionalmente de práticas injustas para induzir os países em
desenvolvimento a concluir tratados fiscais que não são favoráveis ao seu
desenvolvimento.19

14 LICHT, Amir N. Games Commissions Play: 2x2 Games of International Securities


Regulation. Yale Journal of International Law, Volume 24, 1999, pp.88-94.
15 LICHT, Amir N. Games Commissions Play: 2x2 Games of International Securities

Regulation. Yale Journal of International Law, Volume 24, 1999, pp.88-94.


16 LICHT, Amir N. Games Commissions Play: 2x2 Games of International Securities

Regulation. Yale Journal of International Law, Volume 24, 1999, pp.88-94.


17 United Nations Handbook on Selected Issues in Protecting the Tax Base of Developing

Countries, (2017), p. 5.
18 AVI-YONAH, Reuven S./XY, Haiyan. Global taxation after the crisis: Why BEPS and MAATM

are inadequate responses, and what can be done about it? University of Michigan Public Law
Research Paper n. 494, (2016), p. 4.
19 BALCO, Tomas. Specific Interpretation and application of treaties on avoidance of double

taxation. Masaryk University, (Dissertation 2017/2018), pp. 19-20


909

Particularmente, as críticas à competição tributária internacional através


de incentivos fiscais são divididas em duas categorias: (i) preocupações básicas
sobre a transferência de recursos dos governos para as empresas por meio de
tais incentivos e (ii) esforços para documentar as ineficiências que tais
transferências podem criar.
Corroborando com o entendimento exposto no parágrafo anterior, estima-
se que US$ 100 bilhões em prejuízos fiscais anuais sejam suportados pelos
países em desenvolvimento devido apenas à condução de investimentos
estrangeiros diretos através de paraísos fiscais, por exemplo. 20
Os países em desenvolvimento são mais suscetíveis à erosão de base
pelas empresas multinacionais, uma vez que há uma maior necessidade de
investimento estrangeiro e menor capacidade de administração e controle
eficazes dos impostos.
Em outras palavras, um número considerável de incentivos fiscais
preferenciais são instituídos nestes países apenas para empresas estrangeiras
(por exemplo, tax sparing). Como se assim não o fosse, o imposto de renda
sobre o investimento interno normalmente representa uma parcela maior da
receita total nos países em desenvolvimento. 21
Soma-se a isso a capacidade administrativa dos países em
desenvolvimento, sendo possível que a concessão e correta utilização dos
incentivos fiscais encontre barreiras em um sistema tributário ainda em
desenvolvimento; pessoas insuficientes trabalhando nas autoridades
competentes; poucos/inexistentes recursos administrativos disponíveis; a
natureza de tratados tributários e pressões políticas feitas por empresas
multinacionais. 22
Como se assim não o fosse, reconhece-se que, alguns países
desenvolvidos deram maus exemplos aos países em desenvolvimento na luta
contra práticas prejudiciais. Como exemplo, a União Europeia tem acolhido e
permitindo a criação de paraísos fiscais dentro de suas fronteira ao permitir a
criação de regimes e sistemas especiais (tais como: IP box, tax rulings,
advanced pricing agreements), transparência ou opacidade de empresas, ou
deslocalização legal de rendas (em alguns casos, a possibilidade de exportar a
nacionalidade de uma empresa).
Já em uma escolha de cooperação entre os jogadores, os países em
desenvolvimento poderiam se beneficiar de mais receitas (e não apenas aos
países desenvolvidos), sem sofrer uma limitação significante na sua capacidade
de atrair investimentos estrangeiros e fornecendo taxas de retorno mais altas
(após impostos).
Paralelamente, os países desenvolvidos também seriam beneficiados
com mais receitas, tornando-se mais atraentes para investimentos ao passo que
os regimes tributários dos países em desenvolvimento suportariam uma
limitação (não significante) na capacidade de atrair investimentos estrangeiros.

20 AVI-YONAH, Reuven S./XY, Haiyan. Global taxation after the crisis: Why BEPS and MAATM
are inadequate responses, and what can be done about it? University of Michigan Public Law
Research Paper n. 494, (2016), p. 4.
21 UNITED NATIONS. Handbook on Selected Issues in Protecting the Tax Base of Developing

Countries, edited by Alexander Trepelkov, Harry Tonino and Dominika Halka, 2sd edition, (New
York, United Nations, 2017), p.5.
22 UNITED NATIONS. Handbook on Selected Issues in Protecting the Tax Base of Developing

Countries, edited by Alexander Trepelkov, Harry Tonino and Dominika Halka, 2sd edition, (New
York, United Nations, 2017), p.6.
910

Nesse sentindo, concorrência incentivada, se instituída com bases


sólidas, tem efeitos positivos, pois estimula a criação de ambientes favoráveis
aos negócios, facilita a alocação eficiente de investimentos e está relacionada à
redução das desigualdades regionais. As experiências das últimas décadas,
tanto nos países desenvolvidos quanto nas economias em desenvolvimento
(principalmente no Sudeste Asiático), incluem várias histórias de sucesso
aparente da competição tributária que estão impulsionando o progresso
econômico sob o ponto de vista internacional.
Neste ponto, somente a título argumentativo, faz-se necessário mencionar
que, a concorrência tributária internacional - via de regra - é conveniente para os
chamados paraísos fiscais, salvo se os benefícios recebidos em troca da
cooperação tributária exceda os benefícios já existentes no cenário da
concorrência tributária.
Finalmente, os investidores se beneficiam da concorrência tributária
internacional eis que obtém maior taxa de retorno de seus investimentos.
Particularmente, os grandes investidores (empresas multinacionais) são
os que mais se beneficiam da concorrência tributária e, consequentemente,
sofrerão maiores prejuízos nos casos de cooperação tributária. Já, os pequenos
investidores arriscam-se a beneficiar de impostos mais altos sobre o capital,
desde que tal prática reduza seus impostos sobre o trabalho, eis estes que
também são trabalhadores.
Portanto, a maior dificuldade no dilema dos prisioneiros é que o equilíbrio
não é o melhor resultado, eis que a colaboração entre os jogadores apresenta-
se como melhor solução. Dessa forma, a cooperação internacional poderia ser
uma ferramenta para reduzir os resultados ineficientes típicos do dilema dos
prisioneiros mediante pay offs adequados, colaborando com a sustentabilidade
financeira dos países e na redução de despesas tributárias.23
Dessa forma, em regra, o dilema dos prisioneiros resulta em um equilíbrio
ineficiente eis que o arranjo de incentivos e a racionalidade induzem a um
resultado pior. Somado a isso, em situações dinâmicas, a cooperação é
desacreditada após a "primeira traição" de um dos jogares, sendo difícil acreditar
neste nas próximas negociações.

CONCLUSÃO

O dilema do prisioneiro é uma ferramenta fundamental para a


identificação de ineficiências comportamentais.
Esse dilema possui aplicação pragmática no estudo das disputas por
receitas tributárias e a consequente manutenção orçamentária dos respectivos
estados, sendo os atores os países desenvolvidos e em desenvolvimento.
A concessão desmedida de incentivos fiscais por ambos os agentes
equivale a uma dupla negativa na tabela clássica do dilema do prisioneiro, sendo
um resultado ineficiente.
A concorrência tributária internacional somente se fará razoável através
de melhor diálogo e cooperação internacional a fim de evitar disputas
desnecessárias neste campo, atingindo o ótimo de Pareto no plano das relações
internacionais.

23CARVALHO, Cristiano. Teoria da decião tributária. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp.
104-115.
911

A fim de prevenir possíveis resistências internacionais, os países devem


se comprometer a cumprir as legislações tributárias e regulamentos
internacionais relevantes, evitando incertezas para os contribuintes (estrangeiros
e nacionais) e para jurisdições com tratados tributários em vigor.
Para que a concorrência tributária gere resultados positivos, é necessária
uma rede considerável de tratados, o que pode ser atingido através de um
tratado tributário multilateral.

REFERÊNCIAS

AVI-YONAH, Reuven S./XY, Haiyan. Global taxation after the crisis: Why
BEPS and MAATM are inadequate responses, and what can be done about
it? University of Michigan Public Law Research Paper n. 494, 2016.

AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, tax competition, and the fiscal crisis


of the welfare state. The Harvard Law Review Association, 2000.

BALCO, Tomas. Specific Interpretation and application of treaties on


avoidance of double taxation. Masaryk University, (Dissertation 2017/2018).

CALIENDO, Paulo. Direito tributário e análise econômica do direito: uma


visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

CARVALHO, Cristiano. Teoria da decisão tributária. São Paulo: Editora


Saraiva, 2013.

CARVALHO, Cristiano Rosa de. Teoria do sistema jurídico: direito,


economia, tributação. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2005.

LICHT, Amir N. Games Commissions Play: 2x2 Games of International


Securities Regulation. Yale Journal of International Law, Volume 24, 1999.

NOUDARI, Khadija Baggerman/OFFERMANSS, René. Foreign Direct


Investment in Developing Countries: Some Tax Considerations and Other
Related Legal Matters. Bulletin for International Taxation (IBDF).

POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9a ed. New York: Wolters


Kluwer, 2014.

TORRES, Heleno Taveira. Direito tributário e direito privado. Autonomia


privada, simulação e elusão tributária. São Paulo: RT, 2000.

UNITED NATIONS. Handbook on Selected Issues in Protecting the Tax


Base of Developing Countries, edited by Alexander Trepelkov, Harry Tonino
and Dominika Halka, 2sd edition, (New York, United Nations, 2017).

WORLD INVESTMENT REPORT 2015. Reforming International Investment


Governance. United Nations Conference on Trade And Development
(UNCTAD).
912

DIREITO FUNDAMENTAL À IMUNIDADE TRIBUTÁRIA SUBJETIVA: UMA


ANÁLISE A PARTIR DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÚMERO
608.872/MG
BASIC RIGHT TO SUBJECTIVE TAX IMMUNITY: AN ANALYSIS FROM THE
EXTRAORDINARY APPEAL NUMBER 608.872/MG

Arthur Gabriel Marcon Vasques


Pedro José Marcon Vasques
Orientador(a): Bruno Valverde Chahaira

Resumo: As imunidades tributárias subjetivas são instrumentos indispensáveis


à construção de uma justiça fiscal, pois delimitam o campo da competência
arrecadatória da Administração Tributária e preservamos direitos humanos
fundamentais. Sob essa perspectiva, objetiva-se analisar os efeitos decorrentes
da decisão proferida pela SupremaCorte no Recurso Extraordinário número
608.872/MG, em que se reconheceu que as imunidades tributárias subjetivas se
aplicam somente aos contribuintes de direito e não de fato. A pesquisa
problematizará a interpretação que cria uma diferenciação entre contribuintes, e
que limita o campo de incidência da imunidade tributária apenas ao contribuinte
de direito. A justificativa repousa sobre o entendimento que ao Poder Judiciário
não é válido atribuir interpretação constitucional que suprima os direitos
fundamentais dos contribuintes. O método utilizado será o hipotético-dedutivo, a
fim de se buscar a compreensão que a óbice aos sujeitos constitucionalmente
tutelados representa ofensa aos valores constitucionais, pois são onerados em
seus bens e rendas.
Palavras-Chave: Direitos fundamentais. Limitação ao poder de tributar.
Contribuinte de fato e de direito.

Abstract: Subjective tax immunities are indispensable instruments for the


construction of a fiscal justice, because they delimit the field of tax collection
powers and preserve fundamental human rights. From this perspective, the
objective is to analyze the effects of the decision issued by the Supreme Court in
Extraordinary appeal number 608.872/MG, which it was acknowledged that
subjective tax immunities apply only to taxpayers “in law” and not “in fact”. The
research will problematize the interpretation that creates a differentiation between
taxpayers, and that limits the field of incidence of tax immunity only to the
taxpayer “in law”. The justification rests on the understanding that it is not valid
for the judiciary to attribute constitutional interpretation that suppresses the
fundamental rights of taxpayers. The method used will be the hypothetical-
deductive, in order to seek the understanding that the obstacle to constitutionally
protected subjects offends the constitutional values, because they are
encumbered in their assets and incomes.
Keywords: Fundamental rights. Limitation on the power to tax. Taxpayer in fact
and in law.

INTRODUÇÃO

As imunidades tributárias subjetivas — entendidas como limitação


absoluta do poder de tributar dos entes federados destinados a pessoas certas
em razão de uma determinação constitucional — figuram no ordenamento
913

jurídico na condição de instrumentos indispensáveis à construção de uma justiça


fiscal, na qual determina à Administração Tributária um dever negativo
concernente na demarcação de sua competência arrecadatória, carreadas,
portanto, de uma finalidade de preservar direitos humanos fundamentais e
atender à sistemática principiológica da Constituição Federal, que busca a
preservação e garantia das liberdades humanas.
Com base nisso, o presente estudo objetiva uma análise dos efeitos da
decisão proferida no Recurso Extraordinário n. 608.872/MG para o ordenamento
jurídico, em que se reconheceu que as imunidades tributárias subjetivas (em
razão da pessoa) se aplicam tão somente, em uma relação jurídico-tributária,
aos contribuintes de direito e não de fato, resultando na consolidação da tese
temática n. 342/STF, que dispõe pela aplicabilidade da imunidade tributária
subjetiva apenas aos contribuintes indicados na posição de contribuintes de
direito, sendo irrelevantes as repercussões econômicas repassadas aos
contribuintes de fato.
Nesse sentido, considerando que a Constituição Federal não apresenta
qualquer limitação à incidência das imunidades tributárias aos contribuintes,
principalmente se interpretado sistematicamente o texto Constitucional – cuja
intenção é a de proteção da dignidade da pessoa humana e das liberdades
individuais –, a pesquisa problematizará o seguinte questionamento: é válida a
interpretação que cria uma diferenciação entre contribuintes, e que limita o
campo de incidência da imunidade tributária apenas ao contribuinte de direito,
mesmo que, no caso concreto, o sujeito de tutela do beneplácito constitucional
seja o contribuinte de fato?
Para a construção da pesquisa, será utilizado o método de abordagem
hipotético-dedutivo, com base em pesquisas bibliográficas e documentais, com
a finalidade de falsear a ideia de que haveria limitação do destinatário
(contribuinte de fato ou direito) das imunidades tributárias subjetivas descritas na
Constituição Federal e, propondo-se, em contrapartida, com base em uma
interpretação sistemática e teleológica, que as imunidades subjetivas aplicam-
se, em verdade, aos contribuintes de fato dos impostos.

DESENVOLVIMENTO

Antes de adentrar à discussão central deste trabalho, qual seja, a


aplicabilidade dos efeitos da imunidade tributária aos contribuintes de fato e não
apenas aos de direito, faz-se imperioso uma completa conceituação acerca da
diferenciação — construída pela doutrina e jurisprudência — das espécies de
contribuinte.
Nesse sentido, conceitua Rodrigo de Carvalho (2016, s/p):

Contribuinte de Direito é o sujeito que participa ativamente da relação


jurídica tributária com o ente tributante, sendo legalmente eleito para
realizar o fato gerador da obrigação tributária. Contribuinte de fato é o
sujeito que não participa diretamente da relação jurídica com o ente
tributante por não realizar o fato gerador da obrigação tributária,
suportando, tão somente, os efeitos econômicos ou a repercussão
econômica da norma jurídica tributária.

Pois bem, resta claro, portanto, que o contribuinte de direito é o sujeito


passivo que se relacionade maneira pessoal e direta com o fato gerador, nos
914

termos do artigo 121, parágrafo único, I, do Código Tributário Nacional. Na


cadeia tributária, é quem recolhe o tributo ao Fisco. Por sua vez, o contribuinte
de fato é quem carrega o ônus econômico do tributo, a quem o peso da relação
indireta é distribuído.
Nesse sentido, reforçando também a conceituação da imunidade que é o
centro da presente discussão, bem pontua Ives Gandra da Silva Martins (1998,
p. 32):

A imunidade, portanto, descortina fenômeno de natureza constitucional


que retira do poder tributante o poder de tributar sendo, pois,
instrumento de política nacional que transcende os limites fenomênicos
da tributação ordinária. Nas demais hipóteses desonerativas, sua
formulação decorre de mera política tributária de poder público,
utilizando-se de mecanismo ofertados pelo Direito. Na imunidade,
portanto, há um interesse nacional superior a retirar, do campo de
tributação, pessoas, situações, fatos considerados de relevo, enquanto
nas demais formas desonerativas há apenas a veiculação de uma
política transitória, de índole tributária definida pelo próprio Poder
Público, em sua esfera de atuação.

Feito o intróito, para iniciar a resposta ao questionamento trazido no tópico


anterior, o posicionamento de Ricardo Silva (2006, p. 15) repousa na auto-
aplicabilidade das normas que versam sobre a imunidade, vez que previstas na
Constituição Federal, e prescindem de legislação infraconstitucional para
conferir ampla e irrestrita condição de gozo, como se vê:

[...] na imunidade o ente estatal não tem poderes para instituir tributos,
descabendo, assim, defender que este mesmo ente detenha poderes
para estabelecer requisitos em torno do exercício da norma imunizante.
Em resumo, se o legislador não tem poder de tributar, sequer pode
estabelecer condições para que as organizações religiosas gozem
deste benefício.

Ora, se ao Poder Legislativo não é possível — por vias ordinárias —


propor alteração aos ditames constitucionais que dizem respeito a um direito
fundamental — neste caso, o direito fundamental do contribuinte —, tampouco o
Poder Judiciário pode se levantar trazendo interpretação diversa da teleologia e
do conteúdo da proposta no texto constitucional, restringindo, dessa forma, o
alcance da norma jurídica que verse sobre direito fundamental.
Nesse mesmo sentido, bem pontua Gustavo Tepedino (1994, p. 12),
afirmando que:

Ao conceder uma imunidade, a Constituição não está concedendo um


benefício, mas tutelando um valor jurídico tido como fundamental para
o Estado. Daí porque a interpretação das alíneas do art. 150, VI, da
Constituição Federal de 1988 deve ser ampla e teleológica, nunca
restritiva e literal.

Não obstante, escorado no princípio à latência proposto por Ulrich Beck1,


é possível compreender uma relação de causa e consequência prejudicial ao

1Esse princípio indica uma relação de causa e consequência de uma conduta, ou seja, trata-se
do efeito colateral advindo de um ato, cuja proposição do autor é indicar que aquilo que em um
momento era inofensivo, em outro pode ser nocivo ao homem (BECK, 2010, p. 61).
915

ordenamento jurídico tributário. Isto porque, os efeitos do Recuso Extraordinário


n. 608.872/MG podem criar, por exemplo, uma relação jurídica que de natureza
híbrida, na qual inicialmente não se aplicaria a imunidade tributária subjetiva
porquanto o contribuinte será o de fato, mas que a partir de um determinado
momento da relação jurídica, especialmente nas interestaduais, haverá a
incidência da imunidade tributária, porquanto o contribuinte passa a ocupar o
status de direito.
Melhor explicando, a discussão em tela é visualizável a partir do seguinte
exemplo: Uma pessoa jurídica (igreja) situada no Estado de Mato Grosso do Sul
— representada por meio de seu líder religioso — que goza da imunidade
tributária destinada aos templos religiosos, adquire em operação interestadual
(Estado de São Paulo) um conjunto de velas, que seriam posteriormente
revendidas na quermesse local, cujos valores arrecadados seriam empregados
nas obras da entidade religiosa. Nesta situação, por figurar na condição de
contribuinte de fato do ICMS enquanto a operação se realiza nos limites
territoriais de São Paulo, não gozará da imunidade subjetiva; todavia, quando do
momento da entrada da mercadoria no território sul-mato-grossense, incidirá o
dever de pagar o diferencial de alíquotas interno (7%), razão pela qual nesse
ponto da relação jurídica passará a figurar na condição de contribuinte de fato e
direito, de modo que, portanto, deverão os efeitos da imunidade subjetiva irradiar
em seu favor.
Assim, considerando que a Constituição Federal não apresenta qualquer
limitação à incidência das imunidades tributárias aos contribuintes de direito ou
de fato, principalmente se interpretado sistematicamente o texto Constitucional
— em que se verifica a intenção da proteção à dignidade da pessoa humana, às
liberdades humanas e, especialmente, impõe limitações ao poder de tributar —,
tem-se que ao Poder Judiciário não é permitido atribuir uma interpretação
constitucional cujo resultado seja a supressão dos direitos fundamentais dos
contribuintes, principalmente porque essa categoria de direitos se trata de
limitação do poder de tributar da Administração Tributária, indicados a partir do
artigo 150, da Constituição Federal (MACHADO, 2009, p. 45-50).

CONCLUSÃO

Resta inferido que a imunidade é uma limitação trazida pela própria


Constituição Federal ao poder de tributar. Assim, a instituição ou a pessoa
contemplada no texto constitucional não podem sofrer os efeitos da carga
tributária, isso porque, trata-se de um direito público subjetivo estatuído às
mesmas.
Portanto, conclui-se, ainda que parcialmente, que ao compreender pela
irrelevância do exame da translação econômica do tributo (em uma relação de
repasse dos encargos econômicos do contribuinte de direito do tributo ao de
fato), o Supremo Tribunal Federal equivocou-se na medida em que suprimiu as
limitações do poder de tributar da Administração Tributária e, em consequência,
onerou as pessoas indicadas no rol do artigo 150, inciso VI, da Constituição
Federal, incidindo em ofensa direta aos direitos fundamentais dos contribuintes
alí indicados.
Ora, a Constituição Federal não traz qualquer restrição à incidência da
imunidade às pessoas destacadas, de modo que, com base em uma
interpretação sistemática, verifica-se a intenção de proteger o patrimônio das
916

pessoas, justamente porque o fundamento das imunidades repousa sobre a


impossibilidade de qualquer repercussão econômica de imposto a elas. Desta
maneira, ao contrário do que foi consignado no julgamento do Recurso
Extraordinário n. 608.872/MG, o prévio recolhimento de tributo por parte do
contribuinte de direito não altera a natureza da relação jurídica, porquanto haverá
o repasse dos encargos suportados na cadeia para o contribuinte de fato e,
portanto, a aparência fática da relação é eminentemente tributária e não
contratual.
Por fim, não se defende que o contribuinte de direito seja onerado
excessivamente uma vez quedeveria suportar o pagamento do tributo em face
da impossibilidade de transpassá-lo na continuidade da cadeia tributária, mas
sim, que a Administração Tributária se adéque – e isso não é difícil na medida
em se reconhece que as pessoas imunes são exceções à regra de incidência de
imunidade às demais pessoas – para garantir que as pessoas indicadas no rol
do artigo 150, inciso VI, não sejam afetadas em seus bens, patrimônios e renda,
em razão de uma proteção constitucional que se consubstancia em um dever
negativo do Estado em tributá-la.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Direito Tributário. Recurso Extraordinário.


N. 608.872. Brasília-DF, 21 de fevereiro de 2017. DJe – 037 24/02/2017. Http://
www.stf.gov.br.

DE CARVALHO, Rodrigo. A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DAS INSTITUIÇÕES


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uma nova proposta hermenêutica para a jurisprudência constitucional do
Supremo Tribunal Federal. 2016. Tese de Doutorado. UNIVERSIDADE DO
VALE DO ITAJAÍ.

MACHADO, Hugo de Brito. Os direitos fundamentais do contribuinte e a


efetividade da jurisdição. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em
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Pernambuco. Recife: 2009, p. 37-38. Disponível em:
<https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/4003/1/arquivo5668_1.pdf>.

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Revista dos
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SILVA, Ricardo. A Imunidade Dos Templos De Qualquer Culto. Disponível em:


http://bdjur.stj.jus.br/xmlui/bitstream/handle/2011/16922/Imunidade_Templos_Q
ualquer_Ricardo_Silva.pdf?sequence=1, acesso em 05/10/19.

TEPEDINO, Gustavo. Aspectos Polêmicos do Tratamento Fiscal Conferido aos


Templos e às Entidades de Fins Religiosos. Brasília: Revista da Procuradoria-
Geral da República, n. 5, 1994.
917

O ABUSO DO ESTADO NA COBRANÇA DE IMPOSTO SOBRE


PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES
THE ABUSE OF THE STATE IN CHARGING TAX ON MOTOR VEHICLE
PROPERTY

Alexandre de Souza Nascimento


Orientador(a): Anna Sylvia Lima Moresi

Resumo: O presente artigo vem tratar do abuso do Estado na cobrança do


Imposto sobre Veículos Automotores, demostrando como sua cobrança se torna
obsoleta, e seu uso sem destinação específica, não é mais necessário visto a
carga tributária que já é cobrada em todos os setores de uso do veículo.
Iniciaremos com os fatos históricos, que demonstram o início do referido tributo,
até suas alterações para se tornar o imposto que é cobrado hoje, e por quais
motivos se tem um abuso, de modo que assim possamos adotar a melhor
solução para que o contribuinte não seja prejudicado, assim como o Estado.
Palavras-chave: IPVA. TRU. Veículos.

Abstract: This article deals with State abuse in the collection of the Tax on Motor
Vehicles, demonstrating how its collection became obsolete, and its use without
specific destination, is no longer necessary since the tax burden already charged
in all sectors of use of the vehicle. We will start with the historical facts, which
demonstrate the beginning of this tax, until its changes to become the tax that is
charged today, and for what reasons is an abuse, so that we can adopt the best
solution so that the taxpayer is not the state.
Keywords: IPVA. TRU. Vehicles.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como seu principal tema a questão do Imposto


sobre Propriedade de Veículo Automotor (IPVA) que se tornou, uma cobrança
de certa forma abusiva.
Para tanto, iniciando com o resgate histórico da gênese do tributo,
apresenta-se o referencial da regra matriz tributária do IPVA, bem como os
impostos que incidiram sobre o veículo automotor e sobre o uso do mesmo como
o uso de pedágios, assim como a CIDE-combustíveis, cujo o nome demonstra,
recai sobre o combustível.
Como será visto mais adiante, o imposto surgiu na forma de uma taxa que
seria destinada à conservação das rodovias, tendo em vista que o Estado não
teria condições, por si só, de realizar a sua manutenção, sendo assim necessário
que os usuários, ou seja, os proprietários de veículos automotores,
contribuíssem com essa conservação.
Entretanto, o atual cenário é completamente diferente com relação ao
Estado e à conservação das rodovias, uma vez que o Estado abriu mão das
rodovias, concedendo a companhias privadas sua conservação e autorizando
que as mesmas façam cobranças diretas para tal serviço, nos moldes da Lei
8.666 de 21 de junho de 1993.
Com isso, temos um imposto que foi instituído com a intenção de
preservar rodovias, e esse fim nunca foi atendido. Alguns anos depois, se tornou
918

o IPVA, uma carga tributária destinada a máquina pública, sem exigência de


contraprestação.
Como é de conhecimento, nos termos do art. 167, IV da Constituição
Federal o imposto já tem caráter de ser sem destinação específica, ao contrário
das taxas, que exigem essa contraprestação estatal. Mas, se realizarmos uma
análise a fundo do IPVA, tem-se em seu cerne um abuso pois, não apenas sua
função fim não existe mais, como também a base de cálculo que é utilizada, no
caso o valor venal do veículo, é o meio adequado para tal cobrança.

1. ASPECTOS HISTÓRICOS

Para que se possa avançar nesse artigo, primeiramente deve-se entender


como iniciou a cobrança do imposto e como ele se manteve ao longo do tempo.
A cobrança do Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotor (IPVA)
tem sua gênese no Decreto-Lei nº 999 de 21 de outubro de 1969, que institui a
Taxa Rodoviária Única (TRU), onde encontramos todas as diretrizes para que
fosse cobrado o tributo, como fato gerador, alíquotas praticadas, a dinâmica do
licenciamento dos veículos, quais contribuintes são isentos, dentre outros
aspectos. Esse Decreto determinou que era devido à União a cobrança da taxa
para que fosse utilizada na reforma e melhoria das estradas do Brasil.
Esse tributo foi instituído com a edição da Lei 5.841, de 6 de dezembro de
1972, que permitiu que a TRU pudesse então ser cobrada, mas cumprindo aquilo
que fora estabelecido pelo decreto que a criou. Então, temos o início da cobrança
de imposto sobre veículos feito pela União a partir de 1º de janeiro de 1973.
Durante o período tivemos duas mudanças na legislação até chegar no
modelo atual que traz a divisão de 50% da arrecadação aos Estados e 50% aos
Municípios.
Após a primeira alteração a, passamos ao entendimento de que a TRU,
embora possua nome de taxa era de fato um imposto assim como vemos:

Também a antiga TRU foi submetida a esse tipo de análise. Todas as


conclusões derivaram para um único resultado: tratava-se de um
imposto que gravava a circunstância de ser proprietário de veículo
automotor. A base de cálculo, completamente inadequada para avaliar
a possível prestação de serviços públicos, que sustentaria a
implantação de taxa deixava tudo bem claro. Media, sim, o veículo
automotor, já que todas as grandezas que se congregavam para formá-
la eram atributos dimensionadores do veículo, nenhuma relação
guardando com serviços públicos prestados pela Administração.
(CARVALHO, 2018, p. 363).

Nota-se na fala do Professor Paulo de Barros Carvalho que, desde sua


edição, a legislação traz certos vícios, desde a própria base de cálculo. Pelos
princípios da tributação, em se tratando de taxa rodoviária, a base de cálculo não
deveria ser o valor do veículo, mas sim o custo de recuperação da rodovia.
O valor deveria ser obtido a partir de um estudo para manutenção da
rodovia, e somente a partir dele, definir a partição dos proprietários de veículos
com os custos da manutenção de vias públicas, na forma de taxa, fariam os
recolhimentos ao Estado. Entretanto, o legislador à época apenas deu roupagem
de taxa à um imposto sobre propriedade.
Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 o IPVA foi
integralmente recepcionado pela Emenda Constitucional nº 3 de 1993 que incluiu
919

no Art.155 o inciso III1, que classifica a competência do IPVA aos Estados e


Distrito Federal. Passam a legislar quanto as bases de cálculo e alíquotas as
normas estaduais.

2. REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DO IPVA

Para falar explicar a regra matriz temos que iniciar com a hipótese de
incidência. Para tanto, no entender de Paulo de Barros Carvalho:

Tratando-se de entidade lógicas que estão presentes ali onde houver


norma jurídica de qualquer espécie, tanto faz chamarmos de hipótese,
antecedente, suposto, antessuposto ou pressuposto à previsão fáctica,
pois todos esses vocábulos têm a chancela dos mais renomados
cultores da Teoria Geral do Direito. Há de significar, sempre a
descrição normativa de um evento que, concretizado no nível das
realidades materiais e relatado no antecedente de norma individual e
concreta, fará irromper o vínculo abstrato que o legislador estipulou
como consequência. (2018, p. 272)

Nesse mesmo sentido, delimitando a hipótese de incidência e a obrigação


tributária, Geraldo Ataliba afirma que:

O fato concreto, localizado no tempo e no espaço, acontecido


efetivamente no universo fenomênico, que – por corresponder
rigorosamente à descrição prévia, hipoteticamente formulada pela
hipótese de incidência legal – dá nascimento à obrigação tributária.
(2006, p. 209)

Com isso, temos a hipótese de incidência é a descrição legal do fato que


enseja à cobrança de alguns tributos, o fato ocorrido previamente possibilitou tal
cobrança.
No caso do IPVA, o contribuinte deve ser proprietário de veículo
automotor, independente do momento em que fora adquirido, desde que no dia
1º de janeiro de cada ano se tenha a propriedade do mesmo. Com isso, temos o
critério material da hipótese de incidência caracterizado pelo verbo que expressa
a ação, neste caso “ser” como o verbo da ação e “proprietário de veículo” a ação
em si. (CARVALHO, 2018)
Em seguida, temos o critério temporal, que ocorre na aquisição de veículo
novo proporcional à época do ano, no desembaraço aduaneiro e, no caso de
veículo usado, todo 1º de janeiro de cada ano. Esse critério se dá para que
possamos precisar com exatidão quando ocorrerá o fato.
Por fim, a hipótese tributária nos dá o critério espacial que é o local onde
o veículo é licenciado, em regra, deverá ser o mesmo local de residência do
proprietário, pois entende-se que o tributo deve incidir onde o veículo mais
circula.
Em continuação à regra-matriz, temos o consequente tributário
caracterizado pelo critério pessoal, e apresentado pelos sujeitos ativo e passivo
da relação jurídica e o critério quantitativo, pelo qual é definido o valor da dívida.
Nesse caso, temos como critério pessoal, o Estado e o Município como
sujeitos ativo. Embora somente o Estado e o Distrito Federal tenham legitimidade

1Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: III - propriedade
de veículos automotores.
920

para cobrar e legislar sobre o tributo, mesmo sendo metade do valor arrecadado
repassado ao Município onde o veículo é licenciado, do outro lado temos o
proprietário de veículo automotor como sujeito passivo, sendo aquele que paga
aos entes para poder circular com seu veículo.
Para o critério quantitativo, a base de cálculo é o valor de mercado do
veículo, definido através de uma tabela editada pelo Poder Executivo Estadual
todo mês de setembro. Após a sua edição, ocorre a incidência da alíquota. Esse
processo está elencado nos arts. 7º e 9º, ambos conforme Lei Estadual
13.296/2008 no Estado de São Paulo.

2.1 LIMITAÇÃO AO PODER DE TRIBUTAR

Para não haver abusos ou mesmo uma guerra fiscal, existem certas
limitações que a própria Constituição Federal determina. Estão elencadas no art.
152 impedindo que sejam cobradas alíquotas diferenciados pela procedência do
bem e pelo art. 155 §6º, que determina ao Senado estabelecer as alíquotas
mínimas e podendo haver alíquotas diferentes em razão do tipo do veículo e sua
utilização.
A razão para o estabelecimento de alíquotas mínimas é evitar uma guerra
fiscal entre os Estados. No entanto, como vemos, há muito diferença entre elas,
ficando de 1% a 4% dependendo do Estado. Em uma análise rápida,
dependendo do valor do veículo, em 10 anos paga-se 40% do valor do veículo,
tornando inviável economicamente, visto que, com esse valor, é possível adquirir
outro veículo, o que ajudaria a economia, pois faria as riquezas trocarem de
mãos2.

2.2 EXCLUSÃO DO CRITÉRIO MATERIAL DA HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA

O Código Brasileiro de Trânsito traz em seu anexo I a definição de Veículo


automotor, in verbis:

Todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios,
e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas,
ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de
pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma
linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico). (1997)

Com isso, abriram-se brechas aos Estados para que cobrassem o IPVA
sobre embarcações e aeronaves. Como exemplos desta discussão temos
Recursos Extraordinários julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tais
como o RE 134.509/AM de 1991, que tem relação com questão das
embarcações, o RE 255.111/SP de 1999, que versa sobre o caso das aeronaves
e o RE 379.572/RJ de 2007, que versa sobre ambos os aspectos.
Nesses recursos, o STF fez uma releitura histórica do imposto, ou seja,
os Ministros avaliaram que o IPVA vinha da Taxa Rodoviária Única, de modo
que a pretensão era que esse imposto fosse cobrado sobre veículos que utilizam
os meios rodoviários para se locomover.

2 BRASIL. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria da Fazenda. Serviço. IPVA. Mais
informações/Base de cálculo. Disponível em: <
https://portal.fazenda.sp.gov.br/servicos/ipva/Paginas/mi-base-de-calculo.aspx > acesso em:
04.11.2018 às 23:20.
921

De acordo com esse entendimento, podemos afirmar que o IPVA não


deveria incidir sobre os demais veículos, uma vez que foi compreendido pelo
STF, que historicamente a Taxa Rodoviária Única (TRU) foi criada para auxiliar
o Estado na manutenção das rodovias, haja visto que ela não tem previsão no
Código Tributário Nacional (CTN), sendo criada depois, para uma finalidade
específica, principalmente havendo outras formas de tributar.

3. DOS PEDÁGIOS

Dentro da questão de pedágios, temos a discussão sobre qual a natureza


jurídica do valor cobrado dos usuários das rodovias, se seria efetivamente uma
taxa (que exige contraprestação estatal) ou se seria tarifa (preço público).
Para entender um pouco melhor, taxa é uma forma de tributo que está
delimitado pelo art. 77 do CTN3 e art. 145, II da CF, sendo a mesma cobrada
mediante um serviço estatal prestado ao contribuinte ou mesmo colocado à sua
disposição, e temos, também, a taxa cobrada em razão do exercício do poder de
polícia, sendo esta a atividade administrativa como vemos disposto no art. 78 4,
do mesmo diploma, por ser um tributo ele tem caráter compulsório, não há
autonomia de vontade na sua cobrança.
Muito embora o preço público seja parecido com a taxa, sua diferença se
faz inicialmente com questão de autonomia de vontade, pois ele não é
compulsório, sendo cobrado apenas na utilização.
De um lado temos o julgado do STF que, na ADI 800, nos traz que o
pedágio seria em efetivo um preço público, pois o mesmo é derivado de
melhorias nas condições das estradas, como pavimentação, sinalização, auxílios
diversos como guincho e socorro. E como não há a compulsoriedade no uso das
rodovias pedagiadas, seu valor só será devido no uso das rodovias.
A legislação que permite a instalação de praças de pedágio pelo Estado
é dada através do art. 150, V da Constituição Federal:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao


contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
V - Estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio
de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança
de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público.

Temos, a partir disso, para contrapor a decisão do STF, a visão de


CARRAZZA, Antônio Roque (2013, p. 633), que expressa que o artigo citado é
o único meio para se limitar o tráfego de pessoas, ou seja, um pedágio cobrado
pelo Poder Público, por meio de taxas de serviços seria o único meio tributável
pois, assim, teríamos a contraprestação do Estado. Entretanto, o ordenamento

3 Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios,
no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder
de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado
ao contribuinte ou posto à sua disposição.
4 Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou

disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em


razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à
disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de
concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade
e aos direitos individuais ou coletivos.
922

jurídico se baseia na decisão do STF e coloca que os pedágios, tem natureza


igual de preço público, devido para que haja a conservação das rodovias.
No Estado de São Paulo, contamos com pouco mais de 1/3 das rodovias
pedagiadas, eles representam os principais corredores de acesso para quase
todo o Estado, concentrando-se na região mais populosa do Estado. Os outros
2/3 de rodovias são vicinais ligam pequenos trechos ou são vias de pouca
circulação e em sua maioria sob responsabilidade das Prefeituras, que pouca
atenção dá a elas. 5

4. DA CIDE-COMBUSTÍVEIS

Além dos tributos já elencados, o Estado tem outros meios de


arrecadação que afetam diretamente os proprietários de veículo automotor,
como a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico Incidentes sobre as
Operações Realizadas com Combustíveis (CIDE-Combustíveis) instituída pela
Emenda à Constitucional Federal de 1988 nº 33, que alterou o diploma
Constitucional nos arts. 149 e 177 §4º, e regulamentada pela Lei n º 10.336 de
19 de dezembro de 2001, sendo um tributo que incide sobre quaisquer tipos de
combustíveis.6
A CIDE, será de competência da União, que realizará o repasse aos
Estado e o Distrito Federal, para ser aplicado obrigatoriamente, nos programas
de infraestrutura de transportes, como vemos no art. 1ºA da Lei 10.336/2001 7.
Entretanto, o valor que cada Estado recebe vem elencado nos parágrafos 1º e
2º do mesmo artigo, sendo de 10% a 40% dependendo do órgão a que se
destina. Desse percentual que o Estado recebe ele deve distribuir aos Municípios
seguindo os parâmetros dados pelo art. 1ºB, sendo entregue 25% da
arrecadação.
Com relação ao art. 177 da Constituição Federal de 1988 o parágrafo 4º,
inciso II, bem como o art. 1º, §1º da lei da CIDE, o tributo será destinado a
subsidiar o álcool, gás natura e seus derivados e os derivados de petróleo,
barateando assim o valor desses produtos ao consumidor, financiar os projetos
de meio ambiente voltado à indústria do petróleo e gás, para que os impactos
gerados com a exploração desses recursos não afete o meio ambiente, ou
minimize os danos e para financiamento da infraestrutura de transportes.
Sendo assim, tem-se mais um meio que os Estados podem utilizar para
preservação daquelas rodovias que não se encontram pedagiadas, podendo
investir em suas infraestruturas. E como vemos, a CIDE-Combustíveis é uma

5 BRASIL. Departamento de Estradas de Rodagem/Diretoria de Planejamento e Secretaria de


Logística e Transportes. Malha Rodoviária do Estado de São Paulo: Extensão. Base:
Novembro/2017. Disponível em: <
http://www.der.sp.gov.br/WebSite/Arquivos/MALHARODOVIARIA/PlanilhaMalha.pdf > acesso
em 01/11/2018 às 22:02
6 BRASIL. Ministério da Fazenda. Receita Federal. Acesso Rápido. Tributos. CIDE-combustíveis.

Disponível em: < http://idg.receita.fazenda.gov.br/acesso-rapido/tributos/cide > acesso em:


15/10/2018 às 16:47.
7 Art. 1o-A A União entregará aos Estados e ao Distrito Federal, para ser aplicado,
obrigatoriamente, no financiamento de programas de infraestrutura de transportes, o percentual
a que se refere o art. 159, III, da Constituição Federal, calculado sobre a arrecadação da
contribuição prevista no art. 1o desta Lei, inclusive os respectivos adicionais, juros e multas
moratórias cobrados, administrativa ou judicialmente, deduzidos os valores previstos no art.
8o desta Lei e a parcela desvinculada nos termos do art. 76 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.
923

contribuição que tem destinação específica, como podemos extrair do art. 177,
§4º, inciso II, na alínea “c”, do diploma constitucional que especifica o uso desses
valores.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo das premissas da obrigação tributária do IPVA, abordadas nesse


artigo, bem como os demais tributos incidentes direta ou indiretamente dos
veículos, às conclusões.
Como denotado nesse artigo, o STF teve um entendimento histórico
acerca de como o IPVA seria aplicado, entretanto temos um entendimento
parcial. Para tanto vimos que historicamente foi necessário a criação da TRU
para a conservação das rodovias, objetivo que hoje não é mais alcançado,
primeiramente por conta das concessões de rodovias que através da cobrança
de pedágios.
O IPVA, além de se tonar um tributo obsoleto, ainda se tornou abusivo. O
Brasil já é conhecido por ter uma carga tributária que é elevada, temos um
imposto que incide sobre a propriedade de veículos, mas que não se destina
exclusivamente para tal fim.
Ao analisarmos em efetivo, somente a CIDE – Combustíveis é realmente
revertido para a melhoria da infraestrutura viária ou para o meio ambiente que,
querendo ou não, é diretamente afetado pela queima de combustíveis fósseis.
Como vemos, pagamos em diversas tributações sobre mesmo bem.
É necessário que haja uma reforma tributária, e para tanto defendemos a
apresentação de uma proposta de Emenda à Constituição Federal para revogar
o inciso III do artigo 155. Assim, se retiraria uma parte da carga tributária do
contribuinte, principalmente em uma época do ano ao qual se tem uma grande
arrecadação tributária, sendo possível que o contribuinte destine esses valores
para outros fins, aumentando seu poder aquisitivo.
Pois, desde o início esse imposto editado de forma equivocada, com uma
base de cálculo que não era própria de taxa, mas sobre a propriedade do veículo,
que não deveria ter sido recepcionado pela Constituição Federal, sem uma
revisão adequada.
Com isso, vemos que essa redução na carga tributária se faz necessária,
pois custeamos todos os tipos de gastos com o veículo, sem que o retorno seja
o suficiente para melhorar toda a infraestrutura viária. Temos apenas as rodovias
sob concessão em bom estado de conservação, já as estradas mantidas pelo
Poder Público estão em ruins ou péssimos estados.
Caso seja necessário que incida algum tributo sobre o veículo, deveria ser
na forma de taxa pois, assim, o Estado teria obrigatoriamente que prestar um
serviço em contraprestação ao recolhimento. O Estado não deveria tributar sobre
a propriedade de veículo. Além do mais, ocorreria uma desobrigação
administrativa e judicial do Estado quanto a cobrança dos inadimplentes sendo
revertido para outros setores. E sem a necessidade desse tributo, os litígios que
envolvem a compra e venda de veículo, os quais tem o tributo como demanda,
seriam encerrados, dando ao Poder Judiciário um alivio na carga processual.

6. REFERÊNCIAS
924

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BRASIL. Departamento de Estradas de Rodagem/Diretoria de Planejamento e


Secretaria de Logística e Transportes. Malha Rodoviária do Estado de São
Paulo: Extensão. Base: Novembro/2017. Disponível em: <
http://www.der.sp.gov.br/WebSite/Arquivos/MALHARODOVIARIA/PlanilhaMalh
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Brasileiro. Brasília, 23 de setembro de 1997.

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Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Brasília, 11 de dezembro de
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São Paulo: Malheiros Editores, 2013

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo:
Saraiva Educação, 2018.
925

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E PROPÓSITO NEGOCIAL


TAX PLANNING AND BUSINESS PURPOSE

Lucienne Michelle Treguer Cwikler Szajnbok

Resumo: O empresário, na gestão de seus negócios, busca realizar a


combinação de recursos da forma mais eficiente e eficaz possível, com vistas à
redução de custos e à obtenção de melhores resultados. Nesse contexto, na
medida em que os tributos se traduzem em custos, o planejamento tributário
acaba por assumir posição de destaque, pois permite ao empresário se utilizar
de estruturas para reduzir o impacto fiscal sobre os seus negócios. Ainda que se
considere o critério da licitude como norteador inafastável à implementação de
estruturas de planejamento tributário, a doutrina e a jurisprudência pátrias
divergem quanto aos limites que devem ser observados, sendo certo que,
atualmente, o argumento da falta de propósito negocial tem sido amplamente
debatido e utilizado pela jurisprudência na desconsideração de estruturas de
planejamento tributário.
Palavras-chave: Planejamento tributário. Propósito negocial.

Abstract: In managing his business, the entrepreneur seeks to combine


resources as efficiently and effectively as possible to reduce costs and achieve
better results. In this context, as taxes represent costs, tax planning ends up
taking a prominent position, as it allows the entrepreneur to use structures to
reduce the fiscal impact on his business. Although lawfulness is considered an
inescapable guide to the implementation of tax planning structures, the Brazilian
doctrine and jurisprudence differ as to the limits that must be observed. Anyway,
in these days the argument of lack of business purpose has been widely
discussed and implemented by jurisprudence in disregarding tax planning
structures.
Keywords: Tax planning. Business purpose.

INTRODUÇÃO

De início, impende destacar que o ambiente tributário brasileiro é


marcadamente complexo. Uma gama superior a 90 (noventa) tributos, dentre
impostos, taxas e contribuições, de competência da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, acompanhada de uma ampla legislação,
muitas vezes pontuada por disposições ambíguas e antagônicas, além de uma
jurisprudência, tanto administrativa, quanto judicial, patentemente cambiante,
acabam por ensejar insegurança jurídica.
Em se tratando de planejamento tributário, tema do presente estudo, a
insegurança jurídica infelizmente também é um dado a considerar.
Como há de se ver, no decorrer desse trabalho, o debate sobre o tema
tem passado por diversas fases, com uma expressiva variância no que pertine
aos limites do planejamento tributário.
Com efeito, várias têm sido as alegações expendidas no sentido de se
desconsiderar estruturas de planejamento tributário, sendo certo que,
atualmente, a falta de propósito negocial tem assumido papel central nesse
debate.
926

Sendo assim, o presente estudo se propõe, em seu primeiro item, a


debater o conceito de planejamento tributário e sua correlação com princípios
constitucionais. Em seguida, serão trazidas a lume as 3 (três) fases do debate
sobre o tema. E, ao final, será dado enfoque à ausência de propósito negocial
como argumento à desconsideração de estruturas de planejamento tributário.

1. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: CONCEITO E ADEQUAÇÃO AOS


PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Em uma economia de mercado, o empresário, na gestão de seus


negócios, empreende esforços para realizar combinações de recursos de forma
a reduzir custos e maximizar resultados.
Nesse panorama, os tributos obviamente se traduzem em custos, do que
decorre a adoção de práticas e a implementação de estruturas direcionadas à
obtenção de economia fiscal. É dizer, práticas e estruturas de planejamento
tributário são utilizadas com o intuito de reduzir o custo tributário da pessoa
jurídica.
A embasar o direito à realização do planejamento tributário, princípios
como a legalidade, a livre iniciativa, a livre concorrência e o direito de
propriedade costumam ser frequentemente citados como supedâneos.
Nesse sentido, Hugo de Brito Machado, respaldando seu posicionamento
nas garantias à livre iniciativa, à legalidade geral, à legalidade tributária e à
vedação da tributação por analogia, entende que o planejamento tributário
corresponde a um plano lícito elaborado para que as atividades econômicas das
empresas sejam realizadas com o menor ônus tributário possível.1
Sacha Calmon Navarro Coêlho igualmente destaca que as garantias
constitucionais do livre exercício da atividade econômica e da livre iniciativa
orientam a busca da eficiência das atividades empresariais, sendo que, nessa
linha, o planejamento tributário acaba por se traduzir em elemento fundamental
à competitividade, na medida em que a economia fiscal se reflete nos preços
praticados.2
De outra monta, porém, princípios como a função social da propriedade,
a solidariedade social, a dignidade humana, a capacidade contributiva e a
isonomia costumam ser destacados como elementos limitadores à plena
liberdade de realização do planejamento tributário.
Marco Aurélio Greco, por exemplo, adverte que estruturas de
planejamento tributário, ainda que adstritas à legalidade, devem ser avaliadas
sob o prisma do respeito à igualdade, à justiça, à solidariedade social,
contrapondo-se, assim, ao individualismo exacerbado.3
Como ressalta Paulo de Barros Carvalho,

o tema planejamento tributário tem ocupado espaço sem precedentes


nas discussões dos tributaristas. Em torno dele gravitam vários
conceitos antigos, como as noções de capacidade contributiva e

1 MACHADO, Hugo de Brito. Planejamento tributário. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.).
Planejamento tributário. São Paulo: Malheiros: ICET, 2016. p. 28-29.
2 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Considerações acerca do planejamento tributário no Brasil.

In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Planejamento tributário. São Paulo: Malheiros: ICET,
2016. p. 635.
3 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011. p. 201-

203.
927

liberdade negocial dos particulares, e, ainda, novas adições ao


repertório dos estudiosos da matéria, como propósito negocial e abuso
de forma.4

Destarte, no tocante ao tema, os posicionamentos doutrinários são


variados, havendo, entretanto, entre eles o liame da legalidade, na medida em
que se exige que as estruturas de planejamento tributário sejam lícitas, tanto no
que respeita às formas adotadas, quanto aos resultados obtidos.

2. O PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E SUAS FASES

Uma análise detalhada da doutrina e da jurisprudência aponta a existência


de variados limites à realização do planejamento tributário, tais como o abuso de
direito, o abuso da forma, a fraude fiscal, a simulação, a dissimulação e o
propósito negocial, sendo possível, porém, vislumbrar fases quanto ao debate
que cerca o planejamento tributário.
Nessa senda, Marco Aurélio Greco dispensa um tratamento minucioso a
cada uma das três fases, atribuindo-lhes a seguinte nomenclatura: (i) “Liberdade,
salvo Simulação”; (ii) “Liberdade, salvo Patologias” e (iii) “Liberdade com
Capacidade Contributiva”.
Na primeira fase, denominada “Liberdade, salvo Simulação”, a liberdade
de contratar é resguardada desde que os atos e negócios jurídicos, no bojo do
planejamento tributário, sejam lícitos, não impliquem em simulação e tenham
sido praticados em momento anterior à ocorrência do fato gerador.5
Na segunda fase, à qual se atribui a nomenclatura de “Liberdade salvo
Patologias”, a liberdade de contratar remanesce, porém, são acrescidas à
simulação outras patologias, ou seja, outros limites à realização do planejamento
tributário, a exemplo do abuso de direito e da fraude à lei.6
Por fim, na terceira fase, “Liberdade com Capacidade Contributiva”, além
dos limites mencionados nas fases anteriores, passa a ser exigido um equilíbrio
entre a liberdade e o valor da solidariedade social, assumindo a capacidade
contributiva posição de destaque.7
Sob o aspecto jurisprudencial, notadamente dos órgãos julgadores
administrativos, é possível se destacar duas fases distintas na abordagem do
planejamento tributário.
Numa primeira fase, houve a prevalência de uma visão formalista dos atos
e negócios jurídicos praticados pelo contribuinte, ao passo que, na segunda fase,
passam a vicejar decisões mais restritivas à liberdade dos contribuintes em
realizar o planejamento tributário. É justamente nessa segunda fase que
começam a se destacar decisões questionando estruturas de planejamento
tributário que, apesar de lícitas, tenham apenas a finalidade de economia
tributária.

4 CARVALHO, Paulo de Barros. Planejamento tributário e a doutrina da prevalência da


substância sobre a forma na definição dos efeitos tributários de um negócio jurídico. In:
MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Planejamento tributário. São Paulo: Malheiros: ICET, 2016.
p. 569.
5 GRECO, Marco Aurélio. Perspectivas teóricas do debate sobre planejamento tributário. Revista

Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 7, n. 42, p. 1-29, nov./dez. 2009. p.
6.
6 Ibid., p. 9.
7 Ibid., p. 12.
928

Certo é que, atualmente, a jurisprudência pátria tem assumido uma


tendência cada vez mais robusta no sentido de desconsiderar estruturas de
planejamento tributário despidas de propósito negocial e apenas levadas a efeito
com o desiderato de obtenção de economia tributária.

3. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E PROPÓSITO NEGOCIAL

A ausência de propósito negocial, que atualmente tem sido utilizada como


base à desconsideração de estruturas de planejamento tributário, tem sua
origem na jurisprudência norte-americana, com o julgamento do caso Gregory
versus Helvering.
Como explica Luís Eduardo Schoueri, o citado caso, julgado em 1935 pela
Corte Suprema norte-americana, tratava de uma restruturação societária que
visava a uma vantagem fiscal. Na ocasião, entendeu-se que a restruturação
societária que ensejou a constituição de uma nova empresa era despida de
qualquer business or corporate task, limitando-se apenas e tão somente ao
objetivo de economia fiscal visado pelo contribuinte. Assim, conforme o
denominado business purpose test, a empresa criada deveria ter algum
propósito negocial, não se prestando apenas como meio para evasão de
divisas.8
Em linhas gerais, sob o prisma tributário, a ausência de propósito negocial
se externaliza em situações nas quais as formas jurídicas, utilizadas pelo
contribuinte, não permitem que se identifique um escopo negocial próprio, salvo
a obtenção de economia tributária.9
Certamente, a inexistência de legislação definidora e delimitadora do
conceito de propósito negocial intensifica a insegurança jurídica do contribuinte.
Ressalte-se que a exigência de motivos não tributários para a análise de
validade de um planejamento tributário conduz a um excesso de subjetivismo,
uma vez que inexistem critérios ou parâmetros objetivos que determinem quais
são tais motivos. Por conseguinte, não sendo possível prever quais motivos
serão exigidos pelo fisco, para que sejam legitimados atos de economia de
tributos, instaura-se a insegurança jurídica em operações de planejamento
fiscal.10
Bem verdade que, em 2002, na tentativa de regulamentar o parágrafo
único do artigo 116, do Código Tributário Nacional, a Medida Provisória nº 66
albergou disposição determinando que, para a desconsideração de ato ou
negócio jurídico, seria levada em conta a ocorrência da falta de propósito
negocial ou abuso de forma.
Ainda que a matéria tenha sido rejeitada por ocasião da conversão em lei
de indigitada Medida Provisória, fato é que a jurisprudência nacional,
notadamente administrativa, tem embasado muitos de seus acórdãos na falta de
propósito negocial.

8 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p.
528.
9 MARINS, James. Elisão tributária e sua regulação. São Paulo: Dialética, 2002. p. 40.
10 FREITAS, Rodrigo de. É legítimo economizar tributos?: propósito negocial, causa do negócio

jurídico e análise das decisões do antigo Conselho de Contribuintes. In: Schoueri, Luís Eduardo
(coord.). Planejamento tributário e o “propósito negocial”. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
p. 489.
929

A corroborar tal assertiva, cite-se julgamento realizado em 16 de julho de


2019, no qual o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), nos autos
do processo administrativo nº 10166.727500/2015-48, entendeu que a
constituição de Sociedades em Conta de Participação, sem justificativa negocial
e com o único objetivo de economia tributária constituiu simulação passível de
descaracterização. Em apertada síntese, no acórdão proferido, entendeu o
CARF que, a despeito de o ordenamento jurídico não negar ao contribuinte o
direito de auto-organizar as suas atividades, tal direito não é ilimitado, mas
mitigado pelos princípios da capacidade contributiva, da isonomia e da
solidariedade social, considerada a atual concepção de Estado. Ademais, não
teria se verificado no caso fundamentos econômicos ou propósito negocial, mas
tão somente o objetivo de reduzir tributos.11
Em outra decisão, desta feita proferida pela Câmara Superior de Recursos
Fiscais (CSRF), em 05 de junho de 2019, nos autos do processo administrativo
nº 10600.720016/2014-31, foi negada eficácia fiscal a um arranjo societário
considerado sem propósito negocial, por entender-se não ser oponível à
Fazenda Pública reorganização societária na qual inexista motivação outra que
não seja a criação artificial de condições para obtenção de vantagens
tributárias.12
Em sentido contrário à tese de desconstituição de operações por ausência
de propósito negocial, vale mencionar a decisão exarada pelo CARF, em 12 de
dezembro de 2018, nos autos do processo administrativo nº
11516.723043/2013-04, na qual se concluiu que o legislador tributário não
desconsidera o fato de o contribuinte buscar uma maneira menos onerosa de
conduzir seus negócios, seja por motivos tributários, societários, econômicos ou
quaisquer outros, desde que o faça licitamente. Nesse caso específico,
entendeu-se que a reestruturação societária perpetrada pelo contribuinte, por si
só, não desfigurou a operação, notadamente porque a fiscalização não
demonstrou a ocorrência dolo, fraude ou simulação. No mais, o conselheiro
relator, em seu voto, clarificou que a Administração Pública se submete ao
princípio da estrita legalidade, não podendo, portanto, adentrar na motivação do
particular, sendo que a alegação de que as operações realizadas não tiveram
propósito negocial decorrem de construção jurisprudencial estrangeira que não
possuem validade no ordenamento nacional, além de conflitar com o princípio
da livre iniciativa.13
Ao ensejo da conclusão do presente item, convém obtemperar que, se de
um lado, argumentos como capacidade contributiva, isonomia e solidariedade
social oferecem embasamento à desconsideração de estruturas de
planejamento tributário que visem unicamente economia fiscal, de outra monta,
têm-se que a busca da economia fiscal, em si, representaria propósito negocial,
dentro do escopo da livre iniciativa em uma economia de mercado.

11 BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (1ª Seção). Processo nº


10166.727500/2015-48. Recorrentes: Tellus S/A Informática e Telecomunicações e Fazenda
Nacional. Relator: Rogério Aparecido Gil, 16 de julho de 2019.
12 BRASIL. Câmara Superior de Recursos Fiscais (1ª Turma). Processo nº
10600.720016/2014-31. Recorrentes: Fazenda Nacional e Tempo Serviços S/A. Relatora:
Viviane Vidal Wagner, 5 jun. 2019.
13 BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (3ª Câmara). Processo nº

11516.723043/2013-04. Recorrente: Videplast Indústria de Embalagens Ltda. Recorrida:


Fazenda Nacional. Relator: Marcos Antonio Nepomuceno Feitosa, 12 de dezembro de 2018.
930

Decerto, diante da dicotomia de argumentos e na ausência de uma


normatização sobre o tema, fica o contribuinte ao alvedrio da jurisprudência,
portanto, em um ambiente de inegável insegurança jurídica.

CONCLUSÃO

Como demonstrado, o direito de auto-organização dos negócios, com


fulcro no princípio da livre iniciativa, orienta a pessoa jurídica no sentido de gerir
os seus recursos de maneira a obter os melhores resultados.
Nessa perspectiva, o planejamento tributário, realizado com o desiderato
de reduzir a carga tributária incidente sobre os negócios realizados pela pessoa
jurídica, assume inegável relevância para a condução das atividades
empresariais, mormente em mercados caracterizados pela livre-concorrência.
Como visto, é possível fragmentar o debate relativo ao planejamento
tributário em três fases: (i) Liberdade, salvo Simulação; (ii) Liberdade, salvo
Patologias e (iii) Liberdade com Capacidade Contributiva.
Assim é que, atualmente, verifica-se uma tendência em se examinar as
estruturas de planejamento tributário sob o prisma da capacidade contributiva,
da isonomia e da solidariedade social, de modo a desconsiderar atos ou
negócios jurídicos implementados com a finalidade única e exclusiva de
economia fiscal.
Desta feita, estruturas de planejamento tributário, despidas de propósito
negocial e que visem apenas à economia de tributos, têm sido objeto frequente
de fiscalização e autuação do fisco, sendo certo que tem se verificado um
posicionamento jurisprudencial cada vez mais tendente a exigir que os atos e
negócios jurídicos tenham finalidade negocial e não visem apenas à redução
tributária.
Por derradeiro, pode-se afirmar que a falta de legislação a normatizar o
tema torna inseguro o ambiente negocial, notadamente em um sistema jurídico
de civil law, caso do sistema brasileiro.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Câmara Superior de Recursos Fiscais (1ª Turma). Processo nº


10600.720016/2014-31. Recorrentes: Fazenda Nacional e Tempo Serviços
S/A. Relatora: Viviane Vidal Wagner, 5 jun. 2019. Disponível em:
http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/listaJuris
prudenciaCarf.jsf;jsessionid=8AA76F7B132BB2D3BBD35C1FA5343B4C.
Acesso em: 8 out. 2019.

______. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (3ª Câmara). Processo


nº 11516.723043/2013-04. Recorrente: Videplast Indústria de Embalagens
Ltda. Recorrida: Fazenda Nacional. Relator: Marcos Antonio Nepomuceno
Feitosa, 12 de dezembro de 2018. Disponível em:
http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/listaJuris
prudenciaCarf.jsf;jsessionid=8AA76F7B132BB2D3BBD35C1FA5343B4C.
Acesso em: 8 out. 2019.

______. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (1ª Seção). Processo nº


10166.727500/2015-48. Recorrentes: Tellus S/A Informática e
931

Telecomunicações e Fazenda Nacional. Relator: Rogério Aparecido Gil, 16 de


julho de 2019. Disponível em:
http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/listaJuris
prudenciaCarf.jsf;jsessionid=8AA76F7B132BB2D3BBD35C1FA5343B4C.
Acesso em: 08 out. 2019.

______. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema


Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à
União, Estados e Municípios. Brasília, DF: Presidência da República, [2013].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em:
07 out. 2019.

______. Medida provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002. Dispõe sobre a


não cumulatividade na cobrança da contribuição para os Programas de
Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público
(Pasep), nos casos que especifica; sobre os procedimentos para
desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários; sobre o
pagamento e o parcelamento de débitos tributários federais, a compensação de
créditos fiscais, a declaração de inaptidão de inscrição de pessoas jurídicas, a
legislação aduaneira, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da
República, [2002]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas_2002/66.htm. Acesso em 07
out. 2019.

CARVALHO, Paulo de Barros. Planejamento tributário e a doutrina da


prevalência da substância sobre a forma na definição dos efeitos tributários de
um negócio jurídico. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Planejamento
tributário. São Paulo: Malheiros: ICET, 2016. p. 569-599.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Considerações acerca do planejamento


tributário no Brasil. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Planejamento
tributário. São Paulo: Malheiros: ICET, 2016. p. 635-656.

FREITAS, Rodrigo de. É legítimo economizar tributos?: propósito negocial,


causa do negócio jurídico e análise das decisões do antigo Conselho de
Contribuintes. In: Schoueri, Luís Eduardo (coord.). Planejamento tributário e
o “propósito negocial”. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 441-490.

GRECO, Marco Aurélio. Perspectivas teóricas do debate sobre planejamento


tributário. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano
7, n. 42, p. 1-29, nov./dez. 2009. Disponível em:
http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=64574. Acesso em: 7
out. 2019.

______. Planejamento tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2011.


MACHADO, Hugo de Brito. Planejamento tributário. In: MACHADO, Hugo de
Brito (coord.). Planejamento tributário. São Paulo: Malheiros: ICET, 2016. p. 19-
49.
932

MARINS, James. Elisão tributária e sua regulação. São Paulo: Dialética,


2002.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018.
933

POLÍTICAS PÚBLICAS TRIBUTÁRIAS E O DESAFIO DA ZONA FRANCA DE


MANAUS PARA A REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS E
REGIONAIS
STATE TAX POLICIES AND THE CHALLENGE OF THE MANAUS FREE
TRADE ZONE TO REDUCE OF THE SOCIAL AND REGIONAL
INEQUALITIES

Aldo Aranha de Castro


Michel Ernesto Flumian

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise das políticas
públicas tributárias adotadas na Zona Franca de Manaus. No primeiro momento,
cumpre estudar sobre a necessidade de preservação dos direitos e garantias
fundamentais, e a contribuição do artigo 170 da Constituição Federal para a
efetivação desses direitos. Em sequência, o foco será dado aos incentivos
concedidos em razão da criação da Zona Franca de Manaus, e a possibilidade
de desenvolvimento econômico e, principalmente, social, da região amazônica.
O trabalho usará o método hipotético-dedutivo para seu desenvolvimento, e a
pesquisa será feita em doutrina e artigos disponíveis em endereços eletrônicos
e sítios eletrônicos oficiais.
Palavras-chave: Desenvolvimento regional e social. Direitos e garantias
fundamentais. Zona Franca de Manaus.

Abstract: This paper aims to analyze the state tax policies adopted in the
Manaus Free Trade Zone. In the first moment, it is necessary to study about the
necessity of preservation of the fundamental rights and guarantees, and the
contribution of the article 170 of the Federal Constitution for the realization of
these rights. In the following, the focus will be in relation of the incentives granted
by reason of the creation of the Manaus Free Trade Zone, and the possibility of
economic and, mainly, social development of the Amazon region. The work will
use the hypothetical-deductive method for its development, and research will be
done on doctrine and articles available on websites, and official websites.
Keywords: Regional and social development. Fundamental rights and
guarantees. Manaus Free Trade Zone.

1. INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira vem incessantemente sofrendo com a onerosidade


da carga tributária brasileira. Embora o Brasil não tenha a maior carga tributária
do mundo em termos percentuais, como não há a devida contraprestação
estatal, esse montante acaba sendo maior do que realmente é. Neste momento,
adentra-se no universo do Direito Tributário, ramo que contém suas
especificidades e com diversos aspectos interessantes, mas que é visto, muitas
das vezes, apenas sob o viés da fiscalidade, em que o Estado busca arrecadar
tributos.
Todavia, há um aspecto interessante e positivo na esfera tributária, que é
o da extrafiscalidade, em especial no tocante às políticas públicas tributárias
relacionadas aos incentivos fiscais.
Para tanto, o presente trabalho pretende analisar o direito tributário sob o
prisma dos incentivos fiscais, em especial os concedidos à Zona Franca de
934

Manaus, com o intuito de reduzir as desigualdades regionais e sociais, pois não


adiantaria uma desoneração tributária se não houvesse benefício para a
sociedade ou para a região em que há tais incentivos.
Inicialmente, é preciso fazer uma abordagem acerca da necessidade de
políticas públicas tributárias para a preservação dos direitos e garantias
fundamentais e da dignidade da pessoa humana.
Em sequência, faz-se importante indicar o artigo 170 da Constituição
Federal que, embora esteja vinculado ao Título “Da Ordem Econômica e
Financeira”, trata de garantias para a manutenção do equilíbrio das regiões
brasileiras, com itens como a defesa do meio ambiente, a busca pelo pleno
emprego e, especialmente, a redução das desigualdades regionais e sociais.
Por fim, resta fundamental a abordagem da Zona Franca de Manaus e
dos incentivos a ela concedidos, pois essenciais para suporte ao
desenvolvimento da região amazônica, e para a garantia de uma vida digna à
população local.
Os incentivos fiscais ganharam destaque principalmente a partir do início
do século XXI, com o intuito de que o Brasil se desenvolva como um todo. Desta
feita, a temática desenvolvida se justifica em razão da necessidade de atenção
à população amazônica, para que ela colha os benefícios da instalação de um
polo industrial em Manaus. O trabalho será estruturado e desenvolvido por meio
do método hipotético-dedutivo, e a pesquisa será feita em doutrina e artigos
disponíveis em endereços eletrônicos, bem como em sítios eletrônicos oficiais.

2. POLÍTICAS PÚBLICAS TRIBUTÁRIAS: A NECESSIDADE DE


PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A IMPORTÂNCIA DO
ARTIGO 170 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Todas as pessoas têm direito a uma vida digna, em que seja garantido
um mínimo existencial para que elas não vivam à margem da sociedade. Nesse
momento, é importante garantir que elas tenham a dignidade humana e os
direitos fundamentais preservados.
Quanto aos direitos fundamentais, seu conceito é trazido com muita
propriedade por Antonio-Enrique Pérez Luño (apud SARLET, 2017):

Os direitos fundamentais possuem sentido mais preciso e restrito, na


medida em que constituem o conjunto de direitos e liberdades
institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo
determinado pelo Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados
espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter
básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito.

Dessa definição, pode-se depreender que os direitos fundamentais tratam


de questões mais específicas e restritas do que a amplitude do conceito de
direitos humanos, pois indicam a garantia aos direitos e liberdades normatizados
pelo direito positivo, de forma a serem delimitados no espaço e no tempo.
Todavia, mesmo sendo algo mais restrito, é impossível dissociá-lo dos direitos
humanos, pois possuem uma relação próxima.
Os direitos humanos, mais amplos, “consistem em um conjunto de direitos
considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade,
igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e
indispensáveis à vida digna” (RAMOS, 2014, s.p.). Assim, eles possuem um
935

alcance maior, com o objetivo de garantir uma vida digna a todos,


indistintamente, sem se preocupar com possíveis restrições, devido a seu
caráter mais abrangente.
A dignidade da pessoa humana, por sua vez, é passível de diversos
conceitos (ou mesmo indagações). Para Günter Dürig (apud SARLET, 2007):

[...] cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o
distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em
sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de
autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e
o meio que o circunda.

Esses temas são muito atrativos e merecem atenção, por isso, não se
poderia prosseguir no presente trabalho sem abordar essas nuances. Todavia,
não se tem por intuito, aqui, fazer uma discussão pormenorizada sobre os
direitos humanos, os direitos fundamentais (e mesmo sobre a dignidade da
pessoa humana), até porque, diante do abordado, foi possível observar a
amplitude de suas definições e que merecem, assim, estudo específico.
Em sequência ao proposto inicialmente, é importante dizer que muitos são
os modos para se garantir a dignidade humana, dentre eles, há as ações
afirmativas, tratadas por Flávia Piovesan (2013, p. 266) da seguinte forma:

As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que,


buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o
processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por
parte de grupos socialmente vulneráveis, como as minorias étnicas e
raciais, dentre outros grupos. [...] As ações afirmativas devem ser
compreendidas tanto pelo prisma retrospectivo (vocacionado a
remediar o peso de um passado discriminatório), como pelo prisma
prospectivo (vocacionado a construir um presente e um futuro
marcados pela pluralidade e diversidade étnico-racial).

É de extrema importância a existência de ações afirmativas, que devem


atuar até o restabelecimento do equilíbrio que justificou a sua criação. São
diversas as ações afirmativas, como o PROUNI, que possibilita às pessoas que
não tenham condições a ingressarem em universidades privadas (com a análise
que o programa exige), o sistema de cotas nas universidades públicas, entre
outros. Ademais, há também ações que buscam proteger o idoso, a mulher, as
pessoas com deficiência, as crianças e adolescentes, e que são louváveis, pois
há a necessidade de proteção aos direitos e garantias fundamentais a cada um
dos indivíduos contemplados por esses grupos.
É possível destacar, também, como ação afirmativa, a que garante o
desenvolvimento econômico e social de determinada região, como acontece, por
exemplo, na Zona Franca de Manaus, que será tratada especificamente adiante.
Diversas dessas ações são implementadas por meio de políticas públicas
e, dentre elas, existem as políticas públicas tributárias, que se dão por meio de
incentivos fiscais para fins de garantia do bem-estar da população, não apenas
no aspecto econômico, mas também no aspecto ambiental e social.
Para tais ações, e para que as políticas públicas tributárias possam
acontecer, o artigo 170 da Constituição Federal contribui ativamente, servindo
de base para que haja as mais variadas proteções ao cidadão, tanto na busca
pelo pleno emprego (art. 170, inc. VIII, CF/88), quanto na defesa do consumidor
(art. 170, inc. V, CF/88) e na preservação do meio ambiente (art. 170, inc. VI,
936

CF/88) e, também, de forma totalmente relevante, para a redução das


desigualdades sociais e regionais (conforme previsto, expressamente, no inciso
VII de referido dispositivo da Carta Magna, como princípio garantidor da ordem
econômica).
É possível, assim, adentrar-se especificamente às políticas públicas
tributárias, para compreendê-las em sua aplicação na Zona Franca de Manaus,
que recebe incentivos com o objetivo de se desenvolver aquela região
(econômica e socialmente). A política tributária “[...] passou a se ocupar
exclusivamente das atividades estatais relativas aos tributos” (RIBEIRO;
CASTRO, 2012) e, por tal motivo, envolve onerações e desonerações, sendo a
primeira para o fim de desestimular determinada prática (ou mesmo para manter
a soberania nacional) e a segunda, para premiar e estimular determinada
conduta (a exemplo de municípios que reduzem o valor do IPTU por se conservar
área verde em parte de sua residência), ou mesmo para que possa haver maior
equilíbrio em regiões que, por questões históricas, não tiveram o mesmo
desenvolvimento e prosperidade que outras.
É o que acontece no caso da Zona Franca de Manaus que, em
consonância com o caput do artigo 170 da Constituição Federal, busca
“assegurar a todos existência digna” e a “justiça social”, propiciando o equilíbrio
da região amazônica com o Centro-Sul do Brasil, o que guarda estrita relação
com a preservação das garantias e direitos fundamentais.
A busca pela redução das desigualdades regionais e sociais, além de
prevista no artigo 170, inciso VII, também é um objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil, com previsão expressa no artigo 3º, inciso III, do
diploma constitucional vigente. Em razão desse objetivo fundamental, e também
princípio, previsto no artigo 170, evidenciam-se as políticas extrafiscais, com a
busca de se desenvolver uma região até então menos desenvolvida, para que
ela possa participar e se desenvolver socioeconomicamente, equilibrando-se
seu tratamento com aquele dado às regiões mais desenvolvidas.
A Zona Franca de Manaus, que foi implantada no ano de 1967, traz
incentivos fiscais para a instalação de indústrias naquela região, para o fim de
proporcionar o almejado desenvolvimento social e econômico.

3. A IMPORTÂNCIA DA ZONA FRANCA DE MANAUS PARA O


DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO AMAZÔNICA

As políticas tributárias podem se realizar através dos incentivos fiscais.


Notadamente quanto à Zona Franca de Manaus (ZFM), nela há incentivos que
visam o desenvolvimento da região, a maior comunicação e o equilíbrio com as
demais regiões do país.
Ela foi criada em 1967 e “[...] é um modelo de desenvolvimento econômico
implantado pelo governo brasileiro objetivando viabilizar uma base econômica
na Amazônia Ocidental, promover a melhor integração produtiva e social dessa
região ao país [...]” (SUFRAMA). A ZFM concede incentivos aos
empreendimentos industriais, para que se instalem na região por ela
compreendida.
Quando se fala em Amazônia Ocidental, conforme supramencionado, o
site da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) fala não
apenas do estado do Amazonas, mas também os do Acre, Rondônia e Roraima,
além das cidades de Macapá e de Santana, no estado do Amapá.
937

A região amazônica precisa ser desenvolvida, mas não se pode descuidar


da preservação o meio ambiente. Por este motivo, fala-se em desenvolvimento
(entendido como crescimento aliado à sadia qualidade de vida), até porque não
é possível o mero crescimento a qualquer custo, devastando toda a
biodiversidade existente na Amazônia, em especial no estado do Amazonas
(onde se estabeleceu a Zona Franca). O polo “[...] industrial é considerado a
base de sustentação da ZFM.” (SUFRAMA). Fala-se que é a base porque há
outros dois polos econômicos compreendidos pela ZFM, quais sejam, os polos
comercial e agropecuário.
Quanto à base de sustentação da Zona Franca de Manaus, alguns
comentários merecem ser tecidos: há incentivos concedidos para a já
mencionada redução das desigualdades regionais e sociais e, assim, para que
os direitos e garantias fundamentais estejam protegidos. Quanto à política
tributária vigente na ZFM, ela “[...] é diferenciada do restante do país, oferecendo
benefícios locacionais, objetivando minimizar os custos amazônicos”
(SUFRAMA).
Alguns tributos possuem uma grande redução em sua carga (em alguns,
ocorre até mesmo a isenção), exatamente como incentivo para as indústrias se
instalarem na ZFM. No site da SUFRAMA, há diversos dados que permitem
comprovar tal afirmação, e alguns merecem destaque:

Tributos federais
- Redução de até 88% do Imposto de Importação (I.I.) sobre os
insumos destinados à industrialização;
- Isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (I.P.I.);
- Redução de 75% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica [...];
- Isenção da contribuição para o PIS/PASEP e da Cofins nas
operações internas na Zona Franca de Manaus.

Tributos estaduais
- Restituição parcial ou total, variando de 55% a 100% - dependendo
do projeto – do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de
Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte
Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).

Conforme se pode observar, há grandes incentivos, como a redução de


quase 90% do Imposto de Importação sobre os insumos destinados à
industrialização e a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados. No
tocante aos tributos estaduais, pode haver restituição total do Imposto sobre
Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de
Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal de Comunicação (ICMS)
ou, pelo menos, de 55% do valor pago a título desse tributo.
Não bastasse isso, que por si só já se traduz em grande atrativo à
instalação industrial naquela região, “[...] o investidor tem à disposição terreno a
preço simbólico” (SUFRAMA). Assim, ele pode se utilizar de um terreno com toda
a infraestrutura necessária para sua instalação, e pagar um valor simbólico (e
com doze meses para pagamento).
Uma preocupação que residia na região era sobre o possível
encerramento dos benefícios a ela concedidos. Todavia, tal situação foi
resolvida, através da Emenda Constitucional n.º 83, de agosto de 2014, que
prorrogou por mais 50 (cinquenta) anos os incentivos fiscais da ZFM (garantido
tais benesses até o ano de 2073), o que trouxe certo alento à população
938

amazônica, que possivelmente veria um esvaziamento do grande polo industrial


que possui, caso não houvessem mais incentivos para as indústrias se
manterem lá.
Com isso, a região amazônica tem mais uma oportunidade para se
desenvolver durante os próximos anos pois, por mais que incentivos tenham sido
dados, ainda carece de um fortalecimento maior, uma maior qualificação da mão-
de-obra local, para que possam ocupar mais os altos postos de trabalho das
indústrias lá estabelecidas.

4. CONCLUSÃO

A Zona Franca de Manaus tem especial importância para a busca do


desenvolvimento da região amazônica, por possuir um forte polo industrial que
emprega milhares de pessoas. É necessária especial atenção à dignidade da
pessoa humana e ao respeito aos direitos humanos, para que os frutos sejam
colhidos positivamente, beneficiando toda a população da região, que se
desenvolverá no aspecto econômico e, principalmente, no aspecto social.
Não se pode negar que os obstáculos são grandes, os desafios ainda são
muitos, mas ter esses incentivos, ainda que não seja 100% efetivo, já é um bom
sinal, e é melhor tê-los, mesmo que necessitem de alguns ajustes, do que não
ter. A ZFM precisa evoluir e cumprir seu real ideal porque, mesmo criada em
1967, ainda há muita disparidade entre a região amazônica e o Centro-Sul do
Brasil. É necessário um equilíbrio e ajuste.
Mesmo havendo muito ainda a se fazer, um primeiro passo já foi dado,
com a instalação da Zona Franca e da concessão de incentivos para as
indústrias lá se implementarem. Agora, com a prorrogação dos incentivos fiscais
até 2073, é uma esperança a mais renovada que, espera-se, traga uma alteração
e um equilíbrio maior daquela região para com as outras regiões brasileiras.
O artigo 170 da Constituição Federal serve de mecanismo para preservar
o caráter social da estruturação da região amazônica, com a busca pela
preservação do meio ambiente, a busca pelo pleno emprego (com a devida
capacitação do indivíduo, para operar em todos os postos de trabalho colocados
à disposição) e, em especial, na busca pela redução das desigualdades
regionais e sociais.
A Zona Franca de Manaus é um avanço no sentido de se buscar o
desenvolvimento social que, por sua vez, garantirá ao indivíduo a proteção à
dignidade da pessoa humana, pois poderá usufruir de uma vida digna, que
deveria ser inerente a toda e qualquer pessoa.

5. REFERÊNCIAS

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em <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>>.
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SUPERINTENDÊNCIA DA ZONA FRANCA DE MANAUS. MODELO ZONA


FRANCA – Incentivos. Disponível em
<<http://www.suframa.gov.br/zfm_incentivos.cfm>>. Acesso em 25 jul. 2019.
941

TRIBUTAÇÃO, JUSTIÇA E REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS:


UMA ANÁLISE A PARTIR DAS TEORIAS DE JUSTIÇA
TAXATION, JUSTICE AND SOCIAL INEQUALITIES REDUCTION: AN
ANALYSIS FROM JUSTICE THEORIES

Eduarda Gouveia Costa Tupiassú

Resumo: O presente trabalho visa a analisar a tributação sob a perspectiva das


teorias de justiça, a partir das principais correntes filosófico-políticas da
modernidade, a exemplo do utilitarismo, do liberalismo igualitário e do
libertarismo. Por meio de uma análise crítica e bibliográfica, pretende identificar
quais são os parâmetros de justiça fiscal adotados pelos teóricos da justiça para,
em seguida, demonstrar como a tributação pode atuar como um importante
instrumento na promoção da justiça social, na medida em que possibilita a
redução das desigualdades sociais, através da redistribuição de riquezas,
ensejando a realização dos direitos fundamentais, insculpidos no texto
constitucional de 1988.
Palavras-chave: Teorias da Justiça. Justiça fiscal. Redução de desigualdades
sociais.

Abstract: This work aims to analyze the taxation from the justice theories’
perspective, from the main philosophical-political currents of modernity, such as
utilitarianism, egalitarian liberalism and libertarianism. Through a critical and
bibliographical analysis, it intends to identify the parameters of fiscal justice
adopted by the justice theorists to then demonstrate how taxation can act as an
important instrument for the social justice promotion, as much as it enables the
reduction of social inequalities through the wealth redistribution, giving rise to the
fundamental right’s realization, inscribed in the 1988 constitutional text.
Key words: Justice Theories. Tax justice. Social inequalities reduction.

INTRODUÇÃO

A tributação, como é cediço, é imprescindível para que o Estado possa


existir enquanto instituição organizada, porquanto possibilita a obtenção de
recursos bastantes para custear a efetiva realização dos direitos fundamentais,
haja vista que todos os direitos incorrem em custos aos cofres públicos.
Contudo, em que pese a sua importância, a cobrança de tributos quase
sempre é alvo de severas críticas, nas quais geralmente se discute a justiça do
arranjo tributário institucionalizado e da aplicação dos recursos públicos.
Cabe-nos no presente trabalho, primeiramente, fazer um apanhado sobre
o que preceituam as principais teorias da justiça da modernidade e o que elas
definem como sendo um sistema político-tributário justo.
Em seguida, elucidaremos que critérios são considerados para se
averiguar se um sistema fiscal é justo, destacando a necessidade de superação
da ideia de aparente incompatibilidade entre eficiência e equidade.
Posteriormente, apontaremos como a justiça fiscal pode dar lugar a uma justiça
social, na medida em que possibilita a redistribuição de riquezas e a redução das
desigualdades sociais. Por fim, verificaremos de que modo a alocação de
recursos pode ensejar o alcance da justiça redistributiva, atenuando as
942

disparidades econômicas e sociais existentes entre os membros de uma


sociedade e, assim, promover a maior realização de direitos.
Para a análise e discussão do tema, faremos uma pesquisa descritiva e
explicativa, utilizando um método de abordagem científica dialético-comparativa,
analisando criticamente a doutrina, por meio de pesquisa bibliográfica de
materiais publicados em livros, artigos, periódicos, dissertações e teses.

DESENVOLVIMENTO

Segundo Platão (2000, p. 55), justiça é dar a cada um aquilo que lhe é
devido. Porém, embora este pareça uma definição simples, que denota
correlação entre ações e resultados, o fato é que o conceito de justiça é deveras
abstrato e impreciso, carregando em si uma ampla gama de interpretações e
juízos de valor.
Diversos pensadores ao longo da existência da humanidade se
debruçaram sobre este tema, dentre os quais podemos destacar Platão e
Aristóteles na Antiguidade, São Tomás de Aquino na Idade Média, bem como
Hobbes, Locke e Rousseau na Modernidade. Mais recentemente, consideramos
relevante destacar os filósofos/economistas contemporâneos Amartya Sen,
Ronald Dworkin e John Rawls, sendo este último considerado um dos maiores
expoentes sobre o assunto, pelo que nos concentraremos na teoria formulada
por ele.
Em sua obra “Uma Teoria da Justiça”, Rawls discorre sobre uma
concepção de justiça (justiça como equidade) que, na sua visão, deveria nortear
a estrutura básica de uma sociedade. Para ele, os princípios de justiça seriam
objeto de uma situação original, em que pessoas livres, racionais e interessadas
em promover os seus próprios interesses aceitariam uma situação inicial de
igualdade para definir as condições fundamentais de sua associação (RAWLS,
208, p. 13-14).
Estas condições fundamentais a serem definidas seriam os bens
primários, isto é, direitos, liberdades, oportunidades, renda e riqueza, que todos
os indivíduos presumidamente almejariam, vez que possuem utilidade, sejam
quais forem os planos de vida das pessoas (RAWLS, 208, p. 75).
A partir de então, os indivíduos gozando da mais ampla liberdade e
igualdade, escolheriam os princípios a serem aplicados a si e aos demais
membros da sociedade, por meio do que chama de véu da ignorância. Isto é,
desconheceriam quaisquer diferenças entre si, como cor, raça, gênero,
profissão, classe social, religião,
Nesta condição, as pessoas poderiam elaborar uma legislação para si
próprios e para os outros isentos de quaisquer interesses, uma vez que, sem
saber a sua classe social, por exemplo, não escolheriam normas que
privilegiassem ou prejudicassem ricos ou pobres, justamente por não saber que
condições econômicas teriam sem a influência do véu.
Importante destacar, porém, que embora os chamados bens primários
básicos sejam distribuídos a todos os indivíduos indistintamente, não é possível
prever que todos serão utilizados por cada um, haja vista as diferenças inerentes
entre as pessoas.
Buscando responder a um eventual questionamento sobre diferenças de
capacidades e oportunidades, o autor elabora um princípio da diferença, pelo
qual a distribuição de talentos naturais seria um bem comum e que aqueles mais
943

favorecidos pela natureza (como uma grande inteligência, por exemplo),


somente poderiam se beneficiar de sua boa sorte na medida em que
contribuíssem para melhorar a situação dos menos favorecidos (RAWLS, 208,
p. 121).
Desse modo, percebe-se que Rawls defende ser somente a igualdade
capaz de satisfazer à exigência de um conceito de justiça que tenha unidade e
universalidade, sem se reduzir a interesses e opiniões particulares. Assim, dessa
concepção, o jusfilósofo extrai dois princípios básicos, que devem ser
respeitados em qualquer ordem jurídico-política que pretenda ser justa. São eles:
a igualdade formal e a igualdade material ou equidade.
A igualdade formal pressupõe que todos sejam iguais perante a lei.
Contudo, para o autor, admitir uma sociedade totalmente igual seria atentar
contra as particularidades das pessoas, isto é, contra as diferenças de
capacidade e de talento que as elas têm. Por isso, define ser necessário
respeitar as diferenças consideradas benéficas para a sociedade.
Para tanto, considera que uma sociedade somente será justa se todos os
valores sociais, como a liberdade, as oportunidades, as riquezas, bem como as
bases sociais e o respeito a si mesmo forem distribuídos de maneira igualitária
(bens primários básicos), salvo se uma distribuição desigual de um ou de todos
esses valores ensejar um benefício geral, especialmente para aqueles mais
necessitados.
Entende, portanto, que, para se alcançar uma sociedade mais justa, é
preciso que haja igualdade de oportunidades a todos em condições de plena
equidade, bem como que os benefícios auferidos sejam repassados
preferencialmente aos indivíduos menos privilegiados.
Para isto, acredita que seria preciso que os mais talentosos (por dom ou
herança) aceitassem a diminuição de sua participação material em bens (lucros,
status, salário) em prol daquelas pessoas em condição de desassistência social,
que, então, teriam um aumento das suas expectativas de vida. Contudo,
percebe-se que esta teoria não prevê ou impede a existência de conflitos entre
os bens primários básicos distribuídos, sendo necessário a definição de um
sistema de prioridades que justificasse a opção por um ou outro bem.
Dessa forma, Rawls constrói a sua argumentação com base em três
princípios básicos, um princípio de liberdade, pelo qual a sociedade deve
assegurar a máxima liberdade aos seus membros, compatível com uma
liberdade igual para os demais; um princípio da diferença, em que a distinção
equânime da riqueza deve correr, salvo se a existência de desigualdades
(sociais ou econômicas) ensejar um maior benefício aos mais necessitados; e
um princípio de oportunidade justa, a partir do qual as desigualdades porventura
existentes deverem ser acessíveis a todos, em iguais condições de
oportunidade.
A teoria desenvolvida por Rawls representou um marco nas teorias de
justiça, implicando uma divisão dos chamados liberais em liberais igualitários
(definição na qual ele próprio se encaixa) e libertários, que não consideram o
elemento igualdade nas suas teorias, dando importância apenas ao valor
liberdade.
Para os autores classificados como libertários, a exemplo de Robert
Nozick, seu maior representante, o Estado deve ser mínimo, atuando apenas em
casos pontuais, como garantir o cumprimento de contratos, proteger os
indivíduos contra ações de força, violência, roubo e fraudes, defendendo a
944

propriedade privada. Isto porque, segundo esta concepção, ao se atribuir mais


poderes ao Estado, estar-se-ia restringindo os direitos individuais das pessoas,
valor máximo que não poderia ser violado.
Nozick, inclusive, considera que a tributação corresponderia a uma forma
de coerção, que se assemelharia a um trabalho forçado, posto que os indivíduos
seriam obrigados a destinar dias de trabalho ao Estado, na forma de dinheiro
(2011, p. 189).
Ele alega, ainda, que, para haver o monopólio do uso da força e da
proteção de todos dentro de um território, o Estado teria que violar direitos
individuais, o que entende ser intrinsecamente imoral. Por isso, acredita que
nenhum Estado mais amplo pode ser justificado, pois inevitavelmente incorreria
em interferências na vida das pessoas, ferindo as suas liberdades individuais.
Portanto, para o autor, seria impensável uma política de redistribuição de
riquezas ou de tributação progressiva, haja vista considerar a própria cobrança
de tributos como ilegítima e ilegal, quanto mais a sua utilização para realocar
riquezas.
Por outro lado, as chamadas teorias utilitaristas da justiça, como as
defendidas por Jeremy Bentham e John Stuart Mill, apoiam-se em um princípio
de utilidade, segundo o qual uma ação é boa se as suas consequências
aumentam a felicidade do maior número de pessoas.
Assim o é, pois parte-se da premissa de que o ser humano é um animal
que naturalmente vive em busca do prazer e da felicidade, tendo aversão à dor
e ao sofrimento. Por isso, as ações devem ser analisadas diretamente em função
da tendência de aumentar ou reduzir o bem-estar das partes afetadas.
Entrementes, esta teoria sofreu duras críticas em razão de não levar em
consideração a felicidade e os direitos das minorias, pregando uma chamada
“ditadura das maiorias”. Rawls, inclusive, contrapõe-se a este entendimento,
destacando a necessidade de serem consideradas as diferenças entre as
pessoas.
A partir das teorias expostas, percebe-se que cada uma enxerga a
tributação sob um ponto de vista diferente. Enquanto os libertários defendem um
Estado que interfira o mínimo possível nas liberdades individuais, os liberais
igualitários acreditam que o Estado deve agir de forma ativa, de modo a corrigir
as diferenças entre as pessoas. Vê-se, portanto, que a depender da teoria que
se afilie, a concepção sobre a tributação justa vai se modificar.
Segundo Nagel e Murphy (2005, p. 16), além da eficiência econômica, o
valor social a que tradicionalmente se dá peso na formulação de um sistema
tributário é a justiça. Assim, a árdua tarefa daquele que formula o sistema de
tributação consiste justamente em criar um esquema que seja ao mesmo tempo
eficiente e justo.
A maioria dos teóricos considera haver um trade-off (uma espécie de
incompatibilidade) entre eficiência1 e equidade no tocante à finalidade da
tributação. Porém, veja-se que, enquanto os teóricos normativos discutem as
justificações para se priorizar um ou outro valor, os empiristas debatem o quanto
de custo de eficiência se envolve ao se fazer os arranjos institucionais tributários.
Nesse sentido, vê-se que a justiça constitui um dos traços desejáveis de
todo sistema tributário. Todavia, pode ser entendida sob duas concepções

1A eficiência aqui pode ser entendida como a paretiana, segundo a qual, considerando uma gama
de possíveis alocações de benefícios, uma alteração que melhore a situação de pelo menos um
indivíduo sem piorar a situação de nenhum outro será um ótimo de Pareto.
945

diferentes. Na primeira, chamada de equidade vertical, há a exigência de


tratamento tributário de pessoas com níveis diversos de renda, enquanto na
segunda, chamada de equidade horizontal, exige-se o tratamento de pessoas
com rendas iguais.
Entrementes, considerando que os indivíduos em uma sociedade são
diferentes entre si, a questão problemática atinente à equidade horizontal reside
em distinguir quais são as distinções aceitáveis entre as pessoas, que justifiquem
o tratamento diferenciado.
Com efeito, a eficiência da busca de recursos para o financiamento do
Estado deve estar na origem da arrecadação tributária, mas não pode ser vista
de forma unilateral, devendo ser analisada sempre em conjunto com a
justiça/equidade.
Segundo Caliendo (2009, p. 75-76), eficiência e justiça constituem
elementos imprescindíveis para a construção de um Direito Tributário adequado,
devendo ser analisadas a partir de uma ideia de conexão, isto é, partindo-se do
pressuposto de que existe uma conectividade e não exclusão entre eficiência e
justiça, vide as conclusões de Albert Calsamiglia (p. 267-287), de que: I) uma
sociedade idealmente justa é eficiente (eficiência social); (II) uma sociedade
justa e equitativa dificilmente desperdiçará recursos; (III) a eficiência é um
componente da justiça, embora não seja o único ou o principal critério de justiça,
existindo outros, tais como os direitos e as finalidades ou objetivos coletivos; (IV)
a eficiência, entendida como o critério que maximiza a riqueza social, em certas
ocasiões exige a intervenção regulatória, corretiva ou estratégica do Estado no
mercado; (V) a observação do fenômeno jurídico a partir da eficiência pode ser
especialmente útil para a construção de uma política jurídica que alcance seus
objetivos inclusive de realização da justiça.
Com base nesse entendimento, percebe-se que, embora geralmente
entrem em conflito, eficiência e justiça nem sempre serão contrapostas em um
sistema tributário, podendo, ao contrário, interrelacionar-se e complementar-se,
visando a uma efetivação concomitante, que é o ideal almejado nas ciências
jurídicas e econômicas.
No que diz respeito à justiça, faz-se necessário que identifiquemos e
entendamos os seus critérios de definição, a fim de compreender qual é aquele
que mais se coaduna com os princípios tributários, que constituem as pilares-
mestras do sistema jurídico fiscal.
De acordo com uma concepção de justiça pautada no princípio do
benefício, cada pessoa deve ser onerada em termos reais na proporção dos
benefícios recebidos (MURPHY, NAGEL, 2005. p. 24). Isto é, em um regime de
tributação de acordo com o princípio do benefício, cada contribuinte seria
tributado conforme a sua demanda por serviços públicos (MUSGRAVE e
MUSGRAVE, 1989, p. 22).
Contudo, este critério foi bastante contrastado, pois não poderia ser
utilizado como um critério de justiça tributária, haja vista não admitir isenções ou
o pagamento de renda mínima para os mais pobres, na medida em que todos
deveriam pagar pelos benefícios auferidos.
Murphy e Nagel (2005, p. 28) acreditam que este princípio seria
incompatível com todas as teorias da justiça, pois ele não se justificaria no
pressuposto que os resultados de mercado são justos.
Segundo o postulado da capacidade contributiva, é necessário observar
a aptidão econômica do contribuinte para concorrer com as despesas públicas.
946

É dizer, deve-se perquirir se o indivíduo possui reais possibilidades econômicas


de pagar tributo, sem que isto importe em prejuízos para a sua existência digna.
De acordo com Tipke e Yamashita (2002, p. 62), capacidade contributiva
é o princípio fundamental da tributação materialmente justa, encontrando a sua
justificativa na “consciência jurídica geral” e na razão prática. Assim, se um
indivíduo aufere apenas renda suficiente para a subsistência básica de si e da
sua família, não se pode impingir-lhe a obrigação de pagar imposto sobre a
renda, haja vista que ele não possui capacidade contributiva, ou seja, não tem
condições de contribuir com a res pública.
Nesse sentido, Becho (2011, p. 251-252) salienta que o constituinte
elegeu um valor – o valor justiça – para os impostos, de modo que cada
contribuinte deve recolhê-los de acordo com a sua condição econômica, ou seja,
com a sua capacidade de suportá-los. Caso contrário, os indivíduos seriam
expostos a uma situação incompatível com os direitos humanos, reduzindo-o a
condição de penúria econômica ou de miserabilidade. Quem possui mais
dinheiro, deve recolher os impostos em valores superiores em relação àqueles
que têm menos dinheiro.
Tal princípio pode ser considerado como critério de definição de justiça
fiscal a partir de várias nuances. Primeiro, a partir da ideia de talento pessoal, de
maneira que as pessoas deveriam pagar os tributos de acordo com os talentos
que possuíssem, ou seja, com a sua capacidade de auferir renda. Esta
concepção, contudo, no entender de Murphy e Nagel (2005, p. 33 e 38), não traz
a equidade como justificativa, mas a eficiência na obtenção dos resultados, o
que denota um argumento eminentemente utilitarista, tendo um interesse
instrumental no comportamento humano.
A capacidade contributiva também pode ser entendida, como critério de
justiça, a partir da tese de igualdade de sacrifícios, segundo a qual cada
contribuinte deve arcar com a mesma perda de bem-estar, com o mesmo custo
real (não monetário). Ou seja, a base correta seria aquela que se pautasse em
igualdade de sacrifícios líquidos. Esta concepção, segundo os autores, também
se mostrou inadequada, à medida que o que se baseia em uma teoria libertária
da justiça, que considera o hígido direito moral aos resultados de mercado pré-
tributários (MURPHY, NAGEL, 2005. p. 38).
Noutro sentido, o critério da capacidade contributiva pode ser entendido
por meio de uma ideia igualitária, que considere não a igualdade de sacrifícios
absolutos, mas uma igualdade de sacrifícios proporcional ou marginal.
Da mesma forma que os autores, concordamos que esta é a melhor forma
de compreender o princípio da capacidade contributiva enquanto critério
definidor da justiça da tributação, haja vista que considera as diferenças reais
existentes entre as pessoas, principalmente no que diz respeito à renda.
Partindo da ideia de que os indivíduos em uma sociedade são diferentes
e, portanto, possuem necessidades diversas, é possível parametrizar o sistema
tributário de forma a incidir de forma mais intensa sobre aqueles com maior
renda, isto é, com maior capacidade contributiva, e de forma mais branda sobre
aqueles com menos recursos para prover a sua existência digna.
Assumindo este viés progressivo, a tributação atua como instrumento de
correção das falhas de mercado e redistribuição de riquezas, na medida em que
possibilita ao Estado realocar os recursos em prol daqueles mais necessitados,
elaborando e implementando políticas públicas.
947

Tendo em vista que os direitos demandam gastos públicos, a tributação


corresponde ao preço da cidadania, possibilitando a própria existência do Estado
enquanto entidade política organizada. Porém, além da importantíssima função
arrecadatória, a tributação pode exercer outras funções, dentre as quais a
distributiva.
Neste aspecto, os tributos se destinam a promover a repartição dos
recursos, de acordo com as necessidades financeiras das pessoas, em face das
distorções causadas pelo mercado, que privilegia aqueles mais afortunados e
deixa desassistidos aqueles sem recursos financeiros.
Thomas Piketty (2015, p. 85), inclusive, destaca a importância da
tributação como mecanismo de redistribuição de riquezas, destinada à redução
das desigualdades sociais, permitindo a correção das disparidades das dotações
iniciais e das forças de mercado.
Nesse sentido, a tributação é um relevante meio de mudança social e de
implementação de uma sociedade mais justa, entendida como aquela que seria
escolhida na posição originária idealizada por John Rawls, ou mesmo aquela
que se aproxima o máximo possível daquilo que seus membros desejam,
proximidade que será tanto maior quanto maior for a proteção à liberdade e a
promoção da igualdade, em um ambiente democrático (MACHADO SEGUNDO,
2010, p. 212).
Segundo Murphy e Nagel (2005, p. 5), os impostos não são um simples
método de pagamento pelos serviços públicos e governamentais, mas são
também o instrumento mais importante por meio do qual o sistema político põe
em prática uma determinada concepção de justiça econômica ou distributiva. Ou
seja, é a justiça o valor social a que se dá peso na formulação de um sistema
tributário (2005, p. 17-18).
Assim, na esteira do que já foi dito, a tributação pensada a partir de uma
lógica de justiça distributiva promove a maior realização de direitos e não
apenas a maximização dos interesses dos agentes envolvidos na relação
jurídico-tributária. O Estado, então, exerce um papel preponderante na
formulação de um arranjo constitucional e tributário que se destine a redistribuir
riquezas, corrigindo as falhas de mercado, diminuindo, assim, as
desigualdades sociais.
A tributação baseada na justiça social, a nosso ver, é a que mais se
adequa a teoria de justiça pensada por John Rawls, haja vista que possibilita
um melhoramento da condição de vida dos menos afortunados, tornando a
sociedade mais justa e equânime, que deve ser o objeto de um Estado
Democrático de Direito.

CONCLUSÃO

Considerando que a justiça é um termo que comporta muitos significados,


tantos quantos forem as diferentes correntes que o conceituarem, coube-nos
discorrer sobre as principais teorias justiça contemporâneas, com ênfase a teoria
de John Rawls, para explicitar como elas fundamentam um sistema tributário
considerado justo.
Neste trabalho, identificamos os parâmetros de definição da justiça fiscal,
destacando a capacidade contributiva, em sua feição igualitária, como critério de
justiça eficaz para a definição da justiça tributária, porquanto pressupõe uma
948

igualdade de sacrifícios proporcionais ou marginais aos indivíduos, levando em


conta uma equidade horizontal.
Seguindo este raciocínio, apontamos que a relação entre eficiência e
equidade não deve ser entendida como sendo de incompatibilidade, mas de
complementariedade, na medida em que um sistema tributário ideal não pode
deixar de lado nenhum destes elementos. Por fim, pontuamos que a alocação
de recursos pode ensejar o alcance da efetiva justiça redistributiva, por meio da
redução das desigualdades sociais e a maior realização de direitos.
Desse modo, a nosso ver, de acordo com os preceitos do liberalismo
igualitário, um sistema tributário justo é aquele que promove a redistribuição de
riquezas com vistas a reduzir as desigualdades existentes na sociedade, a fim
de melhorar a condição de vida dos mais necessitados, promovendo os
princípios da equidade e da dignidade da pessoa humana.
Os resultados de mercado não são justos. Por isso, o Estado deve atuar
de forma ativa, por meio da tributação, para promover a redução das
desigualdades sociais, pondo de lado os ideais libertários e utilitários,
incompatíveis com um Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

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Visão Crítica. Elsevier, Rio de Janeiro, 2009.

CALSAMIGLIA, Albert, Eficiencia y Derecho, in Doxa, nº 41987. Disponível em:


www.cervantesvirtual.com/descargaPdf/eficacia-y-derecho-0/. Acesso em 09
dez 2018.

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MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade. Trad. Marcelo


Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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Practice. 5ª edição, Nova York: Mcgraw-hill, 1989.

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São Paulo: Editora WMF Martins fontes, 2011.

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Carlos Alberto Nunes. 3º Ed. Belém EDUFPA, 2000. Livro V. p. 55, parágrafo
332. Disponível em:
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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São


Paulo: Martins Fontes, 2008.

TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da


Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002.
949

Grupo de Trabalho:

DIREITO, EDUCAÇÃO, ARTE, LITERATURA


E HERMENEUTICA
Trabalhos publicados:

A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E O DIREITO À


EDUCAÇÃO – ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA DA JUSTIÇA DE RALWS

A CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO E SUA APLICAÇÃO GENÉRICA EM


FACE DA INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA LEI Nº 10.931/2004

A IMPORTÂNCIA DAS NOVAS TECNOLOGIAS PARA O ENSINO PRÁTICO-


JURÍDICO E A CONSTRUÇÃO DE UMA APRENDIZAGEM
TRANSFORMADORA

A PRÁTICA ARTÍSTICA COMO IMPORTANTE INSTRUMENTO DE


DESENVOLVIMENTO HUMANO

AFETOS À LIBERDADE: DA NECESSIDADE DE SE GARANTIR AS


GARANTIAS

DIREITO, ARTE E LITERATURA: UMA ANALISE DAS OBRAS “ANTIGONA” E


“O PROCESSO” SOB A OTICA DO CONCEITO DE DIREITO NATURAL X
DIREITO POSITIVO

ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE: A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER


COMO FONTE PARA A NARRATIVA LITERÁRIA

HERMENÊUTICA APLICADA À JUSTIÇA AMBIENTAL: DUALIDADE ENTRE A


CRUELDADE E A MANIFESTAÇÃO CULTURAL

HERMENÊUTICA DO AUTORITARISMO: AS TEORIZAÇÕES


ANTIDEMOCRÁTICAS PREEXISTENTES NO DIREITO

INQUISIÇÃO AO LONGO DOS TEMPOS: A LUTA DAS BRUXAS DE ONTEM E


HOJE FRENTE AOS PERIGOS DA FOGUEIRA

O CORPO, A COMPETÊNCIA SEXUAL E A BELEZA FEMININA COMO


CRITÉRIOS HUMORÍSTICOS

O VALOR ECONÔMICO DA REPUTAÇÃO EM APLICATIVOS QUE


PROMOVEM A ECONOMIA COMPARTILHADA E SUA PERCEPÇÃO COMO
MECANISMOS DE SEGURANÇA
950

A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E O DIREITO À


EDUCAÇÃO – ANÁLISE A PARTIR DA TEORIA DA JUSTIÇA DE RALWS
THE CURRICULAR COMMON NATIONAL BASIS AND THE RIGHT TO
EDUCATION - ANALYSIS FROM RALWS THEORY OF JUSTICE

Jane Cristiane de Oliveira Yamaguchi

Resumo: Este trabalho discute se a implementação da Base Nacional Comum


Curricular (BNCC) articula-se com a perspectiva de um currículo inovador,
traçado na direção de promover a inclusão social, com justiça social, e se este
documento normativo respaudou diretrizes humanas, políticas, econômicas e de
sustentabilidade social, visando a região local: povos indígenas, comunidades
quilombolas, regiões urbanas, regiões rurais e regiões de difícil acesso à
diversidade cultural da região e à desigualdade socioeconômica.
Palavras-chaves: Currículo. Justiça Social.

Summary: This paper discusses whether the implementation of the Common


National Curriculum Base (BNCC) articulates with the perspective of an
innovative curriculum designed to promote social inclusion, with social justice,
and whether this normative document violated human, political, economic
guidelines. and social sustainability, targeting the local region: indigenous
peoples, quilombola communities, urban regions, rural regions and regions with
difficult access to the region's cultural diversity and socioeconomic inequality.
Keywords: Curriculum. Social justice.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe discutir se a propositura da Base Nacional


Comum Curricular (BNCC) articula-se com a perspectiva de um currículo
inovador traçado na direção de promover a inclusão social, com justiça social à
luz da teoria rawlsiana.
A metodologia orientar-se-á por uma das técnicas da pesquisa qualitativa,
ancorada no levantamento, seleção e análise bibliográfica. Para DENZIN e
LINCOLN (2006) a pesquisa qualitativa é, em si mesma, um campo de
investigação, que envolve o estudo do uso e a coleta de uma variedade de
materiais empíricos e, como um conjunto de atividades interpretativas, não
privilegia uma única prática metodológica em relação a outras. Diante dessas
características, as autoras definem genericamente e de maneira inicial que “a
pesquisa qualitativa é uma atividade situada que localiza o observador no
mundo” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 17).
Tendo como suporte teórico da abordagem de justiça, desenvolvida por
Rawls (2000, 2002) a partir da ideia de consenso coletivo, visando um “sistema
equitativo de cooperação”. Dessa forma, considerando que o pressuposto
essencial da teoria de Rawls é a dignidade humana, compreende-se que para
uma vida digna, não basta garantir à pessoa o mínimo para a subsistência, mas
é fundamental garantir-lhe condições para participar da sociedade política como
cidadã, a ponto de compreender e usufruir dos seus direitos e liberdades básicos
usando mecanismos legais e políticos para respaldá-lo em melhorias na
sociedade.
951

Importa assinalar que neste trabalho não se pretende fazer uma análise
documental da BNCC, mas levar à discussão se a sua propositura objetivou
normatizar um instrumento que visa a emancipação de uma educação com
conteúdos culturais que representem as vozes ausentes, diminuindo as
diferenças das desigualdades socioeconômicas, ou se visa apenas à formação
de uma cidadania regional que contemple as aprendizagens apontadas como
essenciais, inequivocamente, oferecer o mínimo existencial dos direitos sociais.

2. BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC)

A BNCC é o documento normativo do Ministério da Educação (MEC) que


define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que os
alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação
Básica. De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB
– Lei n. 9.394/1996), deverá nortear os currículos dos sistemas e redes de ensino
das unidades federativas, como também as propostas pedagógicas de todas as
escolas públicas e privadas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino
Médio em todo o Brasil. 1
Este documento reconhece que a “educação deve afirmar valores e
estimular ações que contribuam para a transformação da sociedade, tornando-a
mais humana, socialmente justa e, também, voltada para a preservação da
natureza” (BRASIL, 2013) 2, mostrando-se também alinhada à Agenda 2030 da
Organização das Nações Unidas (ONU) 3
Por ter caráter normativo, a BNCC não precisou passar por votação no
Congresso Nacional, nem necessitou de sanção presidencial. Para os primeiros
segmentos da Educação Básica, o documento já foi aprovado e homologado.
Para o Ensino Médio, a Base está em fase de debates e elaboração. A previsão
é que o documento esteja em vigor no início do ano letivo de 2020.
Para sua aprovação, a BNCC sofreu diversos protestos por parte
principalmente de professores, que foram contrários ao texto apresentado pelo
Ministério da Educação, em abril de 2018. Algumas das cinco audiências
públicas previstas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), para realização
entre os meses de maio e agosto, nas cinco regiões brasileiras chegaram a ser
canceladas após os protestos.4
Neste trabalho não se pretende fazer uma análise documental da BNCC,
mas levar à discussão se a sua propositura objetivou normatizar um instrumento
que visa a emancipação de uma educação com conteúdos culturais que
representem as vozes ausentes, diminuindo as diferenças das desigualdades
socioeconômicas, ou se visa apenas à formação de uma cidadania regional que
contemple as aprendizagens apontadas como essenciais, inequivocamente,
oferecer o mínimo existencial dos direitos sociais.

1 Portal http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ .
2 BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Caderno de Educação
em Direitos Humanos. Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais. Brasília:
Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de
Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2013.
3 ONU. Organização das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o

Desenvolvimento Sustentável.
4 https://g1.globo.com/educacao/noticia/2018/12/04/base-nacional-curricular-comum-e-
aprovada-pelo-conselho-nacional-de-educacao.ghtml.
952

A seguir, tratamos sobre currículo inovador traçado na direção de


promover a inclusão social.

3. DESAFIOS EDUCACIONAIS: CURRÍCULO E DIFERENÇAS

ALMEIDA (2017, p.4), contextualizando os desafios educacionais na


América Latina, explica que as nações da América Latina se encontram em uma
efervescente busca de seus caminhos educacionais. É quadro marcante deste
cenário a evolução dos países no crescimento do atendimento à universalização
da educação escolar, principalmente nas idades básicas dos 5 aos 15 anos.
Explica que os atendimentos à população são desiguais em cifras, em geral
atendimentos tardios, e com tendências de crescimento concentracionários em
regiões mais ricas e com rendimento de aprendizagem pouco republicano.
Quase todos os esforços são marcados por alta taxa de evasão, baixos
rendimentos de aprendizagem, descontinuidades de políticas pedagógicas e por
notáveis discriminações territoriais. A formação inadequada de seus professores
e a desigualdade salarial são desafios constantes em todos os países do Sul da
América. Ressalta que a própria inexistência de professores em várias áreas do
conhecimento é um fenômeno altamente desfavorável para a educação escolar,
mormente a educação pública.
Conforme o autor, o concerto entre todas as iniciativas e desafios ainda
postos para os países da América do Sul está na afinação dos propósitos com
as condições de sua viabilidade.
Enfatiza que as nações contemporâneas têm, mais que nunca, o desafio
de desenhar políticas curriculares e currículos que manifestem e possam
implementar claramente suas diretrizes humanas, políticas, econômicas e de
sustentabilidade social, e a relação da escola, (currículo) com o território em que
vive é a mais perfeita tradução deste compromisso de políticas públicas do
conhecimento e da cultura com o projeto de nação.
Destacam WENSCESLAU E SANTOS, (2017, p.111) que a relação entre
educação e diferença ainda é um caminho em construção e que muitos autores
ainda indagam qual é e como se dá o papel do sistema educacional, em especial
as escolas e o currículo, frente ao enfretamento das complexas questões sobre
diferença.

A questão da diferença é o risco que carrega consigo de legitimar a


produção de novas diferenças coletivas, que segregam espaços e
grupos e podem restringir um exercício dialógico de cidadania. Ao
mesmo tempo em que não há sociedade cidadã ou democracia cidadã
se, para algumas parcelas da população, a vida se dá às margens das
condições de vida digna. (WENSCESLAU E SANTOS, 2017, p.111).
... a perspectiva de um currículo inovador traçado na direção de
promover a inclusão social supõe o progresso tecnológico e a mudança
dos padrões de produção industrial, assim como da relação do
mercado com a sociedade. (ALMEIDA 2017, p.4)
“instrumentos da justiça curricular”, não conduzindo à defesa de um
“projeto emancipador”, com conteúdos culturais que incluam e
representem as vozes ausentes, quase sempre deformadas nos
currículos tradicionais, e estratégias de ensino que contribuam para
uma aprendizagem crítica por parte dos indivíduos. (SILVA E
WENCESLAU, 2016, p. 129).
953

É neste viés que se propõe discutir se com a propositura da BNCC,


objetivou-se um projeto emancipador visando reconhecer nas políticas
educacionais a necessidade de enfrentamento das desigualdades sociais com
justiça social.

4. DIREITO À EDUCAÇÃO NUMA ABORDAGEM DE JUSTIÇA DE RAWLS

Para se fazer uma discussão quanto a BNCC e do direito à educação


propomos uma análise com suporte teórico na abordagem de justiça,
desenvolvida por RAWLS (2000, 2002) partindo da ideia de consenso coletivo,
que é a base para um “sistema equitativo de cooperação”.
O pensamento de que todos nascem em uma sociedade política, sustenta
a busca por uma sociedade bem ordenada, ampara assim dois pontos
fundamentais para que o princípio da justiça seja atingido: possuir o senso de
justiça e respeitar as concepções de justiça estabelecidas. Assim, obtem-se que
o objeto principal da justiça é a estrutura básica da sociedade, portanto, a
discussão acerca do justo e injusto referente à estrutura básica é fundamental,
mais do que o exame das situações particulares.
Priorizando esse princípio entende-se que a educação, como direito
público subjetivo, concebe que todo cidadão tem o direito atemporal em requerê-
la, pois sua oferta pertence a todos. Como direito social inerente ao
desenvolvimento da sociedade, garantida a todos os indivíduos, independente
de poder aquisitivo.
Conforme a Carta Magna de 1988, no Capítulo II, artigo 6º “São direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência dos
desamparados [...].” (BRASIL, 1998, p. 3). Dessa localização busca-se garantir
o equilíbrio e a justiça social.
Neste cenário, RAWLS (2002) assinala que na Constituição, documento
fundamental para o entendimento da sociedade toma-se “[...] medidas para
reforçar o valor dos direitos iguais de participação para todos os membros da
sociedade. Deve garantir uma oportunidade equitativa de participação e de
influência no processo político” (RAWLS, 2002, p. 245). Dito isso, acrescenta
que [...] além de manter as formas habituais de despesas sociais e básicas, o
governo tenta assegurar oportunidades iguais de educação e cultura para
pessoas semelhantes dotadas e motivadas, seja subsidiando escolas
particulares seja estabelecendo um sistema de ensino público. (p. 304).
Além da previsão constitucional, há uma série de outros documentos
jurídicos que contêm dispositivos relevantes a respeito do direito à educação,
tais como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, de 1966, ratificado pelo Brasil, no livre gozo de sua soberania, a 12 de
dezembro de 1991, e promulgado pelo Decreto Legislativo n. 592, a 6 de
dezembro de 1992; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.
9.394/96), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), o Plano
Nacional de Educação (Lei n. 10.172/2001), entre outros. (DUARTE, 2007, p.
692).
Com aparato legal apresentada como direito social, a educação busca
desenvolver em cada indivíduo, a liberdade de pensamento, o desenvolvimento
da autonomia e da cidadania, contribuindo para a elaboração de políticas sociais,
954

cuja justiça torna-se um dos princípios, com vistas a diminuição das


desigualdades.
RIBEIRO (2013) recupera RAWLS (2003), particularmente, em questões
que envolvem as políticas sociais, por meio da crítica ao

[...] utilitarismo porque ele apregoa que uma política pode ser julgada
como justa se satisfaz ou traz resultados para uma maioria,
independentemente de isso prejudicar ou não os direitos de uma
minoria. Para Rawls (2003), esse tipo de princípio de justiça é
inadequado: para que uma política seja justa, ela precisa favorecer a
cooperação social do conjunto, sendo o mais escrupulosa possível com
o direito de todos, ao longo de gerações. (RIBEIRO, 2013, p. 70).

Em se tratando de direito à educação, Rawls, inspirado em Frank


Michelman, defendeu ‘um mínimo social’, que é abordado em sua obra “Uma
teoria da Justiça”, apesar desta abordagem em sua obra, é importante destacar
que a ideia de mínimo existencial não advem de suas teses, mas lhe agrega
valor ao conceito, pois o fundamento de dois princípios de justiça em uma
sociedade justa e equilibrada, tendo como grande preocupação às pessoas mais
pobres, com o desejo de que tenham garantidas as suas necessidades básicas,
além de total possibilidade de atuarem como cidadãos livres e autonomos.
(NOVAIS, p. 80).
RAWLS afirma em sua obra “Justiça com igualdade” que viver não é
simplesmente sobreviver, sendo essencial condições mínimas para que a
pessoa possa desenvolver dignamente, atuando como personagem político
relevante, considerando que abaixo de certo nível de bem-estar material social
e educacional, as pessoas não podem participar ativamente da sociedade como
cidadãos iguais, sendo necessário o reconhecimento de um “mínimo social que
supra as necessidades básicas dos cidadãos.”(RAWLS, p.67).
Segundo (BOTELHO, p.334) o conceito “mínimo existencial’ vem sendo
objeto de análise da doutrina e da jurisprudência desde a década de 1950,
autores alemães, portugueses, espanhóis, peruanos, colombianos, argentinos,
chilenos, brasileiros, norte-americanos, dentre outros estudam seu significado.
Contudo, numa abordagem histórica e geográfica George Marmelstein sintetiza
que em países mais desenvolvidos como (Alemanha, Espanha e Portugal), a
possibilidade de o judiciário vir a efetivar direitos e prestações materiais é vista
com bastante desconfiança, pois se entende que a escassez de recursos
necessários à concretização de direitos prestacionais demandaria escolhas
políticas que deveriam ser tomadas pelo legislador e administrador e não pelos
juízes. Enfatiza a autora que são poucas as constituições, como a brasileira, que
incluiram em seu rol de direitos fundamentais diversos direitos sociais, mas no
Brasil são várias as decisões do Supremo Tribunal Federal que mencionaram
expressamente o ‘mínimo existencial’ dos direitos sociais, presentes análises de
direito à saúde, direito à educação, ao transporte, bem como o acesso à justiça.
De acordo com (NOVAIS. p. 195) na doutrina alemã o mínimo existencial
desdobra-se em dois aspectos: mínimo fisiológico, que respalda as condições
mínimas para uma vida digna, estando diretamente fundado no direito à vida e
na dignidade da pessoa humana, atingindo, por exemplo, prestações básicas em
termos de alimentação, vestimenta, abrigo, saúde ou os meios indispensáveis
para sua satisfação; e o mínimo existencial sociocultural, objetivando assegurar
ao indivíduo um mínimo de inserção, em razão de uma igualdade real, na vida
955

social, fundamentado no princípio do Estado Social e no princípio da igualdade


quanto ao conteúdo material, o desenvolvimento e a disponibilidade do Estado
e a evolução cultural das necessidades individuais, assegurando o
desenvolvimento da personalidade, de participação e de integração comunitária.
Enfatiza o autor que não se pode confundir o mínimo existencial com o
mínimo de sobrevivência, pois este é um colário do direito à vida (art. 5º da,
caput, da Constituição Federal). Portanto o mínimo existencial é um conjuto de
garantias materiais para uma vida condigna, que implica deveres de abstenção
e ação por parte do Estado, implica uma dimensão sociocultural, que constitui
elemento nuclear a ser respeitado e promovido, razào que consolida que
prestações em termos de direitos culturais haverão de estar sempre incluídas no
mínimo existencial.
Neste sentido, à luz da teoria de RAWLS a educação básica, universal,
gratuita e de qualidade é inequivocamente um mínimo existencial dos direitos
sociais, pode-se afirmar que para uma vida digna não basta garantir à pessoa o
mínimo para a sua subsistência, mas garantir-lhe meios de participar da
sociedade política como cidadã, compreendendo e usufruindo dos seus direitos
e liberdades básicos a fim de manejar instrumentos legais e políticos para exigir
melhorias na sociedade.

5. CONCLUSÃO

Como já apresentado, a BNCC, documento normativo do Ministério da


Educação (MEC) define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens
essenciais que os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades
da Educação Básica. De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB – Lei n. 9.394/1996), deverá nortear os currículos dos sistemas e
redes de ensino das unidades federativas, como também as propostas
pedagógicas de todas as escolas públicas e privadas de Educação Infantil,
Ensino Fundamental e Ensino Médio em todo o Brasil.
Com a implantação da BNCC, muitos acreditaram que cessariam as
discrepâncias do curriculo educacional, tanto nos aspectos regionais, como
também dos conteúdos dos sistemas e redes de ensino em todo o Brasil, por
delinear as aprendizagens consideradas essenciais, apesar das críticas de
estudiosos, bem como dos profissionais da educação.
Face aos estudos apresentados, quanto aos instrumentos de justiça
curricular em defesa de um projeto emancipador, com conteúdos culturais que
incluam e representem as vozes ausentes, quase sempre deformadas nos
currículos tradicionais, e estratégias de ensino que contribuam para uma
aprendizagem crítica por parte dos indivíduos; bem como à luz da teoria de
RAWLS quanto à justiça num sistema equitativo entre cidadãos livres e iguais é
imprescindível garantir às pessoas mais do que apenas o estritamente
necessário.
É neste viés que se propõe discutir se com a propositura da BNCC,
objetivou-se um projeto emancipador visando reconhecer nas políticas
educacionais a necessidade de enfrentamento das desigualdades sociais com
justiça social.
Espera-se, que este trabalho contribua para reflexões da necessidade de
se constituir um cenário de atuação e de estudos da BNCC, atendendo o desafio
quanto às políticas curriculares e currículos que manifestem e possam
956

implementar diretrizes humanas, políticas, econômicas e de sustentabilidade


social, visando a região: povos indígenas, comunidades quilombolas, regiões
urbanas, regiões rurais e regiões de difícil acesso à diversidade cultural da região
e à desigualdade socioeconômica

REFERÊNCIAS

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MERCOSUL – Estudo realizado ao Conselho Nacional de Educação – Camara
de Educação Básica. UNESCO, Brasília, 2017.

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comum-e-aprovada-pelo-conselho-nacional-de-educacao.gh

ONU. Organização das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: a Agenda


2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/
958

A CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO E SUA APLICAÇÃO GENÉRICA EM


FACE DA INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA LEI Nº 10.931/2004
BANK CREDIT BANK AND ITS GENERAL APPLICATION FOR THE
TELEOLOGICAL INTERPRETATION OF LAW 10.931/2004

Matheus Marcelo Teodoro da Costa


Orientador(a): Neusa Messias Migliorini

Resumo: A crise do crédito imobiliário que afetou o país no final da década de


90 impulsionou a adoção de medidas imprescindíveis para a recuperação da
segurança de instituições financeiras na concessão de crédito. A aplicação
astronômica destas medidas também trouxe questões não solucionadas nos
debates que culminaram na Lei nº 10.931/2004. Conquanto as intenções
legislativas restringiam-se ao mercado imobiliário, a redação da Cédula de
Crédito Bancário restou bastante genérica, afetando o mercado de crédito como
um todo, o que pôs em questionamento se este era o intuito do legislador à
época, debate este que perdura até os dias de hoje e será o objeto de estudo.
Palavras-chave: Cédula de Crédito Bancário. Título Extrajudicial. Legalidade.

Abstract: The real estate credit crisis that affected the country in the late 1990s
prompted the adoption of indispensable measures for the recovery of credit
institutions' security in granting credit. The astronomical application of these
measures also raised unresolved issues in the debates culminating in Law No.
10,931 / 2004. Although the legislative intentions were restricted to the real estate
market, the wording of the Bank Credit Note remained quite general, affecting the
credit market as a whole, which questioned whether this was the legislator's
intention at the time, a debate that lasts to this day and will be the object of study.
Keywords: Bank Credit Note. Extrajudicial Title. Legality.

INTRODUÇÃO

A sucessão de eventos que marcaram a década de 80, como a falência


do Grupo Delfin em 1984, e em consequência direta, a extinção do Banco
Nacional da Habitação (BNH), através do Decreto-Lei nº 2.291/1986, foram
motivos suficientes para a letargia no mercado imobiliário, que durante a década
de 90, sobreviveu mediante vendas diretas e financiamentos restritos à classe
média-alta. Ademais, o mercado financeiro como um todo ainda estava
engatinhando nos primeiros anos de fôlego com o plano real.
Somados a isso, bancos privados ainda mostravam grande desinteresse
pelo crédito imobiliário, em função dos altos prejuízos com a pouca efetividade
das garantias hipotecárias. Para somar as frustrações dos investimentos na
área, o ano de 1999 foi marcado pela falência de uma das maiores construtoras
do país, a Encol S/A, que em razão do processo falimentar, deixou como herança
a paralisação de 710 obras, prejudicando mais de 42 mil clientes, que restaram
ao final de tudo sem os imóveis e sem os valores pagos pelas unidades.
O reflexo direto de tão duros golpes ao mercado imobiliário, clamavam
uma resposta enérgica da classe política, que dentre tantas ações criadas por
meio de Medidas Provisórias (MP), criaram a chamada Cédula de Crédito
Bancário (CCB), hoje muito frequente no mercado de concessão de crédito em
geral.
959

A MP nº 2.160-25/2001, oriunda da MP nº 1.925-16/1999, buscava


reinventar o mercado financeiro com a criação de um novo título de crédito que
pudesse traduzir com eficácia as operações de crédito, prometendo o fôlego
necessário a atrair segurança para que as instituições financeiras aplicassem o
capital para reerguer o mercado imobiliário, e em contrapartida, detivessem
garantias suficientes quanto a satisfação do crédito.
Em verdade, o maior entrave para a aplicação de crédito em praça pelas
instituições financeiras traduzia-se justamente na ausência de exigibilidade que
a abertura de crédito tinha a época, que obstavam o ajuizamento de ações
executivas, condicionando os credores ao conhecimento do direito, e
consequentemente, a constituição em título executivo judicial, para, por fim,
executar a dívida, isso evidentemente, após anos de recursos nos tribunais.
Tal situação mostrou-se incontroversa, visto que o próprio Superior
Tribunal de Justiça assentou em dezembro de 1999, por meio da Súmula 233,
que “O contrato de abertura de crédito, ainda que que acompanhado de extrato
da conta-corrente, não é título executivo.”. Em contrapartida, visando garantir um
mínimo de celeridade, editou novo entendimento em maio de 2001, como consta
Sumulado pelo número 247: “O contrato de abertura de crédito em conta-
corrente, acompanhado do demonstrativo de débito, constitui documento hábil
para o ajuizamento da ação monitória.”
Conquanto a permissão de ajuizamento da ação monitória traduzisse
maior celeridade, uma vez que rotunda o limiar entre o conhecimento e a
execução, ainda não era a solução mais eficiente para o problema, conduzindo
as instituições financeiras a vincularem as operações de crédito a títulos
executivos já existentes, como a nota promissória. Entretanto, novamente, a
prática foi rejeitada pelo STJ, que mediante nova Súmula (258) aduziu que a
nota promissória vinculada ao contrato não goza de liquidez, o que obstava a
ação executiva.
Neste contexto, o mercado de crédito sofria pela falta de segurança que
as instituições detinham pela falta de liquidez e exigibilidade do capital cedido.
Por sua vez, o mercado imobiliário sofria com as falências das empresas
financiadoras, a extinção do BNH e a falência da Encol. Para ilustrar o quadro
ainda mais caótico, o país acostumava-se com o recém-criado plano real.
A situação crítica com que a sociedade financeira brasileira caminhava
nos primeiros anos do século XXI clamava uma resposta enérgica e imediata do
governo e do próprio congresso nacional, momento em que se deram a criação
de projetos de leis e medidas provisórias que serão objeto de nosso estudo.

OS PROJETOS DE LEI E MEDIDAS PROVISÓRIAS

As aspirações de mudanças, incentivadas pelo governo federal,


chegaram à Câmara dos Deputados mediante projetos de leis, como o PL nº
2.109/1999, o PL 3.751/2000 e o PL 3.065/2004, que em suma, buscavam
fortalecer a confiança das instituições financeiras, principalmente no mercado
imobiliário, como forma de superar as lesões causadas nas últimas duas
décadas.
Neste contexto, a MP 1.925-16/1999, posteriormente alterada para 2.160-
25/2001, foi revogada pela Lei nº 10.931/04, oriunda do PL nº 2.109/1999, que
apensava os PL nº 3.751/2000 e 3.065/2004. Especificamente, é o PL nº
3.065/2004 que trará as disposições sobre a CCB como hoje está prevista.
960

As justificativas oferecidas pelo Governo para a aprovação da PL nº


3.065/2004, promovidas pelo então Ministro da Fazenda, Antônio Palocci Filho,
era de que o fossem ofertadas soluções, tanto ao financiamento imobiliário,
quanto ao mercado financeiro. In verbis:

Além das medidas no âmbito do financiamento imobiliário, estão


sendo propostos também aperfeiçoamentos no âmbito do
crédito bancário. No caso da Cédula de Crédito Bancário
(CCB), normatizada pela MP nº 2.160-25, de 23 de agosto de
2001, cuja criação visa a facilitar e agilizar a negociação de
créditos bancários em geral, seja no mercado secundário, seja
securitizados na forma de recebíveis, e, com isso, desenvolver
as próprias operações primárias de crédito, são propostas
alterações com o objetivo de tornar a CCB mais flexível e
consistente do ponto de vista operacional e jurídico, de modo
a estimular o seu uso mais amplo. (BRASIL, 2004. p.25)

Contudo, do que se exprime dos registros das sessões deliberativas, não


era esse o intento da Câmara dos Deputados. Levado a votação em 07/07/2014,
os parlamentares tinham em mente que os Projetos vinham a criar soluções
especificamente ao mercado imobiliário, principalmente com relação a falência
da Encol. Durantes a sessão, muito se falava quanto a segurança do
consumidor, não percebendo que, contudo, a CCB era a contrapartida das
instituições financeiras quanto sua própria segurança.
Vale dizer que a pressão por medidas que contribuíssem para a
recuperação do mercado imobiliário não permitiu uma análise acurada de todas
as circunstâncias que envolviam os projetos apresentados. Isto se denota com
as transcrições das sessões para aprovação do Projeto de Lei nº 2.109/1999 e
seus apensos, que afirmavam não saber sequer o que estavam votando naquela
semana.
O mens legis fica evidente quando analisamos, a título de exemplo, as
palavras do Deputado Paulo Bauer do Partido da Frente Liberal (atual
Democratas), que acompanhado do correligionário, Deputado José Carlos
Aleluia, buscaram esclarecer aos pares o objetivo do Projeto que estava em
votação:

O objetivo do projeto — ele foi discutido amplamente —


apresentado pelo Relator, Deputado Ricardo Izar, é assegurar
que as pessoas possam, por meio desse mecanismo, alcançar
a propriedade de um imóvel residencial. Este projeto,
certamente, deverá contemplar a segurança jurídica de quem
participa do negócio. Refiro-me à segurança jurídica da
incorporadora, do comprador e do banco ou da instituição que
financiar o imóvel. (BRASIL, 2004. p.31864)

Com isto, verifica-se que a compreensão do Congresso no tocante a


matéria que tratava do CCB perscrutava-o como sendo um instrumento de
fomento tão somente ao mercado imobiliário, não vislumbrando as repercussões
que eventualmente viessem a serem contemplados por sua previsão ampla e tão
genérica.
Isto ficou ainda mais claro quando na apresentação do Relatório, o
Deputado Ricardo Izar ressaltou os ganhos que a o mercado da construção civil
traria, principalmente à classe média, pela previsão expressa da letra de câmbio
961

imobiliária e a cédula de crédito imobiliária. Contudo, nada falou quanto a Cédula


de Crédito Bancário.
Evidentemente que a situação do país naquele exato momento histórico
mostrou-se determinante para conduzir a compreensão dos parlamentares.
Resta claro que tanto Governo como Congresso buscavam reunir forças para
reacender a interesse privado na concessão de crédito, com grandes vistas ao
mercado imobiliário. Contudo, em contrapartida, o afã de buscar a solução
acabou por refletir em questões ainda mais abrangentes que o mercado
imobiliário.
Com a promulgação da Lei nº 10.931/2004, a Cédula de Crédito Bancário
foi revestida da força de título executivo (BUENO, 2017. p.564) que tanto as
instituições financeiras buscavam, driblando assim os entraves que as Súmulas
do STJ evidentemente representavam para a execução dos créditos
inadimplidos.

A REAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

Tal situação, contudo, restou longe de ser pacificada, uma vez que não
demorou muito para que as execuções de CCB fossem questionadas perante o
Poder Judiciário, e como reflexo direto, a própria constitucionalidade da Lei nº
10.931/2004 no que concernem as cédulas de crédito bancário.
Isto porque, segundo o art. 7º, II da Lei Complementar nº 95/98, norma
responsável por disciplinar a estrutura dos textos legislativos, é clara em
prescrever vedação legal à existência de matérias estranhas a que se propõe a
lei, bem como daquelas que não mantenham correlação direta ou indireta com a
temática proposta. Tais questionamentos alcançaram diversas Cortes de
Justiça, que muito se manifestaram no sentido de reconhecer a ilegalidade das
disposições da CCB na Lei nº 10.931/2004.
Neste primeiro momento, a tese chegou a lograr êxito nos tribunais. Vale
recordar que a 23ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo acolheu a nulidade de execuções que tivessem como título
executivo a CCB, visto que segundo o colégio de magistrados, há vício na origem
por inobservância da Lei Complementar nº 95/98. Exemplo disto, o Agravo de
Instrumento nº 7.034-706-9 de 2005:

EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. Suspensão do


processo. Interposição de recurso. Agravo prejudicado.
Execução fundada em cédula de crédito bancário. Ausência de
título com força executiva. Nulidade da execução reconhecida
(art. 618, I, CPC). Título criado pela Lei nº 10.931/2004. Vício de
origem. Inobservância da Lei Complementar nº 95/98. Extinção
do processo decretada de ofício. Impossibilidade de
prosseguimento da execução contra o avalista (parte final, do §
2º, do art. 32 da Lei Uniforme) Recurso prejudicado”. (TJSP,
2005.n.p.)

Contudo, este entendimento não se manteve, conforme se denota de


recentes julgados. Vale dizer que o Colendo Superior Tribunal de Justiça, em
decisão nos autos do REsp nº 1.464.181 – SP, em que pese reconhecer que o
objeto central da lei orbita o mercado imobiliário, entendeu que a CCB é matéria
correlata e, portanto, encontra-se em consonância com o art. 7º, II da LC nº
95/98.
962

À luz dessa detalhada análise de cada parte da Lei nº


10.931/2004, verifica-se que esse diploma dispõe, em suma,
sobre o mercado imobiliário, tratando da afetação da
incorporação imobiliária, bem como de institutos e questões
conexos, inclusive no que se refere a formas de financiamento
do próprio empreendimento, tanto pelo promitente-comprador,
quanto pela incorporadora, junto à instituição financeira. Verifica-
se, portanto que a lei é unívoca, tendo como objeto central o
mercado imobiliário, bem como trata de matérias afins,
pertinentes ou conexas, em harmonia com o disposto no art. 7º,
inciso II, da LC 95/98.

Neste sentido, o TJSP também alterou sua posição. A 12ª Câmara de


Direito Privado, em profundo estudo sobre o caso, entendeu inexistir violação da
Lei nº 10.931/2004 à Lei Complementar nº 95/98, uma vez que a matéria
discutida apenas recaiu-se em mero erro de forma que não macula o vigor da
matéria.

[...] Cédula de crédito bancário que é título executivo por força


do art. 28 da Lei n. 10.931/04 – Súmula n. 14 do Tribunal de
Justiça – Inclusão da cédula de crédito no art. 784, inciso XII, do
novo CPC – Cédula, ademais, acompanhada de demonstrativo
do débito – Título de crédito hígido – Precedente do Col. STJ
para recursos repetitivos – Arguição de inconstitucionalidade da
Lei n. 10.931/04, visto que, multitemática, ofende os arts. 1º e 7º
da Lei Complementar n. 95/98 – Inocorrência – Eventual vício
formal da lei, em face da Lei-Complementar n. 95/98, que não
enseja inconstitucionalidade "incidenter tantum" e escusa válida
para o seu descumprimento – Exegese do art. 18 da própria Lei-
Complementar n. 95 – Vício formal ao versar matéria afeta ao
sistema financeiro nacional (art. 192 da CF) – Inocorrência – Lei
federal, cujo art. 28 impugnado atribui "status" de título executivo
às cédulas de crédito bancário – Matéria de direito processual
civil – Competência do Presidente da República para a edição
de medidas provisórias – Edição anterior à Emenda
Constitucional n. 32/2001, quando era possível editar medidas
provisórias sobre a matéria [...](TJSP, 2018.n.p.)

A interpretação advém diretamente do permissivo legal extraído do teor


do art. 18 da Lei Complementar 95/98 que prediz que a inexatidão formal da
norma, desde que obedecidos o devido processo legislativo, não constitui motivo
válido para seu descumprimento. Contudo, o entendimento não é pacífico,
havendo divergências até mesmo quanto a interpretação dada ao próprio termo
“inexatidão formal”1.

A POSIÇÃO CONTRÁRIA

O Professor Rizzatto Nunes, em artigo publicado pela Escola Superior de


Advocacia da Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil,
manifestou entendimento contrário ao que tem se sedimentado a jurisprudência,
entendendo pela inconstitucionalidade das disposições da CCB na Lei nº

1Art. 18. Eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular
não constitui escusa válida para o seu descumprimento.
963

10.931/2004, circunstância esta que não se valida para o autor nem mesmo sob
o prisma do art. 18 da LC 95/98.

Essa lei, com esse objeto, também de forma sub-reptícia, nos


arts. 26 e s., criou a Cédula de Crédito Bancário, um título de
crédito a ser utilizado por instituições financeiras em operações
de crédito, ou seja, um novo objeto diferente daquele instituído
por ela. A violação às normas gerais da Lei Complementar n. 95
era, como é, pois, flagrante.
Desse modo, vê-se que os artigos da medida provisória e da lei
ordinária referidas são inconstitucionais não porque haveria
violação de uma estrutura hierárquica, mas porque, no diálogo
necessário e sistêmico estabelecido a partir da determinação da
norma complementar que regula a forma e a substância das
demais leis no país, com ela ficou em desconformidade.
É verdade que o art. 18 da LC nº 95 diz que “eventual inexatidão
formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular
não constitui escusa válida para o seu descumprimento”. Mas,
claro, essa não é a hipótese das normas apresentadas. Entende-
se por inexatidão formal mero erro que seja incapaz de
desnaturar a norma, como, por exemplo, um parágrafo estar
numerado erradamente ou artigos com números repetidos etc.
(Nunes. 2011. n.p.)

Rizatto Nunes entende que o art. 7º, II da Lei Complementar nº 95/98,


norma é claro em prescrever a vedação legal à existência de matérias estranhas
a que se propõe a lei, bem como daquelas que não mantenham correlação direta
ou indireta com a temática proposta. Por sua vez, a matéria estranha de que
trata o art. 7º não se confunde com a inexatidão formal, prevista pelo o art. 18 do
mesmo codex.
O art. 7º ao predizer que a lei não trará matéria estranha, como a própria
terminologia usada indica, faz menção ao teor da norma, ou seja, ao conteúdo
que será disposto. Neste sentido, pensemos que disposições do processo civil
fossem, por algum motivo, incutidas no Código de Processo Penal, ou vice e
versa. Por certo, haveria alto grau de incongruência e desarmonia no
ordenamento.
Por sua vez, o art. 18 expressamente traz o permissivo legal aos erros de
forma, ou seja, as inobservâncias de uma determinada norma que, contudo,
possibilitam o desenvolver regular do ato. São imperfeições da mera técnica
legislativa, que não maculam o processo legislativo ou a ordem normativa. Neste
interim, certamente há completa divergência das previsões dos artigos em
questão, uma vez que tratam de erros completamente diferentes.
Ora, enquanto o art. 7º prescreve a proibição aos erros materiais, o art.
18 autoriza os erros formais que, ao menos, tenham observado o processo
legislativo regular. Contudo, a Lei nº 10.931/04, ao dispor quanto a Cédula de
Crédito Bancário, fugiu do objeto da lei promulgada, invadindo uma seara
completamente estranha e mais abrangente que o patrimônio de afetação
imobiliário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto histórico nos permite concluir que o momento em que se deu


a aprovação da Lei nº 10.931/04 por certo não permitiu que os legisladores
pudessem se debruçar sobre a matéria e compreender o bom desdobramento
964

que os artigos 26 a 45 teriam de impactar não só o mercado imobiliário como


previam, mas o sistema financeiro como um todo.
Deste modo, é forçoso dizer que se trata de mero erro formal a existência
de matéria do mercado financeiro em uma legislação que trata sobre
incorporações imobiliárias e patrimônio de afetação. Seria leviano considerar a
matéria como mero “jabuti jurídico”2 incorporado à lei. A CCB foi uma das
grandes respostas que garantiram a concessão de crédito ao mercado e
permitiram a recuperação econômica do país na primeira década do século XXI.
Destarte, sua existência é justificável pelo momento histórico que o país
a época enfrentava. Todavia, não se pode furtar da realidade: a violação pende
mais à ser erro de matéria, o que incorre em violação do art. 7º, II, do que a
informalidade do art. 18.
A questão ainda demanda que seja feita análise sob o prisma da
interpretação teleológica (GARCIA, 2015.p.), ou também chamada de
sociológica, uma vez que a própria lei impõe que qualquer analise tome por base
a finalidade da norma segundo o fim a que se pretende alcançar quando de sua
promulgação, conforme determina-se o art. 5º da LINDB, na qual assim dispõe:
“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às
exigências do bem comum”.
Tal interpretação, conforme recorda o professor Tércio Sampaio Ferraz
Junior (2013. p.231-232), é o que marca a mudança da doutrina de Savigny em
1814, onde a interpretação não se limita à vontade da lei (voluntas legis),
meramente a traduzir o que a redação exprime, mas adentrar o pensamento de
seu legislador ao promulga-la (voluntas legislatoris)
Desta forma, convém recordar que a legislação, quando promulgada,
demonstrava um único escopo: a recuperação do mercado imobiliário, criando
segurança jurídica para atrair investimentos. Isto significa que o legislador, ao
propor a norma, não imaginou que a Lei nº 10.931/2004 viesse a ser utilizada
em todas as operações de crédito do mercado, mas sim, e tão somente, àquelas
oriundas do mercado imobiliário.
A análise dos debates na Câmara dos Deputados para a promulgação da
Lei nº 10.931/2004 demonstra claramente que os legisladores não buscavam
promover alteração no mercado de capital em geral, mas sim, apenas no que
tangia o mercado imobiliário. Este é o fim a que se destinava a lei. Logo, não se
trata de mera inexatidão do art. 1º em não prever a CCB, mas sim, da própria
intenção dos legisladores e do que à época entendiam que estavam votando
quando o texto foi posto em mesa.
Neste sentido, pela imposição do art. 5º da Lei de Introdução as Normas
do Direito Brasileiro (LINDB), não se mostra crível que, sendo certo que o texto
foi aprovado visando apenas o mercado imobiliário, utilize-se neste momento
como supedâneo a garantir força executiva a toda e qualquer Cédula de Crédito
Bancário, independente da origem da operação, ou seja, se imobiliária ou não.
Mostra-se bastante coerente a ideia que orbita entre os dois
entendimentos opostos. A interpretação restritiva de que a Cédula de Crédito
Bancário, para que seja regida pela Lei nº 10.931/04, precisa advir de relação
que envolva as incorporações imobiliárias, ou ao menos, seja oriunda de
transação imobiliária, nos parece bem mais coerente, não anulando a vontade

2Termo jurídico frequentemente usado nas casas legislativas para denominar a matéria estranha
ao escopo da lei que é posta em votação.
965

do legislador, mas também não dando aval ao uso irrestrito para qualquer
transação que envolva CCB.
Tão logo, por tal interpretação, a força executiva da CCB não seria
extirpada do ordenamento jurídico, mas teria sua aplicação mitigada, segundo a
qual a aquisição de bens móveis ou mesmo de mútuo não é regida pela Lei nº
10.931/04, mas sim, constitui dívida líquida que somente se reveste de força
executiva quando preencher os requisitos do art. 784, III do CPC.
Tal interpretação mostra-se bastante coerente com o teor da Súmula nº
14 do TJSP, que assim descreve: A cédula de crédito bancário regida pela Lei
nº 10.931/04 é título executivo extrajudicial.
Isto não significa que a CCB emitida para outros fins que não imobiliários
não comprove a inexistência do débito, ou mesmo de que o documento não
constitua prova idônea em ação de conhecimento ou de fins monitórios.
Entretanto, a boa técnica processual não admite que um documento vise
revestir-se de executividade resguardada à CCB emitidos com escopo único e
específico, ou seja, a incorporação imobiliária.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3065/2004.

BRASIL, Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. Sessão


Deliberativa de 07/07/2004. Publicado em 08/07/2004.

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil – 3. ed. – São


Paulo : Saraiva. 2017.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito : técnica,


decisão, dominação. – 7. ed. – São Paulo : Atlas, 2013.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Introdução ao estudo do direito : teoria geral


do direito. – 3. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo:
MÉTODO, 2015.

NUNES, Luis Antonio Rizzatto. O “contrabando” operado no sistema legislativo,


as garantias constitucionais, os limites para o legislador e o direito do
consumidor. ESA/OAB-SP. Publicado em 09.11.2011. Disponível em:
<https://esaoabsp.edu.br/Artigo?Art=43> Acesso em 26.07.2019.

TJSP; AI nº 7.034-706-9, Des. Paulo Roberto de Santana. São Paulo, j.


14.12.2005

TJSP; Apelação nº 0004451-35.2013.8.26.0286; Rel. Cerqueira Leite; 12ª


Câmara de Direito Privado; J. 07.05.2018.
966

A IMPORTÂNCIA DAS NOVAS TECNOLOGIAS PARA O ENSINO PRÁTICO-


JURÍDICO E A CONSTRUÇÃO DE UMA APRENDIZAGEM
TRANSFORMADORA
THE IMPORTANCE OF NEW TECHNOLOGIES FOR PRACTICAL LEGAL
EDUCATION AND THE CONSTRUCTION OF TRANSFORMING LEARNING

Larissa Campos Rubim


Maria de Nazareth da Penha Vasques Mota

Resumo: O presente trabalho tem como escopo abordar a importância das


novas tecnologias para o ensino prático-jurídico como um dos pilares para se
construir uma aprendizagem transformadora. Atualmente, muito se tem discutido
sobre a importância de novas formas de aprendizagem, considerando o contexto
de globalização enfrentado neste século, entretanto, esta discussão perpassa
por um conceito de promoção de cidadania através da educação, uma vez que
por meio deste incentivo é possível que o aluno desenvolva a autonomia e a
segurança que se espera de um futuro profissional. Assim, abordar-se-ão do
ponto de vista pedagógico, apontamentos sobre a educação pós-moderna; a
prática de ensino e o desenvolvimento de novas instruções pedagógicas frente
às novas tecnológicas; e a importância deste ensino para uma aprendizagem
transformadora. A pesquisa foi desenvolvida através do método dedutivo, com
ênfase no tipo metodológico de pesquisa bibliográfica.
Palavras-chaves: Ensino prático-jurídico. Novas tecnologias. Aprendizagem
transformadora.

Abstract: This paper aims to address the importance of new technologies for
practical-legal teaching as one of the pillars for building transformative learning.
Currently, much has been discussed about the importance of new forms of
learning, considering the context of globalization faced in this century, however,
this discussion permeates a concept of promoting citizenship through education,
since through this incentive it is possible that The student develops the autonomy
and security expected of a professional future. Thus, from the pedagogical point
of view, notes on postmodern education will be addressed; the practice of
teaching and the development of new pedagogical instructions in the face of new
technologies; and the importance of this teaching for transformative learning. The
research was developed through the deductive method, with emphasis on the
methodological type of bibliographic research.
Keywords: Practical-legal teaching. New technologies. Transformative learning.

INTRODUÇÃO

À medida que a sociedade avança, também são modificados os contextos


de comunicação, educação e cidadania. A ideia de pós-modernidade,
desenvolvimento, crescimento econômico e progresso social estão associados
ao movimento de globalização enfrentado mundialmente. Surgem novas
tecnologias, a necessidade de comunicabilidade entre indivíduos e uma
intensificação da competitividade no mercado de trabalho, que fazem com que o
profissional necessite reexaminar-se e estar em constante atualização para se
adequar ao novo contexto.
967

Neste diapasão, é interessante ressaltar que no aprendizado do Direito


não é diferente. As novas tecnologias influenciam diretamente no ensino prático-
jurídico e exigem do professor - uma atualização do modo de repassar o
conhecimento – e, do aluno - maior receptividade deste conhecimento - para que
assim o objetivo da educação seja atingido, que é a promoção de uma formação
ético-cultural, visando o desenvolvimento da cidadania.
O presente artigo irá retratar justamente a importância dessas novas
tecnologias para o desenvolvimento de uma aprendizagem transformadora no
ensino prático do Direito, a fim de que o aluno possa, em tempos modernos, criar
uma visão de educação e cidadania global.
Desta forma, este trabalho se encontra dividido em três partes: a primeira,
direcionada a apontamentos sobre a educação pós-moderna; a segunda, sobre
o desenvolvimento das novas tecnologias e sua influência à educação; e a
terceira, relacionada a importância dessas novas tecnologias para o aprendizado
prático-jurídico, visando uma aprendizagem transformadora.
O método de pesquisa utilizado para alcançar os resultados deste
trabalho foi o dedutivo, no qual, parte-se de uma análise geral para um contexto
específico. “Primeiramente, são apresentados os argumentos que se
consideram verdadeiros e inquestionáveis para, em seguida, chegar a
conclusões formais, já que essas conclusões ficam restritas única e
exclusivamente à lógica de premissas estabelecidas (MEZZAROBA, 2014, p.
91)”.
Quanto ao tipo metodológico, foram utilizadas pesquisas bibliográficas
em livros, revistas científicas, sítios eletrônicos etc., focados aos ramos da
Pedagogia, Direito Educacional e da Sociologia Jurídica.

1. APONTAMENTOS SOBRE A EDUCAÇÃO PÓS-MODERNA

Inicialmente, é interessante destacar que o desenvolvimento da educação


formal como se conhece hoje também passou por intensa influência histórico-
cultural e isto tem se intensificado com a pós-modernidade. Ocorre que para
entender esta mudança de paradigmas, faz-se necessário relatar como se
apresentava a modernidade e qual era a visão sobre educação.
Pourtois (1997) leciona que com a modernidade houve um rompimento
com o finalismo religioso, passando a uma sociedade fundada na razão. Com
isso, “a modernidade se define por uma separação entre o mundo objetivo,
criado pela razão, e o mundo da subjetividade, centrado na pessoa (Pourtois,
1997, p. 23)”. Assim, a organização da vida em sociedade sai do contexto de
religioso e agora se fundamenta na ciência e racionalidade humana, que só pode
ser alcançada através da educação.

Neste sentido, a educação deve ser uma disciplina que liberta o


indivíduo da visão estreita e irracional que impõem a família e suas
paixões, e abre ao conhecimento racional. Portanto, a escola é o lugar
de ruptura com o meio de origem para alcançar o progresso. As
crianças não passam de alunos, e o mestre é um mediador entre elas
e os valores universais da verdade, do bem e do belo. Trata-se,
também, de eliminar os privilegiados, os herdeiros de um passado
superado, para eleger elites em todo o corpo social, recrutadas graças
a concursos realizados sobre bases objetivas (Pourtois, 1997, p. 23).
968

No caso da pós-modernidade, conforme Pourtois (1997, p. 27) acredita-


se na possibilidade de “reconstruir um universo social, cultural, pedagógico,
coerente e integrador que acolheria ao mesmo tempo a razão e o ser, a
racionalização e a subjetivação”. Se na verdade, uma perspectiva complexa
desta realidade, onde em expansão.
Em que diz respeito ao ensino não é diferente, pois se (Pourtois, 1997)
pensa que será construído um novo modelo de saber, com teorias novas e a
necessidade de comunicação. Haverá um “esfacelamento dos saberes”
(Pourtois, 1997, p. 33), ou seja, uma fragmentação para enfrentar a
complexidade da sociedade.

2. GLOBALIZAÇÃO: O DESENVOLVIMENTO DE NOVAS TECNOLOGIAS E


SUA UTILIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO

A forma como a humanidade está engrenando ao longo da história tem


intensificado as relações internacionais, o processo produtivo, a industrialização,
a comunicabilidade e informatividade, originada pelas novas tecnologias, o que
interferem diretamente no processo educativo. Acerca dessas mudanças sociais
produzidas pela globalização, Rodrigues (2001, p. 99/100) ressalta que:

Decerto que o momento atual tem gerado mudanças sociais que


apresentam as tecnologias de comunicação e informação como fatores
importantes, mudanças estas ocorridas muito mais pela forma como as
tecnologias estão sendo utilizadas, na medida em que, uma vez
incorporadas ao cotidiano, elas exigem competências e habilidades
que muitos não possuem, gerando o desemprego. Acrescente-se o fato
de que tudo isso tem acentuado as desigualdades sociais, pois a
informação advinda do acesso e uso eficientes das tecnologias de
comunicação e informação assume valor econômico, gerando as
distinções sociais. Daí afirmar-se que atualmente quem tem a
informação detém o poder.

Quanto à escolarização, as mudanças foram experimentadas, no que


concerne a necessidade de uma qualificação com habilidades específicas, que
interferem diretamente na aceitação do novo profissional no mercado de
trabalho. Dessa forma, o referido autor explique que:

Seria enganoso afirmar que essas mudanças não foram percebidas


pela Escola: nas recentes formas de qualificação vocacional, por
exemplo, e em seus novos critérios de avaliação. Supreendentemente,
entretanto, essas qualificações têm planejadas para níveis de
“habilidades” sem dúvida mais baixos, e seu status, em consequência
disso, tem permanecido marginal e baixo (GARCIA, 2003, p. 124).

Ademais, houve também a mudança da utilização de material didático


impresso para a inserção da cultura digital e da imagem. Garcia (2003) critica a
utilização desmedida da internet para o acesso do conhecimento, expondo que
neste meio há desafio a ser enfrentado pois há muitas informações que devem
ser selecionadas e processadas para poder serem transformadas em
conhecimento. Neste sentido,

Podemos dizer que a Internet não oferece acesso nem à informação


nem ao conhecimento, considerados em sua forma mais antiga. A
internet oferece acesso a “coisas” com potencial de serem
969

processadas para se transformarem em informações essenciais e, por


conseguinte, com um trabalho mais extenso, transformarem-se em
conhecimento. Eis um novo desafio para o novo currículo. A mudança
da dominância do livro e da página para a dominância recente da tela
imagética é, ao mesmo tempo, associada e paralela, e não
dependente, a uma mudança nas formas canônicas de representação,
o que envolve um distanciamento da dominância da escrita para o uso
crescente da imagem (GARCIA, 2003, p. 125).

É interessante frisar que as mudanças a nível tecnológico podem ter sim


suas críticas quanto ao bombardeamento de informações que sofre a sociedade,
porém, a utilização de computadores e demais aparelhamentos tecnológicos
para o acesso a internet tem servido como forma de democratizar a educação e
de tornar o conhecimento acessível a todos. Brandão ressalta que:

Com o acesso às tecnologias, os alunos estão mais curiosos e


inquietos por descobrirem novas coisas e chegam à sala de aula com
uma bagagem de informações bem significativas. Dessa forma, os
conhecimentos prévios devem ser valorizados como ponte necessária
para construir uma interação entre o professor e o aluno. Todavia, não
basta ao professor se apropriar dessa vasta variedade de recursos
tecnológicos, mas também, de compreender que a tecnologia
educacional se constitui na maneira inovadora de mediar o
conhecimento, promovendo situações de aprendizagens que
estimulem e desafiem os alunos, utilizando a sinergia dos indivíduos
dessa era tecnológica em prol de atitudes mais criativas e autônomas
no processo de ensino e de aprendizagem (BRANDÃO, 2016, p.
03/04).

Ao professor, cabe o estímulo dessa aprendizagem, com a utilização dos


recursos atuais disponíveis como forma de despertar o interesse do aluno e sua
criatividade, utilizando-se da tecnologia para enfatizar a promoção tecnológica
do país e a formação humanística do aluno.
Brandão (2016, p. 05) ainda expõe que:

A mediação pedagógica do professor e o uso de novas tecnologias


deverão ter uma proposta de ensino que desperte nos alunos uma
nova forma de pensar e agir no processo de aquisição do
conhecimento. Tais aspectos são habilidades fundamentais para a
formação do indivíduo, para compreender as relações de mundo que
se constituem de forma muito rápida e interativa em nossa sociedade
atual.

Dentro desta formação humanística está a utilização da educação como


promotora da cidadania do indivíduo e a construção de uma consciência de
corresponsabilidade com a sociedade como um todo. Considerando as reflexões
propostas neste tópico, passa-se à análise do tema central desta pesquisa.

3. A IMPORTÂNCIA DA UTILIZAÇÃO DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO


ENSINO PRÁTICO-JURÍDICO PARA UMA APRENDIZAGEM
TRANSFORMADORA

É importante expor que “o saber pedagógico é o saber que o professor


constrói no cotidiano de seu trabalho e que fundamenta sua ação docente, ou
970

seja, o saber que possibilita ao professor interagir com seus alunos, na sala de
aula, no contexto da escola onde atua (Campos, 2005, p. 43)”.
Em se tratando do ensino jurídico, a utilização das novas tecnologias tem
extrema importância para balizamento entre a teoria e a prática, e,
consequentemente, a construção deste saber pedagógico. “Assim, a prática
docente, expressão do saber pedagógico, constitui-se numa fonte de
desenvolvimento da teoria pedagógica. As necessidades práticas que emergem
do cotidiano da sala de aula demandam uma teoria (Campos, 2005, p. 47)”.
O ensino prático-jurídico deve está consubstanciado na realidade, no
contexto social daquela comunidade da qual o aluno está inserido. Diante disto,
o professor em sala de aula deve propor o desvendar das situações reais e se
munir da internet, do computador e demais aparelhos para ampliar as suas
possibilidades de saber pedagógico, além de entender a tecnologia como forma
de estreitar o diálogo com o aluno, futuro profissional no mercado de trabalho e
agente modificador da sociedade.
No âmbito do Direito, o ensino da práxis exerce o papel de orientação do
estudante para que este possa enfrentar os percalços profissionais, ajudando-o
a resolver casos concretos e auxilia-lo às práticas para a futura postulação em
juízo. No que concerne à sua importância para uma aprendizagem
transformadora, o associação ensino teórico ao prático tem também a função de
empoderar o indivíduo que irá trabalhar e construir a sociedade, bem como
exercer sua cidadania e auxiliar os demais indivíduos de seu meio social a
exercerem seus direitos.
A título de exemplo da importância da inserção das novas tecnologias no
ensino prático-jurídico, é interessante ressaltar que o uso do meio eletrônico na
tramitação de processos judiciais tornou-se uma realidade com a Lei nº 11.419,
de 19 de dezembro de 2006. Assim, se não houver a conciliação entre teoria e
prática, será que aquele aluno estará apto para prestar o auxílio ao seu cliente
em uma futura demanda?
Outro exemplo é a disponibilização de todas as legislações em sítio
eletrônico dos respectivos órgãos, para que os cidadãos possam acessá-la e
consulta-la. E isto deve também ser considerado para o ensino prático, uma vez
que o aluno poderá acessar em seu celular ou computador, o conteúdo da lei
que o professor está propondo para estudo. Além disso, as internet, nos sites
dos tribunais encontram-se disponibilizadas uma gama de jurisprudências que
podem também ser utilizadas pelo aluno como ferramenta de resolução dos
casos concretos propostos em sala.
Assim, o conhecimento repassado pelo professor de prática jurídica deve
levar em consideração o conhecimento teórico e as novas realidades propostas
pelos meios de transmissão eletrônica, além de orientar os alunos sobre a
importância do estudo da jurisprudência concernente à utilização de todas as
demais formas de comunicação à distância através das redes sociais que
atualmente já interferem na realidade do Poder Judiciário e estão modificando o
meio para ampliar o acesso a justiça, garantia prevista no art. 5º, XXXV da
Constituição da República.
Diante do exposto, resta-se claro que a importância das novas tecnologias
em sala de aula pelo professor da disciplina prático-jurídica, tem como função
preparar o profissional para as modificações pós-modernas do Poder Judiciário,
com a inserção de recursos que possibilitam a facilitação de se ingressar com
uma ação judicial.
971

CONCLUSÃO

Este trabalho propôs uma simples análise acerca da importância das


novas tecnologias para o ensino prático-jurídico como um dos pilares para se
construir uma aprendizagem transformadora. A educação pós-moderna tem
promovido uma nova forma de aprendizado, consubstanciado na complexidade
do saber.
Pode-se afirmar que um dos fatores que promovem a complexidade da
propagação do conhecimento é o desenvolvimento de novas tecnologias e a
interferência dessas no processo educativo.
Destarte, diante deste contexto de globalização, o professor deve conciliar
os conhecimentos teóricos e práticos, inserindo as novas tecnologias nesse
processo de construção do saber pedagógico para que o aluno possa aprender
a práxis do Direito para que futuramente possa agir neste processo de
modificação da sociedade, promoção da cidadania através do acesso à justiça.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Pollyanna de Araújo Ferreira; CAVALCANTE, Ilane Ferreira.


Reflexões acerca do uso das novas tecnologias no processo de formação
docente para a educação profissional. Publicado em Anais do III Colóquio
Nacional. Eixo Temático III – Formação de professores para a educação
profissional. Rio Grande do Norte: 2016;

BRASIL. Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006 (Lei de Informatização do


processo judicial). Senado Federal: 2006;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado


Federal, 1988.

CAMPOS, Edson Nascimento. Saberes pedagógicos e atividade docente. 4ª


edição. São Paulo: Cortez, 2005;

GARCIA, Regina Leite; MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. Currículo na


contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo: Cortez, 2003;

MEZZAROBA, Orides. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. 6ª


edição. São Paulo: Saraiva, 2014;

POURTOIS, Jean Pierre; DESMET, Huguette. A Educação Pós-moderna.


São Paulo: Edições Loyola, 1999;

RODRIGUES, Ana Maria da Silva; OLIVEIRA, Cristina M. V. Camilo de;


FREITAS, Maria Cristina Vieira de. Globalização, cultura e sociedade da
informação. Publicado em Revista Científica Perspect. cienc. inf., Belo
Horizonte, v. 6, n. 1, p. 97 - 105, jan./jun.2001; p. 97/105;
972

A PRÁTICA ARTÍSTICA COMO IMPORTANTE INSTRUMENTO DE


DESENVOLVIMENTO HUMANO
ARTISTIC PRACTICE AS AN IMPORTANT INSTRUMENT OF HUMAN
DEVELOPMENT

Bárbara Lavínia de Souza Pimenta


Eduardo Pedreira Pereira

Resumo: O presente trabalho aborda inicialmente um contexto histórico da


influencia das artes no desenvolvimento humano, desde os primórdios
ancestrais e como desde os tempos primitivos, a humanidade já lidava com a
arte no seu dia a dia. Em conseguinte, passa-se a análise da legislação brasileira
acerca da estruturação da Arte-Educação e como se deu o desenvolvimento do
estudo das artes nas escolas. Depois é analisado como as artes interferem no
comportamento humano desde a infância e como a experiencia artística interfere
nos comportamentos dos indivíduos. Por fim, é feita uma abordagem
bibliográfica através de pesquisas quem mostram como a arteterapia auxilia
pacientes que sofrem de transtornos mentais, dessa forma, a partir das
considerações feitas pode-se chegar as conclusões finais.
Palavras-chave: Arte. Educação. Desenvolvimento Humano.

Abstract: The present work initially addresses a historical context of the influence
of the arts on human development, since the earliest beginnings and how since
primitive times, humanity had dealt with art in its daily life. Therefore, the analysis
of Brazilian legislation about the structuring of Art Education and how the study
of the arts in schools took place. It then looks at how the arts interfere with human
behavior since childhood and how artistic experience interferes with the
behaviors of individuals. Finally, a bibliographical approach is made through
research that shows how art therapy helps patients suffering from mental
disorders, so from the considerations made can reach the final conclusions.
Key words: Art. Education. Desenvelopment Human.

INTRODUÇÃO

As artes fazem parte do nosso cotidiano, de nossas vivencias pessoais e


interpessoais. Mesmo que de forma despercebida, nos deparamos todos os dias
com murais, cartazes, desenhos, grafites, peças teatrais, shows e diversas
formas de expressões artísticas. No entanto, de que forma todas as expressões
artísticas nos interferem? Os meios pelos quais somos inseridos às artes se faz
efetivo? Como o Estado atua na garantia dos Direitos à arte e do
Desenvolvimento artístico? A atuação das escolas tem papel significativo nesse
desenvolvimento? O presente trabalho visa abordar o impacto das artes no
desenvolvimento dos indivíduos buscando informar a importância da sua
implementação na educação e construir o entendimento da necessidade desta
na vida humana. Pretende-se de toda forma, explicitar através da análise
bibliográfica o crescimento da perspectiva sobre a importância das artes no
ensino e como o incremento delas no âmbito escolar auxilia os alunos no
desenvolvimento de suas capacidades pessoais. Ademais, pretende-se
demonstrar a devida responsabilidade do Estado como garantidor do ensino
efetivo das artes na escola.
973

1. DAS PRIMEIRAS EXPRESSÕES ARTÍSTICAS NA HUMANIDADE

A prática artística e a necessidade das formas de expressão é algo que


nos habita desde os tempos primitivos. Muitos seres humanos, utilizando-se de
materiais diversos disponíveis na natureza, realizavam atividades artísticas que
muitas vezes estavam associadas a algum ritual ou evento de grande
importância, e até mesmo em atividades cotidianas, como a caça. Essas
atividades deixaram um legado muito importante para os estudiosos no sentido
de que, possibilitaram o melhor entendimento dos costumes, crendices e
comportamentos praticados por esses povos.
No período Paleolítico, que teve início há 2,5 milhões de anos e terminou
em 10.000 a.C, nossos antepassados realizavam tarefas utilizando ferramentas
de pedra lascada e tudo indica que éramos nômades que esgotávamos os
recursos naturais de onde passássemos, durante esse período. Foi apenas no
Período Neolítico que ocorreu uma grande revolução que resultou na utilização
da agricultura e no avanço da organização social e familiar do homem, o que
permitiu um estabelecimento fixo de território, além da obtenção de maior
conhecimento das condições naturais do planeta. (FERREIRA, 2014)
São vários os exemplos de arte primitiva que podem ser considerados as
primeiras obras de arte feitas pelo homem. Dentre elas, são mais comumente
conhecidas as pinturas rupestres, que eram feitas nas paredes das cavernas,
retratando figuras humanas, animais ou cenas do dia a dia pré-histórico. Existem
também esculturas, dentre as quais se destacam as Vênus, que representam as
mulheres, como a de Willendorf, na Áustria, esculpida entre 25.000 (vinte e cinco
mil) e 28.000 (vinte e oito ml) anos antes de Cristo, que eram retratadas como
símbolos de fertilidade. Existem muitas outras esculturas muito conhecidas
como por exemplo o Stonehenge, porém o significado da real importância e
função dessas esculturas é um enigma para estudiosos até hoje (FERREIRA,
2014).
Além disso, foram encontrados e catalogados outros itens, como a
machadinha de pedra achada em West Tofts, Norfolk, Inglaterra, que hoje se
encontra no Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade de
Cambridge e curioso observar que tal peça foi construída em volta de um fóssil
de concha, datado em aproximadamente 300.000 anos atrás, fóssil esse que foi
confirmado ser mais antigo que a própria machadinha, usado apenas para atrair uma
característica bela à ferramenta (CENTER, 2018).
Diante das observações é notória a percepção que o desenvolvimento
artístico faz parte do cotidiano humano desde tempos remotos, e que os habitantes
primitivos já haviam aprendido a ser artesãos e fabricarem suas próprias
ferramentas a partir das obras primas que lhes eram proporcionadas pela
natureza. De forma tal, entende-se que não só para atividades relacionadas a
sua sobrevivência atuava os povos ancestrais, mas também de forma
estratégica, optou-se por usar por exemplo, uma pedra que oferecia um adorno
ao instrumento sem função aparente nenhuma, senão enfeitar. Isso mostra que,
as artes, a cultura e o belo sempre fizeram parte do nosso desenvolvimento
histórico e cultural e é um importante indicador de como se comporta e se
relaciona a humanidade com o meio que está inserido.
974

2. O CENÁRIO DAS NORMAS BRASILEIRAS QUANTO AO


DESENVOLVIMENTO DA ARTE-EDUCAÇÃO

No início do século XX ocorreu os primeiros indícios da importância das


artes no desenvolvimento do indivíduo no Brasil influenciado em grande parte
por movimentos internacionais em defesa da arte e da educação. Porém, apenas
com a promulgação da Constituição de 1934 foi que se teve inserido na norma
suprema, a educação como um direito de toda população. Na década de 1930,
o Canto Orfeônico foi introduzido nas escolas brasileiras, e posteriormente com
o advento da primeira versão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
publicada em 20 de dezembro de 1961(BRASIL,1961), foi que se determinou o
ensino de música na educação primária, já em 1971, a música passou a ser
incluída na matéria de Educação Artística, sendo assim ministrado por
professores atuantes na área. (DIA, LARA, 2012)
Além disso, somente a partir da Lei nº 5692/1971 a disciplina de educação
artística se tornou obrigatória nas escolas brasileiras e sendo apenas na
promulgação da Lei de 1996, em seu art. 26, § 2º, como afirma: “[...] § 2º O
ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos
níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural
dos alunos” (BRASIL,1996, grifo nosso), é que se tornou obrigatório tanto para
o ensino fundamental quanto para o médio.
Em 2016, foi publicada a Lei nº 13.278/2016, que trouxe a última alteração
para a LDB1 que obteve um avanço ainda mais significativo para o
desenvolvimento das artes no âmbito escolar. A nova legislação acrescentou ao
art. 26, § 2º as especificidades das artes visuais, a dança, a música e o teatro
que também serão componentes obrigatórios da rede de ensino. Tal incremento
da educação se faz muito motivador tanto para os alunos que terão a
oportunidade se desenvolver em diversas áreas do conhecimento e grandes
habilidades que lhes poderão ser úteis no futuro, quanto para docentes das áreas
artísticas que terão mais oportunidades de emprego e desenvolvimento
profissional.
Ademais, importante salientar que o direito a educação artística e o
desenvolvimento cultural dos indivíduos e da sociedade é um dever garantidor
do estado, como bem explicita a Carta Magna de 1988, que dispõe em seu
Capítulo III, Seção I, Da Educação, art. 205, in verbis: “Art. 205. A educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
(BRASIL, 1988).
Isto posto, pode entender que o a legislação brasileira traz de forma
explicita a obrigatoriedade de se implementar na educação, os meios artísticos
para o desenvolvimento das crianças e adolescentes e que o cumprimento de
tais medidas é essencial para a formação dos indivíduos.

3. DA IMPORTÂNCIA DAS ARTES DA EDUCAÇÃO DOS INDIVÍDUOS

O ser humano é um ser artístico e podemos perceber que os fenômenos


da arte, dança, música interfere o comportamento das crianças até mesmo

1 LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394/1996.


975

enquanto nascituros. Segundo o estudo feito na Unidade Básica de Saúde (UBS)


Antero de Mello, vinculada ao Programa de Saúde Familiar (PSF), no Bairro Rio
Verde, e pelo Salão Paroquial do Bairro San Martim, em Ponta Grossa, Paraná,
feitos pela equipe de saúde da unidade, que propôs a um grupo de 10 gestantes
reuniões em que eram abordados vários tipos de musicalidades entre elas,
paródias e cantos de músicas infantis, onde foi possível concluir que a prática
trouxe diversos benefícios para as mulheres as quais obtiveram de forma
integral, contato com outras gestantes em que puderam trocar experiências e
desenvolver em conjunto a sensibilidade musical e a percepção corpórea e
sentimental do momento de mudança com a chegada de uma nova vida.
(RAVELLI, 2004)
Não só para os nascituros, o desenvolvimento das artes na infância se faz
muito pertinente. A criança é um ser curioso e criativo, e propor-lhes ao
desenvolvimento das artes abre oportunidades para a desenvoltura dessa
criatividade onde a criança pode se expressar, se identificar e tornar-se um ser
mais sensível ao mundo que o entorna. A visão das artes para as crianças é
diferente para com a dos adultos, enquanto o adulto alia o campo artístico ao
belo, à estética, para a criança está ligado a forma que elas têm de se expressar,
para sentir prazer, brincar e se divertir, além disso, é por esse meio que muitas
vezes o professor identifica as qualidade e dificuldades que possa vir a ter o
aluno e de mostrar a ele o quão significativo são as atividades artísticas
exercidas por ele. (COLETO, 2010) A dança também não fica de fora, tendo em
vista ser uma excelente auxiliadora do conhecimento corporal, e da desenvoltura
psicomotora. De forma tal, a criança desenvolve sua autonomia e também se
torna um adulto mais autônomo e com mais facilidade de comunicar-se.
No entanto, para atender às exigências trazidas pela legislação é
importante que os alunos estejam submetidos a um bom planejamento escolar
e que este possa ser efetivo para o desenvolvimento do aluno. Diversas vezes
ocorre que, as aulas são ministradas por professores já desmotivados ou até
mesmo que não veem a importância do valor da arte no ensino escolar, ou por
outros que não tiveram a formação adequada que lhe capacite suficientemente
para desenvolver as aulas em um nível que desperte a capacidade dos alunos
(FARIAS, 2016). Em casa também o aluno pode não ter nenhum incentivo às
práticas artísticas, seja pela falta de interesse dos pais, de conhecimento ou de
recursos financeiros para tal, dessa forma, cabe à escola proporcionar a vivência
artística na vida dos alunos, mas de forma efetiva em que o aluno possa refletir
e interagir com a arte. Os Parâmetros Curriculares Nacionais não estabelecem
de forma absoluta a forma que se dará o contato dos alunos com a matéria,
dando assim, certa autonomia para que a escola desenvolva o melhor método
para sua atuação, mas deve-se atentar para que a qualidade das aulas não seja
precária (FUTURO, 2018).
Diante dos posicionamentos, é importante verificar que as artes têm papel
significativo no desenvolvimento do indivíduo desde o seu desenvolvimento pré-
natal e que a escola tem uma responsabilidade fundamental no desenvolvimento
da criança e que a prática artística influencia diretamente na vida dos seres
humanos. De tal modo, deve ser incentivado desce os primeiros anos de vida,
as práticas artísticas no indivíduo, cultivando assim a capacidade desde de se
desenvolver em sociedade, ter mais autonomia e percepção de si mesmo.
976

4. IMPACTO DAS ARTES NO DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E


HUMANO DOS INDIVÍDUOS

Que as artes impactam a vida dos homens é fato, seja pelas artes visuais,
teatro, música, dança, literatura e entre outros diversos ramos da arte pelo
mundo, porém, não apenas através das expressões externas a arte gera
significativo efeito na vida e no desenvolvimento do homem. A psique humana
também é bastante influenciada pelas artes desde a infância até a velhice pois
esta é capaz de despertar emoções e sentimentos nos indivíduos. Estudos da
Universidade Federal do Ceará, mostrou que a implantação da arteterapia vem
colaborando para uma significativa melhora a pacientes que sofrem de doenças
mentais, onde eles puderam enfrentar melhor seus medos, dificuldades e
angustias, de modo que exercícios artísticos os ajudaram a canalizar,
positivamente, variáveis que colaboravam para a doença mental, como
problemas em família por exemplo. Foi constatado também que, com o auxilio
do grupo Amigos da Arte, gerou um processo de reconstrução, integração e
socialização e da liberdade onde os pacientes puderam minimizar o sofrimento
mental e se conectar com eles mesmos (COQUEIRO; VIEIRA; FREITAS, 2010).
Além disso, pode-se notar que o envolvimento com as artes contribui com
diversas outras doenças psicossomáticas como, depressão, ansiedade e
alzheimer e novas terapias envolvendo o meio artístico vêm sendo propostas
para compor o tratamento dessas doenças (PERES, 2018). Acerca do analisado
é verídico afirmar que as artes são benéficas em vários âmbitos de sua atuação
e que só tem a acrescentar para o desenvolvimento da sociedade, além de
desempenhar um papel inegavelmente importante no desenvolvimento
psicológico humano, pois estabelece o trânsito entre o sensível e o racional, o
que resulta, com a prática ou vivência artística, na utilização da arte para
compreender ou abordar outros temas, por meio de processos criativos.

5. CONCLUSÕES

Diante dos fatos expostos é notório concluir que desde dos primórdios a
arte fez parte do nosso desenvolvimento, seja pela pintura, música, dança,
teatro, ela sempre esteve presente. A presença quase que inevitável dos meios
artísticos contribuiu e contribui de forma extremamente significativa para o que
somos hoje tendo em visa sermos seres que nos espelhamos com o que nos
entrona. A pesquisa permite apenas confirmar como a interferência das artes
contribui para o desenvolvimento educacional, social e psicológico, e como esta
é benéfica de forma tal, que sem ela estaríamos privados de saberes e
capacidades que só são possíveis graças ao contato com o meio artístico.
Cumpre salientar também a responsabilidade do Estado em garantir que
a educação nas escolas e nos demais meios sociais esteja cumprindo com os
preceitos necessários para um efetivo engrandecimento sociocultural da
população, garantindo-lhes a oportunidade de experencias novos saberes e
construir novas práticas a fim de ter um pleno desenvolvimento humano.
Ademais, importante apontar que políticas públicas devem ser sempre
criadas para melhor adequação e propositura dos meios artísticos à população
e que deve-se sempre verificar que o ensino nas escolas esteja sendo cumprido
de forma efetiva, além de incentivar a criação de grupo de arteterapia para
pacientes que sofrem de transtornos mentais.
977

REFERÊNCIAS

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Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.

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BRASIL. Lei nº 9.394 ,de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e


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148 f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre 2004.
979

AFETOS À LIBERDADE: DA NECESSIDADE DE SE GARANTIR AS


GARANTIAS
AFFECTS TO FREEDOM: THE NEED TO GUARANTEE GUARANTEES

Leonardo Gonçalves Fernandes

Resumo: A corrupção de sentido da palavra liberdade nos dias atuais constata


a principal adversidade no que concerne à liberdade de cátedra nas
universidades, uma vez que, torna apta a arbitrariedade ilegítima de transporte
de dogmas exauridos. Essa realidade é evidenciada nas instituições de ensino
superior e comprometem os direitos fundamentais e de desenvolvimento
humano, resguardados, inclusive, na Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão, do grupo em desigual posição dos docentes, os alunos. O tema, à
primeira vista, pode parecer tormentoso pela ponderação que tenta o autor de
aferir entre três espécies de liberdade: pensamento, manifestação e cátedra.
Prova essa árdua tarefa em estudo sobre pouco refletidas considerações sobre
a temática. Constata-se desde já que, sob um viés filosófico, a pesquisa jurídica
se sustentará, evidenciando contornos constitucionais e percorrerá alguns
conceitos da sociologia utilizando o método de investigação jurídico-projetivo.
Palavras-chave: Manifestação. Liberdade. Controle social.

Abstract: The corruption of the meaning of the word freedom in the present day
reveals the master adversity regarding the freedom of teach in the universities,
since it makes fit the illegitimate arbitrariness of transporting exhausted doctrine.
This reality is evidenced in higher education institutions and compromise
fundamental rights and human development, protected, including, in the
Declaration of the Rights of Man and of the Citizen, the group in unequal position
of teachers, the students. At first look, the theme may seem stormy because of
the author's attempt to measure between three kinds of freedom: thought,
manifestation and teach. It proves this arduous task in the study of little reflected
considerations on this theme. I realize from the outset that under a philosophical
bias, legal research will be sustained, showing constitutional contours and will go
through some concepts of sociology using the method of legal-projective
research.
Keywords: Manifestation. Freedom. Social control.

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

Concebendo-se que a natureza essencial do ser humano está,


umbilicalmente, atrelada a ascensão de suas mais amadurecidas convicções
sob domínio do sentir e em detrimento da razão objetiva, como bem propunha
John Locke, torna-se imperioso ressaltar que o ato de crer em determinadas
ideias, religiões e, sobretudo em indivíduos, se submete a critérios de seleção
mediante a narrativa produzida pelo propagador das mais diversas ideologias,
pautadas, tão somente, em verdades absolutas. Entretanto, é fundamental
atravessar as portas abertas por Zaffaroni e José Henrique Pierangeli para
afastar toda e qualquer pejoratividade do termo ‘’ideologia’’ como o fazem no
célebre Manual de Direito Penal: Parte Geral ao tratar dos meios de controle
social.
980

Com efeito, a necessidade de analisar a posição hierárquica do autor no


espaço social em que esse se encontra é tarefa indispensável para o que se
pretende defender nessa redação. Assim, é possível declarar que essas ideias
advindas da crença desmedida e do zelo descontrolado a própria infalibilidade
do emissor educador é atenuada no que se refere ao contexto educacional
superior, às universidades.

2. DESENVOLVIMENTO

Dada as proposições iniciais, recorre-se novamente aos ensinamentos de


Zaffaroni e pretende-se asseverar que o docente não deve confundir sua
liberdade de cátedra, garantia constitucional reconhecidamente necessária, com
doutrinação ideológica, tendo, como fim buscado, a criação de cegos defensores
e pior, cegos acusadores a depender do tema que, muitas vezes, podem ser
levados a exercer a defesa ou o ataque de pautas que não necessariamente
acreditam e pior, sequer anuem o mérito do que se impõe.
Há que se dizer que em um Estado que se pretenda democrático, não há
espaço para supressão da inovação e para suspensão do juízo crítico. Consigna-
se que baluarte da democracia é o pluralismo de ideias, todavia, quando da
observação do texto legal e, por via da interpretação básica desses dispositivos,
aduz o autor que é inadmissível a dignidade constitucional ser somente atribuída
a determinados grupos, ainda que estes detenham o poderio do saber em
determinadas situações de convívio, como dentro de uma sala de aula.
Pois bem, a proposta que não se revela fácil, é delimitar os contornos
jurídicos a respeito da liberdade de manifestação e, nesse mesmo fundamento
libertário, traçar o limiar entre a liberdade de cátedra nas instituições de ensino
e quando essa se transforma em doutrinação ideológica, com fulcro
exclusivamente no Direito, sob uma perspectiva filosófico-jurídica.
À luz do pensamento de John Locke, é pressuposto para o conceito de
liberdade a igualdade de posição entre os indivíduos para que haja chance de
se ter eficácia do termo, é evidência disso seu atemporal texto ‘’Carta Sobre a
Tolerância’’. Num processo de construção do conhecimento, o intelectual, o
mestre competente, deve fornecer elementos para criação do pensamento crítico
de seus alunos, ainda que exponha seu próprio pensamento acerca de
determinado mérito.
É de responsabilidade do líder, ao mesmo tempo que forma opinião,
elencar num contexto de aprendizado, exercício de alteridade em relação a seu
público. Dito isso, é factível sustentar que os que buscam a formação superior,
jovens acima de 17 anos, mediante estudo realizado por psiquiatra infantil e
também professor da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg, em
Baltimore, Doutor Jay N. Giedd, a maturação do cérebro adolescente não é
determinada pela idade e, como bem aponta, ainda na vida adulta se tem essa
continuação da formação do córtex pré-frontal, responsável por diversas
funções, entre elas, influenciar na tomada de decisões e no juízo crítico,
corroborando, aliás, com a proposta dessa redação. A esse respeito e também
a título de transparência, necessário dizer que não existe pacificação sobre o
tema.
Ora, se não existe consenso a respeito de um tópico tão caro a discussão
atual sobre a interferência externa de agentes no pensamento dos estudantes,
981

como não refletir a respeito da não execução plena do que confere o


ordenamento jurídico nacional sobre tal assunto?
Bem se sabe que a legislação brasileira garante na Constituição da
República de 1988:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[…]
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e
coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

Nesse sentido, a lei é clara, uma vez que reza não somente sobre a
liberdade de ensinar conforme suas concepções pedagógicas (dos docentes),
mas também a liberdade de aprender, nesse contexto (dos discentes)
sustentado no pluralismo de ideias, tanto nas instituições públicas quanto nas
instituições privadas.
Nesse mesmo teor, a Lei nº. 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional expõe:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:


[…]
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura,
o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância.

É categórica a necessidade do exercício da tolerância num espaço de


consolidação do pensamento e preservação do ente plural pilar de um Estado
Democrático de Direito.
Utilizando-se de recurso doutrinário filosófico, sempre será referência aos
estudos sobre a liberdade, os pensamentos de John Stuart Mill, em sua obra:
Sobre a Liberdade. O autor defende que a primeira liberdade sendo a da
consciência, direito inalienável a todo ser, é afetada na medida em que se excluir
a possibilidade de questionamento/refutação de uma ideia. Por óbvio, quando há
impedimento da liberdade de fala ou subjetividade suficiente e concreta para se
sentirem lesados os estudantes que ousarem manifestar opinião contrária ao
líder educacional dentro das salas de aula, nesse momento, já se forja no
ambiente acadêmico a deturpação do próprio conceito de universidade que se
liga a noção de universo, a noção de diversidade, e se transmuta,
imediatamente, ao totalitarismo pedagógico, situação estudada por Hannah
Arendt, ferindo, a seu modo, não só as legislações mencionadas, como a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 26.
Como bem aponta esse filósofo, os deferentes sem limites, ao negar
ouvidos, como contam e afirmam vários estudantes relatores, a uma opinião
porque já a pressupõem como falsa, presumem a infalibilidade de suas ideias e
estagnam o conhecimento humano, bem como a possibilidade de
desenvolvimento de uma cultura, episódio esse decorrente de firmes axiomas
que os ligam na exiguidade de seu arbítrio.
Desse modo, torna-se imperioso destacar que, ainda que a maioria esteja
em harmonia com uma ideia já decretada, um que se apresente discordante não
982

deve ser censurado a perigo de prejudicar sua própria oportunidade de aprender


e também às inovações decorrentes dos questionamentos levantados.
Nessa conjuntura, é sabido que as descobertas de conhecimento e
fortalecimento dos entendimentos que já existem se dão mediante justificativas
da verdade como forma de comprovação de sua veracidade prática real.
Desde logo, registra-se que os apontamentos aqui defendidos, não se
estendem integralmente a comunidade leccionadora, mas tão somente, aos que
ligam-se às vicissitudes supracitadas. Não obstante, as ideias findam a
esclarecer que esses vícios silenciadores se coadunam no cerceamento da fala
discordante e intimidação de outrem em notável posição desvantajosa, pois,
sendo o docente a autoridade habilitada a transmitir conhecimento, em regra, há
uma crença na competência desse agente para que cumpra essa função.
O ônus do constrangimento ao dissidente debilita a liberdade mental e
serve, como única finalidade, a fortalecer o estigma da hegemonia de quem
detêm o poder, condicionando o saber dentro das próprias ideologias dos
emissores de dogmas mortos, nesse caso, o grupo docente, que subverte a
missão nobre de resgatar da caverna os acorrentados, como bem discorria
Platão.
Por se tratar tal dissertação de tema tão significativo e tormentoso, se faz
necessário exemplificar as afirmações que se referem ao limite do professor
dentro das salas de aula. Noticiado pelo portal O Globo e também pela Revista
Fórum, a aluna do curso de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Maria Clara Bubna relata que deixou de assistir às aulas de determinado
professor por se sentir desconfortável com comentários nitidamente sexuais e
perseguição por divergir ideologicamente do professor, que a acusava
reiteradamente e, de modo pejorativo, como ‘’aluna marxista’’. O caso é
emblemático, ao ponto do movimento Coletivo de Mulheres da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, onde também lecionava o docente, divulgar uma nota
de repúdio às opiniões que esse mestre publicava em sua rede social e em sala.
A Constituição da República, em seu art. 220, § 2º, revela in verbis: é
vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Logo,
a seriedade se traduz maior analisando a culpabilidade do emissor, que pertence
ao ramo jurídico, ao proferir, sabidamente ilegais, tais comentários.
Contudo, o medo da hierarquia institucionalizada nessas organizações, a
bem da verdade, apenas fragiliza a coragem de denunciar formalmente casos
tão graves quanto o de Maria Clara Bubna. Ao realizar uma busca em
comunidades e denúncias formais, acresço ao caso Bubna, a denúncia
oficializada de Fernandinho Fernandes de Souza Neto que, mediante
apresentação de provas contundentes a respeito do que esse artigo procurou
demonstrar, procurou a autoridade para solução do acinte institucional e assumiu
o risco das represálias pontuais e, mais grave, ameaça de expulsão.
Várias são as denúncias anônimas da asfixia do aluno questionador ou
divergente fruto dos que se apresentam como competentes do saber. A grande
maioria dos discentes confiam nesses agentes para formar sua razão crítica,
reconhecendo o mérito do educador. Por ser fato o dito, é essencial a
manutenção do discernimento e separação entre impor condutas e pensamento
e transferir conhecimento.

3. CONCLUSÃO
983

Sendo o Direito a arte do bom e do justo, importando as reflexões de


Celso, reitero que a vida em sociedade é composta por direitos e deveres, alguns
acolhidos pela esfera legal e outros por um consenso tácito consolidado.
Entretanto, a realidade não pode ser ignorada e ela nos mostra, infelizmente,
que a democracia educacional resta fragilizada, na medida em que as normas
não são efetivadas, a mentalidade hegemônica se torna regra, por conseguinte,
suprimindo a inovação e, sequer a ética e a serenidade tratada por Norberto
Bobbio em Elogio da Serenidade, na construção do saber dos futuros
diplomados profissionais é tida como norteadora dos parâmetros democráticos
para, enfim, garantir as garantias.

REFERÊNCIAS

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Stuart Mill. Catalão, n. 25 – 2/2011 – ISSN 1517-8471 –197-212.

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Bolso, 2012.

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WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. 12ª. ed. São Paulo: Cultrix,
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito


penal brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
796 p.
985

DIREITO, ARTE E LITERATURA: UMA ANALISE DAS OBRAS “ANTIGONA” E


“O PROCESSO” SOB A OTICA DO CONCEITO DE DIREITO NATURAL X
DIREITO POSITIVO
LAW, ART AND LITERATURE: AN ANALYSIS OF “ANTIGON” AND
“PROCESS” WORKS UNDER THE OPTICS OF THE CONCEPT OF
NATURAL X POSITIVE LAW

Karla Luzia Alvares dos Prazeres


Michele Del Pino
Orientador(a): Paulo Joviniano Alvares dos Prazeres

Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de traçar um paralelo entre a


concepção de Direito Natural e Direito Positivo, demonstrando que ambos
coexistem de forma antagônica, em detrimento do alcance de valores como
justiça e ferramenta social de controle. Analisa-se a visão dos clássicos da
literatura de Sofocles e Kafka, se verificando que tais valores e conceitos acerca
do conceito de Direito Natural Positivo permanecem incólumes. Assim, o
objetivo é desenvolver uma análise comparativa entre as duas correntes
jusfilosóficas distintas do Direito: o jusnaturalismo, com fundamento no Direito
Natural, emanado da consciência humana; e o Positivismo Jurídico, com base
no Direito Positivo, proveniente do Estado.
Palavras-chaves: Direito Natural. Direito Positivo. Literatura Jurídica.

Abstract: This paper aims to draw a parallel between the conception of Natural
Law and Positive Law, demonstrating that both coexist in an antagonistic way, to
the detriment of the reach of values such as justice and social control tool. We
analyze the classic view of Sofocles and Kafka's literature, verifying that such
values and concepts about the concept of Positive Natural Law remain
unscathed. Thus, the objective is to develop a comparative analysis between the
two distinct jusphilosophical currents of Law: jusnaturalism, based on Natural
Law, emanating from the human conscience; and Legal Positivism, based on
Positive Law, from the State.
Keywords: Natural Law. Positive law. Legal Literature

1. INTRODUÇÃO

Muitas são as discussões em torno do conceito de Direito, a que serve,


qual objetivo, se é um ciência ou um mero instrumento de controle social. Caio
Mário em seus ensinamentos dizia ser o direito um conjunto de normas
coercitivas que rege o agir social humano. Assim podemos observar o direito
como um conjunto de normas e instrumento de controle humano e social, o que
tem esteio na formação do entendimento de Direito como instrumento de
coerção, como norma positiva, como forma de controle.
Por outro lado temos o conceito de Direito como algo inerente a condição
humana e existência da sociedade, em suas mais variadas forma e
organizações, sendo todo conjunto de normas moral ou de coerção um meio de
se observar a existência do direito, que se observa desde os mais singulares
regramentos pessoais e morais.
Temos em duas grandes obras a observação no imaginário literário do
papel do Direito na sociedade, sendo este visto como instrumento de controle
986

passível do cometimento de injustiças, o que nos põe a refletir a finalidade que


se presta o Direito, assim como seu fim, o qual, nem sempre se é alcançado.
Assim podemos entender como os sistemas de norma por vezes se
apresenta injusto e opressor, e capaz de violar valores morais e normas intimas
de existência e condição humana.

2. DIREITO POSITIVO X DIREITO NATURAL

As normas de condutas humanas prescindem o que se espera do


indivíduo na vida em sociedade, principio morais e éticos como não roubar, não
matar, são princípios legais maiores nos estados legais de Direito, contudo tais
princípios prescindem a existência anterior de moral e valores éticos.
Valor moral é aquele de relevância a determinada cultura ou grupamento
social, sendo a moral uma espécie de valor coletivo. As normas morais dizem
respeito a coletividade, e como tal os indivíduos pertencentes a uma determinada
coletividade se encontram a elas sujeitas.
Ao revés das normas morais, as normas éticas são valores existentes na
essência do indivíduo, e dizem respeito a sua expressão e valoração própria ante
a coletividade, sendo assim as normas morais são exógenas, ao passo que as
normas éticas são endógenas.
Transcreva-se aqui os ensinamentos a definição clássica do que seja Direito
Natural e Direito Positivo, conforme as lições de Norberto Bobbio1:

"Dois são os critérios pelos quais Aristoteles distingue o direito natural


e o direito positivo:
a) O direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a
mesma eficácia (o filósofo grego emprega o exemplo do fogo que
queima em qualquer parte), enquanto que o direito positivo tem eficácia
apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto.
b) O direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo
que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato
de parecerem boas a alguns e má a outros. Prescreve, pois, ações,
cuja bondade é objetiva (ações que são boas em si mesmas, diriam os
escolásticos medievais). O direito positivo, ao contrário, é aquele que
estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser
cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro mas, uma vez
reguladas pela lei, importa (isto é: é correto e necessário), que sejam
desempenhadas do modo prescrito em lei.
Aristóteles dá este exemplo: antes da existência de uma lei ritual
é indiferente sacrificar a uma divindade uma ovelha ou duas cabras;
mas uma vez existente uma lei que ordena sacrificar uma ovelha, isto
se torna obrigatório; é correto sacrificar uma ovelha, e não duas cabras,
não por que esta ação seja boa por sua natureza, mas porque é
conforme a uma lei que dispõe desta maneira. (...)”(BOBBIO, 1995).

Assim podemos determinar que o direito natural é aquele inerente ao que


é bom, justo e ético, valores individuais e vinculados a existência e justiça, ao
passo que o direito positivo é o que é ligado a norma coletiva, por vezes moral,
contudo nem sempre justo.
Temos então o Direito natural como ideia de imaterialidade do Direito,
sendo o ordenamento utópico que equivale a uma justiça superior e anterior, não
dependendo assim do sistema de direito positivo, não estando sujeito as
variantes do ordenamento da vida social originadores do sistema positivo.
987

O Direito natural tem como premissa o correto, o reto, o esperado justo,


de caráter universal e comum a todos os homens, sendo baseado num bem
maior, que por essa razão é permanente e imutável, transcendendo as razoes
do próprio homem.
A função do Direito natural antes da estruturação do estado era regular o
convívio social dos homens, haja visto a inexistência de ordenamentos escritos
positivos. Com a estruturação do Estado e consequentemente a formulação de
normas escritas, a função do Direito natural assume papel de ser um revés as
atividades legiferantes estatais, embasando reivindicações com base em
critérios subjetivos, com escoimo na justiça e bem maior, que são valores
supremos.
Por seu turno o Direito positivo se define como conjunto de normas que
esteja vigentes, sejam escritas ou não, em determinado espaço territorial,
demonstrando traços e características referentes ao período e cultura que as
mesmas se aplicam. Apresentam estruturação, formulação, sistema de
construção e se consolida como base estrutural do Estado.
Assim podemos afirmar que o direito natural é universal e imutável e
estabelece aquilo que é bom (bonum et arquum), enquanto o direito positivo
estabelece aquilo que é útil.
Portanto razoável crer que de igual forma o Direito natural quanto o Direito
positivo podem ser aplicados para resolução das contingências sociais, contudo
não é o que observamos no decurso da historia.
No decorrer do tempo nas diversas sociedades e em momentos distintos
podemos observar a prevalência ora do direito natural, ora o direito positivo como
também Bobbio”(BOBBIO, 1995). nos ensina:

"O exame das diversas concepções sobre a diversidade de planos em


que se colocam o direito natural e o direito positivo nos levaria muito
longe. Limitando-nos a algumas indicações a respeito, diremos que na
época clássica o direito natural não era considerado superior ao
positivo: de fato o direito natural era concebido como "direito comum"
(koinós nomos conforme o designa Aristóteles) e o positivo como
direito especial ou particular de uma data civitas; assim, baseando-se
no princípio pelo qual o direito particular prevalece sobre o geral (lex
specialis derogat generali), o direito positivo prevalecia sobre o natural
sempre que entre ambos ocorresse um conflito (basta lembrar o caso
da Antígona, em que o direito positivo – o decreto de Creonte –
prevalece sobre o direito natural – o "direito não escrito" posto pelos
próprios deuses, a quem a protagonista da tragédia apela).

No período da idade média, o direito natural se sobrepõe ao positivo, uma


vez que o natural se presume de origem divina, ao passo que assim participada
por Deus a razão humana.
Ao fim da idade media retoma-se o direito positivo, que passa a ter a
nomenclatura de juspositivismo, conforme nos ensina Bobbio (BOBBIO, 1995).

"A sociedade medieval era uma sociedade pluralista, posto ser


constituída por uma pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos
quais dispondo de um ordenamento jurídico próprio: o direito aí se
apresentava como um fenômeno social, produzido não pelo Estado,
mas pela sociedade civil. Com a formação do Estado moderno, ao
contrário, a sociedade assume uma estrutura monista, no sentido de
que o Estado concentra em si todos os poderes, em primeiro lugar
aquele de criar o direito: não se contenta em concorrer para esta
988

criação, mas quer ser o único, ou diretamente através da lei, ou


indiretamente, através do reconhecimento e controle das normas de
formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que em outro
curso chamamos de processo de monopolização da produção jurídica
por parte do Estado.
A esta passagem no modo de formação do direito corresponde uma
mudança no modo de conceber as categorias do próprio direito.
Estamos atualmente tão habituados a considerar Direito e Estado
como a mesma coisa que temos certa dificuldade em conceber o direito
posto não pelo Estado, mas pela sociedade civil. E, contudo,
originariamente e por um longo tempo, o direito não era posto pelo
Estado: bastava pensar nas normas consuetudinárias, e em seu modo
de formação, devido a um tipo de consenso manifestado pelo povo
através de um certo comportamento e uniforme acompanhado da
assim chamada "opinio juris ac necessitatis".

Frente a premissa de totalidade, há de de servir o Direito Natural de


forma subsidiária à lei, via a nominada Heterointegração da norma, consoante
ensina Bobbio (BOBBIO, 1995).

"O tradicional método de heterointegração mediante recurso a outros


ordenamentos consistia, no que se refere ao juiz, na obrigação de
recorrer, em caso de lacuna do Direito positivo, ao Direito natural".

No que pertine a predominância do Direito Positivo x Direito Natural, o


pensamento com base em interpretação dogmática descamba em erro.
O direito serve ao homem e se apresenta como forma de controle da
sociedade, a sociedade tem por fim a existência harmônica na busca do bem
comum, a função então do direito e equilibrar a estrutura social, tendo por
objetivo a pacificação do conflito pela norma, a qual, quando o for objeto de tal
conflito, haverá de ser buscada a fonte essencial do direito, o que seja, a
essência humana, o que por conseguinte embasa a substancia do direito natural.

3. ANTÍGONA E A ANALISE DO DIREITO POSITIVO X DIREITO NATURAL

A obra literária de Sófocles remete a analise dos conceitos de justiça


frente o direito positivo e o direito natural.
Na obra Polinície busca através de um golpe tomar o poder em Tebas, ao
que seu insucesso resultou em sua morte durante a empreitada. Rompendo a
tradição Creonte, o governante, em razão de ser Polinicie considerado traidor
do Estado, impõe que este não poderá ser sepultado, nem lhe ser rendida
qualquer homenagem fúnebre, sendo dito que ao descumpridor da ordem teria
na morte o seu pago.
Antígona, irmã de Polinície, irresignada com tal ordem, sob o
entendimento de que há de ser inaceitável tal desonra ao finado irmão, assim
como violação as tradições e respeito aos mortos, resolve sepultar ao irmão, ao
que solicita auxilio a sua irmã, que recusa num primeiro momento, e após tem
em Antígona seu auxilio recusado.
Assim Antigona em descumprimento a ordem de Creonte realiza as
honrarias fúnebres e não e apanhada num primeiro momento, sendo que após,
em uma emboscada, ao realizar o sepultamento após a violação do corpo de seu
irmão Antigona e apanhada.
989

Creonte então indaga a Antigona a razão de seu feito, sendo certo que
possuíra conhecimento da limitação que ele na condição de governante havia
imposto, ao que Antígona rechaça as razoes absolutistas derradeira da ordem
governamental por não ter esta então vinculacão com a vontade dos Deuses e
com as tradições, não sendo justo o decreto por Creonte determinado, ao que
alegou Antigona agir de acordo com as leis dos Deuses e a tradição por eles
legada, ao que no argumento de Antigona se sobrepunha a ordem do
governante.
Se destaca ainda ainda outro embate quando Hemon questiona a seu pai
Creonte a punição dada a Antigona, sendo pelo governante questionado o valor
de sua norma frente ao valor moral da infratora, o qual inclusive e tratado como
nobre na concepção de Hermon.
Observamos assim a revolta e insurgencia do indivíduo quando o
ordenamento jurídico se encontra em desconformidade com o espirito de
justiça

4. FRANZ KAFKA E O CONCEITO DE DIREITO POSITIVO NA OBRA O


PROCESSO.

A obra de Kafka tem inicio com a prisão de Joseph K., a qual ocorre de
forma arbitraria e sem explicação alguma. Fica claro o poder estatal e a
arbitrariedade do Estado na suposta manutenção de um sistema que se
apresenta injusto e opressor, havendo o autor deixado claro que a forma de ação
do Estado se deu de forma injusta e sem esclarecer ao personagem qual o seu
contrafeito que justificasse o ato publico, o qual observamos o Estado despojar
todas as garantias individuais sob uma legalidade que se apresenta a todo
instante injusta.
Demonstra a vontade do personagem se desvencilhar da custodia estatal,
estando o personagem ao passo que não se encontra no cárcere, estar ele
confuso e impedido de sair pelo agente publico que afirma estar ele detido.
Observamos a critica de Kafka ao sistema processual vigente a epoca, ao
que já se questionava nos anos de 1920 a morosidade processual, quando
afirma o autor: “E quão demorados são os processos deste tipo, especialmente
nos últimos tempos!” .
O conflito e questionamentos acerca do criterio de justica se espalha pela
obra, observamos as passagens e os questionamentos do autor: “Que espécie
de homens eram estes? De que estavam falando? A que Departamento oficial
pertenciam? Quem eram aqueles que se atreviam a invadir sua casa?” . E ainda
continua perguntando: “Mas, como posso estar detido? E desta maneira? Teriam
de responder – retrucou K. – Aqui estão os meus documentos de identidade;
mostrem-me vocês os seus, e, especialmente, a ordem de prisão” . Ainda
questiona o personagem: “Quem me acusa? Que autoridade superintende o
inquérito? Vocês são funcionários?.
A insistência de Joseph K. em querer saber do que estar sendo acusado
é algo predominante na obra de Kafka. Tanto que se criou o estilo kafkiano de
ser processado. Ser processado kafkianamente é ser totalmente tolhido de
qualquer preceito jurídico possível e conhecido. Parece que no mundo onde vive
Joseph não há vigilância aos princípios democráticos de direito.
Observamos o sofrimento do personagem a um sistema processual
injusto que tolhe as garantias do indivíduo sob o argumento de manutenção a
990

ordem publica e no uso das prerrogativas estatais, contudo, ao revés,


observamos que assim se apresenta o Estado como malfeitor, supressor da
liberdade e inquisidor injusto.
Assim, observamos o direito positivo como estruturador do Estado,
havendo o mesmo Estado de se apresentar como violador de garantias
individuais sob o pretexto de garantidor da ordem publica.
Avaliem o indivíduo ser cerceado sem razão obvia, sem conhecimento
das razoes de tal feito, ou razão para que tenha conhecimento e possa assim
apresentar sua defesa. Um paralelo a tal feito poderia ser feito as prisões
temporárias no nosso ordenamento jurídico, contudo foge ao objeto da presente
abordagem.
Num dado momento da obra o personagem assevera: “Carece porventura
de sentido chamar pelo telefone um advogado, já que sou declarado detido?”,
ficando claro ai toda violação do ato que esta sujeito, não lhe sendo sequer
garantido as garantias individuais que o próprio estado se encontra a respeitar.
Apos a sua detenção, mesmo sem estar sob cárcere, contudo com sua
liberdade violada, Joseph comparece ao Juiz de instrução, onde, num ambiente
desfavorável se observa a parcialidade do tribunal, onde esta bem distante de
um local onde se possa promover a justiça.
Mais a frente observamos na obra que o Estado promove sessões de
humilhação e tortura os acusados, sendo de se observar que o processo se
apresenta como instrumento de forca e manutenção dos atos estatais, o que
demosntra o Estado autoritário, injusto e supressor dos direitos e garantias dos
indivíduos.
No deslinde processual, Joseph K. e seus intermediários se defrontam a
obstáculos injustos e desumanos. Frente a seu processo não se tem acesso aos
autos, tão pouco possui subsidio para elaboração da defesa, desconhecendo ao
certo as causas de sua acusação.
Frente ao processo cujo ele ou qualquer outra pessoa pode ter acesso
aos autos, pelo fato de que não tomasse conhecimento com o exclusivo objetivo
de evitar acesso que possibilitasse meios a elaborar a defesa.
Em dado momento da leitura, o personagem Joseph em conversa com a
um pratico das ações estatais observamos a seguinte colocação: “Você acaba
de me dizer que com a justiça não valem de modo algum argumentações ou
provas” .
Ao final do processo sequer tem o personagem acesso a sentença, sendo
ainda dito ao mesmo que estas sequer são franqueadas aos magistrados, sendo
de discricionariedade estatal.
O direito positivo se mostra aqui como meio de pratica de injustiça e
violações, sendo o Estado nessa hipótese o vilão e supressor das garantias que
ao mesmo seria necessário manter. O direito natural nos mostra o caminho a
valores maiores, sendo a referencia do mesmo não o Estado ou qualquer
instrumento normativo, e sim a justiça.

5. CONCLUSÃO

O Direto Natural se apresenta como reflexo de justiça na condição de valor


moral e ético, como flexão filosófico da busca de um ideal, sendo este superior
a estrutura do Estado e as próprias normas positivadas. O direito positivo por
sua vez se apresenta como regulador da vida social e estruturador estatal, o que
991

pode ensejar a supressão de direitos individuais, e em derradeiro violar as


garantias dos entes que se sujeitam.
Através da analise dos escritos literários de Kafka e Sófocles podemos
observar o quanto o direito positivo pode ser supressor e meio para pratica de
injustiças, as quais pelo ponto de vista estatal não e ilegal, sendo assim de se
observar que a norma positiva pode ser meio violador de garantias e direitos
individuais, direitos os quais não necessariamente positivados, contudo
inerentes a condição humana.
Sófocles nos remete a um período antigo onde a hegemonia Estatal se
concentrava na figura do governante, o qual era investido e representava a
vontade dos Deuses, havendo a protagonista da historia de questionar a real
vontade dos Deuses e a vontade do governante, sendo a vontade do deuses a
representação do Direito Natural, ao que a vontade do governante representava
o Direito Positivo, justificando Antígona o seu ato na real vontade dos
ensinamentos e atos naturais, por sobre a vontade do Estado, sendo certo que
Antígona agira com base no senso de Justiça que embasa o Direito Natural.
Kafka por sua vez vive o pandemonium da perseguição de um Estado que
tem em seus atos o respaldo do Direito Positivo, contudo pratica inúmeras
injustiças e se mostra passível do cometimento de injustiças legais, sendo pelo
autor demonstrado que o Estado e sua estrutura processual suprime garantias e
direitos.
Assim, temos o Direito Natural como vinculado a essência humana, e
dotado de valores maiores que devem nortear toda atividade humana, haja visto
que esse vem da natureza humana, dotado e substanciado de valores maiores
aos quais deve estar vinculado toda ação humana, qual seja, a justiça.

REFERENCIAS

BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito,


compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Puglesi, EsdonBini,
Carlos E Rodrigues – São Paulo: ícone, 1995.

DICK, Philip K. Minority report: ou a nova lei. São Paulo: Record, 2002.

_____. O homem duplo. Lisboa. Ed. Livros do Brasil. Sd

FERRARI, Sônia Campaner Miguel. Kafka, Benjamin: o natural e o


sobrenatural. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
31732007000200010&script=sci_arttext; acesso em 29 de janeiro de 2019.

KAFKA, Franz. O processo. Rio de Janeiro: Globo, 2003.


_____. Sobre a questão das leis. (trad. Modesto Carone). São Paulo, Cia das
Letras, 2002.

_____. Na Colônia Penal. trad. Modesto Carone. São Paulo, Cia das Letras,
1998.
SÓFOCLES. Antígona; tradução de Heitor Moniz. – São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.

WEBER, M. Economia e Sociedade vol.2. UNB, Brasília, 1999


992

ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE: A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER


COMO FONTE PARA A NARRATIVA LITERÁRIA
BETWEEN FICTION AND REALITY: VIOLENCE AGAINST WOMEN AS A
SOURCE FOR LITERARY NARRATIVE

Ana Flávia Ananias Almeida

Resumo: A presente pesquisa visa analisar livros e textos que retratam a pauta
feminina como objeto de ficção, confundindo-se com a realidade vivenciada por
milhares de mulheres em suas diferentes culturas. Serão analisadas as
narrativas do livro “O conto de Aia” da escritora Margaret Atwood; o livro “Vox”
de Christina Dalcher, além de livros populares da cultura brasileira, com o
objetivo de mostrar o contexto social e político que as narrativas literárias
propõem e, por outro lado, a realidade dos mais diferentes níveis entre homens
e mulheres, mulheres ricas e pobres, brancas e não-brancas. O estudo traz à
tona a forte relação entre arte, da qual faz parte a literatura, e a realidade, em
que se encaixa o direito e a violência contra a mulher. Diante disso, forma-se um
esquema de peso e contra peso.
Palavras-chave: Direito. Realidade feminina. Literatura .

Abstract: This research aims to analyze books and texts that portray the female
agenda as an object of fiction, blending with the reality experienced by thousands
of women in their different cultures. The narratives of the book “Aia's Tale” by
writer Margaret Atwood will be analyzed; Christina Dalcher's book “Vox”, as well
as popular tales and books of Brazilian culture, with the aim of showing the social
and political context proposed by literary narratives and, on the other hand, the
reality of the most different levels between men and women. rich and poor, white
and non-white women. The study brings to light the strong relationship between
art, which is part of the literature, and the reality in which the right and violence
against women fits. Therefore, a weight and counterweight scheme is formed.
Keywords: Law. Female reality. Literature.

INTRODUÇÃO

A literatura não é algo que pode ser reduzido apenas a uma manifestação
artística é, também, uma arma de inconformidade e de denuncia da realidade
social e política vivenciada e observada por cada um dos escritores em relação
aos seus respectivos países. Sendo assim, quando a realidade muda, a literatura
segue os seus passos, seja em forma de protesto ou de resistência.
Em contra partida, o direito tem uma grande dificuldade de acompanhar a
evolução social, possuindo leis retrógradas e, muitas vezes, sendo uma
ferramenta para a manutenção da ordem social, seja ela boa ou desigual.
Infelizmente, a estrutura social do Brasil tende a manter uma desigualdade
enraizada, e por mais que a constituição brasileira possua normas programáticas
que visam direitos de igualdade para todos os cidadãos, é um fato que estas não
atinjam a realidade como um todo. Quando se fala em direitos das minorias
vulneráveis como os negros, mulheres, idosos, crianças, portadores de
deficiência fala-se, também, de uma luta para uma maior autonomia e
visibilidade. Fazendo um recorte para a questão da mulher, há uma luta cada
993

vez maior para a conquista e manutenção dos seus direitos, assim como nas
demais lutas sociais.
Muito do que é exposto nos textos literários pode ser lido à luz dos textos
legais e da jurisprudência, uma vez que a realidade é a mesma. A literatura é
tida como saída pacífica para uma verdadeira luta de direitos e quando se trata
de textos com a temática feminina é possível ver pontos de vistas diferentes de
uma realidade compartilhada por todos, não sendo alvo apenas de elogios, mas
de críticas. Quando se analisa o direito é perceptível se observar uma exposição
da dificuldade do texto legal de acompanhar a evolução social, porém, há
grandes conquistas legitimadas pelo direito.
O objetivo final, não é de trazer um vilão e um herói para explicar a
realidade feminina, mas sim de lê-la a luz de um texto palpável socialmente e
uma mercadoria popular, como é o caso dos best-sellers, além de se observar o
próprio texto legal, que não é de fácil acesso e compreensão popular, mas que
pode ser lido de forma complementar as narrativas literárias, ou vice-e-versa.

DESENVOLVIMENTO

A pesquisa se dividirá em etapas, sendo no primeiro momento uma


análise do constitucionalismo e das legislações que abordam a questão feminina
e em segundo o estudo sobre as narrativas literárias que abordam a mulher
como protagonista, trazendo o status quo da mulher em determinados contextos.

1. EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO NO TOCANTE A MULHER

Ao se observar a realidade das mulheres brasileiras, vemos uma clara


evolução dos direitos conquistados, garantindo uma maior independência e uma
possibilidade do alcance de uma igualdade, que há décadas atrás parecia uma
mera ilusão e, atualmente, tornou-se um objetivo para o futuro. Apesar de
gradual e lentamente o constitucionalismo brasileiro trabalha para uma garantia
dos direitos da mulher e da sua proteção. A história das constituições brasileiras
mostra a mudança e o avanço em aspectos que feriam os direitos das mulheres
retirando-os e adicionando garantias constitucionais de igualdade que afetam a
esfera feminina, além de legislações especiais para as mulheres, como é o caso
da lei Maria da Penha.
A constituição monárquica de 1824 referia-se unicamente a mulher da
família real, não tendo menção das demais mulheres que faziam parte do império
brasileiro. Isso continuou na constituição de 1891, agora não mais como império,
mas como república. A mudança na forma de governo não surtiu efeitos
significativos no texto legal quanto a questão da mulher como parte integrante
da sociedade, tendo como base as mesmas políticas baseadas no
segregacionismo, na concentração de poder na elite branca e na invisibilidade
feminina, tendo sempre a tutela do pai ou do marido. A elite que governava o
país era diferente da imperial, porém longe dos ideais democráticos.
Ondas do movimento feminista rondavam o mundo em busca de direitos,
como o próprio sufrágio, chegando até o Brasil. Como dito anteriormente a
constituição de 1891 não vetava a mulher de votar, porém os pedidos de
alistamento para o voto feminino quando solicitados, eram negados. Céli Pinto
afirma que não houve citação a respeito da mulher, pois, na mente dos
constituintes ela sequer era sujeito de direitos.
994

A pauta do voto feminino ganha visibilidade com Bertha Lutz, principal


nome do ativismo feminista, junto com diversas outras mulheres, era o começo
de uma luta que ganharia cada vez mais espaço. Surgem partidos voltados para
a pauta da mulher, organizações feministas, ligas e uma força social, como
haviam grupos de mulheres cultas que queriam ir para além dos direitos políticos,
o feminismo de Bertha era considerado contido, pois o seu discurso era, apesar
de revolucionário, pacífico, além de que a pauta do voto estava em alta desde a
publicação da constituição de 1891. June Hahner traz o discurso de Bertha Lutz
em seu livro “A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas, 1850-1937”

Venho propor-me fazer um ensaio de fundação de uma liga de


mulheres brasileiras. Não proponho uma associação de “suffragettes”
para quebrar as vidraças da Avenida, mas uma sociedade de
brasileiras que compreendessem que a mulher não deve viver
parasitariamente do seu sexo, aproveitando os instintos animais do
homem, mas que deve ser útil, instruir-se e a seus filhos, e tornar-se
capaz de cumprir os deveres políticos que o futuro não pode deixar de
repartir com ela. Assim deixariam de ocupar sua posição social tão
humilhante para elas como nefasta para os homens, e deixaria de ser
um dos pesados elos que atam o nosso país ao passado, para se
tornarem instrumentos preciosos ao progresso do Brasil. (1981, p 101)

O projeto que foi apresentado no senado, para o voto feminino, foi negado
pela maioria do congresso. Um dos discursos que mais exemplificam o local da
mulher na sociedade e na esfera política foi a do deputado Moniz Freire, que
entre outras pautas afirmou que o voto feminino estaria dissolvendo a família
brasileira:
“Ora, querer desviar o espírito feminil desse dever, dessa função, que
é a base de toda a organização social, cujo primeiro grão é a família,
para leválo ao atrito das emulações práticas, no exercício de funções
públicas, é decretar a concorrência dos sexos nas relações da vida
ativa, modificar esses laços sagrados da família, que se formam em
torno da vida puramente doméstica da mulher, e corromper a fonte
preciosa de moralidade e de sociabilidade, que ela mais diretamente
representa, demandando como condição de pureza a sua abstenção
completa da vida prática” (Anais do congresso constituinte, 1891, p.
456).

Outras constituições foram adotadas com o passar da evolução social,


política e legal, porém a mentalidade de quem escrevia as normas e da própria
sociedade continuava a mesma. O código civil de 1916 estava imerso em uma
sociedade de rápidas mudanças, contudo mantinha um conservadorismo em
relação a vários assuntos, por exemplo, a capacidade relativa da mulher em
contratos e atividades, que exigiam o consentimento do Pátrio Poder, a palavra
do marido ou do pai.
Somente na constituição de 1934, mais de cem anos depois da primeira
constituição brasileira, os direitos políticos das mulheres foram reconhecidos e o
texto legal colocava o sexo feminino em pé de igualdade com os homens, em
relação a definição de cidadão. Como nenhum direito, na prática, é garantido de
forma vitalícia, na década de 40 houve vários retrocessos para a luta feminista
na conquista de seus direitos. O turbulento momento da democracia brasileira
representado pelo regime militar trouxe novas mudanças na legislação sobre a
questão da mulher como parte integrante da sociedade. Avanços são feitos com
a chegada da pílula anticoncepcional ao Brasil datada nos anos 60, trazendo
995

uma autonomia no corpo da mulher, além disso o divórcio, na década de 70, foi
considerado outra vitória. Nessas décadas havia uma tomada do mercado de
trabalho por mulheres, entretanto, a discriminação por elas sofridas não era
reprimida socialmente, muito menos legalmente.
Junto do contexto econômico, com o assalariamento feminino, e o político
social, com as mudanças nas leis, ressurge de forma visível os movimentos
feministas para as conquistas de novos direitos, uma vez que a luta social fazia
surtir efeitos no campo legislativo. O estatuto da mulher casada, é um exemplo
de mudança no social e no legislativo, editado em 1962 ele alterou mais de dez
artigos do código civil vigente, sendo a mudança mais profunda no art. 6º que
abordava a incapacidade relativa da mulher.
Com a constituição de 1988 há previsto por lei uma igualdade protegida
legalmente, ainda que até hoje não seja possível ver seus efeitos de forma total,
tendo aspectos que estão longe de serem alcançados. Renata Coelho afirma
que “com a Constituição da República firmou-se não apenas a igualdade em
sentido negativo e de não-discriminação, como a igualdade positiva,
promocional, afirmativa baseada na retirada de barreiras, no apoio, na proteção
e garantias especiais a fim de equiparar direitos reconhecendo diferenças”.
É fato que a constituição abriu um leque de novos direitos para todos,
incluindo as minorias que foram colocadas de lado por toda a história constituinte
do Brasil. A ampliação dos direitos levou a outros ramos jurídicos criarem leis
especiais referente as mulheres, como é o caso da Maria da Penha e do
feminicídio no direito penal e das mudanças vistas no novo código civil que,
agora, dava poder familiar para a mulher, capacidade plena e igualdade de
direitos civis, além disso, há também a lei que defini uma cota de 30% de
representação mínima de mulheres em partidos políticos. Mostrando uma clara
evolução.

2. A LITERATURA SE APROPRIANDO DA REALIDADE

Quando se analisa a frase “a arte imita a realidade” é possível verificar


sua veracidade ao observar os objetos artísticos comercializados e seu
conteúdo, seja uma pintura que denuncia os maus tratos com os povos nativos,
seja por uma música em forma de protesto contra governos ou, como será
tratado no trabalho, em livros que misturam, de forma voluntária ou não, a
realidade e a ficção.
A literatura é uma arte e, ao mesmo tempo, uma arma pacífica de
mudança social. Durante governos tiranos, a literatura é um dos maiores
temores, pois ela consegue trazer sentimentos de indignação e conhecimento
de causas que são negligenciadas ou massacradas pelos governantes. Não foi
apenas coincidência a queima de livros promovida pelos nazistas, ou em outras
épocas da história, a proibição de obras que denunciavam a realidade vivida
pelos autores.
O escritor e novelista peruano Mario Vargas Llogos, em seu discurso para
o prêmio internacional de novela Rómulo Gallego intitulado “la literatura es fuego”
afirmou que:

Advertirles que la literatura es fuego, que ella significa inconformismo


y rebelión, que la razón del ser del escritor es la protesta, la
contradicción y la crítica. Explicarles que no hay término medio: que la
sociedad suprime para siempre esa facultad humana que es la
996

creación artística y elimina de una vez por todas a ese perturbador


social que es el escritor o admite la literatura en su seno y en ese caso
no tiene más remedio que aceptar un perpetuo torrente de agresiones,
de ironías, de sátiras, que irán de lo adjetivo a lo esencial, de lo
pasajero a lo permanente, del vértice a la base de la pirámide social.
Las cosas son así y no hay escapatoria: el escritor ha sido, es y seguirá
siendo un descontento. Nadie que esté satisfecho es capaz de escribir,
nadie que esté de acuerdo, reconciliado con la realidad, cometería el
ambicioso desatino de inventar realidades verbales. La vocación
literaria nace del desacuerdo de un hombre con el mundo, de la
intuición de deficiencias, vacíos y escorias a su alrededor. La literatura
es una forma de insurrección permanente y ella no admite las camisas
de fuerza. Todas las tentativas destinadas a doblegar su naturaleza
airada, díscola, fracasarán. La literatura puede morir pero no será
nunca conformista.1 (LLOGAS, 1967)

Partindo desse pressuposto e do que foi supracitado em relação aos


direitos da mulher, é possível fazer uma análise dos livros propostos. A primeira
obra que será analisada é o livro “Vox” da Christina Dalcher, incorporando o
silenciamento feminino.
O livro aborda um futuro em que um país dominado por um
fundamentalismo cristão e conservador retira das mulheres todos os seus
direitos, entre eles um dos mais básicos e instintivos, o direito a fala. As mulheres
que vivem nesse país não podiam ler, ir à escola, demonstrar sua vontade, ter
qualquer autonomia. Jean é a protagonista, uma ex neurolinguística, ela lembra
como tudo aconteceu, os direitos das mulheres foram retirados da mesma forma
que foram conquistados, de forma gradativa. Casada com um dos membros de
elite do governo, a protagonista da história se sente indignada com todo o
conformismo e naturalidade com que os homens encaram isso. Mãe de dois
filhos, ela se preocupa com a criação de sua filha mais nova que cresce sem
desenvolver o direito da fala e, por consequência, sem exprimir sua vontade. Em
relação ao filho mais velho, Jean se vê encurralada, o garoto absorveu todos os
fundamentos religiosos passados pela escola e adotados no sistema, tratando a
mãe como empregada. Quando há uma oportunidade de Jean falar, após uma
licença especial dada por ela ser a única pessoa especializada em
neurolinguística na região, ela exterioriza todo o sentimento e vontade guardado
por todo o tempo em que foi silenciada.
Mesmo não sendo possível de montar um ranking das piores violências
sofridas por uma mulher, afinal a dor de cada uma é singular e não pode ser
quantificada no que se refere a intensidade, é possível se afirmar que o

1 Tradução livre: Avise-os de que a literatura é fogo, que significa inconformidade e rebelião, que
a razão de ser do escritor é protesto, contradição e crítica. Explique que não há meio termo: que
a sociedade suprima para sempre a faculdade humana que é criação artística e elimine de uma
vez por todas aquele desregulador social que é o escritor ou que admite literatura nele e, nesse
caso, não tenha mais que aceitar uma torrente perpétua de agressões, de ironia, de sátiras, que
passará do adjetivo ao essencial, do transitório ao permanente, do vértice à base da pirâmide
social. As coisas são assim e não há escapatória: o escritor foi, é e continuará sendo um
descontentamento. Ninguém que está satisfeito é capaz de escrever, ninguém que concorda,
reconciliado com a realidade, cometeria a loucura ambiciosa de inventar realidades verbais. A
vocação literária decorre da discordância de um homem com o mundo, da intuição de
deficiências, lacunas e escórias ao seu redor. A literatura é uma forma de insurreição permanente
e ela não admite camisas de força. Todas as tentativas destinadas a quebrar sua natureza
zangada e feliz fracassarão. A literatura pode morrer, mas nunca será conformista.
997

silenciamento é uma das piores violências, pois impede de se exercer sua


independência, vontade, participação política e de denunciar outras violências
vividas.
Em paralelo pode-se ler a realidade proposta no livro à luz das primeiras
constituições brasileiras, em que a mulher se via, de certa forma silenciada por
não possuir voz política, autonomia e ser colocada como segundo plano sendo
tutelada por homens, que poderiam dar ou não uma autorização para que fosse
cumprida a sua vontade, como é o caso das viagens ao exterior. O silenciamento
proposto no livro de Dalcher, não se trata de algo futurístico quando se faz um
recorte para a realidade da mulher brasileira, a dependência legitimada pela
jurisprudência era um meio de se retirar da mulher a sua vontade, pois a palavra
final era sempre dada por um homem, seja no que tange a família ou no cenário
político, uma vez que eram os homens que votavam e escolhiam os governantes.
Como consequência desse silenciamento político até hoje, mesmo com
políticas de inclusão da mulher na política, ainda há uma falta de
representatividade feminina no congresso. O Brasil ocupa, dentre os 192 países,
a 152º posição no que se refere a quantidade de mulheres no congresso, apenas
10,5%. O discurso de Bertha Lutz, ao tomar posse como deputada em 1936
ainda serve para os dias de hoje:

A mulher é metade da população, a metade menos favorecida. Seu


labor no lar é incessante e anônimo; seu trabalho profissional é
pobremente remunerado, e as mais das vezes o seu talento é
frustrado, quanto às oportunidades de desenvolvimento e expansão. É
justo, pois, que nomes femininos sejam incluídos nas cédulas dos
partidos e sejam sufragados pelo voto popular. Fonte: Agência Senado

Quando se faz um recorte ainda mais profundo entre as mulheres


brasileiras, trazendo para a pauta as mulheres negras e indígenas, há uma
violência para além do silenciamento. Esses grupos éticos sofreram com a
colonização brasileira, um dano irreparável que perdurou por séculos, a
escravidão. Ao analisar, em primeiro momento da mulher negra escravizada, há
possibilidade de realizar um paralelo com o livro “O conto de Aia” de Margaret
Atwood.
O livro de Atwood, aborda uma narrativa futurística em que mulheres
perdem sua autonomia e o seu arbítrio, tendo que ficar sujeitas a uma sociedade
de castas. Dentre as classificações das castas existem as Esposas, que são as
mulheres oficiais e, nem por isso obtinham direitos de forma independente, o que
tinham era graças aos maridos; as Marthas, que eram responsáveis pela limpeza
e organização; as Tias, que treinavam e ensinavam os fundamentos a algumas
mulheres; as Não-mulheres, encaixam-se aqui feministas, lésbicas e mulheres
que se rebelavam contra o sistema, ficando a parte da sociedade; e as Aias, que
podem ser resumidas praticamente a escravas sexuais, servindo apenas para
reproduzir.
O paralelo é feito quando se considera o contexto do Brasil colônia. As
Esposas podem ser comparadas com as mulheres brancas que se casavam com
os senhores de engenhos ou, até mesmo, com homens brancos que exerciam
sua liberdade. Apesar dessas mulheres sofrerem com o silenciamento e com a
dependência forçada a esses homens, além de casamentos arranjados, elas
também possuíam privilégios quando comparadas com as mulheres
escravizadas.
998

As mulheres negras, que serviam como mão de obra escrava, eram


frequentemente estupradas e objetificadas, eram consideradas sem alma e
tratadas de forma animalesca. Toda a sexualidade, que é repassada de geração
em geração, sobre o corpo negro, tem origem nesse período e ainda perdura na
cultura popular. A realidade versificada por Atwood se encaixa com todo o
sofrimento passado por essas mulheres, que sequer eram consideradas
humanas, eram meros objetos de prazer e lucro, sempre servindo ao homem.
O estupro das mulheres negras é uma das péssimas heranças desse
período e de como a escravidão, que era legitimada pelo direito, foi encerrada.
Quando não se muda a mentalidade da população e se cria um temor sobre a
raça negra, há uma legitimação social para práticas que são observadas
ordinalmente. Os 300 anos de escravidão deixaram como marca o racismo e um
pensamento de posse sobre o corpo negro.
As literaturas estrangeiras não são as únicas que retratam essa realidade,
os escritos brasileiros representam, da melhor forma, como a própria sociedade
enxerga o lugar do feminino. Como no livro “O cortiço” de Aluísio Azevedo ao
afirmar que “Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula
suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo”. A
personagem Bertoleza, uma ex escrava que é constantemente inferiorizada pela
sua raça e tipificada como uma mulher submissa a figura masculina que, de fato,
a trata como uma escrava, é um claro exemplo de como a mulher negra é
encarada. Além dela, há também Rita Baiana, que é o estereótipo da mulher
brasileira do mito das três raças, uma mulata, como deixa claro o autor que
sexualiza a personagem a todo momento.
Trazendo o recorte para a questão indígenas, o livro “Iracema”, de José
de Alencar, pode-se exemplificar o primeiro contato do novo mundo com os seus
colonizadores. O texto de Alencar retrata a história da índia Iracema, que alguns
acreditam ser um anagrama de América em uma tentativa do autor de
demonstrar o surgimento do continente como se conhece hoje, advindo de uma
miscigenação forçada e romantizada no livro. O romance da índia com Martim,
gera um filho chamado Moacir, que nasce afastado da tribo.

A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos


braços e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois
suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza
e amor.
— Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.

O estupro e apropriação dos corpos indígenas foi a entrada para as


falácias que seriam concretizadas mais tarde com relação a miscigenação
brasileira. Os discursos que pregavam um país sem racismo, já que sua
população era uma mistura das três raças, acabaram por romantizar esse
processo como se fosse algo voluntário e digno de orgulho, o que culminou para
um esquecimento popular de como se deu a tão proclamada miscigenação,
através do sofrimento.
Existem diversos livros e contos que retratam a realidade feminina com
suas singularidades. Mulheres fortes que vencem ou morrem por conta da
barreira da raça, da desigualdade socioeconômica, do machismo e do
patriarcado em si, como é o caso de “A hora da estrala”, da Clarice Lispector e
“Ponciá Vicencio”, da Conceição Evaristo, entre outros.
999

A sociedade ocidental foi moldada para a realidade do homem, deixando


a mulher como o segundo sexo, o adorno de fundo. O sofrimento feminino
retratado nas literaturas supracitadas não são mera ficção, mas apenas uma
realidade que pode ou não ser lida de forma mais branda e que corresponde às
lutas que cada uma trilha em seu dia a dia.

CONCLUSÃO

Como foi exemplificado no estudo, o Direito antigamente serviu como


base para a manutenção de um lugar inferior para a mulher, assim como para
outras minorias. Entretanto, ele não é o vilão da história, quando o texto legal
muda para igualar agentes que estiveram sempre em pé de desigualdade, como
é o caso atual, ainda há na sociedade saudosistas do machismo e da violência
contra a mulher. Agressão física não é o único tipo de violência sofrida por
mulheres, o silenciamento, como foi abordado, é um tipo de violação dos direitos
e uma das coisas que milhares de mulheres em diferentes níveis vem lutando
para eliminar de vez, a fim de se fazer ouvir uma voz que tanto foi calada e
contida.
As agressões mais severas e menos veladas, como o estupro e o
feminicídio, ainda persistem, mesmo com os avanços legais em relação a tais
crimes. Foi a sociedade, desta vez, que não acompanhou o texto legal,
mantendo o pensamento de posse sobre o corpo feminino e se sentindo no
direito de trata-los como bem entender. De acordo com o jornal Folha de São
Paulo, os crimes de violência contra a mulher aumentaram em 2018, ao passo
que, crimes diversos, como assassinatos, tiveram uma queda, referente aos
outros anos.
O direito e a literatura são completados quando lidos à luz da mesma
realidade, ora a literatura denunciando o que é legitimado por ele, ora o direito
na frente da realidade social, com normas que vão além da mentalidade da
sociedade como um todo. O sistema de peso e contrapeso se forma em busca
de um avanço social em relação a realidade feminina. A conclusão se dá quando
analisamos parte do trecho do discurso de Vargas Llogas “Ninguém que está
satisfeito é capaz de escrever, ninguém que concorda, reconciliado com a
realidade, cometeria a loucura ambiciosa de inventar realidades verbais”, não se
cria realidades do nada, o que se consome nos livros é uma clara demonstração
de uma realidade que passou e ainda passa sobre os olhos de cada cidadão,
atingido de forma direta ou não por ela.

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1001

HERMENÊUTICA APLICADA À JUSTIÇA AMBIENTAL: DUALIDADE ENTRE


A CRUELDADE E A MANIFESTAÇÃO CULTURAL
HERMENEUTICS APPLIED TO ENVIRONMENTAL JUSTICE: DUALITY
BETWEEN CRUELTY AND CULTURAL MANIFESTATION

Nilcinara Huerb de Azevedo


Ulisses Arjan Cruz dos Santos

Resumo: Ao constitucionalizar a vedação à crueldade animal, a lei maior


conferiu destaque ao paradigma biocentrista, por meio do qual reconhece os
seres vivos não-humanos como fins em si mesmos e não meros recursos
utilitários. A despeito disso, o objetivo dessa pesquisa foi o de analisar de que
forma o Supremo Tribunal Federal vem se manifestando sobre os casos que
revelam o conflito entre a proteção animal e o direito à cultura e se a
interpretação que tem sido dada para a resolução desses conflitos têm
efetivamente expressado os valores do atual Estado Socioambiental. A
metodologia utilizada foi a do método dedutivo; quanto aos meios, foi
bibliográfica e, quanto aos fins, qualitativa. Concluiu-se que, na esteira desse
marco jurídico-constitucional, a atividade hermenêutica tem se revelado um
importante instrumento de justiça ambiental, tendo em vista adotar posições
coerentes com a solidariedade e o reconhecimento da dignidade a outras formas
de vida.
Palavras-chave: Crueldade. Direito à cultura. Justiça ambiental.

Abstract: By constitucionalizing prohibition of animal cruelty, the larger law


emphasized the biocentric paradigma, by which it recognizes nonhuman living
beings as ends in themselves and not merely utilitarian resources. Nevertheless,
the purpose of this research was to analyse how the Supreme Federal Court has
been expressing its opinion on the cases that reveal the conflit between animal
protection and the right to culture and if the interpretation that has been given for
the resolution of theses conflicts has effectively expressed the values of the
current Socio-Environmental State. The methodology used was the deductive
method; as for the means, the research was the bibliographic and, as for the
ends, was the qualitative one. It was concluded that, in the wake of this legal-
constitucional framework, hermeneutic activity has proved to be an important
instrumento f environmental justice by adopting positions consistente with
solidarity and the recognition of dignity to other life forms.
Keywords: cruelty; Federight to culture; environmental justice.

INTRODUÇÃO

Seguindo a tendência dos instrumentos normativos internacionais, a


Constituição Federal Brasileira de 1988 representou a baliza da questão animal
ao tutelá-los, de modo a considerar não apenas o seu aspecto ecológico, mas
também o seu valor moral.
Sob os desdobramentos do pensamento biocêntrico, a carta magna foi,
então, estruturada com o escopo de resguardar a incolumidade dos animais
sencientes, razão pela qual foram conferidas limitações, dentre outras coisas, ao
exercício do direito à cultura.
1002

À vista disso a problemática que envolve esta pesquisa é: em se tratando


de direitos fundamentais colidentes, quais sejam, o direito à livre manifestação
cultural e a proteção animal contra a submissão de atos cruéis, de que forma o
Poder Judiciário pode assegurar a máxima função social do direito no processo
de sopesamento dos aludidos dispositivos?
A justificativa dessa pesquisa consiste, pois, em analisar se a
interpretação que tem sido dada pelo Supremo Tribunal Federal na solução
destes casos têm efetivamente expressado os valores do Estado Socioambiental
atual.
A metodologia que se utilizará nessa pesquisa é a dedutiva; quanto aos
meios a pesquisa será bibliográfica e quanto aos fins, qualitativa.

1. UM PANORAMA DA PROTEÇÃO ANIMAL

No contexto jurídico, a questão dos animais surgiu como reflexo de um


descontentamento social massivo diante dos inúmeros atos de crueldade e
massacres a que tais seres foram submetidos ao longo do tempo. Dessa forma,
como mecanismo de salvaguardar a fauna e a flora remanescentes, necessários
a manter o equilíbrio ecológico, diversas nações passaram a inserir em seus
arcabouços normativos leis de proteção (DIAS, 2007, p.155).
Dentre os principais diplomas faunísticos que integram o direito
internacional, citam-se: a Convenção sobre o Comércio Internacional de
Espécies da Flora e Fauna Selvagem em Perigo de Extinção, a Convenção da
Biodiversidade e a Convenção Internacional da Pesca da Baleia. Muito embora,
cada um desses revista-se de características que lhes confira a devida
importância, destaca-se que a proclamação da Declaração Universal dos
Direitos dos Animais (D.U.D.A) pela UNESCO, na cidade de Bruxelas, em 1978,
de fato, representou o grande impulso à temática.
Disposto em catoze artigos, o referido documento “adotou uma filosofia
de pensamento sobre os Direitos dos Animais, reconhecendo o valor da vida de
todos os seres vivos e propondo um estilo de conduta humana condizente com
a dignidade e o devidamente merecido respeito aos Animais” (RODRIGUES,
2012, p.66).
Com efeito, levando em conta que a ausência de reconhecimento dos
animais enquanto seres dotados de dignidade, isto é, como fins em si mesmos,
seja, por vezes, capaz de legitimar atos de crueldade; a Declaração surge com
uma proposta de pôr fim a essa exploração sistematizada. Nesse sentido, ainda
que desprovida de força cogente, em razão da perspectiva moral que advoga,
funciona como suporte material necessário à formulação de leis no âmbito
interno dos países (TINOCO, CORREIA, 2010, p.182).
Não obstante, o Brasil já dispusesse sobre a defesa animal desde 1924,
foi apenas com o advento da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) que
a temática ganhou fortalecimento, vez que a proteção ambiental foi erigida à
condição de direito fundamental, necessário a salvaguardar a própria vida
humana. Nesses termos, de acordo com o aludido diploma:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
1003

§1° Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder


Público:
(...) omissis
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoque a
extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. (grifos
nossos)

Conforme se pode observar, a defesa dos animais encontra-se adstrita a


duas perspectivas, quais sejam: assegurar o equilíbrio ambiental e vedar atos de
crueldade.
No que tange ao primeiro aspecto, este justifica-se em razão dos papeis
que os animais não-humanos desempenham na natureza, quer seja em função
de sua atividade polinizadora, quer em razão do controle populacional na cadeia
alimentar. Por conta disso, são concebidos como componentes da fauna e da
biodiversidade, relevantes, pois, pela sua função ecológica.
O segundo aspecto, por outro lado, funda-se no respeito ao próprio
indivíduo, não mais enquanto recurso ambiental, mas como ser vivo senciente,
característica esta “decorrente da capacidade de sentir dor e experimentar
sofrimento, ínsita aos seres vivos que compõem o reino animal” (ATAÍDE
JÚNIOR, 2017, p.52), dentre os quais, mamíferos, aves, répteis, anfíbios e
peixes (MEDEIROS, 2013, p.36).
Em que pese o legislador constitucional não tenha reconhecido de
maneira explicita a condição de senciência animal, o fato do dispositivo in fine
defender a vedação de atividades que violem a integridade física daqueles seres,
refletiu, de forma tácita, o propósito de salvaguardá-los enquanto seres munidos
de valor próprio e, não meramente instrumental.
Nesse sentido, Moraes (2009, p.43) aduz:

[...] a fauna, como parte do meio ambiente, é diretamente responsável


pelo equilíbrio ecológico essencial à sadia qualidade de vida dos seres
humanos, contudo, a proteção constitucional à fauna não está reduzida
à importância da sua função ecológica para o homem, haja vista que o
poder constituinte, ao vedar a crueldade, “inseriu no texto magno
um imperativo moral categórico que se propõe a resguardar a
incolumidade (física e psicológica) de todos os animais (não
humanos) sencientes”, evidenciando-se o valor intrínseco
conferido à fauna. (grifos nossos)

Consoante essa visão, a proteção da vida não deve se restringir à


perspectiva humana, caso contrário, estar-se-ia a incorrer no especismo,
comportamento este conceituado por Singer (2010, p.23) como “um preconceito
ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma espécie em
detrimento dos interesses dos membros de outras espécies”.
No entanto, malgrado a Constituição seja contrária à violência para com
os animais, a realidade na prática mostra-se, em muitos aspectos, diferente do
que prega a redação constitucional, vez que os sencientes submetem-se aos
mais diversos interesses humanos, dos quais, nos setores de agronegócio,
científico, sanitário e cultural.

2. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONFLITO NORMATIVO: PROTEÇÃO


AOS ANIMAIS CONTRA ATOS DE CRUELDADE X MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS
1004

Refletindo os anseios de uma sociedade pluralista, a Carta Magna de


1988 foi estruturada no sentido de congregar diferentes valores ideológicos,
razão pela qual, eventualmente, seja capaz de criar situações de colisões
normativas (GARCIA, 2015, p.71).
De acordo com Garcia (2015, p.285), a essas contradições, dá-se o nome
de antinomias, caracterizadas quando “no plano normativo, a existência de duas
ou mais disposições que, perante as mesmas circunstâncias de fato,
estabeleçam consequências jurídicas incompatíveis entre si, inviabilizando a sua
coexistência no sistema”.
Em razão da aludida dialeticidade do documento constitucional, não raras
vezes são objetos de apreciação do Judiciário o conflito entre o direito à
manifestação cultural e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
no que tange à proteção dos animais contra práticas que os submetam à
crueldade, o que, com efeito, enseja debates significativos, muitos dos quais,
levados posteriormente à discussão nos tribunais superiores, como nos casos
da farra do boi, da vaquejada, dos rodeios, dentre outros.
A fim de se perquirir a uma análise mais detida, faz-se primeiramente
necessário compreender a natureza das normas constitucionais, tendo em vista
que, “a diferença basilar entre regras e princípios baseia-se numa distinção de
técnicas para a resolução das situações de conflituosidade” (GARCIA, 2015, p.
294).
Assim sendo, para Barroso (2018, p.244), os princípios correspondem a
estados ideais a serem alcançados, sem que para isso a norma precise
descrever de maneira objetiva a conduta a ser seguida; por outro lado, no que
se refere às regras, o oposto se aplica, uma vez que essas são descritivas de
comportamentos, havendo por conta disso, menor ingerência do intérprete na
atribuição de sentidos aos seus termos e na identificação de suas hipóteses de
aplicação.
Ademais, no que tange ao modo de aplicação, observa-se que enquanto
os princípios são classificados como mandados de otimização, posto que
possuem uma dimensão de peso, cabendo ao interprete proceder à ponderação
dos fatos relevantes na situação específica;; as regras, entretanto,
correspondem a comandos definitivos, de modo que, ocorrendo o fato descrito
em seu relato, a mesma aplica-se na modalidade “tudo-ou-nada” (BARROSO,
p.2018, p.245-246).
O direito à cultura e a proteção à fauna, encontram-se, pois, delineados,
respectivamente nos artigos 215 e 225 da CFRB/88:

Art. 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos


culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§1° O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§1° Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público:
(...) omissis
1005

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas


que coloquem em risco sua função ecológica, provoque a extinção de
espécies ou submetam os animais à crueldade. (grifo nosso)

De modo geral, ambos os dispositivos são categorizados como princípios


constitucionais ou direitos fundamentais, razão pela qual, quando em colisão,
demandam a realização de um juízo de ponderação (GARCIA, 2015, p. 331).
Nesse aspecto, cabe ao magistrado valorar o peso relativo de cada um deles, no
sentido de identificar aquele que será total ou parcialmente admitido e o que será
total ou parcialmente afastado.
Entretanto, há ainda, os que sustentam a tese de que a proteção dos
animais corresponde a uma regra, tendo em vista que o dispositivo, em sua parte
final, descreve imediatamente uma conduta proibida, marcada pelo dever de
“não submetê-los à crueldade”. Conforme esse entendimento, a não
identificação como princípio, resulta do fato de que tal espécie normativa, como
mandado de otimização, pode ou não incidir sobre o caso sub judice (KRELL,
2017, p. 278), o que, consequentemente, possibilita a abertura de precedentes
para o cometimento de práticas cruciantes.
Corroborando o argumento, vale salientar que a reserva de lei “vedadas
na forma da lei” no teor do dispositivo supra, não tem o escopo de condicionar a
eficácia da norma, manifesta-se, entretanto, no sentido de que seja elaborado
um regramento normativo tendente a coibir a prática incoerente com o comando
constitucional, uma vez que, este destina-se ao Estado, como expressão do
Poder Público, tanto quanto legislador como quanto Administração (KREEL,
2017, p.279).
Nesses termos, importante análise é cunhada por Kreel e Lima (2015,
p.128):
Na verdade, houve uma prévia ponderação do legislador constituinte,
que optou por privilegiar um determinado comportamento em razão da
necessidade de assegurar a efetividade do direito previsto no caput do
art. 225 e de sua relevância, ante uma possível colisão com outros
princípios constitucionais [...]. A Constituição de 1988 podia ter
estabelecido a proteção animal em forma de princípio ou “norma fim de
Estado” (ex.: “O Estado promoverá o bem-estar dos animais”). Não o
fez, mas escolheu a forma mais direta e protetiva, instituindo uma
regra, proibitiva no próprio texto do art.225 da Constituição Federal.

À vista disso, considerando que o legislador constitucional optou por uma


ordem de “impedir atos de crueldade” ao invés de “minimizar atos de crueldade”,
assumiria o intérprete o dever de censurar a manifestação cultural, caso restasse
demonstrada a prática de comportamentos abusivos.
Com efeito, considerando que a norma não se confunde com o texto legal,
mas resulta da interpretação que a ele é dada, constata-se que o papel do
magistrado, diversamente do que fora concebido no passado, assume cada vez
mais um caráter proativo a que deve ser conferido elevada importância,
Ao dizer o direito, o intérprete deve estar atento aos novos paradigmas e
percepções que circundam as questões socioambientais, consciente de que o
direito não se reduz a um instrumento estático, mas, sobretudo, de
transformação social. Segundo as lições de Nogueira (2012, p.251), a ética
filosófica possui papel preponderante para que a ciência jurídica dê uma
interpretação não especista para a palavra “vida”, no sentido de não restringir o
direito constitucional de viver tão somente ao ser humano.
1006

Portanto, ao decidir até que ponto é válida a ofensa à vida com dignidade
em nome de uma crença ou hábito cultural, a busca pela justiça deve ser o
princípio e vetor da solução judicial intentada.

3. PRECEDENTES

Em diversas oportunidades, o Supremo Tribunal Federal já teve a


possibilidade de interpretar a Constituição e se manifestar sobre a
conflituosidade acerca dos aspectos culturais e a proibição da crueldade com os
animais. Em muitos desses casos, pôde-se denotar a prevalência de uma
posição vanguardista de proteção aos sencientes, marcada notoriamente por
uma mudança de paradigmas, que ultrapassam as barreiras especistas há muito
consolidadas na sociedade.
Como meio de ilustrar esse cenário, são trazidos trechos de decisões, que
revelam a objeção de determinadas práticas tidas como culturais, sendo eleitas,
a farra do boi e a vaquejada.
No que tange à Farra do Boi, esta corresponde a um costume próprio do
litoral catarinense, no período que antecede à Páscoa. Em suma, consiste na
soltura do animal num lugar ermo com o intuito de fazê-lo perseguir os
participantes, que o agridem durante todo o trajeto. Ao fugir das inúmeras
atrocidades, os animais são espancados por paus, têm os olhos furados, os
ossos fraturados e, não raras vezes, chegam a se afogar no mar ante o
desespero da fuga (TORRES, 2018).
Objeto de apreciação do Recurso Extraordinário n° 153.531, que culminou
no seu provimento, por maioria dos votos e, consequentemente, na proibição da
aludida prática, o Ministro Marco Aurélio, assentou entendimento de que:

[...] não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça


o agasalho da carta da república. Como disso no início do meu voto,
cuida-se de uma prática cuja crueldade é impar e decorre das
circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis
buscarem, a todo custo, o próprio sacrifício animal. (grifo nosso)

Nesta senda, enfatizou o Ministro Néri da Silveira:

Entendo, dessa maneira, que os princípios e valores da Constituição


em vigor, que informam essas condutas maiores, apontam no sentido
de fazer com que se reconheça a necessidade de se impedirem as
práticas, não só de danificação ao meio ambiente, de prejuízo à fauna
e à flora, mas, também, que provoquem a extinção de espécies ou
outras que submetam os animais à crueldade. A Constituição, pela
primeira vez, tornou isso preceito constitucional e, assim, não
parece que se possam conciliar determinados procedimentos,
certas formas de comportamento social, tal como a denunciada
nos autos, com esses princípios, visto que elas estão em evidente
conflito, em inequívoco atentado a postulados maiores. (grifo
nosso)

A despeito da Vaquejada, por sua vez, tem-se que esta corresponde a


uma prática realizada em determinadas regiões do Nordeste Brasileiro. Dentro
de uma arena, dois vaqueiros montados em seus cavalos correm atrás do boi na
intenção de derrubá-lo pelo rabo (TORRES, 2018).
1007

Dados empíricos já puderam demonstrar que antes e durante a


apresentação, os animais são submetidos a diversos atos de maus-tratos, dos
quais, o confinamento, o espancamento, a eletrocução, a fratura da espinha, do
rabo e de outros ossos (LEUZINGER et al, 2017, p. 202).
Submetida à análise de legalidade, a Lei Cearense n° 15.299,
regulamentatória da aludida manifestação, foi declarada inconstitucional por
meio da ADI n° 4983. Nesse diapasão, vale destacar importante excerto do voto
manifestado pela Ministra Rosa Weber:

A Constituição, no seu artigo 225, §1°, VII, acompanha o nível de


esclarecimento alcançado pela humanidade no sentido de superação
da limitação antropocêntrica que coloca o homem no centro de tudo e
todo o resto como instrumento a seu serviço, em prol do
reconhecimento de que os animais possuem uma dignidade própria
que deve ser respeitada. O bem protegido pelo inciso VII do §1° do
artigo 225 da Constituição, enfatizo, possui matriz biocêntrica,
dado que a Constituição confere valor intrínseco às formas de
vida não humanas e o modo escolhido pela Carta da República
para a preservação da fauna e do bem-estar animal foi a proibição
expressa de conduta cruel, atentatória à integridade dos animais.
Conferir legitimidade à lei do Estado do Ceará, em nome de um hábito
que não mais se sustenta frente aos avanços da humanidade, é ferir a
Constituição Federal. (grifo nosso)

Conforme se observa, a jurisprudência brasileira tem revelado uma


ascensão cada vez mais proeminente do paradigma biocêntrico ou pós-
humanista, por meio do qual tem estendido o conceito de dignidade e respeito
aos demais seres vivos, resultando, assim, numa paulatina desconstrução do
ideal antropocêntrico especista.
Em que pese, as manifestações culturais devam ser protegidas e
fomentadas em razão de sua importância à consubstanciação da dignidade da
pessoa humana, tais práticas não devem ensejar o entretenimento humano a
qualquer custo, sob pena de afronta aos novos paradigmas e percepções que
circundam as questões socioambientais.
Assim, valendo-se do fato de que a cultura não seja algo estanque na
sociedade, mas sujeita a reformulações com o passar do tempo, quando revelar-
se atentatória à integridade física e psíquica do animal, não deve servir como um
“salvo conduto para a fossilização de práticas não mais aceitas no atual estágio
de consciência e desenvolvimento humano” (MARTINS, 2017, p.325)

CONCLUSÃO

A promulgação da Constituição Federal de 1988 inovou mormente ao


reservar um capítulo próprio ao meio ambiente, erigindo dentre outras coisas o
dever de proteção aos animais contra atos que os submetam à crueldade.
Considerando, no entanto, que em razão da pluralidade social que cerca
o Estado brasileiro valores contrapostos estejam alberguados na referida carta
política, não se torna incomum o fato destes estarem constantemente entrando
em rota de colisão, o que demanda, no caso concreto, uma atividade
hermenêutica tendente a solucionar tal relação conflitual.
De modo geral, os casos de maior repercussão referentes à divergência
envolvendo a prática cultural e a proteção animal contra atos abusivos
apreciados pelo Supremo Tribunal Federal, puderam revelar que as
1008

manifestações culturais atentatórias à integridade física e psíquica dos


sencientes, não podem mais serem admitidas em razão da afronta direta aos
valores socioambientais atualmente consagrados, que denotam ser o direito à
vida, uma garantia fundamental de todos os seres vivos, portanto não mais
restrita à figura humana.
Com efeito, esse processo é fruto de uma prestigiosa atividade
hermenêutica que vem sendo regularmente empreendida no cenário jurídico,
demonstrando, assim, que posições coerentes com a pluralidade, o
reconhecimento da dignidade para outras formas de vida além da humana, o
repúdio à coisificação, a instrumentalização animal e a solidariedade têm se
tornado, gradualmente, metas a serem atingidas.

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1010

HERMENÊUTICA DO AUTORITARISMO: AS TEORIZAÇÕES


ANTIDEMOCRÁTICAS PREEXISTENTES NO DIREITO
HERMENEUTICS OF AUTHORITARISM: ANTI-DEEMOCRATIC
THEORIZATIONS IN LAW

Sofia Vilhena Teixeira

Resumo: A presente pesquisa pretende demonstrar como teorias jurídicas, ao


decorrer dos séculos, foram responsáveis pela origem de diversos autoritarismo
institucionais propagados pelo Estado, principalmente as teorizadas a partir de
uma justificativa, aparentemente democrática, centrada nas razões ou interesses
de uma comunidade específica. Afinal, sendo o direito uma ciência não exata
monopolizada pelo poder estatal, o qual possui o ius puniendi, a ameaça
contínua de coerção aos cidadãos, gera-se uma facilidade na imposição de
vontades deste ente sobre os indivíduos, principalmente, se esta for mascara
pelo discurso de proteção e cuidado. Ademais, a situação impõe-se como ainda
mais caótica, se for possível refletir como a ideologização política dessas teorias,
remanescentemente infiltradas na atualidade, desvirtuam as finalidades
estruturais do Estado Democrático de Direito, um dos maiores percussores na
eliminação de autoritarismos.
Palavras-chave: Jurisprudência dos Conceitos. Jurisprudência dos Interesses.
Movimento do Direito Livre.

Abstract: This research aims to demonstrate how legal theories, over the
centuries, were responsible for the origin of various institutional authoritarianism
propagated by the state, especially those theorized from an apparently
democratic justification, centered on the reasons or interests of a specific
community. After all, as law is a non-exact science monopolized by state power,
which has the ius puniendi, the continuous threat of coercion to citizens, it is easy
to impose this will on individuals, especially if it is masked. for the speech of
protection and care. Moreover, the situation is even more chaotic if it is possible
to reflect on how the political ideologization of these theories, which are currently
infiltrated today, distorts the structural purposes of the Democratic Rule of Law,
one of the greatest percussors in the elimination of authoritarianism.
Keywords: Jurisprudence of Concepts. Jurisprudence of Interests. Free Law
Movement.

INTRODUÇÃO

O Estado Democrático de Direito construiu égide no Brasil a partir da


Constituição de 1988, a qual garantiu em seus dispositivos direitos
fundamentais, tanto de natureza individual quanto social e processual. Um
desses preceitos conceituadas na Carta Magna é o do Devido Processo Legal
que é constituído, em autos, pela ampla defesa, contraditório e isonomia, a
serem aplicada aos litigantes de eventuais conflitos judiciais. Entretanto, é
imperativa a compreensão de que tais prerrogativas apenas possuem
possibilidade de serem postas em prática caso haja uma paridade de poderes
sobre aqueles que constituem os litígios. Ou seja, autor e réu devem, de forma
equânime, serem ouvidos e, a partir disso, terem suas alegações declaradas
como parte processual de influência na decisão do juiz. Assim, devem ter voz as
1011

partes para defenderem-se e deve o magistrado, a partir delas, basear suas


sentenças, as quais serão estáveis e seguidoras de uma lógica jurídica já pré-
determinada, para que, caso a caso, não haja distinções no tratamento
jugamental de distintas realidades concretas (LEAL, 2018, p. 81).
Nesse prospecto, narrado as valorizações constitucionais teóricas sobre
o direito processual, as quais possuem expectativa de efetividade imediata na
prática dos Tribunais, é imperativo aduzir como historicamente se impera certas
teorias hermenêuticas isentas dessa orientação hodierna, que, apesar de já
ultrapassadas, continuam a ser repetidamente parafraseadas na realidade
paradigmática do Estado Democrático de Direito, mesmo que nelas sejam
observadas incompatibilidades práticas. Entre as mais famosas, estão a
Jurisprudência dos Conceitos, concebida por Georg Friedrich Puchta, a
Jurisprudência dos Interesses, engendrada por Rudolf Von Jhering, e, por fim, o
Movimento do Direito Livre, o qual possui como um dos seus maiores
percussores, apesar de inconsciente, Oskar Van Bulow.
A partir da enumeração desses postulados teóricos a serem aqui
expostos, a presente pesquisa se presta a explicar e refletir estas teorias
jurídicas pretéritas a fim de demonstrar como que, apesar de brilhantes a época
de sua feitura, tais são inadequadas na preexistência atual, junto a um Estado
democrático que presa amplamente pela participação e fiscalidade de seus
cidadãos na tentativa de promover a coexistência tanto de maiorias como de
minorias. Ademais, tais demandas, serão exploradas mediante um criticismo
categórico das instituições estatais e de seus mecanismos de imposição de
desejos sobre os indivíduos, ou seja, observados, principalmente, perante as
influências autoritárias existentes entre particulares e Estado durante as relações
processuais ocorridas nos Tribunais e, também, sobre suas conduções punitivas
permeadas na sociedade.
Além do mais, a pesquisa, visando o sucesso de suas alegações, se
propõe ao uso metodológico da vertente dialético-comparativo. No tocante ao
tipo de investigação, foi escolhido, na classificação de Witker (1985) e Gustin
(2010), o tipo jurídico-projetivo. Em frente a amplitude e complexidade do tema,
o trabalho se propõe a expor as teorias de Puchta, Jhering e Bulow, a fim de
demostrar as incompatibilidades práticas destas atuações teoréticas no atual
panorama do Estado Democrático de Direito brasileiro. Outrossim, pretende-se
a reflexão dos desafios presentes na procura de uma teorização jurídica que seja
de fato democrática em suas acepções e que afaste, de maneira efetiva,
quaisquer pretensões autoritárias por parte do poder estatal ou de eventuais
elites governamentais.

DESENVOLVIMENTO

1. JURISPRUDÊNCIA DOS CONCEITOS E A DITADURA DA MAIORIA

A jurisprudência dos Conceitos, conclamada em meados do século XIX


por Puchta, apresenta as acepções de um direito baseado num sistema lógico
estruturado na forma de uma pirâmide de conceitos. Tais são classificados
mediante seu grau de generalidade e abstratividade, do qual, no topo do vértice
do poliedro ficcional, estão os conceitos com o maior nível possível de extensão,
à exemplo os direitos individuais alicerçados pela Constituição – como o direito
a vida, a propriedade e a liberdade, seja qualquer a sua acepção – , e, em sentido
1012

decrescente, reportado as bases, há as espécies e subespécies dos conceitos,


categorizados segundo seu gral de especificação. E, essencialmente, no alicerce
da pirâmide, se localizam os termos médios, aquelas proposições jurídicas
condicionantes e derivantes que seguem a genealogia dedutível, ou seja, as
questões dos casos concretos, as quais serão subsumidas nas subespécies e
espécies de princípios, os quais serão condicionados aos conceitos supremos
apresentado na Carta Magna (PENIDO, 2015, p. 77).
Dessa forma, há a percepção de que esta teoria procura a eliminação
daquilo que é particular, aqui sendo interpretado, como as flexibilidades
passíveis de ocorrência no caso concreto. Afinal, todo esse hemisfério
interpretativo, partido de uma operação lógico-dedutiva, baseia-se num processo
de desenvolvimento sistemático das leis, que inocula tanto o legislador quanto o
juiz em seu meio profissional, com finalidades expressamente voltadas para a
estabilização do Ordenamento Jurídico, como ordem unívoca e concisa, e das
decisões jurisprudências, como passíveis de serem deduzidas pelo seu nível de
coesão consolidada (PENIDO, 2015).
Neste panorama científico jurídico, se tem a lei e a Constituição como
aquelas inoculadoras de definição dos rumos da ordem jurídica de um
determinado Estado. Entretanto, apesar da estabilidade desses conceitos
teóricos, há de se ter em mente que tal postulação teve sua égide na Europa do
século XIX, o auge do Estado Liberal. Em que, por conta disso, também se
demonstra, ao longo das décadas, como uma ferramenta primordial para a
opressão social daqueles excluídos do poder. Afinal, mesmo que as
Constituições liberais assegurassem, para todos indiscriminadamente, uma
igualdade formal dos direitos individuais, estes, muitas vezes, eram postos como
os próprios centros dificultadores de exercício dos atos da vida civil, ainda mais,
se for ponderado que, a época, os legisladores eram aqueles monopolizadores
da riqueza nacional, isto é, refletir as consequências problemáticas da atuação
de uma igualdade jurídica num panorama de desigualdade social, não era uma
de suas prioridades (BATISTA, 2005).
Assim, como postulado pelo sociólogo Karl Marx, o direito era uma fonte
de poder monopolizado pelos capitalistas a fim de exercer a coerção favorável a
seus legítimos interesses econômicos. Logo, a repressão do Estado mostrava-
se a serviço das elites governamentais e a lei, com alicerces na Constituição feita
pela mesma elite nacional, era criada e embasada para ratificar os atos de
opressão contra aqueles que não detinham os meios de produção (MARX;
ENGELS, 2005). Desse modo, formava-se uma espécie de ditadura do
legislativo que possuía reproduções práticas nas atuações executivas,
principalmente as relacionadas à segurança pública e ao direito penal, as quais
eram apenas reproduzidas pelo poder judiciário, a partir da velha técnica lógico-
dedutiva dos termos médios a serem compatibilizados com os conceitos
supremos, gerando uma estabilização de opressões coniventes a área jurídica.
Dessa forma, é importante perceber que a problemática da Jurisprudência
dos Conceitos, idealizada por Puchta, não detinha empecilhos autoritários
concretos nos próprios fundamentos teoréticos, ao contrário, tais entraves se
davam, principalmente, em via de sua atuação prática numa complexão social
desarmoniosa a democracia, gerando as opressões. Afinal, não havia, àquele
tempo, o que se falar de representatividade do povo através das leis, já que estas
eram concebidas por um parlamento em que os sufrágios eram exercidos por
meio do voto censitário masculino e os representantes também eram a camada
1013

mais abastada da sociedade, excluindo a vontade popular desses processos


legiferantes (BATISTA, 2005).
Nesse viés, levando em consideração esses postulados, acoplados ao
fato de o ordenamento jurídico alemão ainda constar diversas disposições
referentes ao direito romano da antiguidade – artifício jurídico obviamente inapto
para regular o âmbito das relações sociais de uma Alemanha contemporânea –
surgiram teorias que buscavam retardar os efeitos dessa ditadura do legislativo
e executivo, reiterado pelo judiciário. Entretanto, tais apenas transmutaram os
focos opressivos, transferindo-os, de maneira quase que absoluta, para a
discricionariedade voluntarista do que seria o senso de justiça do magistrado, o
qual, por meio de seus conhecimentos jurídicos, saberia determinar os
interesses da comunidade perante a matéria em litígio, além de consubstanciar
uma certa igualdade material entre as partes (PENIDO, 2015, p. 81-82).

2. JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES: MEIO CAMINHO PARA A


DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

A Jurisprudência dos Interesses, com égide teórica na metade do século


XIX e concebida pelo jurista alemão Rudolf Van Jhering, determinava, por auto,
que, sendo a Alemanha uma nação própria com interesses comunitários
específicos, seria inadequado uma atuação ativa do antigo direito romano para
a regulação das relações daquela sociedade. Ou seja, a teoria sistémica não era
suficientemente apreensível para que se pudesse retirar as regras necessárias
da comunidade alemã. Dessa forma, a técnica apta para exercer tais
configurações seria a tradução da lei pelo legislador, a partir dos interesses
expressos pela coletividade, e que, por conseguinte, determinariam os
interesses reinantes do restante do ordenamento jurídico, disciplinado pela
Constituição, a qual também obtinha seus mandamentos desenvolvidos por
essas disposições. Isto é, os interesses comunitários designariam tanto a
Constituição quanto a lei, conjuntamente ordenada pela primeira, as quais
regulamentariam o remanescente da sistemática legiferante (PENIDO, 2015, p.
82).
Num momento principiante, parece que a única diferença dos postulados
de Puchta e Jhering é a presença ou ausência do termo “interesses da
comunidade”, e que, aparentemente, as forças lógico dedutivas coesas e
estáveis com o Ordenamento Jurídico estariam respeitadas, apesar de partirem
de um ponto unívoco diferenciado. Entretanto, a problemática intensifica-se,
segundo Karl Larenz, mediante a afirmação da possibilidade do magistrado, a
serviço do Estado, poder decidir contra as norma legais, caso se perceba a
omissão do legislador na tradução desses interesses comunitários na lei ou na
aferição de que estes estejam ultrapassados, se comparados com a identidade
social da comunidade no momento de se expedir a sentença. Dessa forma, o
que antes se caracterizava como um critério jurisprudencial objetivo, abarrota-se
de margens decisórias amplificadamente subjetivas, aí nascendo o começo de
uma cultura discricionária do juiz (LARENZ, 1997, p. 82).
Nesse viés, sendo o magistrado o determinador da convalescência de
interesses aduzidos a lei e sua inerente inovação, gera-se uma nova concepção
da coesão sistemática da ordem jurídica alemã, desenvolvida a partir do
voluntarismo de um único ente, o qual representa um ainda maior, capaz de
retirar o monopólio do legislador na confecção legiferante, transferindo-o para
1014

ele mesmo. Isto é, o juiz, como uma composição orgânica do Estado, teria o
poder de observar a realidade contida na lei, concebida a época da legislatura,
e determinar, de forma impositiva, visto que tais condicionamentos não passam
por uma triagem, a contrariedade da realidade atualizada no momento da
aplicação do direito legislado, fazendo com que modificações deste tipo sejam
autorizadas (PENIDO, 2015, p. 82)
Todavia, como cada disciplinador normativo possui uma percepção
diferenciada da realidade, daquilo que seria ultrapassado ou atualizado, a
jurisprudência acabou por abandonar seu aspecto estabilizador de resolução de
conflitos, transformando a questão numa disposição de percepção
personalíssima. Em verdade, foi-se tecido, com Jhering, o início tímido da
ditadura do judiciário, o qual obteve seu auge mediante as postulações do
Movimento do Direito Livre, comtemplado por Oskar Van Bulow e seus
seguidores (LEAL, 2008).

3. MOVIMENTO DO DIREITO LIVRE E A DITADURA DO JUDICIÁRIO

O Movimento do Direito Livre firmou sua teoria no final do século XIX e


início do XX, suas concepções decorreram de uma exasperação crítica
esboçada a Jurisprudência dos Conceitos e, com alguns pontos, alicerçados na
Jurisprudência dos Interesses, a qual fora aperfeiçoada, em termos de
discricionariedade judicial, a um patamar mais radicalizado (PENIDO, 2015, p.
83). Segundo as reflexões de Noberto Bobbio, tal criação teorética surgiu como
resposta ao fetichismo legislativo anterior, contra argumentando sua decadência
prática a partir da existência de lacunas legais não mensuradas por Puchta, as
quais seriam resolvidas a partir da criação do juiz, daí retirando a suposta
necessidade dos juristas no abrigo a essa concepção interpretativa do direito
(1995, p. 122-127).
A égide dessa corrente é a obra “Gesetz und Richteramt”, escrita por
Bulow em 1885, em que o mesmo lança o postulado de que cada decisão judicial
é, fundamentalmente, uma atividade criadora do direito, jamais configurando
apenas a aplicação de uma norma já pronta. A partir desse seu postulado, o
autor alemão foi além das intitulações subjetivas que caracterizavam a
Jurisprudência dos Interesses, a discricionariedade nela mascarada pela
tradução das legítimas intenções da sociedade na lei que forem percebidas de
forma insuficiente pelo legislador, transformou-se numa discricionariedade
expressa e sem qualquer limitação teórica, desqualificando de diferentes formas
a legislatura, desconhecendo sua importância, e, inclusive, a caracterizando
como despreparada, incompleta e deficiente, ao contrário da concepção de
qualidade tida na normativa do juiz (1995).
Ou seja, enquanto os postulados de Jhering traziam um poder maior as
interpretações do juiz, mesmo que de maneira abstrata, ainda respeitavam a
margem legiferante e a reconheciam como cerne criador de direito. Bulow, ao
contrário, nega completamente o poder da lei, tecendo diversas críticas a sua
feitura. Inclusive o mesmo expressa em sua obra que os legisladores, não sendo
conhecedores teóricos da ciência jurídica, as forjam com massivas imperfeições,
gerando a necessidade do judiciário, em suas palavras, “livrar o povo de um
legislador que mal sabe se expressar ou tem conhecimento de direito”, assim,
ele justifica “o direito não está na superfície, ele não está para todos, e é só o
magistrado o capacitado para captá-lo” (BULOW, 1995, p. 80, tradução nossa).
1015

Dessa forma, tal como expresso em seus escritos, o fundamento principal


do Movimento do Direito Livre, pela primeira vez denominado dessa forma por
Eugen Ehrlish, é a autônoma e pessoal procura do juiz pelo o que é justo,
baseando suas decisões nessa acepção, utilizando como fonte, para isso, as
normas socias, aquilo que seria o denominado “sentimento do povo alemão”
(BULOW, 1995). E para haver tal possibilidade de manipulação livre do direito
era, primeiramente, necessário a plena negação de sua completude, defendida
pelos formalistas, e o reconhecimento de lacunas, como mencionado por Ehrlich:
“Existem tantas lacunas como palavras no direito” (1986).
Nesse viés, percebe-se que, tal como a Jurisprudência dos Interesses,
apesar que de modo mais radicalizado em via da desconsideração da
essencialidade da lei, há o uso contínuo de termos abstratos como justificantes
da criação legislativa através do julgamento, sendo eles “sentimento do povo
alemão” e “interesses comunitários”, ambos de conteúdos indeterminados,
aparentemente representativo-democráticos. Todavia, tais expressões,
antagônicas ao senso comum, obtêm finalidades opressivas e autoritárias.
Afinal, o que são esses interesses societários? Qual é o sentimento do povo
alemão? Como captá-los? Nesses casos, cabem aos magistrados arbitrarem tais
questões, daí surgindo o autoritarismo de imposição de vontades do Estado,
representado pelo juiz, sobre os indivíduos, partes, por meio da jurisdição.
Tais indeterminações etimológicas da lei e dessas teorias, demonstram-
se, cada vez mais, espantosas se pensadas em âmbito dos Tribunais Superiores
de um Estado Nacional, com atribuições de interpretação constitucional.
Porquanto, serão eles a manejarem os significados práticos da Lei Maior, o ente
assegurador dos direitos fundamentais de todos os indivíduos. E, caso o mesmo
prese-se na tentativa de cumprir uma agenda política moralista concernente a
certos grupos preeminentes na sociedade em detrimento das determinações
técnicas do texto normativo da Carta Magna, convergirá tais questões numa
mutação constitucional por demais flexível, a que nada se submete, apenas, é
claro, subsiste perante os direitos suprapositivos, inventados pelos tribunais, os
quais parecem desconhecer as limitações prática de uma Constituição (MAUS,
2000).
Logo, desprendendo-se de acepções jurídicas lógicas estáveis, a
veneração popular da justiça perante esses órgãos estatais, acabam
transformando-se, nas palavras da cientista política, Ingeborg Maus, num
“Tradicionalismo exacerbado relegado a época pré-constitucional”, aquele
antecedente ao Estado Liberal Iluminista, ao Ancien Régime (MAUS, 2000). Em
que se transporta o foco influenciador de decisões do Judiciário, das intenções
do Rei para os interesses do povo alemão. Ambos os casos estando munidos de
imposições autoritárias que condicionam a vontade dos indivíduos mais
fragilizados, caracterizando uma verdadeira Ditadura. A exemplo do
autoritarismo, desses tempos pregressos, sendo aplicado de forma radical ao
Estado Social está no seguinte trecho, o qual conjectura uma passagem que
manchou a história alemã:

Integração jurídica [...] formava um sistema de valores com fundamento


geral nos bons costumes, no sentimento de pensadores equânimes e
justos [...] que, mesmo em tempos de neutralidade de valores seria
capaz de incutir, por meio de uma atitude nacional-conservadora, uma
boa dose de saudável sentimento popular em um povo doente (MAUS,
2000, p. 196 apud HEINRISH, 1937, p.14).
1016

Tal fora escrita em meados de 1933, uma das cartas que Hitler mandara
a direção da Associação dos Juízes Alemães, orientando estes magistrados a
manifestarem-se conforme a verdadeira autoconsciência da Justiça alemã,
declarando total fidelidade a ela de forma que eles se comprometessem em
promover, ao povo, o sentimento da imprescindível união.
Termos belos, a título estético-literário, e, claramente, subjetivos e
indeterminados, os quais levaram a atrocidades que retumbariam por séculos de
história. E é este tipo de interpretação, indiscriminadamente conforme as
descrições da moral, que se busca evitar, a fim de que se impeça a propagação
de mais espécimes de autoritarismos pregressos a serem atuantes na
contemporaneidade. Assim, deve-se aduzir, a periculosidade dessas
postulações teóricas, visando eliminar inúmeros resquício dessas concepções
autoritárias, em quaisquer áreas e dispositivos do direito pátrio, de forma, a se
impedir efetivamente que a história, caracterizada como cíclica por Karl Marx,
mantenha-se adiante nessa órbita viciosa de progressivas violações aos direitos
fundamentais, protegidos, exercidos e fiscalizados pela evolução paradigmática
do Estado Democrático de Direito.

CONCLUSÃO

Dessa forma, de acordo com a linha histórica evolucionista dessas teorias,


pode-se perceber que a hermenêutica jurídica se mostra cerceada por
radicalismos ideológicos desde a sua conjectura. Afinal, na tentativa de romper
com os aspectos autoritários e desiguais do direito impostos pelo sistema
absolutista, criou-se a dimensão do formalismo, aquele que se baseia na retirada
contígua de interpretações contidas no cerne da lei, atribuídas unicamente pelo
legislativo. Medida a qual evitou tratamentos distintos a pessoas submetidas a
semelhantes litígios, retirando quase que completamente a autonomia dos
magistrados e eliminou possíveis autoritarismos provindos de sua função como
representantes estatais.
Mais tarde, na Alemanha, essas teorizações evoluíram e ganharam
moldes mais doutrinariamente complexos a partir das postulações da
Jurisprudência dos Conceitos. Entretanto, apesar de eficaz suas concepções
jurídicas a cerca da sistemática de estabilização do ordenamento, seus
pressupostos foram utilizados de maneira inadequada a fim de atribuir relações
de opressão da camada mais abastada da sociedade perante os
hipossuficientes, mais fragilizados e sem qualquer representatividade política.
Assim, como o direito, nesse prospecto, tornou-se arma de imposição de
vontades e de impedimento a participações democráticas, as quais eram
reiteradas e coniventes pelo Poder Judiciário, tal teoria, mais a frente, fora
derrubada por outra mais adequada aos anseios sociais da época, a
Jurisprudência dos Interesses.
Esta, apesar de suas pressuposições subjetivas, tal como “traduzir as
intenções comunitárias na lei”, resolvera, em parte, a problemática relacionada
ao silêncio dos órgãos jurisdicionados perante as atuações ofensivas e
consideradas injustas realizadas pelo poder legislativo e aos cumprimentos
práticos dela no executivo. Entretanto, embora a timidez dos poderes de
manipulação da lei conferidos aos magistrados, essa concepção deu, à
caminhos largos, passos em direção a eventuais futuras fundamentações
1017

teóricas que convergiriam numa Ditadura do Judiciário, a qual pode atuar tanto
individualmente como coletivamente aos outros poderes, não gerando grandes
modificações em questões de representatividade democrática.
E, ao fim, tendo como base teórica a Jurisprudência dos Interesses, o
Movimento do Direito livre utilizou-se dos diversos assentamentos daquela para
firmar o postulado de que, sendo o direito positivado um detentor de inúmeras
lacunas legislativas, deve-se fazer uso de outros atributos jurídicos para
completa-lo. Estes sendo a formação normativa vinculante dos magistrados a
partir de justificações partidas, também, de algoritmos indeterminados. Tais
passíveis de uma manipulação de autoridade visando a imposição de
autoritarismos, daí se transcorrendo a concretização da Ditadura do Judiciário.
Destarte, a partir das conclusões aqui reveladas, essas teorias jurídico-
hermenêuticas, concebidas, respectivamente, durante a vigência do Estado
Liberal e Social, na contemporaneidade, denotam-se impassíveis de aplicação
efetiva num paradigma estatal diferenciado. Afinal, o Estado Democrático de
Direito possui como postulados fundamentais o exercício de direitos, tanto de 1º
quanto de 2ª e demais dimensões, juntamente a uma atuação democrático-
representativa e fiscalizadora de seus cidadãos, logo, por óbvio, não cabendo a
atuação de resquícios dessas teorias impositivo-autoritárias em seus
ordenamentos pátrios. A não ser, é claro, que ainda hoje exista estratégias
governamentais relacionadas a imposição de autoritarismos sobre outrens, a fim,
de se gerar a manutenção de opressões historicamente repetitivas e,
consequentemente, cíclicas.

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metodológicas y técnicas para el estudiante o investigador del derecho.
Madrid: Civitas, 1985.
1019

INQUISIÇÃO AO LONGO DOS TEMPOS: A LUTA DAS BRUXAS DE ONTEM


E HOJE FRENTE AOS PERIGOS DA FOGUEIRA
INQUISIZIONE ATTRAVERSO I SECOLI: LA LOTTA DI STREGHE DI IERI E
DI OGGI CONTRO I PERICOLI DEL FALÒ

Maria Gabriela Vicente de Melo


Samara Alves Negrão Santos

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a relação intrínseca


entre a construção do sujeito social feminino, dentro de um ideário patriarcal e
misógino, e os impactos provenientes dessa conjuntura social no ordenamento
jurídico atual, mediante uma análise marcada pelo papel atribuído ao ser mulher
dentro de uma concepção católica, iniciada na Idade Média. A partir dessas
concepções tem-se que durante a era medieval, o Estado atuava de forma
coercitiva e punitiva, por meio dos Tribunais do Santo Ofício, em face de atitudes
correlacionadas às “bruxas”. Em contra partida, a “inquisição pós-moderna”
utiliza da violência simbólica, objetivando normalizar condutas sociais machistas
e violências institucionalizadas por meio da omissão. Portanto, fica evidenciado
que o Estado, enquanto provedor e garantidor de direitos, muitas vezes
positivados, acaba por negligenciar o reconhecimento da mulher como indivíduo
titular de direitos e, por consequência, “queima” simbolicamente as bruxas de
hoje na nova Inquisição.
Palavras-chaves: Era medieval. Patriarcado. Violência.

Abstract: Questo lavoro mira dimostrare una relazione intrinseca tra la


costruzione del soggetto sociale femminile, all'interno di un'idea patriarcale e
misogina, e gli effetti che ne derivano di questa congiuntura sociale sull'attuale
sistema legale, applicando un'analisi stampata dal ruolo scelto per essere una
donna all'interno di una concezione cattolica, iniziata nel Medioevo. Da queste
concezioni si ha che durante un periodo medievale lo Stato ha agito in modo
coercitivo e punitivo, attraverso le Corti del Sant'Uffizio, di fronte ad atteggiamenti
correlati come "streghe". Al contrario, una "inchiesta postmoderna" usa la
violenza simbolica, con l'obiettivo di normalizzare i comportamenti sociali e le
violazioni istituzionalizzate, attraverso l'omissione. Pertanto, è evidente che lo
Stato, come un fornitore e garante dei diritti, spesso positivamente, alla fine
trascura o riconosce il riconoscimento delle donne come detentori dei diritti e di
conseguenza "brucia" simbolicamente come streghe di oggi nella nuova
Inquisizione.
Parole-chiave: Medioevo. Patriarcato. Violenza.

INTRODUÇÃO

“Mulher. 1. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir


outros seres humanos, e que se distingue do homem por essas características.
5. Mulher (1) dotada das chamadas qualidades e sentimento femininos (carinho,
compreensão, dedicação ao lar e à família)”1 Segundo o dicionário de grande
circulação, a definição trata a respeito da mulher partindo de pressupostos que

1FERREIRA, A. B. D. H. Novo dicionário da língua portuguesa . 2. ed. Nova Fronteira, p.


1168.
1020

se relacionam com delicadeza, sutileza e fragilidade. Posto que a definição


reflete o prisma pelo qual a sociedade enxerga o sujeito feminino, pode-se inferir
que existe uma “convenção” sobre as condutas comportamentais socialmente
impostas às mulheres, que influenciam diretamente na confecção da legislação
e da tratativa social.
Em virtude da interferência do ideário cristão na formação da sociedade
ocidental, a formação da mulher como sujeito social é transpassada por
idealizações criadas pela Igreja Católica, pautada basilarmente na figura de Eva
e Maria: "Eva, a representante da mulher em sua situação existencial de
inferioridade, e Maria, a meta a que precisamente essa mulher considerada
inferior – quando não marcada por um sinal claramente negativo – tende e com
qual é chamada identificar-se"2. Em contraposição, tem-se a definição do termo
“bruxa”, em dicionários, sempre ligada a uma figura maléfica, feia, vil e perigosa,
além de ser relacionada a uma personalidade dissimuladora, gananciosa,
desprezível e maliciosa.
As acepções discutidas acima refletem, portanto, a objetificação e
sexualização da mulher, que refletem as raízes de uma sociedade patriarcal e
misógina, sendo a figura da bruxa, o modo como a coletividade de fato
enxergava a mulher, como um ser vil e impuro, sendo toda expressão de poder
advinda da figura feminina, fundamento para repressão e punição. Nessa
perspectiva dualista, o sujeito feminino se materializa socialmente de duas
formas: adequada aos padrões femininos impostos pelo contexto histórico-
social, sendo ,assim, considerada delicada e frágil, característica atribuída a
Maria, ou inserida no patamar de rebeldia, indisciplina e maldade atribuído às
bruxas, sendo esta imposto o papel de “vilã”.

DESENVOLVIMENTO

A Inquisição, também conhecida como Santo Ofício, foi uma instituição


formada pelos tribunais da Igreja Católica projetando a reconquista do poder
perdido, assim como o combate à heresia e qualquer tipo de sincretismo religioso
que constituíssem uma ameaça à fé católica. Em consonância, instaurou-se os
Tribunais da Inquisição, concretizando a “caça às bruxas“. Tais tribunais eram
responsáveis pela perseguição, julgamento e punição de pessoas com
comportamentos desviantes das normas e padrões impostos pela Igreja. Os
chamados hereges, intitulados inquisidores, os encarregados da investigação e
denúncia desses indivíduos, recebiam boa quantia em pagamento por
testemunharem contra suposto herege. E, caso o mesmo fosse condenado,
eram autorizados a ficar, também, com parte das propriedades e riquezas do
sentenciado. Aos acusados, em contrapartida, não lhes era dado o direito de
impugnar as acusações ou compor defesa adequada, nem sequer o direito de
saber quem os havia delatado.
As mulheres, dentro da concepção social e espiritual do catolicismo,
existiam enquanto humanas vinculada ao matrimônio. O modelo conjugal é
regulador da violência social contra a mulher, além de reconhecer a mulher
enquanto pessoa após sua consumação3. A mulher passa da tutela do pai à

2 DICIONÁRIO patrístico e de antigüidades cristãs. Coautoria de Angelo Di Berardino. Rio


de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Vozes: Paulus, 2002, 1483 p.
3 CAMPAGNOLO, Ana Carolina. Feminismo: Perversão e Subversão. [s.i]: Vide Editorial, 2019. 404 p.
1021

tutela do marido e, neste momento, ingressa de pleno direito à sociedade,


ocupando espaço de destaque unicamente por sua posição de esposa/mãe.
Todas as mulheres que fogem a esta regra e não integram a sociedade pela
constância do casamento, passam a ser mal vistas. A existência de uma mulher
solteira não parece ter uma explicação lógica na cultura da época, sendo
explicada enquanto um desvio da mulher.
No tocante ao exposto, Simone de Beauvoir fixa que “A mulher determina-
se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea
é o inessencial perante o essencial. O homem é Sujeito, o Absoluto; ela é o
Outro”4. Outrossim, resta evidenciado que a construção social da mulher
derivada e depende diretamente da consolidação do sujeito masculino. Uma vez
que, “A mulher aparece como negativo, de modo que toda determinação lhe é
imputada como limitação, sem reciprocidade”5
O exposto somado ao medo e a insegurança que a heresia ocasionava
na Igreja, geraram um aumento na perseguição por superstições nunca antes
vistas e, a justificativa para tal ato repousa na acusação direcionada a indivíduos
que, uma vez responsabilizados, seriam punidos pelo Estado, majoritariamente,
eram apontados como causadores de pestes, doenças e pela miséria social. Em
consequência, a instituição cristã instaurou uma caçada na qual os alvos eram
membros marginalizados da sociedade, tais como as mulheres tidas como
bruxas, os curandeiros e os judeus, os quais, além de possuírem rituais próprios
e não aceitos pelos cristãos, se encontravam, ainda, em melhor condição
financeira que a da maioria dos cristãos, que passaram a se sentir obrigados a
“fiscalizar” a origem de seus rendimentos, sendo esse fator utilizado como
desculpa para derrubar a poderosa burguesia judia que atrapalhava os
interesses da nobreza e do alto clero.6
Essa instituição teve origem na França, durante o período medieval,
entre os séculos XIII e XIV. No entanto, sua versão mais incisiva fora a chamada
Inquisição Moderna, ocorrida em Portugal e na Espanha, no decorrer dos
séculos XV ao XIX. Apreendida dessa forma, pois durante a Inquisição Medieval
os tipos de punição utilizados eram mais brandos, enquanto na versão moderna,
as práticas se tornaram mais severas e cruéis, com a instituição da morte na
fogueira e prisão perpétua, por exemplo. Além das torturas, ocorria também o
confisco de bens, atividade que se mostrou altamente rentável para a Igreja
Católica.
Dentro desse contexto de perseguições, às bruxas constituíam um grupo
que sofreu incisivamente com as ações clericais. Isso se deu de tal forma que a
bruxaria foi, inclusive, considerada uma forma de crime maior do que a própria
heresia. “Fêmea inebriante, ou velha decrépita”, as bruxas eram consideradas
indivíduos perversos, tendo sido acusadas de assassinar crianças, comer carne

BURGUIÈRE, André et al. História da Família II: Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. [s.i]: Terramar,
1997.
4BEAUVOIR, Simone De. O Segundo Sexo : Fatos e Mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão
Européia do Livro , 1970. p. 9-10.
5 Idem
6LISBÔA, João Guilherme. DA HERESIA À “CAÇA ÀS BRUXAS” NO FINAL DA IDADE MÉDIA
OCIDENTAL. Rev. Hist. (São Paulo), São Paulo , n. 176, r00417, 2017 .
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324.
1022

humana e, até mesmo, de transmorfismo7. Nota-se que certas alegações contra


a bruxaria eram tão absurdas, que versavam sobre algo humanamente
impossível. Ademais, acreditavam que elas praticavam orgias e relações íntimas
com demônios. Devido a isso, a figura da bruxa fora marcada pela falta de pudor
e pela degradação do corpo. Tal realidade pode ser relacionada à maldição
bíblica de Eva, que dentro desse contexto religioso, acompanhava a mulher.
Regulando como a tortura deveria ser realizada, o chamado “Malleus
Maleficarum”, ou Martelo das Bruxas, como uma carta de autorização para que
a mesma ocorresse, uma vez que continha um documento assinado pelo papa
atestando uma doutrina oficial da igreja, a Bula Papal conhecida como Bula da
Bruxaria. O manual era ainda dividido em três partes: o argumento filosófico,
como comprovador da existência das bruxas; o guia para o clero, indicando como
reconhecer a bruxaria nas próprias comunidades e um manual jurídico, que
consiste em um guia prático para processar e condenar tais mulheres à morte.
A condenação normalmente proferida era a pena de morte, contudo, devido à
crença da possível emersão de seus corpos de dentro da sepultura, não bastava
somente enterrá-las, era necessária também a cremação e a posterior jogada
das cinzas aos ventos. Com a popularização do Martelo das Bruxas, a
perseguição mudou e, o que começou com uma tentativa de acabar com a
feitiçaria pagã, a invocação do clima, o curandeirismo e o pragmatismo
transformou-se em um perigoso ódio. As bruxas deixaram de ser pagãs para se
tornarem heréticas satânicas.
Porém, não somente na Europa a Inquisição teve seus efeitos
surtidos,alcançou também os países da América. No Brasil, apesar de nunca ter
existido um tribunal inquisitório oficial, é estimado que 400 brasileiros foram
condenados por emissários que aportaram no país entre 1591 e 1767, e 21
brasileiros foram mandados a Lisboa para serem queimados, pois seus casos
eram considerados mais graves. Por outro lado, nos Estados Unidos ocorreu um
famoso caso conhecido como o episódio das Bruxas de Salém. Samuel Parris,
ministro anglicano, havia se mudado para a aldeia de Salém, Massachusets, com
sua família. Após sua filha ter ficado doente e sua enfermidade não ter sido
possível ser diagnosticada, aponta-se a bruxaria como a causa do mal. Outras
crianças desenvolveram os mesmo sintomas da menina, elas se contorciam,
gritavam e diziam sentir mordidas e beliscadas no corpo. Desse modo,
começaram as acusações para encontrar os culpados por aquela doença. Entre
eles, maioria mulheres escravas ou anciãs da vila. O governador William Phips
ordena, então, a criação de um Tribunal Especial, com cinco juízes, para ouvir e
decidir sobre esses casos. Os réus não teriam direito a testemunhas em seu
favor. Mais de 150 suspeitos foram presos, inclusive outras crianças, e
ocorreram 20 execuções. George Burroughs, um ministro da igreja, foi
enforcado como líder das bruxas e por enfeitiçar soldados em uma campanha
fracassada contra os índios. Historiadores afirmam que os juízes se
empenharam no julgamento para transferir a “culpa por sua própria defesa
inadequada da fronteira” 8

7ZORDAN, Paola Basso Menna Barreto Gomes. Bruxas: Figuras de poder. Revista Estudos
Feministas, Santa Catarina, v. 13, n. 2, p.331-3141, maio 2005.
8COSTA, Isabelle Rodrigues de Mattos. Charmed: Mulheres, bruxas e... feministas?. Revista
Lumen Et Virtus: Revista Lumen et Virtus, [s.i], v. 20, n. 8, p.19-31, dez. 2017.
1023

“Todas as bruxas são sexualizáveis, por excelência, como fator chave na


diabolização da mulher”9. A história da deturpação das práticas femininas
relaciona-se com a impossibilidade de praticar atos carnais, além da banalização
da relação com o próprio corpo. Ao mesmo tempo em que a figura da mulher era
objetificada e sexualizada, a sexualidade do homem era vista como algo natural,
sendo até mesmo vangloriada. Em consonância, Chimamanda Adichie intitula
que “ensinamos às menina que elas não podem agir como seres sexuais, de
modo como agem os homens”10. Tal realidade reflete profundamente as raízes
de uma sociedade patriarcal e misógina, sendo a figura da bruxa o modo como
essa comunidade de fato enxergava a mulher. Uma ilustração dessa realidade é
a criminalização da prática das curandeiras a partir da criação de universidades
destinadas somente aos homens, quando o exercício do poder da medicina por
parte da mulher passou a ser visto como bruxaria.

CONCLUSÃO

A definição do termo “bruxa” em dicionários é diretamente ligada a uma


figura maléfica, feia, vil e perigosa, além de ser relacionada a uma personalidade
dissimuladora, gananciosa, desprezível e maliciosa. Tal representação é
encontrada historicamente em produções culturais, como livros infanto-juvenis,
os quais predominantemente descrevem contos onde existe uma fada boa e
angelical, e uma bruxa má e horrível. Essa dualidade brutal é percebida
facilmente na sociedade atual, a partir de situações nas quais as mulheres que
não se enquadram no padrão de subordinação desejado e, por conseguinte,
buscam a realização pessoal, almejando uma independência, ou, ainda,
mulheres que, por optarem não se enquadrar nas construções referentes a
maternidade, ou ainda mulheres que simplesmente não se submetem aos
padrões estéticos impostos socialmente, são julgadas e perseguidas por sua
conduta e pelo modo de ponderação, sendo consideradas e tratadas como
inimigas do corpo social, dado que versam contra o cerne que constitui os
preceitos deste. Nada obstante, fomento do estereótipo das bruxas, hoje se
transfere para a figura feminina em geral, em virtude da difusão do feminismo,
mecanismo que conscientiza e, muitas vezes, instiga a não obediência a
supremacia masculina.
Nessa perspectiva, hodiernamente, observa-se o apogeu da abstração
“bruxas” sendo classificada como mártires da causa feminina e, em
consequência, o feminismo encontrou na imagem das bruxas um dos seus
principais símbolos, configurando corpos que não se renderam a violência
institucional do período. Joana D’arc, considerada alheia aos modelos da
sociedade, foi queimada na fogueira pela Santa Inquisição, tornando-se um
exemplo da luta feminina contra as perseguições e os padrões impostos. Mesmo
após o fim da Inquisição, é notável que a caça às bruxas não se encerrou. As
“bruxas” são outras e as perseguições se dão de modo diferente, porém, ainda
assim, mulheres são diariamente postas na “fogueira”, sendo constantemente

9ZORDAN, Paola Basso Menna Barreto Gomes. Bruxas: Figuras de poder. Revista Estudos
Feministas, Santa Catarina, v. 13, n. 2, p.331-3141, maio 2005.
10 Trecho retirado do livro Sejamos todos feministas, versão modificada e traduzida de uma
palestra proferida por Adichie em dezembro de 2012 no TEDxEuston, conferência anual com
foco na África
1024

julgadas e linchadas publicamente por uma sociedade fomentada no


patriarcalismo.
Paralelamente a ação positiva do Estado no período da Inquisição
antecedente temos, hoje, uma ação negativa deste. No passado, a prática contra
as bruxas era realizada através da punição do Estado, uma ação contra essas
figuras. Já na “Inquisição pós-moderna’, esse órgão trabalha contra a figura
feminina por sua omissão, através da falta de serviços públicos que oportunizem
a mudança desse cenário. O patriarcalismo é uma herança secular. Um dia era
motor para a ação com os inquisidores contra as “bruxas” e, hoje, é pressuposto
para normalizar práticas machistas dentro da sociedade. Destarte, infere-se que,
no passado, a violência era exercida escancaradamente, de forma impetuosa,
em contrapartida, atualmente, a violência estatal é exteriorizada de forma
simbólica, isto é “violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítima” 11.
Logo, cada vez que uma mulher tenta quebrar padrões socialmente impostos ou
tenta exercer um poder por direito seu, ela é silenciada, sofrendo pelas mãos
dos inquisidores modernos a sua própria queima na fogueira.
Faz-se necessário observar que o motivo pelo qual a Inquisição, pelo
ponto de vista aqui defendido, ainda não chegou ao fim está na sua própria raiz.
A sociedade segue os mesmo preceitos postulados no período medieval, ainda
que exista avanços tecnológicos e preconceitos velados, os mesmo não
conseguem mascarar esse contexto social. Vive-se, ainda, em uma realidade na
qual a figura masculina é centralizada como ser essencial para progresso, e a
mulher ainda é descrita como uma figura reprodutora e restringida à sua
sexualidade, objeto de desejo e pecado que deturpa o homem de seu caminho.
Constata-se que, a mulher, nunca deixou de ser objeto, pois, se antes era objeto
de demônios para a prática de bruxarias, hoje é objeto de procriação e
inferioridade
A falta de legislações quanto à proteção dos direitos das mulheres é fruto
de uma herança histórica. As bruxas perseguidas de ontem, são, hoje, as bruxas
desamparadas. A perseguição, além de social se dá por meio de omissão
estatal. Quando existem as previsões legais, estas são meros escritos que,
apesar de positivados e instituídos, não são efetivamente garantidos. Vale
salientar que em se falar da não garantia de direito das mulheres, deve-se levar
em consideração a falta de representação que estas possuem nos mais altos
escalões sociais e a sua inferiorização frente à sociedade patriarcal, fato que faz
com que elas tenham poucos meios para buscarem de modo eficaz a garantia
de seus direitos.
Neste contexto, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), não
apenas concluída em território Brasileiro, como também assinada e,
posteriormente, promulgada por meio do Decreto 1.973/96 em sua forma
integral, prevê em seu 1º artigo que a violência contra a mulher deve-se entender
enquanto qualquer ato ou conduta baseada em gênero, que cause morte, dano
ou sofrimento físico, psicológico ou sexual à mulher. Em relação direta aos fatos
aqui expostos, o Artigo 2º desta convenção impõe que:

11BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina : A Condição Feminina E A Violência Simbólica.


11. ed. Rio de Janeiro : EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. , 2012. p. 12
1025

Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física,


sexual e psicológica:

a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em


qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha
compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras
formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;

b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa,


incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico
de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local
de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de
saúde ou qualquer outro local; e

c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer


que ocorra.

No entanto, sabe-se que, em realidade, os crimes de violência contra a


mulher, apesar de previstos por lei internacional e também legislações nacionais
(lei do feminicídio, no caso do Brasil), têm sua punibilidade relativizada. Muitos
são os agressores que saem impunes ou que têm a relevância de suas atitudes
ignorada. Ademais, durante este processo a vítima tem que passar por diversas
situações vexatórias, provocadas pela falta de consciência social. Mesmo com a
existência de algumas regras, estas ainda são, tanto em âmbito internacional
quanto nacional, escassez e ampliativas. Além de uma atitude quanto à eficácia
destas, elas devem ser reforçadas por meio de outras legislações mais
específicas quanto ao assunto.
Conclui-se, portanto, que o vácuo de direitos e legislações quanto à
questão de gênero, a partir da análise de um recorte histórico da Idade Média, é
herança oriunda da marginalização de raízes religiosas e concepções sociais
conservadoras acerca do feminino. Bruxas de ontem e de hoje merecem a
devida valorização, e cabe às da atualidade unir forças para juntas promover a
integração e força social, arguindo a reparação pelas perdas das bruxas do
passado, encabeçando lutas contra os papéis sociais estabelecidos para, desta
forma implementarem as suas demandas no ordenamento jurídico.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. 1. ed. são paulo:


Companhia das Letras, 2015.

BEAUVOIR, Simone De. O Segundo Sexo : Fatos e Mitos. 4. ed. São Paulo:
Difusão Europeia do Livro , 1970.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina : A Condição Feminina E A


Violência Simbólica. 11. ed. Rio de Janeiro : EDITORA BERTRAND BRASIL
LTDA. , 2012.

BURGUIÈRE, André et al. História da Família II: Tempos Medievais:


Ocidente, Oriente. [s.i]: Terramar, 1997.

CAMPAGNOLO, Ana Carolina. Feminismo: Perversão e Subversão. [s.i]: Vide


Editorial, 2019. 404 p.
1026

COSTA, Isabelle Rodrigues de Mattos. Charmed: Mulheres, bruxas e...


feministas?. Revista Lumen Et Virtus: Revista Lumen et Virtus, [s.i], v. 20, n.
8, p.19-31, dez. 2017.

DICIONÁRIO patrístico e de antigüidades cristãs. Coautoria de Angelo Di


Berardino. Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Vozes: Paulus, 2002,

FERREIRA, A. B. D. H. Novo dicionário da língua portuguesa . 2. ed. [S.l.]:


Nova Fronteira, 1168. p. 1168.

LISBÔA, João Guilherme. DA HERESIA À “CAÇA ÀS BRUXAS” NO FINAL DA


IDADE MÉDIA OCIDENTAL. Rev. Hist. (São Paulo), São Paulo , n. 176,
r00417, 2017 . http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324.

ZORDAN, Paola Basso Menna Barreto Gomes. Bruxas: Figuras de poder.


Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 13, n. 2, p.331-3141, maio
2005.
1027

O CORPO, A COMPETÊNCIA SEXUAL E A BELEZA FEMININA COMO


CRITÉRIOS HUMORÍSTICOS
THE BODY, THE SEXUAL COMPETENCE AND THE FEMININE BEAUTY AS
HUMOROUS CRITERIA

Laura Ferreira Silva

Resumo: Nesta pesquisa, mostra-se alguns textos que possuem como enredo
a sexualidade, o corpo e, ainda, a beleza da mulher visando alcançar uma
temática humorística. Esses textos que abordam os eixos temáticos
supracitados, colocam a mulher em uma posição de espera de conhecimento
e/ou prazer, somente proporcionado pelo sujeito masculino. Desse modo, a
mulher acaba sendo considerada um sujeito não realizado, enquanto o homem
é representado como uma necessidade para a realização do sujeito feminino e,
também, pela mulher desejável. Além disso, o homem se encontra ainda, numa
posição de poderoso e como aquele que tem a capacidade de fazer, ao passo
que ela, a mulher, é estabelecida e apresentada como quem não tem a posse e
nem a capacidade do fazer.
Palavras-chave: sexualidade/beleza e humor. Sujeito feminino. Incapacidade.

Abstract: In this research, it shows some texts that have as a plot to sexuality,
the body, and also the beauty of a woman aiming to achieve a humorous theme.
These texts which deal with the thematic axes above, put the woman in a waiting
position of knowledge and/or pleasure, only offered by subject male. In this way,
the woman ends up being considered a subject not performed, while the man is
represented as a necessity for the realization of the female subject, and also by
the woman desirable. In addition, the man is still, in a powerful position and as
the one who has the ability to do, while she, a woman, is established and
presented as one who has possession and nor the ability to do so.
Key words: Sexuality/beauty and humor. Subject literacy. Disability.

INTRODUÇÃO

Pesquisas mostram dados escandalosos a respeito da violência sexual


contra a mulher, assim como contra crianças e adolescentes. Nesse contexto,
encontra-se o estado de Minas Gerais no segundo lugar dentre os estados que
mais registram violência dessa espécie. Essas pesquisas mostram que, em
média, 1 mulher é estuprada a cada 11 minutos. Diante desse quadro alarmante,
essa pesquisa possui o intuito de realizar uma análise em textos que tratam
sobre o assunto da sexualidade feminina, principalmente aqueles que possuem
caráter humorístico. Com isso, tem-se o objetivo de mostrar como esses meios
linguísticos de comunicação são capazes de reproduzir uma imagem cada vez
mais inferiorizada da mulher ou sujeito feminino.

DESENVOLVIMENTO

Para o desenvolver dessa pesquisa, textos que constroem o humor a


partir da beleza e sexualidade do corpo feminino são analisados. Com isso,
tornou-se possível perceber que, na grande maioria das vezes, atribui-se a
1028

beleza à sexualidade, tornando-se possível, então, realizar um agrupamento


desses dois aspectos.
O primeiro critério a ser analisado, dentro do eixo temático já destacado,
é a idealização de um “corpo/mulher perfeita”. Na maioria dos textos deste estilo,
a mulher vem representada com os seios e genitálias à mostra, fazendo, então,
o uso da nudez que, nesse caso, associa-se ao tema da sexualidade, a qual
indica o corpo ideal e capaz de trazer prazer para os sujeitos do gênero
masculino. Em alguns casos, encontra-se representado, quando são textos
visuais ou misto entre linguístico e visual, somente o corpo feminino, estando
ausente, nesse caso, a cabeça da mulher. Essa falta de representação dessa
parte da pessoa humana traz um significado bastante intrigante, uma vez que
aponta a não identidade, singularidade, um efeito que enfatiza a desumanização
da mulher ou sujeito feminino.
A existência desse “corpo/mulher perfeita”, conforme descrito
anteriormente, logo traz, também, a noção de um “corpo/mulher imperfeita”,
podendo ser descrita até como aquela que possui como mais bonito a cabeça
ou a mente, não sendo, portanto, desejável. Essa associação pode ser feita, uma
vez que a cabeça é quem traz a identidade e a mente a racionalidade, trazendo,
assim, uma impossibilidade de tratamento da mulher como, simplesmente um
objeto. Ou seja, algo que deve estar separado e não utilizável no sujeito feminino
para que elas possam ser objetificadas e desejadas, pensando-se sexualmente.
Isso remete a uma dicotomia entre o corpo e a mente, que podem se
referir ao instinto emocional ou racional, respectivamente e, ainda, ao corpo e à
alma. Em ambas as referências se percebe que fica subentendido uma
separação do corpo e da mente, sendo o corpo colocado como inferior, uma vez
que a mente é a detentora da razão.
Tendo como base essa discussão da funcionalidade da mente/cabeça
acima descrita, a apresentação de uma mulher sem cabeça (como, conforme
supracitado, aparece em inúmeros textos humorísticos que tratam da
sexualização/beleza da mulher) pode ser considerado um atributo para que essa
mulher venha a se tornar desejável. Isso se dá porque corrobora a ação de
deletar a identidade, bem como a racionalidade feminina, gerando, assim, a triste
objetificação.
Nesses textos que se enquadram dentro dos requisitos dispostos para a
ocorrência da análise, encontra-se frases do tipo “essa roupinha tá fazendo você
merecer ser atacada, hein?!”. Além disso, em muitas vezes, o personagem
feminino reage a esse comentário como se fosse algo positivo e natural, o
recebendo como uma espécie de elogio. Outra frase comum, que em muitos
casos até acaba complementando a primeira, sendo uma espécie de justificativa
para o fato de o homem “não querer” realizar aquele ataque é “uma pena que
você é muito feia” e, nesse caso, a reação feminina é representada com imensa
tristeza e frustação – o que mostra a necessidade da aceitação masculina para
que a mulher consiga alcançar a satisfação e felicidade acerca do seu corpo ou
sua beleza.
Como se não bastasse, é notório, ainda, que, em muitos casos, o sujeito
feminino acaba deixando de lado algumas vestimentas/acessórios que lhes
deixem confortáveis para se adequar a um padrão que a deixe mais “bonita e
atraente”, tendo como ponto de partida, sempre, o ponto de vista masculino.
Nesse aspecto, destaca-se a roupa curta que possui um aspecto erótico na
grande maioria dos casos e representações, deixando subentendido para o leitor
1029

que usar esse tipo de roupa, por exemplo, a mulher está se investindo de
“atributos” que tenderão a seduzir o sujeito do sexo masculino.
Nessa perspectiva, torna-se possível refletir que, se um sujeito é
impulsionado a agir de certo modo, quer dizer que há um destinador que está o
manipulando, manipulação esta que muitas vezes ocorre tendo por base um
contrato, que traz a garantia de recompensas. No caso em questão, essa
manipulação ou o destino dessas ações é o sistema ideológico e cultural, um
suposto e grande dogma social que tende a estabelecer e não oferecer papéis e
lugares específicos para os indivíduos dessa sociedade. Sendo assim, o sujeito
feminino, estando instaurando nesse meio social, ao ser manipulado por esses
valores, obedece a esses recursos predispostos e se torna, então, um objeto
desse meio social. Simultaneamente, o sujeito masculino possui a possibilidade
de incorporação de distintos papéis. Assim como ele pode ser objeto valor,
também pode exercer a função (papel) de destinador ou julgador daquilo que faz
o sujeito feminino, podendo validar ou não todas as ações que são feitas pelas
pertencentes ao “sexo frágil”. Nessa função de julgador ou destinador, o sujeito
tende a realizar seu julgamento tendo como base o que é estabelecido e exposto
pela sociedade patriarcal, chamado, em muitos casos, de acordo social e que,
na realidade, foge bastante da real significação da palavra acordo. Como se
pode observar no decorrer da análise desses textos humorísticos, o sujeito com
finalidade julgadora ou com o papel de destinador, identifica, por exemplo, se a
roupa que o sujeito feminino escolheu para usar é ou não correta ou válida,
perceptível na mesma frase já dita acima “essa roupinha tá fazendo você
merecer ser atacada, hein?!”.
Isso tudo significa, apenas, que a mulher ou personagem feminina
(tomando a questão da representação nos textos analisados) é um sujeito que
possui a capacidade de escolher as estratégias que lhe permitem a aceitação –
tendo como ponto de partida o exemplo acima, tem-se que a mulher soube
escolher a roupa que seria considerada válida – pelos julgadores. Todavia, isso
não é bastante já que, como anteriormente comentado, a beleza é também um
critério para esse pretexto de aceitação, uma vez que ele pode ser usado para
justificar o fato de que, apesar dela ter escolhido o traje ideal, a falta de beleza
não lhe permite se enquadrar perfeitamente nos critérios e, portanto, se torna um
sujeito não realizado, carregando, então, falta e frustação.
No que diz respeito ao verbo atacar, usado na frase mencionada, é
importante destacar o sentido por ele construído. Por constituir uma temática em
relacionada à sexualidade, ao dizer ataque, o discurso vem revelar uma
desproporcionalidade que se estabelece entre os dois sujeitos envolvidos
(feminino e masculino). Assim, o sujeito masculino encontra-se numa posição
que o concede poder e superioridade, uma vez que ele constitui o grupo do
sujeito que pratica o ataque. Enquanto isso, o sujeito feminino se encontra numa
posição inferior em relação ao masculino e, ainda, numa situação que não lhe é
concedido nenhum poder e, desse modo, se encontra no grupo dos vulneráveis,
podendo ser, então, atacada.
A escolha, por parte dos textos analisados, da escolha dessa significação
para o ato de atacar acaba referenciando ao tema da violência. O fato de ocorrer
a aceitação e resposta da pessoa do feminino ser positiva à frase que faz uso do
verbo em discussão releva a condescendência e passividade da mulher nessa
interação, presumindo-se, assim, que se trata de algo previamente estabelecido,
uma espécie de contrato inserido no meio social de maneira implícita ou explícita
1030

e que infere em situações desse contexto. Baseando nesses pressupostos,


torna-se possível afirmar que a resposta positiva do sujeito feminino, então,
provavelmente gostaria ou desejaria ser atacada, pois, desse modo, estaria se
inserindo num contexto de validez se comparada ao dito como ideal na
concepção ideológica predisposta socialmente. Nesse discurso, essa validez
seria como uma “recompensa”, ou seja, a possibilidade daquele sujeito feminino
vir a ser considerado realizado ou, ainda, possuidor de um “corpo ideal”.
Com tudo que foi analisado até o presente momento, é possível identificar
a voz masculina como uma voz mais marcada no discurso, capaz de,
efetivamente, falar. É a voz que tem a possibilidade de estabelecer qual e como
é o “corpo/mulher perfeita” e, além disso, detentor da capacidade de julgar,
sendo, então, o responsável por dizer se a mulher ou sujeito feminino é ou não
desejável, tendo como pressuposto seu próprio ponto de vista e uma ideologia
empregada no contexto social, para a relação sexual. Concomitantemente a
isso, o sujeito feminino encontra-se num lugar onde aguarda esse julgamento e
possui, unicamente, a possibilidade de se tornar um sujeito realizado, algo que
é possível, somente, através da validação ou julgamento desempenhado pelo
sujeito masculino.
Em toda essa discussão, tanto o corpo como a beleza – sendo, muitas
vezes, o corpo uma espécie de afirmação da beleza – são usados como figuras
evocadas que visam construir a imagem da mulher. Essa maneira extremamente
simplista de representação do sujeito feminino é inteiramente condizente com
uma ideologia que se encontra instaurada na sociedade, ideologia esta que é
facilmente perceptível no meio social. Essa maneira de enxergar as mulheres ou
sujeitos femininos ultrapassa os sujeitos masculinos ou homens. É uma forma
também assumida pelas próprias mulheres ou até mesmo meninas, que
possuem uma concepção de que o corpo é um instrumento fundamental e
indispensável para a afirmação de uma real feminilidade, a qual possibilita o
reconhecimento dessa mulher ou menina na sociedade.
A narratividade desses discursos de humor revela uma imagem do sujeito
feminino como um sujeito que vivencia a falta, sem competência ou capacidade
para alcançar o objeto-valor desejado sendo, portanto, um sujeito não realizado.
Além disso, ela possui sua imagem, na maioria das vezes, reduzida apenas ao
corpo e à beleza ou mesmo a falta dessa beleza e, conjuntamente, desse “corpo
ideal”, processo que reafirma a objetificação inerente à construção dessa
identidade de gênero.
Essa imagem revelada pelos discursos humorísticos acerca da mulher é
totalmente condizente com as imagens que se encontram presentes em outros
contratos comunicativos e na mais larga esfera social. Tudo isso é fruto de um
processo de construção histórica no que diz respeito ao gênero feminino, a partir
do qual se estabeleceram papéis, comportamentos e afetos específicos, que
passaram a ser considerados próprios do sujeito feminino. Por esse motivo, essa
imagem é muito mais que uma alavanca para a geração de um efeito
humorístico, é uma espécie de dogma que preexiste e compartilhado pelos
sujeitos sociais de uma maneira geral.
Essa imagem, portanto, faz parte do imaginário social, incorporadas aos
saberes e crenças e, então, por esse motivo, acabam sendo considerados como
verdade absoluta, como uma realidade objetiva. Além disso, no que diz respeito
às reflexões teóricas metodológicas, as representações são maneiras de
compreensão e percepção do mundo e apresentam, também, um caráter
1031

prescritivo, uma vez que determinam e normatizam como as “coisas” devem ser.
Sendo assim, as representações passam de estratégias textuais, ou seja, meras
imagens formadas no processo enunciativo, elas ultrapassam isso. É através
dessas ditas representações que se torna possível aprender e ensinar sobre algo
no mundo significado.
Dessa maneira, aquilo que se enuncia sobre o sujeito feminino nos textos
humorísticos é, na verdade, a maneira como essas mulheres são concedidas
socialmente. Isto é, as imagens que são formadas do feminino são a forma
mesmo como as mulheres e meninas são significadas na sociedade. Faz uma
referência à maneira como essas mulheres ou meninas se incorporam num
sistema de referência por todos partilhado – partilhado, inclusive, por elas
mesmas. As imagens construídas acerca do feminino revelam a construção
ampla de um discurso carregado de misoginia, que além de estabelecer uma
diferença entre os sujeitos feminino e masculino, cria, ainda, uma dura hierarquia
marcada pela violência.
Ao analisar esses discursos, fica claro que a representação construída na
sociedade da menina ou da mulher configura uma espécie de violência
simbólica. Violência simbólica, nesse caso, pode ser definido conforme diz
Bourdieau, toda forma de coerção que leva o dominado a aderir àquilo que é
estabelecido pelo dominador. Assim, aquele que é sujeito à violência simbólica
(no caso, o sujeito feminino), compartilha e aceita os valores e ideias daquele
que o domina, uma vez que isso é estabelecido no próprio processo de
socialização.
Dentre todos esses discursos que comunicam o que é a imagem do
feminino, incluindo-se, nesse caso, os discursos de humor, conseguem garantir
a reprodução desse sistema de valores, trazendo um efeito de naturalidade e,
então, uma invisibilidade da violência empreendida. Vale a pena, ainda, ressaltar
que ao se falar em reprodução, bem como em naturalização e invisibilidade, fala-
se, necessariamente de algo que é incorporado ao inconsciente dos indivíduos,
de maneira geral, bem como no inconsciente de toda a sociedade. Esse é um
dos motivos que faz a questão de o gênero causar tanto incômodo, já que essa
concepção supracitada constituiu como uma verdade natural, principalmente por
meios ditos produzidos nas formações discursivas biologizantes, como é o caso
do científico e religioso.
A tarefa de entender que os gêneros são papéis sociais, não atributos
naturais, é extremamente importante para que se possa desconstruir esse efeito
impregnado na realidade que visa justificar a inferioridade ocupada pelo sujeito
feminino. É essa inferioridade ou posição hierárquica que vem dar algumas
respostas às tristes estatísticas que demonstram as mais distintas espécies de
violência empreendidas contra as mulheres.
Em uma pesquisa recomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, foi possível constatar que a violência contra a mulher persiste no meio
social, mesmo depois do fortalecimento do código penal, após aprovação da Lei
Maria da Penha, no mês de agosto do ano de 2006. Os dados dessa pesquisa
mostram que, no Brasil, 503 mulheres são agredidas a cada uma hora. Além
disso, ela mostra, ainda, que 66% dos brasileiros, ao menos uma vez, já
presenciaram alguma mulher sofrendo agressões físicas, isso no ano de 2016.
E, ainda, alega que o Brasil é o quinto país onde ais ocorrem morte de mulheres
pelo motivo de violência desse tipo. No que diz respeito à violência sexual, tema
central dessa pesquisa/trabalho, há um registro de, em 2017, ocorriam cerca de
1032

135 estupros por dia. É um número escandaloso e grave e, infelizmente,


provavelmente essa quantidade é inferior ao que realmente acontece, uma vez
que são considerados, para estudos como esse recomendado pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, apenas os casos que oram registrados.
E, além de tudo o que foi apresentado, outros aspectos merecem atenção.
Um desses aspectos são as respostas dadas pelos discursos sexistas pelos
locais que essas meninas ou mulheres acabam vindo a ocupar no meio social.
Na grande maioria das vezes, elas são direcionadas para os afazeres
domésticos, possuindo um salário inferior e, ainda, sendo excluídas de espaços
políticos e lugares de liderança. Isso evidencia uma sociedade que desde
sempre teve sua estrutura, e nada faz para modificar isso, capaz de manter uma
desigualdade.
Perceber quais são os instrumentos utilizados para impor essa realidade
é, portanto, fundamental para que haja a possibilidade de serem criados outros
meios que visem promover a sua superação e, como consequência, traga um
processo capaz de viabilizara a emancipação do sujeito feminino. Todavia, isso
será possível apenas se entender o papel da linguagem nesse processo, uma
vez que é por meio dela que se cria a realidade, através dos sentidos que são
atribuídos. Então, há a necessidade de ocorrer uma espécie de ressignificação,
com o intuito de modificar as nomeações até então impostas, as qualificações
conferidas e, ainda, os valores empregados no contexto social da atualidade. É,
portanto, a nova linguagem que tenderá a ajudar na configuração de uma nova
maneira de pensar e, então, esse novo pensamento será fundamental para que
seja possível construir inovadoras e mais saudáveis relações entre o sujeito
feminino e o mundo.

CONCLUSÃO

O processo de análise dos textos humorísticos demonstrou a construção


de um método narrativo que, no nível discursivo, cria algumas imagens acerca
do sujeito feminino. As representações do feminino foram construídas em torno
da figura da mulher, a qual, por sua vez, aparece como um sujeito não realizado,
com pouca ou nenhuma capacidade/competência, com frustações e cujo estado
de alma vivencia a falta. Já era esperado que a imagem projetada sobre o sujeito
feminino viesse a ser impregnada de valores negativos, uma vez que o objeto de
análise eram textos humorísticos. A recorrência temática encontrada, no entanto,
foi algo facilmente notável, porque apontou para discursos que possuem
circulação em diferentes meios sociais, os quais funcionam como “dispositivo
discursivo” que conseguem significar o feminino.
Isto quer dizer que a maneira como se enunciou a respeito do sujeito
feminino condiz com a maneira como as mulheres/meninas são concebidas
socialmente. É possível confirmar isto quando se entendem que os sujeitos
projetam sujeitos dentro do texto (os textuais) e, também, fora dele (os externos).
Ou seja, tanto o enunciar quanto o enunciatário projetados nos textos são
instâncias discursivas dos sujeitos sociais, esses que assumem
posicionamentos, que vão interagir com o texto e atribui-lo sentido. As imagens
projetadas na enunciação, nesse sentido, são como projeções de sujeitos
ideológicos, capazes de revelar seus valores, saberes e crenças a partir dos
papéis ou posicionamentos que assumem, os quais são impressos no próprio
discurso.
1033

Desse modo, as imagens construídas acerca do sujeito feminino tendo


como base os discursos de humor assumiram-se como representações sociais
que, para além de serem meros artifícios textuais, tratam-se de evidências, dos
saberes e das crenças que constroem a imaginação social.
Então, em resumo, o discurso discutido ao longo de todo esse trabalho,
representa a violência simbólica empreendida contra o sujeito feminino. A sua
legitimidade se ancora na desigualdade existente entre os gêneros (feminino e
masculino). O “dispositivo discursivo”, cria estratégias que permitem, ou seja,
“autorizam” a subjugação. Isso se dá através, principalmente, da sexualização
do corpo feminino e a beleza a ele atrelada, tornando, nesse caso, o corpo um
objeto que pode ser punido ou recompensado (premiado) pelo poder de julgar
que tem o sujeito masculino. Essa concepção infiltra o imaginário psicossocial
de maneira natural, já que pertence aos saberes e crenças já estruturados e
implantados pela cultura/ideologia patriarcal, capazes de fundamentar as
relações sociais até nos dias de hoje.

REFERÊNCIAS

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transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

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à cultura. In: NOGUEIRA: Maria Alice; CATANI, Afrânio. Escritos de
Educação. São Paulo: Vozes, 1998.p. 39-64.

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10ed. 5ª impressão. São Paulo: Contexto, 2017.

LOURO, G.LOPES.; FELIPE, J.; GOELLNER, S.V. Corpo, gênero e


sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 9ªed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013.

MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia


social. 4.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
1034

O VALOR ECONÔMICO DA REPUTAÇÃO EM APLICATIVOS QUE


PROMOVEM A ECONOMIA COMPARTILHADA E SUA PERCEPÇÃO COMO
MECANISMOS DE SEGURANÇA
THE ECONOMIC VALUE OF REPUTATION IN APPLICATIONS THAT
PROMOTE THE SHARED ECONOMY AND THEIR PERCEPTION AS
SECURITY MECHANISMS

Bruno Torquete Barbosa


Vinícius Mendes e Silva

Resumo: O presente trabalho pretendeu apresentar o valor econômico da


reputação que advém de avaliações de usuários e outros critérios em aplicativos
que promovem a economia compartilhada. Para tanto apresentou-se os
indicativos de reputação em aplicativos que promovem a economia
compartilhada, que vão desde a decisão por instalação do aplicativo, e o valor
econômico das avaliações que estimulam novas contratações. Confrontou-se a
necessidade de se ter a propriedade com a possibilidade de somente se ter o
acesso a bens e serviços. E, após buscou-se justifica a utilização de tais índices
também como mecanismos de segurança. O referencial teórico adotado
ancorou-se nos estudos de Foucault a respeito de biopolítica e optou-se pelo
método dialético jurídico essencialmente embasado em pesquisa bibliográfica.

Palavras-chaves: Economia Compartilhada. Biopolítica e Mecanismos de


Segurança.

Abstract: The present work intended to present the economic value of reputation
that comes from user reviews and other criteria in applications that promote the
shared economy. To this end, it has shown the reputation indicators in
applications that promote the shared economy, ranging from the decision to
install the application, and the economic value of the assessments that stimulate
new hires. It was confronted with the necessity of having the property with the
possibility of only having access to goods and services. And, after seeking to
justify the use of such indices also as safety mechanisms. The theoretical
framework adopted was anchored in Foucault's studies regarding biopolitics and
the legal dialectical method was essentially based on bibliographic research.
Keywords: Shared economy, Biopolitics and security mechanisms.

INTRODUÇÃO

Ao se buscar perceber o valor econômico de algo que inicialmente se


apresentava como mero indicativo, faz-se necessário observar o contexto social
onde novos valores sobrepõem questões antes determinantes.
A experiência dos indivíduos acabam por nortear novas contratações, e
portanto muito se credita às avaliações e constatações de outros usuários do
mesmo produto ou serviço. Evidentemente há o risco de se produzir uma
reputação através de dados falsos, mas o presente trabalho se propõe a analisar
o peso da disponibilidade dos dados na tomada de decisão, o valor que tais
informações podem agregar, mas também o fato de que estas informações à
medida que são expostas podem também ser entendidas como mecanismos de
segurança.
1035

A sociedade caminha a passos largos por legitimar novas modalidades de


empreendimentos econômico que desafiam os modelos históricos, onde mesmo
sem a estrutura tradicional que se espera de certas atividades observa-se um
funcionamento baseado no compartilhamento de bens e serviços.
A potencialização do que está ocioso, e o paradoxo acesso X propriedade
suprem necessidades sociais e ganham forças com as experiências bem
sucedidas que a era da informação permite que sejam analisadas por qualquer
pessoa.
No estudo que se segue, apresenta-se a importância da reputação
enquanto valor econômico inerente às atividades, para então trazer tais
elementos enquanto mecanismos de segurança das operações, protegendo o
próprio modelo econômico, como os usuários.
Evidentemente que, sendo um estudo voltado às ciências jurídicas, não
cabe ao menos nessa análise inicial um aprofundamento sociológico ou até
psicológico que justifiquem essa valoração da reputação, apesar de claramente
ser um trabalho que envolve interdisciplinaridade, entretanto objetiva-se
correlacionar o tema proposto com teses de biopolítica propostas por Foucault
que referencia teoricamente o estudo.
O método de abordagem será o dialético jurídico, abrangendo pesquisa
bibliográfica e análise de fatos concretos que envolvem os aplicativos
promotores de economia compartilhada, de forma a alcançar os resultados
propostos.

1. A REPUTAÇÃO E A ECONOMIA COMPARTILHADA

Em aplicativos que promovem a economia compartilhada, a reputação


passou a ter peso significativo vez que baseada em experiência de outros
usuários, torna-se orientador para novas contratações. Vale destacar que o
conceito de reputação começa desde o momento que o indivíduo julga se deve
ou não instalar em seu aparelho de celular o aplicativo em questão, pois as
experiências de outros usuários com o aplicativo em questão já é apresentada
no ambiente onde o mesmo é disponibilizado.
Esta primeira análise concentra elevado grau de importância, pois
informações que não seriam passadas a estranhos como numeração de
documentos, dados de cartões de crédito etc. Não raras vezes devem ser
inseridas em tais aplicativos, e em que pese tentativas legislativas recentes de
normatização da segurança de informações, pode se considerar como uma regra
para tais aplicativos a aceitação de seus termos e condições, por sua natureza
inegociáveis, vez que se tratam de contratos de mera adesão, e são
apresentados como condicionantes à instalação do aplicativo.
Assim, para que haja a aceitação pública do software do aplicativo, as
avaliações sobre as funcionalidades e bem como a experiência de outros
usuários já são expostas a priori antes mesmo que se decida pelo download.
Experiências de terceiros passam a ter uma importância elevada em
razão da inovação das modalidades econômicas, pois ao se deparar com
modelos não tradicionais a desconfiança quanto à funcionalidade e até a
segurança são claramente justificáveis.
A motivação para o compartilhamento tem sua origem em conceitos de
solidariedade, que em si tem sua genealogia no ordenamento jurídico, bem como
1036

pode ser observado na sociedade um ambiente propício para o desenvolvimento


de atividades que não são inerentes à padrões individualistas.
E mesmo antes de se apresentar o necessário contraponto, faz-se
importante convalidar o pensamento com novas contribuições, pois o
compartilhamento também pode ser visto como uma forma de crescimento:

Nos últimos dois séculos, a economia industrial recompensou um tipo


de específico de capitalista. Sobreviver e prosperar envolvia se tornar
só um pouquinho menor que um monopólio, controlando o mercado ao
mesmo tempo em que evitada a regulamentação. O controle ela
mantido pela detenção exclusiva de propriedade intelectual, segredos
comerciais, direito autorais, equipamentos e funcionários. Por quê?
Porque fábricas, ferramentas e outros meios dispendiosos de produção
exigiam organizações grandes o suficiente para extrair todo o seu
potencial. Produtos e serviços eram padronizados porque grandes
volumes levavam a economias de escala e a capacidade de oferecer
produtos a preços mais baixos. Maiores volumes também traduziam
em uma maior participação de mercado.
E de repente a internet entra na equação.
Aquelas velhas barreiras à entrada – grandes ativos de capital fechado
e propriedade intelectual fechada – deixam de resultar no maior valor.
Acabam sendo estratégias datadas, incapazes de corresponder ao
potencial encontrado nos atuvos compartilhados, que sempre
oferecerão retornos melhores e colocarão o poder nas maões de
multidões que representam pools intelectuais infinitamente maiores.
Assim, no mundo todo, o poder está passando de entidades morosas,
fechadas e centralizadas ao modelo da Peers Inc, ágil, adaptável e
distribuído. É assim que as organizações da Peers Inc começam a
reinventar o capitalismo. (CHASE, 2015, p.288)

Ao se deparar com tais experiência em território nacional observa-se que


trata-se de modelo que não necessita de regulamentação prévia:

É fato que o Brasil vem se estruturando para fazer frente às demandas


da nova economia. Em julho1, por exemplo a Comissão de Valores
Mobiliários (CVM) publicou a norma 5882 que regula e incrementa o
financiamento coletivo (equity crowdfunding ou “vaquinha virtual”, em
bom português). A ideia é oferecer segurança e regras claras para
captar recursos para bons projetos. (BULL, 2017, p. 22)

Assim o compartilhamento enquanto dinâmica social, aos poucos vai


sendo absorvido pelos organizações que passam a entender a necessidade de
ofertarem experiência não tradicionais:

As empresas capazes de engajar seus stakeholders em uma visão


clara do futuro compartilhado e de atuar de forma superior em relação
aos seus concorrentes no sentido dos três pilares estarão muito melhor
posicionadas para conquistar as mentes e os corações das pessoas –
como também o dinheiro. (ELKINGTON, 2012, p. 73)

12017
2 Instrução CVM 588. Dispõe sobre a oferta pública de distribuição de valores mobiliários de
emissão de sociedades empresárias de pequeno porte realizada com dispensa de registro por
meio de plataforma eletrônica de investimento participativo, e altera dispositivos. Disponível em:
< www.cvm.gov.br/legislacao/instrucoes/inst588.html> Acesso em 13 de dezembro de 2.017
1037

Com o surgimento desses novos modelos que apresentam crescimento,


como já tratado, a desconfiança por parte da sociedade que até então estava
acostumada aos modelos anteriores, vêm na experiência de quem se
“aventurou” primeiro um elemento que minimiza os riscos.
Compartilhar caronas, quartos, pedir comida, reservar passagens aéreas
ou hotéis, em um primeiro momento pode ser visto com resistência por quem
possui uma natureza conservadora, ou que possui resistência na aceitação de
inovações.
Nesse contexto, busca-se em Foucault a análise sobre os mecanismos
biopoliticos, cumprindo destacar análise de Hachem e Pivett (2011, p.4):

O pensador francês Michel Foucault compreende a biopolítica


enquanto tecnologia de governo através da qual os mecanismos
biológicos dos indivíduos passam a integrar o cálculo da gestão do
poder.

Ora, conforme leciona Foucault o Estado possui ferramentas através das


quais exerce o controle sobre a vida dos indivíduos, determinando padrões, que
podem ser entendidos como biopoder, numa busca de aperfeiçoamento do
homem, mantendo-o sobre controle.
Ao se observar que os aplicativos através de seus algoritmos buscam a
padronização de comportamentos, a análise do pensador está claramente
atrelada à reputação.
Tais relações são permeadas tendo o paradoxo acesso X propriedade
como tônica, pois, não raras vezes, buscando um serviço ou um bem de
consumo o indivíduo vê-se obrigado a adquirir um produto, exemplos como a
escada e a furadeira são os clássicos, a não ser quem tem tais ferramentas como
meios de desempenhar suas atividades laborais, parece claro que o indivíduo
que não exerce tais funções na verdade quer apenas um furo na parede ou
alcançar um objeto alto, e não se ver obrigado a desembolsar grandes somas e
ainda ter que disponibilizar espaço para armazenar itens que podem não chegar
a ser utilizados durante uma hora, no decorrer de anos.

As relações entre produtos físicos, propriedade individual e


personalizada, estão passando por uma profunda evolução. Não
queremos o CD; Queremos a música que toca. Nós não queremos o
disco. Queremos o armazenamento. Nós não queremos a secretária
eletrônica; Queremos as mensagens armazenadas. Nós não
queremos o DVD; Queremos o filme. Em outras palavras, queremos
não o material, mas as necessidades ou experiências que ele nos
proporciona.3 (BOTSMAN e ROGERS, 2011, p. 97)

Cada aplicativo estabelece em seus algoritmos os meios de se obter as


notas de reputação, no UBER por exemplo, tanto o motorista quanto o
passageiro podem avaliar, sendo que a busca por uma boa nota aproximando-
se do máximo é anseio de ambos, fazendo inclusive que o consumidor também

3 The relations between physical products, individual ownership and self-identity is undergoing a
profound evolution. We don’t want the CD; we want the music it play’s. We don’t want the disc.
We want the storage it holds. We don’t want the answering machine; we want the messages it
saves. We don’t want the DVD; we want the film it carries. In other words, we want not the stuff
but the needs or experiences it fulfils.
1038

se veja obrigado a padronizar seu comportamento em busca de uma boa


avaliação, pois, tais ferramentas uma vez que ligam os indivíduos em redes,
abrem espaço para novas oportunidades de compartilhamento, entretanto,
apenas sendo cultural tais oportunidades compartilháveis alcançam o poder e
o valor que têm em potencial. (SHIRKY, 2011 p. 129)
Assim, a análise da reputação como elemento de valor em aplicativos
que promovem a economia compartilhada, podem ser determinantes no que se
refere ao sucesso ou fracasso de iniciativas.

2. AS AVALIAÇÕES ENQUANTO MECANISMOS DE SEGURANÇA

Conforme ensina Foucault o Estado através do biopoder pode interferir


na vida dos indivíduos, ditando inclusive os rumos sociais, denominado pelo
pensador como “estatização do biológico” (FOUCAULT, 1999, p. 286), onde o
Estado regula a organização da sociedade e as estruturas, impactando com
tais ações no contexto social.
Para promoção de tais práticas o Estado dispõe de intervenções
biopolíticas, que visa gerar padrões de comportamentos, que facilitam o
controle social.
Na medida que tais medidas são utilizadas pela população em seu favor,
há uma inicial percepção de benefício, em que pese a sensação de segurança
não se pode deixar de se levar em conta que são meios de controle social, onde
se promove um um verdadeiro “adestramento dos corpos” (FOUCAULT, 2008,
p. 97-98).
Assim, os índices de reputação, advindos das avaliações passam a ser
instrumentos de controle e mecanismos de segurança que normatizam práticas
que como dito fogem da normalidade na medida que inclusive o consumidor é
avaliado pelo fornecedor, ampliando assim a forma de controle social.
No confronto necessário entre propriedade e acesso, há quem não tenha
como possuir certos bens de consumo, ou até quem não entenda que faz-se
necessário a propriedade de um bem do qual necessita-se apenas de um serviço
esporádico, abre-se espaço para que iniciativas disruptivas possam fomentar
novos padrões de consumo.
Assim, identifica-se que ao se buscar um hotel ou um quarto
compartilhado para se hospedar em uma viagem, as notas de avaliações de
terceiros, que podem inclusive, face a ampliação do compartilhamento de
experiências, terem um perfil semelhante ao do indivíduo que está fazendo a
busca, torna-se um mecanismo de segurança essencial para que a contratação
seja efetivada.
A questão que se busca em um segundo momento é a transposição desta
reputação para outros ambientes. Imagine-se que um anfitrião que disponibiliza
um quarto em sua residência através do AirBnB, seja avaliado pelos hóspedes
de maneira extremamente positiva, e então este anfitrião resolve ampliar o
compartilhamento de seus bens, e passa a oferecer o serviço de UBER em seu
automóvel.
Ora, em que pese não haver qualquer relação entre ser anfitrião e ser
motorista, é importante salientar que optar por embarcar em um veículo de
terceiros vai muito além de saber se o motorista possui as habilidades
necessárias na condução do automóvel, mas também pode-se buscar
informações sobre a índole do mesmo, uma vez que é possível que o passageiro
1039

seja inclusive vítima de um crime, ou até o motorista, por tais razões a avaliação
do passageiro também é importante.
Assim, a reputação enquanto moeda, enquanto valor econômico,
transportável de um plataforma à outra, pode significar um novo paradigma na
decisão por contratações, tal qual já existe em outras profissões, pois o
advogado bem conceituado pode ser contratado pela faculdade de direito da
região para ministrar aulas, mesmo sem que haja qualquer indício em sua
atividade profissional que este teria a didática necessária para a sala de aula.
Por tais razões dar valor econômico à reputação, que não depende do
prestador de serviço mas sim da avaliação de seus clientes, evidentemente
admitindo-se que existe também o reflexo negativo, mas que também pode ser
identificado como mecanismo de segurança sob a ótica de Foucault.
Portanto, os mecanismos de segurança evidentemente promovem o
controle social, mas em se tratando de economia compartilhada possivelmente
trata-se de um aspecto em que tal conceito muitas vezes entendido como
prejudicial, pode promover o crescimento econômico de quem se desprende do
individualismo e busca um ambiente de consumo colaborativo.

CONCLUSÃO

Avanços tecnológicos e a era da informação possibilitou que o


conhecimento sobre iniciativas que inovam as relações humanas fossem
difundidas sem qualquer fronteira.
O paradoxo Acesso X Propriedade traz a tónica do consumo, pois, como
ilustrado ao se pretender um serviço muitas vezes faz-se necessária a
aquisição de um produto que não guarda sequer relação com a pretensão inicial
do consumo.
Assim, fora trazida à discussão a reputação como elemento que pode
nortear a contratação, diminuindo inclusive a resistência a novos modelos
econômicos.
Apresentada a reputação como elemento inerente à economia
compartilhada, passou-se então à análise e conclusão de que trata-se numa
ótica de biopoder de um mecanismo de segurança como leciona Foucault.
Mas até que ponto essa reputação enquanto valor econômico pode
determinar o sucesso de um empreendimento, vale nesse ponto ressaltar que
em se falando de aplicativos que promovem contratações sob a tônica da
economia compartilhada, a reputação é capaz inclusiva de determinar
parâmetros mínimos para a decisão sobre a instalação ou não do aplicativo.
Portanto, o próximo passo provável é a análise da transposição da
reputação entre as plataforma e aplicativos que promovem a economia
compartilhada, uma vez que tal elemento como dito é essencial à efetivação
dessa modalidade de consumo que passou a estar cada vez mais presente nas
relações entre indivíduos.
A busca de uma sociedade justa e fraterna acaba por ganhar mais um
elemento, capaz de promover a interação ainda maior entre os indivíduos e
permitir que haja ajuda mútua que inclusive sob este aspecto da avaliação
conta também com informações extremamente relevantes sobre os padrões de
consumo e sobre o próprio consumidor.

REFERENCIAS
1040

BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a outra modernidade. Tradução:


Sebastião Nascimento, 2ª Edição, Editora 34, São Paulo, 2011

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Janeiro, 2011
1041

Grupo de Trabalho:

DIREITOS DA CRIANÇA, ADOLESCENTE,


IDOSO E ACESSIBILIDADE
Trabalhos publicados:

“TÁ DÉMODÉ” DESRESPEITAR AS CRIANÇAS: VIOLÊNCIA


MERCADOLÓGICA, EROTIZAÇÃO PRECOCE E O PAPEL DO MARCO LEGAL
DA PRIMEIRA INFÂNCIA NO COMBATE AOS ABUSOS DA INDÚSTRIA DA
MODA.

A EMANCIPAÇÃO E O DIREITO DO JOVEM A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NA


REALIDADE BRASILEIRA

A INTERNAÇÃO E A EFICÁCIA DO ESTATUTO DO IDOSO E DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE ADOÇÃO DE IDOSOS NO BRASIL

CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÕES DE RISCO – O EFETIVO


PAPEL DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

DESAFIOS ACERCA DA OMISSÃO DA LEI NO QUE SE REFERE A


PROTEÇÃO DO DEFICIENTE VISUAL COMO CONSUMIDOR.

DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NOS CASOS DE ADOÇÃO

EDUCAÇÃO FORMAL, “HOMESCHOOLING” E O DIREITO FUNDAMENTAL


DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À EDUCAÇÃO: A VISÃO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL

INSTITUCIONALIZAÇÃO PROLONGADA: A FALHA NA PROPAGAÇÃO DO


AFETO NOS PROCESSOS DE ADOÇÃO

O ATENDIMENTO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE ATRAVÉS DA ADOÇÃO HOMOAFETIVA E TRANSAFETIVA

O BULLYING E A RESPONSABILIDADE CIVIL

TOMADA DE DECISÃO APOIADA À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA


PESSOA HUMANA

TRABALHO INFANTIL: PARADIGMAS NORMATIVOS, ESTATÍSTICAS NO


BRASIL E NO MARANHÃO E ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO
1042

“TÁ DÉMODÉ” DESRESPEITAR AS CRIANÇAS: VIOLÊNCIA


MERCADOLÓGICA, EROTIZAÇÃO PRECOCE E O PAPEL DO MARCO
LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA NO COMBATE AOS ABUSOS DA
INDÚSTRIA DA MODA.
TÁ DÉMODÉ” DISRESPECTING CHILDREN: MARKET VIOLENCE, EARLY
EROTIZATION AND THE ROLE OF THE FIRST CHILD'S LEGAL
FRAMEWORK FOR FIGHTING ABUSE OF FASHION INDUSTRY.

Michelle Asato Junqueira


Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o direito à não exposição
precoce de natureza mercadológica, catalogada como espécie de violência no
art. 5º da Lei 13.257/2016, denominada de Marco Legal da Primeira Infância,
que inaugura o conceito de violência mercadológica cometida pela
comunicação, bem como, por empresas que não cumprem sua responsabilidade
social com o público infantil, e em especial, quando se utiliza de seduções
retóricas para adultizar e erotizar precocemente crianças, em especial, meninas.
A partir do método dedutivo busca traçar considerações sobre o neófito conceito
no ordenamento brasileiro, a chamada “violência mercadológica”, em especial,
na indústria da moda.
Palavras-chave: Violência mercadológica. Marco Legal da Primeira Infantil.
Erotização Precoce.

Abstract: This paper aims to analyze the right to early non-exposure of a


marketing nature, cataloged as a kind of violence in art. 5 of Law 13.257 / 2016,
called the Legal Framework of Early Childhood, which inaugurates the concept
of marketing violence committed by communication, as well as by companies that
do not fulfill their social responsibility to children, and especially when using
rhetorical seductions to early adultize and eroticize children, especially girls. From
the deductive method seeks to draw considerations about the neophyte concept
in the Brazilian order, the so-called "marketing violence", especially in the fashion
industry.
Key word: Market violence. First Child Legal Framework. Early eroticization.

1. DEIXAR A CRIANÇA SER CRIANÇA: UM COMPROMISSO DO MARCO


LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA CONTRA A VIOLÊNCIA MERCADOLÓGICA

Marco Legal da Primeira Infância, Lei nº 13.257/2016, uma lei que


assumiu o compromisso de dar prioridade absoluta para as crianças de 0 a 6
anos de idade, por meio da articulação de Políticas Públicas com o
reconhecimento de seus destinatários como sujeitos de direito em
desenvolvimento e com cidadania e participação política, com a ação
protagonista e conectiva entre os entes federativos e a participação solidária
entre Estado, família e sociedade.
Assim, a partir de um conjunto de ações voltadas à promoção do
desenvolvimento infantil, desde a concepção, até os seis anos de idade, o Marco
Legal da Primeira Infância se compromete a garantir o que já se sabe em outras
ciências, que é nos primeiros anos de vida, que o desenvolvimento físico,
1043

psicológico e emocional da criança ganha contornos para transformações em


grandes dimensões. Antes mesmo de nascer, ainda no ventre materno, estudos
demonstram que o desenvolvimento aquém do desejado irá trazer
consequências futuras e de alto impacto na vida adulta.
Neste sentido, reconhecer a criança como prioridade é um passo
importante, especialmente para a consolidação do modelo responsável para
fazer com que sejam cumpridos de forma efetiva os objetivos e fundamentos da
República Federativa propostos no texto constitucional vigente. A cidadania se
impõe mediante o reconhecimento dos direitos fundamentais, da erradicação da
pobreza, da redução das desigualdades e que deve ter início, literalmente, no
berço.1 E para tanto, o Marco Legal da Primeira Infância, declara como formas
de violência as pressões consumistas e a comunicação mercadológica,
merecendo toda uma engrenagem articulada de medidas jurídicas, bem como a
criação de Políticas Públicas a fim de evitá-las.
O consumo deve ser vislumbrado como um ato político e reflexivo e para
somar traz o Marco Legal da Primeira em seu art. 5º diretrizes para a questão,
cabendo citar:

Art. 5o Constituem áreas prioritárias para as políticas públicas para a


primeira infância a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação
infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à
família da criança, a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio
ambiente, bem como a proteção contra toda forma de violência e
de pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de
medidas que evitem a exposição precoce à comunicação
mercadológica. (grifos nossos)

Oportuno também enfatizar que quanto ao tema é de absoluta importância


a atuação de associações, sociedade civil organizada, Ministério Público,
Institutos, em especial, com destaque para o Instituto Alana que têm tido ganhos
representativos no tema. Entre eles, a Resolução 163/2004 do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) dispondo sobre
a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação
mercadológica à criança e ao adolescente. Resta dizer que desde a edição da
Resolução no ano de 2004 o conceito de comunicação mercadológica - agora
também disciplinado pelo Marco Legal da Primeira Infância - já se fazia presente
e pode ser compreendido como:

Art. 1.º:
§ 1.º Por 'comunicação mercadológica' entende-se toda e qualquer
atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a
divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas
independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado.
§ 2.º A comunicação mercadológica abrange, dentre outras
ferramentas, anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de
rádio, banners e páginas na internet, embalagens, promoções,

1 ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan & JUNQUEIRA, Michelle Asato, Infância do
consumo e o consumo da infância: reflexões sobre o “Totalitarismo Consumista” e o
incentivo à transgressão e à violência infantil na sociedade Pós- Moderna. Disponível em
https://www.caedjus.com/wp-content/uploads/2018/05/Transformacoes_do_direito.pdf. Acesso
em 20.agosto.2019.
1044

merchandising, ações por meio de shows e apresentações e


disposição dos produtos nos pontos de vendas.

Na chamada Sociedade Pós Moderna, consumismo, felicidade e angústia


se confudem e se consomem na medida em que a celeridade na aquisição, a
felicidade instantânea e a angústia sequencial são elementos correlatos para a
manutenção do sistema, e neste contexto a publicidade dirigida à criança
colabora na formação de conceitos e em protagonismos voltados ao consumo2,
englobando a crença de uma sociedade alicerçada no ter e na exclusão daqueles
que não possuem bens materiais destacados como objetos de desejo. Tal
exclusão é responsável pela exposição à violência enquanto da infância como
alvo de consumo e não como uma criança cidadã em fase de desenvolvimento.
3

A exposição excessiva aos apelos de consumo, o ter como base para uma
existência “feliz” se traduz como senha para ingresso e pertencimento ao mundo
pós-moderno, responsável por rotular e etiquetar sociamente as pessoas. Para
o atingimento desta meta cultural “ter” igual a “ser”, anteriormente vinculada
apenas aos adultos, todas as formas para se chegar lá são permitidas, e até
mesmo as que causem danos para si e para outrem4. Há uma massificação dos
sentimentos negativos entre eles, desejos infinitos de consumir, inveja, ira,
tristeza, angústia e até mesmo a ocorrência de deslizes criminógenos. Há a
disseminação da cultura do conflito nas relações sociais, entre eles, na escola,
na família e na comunidade.Pressões mercadológicas podem ser consideradas
como formas de violência, cabendo citar:

A precocidade das interações entre a criança e seu ambiente


sociocultural é evidenciada na assimilação da cultura do consumo, pela
infância, desse contexto, em que ela se vê bastante exposta aos
estímulos das propagandas e ao bombardeio feito pelo mercado
através das mídias. Essa faixa etária marca a inserção da criança no
mundo do consumismo devido ao seu egocentrismo, ao surgimento da
linguagem e às primeiras relações sociais, de forma que tais
particularidades atuam em harmonia com as estratégias das empresas
para atingir o público infantil.5

2 Petersen e Schmidt salientam que “para mostrar que pertencem a esta sociedade voraz de
consumidores, as crianças tornam-se, elas mesmas, mercadorias de consumo, ou seja, não
fazem propaganda apenas da personagem midiática que carregam consigo, mas de seus corpos,
de sua sexualidade, de seus jeitos de ser, portar-se e vestir-se. PETERSEN, M. L.; SCHMI T, S.
P. Consumo e infância: “de mãos dadas a caminho da escola”. In: ALCÂNTARA, Alessandra;
GUE ES, Brenda (orgs.). Culturas infantis do consumo: práticas e experiências contemporâneas.
São Paulo: Pimenta Cultural, 2014. p 45. Disponível em:. Acesso em: 2 set. 2019.
3OLMOS, Ana. Publicidade dirigida à criança: violência invisível contra a infância. Constr.
psicopedag., São Paulo , v. 19, n. 19, p. 34-46, 2011 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
69542011000200003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 24 set. 2019.

5MOURA, Tiago Bastos de; VIANA, Flávio Torrecilas; LOYOLA, Viviane Dias. Uma análise de
concepções sobre a criança e a inserção da infância no consumismo. Psicol. cienc.
prof., Brasília , v. 33, n. 2, p. 474-489, 2013 . Available from
1045

A outra face do consumo é a exclusão o que gera a violência por não


pertencer e por buscar meios de pertencer, com a consequente discriminação e
hierarquização de grupos sociais, exercendo ainda maior influência e
manipulação em crianças da Primeira Infância que não possuem as reais
dimensões da noção de pertencimento e cidadania política, passando a desejar
o ter como forma de serem enxergadas pela sociedade. 6
Em se tratando de violências mercadológicas exercidas em relação às
crianças, para aproximar aportes teóricos e pragmáticos, analisaremos no item
subsequente um caso paradigmático envolvendo uma campanha de calçados da
linha Grendene. Sigamos assim.

2. E NA PASSARELA DA CAMPANHA HELLO KITTY FASHION TIME DA


GRENDENE: LÁ VÊM ELAS, A EROTIZAÇÃO PRECOCE E A
OBJETIFICAÇÃO DE MENINAS.

Na passarela, meninas desfilavam. Por entre luzes, câmeras e glamour,


sapatos eram exibidos. Cartazes levantados por meninas diziam “poderosa” e
“show”. Cartazes levantados por meninos ao final da passarela ditavam “linda” e
“uau”. Este foi o cenário veiculado pela campanha publicitária da linha de
calçados Hello Kitty Fashion Times da Grendene em setembro de 2009 e que
gerou inúmeros holofotes pautados na indignação, por haver na presente
veiculação erotização precoce e objetificação de meninas.
A denúncia primeira foi realizada no ano de 2009 pelo programa Criança
e Consumo, Instituto Alana que participou como amicus curiae no processo. Em
outubro de 2010, entendeu o PROCON (Fundação de Proteção e Defesa do
Consumidor) se tratar de propaganda abusiva aplicando multa para a Grendene,
ditando que :

Assim, referida campanha incentiva a criança se identificar com os


modelos apresentados e copiar a atitude exibida, provocando a
erotização precoce, antecipando fases da vida adulta e estimula o
consumismo. Ao veicular a referida campanha, a empresa, ora
autuada, incide em publicidade abusiva, na medida em que se
aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança, em
infração ao artigo 37, § 2° da lei n° 8078/90.

O processo foi julgado em primeira instância pela juíza Simone Gomes


Rodrigues Casoretti, da 9ª vara de Fazenda Pública de São Paulo que manteve
a multa aplicada pelo PROCON à Grendene.Em sede de apelação questionou a
Grendene sobre a campanha bem como a multa aplicada pelo PROCON e
mantida pelo juízo de primeiro grau. E em decisão unânime a 5ª Turma do
Tribunal de Justiça de São Paulo, na relatoria da desembargadora Maria Laura
Tavares, entendeu que a campanha adultizava crianças, erotizava
preconcemente e incentivava o público infantil para aquisição de produtos como

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932013000200016&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 24.set.2018.
6 CAMURRA, L. O sujeito contemporâneo e a mediação docente na cultura da mídia. 2010.

95f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá.


1046

passaportes para a aceitação social, cabendo citar trecho destacado da referida


decisão:

Na campanha em questão, as meninas comportam se como modelos


adultas, transmitindo a ideia de que o uso das sandálias da “Hello Kitty”
fará com que as mesmas seja consideradas “poderosas” e ensejara a
aprovação das amigas. No mais, é certo que a campanha estimula uma
erotização precoce, suscitando a ideia de necessidade de
conquista/atração dos meninos, uma vez que, ao final do vídeo, as
meninas passam por garotos que seguram cartazes contendo elogios
à sua aparência física. Se é certo que os pais possuem o poder de
decisão da compra (ação consumidora), podendo obstar o desejo de
consumo dos filhos, o mesmo não se pode dizer no que se refere ao
comportamento nocivo induzido pela publicidade, que foge do controle
dos responsáveis pela criança.

Podemos salientar que campanhas desta natureza afrontam de forma


veemente a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989,
Constituição Federal de 1988 e Estatuto da Criança e do Adolescente, normas
que formam uma composição protetiva indispensável para a consolidação dos
direitos das crianças e adolescentes, considerados como sujeitos de direito em
desenvolvimento, e que deverão ser salvaguardados integralmente, em especial,
no seu direito à liberdade, dignidade e respeito.
Resta evidente, que a campanha da Grendene traz diversas ofensas aos
direitos humanos de crianças, em especial, de meninas, tais como erotização
precoce, a adultização infantil, a objetificação da menina/mulher, a competição
pela beleza, a espetacularização da imagem, elementos que de forma plural,
ofendem frontalmente a dignidade e a personalidade de meninas, bem como
irradia efeitos para a sociedade telespectadora no firmamento de uma cultura
patriarcal, competitiva e de extrema desigualdade para as mulheres.
Ainda, oportuno salientar que campanhas desta natureza há um reforço
da beleza padrão, firmam-se os mais variados estereótipos de gênero, gerando
ao final os mais variados transtornos psicológicos que podem comprometê-las
não apenas na infância, mas também na idade adulta.
Neste sentido, função social da empresa, transparência e comunicação
ética devem se impor sobre a comunicação mercadológica, discriminatória e
desrespeitosa, na busca dogmática pela reconstrução de conceitos que operam
como bússolas para a compreensão do ser criança em todo o seu
desenvolvimento, considerando a infância como ambiência privilegiada do
começo da vida, desenvolvimento e início da Humanidade e, assim, campanhas
desta natureza devem ser inaceitáveis para a exibição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível fazer diferente e o próprio Marco Legal da Primeira Infância em


sua articulação dogmática oferece uma rede conjugada de esforços para a
alteração deste estado de coisas, ao centrar como temas nucleares o direito ao
brincar e o papel da comunicação ética para o desenvolvimento infantil. O
consumo deve ser visto como um ato político e de solidariedade, pressupondo
ser ensinado em seu caráter transdisciplinar e com respeito à diversidade,
combatendo-se fortemente a comunicação mercadológica persuasiva e abusiva
a partir da vulnerabilidade infantil.
1047

Finalmente, a comunicação imbuída de sua principal missão de informar


para a ética e aproximação ganha dimensões diferenciadas no Marco Legal da
Primeira Infância, pois lhe cabe o papel precípuo de transmitir conteúdos
relativos àqueles que nominamos no início do presente artigo de “sujeitos de
direito em grau superlativo”. Erigida à categoria de Direito Humano Fundamental,
o papel da Comunicação na novel legislação é singular e plural, único e dotado
de inúmeras possibilidades para trazer informações consistentes e formativas
para a sociedade brasileira, em especial, no universo do mundo do consumo.
Assim, a comunicação ética se impõe sobre a comunicação pressionadora e
mercadológica.
Finalmente, resta dizer que o consumo deve ser visto como um ato político
e de solidariedade, e pressupõe ser ensinado em seu caráter transdisciplinar.
Não é apenas problema da família, mas sim dos atores sociais conjugados nos
termos do art. 227 da Carta Magna de 1988 e o querer do Constituinte se fez em
forma de princípio da cooperação impondo à família, sociedade e Estado os
deveres em relação ao público infantojuvenil.

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1050

A EMANCIPAÇÃO E O DIREITO DO JOVEM A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NA


REALIDADE BRASILEIRA
THE EMANCIPATION AND LAW OF YOUNG TO POLITICS PARTICIPATION
IN BRAZILIAN REALITY

Maria Cecília Chiocheta Vinalski


Orientador(a): Francisco Cardozo Oliveira

Resumo: A pesquisa faz análise da relação entre emancipação, educação e


direito dos jovens a participação política. Inicia-se a análise colocando em
perspectiva a relação entre educação e emancipação no contexto de formação
dos jovens para a vida social. Na sequência, a análise trata do contexto social
de participação política do jovem, que leva em conta a construção da
subjetividade, o ímpeto contestatório e insurgente que marca a trajetória da
juventude, principalmente no contexto histórico do Século XX no Ocidente e na
realidade brasileira atual. A análise também se debruça sobre a capacidade
inventiva e criativa do jovem e o quanto ela contribui para a inclusão social e
política. No final a análise trata do modo como pode ser assegurado efetividade
ao princípio de emancipação e autonomia que integra o Estatuto da Juventude,
considerada a realidade social e econômica brasileira. Adota-se uma
metodologia dedutiva, com apoio em pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras chaves: Emancipação. Educação. Juventude.

Abstract: The search analysis the correlation between emancipation, education


and the law of young to politics participation. The first analysis put in perspective
the relationship between education and emancipacion in the context of
development for young social life. Following an analysis by social context of
young politicial participation, that considering the construction of subjectivity,
impetus contestative and insurgent what brand the youth trajectory, mainly in
the historic context of XX Century on Western and actual brazilian reality. The
analysis also dwell on about the resourcefulness, creativity and how it plays a
role for social and political inclusion. At last part the analysis is about how can
ensured the principle efect of emancipation and autonomy in the Young Statute,
considered the social reality and brazilian economy. The methodologies used
are deductive with research documental and bibliography.
Key word: Emancipation. Education. Youth.

INTRODUÇÃO

Em 05 de agosto de 2013 foi sancionado o Estatuto da Juventude Lei nº


12.852 que em no artigo 2º promove como princípio a emancipação social e
política e no artigo 4º assegura a participação social e política do jovem, de modo
que, merece análise o alcance da proteção jurídica dada ao jovem em face dessa
regra, e quais são os reflexos desse novo paradigma na realidade social e
política brasileira.
Inicia-se a análise destacando a força participativa do jovem em um
cenário global, o que torna necessário traçar o modo como a educação é capaz
de propiciar emancipação, e de que maneira a juventude pode romper barreiras
no contexto de inércia de mudanças sociais; trata-se de verificar o modo como
1051

ocorre a superação pelo jovem da imaturidade, ignorância e da submissão


familiar;
Não deve ser negligenciado o papel primordial da educação para a
construção da emancipação no jovem.
Também é destacado o contexto social de formação do jovem para a
participação política dando-se ênfase a duas questões cruciais para a juventude
que é, de um lado, a atitude contestatória e, de outro, o compromisso com a
inovação e a criatividade.
A análise caminha na direção de verificar o alcance da efetividade do
princípio da emancipação, nos moldes do que consta do Estatuto da Juventude,
considerada a realidade social e política brasileira.
Em torno dos eixos de análise, fixa-se o seguinte problema: Qual o
encalce da efetividade do direito a participação política do jovem na realidade
brasileira, considerado a normatividade do princípio da emancipação regulado
no Estatuto da Juventude?
A partir do problema restam fixados os objetivos de análise da relação
entre emancipação e educação; do contexto social em que se deve efetivar a
participação política; e do exame da normatividade do princípio da emancipação,
correlacionado ao direito de participação política, no Estatuto da Juventude.
Adota-se uma metodologia dedutiva, com apoio em fontes bibliográficas
e documentais.

DESENVOLVIMENTO

Em um primeiro momento será abordado o conceito de emancipação,


afastando-se do ideal jurídico que a semântica da palavra carrega e
aproximando-se mais da perspectiva social e política.
A presente pesquisa fará uma análise do conceito de emancipação a partir
do pensamento de Theodor W. Adorno em busca das premissas para a produção
de uma consciência autônoma voltada para o exercício efetivo da democracia;
sobre essa questão diz ele,

De um certo modo, emancipação significa o mesmo que


conscientização, racionalidade. Mas a realidade sempre é
simultaneamente uma comprovação da realidade, e esta envolve
continuamente um movimento de adaptação. 1

A palavra emancipação passou por diversas ressignificações durante a


história e. nesse resulta interessa o estudo de Reinhart Koselleck a respeito da
importância da ideia de emancipação na construção do direito na modernidade;
entretanto, a ideia de emancipação nunca perdeu a relação com o conceito de
liberdade, seja da condição de servidão, do núcleo familiar, do aspecto jurídico
ou a busca da igualdade de direitos; assim, todo movimento emancipatório tem
uma reivindicação do reconhecimento de ausência de formas de tutela.
A grande questão levantada por Theodor Adorno, e que se pretende
analisar, é a maneira pela qual a educação permite que o jovem atinja a
emancipação de modo a colocar-se perante a sociedade, conduzir-se no mundo
e transpor a formas de alienação; sobre essa questão T.W. Adorno afirma o
seguinte:

1 Educação e Emancipação. São Paulo. Editora Paz e Terra, 2015. p. 142.


1052

A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de


adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo.
Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo
nada além de well adjusteã people, pessoas bem ajustadas, em
conseqüência do que a situação existente se impõe precisamente no
que tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito de
educação para a consciência e para a racionalidade uma ambigüidade.
Talvez não seja possível superá-la no existente, mas certamente não
podemos nos desviar dela.2

A educação tem justamente esse papel de esclarecimento, entender o


mundo livre das objeções e da perspectiva do outro, ao passo que os tutores
devem sempre instigar os seus tutelados a pensar criticamente, desvinculado do
seu ponto de vista, para que não haja apenas a reprodução em massa do
conhecimento.
Em um segundo momento, mediante uma perspectiva social, busca-se
contextualizar o modo como acontece a formação política do jovem, seja pelo
viés contestatório, pela representação em agremiações estudantis ou pela
pesquisa científica e o conhecimento no âmbito acadêmico; merece destaque a
iniciativa, a criatividade e o papel dos jovens na indústria musical, em especial
no punk e no rock autêntico; no campo da indústria cultural, o papel do jovem
serviu para construir o pensamento contestatório, ao mesmo tempo em que
ampliou formas de participação criativa nas artes e nos esportes.
Essa parte da pesquisa contempla os marcos históricos e sociais mais
importantes que demonstram a força da juventude e como a criatividade e o
ímpeto fazem com que os jovens lutem por aquilo que acreditam transformando
o meio social e as formas de vida. Um grande exemplo nesse sentido é o de
Greta Thunberg ativista de 16 anos que se tornou uma das principais vozes
combatente do aquecimento global.
Em torno do papel político e social da juventude, convém assinalar que a
ONU (Organização das Nações Unidas) possui inclusive o Comitê dos Direitos
da Criança em que por intermédio dele, crianças e adolescentes podem formular
queixas sobre os diversos assuntos, o que resgata e amplifica os espaços de
participação.
A manifestação política então não somente se mostra contestadora em
face das necessidades de mudança, mas também reclama uma posição
participativa do jovem para a construção e cuidados para com a sociedade
futura.
No terceiro momento, o trabalho examinará a efetividade e o alcance do
princípio de emancipação, à luz do que consta do Estatuto da Juventude. Em
torno dessa questão podem se desdobrar três aspectos: o da construção da
subjetividade dos jovens, o da força política contestatória dos jovens e o da
capacidade de criatividade e inovação, este último com reflexos na capacidade
de inserção no trabalho produtivo e na cultura digital. Sobre esse aspecto resulta
interessante o que afirma Francisco Cardozo Oliveira tratando da normatividade
do Estatuto da Juventude,

2 Educação e Emancipação. São Paulo. Editora Paz e Terra, 2015. p. 142.


1053

Pode-se afirmar que a premissa de uma normatividade material do


princípio de promoção da autonomia e da emancipação, no Estatuto
da Juventude, permite alcançar o sentido da necessidade de articular
o direito à educação, ao trabalho e à participação social no interesse
da construção de uma subjetividade que permita aos jovens
flexibilidade capaz de operar a desfronteirização na direção do outro,
do inesperado e do contingente. 3

Trata-se, portanto, de averiguar o modo como o princípio da emancipação


confere autonomia aos jovens, considerados os desdobramentos sociais na
realidade brasileira, a ponto de permitir-lhes o exercício pleno do direito à
participação política e o que disso decorre em termos de afirmação da cidadania
e de vida digna.

CONCLUSÃO

A titulo de conclusão provisória, pode-se afirmar que a educação constitui


ferramenta indispensável para a construção da emancipação do jovem; assim, a
efetividade do princípio da emancipação, nos moldes do que consta do Estatuto
da Juventude, comprometido com o direito a participação política, demanda um
compromisso de toda a sociedade com a educação da juventude, que não deve
estar limitada a transmissão de informações, mas com uma concepção de
formação da pessoa para a vida e para a participação social produtiva.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo


Maar. São Paulo. Editora Paz e Terra, 2015.

BRACHT, Valter; DE ALMEIDA, Felipe Q. Emancipação e diferença na


educação, uma leitura com Bauman. Campinas. Editora autores associados,
2006.

CASTRO, Mary G,; ABRAMOVAY, Miriam. Quebrando Mitos: juventude,


participação e políticas. Perfil, percepções e recomendações dos
participantes da 1ª Conferência Nacional de Políticas Públicas de
Juventude. Brasília. Editora RITLA, 2009.

KOSELLECK, Reinhart. Historia de Conceptos, estúdios sobre semántica y


pragmática del lenguaje político y social. Editorial Trotta. 2012.

LÉPORE, Paulo E.; RAMIDOFF, Mario L.; ROSSATO, Luciano A. Estatuto da


juventude comentado lei nº 12.852/13. São Paulo. Editora Saraiva, 2014.

OLIVEIRA, Francisco C.; VERONESE, Josiane R. P.; DE OLIVEIRA, Olga


Maria B. A. Direitos da criança e do adolescente e direitos da juventude:
olhar da fraternidade. Curitiba. Editora Prismas, 2017.

3 A normatividade material do princípio de promoção da autonomia e da emancipação no estatuto


da juventude na perspectiva de construção da subjetividade dos jovens e da presença do outro,
in Direitos da criança e do adolescente e direitos da juventude – o olhar da fraternidade.
Curitiba, Editora Primas, 2017, p. 223-266.
1054

CASTRO, Mary G,; ABRAMOVAY, Miriam. Quebrando Mitos – Juventude,


Participação e Políticas
1055

A INTERNAÇÃO E A EFICÁCIA DO ESTATUTO DO IDOSO E DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
THE INTERNMENT AND EFFECTIVENESS OF THE ELDERLY STATUTE
AND THE 1988 FEDERAL CONSTITUTION

Arthur Gabriel Marcon Vasques


Pedro José Marcon Vasques
Orientador(a): Vilma Maria Inocêncio Carli

Resumo: O presente estudo objetiva evidenciar se a Constituição Federal e o


Estatuto do Idoso estão sendo totalmente respeitados no trato da população
idosa brasileira, precipuamente acerca da internação, definindo o papel
constitucional e normativo frente à proteção dos direitos da população idosa. A
justificativa da pesquisa se dá pela necessidade de discutir a efetividade do
volumoso arsenal normativo versando sobre a proteção da população idosa.
Para a construção da pesquisa, será utilizado o método de abordagem
hipotético-dedutivo, com a finalidade de falsear a ideia de que essa população
não mereceria tratamento diferenciado, propondo-se, em contrapartida, a
valorização de ações afirmativas. Conclui-se, portanto, pelo apontamento de
violação dos direitos da população idosa, e pela necessidade de se construir
alternativas para uma maior efetividade normativa quanto a sua aplicação, e
outras medidas da família, e de toda a sociedade, para atuarem como
promoventes de condições de igualdade para essa população vulnerável.
Palavras-chave: Estatuto do Idoso. Direitos Fundamentais. Internação.

Abstract: The present study aims to show whether the Federal Constitution and
the Elderly Statute are being fully respected in the treatment of the brazilian
elderly population, especially about internment, defining the constitutional and
normative function in the protection of the rights of the elderly population. The
justification of the research is the need to discuss the effectiveness of the large
normative arsenal dealing with the protection of the elderly population. For the
construction of the research, the hypothetical-deductive approach method will be
used, with the purpose of falsifying the idea that this population would not deserve
differentiated treatment, proposing, on the other hand, the valorization of
affirmative actions. It is concluded, therefore, by the violation of the rights of the
elderly population, and the need to build alternatives for a greater normative
effectiveness regarding its application, and other measures of the family, and of
the whole society, to act as promoters of equal conditions for this vulnerable
population.
Keywords: Elderly Statute. Fundamental rights. Internment.

INTRODUÇÃO

A população idosa, reconhecidamente, faz jus aos direitos fundamentais


inerentes à pessoa humana, além do mais, por possuir certa vulnerabilidade, a
Constituição Federal atribuiu a todos os entes sociais o dever de zelar pelo
cumprimento de suas garantias fundamentais.
Assim, a família, a sociedade e o Estado são solidariamente responsáveis
por promover condições hábeis para a vida digna do idoso, incluindo-se, assim,
os cuidados médicos e hospitalares que, porventura, venham a receber.
1056

Construir-se-á um histórico normativo das disposições atinentes à pessoa


idosa, desde a consolidação temática na Constituição Federal de 1988, que, em
sua analiticidade, trouxe previsões direcionadas à efetivação dos direitos
humanos da população idosa, até as produções legislativas, pós 1988, em
relação à proteção da pessoa idosa, ressaltando a importância do Estatuto do
Idoso como aparatos normativos que visam à efetivação dos direitos
fundamentais dessa população.
Todo esse conteúdo teórico se desaguará na prática no que diz respeito
à internação da pessoa idosa e a preservação de sua dignidade humana, já que,
por possuírem peculiaridades próprias, a atuação estatal no setor médico
também deve ser equivalentemente diferenciado.

DESENVOLVIMENTO

A Constituição Federal, por ser o instrumento normativo e principiológico


máximo de um Estado Democrático de Direito, possui alta carga valorativa e
simbólica, já que, historicamente, o texto de norma elencado a nível
constitucional é reconhecidamente relevante à sociedade e ao próprio Estado.
Sobre o tema muito bem leciona CANOTILHO (1997, p. 347):

A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na


ordem jurídica positiva dos direitos considerados 'naturais' e
'inalienáveis' do indivíduo. Não basta uma qualquer positivação. É
necessário assinalar-lhes a dimensão de direito fundamental colocado
no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais. Sem
esta positivação jurídica, 'os direitos do homem são esperanças,
aspirações, ideais, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política',
mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e
princípios) de direito constitucional.

Nesse entendimento, o processo de constitucionalização submete todas


as áreas do Direito ao crivo da Constituição. Adentrando na área cível, tal medida
implica em, inicialmente, conferir validade às normas e ao seu processo de
interpretação, entretanto, apresenta impacto também no processo de produção
de leis, limitando o processo legislativo preventivamente, ou repreensivamente,
por meio do controle de constitucionalidade.
Assim, a Constituição Federal, promulgada em 1988, é reflexo do
processo de redemocratização da sociedade e Estado brasileiro, sendo um
pacto social fundado na plena asseguração das garantias fundamentais.
Ademais, quanto à organização estatal, fora implementado um sistema que
fosse capaz de superar as características centralizadoras e que se propusesse
a reorganizar as políticas sociais.
Desse modo, FALEIRO (2007) ainda destaca que:

Os direitos da pessoa idosa estão presentes nos capítulos da


assistência, da família, do trabalho e da previdência, mas também
aparecem tanto na área dos direitos decorrentes da solidariedade ou
reciprocidade, como de cobertura de necessidades (não contributivos)
e em decorrência da contribuição e do trabalho. Vamos detalhar essas
dimensões presentes na Constituição de 1988 com destaque para:
envelhecimento e necessidades, defesa da dignidade, proteção social
e protagonismo.
1057

Um detalhe interessante, e que carrega muito significado consigo, é que


no decorrer de todo o texto constitucional, há três disposições expressas e
específicas no tocante à pessoa idosa, se limitando a tratar sobre a assistência
social, proteção e assistencialismo também da entidade familiar e da sociedade.
Por guardar relevância a este trabalho, evidenciará o capítulo VII, que vem
tratar sobre a família, crianças, adolescentes e os idosos — e estatui em seu
artigo 226 que a família é considerada base da sociedade e que será
especialmente protegida pelo Estado, sendo que, em seu parágrafo 8º, estatui
que essa proteção atingirá todos os membros da família, e que o Estado se
incumbirá de criar mecanismos que reprimam a violências nas relações
familiares (BRASIL, CRFB, 1988).
Nesse ponto, cabe ressaltar que o principal dispositivo constitucional que
trata sobre a temática é o artigo 230, aduzindo que “a família, a sociedade e o
Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e
garantindo-lhes o direito à vida” (BRASIL, CRFB, 1988). Restando claro que a
atuação afirmativa não depende tão somente do Estado, sendo obrigação
também da família e da sociedade o amparo devido aos idosos, e a salvaguarda
de seus direitos e garantias fundamentais.
Ademais, na continuação do referido artigo há uma importante ação
estatal para individualização desse público e sua valorização, qual seja, a
diferenciação no atendimento dos programas de amparo aos idosos, que serão,
segundo o texto constitucional, executados preferencialmente em seus lares.
Por conseguinte, cabe a este trabalho o esforço quanto à explicação do
por que ser necessário essa diferenciação de tratamento em relação à pessoa
idosa. Iniciando, é possível construir a defesa baseada no fato de esse
tratamento carregar uma grande carga axiológica que possui suas origens na
filosofia do Direito, como muito bem pontua BONAVIDES (2003, p. 215):

Essa igualdade procura dar a cada um o que se lhe deve, segundo o


seu mérito, suum cuique tribuere, como constava da máxima romana.
Canoniza, pois, na aplicação institucional o critério diferenciador,
fundado sobre aptidões naturais, capacidade intelectual, talento,
caráter, propriedade. Era a consagração do conceito aristotélico da
justiça distributiva, base de uma igualdade discriminadora, que
importava tratar os iguais de modo igual e os desiguais desigualmente.

Assim, a Carta Magna vem limitar toda forma de discriminação, incluindo-


se a por idade, e atribui solidariamente ao Estado, à família, à sociedade o dever
de prestar o amparo ao idoso, assegurando sua plena atuação no corpo social,
defendendo seus direitos e garantias fundamentais. Mesmo que a ideia de
solidariedade na responsabilidade seja um raciocínio possível nessa
interpretação constitucional, a doutrina também se manifesta com argumentos
plausíveis de que a responsabilidade da família é principal, em relação à
obrigação do Estado.
Mas não apenas a Constituição Federal possui esse papel de salvaguarda
dos direitos dos idosos, isso porque a Lei nº 10.741 — Estatuto do Idoso —
mostra-se um importante instrumento para regular os direitos assegurados às
pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, como preceitua a
própria legislação. Entretanto após uma década e meia de sua vigência, cabe
1058

uma análise aprofundada sobre sua atuação e real efetividade frente ao que se
propôs combater.
O próprio artigo 2º da referida lei apresenta a importância que a temática
apresenta, in verbis:

Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à


pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta
Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e
mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em
condições de liberdade e dignidade.

Observa-se, portanto, que a intenção normativa foi proteger essa


população com uma legislação específica e unificada que versasse sobre os
pontos pertinentes na luta por sua valorização e respeito.
Nesse sentido bem pontua CAMARANO (2013, p. 9):

A essência do estatuto está nas normas gerais que dispõem sobre a


“proteção integral” aos idosos. Afirma que estes gozam de todos os
direitos inerentes à pessoa humana (Artigo 2o) e que o envelhecimento
é um direito personalíssimo e a sua proteção, um direito social (Artigo
8o). Os principais direitos estabelecidos são: direito à vida, à proteção,
à saúde, ao trabalho, à previdência social, à assistência social, à
educação, à cultura, ao lazer, à moradia e ao voto. Apesar de o
Estatuto considerar que os seus beneficiários são pessoas que vivem
a última fase da vida, o direito a uma morte digna não está incluído nos
direitos assegurados por ele.

A ideia é que, onde quer que se manifeste, a vulnerabilidade humana


deverá ser tutelada com prioridade, conforme leciona Moraes (2003, p. 116) que:

De modo que terão precedência os direitos e as prerrogativas de


determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra,
frágeis e que estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da
lei. Nestes casos estão as crianças, os adolescentes, os idosos, os
portadores de deficiências físicas e mentais, os não proprietários, os
consumidores, os contratantes em situação de inferioridade, as vítimas
de acidentes anônimos e de atentados a direitos da personalidade, os
membros da família, os membros de minorias, dentre outros.

E, como já discutido, é possível constatar que essa necessidade de contar


com ações afirmativas por parte do Estado é uma preocupação da Constituição
de 1988, como se observa em seu artigo 230, ao preconizar que “a família, a
sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando
sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e
garantindo-lhes o direito à vida” (CRFB, 1988).
Com isso, embora exista um volumoso arsenal normativo versando sobre
a proteção da população idosa, é necessário que se discuta a efetividade desses
instrumentos, para que por meio desse paralelo possa constatar se tais esforços
estão surtindo o resultado esperado, precipuamente nos casos de internação,
direito assegurado no Artigo 15, parágrafo 1º, inciso IV do Estatuto do Idoso 1.

1Assim está redigido o trecho normativo: “§ 1º A prevenção e a manutenção da saúde do idoso


serão efetivadas por meio de:
1059

E assim chega-se ao assunto principal desse trabalho, fazendo-se


pertinente uma análise das condições naturais da pessoa humana em idade
avançada, suas particularidades e necessidades especiais.
Seguindo esse parâmetro de pensamento, ganha destaque na discussão
a questão fisiológica e médica dessa população. Isso porque, como ciclo inerente
da vida humana, com o avançar da idade, o corpo necessita cada vez mais de
acompanhamento e de tratamento para seus déficits e perdas naturais.
Tratando de números, é possível constatar a necessidade da população
em recorrer ao atendimento público, por meio do Sistema Único de Saúde - SUS,
para sanar suas necessidades médicas.
Nos dizeres de FALEIRO (2007, p. 51):

No domínio da saúde, constata-se que a presença do Sistema Único


de Saúde (SUS) nos atendimentos aos idosos é muito mais
significativa para os mais pobres, pois 90% dos 30% mais pobres usam
o SUS. Na pesquisa Sesc/Fundação Perseu Abrarno (2007), 68% dos
idosos pesquisados declaram utilizar o SUS, e 24% usam planos
particulares.

Como intróito, imperioso destacar a necessidade de se evocar a


compreensão de respeito à pessoa humana, e, moralmente, deve-se maximizar
a cautela com aqueles que já possuem em sua trajetória terrena vasta
experiência.
Assim, para LENARDT (2007, p. 738), “a dignidade é valor próprio do ser
humano na sua irradiação social, enquanto sujeito moral, isto é, autônomo e
responsável.” Por isso, posturas condizentes com a dignidade humana incentiva
também atitudes éticas em práticas que dizem respeito ao cuidado da pessoa
idosa.
Nesse sentido, vale destacar que a construção normativa de asseguração
dos direitos humanos é antiga, e que a dignidade é a “pedra-base” de
convenções internacionais que tratam sobre garantias individuais, e assim não
foi diferente na Constituição Federal de 1988.
Na Carta Magna, inclusive, há pontos expressos já tratados
anteriormente nesse trabalho que elucidam sobre o dever da família, sociedade
e Estado de amparar as pessoas idosas, para sejam garantidas sua participação
efetiva na comunidade, sua dignidade e seu bem-estar.
E parte dessa garantia se assegura compreendendo as peculiaridades da
pessoa idosa, isso porque em alguns casos há a debilidade motora de quem
necessita de atendimentos médicos, e o constituinte originário, já prevendo isso,
estipulou no artigo 230, parágrafo 1º, da Constituição Federal, o atendimento
domiciliar da pessoa idosa, nos seguintes termos: “Os programas de amparo aos
idosos serão executados preferencialmente em seus lares.”
Nesse sentido, é imperioso destacar que é da família a primeira
responsabilidade pela saúde e recuperação da saúde do idoso, recebendo uma
especial atenção nos dispositivos do Estatuto do Idoso, que protegem a
integridade do idoso e os laços familiares.

IV – atendimento domiciliar, incluindo a internação, para a população que dele necessitar e esteja
impossibilitada de se locomover, inclusive para idosos abrigados e acolhidos por instituições
públicas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e eventualmente conveniadas com o Poder Público,
nos meios urbano e rural;”
1060

Como exemplos, temos o artigo 16, que assegura ao idoso internado o


direito a acompanhante, sendo dever do Estado proporcionar condições para
que possa permanecer em período integral ao lado do idoso acamado.
Ora, mesmo que seja responsabilidade imediata da família os cuidados
básicos da pessoa idosa, não se pode retirar a responsabilidade do Estado
nessa questão, já que o mesmo existe para garantir o mínimo existencial a todos
os seus integrantes — incluindo o idoso.
Portanto, o Estado se obriga por um conjunto de ações e atribuições que
se destinam à efetivação da completa proteção da saúde dessa população, isso
por incumbência do próprio Estatuto do Idoso.
Nos termos da legislação, são de competência do Estado, como ensina
FONSECA, (2003, p. 4):

A garantia de assistência à saúde, nos diversos níveis de atendimento


do Sistema Único de Saúde (Lei 8.080/90); a prevenção, a promoção,
a proteção e a recuperação da saúde, mediante programas e medidas
profiláticas; a adoção e a aplicação de normas de funcionamento às
instituições geriátricas e similares; a elaboração de normas de serviços
geriátricos hospitalares, que devem operar tanto em regime de
internação quanto ambulatorial; quando internado, o idoso tem direito
a um acompanhante.

Assim entendido, o artigo 15 do Estatuto do Idoso, estabelece que o idoso


tenha direito ao acompanhamento integral à saúde, por meio do Sistema Único
de Saúde que se rege pelos princípios da universalidade e igualdade e a atuação
estatal também direcionará a atenção especial às doenças que afetam
preferencialmente os idosos.
Nesse mesmo artigo, inclusive, é onde consta a expressa previsão do
atendimento domiciliar, in verbis:

IV – atendimento domiciliar, incluindo a internação, para a população


que dele necessitar e esteja impossibilitada de se locomover, inclusive
para idosos abrigados e acolhidos por instituições públicas,
filantrópicas ou sem fins lucrativos e eventualmente conveniadas com
o Poder Público, nos meios urbano e rural;

Resta claro, portanto, que à família cabe a responsabilidade primária no


atendimento das necessidades básicas da pessoa idosa, mas que ela se estende
ao Estado, que possui o papel de promoção dos direitos humanos de toda a
sociedade.
E para a concretização desse objetivo, a internação deve ser instrumento
de efetivação da condição de saúde da pessoa idosa, sendo respeitadas as
particularidades do paciente, garantindo a possibilidade da internação ocorrer
em ambiente doméstico.

CONCLUSÃO

Após detida análise legal e constitucional, foi possível averiguar que todos
os entes sociais são solidariamente responsáveis pela efetivação dos direitos
humanos da pessoa idosa, isso porque pode ser encarado como uma população
que encara certo grau de vulnerabilidade.
1061

Por isso, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto do Idoso buscaram


assegurar obrigações à família e sociedade, bem como ações afirmativas por
parte do Estado, tudo para fazer com que os direitos fundamentais e garantias
individuais da pessoa idosa fossem observados, em todos os seus aspectos.
É inegável que o idoso apresenta condições naturais que o diferenciam
do restante da população, isso porque, com o avançar da idade, acabam por
contrair particularidades comportamentais e fisiológicas que impactam no modo
de tratamento para com eles, seja a nível familiar, seja na atuação do Estado.
Tendo isso em mente, faz-se necessário pensar o atendimento médico
dessa população de forma diferenciada, e o Estado assim o fez. O Estatuto traz
dispositivos que garantem à pessoa idosa tratamento diferenciado das demais,
e não por privilégio, mas sim para tornar as relações mais equânimes e justas.
Uma dessas medidas foi a segurança de poder contar com acompanhante
em período integral nas internações em centros médicos públicos ou privados.
Isso acaba por garantir maior confiança no processo de tratamento, já que
garante a presença de alguém íntimo a ela enquanto o enfrenta.
A segunda medida que esse trabalho evidenciou foi a possibilidade,
também prevista no Estatuto do Idoso, de o idoso poder ser submetido a
tratamento e internação em seu ambiente doméstico, garantindo, assim, um
tratamento menos incisivo e invasivo. Deve-se considerar, ainda, que, em muitos
casos, a mobilidade da pessoa idosa já está reduzida, e o deslocamento até a
unidade médica apenas pioraria seu quadro. Ademais, na constância do
tratamento, principalmente nos que demandem menos aparatos, o próprio
ambiente do lar pode servir como um consolo, que acaba por garantir os mais
diversos direitos dessa pessoa humana.
Conclui-se, portanto, que o ciclo natural da vida humana é o
envelhecimento, e, com o avançar da idade, o corpo necessita cada vez mais de
acompanhamento. Assim, garantir um tratamento humanizado é condição de
efetivação dos direitos humanos.
E, quando necessária a internação à pessoa idosa, faz-se necessário
observar suas peculiaridades no sentido de ser prudente que alguém próxima a
ela possa acompanhá-la diuturnamente na unidade médica, enquanto durar o
procedimento, bem como que, nos casos em que seja possível, garantir a
possibilidade dessa internação acontecer no próprio ambiente doméstico,
garantindo menor interferência na vida e rotina do idoso.

REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. O princípio da igualdade como limitação à atuação do


Estado. Revista Brasileira de Direito Constitucional, v. 2, n. 1, p. 209-223, 2003.

BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988. Brasília: Diário Oficial da União, 1988.

______. Lei nº 10.741, de 1° de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do


Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 03 out. 2003.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 15 set. 2018.

CAMARANO, Ana Amélia. Estatuto do Idoso: avanços com contradições. Texto


para Discussão, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2013.
1062

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.


Coimbra: Livraria Almedina, 1997.

DA FONSECA, Maria Mesquita; GONÇALVES, Hebe Signorini. Violência


contra o idoso: suportes legais para a intervenção. Interação em Psicologia, v.
7, n. 2, 2003.

FALEIRO, Vicente de Paula. Cidadania e direitos da pessoa idosa. Ser Social,


Brasília, n. 20, p. 35-61, jan./jun. 2007. Disponível em:
<http://seer.bce.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/250/1622>. Acesso
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LENARDT, Maria Helena et al. Os idosos e os constrangimentos nos eventos


da internação cirúrgica. Texto & Contexto Enfermagem, v. 16, n. 4, p. 737-745,
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MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato


axiológico e conceito normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Constituição, direitos fundamentais e direito privados. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 105-147.
1063

A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE ADOÇÃO DE IDOSOS NO BRASIL


THE LEGAL POSSIBILITY OF ELDERLY ADOPTION IN BRAZIL

Amanda Gomes Alves


Maxilene Soares Corrêa

Resumo: Considerando o índice de envelhecimento populacional mundial e o


abandono afetivo inverso, esse trabalho teve como objetivo verificar se há
possibilidade jurídica de adotar idosos no Brasil. Realizou-se pesquisa
bibliográfica quali-quantitativa explicativa, através de doutrinas de Direito Civil,
além de artigos científicos sobre o tema e a legislação vigente, utilizando o
método de pesquisa dedutivo. O trabalho foi estruturado com pesquisa sobre os
modelos de família, o princípio da solidariedade familiar e o cuidado do idoso no
âmbito familiar, seguido pelo instituto da adoção na forma legalmente
estruturada no Brasil. Por fim, analisou-se o Projeto de Lei nº 956/2019, que
pretende inserir a adoção de idosos no ordenamento jurídico nacional, e seus
possíveis impactos no Direito Civil. Concluiu-se que adoção de idosos figura
como política pública consoante com o direito constitucional do amparo ao idoso,
além de garantir seu envelhecimento digno.
Palavras-chave: Abandono afetivo inverso. Adoção de idosos.

Abstract: Considering the world population aging index and the reverse
affectional negligence, this study aimed to verify if there is legal possibility to
adopt elderly people in Brazil. Explanatory qualitative and quantitative
bibliographic research was conducted through the doctrines of Civil Law, as well
as scientific articles on the subject and current legislation, using the deductive
research method. The study was structured with research on family models, the
principle of family solidarity and family care of the elderly, followed by the
adoption institute in the legally structured form in Brazil. Finally, it was analyzed
Bill 956/2019, which intends to include the adoption of the elderly in the national
legal system, and its possible impacts on Civil Law. It was concluded that the
adoption of the elderly is a public policy in accordance with the constitutional right
to support the elderly, in addition to ensuring their dignified aging.
Keywords: Reverse affectional negligence. Elderly adoption.

INTRODUÇÃO

O envelhecimento populacional tem gerado preocupações a nível


mundial, levando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a publicar estudos e
relatórios sobre envelhecimento saudável, a fim de estruturar uma cadeia que
melhore a qualidade de vida desse grupo etário. O envelhecimento da população
mundial está diretamente ligado ao aumento de expectativa de vida, combinado
com as quedas na taxa de natalidade. (OMS, 2015)
De acordo com dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas (IBGE), em 2019, 9,56% da população brasileira é formada por
pessoas com mais de 65 anos, e as projeções indicam que esse número chegará
a 25,49% em 2060. Em contrapartida, a população considerada jovem (até 14
anos) que hoje compõe 21,10% da população, caíra para 14,72% no mesmo
período. (BRASIL, 2019)
1064

Nesse cenário, já se discute juridicamente o abandono afetivo inverso,


que ocorre quando os descendentes deixam de amparar os seus idosos, seja de
formal material, deixando de contribuir com sua subsistência, seja de forma
imaterial, privando-lhes de afeto e do convívio familiar.
Ao verificar a situação de idosos abandonados, encontra-se a figura de
famílias substitutas que, de alguma forma, conheceram esses idosos e agora
figuram em sua vida como se familiares fossem. Essa espécie de
apadrinhamento afetivo ocorre ainda na informalidade, podendo a família
substituta colaborar de alguma forma com o idoso abandonado, algumas vezes,
inclusive, trazendo-o para residirem juntos, mas sem respaldo jurídico para lhe
garantir maiores direitos, como incluí-lo como dependente em planos de saúde,
por exemplo.
Partindo desse contexto, esse trabalho objetivou responder o seguinte
questionamento: há possibilidade jurídica de adotar idosos no Brasil? Foi
realizada pesquisa bibliográfica quali-quantitativa explicativa. Para os
levantamentos bibliográficos, foram utilizadas doutrinas de Direito Civil, além de
artigos científicos sobre o tema e a legislação vigente. O método de abordagem
utilizado para a pesquisa foi o dedutivo.
Inicialmente, foi feita pesquisa sobre os modelos de família, o princípio da
solidariedade familiar e o cuidado do idoso no âmbito familiar. Em seguida,
abordou-se o instituto da adoção na forma legalmente estruturada no Brasil. Por
fim, analisou-se o Projeto de Lei nº 956/2019, que pretende inserir a adoção de
idosos no ordenamento jurídico nacional, com seus possíveis impactos no Direito
Civil.

MODELOS DE FAMÍLIA E SOLIDARIEDADE FAMILIAR

O Dicionário Houaiss reformulou, em 2016, a definição de família como


“todo o núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente
compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária”. O
conceito desse arranjo social é dinâmico, sendo alterado através do tempo para
corresponder a realidade social vivida.
Na obra de Lôbo (2018, p. 58-59), é possível identificar algumas das
unidades de convivência familiar atualmente encontradas no Brasil, a saber:

1. homem e mulher, com vínculo de casamento, com filhos biológicos;


2. homem e mulher, com vínculo de casamento, com filhos biológicos
e filhos socioafetivos, ou somente com filhos socioafetivos;
3. homem e mulher, sem casamento, com filhos biológicos (união
estável);
4. homem e mulher, sem casamento, com filhos biológicos e
socioafetivos ou apenas socioafetivos (união estável);
5. pai ou mãe e filhos biológicos (entidade monoparental);
6. pai ou mãe e filhos biológicos e socioafetivos ou apenas
socioafetivos (entidade monoparental);
7. união de parentes e pessoas que convivem em interdependência
afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupo de
irmãos, após falecimento ou abandono dos pais, ou de avós com netos,
ou de tios com sobrinhos (entidades interparentais);
8. pessoas sem vínculos de parentesco que passam a conviver em
caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem
finalidade sexual ou econômica (entidades não parentais);
1065

9. uniões homossexuais ou homoafetivas, com ou sem filhos biológicos


ou socioafetivos;
10. uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de
um ou de ambos companheiros, com ou sem filhos;
11. comunidade afetiva formada com “filhos de criação”, segundo
generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural
ou adotiva regular;
12. relações constituídas entre padrastos e madrastas e respectivos
enteados (famílias recompostas).

Independente da estrutura, algumas características comuns configuram a


entidade familiar, entre elas a afetividade, fundamento e finalidade da entidade
familiar, a estabilidade, afastando as relações que não visem a comunhão de
vida, a convivência pública e ostensiva, que pressupõe a entidade familiar se
apresentando como tal, e o escopo de constituição de família. (LÔBO, 2018)
Considerando as diversas estruturas familiares possíveis, se faz
necessária uma visão pluralista do conceito de família, de forma a abrigar todos
os relacionamentos fundamentados no elo de afetividade. Após a dissolução do
conceito de família patriarcal, pautada na procriação e funções econômicas e
religiosas, a família, hoje, é fundada essencialmente na afetividade, distinguindo-
a do direito obrigacional, que é pautado essencialmente na vontade, mas sem
considerar qualquer espécie de sentimento. (DIAS, 2016)
Qualquer que seja sua estrutura, a família é considerada a base da
sociedade e recebe proteção especial do Estado, nos termos do artigo 226 da
Constituição Federal. Além disso, possui estrutura tanto pública quanto privada,
pois dá ao indivíduo vínculo familiar e contextualização social. (LÔBO, 2018)
O Direito de Família é regido por alguns princípios peculiares, dente eles,
o princípio da solidariedade familiar. Esse princípio basilar das relações
familiares exprime o amparo recíproco entre todos os entes de uma família, seja
esse amparo de cunho material ou moral, trazendo para o âmbito da família uma
forma especial de responsabilidade social. (STOLZE, 2017)
O princípio da solidariedade familiar possui conteúdo ético e se origina
dos vínculos afetivos, tendo como um de seus reflexos no ordenamento jurídico
a obrigação alimentar entre os entes de uma família. Tal obrigação é recíproca,
conforme dispõe o artigo 1.694 do Código Civil, tornando todos os familiares
credores e devedores de alimentos entre si. (DIAS, 2016)

O CUIDADO DO IDOSO

O artigo 230 da Constituição Federal estabelece que o amparo ao idoso


é dever da família, da sociedade e do Estado, cabendo a todos eles defender
sua dignidade e bem-estar, garantindo-lhe o direito à vida. A Carta Magna prevê,
ainda, que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice,
carência ou enfermidade, conforme seu artigo 229.
Os direitos dos idosos são tratados especificamente na Lei nº 10.741/2003
– Estatuto do Idoso, que em seu artigo 1º define que idoso é todo o indivíduo
com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Com relação à habitação, o
Estatuto prevê que o idoso tem direito à moradia digna, junto à sua família natural
ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares, quando for de seu desejo,
ou, ainda, em instituição pública ou privada.
O abandono de idosos em hospitais, casas de saúde e entidades de longa
permanência é crime punível com detenção de 6 meses a 3 anos e multa, assim
1066

como também incorre em crime quem não prover as necessidades básicas do


idoso, quando obrigado por lei ou mandado, nos termos do artigo 98 do Estatuto
do Idoso.
Mesmo sendo dever da família amparar o idoso em sua velhice, sendo o
abandono punível inclusive criminalmente, o Poder Judiciário já vem se
deparando com demandas relacionadas ao abandono afetivo inverso, que ocorre
quando os filhos abandonam seus pais na velhice.
Considera-se abandono a situação em que alguém se abstém de forma
negligente em relação a outra pessoa ou bem, acarretando responsabilização
jurídica. O abandono ao idoso pode ser material, quando a família deixar de
prover-lhe o necessário para sua subsistência, ou imaterial, quando deveres da
ordem moral deixam de ser cumpridas, como afeto, cuidado e amor, causando
graves danos psicológicos ao idoso. (BARROS; VIEGAS, 2016)
Cabe ao Estado garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde,
através de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável
e em condições de dignidade, conforme prevê ao art. 9º do Estatuto do Idoso.
No âmbito das políticas públicas, esse trabalho se presta a suscitar a
possibilidade de adoção de idosos no ordenamento jurídico nacional.

ADOÇÃO

A adoção é um processo judicial pelo qual alguém adquire o estado de


filho não biológico de outra pessoa, ficando desvinculado da sua origem
biológica. A adoção de menores de 18 anos é regida pela Lei 8.069/1990 –
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). (FIUZA, 2015)
A adoção é um ato irrevogável, que atribui ao adotado os mesmos direitos
e deveres dos filhos consanguíneos, rompendo seu vínculo com todos seus
parentes biológicos. Possuem legitimidade para adotar os maiores de 18 anos,
que sejam 16 anos mais velhos que o adotando. Por sua vez, pode ser adotada
toda criança ou adolescente que tenha, no máximo, 18 anos à data do pedido,
exceto se já estiver sob a guarda ou tutela do adotante. (FIUZA, 2015)
Sobre a idade máxima para adoção, o artigo 1.619 do Código Civil dispõe
que a adoção de maiores de 18 anos só poderá ser feita no âmbito judicial,
através de sentença constitutiva, aplicando-se, no que couber, as regras gerais
de adoção previstas no ECA.
Não há consenso doutrinário sobre a utilidade da adoção dos maiores de
18 anos, tendo em vista que um dos objetivos do instituto está ligado ao exercício
do poder familiar, que não se aplica sobre os civilmente capazes. Apesar de
parte da doutrina ver como perigosa a adoção de maiores de idade, por poder
conter interesses duvidosos de cunho patrimonial, é certo que a adoção é
fundamentalmente baseada no afeto, e impedir que um indivíduo, qualquer que
seja a sua idade, possa concretizar juridicamente o vínculo familiar já formado
fere a dignidade da pessoa humana. (DIAS, 2016)
Não tendo a Constituição Federal feito diferenciação para a adoção em
relação à idade do adotando, O Superior Tribunal de Justiça já decidiu 1 que a

1 RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO. VIOLAÇÃO DO ART. 45


DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NÃO OCORRÊNCIA. PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA DEMONSTRADA COM O ADOTANTE. MELHOR INTERESSE DO
ADOTANDO. DESNECESSIDADE DO CONSENTIMENTO DO PAI BIOLÓGICO. 1. Cinge-se a
controvérsia a definir a possibilidade de ser afastado o requisito do consentimento do pai
1067

adoção de maiores deve ser deferida quando constituir efetivo benefício para o
adotando, não cabendo refutação sem justa causa pela família biológica,
especialmente quando houver livre manifestação de vontade do adotante e do
adotando. (LÔBO, 2018)

A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE ADOÇÃO DE IDOSOS – PROJETO DE LEI


Nº 956/2019

Conforme apurado, não há atualmente no ordenamento jurídico brasileiro


lei específica para tratar da adoção de idosos, fazendo com que qualquer
tratativa sobre o tema precise ser apurada com base na hermenêutica jurídica,
através da analogia e princípios gerais do Direito.
Uma das interpretações possíveis pode ser feita através da conciliação do
artigo 37 do Estatuto do Idoso e o artigo 28 do ECA. O dispositivo do Estatuto do
Idoso aborda a possibilidade da colocação do idoso em família substituta, e o
ECA trata da possibilidade da criança e o adolescente ser colocado em família
substituta através da adoção. Assim versam os seguintes dispositivos:

Estatuto do Idoso

Art. 37. O idoso tem direito a moradia digna, no seio da família natural
ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares, quando assim
o desejar, ou, ainda, em instituição pública ou privada. (Grifo aposto)

ECA

Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda,


tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança
ou adolescente, nos termos desta Lei. (Grifo aposto)

A interpretação sistêmica dos artigos possibilitaria concluir que o idoso


poderia ser colocado em moradia substituta nos mesmos termos da criança e do
adolescente, através da guarda ou adoção.
Outro dispositivo de interpretação favorável à adoção do idoso é o artigo
40 do ECA, que trata da adoção de maiores de 18 anos, a saber:

Art. 40. O adotando deve contar com, no máximo, dezoito anos à data
do pedido, salvo se já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes.
(Grifo aposto)

biológico em caso de adoção de filho maior por adotante com quem já firmada a paternidade
socioafetiva. 2. O ECA deve ser interpretado sob o prisma do melhor interesse do adotando,
destinatário e maior interessado da proteção legal. 3. A realidade dos autos, insindicável nesta
instância especial, explicita que o pai biológico está afastado do filho por mais de 12 (doze) anos,
o que permitiu o estreitamento de laços com o pai socioafetivo, que o criou desde tenra idade. 4.
O direito discutido envolve a defesa de interesse individual e disponível de pessoa maior e
plenamente capaz, que não depende do consentimento dos pais ou do representante legal para
exercer sua autonomia de vontade. 5. O ordenamento jurídico pátrio autoriza a adoção de
maiores pela via judicial quando constituir efetivo benefício para o adotando (art. 1.625 do Código
Civil). 6. Estabelecida uma relação jurídica paterno-filial (vínculo afetivo), a adoção de pessoa
maior não pode ser refutada sem justa causa pelo pai biológico, em especial quando existente
manifestação livre de vontade de quem pretende adotar e de quem pode ser adotado. 7. Recurso
especial não provido. (REsp 1444747/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA,
TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2015, DJe 23/03/2015)
1068

A leitura do artigo pode levar à interpretação de que o maior de 18 anos,


sem limitação expressa de idade, que esteja sob a guarda da família substituta,
poderá ser adotado.
Em contrapartida, dentre os elementos da adoção na forma prevista
atualmente na lei, o que traz restrição imediata à possibilidade da adoção de
idosos é a necessidade de o adotante ser 16 anos mais velho que o adotado,
nos termos do artigo 42, §3º do ECA:

Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos,


independentemente do estado civil.
(...)
§ 3º O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do
que o adotando.

Tal dispositivo haveria de ser afastado na adoção de idosos, pois os


adotantes, em regra, seriam indivíduos mais jovens que o adotado, figurando na
forma de filhos que estariam adotando pais, fórmula que vai de encontro à
adoção convencional.
Inclusive, tal situação entre adotante e adotado levanta mais um ponto a
ser discutido na adoção de idosos: como restaria a família biológica do idoso
adotado?
Na adoção de crianças e adolescentes, é mais corriqueiro que estes
possuam apenas ascendentes e irmãos. Já na adoção de idosos, há de se
considerar que estes normalmente já têm constituída uma prole, com filhos e
netos. Faz-se necessário averiguar como ficaria a presença do idoso adotado no
registro civil de sua prole.
Uma das premissas da adoção é que o adotado tenha o vínculo com a
família biológica rompido. No caso da adoção de idosos, seria necessário
considerar, primeiramente, que os pais biológicos do adotado possivelmente já
sejam falecidos, não tendo envolvimento com a penúria do abandono sofrido.
Desse modo, é provável que o adotado não queira remover seus pais biológicos
do registro civil, o que poderia ser solucionado através do registro socioafetivo
dos adotantes.
Já seus descendentes, se existentes, seriam as figuras diretamente
ligadas ao abandono do idoso, sendo plenamente justificável o rompimento do
vínculo entre ambos após a adoção. Entretanto, há de se averiguar que esses
descendentes, em linha reta de primeiro e segundo grau, ficariam com uma
“lacuna” em seus registros civis, ao ter removido o nome do adotado.
Apesar de ainda não haver legislação específica para adoção de idosos,
foi apresentado em 20 de fevereiro de 2019 o Projeto de Lei (PL) do Deputado
Federal Vinícius Farah (MDB-RJ), que visa alterar artigos do Estatuto do Idoso,
positivando a adoção de idosos. O PL nº 956/20192 sugere a inclusão de artigo
com o seguinte texto:

Art. 119: Fica o Poder Público obrigado a estimular a adoção de idosos


através de campanhas públicas que esclareçam a importância da
convivência familiar para o bem-estar do idoso.

2 Disponível em
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=CBB49556B5A3B1
AEDA490CDB41D5FEA4.proposicoesWebExterno1?codteor=1712832&filename=Tramitacao-
PL+956/2019
1069

Parágrafo único: A adoção do idoso obedecerá a regras referentes a


adoção de maiores de 18 anos, aplicando-se no que couber, as regras
gerais previstas no Estatuto da Criança do Adolescente.

Verifica-se que o projeto de lei, apesar de necessário e em consonância


com a proteção constitucional do idoso, ainda é vago, não abordando todos os
impactos dessa adoção no Direito Civil.

CONCLUSÃO

O envelhecimento populacional é uma realidade mundial, que demanda


do Poder Público e da sociedade articulações que visem amparar esse grupo
etário no futuro, fornecendo o necessário para que possam continuar vivendo de
forma digna.
Considerando que o abandono afetivo inverso já é discutido juridicamente
no Brasil, mister pensar em políticas públicas imediatas para remediar o idoso
que se encontra desamparado, material e imaterialmente. Nesse aspecto, uma
das possiblidades a ser debatidas é a adoção de idosos.
Apesar de não possuir previsão legal atualmente, nem nacionalmente,
tampouco no Direito Comparado, é possível valer-se da hermenêutica jurídica
para cogitar a possiblidade, usando da interpretação analógica com a adoção de
maiores de 18 anos, prevista no Código Civil.
Tal cenário pode mudar, tendo em vista o projeto de lei nº 956/2019, que
trata sobre a adoção de idosos. Assim, conclui-se por necessária a discussão no
âmbito jurídico e acadêmico, a fim de avaliar os desdobramentos do instituto no
direito civil, patrimonial, previdenciário e de sucessões, garantindo a criação de
um regime jurídico sui generis, que se alimente de alguns elementos da adoção
tal qual está instituída, mas que considere também as particularidades típicas do
idoso em situação de abandono. Tal inovação é crucial, uma vez que nosso
ordenamento jurídico, na forma como está estruturado, não possui dispositivos
legais suficientes para viabilizar juridicamente a adoção de idosos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E


ESTATÍSTICAS. Projeção da população do Brasil e das Unidades da
Federação. 2019. Disponível em:
<https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/>. Acesso em: 25 set. 2019.

BARROS, M. F.; VIEGAS, C. M. A. R. Abandono afetivo inverso: o abandono


do idoso e a violação do dever de cuidado por parte da prole. Sistema
Eletrônico de Editoração de Periódicos Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, v. XI, n. 3, p. 168-201, 2016. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/ppgdir/article/view/66610/40474 . Acesso em: 20 set. 2019.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016. 1275 p. E-book baseado na 11ª ed. impressa.

FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo. 18. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015. 1373 p.
1070

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss. Disponível em:


<https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#0>. Acesso em:
25 ago. 2019.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2018. 320 p. E-book.

OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial de


Envelhecimento e Saúde. OMS, 2015. 30 p. Disponível em:
<https://sbgg.org.br//wp-content/uploads/2015/10/OMS-ENVELHECIMENTO-
2015-port.pdf>. Acesso em: 30 set. 2019.
1071

CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÕES DE RISCO – O EFETIVO


PAPEL DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL
CHILDREN AND ADOLESCENTS IN RISK SITUATIONS – THE EFFECTIVE
ROLE OF INSTITUTIONAL HOSTING

Letícia Martins Morales

Resumo: O presente trabalho tem como escopo a análise da medida de


proteção de acolhimento institucional. Os métodos utilizados são as pesquisas
doutrinárias e jurisprudenciais dentro da problemática levantada, busca-se
inicialmente realizar uma análise dos aspectos jurídicos trazendo como
referência a base dos instrumentos conexos dos Direitos da Criança e do
Adolescente em âmbito internacional como os Tratados Internacionais de
Proteção às Crianças e aos Adolescentes que são os basilares que norteiam à
aplicabilidade das regras e parâmetros direcionados à assistência em caráter
emergencial a crianças que têm os seus direitos violados, vítimas do abandono,
da crueldade e exploração. É pontuada a importância da preservação do direito
à convivência familiar e comunitária, valorizando o princípio da excepcionalidade
do acolhimento, bem como a pauta da possibilidade de adoção de crianças
institucionalizadas.
Palavras-chaves: Acolhimento Institucional. Direitos da Criança e do
Adolescente. Assistência.

Abstract: The present work has as its scope the analysis of the institutional host
protection measure. The methods used are the doctrinal and jurisprudential
research within the problem raised, initially seeks to conduct an analysis of legal
aspects, bringing as a reference the basis of related instruments of the Rights of
Children and Adolescents in the international scope such as the International
Treaties for the Protection of Children. and to the Adolescents who are the
foundations that guide the applicability of the rules and parameters directed to
emergency assistance to children who have their rights violated, victims of
abandonment, cruelty and exploitation. The importance of preserving the right to
family and community life is emphasized, valuing the principle of exceptional
reception, as well as the possibility of adopting institutionalized children
Keywords: Institutional Reception. Child and Adolescent rights. Assistance.

INTRODUÇÃO

Os profissionais empenhados em preservar os direitos das crianças e


adolescentes, enfrentam um grande desafio, que é garantir proteção à criança
em situação de risco, e ao mesmo tempo, respeitar o seu direito à convivência
familiar a comunitária.
O acolhimento institucional legitima a proteção a esses sujeitos que
tiveram seus direitos ameaçados ou violados, seja pela família, Estado ou
sociedade. Ressaltando que essa medida consiste na determinação pela
autoridade competente do encaminhamento de crianças à entidades que
desenvolvem o programa de acolhimento em razão de abandono ou após a
constatação de que a manutenção na família ou no ambiente de origem não é
alternativa mais apropriada ao seu cuidado e à sua proteção.
1072

Com as mudanças propostas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,


a plena assistência apoiada pela rede social e protetiva possibilita a construção
do amadurecimento de uma criança que deveria estar crescendo ao lado de uma
família. E de forma concisa a garantia da superação dos impactos trazidos pelo
abandono e descaso, é dar luz ao reconhecimento do princípio fundamental da
pessoa humana.
As raízes que trazem à efetivação dos direitos da criança como os
Tratados Internacionais de Proteção às Crianças e aos Adolescentes promovem
o notório registro de que toda e qualquer criança, sem qualquer tipo de
discriminação, devam ser auxiliadas e colocadas em plenas condições de
possuir um regular desenvolvimento.
Não obstante leva-se à percepção psicológica que estimule a articulação
de órgãos e serviços que atendam aos anseios sócios assistenciais.
Humanizando a formação continuada e permanente da inclusão social das
famílias. A decisão do ente federado quanto à oferta da atenção especializada
para crianças e adolescentes em situações de risco, deverá envolver as políticas
públicas, com ênfase na rede de educação e saúde; e demais órgãos do Sistema
de Garantias de Direitos, em especial os conselhos de direitos, conselhos
tutelares e o Sistema de Justiça.
O presente artigo apresenta as dificuldades empregadas no
desenvolvimento da proteção integral instituída na Declaração dos Direitos da
Criança. Existentes os conflitos entre as três importantes categorias: provisão,
proteção e participação. Conforme estruturados na Convenção Internacional
sobre os Direitos das Crianças.

1. O CENÁRIO JURÍDICO À LUZ DA GARANTIA DOS DIREITOS DA


CRIANÇA

Os princípios estipulados pela Declaração dos Direitos da Criança


possuem como fundamentação os direitos básicos de toda criança, entre eles:
liberdade, estudo, alimentação, educação e convívio social. Estes não possuem
qualquer caráter obrigacional jurídico, não sendo, portanto, de cumprimento
obrigatório para os Estados-Membros. Porém, refletem nos instrumentos
ambientados em solo brasileiro que envolve o interesse de crianças e
adolescentes.
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança Aprovada pela
Assembleia Geral da ONU em novembro de 1989, tornou-se o instrumento legal
em âmbito internacional mais representativo dos direitos e conquistas instituídos
em favor da infância e adolescência. A proposta original para que a ONU
adotasse um instrumento em favor dos direitos da criança foi formalmente
apresentada pelo governo polonês em 1978, com o objetivo de que a Convenção
fosse adotada já em 1979, o Ano Internacional da Criança. Em razão do intento
de obter celeridade na “tramitação” do documento apresentado para que
pudesse ser adotado já no ano supramencionado, este se aproximava em muito
da Declaração dos Direitos da Criança de 1959. O exato decurso de 30 anos
entre a Declaração e a Convenção não por acaso, a data do dia 20 de novembro
foi decretada pela ONU como Dia Universal da Criança. Por fim, a Convenção
foi aberta à assinatura e ratificação em 26 de janeiro de 1990 na cidade de Nova
Iorque, EUA. Sendo composta por 54 artigos e ainda, por extenso preâmbulo, é
executada e cumprida inteiramente em solo brasileiro.
1073

O Estatuto da Criança e do Adolescente indica a colocação de crianças


e adolescentes em instituições de abrigo, de forma provisória e excepcional,
somente quando se encontram em situação de grave risco à sua integridade
física, psicológica e sexual. Nesse sentido, o abrigo é uma medida de proteção
social, funcionando como instrumento de política social ao oferecer assistência
à criança e ao adolescente que se encontram sem os meios necessários à
sobrevivência.
Os profissionais que se ocupam da rotina de cuidados diretos de crianças
e adolescentes acolhidos tendem a se constituir em um referencial de família, já
que podem ser fonte de apoio, orientação e afeto. A este respeito, observa
Santos (2000, p. 87), “O princípio que deve nortear a ação dos que trabalham
com crianças em situação de abrigo deverá ser sempre o de garantir à criança
as condições necessárias para o seu pleno desenvolvimento, tanto no presente
quanto no futuro”.
Além da escuta da família, da criança e do adolescente sobre o
afastamento proposto e seu envolvimento na decisão, é importante levantar os
recursos desta rede familiar ampliada:

É recomendável procurar a família extensa, obter informações e avaliar


a possibilidade de apoio e ajuda na solução da crise que se coloca.
Necessário ressaltar que vínculos de parentesco e de afinidade devem
ser considerados quando se avalia o afastamento da criança de sua
família de origem, pois não se deve deixar de estimular a participação
das referências familiares significativas para os envolvidos (GT
Nacional, p. 16).

Sabe-se que o acolhimento como política pública não está voltado para o
enfrentamento da pobreza, não se configura uma alternativa para esse
problema. No entanto, não é uma tarefa fácil apresentar, em nosso contexto
social, alternativas para o atendimento a crianças e adolescentes com tantos
problemas. Para isso, buscar o fortalecimento e a manutenção dos vínculos
afetivos entre os educandos e suas famílias é essencial nesse contexto.

Ao que tudo indica, as causas predominantes da institucionalização


não se alteram muito ao longo do tempo; estas continuam ligadas à
falta de condições por parte dos pais para cuidar, proteger e disciplinar
os filhos. As formas de aplicação das medidas de abrigamento e
internação, no entanto, modificaram-se significativamente [...] (RIZZINI
e RIZZINI, 2004, p. 74).

À falta de renda, e de apoio de políticas públicas eficientes impossibilitam


o mantimento de condições boas de sobrevivência. É conjunta com a baixa
escolaridade das pessoas de referência familiar. Esses fatores podem trazer
consequências atrapalhando a mobilidade social.

No interior de um quadro de extrema pobreza vivida pela família,


muitas crianças acabam indo para um abrigo, são abandonadas ou
entregues em adoção. São crianças que têm a violência social como
cenário de circulação mesmo antes do seu nascimento, período em
que as mães não tiveram acesso a serviços apropriados para o
atendimento pré e perinatal [...] (FÁVERO, 2007, p. 16).
1074

É necessário destacar que a pobreza, apesar de não justificar, não está


completamente desvinculada de outras expressões da questão social, visto que
ela colabora com o aumento da vulnerabilidade social das famílias como uma
espécie de agente potencializador de fatores de risco diversos. Desse modo,
crianças e adolescentes mais pobres acabam tendo mais chances de serem
abandonados ou sofrerem violência, sendo, assim, o principal perfil atendido
pelos abrigos.
É dever dos pais o sustento dos filhos menores de 18 (dezoito) anos, no
que tange a alimentação, vestuário, moradia, educação, entre outros. Assim, o
conjunto de tais condições possibilita o desenvolvimento sadio da criança e do
adolescente (MACIEL, 2007, p. 99).
Contudo, há genitores que negligenciam o exercício do poder familiar,
através de condutas de abandono material e imaterial, eis que não reúnem
condições para atender as necessidades básicas da criança para o seu
desenvolvimento físico e mental saudável (BERKER; RIZZINI, 2003, p. 19).
No abandono material a conduta omissiva dos genitores é visivelmente
observada quando há sinais físicos no infante de desnutrição, higiene pessoal
precária, vestuário sem limpeza e inadequado, bem como a permanência da
criança sem vigilância por extensos períodos (JESUS, 2005, p. 153)
Em suma, é preciso avaliar os prejuízos ao desenvolvimento do acolhido
que possam advir tanto da permanência prolongada quanto do rompimento
definitivo dos vínculos com a família de origem.
Atualmente um dos desafios da instituição é seguir uma das normas das
orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes
referente a equipe de profissional mínima (grau escolar). Também se torna um
desafio para o Serviço Social a reintegração das adolescentes, visto que a
realidade de cada família tem sua particularidade, e o assistente social precisa
proporcionar a promoção humana das adolescentes e de seus familiares.
Ao se analisar o modelo de políticas sociais contemporâneas, em especial
os serviços destinados a crianças e adolescentes em situação de risco social,
vislumbra-se em suas normativas a ideia de proteção social a serem garantidas
por conjunto de atores sociais, instituições, políticas setoriais, entes
governamentais, organizações não governamentais, conselhos de direitos e
tutelares, movimentos sociais, dentre outros, denominado de redes intersetoriais
e socioassistenciais ou sistema de garantia de direitos.
Dessa maneira, a rede de proteção social, que tem como foco crianças e
adolescentes, é dificultada pela precarização das políticas sob o avanço do
neoliberalismo, posto que há um desmonte da proteção social universalista e
estatal, fundada no direito social e na cidadania. A centralidade na família e no
direito à convivência familiar e comunitária não deve significar a atribuição de
novas responsabilidades às famílias, mas atendê-las em suas necessidades
para que possa continuar com seus filhos.

2. DO ACOLHIMENTO À ADOÇÃO

Na impossibilidade de permanência na família natural, a criança e o


adolescente serão colocados sob a adoção, tutela ou guarda, observadas as
regras e princípios contidos na Lei nº 8.069, 13 de julho de 1990, e na
Constituição Federal (Lei 12010/09, Art 1º, 2º).
1075

A preparação dos candidatos à adoção, é orientada pela equipe técnica


da Justiça da Infância e da Juventude, recomendando o contato com crianças e
adolescentes em situação de acolhimento institucional que estão à espera de
adoção.
O ECA concretiza o superior interesse da criança, sendo o foco da
adoção, à medida que se entende que a família é o melhor lugar para uma
criança se desenvolver.
Nesse sentido, colocar uma criança ou adolescente em uma família
substituta pela adoção, quando impossibilitada a sua permanência na família
biológica, é entregar luz, esperança, carinho e cuidado a uma pessoa que
vivenciou, ao longo de sua história, situações de negligência, abandono e
violência.
O tempo razoável à análise da situação da família, segundo as técnicas,
é de três meses para fazer as investidas necessárias e de oito meses para fechar
o convencimento, juntamente com as demais equipes psicossociais e jurídicas,
em relação ao retorno à família biológica, ao cadastramento para adoção ou ao
fortalecimento da autonomia do acolhido.
Outra justificativa para o excesso de tempo de acolhimento é a faixa etária
com que os meninos e as meninas ingressam na entidade. Quando
institucionalizados na adolescência, já estão fora do perfil aceito pelas famílias
do cadastro de adoção. Dessa forma, se não são reinseridos na família,
dificilmente serão adotados.
Nem sempre a reintegração familiar é alcançada com sucesso ou é
possível para muitos dos meninos acolhidos. Quando isso acontece, a
destituição do poder familiar é uma possibilidade que pode vir com vistas à
adoção. Nesse caso, planta-se uma sementinha sobre a chance de uma nova
família. Mas esse caminhar, que contempla o luto em relação à família biológica
e a abertura para uma família substituta, muitas vezes é permeado de sofrimento
e dor pelo distanciamento da família de origem.
A adoção deve ter o foco no adotando, visando o melhor interesse da
criança:
A adoção, como hoje é entendida, não consiste em ‘ter pena’ de uma
criança ou resolver situação de casais em conflito, ou remédio para a
esterilidade, ou, ainda, conforto para a solidão. O que se pretende com
a adoção é atender às reais necessidades da criança, dando-lhe uma
família, onde ela se sinta acolhida, protegida, segura e amada. É bom
que se reflita que existe um processo, um desafio permanente e
necessidade de constante reflexão sobre o tema. […] Para a corrente
institucionalista, a adoção é um instituto de ordem pública, de profundo
interesse do Estado, que teve origem na própria realidade social; não
foi criada pela lei e sim regulamentada pelo direito positivo, em função
da realidade existente. (GRANATO, 2012, p. 29-30).

Por outro lado, somente podem ser adotadas crianças e adolescentes que
não tenham mais vínculo jurídico com seus pais biológicos, ou seja, somente
serão aptos para adoção após os pais terem sido destituídos do poder familiar,
mediante processo judicial, com direito ao contraditório e à ampla defesa.
Percebe-se, portanto, o rigor e cuidado que o legislador preconizou no instituto
da adoção, priorizando-se a convivência familiar e, em último caso, permitindo-
se a adoção segura e preparada por meio de um processo judicial, impedindo-
se, assim, a adoção intuito personae ou direta.
1076

Nesse contexto, a Lei nº 12.010/2009 previu em seu art. 13, parágrafo §1º,
que as gestantes ou mãe que manifestassem interesse em entregar seus filhos
para adoção, fossem encaminhadas, sem constrangimento, à vara da infância e
da juventude: As gestantes que manifestam interesse em entregar seus filhos à
adoção devem receber a devida orientação psicológica e também jurídica, de
modo que a criança tenha identificada sua paternidade (nos moldes do previsto
na Lei nº 8.560/92) e lhe sejam asseguradas condições de permanência junto à
família de origem ou, se isto por qualquer razão não for possível, seja então
encaminhada para adoção legal, junto a pessoas ou casais regularmente
habilitados e cadastrados. (DIGIÁCOMO, 2017, p. 23-34). Assim, o objetivo
dessa previsão era coibir práticas criminosas, como a “adoção à brasileira”, que
está prevista no art. 242 do Código Penal, e adoções ilegais, como a adoção
intuito personae.

CONCLUSÃO

Ilustra-se a necessária visão de promoção de bem estar e dignidade


humana para esses que têm diariamente seus direitos básicos violados,
pesquisas e intervenções nesta área tem relevância social e contribui para uma
conscientização da sociedade em relação a situações as quais essas crianças
foram envolvidas, principalmente questões sobre abandono familiar.
Desse modo também se destaca uma realidade da rua em contraposição
ao cotidiano de escassez e violências dos bairros periféricos e das instituições
para eles ofertadas.
A visão apresentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, apesar
de ser considerada para muitos uma verdadeira utopia, para outros é encarado
como um desafio no sentido de se aprender a nova visão apresentada pelo
Estatuto, objetivando a aplicação efetiva das normas e preceitos nele contidos.
Ao olhar para esse segmento, conclui-se que a Criança e o Adolescente
necessitam de uma proteção integral, a qual tem por finalidade lhes dar todos os
direitos e garantias para um desenvolvimento sadio e digno, para a sua perfeita
formação.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, desde que cumprido e bem
aplicado, com cuidado humanizado pode-se tornar ainda mais eficaz. Acredita-
se no efetivo cumprimento Programa de Famílias Acolhedoras, se bem
conduzido, reduz seus efeitos, possibilitando o cuidado individualizado, a
manutenção e a construção dos laços de afeto através do amor.

REFERENCIAS

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8 A/B. São Paulo: Telelacri, 2003.

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Local e Violência Urbana: Um Estudo em Macaé/RJ. Publicado em 2003.
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comentários a nova Lei da Adoção. Lei 12.010/09. 2. ed. Curitiba: Juruá,
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1077

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evolução do debate In: REIS, C.N. (Org.) O sopro do minuano:
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Alegre: EDIPUCRS, 2007.

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alunos com autismo em classes regulares. Rio de Janeiro, 124p. (Tese de
Doutorado) – Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro,2008.

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TAVARES, Patrícia Silveira. As medidas de proteção. In: MACIEL, Kátia


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Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo:
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YAZBEK, M. C. Pobreza e exclusão social: expressões da questão social no


Brasil. Temporalis. Brasília, ano 2, n. 3, p. 33-40, jan.-jul. 2001.
1078

DESAFIOS ACERCA DA OMISSÃO DA LEI NO QUE SE REFERE A


PROTEÇÃO DO DEFICIENTE VISUAL COMO CONSUMIDOR.
CHALLENGES ABOUT THE LAW OMISSION ON THE PROTECTION OF THE
VISUAL DISABLED AS A CONSUMER.

Giovani dos Reis Naves


Josemar Rodrigo Ferreira
Orientador(a): Aurea Moscatini

Resumo: Notabiliza-se que o presente trabalho tem como meta a discussão


acadêmica acerca do consumidor deficiente visual no aspecto da relação online
de consumo. Registra-se a vontade de sanar questões como definições técnicas
do consumidor bem como seu nascimento em uma possível relação de consumo.
Evidencia-se que o presente instrumento também tem como escopo um olhar
enfático na pessoa com deficiência e suas leis e seu próprio Estatuto bem como
às normas constitucionais que protegem minoria. Ressalta-se também o estudo,
o cuidado acadêmico em distinguir os institutos técnicos bem como trazer os
aspectos médicos que faz uma pessoa nascer com a supracitada deficiência.
Acentua-se pôr fim a importância de demonstrar como a deficiência visual
navega na rede mundial de computadores, caracterizando-se também como um
consumidor online seja de produtos ou serviços bem como de cultura dentre
outros elementos que encontramos na internet.
Palavras-chave: Consumidor. Deficiência. Constituição.

Abstract: It is noteworthy that the present work aims at the academic discussion
about the visually impaired consumer in the aspect of the online relation of
consumption. The willingness to heal issues such as technical definitions of the
consumer as well as their birth in a possible relation of consumption is registered.
It is evident that the present instrument also has as its scope an emphatic view
on the disabled person and his laws and his own Statute as well as the
constitutional norms that protect the minority. It is also worth noting the study, the
academic care in distinguishing technical institutes as well as bringing the
medical aspects that make a person born with the aforementioned deficiency.
Finally, it is important to demonstrate how visual impairment navigates the world-
wide web, being also characterized as an online consumer of products or services
as well as of culture among other elements that we find in the internet.
Keywords: Consumer. Deficiency. Constitution.

1. INTRODUÇÃO

A pesquisa dogmática foi o método utilizado na construção deste artigo,


aborda o consumidor com deficiência visual e a acessibilidade em ambientes
virtuais. O tema escolhido surgiu da necessidade de entender como a
constituição, como as leis, e a doutrina jurídica asseguram a participação destas
pessoas numa relação de consumo sobre a ótica de um direito indisponível.
As tecnologias assistivas são importantes ferramentas que buscam dar
mais independência a pessoa que possuem um grau de comprometimento óptico
moderado ou grave. As empresas precisam estar preparadas para absorverem
estes cidadãos em seu nicho comercial, respeitando as leis, formalizando uma
relação de consumo inclusiva.
1079

O tema consolida a inclusão social, garante a dignidade da pessoa


humana, o que torna a sociedade em geral mais justa e solidária.
Igualdade, liberdade, fraternidade, o lema da revolução francesa
desencadeou mundo afora diversos atos que visaram a proteção da pessoa, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos é um destes atos, a partir de sua
concepção, diversos países construíram sua constituição tal como o Brasil,
assim, através de seu sistema federativo, formado pela União, Estados e
Municípios foi possível disseminar por todo o território nacional, as garantias
constitucionais referentes aos indivíduos com necessidades especiais.

2. O CONSUMIDOR

O princípio da proteção ao mais fraco, em latim favor debilis é o que


melhor norteia o direito do consumidor, intervindo diretamente à seu favor
quando houverem interpretações adversas da norma.
Maria Helena Diniz (1998) em sua obra Dicionário Jurídico define
consumidor “como toda pessoa física ou jurídica destinatária final dos produtos
ou serviços. Cabe notar que o conceito precisou passar por um debate
doutrinário devido as correntes interpretativas que insurgiram da própria norma,
essas questões linearam duas teorias diversas, a teoria finalista subjetiva e a
teoria maximalista objetiva, ambas tem origem quando da interpretação do termo
destinatário final citado pelo Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 2º,
ao ponto que para MARQUES (2013, p.104) “é aquele destinatário final fático e
econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física”.
Logo, segundo esta interpretação teleológica não basta ser destinatário
fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou
residência, é necessário ser destinatário final econômico do bem, não o adquirir
para revenda, não o adquirir para uso profissional, pois o bem seria novamente
um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do
profissional que o adquiriu. Neste caso não haveria a exigida “destinação final
do produto”.
Para o Relator Des. FLAVIO ROSTIROLA (2016), 3ª Turma Cível, do
TJDFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, a teoria
Maximalista se define como:

Para a teoria maximalista, a definição de consumidor é puramente


objetiva, a aplicação do Código de Direito do Consumidor deve ser a
mais ampla possível, não importando se a pessoa física ou jurídica
busca ou não o lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço.
Portanto, o destinatário final é o destinatário fático do produto, aquele
que o retira do mercado e o utiliza. (APELAÇÃO. N. Processo:
20140110083696APC 0001992-36.2014.8.07.0001)

Destarte a tutela dos consumidores Claudia Lima Marques (2013), dita


algumas espécies de vulnerabilidade adotadas pelo tribunal, (pela doutrina) a
técnica, econômica, jurídica e informacional.
Conforme Fabricio Bolzan (2018), esclarece o autor, a doutrina e a
jurisprudência pátrias vêm reconhecendo que determinado grupo de
consumidor, em razão do alto nível de fragilidade em que se encontra no
mercado de consumo, é merecedor de maiores cuidados em relação aos demais
consumidores em geral.
1080

Isto é, se já existe uma presunção legal de que os consumidores não


profissionais são os vulneráveis da relação jurídica de consumo, foi identificada
mais recentemente uma nova categoria de pessoas que se encontram na
condição de hipervulneráveis, ou seja, aqueles cuja fragilidade se apresenta em
maior grau de relevância ou de forma agravada. O caso dos consumidores
personificados nas gestantes, nas crianças, nos idosos, nos enfermos, nos
portadores de deficiência: (BOLZAN, 2018, p.161).
Maria A. Zanardo Donado (1993, p.70) preconiza a relação de consumo
como: “A relação que o direito do consumidor estabelece entre o consumidor e
o fornecedor, conferindo ao primeiro um poder e ao segundo um vínculo
correspondente, tendo objetivo um produto ou serviço”.
Pode-se afirmar que são elementos dessa relação consumerista:
a) Elementos subjetivos: o consumidor e fornecedor;
b) Elementos objetivos: o produto ou o serviço.
Para que uma relação jurídica nasça, são necessários os elementos
subjetivos, e algum elemento objetivo supracitados. A possibilidade de não
existir algum desses requisitos inviabiliza a relação jurídica de consumo,
neutralizando-se, contudo, a legislação que o defende, o Código de Defesa do
Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor protege os direitos de todos os
consumidores, porém, não mencionava explicitamente o consumidor com
deficiência. Com a nova Lei Brasileira de Inclusão, o Código de Defesa do
Consumidor sofreu alterações que ampliam as garantias desse público. A Lei
Brasileira de Inclusão (Lei 13.146) foi sancionada em julho de 2015.
Passa a ser obrigatória a acessibilidade nos sites mantidos por empresas
com sede no Brasil e por órgãos de governo – isso significa que as informações
divulgadas no endereço devem ser acessíveis conforme as diretrizes adotadas
internacionalmente, com opções de contraste, áudios e vídeos.

3. DEFICIENTE VISUAL

A deficiência visual pode compreender pessoas cegas e com visão baixa.


Por assim dizer, deficiência visual não é sinônimo de cego nem de baixa visão.
Os termos têm suas definições e características próprias.
A cegueira é percebida como a perda total da visão, até a ausência da
percepção da luz. Ela pode incidir desde o nascimento e, nesse caso, se
classifica como congênita e ainda pode ser contraída ao longe da vida da pessoa
– sendo, dessa forma, denominada como apanhada. Conhecer a procedência
da cegueira pode ser formidável para fins educacionais, isso porque qualquer
detrito de memória visual pode ajudar o trabalho do professor na alfabetização
do estudante cego (AMIRALIAN, 1997)
Já a visão baixa é entendida como: a diversificação da capacidade
funcional da visão, que decorre de inúmeros fatores avulsos ou interligados, tais
como: baixa gravidade visual significativa, diminuição significativa do campo
visual, adulterações corticais e/ou que restringem o desempenho visual do
indivíduo (BRASIL, 2006).
Concluídos dois conceitos para pronunciar a finalidade ocular: a acuidade
visual e o campo visual. A acuidade visual é a “função (visual) que apresenta o
desfecho final que cria as formas “ (BICAS, 2002, p376). Agora, o campo visual
é à área da visão (DOMINGUES, 2010).
1081

. O Professor Antônio João Menescal Conde, salienta que para uma


pessoa ser apreciada cega deve se pautar critérios; a visão adequada do melhor
dos seus olhos é de 20/200 ou menos, ou seja, capaz de ver a 20 pés (6
METROS) o que uma pessoa de visão natural consegue ver a 200 pés (60
metros), ou se o diâmetro mais amplo do seu campo visual demanda um arco
não maior de 20°, ainda que sua acuidade visual nesse contraído campo possa
ser proeminente a 20/200, esse campo visual acanhado é denominado como
visão em túnel.
Pedagogicamente, o professor ainda salienta que se caracteriza como
cego aquele que, mesmo desfrutando de visão subnormal, precisa de instrução
em Braille (método de caligrafia por uso de pontos em elevação) e como portador
de visão subnormal aquele que lê exemplares impressos aumentados ou com o
amparo de assistentes ópticos.
Salienta-se a dificuldade de acostumar-se como consumidor online tendo
vista o número demasiado de sites fraudulentos bem como a dificuldade do
indivíduo para a adaptação, por conseguinte, o processo de padronização e êxito
como consumidor online visa a persistência e dedicação do deficiente visual.

4. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA.

Ainda sobre a proteção para com as pessoas com deficiência, segundo


Araújo (2014), a acessibilidade é tida como um direito fundamental instrumental,
por assim dizer, sem a existência da supracitada, elementos como a
acessibilidade e por consequência outros direitos são evidenciados como
irrealizáveis de serem prestados e concretizados. Já no ano de 2015 fora
promulgada em todo território brasileiro o Estatuto da Pessoa com Deficiência,
mais conhecida como Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência
Em conformidade com (SANTOS, 2016), os artigos do inédito aparato
modificam e inovam a abordagem jurídica das pessoas que contém um grau de
deficiência no país, sobre a égide dos direitos humanos.
O Estatuto da Pessoa com deficiência nos traz logo em seu artigo 2° a
declaração contemporânea de pessoa com deficiência, referindo-se a que tem
restrição de longo prazo de caráter físico, mental intelectual ou sensorial, o qual
em influência mútua com uma ou mais barreiras, pode entravar sua participação
completa e real na sociedade em igualdade de possibilidade com as demais
pessoas.
Em seu artigo 8° nos apresenta que é o Estado tem como obrigação bem
junto com toda a sociedade a família garantir à pessoa com deficiência, a ação
dos direitos como o transporte, à acessibilidade, à cultura, esporte, turismo,
lazer, dignidade, respeito, liberdade entre todos os outros.
No que diz respeito ao deficiente visual, o Estatuto da Pessoa com
Deficiência em seu inciso V do artigo 3°, a apreciação da comunicação, que é a
forma de integralizar-se cometida pelos cidadãos que impetra, entre inúmeras
opções, o Braile, o sistema que se faz aplicabilidade da comunicação através do
tato, tanto é que, inclui-se de formas tecnológicas da informação para comunicar-
se.
Decreto n° 7962 do ano de 2013 trouxe a regulamentação do comércio
eletrônico, pois o legislador entendeu que era preciso existir uma regra para tal
conduta costumeira em nossa sociedade. O deficiente visual está numa situação
1082

de hipossuficiência na relação consumerista, contudo, hoje em dia com o avanço


tecnológico o mesmo pode consumir sem medo produtos do mundo online.
Ainda sobre o supracitado Decreto, fora sua inovação tendo vista que
antes dele, não existia regulamentação acerca do comercio eletrônico, o tal
Decreto trouxe diversos deveres para facilitar a compra, contudo trazendo-se
segurança jurídica.
Registra-se alguns direitos trazidos pelo Decreto como o direito de
arrependimento pela compra, onde deve ser explicito de forma clara e objetiva e
como será realizado tal sérico, bem como todas as informações da empresa,
CNPJ, endereço físico e eletrônico e etc.

5. NAVEGAÇÃO PARA DEFICIÊNTE VISUAL

Inclusão social é alvo de estudo e prática para a Organização Mundial da


saúde desde sua criação, e isto engloba um número demasiado de projetos,
políticas e leis para acatar a necessidade de alguns grupos com precisões
especiais, tendo vista uma relação social digna.
O modelo de educação mais conhecido entre os cegos é a escrita braile,
instituída na França por Louis Braille, em meados do século XIX, e, mesmo que
poucas pessoas possuem essa informação. O Brasil Império foi um dos
precursores a patrocinar o sistema, estimulado pelo médico francês a emprego
da corte brasileira. Dr. Xavier Sigaud, amigo íntimo de Don Pedro II, e mentores
do Instituto dos Meninos Cegos, que tornar-se-ia futuramente o Instituto
Benjamin Constant, parâmetro internacional para abrangência de pessoas com
deficiência visual.
Os utilizadores com baixa visão facultam utilizar programas aumentadores
de tela, como o Magic da Freedom Scientific e do Lente Pro do Núcleo de
Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os
deficitários visuais de forma repetitiva utilizam esses programas supracitados
bem como o Jaws e o Virtual Vision, entre diversos outros programas. Os
aplicativos ademais leem em voz alta o teor de uma página na internet. Focado
apenas no texto e não em possíveis imagens. (DELPIZZO, 2005, Pg. 6).
Um estudo realizado pela Universidade Federal de Pelotas elenca alguns
discernimentos necessários para a realização perfeita da acessibilidade dos
deficientes visuais em sites, o estudo mostra que os acrescentamentos da
imagem e transformação dos efeitos de contratos na tela, pode ser adquirido por
intermédio de programas ou com navegadores a uso de exemplo o Google
Chrome que admite a possibilidade de Zoom instituindo uma imagem melhor e
de mais valor.
Ademais emancipação do uso do mouse como indicante, além disso um
uso maior do teclado que estabelece a estruturação de documentos sob
aparência de navegação. O estudo ainda mostra que os programas para leitura
de tela, ao qual permanecerá adjunto o sintetizador de voz. A alternativa para o
ingresso sonoro à informação, seja texto, arquivo em um formato combinado com
o sistema de texto. Não obtuso o acesso à informação em Braille, seja no molde
de texto impresso, ou por meio da periférica linha braile (ALVES, 2002, Pg. 89).

6. ACESSIBILIDADE
1083

Todos são iguais perante a lei, o princípio da igualdade está elencado na


Constituição Federal no caput do artigo 5º, nas palavras de Manoel Gonçalves
Ferreira Filho (Direitos Humanos Fundamentais, 2012, Pg. 8) não existe
igualdade sem inclusão social, assim não podem haver distinções entre as
pessoas oriundas de algum tipo de deficiência, a isonomia que retrata este
princípio só poderia ser quebrada mediante uma interpretação mais favorável
aos menos favorecidos.
O crescimento demográfico da população mundial incorreu em novas
necessidades, a fim de tutelar direitos fundamentais ao homem, a declaração
universal dos direitos humanos promulgada em Paris no dia 10 de dezembro de
1948, elencou ao mundo direitos básicos e indisponíveis inerentes a dignidade
humana, o marco histórico deu origem ao Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de
2009, que resguarda direitos das pessoas com tipos de deficiência, e o Brasil,
aderiu a legislação internacional bem como tendo assinado e homologado, após
a aprovação legislativa passou a vigorar como lei constitucional. o referido
tratado assim descreve em seu Artigo 9:

§1. A fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma


independente e participar plenamente de todos os aspectos da vida, os
Estados Partes tomarão as medidas apropriadas para assegurar às
pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com
as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e
comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e
comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ao
público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. Essas
medidas, que incluirão a identificação e a eliminação de obstáculos e
barreiras à acessibilidade, serão aplicadas, entre outros.

Em que tese a deficiência visual, pertinente se faz a transcrição do citado


no artigo 9º, §1º, alínea “a” e o §2º alíneas “g” e “h”:

a) Edifícios, rodovias, meios de transporte e outras instalações internas


e externas, inclusive escolas, residências, instalações médicas e local
de trabalho;
2. Os Estados Partes também tomarão medidas apropriadas para:
g) Promover o acesso de pessoas com deficiência a novos sistemas e
tecnologias da informação e comunicação, inclusive à Internet;
h) Promover, desde a fase inicial, a concepção, o desenvolvimento, a
produção e a disseminação de sistemas e tecnologias de informação e
comunicação, a fim de que esses sistemas e tecnologias se tornem
acessíveis a custo mínimo.

A encerrar o estudo do serviço abrangido pelo Código de Defesa do


Consumidor, anote-se que os serviços oferecidos pela internet também podem
(e devem) ser objeto das relações de consumo. Aliás, há proposta de alteração
da Lei 8.078/1990, em curso no Congresso Nacional, para inclusão de
dispositivos expressos nesse sentido, o que vem em boa hora, para que não
resista qualquer dúvida a respeito da questão (PLS 281/2012). O texto inicial do
Projeto pretende, dentre outras alterações, introduzir os artigos, 44-A a 44-E ao
Código de Defesa do Consumido, incluindo a Seção VII ao Capítulo V (“Das
Práticas Comerciais”), para tratar do comércio eletrônico. Estabelece a primeira
norma que “Esta seção dispõe sobre normas gerais de proteção do consumidor
no comércio eletrônico, visando a fortalecer a sua confiança e assegurar tutela
efetiva, com a diminuição da assimetria de informações, a preservação da
1084

segurança nas transações, a proteção da autodeterminação e da privacidade


dos dados pessoais. Parágrafo único.
As normas desta Seção aplicam-se às atividades desenvolvidas pelos
fornecedores de produtos ou serviços por meio eletrônico ou similar (TARTUCE,
2016)
Como salienta Lilia Pinto Marques:

Uma sociedade, portanto, é menos excludente, e, consequentemente,


mais inclusiva, quando reconhece a diversidade humana e as
necessidades específicas dos vários segmentos sociais, incluindo as
pessoas com deficiência, para promover ajustes razoáveis e correções
que sejam imprescindíveis para seu desenvolvimento pessoal e social,
assegurando-lhes as mesmas oportunidades que as demais pessoas
para exercer todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. (A
Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada I
Coordenação de ANA PAULA CROSARA RESENDE e FLAVIA MARIA
DE PAIVA VITAL- Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de
Deficiência, 2008, p. 27)

É dentro deste paradigma da inclusão social e dos direitos humanos que


devemos inserir e tratar a questão da deficiência. O desafio atual é promover
uma sociedade que seja para todos e onde os projetos, programas e serviços
sigam o conceito de desenho universal, atendendo, da melhor forma possível,
às demandas da maioria das pessoas, não excluindo as necessidades
específicas de certos grupos sociais, dentre os quais está o segmento das
pessoas com deficiência. (CHAVES, 2017).

7. CONSIDERAÇOES FINAIS

Cumpre-se salientar que, após ampla pesquisa acadêmica acerca do


referido tema aqui apresentado, conclui-se a importância de existir respaldo
jurídico técnico de acessibilidade para pessoas com quaisquer tipos de
deficiência, inclusive a deficiência visual que embasa o presente artigo.
Registra-se além das décadas, toda a notoriedade de resguarda do
deficiente visual acerca de equiparação de possibilidades, seja trazida e
reconhecida através de declarações internacionais, do texto constitucional ou
legislações especiais como os Estatutos, para assim, conseguir incluir, com
êxito, toda e qualquer pessoa com deficiência.
Por fim, cumpre-se mencionar, que toda relação aqui apresentada por ora,
é protegida e resguardada pela Lei Maior – a Constituição Federal de 1988, uma
das maiores conquistas do Direito do último século, que adotou como
fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana,
atribuindo-se assim, a todos indivíduos, independentemente de sua capacidade
física, direitos e garantias individuais que lhes são inerentes, assegurando-lhes
viverem de forma digna e igualitária em meio a sociedade.

REFERÊNCIAS

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Cif. Inf. Volume 31. Brasília, 2002
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Consumidor: Direito Material e Processual. Volume Único. 5ª Ed. São Paulo,
2016
1087

DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NOS CASOS DE ADOÇÃO


RETURN OF CHILDREN AND ADOLESCENTS IN ADOPTION CASES

Gleisson Roger de Paula Coêlho

Resumo: O presente trabalho tem o intuito de contribuir com a discussão sobre


a possibilidade da devolução de crianças e adolescentes nos casos da adoção,
durante o curso do processo da adoção ou mesmo após o trânsito em julgado
da sentença. Partindo de algumas definições sobre o instituto e analisando
alguns requisitos, em especial o estágio de convivência, que serve para observar
a possibilidade de criação de vínculos entre quem esta sendo adotado e quem
esta adotando. Concluindo que a devolução nos casos de adoção, traz consigo
diversas consequências como, a possibilidade de responsabilização por dano
moral quando for comprovado que o motivo foi a falta de afeto, razão pela qual
se mostrou importante a abordagem deste tema.
Palavras-chave: Adoção. Criança e Adolescente. Devolução.

Abstract: The present work aims to contribute to the discussion about the
possibility of returning children and adolescents in the cases of adoption, either
in the ongoing process of adoption or even after the transit in rem of the sentence.
Starting from some definitions about the institute and analyzing some
requirements, in particular the stage of coexistence, which supposed to set the
possibility of creating bonds between those being adopted and who is adopting.
Concluding that the return in the cases of adoption, has several consequences,
such as the possibility of accountability for non-material damage when it is proven
that the reason was the lack of affection, which is why the approach of this theme
was important.
Keywords: Adoption. Child and Adolescent. Return.

INTRODUÇÃO

Nem sempre a criança ou o adolescente poderá permanecer com sua


família de origem e muito menos com a família extensa ou ampliada, que é
aquela formada por parentes próximos com os quais se mantém vínculos de
afetividade e afinidade.
Nesses casos haverá a necessidade da colocação da criança ou
adolescente em uma família substituta, que poderá se dar por meio da guarda,
tutela ou adoção, sendo o último instituto considerado a última opção por cortar
qualquer vínculo com a família de origem.
Uma vez concluída a adoção nos moldes previstos pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente é irreversível, não sendo possível, a priori, a devolução
do adotado. Porém, o Poder Judiciário vem enfrentando situações em que
crianças e adolescente estão sendo devolvidas as instituições.
A devolução nem sempre acontece após o término do processo de
adoção, ou seja, pode ocorrer na fase em que o adotante detém a guarda
provisória, antes da conclusão do processo de adoção. Todavia, mas
independentemente do momento traz danos àqueles que já vivem em estado de
vulnerabilidade.
Nesse sentido, o estágio de convivência, que se trata de um procedimento
indispensável para a adoção, ganha importância ao observar a existência ou não
1088

de vínculo afetivo entre o adotante e o adotado, lembrando que


independentemente da origem da filiação, filho é filho.
Vale lembrar que tal instituto não tem cunho assistencialista e muito
menos tem por objetivo dar um filho para uma família que por algum motivo não
conseguiu o ter, mas sim, tem no melhor interesse da criança e do adolescente
seu fundamento e escopo.
Para melhor compreensão do tema primeiro será a abordado o instituto
da adoção e o estágio de convivência e posteriormente a questão da
irrevogabilidade em contraponto com a devolução de crianças e adolescentes
adotados.
A metodologia utilizada é a pesquisa exploratória, descritiva, documental
e bibliográfica, tendo como base a leitura e análise de artigos, obras e
jurisprudência, a partir do método dedutivo de abordagem, o qual se inicia pela
acepção de conceitos genéricos até sua particularização. Por fim, trata-se de um
tema de relevância social, pois trata-se do direito de crianças e adolescentes a
viverem em família.

1. ADOÇÃO

A Constituição Federal assegura as crianças e adolescentes, além do


direito à saúde, à educação, ao lazer, o direito ao convívio familiar e comunitário,
cabendo ao Estado e a Sociedade garantir a implementação de tais direitos.
O instituto da adoção ao longo do tempo foi sendo aprimorado e tem no
melhor interesse do infante seu escopo. No entanto só poderá ser efetivado após
se esgotarem todas as possibilidade da criança, ou do adolescente, de
permanecer em sua família biológica ou extensa.
“A adoção é ato jurídico em sentido estrito, de natureza complexa, pois
depende de decisão judicial para produzir seus efeitos. Não é negócio jurídico
unilateral. Por dizer respeito ao estado de filiação, que é indisponível, não pode
ser revogado” (LÔBO, 2018, p. 277 e 278).

La adopción, como institución, tiene una tradición y está revestido de


una serie de representaciones y supuestos saberes compartidos por el
conjunto que pertenecemos. Estas representaciones constituyen la
herancia cultural que recibe la família y que seria conveniente analizar
ya que, al mismo tiempo, recibir a um niño como hijo es un evento
novedoso y singular. Para construir una historia propia de la família,
esta tendrá que dejar de lado o cuestionar algunas de lãs suposiciones
instituídas1 (BERENSTEIN, 2014, p. 56).

Segundo Madaleno (2018, p. 653) a “adoção é sem qualquer dúvida o


exemplo mais pungente da filiação socioafetiva, psicológica e espiritual, porque
sustentada, eminentemente, nos vínculos estreitos e únicos de um profundo
sentimento de afeição”.

1 Tradução livre: A adoção, como instituição, tem uma tradição e é coberta por uma série de
representações e supostos conhecimentos compartilhados pelo grupo a que pertencemos. Essas
representações constituem a herança cultural que a família recebe e que seria conveniente
analisar, pois, ao mesmo tempo, receber um filho como filho é um evento novo e singular. Para
construir uma história familiar, será necessário anular ou questionar algumas das premissas
instituídas.
1089

O instituto da adoção é regulado no Brasil pelo Estatuto da Criança e do


Adolescente (ECA) e pela Lei da Adoção (12.010/2009), bem como a Lei
13.509/2017 que modificou alguns comandos no ECA.
Nesse sentido Tartuce (2019, p. 1245) afirma que:

a matéria ficou consolidada no Estatuto da Criança e do Adolescente


(ECA, Lei 8.069/1990), que do mesmo modo teve vários dos seus
comandos alterados. Em 2017 surgiu a Lei 13.509/2017, que trouxe
alterações substanciais a respeito do instituto, visando buscar uma
maior efetividade prática.

A adoção será concretizada após a sentença judicial, seja referente a


maiores ou menores, devendo ser inscrita no registro civil, mediante mandado,
cancelando o registro original do adotado, nos moldes do art. 47 do ECA.
Para se adotar é necessário preencher alguns requisitos e se submeter a
alguns procedimentos, dentre eles o estágio de convivência, que serve para
observar a possibilidade de criação de vínculos entre quem esta sendo adotado
e quem esta adotando.
Tal procedimento é de tamanha importância que mesmo a “simples
guarda de fato não autoriza, por si só, a dispensa da realização do estágio de
convivência”, como dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente no art. 46, §
2º.
“O estágio de convivência é uma das etapas do processo, tendo seu prazo
fixado pelo juiz, podendo ser dispensado quando o adotando já estiver sob a
tutela ou guarda legal do adotante por tempo suficiente para que possa ser
avaliada a convivência entre ambos” (PENNA, 2018, p. 115).
Segundo Lôbo (2018, p. 283) o objetivo do estágio de convivência “é o de
permitir que a autoridade judiciária, com auxilia de equipe técnica
interprofissional, possa avaliar a conveniência da adoção. Ao final do prazo, a
equipe técnica deverá apresentar laudo circunstanciado, recomendando ou não
a adoção ao juiz”.
Todavia poderá ser dispensada a realização do estágio de convivência
quando o adotando já estiver sob guarda ou tutela do adotando por tempo
suficiente para avaliar a convivência e deferir a adoção (art. 46 ECA).
O estágio de convivência que se inicia com o pedido de guarda provisória
e tem a duração determinada pelo Juízo conforme a necessidade do caso. E em
alguns casos poderá apresentar problemas de convívio entre o adotando e o
adotado, que se não superados, podem culminar com a devolução da criança ou
adolescente.

2. A POSSIBILIDADE DE DEVOLUÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES


NOS CASOS DE ADOÇÃO

Durante a realização do estágio de convivência ou mesmo após o transito


em julgado da Sentença que deferiu a adoção poderá haver casos em que a
criança ou o adolescente retornará à instituição que o abrigava.
A possibilidade de “devolução” do infante durante o estágio de
convivência, embora possa causar traumas ao adotando, uma vez revelada a
incompetência dos adotantes, insistir no processo da adoção pode acarretar
ainda mais danos aquele que se encontra em estado de vulnerabilidade.
1090

Caso o Juízo entenda que a “devolução” atende o melhor interesse do


infante a guarda deverá ser revogada nos moldes previstos no art. 29 e art. 45
do ECA. E como destaca Penna (2018, p. 116) “a irrevogabilidade da adoção só
existe após o trânsito em julgado da sentença”, sendo possível nesse estágio a
devolução.

O fundamento para a irrevogabilidade da adoção encontra-se no


princípio constitucional de igualdade entre os filhos. Não há
possibilidade de revogação da paternidade/maternidade biológica,
sendo impossível também a revogação da adoção. Ressalta-se ainda
que a adoção não se caracteriza por um negócio unilateral, existindo
um acordo de vontades entre adotante e adotado, reforçando seu
caráter de irrevogabilidade (PENNA, 2018, p. 120).

Todavia, assim como qualquer relação de paternidade/maternidade, há


direitos e deveres que devem ser respeitados; e, havendo o descumprimento,
poderá ter como consequência a perda do poder familiar, que, em se tratando
da adoção é chamada de destituição do poder familiar. Salienta-se que tal
destituição não rompe a relação de parentesco e desse modo os direitos
patrimoniais e existenciais permanecem.
É evidente que não existe, a priori, a possibilidade de se devolver um filho,
seja qual for sua origem, mas insistir na permanência de uma criança ou
adolescente em conviver com um pai/mãe que não se comporta como tal, em
atenção ao princípio do melhor interesse da criança, faz-se necessário a
intervenção do Estado.
A irrevogabilidade é uma característica da adoção no Direito Brasileiro,
constituindo a equiparação legal entre filiação biológica e adotiva, afinal a morte
dos adotantes não restabelece o poder familiar aos pais naturais.
Mas a excepcionalidade existe, como no caso analisado no REsp.
1545959/SC, julgado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça em 06
de junho de 2017, cuja Relatora do voto vencedor foi a Ministra Nancy Andrighi,
que revogou uma adoção unilateral asseverando que a adoção não rompeu “os
laços familiares preexistentes, colocando o adotado em um limbo familiar, no
qual convivia intimamente com os parentes de seu pai biológico, mas estava
atado, legalmente, ao núcleo familiar de seu pai adotivo”.
Desse modo a irrevogabilidade vem encontrando excepcionalidade em
casos extremos, tendo como justificativa o princípio constitucional da dignidade
humana e do melhor interesse da criança.
Ao adotar, o adotante assume todas as responsabilidades inerentes ao
poder familiar e, dessa maneira, deve construir um ambiente saudável para que
o adotado possa se desenvolver de forma plena.
Penna (2018, p. 122) destaca que “na devolução de crianças e
adolescentes adotados, pelas peculiares características da situação, impõe-se
aos juízes um olhar que leve em conta a história de vida do menor e se a adoção
frustrada implica em perda de uma chance ao convívio familiar”.
Caso a devolução seja realizada após a sentença da adoção transitar em
julgado, além da possibilidade de responsabilização por dano moral, por
exemplo, quando for comprovado que o motivo foi a falta de afeto, pode haver a
responsabilização criminal, com as condutas tipificadas no Capítulo relativo aos
“Crimes contra a assistência familiar”.
1091

Como regra geral a possibilidade de indenização por danos morais seria


possível caso o fundamento seja a falta de afeto, pois estará presente o abuso
de direito e a má-fé, com consequente dano a personalidade do infante, cabendo
ao juiz analisar as circunstâncias específicas (PENNA, 2018).
Logo, ao se decidir adotar uma criança ou um adolescente deve-se ter em
mente que o direito ao convívio familiar é assegurado pela Carta Constitucional
e que deve sempre se considerar o que for melhor ao menor, em um ambiente
de afeto e amor, para que possa se desenvolver de forma plena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Independentemente do arranjo familiar e dos laços de afeto ou


consanguinidade de que une seus componentes, algumas vezes crianças ou
adolescentes não terão como permanecer com suas famílias.
E como é direito do infante o convívio familiar e comunitário caberá ao
Estado e a sociedade encontrar uma nova família, respeitando suas
singularidades e levando em consideração o seu melhor interesse.
O instituto da adoção surge como uma forma de colocar a criança ou
adolescente em uma família substituta, após se terem esgotado todas as
possibilidades desse infante permanecer com sua família de origem ou extensa.
Todavia, embora se trate de um ato irrevogável, ou seja, uma vez deferida
a Sentença não seria possível revogar ou anular tal decisão, vem se observando
a devolução de crianças e adolescentes.
Quando se decide adotar, é importante se ter em mente que não se trata
de um ato de caridade e muito menos dar um filho para uma família que por
algum motivo não o conseguiu ter por via biológica, o objetivo de tal instituto é
proporcionar ao infante o convívio familiar.
Desse modo, destaca-se a importância de se observar se no estágio de
convivência, o vínculo afetivo foi criado entre o adotante e o adotado, análise
essa que deve ser feita por equipe técnica qualificada e interdisciplinar.
Vale lembrar que não existe diferença entre os filhos adotivos ou
biológicos na legislação pátria. Logo, se não é possível se devolver um filho
biológico, logo não deveria ser admissível devolver um filho adotado, Porém o
Sistema Judiciário do Brasil, tendo em vista o melhor interesse do infante, poderá
autorizar a devolução do menor ao sistema, como no caso analisado no REsp.
1545959/SC.
Por fim trata-se de um tema relevante e que carece de legislação,
cabendo aos Tribunais analisar cada caso, afinal é direito da criança e
adolescente de ser criado e educado em uma família é fundamental (art. 19
ECA), pois é no seio da família que encontrará o ambiente favorável ao seu
desenvolvimento saudável.

REFERÊNCIAS

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história. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Lugar Editorial, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro


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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso: 19
jun. 2019.

_______. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da


Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso: 19 jun. 2019.

_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1545959/SC.


Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relatora para o
Acórdão Ministra Nancy Andrighi. Diário de Justiça, 01 de agosto de 2017.
Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=1545959&tipo_visuali
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LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. vol. 5, 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

PENNA, Iana Soares de Oliveira. Adoção: repercussões jurídicas da


“devolução” de crianças e adolescentes. In: VIEIRA, Tereza Rodrigues e
(Org.). Famílias, Psicologia e Direito. Brasília/DF: Zakarewicz Editora, 2018,
p. 113-124.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 9. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019.
1093

EDUCAÇÃO FORMAL, “HOMESCHOOLING” E O DIREITO FUNDAMENTAL


DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À EDUCAÇÃO: A VISÃO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
FORMAL EDUCATION, HOMESCHOOLING AND THE CHILDREN’S AND
ADOLESCENT’S FUNDAMENTAL RIGHT TO EDUCATION: THE VISION OF
THE SUPREME FEDERAL COURT

Letícia Delfim da Mota Galvão de Assis Cardoso


Consuelo Y. Moromizato Yoshida

Resumo: Os direitos da criança e do adolescente se encontram previstos na


Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, abarcando,
dentre outros, o direito à educação. Ocorre que, por conta de defasagens e
inadequações no ensino brasileiro, alguns pais adotaram e defendem a prática
do ensino domiciliar como uma alternativa ao ensino tradicional. Com isso, diante
da necessidade de se proteger o direito à educação das crianças e dos
adolescentes, o presente trabalho visa, de acordo com pesquisa bibliográfica e
jurisprudencial, compreender a controvérsia em torno da prática do ensino
domiciliar e a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal sobre o assunto,
bem como as suas consequências jurídicas.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito fundamental da criança e do
adolescente. Ensino domiciliar.

Abstract: The rights of children and adolescents are provided for in the Federal
Constitution and in the Statute of Children and Adolescents, including, among
others, the right to education. However, due to discrepancies and inadequacies
in Brazilian education, some parents have adopted and defend the practice of
home teaching as an alternative to traditional education. Thus, in view of the need
to protect the right to education of children and adolescents, this paper aims,
according to bibliographic and jurisprudential research, to comprehend the
controversy surrounding the practice of home teaching and the decision of the
Federal Supreme Court on the subject, as well as its legal consequences.
Key-words: Constitucional right. Children’s and adolescent’s fundamental right
to education. Homeschooling.

INTRODUÇÃO

Ao longo das Constituições Brasileiras, os temas relativos à educação


sempre foram abordados, porém, somente na Constituição Federal de 1988 é
que a educação foi reconhecida como um direito fundamental.
A partir de então, os constituintes demonstraram a intenção de valorizar e
aperfeiçoar o sistema educacional brasileiro em seus diferentes níveis de modo
a contribuir positivamente para a formação e o desenvolvimento da sociedade
brasileira.
Contudo, com o decorrer do tempo, pais e educadores, insatisfeitos com
o funcionamento e a qualidade do sistema educacional capitaneado pelo Estado,
deram início à prática de uma modalidade diferenciada de ensino, conhecida
como “homeschooling”, que significa ensino domiciliar.
Tal modalidade de ensino não possui qualquer previsão ou
regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro, o que originou a
1094

controvérsia, judicializada, acerca do reconhecimento, entre nós, do direito ao


referido ensino domiciliar.
Na presente análise, com base em pesquisa bibliográfica e
jurisprudencial, objetivou-se estudar o direito à educação no Brasil; entender a
prática do ensino domiciliar; e analisar a decisão do Supremo Tribunal Federal
acerca da possibilidade de o ensino domiciliar ser considerado como meio lícito
de cumprimento, pela família, do dever de prover educação.

1. O DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL

A educação não é um assunto novo na ordem social, econômica, política


e jurídica, visto que é algo inerente ao seu próprio desenvolvimento e
crescimento ao longo da vida.
O ser humano, desde o seu nascimento, se encontra em um constante
processo de evolução e de adaptação ao meio em que vive, sendo que esse
processo exige a construção, a elaboração, a assimilação, a apreensão e a
revisão de conhecimentos, valores, atitudes, comportamentos e ideais.
Referido processo é desenvolvido por meio do contato do indivíduo com
a natureza e com outras pessoas nas mais variadas e diferentes instituições
sociais em que convive, como, por exemplo, família, igreja e escola
(NASCIMENTO; ALKIMIN, 2019).
À vista disso, é importante se analisar as disposições do ordenamento
jurídico brasileiro e da doutrina em relação ao direito à educação.
Referido direito fundamental e seus princípios constitucionais são
amplamente estudados e abordados por autores em diferentes acepções.
A atual Constituição Brasileira é conhecida como Constituição Cidadã por
ter ampliado o rol de direitos fundamentais, dentre os quais o direito à educação,
previsto em seu art. 6º, como um direito social.
O art. 205 do mesmo diploma legal define que a educação é direito de
todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Nesse contexto, a declaração fundamental contida no art. 205, combinada
com o art. 6º, constitui a educação como um direito fundamental (SILVA, 2005,
p. 312).
Com isso, o aspecto político e a natureza pública da educação são
destacados na Constituição Federal de 1988 por expressa definição de seus
objetivos e pela estruturação do sistema educacional nacional (RAPOSO, 2005).
Assim, o tratamento que é dado ao direito à educação na Carta Magna o
qualifica como um direito fundamental da pessoa humana e possibilita a sua
ampla efetividade (GARCIA, 2006, p. 96).
Na legislação infraconstitucional, encontram-se disposições
complementares acerca da educação no Brasil, como, por exemplo, no Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA).
Em seu art. 53, está estabelecido o direito das crianças e dos
adolescentes à educação formal no ambiente escolar, o que abrange, de modo
obrigatório, a educação básica, composta pela educação infantil, ensino
fundamental e ensino médio.
A finalidade do fornecimento da educação formal é, conforme previsto em
lei, propiciar o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, preparando-
1095

os para o pleno exercício de sua cidadania e qualificando-os para o trabalho


(ASINELLI-LUZ, 2019).
Nesse sentido, a Lei de Diretrizes e Base da Educação também prevê que
a educação formal, consubstanciada na escola, deve ouvir e atender as
expectativas das famílias, bem como deve assegurar a laicidade do ensino e a
diversidade, que são valores essenciais da educação pública (2018).
O art. 55 do ECA, por seu turno, prevê que a matrícula dos filhos ou dos
pupilos na rede regular de ensino é obrigatória e o art. 56 dispõe os casos em
que os diretores de estabelecimentos de ensino devem comunicar o Conselho
Tutelar.
Destarte, a educação escolar e o ensino são instrumentos a serem
utilizados para a formação completa do indivíduo com o fito de torná-lo
plenamente desenvolvido, apto ao trabalho e ao exercício da cidadania, bem
como permitir um convívio digno social, cultural e econômico (ALBALA-
BERTRAND, 1999, p. 36-37).
À vista disso, todos fazem jus ao direito de acesso à educação, que é um
direito fundamental a ser concretizado com base nos princípios e regras
previstos na Carta Magna.

2. A MODALIDADE DE ENSINO “HOMESCHOOLING”

Como uma alternativa à educação tradicional oferecida pelo Estado,


constata-se que alguns pais iniciaram a prática do ensino domiciliar com seus
filhos.
Essa prática teve origem nos Estados Unidos por volta do século XVIII
durante o período colonial, sendo que existem registros que revelam que
grandes personalidades, como George Washington, foram educadas em suas
casas (VIEIRA, 2012).
De acordo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED),
estima-se que essa prática teve início no Brasil a partir dos anos 1990 e que, no
último estudo realizado no ano de 2016, foi apurado que cerca de cinco mil são
adeptos dessa modalidade de ensino.
Contudo, esses dados não podem ser considerados como exatos ou
totalmente verdadeiros, pois muitas famílias não assumem que aderem a essa
prática de ensino e não há um controle estatal efetivo em relação a essa prática.
Destaca-se que esta modalidade de ensino não é prevista ou
regulamentada pelo ordenamento jurídico brasileiro, razão pela qual surgiram
muitos debates e discussões acerca da possibilidade de seu exercício entre nós,
o que culminou na interposição do Recurso Extraordinário nº 888.815 junto ao
Supremo Tribunal Federal, visando o reconhecimento do direito ao ensino
domiciliar.
Em um primeiro momento, demonstra-se necessária a compreensão do
conceito e do funcionamento desse novo modelo de ensino que se encontra em
ascensão no Brasil.
O homeschooling consiste na prática da educação fora do ambiente
escolar, ou seja, no âmbito de casa, de modo que as crianças e os adolescentes
são ensinados em seu domicílio com o apoio de um ou mais adultos, que são os
responsáveis pela aprendizagem.
Essa modalidade de ensino acredita na existência de certos padrões no
ensino, reconhecendo alguns métodos como bons e outros como ruins, bem
1096

como que a criança e o adolescente possuem a sua subjetividade. Contudo não


reconhece que eles sejam independentes ao ponto de somente aprenderem o
que quiserem ou o que lhes dão prazer (SILVA, 2015, p. 106).
Desse modo, a educação domiciliar possibilita o oferecimento de vários
métodos e certa liberdade para testar e facilitar a mudança de abordagem da
educação da criança e do adolescente, sendo que, se surgirem novas pesquisas
demonstrando que um método está ultrapassado, os pais ou os adultos
responsáveis podem modificar de forma gradual o modo de educar os filhos
(SILVA, 2015, p. 107).
Nesse contexto, cumpre destacar que o homeschooling não se confunde
com o unschooling, uma vez que este se declara totalmente contra a escola e
defende um sistema de ensino do tipo anárquico, o que significa que os pais ou
os adultos responsáveis não utilizam formas estruturadas de ensino com seus
filhos, sob a justificativa de que as crianças e os adolescentes devem aprender
com o mundo de modo livre (SILVA, 2015, p. 106).
Com isso, o homeschooling se apresenta como um novo modelo de
ensino às crianças e aos adolescentes que é desenvolvido em um ambiente
diferenciado, qual seja, o lar, com a direção de seus pais ou de adultos
responsáveis, disponíveis e aptos para tanto, por meio da adoção de métodos
de ensino reconhecidos como bons e necessários.

3. A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O


“HOMESCHOOLING”

3.1. O CASO CONCRETO

O caso que motivou o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal teve


como origem mandado de segurança impetrado pelo microempresário Moisés
Dias e sua mulher, Neridiana Dias, que, no ano de 2011, decidiram retirar a filha
de 11 anos da escola pública, no município de Canela/RS, e passar a educá-la
por conta própria em casa.
Os pais argumentaram que a metodologia da escola municipal não era
adequada, pois mesclava, em uma mesma sala, alunos de diferentes séries e
idades, destoando do que consideravam um critério razoável ou ideal de
sociabilidade. O casal possui o desejo de afastar a filha de educação sexual
antecipada por meio da influência e do convívio com colegas mais velhos.
A família defendeu que, por ser cristã, acredita no criacionismo e, por
conta disso, não aceita a Teoria Evolucionista de Charles Darwin que é ensinada
nas escolas tradicionais (ROVERAN, 2018).
Com isso, buscou-se o reconhecimento do direito ao ensino domiciliar
junto ao Poder Judiciário, com base em motivos sociais, religiosos e morais,
sendo que tal pretensão não foi acolhida em primeira instância e nem pelo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

3.2. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE 888815/RS)

Diante do não acolhimento da pretensão, houve a interposição de


Recurso Extraordinário nº 888815/RS, com repercussão geral, perante o
Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Roberto Barroso, contra o acórdão
proferido pelo Tribunal de Justiça gaúcho, que negou provimento à apelação.
1097

Na Corte Suprema, discute-se a possibilidade de o ensino domiciliar


(homeschooling), ministrado pela família, ser considerado um meio lícito de
cumprimento do dever de educação, previsto no art. 205 da Constituição Federal.
O acórdão recorrido fundamentou que, como não existe previsão legal de
ensino no Brasil na modalidade domiciliar, não há que se falar na existência de
direito líquido e certo a ser amparado por mandado de segurança.
No recurso extraordinário, argumentou-se que o julgado impugnado, ao
decidir pela obrigatoriedade da matrícula e frequência de todas as crianças a
uma instituição de ensino tradicional, não atentou aos dispositivos
constitucionais e aos princípios fundamentais previstos no Estatuto da Criança e
do Adolescente e na Lei de Diretrizes e Bases, trazendo uma interpretação
restritiva e inconstitucional (STF, 2018).
Em contrarrazões, o Município de Canela defendeu que o ensino
domiciliar não pode ser considerado um substituto do ensino escolar, mas uma
complementação, uma participação conjunta dos pais na educação de seus
filhos, pois a Constituição Federal em seu art. 208, §1º, considera o acesso ao
ensino obrigatório como direito público subjetivo e que o §2º do mesmo diploma
legal determina que o seu não-oferecimento por parte do Poder Público implica
em responsabilidade da autoridade competente.
Nesse contexto, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, decretou a
suspensão do processamento de todas as demandas pendentes que tratassem
da questão em tramitação no território nacional.
A Procuradoria-Geral da República se manifestou pelo desprovimento do
recurso, sob o fundamento de que o ensino domiciliar para crianças e
adolescentes em idade escolar em substituição à educação em
estabelecimentos escolares comuns, por opção dos pais ou responsáveis, não
possui fundamento na Constituição Federal.
A Advocacia-Geral da União também se manifestou pelo desprovimento
do recurso extraordinário, considerando que não foi delegada aos pais a escolha
da forma como deverão educar seus filhos, se em casa ou nas instituições
oficiais de ensino, uma vez que não existe norma taxativa ao dispor sobre a
educação como um direito subjetivo, que deve ser oferecido gratuita e
obrigatoriamente pelo Poder Público, a quem compete ainda zelar pela matrícula
e pela frequência dos alunos (STF, 2018).
Assim, claramente se observa a existência de divergência em relação ao
tema no âmbito judicial.

3.3. O JULGAMENTO DO RECURSO

Analisando-se os debates entre os ministros e seus respectivos


fundamentos, verifica-se a diversidade de entendimentos acerca da
possibilidade de adoção do “homeschooling”.
Dos 10 ministros que participaram do julgamento, somente o relator
Ministro Luís Roberto Barroso foi favorável à autorização do ensino domiciliar,
propondo, em seu voto, regras de regulamentação da matéia, baseadas em
limites constitucionais.
Para a maioria, como Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber,
Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Marco Aurélio e Cármen Lúcia, essa prática de
ensino pode se tornar válida somente se houver a aprovação de uma lei que
permita avaliar o aprendizado e a socialização do estudante educado em casa.
1098

Contudo, outros dois ministros, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski,


entenderam que a Constituição Federal não possui previsão que admita a
educação domiciliar no Brasil.
Já, o Relator da ação, Luís Roberto Barroso foi o único que votou pela
permissão da adoção desse modelo de ensino, condicionando os pais a
submeterem os filhos educados em casa às mesmas avaliações dos alunos de
uma escola.
Ao final do julgamento, a maioria dos ministros entendeu que é necessária
a matrícula e a frequência da criança na escola como formas de assegurar uma
convivência com estudantes de origens, valores e crenças diferentes, bem como
que o dever de educar é compartilhado entre o Estado e a família, não sendo
atribuída exclusividade aos pais (RAMALHO, 2018).
Com isso, se verifica a importância que é dada ao processo educacional
formal como forma de manter os direitos assegurados às crianças e aos
adolescentes.

3.4. O ACÓRDÃO

Após a realização da votação entre os ministros e o resultado de 9 votos


contra e 1 voto a favor, o Egrégio Supremo Tribunal Federal decidiu que,
consoante a atual legislação, os pais não possuem o direito de tirar filhos da
escola para ensiná-los exclusivamente em casa, prática conhecida como
educação domiciliar ou “homeschooling”.
Desse modo, se apresentou o presente acórdão:

CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL


RELACIONADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À
EFETIVIDADE DA CIDADANIA. DEVER SOLIDÁRIO DO ESTADO E
DA FAMÍLIA NA PRESTAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL.
NECESSIDADE DE LEI FORMAL, EDITADA PELO CONGRESSO
NACIONAL, PARA REGULAMENTAR O ENSINO DOMICILIAR.
RECURSO DESPROVIDO. 1. A educação é um direito fundamental
relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria cidadania, pois
exerce dupla função: de um lado, qualifica a comunidade como um
todo, tornando-a esclarecida, politizada, desenvolvida (CIDADANIA);
de outro, dignifica o indivíduo, verdadeiro titular desse direito subjetivo
fundamental (DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA). No caso da
educação básica obrigatória (CF, art. 208, I), os titulares desse direito
indisponível à educação são as crianças e adolescentes em idade
escolar. 2. É dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, a educação. A
Constituição Federal consagrou o dever de solidariedade entre a
família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das
crianças, jovens e adolescentes com a dupla finalidade de defesa
integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e sua formação
em cidadania, para que o Brasil possa vencer o grande desafio de uma
educação melhor para as novas gerações, imprescindível para os
países que se querem ver desenvolvidos. 3. A Constituição Federal
não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer
de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a
família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das
crianças, jovens e adolescentes. São inconstitucionais, portanto, as
espécies de unschooling radical (desescolarização radical),
unschooling moderado (desescolarização moderada) e homeschooling
puro, em qualquer de suas variações. 4. O ensino domiciliar não é um
1099

direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é


vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada
pelo Congresso Nacional, na modalidade “utilitarista” ou “por
conveniência circunstancial”, desde que se cumpra a obrigatoriedade,
de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo
básico de matérias acadêmicas, a supervisão, avaliação e fiscalização
pelo Poder Público; bem como as demais previsões impostas
diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às
finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar
e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência
familiar e comunitária (CF, art. 227). 5. Recurso extraordinário
desprovido, com a fixação da seguinte tese (TEMA 822): “Não existe
direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar,
inexistente na legislação brasileira”.

A partir dessa decisão, se constata que a prática do modelo de ensino


“homeschooling” não é considerada como inconstitucional, contudo é
reconhecido que não há direito público subjetivo ao ensino domiciliar por parte
do aluno ou de sua família pelo fato de não haver lei de espécie federal que o
crie ou o regulamente no Brasil, respeitando-se os princípios e objetivos
constitucionais da educação.

CONCLUSÃO

De se notar que, pelas defasagens e pela evolução insuficiente do sistema


educacional brasileiro e do processo de aprendizagem utilizado nas escolas,
tanto públicas quanto privadas, a procura pela modalidade de ensino domiciliar
surgiu na sociedade brasileira.
A despeito do interesse e do esforço de parte da população a favor do
modelo de ensino domiciliar, o reconhecimento do direito ao ensino domiciliar no
Brasil não ocorreu.
Isso porque não existe qualquer previsão na Constituição Federal ou na
legislação infraconstitucional que torne possível tal prática, consistente na
retirada da criança e do adolescente da matrícula, da frequência e das
experiências em uma escola convencional.
Nesse ponto, conclui-se que a inconstitucionalidade de tal prática não foi
reconhecida pelos guardiões da Constituição Federal, o que significa que não há
impedimento à futura regulamentação ou criação por meio de lei federal, e a
necessidade de mudanças e evoluções no sistema educacional brasileiro como
um todo, de modo a tornar a prestação dos serviços educacionais mais efetiva,
satisfatória e isenta possível.

REFERÊNCIAS

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BERTRAN, Luís (org). Cidadania e educação: rumo a uma prática
significativa. Campinas: Papirus; Brasília: UNESCO, 1999.

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http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-440.html. Acesso em: 06 maio 2019.
1100

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Promulgada aos 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília, DF: 05 out. 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Câmera dos Deputados, Lei nº


8.069, de 13 de julho de 1990. DOU, 16 jul. 1990 – ECA. Brasília, DF.

GARCIA, E. O Direito à Educação e suas Perspectivas de Efetividade. Revista


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RAPOSO, Gustavo de Resende. A educação na Constituição Federal de


1988. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 641, 10 abr. 2005. Disponível em:
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STF retoma nesta quarta-feira (12) julgamento sobre ensino domiciliar.


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1101

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=389288.
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Disponível em: https://www.todospelaeducacao.org.br/conteudo/stf-rejeita-
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VEJA perguntas e respostas sobre homeschooling ou educação domiciliar.


Folha de São Paulo, 14 fev. 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/02/veja-perguntas-e-respostas-
sobre-o-homeschooling-ou-educacao-domiciliar.shtml. Acesso em: 06 maio
2019.

VIEIRA, André de Holanda Padilha. Escola? não, obrigado: um retrato da


homeschooling no Brasil. 2012. 76 f. Monografia (Bacharelado em Ciências
Sociais) - Universidade de Brasília, Brasília, 2012. Disponível em:
http://bdm.unb.br/handle/10483/3946?. Acesso em: 08 out. 2019.
1102

INSTITUCIONALIZAÇÃO PROLONGADA: A FALHA NA PROPAGAÇÃO DO


AFETO NOS PROCESSOS DE ADOÇÃO
EXTENDED INSTITUTIONALIZATION: FAILURE TO SPREAD AFFECTION IN
ADOPTION PROCESSES

Leticia Favero Bueno


Orientador(a): Gisela Laus da Silva Pereira Lima

Resumo: Refletir acerca desse tema, levanta não só questões jurídicas, mas
também sociais, o que impõe pensar em soluções eficazes para melhorar o
processo de adoção no Brasil. A institucionalização prolongada é uma das
consequências dessa morosidade excessiva, que faz com que pessoas passem
sua infância e adolescência enclausuradas e sejam, mais uma vez, abandonas
ao completarem dezoito anos de idade. Por meio de estudos doutrinários,
pesquisas jurisprudenciais e estatísticas, sob um ponto de vista crítico e
reflexivo, observa-se que não há apenas um fator que contribui para a ineficácia
do sistema de adoção brasileiro, mas sim, um conjunto deles. E para todos os
aspectos analisados, o presente artigo propõe soluções, seja por meio de
projetos, ou direcionamentos, a fim de fazer com que os direitos das crianças e
adolescentes sejam efetivamente respeitados, entre eles, o principal: o direito ao
convívio familiar.
Palavras-chave: Adoção. Família. Morosidade.

Abstract: Reflecting on this theme raises not only legal but also social issues,
which means thinking about effective solutions to improve the adoption process
in Brazil. Prolonged institutionalization is one of the consequences of this
excessive moroseness, which causes people to spend their childhood and
adolescence cloistered and are once again abandoned when they reach eighteen
years of age. Through doctrinal studies, jurisprudence and statistics research,
from a critical and reflective point of view, it is observed that there is not only one
factor that contributes to the ineffectiveness of the Brazilian adoption system, but
rather, a group of them. And for all aspects analyzed, this article proposes
solutions, either through projects or directives, in order to ensure that the rights
of children and adolescents are effectively respected, among them the main one:
the right to family life.
Keywords: Adoption; Family; Morosity.

1. INTRODUÇÃO

A adoção existe desde as civilizações mais antigas e surgiu, ora com a


finalidade de dar filhos às famílias que não conseguiam obtê-los de forma
natural, respaldada por vezes na emoção de formalizar ligações afetivas ou
infelizmente, ora com o viés cruel de adoção disfarçada para exploração infantil.
Contudo, a evolução legislativa e o reconhecimento da condição de sujeito de
direitos de criança e adolescente mudaram e priorizaram o enfoque, dando a
adoção o caráter de garantia do direito de crianças e adolescentes de terem uma
família.
1103

No entanto, mesmo com inúmeras normas a respeito da adoção1, o


instituto enfrenta grandes problemas em sua efetividade, seja por conta da
burocracia de seu procedimento, tendo vista ser medida excepcional, seja pela
falta de conscientização das famílias adotantes quanto à realidade dos adotados,
e demais variáveis apresentadas com o objetivo de analisar o porquê filhos e
filhas passam toda sua infância e adolescência em abrigos.
A premissa de partida são os dados assustadores disponibilizados pelo
Conselho Nacional de Justiça2, que mostram um total de 43.838 pretendentes
cadastrados para adoção, contra 8.872 de crianças disponíveis para tal. Os
números não batem.
No intuito de levantar e debater a questão da institucionalização
prolongada, o presente trabalho, por meio de estudos doutrinários, pesquisas
jurisprudências e estatísticas, sob um ponto de vista crítico e reflexivo, analisará
tal fenômeno, estabelecendo os empecilhos normativos, dificuldades práticas e
suas possíveis soluções.

2. REFLEXÕES SOBRE OS PROCEDIMENTOS ATÉ A ADOÇÃO

Quando existe uma situação de negligência, abandono e violência, o


Ministério Público deve pedir o afastamento da criança ou adolescente do
convívio familiar e o abrigamento em uma instituição de acolhimento ou inseri-lo
em um acolhimento familiar, por meio de ação de acolhimento.3
Em seguida, inicia-se a execução do acolhimento institucional,
procedimento autônomo que não depende de contraditório dos pais ou do
responsável, sendo extinto, apenas, com o desacolhimento da criança ou
adolescente.
No curso desse procedimento, como bem observa Maria Berenice Dias
(2016, p. 67), a lei prioriza a permanência da criança e adolescente no âmbito
da família biológica. Prova disso, é o legislador do ECA repetir 11 vezes a
preferência pela família natural ou extensa, como se assim fosse conferida

1No Brasil, sempre houve legislação a respeito e a partir da Constituição Federal de 1988, em
seu artigo 227, §6°, foi “proibido quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Seguindo essa base de reconhecimento irrestrito e sem discriminação, os referencias legais são
compostos pela Convenção de Haia de 1961, e a Convenção sobre os Direitos da Criança de
1989, que são dois tratados internacionais incorporados pela legislação brasileira, que possui
como norma reguladora da adoção de crianças e adolescentes o Estatuto da Criança e do
Adolescente- ECA de 1990, além do Código Civil para normatizar a adoção de maiores de idade,
a partir de 2002. E mais recentemente a Lei Nacional da Adoção de 2009 e as várias resoluções
e portarias regulamentadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
2 Dados extraído em 22/06/2018 do Portal CNJ - Cadastro Nacional de Adoção (CNA), relativo a
pretendes cadastrados para a adoção e crianças e adolescentes habilitados para tal, cujos pais já
foram destituídos do poder familiar. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf . Acessado em: 22/06/2018.
3 ECA: Art. 101, § 2o - Sem prejuízo da tomada de medidas emergenciais para proteção de

vítimas de violência ou abuso sexual e das providências a que alude o art. 130 desta Lei, o
afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar é de competência exclusiva da
autoridade judiciária e importará na deflagração, a pedido do Ministério Público ou de quem
tenha legítimo interesse, de procedimento judicial contencioso, no qual se garanta aos pais ou
ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa.
1104

eficácia ao comando constitucional que assegura a criança e adolescente o


direito a convivência familiar disposto no artigo 227 da Constituição Federal4
Concomitantemente, ocorrerá a ação de destituição do poder familiar,
que é um processo moroso, onde é exercido o contraditório e que, portanto,
mesmo após esgotadas todas possibilidades de manutenção do filho com os
pais ou com a família extensa, a criança e adolescente, muitas vezes,
desacertadamente permanece institucionalizada até o fim do processo.
Por esse motivo, cabe ao Ministério Público requerer tutela provisória
antecipada de urgência de natureza cautelar, para conceder a guarda da criança
e adolescente a pessoa legalmente habilitada para adotá-lo, de modo a evitar a
institucionalização prolongada e respeitar o direito da criança e adolescente a
convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu
desenvolvimento integral.5 Enfim, após a destituição do poder familiar, a criança
ou adolescente está apto a ser adotado. Mas e os adotantes, estão prontos para
tornarem-se pais e mães?
Durante o procedimento para habilitação à adoção, descrito nos artigos
197-A a 197-E do ECA, consta no art. 197-C, §1° uma obrigatoriedade capaz de
evitar a institucionalização prolongada: a participação de postulantes à
habilitação em programas de orientação oferecidos pela Justiça da Infância e
Juventude, para estimular a adoção inter-racial, de criança e adolescentes com
deficiência, com doenças crônicas ou com necessidades específicas de saúde,
e de grupos de irmãos.
Ocorre que na prática tais programas, importantíssimos, de preparação e
orientação não acontecem. O Poder Judiciário prefere lidar com o problema de
abrigos lotados, mau estruturados e desamparados a pôr em prática projetos
que poderiam ser incrivelmente efetivos se saíssem do papel.

3. A INSTITUCIONALIZAÇÃO PROLONGADA

A institucionalização é medida excepcional, e, em tese, deve durar no


máximo 18 (dezoito) meses. Por que isso não acontece na prática?
Para Silvana do Monte Moreira (2017, p. 13), presidente da Comissão de
Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o ECA é reputado
como um dos melhores do mundo, mas no Brasil é comum o descumprimento
de leis, o que faz com que o número de habilitados à adoção não bata com o
número de crianças e adolescentes disponíveis para serem adotados. O CNJ,
inúmeras vezes agiu em prol do cumprimento do ECA, como quando elaborou o
Provimento nº 36, de 24 de abril de 20146. O problema principal está na ideia do

4 CF: Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente
e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
5 ECA: Art. 19- É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família
e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em
ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
6 Conselho Nacional de Justiça: Provimento nº 36, de 24 de abril de 2014 – Dispõe sobre a

estrutura e procedimento das Varas da Infância e Juventude. Disponível em:


http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/provimento_36.pdf. Acessado em: 29/06/2018.
1105

‘esgotamento das possibilidades de reinserção na família de origem’, o que faz


com que a infância de milhares de crianças seja consumida.
A institucionalização prolongada gera uma série de consequências
negativas na vida da criança e adolescente, uma vez que na maioria das vezes,
além do fato do ambiente não ser o mais adequado, falta capacitação dos
responsáveis pelos serviços de acolhimento institucional e sobra influência
política na escolha de seus gestores.
O direito à convivência familiar, assegurado a todas as crianças e
adolescentes pelo ECA, não é respeitado, elas são depositadas em abrigos,
enquanto a lei não é aplicada da forma correta. Isso faz com que inúmeras
crianças e adolescentes saiam de instituições de acolhimento, somente após
completarem dezoito anos de idade, sem nunca terem tido a oportunidade de
fazer parte de uma família.
No entanto, a institucionalização prolongada não surge apenas da
aplicação incorreta das normas reguladoras dos direitos das crianças e
adolescentes, ela deriva também de uma cultura utópica acerca da adoção.
As mulheres desde pequenas brincam de bonecas, e por isso sonham
com um perfil de filho ideal, o que as levam a preferir adotar bebês ou crianças
de até três anos de idade. A busca pela adoção, muitas vezes, decorre da
infertilidade do casal, o que pode gerar frustrações tendo em vista o ambiente
social em que vivemos, e a expectativa de que todo casal tenha filhos (DIAS,
2016, p. 125).
Ocorre que os perfis escolhidos pelos habilitados a adotar não condizem
com a realidade das crianças e adolescentes abrigados. Veja no gráfico a seguir:

Gráfico 1 – Dados obtidos junto ao Cadastro Nacional de Adoção (CNA)7


ADOÇÃO: EXPECTATIVA X REALIDADE
Pretendentes que aceitam adotar Total de crianças
1900ral

1900ral
1900ral

1900ral
1900ral

1900ral
1900ral

1900ral

CRIANÇAS DA CRIANÇAS SEM CRIANÇAS COM CRIANÇAS COM


RAÇA BRANCA IRMÃOS ATÉ 5 ANOS DE DEFICIÊNCIA
IDADE MENTAL

Fonte: Elaborada pela própria autora.

7Dados extraído em 22/06/2018 do Portal CNJ - Cadastro Nacional de Adoção (CNA), relativo a
crianças e adolescentes cadastrados, cujos pais já foram destituídos do poder familiar. Disponível
em: http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf . Acessado em: 22/06/2018.
1106

Os dados evidenciam a necessidade de uma conscientização social, por


meio de campanhas e projetos que incentivem a adoção de crianças e
adolescente que não estejam inseridos no perfil normalmente desejado pelos
adotantes, a fim de igualar a expectativa com a realidade e contribuir para que a
propagação do afeto resulte em famílias completas e felizes.

4. O COMBATE A INSTITUCIONALIZAÇÃO PROLONGADA POR MEIO DO


AFETO

Neste cenário de institucionalização prolongada, indiscutível a


importância da realização no Brasil de campanhas que promovam: o
apadrinhamento, a adoção tardia, a adoção inter-racial, a adoção de grupos de
irmãos e de crianças com deficiência ou doenças crônicas, que tornam
acessíveis as crianças preteridas em abrigos.
Projetos de Apadrinhamento, seja afetivo ou financeiro, já acontecem em
muitos Municípios brasileiros, mas deveriam ocorrer em todos. Isso porque,
servem como uma efetiva porta de entrada para aqueles que ainda não são
inscritos no cadastro de adoção8. Porém, seria interessante que pessoas já
habilitadas à adoção pudessem participar deste projeto, assim, poderiam
conhecer as crianças e os adolescentes disponíveis e, inclusive, mudar suas
expectativas, de forma a encontrar seus filhos utilizando como único critério o
afeto
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, possui um
projeto chamado “Adote um Boa Noite”, cujo objetivo é dar visibilidade e voz a
jovens que moram em instituições de acolhimento 9. O projeto propõe que
crianças acima de 8 (oito) anos, passem a manter contato, aos fins de semana,
com uma família. O ponto negativo, é que tais famílias não podem estar
aguardando no cadastro de adoção, se pudessem, essa seria uma ferramenta
eficaz para que propensos adotantes desconstruíssem suas ideologias acerca
de seu filho ideal e abrissem um leque de possibilidades.
De acordo com o ANGRAAD - Associação Nacional de Grupos de Apoio
à Adoção10, outros Tribunais de Justiça, como os dos estados de Pernambuco,
Rio de Janeiro, Mato Grosso, Rondônia, Santa Catarina, aderiram à ideia de
que crianças e adolescentes devem ser mostrados e podem atuar na tentativa
da própria adoção.
O caso pioneiro ocorreu em 2015, quando os jogadores do Sport Club
do Recife, time de futebol da capital pernambucana, entraram em campo para
a partida contra o Flamengo de mãos dadas com crianças que vivem em
abrigos em Recife à espera de adoção, o que deu início ao projeto “Adote um
pequeno torcedor” 11, que consistiu em vídeos dos abrigados se apresentando,
serem transmitidos na Arena Pernambuco antes dos jogos. Como

8 ECA: Art. 19 – B, § 2º - Podem ser padrinhos ou madrinhas pessoas maiores de 18 (dezoito)


anos não inscritas nos cadastros de adoção, desde que cumpram os requisitos exigidos pelo
programa de apadrinhamento de que fazem parte. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017)
9 ADOTE UM BOA NOITE – TJ/SP. Disponível em: http://www.adoteumboanoite.com.br/.

Acessado em: 18/02/2019.


10
Assessoria de Comunicação ANGAAD. Adoção tardia: tribunais dão visibilidade a criança
e adolescente. Disponível em: http://www.angaad.org.br/adocao-tardia-tribunais-dao-
visibilidade-a-crianca-e-adolescente/. Acessado em: 03/07/2018.
11 ADOTE UM PEQUENO TORCEDOR – TJ/PE. Disponível em: http://www.tjpe.jus.br/-/projeto-

adote-um-pequeno-torcedor-estimula-adocao-tardia. Acessado em: 18/02/2019.


1107

consequência, 20 dos 43 adolescentes que participaram da campanha foram


adotados.
Ainda segundo a ANGRAAD, inspirados pelo bom resultado da
campanha do Tribunal de Justiça de Pernambuco, a Comissão Estadual
Judiciária de Adoção (CEJA) do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES)
preparou a campanha “Esperando por você” 12, com objetivo de incentivar a
adoção de 70 das 140 crianças que estão para adoção no Estado, mas que
não possuem perspectiva de um pretendente. A equipe de comunicação do
Tribunal realizou vídeos e fotos dessas crianças e adolescentes que poderão
ser vistos no canal de youtube do Tribunal 13 e em exposições nos shoppings
que cederam seu espaço em Cariacica, Vila Velha, Serra, regiões
metropolitanas da grande Vitória.
Por sua vez, o juiz Sérgio Luiz Ribeiro de Souza, titular da 4ª Vara de
Infância, da Juventude e do Idoso da cidade do Rio de Janeiro, deu início ao
projeto “O ideal é real: adoções necessárias”, em janeiro de 2017, com objetivo
de promover encontros entre as crianças e os pretendentes à adoção, tal
trabalho vem gerando resultados positivos, e como bem expressou o juiz Sérgio:
“Ninguém é obrigado a mudar o perfil escolhido depois dos encontros, mas se
nós não promovermos esses encontros, como vão adotar uma criança que nunca
viram na vida e não sabem da existência?”14.
Paralelo aos trabalhos dos Tribunais há o Projeto Adoção Tardia, que
cuida de um canal no Youtube onde são divulgados vídeos com as histórias dos
adolescentes e de famílias constituídas por meio da adoção tardia, de forma a
incentivar tal prática.15
Campanhas como essas se mostram imprescindíveis para que seja
ampliado o conhecimento dos pretendentes, uma vez que todos eles possuem
um perfil de “filho ideal”. O intuito é que ao conhecerem as crianças e
adolescentes disponíveis, os habilitados abram espaço emocional para
adotarem crianças de uma idade mais avançada, grupos de irmãos, crianças
inter-raciais ou deficientes, diminuindo assim o número de crianças
institucionalizadas em todo o país.
Mas não é só isso, outra infeliz realidade da adoção, que necessita ser
revolucionada, é a ideia de que o adotado precisa ser o filho perfeito. Assim,
quando se fala sobre filho adotivo, todo mundo exige mais: ser saudável e
“normal”, ele não pode ser feio, nem estar acima do peso; tem que estudar,
trabalhar; não pode dar trabalho na escola, não pode brigar com os irmãos, nem
chorar demais; enquanto que as mesmas características são aceitas e
contornadas de forma natural quando o filho é de sangue.
A idealização de um filho perfeito também deve ser combatida por meio
de campanhas promovidas pelos respectivos Tribunais de Justiça com o auxílio

12 ESPERANDO POR VOCÊ – TJ/ES. Disponível em: http://www.tjes.jus.br/esperandoporvoce/.


Acessado em: 18/02/2019.
13 Youtube – Canal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Disponível em:
https://www.youtube.com/user/portaltjes. Acessado em: 18/02/2019.
14
Portal CNJ - Projetos apontam o ideal e o real diante da decisão de adotar. Disponível
em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84783-projetos-apontam-o-ideal-e-o-real-diante-da-
decisao-de-adotar. Acessado em: 03/07/2018.
15 Site Projeto Adoção Tardia – Disponível em: https://www.adocaotardia.com/. Acessado em:

03/07/2018.
1108

de uma equipe interdisciplinar. Assim, o futuro adotante poderá, além de


preparar-se melhor para a chegada de seu filho, conscientizar-se dos problemas
que todos os pais podem enfrentar, entendendo que apesar das dificuldades o
afeto baseado em verdades, prevalecerá.
Nessa perspectiva, vale informar sobre o material disponível no Site do
CNJ, qual seja, um Guia para Adoção de Crianças e Adolescentes – “Três Vivas
para a Adoção”16, desenvolvido pelo O MAIS - Movimento de Ação e Inovação
Social, em conjunto com diversos colaboradores, que pode ser utilizado como
ferramenta de conscientização e dispõe dentre outras coisas, sobre o fato de
que o filho ideal não existe e que o encontro com filhos e filhas adotadas,
independente da forma como ela/ele chega, sua idade ou condição, é sempre
uma experiência de renovação e aceitação, que requer da parte dos adotantes
disponibilidade, compromisso, paciência e flexibilidade diante do que é novo e
inesperado.

5. CONCLUSÃO

Cada criança e adolescente abrigado possui uma história, diversas


necessidades e sonhos, assim o embate à institucionalização prolongada não
implica em ter pressa quando se trata de vidas, mas na imperiosa
proporcionalidade entre os direitos inerentes à criança e adolescente e a ideia
de reinseri-lo em sua família natural.
O processo de destituição do poder familiar não pode ser realizado de
forma negligente, mas, do mesmo modo, não pode submeter milhares de filhos
e filhas a uma vida de espera, em busca de uma família biológica que já o
rejeitou, que deixou de ser família há muito tempo.
É com essa linha de raciocínio, que a aplicação correta da norma é a
solução jurídica mais simples e eficaz para que o sistema de adoção do Brasil
não gere institucionalizações prolongadas e suas inúmeras consequências.
Dessa forma, é de suma importância que o Poder Judiciário, em conjunto
com o Ministério Público e o Poder Executivo local, trabalhem a fim de
resguardar os interesses da criança ou do adolescente e priorizar o direito à
convivência familiar, fomentando programas para habilitados à adoção e
possíveis pretendentes para tal, de maneira a efetivar o que já está previsto em
lei, mas que não existe na prática.
Ainda, outra forma capaz de melhorar a situação das crianças e
adolescentes acolhidos institucionalmente, seria a homogeneização daquilo que
muitos Promotores de Justiça já vêm, acertadamente, fazendo: requerer, logo
após a sentença da ação de destituição do poder familiar (ou mesmo no curso
da ação), a tutela provisória antecipada de urgência de natureza cautelar, para
conceder a guarda da criança ou adolescente a pessoa legalmente habilitada
para adotá-lo, dessa forma a criança e adolescente poderá, desde logo, sentir-
se instruído e amado, sem precisar esperar longos anos abrigado, aguardando
o trânsito em julgado definitivo da sentença de destituição do poder familiar para
ser inserido no Cadastro de Adoção, correndo o risco de não ser reinserido em
uma família nunca mais.

16 Portal do CNJ. Guia para Adoção de Crianças e Adolescentes – “Três Vivas para a Adoção”.
Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/05/085549ad1ee68b11de13a0e037d6e95b.pd
f. Acessado em: 18/02/2019.
1109

Contudo, não são só problemas jurídicos que atravancam a adoção, mas


também questões sociais que podem e devem ser alteradas por meio de
campanhas com a finalidade de incentivar a adoção de crianças e adolescentes
inter-raciais, deficientes e de diversas faixas etárias, diminuindo, assim, os
critérios e aumentando a sensibilidade dos pretendentes a adoção.
Existem diversos materiais disponíveis para campanhas de
conscientização a respeito da contradição de existirem cerca de quase cinco
vezes mais adotandos que adotantes. No entanto, tais iniciativas são quase tão
preteridas quanto as crianças e adolescentes abrigados.
Palestras, panfletos, movimentos em redes sociais, comerciais na
televisão e na rádio, e campanhas em geral são instrumentos importantíssimos
para que a mentalidade tradicional de diversas famílias se expanda, dando
segurança a elas, e consequentemente permitindo a desinstitucionalização de
milhares de crianças e adolescentes.
De qualquer forma, o que não é plausível admitir, é a omissão por parte
do Estado e da sociedade ao deixar de olhar para crianças e adolescentes
institucionalizados, permitindo que eles cresçam marginalizados.

REFERÊNCIAS

ADOÇÃO TARDIA. Disponível em: https://www.adocaotardia.com/. Acessado


em: 03/07/2018.

ADOTE UM BOA NOITE – TJ/SP. Disponível em:


http://www.adoteumboanoite.com.br/. Acessado em: 18/02/2019.

ADOTE UM PEQUENO TORCEDOR – TJ/PE. Disponível em:


http://www.tjpe.jus.br/-/projeto-adote-um-pequeno-torcedor-estimula-adocao-
tardia. Acessado em: 18/02/2019.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE GRUPOS DE APOIO À ADOÇÃO. Assessoria


de Comunicação ANGAAD. Adoção tardia: tribunais dão visibilidade a criança
e adolescente. Disponível em: http://www.angaad.org.br/adocao-tardia-
tribunais-dao-visibilidade-a-crianca-e-adolescente/. Acessado em: 03/07/2018.

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 dispõe sobre Estatuto da


Criança e do Adolescente (ECA). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8069.htm. Acessado em: 23/06/2018.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. PORTAL CNJ - Aplicativo quer trazer


vídeo de crianças aptas a adoção no RS. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/q8bk. Acessado em: 02/07/2018.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. PORTAL CNJ - Cadastro Nacional de


Adoção (CNA). Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf . Acessado em:
22/06/2018.
1110

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. PORTAL CNJ - Cadastro Nacional de


Crianças Acolhidas (CNCA). Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/cnca/publico/. Acessado em: 25/06/2018.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. PORTAL CNJ - Projetos apontam o


ideal e o real diante da decisão de adotar. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84783-projetos-apontam-o-ideal-e-o-real-
diante-da-decisao-de-adotar. Acessado em: 03/07/2018.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. PORTAL CNJ - Guia para Adoção de


Crianças e Adolescentes – “Três Vivas para a Adoção”. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/05/085549ad1ee68b11de13a0
e037d6e95b.pdf. Acessado em: 18/02/2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 36, de 24 de abril de


2014 – Dispõe sobre a estrutura e procedimento das Varas da Infância e
Juventude. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/provimento_36.pdf. Acessado em:
29/06/2018.

CUNEO, Mônica Rodrigues. Abrigamento prolongado: os filhos do


esquecimento. Disponível em: http://mca.mp.rj.gov.br/wp-
content/uploads/2012/08/7_Abrigamento.pdf. Acessado em: 29/06/2018.

DIAS, Maria Berenice; Filhos do afeto – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2016.

ESPERANDO POR VOCÊ – TJ/ES. Disponível em:


http://www.tjes.jus.br/esperandoporvoce/. Acessado em: 18/02/2019.

INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Assessoria de


Comunicação do IBDFAM. Série “Um olhar sobre a adoção”. Disponível em:
http://www.ibdfam.org.br/noticias/6347/S%C3%A9rie+%E2%80%9CUm+olhar+
sobre+a+ado%C3%A7%C3%A3o%E2%80%9D. Acessado em: 25/06/2018.

INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. “Crianças invisíveis”.


Entrevista. Edição 31, fevereiro/março 2017. Disponível
em:http://www.tjpe.jus.br/documents/72348/1723568/REVISTA+IBDFAM+crian
cas+invisiveis.pdf/0cfb30bc-aab6-4491-183b-2b1c9d217c28. Acessado em:
29/06/2018.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Provimento CG


TJ/SP 36/2014. Disponível em:
http://esaj.tjsp.jus.br/gcnPtl/abrirDetalhesLegislacao.do?cdLegislacaoEdit=1354
91&flBtVoltar=N. Acessado em: 25/06/2018.

YOUTUBE – Canal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Disponível em:


https://www.youtube.com/user/portaltjes. Acessado em: 18/02/2019.
1111

O ATENDIMENTO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE ATRAVÉS DA ADOÇÃO HOMOAFETIVA E TRANSAFETIVA
EL CUIDADO DEL MEJOR INTERÉS DEL NIÑO Y ADOLESCENTE A
TRAVÉS DE LA ADOPCIÓN HOMOAFECTIVA Y TRANSAFE

Pedro Henrique de Jesus Silva


Orientador(a): Lucilo Perondi Júnior

Resumo: O artigo visa analisar o atendimento ao princípio do melhor interesse


da criança e do adolescente através da adoção homoafetiva ou transafetiva.
Objetiva-se analisar a possibilidade de adoção por pessoas homossexuais ou
transgêneras, casadas ou solteiras, como forma de romper com preconceito, a
intolerância e a discriminação, em razão do gênero e/ou orientação sexual no
processo de adoção. Optou-se pela pesquisa bibliográfica doutrinária,
jurisprudencial e legal, utilizando-se o método dedutivo. Justifica-se a pesquisa
para constatar a possibilidade jurídica do pedido de adoção por estas pessoas,
atrelada ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, a fim de
termos uma igualdade substancial baseada no princípio da igualdade, na
dignidade da pessoa humana e na afetividade, previstos no texto constitucional.
Palavras-chave: Adoção. Homoafetiva. Transafetiva.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar el cumplimiento del


principio del interés de los niños y adolescentes a través de la adopción
homoafectiva o transafeiva. El objetivo es analizarla posibilidad de adopción por
parte de personas homosexuales o transgénero, casadas o solteras, como una
forma de romper con los prejuicios, la intolerancia y la discriminación, debido a
la Género y/o orientación sexual en el proceso de adopción. Optamos por la
investigación bibliográfica doctrinal, jurisprudencial y jurídica, utilizando el
método deductivo. La investigación está justificada en la verificación de la
posibilidad legal de la solicitud de adopción por estas personas, vinculada al
principio de interés del niño y del adolescente, con el fin de tener un Base
sustancial basada en el principio de igualdad, la eficacia de la prasha y la
afectividad, según lo dispuesto en el texto constitucional.
Palabras clave: Adopción. Homoafectivo. Transafetive.

INTRODUÇÃO

O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, regulamenta o processo


de adoção de crianças e adolescentes, e em seu bojo tem como objetivo central
atender o melhor interesse desses. Partindo dessas premissas, muito se discutia
acerca da possibilidade jurídica de deferir o pedido de adoção de pessoas
homossexuais ou transsexuais, casados ou solteiros, haja vista que para
àqueles mais tradicionais conviver em um lar com alguém homossexual ou
transexual influenciaria o menor a ter a mesma orientação sexual e/ou identidade
de gênero.
Comporta salientar, que esta visão tradicional, ou melhor, esse juízo de
valor, foi utilizado por muitos anos, como justificativa para juízes, promotores,
desembargadores etc., negar às pessoas homossexuais e/ou transgêneras o
direito à constituir família e ao menor o direito de ser inserido em uma família, de
crescer e se desenvolver em um ambiente de afeto.
1112

No entanto, com a pioneira decisão do Supremo Tribunal Federal - STF


que reconheceu como entidade familiar as uniões homoafetivas, gozando esta
de todos os direitos oriundos desta união, não era mais plausível negar o direito
à adoção, levando em consideração a identidade de gênero e/ou a orientação
sexual do sujeito.
Diante dessa problemática, objetiva-se analisar a possibilidade de adoção
por pessoas homossexuais ou transgêneras, casadas ou solteiras, como forma
de romper com preconceito, a intolerância e a discriminação, em razão do gênero
e/ou orientação sexual no processo de adoção. Para tanto, o primeiro tópico,
aborda se o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente para maior
compreensão do tema estudado. O tópico seguinte, trata sobre a adoção
homoafetiva e transafetiva, como forma de atender o princípio supracitado.
Justifica-se a presente pesquisa para constatar a possibilidade jurídica do
pedido de adoção por estas pessoas, atrelada ao princípio do melhor interesse
da criança e do adolescente, a fim de termos uma igualdade substancial baseada
no princípio da igualdade, na dignidade da pessoa humana e na afetividade,
previstos no texto constitucional.
A metodologia de trabalho centrou-se nos principais aspectos
estabelecidos para uma pesquisa interdisciplinar, a qual envolve temas de
Direito Constitucional, Direito da Criança e do adolescente etc. Foi utilizado
como técnica de pesquisa revisão bibliográfica doutrinária, jurisprudencial e
legal, bem como estudos especializados. Para o desenvolvimento do estudo e
suas correlatas conclusões, utilizou-se o método dedutivo.

O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Em primeiro lugar, é mister abordarmos a origem do conceito do princípio


do melhor interesse da criança e do adolescente. Assim sendo, segundo Camila
Colucci:
A origem do melhor interesse da criança adveio do instituto inglês
parens patriae que tinha por objetivo a proteção de pessoas incapazes
e de seus bens. Com sua divisão entre proteção dos loucos e proteção
infantil, esta última evoluiu para o princípio do best interest of child.1

Uma vez reconhecido e oficializado pelo sistema jurídico inglês, o “best


interest”, o termo foi posteriormente adotado internacionalmente na Declaração
dos Direitos da Criança, em 1959 e no Brasil, já se encontrava presente no artigo
5º do Código de Menores.
O Princípio do melhor interesse é valor/norma que orienta aqueles que
se defrontam com as exigências naturais da criança e do adolescente
Senão vejamos:

Trata-se de princípio orientador tanto para o legislador como para o


aplicador, determinando a primazia das necessidades da criança e do
adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos,

1COLUCCI, Camila Fernanda Pinsinato. Princípio do melhor interesse da criança: Construção


Teórica e aplicação prática no direito brasileiro. USP, São Paulo: 2014, p. 7.
1113

ou mesmo para a elaboração de futuras regras.2

Nesse sentido, ainda nos explica que a decisão estará de acordo com tal
princípio quando “primar pelo resguardo amplo dos direitos fundamentais, sem
subjetivismos do intérprete” 3 Ao que explica adiante:

(...) Melhor interesse não é o que o Julgador entende que é melhor para
a criança, mas sim o que objetivamente atende à sua dignidade como
criança, aos seus direitos fundamentais em maior grau possível. À
guisa de exemplo, vamos pensar em uma criança que está em risco,
vivendo pelas ruas de uma grande cidade, dormindo ao relento,
consumindo drogas, sujeita a todo tipo de violência. Acolhê-la e retirá-
la das ruas, mesmo contra sua vontade imediata, é atender ao princípio
do melhor interesse. Com o acolhimento, busca-se assegurar o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao respeito como pessoa,
à sua dignidade, a despeito de não se atender, naquele momento, ao
seu direito à liberdade de ir, vir e permanecer, onde assim o desejar.
Trata-se de mera ponderação de interesses e aplicação do princípio da
razoabilidade. Apesar de não conseguir assegurar à criança todos os
seus direitos fundamentais, buscou-se a decisão que os assegura em
maior número, da forma mais ampla possível.4

ADOÇÃO HOMOAFETIVA OU TRANSAFETIVA

A adoção consiste na colocação da criança e/ou do adolescente em


família substituta tem como fundamento a premissa de que toda criança e
adolescente tem direito a ter uma família e a bem conviver com ela.

A ideia de que a adoção era mecanismo para conceder um filho a


alguém que, biologicamente, não poderia ter foi afastada,
prevalecendo a concepção do instituto como mecanismo de colocação
em família substituta, consubstanciando o direito à convivência familiar
e à proteção integral do adotado.5

A adoção ainda pode ser definida como forma de estabelecimento do


parentesco, pela qual, mediante determinação judicial alguém passa a ser filho
de outra pessoa e a integral a família, sem qualquer diferença jurídica com filho
consanguíneo, ou seja, gozará o adotado dos mesmos direitos e obrigações que
o filho consanguíneo.
No ordenamento jurídico pátrio, a adoção está totalmente regulada pelo
Estatuto da criança e do Adolescente – ECA, haja vista que a maioria das
disposições do Código Civil acerca da adoção foram revogadas.
Leandro Cunha e Tereza Domingos, asseveram:

A adoção de regra, revela-se como um ato humanitário, fundado no


preconceito humanista que rege nosso ordenamento jurídico,

2 AMIN, Andréa Rodrigues. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e


práticos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 69.
3 Ibidem, p. 69.
4 Ibidem, p. 69.
5 FARIAS; Rosenvald, 2014, p. 932.
1114

ressaltado tanto no corpo do texto constitucional (dignidade da pessoa


humana) quanto em seu preâmbulo.6

A possibilidade de adoção por pessoas homossexuais e transexuais


sempre foi questionada, no entanto diversas áreas da ciência já se manifestaram
no sentido de que a referida modalidade de adoção não enseja ofensa ao bem-
estar do adotado, conforme nos ensina Roberto Lorea.
O manto da identidade de gênero, bem como da orientação sexual do (s)
sujeito (s) adotante (s) não pode ser fator condicionante para que este constitua
uma família e pratique o gesto humanitário da adoção.
Senão vejamos:

A orientação sexual daquele que busca adotar não pode ser usada
como parâmetro para definir se alguém tem condições de dar um lar a
uma pessoa e criá-la atendendo os parâmetros legais para tanto, o que
se aplica, portanto, aos casais homossexuais. 7

Ora, se a orientação sexual do adotante ou a sua identidade não constam


como requisito legal para adoção, qualquer restrição com o cunho
preconceituoso e discriminatório, constitui violação ao princípio da dignidade da
pessoa humana e ao principio da igualdade, previstos no texto constitucional
artigo 1º, inciso III e artigo 5º, Caput, respectivamente.
Assim sendo, a possibilidade adoção homoafetiva (por pessoas do mesmo
sexo) ou transafetiva (por pessoas transexuais, travestis e intersexuais) traduz
manifesta aplicação do princípio do melhor interesse da criança e adolescente,
que deve ser analisado não só no processo de adoção, mas em todas as causas
que envolvam menores.
O Poder Judiciário têm se manifestado favorável ao deferimento do
pedido de adoção por pessoas homossexuais e transexuais, pois não há
qualquer óbice legal atrelada a orientação sexual e/ou identidade de gênero do
sujeito. O que se verifica pelos julgados transcritos abaixo:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO DE MENORES POR CASAL


HOMOSSEXUAL. SITUAÇÃO JÁ CONSOLIDADA. ESTABILIDADE
DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES VÍNCULOS AFETIVOS
ENTRE OS MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE
DA PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DOS MENORES.
RELATÓRIO DA ASSISTENTE SOCIAL FAVORÁVEL AO PEDIDO.
REAIS VANTAGENS PARA OS ADOTANDOS. ARTIGOS 1º DA LEI
12.010/09 E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
DEFERIMENTO DA MEDIDA.
1. A questão diz respeito à possibilidade de adoção de crianças por
parte de requerente que vive em união homoafetiva com companheira
que antes já adotara os mesmos filhos, circunstância a particularizar o
caso em julgamento
2. Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da

6CUNHA, Leandro Reinaldo da. DOMINGOS, Terezinha de Oliveira. A nova perspectiva da


adoção nacional e o capitalismo humanista. Vol. 10. São Bernardo do Campo: Metodista, 2012.
7 Leandro Reinaldo. Identidade e redesignação de gênero: aspectos da personalidade e da
responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 40.
1115

informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as


relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente,
a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os
postulados maiores do direito universal.
3. O artigo 1º da Lei 12.010/09 prevê a "garantia do direito à
convivência familiar a todas e crianças e adolescentes". Por sua vez, o
artigo 43 do ECA estabelece que "a adoção será deferida quando
apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos
legítimos".
4. Mister observar a imprescindibilidade da prevalência dos interesses
dos menores sobre quaisquer outros, até porque está em jogo o próprio
direito de filiação, do qual decorrem as mais diversas consequências
que refletem por toda a vida de qualquer indivíduo.
5. A matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por
casais homossexuais vincula-se obrigatoriamente à necessidade de
verificar qual é a melhor solução a ser dada para a proteção dos direitos
das crianças, pois são questões indissociáveis entre si.
6. Os diversos e respeitados estudos especializados sobre o tema,
fundados em fortes bases científicas (realizados na Universidade de
Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia Americana de
Pediatria), "não indicam qualquer inconveniente em que crianças
sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a
qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que
serão inseridas e que as liga a seus cuidadores".
7. Existência de consistente relatório social elaborado por assistente
social favorável ao pedido da requerente, ante a constatação da
estabilidade da família. Acórdão que se posiciona a favor do pedido,
bem como parecer do Ministério Público Federal pelo acolhimento da
tese autoral.
8. É incontroverso que existem fortes vínculos afetivos entre a
recorrida e os menores ? sendo a afetividade o aspecto preponderante
a ser sopesado numa situação como a que ora se coloca em
julgamento.
9. Se os estudos científicos não sinalizam qualquer prejuízo de
qualquer natureza para as crianças, se elas vêm sendo criadas com
amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo, assegurar seus direitos,
o deferimento da adoção é medida que se impõe.
10. O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade
fenomênica. Vale dizer, no plano da ?realidade?, são ambas, a
requerente e sua companheira, responsáveis pela criação e educação
dos dois infantes, de modo que a elas, solidariamente, compete a
responsabilidade.
11. Não se pode olvidar que se trata de situação fática consolidada,
pois as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas
por ambas como filhos.
Existe dupla maternidade desde o nascimento das crianças, e não
houve qualquer prejuízo em suas criações.
12. Com o deferimento da adoção, fica preservado o direito de
convívio dos filhos com a requerente no caso de separação ou
falecimento de sua companheira. Asseguram-se os direitos relativos a
alimentos e sucessão, viabilizando-se, ainda, a inclusão dos adotandos
em convênios de saúde da requerente e no ensino básico e superior,
por ela ser professora universitária.
13. A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor,
desprendimento. Quando efetivada com o objetivo de atender aos
interesses do menor, é um gesto de humanidade. Hipótese em que
ainda se foi além, pretendendo-se a adoção de dois menores, irmãos
biológicos, quando, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça,
que criou, em 29 de abril de 2008, o Cadastro Nacional de Adoção,
1116

86% das pessoas que desejavam adotar limitavam sua intenção a


apenas uma criança.
14. Por qualquer ângulo que se analise a questão, seja em relação à
situação fática consolidada, seja no tocante à expressa previsão legal
de primazia à proteção integral das crianças, chega-se à conclusão de
que, no caso dos autos, há mais do que reais vantagens para os
adotandos, conforme preceitua o artigo 43 do ECA. Na verdade,
ocorrerá verdadeiro prejuízo aos menores caso não deferida a medida.
15. Recurso especial improvido.
(REsp 889.852/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA
TURMA, julgado em 27/04/2010, DJe 10/08/2010).8

INFÂNCIA E JUVENTUDE. PEDIDO DE HABILITAÇÃO PARA


ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO. SENTENÇA DE
PROCEDÊNCIA. APELO DO PARQUET. PRETENDIDA A
COMPLEMENTAÇÃO DO ESTUDO PSICOSSOCIAL.
DESNECESSIDADE. ESTUDOS SOCIAL E PSICOSSOCIAL
CLAROS E FAVORÁVEIS À HABILITAÇÃO. TRATAMENTO
PSICOTERÁPICO POR UM DOS ADOTANTES. FATO QUE
CORROBORA SUA DISPOSIÇÃO EM SE PREPARAR
PSICOLOGICAMENTE PARA A ADOÇÃO. AUSÊNCIA DE
ELEMENTOS A COLOCAR EM DÚVIDA O PREPARO DO CASAL
NESTE MOMENTO PROCESSUAL. CRITÉRIOS RECURSAIS
DISCRIMINATÓRIOS, INFUNDADOS E DESARRAZOADOS.
PRETENSÃO DE DESCOBRIR A "GÊNESE" DA
HOMOSSEXUALIDADE E OS "PAPÉIS" QUE CADA UM EXERCE NO
ÂMBITO RELACIONAL. PLEITO QUE ESBARRA NA DIGNIDADE
HUMANA DOS REQUERENTES E NA NECESSIDADE DE
TRATAMENTO IGUALITÁRIO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1º, III, 3º,
IV, E 5º, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRECEDENTE DO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. HABILITAÇÃO DEFERIDA.
SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

1. "Se determinada situação é possível ao extrato heterossexual da


população brasileira, também o é à fração homossexual, assexual ou
transexual, e todos os demais grupos representativos de minorias de
qualquer natureza que são abraçados, em igualdade de condições,
pelos mesmos direitos e se submetem, de igual forma, às restrições ou
exigências da mesma lei, que deve, em homenagem ao princípio da
igualdade, resguardar-se de quaisquer conteúdos discriminatórios."
(STJ, REsp 1281093/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira
Turma, j. 18/12/2012)
2. Na visão moderna, não há mais espaço para se conceberem
argumentos impeditivos de adoção de crianças e adolescentes por
casais homoafetivos. Tanto estes como os casais heterossexuais
deverão comprovar, no mínimo, no interesse maior de crianças e
adolescentes, suas aptidões para o exercício responsável da
paternidade e maternidade. No âmbito do Direito da Infância e
Juventude, há que se ter muita cautela para não se afrontar o princípio
da dignidade humana, quer de crianças e adolescentes, quer de
pretendentes a guarda ou adoção. Ambos merecem absoluta e
inarredável proteção.
(TJSC, Apelação Cível n. 0002583-11.2017.8.24.0036, de Jaraguá do
Sul, rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, Terceira Câmara de Direito Civil,

8Superior Tribunal de Justiça: Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em


18/09/2019.
1117

j. 13-03-2018).9

Ocorre que o processo de adoção ao contrário da vontade legislativa é


um processo moroso, deve (m) o adotante (s) cumprir uma série de atos, a fim
de que ao final seja lhe deferida, e é justamente tais atos que ao final farão do (s)
adotante (s) apto (s) à adotar uma criança ou adolescente, não ocorrendo,
portanto, nenhuma diferenciação na realização dos procedimentos atrelada à
orientação sexual e/ou identidade de gênero do sujeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Postos tais esforços acima constatados, conclui-se que a adoção por


casais ou pessoas homoafetivas e transgêneras é plenamente possível e funda-
se na máxima da dignidade da pessoa humana, na igualdade, bem como no
princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, não havendo óbice
legal que impeçam tal gesto e que tais pessoas constituam uma família.
No entanto, deve-se, ainda, intensificar e buscar cada vez mais iniciativas
para um contínuo aprimoramento e adaptação da legislação e demais
normatizações em vigor, visando à superação de práticas discriminatórias que
tentem limitar o exercício do direito das pessoas homoafetivas e de gênero em
constituir uma família, bem como que limitem o direito de crianças e adolescentes
de integrá-la.

REFERÊNCIAS

AMIN, Andréa Rodrigues; SANTOS, Ângela Maria Silveira; MORAES, Bianca


Mota de; CONDACK, Cláudia Canto; BORDALLO, Galdino Augusto Coelho;
RAMOS, Helane Vieira; MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade;
RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers; TAVARES, Patrícia Silveira.
Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e
práticos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

COLUCCI, Camila Fernanda Pinsinato. Princípio do melhor interesse da


criança: Construção Teórica e aplicação prática no direito brasileiro. USP,
São Paulo: 2014.

CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e Redesignação de Gênero:


Aspectos da Personalidade, da Família e da Personalidade Civil. 1ª ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os Direitos LGBTI. 7ª ed, São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

FOUCAULT, Michel. História da Homossexualidade 1: a vontade de saber.


13ª. ed. Rio de Janeiro: Geral, 1999.

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 8ª. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011.

9Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Disponível em:


http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora. Acesso em 18/09/2019.
1118

MAZZARROBA, Orides, MONTEIRO, Cláudia Servilha, Manual de


Metodologia da pesquisa no Direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: Disponível em:


https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em 18/09/2019.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA: Disponível em:


http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora. Acesso em:
18/09/2019.
1119

O BULLYING E A RESPONSABILIDADE CIVIL


BULLYING AND CIVIL LIABILITY

Mariana Castro Scapin


Orientador(a): Ana Paula de Moraes Pissaldo

Resumo: O presente artigo busca fornecer um breve conceito de bullying,


apresentando as relações da prática de tal ato com o previsto na legislação
brasileira atual, quais sejam: Código Civil de 2002, Constituição Federal de 1988,
a lei nº 13.185/2015 e a lei nº 13.663/2018 (estas últimas, leis federais
promulgadas especificamente sobre o bullying), além de realizar uma breve
análise com um julgamento do Superior Tribunal de Justiça e da
responsabilidade civil dos responsáveis pelos discentes menores de idade (seja
a escola, seja o tutor).
O objetivo do artigo, portanto, é fornecer subsídios para futuras pesquisas que
busquem fomentar uma cultura de paz nas escolas, sejam públicas ou
particulares, através da aplicação das legislações vigentes e pela instituição de
programas e/ou políticas públicas que visem o combate ao bullying, fomentando
a cultura de paz nas escolas.
Palavras-chave: Bullying. Responsabilidade civil. Políticas públicas.

Abstract: This article seeks to provide a brief concept of bullying, presenting the
relationships between the practice of such act and the provisions of current
Brazilian Laws, namely: The Civil Code of the Federal Constitution of 1988, Law
# 13.185/2015 and Law # 13.663/2018 (the latter ones, specifically enacted
federal bullying laws) and also provides brief analysis of a judgment of the
Superior Court of Justice and the civil liability of the people responsible for
underage students (either the school, or the tutor).
The purpose of the article, therefore, is to provide subsidies for future research
which seek to foster a culture of peace at schools, whether public or private, by
applying current legislation and the establishment of public programs and/or
policies aimed at fighting bullying by fostering a culture of peace at schools.
Keywords: Bullying. Civil liability. Public policy.

INTRODUÇÃO

Este artigo surge de uma necessidade crescente de debater o bullying,


fenômeno tão antigo quanto a escola. FANTE (2005, p. 44) nos esclarece que
“poucos esforços foram despendidos para o seu estudo sistemático até
princípios da década de 1970”. Há que se considerar que tal fenômeno viola os
direitos das crianças e dos adolescentes, em especial o direito à educação de
qualidade, ambiente escolar seguro e à saúde (física e mental).
Tendo em vista os impactos negativos que o bullying traz às vítimas em
sua saúde, emocional e desempenho acadêmico, estendendo-se também aos
agressores e testemunhas, ao gerar um ambiente escolar cheio de ansiedade,
insegurança e medo, faz-se necessário um estudo sobre o tema no que concerne
especificamente à legislação e de que forma tal prática impacta nos direitos de
quem está envolvido direta ou indiretamente com o bullying.
O presente artigo utiliza como metodologia de pesquisa a hipotética
dedutiva, com referencial teórico. Ao longo deste artigo, tentar-se-á responder a
1120

seguinte questão: “de que forma as políticas públicas podem efetivamente


ajudar na criação de um ambiente escolar livre de bullying?”.
Este artigo apresenta a seguinte estrutura: no capítulo 1 será apresentado
o conceito de bullying, utilizando-se dos autores FANTE, CONSTANTINI,
CHAVES e SOUZA. No capítulo 2, será apresentado o histórico da legislação
mundial, de acordo com o relatório da UNESCO sobre violência escolar e
bullying. No capítulo 3, será apresentada a legislação brasileira referente ao
bullying, debatendo-se a responsabilidade civil presente no Código Civil vigente
perante à prática do bullying, assim como a análise do AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL nº 877871 - RS (2016/0057935-5).

1. CONCEITO DE BULLYING

Primeiramente há que se definir o que significa o termo bullying. É uma


palavra que tem origem da língua inglesa e deriva de bully, que, em tradução
livre para o português, significa “valentão”.
O termo bullying é adotado em diversos países para interpretar a
aspiração, a vontade intencional e consciente de determinado indivíduo em
maltratar outra pessoa, além de colocá-la sob tensão. De acordo com FANTE,
bullying é

[...] um termo que conceitua comportamentos agressivos e anti-sociais,


utilizado pela literatura psicológica anglo-saxônica nos estudos sobre
o problema da violência escolar (FANTE, 2005, p. 27).

Em um segundo momento, faz-se necessário compreender a definição do


comportamento que se refere ao bullying. Neste sentido, compreende-se o
bullying como sendo um conjunto de comportamentos e atitudes agressivas, que
ocorrem de maneira intencional, consciente e de forma repetitiva, sem aparente
motivação, empregado por um discente ou grupo de discentes contra outro,
causando-lhe uma série de transtornos, como angústia, dor e sofrimento.
O bullying é uma conduta que está intimamente ligada à agressividade,
seja ela praticada de forma verbal, física ou psicológica. É um comportamento
exercido continuamente, normalmente por jovens, que são definidos como
intimidadores quando da ocorrência do confronto com uma determinada vítima.
De acordo com CONSTANTINI, os atos de bullying

Não são conflitos normais ou brigas que ocorrem entre estudantes,


mas verdadeiros atos de intimidação preconcebidos, ameaças, que,
sistematicamente, com violência física e psicológica, são
repetidamente impostos a indivíduos particularmente mais vulneráveis
e incapazes de se defenderem, o que os leva no mais das vezes a uma
condição de sujeição, sofrimento psicológico, isolamento e
marginalização.(CONSTANTINI, 2004, p. 69).

CHAVES e SOUZA (2018) relatam de forma concisa o que caracteriza o


bullying em três pontos: 1) são comportamentos agressivos, que têm o objetivo
de provocar, de maneira proposital, danos a quem sofre (o alvo de tais
agressões); 2) os comportamentos agressivos não ocorrem apenas uma vez,
ocorrem de maneira repetida e continuada; 3) é uma relação entre pessoas,
apresentando uma relação em que o indivíduo (ou grupo) que pratica é mais
1121

forte do indivíduo que sofre a agressão, ou seja, “apresenta uma relação de


desequilíbrio de poder” (CHAVES e SOUZA, 2018).
Por fim, faz-se necessário compreender quem são os agentes envolvidos
na prática do bullying. Para CHAVES e SOUZA, há uma dinâmica específica no
bullying denominada bullying circle1,

[...] a qual é composta de papéis caracterizados com base nas ações


e atitudes manifestadas pelos sujeitos envolvidos. Entre eles,
destacam-se: o agressor/bully e a vítima/deal. De acordo com essa
dinâmica, a vítima/deal pode ser passiva ou provocadora (CHAVES e
SOUZA, apud Olweus, 2003 e Limber e Olweus, 2010).

Nesse sentido, a vítima passiva apresenta um comportamento tímido,


solidão e é uma pessoa quieta. Quando este tipo de vítima é agredida pelo
agressor, habitualmente não “responde às agressões de maneira violenta”
(CHAVES e SOUZA, 2018) e possui um sentimento de incapacidade para
solicitar ajuda e para se defender de tal agressão. Quando agredida, a vítima
tem uma tendência a tanto ter uma perspectiva negativa do ato de agressão
quanto apresentar um quadro de baixa autoestima, podendo levar a outros
aspectos psicológicos mais graves. Já “a vítima provocadora apresenta
ansiedade e comportamentos agressivos, eliciando reações agressivas por parte
dos colegas” (CHAVES e SOUZA, 2018).
Já o agressor é o indivíduo que dá início à prática do bullying, possuindo
uma atuação dinâmica, ativa, na ocorrência do ato. O agressor não apresenta,
obrigatoriamente, uma razão ou justificativa evidente para manifestar tais
comportamentos agressivos. Quem assume esse papel normalmente

[...] é descrito como alguém que impõe autoridade por meio de ações
agressivas combinadas à força física e/ou psicológica, apresentando
necessidade de poder e dominação, necessidade esta geralmente
associada à insegurança e ansiedade (CHAVES e SOUZA, 2018, apud
Olweus, 1997, 2003).

Para FANTE há ainda dois outros personagens que aparecem na prática


do bullying: a vítima agressora e o espectador. A vítima agressora é aquele aluno
que repete a violência sofrida, que busca pessoas mais frágeis que ele para
reproduzir o comportamento agressivo sofrido, transformando-as em bodes
expiatórios. Esta tendência faz com que o bullying transforme-se em uma
“dinâmica expansiva”, resultando no aumento do número de vítimas (FANTE,
2005).
O espectador, por sua vez, é o discente que testemunha a prática do
bullying, porém não é vítima (sofre do bullying) nem é agressor (pratica o
bullying). O espectador “representa a grande maioria dos alunos que convive
com o problema e adota a lei do silêncio por temer se transformar em novo alvo
para o agressor” (FANTE, 2005, p. 73).
Nesse viés e em face o apresentado, é necessário que haja um processo
de humanização no ambiente escolar, seja pelo aspecto pedagógico, seja pelo
aspecto legislativo – foco do presente artigo. Assim, vemos que diversos países,
incluindo o Brasil, estão seguindo um rumo legislativo no combate ao bullying no
âmbito escolar.

1 Bullying circle: em tradução livre, significa o “ciclo da agressão”.


1122

2. HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO MUNDIAL

De acordo com o relatório da UNESCO sobre violência escolar e bullying


(2019), alguns países já aprovaram legislação pertinente no que concerne ao
combate e à prevenção do bullying e do cyberbullying; outros países
sancionaram legislação específica com relação ao cyberbullying, ou apenas o
incluíram em legislações já existentes o sobre o bullying.
A República da Coreia, concebeu, no ano de 2004, legislação específica
contra violência e bullying no ambiente escolar, fornecendo medidas tanto
preventivas quanto de combate à violência escolar. Já as Filipinas
desenvolveram uma lei que oferece suporte para projetos tanto que
conscientização nacional quanto de políticas escolares. A lei de combate ao
bullying exige que todas as escolas, seja de ensino fundamental ou ensino
médio, realizem três pontos: 1) aplicar políticas de combate ao bullying; 2)
instaurar mecanismos e requisitos de “informação relevantes” (UNESCO, 2019,
p. 34); e 3) delinear medidas no caso de tais determinações não serem
cumpridas. Há também uma lei que se destina especificamente ao cyberbullying,
a Lei de Combate ao bullying.
Na Austrália, a lei de apoio à escola (Schools Assistance Act), de 2004,
rege a Estrutura Nacional para a Segurança nas Escolas, desenvolvido em 2003
com o objetivo de promover “a iniciativa nacional de combate ao bullying e à
violência nas escolas” (UNESCO, 2019, p. 34). No ano de 2015, a Lei de Reforço
da Segurança Online para as Crianças veio no sentido de combater o
cyberbullying.
Devido à Lei para a Educação Básica, na Finlândia todo discente tem
direito a um ambiente escolar que seja seguro, as autoridades responsáveis
pelas escolas têm responsabilidade no sentido de assegurar que os discentes
não sofram quaisquer tipos de violência e bullying no ambiente escolar.
Em 2009, a Suécia sancionou lei contra discriminação e em 2010
sancionou a lei para a educação, que vedam tanto a discriminação quanto o
bullying nos ambientes escolares. “A lei (...) garante a proibição de reprimendas
contra os que denunciam incidentes de bullying e o direito à indenização, caso a
escola não cumpra com os regulamentos” (UNESCO, 2019, p. 34);
No Canadá, a lei da cidade de Ontário é eficaz apenas nas escolas
públicas, trata de todos as ocorrências de bullying e “determina os direitos e
responsabilidades dos ministérios e funcionários escolares, incluindo
professores e diretorias” (UNESCO, 2019, p. 34). A lei da cidade de Quebec traz
o conceito de bullying e responsabiliza a diretoria, escolas públicas e privadas e
ministério para assegurar um ambiente de aprendizagem que seja tanto
saudável quanto seguro para os alunos.
Em 2011, no Chile, duas leis foram sancionadas: uma versa sobre a
violência escolar e a outra é a lei geral para a educação. Em 2014, no México,
a lei de Proteção da Criança determina que “as autoridades estabeleçam
estratégias para a identificação, prevenção e eliminação do bullying” (UNESCO,
2019, p. 34). Já no Peru, desde 2011, a legislação busca assegurar um ambiente
escolar protegido através de mecanismos que buscam “a prevenção,
identificação, resposta e eliminação do bullying e do cyberbullying” (UNESCO,
2019, p. 34).
No Reino Unido, o bullying é amparado
1123

[...] pela Lei de Educação e Inspeção desde 2006, Regulamento


Padrão para as Escolas Independentes de 2010, Lei do Estatuto da
Criança e do Adolescente de 1989, Lei contra o Assédio de 1997, Lei
contra Comunicações Maliciosas de 1988, Lei sobre Comunicações de
2003 e Lei da Ordem Pública de 1986 (UNESCO, 2019, p. 35)

Os discentes da Irlanda são preservados do bullying

[...] pela Lei de Igualdade, Leis de Igualdade e Emprego de 1998-2008,


Lei de Segurança, Saúde e Bem-Estar no Trabalho de 2005, Lei do
Bem-Estar na Educação de 2000 e Lei da Educação de 1998
(UNESCO, 2019, p. 35).

De significativa importância na prevenção do bullying, a Lei de Proteção


contra o Assédio de Singapura, visa proteger os cidadãos contra o assédio,
determinando sanções e reparações civis. Em 2015, a Nova Zelândia adotou
legislação que objetiva

impedir e prevenir as comunicações digitais prejudiciais (Hamful Digital


Comunications Act), reduzir seu impacto nas vítimas e estabeleces
sistemas para solucionar denúncias rapidamente e remover material
online prejudicial (UNESCO, 2019, p. 35).

Nos Estados Unidos, contudo não há uma legislação de âmbito federal


específica que trate do bullying, apesar de algumas leis oferecerem suporte (Lei
de Melhoria das Escolas Americanas e Lei de Segurança e Combate às Drogas
nas Escolas e Comunidades). Em 2011 “o estado da Califórnia aprovou um
projeto de lei (...) relativo ao bullying praticado em sites de redes sociais por meio
de telefones celulares e outros serviços de internet” (UNESCO, 2019, p. 35).

3. HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O Brasil, recentemente, promulgou duas legislações concernentes ao


bullying, ambas de nível federal: a lei nº 13.185/2015, que institui o programa de
combate à intimidação sistemática, e a lei nº 13.663/2018, que altera o art. 12 da
lei 9.394/19962, para incluir a promoção de medidas de conscientização, de
prevenção e de combate a todos os tipos de violência e a promoção da cultura
de paz entre as incumbências dos estabelecimentos de ensino.
De acordo com as presentes legislações em vigor sobre o assunto,
constata-se um esforço por parte dos governantes no sentido de combate ao
bullying, na tentativa de implementar programas de combate a tais atitudes,
assim como o estímulo à conscientização e à promoção de uma cultura de paz
na comunidade escolar através da lei.
Tais leis são de extrema importância para o combate e à prevenção ao
bullying, uma vez que apresentam medidas para que tal ato não se torne mais
um fato nocivo aos discentes das escolas, através da implementação de políticas
como o Programa de Combate à Intimidação Sistemática – Bullying e a
promoção da cultura de paz, que, se implementadas e aplicadas corretamente,
podem praticamente zerar a prática do bullying nas escolas, seja na escola
pública ou na escola particular.
2 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
1124

Nesse sentido, temos a questão da tríplice função do dano moral, ou seja,


pode-se dizer que a indenização por dano moral possui função tripla, quais
sejam: a compensatória, a punitiva e a preventiva. De acordo com a Ministra
Maria Isabel Gallotti, do STJ3,

[...] 5. A indenização por danos morais possui tríplice função, a


compensatória, para mitigar os danos sofridos pela vítima; a punitiva,
para condenar o autor da prática do ato ilícito lesivo, e a preventiva,
para dissuadir o cometimento de novos atos ilícitos. Ainda, o valor da
indenização deverá ser fixado de forma compatível com a gravidade e
a lesividade do ato ilícito e as circunstâncias pessoais dos envolvidos
(Superior Tribunal de Justiça STJ – RECURSO ESPECIAL Nº
1.440.721 - GO).

De fato, dentro da legislação brasileira atual, pode-se inferir a


responsabilidade civil tanto das escolas quanto dos tutores dos discentes de
acordo com o CC/024, especificamente no que consta nos artigos 186 e 187, e
928 a 935, considerando que, segundo BORJES (2017) é passível que o bullying
enquadre-se “como espécie de ato ilícito”, corolário o dever de indenizar, seja do
pais, seja da escola.
É necessário que a comunidade escolar não só se previna contra
possíveis ações na justiça, dada quantidade de processos tramitando
atualmente nos tribunais, mas, principalmente e mais importante, combata a
prática do bullying através da aplicação da legislação em vigor para que os
discentes não sofram, além das consequências do ato, como também a
participação em um processo.

3.1. DECISÃO STJ – AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 877871 - RS


(2016/0057935-5)

APELAÇÕES CÍVEIS. AGRAVO RETIDO. RESPONSABILIDADE


CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E
MATERIAIS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA INSTITUIÇÃO DE
ENSINO. COMUNICADO. EXPULSÃO IMPLÍCITA DE MENOR.
CONDUTA ILÍCITA DA ESCOLA. OFENSA (BULLYING) PRATICADA
POR PROFESSORA NÃO DEMONSTRADA. CULPA
CONCORRENTE DA PARTE AUTORA. SENTENÇA DE PARCIAL
PROCEDÊNCIA MANTIDA. DANO MATERIAL. QUANTUM
REDUZIDO (Superior Tribunal de Justiça STJ – AGRAVO EM
RECURSO ESPECIAL nº 877871 – RS)

De acordo com a ementa da decisão do acordão retro, nota-se que houve


prática de danos morais e materiais, porém não foi comprovada a ofensa
(bullying) por parte da docente. De fato, o que se quer demonstrar com tal caso
é que tanto a escola quanto os tutores dos discentes podem ser
responsabilizados civilmente, uma vez que “É objetiva a responsabilidade civil
da instituição de ensino em razão dos serviços prestados aos alunos” (AGRAVO
EM RECURSO ESPECIAL nº 877871 - RS (2016/0057935-5).
Com relação à legislação em vigor, temos que a CF/885 preceitua em seu
art. 5º, V e X, a garantia da indenização “por dano material, moral ou à imagem”

3 Superior Tribunal de Justiça


4 Código Civil de 2002
5 Constituição Federal de 1988
1125

e que a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas são invioláveis,
sendo “assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação”.
Nesse sentido temos também o CC/02, que nos apresenta em seu art.
186 que
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Desta maneira, verificamos que as legislações vigentes nos trazem meios


de fazer com que haja responsabilidade civil solidária nas instituições de ensino.
A decisão prolatada no agravo em questão utilizou-se desta perspectiva
para que fosse fixada certa quantia a ser paga para cada autor pela escola, uma
vez que houve dano moral praticado pela docente contra os discentes arrolados
no processo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com BORGES (2017), o cometimento do bullying “caracteriza-


se em uma espécie de ato ilícito”, gerando indenização pelos danos causados à
vítima, seja indenização patrimonial e/ou extrapatrimonial, com o propósito de
compensar o dano sofrido e punir o agressor, com uma clara pretensão de
desestimular que este pratique condutas análogas no futuro.
Porém, para que se reduza tanto a prática do bullying quanto o número
de processos no judiciário, de que forma as políticas públicas podem
efetivamente ajudar na criação de um ambiente escolar livre de bullying?
É necessário ter em mente que tanto a escola (seja particular ou pública)
quanto os pais são responsáveis em conter tal prática. Desta maneira, temos no
Brasil o programa de combate à intimidação sistemática, instituído pela lei federal
13.185/2015, portanto, de observância em todo o território nacional.
Para uma efetiva aplicação nos estados da federação, faz necessário a
observância e participação dos estados, o cumprimento da legislação em vigor,
uma fiscalização da aplicação da legislação vigente e a implementação de uma
cultura de paz nas escolas, para prevenção do bullying e de quaisquer outros
tipos de violências. Nesse sentido, o Rio Grande do Sul já criou a lei nº 13.474,
de 28/06/2010, que prevê o desenvolvimento de uma política antibullying.
Desta forma, faz-se necessário que cada ente federativo verifique sua
realidade para a promulgação de legislações complementares que previnam a
prática do bullying e promovam uma cultura de paz nas escolas.

REFERÊNCIAS

Livros

CONSTANTINI, Alessandro. Bullying, como combate-lo?: prevenir e


enfrentar a violência entre jovens. Tradução Eugênio Vinci de Moraes. São
Paulo: Itália Nova Editora, 2004.

FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e


educar para a paz. 2 ed. rev. e ampl. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.
1126

UNESCO. Violência escolar e bullying: relatório sobre a situação mundial.


Brasília: UNESCO, 2019. 54 p., il.

Internet

BORGES, Isabel Cristina Porto. Bullying escolar e o dever de indenizar.


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Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Disponível em:


<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
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Manifestações de Bullying em Diferentes Contextos Escolares: um Estudo


Exploratório. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S1414-
98932017000300669&lang=pt>. Acesso em: 17/08/2019.

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Superior Tribunal de Justiça STJ – RECURSO ESPECIAL: REsp 1517973


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Superior Tribunal de Justiça STJ – AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL nº


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1127

TOMADA DE DECISÃO APOIADA À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA


PESSOA HUMANA
DECISION-MAKING IN THE LIGHT OF THE HUMAN DIGNITY PRINCIPLE

Mariane Aparecida Cézar


Gisele Laus da Silva Pereira Lima

Resumo: A pesquisa fará uma reflexão sobre instituto assistencial da Tomada


de Decisão Apoiada à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
observando a clássica teoria das incapacidades e os desafios históricos
atravessados pela pessoa com deficiência, que a partir da Convenção da ONU
de 2006 que exigiu a criação da lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com
Deficiência) modificando o cenário assistencial para esse novo modelo de
valorização da autonomia. A pesquisa realizada pondera se a intervenção
mínima e a presunção de capacidade desprotegem ou respeitam a pessoa com
deficiência intelectual/psíquica com objetivo de promover uma vida mais digna,
com igualdade, inclusão e independência.
Palavras-chave: Tomada de Decisão Apoiada. Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana. Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Abstract: The present study will conduct a brief deliberation on the assistance
institute of the Decision Making Supported in the light of the Principle of Human
Dignity, noting the classical theory of disabilities and historical challenges
encountered by people with disabilities, from the 2006 United Nations (UN)
Convention, which required the creation of law 13.146 / 2015 - Statute of the
Person with Disabilities. The aforementioned law shifted the public care scenario
to this new model of autonomy valorization. This research considers whether the
minimal intervention and the presumption of capacity neglect or protect impaired
people. The objective of the present research is to promote a more dignified life
with equality, inclusion and independence.
Keywords: Supported Decision Making, Principle of the Dignity of the Human
Person, Status of the Person with Disabilities.

1. INTRODUÇÃO

O objetivo do artigo é analisar o instituto assistencial da Tomada de


Decisão Apoiada, previsto no artigo 1783-A do Código Civil, a luz do Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana que entrou em vigor com o Estatuto da Pessoa
com Deficiência (Lei 13.146/2015) para promover a igualdade, inclusão e a
autonomia para as pessoas com deficiência intelectual/psíquica.
A partir da premissa de superação de barreiras da pessoa com deficiência
pela história da humanidade, que por ser considerada inapta para autogerir sua
vida era lhe negado a manifestação da sua vontade, vinculada a teoria das
incapacidades presente em nosso ordenamento jurídico desde o Esboço da
Legislação Civil, busca-se retratar o processo evolutivo e a nova dinâmica
legislativa da pessoa com deficiência até a promulgação do Estatuto, que
encaminhou mudanças significativas na Teoria das Incapacidades e a criação
da Tomada de Decisão Apoiada.
Previsível que uma revolução deste porte seria pauta de discussões na
área jurídica, particularmente no que se refere ao Princípio da Dignidade da
1128

Pessoa Humana que constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de


Direito, inerente à República Federativa do Brasil, tornando-se relevante refletir
se com essa mudança o Estado não estaria desprotegendo os vulneráveis, ou
se essa intervenção mínima permite a independência da pessoa com deficiência
intelectual/psíquica lhes conferindo uma vida mais digna.
Para compreender significativas alterações na legislação, será analisado
o clássico sistema das incapacidades presente no Código Civil de 1916 e no
Código Civil de 2002, a Constituição de 1988 com olhar para os princípios
norteadores do nosso país especialmente o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, bem como, a aplicação das modificações trazidas pelo Estatuto da
Pessoa com deficiência concluindo se a Tomada de Decisão Apoiada e a nova
roupagem da Curatela são eficazes para atender a necessidade de quem padece
de deficiência mental, intelectual ou sensorial lhes conferindo uma vida digna.

2. INSTITUTO DA TOMADA DE DECISÃO APOIADA

Após muitas lutas para o reconhecimento dos Direitos da Pessoa com


Deficiência para conquistar seu lugar na sociedade, os portadores de deficiência
alcançam uma grande vitória legislativa que é a Lei 13.146/2015- Estatuto da
Pessoa com Deficiência, criada com base na Convenção da ONU conforme dita
o artigo 1°, parágrafo único1 do mesmo, representando um notável avanço para
a proteção da dignidade da pessoa com deficiência.
Com a autonomia permitida ao portador de deficiência temos uma
modificação no ordenamento jurídico, e no Código Civil de 2002 é incluída uma
nova definição para a teoria das incapacidades ficando no grupo dos
absolutamente incapazes os menores de dezesseis anos, e os relativamente
incapazes os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito; ébrios habituais;
os viciados em tóxicos; os que por causa transitória ou permanente não puderem
exprimir sua vontade e os pródigos. (CARVALHO, 2018)
Com a nova teoria das incapacidades apresentada pelo Estatuto da
Pessoa com Deficiência foi necessário modificar o instituto da Curatela previsto
no artigo 1.767 do Código Civil; posto isto foi revogado pela Lei 13.146/2015 os
artigos 1.768 a 1.773 do Código Civil que determinava o procedimento da
interdição e cria o artigo 1.783-A que traz a Tomada de Decisão Apoiada.
A Lei 13.146/2015 que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência, no artigo 2° determina que seja considerada pessoa com deficiência
aquela que por um longo período tem algum obstáculo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, que pode afastar ou colocar barreira para o convívio em
sociedade dificultando que se tenha uma efetiva isonomia de condições que as
demais pessoas.
Souza (2016) elogia o presente Estatuto por não deixar taxativo o rol de
pessoas com deficiência, tendo em vista que não cabe a área do Direto
determinar quem é ou não portador de deficiência, e por isso é necessário se

1 Art. 1° Parágrafo único. Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto
Legislativo n° 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3o do art.
5o da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo,
desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de
início de sua vigência no plano interno.
1129

apoiar em outras disciplinas de estudo como a medicina psiquiátrica, psicologia


e pedagogia para se fazer um estudo multidisciplinar caso a caso.
A tomada de decisão apoiada é um símbolo da valorização humana,
sendo o meio criado para possibilitar ao portador de deficiência a mesma
independência e direito de fazer as escolhas para administrar a sua vida como
as demais pessoas, desde que este tenha um grau de discernimento a ser
avaliado por uma equipe multidisciplinar. Trata-se de um mecanismo que
viabiliza a independência da pessoa com deficiência, mas consegue também
proteger esta pessoa para decisões mais complexas sem subtrair a sua
capacidade jurídica. Sendo assim, é uma forma de possibilitar a pessoa
portadora de deficiência uma vida mais digna e independente. (MENEZES,
2015). Os apoiadores devem auxiliar a pessoa com deficiência a tomar a melhor
decisão exercendo plenamente a sua capacidade, e para que isso aconteça
essas duas pessoas idôneas que possuem a confiança do apoiado devem
fornecer todas as informações necessárias para que este consiga gerir sua vida
civil. (FIUZA, 2018)
Os procedimentos estão nos parágrafos do artigo 1.783-A do Código Civil,
indicando que o beneficiário deve formular uma petição para pedir a medida de
auxílio da TDA em conjunto com seus dois apoiadores, de sua escolha e
confiança estabelecendo os limites de apoio de acordo com a sua necessidade,
quais os compromissos que serão assumidos pelos apoiadores, prazo de
vigência, sempre observando a vontade e autonomia da pessoa apoiada.
(MADALENO, 2018)
Com o tempo esse instituto será uma das formas de interpretação
extensiva da legislação, e o pedido de tomada de decisão apoiada não será
apenas destinado às pessoas com deficiência intelectual/psíquica, mas pode ser
estendido a quaisquer pessoas que estejam em situação de vulnerabilidade e
que deseje preservar a sua autonomia. Podemos estender aos idosos, pessoas
que farão alguma cirurgia, tenham tido AVC (acidente vascular cerebral), entre
outras. (ROSENVALD, 2018)
O parágrafo 3°do artigo determina um estudo por equipe multidisciplinar,
para saber qual o nível de discernimento que o apoiado possui. O diagnóstico
desta deficiência intelectual/psíquica deve ser realizado por um médico
psiquiátrico em conjunto com um psicólogo e pedagogo. (SOUZA, 2016)
Rolf Madaleno (2018) afirma que o magistrado que foi assistido pela
equipe multidisciplinar, após a oitiva do Ministério Público deverá pessoalmente
entrevistar os apoiadores, para então assegurar a salvaguarda da pessoa com
deficiência. Os atos praticados pelo beneficiário do instituto terão validade com
todos seus efeitos perante terceiros, sem qualquer restrição nos limites do apoio
acordados.
No parágrafo 5° destaca a possibilidade da pessoa que estabelecerá uma
relação jurídica com o apoiado, para sua segurança, poderá solicitar que os
apoiadores contra assinem o documento do negócio celebrado. Este ponto
sofreu algumas críticas porque não há uma punibilidade, como nulidade ou
anulabilidade caso os apoiadores não assinem, e outra perspectiva também
criticada deste ponto é de que se isto se tornar praxe o (in) capaz ainda
continuará coexistindo com o novo instituto de uma forma disfarçada de
substituição do beneficiário por seus apoiadores. (ESTEVES; SILVA, 2016)
É importante ressaltar que caso haja divergência entre um dos apoiadores
e a pessoa apoiada, após parecer do Ministério Público o juiz decidirá a questão,
1130

com base no que acredita ser melhor para o beneficiário da TDA. Vale destacar,
que no caso de negligência do apoiador, de modo forçar a pessoa apoiada a
tomar alguma decisão ou estiver inadimplente com suas obrigações assumidas
em compromisso do instituto, a pessoa apoiada ou qualquer pessoa pode
denunciar ao órgão competente para que se inicie a investigação, e se for por
vontade do apoiado pode ter a destituição deste para nomeação de outra pessoa
de sua confiança. (MENEZES, 2015)
Madaleno (2018) assenta que no parágrafo 9° existe a alternativa do
beneficiário, a qualquer tempo independente da vigência do acordo, solicitar o
término da TDA, bem como, no parágrafo 10° o apoiador pode solicitar ao juiz
seu desligamento, porém necessita da análise e manifestação do magistrado
sobre o caso. No parágrafo 11° determina que os apoiadores sigam as mesmas
regras da prestação de contas existentes para a curatela.
Para promover a autonomia das pessoas com deficiência
intelectual/psíquica, além de criar a tomada de decisão apoiada, foi necessário
modificar a curatela de uma forma substancial. A curatela existe atualmente
somente para ser aplicada nos casos de relativamente incapazes, adultos que
não consigam manifestar sua vontade, como forma secundária, pois tanto a
Convenção da ONU, quanto a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência dão preferência ao instituto da TDA. Entretanto, se mesmo com o
apoio a pessoa não conseguir exercer sua autonomia com objetivo de proteger
que esta cause um dano irreparável a si mesmo é aplicado a Curatela. (DINIZ,
2016)
Maria Berenice Dias (2016) explica que o Estatuto assegura a capacidade
legal do deficiente intelectual/psíquico à igualdade com os demais, dá uma nova
roupagem a curatela, cria a tomada de decisão apoiada um novo sistema de
atenção ao vulnerável atendendo as recomendações da convenção, ou seja,
conferindo a esta pessoa sua cidadania e sua inclusão, e reconhecidamente isso
se deve a evolução do pensamento psiquiátrico. A professora defende o novo
olhar para pessoa com deficiência, que antes interditado era privado de ser um
sujeito social causando a exclusão por meio da expropriação da cidadania.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência nos artigos 84 e 85 aborda a
Curatela de modo extraordinário, e ele é aceitável quando não houver alternativa
para pessoa com deficiência, que após a promulgação da Lei 13.146/2015 é
capaz, devendo então a curatela ser adotada com prudência “como medida
protetiva excepcional e extraordinária restrita aos interesses patrimoniais e
negociais que será deferida pelo menor tempo possível, ajustada à efetiva
necessidade da pessoa a ser protegida. ” (DUFNER; COMUNE 2019, p.5)
Rosenvald (2018) faz um comparativo entre os dois institutos, da curatela
e da tomada de decisão apoiada concluindo que a inovação trazida pelo Direito
Civil atende as necessidades de nossa Constituição, pois auxilia sem amputar a
pessoa com deficiência que é o protagonista de sua vida sendo assistido e não
substituído, já a curatela foi criada com um cunho patrimonial sem olhar para o
ser humano e as outras necessidades que prevalecem sobre o dinheiro. A TDA
é uma medida mais flexível que a curatela e estimula a pessoa com deficiência
a agir, promovendo sua autonomia e seu convívio com a sociedade, não
restringe a pessoa, mas é um remédio personalizado para cada beneficiário na
medida em que for necessário, com a alternativa de até modificar o apoio
conforme o indivíduo se desenvolve.
1131

O Estatuto da pessoa com deficiência buscou uma forma de reparar os


erros históricos que discriminava a pessoa com deficiência trazendo para o
nosso ordenamento jurídico a inclusão social, e para desenvolver a
independência e isonomia das pessoas portadoras de deficiência, para que isso
aconteça foi necessário modificar a teoria das incapacidades presumindo que o
ser humano seja capaz de se desenvolver com o auxílio necessário e com
intervenção mínima consiga guiar sua vida.

3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PROMOVIDA PELO INSTITUTO DA


TOMADA DE DECISÃO APOIADA

O princípio da Dignidade da Pessoa Humana, elevado a um dos


fundamentos da nossa República, na Constituição de 1988, reescreveu a história
dos Direitos Humanos em nosso país, criou políticas públicas para minimizar as
desigualdades sociais buscando alcançar a justiça, a sua eficácia a pessoa
portadora de deficiência intelectual/psíquica tem sido motivo de debate entre os
doutrinadores do direito formando duas correntes: a primeira que defende a
dignidade-vulnerabilidade e a segunda que defende dignidade-liberdade.
Tartuce (2019) destaca que José Fernando Simão e Vitor Kümpel são a
favor da corrente mais conservadora da dignidade-vulnerabilidade, sendo assim,
acreditam na proteção do (in) capaz, que ao modificarmos o ordenamento
jurídico estamos colocando em risco a dignidade humana da pessoa com
deficiência.
Kumpel e Borgarelli (2015) esclarece seu posicionamento afirmando que
o Estados tem o dever de proteger os vulneráveis com objetivo de promover uma
vida digna os tornando capazes, quando se é certo que o portador de deficiência
mental não tem o devido discernimento para governar sua vida, os autores
acreditam ser cruel e inaceitável essa desproteção com justificativa da defesa
dos direitos humanos, e que a TDA é mais um problema trazido pela Convenção
da ONU.
Joyceane Bezerra, Paulo Lôbo, Nelson Rosenvald, Jones Figueirêdo
Alves, Rodrigo da Cunha Pereira e Pablo Stolze, são os defensores dessa
revolução da dignidade-liberdade, com objetivo de possibilitar a autonomia da
pessoa com deficiência e inclui-la na sociedade em equidade com os demais
cidadãos. (TARTUCE, 2019)
Gagliano e Pampliona (2017) interpretam que o EPD revogando a teoria
das incapacidades da forma como existia denominando o deficiente
intelectual/psíquico como incapaz, homenageou o Princípio da Dignidade
Humana, pois trouxe a perspectiva constitucional da isonomia atribuindo a
capacidade de fato aos portadores de deficiência, mesmo que para que essa
capacidade possa se concretizar de fato seja necessário o instituto assistencial
da Tomada de Decisão Apoiada.
Tartuce (2019) explica que não há como subsistir no ordenamento jurídico
as duas correntes, para que possa ter a dignidade- autonomia é necessário que
se deixe no passado a dignidade- vulnerabilidade, visando à integração total da
pessoa com deficiência, abandonando a interdição que existia em nosso
passado.
Os doutrinadores pró da dignidade-vulnerabilidade criticam, também, a
falta de harmonização entre o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) e o
Código de Processo Civil (CPC), que entrou em vigor após a Lei 13.146/2015
1132

trazendo ao ordenamento os dispositivos da interdição que já haviam sido


revogados por essa lei, e sem abordar o procedimento da Tomada de Decisão
Apoiada e da nova Curatela. Tartuce (2019) enfatiza que:

A Lei 13.146/2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência


(EPD), alterou artigos do Código Civil sobre a matéria. Todavia, alguns
desses dispositivos foram revogados pelo Código de Processo Civil,
em um verdadeiro cochilo do legislador que gerou o atropelamento de
uma norma jurídica por outra.

Para corrigir esse equívoco do legislador, harmonizar o EPD e o CPC, e


também de resgatar ao rol dos absolutamente incapazes as pessoas que não
conseguem manifestar sua vontade, foi elaborado pelos senadores Paulo Paim
e Antônio Carlos Valadares o Projeto de Lei 757/2015, que contou parecer
parcial do doutrinador Flávio Tartuce apoiando a retomada dos absolutamente
incapazes, desde que a pessoa não consiga se manifestar, como nos casos
de coma. (TARTUCE, 2019)
Na comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado no
relatório da Senadora Lídice da Mata foi considerado um retrocesso trazermos
ao rol de absolutamente incapazes novamente as pessoas com deficiência que
não podem manifestar sua vontade, que atualmente estão qualificadas como
relativamente incapazes e protegidas pelo instituto da Curatela, pois neste
momento de inclusão e cidadania o que prevalece é a autonomia para fazer
suas próprias escolhas.
A senadora foi mais longe elaborando um projeto substitutivo que irá
aplicar a tomada de decisão apoiada para pessoas com deficiência mental
grave2, além de harmonizar as legislações vigentes com a justificativa de que:
“O discernimento de certas pessoas com deficiência seja bem diferente ou até
questionável diante de padrões comuns, mas isto não significa que o
discernimento não exista e que a vontade manifestada possa ser ignorada”. O
Projeto de Lei está em tramitação na Câmara dos Deputados, na PL 11091/2018
na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania, e com certeza será um marco
na história dos Diretos da Pessoa com Deficiência se for aprovado.
Apesar de toda divergência existente é claro que o Estatuto da Pessoa
com Deficiência não é inconstitucional, pois essa legislação coloca em prática a
Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência que foi promulgada em
nível de Emenda Constitucional, portanto a capacidade legal da pessoa com
deficiência era real desde então, e o EPD criou o mecanismo da Tomada de
Decisão Apoiada para tornar efetiva a possibilidade da independência e
autonomia do deficiente intelectual/psíquico. (LÔBO, 2017)
No artigo 6° do Estatuto da Pessoa com deficiência ficou comprovado a
capacidade legal da pessoa com deficiência para se casar ou ter uma união
estável, ter seus direitos sexuais e reprodutivos assegurados, fazer seu
planejamento familiar, conservar sua fertilidade sendo vedada a esterilização
compulsória, exercer seu direito de convivência familiar e na comunidade e
inclusive poder exercer a guarda, a tutela, curatela e adoção em igualdade de
oportunidades com os demais.

2 O PLS 757/2015 pode ser consultado estando disponível pelo site:


https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=7889481&ts=1553276936250&disposition=inline Acesso em: 09/04/2018
1133

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa Deficiência conferiu as pessoas


com deficiência um tratamento digno, reconstruindo uma nova história deixando
para traz os preconceitos que faziam parte do sistema jurídico brasileiro e da
teoria das incapacidades, certamente um avanço, “mas o grande desafio é a
mudança de mentalidade, na perspectiva de respeito à dimensão existencial do
outro. Mais do que leis, precisamos mudar mentes e corações” (GAGLIANO;
PAMPLONA FILHO, 2017, p. 154)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos estudos da medicina psiquiátrica e da psicologia foi possível


saber que a pessoa com deficiência intelectual/psíquica é capaz de fazer
escolhas que permitem a gestão de sua vida. O Brasil alcançou um patamar
elevado para reconhecimento dos direitos fundamentais do portador de
deficiência ao abraçar a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência
com hierarquia de emenda Constitucional, momento este que reafirmamos os
princípios que regem nossa Carta Magna de 1988, especialmente o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana.
Para efetivação do Decreto Executivo n° 6.949/2009 foi criado o Estatuto
da Pessoa com Deficiência que se tornou um marco para inclusão no nosso país,
e revolucionou todo o sistema jurídico existente até este momento modificando
radicalmente a teoria das incapacidades presente nos artigos 3° e 4° do Código
Civil de 2002, e promovendo a capacidade legal do deficiente intelectual/
psíquico com a Tomada de Decisão Apoiada.
A edição da Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) inseriu
no Código Civil através do artigo 1.783-A a Tomada da Decisão Apoiada,
modificando a aplicabilidade do instituto da curatela, e estabelecendo um novo
modelo alternativo que não se limita aos portadores de transtorno mental, mas
para qualquer situação casuística de deficiência prevista na Lei, permitindo ao
assistindo uma dinâmica do suporte para auxiliar nas tomadas de decisões e
atos da vida, sempre observando a vontade e autonomia da pessoa apoiada.
A retirada da pessoa com deficiência intelectual/psíquica do rol de
incapazes evidencia o progresso do Direito buscando complementação de
outras áreas, como medicina psiquiátrica, psicologia e pedagogia para
demonstrar a independência do portador de deficiência intelectual/psíquica
através do estudo biopsicossocial de uma equipe multidisciplinar. Após laudo
que demonstra a capacidade legal para manifestação da vontade a pessoa com
deficiência pode optar pela Tomada de Decisão Apoiada ao invés da Curatela,
deste modo ela deixa de ser substituída para ser assistida.
A Tomada de Decisão Apoiada é um mecanismo de apoio para que a
pessoa com deficiência tenha assegurada sua capacidade contando com auxílio
de duas pessoas que lhe prestem todas as informações necessárias para
praticar os atos da vida civil. Este instituto é o símbolo da valorização humana,
pois a pessoa com deficiência deixa de ser anulada para exercer a sua
autonomia com auxílio dos apoiadores de sua confiança.
A importância da aplicação da Tomada de Decisão Apoiada é que ela,
diferentemente dos demais institutos assistenciais, promove a Dignidade da
Pessoa Humana com desenvolvimento da autonomia, e é moldada para cada
indivíduo nos limites do apoio acordados. Sendo assim, é possível que esta
1134

pessoa com deficiência intelectual/psíquica seja integrada na sociedade


podendo exercer sua independência com a manifestação de sua vontade.
A tomada de decisão apoiada consagra o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, pois com esse instrumento o direito equilibra as diferenças
existentes entre as pessoas com deficiência intelectual/psíquica e assegura a
garantia dos direitos fundamentais com isonomia com as demais pessoas,
independentemente de qualquer diversidade.

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1136

TRABALHO INFANTIL: PARADIGMAS NORMATIVOS, ESTATÍSTICAS NO


BRASIL E NO MARANHÃO E ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO
CHILD LABOR: REGULATORY PARADIGMS, STATISTICS IN BRAZIL AND
MARANHÃO AND PROTECTION BODIES

Adriana Mendonça da Silva


Katllen Soares Pinheiro

Resumo: O trabalho infantil é forma de trabalho que envolve a exploração de


crianças e adolescentes e representa violação de direitos humanos cujos fatores
determinantes são condições econômicas, como pobreza extrema e baixa renda
da população, escolaridade dos pais, educação de baixa qualidade e ausência
de fiscalização. As consequências repercutem no desenvolvimento infantil, na
perda da infância, geração de problemas sociais, baixo rendimento escolar ou
abandono, problemas psicológicos, físicos e doenças e a perpetuação da ideia
de que a criança deve trabalhar. Os conceitos de infância e adolescência servem
de paradigma para normas internacionais e nacionais, tendo o princípio da
proteção integral fundamento na Constituição Federal, no ECA e na CLT.
Destaca-se a atuação dos órgãos de controle e proteção ao trabalho infantil,
como o MPT e o Poder Judiciário que têm atribuição de garantir direitos e
liberdades fundamentais e dar maior eficácia ao combate do trabalho de crianças
e adolescentes.
Palavras-chaves: Trabalho Infantil. Normas de Proteção. Exploração e Medidas
de Enfrentamento.

Abstract: Child labor is a form of labor that involves the exploitation of children
and adolescents and represents a violation of human rights whose determining
factors are economic conditions, such as extreme poverty and low population
income, parental education, poor quality education and lack of supervision. The
consequences have repercussions on child development, the loss of childhood,
the generation of social problems, poor school performance or dropout,
psychological, physical and disease problems and the perpetuation of the idea
that the child should work. The concepts of childhood and adolescence serve as
a paradigm for international and national standards, having the principle of full
protection based on the Federal Constitution, ECA and CLT. We highlight the role
of the control and protection bodies for child labor, such as the MPT and the
judiciary, which have the task of guaranteeing fundamental rights and freedoms
and making the work of children and adolescents more effective.
Key-words: Child labor. Protection Norms. Exploration and Coping Measures.

INTRODUÇÃO

A erradicação do trabalho infantil é tema de grande dimensão e


importância na sociedade contemporânea. No Brasil, em 2016, dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PnadC) apontam que 2,4 milhões
de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estão em situação de trabalho infantil,
o que representa 6% dessa população (40,1 milhões) nesta faixa etária.
Causas relacionadas a condições econômicas, como a pobreza, a frágil
estrutura financeira familiar e a vulnerabilidade social constituem fatores de
estímulo ao trabalho infantil, assim como a grande quantidade de filhos e a baixa
1137

escolaridade dos pais. Crianças e adolescentes têm que trabalhar para


complementar a renda dos pais, ter acesso ao lazer e aos bens de consumo. A
má qualidade da educação também traz a percepção de que a escola não é
perspectiva para melhoria da condição de vida, promovendo a evasão escolar e
o ingresso no mercado de trabalho precocemente. A desigualdade social
brasileira reforça a ideia de que o trabalho de crianças é natural, o que as leva
não só à informalidade no mercado de trabalho, mas, também, à realização de
trabalhos domésticos em suas próprias casas.
Definições normativas de infância e adolescência, em âmbito
internacional e nacional, permitem o desenvolvimento de ações e políticas
públicas de enfretamento ao trabalho infantil, sobretudo, àquelas relacionadas à
idade mínima para admissão ao trabalho e às piores formas de trabalho infantil.
O princípio da proteção integral é incorporado à Constituição Federal
(CF), à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e ao Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), instituindo-se não só o direito à profissionalização e o
trabalho educativo, mas disposições sobre as limitações da duração do trabalho,
atividades proibidas, salário e formalidades relativas às contratações.
A atuação dos órgãos de proteção e controle deve ser investigada,
considerando sua competência para atuar na defesa dos interesses da criança
e do adolescente, destacando-se o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do
Trabalho e os órgãos de fiscalização das relações de trabalho.

CRIANÇA E ADOLESCENTE E O TRABALHO

No conceito etimológico, a palavra infância vem do latim e faz referência


ao indivíduo que ainda não desenvolveu a capacidade de se expressar de forma
clara, que se limita à idade de sete anos. A idade cronológica, por si só, não é
capaz de caracterizar a infância. Para Khulmann (1998, p. 16), a “infância tem
um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado é
função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de
classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de
papel”.
No Brasil, desde os primeiros anos de História do Brasil enquanto Colônia,
a história de crianças tem sua vida social marcada pela desigualdade, exclusão
e dominação, associada à exploração, ao abandono e preconceito em virtude de
suas classes sociais. A desigualdade social assume, entre nós, múltiplas
expressões, quer se refiram à distribuição de terra, de renda, do conhecimento,
do saber e, mesmo, ao exercício da própria cidadania (PINHEIRO, 2001).
Com o advento do Código de Menores, em 1927, foi utilizado o termo
“menor” para designar as crianças pobres. A partir do ECA, em 1990, o termo
“menor” entrou em desuso. A criança e o adolescente passam a ter direito à
proteção integral, com direitos e necessidades peculiares ao seu
desenvolvimento.

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL CONTRA O TRABALHO INFANTIL

A OIT faz parte do sistema das Nações Unidas e tem como atividade
precípua o desenvolvimento de convenções e resoluções, para organização de
normas internacionais do trabalho, a fim de garantir condições dignas de labor
respeitadas por Estados participantes, a proteção dos direitos humanos
1138

fundamentais e os direitos da criança e do adolescente, neste caso, impedindo


que sejam colocadas em situação de risco à vida, à saúde e à segurança.
A proteção internacional dos direitos das crianças e dos adolescentes é
destacada na Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança com
garantia do desenvolvimento individual e social de forma saudável durante a
infância, fase de formação do caráter e da personalidade da pessoa, fundada na
premissa que todas as crianças nascem com liberdades fundamentais e com
direitos inerentes a todos os seres humanos impondo-se o cuidado e a proteção
como prioridade de todos, da sociedade e do Poder público (CARVALHO, 2010).
O art. 1º desta Convenção estabelece ser criança qualquer pessoa menor
de 18 anos. Compete aos pais a responsabilidade primordial de propiciar, de
acordo com suas possibilidades e meios financeiras, as condições de vida
necessárias ao desenvolvimento da criança, assim como ao Estado, adotar, de
acordo com suas condições nacionais e dentro de suas possibilidades, medidas
apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança
a tornar efetivo esse direito e, caso necessário, proporcionarão assistência
material e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao
vestuário e à habitação. No Brasil, a Convenção Sobre os Direitos da Criança foi
aprovada pelo Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos é um dos três
instrumentos que constituem a Carta Internacional dos Direitos Humanos, junto
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos Sociais e Culturais, elaborado em, 19 de dezembro de
1966, pela Resolução 2.200-A, na XXI Assembleia Geral das Nações Unidas. No
Brasil entrou em vigor com o Decreto nº 226, de 12 de dezembro de 1991,
estando previsto que toda criança terá direito, sem discriminação alguma por
motivo de cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, situação
econômica ou nascimento, às medidas de proteção, que a sua condição de
menor requerer, por parte de sua família, da sociedade e do Estado. A criança
deve ser registrada imediatamente após seu nascimento e deverá receber um
nome e tem direito de adquirir uma nacionalidade.
O Decreto nº 4.134, de 15 de fevereiro de 2002, promulga a Convenção
nº 138 e a Recomendação nº 146 da OIT sobre Idade Mínima para Admissão ao
Emprego e objetiva que todo Estado participante, comprometa-se a seguir uma
política nacional que assegure a efetiva abolição do trabalho infantil e,
progressivamente, a idade mínima de admissão a emprego ou trabalho,
observado o pleno desenvolvimento físico e mental dos adolescentes, com a
conclusão da escolaridade obrigatória ou, em qualquer hipótese, idade não
inferior a 15 anos. Estados cujas economias e sistemas educacionais não
estejam suficientemente desenvolvidos, podem reduzir a idade mínima para
admissão a empregos a 14 anos, mediante prévia consulta às organizações de
trabalhadores e empregadores interessadas.
O Decreto nº 3.597/2000, de 12 de setembro de 2000, promulga a
Convenção nº 182 e a Recomendação nº 190 da OIT sobre a Proibição das
Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para sua Eliminação,
concluídas em Genebra, em 17 de junho de 1999. O art. 2º da Convenção nº 182
define como criança toda pessoa menor de 18 anos e no art. 3º estabelece as
piores formas de trabalho infantil: a) Todas as formas de escravidão ou práticas
análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por
dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o
1139

recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em


conflitos armados; b) A utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a
prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas; c) A
utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização para a
realização de atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de
entorpecentes, tais com definidos nos tratados internacionais pertinentes; e, d)
o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é
suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças.
As piores formas de trabalho infantil diminuem a dignidade da criança e
do adolescente e põem em risco sua vida ou o seu desenvolvimento físico e
mental e devem ser proibidas e eliminadas por meio de medidas adotadas pelos
Estados participantes.
A Convenção nº 82 estabelece as formas de trabalho prejudicial1 à saúde
e à segurança da criança e adolescente e aquelas prejudiciais2 à moralidade,
destacando-se a adoção de medidas que protejam a condição de vulnerabilidade
das meninas e a garantia de ensino básico gratuito nas escolas.
É da competência da legislação nacional determinar os tipos de trabalho
prejudiciais à saúde, à segurança ou à moral das crianças e adotar como
medidas prioritárias ao combate do trabalho infantil programas de ação que
devem ser elaborados e implementados em consulta com as instituições
governamentais competentes e as organizações de empregadores e de
trabalhadores.
Fatores determinantes à existência de trabalho infantil estão relacionadas
(a) a causas econômicas, sendo a condição de pobreza e a baixa renda familiar
um dos maiores estímulos; (b) a desigualdade social; (c) as condições de
emprego e desemprego dos pais (VERONESE, 2013); (d) a ausência de políticas
públicas pelos entes estatais direcionadas à infância e juventude (MEDEIROS
NETO, 2013); (e) educação.

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, CLT E A PROTEÇÃO AO


TRABALHO INFANTIL

A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, dispõe sobre o ECA e tem a


finalidade de assegurar proteção integral as crianças de até 12 anos incompletos

1 Construção Civil e pesada, incluindo construção, restauração, reforma e demolição, em


sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, em porão ou convés de
navio, em contato com animais portadores de doenças infectocontagiosas e em postos de
vacinação de animais; em hospitais, serviços de emergência, enfermarias, ambulatórios, postos
de vacinação e outros estabelecimentos destinados ao cuidado da saúde humana, em que se
tenha contato direto com os pacientes ou se manuseie objetos de uso dos pacientes não
previamente esterilizados; em lavanderias industriais, em cemitérios, serviços domésticos, na
manutenção, limpeza, lavagem ou lubrificação de veículos, tratores, motores; componentes,
máquinas ou equipamentos, em que se utilizem solventes orgânicos ou inorgânicos, óleo diesel,
desengraxantes ácidos ou básicos ou outros produtos derivados de óleos minerais.
2 São aquelas prestadas de qualquer modo em prostíbulos, boates, bares, cabarés, danceterias,

casas de massagem; saunas, motéis, salas ou lugares de espetáculos obscenos, salas de jogos
de azar e estabelecimentos análogos, na produção, composição, distribuição, impressão ou
comércio de objetos sexuais, livros, revistas, fitas de vídeo ou cinema e pornográficos; de
escritos, cartazes, desenhos, gravuras, pinturas, emblemas, imagens e quaisquer outros objetos
pornográficos que possam prejudicar a formação moral; na venda, a varejo de bebidas alcoólicas
e na exposição a abusos físicos, psicológicos ou sexuais.
1140

e adolescentes entre 12 e 18 anos. Deve haver primazia na prestação de


socorros, preferência de atendimento nos serviços ou os que sejam de
relevância pública, preferência na elaboração de políticas sociais públicas, bem
como o privilégio na destinação dos recursos para a sua proteção e segurança
(CARVALHO, 2010).
A proteção integral consiste em fornecer às crianças e aos adolescentes
um pleno desenvolvimento de suas habilidades físicas e mentais. Partindo dessa
premissa, o trabalho infantil, em geral, é proibido por lei e as formas mais nocivas
ou cruéis de trabalho infantil constituem crime. Blogers (2014, p. 1) ressalta que
“é de conhecimento de todos que uma criança tem o organismo mais frágil do
que uma pessoa de 16 anos de idade que está apto para trabalhar. Com o
trabalho infantil no Brasil as crianças podem sofrer ataques cardíacos e paradas
respiratórias podendo levar a óbito, principalmente se trabalharem em locais
como fornalhas e próximas a refrigeradores”.
O ECA autoriza o trabalho do adolescente menor de 16, a partir dos 14
anos, na condição de aprendiz, com formação técnico-profissional, em
conformidade com as normas de educação vigente. A profissionalização deve
ser compatível às condições especiais inerentes a fase de desenvolvimento,
vedando-se o trabalho prejudicial à frequência escolar. O adolescente aprendiz
tem direito à bolsa de aprendizagem, direitos previdenciários e à proteção
integral do trabalho, conforme arts. 194, 203 e 227, §3º, incisos III, da CF.
As idades mínimas para o trabalho e contratação sujeitam-se à
concordância dos pais ou responsáveis legais. A Carteira de Trabalho
Profissional e Previdência Social (CTPS) é obrigatória, com anotações do
contrato, como férias, acidentes de trabalho, aumento de salários e
afastamentos. O adolescente tem jornada limitada a 8h e intervalo interjornada
de 11h. Terá intrajornada de no mínimo 1h e máximo 2h, para jornada de 8h e,
de 15 minutos, quando for entre 4h e 6h. Para o trabalho rural, após 6h de
trabalho, o intervalo observará os usos e costumes da região, com intervalo
interjornada mínimo de 11h.
Por acordo ou convenção coletiva de trabalho pode ser estabelecido o
sistema de compensação de horas e na força maior, a prorrogação é autorizada,
desde que seja imprescindível ao funcionamento do estabelecimento e a jornada
máxima não poderá ultrapassar 12h. Quando o adolescente possuir relação de
emprego em mais de um estabelecimento, deverá ser observada a limitação da
duração da jornada de 8h diárias e 44h semanais.
Qualquer atividade que provoque risco a saúde, a integridade física e
mental do adolescente encontra expressa vedação legal. A CF, a CLT e o ECA
proíbem o trabalho noturno, perigoso e insalubre aos menores de 18 anos, e de
qualquer forma de trabalho, aos menores de 16 anos, salvo na condição de
aprendiz, a partir dos 14 anos, cujo fundamento está em preservar a condição
de pessoa em desenvolvimento.
O empregador tem a obrigação de assegurar condições ao adolescente
de desenvolver suas atividades e frequência escolar, vedada qualquer atividade
que prejudique o desenvolvimento moral, com garantia de percepção do salário
mínimo e gozo de férias anuais remuneradas com pagamento do terço
constitucional, que devem coincidir com as férias escolares.

ESTATÍSTICAS DO TRABALHO INFANTIL NO BRASIL E NO MARANHÃO


1141

Segundo a OIT, hoje, há 168 milhões de crianças e adolescentes, de 5 a


17 anos, em situação de trabalho no mundo, o que equivale a 11% de todas as
pessoas da mesma faixa etária.
Em 2016, o IBGE, através da PnadC, aponta-se que aproximadamente
quatro milhões de crianças e adolescentes estavam submetidos à alguma
condição de trabalho indigno e as regiões Nordeste e Sudeste, registram as
maiores taxas de ocupação, respectivamente 33% e 28,8% da população de 2,4
milhões na faixa entre 5 e 17 anos. Entre os Estados que ocupam os primeiros
lugares no ranking do trabalho infantil estão em São Paulo (314 mil), Bahia
(252mil), Maranhão (147mil).
As atividades empresariais que mais se beneficiam do trabalho de
crianças estão relacionadas às atividades no campo, em lavouras e pecuária;
nas cidades, em industriais e comércio; no próprio ambiente familiar e em
atividades domésticas, como ajudantes de cozinha e cuidadores de crianças;
trabalhadores elementares da construção civil; na rua, como na venda
ambulante; e, atividades que envolvem artesanatos, minas e fábricas. Nas
atividades agrícolas predominam crianças e adolescentes de 5 a 13 anos e nas
ocupações urbanas, adolescentes de 16 e 17 anos.
O Maranhão, em 2000, possuía aproximadamente duzentas mil pessoas,
entre crianças e adolescentes, submetidas ao trabalho infantil. Em trabalhos
penosos, a maioria composta de crianças e adolescentes entre 10 e 15 anos.
Em 2010, esse número decresceu em torno de quarenta mil pessoas,
verificando-se que o maior número de trabalho infantil é masculino, em
atividades rurais, com adolescentes entre 16 e 17 anos.
No Brasil, a maior concentração de trabalho infantil está na faixa etária
entre 14 e 17 anos, perfazendo 1.940 milhão de adolescentes, enquanto na faixa
de 5 a 9 anos, registra-se 104 mil crianças trabalhadoras. Do total de 2,4 milhões
de trabalhadores infantis, 1,7 milhão, exerciam, em 2016, também exerciam
afazeres domésticos de forma concomitante ao trabalho (IBGE, PNAD, 2016)
No Maranhão, segundo o Censo Demográfico, IBGE, de 2010, 144,3 mil
crianças e adolescentes estavam ocupados entre 10 e 17 anos, No Maranhão,
segundo o Censo Demográfico, 12,8 mil crianças e adolescentes estavam
ocupadas no trabalho doméstico, nesta mesma faixa etária e 42,3 mil crianças e
adolescente entre 10 e 13 anos estavam ocupados em atividades laborais.
Quanto à naturalidade de crianças e adolescentes resgatados no
Maranhão, vê-se que Imperatriz, com 14, Santa Luzia e Codó, cada um com 13,
são os municípios com maior incidência de trabalho infantil.
O número de acidentes de trabalho com crianças e adolescentes também
é consequência das mazelas do trabalho infantil. Dados extraídos do Sistema de
Informações de Agravos de Notificações (Sinan), do Ministério da Saúde,
apontam que, entre 2007 e 2018 foram registrados 43.777 acidentes de trabalho
com crianças e adolescentes de 5 a 17 anos, sendo 26.365 acidentes graves
entre traumatismos, ferimentos e amputações e 662 crianças perderam uma das
mãos devido às condições de trabalho. No Maranhão, 12 crianças foram vítimas
de acidente de trabalho, no período de 2012 a 2018, segundo dados do IBGE.

ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE CONTROLE E PROTEÇÃO

Ao Ministério Público do Trabalho compete a defesa da efetividade das


políticas públicas sociais, dos interesses e direitos individuais coletivos e deve
1142

coibir o trabalho precoce, com garantia da idade mínima legal para o ingresso no
mercado de trabalho. Através da Coordenadoria Nacional de Combate à
Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (COORDINFÂNCIA), criada
em 2000, promove, supervisiona e coordena ações contra as formas de
exploração do trabalho de crianças e adolescentes, dando tratamento uniforme
e coordenado ao tema.
Para Medeiros Neto e Marques (2013), essa atuação consiste na retirada
da criança do trabalho ilícito, na adoção de medidas judiciais em face do
explorador ou causador do trabalho indecente e na realização de audiências
públicas, campanhas educativas e promoção à integração dos órgãos
responsáveis pela defesa dos direitos da criança e do adolescente. Em sede de
prevenção, destacam-se a celebração de termo de compromisso de ajustamento
de conduta, inquérito civil público e a ação civil pública.
Em sede repressiva, o órgão ministerial deve buscar a responsabilização
do explorador do trabalho, através de tutelas individuais e coletivas. Medeiros
Neto e Marques (2013, p. 57), destacam “a propositura de Reclamação
Trabalhista, em nome da criança e do adolescente, na forma do art. 793 da CLT,
pleiteando-se o pagamento de verbas rescisórias e demais parcelas decorrentes
da relação de trabalho, mesmo tratando-se de uma forma de trabalho proibido”.
Além da responsabilidade civil, deve ser buscada a responsabilidade penal.
À Secretaria das Relações do Trabalho, compete as ações de fiscalização
e profissionalização na política nacional para erradicar o trabalho infantil. Pode
editar normas, tendo sido criada, em dezembro de 2002 a Comissão Nacional
da Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI), objetivando a elaboração de um
plano nacional de erradicação do trabalho infantil. As Superintendências
Regionais do Trabalho devem promover o registro, a concessão e fiscalização
da licença para atividades relacionadas à imagem infanto-juvenil, podendo haver
a lavratura de autos de infração e a edição de relatórios de fiscalização.
A Justiça do Trabalho deve atuar no controle de Políticas Públicas
essenciais à erradicação do trabalho infanto-juvenil, assim, na hipótese de
atuação ineficiente do Poder Público, poderá intervir no sentido de assegurar os
interesses da criança e do adolescente, garantindo a prestação material de
direitos sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A exploração do trabalho infantil diminui a dignidade de crianças e


adolescentes, põe em risco sua vida, desenvolvimento físico e psíquico e
segurança. Convenções e Recomendações da OIT estabelecem paradigmas de
proteção internacional a ser implementados pelos Estados participantes, como
a garantia de idade mínima de admissão ao emprego e eliminação das piores
formas de trabalho infantil e a ação imediata para sua eliminação.
A legislação nacional deve definir os tipos de trabalho prejudiciais à saúde,
à segurança e à moral da criança e adolescente, assim como adotar medidas
prioritárias ao combate do trabalho infantil. A Constituição Federal e a Lei nº
8.069/90 dipõem sobre a doutrina da proteção integral, priorizando a
escolarização em detrimento ao trabalho precoce.
Ministério Público do Trabalho, Poder Judiciário e Órgãos de Governo são
institutos de controle e proteção ao trabalho infanto-juvenil que buscam retirar a
criança e ao adolescente de condições indignas de trabalho, assim como
1143

penalizar os responsáveis pela violação dos direitos da infância. As


consequências do trabalho infantil são evidenciadas na perda infância e a
erradicação do trabalho infantil e de suas piores formas é medida que se impõe
para a garantia dos direitos da criança e do adolescente.

REFERÊNCIAS

BLOGERS. Trabalho Infantil. Disponível em:


<https://jus.com.br/artigos/37359/o-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-e-o-
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CARVALHO, Luciana P.V. O Trabalho da Criança e do Adolescente no


Ordenamento Jurídico Brasileiro: Normas e Ações de Proteção. 2010.
Dissertação de Mestrado apresentada na PUC-SP, 2010.

IBGE, Censo Demográfico 2010, Censo Demográfico 2000. Trabalho.


Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-
pnad-continua.html?=&t=o-que-e> Acesso: 28 mai. 2019.

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https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ma/panorama Acesso: 28 mai. 2019. Acesso:
28 mai. 2019.

KUHLMANN JR., M., (1998). Infância e educação infantil: uma abordagem


histórica. Porto Alegre: Mediação.

MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de; MARQUES, Rafael Dias. Manual de


Atuação do Ministério Público na Prevenção e Erradicação do Trabalho
Infantil. Brasília: CNMP, 2013.

ORGANIZAÇÃO Internacional do Trabalho (OIT). Convenção n. 138. Idade


Mínima para Admissão, 1973.

_____. Recomendação n. 146: Sobre a Idade Mínima para Admissão a


Emprego. 1976.

_____. Convenção n. 182. Sobre a Proibição das Piores Formas de


Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação. 1999.

_____. Recomendação n. 190. Sobre Proibição das Piores Formas de


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OBSERVATÓRIO DIGITAL DO MPT. Trabalho Infantil. Disponível em:


https://smartlabbr.org/trabalhoinfantil/localidade/21?dimensao=acidentesTraba
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PINHEIRO, A. de A. A. A criança e o adolescente no cenário da


redemocratização: representações sociais em disputa. 2001. 438 f. Tese
(Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. 2001.
1144

VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente. Série


Resumos. Florianópolis: OAB/SC, 2006 VERONESE, Josiane Rose Petry,
Direito da criança e do adolescente. Série Resumos. Florianópolis: OAB/SC,
2006.
1145

Grupo de Trabalho:

DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E


SUSTENTABILIDADE I
Trabalhos publicados:

A ABSOLUTA PROIBIÇÃO DA TORTURA E O CENÁRIO DA BOMBA RELÓGIO

A APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA DA ONU PELO DIREITO BRASILEIRO

A APLICAÇÃO DO CONCEITO DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL NAS


RECOMENDAÇÕES GERAIS E RELATÓRIOS ANUAIS DO COMITÊ SOBRE A
ELIMINAÇÃO RACIAL DA ONU

A CONQUISTA DE DIREITOS LBTQIA+ NO BRASIL E A EFETIVAÇÃO DOS


DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA

A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO:


OLHARES SOBRE A META 8.5 DOS OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL

A MÃO DE OBRA CARCERÁRIA ÚTIL COMO ELEMENTO CHAVE PARA


ATENUAR A EXCLUSÃO SOCIAL

A MIGRAÇÃO E O TRABALHO NAS AMÉRICAS: UMA ANÁLISE SOB A


PERSPECTIVA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A NECESSIDADE DE GARANTIR O ACESSO AO TRABALHO DECENTE


PELAS PESSOAS TRANSEXUAIS

A REALIDADE DO TRÁFICO DE PESSOAS DENTRO DE UM CONTEXTO DE


DIREITOS HUMANOS NA AMAZÔNIA

ANÁLISE DA PRIVATIZAÇÃO DO ACESSO À ÁGUA E AO SANEAMENTO


1146

A ABSOLUTA PROIBIÇÃO DA TORTURA E O CENÁRIO DA BOMBA


RELÓGIO
THE ABSOLUTE PROHIBITION OF TORTURE AND THE TICKING BOMB
SCENARIO

Nádia Beatriz Farias da Silva Magioni


Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: A relativização da absoluta proibição da tortura tem sido defendida por


doutrinadores na hipótese do cenário da bomba relógio, contexto fático em que
essa é apontada como única alternativa para evitar um ataque terrorista que
pretende matar vidas humanas. Este artigo analisa a importância da vedação
absoluta da tortura, adotada como consenso internacional após a Segunda
Guerra Mundial, como norma de jus cogens, e prevista em diversos documentos
internacionais. Apresenta também os argumentos da teoria do cenário da bomba
relógio, diretamente relacionados ao combate ao terrorismo, e expõe as
respectivas críticas, relacionadas ao fato de que a situação proposta pelo cenário
é irreal e acaba por permitir o uso disseminado da tortura. Utiliza-se da pesquisa
bibliográfica e descritiva e com método dedutivo.
Palavras-chave: Proibição absoluta da tortura. Cenário da bomba relógio.
Direitos humanos.

Abstract: The relativization of the absolute prohibition of torture has been


defended by indoctrinators in the hypothesis of the time bomb scenario, a factual
context in which it is pointed as the only alternative to avoid a terrorist attack that
aims to kill human lifes. This article analyzes the importance of the absolute
prohibition of torture, adopted as an international consensus after World War II,
as a norm of jus cogens, and provided for in various international documents. It
also presents the arguments of the time bomb scenario theory, directly related to
the fight against terrorism, and exposes the respective criticisms, related to the
fact that the situation proposed by the scenario is unrealistic and ends up allowing
the widespread use of torture. It uses the bibliographic and descriptive research
and deductive method.
Keywords: Absolute prohibition of torture. Ticking bomb scenario. Human rights.

INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a analisar, inicialmente, a proibição da prática da


tortura como relevante conquista internacional na conquista progressiva dos
direitos humanos, ocorrida após a Segunda Guerra Mundial; a partir desse
momento, essa é colocada como absolutamente proibida, independente do
eventual contexto de instabilidade política ou social.
Pretende-se estudar, ainda, o cenário da bomba relógio, que admite que
em determinados contextos fáticos específicos, em que outros valores
fundamentais igualmente relevantes estejam ameaçados, seja admissível a
tortura. Após a análise dos argumentos dessa teoria, buscar-se-á trazer os
fundamentos fáticos e jurídicos daqueles que a criticam.

A TORTURA AO LONGO DA HISTÓRIA E SUA ABSOLUTA PROIBIÇÃO


COMO CONSENSO APÓS A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
1147

Historicamente, aos infratores das leis era imposto o apedrejamento, a


retirada de órgãos, o chumbo quente marcado na pele, em obediência ao
princípio do Talião, que pregava o “olho por olho, dente por dente”, e tinham
como fundamento a retribuição do mal causado com a aplicação do mesmo mal
a quem o causara. O Código de Hamurabi, por sua vez, no século XVIII antes de
Cristo, na Babilônia, previa para os criminosos a fogueira, a amputação de
órgãos, a quebra de ossos e a empalação. Ao longo dos séculos, a tortura foi
tida como um direito do proprietário dos escravos sobre esses, considerados
objetos, e também era aplicada como pena advinda de sentenças criminais
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 03).
Foi na Inquisição, conduzida pela Igreja Católica, após o século XI, com
apogeu entre os séculos XIII e XVII, que a tortura foi praticada de forma
sistemática na Europa. Essa infligia torturas aos que eram considerados
perigosos ou que praticavam crimes de lesa majestade, assim como aos que
não eram considerados humanos, como negros e índios (COIMBRA, 2001, p.
12).
Michel Foucault, na célebre obra “Vigiar e Punir” (1987, pp. 11-16), afirma
que as punições com violência extrema, mortes, espancamentos e linchamentos
em público, comuns até o século XVII, eram adequadas àquele modelo de Poder
Estatal soberano; era tamanho o poder do rei que uma afronta à lei (advinda do
soberano) significava uma afronta ao próprio soberano. As execuções eram um
teatro e, muitas vezes, quando o povo se solidarizava com o condenado, essa
era perdoado. Tal instabilidade fazia com que essa forma de punição fosse
ineficiente e imprevisível.
Com a tomada do poder pela burguesia após a Revolução Francesa, e
com o advento da Revolução Industrial, no final do século XVIII e início do século
XIX, passou-se a inadmitir tal forma de punição, notadamente pela ineficiência e
imprevisibilidade. Foucault (1987, pp. 16-22) afirma que a punição do corpo foi
substituída pela punição da alma. A humanidade, a economia e a eficiência, que
alteraram a forma de punir, sem castigos físicos, também se relacionam à ideia
de não se igualar ao criminoso.
A partir do século XIX, a punição passa a integrar uma nova forma de
controle social, mais amplo e com maior vigilância. Denomina Foucault (1987,
16-22) de disciplina os mecanismos de controle social que acabam por classificar
os indivíduos, entre normais e anormais, bons ou delinquentes, loucos. Tal
vigilância vale não apenas para os considerados delinquentes, mas os cidadãos
em geral. A disciplina, segundo o autor, seria uma forma de produzir cidadãos
engrenados à era do pós-absolutismo, e com a revolução industrial.
Após a Segunda Guerra Mundial, com os horrores cometidos pelos
Estados autoritaristas, passou a haver um consenso internacional no sentido de
que a tortura deveria ser absolutamente vedada, independentemente de
eventual contexto de instabilidade política ou social. Sabe-se que a prática da
tortura nunca deixou de existir de fato, entretanto, o consenso internacional
acerca de seu absoluto banimento foi uma relevante conquista.
A vedação geral da submissão do homem à tortura foi prevista pela
própria Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (artigo V), sendo tal
vedação repetida no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966
(art. 7º) e pela Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a
1148

Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de


1975 (RAMOS, 2016, s.p.).
A Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, em Nova Iorque, em 10 de dezembro de 1984, veio reforçar a
determinação de que ninguém será sujeito à tortura ou a pena ou tratamento
cruel, desumano ou degradante, prevendo o dever dos Estados em estabelecer
punições aos infratores e criminalizar mencionadas condutas.
O primeiro artigo dessa Convenção estabelece a definição de tortura,
como:

“qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos,


físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma
pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,
informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou
uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de
ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras
pessoas; ou por qualquer motivo baseado em
discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou
sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou
outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua
instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.”
(ONU, 1984).

Ademais, a Convenção previu expressamente que a proibição da prática


da tortura é absoluta, sendo que circunstâncias excepcionais, como o estado de
guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, e
ameaças, não poderão ser invocadas como justificação da tortura em nenhum
caso, nem a ordem de um funcionário superior ou de uma autoridade pública
poderá ser invocada para justificá-la.
A proibição absoluta da tortura é parte integrante do jus cogens (norma
imperativa) do Direito Internacional, sendo, assim, hierarquicamente superior às
demais normas comuns internacionais (RAMOS, 2016, s.p.).

O CENÁRIO DA BOMBA RELÓGIO.

O cenário da Bomba Relógio constitui um contexto fático em que se


questiona a proibição absoluta da tortura. As situações hipotéticas criadas pelo
cenário da bomba relógio podem ser resumidas no seguinte questionamento:
“Suponha que alguém envolvido em um ataque terrorista iminente, que matará
muitas pessoas, foi capturado pelas autoridades e que só se for torturado
revelará as informações necessárias para impedir o atentado. Ele deve ser
torturado?” (ASSOCIATION FOR THE PREVENTION OF TORTURE - APT,
2007, pp. 01-02).
Em discussões públicas, tal cenário é apresentado como questão pessoal
a algum dos presentes contrário à tortura: “Mas suponha que você sabe que vai
acontecer um atentado em pouquíssimo tempo, matando milhares de pessoas,
e você está com o terrorista. O único meio de impedir o ataque é torturá-lo. Você
faria isso, sim ou não? (APT, 2007, p. 02)
1149

Os proponentes do cenário da bomba relógio propõem a aceitação de


uma exceção à tortura, admitindo que essa seja considerada aceitável, ao menos
em casos extremos. Assim, sustentam que a tortura seja aceitável nos casos de
prisioneiros suspeitos de envolvimento em terrorismo.
Em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos sofreram um ataque
terrorista pelo grupo terrorista islâmico Al-Qaeda, que após sequestrar aviões
comerciais, os lançaram contra as Torres Gêmeas e o Pentágono, resultando
em milhares de mortos.
Após tais atentados, iniciou-se a Guerra ao Terror, denominação dada
pelo governo do então presidente norte-americano George W. Bush ao conflito
em face da organização terrorista transnacional Al Qaeda e outros países
considerados patrocinadores do terrorismo internacional (LEITE, 2009, p. 27).
Foram tomadas medidas pelo governo norte-americano que deixaram
visíveis sua opção por uma resposta violenta, com invasões a outros países,
adoção de leis restritivas de diversos direitos individuais e a utilização da tortura
(CALLEGARI; LINHARES, 2016, p. 05). Cofer Black, nomeado por George W.
Bush como coordenador do combate ao terrorismo, em discurso ao Congresso,
em metáfora relativa à tortura, afirmou que “Após o 11 de setembro, o
cavalheirismo acabou.” (POKEMPNER, 2014, p. 135).
Atualmente, o terrorismo tem sido considerado como uma das ameaças
mais graves à paz e a tranquilidade social; por meio da imposição do medo e da
violência, as organizações terroristas buscam a concretização de interesses
políticos, religiosos ou ideológicos, massacrando-se os direitos e garantias
fundamentais dos cidadãos (PEREIRA, 2017, p. 01).
Assim, um dos efeitos colaterais da guerra contra o terrorismo após
setembro de 2001 foi a quebra do consenso internacional da inadmissibilidade
da prática de tortura, que vinha se fortalecendo em todo o mundo, ao menos no
discurso oficial, desde o término da Segunda Guerra Mundial. O repúdio absoluto
à prática da tortura passou a ser relativizado em prol da busca da segurança,
mesmo em alguns dos países considerados protagonistas na defesa dos direitos
humanos. Teóricos voltaram a debater questões como quais seriam as situações
de risco que justificariam atos de tortura, quais métodos poderiam ser tipificados
como tortura, e quem poderia ou não ser torturado (TOLEDO, 2014, s.p.).
Nesse sentido, o governo dos Estados Unidos redefiniu no país o
tratamento de tortura; já em 2012, instrução do Poder Executivo concluiu que as
Convenções de Genebra e a proibição da tortura não se aplicavam aos
prisioneiros da Al-Qaeda e do Talibã. O governo também estabeleceu que as
normas nacionais e internacionais de direitos humanos não vinculavam aquele
Estado fora de seu território (POKEMPNER, 2014, p. 135).
Os Estados Unidos têm, assim, relativizado a proibição da tortura,
adotando o discurso de que o absurdo não é o cenário da bomba relógio, mas
sim o discurso de que não se pode torturar. Afirmam que a tortura é um trabalho
sujo, mas necessário (POKEMPNER, 2014, p. 135).
Muitos são os que nessa situação excepcional afirmam que se deve
tolerar ou permitir a tortura. A atitude de Reemtsma (2005, apud GRECO, 2009,
p. 02), que respondeu afirmativamente à pergunta “você faria isso?”, ao mesmo
tempo que se posiciona contrário à tortura, é representativa da postura de muitos
doutrinadores. Roxin (2006 apud GRECO, 2009, p. 02), que também sustenta
que não há situação em que a tortura pode ser justificável, considera “pensável”
uma “exculpação” supralegal em tais situações catastróficas.
1150

OS ARGUMENTOS QUE CONTRAPÕEM O CENÁRIO DA BOMBA RELÓGIO

A teoria do cenário da bomba relógio desperta diversas críticas e grande


preocupação dos defensores dos direitos humanos e juristas, em especial em
razão do enorme risco que a abertura de qualquer exceção à absoluta proibição
representa; admitir que o agente estatal em alguma hipótese possa torturar o
indivíduo abre as portas para inúmeros abusos, e utilização dessa exceção como
mera justificativa irreal, situação já ocorrida em diversos regimes ditatoriais com
torturas em massa sob o manto do discurso da defesa nacional.
A Associação para a prevenção da tortura (ASSOCIATION FOR THE
PREVENTION OF TORTURE – APT, 2007, pp. 01-02) afirma que essa atua por
meio da manipulação das reações emocionais do público, criando um contexto
de medo e raiva. A natureza dramática desse cenário, extremamente comum em
filmes e séries de televisão, gera simpatia e até admiração do público para com
o torturador, e ódio ou indiferença para com a vítima. A cena hipotética criada e
repetida para o público fez com que os debates acerca do tema ganhassem uma
força imaginária, totalmente diferente de seu contexto jurídico e político original.
O que se pretende com o cenário da bomba relógio é criar dúvidas acerca
da sabedoria da proibição absoluta da tortura, levando-se a aceitar que devem
existir exceções à proibição jurídica da tortura. Afirma a mencionada Associação
que apesar do discurso do cenário da bomba relógio propor apenas a
relativização em alguns pontos, o que realmente se pretende é criar uma
exceção ampla (APT, 2007, p. 02).
A prática da tortura nunca deixou de existir na realidade fática, entretanto,
o consenso internacional acerca de seu absoluto banimento foi uma relevante
conquista histórica (POKEMPNER, 2014, p. 127).
O reconhecimento de que todos os indivíduos são sujeitos de direitos,
consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, devendo
ter sua dignidade respeitada, torna incompatíveis práticas como a escravidão, o
genocídio e a tortura, que foram absolutamente proibidas no direito internacional.
Essas não podem ser admitidas sem que se coloque em xeque a base comum
de humanidade na qual a sociedade humana se estrutura (APT, 2007, p. 12).
O resultado final de qualquer possibilidade de aceitação da tortura é a
erosão das instituições democráticas e a destruição da sociedade aberta, livre e
justa (APT, 2007, p. 13).
Tem-se muito mais a perder criando uma exceção para acomodar um
imaginário futuro da bomba relógio, do que mantendo a proibição absoluta da
tortura, mesmo que isto signifique assumir algum risco hipotético. O que está em
jogo não é o mundo hipotético futuro, mas sim o tipo de sociedade que se opta
por viver todos os dias (APT, 2007, p. 13).
Afirmam os críticos à teoria que o próprio cenário da bomba relógio é uma
falácia. Para que o cenário da bomba relógio estivesse totalmente presente,
seriam necessárias que diversos fatos estivessem presentes, com a certeza de
sua ocorrência: 1. A existência de um plano de ataque específico; 2. A ciência
de que o ataque acontecerá em um prazo muito curto, iminente; 3. O
conhecimento de que o ataque matará um grande número de pessoas; 4. A
certeza de que pessoa sob custódia está envolvida no ataque; 5. A certeza de
que a pessoa sob custódia tem informações que impedirão o ataque; 6. A certeza
de que com a tortura à pessoa, se obterá a tempo informações para evitar o
1151

ataque; 7. A inviabilidade de se conseguir as informações a tempo por outro


meio; 8. A inexistência de outra ação a ser tomada para impedir o ataque. 9. A
motivação do torturador deve ser exclusivamente conseguir informações, com a
finalidade de salvar vidas. 10. O fato de ser uma situação isolada e excepcional,
que não se repetirá com frequência (APT, 2007, pp. 04-05).
O cenário da bomba relógio puro, que contém as dez mencionadas
premissas seria o mais difícil de contradizer, notadamente pela ponderação de
valores; ocorre que, trazendo essas premissas para a realidade, fora de uma
situação hipotética, observa-se que tal cenário é irrealizável, e que a amplitude
de interpretação de suas premissas permite criar exceções muito mais amplas
que na situação artificial e restrita sugerida de início. Em um mundo real, cheio
de incertezas, tal cenário permitiria uma ampla exceção à prática da tortura,
igualando os entes torturadores aos próprios terroristas e a seus princípios
morais (APT, 2007, p. 05).
Ainda que se admita a ocorrência exata do contexto do cenário da bomba
relógio, seriam necessárias informações rápidas e exatas, o que certamente não
ocorreria por meio da tortura. É impossível precisar o tempo para a obtenção da
informação por meio da tortura, pois o torturado pode ser treinado para resistir,
e se essa de fato seria eficaz para impedir eventual ataque, se o ataque fosse
efetivamente iminente (premissa do cenário). Também é impossível antever se
as informações dadas pela pessoa torturada serão corretas, sem tentativas de
desviar as autoridades até que o ataque ocorra (APT, 2007, p. 04-08).
Critica-se, ainda, a crença de que alguém sem treinamento ou experiência
anterior seja bem sucedido em extrair informações de um terrorista. Por outro
lado, é inadmissível que um Estado democrático, comprometido com os direitos
humanos, forme torturadores profissionais, treinados, insensíveis à dor e ao
sofrimento de outras pessoas, situação essa que os aproxima dos regimes mais
totalitários (APT, 2007, p. 03-04).
Na tortura nunca se tem certeza do resultado. A pessoa torturada, ainda
que disponha de informações aptas a impedir um ataque, pode a ela resistir.
Além disso, é impossível prever se a informação que se deseja será fornecida
em tempo hábil, sendo tal cenário irreal (APT, 2007, pp. 08-09).
Além disso, diversos profissionais de segurança afirmam que o
interrogatório pode ser conduzido de forma mais eficaz sem uso da tortura,
narrando que se tivessem uma única chance de sucesso, em pouco tempo, não
a desperdiçariam com tortura. A formação de profissionais nos setores de
inteligência e tecnologia da informação para o combate ao terrorismo possui
chances muito mais elevadas de obter informações, usando técnicas mais
eficazes, como interceptações telefônicas, mandados de busca (APT, 2007, pp.
09-10).
Sustentam os críticos que fora dos filmes de ação é improvável que os
torturadores saibam, com um grau de certeza, que a pessoa sob custódia
disponha de informações relevantes. Uma das características mais cruéis e
perversas da tortura reside exatamente no fato de que a pessoa torturada,
quando não possui ligação ou conhecimento do fato de que dela se deseja a
informação, acaba por sofrer mais profundamente e por mais tempo, sem meios
de mudar sua sorte, com a continuidade da tortura (APT, 2007, p. 07-08).
Afirmam os críticos à mencionada teoria que a tortura tem como
característica inerente o fato de corromper o torturador, ainda que sua motivação
inicial seja apenas a de conseguir informações específicas (APT, 2007, p. 10).
1152

O senador norte-americano John Mac Cain, condecorado como herói de Guerra,


advertiu que “a prática da tortura degredará e colocará em risco as forças
militares”, pois macula os ideais e a honra que alimentam sua moral
(POKEMPNER, 2014, p. 141).
Além disso, tem-se que é da própria natureza da tortura, em uma análise
histórica, que toda permissão de seu uso, concedida previamente ou dada após
o fato, leva inevitavelmente a uma “ladeira escorregadia”, disseminando a sua
aplicação (APT, 2007, pp. 10-11).
Não é justificável que se aceite a alteração das normas internacionais, a
fim de se amoldar à situação quase irreal. A necessidade de proibição absoluta
da tortura é permanente e atual, e uma norma que estabeleça exceções para
lidar com riscos futuros e extremamente raros, pode enfraquecer a efetividade
da vedação absoluta no presente. Tal cenário esconde os aspectos terríveis da
tortura e as consequências de aceitá-la (APT, 2007, pp. 14 e 19).
O cálculo utilitário do cenário puro da bomba relógio manipula a intuição
moral do público, trazendo apenas algumas das consequências da tortura, mas
omite outras consequências igualmente ou ainda mais graves. Quando essas
últimas consequências ocultas são incluídas na equação, torna-se evidente que
não se pode admitir qualquer exceção na regra da vedação absoluta da tortura,
que não é moralmente justificável (APT, 2007, p. 21).
Willian E. Sheuerman (2014, p. 121), em estudo sobre a questão
geopolítica desse novo paradigma de guerra, com especial enfoque nos Estados
Unidos, afirma que o restabelecimento da proibição absoluta da tortura e de
outras leis humanitárias em risco de extinção, demanda não apenas a
reformulação das leis de guerra, mas principalmente a pressão drástica dos
cidadãos norte-americanos para ocorram mudanças nos paradigmas de guerra
destrutivos dos Estados Unidos.

CONCLUSÃO

A partir da análise da teoria do cenário da bomba relógio e de suas


críticas, conclui-se que apesar dos seus argumentos de tal cenário, que em uma
primeira análise são sedutores e defensáveis, em razão da suposta necessidade
de salvar um número maior de vidas de ataques à população civil, as reais
consequências de uma possível relativização da absoluta proibição da tortura
são extremamente nefastas e inadmissíveis em Estados democráticos e
comprometidos com a tutela e promoção dos direitos fundamentais.
Admitir que o Estado seja o agente torturador, ainda que em situações
excepcionais, macula a principal base sobre a qual se estruturaram os direitos
humanos após a segunda Guerra Mundial, da dignidade do ser humano. A
aceitação irrevogável de que todos os indivíduos são sujeitos de direitos, cuja
dignidade deve ser respeitada, é a base a partir da qual todas as conquistas
históricas dos direitos humanos estão sendo construídas progressivamente.
Não se pode admitir que um Estado possa em qualquer situação torturar
e, assim, denegrir a dignidade, o corpo e a mente de indivíduos, equiparando-se
aos próprios terroristas. Além disso, a manutenção de uma estrutura torturadora
institucional por parte de um ente estatal é extremante perigoso, já que além de
a tortura ter a característica de corromper o indivíduo, os governos que se
caracterizaram pela tortura, historicamente, acabaram sendo conhecidos pela
tirania e desprezo pelos valores éticos imanentes aos seres humanos.
1153

Assim, a manutenção da vedação à tortura é necessária para o combate


atual dessa prática, sendo que o cenário da bomba relógio não pode justificar a
relativização desse limite.

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GRECO, Luís. As regras por trás da exceção: reflexões sobre a tortura nos
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16, p. 27 - 59, 2º sem. 2009. Disponível em:
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1154

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na Era dos Direitos Humanos. Organizadoras CARDIA, Nancy; ASTOLFI,
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TOLEDO, Karina. A guerra ao terror e o enfraquecimento do repúdio à tortura.


2014, s.p.. Disponível em <http://agencia.fapesp.br/a-guerra-ao-terror-e-o-
enfraquecimento-do-repudio-a-tortura/ 18729/>. Acesso em 29. Set. 2019.
1155

A APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS


COM DEFICIÊNCIA DA ONU PELO DIREITO BRASILEIRO
THE APPLICATION OF THE UN CONVENTION ON THE RIGHTS OF
PERSONS WITH DISABILITIES BY THE BRAZILIAN LAW

Enrique Pace Lima Flores


Orientador(a): Pedro Pulzatto Peruzzo

Resumo: A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU


foi promulgada no Brasil em 2009, através do Decreto 6.949/09, trazendo
diversos avanços em matéria de direitos humanos para a legislação brasileira e
sua consequente aplicação pelo Poder Judiciário. Além disso, foi o primeiro
tratado internacional de direitos humanos incorporado no direito interno brasileiro
com status de Emenda Constitucional, de acordo com o parágrafo 3º do artigo
5º, da Constituição Federal. A partir disto, o Brasil se vinculou à Convenção,
obrigando-se a garantir o cumprimento das disposições protetivas previstas pelo
tratado. Neste sentido, o seguinte resumo visa analisar como o Brasil vêm
seguindo as determinações trazidas pela Convenção, com foco em sua
aplicação pela Justiça Federal, em casos envolvendo possíveis afrontas aos
direitos das pessoas com deficiência em que o Estado figura como parte a ser
responsabilizada, o que foi realizado através de pesquisa jurisprudencial dos
Tribunais Regionais Federais.
Palavras-chave: Cooperação internacional. Direitos humanos. Incorporação de
tratados internacionais.

Abstract: The UN Convention on the Rights of Persons with Disabilities was


promulgated in Brazil in 2009 by the Decree 6.949/09, bringing several advances
in human rights to Brazilian law and to its consequent application by the Judiciary.
In addition, it was the first international human rights treaty incorporated into
Brazilian domestic law with Constitutional Amendment status, in accordance with
paragraph 3 of article 5 of the Federal Constitution. From then on, Brazil was
bounded to the Convention, obliging itself to ensure compliance with the
protective provisions provided by the treaty. Thus, the following research aims to
analyze how Brazil has been following the determinations brought by the
Convention, focusing on its application by the Federal Justice, in cases involving
possible affronts to the rights of persons with disabilities in which the State is to
be held responsible, which was carried out through jurisprudential research of the
Federal Regional Courts.
Keywords: International cooperation. Human rights. Incorporation of
international treaties.

INTRODUÇÃO

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU,


também conhecida como Convenção de Nova York, foi estabelecida pela
Assembleia Geral da ONU em 2006, com o objetivo de estabelecer uma proteção
a nível internacional para este grupo socialmente diferenciado, através de
recomendações e disposições a serem seguidas pelos países signatários,
visando uma completa inclusão das pessoas com deficiência na sociedade de
forma geral. A Convenção foi promulgada no Brasil pelo Decreto 6.949/09
1156

juntamente com o seu Protocolo Facultativo, que reconheceu a competência do


Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência para fiscalizar o
cumprimento da Convenção e atuar em casos de denúncias a possíveis afrontas
aos direitos das pessoas com deficiência.
A proteção trazida pela Convenção e que deve ser fiscalizada pelo Comitê
é baseada no conceito do modelo social da deficiência, que compreende a
deficiência como o resultado da interação de impedimentos de longo prazo com
as barreiras sociais (DINIZ, 2007) (artigo 1º da Convenção, reproduzido
integralmente pelo artigo 2º da Lei Brasileira de Inclusão), coloca nas barreiras
sociais a responsabilidade pela obstrução do acesso à cidadania em igualdade
de condições com outras pessoas. Em outros termos, a responsabilidade pela
dificuldade de exercer a cidadania deixa de ser exclusiva da pessoa com
deficiência (ou da natureza, de uma entidade divina ou consequência de um
pecado) e passa a ser atribuída à sociedade como um todo, ou seja, aos
indivíduos que têm atitudes discriminatórias, como por exemplo, ao agente
público que não realiza obras de acessibilidade.
Partindo dos consideráveis avanços trazidos pela Convenção em matéria
de direitos humanos, o que impactou diretamente na legislação brasileira,
indaga-se como tais medidas protetivas influenciam as decisões do Poder
Judiciário em casos envolvendo discussões diretas sobre os direitos das
pessoas com deficiência. Neste sentido, o presente resumo visa, em um primeiro
momento, estudar quais foram os principais impactos da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU no ordenamento jurídico
brasileiro, no tocante às normas protetivas às pessoas com deficiência.
Buscando uma análise mais profunda de como o referido tratado vêm
influenciando o tratamento dos direitos das pessoas com deficiência, foi
realizada uma pesquisa jurisprudencial para verificar a incidência das referências
à Convenção nas decisões colegiadas dos Tribunais Regionais Federais1. A
pesquisa realizada no âmbito dos tribunais federais visa analisar como os
julgadores respondem à incorporação da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência no direito interno brasileiro.
A pesquisa apresentada teve como principal metodologia a jurimetria, ou
seja, a análise quantitativa de decisões judiciais. “Jurimetria é entendida como
um método de pesquisa baseado no uso do empirismo, combinado com análises
estatísticas, aplicado ao estudo do direito” (MACHADO, 2017). Desse modo,
estudamos as ementas dos acórdãos, de forma quantitativa, para verificar como
a Convenção é utilizada nas fundamentações dos acórdãos dos 5 Tribunais
Regionais Federais e qual é a força dessa influência no nosso direito.
Em um primeiro momento, a análise quantitativa nos permitiu observar o
número de decisões que utilizam a Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, com o objetivo de verificar se tal tratado está sendo utilizado
adequadamente pelos magistrados brasileiros nas decisões de segundo grau da
justiça federal. Posteriormente, a análise estatística desses casos nos permitiu
observar o número, por região e por data, dos diferentes assuntos abordados,
com o intuito de estudar se há tendências entre os tribunais em priorizar

1 Vale ressaltar que existem acórdãos disponibilizados para consulta pública no site após a
realização da pesquisa jurisprudencial e podem não ter sido incluídos decorrente da rotina interna
dos tribunais. Além disso, a pesquisa apresentou acórdãos que citam a Convenção, porém não
discutem diretamente os direitos das pessoas com deficiência, de modo que não foram incluídos
na pesquisa apresentada.
1157

determinados assuntos e quais são as tendências de cada tribunal ao analisar a


influência da Convenção no direito interno.

O SISTEMA BRASILEIRO DE PROTEÇÃO ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Primeiramente, é importante expor que a proteção aos direitos das


pessoas com deficiência foi prevista pela primeira vez no Brasil pela Constituição
Federal de 1988, que estabeleceu a garantia do exercício dos direitos individuais
e sociais das pessoas com deficiência, através da assistência pública, proteção
e inclusão social, pertencendo ao Estado a responsabilidade de proporciona-las,
conforme as disposições dos artigos 23, II e 24, XIV da Constituição (PIMENTEL,
2018). Entretanto, foi com a Convenção sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência da ONU e sua posterior incorporação no Brasil com força de Emenda
Constitucional que os direitos das pessoas com deficiência alcançaram maior
patamar protetivo no direito interno brasileiro.
A adoção do modelo social da deficiência acarretou em um rompimento
com a lógica anteriormente imposta pelo modelo médico, de acordo com o qual
a deficiência seria concebida meramente como uma redução de uma função
física ou mental da pessoa, que teria que carregar toda a responsabilidade por
tal impedimento. Essa mudança de paradigma, ao mesmo tempo em que
consubstancia na Convenção da ONU o reflexo direto da abertura do espaço
público transnacional (BERNARDES, 2011), permitindo uma cooperação
internacional marcada pela ampla participação de indivíduos, organizações não
governamentais e movimentos sociais na construção das agendas globais e dos
documentos normativos2, impacta com grande legitimidade na legislação interna.
É o caso da Lei 13.416/2015, mais conhecida como Lei Brasileira de Inclusão ou
Estatuto da Pessoa com Deficiência, que foi criada com o objetivo de trazer uma
proteção específica para as pessoas com deficiência, embasada nas
disposições da Convenção.
A Lei Brasileira de Inclusão trouxe importante inovação legislativa no
ordenamento jurídico e significou importante quebra de paradigmas ao trazer
alterações no campo da capacidade civil e modificar o Código Civil de 2002 para
retirar as pessoas com deficiência do rol de pessoas consideradas
absolutamente incapazes para os atos da vida civil. Além disso, vale ressaltar
ainda a implementação do instituto da tomada de decisão apoiada (art. 1.783-A),
que nasce a partir do art. 12 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e instaura o sistema de apoio à pessoa com deficiência ao reformar
o instituto da curatela em tais casos (BARBOZA, 2018).
Desse modo, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, estabelecido à luz
das disposições protetivas da Convenção, trouxe para o ordenamento jurídico
brasileiro forte impulso no caminho da inclusão social das pessoas com
deficiência, uma vez que busca conferir uma igualdade material e assegurar
paridade de oportunidades e condições com as demais pessoas a este grupo

2 A participação de múltiplos atores na construção da convenção também se repete na


formulação das orientações gerais do Comitê, a exemplo da Orientação Geral sobre o artigo 12
da Convenção, emitida em 2014 (CRPD/C/11/4), que registra a participação de: (...) expertos,
Estados partes, organizaciones de personas con discapacidad, organizaciones no
gubernamentales, órganos creados en virtud de tratados, instituciones nacionales de derechos
humanos y organismos de las Naciones Unidas.
1158

socialmente diferenciado (BARBOZA, 2017), enfrentando uma cultura de


segregação e discriminação sistemática ontra as pessoas com deficiência.

PESQUISA JURISPRUDENCIAL

A pesquisa jurisprudencial foi realizada com o auxílio da jurimetria para


estudar a incidência e aplicação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, através de uma análise quantitativa das ementas dos acórdãos.
Este estudo das ementas das decisões colegiadas dos cinco Tribunais Regionais
Federais Brasileiros proporcionou uma sistematização quantitativa dos julgados,
de modo que foram avaliadas as seguintes variáveis para a realização do
presente estudo: tribunal, data e assunto do acórdão. O estudo das decisões por
tribunal visou verificar se existem variações nos números de julgados em cada
Região. A data, por sua vez, foi analisada para observar com que frequência os
Tribunais citavam a Convenção. O estudo dos assuntos de cada acórdão, por
fim, foi de suma importância para entender quais são os tipos de ações
predominantemente julgadas pelos TRFs estudados.
Partindo para os resultados obtidos com a pesquisa realizada, foram
encontrados e analisados quantitativamente, até o presente momento, um total
de 778 acórdãos que fazem referência à Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência da ONU para fundamentar as decisões que versam
diretamente sobre os direitos das pessoas com deficiência. A primeira situação
problemática encontrada com a pesquisa foi a grande discrepância entre o
número de acórdãos existente em cada tribunal, de acordo com a seguinte
perspectiva atual dos julgados: 64 acórdãos no TRF1, 14 no TRF2, 687 julgados
no TRF3, apenas 4 no TRF4 e 9 no TRF5.
A partir deste resultado preliminar, verifica-se que existe um grande
número de ações envolvendo os direitos das pessoas com deficiência e que
referenciam a Convenção ajuizadas no Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
enquanto os demais Tribunais apresentam uma demanda relativamente limitada
de ações que citam a Convenção. Tal situação traz uma limitação para a
pesquisa pretendida, uma vez que restringe a análise jurisprudencial à poucos
Tribunais, impedimento uma ampla verificação dos entendimentos diversos entre
as Regiões. Contudo, vale aqui apontar que não são encontradas pesquisas
similares no debate acadêmico atual, de momo que fazem-se necessárias mais
pesquisas para se alcançar resultados definitivos sobre o tema tratado.
Quando trata-se das datas dos julgados, o problema referente à
discrepância do número de acórdãos entre os Tribunais permanece, uma vez
que a referência à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
ocorre com pouca frequência. Como exemplo desta situação, cita-se o TRF4
(tribunal com o menor número de julgados), que apesar de possuir a decisão
mais antiga sobre o assunto, datada de 2009 (ano da promulgação da
Convenção), apenas apresenta decisões com longo espaço de tempo entre elas,
o que dificulta novamente a verificação de um entendimento específico do
Tribunal sobre o tema. Inclusive, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que
apresenta de longe o maior número de decisões, apenas passou a apresentar
uma frequência considerável de julgados citando a Convenção a partir de 2016,
mesmo a primeira decisão sobre o tema tendo sido proferida em 2013, que
inclusive foi o único julgado daquele ano.
1159

Ademais, também foram encontrados resultados muito interessantes


quando as ementas dos acórdãos foram estudadas de modo a verificar quais o
assuntos discutidos em cada uma das ações. O assunto predominante em todos
os acórdãos foi a discussão acerca da concessão de Benefício de Prestação
Continuada (BPC), de natureza previdenciária. Aliás, a grande maioria dos
acórdãos do TRF3 tratam sobre este tema, especificamente, de modo que o BPC
representa 672 acórdãos apenas neste Tribunal. Entre outros assuntos
interessantes encontra-se: requerimento de redução de jornada de trabalho para
servidores públicos que tenham filhos com deficiência; concessão de passe livre
em transporte interestadual; participação em concursos por pessoas com
deficiência, ações reivindicando indenizações em casos de discriminação em
razão da deficiência, entre outros.
Como exemplo da diversidade de assuntos encontrados, cita-se o TRF1,
no qual foram encontrados 64 acórdãos diferente, que discutem acerca dos
seguintes assuntos: concessão de benefício de prestação continuada (23
acórdãos), redução de jornada de trabalho para servidores públicos que tenham
filhos com deficiência (24 acórdãos), concessão de passe livre para pessoas com
deficiência em transporte público interestadual (5 acórdãos), participação de
pessoas com deficiência em concurso público (6 acórdãos), requerimento de
isenção de IPI para aquisição de automóvel por pessoa com deficiência (1
acórdão) e pedido de remoção de servidor público com deficiência para realizar
tratamento em outra cidade (1 acórdão).

APLICAÇÃO DO MODELO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA PELOS TRIBUNAIS

Apesar das limitações encontradas com a pesquisa jurisprudencial


quantitativa referente à aplicação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência nos Tribunais Regionais Federais Brasileiros, foi verificado que
os acórdãos que a referenciam tendem a utilizar corretamente o modelo social
da deficiência como princípio teórico fundamentador da caracterização da
deficiência e da proteção de direitos à essas pessoas. Portanto, torna-se viável
citar alguns processos marcantes encontrados com a presente pesquisa
referente à aplicação deste conceito.
Como exemplo inicial da utilização deste conceito para caracterizar a
deficiência, cita-se o processo nº 0043732-21.2017.4.01.9199, do TRF1,
proferido em 01/06/2018, que trata da concessão de benefício de prestação
continuada. Em tal caso, a ação foi julgada improcedente em primeira instância,
sob o argumento de que a autora, que possui mastectomia total e esvaziamento
axilar, apresenta apenas incapacidade parcial para o trabalho, de modo que não
estaria caracterizada a deficiência total exigida pela lei previdenciária.
Entretanto, a decisão foi reformada pelo Tribunal em caráter de apelação, sob o
fundamento de que a deficiência parcial não impede a caracterização do
benefício, entendimento de acordo com o modelo social. O acórdão ainda afirma
que a Convenção trouxe uma nova conceituação de deficiência para o
ordenamento, frente ao conceito ultrapassado da Lei Orgânica da Assistência
social.
Por outro lado, o acórdão nº 0104847-70.2014.4.02.0000, do TRF2,
proferido em 05/04/2016, reproduz o conceito do modelo social por extenso para
fundamentar desprovimento de acórdão referente à concessão de Benefício de
Prestação Continuada, mediante a não comprovação da deficiência. Neste caso,
1160

o modelo social e as disposições da Convenção foram, utilizados como


fundamentação para afastar a alegação da deficiência.
Ademais, verificou-se ainda que a aplicação do modelo social da
deficiência em diversos acórdãos visando garantir a acessibilidade de pessoas
com deficiência. Exemplo disso é o acordão nº 5030030-42.2014.4.04.7000, do
TRF4, proferida em 30/05/2017, que manteve a decisão da primeira instância de
determinar que o Estado adotasse o sistema de videolibras na prova do ENEM,
para garantir o acesso de candidatos surdos ao exame, integralmente na
Linguagem Brasileira de Sinais.
No mesmo sentido de proporcionar uma extensa inclusão das pessoas
com deficiência na sociedade, foi encontrado um interessante julgado acerca do
pedido de isenção de IPI para aquisição de automóvel de fabricação estrangeira
para pessoa com deficiência. O acórdão nº 0007951-96.2013.4.03.6102, do
TRF3, proferido em 10/11/2016, manteve o entendimento da primeira instância
de garantir à isenção tributária requerida ao autor que possui condição para a
qual não existem carros adaptados de fabricação no Brasil, de modo que foi
necessária a importação do veículo, entendendo o Tribunal que não existem
impedimentos à isenção do imposto, para pessoas com deficiência, de
automóveis importados.
Estas decisões no sentido de garantir a inclusão das pessoas com
deficiência de forma integral na sociedade seguem adequadamente as
disposições internacionais previstas na Convenção. Verifica-se ainda que tais
acórdãos visam em suas fundamentações a proteção da igualdade e da
dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais previstos pela Constituição
Federal. Assim, os acórdãos proferidos de acordo com as determinações da
Convenção trazem importante aplicação com o objetivo de proporcionar o
respeito devido aos direitos das pessoas com deficiência.

CONCLUSÃO

A pesquisa apresentada demonstra os inegáveis avanços em matérias de


direitos humanos conquistados após a promulgação da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU e o reconhecimento da
competência do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Esta
situação de progressiva proteção aos direitos fundamentais, constitucionalmente
previstos, verifica-se com a criação da Lei Brasileira de Inclusão, através de suas
medidas protetivas referentes ao pleno exercício da cidadania pelas pessoas
com deficiência, em igualdade de condições com as demais pessoas.
No tocante à análise jurisprudencial realizada, a presente pesquisa
demonstrou que o conceito do modelo social da deficiência vem sendo aplicado
adequadamente em muitas dos julgados da Justiça Federal, havendo também
um claro avanço dos acórdãos em utilizar cada vez mais a Convenção para
fundamentar as decisões referentes aos direitos das pessoas com deficiência.
Contudo, verificou-se que a Justiça Federal ainda não aplica o referido tratado
na devida extensão, tendo em vista a completa falta de referências ao Comitê e
a grande disparidade entre os tribunais na citação da Convenção. Esta última
situação ainda se agrava quando os Tribunais aplicam as disposições protetivas
da norma internacional de forma superficial, limitando-se, em muitos casos, a
apenas discutir a respeito da caracterização ou não da deficiência.
1161

Conclui-se, portanto, que a aplicação da Convenção sobre os Direitos das


Pessoas com Deficiência no direito interno brasileiro alcançou considerável
proteção aos direitos das pessoas com deficiência, tanto no âmbito do Poder
Legislativo, fazendo valer as previsões constitucionais, quanto no âmbito do
Poder Judiciário, aplicando a norma internacional a partir de seu caráter de lei
constitucional. Entretanto, encontra-se diversas limitações à aplicação integral
de tais normas internacionais protetivas, uma vez que as barreiras sociais que
impedem a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade ainda obstruem
a realização de um direito interno inclusivo e comprometido com as proteções
necessárias aos direitos humanos.

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Under Article 5 Of The Optional Protocol To The Convention On The Rights
Of Persons With Disabilities (12th Session) nº 10/2013. Ms. S.C.
Brazil. Crpd/c/12/d/10/2013.

_______. Committee On The Rights Of Persons With Disabilities. Rules Of


Procedure Of The Committee On The Rights Of Persons With Disabilities nº
CRPD/C/4/2. Convention On The Rights Of Persons With Disabilities. Geneva,
2010.
1163

A APLICAÇÃO DO CONCEITO DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL NAS


RECOMENDAÇÕES GERAIS E RELATÓRIOS ANUAIS DO COMITÊ SOBRE
A ELIMINAÇÃO RACIAL DA ONU
THE APPLICATION OF THE CONCEPT OF RACIAL DISCRIMINATION ON
THE GENERAL RECOMMENDATIONS AND ANNUAL REPORTS OF THE
UNITED NATIONS’ INTERNATIONAL CONVENTION OF ELIMINATION OF
ALL FORMS OF RACIAL DISCRIMINATION

Isabella Garcia
Orientador(a): Pedro Pulzatto Peruzzo

Resumo: Considerando que em 2009 a OAB passou a exigir conhecimentos


específicos em Direitos Humanos no conteúdo de suas provas (Provimento n.
136) e que em 2016 a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de
Magistrados passou a prever como conteúdo obrigatório para ingresso,
formação e aperfeiçoamento de magistrados os temas de controle de
convencionalidade e incorporação de tratados (Resolução n. 2), o estudo das
decisões emanadas de organismos internacionais previstos para fiscalizar e
interpretar convenções internacionais incorporadas ao ordenamento jurídico
brasileiro passou a ter especial relevância no processo de formação dos
profissionais do Sistema de Justiça. O presente projeto de pesquisa tem como
objetivo o estudo da forma como o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação
Racial da ONU interpreta e aplica o conceito de discriminação racial em suas 35
Recomendações Gerais e nos Relatórios dos últimos 10 anos.
Palavras-chave: Racismo. ONU. Interseccionalidade.

Summary: Taking into consideration that the Brazilian Bar’s Exam (OAB) started
to demand specific human rights knowledge in 2009 (Provimento n. 136) and
that in 2016 the National Graduate School of Perfecting Magistrates (ENFAM)
started to request as a mandatory content for enrollment, graduating and
perfecting magistrates’ degrees conventionality control and treaty incorporation
themes (Resolution n. 2), the study of decisions taken by international organisms
created to oversee and interpret international conventions incorporated to Brazil’s
judicial system is now extremely relevant to the formation of professionals of the
Judicial System. The following research project has as its main goal the study of
the manners in which the Committee of Elimination of all Forms of Racial
Discrimination interprets and applies the concept of racial discrimination in its 35
General Recommendations and Annual Reports published in the last 10 years.
Key words: Racism. UM. Intersectionality.

INTRODUÇÃO

Em decorrência das atrocidades ocorridas nas duas grandes guerras


mundiais o medo da volta do autoritarismo e ideias de superioridade racial,
foram criados organismos internacionais para a proteção dos Direitos
Humanos. Em 1965, na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi elaborada a
Convenção Internacional Contra Todas as Formas de Discriminação Racial,
adotada pela resolução n.º 2.106-A em 21 de dezembro de 1965. Entrou em
vigor em 4 de janeiro de 1969, após o depósito do vigésimo sétimo instrumento
de ratificação junto ao Secretário Geral das Nações Unidas.
1164

O Brasil tornou-se signatário da Convenção em 27 de março de 1968,


promulgada pelo decreto n.º 65.810 de 8.12.1969 e publicada no Diário Oficinal
no dia 10.12.1969
A Convenção promove princípios inerentes aos propósitos de igualdade e
gozo dos Direitos Humanos, com proteção a todas as pessoas em especial a
grupos marginalizados e discriminados em razão de raça, cor, origem nacional
ou étnica. Questões ligadas à superioridade racial e apartheid são
expressamente proibidas. Os Estados Partes que seguem à Convenção
Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
da ONU se comprometem a condenar e adotar medidas contra discriminação
racial, além de promoverem a igualdade entre seus cidadãos e a luta contra a
propagação midiática de ideais racistas. Em seu preambulo, a Convenção
destaca os princípios norteadores da liberdade, igualdade e dignidade de direitos
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
O Conceito de discriminação racial esta previsto no artigo 1,§1 1 da
Convenção, o mesmo é parâmetro principal para aplicação das demais leis
referentes a própria convenção e a legislação interna dos Estados Partes.
Até o ano de 2018, 179 Estados ratificaram a Convenção Internacional
Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da ONU. A
Convenção em seu artigo 8,§12 dispõe sobre o a criação do Comitê encarregado
de receber relatórios dos Estados Partes, em um ano a partir de entrada em vigor
a Convenção, a cada dois anos e sempre que solicitado. Os relatórios devem
conter informações relativas às medidas legislativas, administrativas e judiciais
tomadas pelos Estados signatários para o fim da discriminação racial, além de
conter informações sobre a totalidade da população presente em território
nacional. O Comitê é composto por 18 membros representantes dos Estados
Partes da Convenção que são eleitos para mandato de 4 anos.
Ademais, o Comitê também recebe denunciais de violações referentes à
discriminação racial cometida pelos Estados Partes, essas denuncias podem vir
dos Estados ou dos próprios indivíduos moradores de seus territórios. O artigo
14 3da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial da ONU trata do reconhecimento da Competência do
Comitê para receber e analisar denuncias feitas por indivíduos, sem o
reconhecimento de competência o Comitê não poderá aceitar qualquer tipo de
comunicado dessa espécie.
Considerando que a Convenção define discriminação racial de forma
genérica no artigo 1 da Convenção, existem 35 Recomendações Gerais e
relatórios anuais iniciadas no ano de 1972 que tratam de diversos temas levados
1 Artigo1º §1 "discriminação racial" significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência
baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou
resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em
igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.
2 Artigo 8,§1. Será estabelecido um Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial

(doravante denominado "Comitê"), composto de dezoito peritos de grande prestígio mora e


reconhecida imparcialidade, que serão eleitos pêlos Estados Membros dentre os seus nacionais.
3 Artigo 14 §1. Todo Estado Membro na presente Convenção poderá declarar, a qualquer

momento, que reconhece a competência do Comitê para receber e examinar as comunicações


enviadas por indivíduos ou grupos de indivíduos sob sua jurisdição, que aleguem ser vítimas de
violação, por um Estado Membro, de qualquer um dos direitos enunciados na presente
Convenção. O Comitê não receberá comunicação alguma relativa a um Estado Membro que não
houver feito declaração dessa natureza.
1165

ao Comitê e que, a partir dos casos concretos, permitem uma definição mais
clara dos aspectos fundamentais para uma compreensão histórica e
politicamente melhor contextualizada do referido conceito. Assim, o problema
que pretendemos responder com a presente pesquisa é qual a dimensão
concreta desse conceito a partir das referidas Recomendações Gerais e dos
Relatórios dos últimos 10 anos.
O projeto da pesquisa tem como objetivo observar a aplicação concreta
do conceito de discriminação racial nos relatórios dos últimos dez anos (2008-
2018) e nas 35 Recomendações Gerais (1972-2012) emitidos pelo Comitê. Os
relatórios anuais são voltados às realidades de alguns países, onde são
analisadas suas condutas individuais de avanços e retrocessos à luz da
Convenção ratificada. As recomendações têm caráter geral a fim de alcançar
todos os Estados Partes simultaneamente.
O método utilizado para o desenvolvimento do projeto é o estudo empírico
calcado na análise documental e legal. As recomendações Gerais e os
Relatórios Anuais do Comitê estudado estão disponíveis no sítio eletrônico da
ONU, o que viabiliza o estudo dessa forma. Após o levantamento e leitura das
Recomendações e Relatórios dos últimos 10 anos, fizemos, pelo método
dogmático sistemático, a comparação entre esses documentos e o conceito
constante no artigo 1º da Convenção, buscando sistematizar as questões que,
nas Recomendações e nos Relatórios, atribuíram sentido concreto ao conceito
do referido artigo.
Após análise e tabelamentos das recomendações gerais e os relatórios
dos últimos dez anos o conceito de discriminação racial descrito no primeiro
artigo da Convenção se mantém em sua redação original. Entretanto, a
interpretação do mesmo é alterada, conforme o tempo e as mudanças sofridas
na reprodução do racismo.
O fenômeno de alteração da interpretação ocorre, pois a discriminação
racial pode decorrer de diferentes grupos conforme o contexto social da época.
Além do mais, a reprodução de atitudes racistas variam de acordo com as
estruturas institucionais a quais permitiram a ideia de superioridade racial,
nacional ou étnica.
O direito a autodeterminação é fundamental para identificar as vítimas de
discriminação racial, na qual elas exercem seu direito inalienável de se
reconhecer pertencente a determinado grupo.
O conceito ampliativo de discriminação racial e as novas interpretações
não dizem respeito à criação de novos direitos, pois todos sem exceção devem
gozar dos direitos humanos, mas sim auxiliar o alcance de diversos grupos que
são ou serão vulneráveis em decorrência da discriminação racial.
Ainda que muitos países façam parte da Convenção muitos deles não se
adequaram à legislação interna conforme o conceito de discriminação racial
recomendado pelo Comitê, em especial alguns países como Filipinas e
Republica Dominicana afirmam não existir discriminação racial em seus
territórios.
O alinhamento da legislação interna dos Estados Parte com as normas e
intepretações dadas pela Convenção são importantes para que haja igualdade
no tratamento de quem for vitima que qualquer tipo de discriminação racial ou
algo correlato.
Entre 31 de agosto e 08 de setembro de 2001 na cidade de Durban, na
África do Sul a Organização das Nações Unidas promoveu a Terceira
1166

Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e


Formas Correlatas de Intolerância, que ficou conhecida como Conferência de
Durban. O ano de 2001 foi proclamado como o Ano Internacional de Mobilização
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, para
enfatizar a tolerância, respeito e diversidade entre as civilizações, buscando
bases comuns que ameaçam valores universais e partilhados contra a
discriminação racial.
A África do Sul país sede da conferência foi escolhido pela sua luta contra
a institucionalização do regime do apartheid contra a população negra do país,
foi relembrada a importância da contribuição da comunidade internacional,
organizações não governamentais e sociedade civil na luta contra o terrível
regime segregacionista.
Na Conferência povos do mundo todo puderam debater formas rápidas e
abrangentes para o fim do racismo. Temas como diversidade cultural, igualdade,
escravidão, xenofobia intolerância correlata foram tratados demasiadamente.
A xenofobia, em suas diferentes manifestações é observada pelo termo
“racismo contemporâneo” que naquele período já era constatada pela
comunidade internacional pelo aumento do fluxo migratório mundial.
A Convenção Internacional Contra Todas as Formas de Discriminação
Racial é vista na Conferência de Durban como principal instrumento para o
combate da discriminação racial no mundo. A ratificação das normas da
Convenção devem ser plenamente implementadas nos Estados como
instrumento de eliminação do racismo. Novas discussões tratadas na
conferência acabaram se alinhando as posteriores deliberações da convenção
em seus relatórios e recomendações.
Durante a Conferência de Durban foi tratado o conceito teórico da critica
de raça Interseccionalidade criado pela afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw,
popularizado por sua palestra na Conferência, na qual Interseccionalidade
refere-se a múltiplos sistemas de opressão, em especial gênero, raça e classe.
A Interseccionalidade propõe uma analise estrutural não apenas racial, mas
politico, econômica e legal e o quanto essas estruturas podem tornar mulheres
ainda mais vulneráveis em situações de supressão ao acesso a direitos.
Na declaração do programa de Ação de Durban, documento feito após a
Conferência é reconhecida a importância de haver a perspectiva de gênero nas
políticas públicas, para que não existam desvantagens criadas em razão de
gênero. A perspectiva de gênero deve acolher múltiplas formas de discriminação
racial que afetam as mulheres no gozo de seus direitos políticos, civis,
econômicos, sociais e culturais que se não acessados trazem problemas a toda
sociedade.
Analisar a intersecção traz em cheque o racismo patriarcal, o sistema
econômico e a matriz colonialista. Sojouner Truth pioneira do feminismo negro,
escrava vendida aos 9 anos de idade , promoveu discurso na Convenção Dos
Direitos das Mulheres em Ohio no ano de 1851, conhecido como Eu não sou
uma mulher?, “ninguém nunca me ajudou a subir nas carruagens, nem pular
poças de lama [...], eu tive treze filhos e vi a maioria ser vendida pra
escravização”( AKOTIRENE,2018,p.25). Na simples fala de Soujoner pode-se
questionar a categoria mulher universal, raça e classe se não levadas em
consideração podem determinar a desumanização e a perpetuação de um
destino biológico de reprodução e exploração de mulheres, categoria também
reforçada patriarcado. O colonialismo moderno também é uma forma de apagar
1167

a interseção entre raça, gênero e classe ao desviar a análise para apenas um


eixo de opressão, colocando as consequências da discriminação racial como
iguais para todas as vitimas.
Mulheres em situação de vulnerabilidade acabam sofrendo
consequências ainda piores em detrimento aos homens. Em cenários que
ocorrem discriminação racial mulheres são obrigadas a abandonarem sua
cultura e religião, sofrem estupros, prostituição forçada, abandono escolar,
esterilização compulsória, trabalho forçado, afastamento de seus filhos entre
outras perdas de direitos inerentes ao ser humano.
Ao trabalhar interseção não há apenas a exposição da colisão de ideias
do feminismo que não discute raça e movimentos indenitários que não discutem
gênero, mas mostrar que raça e a classe e gênero podem dificultar ainda mais
situação de vulnerabilidade do indivíduo.
Ademais, o Comitê não faz nenhuma menção ao qual dispositivo da
Convenção a interseccionalidade poderia ser utilizada como ferramenta legal
contra discriminação racial.

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1169

A CONQUISTA DE DIREITOS LBTQIA+ NO BRASIL E A EFETIVAÇÃO DOS


DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA
LBTQIA + RIGHTS ACHIEVEMENT IN BRAZIL AND THE EFFECTIVENESS
OF HUMAN RIGHTS: AN ANALYSIS IN THE LIGHT OF THE HUMAN
DIGNITY PRINCIPLE

Adalto Jose Maciel Leme


Orientador(a): Gisele Laus da Silva Pereira Lima

Resumo: Vivemos um momento de grande violência com a comunidade


LGBTQIA+. Direitos fundamentais são cerceados dessa parcela da população.
É dever do Estado assegurar condições nas quais todos os indivíduos possam
se desenvolver plenamente e gozar da totalidade de seus Direitos. No Brasil,
existe uma grande pluralidade na forma como as pessoas expressam a
sexualidade, no entanto, muitos se encontram privados de condições básicas,
que firmam a sua dignidade. É necessária uma análise da forma como o Estado
vem lidando e levando a situação. Os pouquíssimos direitos adquiridos por tais
indivíduos vêm por meio do ativismo judicial. Isto posto, a presente pesquisa
tem por objetivo analisar a forma pelo qual foi e vem sendo assegurados os
direitos da população LGBTQIA+, com enfoque a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988, e a forma que o Estado age no tocante aos
direitos dessa comunidade, visando estabelecer uma conexão nos direitos
adquiridos e a efetivação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Palavras-chave: LGBTQIA+. Direitos Humanos. Dignidade Pessoa Humana.

Abstract: We live a moment of great violence with the comunity LGBTQIA+.


Fundamental rights are curtailed by this part of the population. It ś the State ́s
duty to ensure conditions in wich all individual can fully develop and enjoy the
fullest of their rights. In Brazil, there ́s a large plurality of sexuality expressions,
however, many are deprived of basic conditions. It is necessary a analyze of the
way how the State has been dealing and leading with this situation. The very
acquired rights by such individuals come through judicial activism. That said, the
aim of this present research is analyze the way how it was and has been secured
the LGBTQIA+ population rights, with focus from the promulgation of the 1988
Federal Contituition and the way the State assures and enforces community ́s
rights today, in order to establish a connection in the acquired rights and
consolidation of Human Person Dignity Principle.
Keywords: LGBTQIA+. Human Rights. Person Human Dignity.

1. INTRODUÇÃO

A pesquisa propõe analisar a necessidade da construção de um


arcabouço legal voltado a proteção da comunidade LGBTQIA+1, que é uma
minoria numericamente, e também um grupo mais vulnerável, e que, portanto,
carece de uma atenção especial do Estado, com o objetivo de assegurar um

1LGBTQIA+ é uma sigla que significa Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo,
Assexuais/Arromântiques/Agênero, Pan/Poli, e mais.
1170

cenário no qual possam se desenvolver plenamente e na sua totalidade.


O Brasil assegura constitucionalmente, direitos humanos, que positivados
passam a ser direitos fundamentais. Ademais, o princípio da dignidade da
pessoa humana configura um fundamento da nossa República, positivado já no
primeiro artigo da Carta Maior.
Cada pessoa é ímpar e no campo da sexualidade não seria diferente. Há
uma pluralidade nas formas como cada um apresenta sua sexualidade. A
diversidade sexual é uma realidade presente no Brasil, porém, ainda é grande
o preconceito e a violência contra aqueles que se apresentam de forma diversa
do modelo adotado como natural e aceitável pela sociedade, o modelo
heteronormativo.
Esses cidadãos, que se apresentam de forma diferente, percorreram uma
árdua luta, que perdura até hoje, para que tivessem seus direitos assegurados.
Ocorre que, o preconceito ainda impera em nossa sociedade e não temos
atualmente um olhar estatal de forma compromissada na promoção de políticas
públicas a estas pessoas, tampouco um legislativo que cumpra seu papel na
elaboração de leis que os protejam. Cumpre informar que os poucos diretos
conquistados pelos LGBTQIs são resultantes, em sua maioria, do ativismo
judicial.
Para o desenvolvimento do trabalho será apresentado a forma como a
luta para conquista dos direitos LGBTQIs se deram no Brasil, trazendo para
elucidação da temática algumas das garantias no âmbito federal, para que ao
final possamos estabelecer a conexão da importância de assegurar direitos a
esta parcela da população garantindo sua dignidade enquanto seres humanos.
Contudo, garantir um cenário de direito nos quais todos, sem distinção,
possam viver de forma livre e gozando da totalidade que lhes pode ser oferecido
é garantir que a sua condição humana seja respeitada na integridade,
consolidado e efetivando dessa forma a sua dignidade inerente enquanto ser
humano.

2. A CONQUISTA DE DIREITOS LGBTQIA+ NO BRASIL

Aqueles que fogem dos padrões impostos pela sociedade como sendo o
normal, natural, são considerados desconformes. Dessa forma, ter direitos
estabelecidos que garantam desfrutar de uma vida digna, com o mínimo
asseverado, torna-se ainda mais difícil.
Para tanto, é necessário compreender que os LGBTQIs, se inserem num
grupo de minoria, considerada como uma camada mais vulnerável da
sociedade. Trata-se, aqui, do conceito de “minoria” a partir do sentido de
inferioridade quantitativa, contrário da maioria. E destaca-se que em que pese
a democracia ser o governo da maioria, é somente no processo democrático
que a minoria pode ser ouvida, e possuem voz qualitativa, com possibilidade de
voz ativa.
Ainda que os conceitos de minoria e vulnerabilidade nos pareçam
sinônimos, são institutos diferentes. No que tange a minoria, estabelecem
sendo: “traço cultural comum presente em todos os indivíduos, originando
grupos específicos, são sujeitos ligados entre si, daí a denominação “minoria”
[como especificação].” (SIQUEIRA, CASTRO, 2017, p.110)
A vulnerabilidade social ou grupos vulneráveis, nesses termos seria um
gênero, onde as minorias estariam presentes, sendo uma das espécies, as quais
1171

cada uma com sua peculiaridade merece atenção especial do Estado. A


comunidade LGBTQIA+, como um grupo minoritário e também mais vulnerável,
no Brasil conquistou direitos através de muita luta, (re)iniciadas no final dos anos
70 e início dos anos 80, quando o regime militar começa a perder forças.
Regina Facchini, na publicação Histórico da luta de LGBT, publicado no
site do Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo 2, divide o
movimento de lutas dessa comunidade, no Brasil, em três ondas, onde a
primeira é marcada pelo surgimento do grupo Somos Afirmação Homossexual,
em São Paulo, o periódico O Lampião da Esquina, no Rio de Janeiro e do Grupo
Gay da Bahia, que dá início ao fortalecimento do movimento no Nordeste do
país. Temos, nessa fase uma emersão da luta por grupos, busca-se a
visibilidade, frente ao regime militar.
A segunda onda, já iniciada por volta de 1983 tem como marco o
surgimento do HIV2, nesse grupo, a luta nesse momento não é mais com o
regime do país, é uma luta para combater a doença e o preconceito, visto que a
AIDS3 era tida como um câncer gay, por ter acometido muitos destes, a doença
fica associada ao grupo homossexual, há um aumento na visibilidade.
Importante lembrar que entre essas duas ondas, no âmbito mundial, no
ano de 1977, a homossexualidade era retirada pela Organização Mundial da
Saúde, como sendo uma doença, daí em diante há uma mudança na forma
como se referir a essas pessoas, não se utiliza mais o termo homossexualismo
e sim homossexualidade, visto que o prefixo “ismo” no final da palavra ou
expressão refere-se a uma patologia.
A terceira onda do movimento, ainda segundo Regina Facchini, é
marcada pela busca de direitos, uma maior visibilidade, mas daí em diante como
sendo sujeitos de direitos e obrigações. Podemos dizer que esse movimento da
terceira onda perdura até os dias atuais, pois ainda é grande a busca por
reconhecimento da comunidade LGBTQIA+ no Brasil e maior ainda é a
dificuldade no reconhecimento de direitos que assegurem o mínimo a essas
pessoas, para que assim possam viver com dignidade.
Oportuno esclarecer que vários dos direitos assegurados hoje, no Brasil,
além da árdua luta da comunidade LGBTQIA+, se deve ao ativismo judicial.
Como nos ensina Maria Berenice Dias:

De tão reiteradas algumas decisões, direitos passam a ser deferidos


em sede administrativa, como a concessão pelo INSS de pensão por
morte e auxílio reclusão; o pagãmente do seguro DPVAT; e a
expedição de visto de permanência ao parceiro estrangeiro. Também
a inclusão do companheiro como dependente no imposto de renda e
do rendimento do casal para a concessão de financiamento imobiliário
foi regulamentada. (2014, p.313)

Sabemos que o Brasil é signatário de diversas convenções internacionais


voltadas a garantia dos direitos humanos e individuais, que a nossa Carta Maior
traz princípios que deveriam assegurar condições igualitárias a todos os
indivíduos, porém ainda é muito pouco.

2 Disponível em:
http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_tematicos/11/frames/fr_historico.aspx.
3 Sigla em inglês do Vírus da Imunodeficiência Humana (human immunodeficiency vírus).
1172

O reconhecimento do casamento homoafetivo, por exemplo, se deu


através do Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 175 de maio
de 2013, bem como o reconhecimento da união estável homoafetiva, como
entidade familiar e a adoção por casais homoafetivos se deu por intermédio do
Supremo Tribunal Federal, pela Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 132/RJ.
Ocorre que diversos projetos de leis que visam estabelecer direitos a esta
camada da população, por diversas questões, não ganham a atenção
necessária e nem avançam nas casas legislativas federais.
O reconhecimento a mudança do nome dos transexuais se deu através
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, votada em plenário em 01
de março de 2018, onde se reconheceu, independentemente de cirurgia de
transgenitalização4 e sem necessidade de autorização judicial, a possibilidade
de alteração do prenome e do respectivo gênero no registro civil.
A regulamentação da averbação da alteração do prenome e gênero, no
registro de nascimento e casamento de pessoas transexuais veio através do
Conselho Nacional de Justiça, pelo Provimento 73/2018, publicado em 28 de
junho de 20185.
A LGBTfobia6, matéria altamente necessária de ser discutida para
aprovação medidas que mitiguem a violência sofrida pelos LGBTQIs, é
atualmente debatida, no Supremo Tribunal Federal, através da Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e no Mandado de Injunção (MI)
4733. Onde se analisa a possível omissão do Congresso Nacional em
estabelecer sanção a este crime.
A Resolução no 01/1999, do Conselho Federal de Psicologia voltou a ser
objeto de debate nos últimos tempos, quando o Juiz Federal Waldemar Cláudio
de Carvalho, decidiu liminarmente7 que o Conselho de Psicologia não
interferisse quanto aos profissionais que quisessem promover estudos a fim da
(re) orientação sexual, fundamentando a decisão no artigo 5o, inciso IX da
Constituição Federal, que assegura a livre manifestação de pensamento,
vedando a censura. Contudo, em 09 de abril do corrente ano, a Ministra do
Supremo Tribuna Federal, Carmem Lúcia, suspendeu a ação popular que
ensejou na decisão do Magistrado Federal8.
Destacamos para melhor elucidação, no âmbito legislativo o Projeto de
Lei no 134, de 2018, merece toda a atenção, pois, além de estar em tramitação,
visa instituir o estatuto da diversidade sexual e de gênero, que se aprovado seria

4 Intervenção cirúrgica e médica para transmutação de sexo. Permitida e regulada pela


Resolução n. 1.482/97 do Conselho Federal de Medicina, devendo ser observados uma série de
requisitos impostos, dentre eles está, inclusive, o acompanhamento por psicólogo e assistente
social. Essa resolução pressupõe que não há crime de lesões corporais, previsto no art. 129 do
Código Penal, desde que a cirurgia tenha sido precedida de avaliação por equipe multidisciplinar
(com todos os critérios descritos na Resolução). (GIMENES, 2016)
5Disponível em: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3503. Acesso em
27/04/2019.
6Ódio à população LGBTQI. ato ou manifestação de ódio ou rejeição a homossexuais, lésbicas,

bissexuais, travestis e transexuais, etc. 8Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-


content/uploads/2017/09/Decisão-Liminar-RES.-011.99-CFP.pdf. Acesso em: 20/04/2019.
7Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Decisão-Liminar-RES.-
011.99-CFP.pdf. Acesso em: 20/04/2019.
8 Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/carmen-lucia-suspende-acao-e-barra-cura-gay/.

Acesso em 26/04/2019.
1173

um significativo avanço na luta pelos direitos LGBTQIA+, positivando alguns dos


direitos que atualmente são assegurados por meio de portarias, decretos e
decisões judiciais.
No âmbito internacional, que por ventura interfere no Brasil, é de grande
valia destacar o relatório apresentado no ano de 2015, pelo Alto Comissariado
para Direitos Humanos na ONU quando estabeleceu obrigações internacionais
dos países, em matéria de orientação sexual e identidade de gênero. (Cartilha
Ministério Público do estado do Ceará, 2017, p. 18)
Pelo apresentado, não há como negar que há no Brasil alguns avanços
no que tange os direitos LGBTQIA+, contudo, há muito ainda o que se evoluir,
para que possa ser afirmado que de fato o país tenha efetividade legislativa e
um compromisso sério com essa parcela da população, que é minoritária e
também mais vulnerável. Cabe ao Estado estabelecer medidas que assegurem
seus direitos básicos, de forma a positiva-los, bem como estabelecer medidas
administrativas para mitigar o preconceito e a violência, preconceito e
discriminação que tais indivíduos sofrem diariamente, não podemos ficar
esperando sempre que apenas o Judiciário tenha um olhar voltado a eles. Afinal,
garantir de fato que a igualdade de todos seja assegurada é garantir a existência
de todos enquanto seres humanos.

3. DIREITOS LGBTQIS E A GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS

O que se percebe é que não há efetivamente uma postura entre os


poderes e os entes federados na promoção de políticas públicas, muito menos,
de leis que assegurem o pleno desenvolvimento dos LGBTQIs no Brasil.
Diversas medidas administrativas ainda são necessárias e não há como
“condenar parcela da população à invisibilidade, deixando-a a margem da tutela
jurídica” (DIAS, 2014, p.313)
Por não haver grande preocupação por parte do Estado, ainda não
possuímos um banco de dados, por exemplo, que mostrem, em números
oficiais, a quantidade de crimes cometidos motivados pela LGBTfobia, temos
apenas dados de associações e grupos que lutam por esta causa. A saber, o
Grupo Gay da Bahia, que produz material e relatórios sobre o numero de
assassinatos que anualmente ocorrem motivados pelo ódio9, sem nenhuma
outra explicação. Ademais, não se percebe, também, grande interesse por parte
do estado em efetivamente solucionar tais casos, motivado, quem sabe, pela
marginalização que esses indivíduos são tratados.
Sob a ótica do presente estudo, ao analisar os Direitos Humanos, mais
precisamente o princípio da dignidade da pessoa humana, temos que partir da
premissa que seja assegurado por parte do Estado um mínimo para o
desenvolvimento de TODOS da sociedade.
Desta feita, é mister a análise da função dos princípios frente ao nosso
ordenamento jurídico, considerando que o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana se encontra positivado na nossa Carta Magna de 1988, sendo,
portanto, um princípio constitucional possui, nas palavras de Eduardo de
Azevedo Paiva:

força vinculante e são na verdade o início, o ponto de partida de

9 Disponível em: https://grupogaydabahia.com.br/assassinatos/relatorios/. Acesso em:


29/04/2019.
1174

qualquer atividade judicante, seja de interpretação, integração ou de


aplicação da lei. São de observância necessária e obrigatória em
qualquer situação, sob pena de invalidade por vício de
inconstitucionalidade. E, antes de mais nada, devem informar a própria
atividade legislativa, bem como a atuação de todos os entes estatais.
(2013, p. 43)

Sabe-se que muito é privado aos LGBTQIA+. Podemos falar do direito à


liberdade que é privado por conta da violência que esses casais, sofrem quando
expressam qualquer tipo de afetividade em público.
Outra dificuldade que é de grande valor abordar, tão cruel quanto a
privação de parte da liberdade, é a marginalização dos indivíduos transexuais e
das travestis, o não combate ao preconceito e a discriminação, que os impedem
de ocupar lugares no mercado de trabalho, lugares de destaque ou lideranças
é ainda mais difícil, ou seja, há, portanto, mais privações e não podendo se
encaixar no mercado de trabalho se veem, muita das vezes, obrigados a viver
na prostituição10. Ademais, é de suma importância que adotemos posturas de
reconhecer o indivíduo conforma sua identidade de gênero e que esses possam
gozar de todas as garantias a começar pelo reconhecimento de fato do nome
social.
Nem quando estão diretamente sob a tutela do Estado a realidade é
diferente. Temos apontamentos onde há violência a tais indivíduos dentro do
sistema penitenciário brasileiro, sendo estabelecida um sistema de
superioridade entre dos demais detentos em relação aos LGBTQIA+, chegando
até mesmo na separação dos talheres e utensílios utilizados por estes, ou ainda
que estes lhe sirvam como empregados.11 O desrespeito aos direitos humanos
parte do próprio Estado, e isto porque, foi necessário o pleito de habeas corpus
(HC 152491/SP) chegar ao Supremo Tribunal Federal para que fosse
reconhecida pelo Min. Luiz Barroso em fevereiro de 2018 o direito a travestis,
que presos em uma cela com 31 homens, fossem removidos para
estabelecimento prisional, compatível com sua orientação sexual, ou seja, um
presídio feminino.
Conforme noticiado12, o Brasil é líder no número de assassinatos de
LGBTIs, e até o presente momento são ínfimas as ações por parte do Estado
para reverter tal situação, por não possuir uma agenda que, efetivamente,
elabore políticas públicas voltadas a por fim a essa situação. Acaba sendo muito
discricionário a cada governo estabelecer como esse assunto será tratado.
É notável a necessidade do fim da omissão do Estado frente a promoção
de medidas protetivas e de reconhecimento desta parcela da população.
Tecendo uma análise sobre os direitos humanos e a pluralidade da sociedade
brasileira, nota-se que atualmente no mundo pós-moderno a realidade é muito
diferente da que existia há alguns anos atrás. Resta ao
Estado ações concretas que possibilitem a todos gozarem de uma vida

10Disponível em: http://especiais.correiobraziliense.com.br/transexuais-sao-excluidos-do-mercado-


de-trabalho. Acesso em: 20/04/2019.
11 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/03/27/discriminacao-de-
gays-na-prisao-com-pratos-marcados-e-rejeitados-por-faccoes-presos-lgbt-sofrem-com-rotina-
de-segregacao.htm?fbclid=IwAR2i3_WFf4ISVC1y_YYBCLePko-
u8v9vAPFN84Fqe8vszUvZydq2PEu_7Y0. Acesso em 15/04/2019.
12 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-

homossexuais-no-mundo. Acesso em: 22/03/2019.


1175

plena. O compromisso deve ser em adotar todas as medidas administrativas e


legislativas para a efetivação dos direitos humanos aos LGBTQIs.
Nem sempre ao tratar todos da mesma forma a justiça estará sendo feita,
é necessário um tratamento isonômico para garantir a igualdade na sociedade.
Para Flávia Piovesan junto com a igualdade se faz necessário o respeito à
diferença, como um direito assegurado. A autora nos ensina que não se pode
apenas tratar a pessoa de forma geral, mas encarando suas diferenças, quando
explica que:

Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica,


geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de
direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade.
Nessa ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas
violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada.
Nesse cenário, as mulheres, as crianças, as populações
afrodescendentes, os povos indígenas, os migrantes, as pessoas com
deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistos nas
especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do
direito à igualdade, surge, também como direito fundamental, o direito
à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes
assegura um tratamento especial. (2018, p.511)

Faz-se necessário, portanto, compreender que o ser humano é o fim em


si mesmo e é para ele que o Estado deve atuar através dos agentes públicos. O
ativismo judicial deve ser exceção e não a regra para a proteção dos LGBTQIs,
pois a garantia de direitos LGBTQIs é indissociável da garantia da dignidade da
pessoa humana.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início do movimento e da luta por reconhecimento e visibilidade


ocorreram poucas mudanças no cenário dos direitos assegurados aos
LGBTQIA+. Muito há que se padecer para que o mínimo seja assegurado
efetividade.
É inegável que estamos muito longe do cenário ideal para o
desenvolvimento destes, por não haver um compromisso efetivo com a agenda
LGBTQIA+, não há como afirmar que esse processo irá evoluir, podendo, até
mesmo regredir.
Os nossos governantes e membros do Legislativo e do Judiciário devem
ter a consciência que desempenham trabalhos para todas as pessoas, e que o
seu papel é de delegação da sociedade na luta diária para a efetivação dos
direitos humanos, e principalmente entender que a dignidade da pessoa
humana deve ser respeitada a cima de tudo, lembrar que o Estado vive em
função de todos os seres humanos e não o contrário.
Não há dúvidas, também, que a sexualidade é inerente a todos os seres
humanos, e se manifesta de diferentes formas. Para assegurar, portanto, um
cenário onde todos de fato possam se desenvolver, é necessário que a
sexualidade também possa se expressar de forma plena e livre, garantindo
assim a realização enquanto ser humano.
As minorias e os grupos vulneráveis, independentemente de quais sejam,
precisa de uma atenção especial. O atual cenário de violência vivido pelos
LGBTQIA+ não pode continuar sem que nada efetivamente seja feito, muito já
1176

foi cerceado por falta de um compromisso efetivo com estes, não podemos
naturalizar essa marginalização e o quanto não lhes é privado por uma inercia
absurda dos poderes públicos e a discriminação presente na sociedade. Uma
das principais indagações é saber quantas vidas ainda precisará se esvair para
que atitudes sejam tomadas. Os direitos humanos não se concretizam por
números, não se questionam, se asseguram.
É necessário, ainda, uma representatividade maior de LGBTQIA+ frente
aos poderes públicos. O Brasil, deve largar a abstenção em relação a todos
assuntos que não estão na pauta conservadora, é preciso encarar a realidade e
ver que a sociedade é múltipla, que as realidades são diferentes, que há uma
marginalização de grande parcela da sociedade. Passou da hora de não mais
velar tais assuntos, de buscar novos debates e efetivas resoluções. Minoria ou
não, estamos falando de seres humanos.

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04/05/2019
1178

A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO:


OLHARES SOBRE A META 8.5 DOS OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
THE DISCRIMINATION OF BLACK WOMEN IN THE LABOR MARKET:
PERSPECTIVES ON GOAL 8.5 OF SUSTAINABLE DEVELOPMENT GOALS

Laís Mendonça Úrio


Orientador(a): Ynes da Silva Félix

Resumo: O estudo aqui proposto tem por objetivo fomentar a discussão a


respeito da discriminação sofrida pelas mulheres negras no mercado de
trabalho, apresentando, ainda, as medidas internacionais que visam a
eliminação da discriminação com maior enfoque na meta 8.5 dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável. Para isso, fora realizada uma breve análise da
historia no que tange a inserção da mulher negra no mercado de trabalho,
expondo em seguida os dados levantados por órgãos governamentais que
revelam tamanha discriminação, contemplando, por fim, as ações internacionais
que visam a estimular a inserção da mulher negra no mercado de trabalho bem
como por fim ou minimizar à discriminação. Trata-se de pesquisa bibliográfica,
por vezes documental, e de cunho dedutivo.
Palavras-chave: Mulher negra. Mercado de trabalho. Meta 8.5 dos ODS.

Abstract: The study proposed here aims to foster discussion about


discrimination suffered by black women in the labor market, and also presents
international measures aimed at eliminating discrimination with a greater focus
on goal 8.5 of the Sustainable Development Goals. To reach this goal, a brief
analysis of the history of the insertion of black women in the labor market was
carried out, exposing the data collected by government agencies that reveal such
discrimination, and, by the end, the international actions aimed at stimulating
inclusion of black women in the labor market as well as to end or minimize
discrimination. This is bibliographical research, sometimes documentary, and
deductive in nature.
Keywords: Black woman. Labor Market. International legal protection.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, os ideais feministas vem ganhando cada vez mais
espaço e visibilidade, com isso, tornam-se ainda mais pertinente fomentar
discussões a respeito dos direitos das mulheres, que ganham cada vez maior
amplitude através de lutas diárias em busca do reconhecimento da igualdade
independentemente de sexo, raça, condição social, ou qualquer outra
denominação que leva a discriminação.
Diante disso, a pesquisa aborda a problemática envolvendo a inserção
das mulheres negras no mercado de trabalho, mulheres estas que acabam
sofrendo dupla discriminação em virtude do seu sexo e de sua raça.
Para isso, buscou-se apresentar uma breve perspectiva histórica da
inserção da mulher na força de trabalhopara fins de demonstrar o porquê da
existência dos atuais estigmas e preconceitos que norteiam a sociedade
contemporânea, os índices que comprovam e demonstram que ainda sim há
discriminação para com essas mulheres, contemplando, por fim a atuação
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internacional - mais especificamente a Agenda 2030 do Desenvolvimento


Sustentável -, que se revelam pertinente para a quebra de uma cultura
estruturalmente machista e racista.
O estudo aqui apresentado tem como foco a meta 8.5 dos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável em que visa o trabalho decente e igual
remuneração à homens e mulheres até 2030, buscando atribuir maior enfoque e
incorporação da mulher negra nesse processo de concretização da referida
meta, afinal trata-se de uma minoria inserida dentro de outra minoria, devendo
receber maior atenção os órgãos governamentais.
A pesquisa realizada se deu em virtude do projeto de pesquisa “direitos
humanos sociais no contexto internacional” realizado na Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul que tem por objetivo geral analisas esses direitos sob a
perspectiva das normas internacionais emanadas da Organização Internacional
do Trabalho com enfoque na concretização das metas 8.5, 8.7 e 8.8 dos
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, utilizando para isso a pesquisa
bibliográfica e documental, pautada em método dedutivo.

PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NO MERCADO DE TRABALHO


BRASILEIRO

No mundo, ainserção das mulheres no mercado de trabalho advém,


principalmente, a partir do Século XIX, diante do crescente aumento de indústrias
e maquinários que acabaram por demandar a mão de obra feminina por ser mais
barata aos chefes de industrias, sobre o assunto, Orlando Gomes (1976, p. 466),
dispõe que: “o emprego de mulheres e menores na indústria nascente
representava uma sensível redução do custo de produção, a absorção de mão-
de-obra barata, em suma, um meio eficiente e simples para enfrentar a
concorrência.”.
No entanto, se por um lado tem-se a conquista da autonomia das
mulheres no mercado de trabalho, de outro lado observam-se as condições
deploráveis em que as mulheres eram submetidas, “mulheres e crianças de até
cinco anos de idade eram submetidas a jornadas de trabalho de até 16 horas
diárias, exigências além de suas forças, alimentação insuficiente, condições
insalubres” (LOPES, 2006, p. 411).
No Brasil, em se tratando de trabalho da mulher negra, é importante
ressaltara precarização do trabalho que se deu no período da escravatura –
tráfico negreiro - que perdurou até 13 de maio de 1888, quando finalmente
extinto por meio da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel. A escravidão
trouxe, dentre outras consequências, relações raciais desequilibradas pautadas
na desigualdade social e no racismo. Sobre o assunto, Bianca Vieira pondera
que:

A condição de vulnerabilidade social da mulher negra (aqui entendida


como um conjunto de indicadores que expressam posições
desvantajosas de acesso a direitos sociais fundamentais, os quais
expõem mais frequentemente a parcela da população negra e feminina
a trabalhos degradantes e com baixo prestigio social) remonta ao
período escravista e ao processo de substituição da força de trabalho
escravizada pela assalariada. A formação social, política e econômica
do Brasil se alicerçou em um processo excludente de emergência de
uma sociedade de classes baseada em valores patriarcais e racistas
1180

que nortearam princípios fundamentais para a elaboração das normas


e leis. (VIEIRA, 2017, p. 1-2).

Sendo assim, diante da precedência histórica, ainda hoje, no Brasil, é


possível vislumbrar preconceitos e estigmas que acabam por dificultar a inserção
da mulher no mercado de trabalho ainda mais quando se é negra, assim, “a
discriminação da trabalhadora negra é traduzida na forma desigual de acesso ao
emprego, às posições de ocupação no mercado de trabalho, nas diferenças
salariais e nas atividades desenvolvidas” (TRIPIA; BARACAT, 2014, p. 27).
O informativo levantado pelo IBGE em 2018 reflete a desigualdade entre
mulheres por cor ou raça no âmbito da educação e mercado de trabalho.

O percentual de mulheres brancas com ensino superior completo é


mais do que o dobro do calculado para as mulheres pretas ou pardas,
isto é, 2,3 vezes maior [...], há considerável desigualdade entre
mulheres brancas e mulheres pretas ou pardas, evidenciando que a
cor ou raça é fator preponderante na desvantagem educacional”
(INFORMATIVO IBGE, 2018, p.6)

No que toca ao mercado de trabalho, os dados levantados apontam


diferenças significativas no que tange a inserção de mulheres brancas e negras
em cargos gerencias – tanto no setor público como no setor privado – sendo a
porcentagem de 39,7% para mulheres brancas ao passo que para mulheres
negras a porcentagem cai para 37,2%.
A mesma pesquisa demonstrou que as mulheres pretas ou pardas se
dedicam mais do que as mulheres brancas aos cuidados de pessoas e/ou
afazeres doméstico, “com o registro de 18,6 horas semanais em 2016” (IBGE,
2018, p. 3).
Esses dados estão interligados entre si na medida em que o perfil
educacional do individuo reflete nas oportunidades de futuros empregos, nesse
sentido, segundo o estudo sobre os objetivos do milênio levantado pelo Instituto
da Mulher Negra (2019, p. 40) “aposição inicial de ingresso no mercado de
trabalho é influenciada pelas características educacionais e gera um forte efeito
sobre a trajetória subsequente dos indivíduos” (LIMA, RIOS e FRANÇA, in: IPEA,
2013, p. 55).
Além disso, o racismo acaba por dificultar ainda mais a sua inserção no
mercado de trabalho, uma vez que as mulheres negras:

[...] ao ir em busca de um emprego e decidir concorrer à uma vaga no


mercado de trabalho, as mulheres negras sofrem desde o momento
em que começam distribuir o curriculum nas empresas, quando são
olhadas com um olhar diferente, quando escutam que não estão
contratando no momento e em diversas outras situações nas quais o
racismo se faz presente” (CINTRA e EVA, 2016, p. 10).

Uma pesquisa realizada por Cida Bento por meio do instituto Ethos em
2016 com o fim de levantar as características de funcionários e dirigentes das
maiores empresa que atuam no país, revelou que:

Profissionais que atuam no campo das políticas de diversidade em


empresas têm destacado que a dimensão racial da diversidade é
aquela que traz mais desafios para ser abordada e implementada.
1181

Exemplo típico é o caso das mulheres negras, que em todos os


indicadores de mercado de trabalho brasileiro se encontram em pior
situação: taxas de participação mais baixas, alta taxa de desemprego
(chega a ser 100% superior em relação ao homem branco
desempregado) e informalidade (66,7% mais elevada), bem como
rendimentos inferiores (74,5% quando comparadas aos dos homens
brancos). (BENTO, 2016, p. 28).

Sobre as políticas e ações afirmativas foi constatado pelo instituto Ethos


que a maioria das empresas não possuía medidas para incentivar a presença de
mulheres no seu quadro de pessoas, registrando que somente 20% das
empresas possuíam programas especiais para contratação de mulheres e
somente 28% estabeleceram metas para redução da desigualdade salarial entre
homens e mulheres (Ethos, 2016).
Com relação à criação de políticas para a contratação negra a
porcentagem foi de 33,3%. Não bastasse, as corporações foram indagadas a
respeito de políticas de promoções de igualdade de oportunidade para negros e
não negros, apenas 12% das empresas manifestaram-se positivamente. (Ethos,
2016).
Diante desse cenário apresentado, em que os índices revelam tamanhas
discrepâncias entre a mulher branca e a mulher negra, não só no mercado de
trabalho como também em todo o meio social, faz-se necessária a adoção de
políticas públicas, principalmente no âmbito internacional.

PERSPECTIVAS DE CUMPRIMENTO DA META 8.5 DOS OBJETIVOS DE


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PELO BRASIL

Além da atuação da Organização Internacional do Trabalho, atuante no


Brasil desde 1950, que tem como meta, dentre outras, eliminar a descriminação
no emprego e ocupação, em 2015 foram instituídos os 17 Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável também denominada como Agenda 2030 de
Desenvolvimento Sustentável.
A meta 8 prevê “a promoção do desenvolvimento econômico sustentado,
inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para
todos”, e a meta 8.5 dispõe como objetivo o “alcance do emprego pleno e
produtivo e trabalho decente para todas as mulheres e homens, inclusive para
jovens com deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor”.
Diante da necessidade de maior priorização dessa minoria, no Brasil tem-
se a criação do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030,
parceiro da ONU Mulheres Brasil, que adota como diretriz:

[...] o enfrentamento do racismo e a eliminação das desigualdades de


gênero no país, baseada na Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável e na Década Internacional de Afrodescendentes (2015-
2024), e com o manifesto da Marcha das Mulheres Negras contra o
Racismo e a Violência e pelo Bem Vive (ONU MULHERES, 2019).

Conforme noticia publicada no site ONU MULHERES, a integrante do


Comitê Lucia Xavier:“Para que essa agenda se afine um pouco mais é preciso
divulgar não somente os ODS, mas as possibilidades de incorporação das
mulheres negras nesse processo” (XAVIER, 2019).
1182

Sendo assim, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável podem ser


um importante instrumento para atrair olhares à questão da discriminação da
mulher negra na medida em que, a partir dele, novas políticas publicas deverão
ser incrementadas e novos levantamentos serão realizados, abrindo a
possibilidade de criação de inovações que coíbem as desigualdades.
No entanto, a dificuldade não está tão somente na criação de políticas
públicas para erradicar as crescentes desigualdades no mercado, mas também
nas efetivações de tais políticas. Apesar de a agenda ter sido fixada desde 2015,
o III Relatório Luz da sociedade civil da agenda 2030 de desenvolvimento
sustentável, realizado no ano de 2019, no que tange a meta 8.5 dos ODS,
assentou que:

A Meta 8.55 foi afetada pela Reforma Trabalhista, já comentada. A taxa


de desocupação no primeiro trimestre de 2019 foi 12,7%, maior que o
trimestre passado, de 11,6%, contabilizando 13,4 milhões de
desempregados no país. Aumentou a informalidade, a terceirização, o
trabalho intermitente e de trabalhadores(as) autônomos(as) conjugado
com discriminação de raça e gênero no mercado de trabalho, em
especial sobre trabalhadoras negras. Quase metade (47%) das
mulheres trabalhadoras não possuem registro em carteira e um terço
(35,5%) não contribui para a Previdência. Esse percentual sobe entre
mulheres que recebem até um salário mínimo, que também são,
majoritariamente, negras. (III RELATÓRIO LUZ DA SOCIEDADE CIVIL
DA AGENDA 2030, 2019, p. 42).

Logo, apesar de fixada a meta 8.5 nos ODS, é possível verificar a


dificuldade em implantar políticas públicas realmente efetivas para sua
concretização. A informalidade do trabalho que adveio com a reforma trabalhista
no Brasil, somada a toda historia da mulher negra, acaba por dificultar ainda mais
a concretização da meta.
Apesar disso, as metas da agenda 2030 podem ser um importante
instrumento para monitorar e avaliar as políticas, criar inovações e levantar
dados capazes de auferir a sua efetividade. No entanto, esse progresso somente
será possível se houver uma priorização e maior inserção das mulheres negras
na agenda internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de considerações finais tem-se que as mulheres negras,


historicamente, carregam consigo uma história de luta para concretização de
seus direitos civis diante das inúmeras opressões que sofrem não só no seu
ambiente de trabalho como também em sua vida social, se inserindo em um
grupo de vulneráveis que acabam suportando dupla marginalização diante da
sua raça e gênero.
Tamanho estigma e preconceito enraizado na sociedade acabam por
refletir diretamente na conquista dessas mulheres no mercado de trabalho, que
acabam, por vezes, sendo submetidas a condições desiguais de emprego,
oportunidades e salário, conforme demonstrado pelas pesquisas realizadas no
seio das empresas.
Por essa razão é indispensável a contínua reinvidicação e de direitos bem
como o constante estudo acerca desse grupo de vulneráveis principalmente no
que tange a sua inserção no meio de trabalho, uma vez que igualdade de
1183

oportunidades econômicas, no mercado de trabalho e na sociedade, como um


todo, ainda perfaz-se necessária.

REFERÊNCIAS

ACTIONAID. III Relatório Luz da Sociedade Civil Agenda 2030. 2019.


Disponível
em:<http://actionaid.org.br/wpcontent/files_mf/1568306228relatorio_luz_portug
ues_19_download_v3.pdf>. Acesso em 8 de outubro de 2019.

EVA, W.S; CINTRA, S.V. A inserção da mulher no mercado de trabalho:


Uma reflexão sobre raça e gênero. In: 4º SIMPÓSIO MINEIRO DE
ASSISTENTES SOCIAIS, 2016, Belo Horizonte: CRESS, 2016. p. 1-14.
Disponível em: https://cress-mg.org.br/hotsites/Upload/Pics/ca/ca0d78d1-2dad-
49e2-8f5f-81e097144adc.pdf. Acesso em: 8 de outubro de 2019.

INSTITUTO ETHOS DE EMPRESA E RESPONSABILIDADE SOCIAL. Perfil


social, racial, e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas
ações afirmativas. São Paulo, 2016. Disponível em:
<https://www3.ethos.org.br/wp-
content/uploads/2016/05/Perfil_Social_Tacial_Genero_500empresas.pdf>.
Acesso em: 8 de outubro de 2019.

GOMES, Orlando. Curso de direito do trabalho. 6ªed. Rio de Janeiro,


Forense, 1976, p.466.

TRIPPIA, Luciane Maria; BARACAT, Eduardo Milleo. A discriminação da


mulher negra no mercado de trabalho e as políticas públicas. Revista
eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 3,
n. 32, p. 26-38, jul./ago. 2014. Disponível em:
<https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/94254/2014_trippia_
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IBGE. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil.


Rio de Janeiro: IBGE, 2018. N. 38. p. 1-13. Disponível em:
<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf>.
Acesso em 9 de outubro de 2019

LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Direito do trabalho da mulher: Da


proteção à promoção. Cad. Pagu [online]. 2006, n.26, pp.405-430. Disponível
em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332006000100016>. Acesso em 9 de
outubro de 2019.
ONU MULHERES. Mulheres Negras destacam potencial dos ODS para
inclusão da população negra e eliminação do racismo. Onu Mulheres,
2019. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/noticias/mulheres-
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eliminacao-do-racismo/>. Acesso em: 8 de outubro de 2019.
1184

VIEIRA,Bianca. Mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro: Um


balanço das políticas públicas. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero,
2017, Florianópolis. Anais eletrônicos ISSN 2179-510X. Florianópolis, 2017. p.
1-19. Disponível em:
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GÉLEDES - INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Estudo regional sobre o


progresso dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Mulheres
Negras Cone Sul. 2019. Disponível em:<https://www.geledes.org.br/wp-
content/uploads/2019/03/Estudo-regional-sobre-o-progresso-dos-Objetivos-de-
Desenvolvimento-do-Mil%C3%AAnio.pdf>. Acesso em 8/10/2019.
1185

A MÃO DE OBRA CARCERÁRIA ÚTIL COMO ELEMENTO CHAVE PARA


ATENUAR A EXCLUSÃO SOCIAL
USEFUL WORK IN PRISONS AS A KEY ELEMENT TO DECREASE SOCIAL
EXCLUSION

Fábio Luis Martins Fernandes


Orientador(a): Maurinice Evaristo Wenceslau

Resumo: Este resumo analisa a importância de uma mão de obra útil na inclusão
social do detento, de modo que este possa se autodeterminar no corpo social e
distanciar-se da zona de exclusão que impede a consecução da ressocialização
pelo cumprimento da pena. Com esse intuito, recorre à pesquisa bibliográfica,
como modo de contextualizar o papel da atividade laboral na construção da
identidade do indivíduo em uma sociedade que adota o poder aquisitivo como
fator de valorização do ser humano nas interações sociais. Destaca-se que a
pesquisa bibliográfica é utilizada como ferramenta para construção de nova
visão sobre temas já expostos não constituindo, portanto, cópia feita pelo
pesquisador. Em conclusão, o artigo traz a importância da autodeterminação do
preso pelo trabalho para seu distanciamento do espaço de exclusão social.
Palavras-chave: Mão de obra útil. Exclusão Social. Ressocialização.

Abstract: This summary analyzes the importance of a useful labor force in the
social inclusion of the detainee, so that the detainee can self-determine in the
social body and move away from the exclusion zone that prevents the
achievement of resocialization by serving the sentence. To this end, it uses
bibliographic research as a way of contextualizing the role of labor activity in the
construction of the identity of the individual in a society that adopts purchasing
power as a factor for valuing human beings in social interactions. It is noteworthy
that the bibliographic research is used as a tool to construct a new view on
themes already exposed, not constituting a copy made by the researcher. In
conclusion, the article brings the importance of prisoners' self-determination at
work to distance themselves from the space of social exclusion.
Key-words: Useful Workforce. Social Exclusion. Ressocialization.

1. INTRODUÇÃO

A ressocialização, como objetivo a ser alcançado durante o cumprimento


da pena, deve ser entendida como um instrumento que garante o usufruto da
dignidade humana pelo ex-detento e sua família, na medida em que possibilita a
estes a inclusão social e consequente acesso aos bens mercadológicos e
culturais.
Nesse sentido,

A reinserção social dos ex-reclusos deve ser encarada do ponto de


vista dos direitos humanos. Todos os indivíduos têm o direito ao bem-
estar e a participar em liberdade na sociedade de que fazem parte. A
sociedade tem, assim, o dever de evitar a exclusão social dos ex-
reclusos, os quais, depois de cumprida a pena a que foram
condenados, devem poder viver dignas no seio de sua família e da
respectiva comunidade (AMARO, 2019, p. 19).
1186

Face ao exposto, a reconquista de uma participação social digna pelo


indivíduo após o cumprimento da pena deve ser entendida como um processo
que deve ter amplo apoio não somente do Poder Público, mas também da
sociedade em si, para que o ex-carcerário encontre condições para evitar a
reincidência criminal.
Em uma sociedade regida pela economia de mercado, o trabalho digno e
com contrapartida justa apresenta-se como importante ferramenta para o
alcance do objetivo ressocializador da pena. Assim ocorre, pois o modelo atual
em que as relações sociais se estruturam tende a valorizar o indivíduo de acordo
com sua capacidade aquisitiva de bens e serviços e acesso a elementos
culturais, o que, na visão de Laraia (2009), constitui-se

fruto de uma herança cultural que condicionou a sociedade a reagir de


modo discriminatório em relação àqueles que fogem do padrão
adotado no meio social, fazendo com que todo e qualquer
comportamento desviante seja marginalizado. (LARAIA, 2009, p. 67).

Pretende-se, portanto, apresentar a atividade laboral como um direito


fundamental e social capaz de propiciar condições dignas de subsistência aos
indivíduos, na medida em que se torna garantia destes já que, ao assumir a
categoria de direito social, o trabalho demanda ao Estado ações que possibilitem
aos menos favorecidos o acesso a serviços essenciais como a saúde, a
educação, a moradia, a alimentação, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade, à infância, e a assistência (BULOS, 2014).
Para tanto, utiliza-se a pesquisa bibliográfica, a qual não significa cópia
feita pelo pesquisador, mas sim uma análise de observações já realizadas sob
um novo enfoque (LAKATOS; MARCONI, 1999, p. 73), com o intuito de
demonstrar de modo independente o fim proposto pelo presente trabalho,
investigando outras perspectivas acerca da temática.

2. MÃO DE OBRA ÚTIL COMO FATOR IMPEDITIVO DA EXCLUSÃO


SOCIAL

Com a crescente valorização da economia de mercado e modo de


produção capitalista, nos quais há a constante necessidade de consumo de
novos bens e serviços, o trabalho assumiu o papel de interação do homem com
o ambiente ao seu redor com vistas ao acúmulo de capital, sendo isso uma
maneira de adaptar-se a uma economia que “[...] está centrada no Mercado, isto
é, no sistema econômico-financeiro internacional de trocas, que é regulado,
parcialmente, pelo Estado Nacional como Poder coativo, influenciados pelos
donos do Poder econômico e financeiro.” (KROHLING, 2008, p. 160).
Conforme Antunes (2003),

para se compreender a nova forma de ser do trabalho, a classe


trabalhadora em nossos dias, é preciso partir de uma concepção
ampliada de trabalho. Ela compreende a totalidade dos assalariados,
homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho, não
se restringindo aos trabalhadores manuais diretos. Incorpora também
a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que
vende sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário.
(ANTUNES, 2003, p. 235).
1187

Assim, a força laboral deixa de representar apenas uma forma de


interação do indivíduo com a natureza ao seu redor e passa a constituir-se,
também, como um meio de acumulação de capital, o que constitui elemento de
grande valia para a inclusão social no modelo capitalista de produção.
Da mesma maneira, tem sido aplicado o trabalho nas unidades prisionais
pátrias, não permitindo ao detento o entendimento sua importância no processo
produtivo de modo a permitir a utilização da atividade laboral como ferramenta
para construção/reconstrução de sua identidade e consequente
autodeterminação no meio social.
Esta situação decorre da influência dos modelos laborais de maximização
do lucro sobre o sistema prisional, o qual tem aplicado os modelos propostos por
Taylor (1970) e Smith (1988), que valorizam um trabalho segmentado e técnico,
com vistas a maior porcentagem de lucro na produção final.
Ocorre que o trabalho aplicado dessa maneira impede a formação/resgate
da cidadania do detento, fazendo-o não compreender seu papel no corpo social
como sujeito de direitos e deveres.
Nas palavras de Wenceslau (2009),

A cidadania é um processo educativo, fruto da cultura estabelecida


pela experiência de todos os cidadãos. Essa participação forma o
objetivo democrático, quanto mais informados e participativos, maior a
possibilidade de resolver, a contento, os seus conflitos no interior da
sociedade. (WENCESLAU, 2009, p. 86).

Isso posto, a falta da noção de cidadania faz com que o detento não
consiga distanciar-se do espaço de marginalização, uma vez que a população
carcerária constitui parcela vulnerável da população, sendo alvo de constantes
preconceitos por parte da sociedade, tornando sua ascensão cultural e
econômica ainda mais difícil.
Goffman (1982) ressalta que

[...] a mulher fiel do paciente mental, a filha do ex-presidiário, o pai do


aleijado, o amigo do cego, a família do carrasco, todos estão obrigados
a compartilhar um pouco o descrédito do estigmatizado com o qual eles
se relacionam (...) Dever-se-ia acrescentar que as pessoas que
adquirem desse modo um certo grau de estigma podem, por sua vez,
relacionar-se com outras que adquirem algo da enfermidade de
maneira indireta. Os problemas enfrentados por uma pessoa
estigmatizada espalham-se em ondas de intensidade decrescente.
(GOFFMAN, 1982, p. 39).

Os detentos, nesse sentido, estão atrelados ao estigma do preconceito, o


qual não os atinge somente, mas também as pessoas presentes em seus
vínculos afetivos, fato que torna a subsistência de seu grupo familiar cada vez
mais precária.
Tal condição, aliada a um cumprimento de pena que não traz uma
atividade laboral útil e capaz de restaurar ou até mesmo construir a identidade
dos detentos, cria um ciclo de constante exclusão dessa camada social o que,
por consequência, eleva as taxas de reincidência criminal.
Uma política carcerária que não valoriza a dignidade do preso durante o
cumprimento da pena, instaura uma cultura da violência ou prisional, resultando
de um processo de institucionalização e que causa danos irreparáveis ao
1188

detento, distanciando-o da possibilidade de adaptação social. (BARRETO,


2006).
Caldas (2006) expõe que o preso não pode se privado de acesso ao
mercado de trabalho e ao processo produtivo, já que estes são instrumentos
capazes de proporcionar a aquisição de bens e serviços. O trabalho carcerário
útil e qualificado representa um impedimento à consecução desses produtos por
meios ilegais, já que constitui ferramenta atenuante da exclusão social.
Costa (2014), no entanto, salienta que

A mera criação de postos de trabalho, isoladamente, por exemplo, não


seria capaz de solucionar a questão do trabalho prisional, vez que o
apenado permaneceria separado de sua família, privado de sua
cidadania, prisionizado. Assim, costurando bolas ou limpando
latrinas por exemplo, o condenado não pode ser resgatado,
enquanto cidadão. Ao contrário o trabalho carcerário propicia a
manutenção do estigma do condenado. Destaca-se que a discrepância
entre o trabalho realizado intramuros e a economia extramuros
inviabilizaria a ressocialização. (COSTA, 2014, p. 201, grifo nosso).

Portanto, a ressocialização deve ser promovida de forma ética,


possibilitando meios para a adaptação social do ex-detento, de modo que esse
possa garantir sua subsistência sem ser marginalizado pelo senso comum que
estabelece comportamentos padronizados e que, com isso, não utilize de vias
juridicamente obliquas para a consecução de bens.

CONCLUSÃO

Com este trabalho, foi possível demonstrar a importância da atividade


laboral na construção da identidade do detento, para compreensão do seu papel
como cidadão na sociedade, por meio de participação democrática que lhe
possibilite a inclusão social.
Nessa linha de raciocínio, o trabalho é indispensável em uma sociedade
que tende a marginalizar indivíduos que apresentem comportamento social
divergente, criando o estigma do preconceito contra determinadas camadas
sociais, como a dos detentos.
Assim, a atividade laboral, empregada de forma útil e digna, constitui fator
determinante para que os detentos possam garantir subsistência adequada após
o cumprimento da pena, por meio do acesso a bens e serviços essenciais.
Em um Estado Democrático de Direito, nenhum grupo social deve ser
privado de inovações e do processo de produção pela simples divergência
comportamental, já que os direitos e garantias fundamentais devem atingir a
todos, sem qualquer distinção.

REFERÊNCIAS

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COSTA, Dália. Crimologia e Reinserção Social. Lisboa: Pactor, 2019.

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Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v26n4/v26n4a06.pdf. Acesso em 8
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(Mestrado Profissional e Interdisciplinar em Prestação Jurisdicional e Direitos
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execução de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisas, elaboração,
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garantia ao exercício efetivo da cidadania e profissionalização. InterMeio:
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v.15, n.30, p.84-101, jul./dez. 2009. Disponível em:
http://seer.ufms.br/index.php/intm/article/view/2458 .Acesso em: 17 de set. de
2019.
1190

A MIGRAÇÃO E O TRABALHO NAS AMÉRICAS: UMA ANÁLISE SOB A


PERSPECTIVA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
MIGRATION AND LABOR IN AMERICA: AN ANALYSIS FROM THE
PERSPECTIVE OF THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS

Beatriz Rubira Furlan


Lucas André de Castro de Carvalho
Orientador(a): Valter Moura do Carmo

Resumo: os grandes fluxos migratórios por toda a extensão da américa suscitam


dúvidas e questionamentos acerca dos direitos atribuídos a estes que se
encontram na condição de migrantes, independentemente de sua condição de
regularidade. Especificamente acerca dos direitos trabalhistas, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, com a finalidade de esclarecer essas
questões e partindo de consulta por parte do Estado do México, emitiu o parecer
consultivo de número 18, sanando as possíveis dúvidas que possam vir a ocorrer
por partes dos Estados membros. Desse modo, o objetivo do presente trabalho
é analisar este parecer e delinear os princípios norteadores que levaram à sua
emissão. Quanto à metodologia, buscou- se aplicar uma pesquisa dedutiva, por
meio de análise bibliográfica, documental e jurisprudencial, bem como a análise
atenta ao parecer consultivo em questão.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Migrantes.

Abstract: The great migratory flows throughout the whole America raise doubts
and questions about the rights attributed to those who are in the condition of
migrants, regardless of their regulatory condition. Specifically on labor rights, the
Inter-American Court of Human Rights, in order to clarify these doubts, issued an
advisory opinion, resolving possible doubts that may arise from queries from the
member states. Thus, the aim of this paper is to analyze this opinion and outline
the guiding principles that led to its issuance. As for the applied methodology, it
was sought to apply a deductive research, through bibliographical, documentary
and jurisprudential analysis, as well as the analysis attentive to the advisory
opinion in question.
Keywords: Human Rights. Migrants. Inter-American Court of Human Rights.

1. INTRODUÇÃO

A migração não é um fenômeno hodierno. Contudo, fluxos migratórios


distintos surgem a todo o tempo, suscitando dúvidas e questionamentos, bem
como situações fáticas a serem julgadas e solucionadas. Dessa forma, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CoIDH) já atuou em várias oportunidades,
em opiniões consultivas e casos contenciosos. Uma das principais competências
da Corte, a consultiva, é responsável por interpretar as disposições da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CADH), sempre que
consultada, e emitir pareceres acerca dos temas. Tendo em vista que todos os
países signatários da convenção possuem obrigatoriedade de seguir o que se
dispõe nela, as opiniões consultivas da CoIDH são de suma importância para
prevenir casos graves de supressão dos direitos humanos. Na questão da
migração, fica ainda mais clara a necessidade de se fazer valer a atribuição de
1191

direitos, sanando quaisquer dúvidas por parte dos Estados membros. Além do
preconceito enfrentado por aqueles que detêm a condição de migrantes, essas
pessoas podem, eventualmente, encontrar-se em situação de vulnerabilidade
constante, se não forem a eles atribuídos os direitos dos quais todos os cidadãos
da América são detentores.
Contudo, o presente trabalho conter-se-á, por meio de análise
bibliográfica, documental e jurisprudencial, a analisar a Opinião Consultiva de
número 18, que trata especificamente dos direitos trabalhistas dos migrantes na
América e a ligação direta existente entre a migração e o trabalho. É de suma
importância navegar através do tema com cautela, analisando tanto o estigma
em torno da atribuição de trabalho a migrantes, quanto a garantias legais e
universais que devem ser atribuídas a esses trabalhadores.

2. OS CONCEITOS DE MIGRAÇÃO

Dado o exposto, mostra-se de grande importância, para o


desenvolvimento deste trabalho, esclarecer o conceito de migração, acessório
da problemática primordial aqui tratada. Analisando-se a aura de migração sob
uma perspectiva histórico-sociológica, pode-se encontrar o cerne dos estudos
principais nos Estados Unidos do século XX, que teve uma das maiores taxas
de migração até então por conta de dois fatores principais: desenvolvimento
econômico exorbitante e a segunda Grande Guerra. A partir de trabalhos de
grandes nomes da sociologia americana, como Thomas & Znaniecki, os
sociólogos da Escola de Chicago inclinaram-se para desenvolver a ideia de
migração como uma problemática inerente ao sistema político socioeconômico
capitalista, pois, uma vez que este detém uma dinâmica centrípeta para o capital,
os migrantes de países menos desenvolvidos tendiam a se deslocar em busca
de melhores oportunidades de vida (SASAKI; ASSIS, 2000). Ressalta-se que a
migração é vista como um problema social até hoje tanto pelas principais
potências da América, Ásia e Europa e consequentemente acaba tendo como
efeito um crescimento gritante de xenofobia e outros preconceitos que por vezes
acabam por ferir os Direitos Humanos. Ante ao fato, modernamente constatado,
de que migração é sinônimo de tribulações, duas correntes surgiram para
entender mais sobre a fenomênica desse tipo de fluxo de forma mais minuciosa.
Destacam-se duas correntes: Neoclássica e Histórico-Estruturalista.
A primeira detém um caráter inegavelmente mais preciso do ponto de
vista antropológico, pois alega que o indivíduo faz a sua mudança de residência
de maneira fixa (ou quase), mediante inúmeras variáveis que rondam seu livre
arbítrio. Pode-se citar, a título de exemplificação, um jovem trabalhador que irá,
por meio da racionalização, visar o custo-benefício da imigração de sua atual
residência, balanceando fatores positivos − tais como melhores oportunidades
de emprego, tanto para ele quanto para sua família −, fatores negativos, como a
distância que terá de sua pátria, sem falar nos direitos automaticamente
perdidos, e fatores nulos, que apresentam uma importância irrisória sob a ótica
da locomoção internacional.
A segunda corrente, estruturalista, teve Paul Singer como uma de suas
maiores vozes. Esta buscava entender a problemática do fluxo compulsivo de
pessoas, de um país para o outro, por um horizonte social, das massas, e não
individual como os neoclássicos. A dinâmica dos grupos de indivíduos,
qualitativa e quantitativamente falando, depende de fatores sociais atrativos e
1192

repulsivos, estes subdivididos em duas ordens, os de mudança e os de


estagnação. O social atrativo pode ser restringido à demanda da força de
trabalho, pode-se claramente projetar essa situação, por exemplo, nos parques
industriais da Califórnia que recebiam mão de obra barata mexicana para compor
as fábricas. O fator social repulsivo de ordem de mudança materializa-se com
frequência no fenômeno do êxodo rural pelo simples fato de que os camponeses
não conseguiam competir com o nível de produtividade das máquinas agrícolas.
Uma vez “expulsos” do campo, pela ordem de mudança, os trabalhadores rurais
iam para as cidades de maneira a suprir as necessidades impostas pela
dinâmica centrípeta do dinheiro capitalizado. Por fim, o fator repulsivo de ordem
de estagnação acontece quando, exemplificando, um vendedor não consegue
lucrar muito pelo número limitado de compradores em determinado local e se
locomove com o fim de obter mais recursos.
Apesar de perspectivas divergentes sobre o mesmo fato, tanto o
neoclassicismo quanto o estruturalismo histórico concluem que um dos
principais motivos de migração é o suprimento das necessidades de produção
de riqueza do sistema. Por mais que os neoclássicos olhem com mais cuidado
para o indivíduo, dotado de livre arbítrio e racionalização de eleições que são
inerentes à sua essência, percebe-se que as variáveis que rondam suas
escolhas sofrem influência direta do capitalismo. Não obstante, o próprio sistema
permeia os fatos puramente sociais e psicológicos que determinam o “pensar”
da pessoa. Dados os fatos, pode-se explicar a motivação de mais de três quartos
dos fluxos que acontecem ao redor do globo, uma vez que acontecem de um
país menos desenvolvido economicamente para outro relativamente mais rico.
Observa-se que a migração pode ser enxergada, no caso deste artigo, sem
sombra de equívocos, como fato sócio econômico advindo principalmente da
necessidade de trabalho.
Hannah Arendt vem, por meio de seu ensaio publicado em 1958, “A
Condição Humana”, reforçar a tese da importância do trabalho para o ser
humano. Fazendo uma análise crítica desde a Grécia Antiga, a filósofa explica
que, atualmente, dentro do capitalismo, o homem tem a vocação profissional
como peça constituinte da própria identidade perante a sociedade. Dessa forma,
os órgãos responsáveis por garantir os Direitos Humanos têm o dever de tutelar
os direitos trabalhistas dos migrantes que são constantemente subjugados fora
de seu país, condição esta que vivenciam pela simples motivação de encontrar
oportunidades melhores para desenvolverem-se como humanos, mediante à
atividade de produção.

3. A CORTE

Em se tratando dos órgãos responsáveis supracitados, faz-se necessário


entender o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Este foi inaugurado
graças à Declaração Americana de Direitos e Deveres Humanos de 1948,
documento aprovado na mesma conferência que criou a OEA (Organização dos
Estados Americanos) em Bogotá. Neste diapasão surge o Sistema
Interamericano, que visa garantir e executar a Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH), ou Pacto de San José da Costa Rica, de 1978. Esse pacto
se trata de uma carta que contém os princípios e direitos mais nobres inerentes
à essência digna de um ser humano. O Sistema é composto por dois órgãos de
competência internacional: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
1193

(CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CoIDH), respectivamente


sediados em Washington DC e São José da Costa Rica. A cada um desses
órgãos são delegados papéis específicos que compõem, de maneira coesa, a
dinâmica eficiente de proteção aos direitos humanísticos dos americanos. Antes
de adentrar nos papéis, que futuramente ajudarão na compreensão dos direitos
trabalhistas dos migrantes, ressalta-se que, por mais que todos os trinta e cinco
países da América façam parte da OEA, nem todos ratificaram a Convenção e
delegaram jurisdição à Corte Interamericana. Esse fato, no entanto, não diminui
a influência que o sistema tem sobre toda a América.

3.1. COMPETÊNCIA CONSULTIVA DA CORTE INTERAMERICANA DE


DIREITOS HUMANOS

No que diz respeito às competências principais da Corte Interamericana,


os países signatários da Convenção Interamericana têm por dever fazer valer o
que nela foi acordado, assim, a CoIDH fica responsável por vislumbrar o
cumprimento dos Direitos Humanos nas nações americanas e servir de
instituição consultiva às mesmas. Ressalta-se que o papel consultivo é de
extrema importância, tendo em vista que a Corte norteia, por meio de
jurisprudências, situações em que os direitos podem, ou não, estar correndo
risco de serem transgredidos. Não obstante, a CoIDH é responsável por permear
os casos que chegam à Corte, recebendo denúncias de particulares e
organizações não governamentais que protegem os Direitos Humanos. A
CoIDH, ou Tribunal Interamericano, tem três funções principais, sendo elas a
contenciosa, a consultiva e a produtiva de medidas provisórias. Contudo, as duas
primeiras interessam mais para este trabalho, pois capacitam o entendimento da
dinâmica do tribunal de maneira objetiva. A primeira trata de aplicar as leis e
princípios da Convenção em casos concretos, restringidos ou não pela
Comissão. Ademais, essa função permite que a Corte sancione
internacionalmente um Estado e garanta o cumprimento da sanção.
A função consultiva se constitui, principalmente, por meio de Opiniões
Consultivas (OC’s) que, como o próprio nome diz, são pareceres sobre
determinados assuntos que ameaçam a integridade dos Direitos Humanos. A
função dessa competência é interpretar o que é disposto na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos ou em outra norma Interamericana de
Direitos Humanos, sempre que consultado por um Estado membro da OEA, pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos ou outro órgão integrante da
OEA. Ressalta-se que o caráter vinculativo das Opiniões Consultivas configura
pauta de discussão entre juristas modernos. Entretanto, neste trabalho optou-se
por aderir a afirmativa de que existe vinculação, de maneira geral, uma vez que
as OC’s tratam de temas de interesse direto e favorável aos princípios
humanísticos. Por meio dessas opiniões, futuros casos análogos poderiam ser
solucionados antes mesmo de transgredir os princípios protegidos pelo Sistema.
No que diz respeito aos direitos dos migrantes, as duas principais jurisprudências
consultivas da Corte foram redigidas a partir de dúvidas apresentadas pelo
México, país este que é protagonista de diversos pontos de vista e discussões
no âmbito da migração na atualidade.

4. OPINIÃO CONSULTIVA 18/2003


1194

Como supramencionado, essa opinião consultiva foi elaborada a partir de


consulta do México. A questão, elaborada no ano de 2002, tratava dos direitos
dos trabalhadores migrantes não documentados. A consulta ainda mencionava
a vulnerabilidade à qual estavam expostos os trabalhadores migrantes, assim
como o preconceito, que viria nortear as decisões tomadas pelos Estados
hospedeiros perante os migrantes mexicanos não documentados, como
exposto.
O Estado trouxe, em sua consulta, entre outras disposições, o principal
questionamento: podem os países membros ultrapassarem os limites
estabelecidos pela Convenção, no que se refere aos trabalhadores não
documentados, em função de fazer valer suas próprias leis trabalhistas?
Em sua jurisprudência consultiva, a Corte (2003, p. 108) ressaltou “a
obrigação estatal geral de respeitar e garantir os direitos humanos”. Dessa
forma, os direitos humanos são destacados como inerentes a toda pessoa
humana e superiores ao poder do Estado, mesmo que sua legislação disponha
em contrário. Assim, é dever do Estado adaptar sua legislação interna e criar
mecanismos que façam valer os direitos humanos, dispostos em diversos
instrumentos legais internacionais.

Os trabalhadores migrantes, bem como o restante das pessoas, devem


ter garantido o desfrute e exercício dos direitos humanos nos Estados
onde residem. Entretanto, sua vulnerabilidade os torna alvo fácil de
violações a seus direitos humanos, em especial baseadas em critérios
de discriminação e, em consequência, coloca-os em uma situação de
desigualdade perante a lei quanto [a]o desfrute e exercício efetivos
destes direitos (CoIDH, 2003, p. 2).

Não obstante, a CoIDH (2003) entendeu que os Estados devem abster-se


de normas discriminatórias, opondo-se a práticas que exponham os migrantes,
documentados ou não, a situações degradantes à dignidade. Ainda se devem
criar medidas positivas para combater tais situações.
Como exposto, os direitos humanos, com ênfase nos de caráter trabalhista,
devem ser assegurados, independendo a condição de regularidade do indivíduo
no país. Cabe compreender que isso não significa, de qualquer forma, que os
Estados possuem a obrigação de prover trabalho para migrantes não
documentados. Entretanto, havendo trabalho, independendo da situação
documental do indivíduo, este se torna titular de direitos humanos trabalhistas e
o Estado encontra-se no dever de assegurá-los. Os direitos mencionados são
fruto das relações de trabalho e, assim, subsistem mesmo em relação ao
migrante irregular (CoIDH, 2003).
Ainda cabe esclarecer que a Corte (2003, p. 121) reconhece as distinções
entre migrantes regulares e irregulares, bem como entre nacionais e migrantes,
desde que este tratamento seja “razoável, objetivo, proporcional e não lesione
os direitos humanos” (CoIDH, 2003). Ainda, as medidas de controle de entrada
e permanência de estrangeiros são permitidas, desde que não suprimam os
direitos humanos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto no trabalho, entende-se que a migração e o trabalho estão


diretamente ligados e devem ser analisados e tratados com cautela. Os grandes
1195

fluxos migratórios possuem origem nas relações de trabalho e na preservação


do sistema que se nutre do trabalho. Não há dúvidas quanto à importância da
atenção às relações de trabalho e à condição dos trabalhadores.
É necessário proteger os direitos humanos no âmbito trabalhista, pois,
além de protegidos em diversos dispositivos internacionais, estes servem de
alicerce na garantia da dignidade humana, bem como na manutenção do sistema
de trabalho no contexto capitalista.
Outrossim, observa-se que os pronunciamentos emitidos pela CoIDH
devem servir como parâmetro para os países signatários da CADH e, desta
forma, é necessária a compreensão de seus entendimentos. Frisa-se a
importância suma das Opiniões Consultivas, estas que confirmam o interesse
internacional em proteger os indivíduos dentro de suas diferenças, trazendo um
tratamento de equidade para todos.
Resta claro que os Estados são responsáveis por promover e reconhecer
os direitos humanos em seu ordenamento jurídico e, da mesma forma, aplicá-
los. Esses direitos prevalecem a distinções entre nacionalidades e sub existem
ainda que não haja regularidade de documentação.

REFERÊNCIAS

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COIDH. Opinião consultiva nº 18, de 3 de setembro de 2003. Parecer


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1197

A NECESSIDADE DE GARANTIR O ACESSO AO TRABALHO DECENTE


PELAS PESSOAS TRANSEXUAIS
THE NEED TO ASSURE DECENT WORK ACCESS TO TRANSEXUAL
PEOPLE

Gabriela Martini Silva de Oliveira


Antônio Leonardo Amorim
Orientador(a): Ynes da Silva Félix

Resumo: Neste trabalho serão abordadas as dificuldades encontradas por


pessoas transexuais ao tentar se inserir no mercado de trabalho, em razão do
preconceito existente na maioria da sociedade que causa a falta de oportunidade
para esse grupo, levando-as a aceitar trabalhos em locais insalubres, muitas
vezes de cunho sexual, onde não têm seus direitos do trabalho garantidos.
Assim, para o desenvolvimento da presente pesquisa foi utilizado o método
dedutivo com base em uma pesquisa exploratória, descritiva, bibliográfica e
documental, com intuito de buscar identificar princípios e leis no ordenamento
jurídico que possam evitar as situações de preconceito no âmbito do trabalho,
de forma a garantir os direitos do grupo em questão.
Palavras-chave: Acesso ao trabalho. Pessoas Transgênero. Direitos Humanos
Sociais.

Abstract: This paper will address the difficulties encountered by transgender


people when trying to enter the labor market, due to the prejudice existing in a
large part of our society that causes the lack of opportunity for this group of
people, leading them to accept jobs in unhealthy places, often of sexual nature,
where they don’t have their labor rights guaranteed. Thus, for the development
of this research was used the deductive method based on an exploratory,
descriptive, bibliographic and documentary research, in order to seek to identify
principles and laws in the legal system that can avoid situations of prejudice in
the workplace, in a way to guarantee the rights of the group concerned.
Key Words: Access to work. Transgender People. Social Human Rights.

INTRODUÇÃO

São diversos os registros do aparecimento da concepção de direitos


humanos, porém, aponta a doutrina de André de Carvalho Ramos (2017) que
ocorreu na Grécia e Roma Antiga, sendo que seu principal fundamento se deu
no século XVIII com a Revolução Francesa, e seu lema “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade” influenciou diretamente no surgimento das chamadas dimensões
dos direitos fundamentais (RAMOS, 2017).
Neste trabalho se tratará dos direitos humanos de segunda dimensão,
impulsionados pela Revolução Industrial europeia do século XIX, os quais
surgem em face das precárias condições de trabalho existentes na época em
questão, e buscavam a evidenciação dos direitos sociais, culturais e
econômicos, bem como dos direitos coletivos relacionados à igualdade (LENZA,
2017).
Ao se falar de pessoas transexuais surgem diversas reações, nem sempre
positivas. Isso se dá porque muitas das vezes a grande massa da sociedade
sequer sabe o que essa palavra significa, e, perante essa ignorância, tendem a
1198

fazer suposições preconceituosas e indignas, encaixando-as em estereótipos e


classificando esse grupo de pessoas quase como sub-humanas.
Uma pessoa transexual é que alguém que não se identifica com o gênero
do corpo com o qual nasceu e, conforme o Código Internacional de Doenças
(CID) de 2018, não se trata de uma doença, mas sim de mera “experiência
identitária caracterizada pelo conflito com as normas de gênero” (BENTO, 2008).
Em razão de tanto preconceito, as pessoas transexuais tem grandes dificuldades
em estar em sociedade de modo geral, mas aqui será tratado especificamente
do ambiente de trabalho.
Os fatores existentes para exclusão das pessoas transexuais do mercado
de trabalho são diversos indo desde a falta de escolaridade aos
constrangimentos a que são submetidas, o que leva à ocupação em
subempregos, como se pode confirmar pelos dados de 2013 da Agência
Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) que apontam que cerca de 90% dos
transexuais e travestis no Brasil recorrem à prostituição por falta de outras
opções de trabalho.
Dito isso, indaga-se se há necessidade de garantia de acesso ao trabalho
pelas pessoas transgênero, e se busca uma resposta a partir da pesquisa
realizada na doutrina, jurisprudência e em documentos internacionais.
O objetivo geral desta pesquisa é verificar se há necessidade de garantia
de acesso ao trabalho pelas pessoas transgênero. Como objetivos específicos
descrever o que são pessoas transgênero, demonstrar quais os postos de
trabalho que essas pessoas ocupam e verificar se estão inseridas no mercado
de trabalho. Na pesquisa será utilizado o método hipotético dedutivo, e os dados
serão apurados a partir de estudo bibliográfico e documental.

ACESSO AO TRABALHO COMO DIREITO HUMANO

Imperioso é definir o que é o direito do trabalho, que na visão de Maurício


Godinho Delgado é o “complexo de princípios, regras e institutos jurídicos que
regulam a relação empregatícia de trabalho e outras relações normativamente
especificadas, englobando, também, os institutos, regras e princípios jurídicos
concernentes às relações coletivas entre trabalhadores e tomadores de serviços”
(DELGADO, 2017). O direito do trabalho é na verdade o sistema jurídico
brasileiro responsável por resguardar a partir de suas normas a efetivação do
trabalho em garantias legais.
Quanto aos direitos humanos, sua definição pode se dar como um
conjunto de direitos indispensáveis à vida humana, diretamente relacionados às
questões de liberdade, igualdade e dignidade, tendo como ideal principal a
universalidade, essencialidade, superioridade normativa e reciprocidade
(RAMOS, 2017).
Mister ainda destacar a existência de dois vocábulos que normalmente
geram confusão sobre a sua distinção: Direitos Humanos e Direitos
Fundamentais, bem como diferenciá-los para melhor compreensão deste
resumo, uma vez que, atualmente a Constituição Federal de 1988 adota ambas
nomenclaturas em momentos diversos.
Para André Carvalho de Ramos, essa imprecisão terminológica se dá pela
tentativa de proteger da forma mais abrangente possível determinados direitos
que seriam essenciais ao indivíduo em momentos distintos, conforme foram se
moldando aos avanços das civilizações, mas sem sofrer alterações significativas
1199

em seu núcleo (RAMOS, 2017).


Ramos também afirma que a doutrina tende a vincular o termo “direitos
humanos” àqueles estabelecidos pelo Direito internacional, enquanto o termo
“direitos fundamentais” seriam vinculados ao Direito Constitucional de um
determinado Estado. Contudo, essa não seria uma regra absoluta, pois vários
dos direitos previstos nacionalmente também o são internacionalmente e vice-
versa, podendo se falar até mesmo no termo “direitos humanos fundamentais”
(RAMOS, 2017).
Por essa razão, diante do impasse doutrinário existente quanto à
terminologia adequada e com o intuito de não alongar a discussão supra, adotar-
se-á o vocábulo “direitos humanos” para este trabalho, por entenderem os
autores ser o mais côngruo para o tema em questão.
A Constituição Federal de 1988 divide os Direitos Humanos em cinco
categorias, sendo a mais relevante à esta pesquisa a categoria dos “direitos
sociais”. Isto porque é onde se enquadra o direito do trabalho1.
Os Direitos Sociais podem ser conceituados como “um conjunto de
faculdades e posições jurídicas pelas quais um indivíduo pode exigir prestações
do Estado ou da sociedade ou até mesmo a abstenção de agir, tudo para
assegurar condições materiais mínimas de sobrevivência” (RAMOS, 2017) e
estão previstos nos arts. 6º ao 11 da CF/88.
Também, o art. 170, caput e inciso VIII da Carta Magna afirmam que “A
ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios: VIII - busca do pleno
emprego” (BRASIL, 1988)
Assim, é possível aferir que a Constituição Federal de 1988 previu o
acesso ao trabalho como um direito social, logo pertencente aos direitos
humanos, pelo fato de estar diretamente vinculado à existência digna do ser-
humano, que não pode ocorrer na sociedade atual sem aquele.
Quanto ao âmbito internacional, no ano de 2000 ocorreu a Cúpula do
Milênio, onde todos os Estados-membros se comprometeram a alcançar oito
objetivos (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ou ODMs) pautados
principalmente na erradicação da pobreza e no desenvolvimento sustentável e,
subsidiariamente, na garantia dos Direitos Humanos a todos os seres-humanos,
combate de doenças, dentre outros pelos 15 anos seguintes.
Tais objetivos começaram a ser rediscutidos, aprimorados e renovados
em 2012 na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável, popularmente conhecida como Rio+20, onde, com a Agenda 2030
em 2015, os antigos ODMs se transformaram nos atuais ODSs (Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável), praticamente dobrando sua quantidade – de oito
passaram a ser 17 – mas mantendo sua essência, pautando-se no que chamam
de “as três dimensões do desenvolvimento sustentável”: desenvolvimento
econômico, social e ambiental. Ressalta-se ainda que os ODSs devem ser
cumpridos não apenas pelo Governo, mas também pela sociedade civil, o setor
privado e também o cidadão, de modo a serem realmente eficientes.
Dentre esses objetivos está o ODS número 8 (Trabalho Decente e
Crescimento Econômico) que tem como foco central “promover o crescimento

1 Art. 6º, CF. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
1200

econômico sustentado, inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o


trabalho decente para todos”. A partir desse ODS, a necessidade de garantir um
trabalho decente para os todos indivíduos foi reforçada.
Mas afinal, o que é o trabalho decente? Segundo a OIT, é o “trabalho
produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e
dignidade humanas, sendo considerado condição fundamental para a superação
da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade
democrática e o desenvolvimento sustentável.” (OIT, 1999).
Do mesmo modo, Ynes da Silva Félix e Antônio Leonardo Amorim (2017,
p. 23) conceituam o trabalho decente afirmando que “o conceito de trabalho
decente tem como objetivo trazer para o plano nacional o reconhecimento da
liberdade, igualdade, segurança e equidade do emprego realizado de forma
produtiva”.
E complementam, afirmando que “o trabalho decente deve ser visto
também como meio de implementação de um mínimo de norma a ser observada
no direito do trabalho, e com isso temos o viés da dimensão moral do trabalho”
(2017, p. 24). Assim, é possível entender o direito de acesso ao trabalho decente
como um direito humano, tanto nacionalmente como internacionalmente,
necessário para a dignidade da pessoa humana na sociedade globalizada,
devendo ser garantido a todos sem qualquer distinção.

AS PESSOAS TRANSEXUAIS E O TRABALHO

Tratando-se este de conceito tão pouco compreendido e muitas vezes


cercado de preconceitos, é de suma importância que, em primeiro lugar, seja
conceituado e contextualizado o termo “transexual”.
Desde as primeiras civilizações, os seres humanos são classificados em
dois grandes grupos: homens e mulheres, e, a cada um deles, é designado um
papel definido na sociedade. Embora o tempo tenha passado e esses papéis
tenham mudado drasticamente, ainda há um estigma do que cada gênero é
responsável por fazer.
A socióloga Berenice Bento afirma que “vincular comportamento ao sexo,
gênero à genitália, definindo o feminino pela presença da vagina e o masculino
pelo pênis, remonta ao século XIX quando o sexo passou a conter a verdade
última de nós mesmos” (BENTO, 2008).
Em complemento, Jesus (2012, p. 08) pontua que:

Sexo é biológico, gênero é social, construído pelas diferentes culturas.


E o gênero vai além do sexo: O que importa, na definição do que é ser
homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital,
mas a autopercepção e a forma como a pessoa se expressa
socialmente.

Assim, o gênero existe devido a construções sociais que se exteriorizam


através da forma de se vestir, o corte de cabelo, gestos, cores preferíveis e etc.,
e, consequentemente, a transexualidade estaria associada a essa forma de
exteriorizar o gênero de acordo com as normas sociais, independentemente do
sexo biológico, de maneira contrária àquela esperada pela sociedade conforme
o sexo biológico do indivíduo transexual (LIMA, 2018).
Portanto, as pessoas, sejam do sexo feminino ou masculino, que se
identificam com seu gênero partindo da premissa do seu papel social, são
1201

chamadas de cisgênero. Porém, há aquelas que não se identificam com o sexo


biológico com o qual nasceram, sentem que são mais compatíveis com o gênero
distinto, essas pessoas são as consideradas transexuais.
É necessário apontar também que, apesar de hoje em dia a
transexualidade ser cientificamente vista apenas como uma incongruência de
gênero, não foi sempre assim. Até o ano de 2018, o Código Internacional de
Doenças 10 (CID-10) trazia em seu catálogo código para “transtorno de
identidade de gênero”, incluída no capítulo de transtornos de personalidade e
comportamento, aludindo estigma significativo à essa parcela da sociedade.
Bento afirma que o fato de o gênero ser um protagonista tão grande da
identidade humana, no sentido de socialmente definir quem somos, é o que leva
a transexualidade a ser interpretada como uma doença, como foi por um longo
período da humanidade e acentua que “definir a pessoa transexual como doente
é aprisiona-la, fixa-la em uma posição existencial que encontra no próprio
indivíduo a fonte explicativa para seus conflitos” (BENTO, 2008, p.18).
Felizmente, no ano de 2018 com a CID-11, a classificação da
transexualidade como um transtorno mental foi retirada, pois a ONU entendeu
não se tratar esta condição de uma doença mental, mas sim, mero sentimento
de angústia do indivíduo transexual relacionado ao conflito com o gênero que lhe
foi dado biologicamente.

ACESSO AO TRABALHO AOS(ÁS) TRANSEXUAIS

É necessário garantir o acesso ao emprego à população transexual,


justamente em razão da construção da sociedade em que pretendemos viver,
uma vez que o mandamento constitucional é para uma sociedade fraterna.
O preconceito existente no Brasil não é pouco com a comunidade
LGBTQI+, e isso se torna evidente ao notar que 90% da população transexual
tem como única opção de fonte de renda a prostituição, devido à baixa
escolaridade oriunda da grande evasão escolar existente entre esses indivíduos,
por relacionarem esse local à hostilidade (ANTRA, 2018).
A idade de 13 (treze) anos é a média nacional que as pessoas transexuais
deixam a escola, não é difícil imaginar o motivo pelo qual raramente chegam ao
ensino superior e tampouco conseguem se inserir no mercado de trabalho formal
(ANTRA,2018).
Não bastasse a dificuldade de acesso à educação e posteriormente a
postos de trabalho, muitos transexuais sequer chegam a pensar em se
profissionalizar em algo pelo fato de terem sido assassinados. Segundo dados
da ANTRA, em 2013 a expectativa de vida de uma pessoa transexual era de
apenas 35 anos, menos da metade da expectativa da população brasileira em
geral que era de 74,9 anos no mesmo ano (IBGE, 2013). Ainda, em 2018,
conforme dados da Trangender Europe (TGEU), o Brasil ocupava o primeiro
lugar do ranking de assassinatos contra pessoas transexuais no mundo, sendo
65% desses direcionados à profissionais do sexo (ANTRA,2018).
Importante destacar também que, embora sem qualquer aprofundamento
neste trabalho, o gênero feminino é o mais afetado pela violência, sendo 97,5%
dos assassinatos cometidos contra mulheres transexuais:

O assassinato é motivado pelo gênero e não pela sexualidade da


vítima. Conforme sabemos, as práticas sexuais estão invisibilizadas,
ocorrem na intimidade, na alcova. O gênero, contudo, não existe sem
1202

o reconhecimento social. Não basta eu dizer “eu sou mulher”, é


necessário que o outro reconheça este meu desejo de reconhecimento
como legítimo. O transfeminicídio seria a expressão mais potente e
trágica do caráter político das identidades de gênero. A pessoa é
assassinada porque além de romper com os destinos naturais do seu
corpo-generificado, faz isso publicamente. (BENTO, 2014, p. 2).

É possível concluir então que, como a educação é de difícil acesso aos


transexuais, em grande parte por conta do preconceito que sofrem e que os leva
a abandonar os estudos, também o é o acesso ao trabalho, que acaba por
marginalizar os transexuais que se veem cada vez mais distantes de um trabalho
decente, tendo que se submeter à prostituição, onde na maioria das vezes são
vítimas de violência e acabam morrendo.
No entanto, independente do sexo do ser humano, o trabalho é um direito
fundamental e, apenas a partir do trabalho que as pessoas conseguirão ter vida
digna ou em condições de dignidade (FÉLIX; AMORIM, 2017).

CONCLUSÃO

Este trabalho teve como objetivo demonstrar que o acesso ao trabalho


decente é um direito humano, previsto na legislação nacional e internacional,
fundamental para garantir dignidade ao ser humano e também apontar que este
direito não está sendo garantido de forma unânime a todos os indivíduos que
compõe o Brasil, em especial à população transexual.
Teve o intuito também de esclarecer o conceito de transexualidade e
desvinculá-lo a uma doença, de modo a aproximar as pessoas que possuem a
incongruência de gênero com o restante da população considerada cisgênero,
demonstrando que todos devem ser tratados como iguais não apenas perante a
lei, mas em todos os meios sociais que conviverem.
Conforme já mencionado, a obrigação de assegurar essa isonomia entre
os cidadãos não é apenas do Estado, mas sim da população como um todo,
cabendo a esta também exigir de seus governantes a criação de políticas
públicas que auxiliem na redução deste problema para que futuramente se possa
falar de igualdade de fato entre as pessoas.
Embora parcela da obrigação recaia sobre a população, o Estado não
pode se eximir de cumprir seu papel em reduzir essa desigualdade de acesso à
educação e ao mercado de trabalho, devendo agir de forma positiva no sentido
de criar políticas públicas que corrijam o desfalque que existe em relação a
população transexual e promover campanhas de conscientização que ajudem a
reduzir o preconceito existente para melhor inserção da população transexual
nos diversos ambientes da sociedade.
Deve também o Estado proteger aquelas transexuais que não veem outra
saída para sobrevivência além da prostituição, uma vez que, independentemente
da política pública adotada, essa tomará um certo tempo para ser efetiva, não
podendo o Estado deixar essas transexuais já acometidas pelo sistema à mercê
de sua própria sorte, principalmente com estatísticas tão alarmantes.

REFERÊNCIAS

BENTO, Berenice Alves de Melo. O que é transexualidade. 1. ed. [S. l.]:


Brasiliense, 2008.
1203

_____. Brasil: O país do transfeminicídio. [S. l.], 10 out. 2019. Disponível em:
<http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf>
. Acesso em 8 out. 2019.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. rev. São
Paulo: LTr, 2017.

FÉLIX. Ynes da Silva; AMORIM. Antônio Leonardo. Trabalho Decente e


Trabalho Digno – Normas Internacionais que Vedam o Retrocesso do
Direito do Trabalho. Revista Brasileira de Direito Internacional, Brasília, v. 3, n.
1, p. 21 – 35, Jan/Jun. 2017.

LIMA, Tatiane da Silva. O Acesso de Transexuais e Travestis à Educação


Superior Enquanto Direito Humano. Congresso Internacional dos Direitos
Humanos, Campo Grande, 21 nov. 2018. Disponível em:
https://docs.wixstatic.com/ugd/5b0a74_195a45a97d0d4a849153704a1490ab48
.pdf. Acesso em: 25 ago. 2019.

BRASIL. O BRASIL e a Agenda 2030. [S. l.], 1 ago. 2015. Disponível em:
<https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2015/08/odstraduzidos.pdf>.
Acesso em 7 out. 2019.

BRASIL. DOSSIÊ dos assassinatos e violências contra travestis e


transexuais no Brasil em 2018. [S. l.], 1 jan. 2019. Disponível em:
<https://antrabrasil.files.wordpress.com/2019/01/dossie-dos-assassinatos-e-
violencia-contra-pessoas-trans-em-2018.pdf>. Acesso em 7 out. 2019.

BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia de assuntos


Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil 1988.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4. ed. São Paulo:


Saraiva, 2017.
1204

A REALIDADE DO TRÁFICO DE PESSOAS DENTRO DE UM CONTEXTO DE


DIREITOS HUMANOS NA AMAZÔNIA
THE REALITY OF TRAFFICKING IN PERSONS WITHIN A HUMAN RIGHTS
CONTEXT IN THE AMAZON

Lucimar Prata dos Santos


Débora Lira de Lacerda

Resumo: O Tráfico Internacional de Pessoas é um dos mercados mais lucrativos


no mundo, movimentando entre sete e dez bilhões de dólares anuais.
Simultaneamente, é um crime que ataca diretamente os direitos humanos dos
envolvidos, restringindo a liberdade, a vida e a dignidade destes. Dentro do
contexto amazônico, afeta as comunidades ribeirinhas e indígenas,
principalmente mulheres e crianças, que ficam à mercê dos traficantes que se
utilizam da extensão geográfica, da vulnerabilidade social, da cultura machista e
da falta de preparo dos agentes estatais para induzir e comercializar para além
das fronteiras. Desta forma, analisar e propor melhorias sociais e estruturais que
busquem uma maior efetividade da lei na proteção e prevenção ao Tráfico torna-
se urgente no contexto Amazônico.
Palavras-chave: Tráfico de Pessoas. Amazônia. Direitos Humanos.

Abstract: International Trafficking in Persons is one of the most lucrative markets


in the world, moving between $ 7 billion and $ 10 billion annually, according to
the United Nations. At the same time it directly violates the human rights of those
involved, restricting their freedom, life and dignity. Within the Amazonian context,
it affects riverside and indigenous communities, especially women and children,
who are at the mercy of traffickers who use geographic extent, social vulnerability,
chauvinistic culture and the lack of preparedness of state agents to induce and
market to beyond borders. Thus, analyzing and proposing social and structural
improvements that seek greater effectiveness of the law in protecting and
preventing trafficking becomes urgent in the Amazon context.
Keywords: Trafficking in Persons. Amazonian. Human Rights.

INTRODUÇÃO

O Tráfico de pessoas sempre esteve presente na história mundial,


entretanto somente começou a ser criminalizado em 1814 através do Tratado de
Paris e posteriormente em 1904, pelo Acordo paraa Repressão do Tráfico de
Mulheres Brancas, ambos ainda restritos à visão de uma sociedade patriarcal e
racista (CASTILHO, 2007, p.10). Somente em 2000, com o advento do Protocolo
de Palermo que a comunidade internacional conseguiu atingir, ainda que de
maneira ampla, o objetivo de conceitualizar e definir para fins de prevenção,
proteção e criminalização o Tráfico de Pessoas, colocando como foco as
principais vítimas, mulheres e crianças.
O Brasil encontra-se na lista de países com maior número de casos
registrados de tráfico de pessoas no sistema Case Law Database, do Escritório
das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Essa realidade alarmante existente
no território nacional vai muito além dos casos registrados oficialmente, e está
inserida nas áreas de maior vulnerabilidade social e com menor presença do
estado.
1205

A região amazônica, por exemplo, acumula uma série de questões sociais


e estruturais que acabam por propiciar a entrada de máfias do tráfico, que por
meio de agenciadores são capazes de aliciar e induzir mulheres e crianças
pobres das cidades amazônicas a embarcar para uma vida falaciosa de
melhores condições. Ao mesmo tempo, as extensas fronteiras, as rotas já
delimitadas pelo tráfico de drogas, a deficiência estrutural por parte do Estado, e
a falta de políticas de informação facilitam a ampliação do comércio de pessoas.
Partindo da visão de que existe uma massiva violação de direitos
humanos proveniente do tráfico, nasce a necessidade de analisar e buscar
alternativas efetivas de conscientização e prevenção para tornar o crime mais
vulnerável perante a legislação e tornar a sociedade mais alerta e menos
suscetível ao tráfico. A metodologia utilizada foi quantitativa e qualitativa, com o
uso de relatórios de Organismos Internacionais, nacionais e estudo bibliográfico
de especialistas da sociedade civil.

1. DEFINIÇÃO DE TRÁFICO DE PESSOAS

O Tráfico de Pessoas pode ser definido como um fenômeno complexo


(DONATI, 2015, p. 13) de violações aos direitos humanos, em especial ao direito
a uma vida digna, a integridade pessoal e a liberdade. É possível a visualização
de três atores principais na dinâmica deste fenômeno (DETTMEIJER-
VERMEULEN, 2017, p. 3), a vítima, o traficante e o destinatário final.
A prática do tráfico permanece na pauta de combate da humanidade em
virtude da impunidade de certos agentes e da violação aos direitos de outrem,
sendo indiferente a idade ou a situação social. Conforme Global Report in
Trafficking in Pearsons de 20181, na América do Sul, 80% das vítimas
identificadas eram mulheres, ademais 37 % eram crianças.
Um fato que se inicia no recrutamento, transferência, alojamento ou
acolhimento de pessoas mediante ameaça, uso da força ou outras formas de
coação para fins de exploração. Esta é a definição trazida pelo Protocolo
Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, como disposto no seu artigo 3º,
alínea a.
O objetivo e o fim do tráfico de pessoas é a exploração. No âmbito
internacional, esta foi uma das maiores dificuldades encontradas na definição do
tráfico, identificar qual era o seu propósito. Por esta razão, entende-se pela
amplitude do termo exploração (DETTMEIJER-VERMEULEN, 2017, p. 3), que
pode ser sexual, em virtude de práticas laborais, servidão, remoção de órgãos,
adoção ilegal, ou qualquer outro meio que se traduza na anulação da
personalidade jurídica do ser humano2. Das três formas de exploração disposta
no Protocolo de Palermo, conforme Global Report in Trafficking in Pearsons de
2018, a mais identificada é a exploração sexual.

1 Este relatório teve como parâmetro pesquisas realizadas em 9 países da América do Sul no
ano de 2016, incluindo o Brasil.
2 TPIY, Caso Promotor Vs. Kunarac, Sentença de 12 de junho de 2012, par. 117. Este foi o

entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao analisar o caso Kunarac, acerca


da consequência do exercício do poder de propriedade sobre a pessoa humana por conta de
escravidão.
1206

Uma prática que parte da desumanização da vítima. Ao tratar do trafico


de pessoas no caso Rantsev v. Cyprus and Russia, a Corte Européia entendeu
que assim como a escravidão, o tráfico de pessoas parte da configuração do ser
humano em mercadoria de compra e venda, pelo exercício de poderes
pertinentes ao direito de propriedade sobre a pessoa humana.
Desta forma, é possível a extração de três elementos chaves para o
conceito de tráfico, o recrutamento, o transporte e a exploração (SHACHCHETI,
2011, p.23). O tráfico de pessoas é, portanto, o ato de disposição da vida de
alguém, através de uma cadeia de eventos (recrutar, transportar, alojar ou
acolher), com o propósito de exploração econômica, independentemente de
consentimento.

1.1 DA IRRELEVÂNCIA DO CONSENTIMENTO

Um dos aspectos inovadores do Protocolo trata-se do consentimento da


vítima, e a irrelevância desta para a caracterização do crime. Existem discussões
entre as diversas cortes ao redor do mundo em relação a importância e
relevância do consentimento.
No Relatório Case Digest – Evidential Issues in Trafficking in Persons
(2018), há o estudo de casos internacionais nos quais, determinou-se que ainda
que haja um breve consentimento por parte da vítima em trabalhar na indústria
do sexo ou em trabalho mais árduos, não reprime o princípio basilar dos direitos
humanos e fundamentais quanto a indisponibilidade destes (Case Liu LiRong -
Tonga), e que outros aspectos relativos a pressão social e preconceitos podem
ocasionar um sentimento de culpa na vítima (Case Farrel, United States).
Da análise dos precedentes internacionais, verificou-se que existe o
entendimento majoritário quanto à irrelevância do consentimento para
caracterização do Tráfico. Por outro lado, no contexto brasileiro, após a reforma
trazida pela Lei nº 13.344/2016, o tratamento quanto ao consentimento foi
modificado no país, considerando a partir de então que, somente há tráfico de
pessoas, se presentes as ações, meios e finalidades nele descritas.
Na prática o entendimento quanto às mudanças no artigo 149-A
começaram a ser aplicadas em decisões proferidas pelo Tribunal Regional
Federal da 1ª Região no julgamento da Apelação Criminal nº 0005165-
44.2011.4.01.3600/MT e, na Apelação Criminal nº 0003569-
27.2007.4.03.6181/SP, as quais absorveram os réus condenados e aplicaram o
abolitio criminis por entender que houve consentimento por parte das vítimas, o
que demonstra um retrocesso por parte do país em relação a configuração do
crime, comparando a legislação internacional.

2. DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL

O Protocolo de Palermo estabelece algumas recomendações aos Estados


Partes para o combate e prevenção ao Tráfico Internacional de Pessoas. Dentre
elas determina a criminalização deste fenômeno, a confidencialidade dos
procedimentos judiciais em prol da vitimas deste tipo de crime, o acolhimento
das vitima de tráfico por tempo temporário ou permanente no país, o incentivo a
campanhas de prevenção e pesquisas e ainda medidas de controles fronteiriços,
por exemplo, através da fiscalização de documentos.
1207

Na esfera internacional, o Protocolo de Palermo não é o único documento


aplicável, há também outros instrumentos como a Carta Africana de Direitos
Humanos e dos Povos, Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
Convenção Européia de Direitos dos Homens, Convenção sobre Todas as
Formas de Discriminação Contra a Mulher como também o Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos.
Evidencia-se este fato, no caso Rantsev v. Cyprus and Russia, onde a
Corte Europeia condenou o Estado de Cyprus por violação ao artigo 4º da
Convenção Européia de Direitos dos Homens, devido a falta de um quadro
jurídico e administrativo para o combate de trafico de pessoas, bem como a falha
da atividade policial em tomar medidas operacionais para a proteção da vítima,
uma nacional russa de 20 anos de idade.
Ademais no Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) declarou o Estado brasileiro
responsável pela violação ao artigo 6.1 da CADH, o direito de não ser submetido
a escravidão e tráfico de pessoas.
Interessante situação foi a análise pela Corte das questões preliminares
levantadas pelo Estado Brasileiro. O Estado brasileiro havia alegado a
incompetência da Corte e da Comissão em processar petições individuais
relacionadas com as violações dos compromissos internacionais assumidos pelo
Brasil no combate e prevenção ao tráfico de pessoas, devendo esta se ater
apenas ao que dispõe a CADH.
A CIDH apontou o artigo 29. b) da Convenção Americana e a Convenção
de Viena, o qual permite a interpretação da CADH em relação a outros
instrumentos internacionais, assim refletiu “(...) ao examinar a compatibilidade
das condutas ou normas estatais com a Convenção, a Corte pode interpretar, à
luz de outros tratados, as obrigações e os direitos contidos neste
instrumento.”(CIDH, p.21). Neste sentido, a Corte entende ser possível a
responsabilização do Estado em razão ao tráfico de pessoas a partir de suas
obrigações assumidas em relações a outros instrumentos internacionais.

3. DA APLICAÇÃO DO PROTOCOLO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O reconhecimento da necessidade de relacionar as normas internacionais


de direitos humanos com as normas internas durante o período de
redemocratização, é trazido com Constituição de 1988, considerando que
poderia trazer reflexos positivos e de verdadeiras adequações sociais ao Brasil,
sendo um passo importante na evolução social (CANÇADO TRINDADE, 2001,
p.20).
Dentro desta perspectiva de direitos humanos, era necessário ao Estado
Brasileiro mais atenção às violações de direitos humanos que decorriam do
Tráfico de Pessoas, o que resultou na ratificação do Protocolo de Palermo em
2004 (VENSON, 2013, p.73), e posteriormente na instituição da Política Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e a instituição do Grupo de Trabalho
Interministerial, através do Decreto nº 5.948/2006.
A ratificação do Protocolo trouxe adequação das definições sobre tráfico
de pessoas em relação à norma em vigor nacional, a exemplo, o termo ‘crianças’
vinculou-se ao entendimento trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
o termo ‘rapto’ e a expressão ‘escravatura ou práticas similares’ adequaram-se
ao entendimento trazido pelo Código Penal no artigo 148 e 149.
1208

Outro marco legislativo importante foi à inclusão de um artigo exclusivo


para a definição do Tráfico de Pessoas, através da Lei nº 13.344 de 2016, no
artigo 149-A. A entrada da regulação e criminalização foi um dos primeiros
passos na busca de atender às vítimas e a sociedade, e, principalmente
atendendo ao estabelecido na Constituição Brasileira, que dentre outros direitos
protege duramente a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança,
bem como a inviolabilidade a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, direitos diretamente violados no crime de Tráfico.

3. OS OBSTÁCULOS NA EXECUÇÃO DO PROTOCOLO DENTRO DO


CONTEXTO AMAZÔNICO

A Amazônia Brasileira se caracteriza por nove estados, só no estado do


Amazonas, o maior da região existe 62 municípios dentro de uma área
geográfica de 1.559.156,876 km², com um indicie de pobreza estimada em
49,2%, segundo o IPEA. Analisando a expansão geográfica e a pobreza, é
possível inserir a região como uma das áreas de alerta perante o Tráfico.
Apesar da previsão no artigo 11 do Protocolo definindo o compromisso
dos Estados-membros de reforçar, na medida do possível, os controles
fronteiriços necessários para prevenir e detectar o tráfico de pessoas, a prática
deste dispositivo esbarra em questões estruturais, geográficas e de pessoal, já
que a competência para a investigação e controle de fronteiras é da Polícia
Federal, através do disposto no artigo 144 da Constituição Federal e da Lei nº
10.446/2002, artigo 1º, inciso III. Segundo o delegado Luiz Carlos Ratto
Tempestini, na palestra “Experiências da Polícia Federal sobre Tráfico de
Pessoas”:

“As dificuldades de se controlar o Tráfico Internacional de Pessoas no


Brasil, estão relacionadas a sua dimensão territorial, a extensão de
suas fronteiras, bem como ao reduzido número de integrantes das
organizações criminosas internacionais e do alto lucro dessa atividade.
Estão relacionadas também, às dificuldades policiais, que estão
atreladas a escassez de recursos e de especialização, a falta de
mulheres nas equipes e do alto estresse da profissão acompanhado
da falta ou isenção de apoio psicológico.”

Dados da Polícia Federal afirmam que as rotas de transporte em sua


maioria são as mesmas que as utilizadas pelo Tráfico de drogas, passando pelos
municípios de Manaus, Tabatinga e Coari, resultando em uma extensão de rota
de tráfico de aproximadamente 3.902 km².
Outra problemática é a falta de comunicação e de informação de
qualidade por parte do Estado para a sociedade, que também é responsável pela
intervenção e prevenção (DETTMEIJER-VERMEULEN, 2017). A ausência
destas ações mais efetivas na comunicação é consequência de uma lacuna
deixada pelo Protocolo e pelas normas internas que terminam por priorizar a
punição e deixam efeitos colaterais graves para aqueles que precisam ser
protegidos, ou seja, futuras ou possíveis vítimas. (KEMPADOO, 2005;
PISCITELLI, 2006).

4. A MULHER AMAZONENSE: VULNERABILIDADE PERANTE O


TRÁFICO
1209

Por detrás da exuberância da floresta amazônica encontra-se uma


realidade de vulnerabilidade social em larga escala, na qual, os programas
nacionais de desenvolvimento são falácias e que somente aumentam a realidade
de pobreza da região. (HAZEU, 2014, p.104)
É visível o descaso para com a mulher Amazônica, que sempre se
encontra em segundo plano e que fica a mercê da pobreza, do machismo e da
construção moderna patriarcal de que possui o dever de reproduzir e trabalhar,
sem ter direito ao descanso, a qualidade de vida. Resultando na vulnerabilidade
desta perante as máfias do Tráfico e as propostas ‘irrecusáveis’, além das
ameaças e consequente comercialização para dentro e fora do País. (HAZEU,
2014, p.105).
A antropóloga Iraildes Caldas, cataloga também outros aspectos
intrínsecos a região amazônica que são determinantes para caracterizar a
vulnerabilidade das vítimas mulheres, dentre estes, a beleza exótica, resultante
da miscigenação da mulher indígena com o homem branco e negro, atrelada a
vulnerabilidade social, provinda das desigualdades sociais e da falta de acesso
a educação básica na Amazônia. Conforme a autora a situação amazônica é
caracterizada pela invisibilidade quanto ao Tráfico, não basta à preocupação
com o crescimento sustentável e as políticas ambientais, enquanto existir uma
sistemática violação de direitos humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessária uma conscientização coletiva da sociedade e do Estado de


que o Tráfico de Pessoas é um problema cotidiano, que afeta milhares de
pessoas, e desta forma desenvolver um olhar sensível da sociedade para
perceber e combater o tráfico, porque a ausência de preconceitos e estereótipos
é uma das armas para o devido controle.
A Amazônia precisa ser incluída nas pautas de monitoramento dos
organismos responsáveis estatais, levando em consideração as condições
sociais e territoriais da região, priorizando a situação das mulheres e crianças. A
busca e a disponibilização de informações pelo Estado e especialistas na matéria
pode trazer efeitos positivos e inclusive servir para a prevenção e proteção das
comunidades e grupos mais vulneráveis perante o tráfico.

REFERÊNCIAS

BRASIL. 1º Tribunal Regional Federal da 3a Região. Penal e Processual


Penal. Apelação Criminal. Tráfico Internacional de Pessoas. Artigo 231
Caput do Código Penal. Conduta praticada na vigência da lei 11.106/2005.
Superveniência da lei 13.244/2016. Violência, grave ameaça e fraude que
figuravam na forma qualificada do revogado artigo 231-A do CP, passam a
constituir circunstâncias elementares do artigo 149-A do CP. Abolitio
Criminis da lei 11.106/2005. Priscila Araújo Chaves, Carlos Aleman Ortega e
Justiça Pública. Relator Wilson Zauthy. Apelação Criminal nº 0003569-
27.2007.4.03.6181/SP-2007.61.81.003569-4/SP.

BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo


Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
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repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas
de atenção às vítimas. Disponível em:
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Acesso em: 06 de outubro de 2019;

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de Derechos Humanos Frente a la Conciencia Jurídica Universal", in La
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1213

ANÁLISE DA PRIVATIZAÇÃO DO ACESSO À ÁGUA E AO SANEAMENTO


ANALYSIS ON THE PRIVATIZATION OF WATER AND SANITATION ACCESS

Débora Vieira Torres


João Vitor Martin Corrêa Siqueira
Orientador(a): Valter Moura do Carmo

Resumo: A água para o ser humano é essencial e insubstituível, sendo


necessária para o desenvolvimento humano, as atividades econômicas, e a
produção de alimentos. Contudo, trata-se de recurso finito e por vezes não
preservado por aqueles que dela necessitam. Nesse contexto, estuda-se a
efetividade das privatizações na gestão dos recursos hídricos para entender sua
adequação na concretização do direito humano à água potável e ao saneamento
básico. Seria a água classificada como bem essencial à vida ou bem meramente
econômico? A privatização desses serviços e produtos pode ser satisfatória para
a população e melhorar a gestão? Assim, por meio de pesquisa bibliográfica e
estudo de casos referentes às privatizações em outros países, conclui-se que a
implantação da privatização de serviços essenciais à vida humana, como o
direito fundamental à água e ao saneamento, segmenta a população local,
prejudicando de forma direta a população mais carente e mais necessitada, não
sendo a forma adequada para a solução para a escassez hídrica.
Palavras-chave: Água. Direito Humano. Privatização.

Abstract: To the human being, water is essential and unreplaceable, being


necessary for the human development, economical activities and food
production. However, it is a finite resource and, sometimes, not preserved by
those who need it. In this context, we study the effectiveness of privatizations in
the management of hydric resources in order to understand its adequacy in the
concretization of human right to drinking water and basic sanitation. Could water
be classified as an essential good to life or only a merely economical asset? Can
the privatization of this service and product be satisfactory for the population and
improve the management? Thus, through bibliographical research and case
study related to privatizations in other countries, we conclude that the
implementation of privatization in services that are essential to human life, such
as the fundamental right to water and sanitation, segments the local population,
damaging in a direct way the poorest population, those who need the most, not
being the adequate way for solving the hydric scarcity.
Keywords: Water. Human right. Privatization.

1. INTRODUÇÃO

O acelerado crescimento da população urbana, somado ao crescimento


das cidades sem infraestrutura apropriada, geram pessoas sem acesso ao
fornecimento de serviços hídricos básicos. A água, para o ser humano, é um
bem essencial à vida, sendo necessária para as atividades econômicas, o
desenvolvimento humano e a produção de alimentos.
A falta de água no mundo já é fato, posto que, não distante, países estão
em conflito por ela. Como consequência, refugiados e pessoas deslocadas com
frequência desafiam sérios obstáculos para obter acesso ao fornecimento de
água e a serviços sanitários. Vivenciam-se situações que concorrem para o
1214

agravamento da escassez hídrica. Como solução, sugere-se a privatização dos


serviços hídricos, fornecendo água às populações de forma adequada. Todavia,
deve-se considerar o surgimento de uma segregação entre populações ricas e
pobres no mundo.
Nesse contexto, estuda-se a efetividade das gestões públicas e privadas
dos recursos hídricos para entender a mais adequada na concretização do direito
humano à água potável e ao saneamento. Seria a água classificada como bem
essencial à vida ou bem meramente econômico? A privatização desse serviço e
produto pode ser satisfatória para a população e melhorar a gestão? Assim, por
meio de pesquisa bibliográfica e estudo de casos referentes às privatizações em
outros países, buscou-se responder aos questionamentos da pesquisa.

2. MERCANTILIZAÇÃO DA ÁGUA: histórico da privatização

A negociação ou comercialização da água, denominada pelo termo


mercantilização, ocorre incialmente na França, seguido pelo Reino Unido, com
a privatização do fornecimento de água à população. Surgem empresas (Suez e
Veolia) que hoje são as maiores corporações transnacionais no ramo, com
serviços de saneamento, infraestrutura e novas tecnologias (dessalinização)
(BARLOW, 2009).
Estabelecer cobrança de forma livre a serviços básicos e fundamentais,
inclusive cessando o fornecimento de água àqueles que não pagassem por ela,
seguindo então uma lógica de mercado (BARLOW, 2009). Verifica-se a
aplicação do modelo neoliberal, no qual não há intervenção estatal na economia,
a um bem público, comum a todos, tratando a água, que é um direto de todo ser
humano, como um produto acessível mediante pagamento.
A Organização das Nações Unidas - ONU classifica a água como bem
econômico por meio da Declaração de Dublin sobre água e desenvolvimento
sustentável de 1992, considerando, para tanto, um passado de desperdício e
danos ao meio ambiente. Criam-se metas para uma distribuição igualitária e
eficiente da água a todos, sem adesão ao modelo proposto e contrariamente e
um sistema privado para o alcance de tais metas.
Neste sentido, observa-se que,

[...] a água é essencial para a continuidade da existência de vida digna


de ser vivida no planeta Terra. Dessa forma, o seu acesso liga-se à
ideia de um mínimo existencial, o que torna a água um bem essencial
e, assim sendo, não pode sofrer restrições de acesso, sob pena de
violação da dignidade da pessoa humana, fundamento da República
Federativa do Brasil, contido no artigo 1º, inciso III, da Constituição
Federal de 1988 (MESSIAS; NUNES; CARMO, 2019, p. 100).

A privatização dos recursos hídricos é amplamente incentivada pelo


Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional - FMI e outras organizações
internacionais, como comprovado no documento normativo Water Resources
Management, que coloca o uso da água como um produto (commodity)
necessariamente lucrativo, considerando todas as estratégias necessárias para
alcançá-lo, no qual se busca lucro a qualquer custo.
O processo de privatização de águas pode ocorrer de três formas:

Na primeira, os governos vendem completamente o sistema de


captação, de tratamento e de abastecimento da água potável para as
1215

corporações privadas, as quais arcam com os custos de operação e


lucram com o fornecimento da água tratada à população. Assim, nesse
primeiro modelo, o sistema de captação, de tratamento e de
abastecimento da água potável perde sua natureza de serviço público
e passa a ter natureza privada. Como exemplo de implementação de
tal modelo, pode-se citar o Reino Unido. Na segunda maneira, a qual
vem sendo aplicada na França, os governos cedem concessões às
corporações de água para que elas assumam o serviço de captação,
de tratamento e de abastecimento, assim, a iniciativa privada não se
torna proprietária, mas apenas concessionária do sistema de captação,
de tratamento e de abastecimento de água potável à população, o qual
permanece com sua natureza de serviço público. Nesse modelo, a
iniciativa privada também arca com os custos de operação e lucra com
o fornecimento da água tratada à população. Por fim, a terceira
maneira baseia-se no modelo de gestão privada dos serviços públicos,
a qual é considerada como um modelo mais restrito, visto que, em tal
modelo, o governo contrata uma corporação por um preço fixo,
normalmente uma taxa administrativa, para administrar os serviços de
captação, de tratamento e de abastecimento de água potável à
população, no entanto, a empresa não assume diretamente a coleta de
receita nem aufere lucros. Maude Barlow e Tony Clarke (2003, p. 106-
107) afirmam que a maneira mais comum de privatização é a baseada
no segundo modelo, chamado de “parcerias público-privadas”
(MESSIAS; NUNES; CARMO, 2019, p. 101).

A valoração da água é vantajosa à medida que possibilita o racionamento


e a fiscalização do uso por grandes usuários. Entretanto, preocupa a associação
que vem sendo disseminada de que somente com a privatização e consequente
cobrança pelo uso, é que haveria conscientização de seu uso pela população,
esquecendo-se que tal posicionamento apenas acentua e prejudica o acesso a
tal recurso, privando o uso deste aos mais necessitados.

3. CHILE E BOLÍVIA - RESULTADOS DA PRIVATIZAÇÃO

Seria a privatização do setor hídrico uma saída eficaz aos países para
garantir um melhor sistema hídrico e de saneamento?
O Chile, por possuir uma legislação, no que tange ao fornecimento de
água, muito liberal, acabou por ceder o controle às empresas mineradoras,
passando estas a controlar o fornecimento de água à população. Ocorre que, a
referida empresa simulava situações de falta de água como forma de justificar o
aumento das tarifas cobradas.
Na Bolívia, especificamente em Cochabamba, o Serviço Municipal de
Água Potável e Esgoto (SEMAPA) foi privatizado de forma ilegal pela empresa
Águas Del Turin em 1999, controlada pela corporação americana Bechtel, a qual
aumentou de forma abrupta as taxas dos serviços e expropriou os sistemas
comunitários de água. (GOMES, 2007)
Contudo, em abril do ano de 2000, após muita luta da população contra o
governo, a empresa Águas Del Turin deixou o comando do sistema hídrico,
retornando o controle ao SEMAPA.
Assim, com base nas referências acima, a privatização não é a melhor
forma de solução da crise hídrica e de saneamento, posto que contraria o
declarado pela ONU na Observação Geral nº 15, em que a água é classificada
como um direito e acessível a todos. A lógica do mercantilismo não é sensível,
apenas visa lucros a qualquer custo, inclusive ao de vidas humanas.
1216

4. CONCLUSÃO

Água e saneamento básico são direitos humanos fundamentais


essenciais à digna qualidade de vida. A preservação, manutenção e fruição
deste recurso, bem como o acesso a ele deve ser proporcionado e fiscalizado
pelo Estado, de forma eficaz e equitativa, garantindo-o a todos de forma
igualitária.
Elevar o acesso à água e ao saneamento como bem econômico,
inserindo-o no mercado, é danoso ao ser humano, vez que restringe o acesso a
um bem necessário somente àqueles que podem pagar por tal acesso, enquanto
as classes menos favorecidas não poderão acessar e tão pouco fruir, de algo
insubstituível, como é a água.
Logo, a privatização de serviços hídricos de distribuição de água, coleta e
tratamento de esgoto não permite o acesso de forma eficaz e equitativa, gerando
restrição ao acesso e alimentando o crescimento da segregação entre ricos e
pobres.
É de extrema importância que o Estado exerça o controle sobre o acesso
e fruição da água, bem como estabeleça critérios para distribuição e tratamento,
inclusive cobrando valores coerentes e acessíveis à maioria da população, bem
como estabelecendo exceções para aqueles que vivem na situação de extrema
pobreza e miséria, permitindo o acesso de todos, independente da classe
econômica a qual pertence, mas segundo critérios estabelecidos anteriormente.
Finalmente, constata-se que a privatização de setores necessários à vida
humana, como o acesso à água e ao saneamento básico não é a solução a
qualquer crise hídrica. Solução sim, é a aproximação do Estado à população em
busca de melhorias e estabelecimentos de critérios que permitam o acesso de
todos, resguardando esse direito, por meio da atuação estatal adequada.

REFERÊNCIAS

BARLOW, Maude. Água, Pacto Azul. A crise Global da água e a batalha pelo
controle da água potável no mundo. São Paulo: M. Books do Brasil, 2009.

MESSIAS, Ewerton Ricardo; NUNES, Geilson; CARMO, Valter Moura do. O


bem ambiental água: a luta contra a subversão política e econômica pela
privatização desse bem de uso comum do povo. Revista Internacional de
Direito Ambiental, Caxias do Sul, RS: Plenum, v. 22, p. 81-116, 2019.

RODRIGUES JUNIOR, Gilberto Souza; VILLAR, Pilar Carolina. O Direito


Humano à Água. Universidade de São Paulo. Disponível em:
http://www.cori.unicamp.br/CT2006/trabalhos/O%20DIREITO%20HUMANO%2
0a%20aGUA.doc. Acesso em: 08 set. 2019.

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serviços hídricos públicos no Brasil. In: MORAES, O. G.; MARQUES JR, P. W.;
MELO, M. J. A. (org.). As águas da UNASUL na RIO + 20. Curitiba: Editora
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dos Recursos Hídricos 2019. Disponível em:
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000367303_por. Acesso em: 08 set.
2019.

UNITED NATIONS. General Assembly. Resolution adopted by the General


Assembly on 28 July 2010. [without reference to a Main Committee
(A/64/L.63/Rev.1 and Add.1)]. 2010. Disponível em:
https://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/human_right_to_water_and_sanitatio
n_media_brief_por.pdf. Acesso em: 08 set. 2019.
1218

Grupo de Trabalho:

DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E


SUSTENTABILIDADE II
Trabalhos publicados:

AS FAKE NEWS E OS REFUGIADOS: PROPAGAÇÃO DO (PRÉ) CONCEITO

ATÉ ONDE A EDUCAÇÃO SEXUAL PODE INTERFERIR NO ESTUPRO?


ANÁLISE DO DISCURSO POLÍTICO E JUDICIAL EM PROCESSOS DE
CRIMES SEXUAIS DE VULNERÁVEL

CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E ATIVISMO JUDICIAL: O PAPEL DO


JUDICIÁRIO COMO GARANTIDOR DE DIREITOS HUMANOS

CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE PARA ALÉM DO CRITÉRIO


HIRÁRQUICO DAS NORMAS

DIGNIDADE HUMANA E MORAL: ATÉ QUE PONTO A PARTIR DO PRINCÍPIO


DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PODEMOS GARANTIR A DIMENSÃO
ABSOLUTA E INALIENÁVEL DO DIREITO A VIDA?

DIREITO AO DESENVOLVIMENTO: UMA PERSPECTIVA CONCEITUAL DA


ECONOMIA PARA OS DIREITOS HUMANOS

DIREITOS REPRODUTIVOS DA MULHER E O ARTIGO 10 DA LEI DE


PLANEJAMENTO FAMILIAR

DITADURA DA LOUCURA: DO MODELO MANICOMIAL A ATENÇÃO


PSICOSSOCIAL

EDUCAÇÃO NEGRA: UMA ANÁLISE SOBRE O INGRESSO DE PESSOAS


NEGRAS NOS CURSOS SUPERIORES DE DIREITO PELO SISTEMA DE
COTAS NO ESTADO DE MINAS GERAIS

O CASO HE JIANKUI: UMA ANÁLISE JURÍDICA SOB UM OLHAR BIOÉTICO

O EFEITO CÍCLICO DA FALTA DE MEMÓRIA COLETIVA NO DECLÍNIO DO


CONCEITO MATERIAL DE DIREITOS HUMANOS

O FEMINISMO EM SITUAÇÃO DE RUA: A BUSCA POR DIREITOS DAS


MULHERES
1219

AS FAKE NEWS E OS REFUGIADOS: PROPAGAÇÃO DO (PRÉ) CONCEITO


FAKE NEWS AND REFUGEES: THE PROMOTION OF PREJUDICE

Caio Cabral Azevedo


Bianca Izabella Carvalho Dos Reis
Orientador(a): Newton Teixeira Carvalho

Resumo: O presente resumo procura discorrer acerca do fenômeno das fake


news sob o prisma dos direitos humanos, na figura do refugiado e, deste modo,
sintetizar como as fake news possuem o poder de induzir uma (pré)conceituação
falacioso, que afeta intimamente a vida destes. Para tanto, apresentamos o
conceito de fake news, discorrendo acerca de seu significado, além do contexto
atual em que está inserida, tal como suas consequências, objetivando uma
reflexão do perigo que uma notícia falsa pode fazer. Assim, a pesquisa será
desenvolvida de acordo com a vertente bibliográfica. E em relação ao tipo de
investigação, foi escolhido o método dedutivo.
Palavras-chaves: Fake News. Direitos Humanos. Refugiados.

Abstract: This paper has as an objective to discuss the phenomenon of fake


news trough the perspective of human rights, synthesizing how this phenomenon
can affects a minority group, such as refugees, as well as fake news aptitude to
cause prejudice against these same groups. It presents the concept of fake news,
discussing its meaning, as well as the current context on which it rests and the
consequences it brings to refugees’ lives. This paper also focus on an important
reflection of how dangerous the fake news can be. The methodology used for this
project sustains itself on bibliography and deductive method.
Keywords: Fake News. Human Rights. Refugees.

1. INTRODUÇÃO

Atualmente, o tema fake news tem se tornado, cada vez mais, objeto de
discussão em ambiente acadêmico. Isso se deve, em suma, à rápida evolução
tecnológica e a forma como ela transforma as formas de interações sociais.
Nesse contexto, abordar o tema ‘fake news’ auxilia na compreensão de
diversos temas da atualidade, tais como a política, as eleições e o direito, que
recebem grande influência dessa mudança de paradigma proposta pelas
ferramentas digitais.
Nessa direção, e tendo em mente a complexidade do tema, o texto terá
enfoque nos direitos humanos, principalmente no que tange aos direitos dos
migrantes forçados e refugiados, dada a frequência com que são objetos de fala
nas diferentes abordagens políticas e midiáticas.
Nesse sentido, diante da escassez de matéria sobre o tema, procuramos
fomentar pesquisas e eventuais trabalhos científicos, que objetivem estudar, de
forma aprofundada, os efeitos das fake news quando intercaladas com a, não
tão recente, crise humanitária migratória.
O trabalho está pautado no método bibliográfico, além da consulta ao
arcabouço legislativo, na qual foram realizadas coletas de dados, qualitativos e
quantitativos, que, por meio da dedução, resultaram em uma determinada
conclusão.
1220

2. AS FAKE NEWS

No contexto globalizado atual, nos deparamos com os mais variados


meios digitais de propagação de notícias, tais como as redes sociais, jornais
virtuais, entre outros. Através desses meios, podemos ter acesso às mais
diversas notícias, sobre os mais variados temas, seja sobre política, esporte,
moda, culinária.
Os novos meios de divulgação auxiliaram a tornar o mundo mais
conectado, além de contribuírem para o avanço das relações diplomáticas,
comerciais, para o desenvolvimento de novo mercados tecnológicos, entre
outras vantagens. No entanto, é o advento dessas novas tecnologias que
configuram terreno fértil para a proliferação das chamadas fake news.
Quando uma notícia é disseminada em grande velocidade e com amplo
alcance estamos diante de uma fake news, sendo esta, talvez, a maior diferença
entre uma fake news e uma mera notícia falaciosa. O mero conteúdo falso e a
desinformação de seu conteúdo não caracterizam uma fake news.
Ambientes digitais, tais como as redes sociais, Facebook e WhatsApp,
possibilitam a rápida formação e troca de informação, seja de forma pública ou
privada, e contribuem, significativamente, para o fenômeno da fake news.
Um outro aspecto, que contribui para a definição de fake news, diz
respeito aos seus propagadores. Uma vez que são propagadas, na maioria das
vezes, entre amigos e demais grupos ‘de confiança’, as fake news acabam
recebendo um aval de serem bem-intencionadas, como dispõe o artigo de
autoria de Carvalho e Mateus. (CARVALHO; MATEUS, 2018).

3. CONTESTO ATUAL DAS FAKE NEWS NO BRASIL

De maneira breve, é cabível afirmar que as fake news já estão presente


nos mais diversos ambientes e assuntos, nos mais diversos cantos do mundo.
No entanto, ela tem ganhando grande espaço e visibilidade quando estão
conectadas, de certa forma, a assuntos relacionados à política.
Delmazo e Valente (2018) já afirmam que, assuntos relacionados à
política são alvos fáceis de fake news. Exemplo simplório pode ser observado
nos EUA, durante a campanha do então presidente Donald Trump.
No Brasil, contudo, é possível observar algo semelhante, também
recentemente, durante a eleição que elegeu como Presidente do Brasil o
candidato Jair Bolsonaro. Brevemente e a título de mera curiosidade, é interesse
expor que a equipe Aos Fatos levantou, ainda durante a campanha, que ao longo
de 149 declarações do então presidente, 30 continham dados completamente
falsos. (AOS FATOS, 2019).
Além disso, o Congresso Nacional Brasileiro derrubou, no dia 28 de
agosto, o veto do Presidente Bolsonaro ao Projeto de Lei 1.978/11, no qual
atribui a pena de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, mesma da denúncia
caluniosa, à divulgação de notícia falsa, desde com finalidade eleitoral,
incorporando o trecho à Lei 13.834/19. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019).
Deste modo, a pessoa que divulgar, com finalidade eleitoral, um ato ou
fato atribuído falsamente a outra, sabendo de sua inocência, incorrerá nesse
crime.

O deputado Henrique Fontana (PT-RS) afirmou que a derrubada do


1221

veto vai evitar que os políticos sejam vítimas de notícias falsas. “Essa
lei quer evitar que as pessoas produzam mentiras para destruir a
imagem de quem faz da política o seu ofício. Ou nós consertamos a
democracia brasileira ou vamos ficar aplaudindo a sua destruição”,
disse. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019).

Ademais, é visível o atual efeito que as fake news, tratadas no recorte


exemplificativo anterior como notícias falsas, têm gerado no campo da política
brasileira. Essa preocupação dos políticos não é, contudo, infundada, uma vez
que as fake news podem representar verdadeiros riscos à direitos sensíveis, a
muito tempo conquistados.

4. FAKE NEWS E OS REFUGIADOS

Como salienta SOLOVE (2007), fake news sempre existiram e se


manifestaram de diversas formas. Rumores, boatos e fofocas fazem-se
presentes na sociedade como uma forma de controle social. Nesse processo, a
psicologia ensina que, não raro, a verdade é distorcida, já que as pessoas não
se sentem diretamente responsáveis pelo que dizem.
É somente com a revolução tecnológica e com a era da Informação que
esse fenômeno ganha novos contornos e proporções. Os avanços tecnológicos
aceleraram intensamente a velocidade com que a informação se espalha,
expandiram a capilaridade que ela tem e reduziram os custos para produzi-la.
Além disso, com a mercantilização da informação, que se torna um bem
de consumo, surgem novos fomentos para a fabricação de fake news, que
ultrapassam o mero objetivo de desinformar (FOLHA DE S. PAULO, 2018).
Desde modo, as notícias falsas se tornaram um dos grandes violões do
século, perante a atual sociedade. Onde, por muitas vezes os que mais
necessitam de apoio, se tornam vítimas das falácias produzidas pelo preconceito
e intolerância; os refugiados. O deslocamento forçado teve um crescimento
acelerado desde o início do século XXI, alcançando níveis recordes em 2016,
que configuram a atual crise de refugiados.
Até o fim de 2015, mais de 65 milhões de pessoas foram forçadas a
deixarem suas regiões, em função de perseguição, conflitos armados, violência
generalizada ou violações de direitos humanos. Em uma população mundial de
pouco mais de 7 bilhões de pessoas, isso significa que uma a cada 113 pessoas
é hoje solicitante de refúgio, deslocado interno ou refugiado (ACNUR, 2016).
Consequentemente, os refugiados são vistos como fonte de instabilidade
pelos Estados, um risco que precisa ser corrigido. A distinção dos termos
“refugiado” dos outros referentes a migrantes é feita de forma artificial, com o
intuito de favorecer políticas migratórias estatais, geralmente guiadas por
interesses securitários (ELIE, 2014).
Tamanho a problematização neste sentido, que não dificilmente circula na
web notícias hostilizando a imagem dos refugiados, quase sempre
demonstrando ódio e receio pela chegada destes em território nacional, onde
costumeiramente é empregado ao refugiado a situação de esbulhador. Pessoas
más intencionadas espalham falsas mensagens no intuito de propagar o
desprazer perante aqueles que mais necessitam de auxílio.
Uma crise imigratória vai contra os interesses do próprio governo, ao
desencadear tensões com a opinião pública, manifestações de rua, ativistas,
hostilidade da imprensa, violência antimigrante. Tais crises, ao contrário, são
1222

geradas por aqueles que lucram com o desconforto do governo (HANSEN,


2014).
A propagação de fake news apenas fomenta a crueldade do ser humano
perante ao próximo, sendo fator crucial para a prosperarão do senso comum em
(pré)conceituar a imagem do refugiado, do migrante, como um fator de alarme e
preocupação.
Resta assim a reflexão, pois, até onde uma notícia falsa neste contexto
pode afetar não somente uma pessoa, mas todo um grupo de seres, em refúgio,
que buscam nada mais que recomeçar a vida, não por escolha, mas por extrema
necessidade.

5. CONCLUSÃO

Tendo em vista todos os pontos debatidos e exposto no presente recorte,


é nítido o poder que a propagação de fake news representam em nossa
sociedade. Não somente pelo que essa significa, mas principalmente pelas suas
tenebrosas consequências contra aqueles que dificilmente podem se defender.
Nos casos dos refugiados, tem-se situação de extrema injustiça e
desonestidade, contra pessoas que buscam não mais que acolhimento, em
busca de um novo lar, e uma oportunidade para (re)começar suas vidas.
Ademais, cabe salientar novamente sobre o intuito e objetivo
apresentando neste recorte; o combate e alerta sobre as fake news, visando
maiores reflexões acerca deste mal contemporâneo, silencioso e intimamente
ligado ao dia-a-dia, que necessita ser combatido com urgência.

REFERÊNCIAS

ACNUR. Informação Geral. 2016. Disponível em:


<http://www.acnur.org/t3/portugues/informacao-geral/>. Acesso em: 15 out.
2019.

CARVALHO, Mariana Freitas Canielo de; MATEUS, Cristielle Andrade. Fake


news e desinformação no meio digital: análise da produção científica sobre
o tema na área de ciência da informação. 2018. Disponível em:
<http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/moci/article/view/3760/2197>.
Acesso em: 15 out. 2019.

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entra em vigor. 05 jun. 2019. Disponível em: <
https://www.camara.leg.br/noticias/559370-LEI-QUE-PUNE-CALUNIA-NO-
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DELMAZO, Caroline; VALENTE, Jonas C. L. Fake news nas redes sociais


online: propagação e reações à desinformação em busca de cliques.
Media & Jornalismo, [S.I.], v. 18, n. 32, p. 155-169, maio 2018. Disponível em:
<https://impactum-journals.uc.pt/mj/article/view/5682/4561>. Acesso em: 15
out. 2019.
1223

ELIE, J. Histories of refugees and forced migration studies. In: QASMIYEH,


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Oxford University Press, 2014.

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and the Case of Eurafrica: A Reply to Gary Marks. Europe and Its Empires.
JCMS: Journal of Common Market Studies, vol 50, no. 6, p 1028–41, 2012.

NALON, Tai; CUNHA, Ana Rita; LIBÓRIO, Bárbara. Em dez semanas como
presidente, Bolsonaro deu uma declaração errada por dia. Aos Fatos. 2019.
Disponível em: <https://aosfatos.org/noticias/em-dez-semanas-como-
presidente-bolsonaro-deu-uma-afirmacao-errada-por-dia/>. Acesso em: 15 out.
2019.

SOLOVE, Daniel J. The Future of Reputation. Londres: Yale University Press,


2007, p. 64.
1224

ATÉ ONDE A EDUCAÇÃO SEXUAL PODE INTERFERIR NO ESTUPRO?


ANÁLISE DO DISCURSO POLÍTICO E JUDICIAL EM PROCESSOS DE
CRIMES SEXUAIS DE VULNERÁVEL
EVEN WHERE SEXUAL EDUCATION CAN INTERFERE IN THE RAPE?
ANALYSIS OF THE JUDICIAL AND POLITICAL DISCOURSE IN CASES OF
SEXUAL CRIMES OF VULNERABLE

Marcella Fernanda Aparecida Dias


Maíla Moreira Dias

Resumo: Nessa pesquisa, os crimes contra a dignidade sexual são analisados


sob influência dos discursos políticos e judiciais. Propõe-se uma reflexão sobre
a hipótese de que a ausência da educação sexual em ambiente escolar pode
interferir nos casos de estupros de vulneráveis e até mesmo no relato desse
abuso, assim como destaca os obstáculos impostos pelo Governo atual no que
tange orientar crianças acerca dessa temática e na parcialidade judicial. A
sexualidade é inerente ao ser humano, seu conteúdo condiz com a saúde,
formação do homem social, respeito, afastamento de discriminações e
estereótipos antes enraizados em uma sociedade patriarcal. O aumento no
índice de estupros e a escassez de denúncias ou efetividade na solução do caso
são problemas exemplos que devem ser controlados por meio de discursos
políticos e judiciais que incentivem diretrizes acerca dos eixos supracitados,
tragam efetividade na diminuição de tais casos e desmantelam discursos
patriarcais, machistas e desiguais.
Palavras-chave: Estupro de vulneráveis. Dignidade sexual. Influência escolar.

Abstract: In this study, the sexual crimes against human dignity are analyzed
under the influence of political speeches and proceedings. It proposes a reflection
on the hypothesis that the absence of sexual education in the school environment
can interfere in cases of rapes of vulnerable and even in case of abuse, as well
as highlights the obstacles imposed by the current government in terms of guiding
children about this theme and the judicial bias. Sexuality is inherent to the human
being, its content matches the health, training of social man, respect, expulsion
of discrimination and stereotypes before rooted in a patriarchal society. The
increase in the index of rape and the shortage of complaints or effectiveness in
the solution of the case are examples of problems that should be controlled by
means of political speeches and proceedings that encourage guidelines about
the axes above, bring effectiveness in the reduction of such cases and
dismantling speeches patriarchal, sexist and unequal.
Keywords: Rape of vulnerable. Sexual dignity. Influence at school.

INTRODUÇÃO

A pesquisa que aqui se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-


sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação
de Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-projetivo. O raciocínio
desenvolvido na pesquisa será predominantemente hipotético-dedutivo. Quanto
à natureza dos dados, serão fontes primárias: dados extraídos de documentos e
declarações oficiais, legislação e dados estatísticos, dentre outros. Serão dados
secundários livros, artigos, doutrina, teses e dissertações especializadas sobre
1225

o tema. De acordo com a técnica de análise de conteúdo, afirma-se que se trata


de uma pesquisa teórica, o que será possível a partir da análise de conteúdo dos
textos doutrinários, normas e demais dados colhidos na pesquisa. O problema
objeto de investigação científica proposta é: o Estado Brasileiro tem sido relapso
no exercício de sua função de resguardar os vulneráveis em crimes sexuais?
Esta pesquisa objetiva incentivar uma crítica reflexão acerca da realidade
patriarcal e negligenciada no Brasil – recorde nos casos de estupro no ano de
2018 com maioria das vítimas aos treze anos e atuação parcial do judiciário,
segundo o 13° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, onde registrou 66 mil
vítimas. Conforme a estatística, apurada das secretárias de Segurança Pública
de todos os estados e do Distrito Federal, quatro meninas até essa idade são
violentadas sexualmente por hora.

DESENVOLVIMENTO

É possível verificar que, com a vítima menor de 14 anos considerada


juridicamente incapaz de consentir uma relação sexual ou, com qualquer idade,
que não consiga propiciar resistência, por deficiência, enfermidade ou por estar
sob o efeito de drogas, o perfil do agressor é uma pessoa próxima à vítima e,
geralmente, um familiar. Segundo o Anuário, 81,8% são vítimas do sexo
feminino, e 18,2% masculino. 75,9% dos agressores são conhecidos e dos
autores de estupros 96,3% são homens.
O crime sexual é um dos menos reportados à agentes policiais, a última
pesquisa nacional de vitimização estimou 7,5% de notificação a violência,
segundo O Globo. O que é uma preocupação considerável, haja visto que se
torna dificultoso o registro concreto dos casos, o que faz com que os dados
sejam incompletos e as ocorrências se tornem menos significativas e visíveis. A
ausência da abordagem do abuso ocorrido em situações de vulneráveis é,
muitas vezes, a falta de informação, onde o incapaz, às vezes, não consegue
visualizar o que é o estupro ou é convencido pelo abusador que são
“brincadeiras” normais. Ainda, a descrença no sistema judiciário, a dificuldade
na comprovação do crime, o medo de retaliação por parte do agressor e o receio
dos sujeitos passivos no crime são pontos relevantes e inquietantes, já que faz
com que a vítima, mesmo após entender a situação, não relate o ocorrido.
A formulação de políticas de prevenção, proteção e repressão são
efetivas no combate ao crime sexual de vulneráveis. Entretanto, o discurso em
relação a sexualidade em ambiente estudantil é ignorado, reprimido e ocultado
dos jovens, auxiliando no aumento de acontecimentos não relatados por
crianças estupradas e a impossibilidade do amparo necessário. Há de repensar
sobre o papel da escola e do conteúdo por ela trabalhados, já que demasiadas
vezes não há um diálogo saudável e ideal por partes dos responsáveis legais no
ambiente familiar, por terem valores conservadores e que influenciam
diretamente em uma formação sexual adequada. Portanto, o debate sobre
educação sexual nas escolas é de extrema importância no contexto atual, a
inclusão da temática da sexualidade no currículo de primeiro e segundos graus
proporciona um conhecimento acerca do seu próprio corpo e os limites que
devem ser respeitados.
É inegável a influência do Governo atual na educação sexual, haja visto
que houve proposta de rasgar a caderneta e suprir informações sobre a mesma,
o que é tamanho retrocesso, sendo que contribuí de forma que prive o jovem do
1226

acesso a informações essenciais para seu desenvolvimento sexual e para o


conhecimento dos cuidados que devem ser tomados. Excluir imagens
explicativas e adicionar informações vagas dificulta o aprendizado ideal que as
crianças devem conter, já que a proposta de composição de fotografias – que
sejam fiéis a realidade do corpo humano e auxiliem na compreensão do que foi
dito pela caderneta – não permitem o fornecimento de brechas acerca do tema
e que a curiosidade não seja afetada por um livro exaustivo e sem
demonstrações. A visão tem uma importância primordial, além de que as figuras
representam com veracidade o que é mencionado, não há melhor maneira de
conhecer o próprio corpo do que ilustrado. Vale ressaltar que, a educação sexual
deve ser abordada em casa, de maneira que o pareça conveniente para os
responsáveis. Mas, é legítimo que a escola possa abordar o conteúdo, ficando
atenta ao papel de demonstrar um viés biológico e científico.
Com base em um conteúdo publicado no Gazeta do Povo, por BARONE,
Isabelle, uma menina de 9 anos de Ponta Grossa, confirma a importância da
educação sexual. Pois, após aulas sobre violência sexual, mediada pela Polícia
Militar do estado, a menina levou fotografias do avô ao colégio declarando-o seu
abusador. Tendo em vista esse caso, a educação sexual é fundamental para
auxiliar a criança a relatar o abuso em que foi submetida e então prevenir contra
a possibilidade da recorrência, além de compreender ser necessário proteger o
próprio corpo evitando violações futuras por falta de conhecimento prévio.
Adiante do obstáculo para alcançar uma educação sexual adequada,
desafio este posto pela política de valores e tradições conservadoras, há
desconhecimento e distanciamento do Judiciário, sendo o estupro o único crime
no qual a vítima deve comprovar sua inocência. Não há dados nacionais oficiais
compilados que demonstrem os números de estupradores que acabam com
pena privativa de liberdade. No estado de São Paulo, apenas dois em cada 10
inquéritos abertos são esclarecidos, segundo o Datafolha. Em todo o país, as
punições são relativamente menores que as ocorrências. A taxa de condenações
gira em torno de 1%, segundo o perito criminal federal e presidente da Academia
Brasileira de Ciências Forenses, Hélio Buchmuller, no artigo Crimes sexuais: a
impunidade gerada por um Estado omisso.
Segundo a advogada Maíra Fernandes, “elaboração de provas é muito
importante, deve-se respeitar todo o processo legal, para não culpar inocentes.
Só que é evidente a falta de interesse das autoridades em investigar esse tipo
de crime, devido à cultura de estupro.” Cultura essa que tem interferência em
todos âmbitos supracitados anteriormente, por encontrar um meio que torne o
crime sexual de vulneráveis justificável e fazer com que a população e os perfis
políticos e judiciais sejam coerentes a esse comportamento. Essa expressão
surgiu na década de 70, utilizada para descrever um ambiente que banaliza a
violência sexual e faz o agressor o achar superior a vítima, seja por ser mulher
ou crianças, devido ao patriarcalismo e machismo enraizados na sociedade.
Caso que corrobora a falta de credibilidade no sistema judicial é do
Dominique Strauss-Kahn, diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI),
acusado por uma camareira de ter enfiado seu órgão genital em sua boca,
arrancando sua roupa e tentado ter relações sexuais sem o consentimento da
mesma. Apesar do sêmen no uniforme da vítima, o acusado negou a violência.
Logo, o caso contra ele enfraqueceu e houve retirada de queixa por constar falta
de credibilidade da acusadora. Ocasionou apenas renúncia no cargo no FMI.
1227

Além de que, há de exaltar a burocracia para denunciar um estupro e


ainda submeter-se a exames constrangedores e que insultem a personalidade
abusada. Além de que, crimes sexuais enviados aos tribunais em casos de não
conter sinais de espermas, ameaças por instrumentos que incitam tortura ou
morte e não apresentar machucados, as provas ficam frágeis. Tal como casos
em que a vítima conhece o criminoso, geralmente nem fazem queixa, – medo de
retaliação.
A maior parte da violência dirigida a vítimas consideradas vulneráveis
parte de quem deveria zelar por seu bem estar, pais ou familiares, por se
acharem no direito de violentar sexualmente alguém considerado “inferior” ou
por estar disponível, neste caso, a ocasião incentiva o abusador. Para
Criminologia, estupradores que violentam mulheres e adolescentes são
diferentes do que os abusadores de crianças. Para Ilana Casoy, há dois tipos de
molestadores de vulneráveis, são os situacionais e os preferencias. Os
situacionais encontram satisfação sexual por circunstância momentânea e os
preferenciais o prazer sexual envolve criança e pode ser de tipo regredido,
inescrupuloso e inadequado. O regredido ataca qualquer pessoa vulnerável, já
o inescrupuloso abusa de quem estiver disponível, enquanto os inadequados
que são sádicos, sedutores e introvertidos.
Há de direcionar a reflexão para mediação que a sociedade tem no crime.
Para criminalizar determinadas condutas é necessário que estas existam, sendo
assim, a população é considerada incrédula para acreditar que é um fato que
realmente ocorre – e em grandes proporções – segundo a Super Interessante.
O que auxilia na banalização do crime e na sensação de impunidade, por
desacreditar a própria vítima e aceitar valores que transformam mulheres em
objetos.
Segundo a revista Super Interessante, ao relatar a avó que teria sido
abusada sexualmente por seu avô teve de ouvir que a culpa seria dela por ter
saído do banho de toalha na frente do homem, que não sabe controlar os seus
instintos. Tal fato ocasionou culpa em uma vítima que deveria ter apoio e justiça.
O fato é que comentários que responsabilizem a vítima são reais e presentes.
Ainda houve um caso em que a ONU encaminhou entre funcionários – sem que
tomassem providência – relatório dos casos de estupros, sendo então o caso
abafado.

CONCLUSÃO

O Estado tem se mostrado relapso na sua função de resguardar os


vulneráveis em crimes sexuais. Ao analisar os discursos políticos e judiciais é
perceptível a influência destes na manutenção de uma cultura que banaliza o
estupro, tanto por proporcionar uma resistência no que diz respeito a educação
sexual nas escolas como por estabelecer uma sensação de impunidade nos
índices de estupro – que tem aumentado significativamente. Além de, com a
banalização por parte do próprio governo e, ainda, do Judiciário, há incentivo
suficiente para manutenção de uma cultura patriarcal e machista, denominada
“cultura do estupro”.
A população têm contribuído para tornar a conduta criminosa banal e, por
conseguinte, aumentar o número na taxa de estupros de vulneráveis. Tendo
elegido para ocupar o cargo de Presidente da República Federativa do Brasil
uma personalidade com princípios e valores que inibam o estudo acerca de
1228

temas indispensáveis para o reconhecimento do vulnerável do que é o abuso


sexual e de que ninguém detém o poder de ultrapassar os limites que se
enquadrem na agressão. O Governo atual impõe suas crenças no próprio
sistema e implica para que haja retrocesso no quesito patriarcal e machista,
contribuinte para o alto índice de crimes contra a dignidade sexual do vulnerável.
Além da população, o Judiciário mantém uma postura de impunidade,
tornando-se coerente com uma atitude repressiva penalmente. Seja por não ir
atrás, efetivamente, das provas necessárias para incriminar o sujeito ativo do
crime ou por tratar a vítima como responsável pelo ato, sendo a única violação
que traga culpabilidade para o sujeito passivo.
Nota-se ainda que, não é apenas informações parcas que serão
suficientes para adoção de comportamentos que previnam o delito. É
necessário, por meio da educação sexual, ações educativas continuadas, que
possibilitem elaboração das informações passadas e discussão dos obstáculos
emocionais e culturais que impeçam a adoção de condutas preventivas. As
informações corretas aliadas ao autoconhecimento e profunda reflexão sobre a
sexualidade ampliam a consciência do vulnerável sobre os cuidados que
consigam prevenir o problema. A mudança de comportamento dependerá de
campanhas de educação sexual e que o dano exija assistência e atendimento
integral ao abusado.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n° 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte


Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e
o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes
hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e
revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de
menores. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Planalto. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12015.htm.
Acesso em: 20 set. 2019.

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Globo. 10 set. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/brasil-
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Bolsonaro sugere que pais rasguem páginas sobre educação sexual de


Caderneta de Saúde da Adolescente. O Globo. 07 mar. 2019. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/sociedade/bolsonaro-sugere-que-pais-rasguem-
paginas-sobre-educacao-sexual-de-caderneta-de-saude-da-adolescente-
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Coronel pedófilo vendava vítimas para praticar estupros no Rio de Janeiro.


Correio Braziliense. 01 de out. 2019. Disponível em:
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de-jane.shtml. Acesso em: 05 out. 2019.
1229

Estupro bate recorde e maioria das vítimas é de meninas até 13 anos. Agência
Brasil. 10 set. 2019. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-09/estupro-bate-recorde-e-
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HUEK, Karin. Como silenciamos o estupro. Super Abril. 04 de junho de 2019.


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Quem ensina sexo para criança é “o papai e a mamãe” e não a escola, como
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legislação atual. Revista Jusbrasil. 2013. Disponível em:
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Violência contra as mulheres em dados. Agência Patrícia Galvão. 26 de


novembro 2017. Disponível em:
https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/estupros-no-
brasil/ Acesso em: 22 set. 2019.
1230

CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E ATIVISMO JUDICIAL: O PAPEL


DO JUDICIÁRIO COMO GARANTIDOR DE DIREITOS HUMANOS
CONVENTIONALITY CONTROL AND JUDICIAL ACTIVISM: THE ROLE OF
THE JUDICIARY IN GUARANTEEING HUMAN RIGHTS

Angela Jank Calixto


Renata Alves
Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: Apesar da relevante função do Poder Judiciário na garantia de direitos


humanos, as decisões proferidas pelas cortes brasileiras têm gradativamente se
afastado da esfera de competência típica atribuída a referido Poder. Diante da
relevância da análise das problemáticas do ativismo judicial, busca-se, por meio
da adoção do método dedutivo e da condução de uma pesquisa qualitativa,
bibliográfica e documental, evidenciar o que pode ser concebido como ativismo
judicial e analisar se o Judiciário brasileiro adota postura ativista quando do
exercício do controle de convencionalidade das normas internas com os tratados
de direitos humanos ratificados pelo país. Conclui-se que a função atípica
exercida não deve ser vista como mecanismo pernicioso, mas sim como uma
atuação judicial consciente, cujo exercício permite a maximização da proteção
de direitos humanos.
Palavras-chave: Controle de convencionalidade. Ativismo judicial. Direitos
humanos.

Abstract: Despite the relevant role of the judiciary in guaranteeing human rights,
the decisions handed down by the Brazilian courts have gradually moved away
from the typical sphere of jurisdiction attributed to the courts. Given the relevance
of the analysis of the problems of judicial activism, it is sought, through the
adoption of the deductive method and the conduction of a qualitative,
bibliographical and documentary research, to highlight what can be conceived as
judicial activism and analyze if the Brazilian judiciary adopts an activist attitude
when exercising the conventionality control of the internal norms with the human
rights treaties ratified by the country. It is concluded that the atypical function
exercised by the judiciary should not be seen as a harmful mechanism, but as a
conscious judicial action, whose exercise allows the maximization of the
protection of human rights.
Keywords: Conventionality control. Judicial activism. Human rights.

1. INTRODUÇÃO

Apesar dos avanços na ordem social a partir do processo de


redemocratização brasileiro e da inserção do Brasil no sistema internacional de
proteção de direitos humanos na mesma época, denota-se que o país ainda
padece, na área social, de inúmeros problemas. Diante disso, a discussão
acerca da necessidade da tomada de medidas concretas para lidar com
problemáticas na ordem social encontra-se constantemente em pauta, exigindo
reflexões, sobretudo com relação ao papel dos Poderes do Estado na reversão
de injustiças sociais e na devida tutela de direitos humanos protegidos na esfera
internacional.
O Poder Judiciário brasileiro, ante as omissões das demais esferas de
1231

Poder, tem sido constantemente provocado quando da busca pela concretização


de tais objetivos. Contudo, apesar de seu relevante papel, verifica-se que tal
esfera de Poder tem gradativamente emitido pronunciamentos que se afastam
de sua competência típica, pronunciamentos esses caracterizados pela doutrina
como ativistas, de cunho ilegítimo, fato que gera preocupações entre juristas em
geral.
É diante de tal assertiva que no momento atual, no qual se acentua de
forma considerável o ônus argumentativo da função contramajoritária do Poder
Judiciário, se justifica um esforço acadêmico de revisitar o tema do ativismo
judicial, sobretudo no que diz respeito ao seu exercício para a efetivação de
direitos humanos.
Nesse tocante, considerando o advento da doutrina do controle de
convencionalidade no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos
Humanos (SIDH), que salienta a imprescindibilidade de os juízes nacionais
empreenderem esforços para compatibilizar a legislação interna com a
internacional, justamente para a garantia do efeito útil das normas internacionais
no que diz respeito à proteção de direitos humanos, denota-se a
imprescindibilidade de analisar a correlação entre o ativismo judicial e controle
de convencionalidade, para o fim de evidenciar os limites e possibilidades do
exercício de tal controle pelas cortes domésticas.
Diante disso, objetiva-se com este trabalho analisar as problemáticas do
ativismo judicial e do papel do Judiciário enquanto garantidor de direitos
humanos por meio do controle de convencionalidade das normas internas com
as normas e jurisprudência internacional. Procura-se identificar o ativismo como
um fenômeno neutro que, apesar de ser comumente utilizado para desqualificar
decisões, pode mediar a transformação social e a concretização de direitos
humanos no contexto social brasileiro, desde que desenvolvido em uma
perspectiva de construção decisória coerente e programática.
Quanto ao procedimento metodológico, será adotado o método dedutivo
e será promovida uma pesquisa qualitativa que, no tocante aos seus objetivos,
possui eminente cunho exploratório e descritivo e que, no tocante aos seus
meios, caracteriza-se por ser uma pesquisa de caráter bibliográfica e
documental.

2. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E ATIVISMO JUDICIAL: UM


DEBATE NECESSÁRIO

Diante da evolução do constitucionalismo contemporâneo e da


necessidade do estabelecimento de procedimentos próprios para a interação
jurídica entre os sistemas jurídicos domésticos e internacionais, desenvolveu-se
no âmbito do Sistema Americano de Proteção dos Direitos Humanos (SIDH) um
mecanismo específico destinado à busca pela compatibilização da legislação e
decisões judiciais domésticas dos países que pertencem ao SIDH com a
Convenção Americana de Proteção dos Direitos Humanos (CADH) e com as
decisões da Corte Interamericana de Proteção dos Direitos Humanos (Corte
IDH) (MAZZUOLI, 2009), sobretudo para a garantia do efeito útil das normas
convencionais e da jurisprudência interamericana e para a integral proteção do
indivíduo em todos os âmbitos.
Trata-se do controle de convencionalidade, o qual, originado na França
na década de 70, encontra-se bastante desenvolvida e consolidada no âmbito
1232

do SIDH, nos últimos anos tendo havido uma grande expansão na jurisprudência
interamericana de entendimentos tendentes a consolidar a imprescindibilidade
de sua promoção para a própria eficiência do sistema. Caracterizado por ser uma
espécie de controle da legislação interna com relação à Convenção Americana
de Direitos Humanos (CADH), a outros tratados internacionais de direitos
humanos aplicáveis e à jurisprudência da Corte IDH, controle esse que deve ser
exercido de ofício por toda autoridade pública e que deve ser realizado
precipuamente pelos agentes domésticos (FERRER MAC-GREGOR, 2013), o
controle de convencionalidade refere-se a uma ferramenta derivada do
compromisso assumido pelos Estados pertencentes ao SIDH de tornar efetivos
os direitos protegidos na espera internacional (BAZAN, 2011).
Por meio de tal ferramenta, impõe-se aos agentes domésticos a
necessidade de tomada de medidas concretas para expulsar normas que se
encontrem em contradição com a legislação internacional (MARTINS;
MOREIRA, 2011) e para editar normas que apenas se encontrem em
consonância com o “bloco de convencionalidade” do sistema, ou seja, com o
“paradigma de controle de validade de atos em sentido lato (sentenças, leis, atos
administrativos, Constituições) expedidos pelos Estados nacionais submetidos
ao sistema americano de direitos humanos” (CONCI, 2013, p. 76). Constitui-se,
pois, como mecanismo útil, adequado e necessário para o cumprimento e a
devida implementação das diretrizes contidas nas normas regionais e nos
pronunciamentos do Tribunal Interamericano (FERRER MAC-GREGOR, 2013).
Frisa-se que, consoante pontuado em estudo anterior acerca do assunto,
há diversas normas que fundamentam o controle de convencionalidade no
sistema interamericano, estas correspondendo essencialmente, mas não
exclusivamente, aos art. 1.1, 2 e 29 da CADH e art. 26 e 27 da CVDT, sobretudo
diante do fato de tais normas exigirem a adaptação do ordenamento interno à
interpretação conferida pela Corte IDH aos direitos humanos, como meio de
garantir o efeito útil das disposições convencionais no plano dos direitos internos
(CALIXTO; CARVALHO, 2019). Ainda, a exigência de atenção ao pacta sunt
servanda, ao cumprimento de boa-fé, e à impossibilidade de invocar disposições
do direito interno para justificar o descumprimento de tratados internacionais (Art.
26, 31.1 e 27 da Convenção de Viena), implicam a necessidade de realização
do controle de convencionalidade como meio de efetiva proteção dos direitos
humanos na região (BAZAN, 2011).
Em que pese o entendimento de que à Corte IDH incumbe a função
primordial de exercer o controle de convencionalidade, desde o julgamento do
Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile (CORTE IDH, 2006a) estabeleceu-
se a possibilidade de os Estados Nacionais o realizarem, esta atividade
fiscalizadora resultando, em especial, do previsto no art. 2º da CADH, que obriga
os Estados a adotarem as medidas necessárias para fazer efetivos os direitos e
liberdades fundamentais consagrados na CADH (CONCI, 2014).
O controle jurisdicional de convencionalidade interno, na acepção de
García Ramírez (2011), refere-se ao poder conferido a determinado órgão
jurisdicional, ou a todos os órgãos jurisdicionais, para verificar a congruência
entre os atos e normas internos com as disposições do direito internacional e
com a jurisprudência dos tribunais internacionais encarregados de interpretar as
normas internacionais. Este é inclusive o entendimento firmado pela Corte IDH
em diversos casos submetidos a sua apreciação, referido tribunal estabelecendo
a necessidade da verificação de tal congruência entre o ordenamento interno e
1233

o internacional pelos juízes nacionais.


Consiste, pois, na obrigação dos juízes de constatarem o “acomodamento
das normas jurídicas internas que aplicam em casos concretos à CADH (e outros
instrumentos internacionais essenciais no campo dos direitos humanos) e aos
standards interpretativos que a Corte IDH tem formulado no exercício de sua
função jurisdicional” (BAZAN, 2015, p. 41), podendo implicar a obrigação de
supressão das normas e práticas contrárias a tais normas e standards, de
expedição de normas e do desenvolvimento de práticas conducentes à efetiva
observância das garantias e de delimitação de uma interpretação da norma
regional de forma compatível como as normas e interpretações regionais, para,
por conseguinte, assegurar o efeito útil dos instrumentos internacionais.
Isso porque, como pontuado no Caso Almonacid Arellano vs. Chile
(CORTE IDH, 2006a), quando se verifica que o Legislativo falhou em sua tarefa
de suprimir ou de não editar leis contrárias à CADH, o Poder Judiciário
permanece vinculado ao dever de garantia previsto no art. 1.1 da Convenção e,
consequentemente, deve se abster de aplicar a normativa interna contrária à
Convenção, sob pena de responsabilização internacional. Corresponde, pois, a
uma ferramenta utilizada pelos juízes nacionais diante da responsabilidade
inerente aos juízes nacionais em buscar garantir a proteção dos direitos
humanos no âmbito do SIDH (NOGUEIRA ALCALÁ, 2013).
No que se refere à identificação entre controle de convencionalidade e
ativismo judicial, destaca-se que esta possui estrita correlação com o
progressivo exercício de funções atípicas pelo Poder Judiciário a partir do
processo de redemocratização do país, funções estas exercidas sob a
justificativa da necessidade de se proteger direitos fundamentais. Nesse período,
a noção clássica do papel do Poder Judiciário, em especial, sofreu alterações, já
que passou ele a cada vez mais exercer um papel político, no sentido de atuar
como contrapeso à ineficiência dos demais poderes na garantia de direitos
fundamentais.
Diante de tais alterações, a expressão ativismo judicial passou a ser
empregada com frequência considerável nos meios doutrinários, sendo ela
comumente relacionada ao protagonismo exacerbado do Judiciário ou à
discricionariedade excessiva do juiz. A atuação proeminente e a ocupação pelo
Judiciário de um papel de destaque no cenário social e político, pois, levaram ao
levantamento de discussões acerca da legitimidade democrática da atuação de
tal esfera de poder (STRECK, 2011). Isso porque a atuação do Judiciário na
interferência em políticas públicas na busca de, em casos concretos, atender a
demandas sociais e proteger direitos fundamentais, gera um confronto político
deste com os outros poderes do Estado (SANTOS, 2015).
Salienta-se que não há ainda hoje um consenso doutrinário quanto ao
sentido e alcance da expressão ativismo judicial, alguns associando o termo a
um fenômeno negativo1, sendo concebido como sinônimo da expansão atípica
da atuação judicial, enquanto outros o identificam como uma forma positiva de

1 Elival da Silva Ramos (2015) sustenta que “por ativismo judicial deve-se entender o exercício
da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe,
institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas
(conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há,
como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante à práticas ativistas, por importarem
na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes”.
1234

consagração da atuação judicial2, sendo visto como instituto concretizador de


direitos sociais. Contudo, de maneira geral, denota-se que o ativismo judicial,
termo que possui origem na doutrina norte-americana a partir da década de
1950, é entendido como um fenômeno em que o Judiciário atua de maneira
extravagante, excedendo a competência determinada pela normativa vigente.
No Brasil, a questão do ativismo em geral, tem se dividido regularmente
entre posicionamentos em prol do substancialismo e, em sentido contrário,
aqueles em prol do procedimentalismo. De um lado estaria a defesa de um
Judiciário ativo, que deve atuar no sentido de tornar efetivos direitos materiais
(ainda que no exercício de uma função atípica) e, de outro, a defesa de um
Judiciário constrito em suas limitações procedimentais próprias, de forma que
estaria legitimado para atuar seria tão-somente no exercício de sua função típica
e de acordo com o procedimento normativamente definido.
Em que pesem as divergências, observa-se que existem doutrinadores
que qualificam o fenômeno do ativismo como neutro, afastando essa necessária
ruptura entre substancialismo e procedimentalismo. Em favor de tal posição tem-
se Antoine Garapón (1999), o qual salienta que o ativismo é uma transformação
necessária pela qual passa o processo democrático (no qual se exige uma
atuação ativa na concretização de direitos), e Glauco Salomão Leite (2017), o
qual alerta que o uso do termo ativismo para desqualificar decisões é sempre
subjetivo, sendo caracterizado como um fenômeno maléfico ou benéfico
dependendo do conceito e ideal de justiça adotado pelo sujeito. Nessa
perspectiva, a decisão ativista não seria de plano equivocada e não seria sempre
sinônimo de abuso ou excesso, do mesmo modo que uma sentença proferida no
exercício da autocontenção não seria sempre correta.
Assim, o termo não é, pois, estritamente atrelado a uma conotação
negativa, ou seja, não é apenas sinônimo de uma atuação indevida do Judiciário.
Tal classificação impõe a necessidade de análise caso a caso, para verificar se
a atuação atípica do Judiciário leva a uma garantia de direitos, de forma que a
construção decisória, mesmo que ativista, observa a maximização de direitos
constitucionais racionalmente construídos, protege o núcleo constitucional e
protege direitos humanos (KAMIEC, 2004).
De todo modo, o termo ainda permanece sem definição precisa.
Consoante aponta Lênio Streck (2011), a imprecisão terminológica é universal,
não havendo um consenso nem mesmo ao analisar a realidade judicial norte-
americana. Assim, apesar da imprecisão terminológica e da existência de uma
linha tênue entre instabilidade democrática e necessidade de justificação de uma
atuação judicial díspar do modelo montesquiano, vislumbra-se que tal atuação
pode ser considerada legitimada, sobretudo quando essa atuação se dá em prol
da proteção e com o fim de tornar efetiva a tutela de direitos humanos, por meio
do controle de convencionalidade.
Nesta perspectiva, o ativismo surgiria como uma forma concreta de tornar
efetivos os direitos humanos, devendo ele ser entendido com certa neutralidade,
ou seja, devendo ser percebido não como sinônimo de fenômeno negativo,

2 Nesta perspectiva, Glauco Salomão Leite (2017) afirma que inúmeras matérias antes deixadas
para o processo político e para a legislação ordinária foram constitucionalizadas. Foram
incorporados ao texto constitucional, diversos direitos sociais, econômicos e culturais, além de
várias metas e programas a serem implementadas pelo Estado, o que demanda um dever de
agir, uma prestação positiva do Poder Público no intuito de dar eficácia aos ditames
constitucionais.
1235

nocivo à saúde da ordem constitucional, mas sim como um fenômeno inerente à


ordem democrática estabelecida, quando exercido de forma consciente e com o
fim de preservar a dignidade da pessoa humana. Ou seja, seria o ativismo
expressão do exercício da discricionariedade judicial, no qual um juiz ou tribunal
cria ou estende um direito, afasta aplicação da lei, ou utiliza-se do poder judicial
para promover mudanças sociais (judicial overreaching). Diante de tal noção, no
que se refere ao controle de convencionalidade exercido pelo Judiciário, controle
este estritamente relacionado com a tutela de direitos humanos na ordem interna
e a consequente efetivação de direitos individuais e sociais, deve ser realizada
uma análise neutra do fenômeno.
No Brasil, as inúmeras omissões normativas e a atuação deficiente do
Poder Público permitiram que diversas questões de impacto coletivo passassem
ao crivo da análise judicial. A apatia do Legislativo e o excesso de omissões
estatais e instabilidade sociais latentes levam a um crescente apoio à ascensão
do exercício, pelo Judiciário, de um papel político, este relacionado ao
cumprimento de seu dever de tutelar a Constituição e tornar efetivos os direitos
consagrados nas normas internacionais de proteção do homem. É nesse cenário
que surge o confronto político do Judiciário com os outros poderes do Estado,
quando, diante da apatia ou da incapacidade dos poderes políticos em resolver
os conflitos ou em atender às demandas dos grupos sociais, os tribunais passam
a interferir na política pública e nas condições da sua efetivação (SANTOS,
2015).
O importante papel atribuído aos juízes é decorrente essencialmente do
crescimento do processo de judicialização do direito para fazer valer direitos civis
e sociais no âmbito interno. Tal judicialização reforça o papel das cortes em
estabelecer o que é o direito e em exigir o cumprimento do mesmo. É diante de
tais fatos que Ferrarese (2009, p. 08) afirma que hoje “law consists not so much
of statutes and other forms of written law, but rather of judicial or quasi-judicial
decisions”3.
Dentre os Poderes, o Judiciário, pelo fato de suas instituições não serem
centralizadas, detém maiores condições de conferir respostas plurais e
diferenciadas para situações e demandas diversas. Essa aptidão, nas palavras
de Conci (2014, p. 33), decorre da constatação de que o Judiciário pode fazer-
se em contrapeso real dos excessos e omissões dos demais poderes, por meio
do ativismo judicial, de forma a assegurar que nos momentos em que as
garantias democráticas não são integralmente respeitadas, seja ele “um escudo
às afrontas e excessos antijurídicos dos próprios poderes do Estado”.
Sobretudo nos casos em que há uma omissão legislativa, especialmente
no tocante a problemas políticos e à eficácia dos direitos fundamentais, o
Judiciário assume função essencial, assumindo um papel politicamente ativo no
exercício de sua função jurisdicional, papel este possibilitado pela flexibilidade
decorrente da incorporação de princípios ao texto constitucional (FIGUEIREDO,
2008).
Frisa-se que o constitucionalismo contemporâneo é fundado no cânone
da dignidade e da expansão ilimitada da personalidade humana (CASTRO,
2010). Ainda, no cenário atual de interdependência entre o local e o global, a
legitimidade das ordens jurídicas nacionais é medida pelo grau de respeito aos
direitos humanos, radicados essencialmente uma premissa maior da dignidade.
3 [...] o direito não consiste tanto em estatutos e outras formas de lei escrita, mas sim de decisões
judiciais ou quase-judiciais (tradução livre).
1236

Diante de tal assertiva é que se destaca a necessidade de, nas palavras de


Carlos Roberto Siqueira de Castro (2010), superar o fetichismo institucional do
iluminismo oitocentista, calcado substancialmente no dogma da separação
estrita de poderes, já que este não permite a solução operacional aos problemas
sociais contemporâneos, e de as cortes voltarem-se ao social, para a resolução
de questões relevantes de proteção humana.
Neste contexto, Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2013) explica que
isso tem implicado importante alteração da dinâmica de nosso arranjo
institucional, se comparado ao padrão histórico: ainda temos um Poder
Executivo protagonista e centralizador; um Legislativo – nos três níveis
federativos – o qual tem sofrido constantes crises funcionais e déficits de
confiança popular; e um Judiciário, responsável pela aplicação da lei. Contudo,
o Judiciário, que antes era uma instituição distante dos grandes temas políticos
e sociais e acostumada a se submeter a Executivo hipertrofiado, alcançou, de
forma gradual, patamar de relevância e autoridade político-normativa
absolutamente inédito em sua história.
Isso se deve à exigência de uma atuação substantiva do juiz
constitucional, como implementador da Constituição e como garantidor, no
âmbito doméstico, de direitos humanos. O papel do intérprete do Direito, nesse
sentido, é elemento central do poder emancipatório do Direito, o que permite
considerar que o Judiciário possui como dever rejeitar a subsunção a um
ordenamento inadequado, que torne mais complexa a concretização de direitos
fundamentais tão exaltados na normativa interna e nas cartas internacionais.
Sobretudo nas hipóteses em que o Judiciário evidencia a
incompatibilidade da legislação, da jurisprudência ou dos atos internos às
normas e jurisprudência internacional exige-se sua atuação substantiva, até
mesmo porque no caso de existir tal incompatibilidade há uma patente afronta
ao núcleo básico de direitos humanos protegidos no cenário internacional. A
atitude ativista, por meio do controle de convencionalidade, assim, legitima-se,
por tornar efetivos os direitos humanos tutelados na esfera internacional.
Nesse sentido, vislumbrando-se a importância do ativismo judicial na
atualidade para a proteção dos direitos humanos e para fazer valer os
compromissos internacionais assumidos pelo país, denota-se que o ativismo por
vezes realizado por meio do exercício do controle de convencionalidade refere-
se a não apenas uma necessidade quando o assunto é mencionada proteção,
mas também a um imperativo.

CONCLUSÃO

A busca pela concretização de direitos humanos e pela superação das


mazelas que marcam a realidade social corresponde a um dos objetivos
essenciais do Judiciário brasileiro, que tem tomado uma postura mais ativista em
suas decisões, exercendo funções atípicas, justamente com o fim de fazer frente
aos problemas enfrentados pela sociedade brasileira.
Tecidas considerações acerca da essencialidade do mecanismo do
controle de convencionalidade para a proteção de direitos humanos e da relação
existente entre de tal controle e a postura ativista do Judiciário, denota-se a
possibilidade de considerar o ativismo exercido por tal poder quando do controle
de convencionalidade não como um mecanismo pernicioso, mas sim como um
mecanismo de atuação judicial consciente, cujo exercício permite a maximização
1237

da proteção de direitos humanos.


A necessidade de tomada de medidas concretas pelo Judiciário para a
efetivação de direitos humanos é inquestionável, até mesmo em razão das
características próprias dessa esfera do poder, o qual possui a capacidade de
atuar de forma a, no caso concreto, garantir a efetivação da justiça e evitar que
a omissão do Legislativo em certas hipóteses gere situações de desrespeito a
direitos básicos do cidadão brasileiro.
Desta feita, o ativismo exercido por meio do controle de
convencionalidade, quando exercido de forma consciente e tendo como foco a
dignidade humana, surge essencialmente como forma de tornar efetivos os
direitos humanos, devendo ser entendido como um fenômeno neutro e não como
um mecanismo nocivo à ordem democrática. Por meio de tal posição, o Judiciário
possui condições de promover mudanças sociais, mesmo que para tanto tenha
que estender um direito ou deixar de aplicar uma lei materialmente
inconvencional. Tido como mecanismo essencial para superar a incapacidade
dos demais poderes e atender às demandas sociais na concretização da justiça,
a relevância de uma postura ativista é marcante, sendo de essencial importância
para a justiça social no Brasil.

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1240

CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE PARA ALÉM DO CRITÉRIO


HIRÁRQUICO DAS NORMAS
CONTROL OF CONVETIONALITY BEYOND THE HIERARCHICAL
CRITERION OF THE NORMS

Geraldo Furtado de Araújo Neto


Daniela Estolano Francelino
Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o controle de


convencionalidade no Brasil, principalmente no Supremo Tribunal Federal, e
propor um modelo que vai além do critério hierárquico usualmente estabelecido
na Corte. Serão abordados o conceito e histórico do controle de
convencionalidade no mundo, no Brasil e no Supremo Tribunal Federal, o
julgamento histórico do RE 466.343-SP por esse último e a fixação da tese da
supralegalidade, bem como será objeto de estudo o controle de
convencionalidade com critério material, por meio do princípio pro persona. A
principal relevância do presente artigo é contribuir com a comunidade jurídica
para a sedimentação de uma ideia de controle de convencionalidade usando o
princípio pro persona. Será usado o método dedutivo/indutivo, por meio da
pesquisa bibliográfica e histórica, porquanto investigará as origens para o
controle de convencionalidade e a necessidade do princípio pro persona, como
finalidade desse instituto.
Palavras-chaves: Controle de Convencionalidade. Supralegalidade. Princípio
Pro Persona.

Abstract: This article aims to analyze the control of conventionality in Brazil,


mainly in the Supreme Court, and propose a model beyond the hierarchical
criterion usually used in this Court. It will be approach the concept and history
about the control of conventionality in the world, in Brazil and in the Supreme
Court, the judgement of RE 466.343-SP by this Court and the fixation of
supralegality thesis, as well it will be studied the control of conventionality with
material criterion, through the pro persona principle. The main relevance of this
paper is contribute with legal comunity for the sedimentation of control of
conventionality using the pro persona principle. It will be used the
deductive/inductive method, by means of historical and bibliographical research,
because it will investigate the origins of control of conventionality and the
necessity of pro persona principal, as the purpose of this institute.
Keywords: Control of Conventionality. Supralegality. Pro Persona Principle.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, será analisado o controle de convencionalidade, o qual se


caracteriza pela verificação de compatibilidade das normas ordinárias com a
legislação internacional, ratificada pelo país, principalmente em matéria de
direitos humanos.
Verificar-se-á como as normas internacionais de direitos humanos são
incorporadas no direito pátrio e como se vem fazendo o controle de
convencionalidade no país, principalmente no âmbito do Supremo Tribunal
Federal.
1241

Além disso, será abordado o relacionamento das normas internacionais


com a legislação nacional no âmbito da doutrina brasileira e o julgamento
paradigmático do Supremo Tribunal Federal no RE 466.343-SP, o qual fixou-se
a tese da supralegalidade, pela qual as normas de direitos humanos são
incorporadas no país com caráter superior às leis ordinárias, mas inferior às
normas constitucionais.
Este trabalho buscará empreender um controle de convencionalidade com
base no princípio pro persona, segundo o qual, entre as diversas normas a serem
aplicadas, deverá o intérprete escolher aquela que melhor otimiza os Direitos
Humanos.
Este trabalho tem relevância à comunidade jurídica, pois tenta propor um
novo de tipo de controle, para além do critério hierárquico usualmente
estabelecido no Supremo Tribunal Federal.
Este trabalho usará dos métodos dedutivo/indutivo, porquanto investigará
o conceito de controle de convencionalidade, o relacionamento das normas
internacionais com as nacionais e a necessidade do princípio pro persona para
efetivação dos direitos humanos, por meio da pesquisa bibliográfica e
documental.

1. UM BREVE PANORAMA DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO


BRASIL

Em um primeiro momento, podemos dizer que o controle de


convencionalidade é um conjunto de instrumentos que visa compatibilizar leis
internas de um país com as normas de tratados internacionais de direitos
humanos ratificados e em vigor no seu território (CHAVES; SOUSA, 2016, p. 90)
Como afirma Chaves e Sousa, a expressão “Controle de
Convencionalidade” foi utilizada, pela primeira vez, no Conselho Constitucional
Francês (na Decisão 74-54 DC, de 15 de janeiro de 1975, que tratava da análise
de constitucionalidade de uma lei que versava sobre a interrupção voluntária da
gestação, tendo em vista a possibilidade de violação do “direito à vida”
assegurado no artigo 2º da Convenção Européia de Direitos do Homem). O
artigo 55 da Constituição francesa afirma que os tratados e acordos ratificados
tem, a partir de sua publicação, hierarquia superior às leis ordinárias, restando
ao Conselho francês, assim, dois tipos de controle de compatibilidade: a
adequação da lei com a Constituição e a adequação da lei com os tratados e
acordos internacionais, que tem hierarquia superior (2018, p. 90). Como veremos
a seguir, é um modelo parecido com o adotado pela Suprema Corte Brasileira.
No Brasil, desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004,
a qual acrescentou três importantes disposições sobre direitos humanos, quais
sejam, tratados de direitos humanos com status de emenda constitucional se
passassem pelo rito de aprovação dessa última, adesão do Brasil ao Tribunal
Penal Internacional; e a criação do incidente de deslocamento de competência
para a justiça federal nos casos de grave violação de direitos humanos;
vislumbrou-se uma valorização constitucional do direito internacional dos direitos
humanos, o que poderia levar o STF a reavaliar sua jurisprudência (MAUÉS,
2013, p. 217).
A questão é polêmica na doutrina e jurisprudência, até os dias de hoje.
Parte dela entende que a Constituição brasileira abrigou, com base no artigo 5º,
§2º, da CF/88, o princípio da abertura material dos direitos fundamentais, de
1242

modo a admitir que tais direitos podem estar não só dentro como fora da
Constituição (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 648).
Piovesan, em sentido mais contido que Cunha Júnior define, diz que os
tratados de direitos humanos, via de regra, detém natureza materialmente
constitucional, caso contrário, ficaria sem sentido o disposto no artigo 5º, §2º, da
CF (2010, p. 54).
Assim, os direitos constantes nos tratados internacionais integram e
complementam o catálogo de direitos constitucionalmente previsto, o que
justifica estender a esses direitos o regime dos demais expressamente previstos
na CF (PIOVESAN, 2010, p. 58).
Piovesan entende que os tratados internacionais, de modo geral, têm
caráter infraconstitucional. Isso é que se depreende do disposto no artigo 102,
inciso III, alínea “b”, da CF, que confere ao STF a competência para julgar,
mediante recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última
instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado
ou lei federal” (2010, p. 60).
Frise-se que, em razão desse dispositivo, a jurisprudência pátria
entendeu por anos que os tratados internacionais tem o mesmo status legal das
demais leis ordinárias, o que foi mudado por meio do julgamento paradigmático
conforme a seguir se verá.
No entanto, Piovesan sustenta que embora infraconstitucional, os
tratados têm caráter supralegal. Essa tese se coadunaria com os princípios da
boa-fé (o pacta sunt servanda) e com reflexo no artigo 27 da Convenção de
Viena1, por meio do qual não cabe ao Estado invocar disposições de seu Direito
interno como justificativa para não cumprimento de um tratado (2010, p. 60).
De outro lado, em se tratando de tratados de direitos humanos, esses
possuem status constitucional, como assevera:

Insiste-se que a teoria da paridade entre o tratado internacional e a


legislação federal não se aplica aos tratados internacionais de direitos
humanos, tendo em vista que a Constituição de 1988 assegura a estes
garantia de privilégio hierárquico, reconhecendo-lhes natureza de
norma constitucional. Esse tratamento jurídico diferenciado, conferido
pelo artigo 5º, §2º, da Carta de 1988, justifica-se na medida em que os
tratados internacionais de direitos humanos apresentam um caráter
especial, distinguindo-se dos tratados internacionais comuns
(PIOVESAN, 2010, p. 64-65).

Logo, o §3º, do artigo 5º, da CRFB veio somente para reconhecer a


natureza materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos com os
tratados tradicionais. Mesmo que aprovados por três quintos dos votos de cada
Casa do Congresso Nacional, os tratados comerciais não passariam a ter status
formal de norma constitucional (PIOVESAN, 2010, p. 78).
Todavia, como se verá no decorrer deste trabalho, entende-se que a
hierarquia dos tratados, principalmente em direitos humanos, pouco importa para
sua aplicação, diante de um controle de convencionalidade baseado no
pluralismo jurídico e princípio pro persona.

1Artigo 27 da Convenção de Viena, aprovado por meio do Decreto 7.030/2009: “Uma parte não
pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.
Esta regra não prejudica o artigo 46. “
1243

2. O RELACIONAMENTO DAS NORMAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS NO


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SEU JULGAMENTO PARADIGMÁTICO

Conforme denúncia Cordeiro, foi Valério Mazzuoli quem consolidou no


âmbito do direito brasileiro a ideia de controle de convencionalidade, sendo
vanguardista na formatação de um modelo jurisdicional destinado a regular o
relacionamento concorrente entre as normas de direito internacional e direito
interno, especialmente no que diz respeito aos direitos humanos (2018, p. 384).
Antes, as soluções propostas pela jurisprudência apenas delimitavam
categorias de reconhecimento das normas internacionais e de sua convivência
no foro nacional. Não havia uma preocupação com o efetivo relacionamento
entre essas categorias, nem mesmo criação de ferramentas de interação
simultâneas capazes de viabilizar soluções para casos concretos (CORDEIRO,
2018, p. 385).
Foi assim que aconteceu na jurisprudência brasileira, principalmente no
Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento do recurso extraordinário RE
466.343-SP, pelo qual fixou-se a tese da supralegalidade.
A questão envolvida consistia na verificação da legalidade da prisão civil
do depositário infiel, uma vez que enquanto o artigo 5º, inciso LXII, da
Constituição Federal Brasileira de 19882 possibilita a prisão civil no caso de
depositário infiel, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em seu artigo
7º, item 73, apenas admite a prisão civil em caso de inadimplemento de obrigação
alimentar.
A referida norma internacional enquadrava-se na ótica do artigo 5º, §2º,
da CF/88, pois assegurava um conjunto de direitos humanos além do previsto
internamente. No entanto, a Convenção Americana não foi aprovada nos termos
do artigo 5º, §3º, da CF/88, isto é, como se Emenda Constitucional fosse.
Logo, uma vez que a jurisprudência do STF não havia reconhecido
anteriormente posição diferenciada dos tratados de direitos humanos, pois
equiparava-os às leis ordinárias, o Tribunal não dispunha de elementos para dar
concretude às normas mais protetivas (CORDEIRO, 2018, p. 380).
Maués nos lembra que antes mesmo de 1988, o STF já havia firmado o
entendimento, no julgamento do RE nº 80.004 (julgamento em 01.06.1977), que
os tratados internacionais incomporam-se ao direito interno no mesmo nível das
leis, podendo ser revogados por lei posterior ou deixar de ser aplicados em caso
de lei específica (2013, p. 217)
Todavia, não foi esse o rumo tomado pelo STF no importante julgamento
do RE 466.343-SP. Ao final, duas teses se formaram na Suprema Corte. A
primeira, capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, concedendo aos tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos a que o Brasil tenha aderido,
status supralegal, mas admitindo a hipótese de nível constitucional quando
ratificadas pelo Congresso nos termos do parágrafo 3º do artigo 5º, da CF/88 4.

2 Artigo 5º, inciso LXVII: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
3 Artigo 7º, item 7: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados

de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação


alimentar.”
4 Vale, inclusive, citar relevante trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes: “Essa complexa

cooperação internacional é garantida essencialmente pelo pacta sunt servanda. No atual


contexto da globalização, o professor Mosche Hirsch, empregando a célebre Teoria dos Jogos
(Game Theory) e o modelo de Decisão Racional (Rational Choice), destaca que a crescente
1244

Com ele, votaram os ministros Menezes Direito, Marco Aurélio, Ricardo


Lewandowski e Carmén Lúcia, sendo a tese vencedora. Por fim, defendendo o
status constitucional desses tratados, ficaram vencidos os ministros Celso de
Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie.
Para Maués, três razões foram substanciais para o reconhecimento, por
ora, da supralegalidade das normas de tratados em direitos humanos, com não
equivalência das normas constitucionais.

a) a supremacia formal e material da Constituição sobre todo o


ordenamento jurídico, consubstanciada na possibilidade de controle de
constitucionalidade inclusive dos diplomas internacionais;
b) o risco de uma ampliação inadequada da expressão “direitos
humanos”, que permitiria uma produção normativa alheia ao controle
de sua compatibilidade com a ordem constitucional interna;
c) o entendimento que a inclusão do parágrafo 3º do artigo 5º implicou
reconhecer que os tratados ratificados pelo Brasil antes da EC nº 45
não podem ser comparados às normas constitucionais (2013, p. 218-
219).

No caso da interpretação do STF, portanto, a compatibilização entre o


direito interno e o direito internacional do controle de convencionalidade
brasileiro ocorre de modo vertical sobre as leis. A atividade legislativa depende
da concordância com a Constituição e os Tratados de Direitos Humanos
ratificados pelo Brasil, de modo que a incompatibilidade com um deles gerará a
invalidade da norma, ainda que permaneça vigente no ordenamento jurídico
(GOMES; ZANCHI, 2018, p. 214).
Não obstante, resta claro que a decisão do STF, ainda que tenha como
pano de fundo a proteção de direitos humanos, ao conferir caráter supralegal à
CADH, criou uma teoria perigosa. Como bem lembra Maués, há a hipótese,
segundo ele “quase cerebrina”, de que fosse aprovado por emenda
constitucional o conteúdo das normas que tratam o instituto da prisão civil do
depositário infiel (2013, p. 219). Nesse caso, prevaleceria a norma constitucional
em detrimento de norma de tratado mais benéfica aos direitos humanos?
Por isso, entendemos que a resposta para o relacionamento das normas
e o controle de convencionalidade não está no sistema hierárquico, mas no
critério material, como será visto a seguir.

3. O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DENTRO DO PLURALISMO


JURÍDICO: PARA ALÉM DO CRITÉRIO HIERÁRQUICO E DO MODO DE
RELACIONAMENTO DAS NORMAS.

Em um ambiente plural, em que há vários ordenamentos jurídicos,


nacionais e internacionais, que podem reger a mesma matéria, deverá haver um
controle por parte do julgador sobre qual norma prevalecer. Isso é o que se
chama de controle de convencionalidade.

intensificação (i) das relações internacionais; (ii) da interdependência entre as nações, (iii) das
alternativas de retaliação; (iv) da celeridade e acesso a informações confiáveis, inclusive sobre
o cumprimento por cada Estado dos termos dos tratados; e (v) do retorno dos efeitos negativos
(rebounded externalities) aumentam o impacto do desrespeito aos tratados e privilegiam o devido
cumprimento de suas disposições (HIRCH, Moshe. “ Compliance with International Norms” in
The Impact os Internacional Law on Internacional Cooperation. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004, p. 184-188).
1245

Tanto a jurisdição constitucional quanto a convencional têm por função


analisar a validade de atos com relação a outros.
No entanto, para o tipo de controle de convencionalidade que será
desenvolvido neste trabalho, a relação de validade se estabelece a partir de um
critério material, de maior proteção, sendo a declaração de inconvencionalidade
possível somente quando a proteção derivada do direito internacional dos
direitos humanos seja mais efetiva ou estabeleça restrições menos profundas
aos direitos humanos atingidos pelo ato interno. Outra diferença diz respeito ao
fluxo normativo, que no controle de convencionalidade se dá a partir do direito
internacional (CONCI, 2013, p. 10).
A questão da hierarquia é desimportante para o controle de
convencionalidade, pois decorrente de uma análise estrutural do ordenamento
jurídico interno. Verificada a contrariedade entre o tratado e os atos internos,
deve-se passar para o segundo passo, qual seja, a análise da
inconvencionalidade, que diz respeito a saber quais dos instrumentos
normativos, internos ou internacionais, são mais protetivos aos direitos humanos
envolvidos. Assim, os critérios que se impõem como estruturantes do controle
de convencionalidade não são de ordem formal. São, sim, de ordem material, de
conteúdo (CONCI, 2013, p. 17), com base no princípio pro persona, o que será
visto no próximo capítulo.
De outro lado, caso o direito interno seja mais protetivo ou menos
restritivos de direitos, não existe a possibilidade de declarar-se a
inconvencionalidade, mas sim de interpretação conforme com o Tratado de
Direito Humano (CONCI; GERBER e PEREIRA, 2018, p. 110).
O controle de convencionalidade é a expressão da recepção nacional,
sistemática e organizada da ordem jurídica convencional internacional. Esse
controle se constitui como garantia do Estado de Direito. Para Ramirez, a
doutrina do controle de convencionalidade, bem instrumentado, pode servir
como ferramenta para assegurar a ordem jurídica internacional dos direitos
humanos (2011, p. 127).
Salazar também avalia positivamente a possibilidade de controle de
convencionalidade por todos os agentes públicos, ao dizer que:

la llamada doctrina del “control de convencionalidad”(24) que se puede


conceptualizar como aquella obligación que tiene toda autoridad
estatal, en el marco de sus funciones, de evaluar la conformidade de
la normativa nacional, que aplican en los casos concretos, con los
estándares establecidos en la CADH y en la jurisprudencia de la Corte
IDH. Es decir, contrastar la conformidad del derecho interno con el
derecho regional de los derechos humanos5 (2016, p.71).

Quanto ao momento em que pode ser exercido, temos que o controle


pode ser feito a partir da ratificação pelo Congresso, não havendo necessidade
de depósito e da promulgação de decreto presidencial. Para Conci, é ilógico que

5 Tradução livre: A chamada doutrina do “controle de convencionalidade” que se pode


conceitualizar como aquela obrigação que tem toda a autoridade estatal, no marco de suas
funções, valorizar a conformidade da normativa nacional, que é aplicada nos casos concretos,
com os padrões estabelecidos na CADH se a jurisprudência da Corte IDH. Quer dizer contrastar
a conformidade do direito interno com o direito regional dos direitos humanos (tradução nossa).
1246

internacionalmente o Estado já esteja sendo obrigado, mas internamente não


valha a lei internacional (2014, p. 08).
Logo, as diversas legislações sobre Direitos Humanos e os diálogos
entre as Cortes sobre essas normas de proteção configuram o que se chama de
rede.
No caso da proteção dos Direitos Humanos, essa rede pode ser
caracterizada como uma rede multinível e constitucional. Essa rede é articulada
em vários níveis entre os quais não há uma relação de hierarquia, por meio do
qual se exercem funções constitucionais e cujo objetivo principal é a
harmonização dos ordenamentos jurídicos para assegurar a proteção efetiva dos
indivíduos (ALVARADO, 2015, p. 268-269).
O controle de convencionalidade, feito com seriedade, competência e
acerto, favorece e fertiliza o diálogo jurisprudencial interno e internacional e, por
conseguinte, toda a rede de proteção. Contribui a erigir, detalhar, enriquecer e
impulsar a cultura jurídica comum, conforme o projeto favorecedor do ser
humano e condutor do poder público (RAMIREZ, 2011, p. 129).
Vale registrar, como defendido acima, que não se defende a completa
subsunção dos Estados ao Direito Regional e dos juízes nacionais aos juízes
regionais (por isso, não há falar em perda da soberania), mas defende-se que
os direitos do indivíduo sejam considerados quando da análise do caso concreto
(aplicação do princípio pro persona). Assim, seria possível concluir pela
inaplicabilidade da legislação regional ou da interpretação conferida pela Corte
IDH a algum direito previsto na CADH, por ser a norma interna mais protetiva
(CARVALHO; CALIXTO, 2019, p. 12)
Portanto, o controle de convencionalidade está inserido na rede de
proteção dos direitos humanos, devendo ser exercido pelas Cortes nacionais,
até mesmo por outros agentes públicos no exercício do seu mister, tendo como
função precípua a proteção dos direitos humanos, pois, por meio desse controle,
será aplicada a norma que maior protege um Direito Humanos,
independentemente da hierarquia, como se verá a seguir.

CONCLUSÃO

Como se viu, o controle de convencionalidade pode ser conceituado como


um conjunto de instrumentos que visa compatibilizar as leis internas com as
normas de tratados de direitos humanos vigentes no país.
No Brasil, embora a doutrina afirme que os tratados internacionais de
direitos humanos ratificados pelo país são incorporados com caráter
constitucional, nos termos do artigo 5º, §2º, da CRFB/88, o Supremo Tribunal
Federal, no julgamento do RE 466.343-SP fixou a tese da supralegalidade, pelo
qual as normas de direito internacional sobre direitos humanos adentram no
ordenamento pátrio acima das leis ordinárias, mas abaixo das leis
constitucionais.
No entanto, no último capítulo, foi trabalhado o conceito de controle de
convencionalidade além do critério hierárquico das normas, segundo o qual o
exame de compatibilidade entre as leis do país com os tratados de direitos
humanos deverá ser feito com base no princípio pro persona.
Assim, se uma norma internacional for mais protetiva aos direitos
humanos, deverá reputar-se inválida a norma nacional menos protetiva, ao
1247

passo que se a norma brasileira for mais benéfica far-se-á interpretação


conforme com o Tratado a fim de garantir a aplicação do direito interno.
Logo, chega-se à conclusão que o controle de convencionalidade é
aquele pelo qual se faz a análise de compatibilidade das normas internacionais
e nacionais, não com base no critério hierárquico, próprio do controle de
constitucionalidade, mas com base em um critério material, em que a norma mais
protetiva aos direitos humanos deve ser aplicada, independentemente da fonte
normativa.

REFERÊNCIAS

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camino de doble via hacia la protección efectiva. In.: MEZZETTI, L. e CONCI,
L. G. A (Org). Diálogo entre cortes: a jurisprudência nacional e internacional
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a Obrigatoriedade de seu Desenvolvimento no Sistema Interamericano de
Proteção dos Direitos Humanos. In.: Revista Eletrônica do Curso de Direito
da UFSM. Santa Maria, v. 14, n. 1, 2019.

CHAVES, Denisson Gonçalves; SOUSA, Mônica Teresa Costa. O Controle de


Convencionalidade e a Autoanálise do Poder Judiciário Brasileiro. In.: Revista
da Faculdade de Direito – UFPR. Curitiba, vol. 61, 2016.

CORDEIRO, Wolney de Macedo. O Controle de Convencionalidade e Reforma


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2018.

CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. Controle de convencionalidade e o Dialógo


entre ordens internacionais e constitucionais comunicantes? Por uma abertura
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CONCI, Luiz Guilherme Arcaro; GERBER, Konstantin; PEREIRA, Giovanna de


Mello Cardoso Pereira. Normas Ius Cogens e Princípio Pro persona. In.:
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CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5. ed.


Salvador: Jus Podivm. 2011.
1248

GOMES, Eduardo Biacchi; ZANCHI, Deborah Maria. O Controle de


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Direitos Humanos e Interpretação Constitucional. In.: Revista de Direito
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PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional


Internacional. São Paulo: Editora Saraiva, 11ª ed., 2010.

RAMIREZ, Sergio Garcia. El control judicial interno de convencionalidad.


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Puebla, n. 28, 2011.

SALAZAR, Elard R. Bolaños. ?Puede el control de convencionalidad ser uma


alternativa ante la prohibición del control difuso em sede administrativa?.
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https://www.researchgate.net/publication/300007070_Puede_el_control_de_co
nvencionalidad_ser_una_alternativa_ante_la_prohibicion_del_control_difuso_e
n_sede_administrativa.
1249

DIGNIDADE HUMANA E MORAL: ATÉ QUE PONTO A PARTIR DO


PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PODEMOS GARANTIR A
DIMENSÃO ABSOLUTA E INALIENÁVEL DO DIREITO A VIDA?
HUMAN DIGNITY AND MORAL: WHEN CAN WE ENSURE THE ABSOLUTE
AND INALIENABLE DIMENSION OF RIGHT TO LIFE , BEGINNING FROM
THE PRINCIPLE OF HUMAN BEING'S DIGNITY.

Denis Carvalho

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar a dignidade humana através
do estudo de Habermas em face às várias formas de se colocar um empecilho
para a sua efetivação no ordenamento jurídico, ainda mais quando em conflito
com a moral. Será que o direito a vida é respeitado por todos? Afinal ele é
garantido a todas as pessoas sem distinção. Portanto deve sim ser garantido a
todas as pessoas de forma absoluta. Utilizou-se para a realização deste trabalho
a pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-chave: Dignidade Humana. Moral. Ética.

Abstract: This piece's main goal to analyse the human's dignity through the study
of Habermas facing the various ways of setting a difficulty to its true
accomplishment on the actual legal system, mainly when it's against the moral.
Is the right to life respected by all people? It's right to say that the right to life is
guaranteed to all people without distinction, no matter their skin color, race,
culture or any other caracteristic that can differentiate them from the society.
Therefore, It must be guaranteed to all people in its absolute form. Was used a
bibliographic and documentary research to finish this piece.
Keywords: Human dignity. Moral. Etics.

INTRODUÇÃO

A vida em sociedade é algo difícil de lidar, pois é certo dizer que surgirão
conflitos entre as pessoas, conflitos os quais precisarão de rápida intervenção.
Todas as pessoas têm sentimentos, tem necessidades próprias, é certo dizer
que nem todos compartilham do mesmo pensamento, pelo contrario, diante de
toda essa divergência de pensamento e modo de agir é correto dizer que intrigas
surgem a todo o momento.
Não importa a localidade onde se encontra determinada sociedade,
tampouco importa a cultura vivida por seus membros, é certo como dito
anteriormente que as intrigas irão surgir e com seu surgimento se torna
necessário a rápida intervenção para que ela seja então contida como também
seja rapidamente solucionada.
As Leis estão sendo criadas a todo o momento para isso mesmo, ajudar
a balizar a vida em sociedade, pois uma sociedade organizada e cumpridora das
leis, não somente as morais como também aquelas criadas pelo legislador. O
problema surge quando a lei criada pelo legislador entra em conflito com o que
é considerado moral.
Há enorme discordância da sociedade quando a lei entra em conflito com
os direitos das pessoas, principalmente com a dignidade da pessoa humana,
esta que dispensa apresentações, pois o próprio nome em si já carrega o peso
que ela sustenta e o tamanho da sua importância.
1250

Assim se torna necessário discutir até que ponto podemos ter garantido o
direito à vida. Haveria casos em que o referido direito, qual seja, o direito a vida,
poderia ser suprimido para algumas pessoas para que assim se evitasse algum
mal maior?
Assim será demonstrado o posicionamento da dignidade humana no
ordenamento jurídico, e os reflexos que ocorrem quando a dignidade humana
entra em conflito com a moral. Buscasse mostrar que referido direito é
inalienável, como também é absoluto.

1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA POSIÇÃO NO


ORDENAMENTO JURÍDICO

As pessoas, no mundo todo, devem ser igualmente respeitadas como


também devem receber a mesma forma de tratamento independentemente de
sua religião, gênero, cor, costumes ou qualquer outra forma ou classificação em
que eles se encaixem como também o modo como eles se diferenciam entre
todos os membros que convivem na sociedade.
Seja ela pertencente de qualquer canto do mundo, pois a vida humana
tem o mesmo valor, com também o mesmo significado em qualquer lugar em
que ela se encontre. Afinal, é certo dizer que todos os seres humanos têm os
mesmo deveres uns para com os outros, como também são garantidos, sem
qualquer meio de exclusão, os mesmos direitos. Esses direitos das pessoas
como também os deveres que elas carregam para consigo, independem de
status financeiro ou posição social que eles ocupam na sociedade a qual vivem.
Cria-se, assim, uma sociedade que ao mesmo passo que possa ser justa
como também igualitária entre todos os seus membros sem qualquer tipo ou
modo de discriminação entre todas as pessoas que ali convivem.
Assim menciona o artigo 1º e 2º da Declaração Universal dos Direitos
Humanos:

Artigo I - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade


e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em
relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo II - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, riqueza.

Deste modo, também encontra-se mencionado no artigo 5º, “caput”


Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

Encontra-se amparo no texto legislativo tanto internacional como também


no âmbito nacional, como o caso da Constituição Federal de 1988, de forma
expressa o reconhecimento no valor da dignidade da pessoa humana, tratando
todos assim de forma igualitária. Porém, o reconhecimento da igualdade entre
as pessoas se torna algo como obrigação pela lei, ao passo que deveria ser um
entendimento normal de vida, pois as pessoas deveriam tratar o próximo como
1251

gostariam de serem tratadas e não apenas por haver uma lei que assim as
obrigam.
Nesse entendimento menciona CORRAZA e DUMAS (2015, p.22) não há
necessidade para que haja o reconhecimento da vida humana que exista uma
norma assim expressa, pois ela implica em dizer que é algo natural, sendo
totalmente imprescindível para que se tenha a existência da pessoa humana,
somente há direitos e garantias tendo condições da existência da pessoa.
Nesse entendimento ROSOLEN e MACHADO (2015, p. 151)

O direito à vida como direito fundamental da pessoa humana,


positivado na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais,
implica por parte do Estado uma abstenção, ou seja, um
comportamento negativo, um não fazer, com relação a não matar a
pessoa humana, já que nem o Estado, nem ninguém tem o direito de
matar.

Conforme mencionado anteriormente, nota-se que não apenas os


membros da sociedade brasileira fazem jus a um tratamento digno como
também, no caso da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, os
direitos são assim amplamente estendidos aos estrangeiros que ali residem, não
havendo portanto qualquer diferença de tratamento entre nacional ou
estrangeiro.
Porém, apesar de ser tratado como um direito absoluto estampado no
ordenamento jurídico, tanto para os brasileiros quanto para os estrangeiros que
ali residem, surge algumas ocasiões em que referido direito venha a ser tratado
de forma relativa, pois há casos excepcionais no ordenamento jurídico brasileiro
em que não se ampara de forma total o direito a vida.
Assim conforme a Constituição Federal de 1988 “artigo 5º XLVII – não
haverá penas: a) De morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do
artigo 84, XIX”.
Conforme CORRAZA e DUMAS “Apesar de ser o direito à vida um direito
fundamental, não se trata de um direito absoluto, pois a própria Constituição
admite a possibilidade de pena de morte, nos casos de guerra de declarada”.
Logicamente que a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 protege o direito a vida de todas as pessoas tanto as nacionais quanto os
estrangeiros que ali residem, mas relativiza o referido direito em caso de guerra
declarada, mas isso não significa que o direito a vida não é protegido e amparado
de forma plena pelo atual ordenamento jurídico brasileiro.
Portanto, nesse mesmo sentido, conforme menciona o artigo 6º da
Constituição Federal de 1988:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o


trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.

Nesse sentido mencionam ROSOLEN e MACHADO (2015, p. 136) a


Constituição Federal de 1988 assegura o direito de viver uma vida digna e não
apenas o direito a vida, pois a vida digna é assegurada pelos direitos sociais,
quais sejam, direito a alimentação de forma adequada, a moradia, a saúde, a
educação, ao lazer, a cultura, ao trabalho.
1252

Elencando assim os direitos sociais, a Constituição Federal de 1988 em


seu artigo 6º garante o direito a ter não apenas a vida propriamente dita, mas
sim uma vida que possa ser considerada digna a todas as pessoas, garantindo
então conforme menciona o disposto no artigo 6º uma serie de atributos
indispensáveis para se ter a vida digna.
Conforme Silva e Celestino (2016, p.2) a Constituição Federal de 1988 é
uma importante Carta de Direitos, sendo então considerada um marco
demográfico no Brasil, nesta Carta os direitos sociais básicos dos cidadãos são
reconhecidos assim como eles também são garantidos garantindo a democracia
e a dignidade da pessoa humana, desejando assim a sua efetivação na
sociedade, pois melhor que reconhecer os direitos são efetiva-los conforme
Bobbio.
Assim percebe-se que receber o tratamento de forma digna não é apenas
algo que deva ser realizado de forma legal, por assim estar mencionado na
Declaração Universal dos Direitos Humanos como também elencado pela
Constituição Federal de 1988, mas sim porque é o modo como todos os seres
humanos gostariam de ser tratados.
Ser respeitado na sociedade o qual o indivíduo convive com os demais faz
com que este se sinta plenamente inserido na mesma, como também de certo
modo, faz com que ele não sinta de nenhuma maneira discriminação como
também não sinta qualquer outra forma de preconceito o ambiente em que vive.
Nesse sentido menciona Rachels (2006, p. 134) o valor das pessoas esta
“acima de tudo”, portanto devemos sempre nos empenhar em tratar todos de
maneira especial sendo caridosos uns para com os outros, respeitando os
direitos dos outros, promovendo o bem-estar, não machucar as pessoas e
sempre tentar ajudar.
Porém ocorre que, apesar de sempre as pessoas tentarem ajudar, agindo
com a melhor das intenções, assim sempre se importando com a vida do próximo
é certo dizer que talvez elas não consigam agir da melhor maneira possível a
todo o momento e qualquer circunstância. Ser justo implica em algo complexo,
pois a justiça, de certa forma pode ser diferente para cada pessoa, pois cada um
tem um fundamento para ela.
Nesse sentido menciona PERELMAN (2005, p. 9):

É ilusório querer enumerar todos os sentidos possíveis da noção de


justiça. Vamos dar, porém, alguns exemplos deles, que constituem as
concepções mais correntes da justiça, cujo caráter inconciliável
veremos imediatamente:
1. A cada qual a mesma coisa.
2. A cada qual segundo seus méritos.
3. A cada qual segundo suas obras.
4. A cada qual segundo suas necessidades
5. A cada qual segundo sua posição
6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui

Assim, agir, conforme o senso de ser justo está muito além de seguir os
mandamentos legais conforme elencados na Constituição Federal de 1988 como
também na Declaração Universal dos Direitos Humanos e sim no saber que o
tratamento justo para com as pessoas surge quando percebe-se que é este
tratamento que todos almejam e não apenas por ser uma ordem emanada do
ente responsável.
1253

2. A DIGNIDADE HUMANA E O CONFLITO COM A MORAL

Existem certos momentos na vida em que se torna difícil realizar


determinada conduta quando estamos diante de determinadas situações que
consideramos como sendo algo difícil de encarar. Ainda se torna mais difícil
realizar alguma ação quando a nossa conduta irá interferir diretamente na vida
de um terceiro.
Conforme menciona Kovács (2003, p. 115):

A morte no século XXI é vista como tabu, interdita, vergonhosa; por


outro lado, o grande desenvolvimento da medicina permitiu a cura de
várias doenças e um prolongamento da vida. Entretanto, este
desenvolvimento pode levar a um impasse quando se trata de buscar
a cura e salvar uma vida, com todo o empenho possível, num contexto
de missão impossível: manter uma vida na qual a morte já está
presente.

Como é o caso de Theresa Ann Campo Pearson, um bebê nascido no


ano de 1992 na Flórida, conhecida como “bebê Theresa” a qual era uma recém-
nascida acéfala e seus pais se confrontaram com um grande problema após seu
nascimento.
Conforme Rachels (2006, p. 2):

A história da bebê Thereza são seria extraordinária, exceto pelo pedido


incomum feito por seus pais. Sabendo que ela não poderia viver muito
tempo e que, mesmo que sobrevivesse, nunca teria uma vida
consciente, os pais de Theresa ofereceram seus órgãos para
transplante.

Difícil encarar alguma situação como, por exemplo, o referido caso


mencionado acima pelo ponto de vista legal, pois é notório que todos os seres
humanos devem ser tratados com dignidade e respeito a todo momento,
independente do local onde se encontram no mundo.
Diante de algumas situações, como por exemplo, o fato mencionado
acima, algumas questões são difíceis de serem respondidas, quais sejam, é
certo dizer que a dignidade da pessoa humana é inviolável? O direito a vida é
inviolável?
Torna-se complicado tentar responder as questões formuladas acima,
mas com certeza é certo que cada caso é um caso, como por exemplo, em caso
de guerra declarada onde o direito a vida não se torna absoluto e sim relativo.
Menciona CORAZZA e DUMAS (2015, p. 23) “Apesar de ser o direito
à vida um direito fundamental, não se trata de um direito absoluto, pois a
própria Constituição admite a possibilidade de pena de morte, nos casos de
guerra de declarada (art. 5º, XLVII da CF)”.
Porém com certeza os responsáveis por tomar as referidas posições a
cerca do que será feito não terá tarefa fácil de resolver. Buscando assim tentar
encontrar um equilíbrio entre a moral e o ordenamento jurídico.
Há situações onde a Lei se contrapõe com a moral, em determinadas
situações são criadas Leis, as quais sem dúvida foram criadas para a proteção
da população, mas nem sempre é para a proteção de todos, pois para evitar um
mal maior na sociedade talvez algumas pessoas tenham que se sacrificar,
contrariando assim mais uma vez o caráter absoluto do direito a vida.
1254

De acordo com Habermas (2012, p.8) no ano de 2006 uma lei foi
considerada inconstitucional, qual seja, “Lei de Segurança Aérea” a qual foi havia
sido promulgada pelo parlamento alemão, época em que a esfera pública alemã
havia sido dominada pela inviolabilidade da dignidade humana.
Ainda, nesse sentido, sobre o direito absoluto a vida prossegue o autor
Habermas (2012, p.8):

Na época, o parlamento tinha em mente o cenário do “11 de Setembro”,


ou seja, o ataque terrorista as torres gêmeas do World Trade Center.
Pretendia autorizar as forças armadas a, em situação semelhante,
abater aviões de passageiros transformados em bombas, de modo a
proteger um número indefinidamente maior de pessoas ameaçadas em
solo. Porém, segundo a concepção do Tribunal, a morte de
passageiros por meio de órgãos estatais seria inconstitucional. O dever
do Estado (segundo o artigo 2, inciso2 da Constituição Federal) de
proteger a vida das potenciais vítimas de um ataque terrorista não pode
vir antes do dever de respeitar a dignidade humana dos passageiros:
“quando suas vidas são colocadas unilateralmente á disposição do
Estado, nega-se aos passageiros á bordo do avião o valor que é
devido aos seres humanos em vista de seu próprio bem”.

Nesse sentido menciona PERELMAN (2005, p. 309) há ocasiões em que


duas pessoas se encontram em perigo de vida, onde uma intervenção cirúrgica
permite que apenas um se salve e que o outro seja sacrificado, como por
exemplo, o ginecologista que precisa escolher entre salvar a mãe ou a criança.
Assim, se torna difícil, concretizar algumas condutas quando a razão se
contrapõe com a emoção juntamente com a moral. Pois a moral do ser humano
diz muito a respeito de como ele reage a certos desafios que ele encontra em
sua vida e qual a conduta que ele ira realizar para que assim ele consiga resolver
da melhor maneira possível aquele desafio.
Do mesmo modo que a lei impõe obrigações, a moral também, de acordo
com HART (2009, p. 9) “As normas morais impõe obrigações e subtraem certas
áreas de conduta a livre opção do individuo de agir como desejar”.
Sem contar que a conduta exercida por algumas pessoas influenciará,
podendo até mesmo ser de maneira significativa na vida de terceiros. Devendo
ser realizada então de maneira sabia, objetivando concretiza-la da melhor forma
como também da melhor maneira possível.
Assim, conforme Rachels (2006, p. 15) podemos chamar moralidade
como sendo o que guia o individuo por meio de sua razão, sua força, apenas
fazer alguma coisa havendo razão em o fazer e assim fazer o melhor, pois
alguém poderá ser afetado com a conduta realizada, assim sempre observando
os interesses das pessoas relacionadas.
Menciona, por sua vez, a respeito da distinção entre direito e moral
PERELMAN (2005, p. 298-299)

Tradicionalmente, os estudos consagrados as relações entre o direito


e a moral insistem, dentro de um espírito kantiano, naquilo que os
distingue: o direito rege o comportamento exterior, a moral enfatiza a
intenção, o direito estabelece uma correlação entre os direitos e as
obrigações, a moral prescreve deveres que não dão origem a direitos
subjetivos, o direito estabelece obrigações sancionadas pelo Poder, a
moral escapa as sanções organizadas.
1255

Importante observar que para toda ação existe uma reação, tudo que o
alguém realiza interfere de certa forma na vida de alguém como também na vida
da sociedade. Se torna necessário então estar preparado para buscar o
equilíbrio entre a razão e a moral, para que seja alcançado os melhores
resultados.

3. JUSTIFICATIVAS A FAVOR E CONTRA O CARÁTER ABSOLUTO DA


VIDA HUMANA

Interessante pensar no modo como algumas pessoas tem o poder de


tomar decisões as quais irão influenciar diretamente a vida de outras. Podendo
interferir de maneira significativa e até mesmo de forma fatal de acordo com as
atitudes que elas seguirem. Como por exemplo no caso da bebe Theresa.
O problema surge quando algumas pessoas se colocam em patamares
superiores como se elas fossem mais importantes que as outras, como se o
mundo girasse ou existisse em razão e em função delas e chegasse ao ponto de
poderem interferir no bem mais valioso que alguém poderia ter, qual seja, o
direito a vida.
De acordo com Rachels (2006, p. 195)

O universo tem cerca de quinze bilhões de anos – esse é o tempo


decorrido desde o big bang -, e a terra propriamente dita foi formada
há aproximadamente quanto bilhões e seiscentos milhões de anos. A
evolução da vida no planeta foi um processo lento, guiado praticamente
pela seleção natural. Os primeiros humanos apareceram bem
recentemente. A extinção dos grandes dinossauros há sessenta e
cinco milhões de anos (possivelmente como o resultado de uma colisão
catastrófica entre a terra e um asteroide) deixou um espaço ecológico
para a evolução de poucos mamíferos de pequeno porte que já
existiam, e, depois de sessenta e três ou sessenta e quanto milhões
de anos passados, uma linha da evolução finalmente nos produziu.
Dentro do tempo genealógico, nos chegamos aqui ontem.

De acordo com o texto acima, os seres humanos são recentes no


universo, interessante como algumas pessoas pensam em superioridade em
relação aos demais. Afinal todos tem o mesmo valor, não podendo ser
considerado melhor e nem mesmo pior que o outro.
Ainda continua Rachels (2006, p.197)

Pelo menos em algum momento, deveríamos tratar os indivíduos como


eles merecem ser tratados, em vez de lidar com eles como se fossem
apenas membros da grande população da humanidade.

Importante mencionar que os indivíduos que compõe a grande massa da


sociedade não são apenas números isolados, mas sim seres garantidores de
algo muito importante, a dignidade humana.
Conforme Habermas (2012, p.9) “o respeito à dignidade humana de cada
pessoa proíbe o Estado de dispor de qualquer indivíduo apenas como meio para
outro fim, mesmo se for para salvar a vida de muitas pessoas”.
De acordo com ROSOLEN e MACHADO (2015, p. 137):

O direito à vida é um direito fundamental do homem por excelência, já


que da vida humana decorrem todos os demais direitos, como por
1256

exemplo, direito à integridade física e psíquica, direito ao corpo, direito


ao nome, dentre outros.

Então, sempre que possível, as pessoas terem seus direitos assegurados


e efetivados principalmente o direito a vida, porque talvez este seja o principal
direito existente para elas.
Menciona Rachels (2006, p. 5)

A proibição de matar está certamente entre as regras morais mais


importantes. No entanto, poucas pessoas acreditam que é sempre
errado matar - a maioria acredita que as exceções são algumas vezes
justificadas. A questão, portanto, é se a bebê Theresa deveria ser
considerada como uma exceção à regra. Existem muitas razões para
tal, a mais importante é que ela morrerá brevemente de qualquer
forma, não importando o que seja feito, ao passo que retirar seus
órgãos pelo menos traria algum beneficio para outros bebes. Qualquer
um que aceitar isso considerara a premissa principal do argumento
falsa. Geralmente é errado matar uma pessoa para salvar outra, mas
nem sempre.

É difícil ler argumentos que são a favor da morte caso se tenha convicção
de argumentos contrários, como também é complicado se deparar com
argumentos contra, caso tenha ideia a favor da morte de alguma pessoa.
Conforme menciona Rachels (2006, p. 4) “usar as pessoas” normalmente
envolve a violação de sua autonomia – a capacidade de decidir por elas mesmas
como viver suas próprias vidas de acordo com seus próprios desejos e valores”.
De certo modo, pode-se dizer que a tarefa de ter que decidir algo tão serio
assim, seria considerado como sendo algo até mesmo desumano, para aquele
que fosse encarregado de desenvolver e cumprir essa missão. Como também o
é para aquele o qual é o destinatário direto dessa decisão, pois a ele sim surtiram
os efeitos de uma decisão a qual este sequer talvez tivesse a opção de
reivindicar seus direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos assim, conforme nosso ordenamento jurídico que o direito a


vida está garantido a todos na sociedade, sendo assim todos os cidadãos, sem
exceção, são titulares desse direito.
Ocorre que nem sempre o direito a vida pode ser garantido a todos de
igual maneira, como observamos no caso da bebê Theresa na Florida. Porém
em determinadas situações percebe-se que o direito a vida é tratado de forma
relativa como é o caso da pena de morte descrita na Constituição Federal de
1988, em caso de guerra declarada.
Necessário tratar cada caso de forma isolada, pois, cada caso é um caso,
que deve ser tratado de maneira distinta, ainda mais quando o assunto trata
sobre direito á vida, o qual não é algo simples de conversar. Não devendo assim
ser menosprezado e sim buscando alcançar de forma efetiva o direito a vida,
pois apenas existe a dignidade da pessoa humana por haver a vida, sendo esta
então, o principal dos direitos, pois é a partir dela que surgem todos os outros.

REFERÊNCIAS
1257

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em
15 abr. 2019

CELESTINO, Karla Alexsandra Falcão Vieira. SILVA, Daisy Rafaela da. O


risco a democracia ante a mitigação de direitos fundamentais sociais com
a lei 13.135/2015: a perspectiva do “Estado em Crise” e aparente violação
ao princípio da proibição do retrocesso. Disponível em:
https://indexlaw.org/index.php/teoriasdireito/article/view/1579/pdf. Acesso em
15 jun. 2019

CORAZZA, Thaís Aline Mazetto. DUMAS, Camila Cristina de Oliveira. Da


necessária postura do homem perante sua própria vida: uma perspectiva
jurídica. Ética e direito à vida, volume I. / organizadoresE84 Daniela Menengoti
Ribeiro, José Francisco de Assis Dias, Larissa Yukie CoutoMunekata; autores,
André Vinicius Rosolen ... [et al]. –1. ed. e-book –Maringá, PR: Vivens, 2015.
224p. Disponível em:
http://www.humanitasvivens.com.br/livro/169b6656a20674d.pdf. Acesso em 18
jun. 2019.

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:


https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em
15 abr. 2019.

KOVÁCS, Maria Julia. Bioética nas questões da vida e da morte. Disponível


em < http://www.scielo.br/pdf/pusp/v14n2/a08v14n2.pdf> Acesso em 17 jun.
2019

MACHADO, Robson Aparecido. ROSOLEN, André Vinicius. O direito


fundamental a vida e o direito de viver: não (te) matarás! Ética e direito à
vida, volume I. / organizadoresE84 Daniela Menengoti Ribeiro, José Francisco
de Assis Dias, Larissa Yukie CoutoMunekata; autores, André Vinicius Rosolen
... [et al]. –1. ed. e-book –Maringá, PR: Vivens, 2015. 224p. Disponível em:
http://www.humanitasvivens.com.br/livro/169b6656a20674d.pdf. Acesso em 18
jun. 2019.

PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida


Prado Galvão; [revisão da tradução Eduardo Brandão]. 2ª ed. – São Paulo:
Martins Fontes, 2005.

RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. Tradução de Roberto


Cavalliri Filho; revisão cientifica José Geraldo A. B. Poker...(et al.). – Barueri,
SP: Manole, 2006

HABERMAS, Jurgen. Sobre a Constituição da Europa. Editora Unesp: 2012

HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A.


Bulloch e Joseph Raz; tradução de Antonio de oliveira Sette-Câmara; revisão
da tradução Marcelo Brandão Cipolla; revisão técnica Luiz Vergilio Dalla-Rosa.
– São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
1258

DIREITO AO DESENVOLVIMENTO: UMA PERSPECTIVA CONCEITUAL DA


ECONOMIA PARA OS DIREITOS HUMANOS
RIGHT TO DEVELOPMENT: A CONCEPTUAL PERSPECTIVE OF ECONOMY
FOR HUMAN RIGHTS

Daniel Jacomelli Hudler


Letícia Araújo Ferreira

Resumo: a humanidade enfrenta um dilema sobre a desigualdade entre Estados


e uma promessa de concerto global mais justo, advogado no campo do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, por meio do direito ao desenvolvimento,
dado o atual cenário de coordenação de esforços e de incentivo à cooperação
entre Estados, empresas transnacionais e a sociedade civil. Neste contexto, uma
questão preliminar consiste na compreensão do conceito de desenvolvimento.
Assim, o presente trabalho acadêmico visa a uma tentativa de delimitação do
tema, com a utilização do método hipotético-dedutivo auxiliado por revisão
bibliográfica, com ênfase nas concepções de desenvolvimento humano e
sustentável incorporados pelo Direito. Conclui-se que os estudos econômicos
foram fundamentais para consolidação do conteúdo deste direito e sua posterior
normatização no cenário jurídico, que representa um recorte muito específico de
um fenômeno multifacetado, com aspectos econômicos, sociais e culturais, o
qual envolve uma noção de crescimento econômico, mas que não se limita a
este.
Palavras-chave: Direito ao desenvolvimento. Crescimento econômico.
Desenvolvimento humano e sustentável.

Abstract: humanity faces a dilemma on State inequality and a promise of fairer


global concert through the right to development, advocated in the field of
international human rights law, given the current scenario of coordinating efforts
and encouraging cooperation between States, transnational corporations and
civil society. In context, a preliminary question is about understanding the concept
of development. Thus, the present academic work aims at an attempt to delimit
the theme, through the hypothetical-deductive method aided by bibliographic
review, with emphasis on the conceptions of human and sustainable
development, which were incorporated by Law, through international and national
legal documents, and recognized as an authentic fundamental human right. It is
concluded that the studies in economy field were fundamental for the
consolidation of the content of this right and its subsequent standardization, and
that the legal aspect represents a very specific cut of a more complex
phenomenon, with economic, social and cultural aspects, which involves a notion
of economic growth, but it’s not limited to it.
Keywords: Right to development. Economic Growth. Human and sustainable
development.

INTRODUÇÃO

No limiar do século XXI, a humanidade contempla, de um lado, uma grave


ameaça à suaprópria existência agravada pelo aprofundamento das
desigualdades entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, bem como
pelos problemas econômicos e ecológicos gerados pelos modelos de produção
1259

e consumo vigentes; de outro, uma promessa política para construção de um


concerto global mais justo e apto a lidar com aquela ameaça, por meio do direito
ao desenvolvimento.
Uma questão preliminar a essa dicotomia consiste na compreensão do
atual conceito de desenvolvimento incorporado pela comunidade internacional.
Assim, uma tentativa de delimitação justifica-se, inclusive para que se torne
possível a promoção do debate multidisciplinar e, consequentemente, uma
compreensão adequada e operacional deste direito.
No presente trabalho, esta tentativa é realizada da Economia para o
Direito – isto é, a partir do diálogo existente no pensamento econômico e que foi
incorporado aos documentos jurídicos internacionais e nacionais, enquanto um
autêntico direito humano fundamental. Para tanto, este estudo utiliza-se do
método hipotético-dedutivo auxiliado por revisão bibliográfica, com foco nas
principais reflexões trazidas a partir do século XX, em especial as concepções
de desenvolvimento humano e sustentável, essenciais à elaboração de
importantes documentos jurídicos sobre o tema no âmbito da Organização das
Nações Unidas (ONU) e sua irradiação ao ordenamento jurídico brasileiro.

DESENVOLVIMENTO

Na atualidade, o conceito de desenvolvimento é tomado como expressão


de um interesse legítimo da comunidade internacional em busca de uma
melhoria contínua e sustentável da qualidade de vida das pessoas. No entanto,
os elementos que envolvem este conceito precedem a própria noção jurídica, de
modo que, para uma compreensão mais coerente com os objetivos pretendidos
pela comunidade internacional, indispensável uma análise a partir de outras
áreas do conhecimento.
Sob o prisma do pensamento econômico, o presente estudo encontra em
Celso Furtado o seu ponto de partida. Para Furtado (1975, p. 4-10) uma teoria
do desenvolvimento, sob uma perspectiva macroeconômica, deve buscar
explicar as causas e o mecanismo do aumento persistente da produtividade do
fator trabalho, suas repercussões na organização da produção, bem como na
forma como se distribui e se utiliza o produto social. Por essa ótica, o autor
identifica a origem das discussões nos estudos econômicos do século XVIII1,
cujas conjecturas filosóficas sobre a teoria da distribuição de renda implicavam
em uma noção de crescimento econômico que se identificava com a de
desenvolvimento; houve também contribuições a partir do século XIX 2 com
enfoque na formação de preços e os modelos de maximização por meio do
mecanismo de oferta e procura no mercado; além desses, outros autores são
mencionados, dada suas visões ímpares, como Karl Marx e sua percepção
relacionada à produção sob um enfoque histórico e de conflito de classes, e de
John Maynard Keynes, sobre as rendas e empregos flutuantes nas crises cíclicas
do capitalismo.
Nessa vasta gama de compreensões, um ponto de relevância é a
percepção de que as noções de crescimento econômico e desenvolvimento não
são coincidentes, embora guardem estreita conexão. Neste diapasão, Paul A.

1 Neste sentido, por exemplo, os economistas François Quesnay, Adam Smith, David Ricardo,
Tomas Malthus, Jean-Baptiste Say, John Stuart Mill.
2 Neste sentido, por exemplo, os economistas Carl Menger, Alfred Marshall, Leon Walras, William

Stanley Jevons, Knut Wicksell, Vilfredo Pareto e Irving Fisher.


1260

Samuelson e William D. Nordhaus (1999, p. 517/521) entendem que crescimento


representa uma expansão do Produto Interno Bruto potencial ou produto
nacional de um país3, que ocorrerá quando as suas possibilidades de produção
se projetam para fora do âmbito nacional4. O crescimento econômico resultaria
no aumento de renda per capita e consequente melhoria de qualidade de vida
das pessoas. Esse crescimento, pode ser atingido tanto por países
desenvolvidos como pelos países “em via de desenvolvimento”, os quais,
segundo Samuelson e Nordhaus (1999, p. 538), tem como característica
principal o reduzido rendimento per capita e a busca em comum de uma melhora
qualitativa de vida, expressa em melhores recursos para cuidados de saúde,
educação, alimentação e rendimentos
Por outro lado, digno de nota que uma distinção entre crescimento
econômico e desenvolvimento já se apresentava em economistas do início do
século XX, a exemplo de Joseph Alois Schumpeter. Segundo Schumpeter (2010,
p.57-66), desenvolvimento não seria o mero crescimento econômico, revelado
pelo aumento populacional e de riqueza, mas a implementação de novas
combinações para os fatores produtivos, que ocorreriam pela junção de um ou
mais elementos, por ele elencados: i) introdução de novos bens de consumo; ii)
introdução de novos métodos de produção; iii) abertura de novos mercados; iv)
conquista de novos recursos de matéria bruta ou semimanufaturada; iv) nova
organização da indústria, como a criação de uma posição de monopólio ou a
quebra desta posição.
Em que pese este conceito ter sido popular por identificar o empresário
como protagonista do desenvolvimento, esta perspectiva foi criticada por Furtado
(1975, p.46/51) por sua imprecisão, por desconsiderar outros fatores sociais
relevantes e pela necessidade de uma análise também a partir da formação
histórica do desenvolvimento5. Isto porque, pela ótica furtadiana, crescimento
econômico consistiria no aumento da eficácia do sistema de produção por meio
da acumulação e do progresso das técnicas, enquanto desenvolvimento refere-
se ao grau de satisfação das necessidades humanas, sejam elas essenciais
como alimentação, expectativa de vida, habitação e vestuário, sejam as
decorrentes de um contexto cultural determinado (FURTADO, 1980, p. 15-17).
Mas, para os limites do presente estudo, há um recorte mais específico e
posterior, que amplia o sentido de desenvolvimento, incorporado ao universo
jurídico por meio das conferências e documentos produzidos principalmente no
âmbito da Organização das Nações Unidas. Trata-se das concepções de
desenvolvimento sustentável e humano.
Em uma tentativa de incorporação das necessidades mais complexas da
natureza humana, o economista indiano Amartya Sen apresentou outro

3 Na definição de Paul A. Samuelson e William D. Nordhaus (1999, p.740), crescimento


econômico é o aumento do produto total de um país ao longo do tempo. O crescimento
econômico é geralmente quantificado pela taxa de crescimento anual do PIB real de um país (ou
do PIB potencial real).
4 Para tanto, os autores consideram que há “quatro rodas do crescimento”, compostas por: i)

recursos humanos (que envolve a oferta de trabalho, educação, disciplina e motivação); ii)
recursos naturais; iii) formação de capital (que se refere também à infraestrutura mínima); iv)
tecnologia.
5 Neste ponto, importante esclarecer que uma das principais análises elaboradas por Furtado, a

partir de seus estudos da década de 1960 e 1970, projeta-se em dois planos: o primeiro, a de
análise do processo de crescimento econômico a partir de formulações abstratas; o segundo,
um estudo crítico, em confronto com a realidade, no plano histórico.
1261

entendimento. Em suas reflexões, o conceito de desenvolvimento assume uma


feição de processo pessoal de expansão das liberdades reais que as pessoas
desfrutam (SEN, 2013, p. 27-42). Importante enaltecer: embora reconheça que
este conceito não esteja inteiramente dissociado do crescimento econômico, o
autor vai além desta noção, na medida em que atribui um significado de liberdade
mediante a eliminação dos obstáculos que impedem o ser humano do exercício
pleno de suas ações racionais e de ter uma vida dotada de valor.
Dentre as fontes de privação da liberdade elencadas por Sen estão a falta
de acesso a serviços de saúde e educação, emprego remunerado e participação
política. Como consequência dessas privações, afirma que a pessoa se vê
impedida de atender suas necessidades mais básicas de saciar sua fome, vestir-
se adequadamente, receber tratamento médico e educação apropriados, morar
dignamente e participar ativamente da vida social, política e econômica de sua
comunidade. E seria justamente a partir do atendimento dessas necessidades,
denominadas “oportunidades adequadas”, que o ser humano se torna capaz de
moldar seu próprio destino e de influenciar de maneira positiva a vida das demais
pessoas. Isto é, quando a pessoa é possuidora de maior liberdade, aumenta-se
o potencial de cuidar de si mesma e de influenciar o mundo, enquanto agente do
processo de desenvolvimento – e não como mero expectador.
Além dessa concepção, que coloca o ser humano no centro do
desenvolvimento, há outra contribuição relevante, por parte do economista
polonês naturalizado francês Ignacy Sachs, com um destaque maior para a
proteção do meio ambiente. A partir da ideia de sustentabilidade, Sachs defende
a necessidade de um desenvolvimento socialmente includente, ambientalmente
sustentável e economicamente sustentado6. Para sistematizar as questões
econômicas, sociais, ambientais e humanas, preleciona o desenvolvimento
sustentável como aquele fundado na observância de alguns pilares básicos.
De início, baseou-se em cinco critérios (SACHS, 1993, p. 37-38) e
posteriormente, passou a conceber mais dimensões (SACHS, 2002, p. 85-89),
esmiuçadas a seguir: i) social: envolve a ideia de homogeneidade social, ou seja,
um equilíbrio de perspectivas e possibilidade de vida digna a todos, mediante a
promoção do pleno emprego, acesso a serviços sociais e justa distribuição de
renda ; ii) cultural: necessidade de busca pelas raízes endógenas para o
ecodesenvolvimento, por meio de um projeto nacional apto a soluções
específicas à cada localidade; iii) ecológico: envolve a preservação dos recursos
naturais e a preferência pelos recursos renováveis; iv) ambiental: retrata o
respeito ao meio ambiente, em que o progresso humanizado deverá também
considerar as condicionantes ambientais, no intuito de garantir a preservação
intergeracional da natureza; v) territorial: dirigido à obtenção de configurações
urbanas e rurais mais equilibradas; vi) econômica: engloba o gerenciamento
mais eficiente de recursos e de um fluxo de investimentos públicos e privados
com vistas ao desenvolvimento econômico intersetorial equilibrado, com
segurança alimentar, capacidade de modernização dos instrumentos de
produção, razoável nível de autonomia científica e tecnológica e inserção
soberana na economia internacional; vii) política: subdivide-se no âmbito
nacional – o Estado deverá implementar o projeto nacional, em parceria com

6Cf: SACHS, Ignacy. Estratégias de transição para o século XXI. In: BURSZTYN, M. Para Pensar
o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993; SACHS, Ignacy Caminhos para o
Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002; SACHS, Ignacy
Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
1262

todos os agentes atuantes no mercado, por meio de um sistema democrático e


coeso – e internacional.
Sob a perspectiva internacional, o desenvolvimento deverá se basear em
uma gama de instituições e organizações. Neste sentido, o autor menciona a
necessidade de eficiência do sistema de prevenção de guerras da ONU para
garantia da paz, com base na promoção da cooperação internacional, no
princípio da igualdade, no controle institucional efetivo do sistema internacional
financeiro e da aplicação do Princípio da Precaução na gestão do meio ambiente
e dos recursos naturais, enquanto patrimônio global, para prevenção das
mudanças globais negativas, proteção da diversidade biológica (e cultural), e na
promoção de um sistema efetivo de cooperação científica e tecnológica
internacional com a eliminação parcial do caráter commodity da ciência e
tecnologia, também como propriedade da herança comum da humanidade.
No âmbito jurídico, em uma adoção desses pensamentos, Eros Roberto
Grau (2012, p.213) diferencia o quantitativo (o crescimento econômico) do
qualitativo (o desenvolvimento), e enquadra o crescimento econômico como uma
“parcela da noção de desenvolvimento”. Isso porque, para o autor, a ideia de
desenvolvimento implica em um processo de mobilidade social, acompanhado
da elevação do nível econômico e do nível cultural-intelectual comunitário. Neste
mesmo sentido, Pinto Ferreira entende desenvolvimento como um processo
global de mudança social e da economia, calcado em três pilares básicos, a
saber: 1 - aumento da renda per capita; 2 - melhor distribuição dos bens da vida
e 3 - aumento ou aprimoramento do bem-estar dos membros da comunidade,
através da democratização da propriedade, bens e serviços disponíveis à
população e da satisfação das necessidades humanas (FERREIRA, 1993, p. 39-
42).
Sobre essas concepções, interessante a crítica de Gilberto Bercovici
(2005, p. 53), que identifica a possibilidade de existir um crescimento econômico
com aumento da produtividade sem que haja uma melhora nas condições de
vida da pessoa e, neste caso, não haveria o desenvolvimento, mas uma mera
modernização.
Embora os elementos não sejam idênticos, o que é comum aos autores
analisados é a noção de que desenvolvimento não é um elemento estático, pois
se trata de um processo mais amplo e complexo, o qual não se confunde com o
mero crescimento econômico. Muito embora o crescimento econômico seja uma
condição necessária, não é suficiente à sua promoção, visto que o aumento da
produtividade não implica automaticamente em uma melhora das condições de
vida da população.
Esses pensamentos, de forma dialógica, contribuíram também para a
formação de um conteúdo jurídico sobre o desenvolvimento, relacionado à
criação de instituições e organizações que lidam com tema, especialmente no
que toca à sua estrutura normativa. Neste passo, o fenômeno do
desenvolvimento direta ou indiretamente se faz presente em diversos diplomas
jurídicos internacionais7, desde sua primeira menção por meio do Relatório

7Neste sentido, mencionam-se os seguintes: Carta das Nações Unidas assinada em 26 de junho
de 1945 já versava sobre a necessidade de se atingir o progresso social com melhores condições
de vida através da autodeterminação dos povos de forma a estimular o desenvolvimento
econômico e social. A partir daí, as normativas que se sucederam continuaram a se dedicar em
maior ou menor escala ao tema, à exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948; 1º Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - Resoluções 1710 (XVI) e
1263

Brundtland8, apresentada pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o


Desenvolvimento da ONU, em que desenvolvimento é tomado como “aquele que
atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as
gerações futuras atenderem às suas necessidades” (ONU, 1987).
Influenciado por aquele relatório, um dos principais documentos sobre
desenvolvimento é a Resolução 41/128 da Assembleia Geral das Nações Unidas
de 4 de dezembro de 1986, que constitui a chamada Declaração sobre o Direito
ao Desenvolvimento. Em seu artigo primeiro há o reconhecimento enquanto
direito humano inalienável, mas é em seu preâmbulo que se encontra um
conceito multifacetado de direito ao desenvolvimento, enquanto um

processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao


constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os
indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no
desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes.
(ONU, 1986)

A incorporação deste conceito de desenvolvimento também se deu nos


documentos jurídicos e compromissos da comunidade internacional assumidos
posteriormente, por meio dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)
e do Pacto Global, ambos propostos em 2000, relacionados ao desenvolvimento
sustentável e humano; bem como sua continuidade por meio da Agenda 2030
para o Desenvolvimento Sustentável, formulada em 2015, que busca atingir 17
objetivos integrados, indivisíveis, e que equilibram as três dimensões do
desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental (ONU, 2015).
Um aspecto em comum desses documentos é que convocam a sociedade como
um todo para uma participação inclusiva e mais efetiva, na medida em que não
se limitam à atuação estatal.
Sobre a natureza jurídica do desenvolvimento, cumpre indicar que, além
de ser classificado por Paulo Bonavides (2006, p.563) como um direito
fundamental de terceira geração, cuja titularidade pertence à comunidade,
também tem uma afinidade com outros direitos já consagrados. Vale dizer: está
intimamente ligado à formação e consolidação de direitos humanos já
positivados, a exemplo dos direitos previstos no Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais, e Culturais, de 19669, na medida em que o direito
ao desenvolvimento, consoante apontamento de Trindade (1999, p. 270), torna-
se um reforço para a exigência e implementação daqueles direitos.
O direito ao desenvolvimento também está presente no ordenamento
jurídico brasileiro. Em que pese não exista uma definição normativa específica
na Constituição Federal de 1988, o seu conceito está correlacionado aos já

1.715(XV) de 1961; Conferência das Nações Unidas Sobre Comércio e Desenvolvimento


(UNCTAD) de 1964; Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966; II Conferência das Nações Unidas Sobre
Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) de 1968; Convenção Americana de Direitos Humanos
(Pacto de San José da Costa Rica) de 1969; Declaração sobre progresso social e
desenvolvimento; Resolução nº 3.362 sobre Desenvolvimento e Cooperação Econômica de
1975, dentre outros.
8 Relatório intitulado “Nosso Futuro Comum”, mais conhecido como Relatório Brundtland, em

razão da presidência da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento ter sido
exercida por Gro Harlem Brundtland.
9 Destaca-se que referido tratado foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do

Decreto nº591, de 6 de julho de 1992.


1264

conhecidos e positivados direitos econômicos, sociais e culturais. Além disso,


existem diversas menções no próprio texto constitucional, conforme exemplos
elencados a seguir: a) no preâmbulo, reconhecido como importante vetor
interpretativo10, há expressa indicação no sentido de que o próprio Estado
Democrático de Direito deverá garanti-lo; b) o desenvolvimento nacional constitui
um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro (art. 3º, II); c) uma das
competências da União é a elaboração e execução dos planos nacionais e
regionais sobre desenvolvimento econômico e social(art. 21, IX, CF); d) há
previsão de competência concorrente entre os entes federativos para legislar
sobre desenvolvimento (art. 24, IX); e) possibilidade de incentivos fiscais para
fins de promoção do equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre
regiões (art. 151, I); f) estabelecimento do Sistema Nacional de Cultura, que tem
por objetivo o desenvolvimento humano, social e econômico com exercício dos
direitos culturais (art. 216 -A); g) determinação de incentivo ao mercado interno
com o fito de promover o desenvolvimento cultural e sócio econômico, bem-estar
da população e autonomia tecnológica do país. De outro modo, ainda que não
estivesse expressamente previsto, houve sua internalização como decorrência
do mecanismo de incorporação de tratados e compromissos internacionais dos
quais o Brasil é signatário (art. 6º, §2º).
Assim, desenvolvimento pode ser entendido – além de um processo
complexo, que envolve aspectos sociais, econômicos e culturais – também
enquanto um direito humano fundamental com as características da
universalidade, inalienabilidade e indivisibilidade, previsto no Direito
Internacional dos Direitos Humanos e incorporado ao ordenamento jurídico
brasileiro.

CONCLUSÃO

As contribuições dos estudos econômicos sobre desenvolvimento foram


fundamentais para a sua posterior normatização, em especial com a positivação
por meio de documentos jurídicos produzidos no âmbito internacional e nacional,
os quais estão intrinsecamente ligados ao Direito Internacional dos Direitos
Humanos na atualidade.
Embora os elementos não sejam idênticos, o que é comum aos autores
analisados é a noção de que desenvolvimento não é um elemento estático, pois
se trata de um processo complexo, não coincidente com o crescimento
econômico, muito embora este seja uma condição necessária, mas insuficiente
à sua promoção. Neste ponto, importante a compreensão de que o aumento da
produtividade não implica automaticamente em uma melhora das condições de
vida da população. Caso haja esse crescimento sem a respectiva melhora na
qualidade de vida das pessoas haverá uma mera modernização em relação às
técnicas produtivas adotadas, em descumprimento ao escopo de incrementar o
bem-estar de toda a população mediante a distribuição justa dos benefícios daí
resultantes, em consonância com o atual conceito de desenvolvimento adotado

10 Neste sentido, menciona-se o importante voto da ministra Cármen Lúcia, relatora na ADI 2.649,
j. 8-5-2008, P, DJE de 17-10-2008 , ao afirmar que “ Devem ser postos em relevo os valores que
norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e
aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a
elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se
contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988”
1265

pela comunidade internacional e endossada pelo ordenamento jurídico


brasileiro.
Desta forma, desenvolvimento pode ser considerado como um processo
multifacetado, com aspectos econômicos, sociais e culturais e que,
simultaneamente, quando trazido para o campo jurídico, é reconhecido enquanto
um direito humano fundamental. Neste contexto, o Direito Internacional dos
Direitos Humanos torna-se o palco por excelência no qual se advoga a existência
do Direito ao Desenvolvimento, dado o atual cenário de coordenação de esforços
e de incentivo à cooperação entre Estados, empresas transnacionais e a
sociedade civil no plano nacional e internacional.

REFERÊNCIAS

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a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.

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Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

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Companhia Editora Nacional: São Paulo, 1975.

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enfoque interdisciplinar. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.

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(interpretação e critica). 15ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012.

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Originally published: Cambridge: Harvard University,1934. 15th printing, 2010.

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1266

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UN. Our common future, chapter 1: a threatened future. A/42/427, 1987.


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1986.

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Sustentável da Assembleia Geral das Nações Unidas, de setembro de 2015.
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-
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1267

DIREITOS REPRODUTIVOS DA MULHER E O ARTIGO 10 DA LEI DE


PLANEJAMENTO FAMILIAR
WOMEN'S REPRODUCTIVE RIGHTS AND ARTICLE 10 OF THE FAMILY
PLANNING LAW

Dauana Bottoni Vanzela


Eduardo Henrique Magiano Perdigão Lima Cardoso Ferro
Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: O presente discorrerá brevemente sobre os direitos reprodutivos da


mulher a partir do fim do século XIX, quando de sua entrada massiva no mercado
de trabalho. A partir daí, a mulher passou a ter informações e acesso a métodos
contraceptivos que possibilitaram fazer opções quanto à maternidade, temas
como a sexualidade feminina e o planejamento familiar passaram a ser de
decisão da mulher. Diplomas internacionais como Conferência do Cairo sobre
População e Desenvolvimento e IV Conferência Mundial sobre a Mulher
trouxeram em seu bojo os direitos reprodutivos, os quais, apesar de não
expressos na Constituição Federal de 1988, são garantidos de forma implícita
através da garantia do direito à vida, liberdade, igualdade, livre disposição do
próprio corpo, saúde, proteção à maternidade e planejamento familiar. Por fim,
breves críticas ao inciso I e ao § 5°, do artigo 10 da Lei n° 9.623/1996, que elenca
as possibilidades de esterilização voluntária.
Palavras-chave: Direitos reprodutivos. Planejamento familiar.

Abstract: The present will briefly discuss the reproductive rights of women from
the late nineteenth century, when their massive entry into the labor market. From
then on, the woman began to have information and access to contraceptive
methods that made it possible to make choices regarding motherhood, themes
such as female sexuality and family planning became the decision of women.
International diplomas such as the Cairo Conference on Population and
Development and the IV World Conference on Women have brought reproductive
rights to their core, which, although not expressed in the 1988 Federal
Constitution, are implicitly guaranteed through the guarantee of the right to life. ,
freedom, equality, free disposition of one's own body, health, maternity protection
and family planning. Finally, brief criticisms of section I and § 5 of article 10 of
Law n. 9,623 / 1996, which lists the possibilities of voluntary sterilization.
Keywords: Reproductive rights Family planning.

INTRODUÇÃO

As origens da luta feminina referentes à questão reprodutiva remontam às


reivindicações ocorridas no século XIX e início do século XX, momento em que
surgiram no cenário político movimentos pelos direitos femininos, que trouxeram
à tona a questão da maternidade obrigatória (concebida, inclusive, como uma
forma de dominação do homem sobre a mulher) versus a utilização de métodos
contraceptivos (os quais poderiam significar a liberdade da mulher em fazer
opções referentes à maternidade).
Junto com os movimentos femininos na luta pelos direitos, surgiram
reivindicações no sentido da mulher ter controle sobre seu próprio corpo, sua
fertilidade, saúde e família (planejamento familiar), discussão contextualizada
1268

dentro de um processo político de construção da modernidade, da cidadania e


da liberdade.
Todo esse movimento relaciona-se, também, com as mudanças refentes
ao papel da mulher no mercado de trabalho após as Grandes Guerras Mundiais
e, especialmente a partir da década de 90, período em que se verificou o
fortalecimento de sua participação, trazendo consequências em diversas
questões, inclusive quanto à maternidade. Também nesse período, o homem
deixou de ser o único provedor e chefe da família, assim como a mulher saiu do
papel exclusivo de mãe e dona de casa, passando a dividirem as tarefas
referentes ao sustento familiar ou, ainda, em muitos casos, essa
responsabilidade passou a ser tão só da mulher.
Tais questões, também aliadas aos movimentos feministas e a cultura de
valorização da mulher, exerceram um grande impacto sobre a liberdade em optar
pela maternidade ou não. A partir do momento em que a mulher entrou no
mercado de trabalho, passou a sustentar-se, a ser independente do homem, a
ter acesso a métodos contraceptivos e a ter maior liberdade no que tange à sua
sexualidade, passou também a ter liberdade de escolha quanto ao planejamento
familiar e, até, quanto a ter filhos ou não.
Em síntese, a partir de um breve contexto histórico do papel da mulher na
sociedade, de uma análise também breve dos aspectos culturais do
comportamento reprodutivo da mulher moderna, sobre a liberdade no que tange
à maternidade (sob o viés de Amartya Sen) e de considerações sobre os direitos
reprodutivos como direitos humanos e fundamentais, o presente será encerrado
com algumas críticas quanto ao inciso I e o § 5° do artigo 10 da Lei do
Planejamento Familiar (Lei n° 9.263/1996), que regulamenta as hipóteses em
que a esterilização voluntária pode ser realizada.

1. A MULHER E A MATERNIDADE

Partindo do contexto do avanço da industrialização, da urbanização e da


globalização, dado o aumento da atuação da mulher no mercado de trabalho,
nos últimos quarenta anos é possível observar mudanças de comportamento no
que tange à maternidade. Aliado a estes fatores, está o consumo de novas
tecnologias referentes à reprodução (tanto para a contracepção quanto para a
contracepção), o que permite que as mulheres façam suas escolhas quanto à
maternidade (SCAVONE, 2001).
A partir do final do século XIX, com o declínio do poder patriarcal, a mulher
passou a ter mais controle sobre a criação dos filhos e a ter um papel de maior
destaque na família. Contudo, foi com a consolidação da sociedade industrial
que houve a passagem de um modelo tradicional (no qual a mulher possuía tão
só o papel de mãe) para um modelo moderno de maternidade (que significa a
mulher ter outros papéis além do de mãe).
O processo de industrialização e o ingresso da mulher no mercado de
trabalho, notadamente marcado por desigualdades (tanto sociais quanto
sexuais) acabam por deixar clara sua interferência em questões afetas à
maternidade, instaurando-se “a lógica da dupla responsabilidade, que se
consolidou no século XX, com a avanço da industrialização e da urbanização,
recebendo por parte das análises feministas contemporâneas a designação de
‘dupla jornada de trabalho” (SCAVONE, 2001). Dentro de um novo contexto
social, as mulheres assumiram o protagonismo de suas vidas, que deixaram de
1269

girar em torno tão só da família, passando a conciliar família, trabalho e


desenvolvimento pessoal o que, há algumas décadas, não se vislumbrava
possível.
Com a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho e o acesso
à informações e métodos contraceptivos, as mulheres tornaram-se protagonistas
de sua vida, de sua sexualidade e consequentemente de suas opções referentes
à maternidade, o que acabou por gerar uma maior efetividade no controle das
gestações e a reduzir o tamanho das famílias. A partir de 1980, observa-se uma
maior utilização da laqueadura de trompas (meio cirúrgico de esterilização)
especialmente por mulheres de baixa renda (HEILBORN, 2012).
Em suma, a partir do momento em que a mulher mudou seu papel dentro
do âmbito familiar e social saindo do lar familiar para trabalhar a fim de gerar
renda, mais do que nunca percebeu a necessidade de gerir sua sexualidade e
fecundidade, através da concepção planejada.
Nesse contexto, uma das palavras de ordem é liberdade, mais
especificamente sob o viés da liberdade instrumental, conceito este trazido por
Sen (2010) e que se refere a direitos e oportunidades capazes de promover a
aptidões do indivíduo de forma a complementar outros direitos ou oportunidades,
seria, grosso modo, a liberdade das pessoas viverem da forma como desejarem.
Essa autodeterminação individual e liberdade (direitos reprodutivos), nas
palavras de Piovesan (2012, p. 451) compreende “o livre exercício da
sexualidade e da reprodução humanas”, sendo essencial, neste ponto, o poder
de decisão sobre o controle sobre a fertilidade, o que compreenderia os direitos
de “autodeterminação, privacidade, intimidade, liberdade e autonomia individual,
em que se clama pela não interferência do Estado, a não discriminação, a não
coerção e a não violência”, sendo necessárias políticas públicas que garantam
o exercício desses direitos.
Essa conceituação dos direitos reprodutivos, em um paralelo com os
direitos humanos e fundamentais será objeto de análise no próximo tópico,
limitando-se neste ponto à sua conceituação e relação com o contexto.

2. DIREITOS REPRODUTIVOS E DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS

Primeiramente, cumpre afirmar que direitos reprodutivos são direitos


humanos e correspondem àqueles direitos inerentes a todos os seres humanos
independentemente do sexo, raça, origem ou qualquer outra distinção. Quanto
aos direitos humanos, são direitos históricos que visam atender às necessidades
de cada época, elaborados de forma a englobar todas as reivindicações éticas e
políticas que os seres humanos tem ou devem ter perante a sociedade.
De acordo com Piovesan (2012), os direitos reprodutivos estão
intrinsecamente ligados ao direito à saúde e, os direitos humanos relacionados
à saúde sexual e reprodutiva, por sua vez, referem-se a interesses ligados à
vida, sobrevivência, segurança, sexualidade, autodeterminação reprodutiva e
livre escolha da maternidade, saúde e benefícios do progresso científico, não
discriminação, respeito à diferença e acesso à informação para a tomada de
decisões.
Desta forma, a concepção de direitos humanos acaba por gerar novas
categorias de direitos, além da necessidade de políticas públicas para garantir
sua efetividade, o que é formalizado através de acordo e consenso dos entes
públicos. A intervenção proposta pelos direitos humanos deve ser dinâmica e
1270

ocorrer através de ações efetivas que garantam e promovam dos direitos já


consagrados, além de acolher as novas necessidades (VENTURA, 2009).
Assim, reconhecer os direitos reprodutivos como direito humano é
essencial para a construção de direitos e obrigações referentes às funções
reprodutivas, devendo ser observadas diferenças de gênero (lembrando que
este estudo fará referência apenas aos direitos reprodutivos da mulher),
geração, classe, cultura e sociais sendo que, a partir das necessidades avaliadas
a partir desses aspectos seria possível a geração de instrumentos políticos e
normativos de forma a garantir de forma eficaz o exercício de tais direitos.
No plano internacional, os direitos reprodutivos estão previstos desde a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no Plano de Ação da
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo de 1994
e no documento resultante da IV Conferência Mundial da Mulher em 1995, estas
últimas responsáveis pela introdução do conceito de direitos reprodutivos como
atualmente conhecidos.
O Plano de Ação da Conferência do Cairo estabeleceu como direitos
humanos básicos a liberdade de decisão sobre o número de filhos, espaçamento
e a oportunidade de ter filhos, além de garantir o acesso à informação e aos
meios para ter saúde sexual e reprodutiva. Também trouxe avanços no plano
internacional dos direitos humanos ao reconhecer como sujeitos dos direitos
reprodutivos não apenas os casais, mas também adolescentes, mulheres
solteiras, homens e idosos. Estabeleceu também princípios éticos relativos aos
direitos reprodutivos a afirmou que são direitos fundamentais “o controle sobre
questões relativas à sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva, e a decisões
livres de coerção, discriminação e violência” (PIOVESAN, 2012, p. 452).
Já o documento elaborado na IV Conferência de Pequim destaca a
importância de garantir os direitos de autonomia, igualdade e segurança sexual
e reprodutiva das mulheres, tendo estabelecido deveres para que os Estados
reconheçam esses direitos.
Referidos documentos são de grande importância pois reconheceram a
sexualidade e a reprodução como bens jurídicos que merecem proteção e
garantias específicas de forma a garantir a dignidade humana e o
desenvolvimento humano.
A partir do momento em que os direitos humanos são incorporados pela
Constituição, passam a ser direitos fundamentais e a possuir garantias para sua
efetivação. Quanto aos direitos reprodutivos, é necessário identificar dispositivos
legais dentro da legislação pátria que permitam sua aplicação podendo,
inicialmente, serem identificados na Constituição Federal alguns direitos
relacionados a eles, tais como o direito à vida, liberdade, igualdade, à proteção
à integridade física e moral, respeito à intimidade, vida privada, honra, proteção
à maternidade e livre disposição do próprio corpo.
Especificamente quanto aos direitos reprodutivos, a Constituição Federal
estabeleceu direitos fundamentais e sociais que formam um sistema especial de
proteção, estando neles inserido o direito social à proteção à maternidade,
direitos trabalhistas tais como a licença maternidade e assistência gratuita à
criança até seis anos de idade em creches e pré-escolas, direitos referentes à
seguridade social (que garante a proteção à maternidade como um direito
previdenciário e de assistência social, assim como o acesso aos serviços de
saúde, inclusive o acesso à informação e aos meios para decidir e gozar da
saúde sexual e reprodutiva), garante o direito ao planejamento familiar, a que
1271

todos constituam livremente sua família, à igualdade entre homens e mulheres,


o direito de decidir livremente e de forma responsável sobre o número de filhos,
o espaçamento e a oportunidade de tê-los.
O conceito de direitos reprodutivos traz obrigações positivas ao Estado na
medida em que imputa a ele responsabilidade em promover o acesso à
informação e aos meios necessários para viabilizar as escolhas quanto à
reprodução.
Apesar da Constituição Federal trazer todos esses direitos, ainda existem
diversos entraves à sua efetividade e implementação, especialmente daqueles
que dependem da elaboração e efetivação de políticas públicas, sendo possível
concluir que para a efetivação dos direitos é necessário que as garantias legais,
políticas e sociais sejam possibilitadas por estratégias integradas e múltiplas.
No caso dos direitos reprodutivos, estando com ele relacionados o direito
à vida, liberdade, igualdade, proteção da maternidade e ao planejamento
familiar, cumpre ao Estado garantir mecanismos (políticas públicas e leis) que
permitam que referidos direitos sejam garantidos e tenham efetividade.
Brevemente sobre políticas públicas, referido conceito envolve uma série
de ações praticadas pelo Estado (Estado prestacional) com o objetivo de dar
efetividade aos direitos fundamentais, alcançando a finalidade do Estado
Democrático de Direito, sendo pacífica sua compreensão como “meios de
realização do interesse público através da adoção de medidas hábeis a garantir
a implementação e/ou realização dos direitos fundamentais dos administrados”
(SILVA, 2008, p. 4).
A construção de uma política pública envolve o Governo e o Estado,
sendo que a partir daí são construídos dois tipos: as políticas públicas de
governo (que são aquelas que vigoram apenas durante o período do governo
que as instituiu) e as de Estado (que ultrapassam períodos de governo e, mesmo
com mudanças no Poder Executivo, podem ser permanentes).
Regra geral, no contexto da elaboração das políticas públicas, ao Poder
Legislativo compete a decisão sobre quais serão elas, enquanto que a
Administração Pública é responsável por sua execução. No entanto,
considerando que a política pública é, de acordo com Bucci, “um quadro
normativo de ação informado por elementos de poder público, elementos de
expertise e elementos que tendem a constituir uma ordem local” (2002, p. 249),
a Administração exerce um papel de grande destaque na análise dos
pressupostos que são a base da política pública, não mais subsistindo a ideia
clássica de que o governo e o Legislativo traçam suas diretrizes para que, em
um segundo momento, a Administração execute a política pública.
No Brasil, verifica-se, contudo, que as políticas públicas referentes aos
direitos reprodutivos (neles incluídos o planejamento familiar) ainda são
incipientes, necessitando de aprimoramento de acordo com o contexto social.
Ademais, a própria Lei do Planejamento Familiar (Lei 9.263/1996) não é
condizente com as demandas e características da sociedade atual,
considerando o contexto em que a mulher está inserida atualmente, conforme já
mencionado alhures.
Dentro da temática dos direitos reprodutivos está inserido o planejamento
familiar, tratado pela Lei n° 9.263/1996 que, em seu artigo 10 elencou as
possibilidades de realização de esterilização voluntária cirúrgica, podendo se
afirmar que a legislação que prevê a realização do procedimento de esterilização
voluntária (artigo 10 da Lei n.9.263/96), mostra-se em desacordo com o disposto
1272

no artigo 226, parágrafo 7º da Constituição Federal.

3. BREVES CRÍTICAS A ALGUNS PONTOS DO ARTIGO 10 DA LEI 9.263/1996

Quanto à utilização de métodos contraceptivos para realização do


planejamento familiar (ou, qualquer planejamento), até 1979 o acesso à
contracepção no Brasil só era possível por indicação médica que afirmasse que
a gravidez poderia causar riscos à mulher.
No Brasil, é possível afirmar que a luta pelo direito ao planejamento
familiar e o acesso aos métodos contraceptivos teve como mola propulsora o
movimento das mulheres antes e após a Constituinte, fervilhando neste
momento reclamações femininas sobre a falta de alternativas – especialmente
no sistema público de saúde - que permitisse a realização do planejamento
quanto ao número de filhos. Infelizmente, apenas oito anos depois da
Constituição Federal de 1988 é que foi promulgada a Lei n° 9.263/1996 que,
visou assegurar o exercício do planejamento familiar.
Contudo, mesmo após a Lei 9.263/1996, da conquista de inúmeros
direitos pela mulher e das mudanças em seu papel perante a sociedade, verifica-
se ainda na atualidade que o exercício dos seus direitos reprodutivos -
especialmente no que tange ao acesso à esterilização voluntária -, encontra
diversos obstáculos trazidos pelo artigo 10 da Lei do Planejamento Familiar que,
ao invés de atender o objetivo constitucional de permitir o planejamento familiar,
acaba sim por torná-lo dificultoso e demorado.
Por observar a situação de uma parcela de mulheres que, por diversos
motivos, opta pela esterilização voluntária e que, ao buscar concretizar seu
intento, acaba sendo desestimulada e, até de certa forma, impedida de exercer
seus direitos (à vida, liberdade, igualdade, cidadania, dignidade da pessoa
humana, proteção à maternidade, intimidade, honra, vida privada, etc) em razão
dos requisitos trazidos pela Lei 9.263/1996, surgem questionamentos e
inquietações sobre o tema.
Não que o Estado diretamente proíba a esterilização voluntária no SUS,
o que ocorre, na realidade, é que os requisitos formulados pelo legislador, além
de diretamente ter como objetivo desestimular sua prática (previsão contida no
inciso I do art. 10), acaba por dificultá-la ao máximo mesmo após a tomada da
decisão pela mulher.
Por mais que a lei seja expressa em se referir a uma suposta esterilização
precoce, considerando estatísticas quanto à idade em que parcela da população
inicia sua reprodução, o que pode ser precoce para uma mulher, pode não ser
para outra. Referida violação dos direitos trazidos na Constituição Federal e nas
normas de direitos humanos causa inquietude e justifica a pesquisa do tema ante
a necessidade de alterações nas políticas e consequentemente na lei que
regulamenta o tema, de forma a garantir às mulheres o exercício de seus direitos.
Outro ponto do dispositivo que gera discussões é a necessidade de
consentimento do cônjuge para realização do procedimento, o que viola a
liberdade do indivíduo, nela inserida a autonomia corporal. Não é aceitável que
o não consentimento de um dos cônjuges obstaculize a esterilização no outro
uma vez que a esfera de decisão envolve a autonomia corporal daquele que opta
pela intervenção cirúrgica, não competindo a outrem interferir em sua liberdade
de decisão.
Por fim, comprovando a problemática apresentada, atualmente tramitam
1273

duas ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, a de


n° 5.9111 (que visa a declaração de inconstitucionalidade do inciso I e do § 5°
do artigo da Lei n° 9.263/1996) e a de n° 5.0972 (visa a declaração de
inconstitucionalidade do § 5° do artigo da Lei n° 9.263/1996), as quais ainda
aguardam decisão, podendo trazer alterações à Lei do Planejamento Familiar,
deixando-a mais próxima de atender aos anseios da sociedade atual.

CONCLUSÃO

Face ao panorama apresentado no presente estudo, no qual a mulher -


mais especificamente nos últimos quarenta anos -, entrou de forma massiva no
mercado de trabalho e passou a fazer escolhas diferentes das gerações
anteriores no que tange ao exercício de seus direitos reprodutivos, ganhou
destaque a discussão sobre o planejamento familiar, políticas públicas sobre
este tema e a Lei 9.263/1996.
Mudanças ocorridas na segunda metade do século XX até os dias atuais
(especialmente mudanças no papel da mulher na sociedade), afetaram questões
referentes à sexualidade, reprodução e maternidade, alterações estas
relacionadas à busca por relações de gênero mais igualitárias. Com o acesso à
informação sobre os diversos métodos contraceptivos, foi possível à mulher
dissociar a reprodução da sexualidade e passar a fazer escolhas quanto à
maternidade e reprodução.
No campo do direito internacional, a Conferência do Cairo sobre
População e Desenvolvimento e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher
fizeram referência expressa aos direitos reprodutivos, no direito pátrio, a
Constituição Federal, de forma indireta, os protegeu através da tutela do direito
à vida, saúde, liberdade, igualdade, planejamento familiar, proteção à
maternidade, entre outros, sem, contudo, fazer referência à nomenclatura
“direitos reprodutivos”.
Apesar da Constituição Federal trazer esse rol de garantias que tutelam
os direitos reprodutivos (apesar de não ter dado esse nome) e prever em seu
artigo 226, § 7° o direito ao planejamento familiar, apenas oito anos depois da
Constituição Federal de 1988 é que foi promulgada a Lei n° 9.263/1996.
Mesmo após a promulgação desta Lei e da conquista de inúmeros direitos
pela mulher, verifica-se, ainda, que o exercício dos seus direitos reprodutivos
quanto ao planejamento familiar e ao exercício de seu direito de liberdade quanto
à maternidade encontra diversos entraves, especialmente no que tange à
esterilização voluntária. O artigo da Lei n° 9.263/1996, ao invés de permitir o
planejamento familiar através da esterilização voluntária, acabou por dificultar
sua utilização, criando diversos entraves e obstaculizando o que era para ser um
direito.
O Brasil ainda é bastante carente quanto à elaboração e execução de
políticas públicas que versem sobre o planejamento familiar a partir desse novo
contexto social, sendo necessário que os Poderes Executivo e Legislativo se
atentem a essas novas necessidades e atuem da forma adequada. Enquanto
isso não acontece, tramitam no Judiciário duas ações diretas de

1 ADI n° 5.911, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB, tendo como relator o
Ministro Celso de Mello.
2 ADI n° 5.097, proposta pela Associação Nacional de Defensores Públicos – ANADEP,
tendo como relator o Ministro Celso de Mello.
1274

inconstitucionalidade que visam sejam declarados inconstitucionais o inciso I e


o § 5° do artigo 10 da Lei 9.263/1996, o que só confirma a necessidade de
adequação desta lei ao atual contexto social e posição da mulher na sociedade.

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1276

DITADURA DA LOUCURA: DO MODELO MANICOMIAL A ATENÇÃO


PSICOSSOCIAL
DICTATORSHIP OF MADNESS: FROM THE ASYLUM MODEL TO THE
PSYCHOSOCIAL ATTENTION

Helena Raia Bottura


Pedro Augusto de Castro Simbera
Orientador(a): Heloisa Aparecida de Souza

Resumo: O instituto da medida de segurança visa a proteção, dentro do sistema


penal, do autor de ato ilícito que possua deficiência de natureza mental.
Entretanto, existem muitas discussões, tanto na psicologia como no direito,
sobre qual seria a forma mais adequada de garantir esta proteção. A pesquisa
apresentada tem por objetivo elaborar uma análise das medidas de segurança
frente aos desafios para a efetivação da proteção dos infratores. Aderiu-se, para
tanto, o filósofo Michel Foucault, com fim de averiguar de forma crítica a suposta
“ditadura” da definição de loucura. Para realizar a análise pretendida, utiliza-se
o método hipotético-dedutivo e o bibliográfico, haja vista que o estudo proposto
possui como principal embasamento teórico a literatura de Foucault para elucidar
os problemas apresentados. Dessa forma, a análise pretendida será
desenvolvida na ótica dos direitos fundamentais e de acordo com a perspectiva
dos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos acerca do
assunto.
Palavras-chave: Reforma psiquiátrica. Convenções internacionais. Função
social.

Abstract: The security measure institute aims to protect, within the criminal
system, the perpetrator of an illicit act that has a mental disability. However, there
is much discussion, both in psychology and in law, about what would be the most
appropriate way to ensure this protection. The current research aims to elaborate
an analysis of the security measure facing the challenges for the effective
protection of the violators. For this purpose, the philosopher Michel Foucault was
used, in order to critically investigate the supposed "dictatorship" of the definition
of madness. To perform the intended analysis, the hypothetical-deductive and
bibliographic method is used, given that the proposed study has as its main
theoretical basis the literature of Foucault to elucidate the problems presented.
Thus, the intended analysis will be developed from the perspective of
fundamental rights and in accordance with the perspective of international human
rights treaties and conventions on the subject.
Keywords: Psychiatric reformation. International convention. Social function.

INTRODUÇÃO

A medida de segurança visa a proteção do infrator que possua um


transtorno mental, tido como inimputável para o Direito Penal, de modo que está
previsto a exclusão da culpabilidade daquele que, em virtude de enfermidade
mental era, ao tempo da ação ou omissão, incapaz de compreender a ilicitude
do fato praticado, conforme o artigo 26 do Código Penal Brasileiro (BRASIL,
1940). Assim, a principal finalidade dessa modalidade de sanção penal é
cessação da enfermidade psíquica que inabilita a convivência do agente em
1277

sociedade, de tal forma que uma vez reinserido no meio social, não volte a
delinquir. A medida de segurança apresenta em seu bojo duas modalidades,
detentiva e restritiva, sendo que a primeira tem como característica principal a
internação do agente e, a segunda o tratamento ambulatorial sob condição de
tratamento médico adequado (MASSON, 2011). Outrossim, importante ressaltar
que, para fins curativos o juiz poderá regredir o agente de modalidade, ou seja,
o infrator inicialmente inserido em fase ambulatorial passa a cumprir medida de
segurança detentiva. Ao revés, destaca-se a desintegração progressiva da
medida de segurança (detentiva para a restritiva) que, por sua vez, visa a
preparar o agente para a reintegração da vida em sociedade (MASSON, 2011).
Destaca-se, portanto, o papel do Estado como tutor dos infratores
considerados incapazes, que apresentam sofrimento mental. Ocorre que, desde
logo nota-se a ineficiência do Estado referente a assumir tal tutela. Observa-se
que o Código Penal Brasileiro, no artigo 97, § 1º, não determina tempo exato
para o cumprimento da medida de segurança, prevendo apenas o prazo mínimo
de um a três anos (BRASIL, 1940). No mais, constata-se, nos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico, diversas afrontas à dignidade e direitos
humanos (CORDEIRO E LIMA, 2013) tais como a superlotação dos institutos,
precariedade do sistema, exclusão social, entre outras.
A partir disto, o presente trabalho tem como objetivo analisar as medidas
de segurança com lócus na implementação e aplicação deste instituto no Direito
brasileiro. Aderiu-se, portanto, como repertório teórico principal o filósofo Michel
Foucault, com fim de averiguar de forma crítica a visão de normal e patológico
na atualidade e a possível “ditadura” da definição de loucura. Para a realização
da análise pretendida, utilizamos o método hipotético-dedutivo e o bibliográfico.
Dessa forma, a análise pretendida será desenvolvida na ótica dos direitos
fundamentais e de acordo com a perspectiva dos Tratados e Convenções
Internacionais de Direitos Humanos acerca do assunto.

FUNÇÃO SOCIAL PROPOSTA PARA AS MEDIDAS DE SEGURANÇA

Em um primeiro momento, a Medida de Segurança no Brasil parece


utópica, haja vista que o Código Penal Brasileiro assegura cumprimento da pena
privativa de liberdade em ambiente especializado para tratar as enfermidades
mentais do infrator (BRASIL, 1940).
No entanto, é notável a falha na função social1 do presente instituto, uma
vez que existem diversos defeitos que desrespeitam os direitos humanos.
Ressalta-se a inexistência do tempo do cumprimento da medida de segurança
que, de acordo com a previsão do Código Penal brasileiro, não há um tempo
máximo para permanecer sob tutela do Estado (BRASIL, 1940). Assim, antes de
decretar o término da pena é analisado o caráter psicológico do agente, de modo
que, em decorrência do lapso temporal indefinido, tais hospitais enfrentam
superlotação e precariedade do sistema. Outro fator pertinente da superlotação
é o fato de que mesmo com o término do tratamento, os custodiados
permanecem nos hospitais em razão de não terem para onde ir.
Ademais, há uma inerente exclusão social no instituto e na aplicação das
medidas de segurança, como trataremos logo adiante, pois constata-se que as
violações dos direitos superam o que o direito positivado e objetivo tem a respeito
1“Princípio da função social, como expressão da ‘diretriz da socialidade’ [sic], indica um rumo a
seguir, oposto ao do individualismo predatório “ (MARTINS-COSTA, 2005).
1278

das medidas de segurança, caracterizando-se uma completa incerteza quanto à


cessação da periculosidade.
Além disso, abordamos em tópico específico a imposição do transtorno
psíquico sobre aqueles indivíduos não aceitos na sociedade, uma vez que, como
constatado por Foucault em cada momento, a sociedade atribui uma carga
valorativa a terminologia e ao conceito de loucura (FOUCAULT, 2008), visto que
sofreram mutações e ocasionaram segregações como no “Holocausto
Brasileiro”. Este Holocausto adveio da criação do conhecido sanatório
denominado “Colônia” em 1903, hospício da cidade de Barbacena, Minas
Gerais, que aqui trabalharemos como um dos principais incidentes de violações
generalizadas aos direitos humanos, pois, já nos primeiros momentos do
“Colônia” foi registrada uma superlotação, o que o transformou em um verdadeiro
“depósito” de pessoas. A capacidade prevista do hospital era apenas 200
pessoas, porém, em 1960, registrava cerca de 5 mil pessoas. De modo que
gerou uma das maiores infrações que já se teve aos direitos humanos no Brasil
(ARBEX, 2013).
Logo, aqui buscaremos demonstrar como as medidas de segurança
devem também atender a sua função social, visto que todo o direito deve estar
sempre atento a realidade social de sua época. Assim como uma casa ou imóvel
abandonado não atende à finalidade ao qual foi proposta, temos que as medidas
de segurança devem atender a função de ressocializar e proteger, amparando o
indivíduo que tem determinado transtorno mental.

GARANTIAS DOS DEFICIENTES MENTAIS NOS TRATADOS E


CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

Através de suas respectivas comissões, as Convenções Americana sobre


Direitos Humanos e dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (BRASIL,
2009) lançaram seus enunciados que, após serem positivos no Direito brasileiro,
servirão como princípios norteadores dos direitos humanos e fundamentais.
Embora não apresentem proteções específicas às pessoas com deficiência
mental, tais organismos internacionais garantem a não discriminação e a
igualdade, como a busca por impedir que novos Holocaustos voltem a acontecer
(ARBEX, 2013). Todavia, ainda há o que ser analisado dentre os tratados e
outras convenções.
No tocante aos tratados internacionais de direitos humanos, é possível
citar disposições de tais normas internacionais tanto no sistema interamericano
de direitos humanos, como no sistema global de proteção. Por exemplo, vale
referenciar o artigo 1º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica) (OEA. 1969), que
dispõe sobre as obrigações gerais dos Estados ao respeito dos direitos
fundamentais de seus indivíduos:

“Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os


direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno
exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem
discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem
nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer
outra condição social” (grifo nosso).
1279

No âmbito do sistema global de proteção aos direitos humanos, é


importante destacar as proteções específicas garantidas pela Convenção sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (conhecida também como
Convenção de Nova York) (BRASIL, 2009). Tal tratado ganha importância no
direito brasileiro, uma vez que foi o primeiro tratado internacional de direitos
humanos a ser incorporado no direito interno com status de emenda
constitucional, segundo o artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal. No sentido do
presente resumo, vale ressaltar a proteção à integridade física e mental da
pessoa, em igualdade de condições com as demais pessoas, conferida pelo seu
artigo 17. Além disso, salienta-se os princípios protetivos gerais da Convenção,
previstos em seu artigo 3º:

“a) O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive


a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das
pessoas; b) A não-discriminação; c) A plena e efetiva participação e
inclusão na sociedade; d) O respeito pela diferença e pela aceitação
das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e
da humanidade; e) A igualdade de oportunidades; f) A acessibilidade;
g) A igualdade entre o homem e a mulher; h) O respeito pelas
capacidades em desenvolvimento de crianças com deficiência e
respeito pelo seu direito a preservar sua identidade” (grifo nosso)

Considerando as mazelas experimentadas pelos indivíduos que cumprem


medida de segurança, conforme discutido acima, fica evidente que o Brasil
continua distante de cumprir plenamente essas indicações internacionais.

“DITADURA” DA DEFINIÇÃO DE LOUCURA - ANÁLISE DOS ESTUDOS DE


FOUCAULT

Neste momento é fundamental trabalharmos os conceitos e os estudos


de Foucault, com a sistematização do seu pensamento histórico para falar da
“loucura”, mas que é importante salientar que na área da saúde, devido aos
estereótipos e preconceitos, o termo “loucura” não é mais utilizado. Foucault não
buscou defini-la, mas sim analisar os estudos e discursos de cada época
(PROVIDELLO e YASUI, 2013). Assim sendo, discorre sobre o surgimento dos
primeiros loucos, advindos de uma segregação social e da exclusão, mostrando
a construção dos hospitais na idade clássica para os leprosos, suicidas,
libertinos, entre outros indivíduos que não eram aceitos na sociedade
(FOUCAULT, 2008).
Para tanto, Foucault investiga a construção do que temos hoje como
doença mental, e deste modo traça uma linha de continuadas exclusões sociais
(FOUCAULT, 2008). Ocorreu em determinada época os estudos desses
indivíduos para o avanço da medicina, ficando marcada pela catalogação e
classificação dessas pessoas em nome da ciência. Deste contexto surge a ideia
de mundo correcional, visando corrigir aquela situação (que inicialmente era
realizada por castigos), através da cura com os remédios e o desenvolvimento
da medicina e a adaptação da punição (FOUCAULT, 2008).
A loucura ganhou conotação de incapacidade para aqueles indivíduos
que, assim como os pobres, não conseguiam se manter. Diante disso, formou-
se uma estrutura social, construindo-se a loucura como algo que não existe por
si só, formada daquilo que a sociedade considerava como não razão, como
desatino, aberração ou aquilo que foge dos padrões. Logo, a internação forçada
1280

e generalizada inicia-se como se óbvio fosse, por não haver desenvolvimento


científico suficiente. Além do impacto individual, vivenciado por essas pessoas
que perderam a liberdade, houve o impacto social, visto que esse volume de
pessoas que estavam ali inseridas perdeu totalmente sua capacidade produtiva,
gerando prejuízo ao sistema como um todo.
Deste modo, o que seria loucura? Não se trata a loucura como oposta à
razão, dado que não houve um processo natural para entender o que é a loucura,
mas sim, houve uma criação e uma imposição, que foi sendo adaptada ao longo
dos anos para aqueles indivíduos que não se encaixam nos interesses sociais.
É certo que sempre houve exclusão social, mas diante de determinados
cenários, haveria de se justificar os motivos de determinadas exclusões, de
modo que, em diversas épocas, as internações eram motivadas sob o argumento
de loucura, além de que os séculos 20 e 21 estão marcados pelas medidas de
segurança e seus hospitais de custódia.
Abordamos o tema como a “Ditadura da Loucura”, pois, assim como no
governo que comanda um Estado de acordo com suas vontades ou com as do
grupo político ao qual pertence, marcado pela supressão dos direitos civis
(RAMOS, 2019), na medida de segurança há aqueles que impõem e exercem o
poder, que em cada momento narrado neste trabalho tiveram em seu crivo o
poder para dizer quem era o louco. Neste sentido, este tipo de poder opressivo
geralmente é marcado por afrontas aos direitos humanos das pessoas mais
vulneráveis.

REFORMA PSIQUIÁTRICA

A necessidade da reforma psiquiátrica adveio dos diversos incidentes que


marcaram o cenário do tratamento dos indivíduos, que na época eram taxados
como aqueles que eram doentes mentais. De tal forma, tem-se como marco para
essa temática, o surgimento do movimento do Sistema Único de Saúde (SUS),
frutos de manifestações populares que questionavam o modelo manicomial,
assim esses movimentos estavam visando extinção daqueles hospitais que não
atendiam a função a qual eram propostos, como exemplo a criação do “Colônia”.
Diante deste cenário, pessoas como o jornalista Hiram Firmino foram levadas a
relatar as barbaridades daquele hospício (registrado no livro “Os porões da
loucura”). Vale citar também passagem do livro Holocausto Brasileiro, de Daniela
Arbex (2013), que foi incentivada a narrar os incidentes ocorridos:

“Hiram passou o dia fazendo entrevistas. Ouviu pessoas que foram


internadas apenas porque tinham perdido a carteira e ficado sem os
documentos. Outras foram pegas usando maconha e levadas para lá.
Constatou, ainda, a falta de critérios médicos para as internações, a
ausência de voz dos pacientes e a impotência diante do sistema. ”

Este era o reflexo e o fruto do contexto da época, haja vista que os


indivíduos que ali estavam eram aqueles que simplesmente não se encaixavam
na sociedade, de acordo com a visão daqueles que detinham o poder, sendo
possível demonstrar, a partir disto, a importância da história da loucura para
Foucault.
Por não haver a concepção democrática e naturalizada da loucura, esses
detentores do poder deram início a uma série de internações, que foram
emanados efeitos entre os outros agentes hierarquicamente inferiores. Deste
1281

modo, critica-se fortemente a ocorrência desta “ditadura da loucura” que, com os


seus respingos opressivos, ocasionou a superlotação do hospício referido, bem
como as mais diversas afrontas aos direitos humanos em toda a sua história.
Foi o que ocorreu com o “Colônia”, advindo do comando de internação
compulsória, os subordinados continuaram até perderem o controle da
capacidade com a tentativa de retirar as pessoas inaptas do convívio em
sociedade. Dado todo o exposto, surge como precursor da mudança, a lei nº
10.216/01 (BRASIL, 2001), que cuida da reforma psiquiátrica, visando
atualmente sair do panorama da medicação e ir para análise biopsicossocial,
esta que consiste na busca por estabilidade desses indivíduos utiliza-se das
atividades psicopedagógicas que, através da arte realizam tratamento, por
exemplo, o ilustre artista Van Gogh que buscava refúgio na pintura.
A despeito do exposto, a arte está ligada a razão, a capacidade de
exprimir suas emoções e sensações, como se o indivíduo possuísse em sua
mente um muro, em que de um lado era a razão e de outro a desrazão, o
indivíduo era tido como louco por estar com mais frequência no lado da
desrazão. Assim, a arte é em sua concepção ampla a maneira para ligar o
indivíduo ao lado da razão e dessa forma se expressar através dela. (BRASIL
2009).
Assim, podemos considerar que a Reforma Psiquiátrica teve o objetivo
de fazer a transição do modelo manicomial para o modelo Psicossocial de
atenção à pessoa que sofre de algum transtorno mental, priorizando sua
convivência social e lançando mão de internações somente quando o indivíduo
coloca em risco sua vida e a de outros. Deste modo, o modelo detentivo que
vigora nas medidas de segurança precisa ser visto com atenção.

CONCLUSÃO

Não há ainda resposta à altura do problema aqui abordado, de modo que


visou analisar os aspectos do direito interno e externo, e é notável a falta
proteção desse tema. Como também, frente as políticas de higienização, nota-
se a difícil tarefa de buscar novos meios para um grande problema estrutural e
histórico. Deste modo, convém analisar que a ideia de ser necessário o
surgimento de uma lei para estabelecer o que claramente o indivíduo não poderia
fazer, como é o caso da utilização das medidas de segurança como exclusão
dos indivíduos, não demonstra que a sociedade evoluiu, isso desde a ideia de
Foucault. Na verdade, a lei funciona como forma de ataque aos efeitos e não à
causa, dado que o problema deve ser tratado através da educação, visando o
convívio harmônico e democrático. Embora o exposto, reconhecemos o avanço,
ainda que tímido, trazidos pela reforma psiquiátrica, devendo ser analisado como
um caminho para se chegar a uma sociedade inclusiva e que possa, através de
políticas públicas bem estruturadas, tratar e amparar esses indivíduos
acometidos por deficiências mentais, e não reiterar a histórica exclusão. Essa
correção poderia ser melhor amparada, não pelos hospitais de custódias, os
quais constata-se sua precariedade e insalubridade, mas sim pelos Conselhos
de Atenção Psicossocial (CAPS), pois de fato a análise biopsicossocial do
indivíduo é um avanço, bem como a atuação multidisciplinar que é promovida
nestes locais.
No entanto, há de se pensar em políticas de infraestrutura para alterar o
panorama de internações compulsórias, para chegarmos ao ponto de investir em
1282

sistemas de cuidado dos indivíduos sem desvinculá-los de seus familiares, estes


que acabam não tendo outro lugar se não o hospital de custódia, criando uma
dependência (DIOGO, 2012). Tal situação justificaria a necessidade de analisar
a viabilidade dos CAPS tipo III, nos quais o indivíduo poderá ter acesso a
internações por curto prazo em momentos de crise (BRASIL, 2015 e BRASIL,
2017).
Não se defende aqui a liberdade plena do indivíduo, pois há decerto
a necessidade de amparar essas pessoas, porquanto não têm elas a potencial
consciência da ilicitude de seus atos. Por este motivo queremos minimizar os
efeitos das internações compulsória por tempo indeterminado sob a
argumentação da cessação de periculosidade, acabando por serem equiparadas
a personificações de prisões perpétuas (DIOGO, 2012). Diante disso, é
necessário evitar os prejuízos causados, como exemplo a dificuldade de
inserção na sociedade e conseguir exercer alguma profissão, posteriormente.
Ademais, não podemos sacrificar os direitos coletivos frente aos
direitos individuais daqueles indivíduos submetidos às medidas de segurança,
devendo haver uma análise e uma efetiva aplicação, pois não se pode negar as
completas violações aos direitos humanos frente a esses indivíduos, existindo
uma necessidade histórica de correção de tais paradigmas, principalmente na
volátil definição da loucura.

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EDUCAÇÃO NEGRA: UMA ANÁLISE SOBRE O INGRESSO DE PESSOAS


NEGRAS NOS CURSOS SUPERIORES DE DIREITO PELO SISTEMA DE
COTAS NO ESTADO DE MINAS GERAIS
BLACK EDUCATION: AN ANALYSIS OF THE ADMISSION OF BLACK
PEOPLE TO HIGHER LAW COURSES BY THE QUOTA SYSTEM IN THE
STATE OF MINAS GERAIS

Wesley Bartolomeu Fernandes de Souza


Orientador(a): Caio Augusto Souza Lara

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise sobre o
ingresso de pessoas negras nos cursos superiores de Direito no estado de Minas
Gerais, bem como a efetividade do sistema de cotas. Além disso, discute-se
também sobre os dilemas enfrentados pelos que usufruem desse sistema.
Buscou-se demonstrar a sua validade, além da grande importância frente ao
aspecto de garantir um dos direitos humanos fundamentais: o da Educação. Tal
direito será defendido com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos
e na Constituição Federal, sob a ótica de trazer um aspecto também de
igualdade. Além disso, será demonstrada a necessidade de se adotarem
políticas de ações afirmativas como forma de garantir a igualdade entre todos.
Palavras-chave: Cotas raciais. Direito. Educação.

Abstract: This paper aims to analyze the entry of black people in law courses in
the state of Minas Gerais, as well as the effectiveness of the quota system. In
addition, we also discuss the dilemmas faced by those who use this system. It
sought to demonstrate its validity, in addition to its great importance in relation to
the aspect of guaranteeing one of the fundamental human rights: that of
Education. This right will be defended on the basis of the Universal Declaration
of Human Rights and the Federal Constitution, from the perspective of bringing
an aspect of equality as well. In addition, the need to adopt affirmative action
policies as a way of guaranteeing equality among all will be demonstrated.
Keywords: Racial quotas. Right. Education.

INTRODUÇÃO

O tema-problema da pesquisa que se pretende desenvolver é o estado e


efetividade do sistema de cotas nos cursos superiores de Direito em Minas
Gerais, bem como a situação das pessoas negras presentes nesses cursos. O
interesse pela presente pesquisa surgiu a partir da constatação de que os negros
ainda estão em um número menor nas universidades, em especial nos cursos
mais prestigiados, como o Direito, Engenharia e Medicina.
O objetivo geral do trabalho é analisar como tem sido o ingresso e
permanência de pessoas negras nos cursos superiores de Direito em Minas
Gerais utilizando o sistema de cotas.
O problema objeto da investigação científica proposta é: as ações
afirmativas, por meio do sistema de cotas raciais têm promovido a inclusão social
dos afrodescendentes, do negro brasileiro?
A partir das reflexões preliminares sobre o tema, é possível afirmar
inicialmente que as ações afirmativas por meio do sistema de cotas raciais, em
tese, têm buscado a inclusão social dos negros e afrodescendentes, entretanto,
1285

lacunas são encontradas e elas costumam não ter total eficiência como deveriam
e tornam em algumas vezes, ineficaz a inclusão destes.
A pesquisa que se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-
sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação
de Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-projetivo. O raciocínio
desenvolvido na pesquisa será predominantemente dialético.
Quanto à natureza dos dados, serão fontes primárias: dados extraídos de
entrevistas, de documentos oficiais, legislação, jurisprudência, dados
estatísticos, informações de arquivos.
Serão dados secundários livros, artigos, artigos de revistas e jornais,
doutrina, teses e dissertações especializadas sobre o tema.
De acordo com a técnica de análise de conteúdo, afirma-se que trata-se
de uma pesquisa teórica, o que será possível a partir da análise de conteúdo dos
textos doutrinários, normas e demais dados colhidos na pesquisa.

1. MARCO TEÓRICO

Abdias do Nascimento, professor emérito na Universidade do Estado de


Nova York, em Buffalo, tendo fundado a cadeira de Cultura Africana no Novo
Mundo no Centro de Estudos Porto-riquenhos. Doutor Honoris Causa pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal da Bahia. Ex-
deputado federal e senador da república. Ativista dos direitos das pessoas
negras. É um dos signatários do “Manifesto em favor da Lei de Cotas e do
Estatuto da Igualdade Racial”, além de autor de diversos Projetos de Lei que
evidenciam sua luta contra o racismo.

Numa época em que não existia a noção de ‘ação afirmativa’ ou de


políticas públicas específicas voltadas ao atendimento das
necessidades da população afrodescendente, Quilombo trazia uma
série de demandas nesse sentido, como a de bolsas para alunos
negros nas escolas secundárias e nas universidades [...] a valorização
e o ensino cultural de origem africana. (NASCIMENTO, 2003).

A teoria conceitual proposta pelo autor procura demonstrar que o racismo


é algo que evidentemente está incutido na sociedade e que traz consequências
danosas aos que são vítimas dele. O autor busca as raízes históricas de todo o
processo histórico do qual o negro esteve sujeito e como isso interferiu no atual
cenário.
Logo, a ideia proposta é a de que sejam buscadas maneiras de mitigar os
impactos trazidos pela prática do racismo e dos fatores históricos, e propõe que
sejam criadas formas que possibilitem a reinserção dos negros no atual cenário.

2. CONTEXTO HISTÓRICO DO NEGRO NO PRIMIERO CÓDIGO PENAL

O negro foi em grande parte, criminalizado, e tal constatação encontra-se


até mesmo presente em ações tomadas pelo governo em anos anteriores. O
Código Penal de 1890 trazia consigo uma espécie de branqueamento da raça
brasileira, e proibia as manifestações da cultura negra, como a capoeira, a
feitiçaria, o curandeirismo etc., isto é, foram consideradas práticas criminais.
Segundo Flauzina (2008), “o Código cuidou de regulamentar e qualificar
como delito o ócio, mesmo o forçado, como é caso de negro(a)s
1286

desempregado(a)s e sem qualquer possibilidade de uma vida digna.” Além


disso, diversos outros fatores contribuíram para tal discrepância.

3. GARANTIA DOS DIREITOS À EDUCAÇÃO NA LEGISLAÇÃO NACIONAL E


INTERNACIONAL

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma em seu artigo 26º


que todo ser humano tem direito à educação. Logo, deve-se prezar por respeitá-
lo e buscar formas de garanti-lo a todos os indivíduos.
Ademais, a Constituição da República Federativa do Brasil, assegura no
artigo 205 que a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.
Daí salienta-se que o Estado tem o dever de efetivar o direito supracitado.
Tendo em vista o contexto histórico que o negro enfrentou, ressalta-se que o
Estado deve garantir formas de inclusão dessas pessoas nos diferentes âmbitos
sociais.
Existem argumentos que contrariam a implementação das cotas raciais,
e políticas de ação afirmativa. Alguns indivíduos manifestam-se contrários à
implementação do sistema de cotas, gerando grandes polêmicas, como por
exemplo o julgamento do Recurso Extraordinário (RE 597285) no STF, em 2012.
Os ministros da suprema corte do país, em sua maioria negaram o recurso e
reconheceram a constitucionalidade do sistema.
Como conclusão parcial do trabalho, tem-se que existem fraudes no
sistema de cotas raciais, mas elas têm sido eliminadas aos poucos por meio de
comissões especiais, algumas formadas inclusive por pessoas negras, e outras
medidas tomadas pelas universidades públicas situadas no Estado de Minas
Gerais. Embora tais medidas estejam sendo tomadas, as pessoas negras ainda
são minoria nos cursos superiores de Direito.

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1288

O CASO HE JIANKUI: UMA ANÁLISE JURÍDICA SOB UM OLHAR BIOÉTICO


HE JIANKUI CASE: A LEGAL ANALYSIS UNDER A BIOETHIC LOOK

Henrique Infante Herminio


Ana Carolina Gabriel Ferreira Gomes
Orientador(a): Valter Moura do Carmo

Resumo: O presente artigo faz uma análise dos limites éticos em pesquisas
genéticas, especialmente em relação à pesquisa desenvolvida por He Jiankui na
China. Os resultados de seus estudos geraram grandes debates no campo da
Ciência quando de sua apresentação em uma conferência em Hong Kong, em
novembro de 2018, ao comunicar ter modificado os genes de dois embriões,
deixando-os imunes ao vírus HIV. Enfoca-se na ideia inicial da Bioética como um
ramo da ética que deve salvaguardar a vida humana e princípios fundamentais
em experimentos que ultrapassem tais limites. Para tanto, a pesquisa utilizará
um delineamento bibliográfico e exploratório, a fim de discutir o importante papel
dos avanços da biotecnologia no contexto social e as implicações da pesquisa
do Cientista Chinês em questões relativas à eugenia, impactos sociais e
biológicos sob um aspecto subjetivo que visa o aperfeiçoamento da espécie
humana.
Palavras-Chave: Bioética. Cientista He Jiankui. Limites éticos.

Abstract: This article provides an analysis of ethical limits in genetic research,


especially in relation to the research developed by He Jiankui in China. The
results of his studies generated major debates in the field of science during his
presentation at a conference in Hong Kong in November 2018, when
communicating to have modified the genes of two embryos, leaving them immune
to the HIV virus. It focuses on the initial idea of bioethics as a branch of ethics
that must safeguard human life and fundamental principles in experiments that
exceed such limits. To this end, the research will use a bibliographic and
exploratory design, in order to discuss the important role of biotechnology
advances in the social context and the implications of Chinese Scientist research
on issues related to eugenics, social and biological impacts from a subjective
point of view which is aimed at the improvement of the human species.
Keywords: Bioethics. Scientist He Jiankui. Ethical boundaries.

INTRODUÇÃO

A possibilidade de se alterar o genoma de seres vivos suscita inúmeros


debates sociais, éticos e muitas vezes políticos. Do ponto de vista da engenharia
genética, o debate não se mostra tão novo assim. Em 1866, os estudos do
cientista Gregor Mendel, sobre recombinações envolvendo ervilhas, foram de
grande contribuição para as várias descobertas na seara genética e permitiram,
em 1970, manipular os genes de várias espécies, principalmente de bactérias e
vírus. No entanto, com a descoberta da tecnologia CRISPR-Cas9, alterou-se, e
muito, o modo como se realizam tais experimentos e como estes são vistos sob
a perspectiva da bioética.
A técnica CRISPR consiste em uma área do DNA bacteriano que
desempenha o papel de reconhecer um material genético estranho a ele e, com
a ajuda da específica enzima Cas9, é capaz de eliminar ou até criar sequências
1289

de filamentos genéticos desejados. A partir disso, a Cas9 é responsável por


clivar o filamento exógeno e com isso cientistas a usam para modificar os
genomas, introduzindo a sequência genética desejada. (LINS; MELLO;
GONÇALVES, 2018).
São, dessa forma, indiscutíveis os benefícios e inovações que os avanços
científicos produzem à humanidade. Por outro lado, algumas medidas elevam a
discussão no âmbito ético e jurídico para saber se foi promovida de maneira a
respeitar vontades e valores morais de cada participante ou, ainda, primou pelo
bem do paciente, levando em consideração os riscos do procedimento.
Diante da atual tecnologia utilizada, em novembro de 2018, em uma
conferência na Universidade de Hong Kong, o pesquisador chinês He Jiankui
afirmou ter alterado os embriões de sete casais chineses, sendo que apenas um
dos sete resultou na efetiva fertilização e, posteriormente, na gestação das
gêmeas Lulu e Nana. Tal feito foi motivado para criar uma geração de pessoas
resistentes ao vírus HIV (vírus da imunodeficiência humana) e, justamente diante
da técnica CRISPR-Cas9 foi realizado o experimento.
No caso, ocorrido no país oriental, aplicou-se o método CRISPR
possivelmente durante a fertilização in vitro, acrescentando-se, ao final do
processo, a enzima Cas9 para inativar o vírus da Imunodeficiência nos então
saudáveis embriões. Com tal método, fica evidente que a conduta colide com a
integridade e a diversidade da composição genética natural das espécies, pois
é possível que certas características gênicas não desejáveis sejam passadas às
futuras gerações, trazendo efeitos inesperados.
A questão aqui exposta, portanto, consiste em um problema concreto a
ser enfrentado no debate da bioética, não somente quanto às decisões éticas
sobre o regramento dos avanços registrados no que se refere à utilização de
técnicas de modificação genética em seres humanos, mas também no sentido
de consequências eugênicas e sociais de seus procedimentos. Mostra-se
necessário, portanto, o diálogo entre as atribuições da bioética e os
pesquisadores no que diz respeito às práticas científicas guiadas pelos princípios
fundamentais compartilhados internacionalmente. Feita tal elucidação, justifica-
se o presente artigo.
Trata-se de um estudo metodologicamente bibliográfico e exploratório,
com revisão e análise de referencial teórico da bioética e do direito, já que essas
duas áreas do conhecimento se interseccionam.

BIOÉTICA NO CASO

A palavra Bioética foi pela primeira vez citada em 1971 pelo pesquisador
Van Rensselaer Potter em seu livro intitulado Bioethics: Bridge to the Future, que
focava na biologia evolutiva, especificamente na ecologia e nos avanços da
engenharia genética. Esse estudo o fez introduzir no debate um novo ramo de
conhecimento que fizesse as pessoas pensarem a respeito das implicações das
pesquisas genéticas. Esse novo ramo deveria ser uma área interdisciplinar que
abrangia os estudos em termos "ecológicos", tais como a análise interdisciplinar
para a preservação do planeta como um todo. Esse termo, bioética, nos dias de
hoje se difundiu no campo da ética voltada aos avanços científicos. Dado seu
caráter interdisciplinar, conclui-se que é de relevância para todos, pois está
relacionado à qualidade de vida do ser humano como detentor de direitos e
deveres (CLOTET, 2001, p. 12).
1290

Entretanto, no caso em estudo, os riscos a médio e longo prazo sequer


foram pensados ou almejados no momento da edição gênica. Indicando tal
receio pela quebra ética em pesquisas que utilizam a técnica CRISPR-Cas9 para
edição de genes humanos, o periódico Nature Medicine afirma que a atitude do
cientista pode ter afetado o longevidade das crianças que, segundo os dados,
têm 21% mais chances de morrer antes dos 76 anos do que pessoas que não
tiveram as modificações genéticas realizadas (NATURE, 2019).
Dessa maneira, portanto, analisando o caso concreto, há uma enorme
despreocupação com a quebra evidente de princípios da bioética, os quais serão
tratados em sequência. O pesquisador realiza tal pesquisa sem saber ao certo
das consequências e impactos a longo prazo.

PRINCÍPIOS BASILARES DA BIOÉTICA E A DECLARAÇÃO UNIVERSAL


SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS

Com o deslinde das duas grandes Guerras Mundiais, tornou-se


necessário criar um repertorio ético-jurídico para determinadas questões,
principalmente quando o Tribunal de Nuremberg, trouxe à baila a perversidade
que o ser humano é capaz de fazer em experimentos científicos. Logo após os
julgamentos, foi criado o chamado Nuremberg Code, em 1947, o mais importante
documento quando se relaciona ética e pesquisa. Em Nuremberg, na Alemanha,
foram julgados os médicos e cientistas acusados de realizarem experimentos
torturantes nos prisioneiros em campos de concentrações. Tal Código centraliza-
se na pessoa do indivíduo participante da pesquisa e não propriamente o
condutor do experimento (SHUSTER, 1997).
Nesse sentido, doravante, faz-se necessária a observância de
referenciais básicos na bioética, os quais foram inaugurados com o Relatório de
Belmont (1979), documento esse observado hoje pelo mundo todo no que diz
respeito à bioética. São eles: o princípio do respeito às pessoas; o princípio da
beneficência e o princípio da justiça (CPHSBBR, 1979, p. 4).
O princípio da autonomia, ou também chamado de respeito às pessoas,
no contexto científico, implica o cuidado e respeito do profissional da saúde ao
realizar quaisquer que sejam as operações em humanos, tendo consciência das
vontades e valores morais de cada uma delas. Segundo Maria Helena Diniz
(2002, p. 15), esse princípio:

Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida (corpo e mente)


e o respeito a sua intimidade, restringindo, com isso, a intromissão
alheia no mundo daquele que está sendo submetido a um tratamento.
Considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer
opções e agir sob a orientação dessas deliberações tomadas,
devendo, por tal razão ser tratado com autonomia.

Já o segundo princípio, o da beneficência indica a obrigatoriedade do


profissional em primar pelo bem do paciente, levando em consideração os riscos
do procedimento que será utilizado, para que, na avaliação geral, os benefícios
se sobressaiam frente aos malefícios. Esse princípio é subdivido em geral e
específico. O primeiro é destinado a todas as pessoas indistintamente, já a
beneficência específica possui um caráter supra rogatório, pois é esperado do
profissional da saúde, em relação ao paciente, o máximo para garantir sua vida
(DALL’AGNOL, 2005).
1291

Por último, e não menos importante, o princípio da justiça, que tem a


equidade como condição, dessa forma atuando sem levar em consideração a
condição financeira do indivíduo, aspectos religiosos e morais etc., evitando o
desequilíbrio na prestação de serviço para agir na proporção de suas
desigualdades. Segundo Jussara Ferreira (1999, p. 53), “[...] neste princípio, se
resume, exatamente, a perspectiva da justiça distributiva, impondo a distribuição
equitativa quer dos ônus, quer dos benefícios decorrentes da participação da
pesquisa”.
Portanto, analisando o caso concreto, há uma enorme despreocupação
com a quebra evidente desses princípios da bioética, ao passo que ela abrange
um complexo principiológico condizente com a vida digna ao ser humano e a
uma melhor prestação de serviços ao paciente (MARTINS, 2014, p. 91).
Em 2005 foi homologada a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos, documento internacional que contribuiu com a perspectiva social da
Bioética, além de ser um marco moral-ético na área da saúde no século XXI. A
Declaração, elaborada durante na 33ª Conferência Geral das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e a Cultura (Unesco), em Paris, une a temática
Bioética e os Direitos Humanos de forma a elencar a primazia da dignidade da
pessoa humana em qualquer experimentação de natureza científica.
Seu artigo 1º trata de disposições gerais que proclama: “Declaração trata
das questões éticas relacionadas à medicina, às ciências da vida e às
tecnologias associadas quando aplicadas aos seres humanos, levando em conta
suas dimensões sociais, legais e ambientais.” Destaca-se o importante papel do
Brasil ao ampliar o debate ao nível ambiental e sanitário. (UNESCO, 2005). Para
que o tema Bioética seja algo corriqueiro e que sejam reconhecidos e aplicados
os princípios elencados pela Declaração, cabe aos Estados promoverem a
educação em todos os níveis escolares, estimulando a liberdade científica,
respeitado os limites éticos e legais para contribuir na disseminação, conforme
se proclama no art. 23 (UNESCO, 2005).

O IMPACTO SOCIAL DAS MODIFICAÇÕES GENÉTICAS

É comum que o debate acerca das modificações genéticas e da influência


da bioética como benéfica ou maléfica para o desenvolvimento da ciência seja
feito, sendo o já mencionado caso dos bebês chineses mais um capítulo deste
debate.
A insegurança diante do ocorrido não se limita apenas a dilemas éticos,
mas também a temas polêmicos já conhecidos pela história, como a eugenia,
citada por Habermas (2003) o qual aponta para a potencialidade da eugenia
liberal, que caminha paralelamente com o avanço das novas técnicas da
biotecnologia.
É defendida por Habermas a dualidade das modificações genéticas, a
positiva e negativa. As primeiras, de caráter terapêutico, estão relacionadas à
prevenção de doenças que não reduzem a liberdade pessoal do paciente.
Entretanto, a segunda relaciona-se à unilateralidade de modificações que se
destinam ao melhoramento da espécie humana, na aquisição de um corpo
perfeito, características socialmente aceitas e desejáveis (HABERMAS, 2003).
A ideia de eugenia, tão lembrada junto aos conceitos nazistas de
higienização social, ganha forças com descobertas como esta, dando margem
1292

para que grupos passem a idealizar uma sociedade unificada por traços raciais
e o que mais lhes forem convenientes.
Ainda sob um ponto de vista sociológico, é fato que pessoas consideradas
fora dos padrões sociais se interessariam amplamente por tais modificações,
isso remete à reflexão sobre o quão correto seria uma modificação em função
da saúde pública vs. uma modificação em função de um objetivo pessoal.
Por certo, tem-se como inevitável a intersecção da Bioética e do Direito,
de modo que a regulamentação jurídica pelo crescimento exponencial da
tecnologia cabe ao recente e em construção ramo do Biodireito. Segundo aduz
Martins-Costa (2000, p. 154):

[...] que visa determinar os limites de licitude do progresso científico,


notadamente da biomedicina, não do ponto de vista das exigências
‘máximas’ da fundação e aplicação dos valores morais na práxis
biomédica – isto é, da busca do que se ‘deve’ fazer para atuar o ‘bem’
– mas do ponto de vista da exigência ética ‘mínima’ de estabelecer
normas para a convivência social.

Certas discussões na seara da bioética adentram no aparato científico


jurídico, dada a sua interdisciplinaridade, além de ambos apresentarem
correspondência à regulamentação de condutas humanas (AMARAL, 2014).
Ademais, urge encontrar medidas jurídicas eficazes para acompanhar o avanço
tecnológico.
No caso estudado, é importante que seja refletido além da superfície da
questão, para que também seja levada em consideração a qualidade de vida
daqueles que, sem a possibilidade de escolha sobre as modificações, foram
vítimas de modificações, sendo expostos à possibilidade de erros científicos com
consequências incorrigíveis, interferência na vida pessoal por parte da
comunidade científica e até mesmo a futuros problemas psicológicos.

CONCLUSÃO

Dado o exposto, verificou-se a atual importância do Biodireito que busca


adequar a bioética ao ordenamento. Tendo em vista que a bioética se limita aos
comportamentos nas atividades médico-científicas, o Biodireito tem a finalidade
última de circundar essas condutas através da produção legislativa e judicial.
Dessa maneira, chega-se à conclusão de que é de suma importância os dois
institutos caminharem lado a lado, bem como desenvolverem pesquisas
respeitando a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Nessa trilha, não é justificável a realização da experiência pelo cientista
He Jiankui, pelo fato de não ser orientada a proteção contra riscos concretos à
saúde dos bebês envolvidos, além de dispor uma visível violação aos princípios
fundamentais e Bioéticos no procedimento (que devem ser os verdadeiros
norteadores de todo o desenvolvimento científico), utilizando o argumento de
possivelmente deixá-los resistentes ao vírus HIV.
Há muito a ser discutido sobre o gigante salto científico “modificações
genéticas” que, por um lado, anseia por possibilidades na área terapêutica, mas
por outro exibe iminente desestruturação social, como visto no capítulo anterior.
Portanto, o dever do Direito nacional/internacional se encontra em
regular tais práticas, para evitar danos insanáveis na sociedade, merecendo
nova leitura, que acompanhe as mudanças no âmbito da biotecnologia e
1293

estabelecendo nova roupagem dentro dos limites éticos e novas possibilidades


no contexto das relações sociais.

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1295

O EFEITO CÍCLICO DA FALTA DE MEMÓRIA COLETIVA NO DECLÍNIO DO


CONCEITO MATERIAL DE DIREITOS HUMANOS
EL EFECTO CÍCLICO DE LA FALTA DE MEMORIA COLECTIVA EN EL
DECLIVE DEL CONCEPTO MATERIAL DE DERECHOS HUMANOS

Kamayra Gomes Mendes


Laís Maria Souza Barcelos

Resumo: A ausência de mecanismos de resgate histórico e consolidação de


uma memória coletiva desencadeiam na repetição cíclica de desencanto e
posterior reconstrução do conceito material de direitos humanos, afinal estes,
quando não há informações e registros dos sacrifícios e lutas para as suas
conquistas, são os primeiros a serem questionados ou mitigados em períodos
de paz. Após uma ruptura traumática, entretanto, voltam a serem almejados.
Ocorre que os impactos dessa retórica agressiva ao rol de direitos e valores
atinge de forma interseccional diversos grupos e tem como um dos seus pontos
de origem a interpretação e as referências da sociedade sobre o que sejam.
Assim, buscou-se analisar por meio da crítica-dialética a relação entre o
monopólio gerencial da memória durante a história, especificamente no século
XX, e o consequente fenômeno de atenuação da importância dos direitos
humanos no Brasil atual.
Palavras-chave: Memória Coletiva. Direitos Humanos. Justiça de Transição.

Resumen: La ausencia de mecanismos de rescate histórico y la consolidación


de una memoria colectiva desencadenan la repetición cíclica del desencanto y
la posterior reconstrucción del concepto material de los derechos humanos, que
después de todo, cuando no hay información y registros de sacrificios y luchas
por sus logros, son los primeros ser cuestionado o mitigado en tiempos de paz.
Sin embargo, después de una ruptura traumática, una vez más se dirigen a ellos.
Resulta que los impactos de esta retórica agresiva en la lista de derechos y
valores afectan de manera intersectiva a varios grupos y tienen como uno de sus
puntos de origen la interpretación y las referencias de la sociedad sobre lo que
son. Por lo tanto, buscamos analizar, a través de la crítica dialéctica, la relación
entre el monopolio gerencial de la memoria durante la historia, específicamente
en el siglo XX, y el consiguiente fenómeno de atenuación de la importancia de
los derechos humanos en la actualidad del Brasil.
Palabras clave: Memoria Colectiva. Derechos Humanos. Justicia Transicional.

O Estado brasileiro vivencia uma conjectura de extremos e deturpações


de direitos que foram penosamente conquistados. A tenra redemocratização
iniciada nos anos 80 culminou na valorização fugaz de autonomias não
acessíveis no governo anterior. Os ânimos traumáticos de tempos autoritários
são os responsáveis pelo aumento de ratificações em tratados de direitos
humanos e no próprio teor ideológico garantista da Constituição Federal de 1988,
alcunhada de “Constituição Cidadã”.
Apenas 30 anos depois, a somatória de promessas não cumpridas e
disparidades econômico-sociais vislumbradas resultam numa descrença
generalizada. O declínio social evidenciado na instabilidade democrática
repercutiu, ademais, no conceito material de direitos humanos, dando-lhe um
caráter de direito alheio e não mais como algo inerente a todos. O desencanto
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instaurado gerou a ideia de que há privilégios ou regalias a “inimigos” 1 e que,


portanto, seria justificável o afastamento de tais garantias universais.
Ressalta-se que mais de uma geração de brasileiros já nasceu com o
exercício pleno de suas liberdades individuais, conhecendo somente os ônus de
um sistema democrático jovem, abalado por inúmeros problemas institucionais.
A ausência de uma memória coletiva fortificada fez com que discursos
passassem a desvirtuar a democracia e os direitos humanos. Essa mutação e
ressignificação de conceitos é um fenômeno previsível, considerando a dialética
histórica; e não isolado, dada a simultaneidade da ascensão de ideais
interventores em vários países, que marcados pela necessidade de respostas
rápidas passam a menosprezar valores de outros humanos, respaldados por
supostos sacrifícios necessários para alcance dos fins.
Tal política de poder, enquanto transgressão espiral, ultrapassa limites e
consome vidas. Segundo Foucault (1988; 1979), o biopoder baseia-se em
exceção, emergência e inimigo ficcional para dividir as pessoas que devem viver
ou morrer. Tais conceitos atravessam e se confrontam diretamente com políticas
de proteção a todos os humanos e por isso formas autoritárias de poder buscam
a deslegitimação conceitual dos direitos em todas as camadas socioeconômicas
para fragilizá-los. A política usando a interpretação como arma social.
Nesse contexto, é essencial examinar o efeito ondulatório do encanto e
desencanto social para com o termo "direitos humanos", advindo da ausência de
uma formação de memória coletiva que fortaleça e justifique a necessidade de
se vedar retrocessos. Após, é imprescindível analisar a alternância do conceito
de direitos humanos na oscilação entre períodos traumáticos e tempos de paz e,
por fim, relacionar os efeitos do esquecimento generalizado na descrença
instituída, através das invisíveis relações de poder.
A metodologia utilizada para concretizar estes objetivos foi a crítico-
dialética, pois se estuda e questiona a relação entre o monopólio gerencial da
memória durante a história, especificamente no século XX, e o consequente
fenômeno de atenuação da importância dos direitos humanos no Brasil atual.
Gamboa (2010, p. 108) assevera que tais análises “manifestam um ‘interesse
transformador’ das situações ou fenômenos estudados, resguardando sua
dimensão sempre histórica e desvendando suas possibilidades de mudanças”.
Para transformar uma sociedade é preciso conhecer os caminhos que
desaguam em seu presente. A memória, por isso, é um patrimônio. É tudo aquilo
que escolhemos ou não preservar e, através da participação da história no
presente, pode-se criar uma marcha que ao passo que caminha, impede o
retrocesso.
Um trágico sintoma observado na [falta de] identidade brasileira é o
esquecimento. Ao arquivar o passado, corre-se o risco de repeti-lo criando o
efeito cíclico da memória: traumas familiares se insurgem e ameaçam eclodir
como se novos fossem. Um ponto de eterno retorno. Nesse sentido, Bittar (2011,
p. 178) sintetiza que “a radicalização da democracia sem revisão do passado é
a construção de um edifício sobre um lodaçal”.

1
O inimigo difere-se tanto do cidadão como do criminoso comum. São segmentos da sociedade
associados a certos tipos de perigos futuros, em geral estigmatizados em seu próprio nicho
social. Para CANCIO MELIÁ e JAKOBS (2003, p. 48), todo aquele que não presta uma garantia
de um comportamento pessoal com a sociedade é uma ameaça e um adversário do ordenamento
jurídico, pois já não é visto como uma pessoa..
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O pensamento durkheimiano ao analisar a relação entre o indivíduo e a


sociedade, cria a teoria do fato social sendo este entendido por características
ou ações consideradas individuais, tal como o suicídio, generalizadas em uma
reiteração social. De certa forma, a análise é sobre até que ponto os sujeitos são
demarcados pela realidade coletiva e tamanha força dos processos externos é
vital para o entendimento da formação de uma identidade social. Não se escapa
do lugar e tempo em que se vive: o ser humano tem fome, mas quem o alimenta,
inicialmente, é o meio.
Através do raciocínio de Durkheim, Halbwachs cria o conceito de memória
coletiva embasado na premissa de reconhecimento do passado e sua
reconstrução no presente (1990), de tal forma que se clarifica a sua
adaptabilidade a depender dos interesses vigentes na sociedade. O contraponto
desta tese seria que a possível mutabilidade da criação e alteração de memórias
se chocariam com o muro de reminiscências passadas, impedindo a assustadora
flexibilidade. No entanto, esta antítese parte da premissa de que existe uma
base sólida onde caminhar: um ponto inicial de uma memória coletiva do corpo
social.
O que se questiona no presente estudo são os pilares – ou a ausência
deles – nos quais se apoiam a memória brasileira. Não se busca, evidentemente,
a consolidação de uma memória coletiva una e inquestionável. Rememorar é
alterar fatos; é olhar o passado com as lentes do presente, porém sem uma
infraestrutura básica de identificação comunitária corre-se o perigo de efeitos
cíclicos na falta de memória. Sendo estes efeitos nada mais, nada menos que a
repetição do passado.
A problemática da identidade social no caso brasileiro se deve ao tão
recente e vulnerável processo de redemocratização. O período de mudança
entre a destituição de um regime autoritário para a democracia é chamado de
Justiça de Transição. Sem o acesso à políticas efetivas de memória, a ameaça
do questionamento da própria existência do passado nefasto volta a estar
presente em uma considerável parcela da sociedade. Uma justiça de transição,
quando compreendida, olha tanto para o passado quanto para o futuro (ZYL,
2011). As Comissões da Verdade são a parte da estrutura cujo foco é a
cristalização do passado para que ele não volte a ameaçar gerações vindouras.
No Brasil, somente em 2011 isso foi uma medida concretizada e – ressaltando a
apatia da sociedade perante sua própria história – não foi objeto de
comemorações.
É necessário atentar para o fato de que toda ditadura é civil-militar,
considerando-se que o apoio de influentes camadas da sociedade para que ela
se sustente é imprescindível. Essa legitimação é garantida através das
propagandas que mostram a satisfação com o governo vigente. Tendo em mente
a participação do segmento civil, pessoas que pareciam estar contentes com o
regime totalitário, a mudança somente institucional não geraria uníssona
aceitação muito menos culminaria em uma imediata criação de laços de empatia
para com os que sofreram no sistema ditatorial.
Após uma ruptura gradativa com o regime despótico, os perpetradores de
violações sistemáticas de direitos humanos permanecem possuindo grande
poderio dentro de um país. Por conseguinte, em uma transição frágil onde não
se pode ofender diretamente os ofensores, é difícil que a paz coexista com a
justiça em um primeiro momento. Nessa situação, se mitiga a justiça em prol de
uma conciliação supérflua e apoiada na trégua pragmática de hostilidades. Os
1298

mecanismos de justiça são esparsos e construídos no tempo [julgamentos,


investigações, proibições…] e deveriam andar paralelamente com o resgate
histórico dos fatos. Tais procedimentos, entretanto, são vistos como ameaças ao
ideal pacífico conquistado e associados a um revanchismo constitucional,
impedindo a criação de uma história fidedigna e comum.
Como em um primeiro momento tais mecanismos de rememoração não
foram efetivados, com o transcorrer do tempo dúvidas, desconfianças e perdas
são verificadas e recaem em forma de inquisição sobre os direitos que advieram
da situação de ruptura traumática. Sem uma explicação histórica, o
entendimento das garantias e direitos se fragiliza, desencanta, cria instabilidades
e, consequentemente, tende a ser atenuado ou afastado, ao invés de
aprimorado.
Com o esquecimento generalizado, toma-se os direitos como óbvios, sem
a compreensão de que vieram à duras penas; o foco acaba sendo o caos
democrático, prejudicando a criação de uma identidade brasileira que se orgulha
de sua participação popular. Assim, Bittar (2011, p. 182) enfatiza que “a
democracia vai além do direito de votar e ser votado, ela pressupõe implementos
efetivos de acesso à cultura, informação e acesso ao passado” para propiciar
condições para o pleno exercício participativo que valorize materialmente os
direitos fundamentais além de seu sentido tautológico.
No geral, essas garantias não são mais olhadas como valorosas
conquistas: simplesmente estão lá. A ausência de memória impossibilita a
formação de uma essência social e tal panorama abre margem para a
relativização do conceito e da necessidade dos direitos humanos, como aponta
relatório da IPSOS, onde 21% dos entrevistados declararam-se contra tais
direitos e 66% afirmaram que os direitos humanos defendem mais os bandidos
que as vítimas2. O que antes era imensurável conquista, hoje é visto somente
como algo que talvez não devesse existir.
Mas o que são de fato os denominados direitos humanos? O conceito não
é uniforme e varia ao longo da história, pois são, em suma, construções
dependentes de uma noção social que se apoie sua memória. Bobbio reitera
que os direitos do homem nascem gradualmente em circunstâncias de defesas
de novas liberdades. Não surgem todos de uma vez, mas se consolidam de
modo gradual durante a história a depender dos “interesses, das classes no
poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos e das
transformações sociais” (2004, p. 18), ou seja, o caminho da consolidação de
direitos humanos é um devir histórico por excelência.
A história que se fabrica [ou é fabricada] e se instaura na sociedade é o
eixo que sustenta a interpretação de garantias, direitos e caminhos que um povo
escolhe seguir.
No transcorrer do século XX, guerras e segregações promoveram
coalizões para formalmente se conceitualizar o que seriam direitos humanos,
que são direitos e garantias básicas e inerentes aos humanos, de forma universal
e interdependente. Após um período traumático, que culminou em cerca de 43
milhões de mortos, os Estados acordaram sobre diretrizes de quais são os
direitos a serem preservados por todos. Posteriormente, a Resolução n. 32/130
da Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas, os pactos de
direitos Civis e Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais e a Declaração de
2 Demais dados disponíveis em: https://www.ipsos.com/pt-br/63-dos-brasileiros-sao-favor-dos-
direitos-humanos.
1299

Viena de 1993 tiveram como objetivo unificar e consolidar garantias, além de


vedar o retrocesso de direitos. Frisa-se que ao passo que se consolidaram
formalmente diversos direitos, no eixo social e material nem todos eles foram
bem recepcionados ou defendidos.
O professor José Luiz Quadros Magalhães (2000, p. 23) aponta que os
Direitos Humanos possuem além do aspecto formal de positivação das leis de
um Estado, um aspecto material relacionado com o âmbito valorativo dos
direitos, determinado e variável pelos valores preexistentes, produtos das
culturas de cada povo. Aqui é interessante considerar os efeitos históricos
peculiares da América do Sul que levaram, precisamente a partir do século XX
a uma polarização política, à instauração de regimes autoritários, a dilapidação
de direitos responsabilizados pelo desequilíbrio econômico em vários países que
ao contrário da Alemanha pós-guerra, não resultaram no resgate dos fatos e na
perpetuação da memória dos reais acontecimentos ocorridos.
Nesse ínterim, os direitos sociais brasileiros foram relacionados com a
“ameaça comunista” instaurada na época da Guerra Fria e assim riscou-se da
história acontecimentos que desfavorecesse o eixo político mais ditatorial. A
memória de um país tornou-se adaptável, política, um poderio a ser gerenciado
não por técnicos, mas por líderes.
Sem memória, põe-se em xeque o conceito material de direitos humanos,
afinal não há uma identidade coletiva, apenas vínculos afetivos em pequenos
nichos de inter-identificação. O que não fizer parte desse eixo é o outro, o
estranho, o agente da instabilidade, o “inimigo” e então os direitos que por conta
da condição humana deveriam ser universalmente aplicados, acabam por serem
mitigados a depender do lugar e da história que se guarda.
Em suma, o constructo dos direitos humanos se deturpa e o que era
direito vira privilégio, a exemplo do princípio da inocência, da proteção e
segurança do trabalhador, da acessibilidade à justiça e do devido processo legal.
Nesse sentido, a própria democracia - sem história - é utilizada para se
autofagizar, afinal há desconfianças, dúvidas e incertezas , de forma que a
liquidez da desinformação leva à banalização da memória.
Tal panorama de retrocessos é a mola propulsora de outro período de
crise e explica o porquê da cadência cíclica que passa os direitos humanos,
afinal estes em seu conjunto são os primeiros a serem questionados, vide a
supressão de direitos trabalhistas em oposição aos econômicos, a mitigação de
anseios coletivos frente a liberdades individuais e permissão da tortura e do
controle abusivo para combater a violência urbana.
Denota-se uma tendência de que após a ruptura, entretanto, há um senso
de união em prol da reconstrução social e no desenvolvimento de meios
objetivos no restabelecimento de bem estar social. A quantidade de vidas
sacrificadas, porém, poderia ser minimizada se houvesse solidamente uma
memória coletiva como fonte de poder contra retrocessos.
Olhando o passado, encontra-se a dúvida implantada de que, talvez, só
quem tenha sofrido tenham sido os marginalizados do conceito de “cidadãos de
bem”. A deturpação comparativa que estabelece as semelhanças dos direitos
humanos no passado e presente corrói, aos poucos, o conceito real. Se na visão
histórica contaminada, ele sempre foi do “outro”, portanto, continua não sendo
inerente ao eu. Essa é a ideia que vem sendo repercutida e afastando da
população a verdadeira face dos direitos humanos.
1300

Memória e identidade dependem uma da outra. É através da memória que


povos tradicionais, por exemplo, preservam sua identidade e se apropriam dela
de forma a realmente se sentirem pertencentes a um grupo. Nesse âmbito, as
políticas de memória pós-ditadura falharam na garantia da justiça e, hoje, a paz
também se encontra em risco.
O esquecimento vem se mostrando um fenômeno cíclico. Se o trauma
histórico não é confrontado, a tendência é a sua trágica repetição. A memória
coletiva tem caráter político e a saída para romper com este ciclo vicioso não é
a criação de uma única verdade inquestionável. Ao revés, é necessário fortificar
várias perspectivas esquecidas, analisar fontes, contrapor registros e educar
sobre o passado de um eixo local, a fim de formar bases conscientes de
caminho. A esperança é de que esse eixo seja a apoderação dos direitos
humanos como bússola fundamental para o futuro.

REFERÊNCIAS

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Saraiva, 2011.

BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2004.

CANCIO MELIÁ, Manuel; JAKOBS, Gunther. Derecho penal del enemigo.


Madrid: Civitas, 2003.

DURKHEIM, Emilie. O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins


Fontes, 2000.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber.


Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

________. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. São Paulo:


Edições Graal, 1979.

GAMBOA, Silvio A. S. A dialética na pesquisa em educação: elementos de


contexto. In FAZENDA, Ivani (Org.). Metodologia da pesquisa educacional. 12ª
ed. São Paulo: Cortez, 2010.

HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. Tradução de Laurent Léon


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MAGALHÃES, José L. Q. Direitos Humanos: sua história, sua garantia e a


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MAHFOUD, Miguel; SANDOVAL, Maria Luísa. Halbwachs: Memória Coletiva


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Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI. 2013. Disponível em:
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Acesso em: 15/10/2018.

SAVELSBERG, Joachim J. Violação de Direitos Humanos, lei e memória


coletiva. Tradução de Ana Paula Rodgers. Disponível em:
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ZYL, Paul van. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-


conflito. In: Justiça de transição: manual para a américa latina. Coordenação
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47-71. ISBN: 978-85-85820-10-7.
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O FEMINISMO EM SITUAÇÃO DE RUA: A BUSCA POR DIREITOS DAS


MULHERES
FEMINISM IN STREET SITUATION : THE PURSUIT OF WOMEN'S RIGHTS

Maria Fernanda Vaz Oliveira


Thiago Izac de Souza

Resumo: Este projeto de pesquisa teórico apresenta a problemática as


condições de vida de mulheres em situação de rua no Brasil, tendo em vista a
ineficiência de políticas governamentais e o machismo estrutural. Busca-se
apontar os preconceitos, abusos e desafios enfrentados por moradoras de rua,
devido a difícil inserção no mercado de trabalho, e entender qual o destino destas
mulheres. Pretende-se analisar a importância dos direitos fundamentais, a
ineficácia de políticas públicas e os impactos do machismo na expressão e lugar
de fala de pessoas sem-teto. O procedimento metodológico a ser adotado é
jurídico-sociológico, com raciocínio predominantemente dedutivo e investigação
do tipo jurídico-projetiva.
Palavras chave: Mulheres. Moradores de rua. Machismo estrutural.

Abstract: This theoretical research project presents the problematic living


conditions of homeless women in Brazil, considering the inefficiency of
government policies and structural machismo. The aim is to point out the
prejudices, abuses and challenges faced by homeless people, due to the difficult
insertion in the job market, and to understand the destiny of these women. The
aim is to analyze the importance of fundamental rights, the ineffectiveness of
public policies and the impacts of machismo on the expression and place of
speech of homeless people. The methodological procedure to be adopted is
legal-sociological, with predominantly deductive reasoning and legal-projective
investigation.
Keywords: Women. Homeless. Structural machismo.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente projeto de pesquisa situa-se na área Direitos Humanos. O


tema-problema da pesquisa que se pretende desenvolver é a relação entre os o
machismo estrutural e mulheres em situação de rua. O problema objeto da
investigação científica proposta é: como mulheres moradoras de rua têm suas
vidas influenciadas pelo preconceito e misoginia?
O estudo de casos envolvendo minorias da sociedade brasileira é
imprescindível. A negligência dos direitos fundamentais desses grupos é gerada
por não possuírem espaço no cenário político. O grupo das mulheres moradoras
de rua fazem parte desta triste realidade. Elas constituem uma minoria invisível
dentro de outro grupo de minorias invisíveis. Caracterizando-se um “gueto”
inserido em outro ‘gueto”.
O Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA, 2015) publicou uma estimativa de
que cerca de 101 mil indivíduos moram nas ruas do Brasil. Além disso, entende-
se que as condições de vida dessas pessoas são marcadas por diversas
dificuldades. A irregularidade da frequência de refeições saudáveis, o pouco
acesso a água potável, o constante preconceito, o risco de contração
1303

de doenças e a exposição às condições climáticas são enfrentados no dia-dia


da população sem teto.
Ademais, as mulheres se destacam dentro do conjunto. Segundo
pesquisas municipais, elas representam em torno de 20% do efetivo total de
pessoas morando nas ruas. Acredita-se que a porcentagem pode ser ainda
maior, já que o número de habitantes sem Registro Geral castrado demonstra a
irregularidade dos dados. A inexatidão de dados explicita o descaso do Estado
quanto a garantia do direito fundamental à dignidade, previsto no Artigo 5° da
Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988).
O livro sobre direitos fundamentais, A Era dos Direitos (BOBBIO, 2004),
afirma:

Entende-se que a “exigência do respeito” aos direitos humanos e às


liberdades fundamentais nasce da convicção, partilhada
universalmente, de que eles possuem fundamento: o problema do
fundamento é ineludível. Mas, quando digo que o problema mais
urgente que temos de enfrentar não é o problema do fundamento, mas
o das garantias, quero dizer que consideramos o problema do
fundamento não como inexistente, mas como — em certo sentido —
resolvido, ou seja, como um problema com cuja solução já não
devemos mais nos preocupar. Com efeito, pode-se dizer que o
problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual
na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada
pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de
1848.

O autor parte do pressuposto que os direitos do homem já estão


fundamentados pelo Estado. Sabe-se que o direito à moradia, à saúde, à
educação, à segurança e à dignidade já estão previstos e positivados. Portanto,
o maior desafio é ter a certeza de que estes direitos serão realmente
garantidos. Na prática, a efetividade desses direitos enfrenta gravíssimo entrave:
o machismo estrutural na sociedade.

2. O FEMINISMO NA RUA

Movimento Feminista, para Nogueira (2001), pode ser definido como um


movimento social em prol da equiparação dos sexos quanto ao exercício de
direitos civis e políticos. Porém, como equiparar direitos civis e políticos de
mulheres em situação de rua com os homens, se ambos os sexos são
negligenciados pelo Estado?
A verdade é que, mesmo que os entes estatais demonstrem descaso
perante a minoria de indivíduos morando na rua, a realidade das mulheres é
ainda mais difícil devido fatores do machismo estrutural. Tais aspectos são
apontados, também, na obra Mulher moradora na rua: entre vivências e políticas
sociais, em que a autora aborda a temática de uma perspectiva baseada em
análises e investigações:

A mulher moradora na rua é minoria, se comparada à população


masculina. Pode-se explicar porque, histórica e culturalmente, a
mulher sempre desempenhou papel de reprodutora e responsável
pelos cuidados com a prole, ou seja, sempre ou quase sempre, limitada
a um espaço físico e social da casa, onde procria e por isso deve viver.
Submissa no ambiente de doméstico, tem tratamento desigual no
1304

ambiente de trabalho, o que parece se repetir na rua, que é um espaço


público. (TIENE, 2018)

Faz-se notável que a construção de uma sociedade patriarcal gera


influências até mesmo em ambientes como a rua. Segundo o
poema Muitos Fugiram ao Me Ver, na obra Antologia Pessoal de Carolina Maria
de Jesus (1996, p.136)1, entende-se que o eu lírico representa uma mulher
negra, catadora de lixo, moradora de rua, vítima de preconceito, com paixão pela
leitura e com esperança de uma vida melhor no Brasil. A figura também
representa o perfil de muitas mulheres sem oportunidades nas ruas do país.
Nota-se que a vontade de sair da condição de sem-teto é comum para as
indivíduas que buscam no mercado de trabalho uma forma de garantir renda fixa.
Porém, o preconceito enraizado, não somente pela situação de rua, mas pelo
simples fato de serem mulheres, dificulta ainda mais a mudança de vida.
O lugar de fala das mulheres deve ser respeitado e busca por cada vez
mais representatividade deve ser uma luta constante não só na vida social, mas
na vida política principalmente. Segundo o relato de Marcia Tiburi (2017) em
uma coluna de jornal eletrônico:

Dia desses estive na ALESC (Assembleia Legislativa do Estado de


Santa Catarina) falando com muitas mulheres, ativistas e feministas de
diversos movimentos. No final de todas as falas um homem branco
líder do movimento dos moradores de rua pediu a palavra e falou que
não tinha conseguido a adesão de nenhuma mulher do movimento
para estar ali naquele momento. Em suas palavras, as mulheres que
moram nas ruas vivem em condições piores do que as condições dos
homens nas mesmas circunstâncias. Ele era um homem só e naquele
momento vivia o conflito de estar ali e falar ou simplesmente ficar
quieto. Afinal, é um homem e aquele era um momento da fala feminista
que defende os direitos das mulheres.

Portanto, firma-se apenas mais um caso de “desempoderamento” do


gênero feminino. O estudo das condições de mulheres moradoras de rua é muito
necessário, sendo o público alvo a população de um modo geral. A
conscientização quanto a situação grupos minoritários é imprescindível para que
políticas públicas sejam efetuadas sem que a negligência (causada pela
invisibilidade das vítimas) impossibilite a real garantia de direitos.
Ademais, com o advento das novas tecnologias, o Movimento Feminista
tem ganhado espaço diante das redes sociais. Discursos de empoderamento
feminino são os mais comuns diante notícias frequentes de relacionamentos
abusivos que resultaram em fins trágicos. Entende-se, sem dúvidas, que o
compartilhamento de informações é um importante método de prevenção e apoio
a mulheres nestas situações. Porém, é válido ressaltar o questionamento da

1Muitas fugiam ao me ver/Pensando que eu não percebia/Outras pediam pra ler/Os versos que
eu escrevia//Era papel que eu catava/Para custear o meu viver/E no lixo eu encontrava livros
para ler/
Quantas coisas eu quis fazer/Fui tolhida pelo preconceito/
Se eu extinguir quero renascer/Num país que predomina o preto//
Adeus! Adeus, eu vou morrer! /E deixo esses versos ao meu país/
Se é que temos o direito de renascer/Quero um lugar, onde o preto é feliz.
1305

efetividade destes discursos para com indivíduos em situação de rua. De acordo


com Coelho (2016), é importante questionar o alvo desses compartilhamentos:

Que feminismo é esse que ecoa nas redes sociais? A quem esse
feminismo serve? A mim, a você, à minha vizinha que apanha do
marido? À moradora de rua, dependente química, que vive fugindo da
polícia? À mãe de família da periferia que está desempregada num
momento de crise econômica e política? Ou somente àquelas que se
apropriam do mesmo discurso via redes sociais? Àquelas que curtem
e compartilham postagens e assim disseminam as mesmas ideias e
opiniões?

Mulheres moradoras de rua também são vítimas do machismo estrutural


presente no âmbito do mercado de trabalho e relações interpessoais. Por
conseguinte, é possível que essas pessoas sejam atingidas positivamente por
estes discursos, ou tais postagens são apenas mais uma maneira de conseguir
mais views?

3. O PRECONCEITO PUNGENTE E A VIOLÊNCIA

A violência, como parte da realidade das pessoas em situação de rua,


demonstra índices altos. De acordo com Campos entre outros (2018, p.2011),
26% das mulheres moradoras de rua de São Paulo sofreram tipo de abuso
sexual. A mesma pesquisa, afirma que 3% dos homens sofreram algum tipo de
violência desse tipo. Entende-se com a disparidade entre os gêneros, que o sexo
feminino é o alvo principal de abusadores. Sabe-se que a realidade não
compreende somente violência sexual, mas vários tipos de agressões físicas.
Tal situação é explicitada no artigo A violência na vida de mulheres em situação
de rua na cidade de São Paulo, Brasil:

As mulheres descreveram as principais formas de violência física


vividas nas noites em que pernoitaram nas ruas. A primeira foi a
violência praticada por pessoas ou grupos intolerantes com a situação
de pobreza vivida pelas pessoas em situação de rua; relataram
histórias de agressão e morte de forma cruel – a violência pela própria
violência. A segunda foi a violência praticada entre as próprias pessoas
que se encontravam na rua, e tinham como principais motivações: as
dívidas com traficantes, disputas por espaço, pequenos furtos,
infidelidade conjugal e desavenças pessoais. A terceira, um tipo de
violência planejada, de cunho higienista, praticada por policiais,
pessoas contratadas por comerciantes ou moradores que se sentiam
prejudicados pela presença das pessoas em situação de rua nos
arredores dos domicílios, comércios, monumentos e cartões postais da
cidade. Por último, a violência sexual, relatada com frequência pelas
mulheres que participaram do estudo, quase sempre, praticada por
homens, em situação de rua ou não, e com potencial de causar danos
físicos e mentais irreparáveis na mulher. (ROSA; BRETAS, 2015, p.5)

Os índices de violação são altos e sugerem a impunidade dos agressores,


adicionados ao fato de que as vítimas normalmente não recebem apoio familiar
e financeiro. Como o acesso a tratamentos psicológicos e abrigos oferecidos
pelo Estado, após essas situações, é precário, essas mulheres acabam
1306

retornando às ruas e suscetíveis à novas agressões. Compreendendo, assim,


um ciclo negativo para a vida das moradoras de rua.
Outro grande obstáculo enfrentado pelo grupo é a dependência química.
Segundo a pesquisa social participativa de Campos entre outros (2018, p.172),
o percentual de uso de drogas ilícitas entre o gênero feminino (53%) é
semelhante ao encontrado no grupo masculino (53%), na cidade de São Paulo.
Porém, quando analisaram a porcentagem do uso de álcool e drogas por
mulheres acolhidas, o resultado foi surpreendente. 72% do grupo afirmou não
consumir substâncias ilícitas e álcool. Nota-se que o apoio de abrigos, ainda que
em quantidade insuficiente, é imprescindível para o abandono de vícios.
Felizmente, no ano de 2018, foi assegurado por lei o atendimento no
Sistema Único de Saúde (SUS) de famílias e indivíduos em situação de rua,
mesmo que eles não apresentem comprovante de residência, como disciplina o
Art. 2º da lei Nº 13.714:

A atenção integral à saúde, inclusive a dispensação de medicamentos


e produtos de interesse para a saúde, às famílias e indivíduos em
situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, nos termos
desta Lei, dar-se-á independentemente da apresentação de
documentos que comprovem domicílio ou inscrição no cadastro no
Sistema Único de Saúde (SUS), em consonância com a diretriz de
articulação das ações de assistência social e de saúde a que se refere
o inciso XII deste artigo. (BRASIL, 2018)

Portanto, compreende-se que pequenas medidas estão sendo tomadas


em direção ao progresso na efetivação de direitos e garantias fundamentais,
ainda que em passos lentos. Ademais, diversas instituições e ONGs colaboram
diretamente para a dignidade desses indivíduos, como o Grupo da Sopa (2014):

Com o fortalecimento do grupo, em novembro de 1998, a tradicional


sopa foi substituída por refeições e assim é feito até hoje, onde
voluntários doam um pouco do seu tempo para suprir uma das
inúmeras necessidades diárias das pessoas que não tem um teto e
muito menos a oportunidade de preparar suas próprias refeições. São
homens, mulheres, crianças e até famílias inteiras que, por várias
circunstâncias, tem como moradia as marquises, viadutos, pontes e
calçadas da cidade.

Por fim, explicita-se que o preconceito e a violência são apenas


obstáculos para essa parcela da população. Com a aproximação da real eficácia,
a possibilidade de uma vida melhor se encontra no campo de visão dessas
pessoas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, conclui-se que o machismo estrutural, enraizado na


sociedade patriarcal, transforma as mulheres moradoras de rua em “objetos”, de
forma que agressões físicas e psicológicas sofridas por essas pessoas não são
tratadas com a seriedade que a situação demanda, formando assim, um ciclo
vicioso.
Outrossim, é essencial o debate do real significado do termo “morador de
rua”. Segundo o artigo “Ninguém mora onde não mora ninguém”:
1307

“Moradores de rua” são a figura mais perfeita do abandono que está no


imo da devoração capitalista. Convive-se com eles nos bairros
elegantes das cidades grandes como se fossem um estorvo ou, para
quem pensa de um modo mais humanitário, como um problema social
a ser resolvido filantropicamente. Alguns moram em lugares
específicos, têm sua “própria” esquina, carregam objetos de uso aonde
quer que vão, outros perambulam a esmo desaparecendo da vista de
quem tem onde morar. São meras fantasmagorias aos olhos de quem
não é capaz de supor sua alteridade. Esmagados pela contradição de
morar onde não mora ninguém, não têm o direito de ser alguém.
Partilham o deslugar. E, no entanto, praticam o mesmo que os outros
dentro de suas casas: dormem, comem, fazem sexo. A condição
humana é o que se divide por paredes ou na ausência delas. A
democracia torna-se uma questão de nudez e exposição da vida
íntima.
Ninguém “mora na rua”; antes, quem está na rua não mora. Quem está
fora dos básicos direitos constitucionais está excluído da sociedade. E
muito mais além da Constituição, está excluído pelo próprio status com
que é medido. O status de “morador de rua” é apenas um modo de
incluir os excluídos na ordem do discurso acobertador do fascismo
prático de cada dia oculto sob o véu da autista sensibilidade burguesa.
Se o princípio de autoconservação a qualquer custo é a base da ação
de indivíduos unidos na massa, está imediatamente perdida a
dimensão do outro sem a qual não podemos dizer que haja ética ou
política. Mesmo sob o status de morador de rua, o mendigo da nossa
esquina é a prova do fracasso de todos os sistemas. Se as estatísticas
não mudarem comprovando que a tendência da exceção pode ser a
regra, talvez a democracia de teto e paredes não sirva mais a ninguém
em breve. Só que às avessas. (TIBURI, 2011)

A teoria conceitual proposta pela autora procura demonstrar que, na


verdade, a classificação de “morador de rua” é uma forma de eufemismo da
sociedade ao tentar enquadrar indivíduos completamente
abandonados em um status, buscando amenizar o processo de culpa ao
negligenciar pessoas que, por lei, têm direitos a serem garantidos. Compreende-
se, também, que a população em situação de rua é um sintoma do fracasso da
organização social e da possível da inutilização da democracia. É
consideravelmente mais fácil a aceitação de “rótulos” criados pela sociedade
como uma construção.
Portanto, o Estado demonstra desinteresse proposital em relação a
situação dos indivíduos. A sociedade patriarcal é o reflexo de uma história
manchada pela dignidade ferida de mulheres. O capitalismo apenas
impulsiona essa perspectiva, com seu individualismo e egoísmo na convivência
passiva constante com a condição, não apresentando soluções práticas e
assinando a “sentença de morte” dos valores democráticos e na herança
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948).

5. REFERÊNCIAS

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de Janeiro: Elservier 1992.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso
em: 09 maio 2019.
1308

BRASIL. LEI Nº 13.714, DE 24 DE AGOSTO DE 2018. Assegurar o acesso


das famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e
pessoal à atenção integral à saúde. Brasília, DF, ago. 2018. Disponível em:
http://www.imprensanacional.gov.br/mp_leis/leis_texto.asp?ld=LEI%209887.
Acesso em: 29 set. 2019.

CAMPOS, Ana Maria Gambier et al. População de rua: pesquisa social


participativa. Curitiba: Juruá Editora 2018.

COELHO, Mayara Pacheco. Vozes que ecoam: Feminismo e Mídias


Sociais. Pesqui. prát. psicossociais, São João del-Rei, v. 11, n. 1, p. 214-
224, jun. 2016. Disponível em
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
89082016000100017&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 29 set. 2019.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral


das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível
em: http://www.dudh.org.br/wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf. Acesso em:
09 maio 2019.

GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca.


(Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 3ª. ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2010.

GRUPO DA SOPA. Nossa História. 21 jul. 2014. Disponível em: Portanto,


compreende-se que pequenas medidas estão sendo tomadas em direção ao
progresso na efetivação de direitos e garantias fundamentais, ainda que em
passos lentos. Acesso em: 30 set. 2019.

IPEA. Estimativa da população em situação de rua no Brasil (2016). Rio de


Janeiro: Ipea, 2016.

JESUS, Maria Carolina de. Antologia Pessoal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
1996.

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género. Psicologia, Lisboa, v. 15, n. 1, p. 43-65, jan. 2001. Disponível em
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-
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ROSA, Anderson da Silva; BRÊTAS, Ana Cristina Passarella. A violência na


vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo,
Brasil. Comunicação, Saúde, Educação. V. 19, n. 53, pp. 275-285, 2015.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0221. Acesso em 07
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TIBURI, Marcia. Lugar de fala e lugar e dor. Cult. São Paulo, 29 mar 2017.
Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/lugar-de-fala-e-etico-politica-
da-luta/. Acesso em: 07 maio 2019.
1309

TIBURI, Marcia. Ninguém mora onde não mora ninguém. Cult. São Paulo, 10
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onde-nao-mora-ninguem/. Acesso em: 07 maio 2019.

TIENE, Izalene. Mulher moradora de rua: entre vivências e políticas sociais.


Campinas: Alínea, 2004.

WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis en derecho: pautas metodológicas y


técnicas para el estudiante o investigador del derecho. Madrid: Civitas, 1985.
1310

Grupo de Trabalho:

DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E


SUSTENTABILIDADE III
Trabalhos publicados:

“O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL SOB A ÓTICA DO ODS 11 E O


ZONEAMENTO ECOLÓGICO ECONÔMICO.”

A (DES) PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS AO MEIO AMBIENTE PELO


ESTADO BRASILEIRO

A COMPLEXIDADE DA RODOVIA BR-319

A SOCIEDADE DE RISCO NA NOVA ÉPOCA DO ANTROPOCENO: A


APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO PARA A
GESTÃO DOS RISCOS AMBIENTAIS

O LITÍGIO ESTRATÉGICO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS – O CASO MARIA DA PENHA VS. BRASIL

O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO À LUZ DA


PROTEÇÃO INTERNACIONAL PELA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS

O RECONHECIMENTO DO POLIAMOR COMO ENTIDADE FAMILIAR À LUZ


DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RETALIAÇÃO AO ADVENTO DA


MIXOFOBIA NA SOCIEDADE ALEMÃ

PARA ALÉM DAS DORES DE PARTO: UM ESTUDO SOBRE A VIOLAÇÃO DE


DIREITOS NOS AMBIENTES OBSTÉTRICOS

POBREZA E A APOROFOBIA: A VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE E LIBERDADE


HUMANAS E A ATUAÇÃO DO ESTADO

SÉTIMO GARIBALDI: A PERPETUAÇÃO DA IMPUNIDADE NOS CONFLITOS


DE TERRA E DA SUPRESSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL
1311

“O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL SOB A ÓTICA DO ODS 11 E O


ZONEAMENTO ECOLÓGICO ECONÔMICO.”
“SUSTAINABLE DEVELOPMENT FROM THE PERSPECTIVE OF SDG 11
AND ECONOMIC ECOLOGICAL ZONING.”

Letícia Pontes Pacheco de Castro


Edson R. Saleme

Resumo: Aqui se buscará demonstrar a importância do Zoneamento Ecológico


Econômico (ZEE) como instrumento de manutenção do desenvolvimento
sustentável, sobretudo por meio do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) 11 da ONU, cuja proposta seria buscar estabelecer nas cidades e nos
assentamentos humanos meios inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
No trabalho serão indicadas as bases do desenvolvimento sustentável e a
proposta de agendas para que os Estados possam se comprometer com um
futuro que garanta a existência humana, apesar dos impactos da intervenção
antrópica. O método empregado é o hipotético-dedutivo e a metodologia é
baseada em bibliografia e documentos disponíveis. O objetivo é verificar o
quanto o ZEE pode auxiliar no atendimento das propostas incluídas na ODS 11.
Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável. ODS 11. Cidades resilientes.

Abstract: This paper is to analyze the importance of Economic Ecological Zoning


(EEZ) as a tool for maintaining sustainable development, especially through the
UN Sustainable Development Goal (SDG) 11, which aims to establish inclusive
means in cities and human settlements, safe, resilient and sustainable. The paper
will outline the foundations of sustainable development and the proposed
agendas for countries to commit to a future that guarantees human existence
despite the impacts of human intervention. The method employed is the
hypothetical-deductive and the methodology is based on available bibliography
and documents. The objective is to verify how much the EEZ can assist in
meeting the proposals included in SDG 11.
Key words: Sustainable development. ODS 11. Resilient cities.

1. INTRODUÇÃO

A preocupação com o meio ambiente ocorreu apenas após as duas


guerras mundiais, diante do descaso de grande parte dos governos com sua
proteção e com a intervenção impactante observada nas grandes urbes. O
crescimento das cidades, a expansão do comércio e o aumento da população
agravaram severamente a situação ambiental. Diante desse quadro, governos e
sociedade, que se imaginavam diante de recursos inesgotáveis, observaram
que, na verdade, se tratava de futuro de escassez de recursos ambientais e
consequente retração econômica. A percepção da finitude dos recursos naturais
trouxe a necessidade de a ONU organizar a Conferência de Estocolmo, em 1972,
a qual foi a primeira reunião em prol do ambiente.
A Política Nacional do Meio Ambiente, criada a partir da Lei nº 6938 de
1981, foi o primeiro conjunto de normas em prol dos recursos naturais. Contudo,
somente a partir da Conferência Rio 92 (ECO 92) é que se configurou um quadro
mais nítido acerca da finitude de recursos e de uma proposta internacional no
1312

sentido de que os países possibilitassem, a partir de princípios propostos, a


inclusão daqueles em seus respectivos ordenamentos.
Neste evento criou-se uma agenda pela qual os países estavam
comprometidos cumpri-la adotando alternativas para o desenvolvimento
sustentável. Dentre os objetivos do desenvolvimento o encontra-se o ODS 11,
que trata acerca do desenvolvimento sustentável das cidades.
Neste sentido, o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) representa um
importante instrumento de sustentabilidade, no que diz respeito à organização e
ao planejamento da exploração do meio ambiente em detrimento da lógica de
mercado, ou seja, da expansão urbana ou rural de maneira aleatória.
Este estudo objetiva demonstrar a conexão entre este ODS com o
instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente denominado Zoneamento
Ambiental, ou mais tecnicamente como Zoneamento Ecológico Econômico
(ZEE). Esta forma de tratar o ambiente em nível nacional e departamental,
estadual, ou ainda municipal, procura estabelecer as bases do que se
denominou desenvolvimento sustentável.
O método empregado é o hipotético-dedutivo e a metodologia utilizada é
a bibliográfica e documental através da consulta de artigos, legislação e livros
relacionados com o presente tema, de forma a apresentar um cenário
abrangente e atual sobre o objeto do estudo.

2. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E OS ODS

No período pós-guerra não se pensava ainda em criar políticas


ambientais. No entanto, elas foram propostas por meio da exposição calamitosa
encontrada em diversas cidades do mundo em que o impacto ambiental era
nitidamente observável. Naquela época, a atenção e interesse político estavam
voltados à exploração de recursos naturais, novos territórios, saneamento rural,
entre outros. A Fundação Brasileira de Conservação da Natureza (FBCN), uma
das primeiras organizações não governamentais do país, de caráter
conservador, “defendia a proteção da natureza através da exploração
controlada, e os nacionalistas, como os da Campanha Nacional de Defesa e
Desenvolvimento da Amazônia (CNDDA), defendiam a exploração pelos
brasileiros.”1
Antes da Lei nº 6.938, de 1981, a legislação que dava base a essa política
era formada pelos Código de águas, de 1934, o Código Florestal de 1965, de
caça e pesca de 1967, substituído pela Lei nº 12.651, de 2012. Além disso, desde
1969, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) alertava
sobre necessidade de um debate mais aprofundado sobre esse assunto.
Embora já existissem documentos internacionais voltados à preservação
do meio ambiente, foi em 1972, na Conferência de Estocolmo, que este tema
passou a ter reconhecimento universal. Ao final do evento elaborou-se a
Declaração de Estocolmo do Meio Ambiente, sendo seus 26 princípios
reconhecidos como fundamentos para o Direito Ambiental Internacional.2

1 BUCCI, Maria Paula Dallari. A Comissão de Brundtland e o conceito de desenvolvimento


sustentável no processo histórico de afirmação dos direitos humanos. p. 51-63. In:Direito
Ambiental Internacional. Orgs. DERANI, Cristiane; COSTA, José Augusto Fontoura. Santos:
Leopoldianun, 2001
2 BUCCI, Maria Paula Dallari. A Comissão de Brundtland e o conceito de desenvolvimento

sustentável no processo histórico de afirmação dos direitos humanos p. 51-63. In: Direito
1313

Ao longo da década de 80, a pedido da Assembleia Geral das Nações


Unidas, criou-se a Comissão Mundial sobre meio Ambiente e Desenvolvimento,
mais conhecida como Comissão de Brundtland, que tinha como objetivo a
criação de uma agenda que relacionasse os problemas e possíveis soluções
alternativas para equilibrar o desenvolvimento com a preservação do meio
ambiente.3
Os estudos realizados por essa Comissão contaram com a participação
de diversos atores como organizações internacionais, representantes de
governos e instituições. Diante das diversas audiências em todos os continentes
esse processo passou a ter caráter extremamente democrático. O documento
final apresentado pela Comissão, denominado “Nosso Futuro Comum”,
conhecido como “Relatório Brundtland”. É considerado o marco do direito
internacional ambiental em razão da criação do tema de desenvolvimento
sustentável.4
Em 1992, no Rio de Janeiro, aconteceu a Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento - CNUMAD (Rio 92), programada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Comissão de Brundtland.
Em paralelo a esta convenção, vários representantes de organizações não
governamentais, sociedade civil e ambientalistas se reuniram na “Cúpula dos
Povos” para debater sobre as questões ambientais trazidas na conferência. Esta
reunião resultou na Agenda 21 que, na opinião de Milaré5, “é a cartilha básica do
desenvolvimento sustentável.
A Agenda 21 é dividida por temas ligados ao desenvolvimento econômico
social, que tratam de questões referentes à gestão dos recursos naturais e da
participação da sociedade neste sentido. Além disso, indica planos e programas
que possam ser implantados envolvendo o meio ambiente e desenvolvimento
econômico. Quando se trata de promover a consciência ambiental, “apela
fortemente para a consciência dos Poderes Públicos e da sociedade, no sentido
de criarem ou aperfeiçoarem o ordenamento jurídico necessário à gestão
ambiental num cenário de desenvolvimento sustentável”6,
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), divulgados em
agosto de 2015, são metas a serem alcançadas a partir de diversas negociações
entre países e outros atores nacionais e internacionais, como organizações
internacionais, pesquisadores e ambientalistas, e consistem em orientações e
metas ligadas ao meio ambiente e desenvolvimento.7
Dentre eles o ODS 11 é o que mais se relaciona com o zoneamento
ecológico econômico, por ter como meta tornar as cidades e os assentamentos
humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Neste sentido, a Política
Nacional do Meio Ambiente e o Zoneamento Ecológico revelam-se instrumentos
fundamentais para que esses propósitos sejam efetivamente atingidos.

3. A POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE

Ambiental Internacional. Derani, Cristiane, COSTA, José Augusto Fontoura. Santos:


Leopoldianum, 2001.
3 Idem

4 Ibidem
5 MILARÉ, Edis. Direito do meio ambiente. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
6 MILARÉ, Edis. Direito do meio ambiente. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
7 ODS. Agenda 2030. Disponível em: https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso

em 05/05/2019.
1314

O “esquema de zoneamento urbano” foi adotado a partir da Lei 6.151/74,


que aprovou o II Plano Nacional do Desenvolvimento (IIPND) o qual se
preocupou com a criação de regras voltadas à proteção do meio ambiente. Para
Granziera, tal fato poderia ser visto como “um rebatimento das questões
discutidas na Conferência de Estocolmo.”8 Somente anos após, em 1981, foi
instituída a Política Nacional do Meio Ambiente - Lei 6938/81 - que estabeleceu
como um de seus princípios o “controle e zoneamento das atividades potencial
ou efetivamente poluidoras.”9
A Lei 6938/81 definiu os instrumentos de Política Ambiental no Brasil,
dentre os quais estão, segundo Bredariol, “o monitoramento da qualidade
ambiental, o zoneamento ambiental, a educação ambiental, os sistemas de
licenciamento de atividades poluidoras, a avaliação de impactos ambientais”
etc.10
Na opinião de Meira et al, a Política Nacional do Meio Ambiente não
possui caráter “preservacionista do ambiente natural, no sentido de considerá-lo
intocável”. Para estes autores, a preservação do meio ambiente é voltada para
o desenvolvimento econômico do país, claramente demonstrado através da
leitura do art. 4º, inciso I, que prevê que tal política visará a compatibilização do
desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio
ambiente e do equilíbrio ecológico.11
Segundo Milaré 12, a Lei 6938/81 teve caráter “inovador”, uma vez que
“sua implementação, seus resultados, assim como a estabilidade e a efetividade
que ela denota, constituem um sopro renovador e, mais ainda, um salto de
qualidade na vida pública brasileira.”
Portanto, levando-se em conta tais argumentos, ainda que a Política
Nacional do Meio Ambiente tenha sido criada somente em 1981, ou seja, quase
dez anos após o Relatório de Brundtland, não se pode negar que representou
um avanço da legislação brasileira.

4. ZONEAMENTO ECOLÓGICO ECONÔMICO OU ZONEAMENTO


AMBIENTAL

O crescimento das cidades, decorrente do processo de industrialização,


fez que com que surgisse a preocupação com o ordenamento do solo.
Mercadante13, utiliza a expansão das cidades como exemplo para explicar o
conceito de zoneamento. A população de uma cidade cresce com seu
desenvolvimento tendo como consequência lógica desta expansão a
necessidade da utilização de mais madeira, para construção de casas, e mais
água, para consumo doméstico. Com isso será necessário desmatar
determinada área para a atender essas necessidades. Em razão disso, a

8 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. 5 ed. São Paulo: Foco, 2019. p. 387
9 BRASIL. Lei 6938/81, artigo 2º, inciso V.
10 BREDARIOL, Celso Simões. Conflito Ambiental e Negociação, Para Uma Política Local de

Meio Ambiente. Tese Doutorado - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2001.
11 MEIRA, Liziani Angelotti; LEAL, Hauá Hulek Linário; BARROSO, Pérsio Henrique.

Zoneamento Ecológico-Econômico e Imposto Territorial Rural Instrumentos para o


desenvolvimento sustentável. Revista de Informação Legislativa. Ano 50. Número 198 abr./jun.
2013.
12 MILARÉ, Edis. Direito do meio ambiente. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2014. p. 639
13 MERCADANTE, Maurício. Zoneamento Ecológico – Econômico. In: Legislação Brasileira sobre

o Meio Ambiente. Brasília: Série Legislação, 2015.


1315

população pode optar por um crescimento de forma planejada ou, “determinar


que o processo de ocupação do território seja determinado pelas “forças de
mercado.”14
Desta forma, o zoneamento apresentou-se como uma alternativa para o
equilíbrio entre o desenvolvimento e a preservação do meio ambiente, criada
pela Política Nacional do Meio Ambiente e que, segundo Machado15, “deve ser
a consequência do planejamento”.
O zoneamento ecológico econômico (ZEE) tem sua base na Constituição
Federal, nos artigos 21, IX; 117, VI; 186, II e 225, bem como na Política Nacional
do Meio Ambiente, no art. 9ª da Lei 6938/81. 16 Assim, é considerado um
instrumento importante de planejamento e gestão do território porque direciona
as atividades econômicas de forma a preservar o meio ambiente além de limitar
o poder de atuação governamental com relação aos seus interesses, uma vez
que os autoriza ou impede a utilizarem do solo de forma impensada.17
O uso da propriedade pelo povo não pode ser realizado de qualquer
forma. Para tanto, Machado18 considera o ZEE “[...]como um dos um dos
aspectos do poder de polícia administrativa.” A norma que regulamenta o
zoneamento ambiental, o Decreto Federal nº 4.297/2002, prevê em seu artigo 2º
que a organização do território deve ser feita de maneira que sejam preservados
os recursos naturais e enfatiza expressamente a importância da manutenção do
desenvolvimento sustentável.
Embora a validade jurídica da referida norma não seja objeto principal do
presente estudo, importante ressaltar reflexão trazida por Granziera, a qual alega
que “o Decreto n° 4.297/02 gera insegurança jurídica ao dispor no artigo 6, B, II,”
uma vez que “se um decreto não pode definir matéria de lei, como esta regra
exige a aprovação pela Assembleia Legislativa Estadual, para que as ZEEs
municipais, estaduais e regionais sejam reconhecidas pelo Poder Público
Federal?”19
Outro ponto importante sobre o ZEE diz respeito à sua competência que
é compartilhada nas três esferas de governo, ou seja, tanto a União, como os
Estados e Municípios possuem responsabilidade com relação à sua
implantação.
O Estatuto da Cidade estabelece em seu art. 4º, III, “c” a possibilidade do
zoneamento em nível municipal. No entendimento de Milaré 20, o zoneamento
ambiental municipal “tem dupla reação político-administrativa: com o uso e a
ocupação do solo no âmbito do Município ou com o zoneamento ambiental em
escala maior (intermunicipal, metropolitano, microrregional, estadual).” 21 A par

14 Idem.
15 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. Ed Malheiros. São Paulo,
2014.
16 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. 5 ed. São Paulo: Foco, 2019.
17 JÚNIOR, Mario Roberto Attanasio; ATTANASIO, Gabriela Muller Carioba. O dever de

elaboração e implementação do zoneamento ecológico-econômico e a efetividade do


licenciamento ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 11, n. 43, p. 203-221,
jul./set. 2006.
18 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. São Paulo: Malheiros,

2014.
19 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. 5 ed. São Paulo: Foco, 2019.
20 MILARÉ, Edis. Direito do meio ambiente. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.

1003.
21 Idem
1316

desta competência, a dos Estados, por sua vez, está prevista no art. 9º do
Decreto 4.297/02.
Diante da possibilidade de desdobramentos federativos e
interfederativos na elaboração dos ZEEs é imprescindível a cooperação entre as
esferas de governo e das regiões metropolitanas para que, de fato, esse
instrumento seja eficaz, uma vez que dependendo do tipo de zoneamento, este
se dará no território de um ou mais entes.
Na opinião de Meira et al, “juristas tradicionais tendem a ver o ZEE como
norma, instrumento de comando e controle; útil como prova judicial, dispositivo
restritivo de fazer ou não fazer.” Segundo estes autores, planejadores não
enxergam o ZEE como instrumento de imposição de vontade, preferem avaliá-lo
como sendo de maior flexibilidade, com algo que se adeque ao dinamismo sócio
econômico, e afirmam que “essa ambiguidade está no cerne do ZEE.” 22
No que diz respeito aos princípios ambientais aplicáveis ao ZEE estão o
da função socioambiental da propriedade, da prevenção, da precaução, do
poluidor-pagador, do usuário-pagador, da participação informada, do acesso
equitativo e da integração23.
De qualquer forma, é importante que o zoneamento seja debatido de
forma aberta e ampla, pois somente assim será possível que o desenvolvimento
local seja feito de maneira mais branda possível com relação ao prejuízo do meio
ambiente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de desenvolvimento sustentável decorreu da necessidade de


uma visão global acerca da limitação dos recursos naturais quando analisados
diante do contexto do desenvolvimento econômico, o que demonstra que a
preocupação com o equilíbrio entre meio ambiente e desenvolvimento não é
recente.
O Relatório de Brundtland elaborado há quase cinquenta anos já indicava
a imprescindibilidade dessa correlação para a manutenção dos ecossistemas.
Neste sentido, não se pode negar ser positivo o aumento do arcabouço
institucional e normativo acerca da temática do desenvolvimento sustentável. No
âmbito nacional pode-se citar a Política Nacional do Meio Ambiente entre outras
normas fundamentais, tal como o Código Florestal, de Recursos Hídricos entre
outros relevantes.
O ODS 11, que diz respeito ao desenvolvimento sustentável citadino,
encontra um grande desafio na medida em que o crescimento das cidades e a
exploração dos recursos naturais crescem a cada dia, sendo certo que é um
processo de aplicação permanente. Diante disso, há a necessidade de
percepção global acerca do que é a manutenção dos ecossistemas por parte da
sociedade civil, Estados e instituições, da urgência de um planejamento que vise
o equilíbrio destes dois fatores.
A Política Nacional do Meio Ambiente de fato, representou um avanço
com relação à criação de normas servidoras de diretrizes para a proteção do

22 MEIRA, Liziane Angelotti; LEAL, Hauá Hulek Linário; BARROSO, Pérsio Henrique.
Zoneamento Ecológico-Econômico e Imposto Territorial Rural Instrumentos para o
desenvolvimento sustentável. Revista de Informação Legislativa Ano 50 Número 198 abr./jun.
2013. p.172
23 Idem.
1317

meio ambiente. No mesmo sentido, o zoneamento ecológico econômico


demonstra ser um excelente instrumento de planejamento que possa cumprir
este objetivo do desenvolvimento sustentável.
Desta forma, é necessária vontade política e cooperação entre as
diferentes escalas de poder para que as normas ambientais sejam
implementadas de maneira eficaz, bem como a participação de todos os
interessados, seja sociedade civil, instituições governamentais ou não, na
fiscalização e apoio para o cumprimento das metas previstas neste e em outros
ODS.

REFERÊNCIAS

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efetividade do licenciamento ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo,
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1318

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Regulamenta o art. 9o, inciso II, da Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981,
estabelecendo critérios para o Zoneamento Ecológico-Econômico do Brasil -
ZEE, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4297.htm> . Acesso em: 25
jun.2019.

_______. Lei 12.651/12. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as


Leis nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e
11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nºs 4.771, de 15 de
setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória nº
2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12651.htm>.
Acesso em: 25 jun. 2019.

_______. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional


do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá
outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm>. Acesso em: 21 jun. 2019.

_______ Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 19 jun. 2019.
1319

A (DES) PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS AO MEIO AMBIENTE PELO


ESTADO BRASILEIRO
THE (UN) PROTECTION OF HUMAN RIGHTS TO THE ENVIRONMENT BY
THE BRAZILIAN STATE

Isabelle Dias Carneiro Santos


Fabiano Diniz de Queiroz Pilate

Resumo: Até o século XIX, a proteção do meio ambiente era relegada a um


segundo plano, havendo pouca ou nenhuma consciência ecológica de respeito
e preservação da natureza, existindo uma preocupação mais com as finalidades
econômicas do que com os valores ambientais. Somente nas últimas décadas é
que a proteção a um meio ambiente saudável se tornou assunto de suma
importância, tanto na esfera política e social, quanto jurídica, numa relação
estreita com a proteção da dignidade da pessoa humana. Apesar das normas de
cunho nacional e de o Brasil ser signatário de tratados internacionais sobre a
proteção ao meio ambiente, na prática não são raros os casos de nítida violação
a tal direito, dentro os quais se encontra a falta de água potável e saneamento
básico em distintas regiões do país. Para tanto, foi utilizado método descritivo e
exploratório, com base na legislação nacional, tratados internacionais, doutrinas,
casos e sites.
Palavras-chave: Meio Ambiente. Saneamento Básico. Direitos Humanos.

Abstract: Until the nineteenth century, environmental protection was relegated


to the background, with little or no ecological awareness of respect and
preservation of nature, with concern for economic purposes rather than for
environmental values. Only in the last decades has the protection of a healthy
environment become a matter of great importance, both politically and socially,
as well as juridically, in a close relationship with the protection of the dignity of
the human person. Despite national standards and Brazil being a signatory to
international treaties on protecting the environment, in practice, cases of clear
violation of this right are not uncommon, examples of which include deforestation
in the Amazon forest, pollution of lack of basic sanitation. For that, a descriptive
and exploratory method was used, based on national legislation, international
treaties, doctrines, cases and sites.
Key-words: Environment. Sanitation. Human rights.

INTRODUÇÃO

A proteção da pessoa humana no que tange ao meio ambiente tornou-se


uma preocupação crescente não só na esfera nacional, como também
internacional, com a inserção tanto no território brasileiro como na ordem externa
de documentos inerentes a proteção dos direitos humanos no campo do direito
ambiental.
Porém, para que haja um desenvolvimento sustentável na esfera
econômica sem prejuízo ao meio ambiente, mister que valores e paradigmas
venham a ser mudados para se adequarem à nova realidade jurídico-social que
norteiam o meio ambiente no século XXI, tendo em vista que o meio ambiente,
segundo Jose Afonso da Silva é: “a interação do conjunto de elementos naturais,
1320

artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em


toda as suas formas” (SILVA, 2008, p. 02).
Para que isso se dê, necessário que o ser humano, acostumado nos
últimos tempos a pensar de forma imediatista e não a longo prazo, passe a ver
questão ambiental como um tema a ser trabalhado visando as gerações não só
presentes como também futuras, por meio de ações estatais e não estatais, que
evitem ou ao menos mitiguem violações aos direitos da pessoa humana, seja na
órbita, como na nacional.

1. EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DESDE A MODERNIDADE

Os direitos humanos como conhecemos hodiernamente remonta à


Revolução Francesa, época em que os direitos civis e políticos foram pleiteados
pelo povo e, que surgiu a Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, que
limitou o poder dos governantes até então defendido, e veio a nortear às três
primeiras gerações ou dimensões de direitos humanos, com um novo regime de
leis.
A partir de então, iniciou-se reivindicações a direitos variados nas diversas
esferas sociais, surgindo gradativamente a necessidade de lutar por direitos.
Assim, passasse a dividir modernamente os direitos humanos, em três principais
gerações ou dimensões, como alguns autores preferem. Outros estudiosos
ainda acrescentam uma quarta e ainda há outros que já inserem uma quinta e
uma sexta dimensão, inserindo-se nessa última o saneamento como um direito
humano fundamental.
Tem-se a priori, no início no século XVIII, pós Revolução Francesa, a
reivindicação de direitos civis e políticos, denominados de “direitos da liberdade”,
sendo chamados de direitos de primeira geração ou dimensão. Já os direitos de
segunda geração ou dimensão surgiram no cenário mundial em meados do
século XIX, com o advento da Revolução Industrial com políticas visando o
desenvolvimento econômico-social por meio de uma intervenção estatal, até
então mínima. No que se refere a gênese da terceira dimensão dos direitos
humanos, a maioria doutrinária considera seu surgimento no século XX, sendo
denominada de direitos da fraternidade ou solidariedade, cujos objetivos são
variados, dentre os quais a proteção do direito ao meio ambiente.
Vale frisar que, somente após Segunda Guerra Mundial é que a
preocupação com um ambiente saudável, bem como a um desenvolvimento
sustentável passam a serem objetos de discussões dos Estados com a inserção
de um número cada vez maior de documentos de prevenção e proteção nas
esferas nacional e internacional, com o escopo de mitigar os danos ambientais,
e assegurar uma vida digna, para as gerações presentes e futuras.
Conforme lições de José Rubens Morato Leite e Ney Bello Filho (2004, p.
639) “o direito ambiental é o novo marco jurídico de emancipação que permitirá
a ampliação da cidadania no século XXI” ganhando relevância nas constituições
de diversos países como um direito fundamental, incluso no nosso ordenamento
jurídico pátrio.
Outras dimensões posteriores também surgiram, como a quarta que trata
dos direitos ligados questões sobre globalização e ao biodireito, a quinta geração
que aborda direitos ligados a internet e a cibernética, porém com relação a essas
duas dimensões há algumas celeumas e, por fim, a sexta, que aborda a água
1321

potável e o saneamento básico como mais um direito humano, estando este


relacionado à questão ambiental.

2. DIREITO AMBIENTAL E A SUA PROTEÇÃO JURÍDICA COMO UM DIREITO


HUMANO

2.1. PROTEÇÃO FUNDAMENTAL PELO DIREITO PÁTRIO

No Brasil, as Constituições anteriores à de 1988, não consagravam regras


específicas sobre o meio ambiente. A Constituição Federal de 1946 foi a única
que trouxe menção sobre o direito ambiental em seu bojo, estabelecendo a
competência para a União legislar sobre a proteção da água, das florestas, da
caça e pesca. Com a sua revogação o assunto deixou de ser uma preocupação
estatal.
Até a primeira metade da década de 1970 temas relativos ao direito
ambiental ficaram relegados a plano secundário pelo Estado, tendo em vista que
a ânsia por um desenvolvimento e crescimento econômico estava em primeiro
lugar, apesar de algumas posições contrárias a esta postura, como a de Araújo
Castro, diplomata brasileiro junto Organização das Nações Unidas de 1968 a
1971.
Apesar de algumas defesas no sentido de proteção ao meio ambiente, o
governo brasileiro ainda se pautava no conceito de soberania absoluta, no qual
poderia aproveitar de seus recursos naturais por meio de explorações
desenfreadas, visando seu desenvolvimento, em detrimento de uma proteção a
um meio ambiente equilibrado. Essa postura se deve a própria realidade do
direito ambiental à época, que vivia a chamada primeira dimensão, ou seja,
“baseava em regras que não ultrapassava o limite do Estado”. (MORATO LEITE,
2008, s/p)
Somente com o advento da década de 1980, é que algumas visões
passaram a ser alteradas e a publicação da Lei de Política Nacional do Meio
Ambiente – Lei nº 6.938/1981 – o tema passou a ser definido no ordenamento
nacional (BRASIL, 1981).
No cenário internacional a Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente
Humano de 1972 assegurou a “correlação de dois direitos fundamentais do
homem: o direito ao desenvolvimento e o direito a uma vida saudável” (ONU,
1972). Essa ideia foi trazida pelo constituinte originário em 1988, passando a ser
o direito a um ambiente digno e não poluído um direito fundamental, e a sua
violação um ferimento aos direitos humanos.
Assim, com a elaboração da Constituição da República Federativa do
Brasil, de 1988, (CF/88) o direito ambiental se consagrou como um direito
fundamental do ser humano, tratando do tema em algumas normas
constitucionais como os artigos 23, incisos III, IV, V VI, VII, IX; 170, inciso VI e
mais especificamente em seu artigo 225, caput que prevê, in verbis:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem


de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para às presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988)

Importante consignar que, de acordo com o texto constitucional, o meio


ambiente não é um bem público de uso comum do povo. Desse modo, se uma
1322

regra ambiental incidir sobre uma propriedade privada, esta continuará sendo
uma propriedade privada. O que o constituinte quis dizer aqui é que o meio
ambiente é um bem de interesse público (SILVA, 2008, p.86).
Apesar de menções das normas constitucionais quanto a uma incipiente
preocupação de proteção ambiental, foi a Lei nº 6.938/81, marco inaugural do
Direito Ambiental no Brasil, trazendo delineamentos normativos gerais a respeito
da proteção ao meio ambiente, bem como instrumentos para efetivar a proteção
ao meio ambiente, sendo esta lei, completamente recepcionada pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Embora a Lei supracita seja nosso marco para o ramo ambiental, ela
recebeu e ainda recebe algumas críticas, em especial no que diz respeito ao
conceito de meio ambiente estabelecido pela legislação, pois “o conteúdo não
está voltado para o aspecto fundamental do problema ambiental, que é,
exatamente, o aspecto humano. A definição legal considera o meio ambiente do
ponto de vista puramente biológico e não do ponto de vista social que, no caso
é fundamental.” (ANTUNES, 2010, p. 42)
Na década de 1990, outras normas referentes à proteção ambiental foram
elencadas na Lei nº 9.605/98, art. 29, §§ 2º e 4º, e na Lei nº 9.714/98 dentre
outras, ampliando-se a legislação pátria sobre o assunto. A partir de então, o
Estado brasileiro passou a se engajar cada vez mais nas questões relativas ao
desenvolvimento sustentável, no âmbito internacional, como veremos a seguir.

2.2. DIREITO AMBIENTAL E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS

A preocupação inicial com a questão ambiental tem sua gênese no século


XIX, porém com um intuito preservacionista da fauna, da flora e rios. Somente
na década de cinquenta do século passado é que tal ramo do direito passou a
tratar não só da preservação, mas também da prevenção do meio ambiente
contra o aumento de poluição à época, por meio de uma cooperação
internacional.
Essa ligação entre meio ambiente e direitos humanos, acabou
influenciando fortemente na transição da chamada fase de internacionalização
da proteção ambiental, onde a preocupação se restringia com a proteção
ambiental nas zonas fronteiriças, para uma nova fase, a chamada globalização
do direito ambiental em que “os princípios de caráter global aplicam-se aos
territórios dos Estados, independentemente de qualquer efeito transfronteiriço, e
regem zonas que não estão sob a competência de nenhum território nacional”.
(CANÇADO TRINDADE, 1993, 261-289).
Porém a internacionalização das questões relativas a proteção dos
direitos humanos frente ao meio ambiente deu-se com o advento da Carta das
Nações Unidas e outras tantas convenções internacionais com o fito de
preservar e proteger o meio ambiente e ao mesmo tempo estimular o
desenvolvimento econômico e social com sustentabilidade. Na década de 1970
destacou-se a Declaração sobre o Meio Ambiente Humano das Nações Unidas,
adotada em Estocolmo no ano de 1972, mais conhecida como ECO-92, e que
implementou o Protocolo de Quioto. implementação do Protocolo de Quioto.
implementação do Protocolo de Quioto. Vinte anos mais tarde, a maior evidência
foi a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
1323

em 1992, no Rio de Janeiro, ampliando dessa forma o rol de abrangência das


questões a serem tratadas.
No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o Protocolo Adicional à
Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, também conhecido como Protocolo de San
Salvador, expressamente prevê em seu artigo 11 o direito ao meio ambiente
sadio, bem como o dever dos Estados de promoverem a proteção, preservação
e melhoramento do meio ambiente.
Esse sistema tem desenvolvido importantes padrões internacionais no
marco do direito internacional dos direitos humanos com relação à proteção e
garantia do direito ao meio ambiente sadio através de uma interpretação ampla
da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, ou Pacto de San Jose,
aplicando o Protocolo de San Salvador como vetor interpretativo para a garantia
dos direitos à vida digna e à saúde, ou seja, o direito ambiental sendo utilizado
de forma transversal para garantia de direitos civis básicos. (SHELTON DINAH,
2010, p.11-127).
No Sistema Africano de Proteção de Direitos Humanos, a Carta Africana,
de forma pioneira, abarcou em seu texto, tanto direitos civis e políticos, como
direitos econômicos, culturais e sociais. No que tange as demandas envolvendo
o direito ambiental, pode-se receber a tutela direta da Corte Africana de Direitos
Humanos e dos Povos, não necessitando qualquer esforço interpretativo ou
extensivo para se aplicar normas de proteção internacional de direitos humanos.
Desse modo, percebe-se que a relação do Direito Internacional dos
Direitos Humanos e do Direito Internacional Ambiental torna-se cada vez mais
estreita e evidente, em que “as normas de proteção internacional ao meio
ambiente têm sido consideradas como um complemento aos direitos do homem,
em particular o direito à vida e à saúde humana”. (SOARES, 2003, p. 173).
As preocupações com o meio ambiente deixam de cuidar tão somente do
efeito da poluição em determinado espaço físico e passa a tratar dos problemas
que envolvem um meio ambiente saudável e sustentável em nível global, em que
a resolução de tais problemas passam a ser de competência do conjunto Estado
soberanos, e um dever a ser compartilhado por toda a sociedade que na grande
maioria dos casos arca apenas com o ônus dos problemas que afligem a
natureza e o ser humano.

3. A INOBSERVÂNCIA DO SANEMAENTO BÁSICO COMO VIOLAÇÃO


AMBIENTAL PELO ESTADO BRASILEIRO

Apesar de todos os esforços e de um instrumental legislativo no âmbito


nacional e internacional, o Estado brasileiro, permanece constantemente
desatento às violações ao meio ambiente, quando não, o próprio Estado é o
violador. Esse é um padrão histórico e permanente no país.
Podemos citar diversos contextos em que as violações ao meio ambiente
são mais evidentes, tais como Serra Pelada, os desmatamentos constantes, e
mais recentemente os casos de Mariana e da Samarco. Contudo, questões
concernentes ao saneamento básico em geral são preteridas, apesar da
importância para a saúde humana e preservação do meio ambiente.
O saneamento, ao lado da água potável, foi reconhecido como sexta
dimensão de direitos humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas
(AGNU) em 2010 (ONU, 2016).
1324

No ordenamento pátrio é um direito assegurado pela Constituição da


República Federativa do Brasil, de 1988, e regulado infraconstitucionalmente
pela Lei nº 11.445, de 2007 – da Política Nacional de Saneamento Básico –, e
diz respeito ao serviço de água e saneamento prestado pelo Estado, ou empresa
concessionária do serviço público aos integrantes de determinada comunidade,
especialmente no que se refere ao abastecimento de água potável, ao
esgotamento sanitário, a limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e a
drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. (BRASIL, 2007)
Por atuar como um campo de combate eficaz da pobreza e da degradação
do ambiente, de modo que a efetividade dos serviços de abastecimento de água
e esgoto, o saneamento básico integra o rol dos direitos fundamentais sociais,
como o direito à saúde e o direito à água (potável), ambos essenciais a dignidade
humana. Dessa forma, o saneamento básico caracteriza-se como um direito e
dever fundamental do indivíduo e da coletividade, além de serviço público
essencial e, portanto, dever do Estado. (SARLET; FENSTERSEIFER, 2011,
p.117).
Dessa forma compreende-se que o saneamento básico além de proteger
o meio ambiente, evitando a poluição, em especial da água e do solo é fator
determinante para a concretização de diversos outros direitos fundamentais
como a saúde e a vida digna.
Em 2017, o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS),
apurou informações sobre abastecimento de água e esgotamento sanitário no
Brasil. Esse documento é de extrema relevância para pautar políticas públicas e
demonstrar a realidade brasileira no que concerne ao saneamento básico.
Com relação ao esgotamento sanitário, o documento apresenta que o
índice médio de atendimento urbano com rede coletora de esgotos aponta
valores acima dos 70% apenas no Distrito Federal e em São Paulo, Minas Gerais
e Paraná, mesmas unidades da federação com este índice desde 2014. Na faixa
de 40% a 70%, aparecem: Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso
do Sul, Roraima, Bahia e Paraíba. Na faixa de 20% a 40%, situam-se: Mato
Grosso, Rio Grande do Sul, Ceará, Tocantins, Pernambuco, Sergipe, Rio Grande
do Norte, Santa Catarina e Alagoas; na penúltima faixa, de 10% a 20%
encontram-se: Maranhão, Piauí, Acre e Amazonas. Por fim, na menor faixa,
inferior a 10%, há três estados: Pará, Amapá e Rondônia (MINISTÉRIO DO
DESENVOLVIMENTO REGIONAL, 2017, p. 47).
Com relação ao índice médio de atendimento urbano por rede de água, o
relatório indica valores acima de 90% no Distrito Federal e em 18 estados:
Paraná, Roraima, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Tocantins, Mato Grosso,
Goiás, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Piauí, Bahia, Sergipe, Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Pernambuco. Na
faixa de 80% a 90%, aparecem Alagoas, que desceu de faixa em relação a 2016,
e Amazonas; na faixa logo abaixo, entre 60% e 80%, aparecem os estados
Ceará, Maranhão, Acre e Rondônia; e na penúltima faixa, de 40% a 60%, situam-
se Pará e Amapá. Destaca-se que o mapa não apresenta nenhum estado com
índice de atendimento urbano de água inferior a 40%. O Amapá, que até 2016
era o único estado com índice inferior a 40%, apresentou um índice de
atendimento urbano de água igual a 40,4% em 2017 (MINISTÉRIO DO
DESENVOLVIMENTO REGIONAL, 2017, 44).
Relevante ainda mencionar a questão da perda da água no processo de
abastecimento, o que ocorre, de forma geral, por conta de ineficiências técnicas
1325

e são inerentes a qualquer sistema de abastecimento de água, sendo um tema


de alta relevância frente a cenário de escassez hídricas. Nesse cenário, são
fundamentais os programas de avaliação, controle e redução de perdas
contínuos e efetivos como, por exemplo, o Programa Nacional Combate ao
Desperdício de Água – PNCDA. Os dados refletem desigualdades regionais há
bastante tempo conhecidas e de forma geral, demonstra que os investimentos
em saneamento básico no Brasil ainda ocorrem de forma lenta.
Evidentemente que todo esse contexto gera impactos não apenas ao
meio ambiente conforma já citado, mas também à saúde da população. No
entanto, acredita-se que os prejuízos não se encerram por aí, uma vez que a
ausência de saneamento básico e condições mínimas de salubridade também
impactam nos investimentos econômicos.
Vale ressaltar que os investimentos com obras de saneamento básico
criam empregos e expandem a renda da economia, com diversos impactos
benéficos inclusive incrementando atividades econômicas, como por exemplo, o
turismo que necessita de condições sanitárias adequadas para sua expansão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A doutrina passou a considerar como Direito Humano de terceira geração


ou dimensão o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, e a sua
violação como afronta aos direitos humanos fundamentais dispostos na Lei
Maior brasileira.
Essa preocupação se dá, sobretudo porque quando falamos em meio
ambiente saudável vivendo em conjunto com um desenvolvimento sustentável,
tratamos de questões que vão incidir não só na atualidade, mas que também
terão influência nas gerações futuras.
Desse modo, se não pudermos viver num planeta não poluído e sem
ameaças que coloque em risco a sua preservação, a própria existência do ser
humano no planeta estará ameaçada com consequências de difícil reparação e
solução.
Vale lembrar que os problemas ambientais são multidimensionais e
transtemporal, assim quando tratamos de proteção ao meio ambiente,
necessário se faz um trabalho conjunto entre o Poder Público e a sociedade por
meio de métodos de implementação de saneamento básico não apenas em
determinadas regiões e grandes cidades, mas de modo global em todo o país,
para que não somente o meio ambiente seja protegido, mas também o próprio
ser humano,, visando um alcance a todos indistintamente.
Se analisarmos as fases do Direito Ambiental brasileiro poderemos notar
que essa preocupação sempre passou ao largo das políticas governamentais,
não sendo esse um fenômeno recente. A pauta ambiental cada vez mais urgente
no mundo, no Brasil é relegada ao plano do discurso e da legislação simbólica.
No presente trabalho tivemos a intenção de brevemente demonstrar todo
esse contexto de desproteção do Direito Ambiental, exemplificando com dados
relativos ao saneamento básico, sendo este apenas um aspecto da grande
emergência da temática.
As políticas públicas ambientais sofrem forte influência das decisões
governamentais, mas não apenas destas, há também todo o aspecto de
comportamento social a ser tratado e remodelado como forma de se reconhecer
o caráter finito dos recursos ambientais.
1326

O crescimento econômico e a pauta ambiental sem dúvidas podem


caminhar juntas, eis que este era o espírito do constituinte de 1988. Mas,
somente se forem traçadas políticas ambientais sérias e sustentáveis a longo
prazo, haverá um incremento do desenvolvimento humano e melhoria da
qualidade de vida da população.

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1328

A COMPLEXIDADE DA RODOVIA BR-319


THE COMPLEXITY OF ROAD BR-319

Allex Jordan Oliveira Mendonça


Larissa Campos Rubim
Orientador(a): Gláucia Maria de Araújo Ribeiro

Resumo: O objetivo desta pesquisa é o de analisar os aspectos transdisciplinares


da rodovia BR-319 a partir da análise da complexidade, ensinada por Edgar Morin,
apresentando os prós e contras que orbitam este tema. A metodologia utilizada
nesta pesquisa foi a do método dedutivo; quanto aos meios a pesquisa foi a
bibliográfica, com uso da doutrina e legislação; quanto aos fins, a pesquisa foi
qualitativa. Concluiu-se que a BR-319 poderia ser uma realidade brasileira,
entretanto, em meio a crise ambiental na qual a sociedade se encontra, não há
como se falar em viabilidade desta rodovia, pois seus impactos negativos ainda
são maiores e mais preocupantes que os impactos positivos.
Palavras-chave: Complexidade. Meio Ambiente. Rodovia BR-319.

Abstract: The objective of this research is to analyze the transdisciplinary aspects


of highway BR-319 from the complexity analysis taught by Edgar Morin.
Introducing the pros and cons that orbit this theme. The methodology used in this
research was of the deductive method; how much to the ways the research was
the bibliographical with use of the doctrine
and legislation; how much to the ends the research was qualitative. It was
concluded that the BR-319 could be a Brazilian reality however in the midst of the
environmental crisis in which society finds itself there is no way to talk about the
viability of this highway because its negative impacts are still greater and more
worrying than the positive ones.
Keywords: Complexity. Environment. Highway BR-319.

INTRODUÇÃO

As questões ambientais são corriqueiramente pauta do Estado, cuja


importância deveria ser alta devido à constatação da fragilidade do meio ambiente
perante as ações antrópicas. Isto porque o meio ambiente sadio satisfaz o bem-
estar da coletividade para as atuais e futuras gerações, conforme preconiza o
mandamento constitucional. Do conceito de meio ambiente é possível analisar o
embate de direitos que transpassam o cotidiano do ordenamento jurídico. Ainda
que o homem seja o destinatário do Direito Ambiental, muitos problemas
envolvendo o homem e a natureza encontram espaço para discussões
transdisciplinares. Dentro deste contexto, analisar problemas ambientais, que
dizem respeito ao progresso econômico em concomitância com a preservação do
meio ambiente, necessita de uma atividade interpretativa através da
complexidade de Edgar Morin, para a resolução do caso concreto seja justa.
Exemplo disso é a problemática da Rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto
Velho.
Para alguns, esta rodovia é sinônimo de progresso, desenvolvimento
econômico e social. Para outros, significa degradação ambiental problemas
sociais e ingerência estatal. De fato, mesmo que seja necessário o pensamento
progressista do Estado, entretanto, outras questões devem ser pré estabelecidas
1329

para que este desenvolvimento respeite o meio ambiente e o que vem descrito
na Constituição Federal de 1988. Assim, analisando o caso da rodovia a partir do
conceito de complexidade, o presente trabalho visa demonstrar os prós e contras
que envolvem a BR-319. Tal rodovia foi construída na década de 1970 e trouxe
consigo a promoção do desenvolvimento econômico para o Estado do Amazonas.
Sua utilidade foi precária, visto a existência de alternativas mais plausíveis, falta
de gerência e baixo tráfego. Atualmente a rodovia já é pauta do Poder Público,
que sinaliza como viável a sua utilização. Assim, o uso da complexidade como
parâmetro é fundamental devido os aspectos ambientais, sociais e econômicos
que orbitam esta questão.

1. DA RODOVIA BR-319: PERCEPÇÕES ELEMENTARES

A história da BR-319 se baseia num cenário político, cujos objetivos


revelaram mais preocupação com a segurança do território nacional, do que uma
política de desenvolvimento. Segundo Louzada (2014), a população brasileira
concentrou-se a maior parte nas regiões litorâneas do território. A região norte era
considerada um espaço demográfico vazio. Com a intenção de “povoar” estes
territórios, o Estado, governado na época por Getúlio Vargas, desenvolveu a
Política de Integração Nacional, visando a ocupação destas terras. Durante este
governo foi criado na região norte do país, através de decretos-lei, várias colônias
com a finalidade de incentivar a produção agrícola e a ocupação das áreas
consideradas vazias. Tal política foi alcunhada como “Marcha para o Oeste” e
representou uma potência forma de ocupação destes espaços demográficos.
Louzada (2014) nos ensina que a Amazônia passou muito tempo sendo
considerada – e amplamente divulgada – como uma região pacífica, com pouca
população. No ano de 1970, quando já instaurada a ditadura militar no país, o
governo, através do Decreto Lei nº 1.106 de 1970, criou o Programa de Integração
Nacional, cujo um dos objetivos foi a expansão da fronteira econômica até o norte
do país. (FEARNSIDE, 2009, p. 20).
A rodovia BR-319 foi construída na década de 70, inaugurada em 1976, e
de lá para cá pouco tráfego teve. Segundo Fearnside (2009), o uso desta malha
não conseguiu competir com a cabotagem – custo mais barato – feita pelos
navios. Depois de alguns anos a rodovia se degradou, causando problemas que
inibiram o tráfego para o norte. O relatório do DNIT (2008), que apresenta estudos
do licenciamento prévio para as obras de reconstrução e pavimentação da
rodovia, aponta algumas intenções do uso da rodovia. Dentre elas estão
principalmente a idéia de acesso regular e seguro a região do Purus-Madeira;
integração de municípios; o combate ao isolamento de importantes áreas. Em
1988 os serviços de transporte rodoviário foram suspensos nesta rodovia, devido
às más condições de sua estrutura.
Desde então a reconstrução da BR-319 tem sido incluída em vários
programas de governos. No ano de 2004 o projeto de usar a estrada foi,
novamente, inserido no Plano Plurianual (2004 a 2007). Em 2005, o Ministério
Público dos Transportes, juntamente com o Governo do Amazonas, anunciaram
a reconstrução da rodovia. Atualmente a rodovia ainda encontra-se intransitável,
havendo posicionamentos prós e contras quanto a sua utilização. Variadas são as
justificativas de utilização e não utilização, que passam por aspectos ambientais,
sociais, culturais, jurídicos, econômicos, políticos, etc. Assim, necessário o olhar
1330

da complexidade para mostrar a melhor proposta para resolução deste objeto de


estudo.
A rodovia tem um total de 877 km de extensão, sendo determinado pelo
DNIT a velocidade de 80km/h. Tal obra faz parte do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) e seu valor foi estimado em R$ 390.140.769,20. Dentre as
atividades para a reconstrução encontram-se serviços a terraplanagem, a
drenagem superficial, obras de arte, sinalização e proteção ambiental entre
outros. (DNIT, 2008). O empreendimento encontra-se no interflúvio Purus-
Madeira, e segundo o Bernard et al. (2009) tal área possui grande potencial de
biodiversidade, com altíssima prioridade de conservação. Ainda sim, é uma das
regiões menos estudadas da Amazônia.

Do ponto de vista geológico, geomorfológico e pedológico, a região


amazônica é uma das mais desconhecidas do país. A maior parte da
área de estudo apresenta uma topografia plana, situada entre dois dos
mais importantes cursos de água da Amazônia, os rios Purus e Madeira,
onde no seu interflúvio localiza-se a BR-319. (DNIT, 2008, p. 16).

Desta feita, a precariedade de estudos resulta em grandes ameaças nesta


localidade: abre possibilidade para o avanço da fronteira agrícola, já que não há
fiscalização, ocasionando atemorização a proteção da floresta e de ecossistemas
considerados singulares. Ressalta-se que a área encontra potencial rico em
espécie de aves, registrando mais de 740 espécies no local; assim como foram
encontradas várias espécies novas de peixes e mamíferos (BERNARD et al.,
2009).
Em relação a questão social, no que diz respeito a retomada da BR-319,
esta causa coragem e temor. Nesta feita, a partir da pesquisa de Louzada (2014),
pode-se perceber a percepção ambiental da população acerca da relação da
rodovia com os ideais de desenvolvimento. Os benefícios da rodovia estão ligados
a geração de emprego e renda, além do escoamento da produção agrícola.
Entretanto esta benesse vem acompanhada do aumento da violência, derrubada
da mata para exploração de madeira, grilagem, tráfico da fauna.
A maioria, 45% da população, mostra-se disposta a participar de
audiências públicas sobre a reabertura da BR-319, mas somente se
chegassem a ser convocados; 37 % se mostrou favorável à reabertura
da rodovia, afirmando que a mesma já foi aberta um dia, sendo
necessária ser novamente asfaltada, sinalizada e ter suas pontes
refeitas, já que praticamente não existem mais. Ainda desse total 5%
disseram que não desejariam participar, com destaque para uma
colocação “Filha eu não iria, pois não se decide o que já foi decidido”
(comunicação pessoal de um entrevistado). Do restante 4% iriam
conhecer os dois lados (benefícios e malefícios) da obra e 9% dos
entrevistados afirmaram não acreditar na reabertura da BR-319.
(LOUZADA, 2014, p.140).

Segundo Fearnside (2009), o impacto socioambiental ligada à retomada da


rodovia é ignorado, visto que se superestimam os benefícios das obras propostas.
Não só a atividade de desmatamento é considerada como o problema deste objeto
de estudo. Analisando pelo viés da complexidade, analisa-se que o aspecto social
também será afetado: a BR-319 proporcionará um fluxo população que poderá
acarretar problemas de inchaço demográfico, violência e disputa sobre terras. Em
1331

relação a questão jurídica da BR-319, Bernard et al. (2009) aponta algumas


irregularidades deste objeto de estudo.
O primeiro deles diz respeito à publicidade dada ao EIA/RIMA feito pelo
IBAMA, que não foram disponíveis na época. Somente 48h antes da primeira
audiência pública é que os arquivos foram disponibilizados. (BERNARD et al.,
2009, p. 6).
Em 2005, quando do anúncio da reconstrução da rodovia, através de uma
notificação do IBAMA, o Ministério Público Federal requisitou a suspensão
temporária das obras, através de medida cautelar, até que os requisitos
ambientais fossem atendidos. Entretanto tal medida foi rejeitada em segunda
instância, fazendo com que o MPF ajuizou Ação Civil Pública pedindo a nulidade
da licitação das obras, tendo em vista a falta dos requisitos ambientais.

2. DO PENSAMENTO COMPLEXO APLICADO NO CONTEXTO DA BR-319

A rodovia BR-319 é objeto de críticas por parte de várias áreas do


conhecimento, como biologia, sociologia, economia, etc. Em 1988 tal rodovia se
tornou intransitável e atualmente o Estado propôs a retomada de sua construção
e pavimentação. Pesquisadores apontam que a reconstrução deste
empreendimento seria um facilitador de degradação ambiental: a migração do
arco do desmatamento no norte do território brasileiro; a morte de animais
silvestres; aumento da pecuária bovina; especulação de terras, assim como sua
exploração ilegal. Noutro giro, há posicionamento favorável a retomada da
rodovia, com a justificativa de potencialização do crescimento dos Estados.
Entre prós e contras, a rodovia BR-319 torna-se objeto de estudo do Direito
Ambiental Constitucional, tendo em vista o comando normativo que impõe a
conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida para as presentes e futuras gerações, nos termos do art. 225
da Constituição Federal de 1988.Assim, tendo em vista a dificuldade em se trazer
uma solução que equilibre as variadas posições – e suas variadas justificativas –
a respeito da retomada da rodovia, o trabalho se utilizará da concepção de
complexidade, com a finalidade de demonstrar uma abordagem multidisciplinar a
respeito do tema, pois isolar o Direito, neste caso, utilizando apenas o estudo de
normas jurídicas, torna-se um trabalho inócuo, visto que não apresentará soluções
justas.
Ressalta-se: o Direito positivado não é capaz de acudir casos complexos,
como o da BR-319. Ao Direito Ambiental não é possível fixar apenas normas
jurídicas – este ramo é complexo por natureza, demanda estudo de várias áreas
do conhecimento. Levar em conta a complexidade neste objeto de estudo é
abordar as variáveis relevantes para determinar uma posição a respeito da (in)
viabilidade da rodovia.
Complexo é algo que não pode ser resumido em uma palavra só, não se
reduz a uma idéia ou a uma norma. A complexidade “é uma palavra problema e
não uma palavra solução” (MORIN, 1990, p. 8).
As idéias sobre a construção da BR-319 não podem ser vistas de formas
antagônicas, elas devem ser vistas de forma complementar, sem deixarem de ser
antagônicas. Neste sentido, “se a complexidade não é a chave do mundo, mas o
desafio a enfrentar, o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o
desafio, mas o que ajuda a revelá-lo e, por vezes, mesmo a ultrapassá-lo”
(MORIN, 1990, p. 11).
1332

Para resolver qualquer questão, de qualquer área da ciência, é necessária


a tomada de consciência do que vem ser o conhecimento. Neste sentido, Morin
(1990) ensina, através de quatro premissas, que nossa inteligência é cega. Isso
pode ser observado no caso da BR-319.

1. A causa profunda do erro não está no próprio erro (falsa percepção)


ou no erro lógico (incoerência), mas no modo de organização do nosso
saber em sistema de ideias (teorias, ideologias).
2. Existe uma nova ignorância ligada ao desenvolvimento da própria
ciência;
3. Existe uma nova cegueira ligada ao uso degradado da razão;
4. As ameaças mais graves em que a humanidade incorre estão ligadas
ao progresso cego e descontrolado do conhecimento (armas
termonucleares, manipulações de todas as espécies, desequilíbrio
ecológico, etc. (MORIN, 1990, p. 13).

Para Morin (1990) a idéia de complexidade diverge do pensamento


simples, que é segmentado e direto, pois carrega conceitos de profundidade e
interligação entre as variáveis que compõe o caso concreto. Além disso, o
pensamento simples não é legitimamente verdadeiro, neste caso, a realidade é
apropriada e desenvolvida em uma única solução. Enquanto este busca a
completude, o pensamento complexo induz a uma interligação das diversas áreas
da ciência.
Neste contexto, não é possível trazer uma solução rápida para o caso da
BR-319, pois pesquisas exatas, simétricas e conclusivas revelam um pouco da
ignorância da ciência. A complexidade leva como uma de suas premissas a
incerteza. Sabe-se que o desenvolvimento também causa destruições. Isto é
percebido em toda história da humanidade. As idéias de reconstrução da BR-319
podem traduzir uma realidade errônea de desenvolvimento. Segundo o autor “as
idéias e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de
maneira errônea. Nossa realidade não é outra senão nossa idéia da realidade.”
(MORIN, 2000, p. 85).
Neste sentido, estudos demonstram variadas posições a respeito da
utilização da rodovia. O pensamento complexo é aplicável neste caso, pois há
uma incerteza do real, que há algo possível ainda invisível da realidade. Assim, é
necessário que haja uma interpretação da viabilidade e da realidade da
revitalização da BR-319. Não só a justificativa econômica e desenvolvimentista
deve ser levada em conta. Questões sociais, culturais, ecológicas e físicas devem
ser levadas em conta.
Neste contexto, Morin (2000) assevera que mesmo que haja uma ação
voltada com boas intenções, esta pode escapar das idéias iniciais, contrariando a
intenção final. Com isso, o autor aplica a idéia de ecologia da ação, como forma
de levar em consideração a complexidade que cada caso supõe – o aleatório,
acaso, iniciativa, inesperado, imprevisto etc.

Aqui intervém a noção de ecologia da ação. Tão logo um indivíduo


empreende uma ação, qualquer que seja, esta começa a escapar de
suas intenções. Esta ação entra em um universo de interações e é
finalmente o meio ambiente que se apossa dela, em sentido que pode
contrariar a intenção inicial. Freqüentemente a ação volta como um
bumerangue sobre nossa cabeça. Isto nos obriga a seguir a ação, a
tentar corrigi-la — se ainda houver tempo — e, às vezes, a torpedeá-la,
como fazem os responsáveis da Nasa, quando explodem um foguete
1333

que se desvia de sua trajetória. A ecologia da ação é, em suma, levar


em consideração a complexidade que ela supõe, ou seja, o aleatório,
acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto, consciência de derivas
e transformações. (MORIN, 2000 p. 87).

Uma das vertentes que defendem a utilização da BR-319 fundamenta-se


na idéia de progresso. Assim, o crescimento econômico geraria o
desenvolvimento social e humano, com o aumento da qualidade de vida.
Entretanto, este conhecimento sobre a viabilidade e utilização da rodovia, com a
justificativa de progresso, é verdadeiramente progressista? Esta é a indagação
que Morin (2005), quando analisa a idéia de progresso.

Quer dizer: a noção de progresso que utilizamos é verdadeiramente


progressista? O conhecimento de que falamos é verdadeiramente
conhecente? É verdadeiramente conhecido? Quer dizer: sabemos sobre
o que falamos quando falamos sobre conhecimento? (MORIN, 2005, p.
95).

Estas questões podem ser trazidas para o objeto de estudo deste trabalho.
O progresso também pode levar ao crescimento de prejuízos – mais do que bem
estar.

Complexidade significa que a idéia de progresso, aqui empregada,


comporta incerteza, comporta sua negação e sua degradação potencial
e, ao mesmo tempo, a luta contra essa degradação. Em outras palavras,
há que fazer um progresso na idéia de progresso, que deve deixar de
ser noção linear, simples, segura e irreversível para tornar-se complexa
e problemática A noção de progresso deve comportar autocrítica e
reflexividade. (MORIN, 2005, p. 98).

Ressalta-se que o ideário de progresso leva junto o seu contrário. Não


existe um progresso automático, definitivo. A complexidade mostra que a
incerteza está inserida neste contexto. A retomada da BR-319 deve seguir estes
parâmetros. Levar em consideração as incertezas que este empreendimento pode
causar aos vários ecossistemas; as populações locais que vivem nestes
territórios; as finalidades das áreas protegidas. Pensar na funcionalidade da BR-
319 deve ser feito analisando o contexto na qual ela é inserida, ou seja, devem-
se analisar os aspectos sociais, culturais e políticos que fundamentam a sua
utilização. Caso os estudos mostram a inviabilidade de sua retomada, pensar em
outras formas de progresso é atividade que a complexidade prega. Deve-se
considerar que o entusiasmo ao progresso também leva algumas conseqüências.
Morin (2003), em seu livro intitulado Terra Pátria enumera alguns
problemas, que desencadearam a crise ecológica, fundamentadas no
desenvolvimento e progresso – dentre eles a deterioração da biosfera, a
desertificação, o desmatamento tropical e a difícil regradação. O pensamento da
BR-319 como objeto de progresso deve conciliar proteção ecológica e
desenvolvimento econômico – este é o chamado desenvolvimento sustentável.

3. O PREÇO DE IR E VIR NA AMAZÔNIA: PÓS E CONTRAS DA BR-319

O impacto ambiental que a execução do empreendimento irá causar é


considerado o maior problema do uso da rodovia. As interações com o meio
1334

ambiente alteram a qualidade ambiental da área. Segundo o DNIT (2008) cerca


de 49 potenciais impactos ambientais foram identificados.

Considerando a distribuição dessas ocorrências por meio (físico, biótico


e socioeconômico), observa-se um predomínio dos impactos negativos
nos dois primeiros, enquanto o meio socioeconômico apresenta uma
repartição mais eqüitativa. (DNIT, 2008, p. 24).

Neste sentido, o DNIT (2008) dividiu o impacto ambiental em três grupos:


podem física, biótica e socioeconômica. Os impactos ambientais de ordem físicas
dizem respeito a processos erosivos do solo, alteração da propriedade do solo,
assoreamento de corpos hídricos, interrupção e/ou alteração do fluxo dos corpos
d'água, alteração da qualidade da água.
No que diz respeito às questões bióticas, encontram-se impactos ambientais
relativos à retirada e conseqüente perda da cobertura vegetal e de sua
diversidade, afugentamento da fauna, interrupção de corredores bióticos,
alteração da composição e abundância das espécies, produção de lixo sólido,
acidentes com animais peçonhentos, perda de diversidade genética, aumento da
caça e pesca comercialização da fauna silvestre, introdução de fauna doméstica,
atropelamento da fauna silvestre, introdução de espécies exóticas, abertura do
dossel acima da pista, desmatamento, dominância de espécies comuns em
ambientes impactados e alteração do fluxo gênico entre populações de peixes.
Quanto à ordem socioeconômica, os impactos ambientais resumem-se em
perturbações ao patrimônio arqueológico, enfraquecimento e vulnerabilidade de
ordem social, despovoamento de terras indígenas, conflitos entre populações
locais e migrantes, ocupação desordenada nas áreas do entorno, alteração na
mobilidade espacial, alteração da estrutura fundiária, incidência dos casos de
doenças de veiculação hídrica, incidência dos casos de dengue e de leishmaniose
tegumentar, incidência dos casos de malária, incidência dos casos de febre
amarela, acidentes decorrentes da circulação rodoviária, alteração na demanda
por bens e serviços públicos.
O DNIT (2008) também apontou um número menor de impactos positivos,
dentre eles estão: alteração na demanda por bens e serviços públicos, facilitação
do escoamento da produção, potencialização do turismo local e na oportunidade
de acesso à cultura e lazer, diminuição da evasão escolar, facilidade no acesso
ao ensino médio, superior e capacitação profissional, ampliação de alternativos
rodoviários, recuperação de passivos, aumento da governança, conhecimento da
região, fortalecimento das associações e cooperativas, aumento da integração
regional, aumento dos rendimentos, na oferta de postos de trabalho e nas
arrecadações públicas.

Os benefícios de pavimentar a BR-319 são, indubitavelmente, menores


do que aqueles retratados no discurso político que cerca o assunto. A
justificação principal apresentada é a redução de custos de transporte
no frete para o centro sul brasileiro, aumentando assim a competitividade
de produtos industriais de Manaus nos mercados em São Paulo e em
outros centros de população. Porém, os produtos industriais de Manaus,
como televisores e motocicletas, não são artigos perecíveis para os
quais a diferença de alguns dias em tempo de transporte faria uma
diferença significante.(FEARNSIDE, 2009, p. 31).
1335

Fearnside (2009) aponta que o maior benefício da BR-319 não diz respeito
ao bem-estar da população e ao desenvolvimento econômico, com severas
críticas, afirma que “o benefício principal da BR-319 seja os benefícios políticos
para os que conseguem levar o crédito pela sua reconstrução”. (FEARNSIDE,
2009, p. 33).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto velho, é objeto de críticas por
várias áreas do conhecimento. Pensar através da complexidade é tarefa ímpar
neste caso, pois viabiliza as várias concepções a respeito dos impactos que serão
causados caso o empreendimento seja feito. Neste sentido, a necessidade de
ponderar a respeito dos prós e contras da rodovia é fundamental. De um lado, o
desenvolvimento econômico, através da facilitação do escoamento da produção,
possibilidade de deslocamento populacional e crescimento de renda. Em
contrapartida, este empreendimento pode causar a facilitação do “arco do
desmatamento”, que envolve várias questões ambientais e sociais, que envolvem
distribuição de terra, violência e ausência de governabilidade.
De fato, a questão de desenvolvimento no Amazonas é matéria que merece
destaque, entretanto, a partir das análises, nota-se que não é possível crer na
revitalização da BR-319 num momento em que a sociedade encontra-se no meio
de uma crise ambiental. Assim, inviável visar ao desenvolvimento econômico sem
políticas públicas e uma governabilidade que realmente se preocupe com a
preservação do meio ambiente. Para a BR-319 ser viável, seria necessário
mudanças nas três esferas do governo, que incluíssem diretrizes de justiça
ambiental, desenvolvimento sustentável, além da ausência de corrupção, pois
como foi visto no trabalho, a rodovia encontra-se eivada de vícios jurídicos e
ilegalidades que freiam o desenvolvimento sustentável.
Como há vários problemas ambientais que incidem na BR-319, não é
possível crer na viabilidade desta rodovia, cujos impactos negativos ainda são
maiores, podendo estes causar danos irreversíveis ao meio ambiente. Além disso,
pensar em outras formas de desenvolvimento e progresso poderia ser objeto de
pauta a fim de encontrar soluções plausíveis e que não afetem drasticamente o
meio ambiente.

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A SOCIEDADE DE RISCO NA NOVA ÉPOCA DO ANTROPOCENO: A


APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO PARA A
GESTÃO DOS RISCOS AMBIENTAIS
THE RISK SOCIETY IN THE NEW ANTHROPOCENE EPOCH: THE
APPLICATION OF PREVENTIVE AND PRECAUTIONARY PRINCIPLES IN THE
MANEGEMENT OF ENVIRONMENTAL RISKS

Rafaela de Deus Lima


Orientador(a): Lívia Gaigher Bósio Campello

Resumo: O presente trabalho analisa a aplicação dos princípios da prevenção e


da precaução para a gestão dos riscos ambientais decorrentes da crise ecológica
global na nova época geológica do Antropoceno. Nesse intuito, parte do conceito
de Antropoceno e de sua relação com a crise ecológica global. Ainda, é realizada
uma breve análise da sociedade de risco no contexto de crise ecológica. Por fim,
é estudado o princípio da prevenção e da precaução na gestão dos riscos
ambientais. Em conclusão, é constatada a possibilidade de aplicar trais princípios
ao lidar com os riscos ambientais decorrentes da crise ecológica global no
Antropoceno. Para tanto, utiliza a pesquisa descritiva, bibliográfica e documental,
com uma análise de obras e artigos científicos. O método é dedutivo, partindo de
um conceito geral até sua particularização.
PALAVRAS-CHAVE: Antropoceno. Riscos ambientais. Princípio da prevenção e
da precaução.

Abstract: This present paper intends to analyze the application of preventive and
precautionary principles in the management of environmental risks that come with
the global ecological crisis in the new Anthropocene geological epoch. For this
purpose, we start from the Anthropocene’s concept and its relation with the
ecological crisis, as well as we study the risk society in the ecological crises’
context. In the end, we study the preventive and precautionary principles as a
mechanism to deal with the environmental risks. In conclusion, we verified the
possibility to use those principles to deal with the environmental risks that come
with the ecological crisis in the Anthropocene. For this, we use the descriptive,
bibliographic and documental research, with an analysis of books and scientific
articles. The method is deductive, starting from a universal concept until its
particularization.
Keywords: Anthropocene. Environmental risks. Preventive and precautionary
principles.

1. INTRODUÇÃO

As atividades humanas sempre intervieram no meio ambiente, contudo,


desde o surgimento do primeiro ancestral humano, o modo e a intensidade com
que tais ações antrópicas foram realizadas apenas aumentaram; suas
consequências foram percebidas pela geologia, levantando ao debate – em
meados dos anos 2000 – acerca de uma nova época geológica denominada
Antropoceno, em que o ser humano teria se transformado em um agente com
capacidade de mudar a história e o rumo do planeta.
Essa nova época caracteriza-se pela crise ecológica global, resultante de
uma exploração indiscriminada do meio ambiente e de um modelo de
1338

desenvolvimento insustentável, e por uma sociedade de risco, que tem de lidar


com a gestão dos riscos que são consequências do progresso, do avanço
tecnológico e desse desenvolvimento.
Nesse panorama, como um mecanismo de gestão dos riscos ambientais, o
Direito Ambiental traz o princípio da prevenção e da precaução como dois
princípios basilares, que permitem atuar de forma preventiva e precavida diante
de uma atividade que pode apresentar um risco de dano ao meio ambiente.
Portanto, o presente artigo tem como objetivo analisar a sociedade de risco
na nova época geológica do Antropoceno, verificando a possibilidade de aplicar
os princípios da prevenção e precaução para a gestão dos riscos ambientais que
são características dessa época geológica e da sociedade moderna, a qual
enfrentam as consequências de uma crise ecológica global.
Para tanto, o artigo é dividido em três itens. O primeiro busca compreender
essa nova época geológica denominada Antropoceno e o papel do ser humano
nesse cenário, bem como sua relação com a crise ecológica global. O segundo
analisa a sociedade de risco como um marco dos tempos modernos e sua
associação com a crise ecológica mencionada. Por fim, o terceiro capítulo trabalha
com os princípios da prevenção e da precaução para a gestão dos riscos
ambientais.
A fim de alcançar os objetivos mencionados, será utilizada a pesquisa
descritiva no que tange aos fins e bibliográfica e documental quanto aos meios,
com uma análise realizada por meio de obras e artigos científicos. O método
adotado será dedutivo, partindo de conceitos gerais e buscando sua
particularização.

2. O SER HUMANO E A NOVA ÉPOCA DO ANTROPOCENO

O planeta Terra tem aproximadamente 4,6 milhões de anos, durante esse


período, sofreu inúmeras transformações para que alcançasse seu estado atual.
Esse período evolutivo é dividido, pela geologia, em uma Escala de Tempo
Geológico1, que é composta por unidades geocronológicas2 denominadas Éon,
Era, Período e Época.
Essas divisões temporais são estabelecidas em decorrência de
acontecimentos que modificaram as condições ou as formas de vida existentes no
planeta3. A última Época geológica reconhecida oficialmente4, e que corresponde
ao presente momento, é denominada Holoceno, marcada pelo término do período
de glaciações e pelo início das condições planetárias atuais que colaboraram para
o desenvolvimento e expansão das sociedades modernas (KOTZÉ, 2016).
Entretanto, desde o início do Holoceno, a sociedade e o planeta foram
modificados em grandes proporções, passando por inúmeros processos e marcos

1 Geologic Time Scale (GTS).


2 Ao analisar essa Escala, é possível verificar que o Éon é a maior classificação, podendo ser
dividido em Eras, as quais se dividem em Períodos que, por sua vez, dividem-se em Épocas.
3 A primeira classificação chamada Éon tem como critério de divisão o desenvolvimento das formas

de vida; já a segunda unidade geológica (a Era) apresenta como critério de divisão as grandes
extinções de espécies que não conseguiram se adapta às mudanças de condições do planeta. As
subdivisões das Eras são denominadas Períodos, sendo o atual o Quartenário, que se caracteriza
pela intercalação entre momentos glaciais (de frio intenso) e interglaciais (de alta temperatura).
Por fim, as subdivisões dos Períodos são chamadas de Épocas, responsáveis por destacar
mudanças no planetas que são associadas às formas de vida existentes (LEWS; MASLIN, 2018).
4 Iniciada há aproximadamente 11,65 mil anos atrás.
1339

históricos. Dentre esses marcos, destacam-se a agricultura e a Revolução


Industrial - que são denominadas, respectivamente, por Lews e Maslin (2018), de
Primeira5 e Segunda6 Revolução Energética – bem como, o processo de
globalização, apresentando-se como um marco frente às modificações políticas,
econômicas, sociais e ecológicas que têm lugar em nível planetário, tendo em
vista a “profundidade, intensidade e extensão com que [as mesmas penetram] o
tecido social de todos os países do mundo” (tradução nossa)7 (TORRADO, 2000).
Todas essas transições que marcam o Holoceno colaboraram para a
construção do mundo moderno e para o desenvolvimento da humanidade e estão,
nitidamente, associadas com a intervenção do homem no meio ambiente.
Consequentemente, isso gerou um mecanismo de força humana que causa uma
pressão constante no planeta e em seus sistemas, causada por fatores como o
crescimento populacional, o uso de recursos naturais, a transformação e
fragmentação de habitats, a mudança climática e o modo de produção e consumo
de bens e energia (KOTZÉ, 2016).
Frente à essa realidade, por volta de 2002, Paul J. Crutzen e Eugene F.
Stoermer publicaram um trabalho discutindo o significado que as mudanças
antrópicas e a intervenção humana no meio ambiente poderiam ter para a
geologia, o que culminou na conclusão de que o planeta havia saído da Época
geológica do Holoceno e entrado na Época do Antropoceno, sugerindo que:

a Terra, agora, deixou sua época geológica atual, o presente estado


interglacial chamado de Holoceno. As atividades humanas se tornaram
dominantes e profundas que rivalizam com as grandes forças da
natureza e empurram a Terra para uma incógnita planetária (tradução
nossa)8 (STEFFEN; CRUTZEN et al, 2007).

Dessarte, há um reconhecimento de que as ações humanas impactam o


meio ambiente de um modo que não havia sido visto anteriormente na história do
planeta, colaborando, desse modo, para a crise ecológica global e colocando o
Antropoceno como um “[...] ponto de virada na história da humanidade, na história
da vida e na história da própria Terra” (LEWS; MASLIN, 2018), pois o homem
passou a ser colocado como um agente geológico capaz de transformar a Terra
e colocá-la em um novo caminho.

3. A SOCIEDADE DE RISCO E A CRISE ECOLÓGICA GLOBAL COMO UM


MARCO DA MODERNIDADE

5 O surgimento da agricultura é chamado por Lews e Maslin (2018) de Primeira Revolução


Energética (First Energy Revolution) pois o ser humano passa de um modo de vida nômade,
pautado no deslocamento em busca de alimentos e fontes de energia, para um estilo sedentário,
marcado pela domesticação de plantas e animas, o que transformou seu modo de vida e
alimentação.
6 A Revolução Industrial é chamada de Segunda Revolução Energética (Second Energy

Revolution) por apresentar um novo modo de obtenção de energia, com o surgimento de novas
máquinas (como a máquina a vapor), a criação de fábricas e com o uso de novas fontes
energéticas (LEWS; MASLIN, 2018).
7 [...] por la profundidad, intensidade y extensión com que penetra el tejido social de los países del

mundo.
8 The term Anthropocene [...] suggests that the Earth has now left its natural geological epoch, the

present interglacial state called the Holocene. Human activities have become so pervasive and
profound that they rival the great forces of Nature and are pushing the Earth into planetary terra
incognita. The Earth is rapidly moving into a less biologically diverse, less forested, much warmer,
and probably wetter and stormier state.
1340

Os tempos modernos são líquidos, ou seja, tudo se encontra em constante


mudança e fluidez, sem a existência de certezas; nessa modernidade nada é feito
para se solidificar, tudo se transforma e se encontra em um estado incerto
(BAUMAN, 2001).
A modernidade é caracterizada como uma era de imprevistos, marcada por
transições socioestruturais, científicas, tecnológicas e ambientais (ABRANCHES,
2017), as quais fazem com que “ninguém tenha uma resposta satisfatória [para
as problemáticas atuais], porque a realidade muda mais rapidamente que nossa
capacidade de processá-la” (ABRANCHES, 2017).
Isso faz com que as pessoas vivam “sob o domínio do medo – da
insegurança e da incerteza – numa sociedade de risco, doméstica e
internacionalmente, em todos os aspectos” (ABRANCHES, 2017); contudo, o risco
não é apenas uma característica dos tempos modernos, “desde sempre a ameaça
e a insegurança são condições da existência humana” (BOSCO, 2016); o que
muda com o transcorrer do tempo e a evolução da sociedade são os significados
associados a esses riscos.
Os riscos enfrentados na atualidade são civilizacionais, uma vez que são
resultados dos processos de modernização e da forma que o ser humano interage
com o meio que o rodeia; “deste modo, as situações sociais e conflitos passam a
se agremiar, enquanto consequências implícitas, em torno dos riscos gerados
pela modernização” (BOSCO, 2016).
Portanto, a concepção de uma sociedade de risco traz a ideia de existência
de um modelo de sociedade caracterizado pelos riscos tecnológicos inerentes às
práticas sociais (SARLET; FENSTERSEIFER, 2014), uma vez que:

É justamente o excesso de produção, a alta capacidade


tecnológica atingida que figura como produtora de riscos. A
mudança climática, por exemplo, as intoxicações diversas, os
cânceres, são todos produtos de uma industrialização con-
seguida. A economia global cresce demasiado depressa, e com
ela também a poluição atmosférica. Os fluxos financeiros globa-
lizados provocam consequências incontroláveis, se espalhando
sistematicamente de bolsa de valores a bolsa de valores
(BOSCO, 2016).

Nesse sentido Beck (2010) afirma que “a sociedade de risco designa uma
época em que os aspectos negativos do progresso [e do processo de
desenvolvimento] determinam cada vez mais a natureza das controvérsias que
animam a sociedade”, devendo a mesma buscar “impedir aquilo que figura como
cenário catastrófico [...] fazendo do futuro objeto de decisão no presente”
(BOSCO, 2016). Deste modo, ao buscar enfrentar os riscos existentes nessa
modernidade, “a sociedade passa a ter de lidar com efeitos não-previstos que ela
mesma produziu” (BOSCO, 2016).
Portanto, trata-se de um momento em que “a humanidade segue
ameaçando a si mesma [pois] nem toda racionalidade científica desenvolvida ao
longo do tempo tem sido capaz de aferir o teor dos riscos gerados [...]” (SILVA,
2016) pela sociedade pós-industrial, os quais “alcançam nações e classes sociais
sem respeitar fronteiras, numa tendência globalizante que converte o processo de
modernização em tema e problema [...]” (SILVA, 2016).
1341

Os riscos da modernidade não se comparam com os existentes em épocas


anteriores, uma vez que diferenciam-se devido a “globalidade de seu alcance (ser
humano, fauna, flora) e de suas causas modernas. São riscos da modernização
[e] um produto de série do maquinário industrial do progresso, sendo
sistematicamente agravados com o seu desenvolvimento ulterior” (BECK, 2011).
Nesse cenário “a degradação ambiental e, consequentemente, a escalada
de riscos ambientais resulta de um fenômeno produzido pela intervenção humana
na Natureza” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2014), sendo isso “aliado ao
crescente potencial tecnológico de que se serve o ser humano para inverter a
relação de forças entre sociedade e Natureza” (SARLET; FENSTERSEIFER,
2014).
No decorrer das últimas décadas, foram adotados sistemas e tecnologias
de produção que direcionaram o planeta a uma situação limítrofe, desencadeando
a crise ecológica global, a qual tem como suas grandes manifestações as
mudanças climáticas, a crise hídrica, as consequências do uso de agrotóxicos e
químicos e a perda da biodiversidade.
Os conflitos ecológicos gerados pelos riscos da atividade humana compõe
a sociedade de risco global e são conceituados por Beck (2010) como disputas
negativas, uma vez que apenas englobam perdas, destruições e ameaças, que
correspondem a um “jogo” de soma de prejuízos coletivos, “um jogo de
autodestruição coletiva que se volta contra os jogadores, isto é, [...] um jogo [...]
entre perdedores que não querem tomar consciência de suas perdas” (BECK,
2010).
A questão ecológica apresenta-se, nessa sociedade de risco, como uma
violação de direitos humanos – por exemplo, como o direito à vida e à saúde –
não apenas das presentes, mas também das futuras gerações que irão sofrer com
as consequências do processo de modernização.
Nesse “jogo de perdedores” que marca a presente modernidade, as ações
humanas encontram-se tanto como um fator que leva a transição de épocas
geológicas, como visto anteriormente, quanto como uma força que está no centro
dos riscos ambientais e da crise ecológica global. Portanto, torna-se necessária e
urgente a gestão de riscos ambientais antes da ocorrência de um dano ambiental,
uma vez que o mesmo é – na maior parte dos casos – irreversível.

4. O PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO NA GESTÃO DE RISCOS


AMBIENTAIS

Na época do Antropoceno é a conduta humana que consiste em uma força


propulsora da história do planeta e geradora da crise ecológica global. Nesse
contexto, é de grande importância prever, prevenir e combater, na origem, as
consequências decorrentes das ações humanas que representam um risco tanto
para o meio ambiente quanto para o ser humano.
Toda atividade humana, por menor que seja, mas que intervém no meio
ambiente apresenta um risco e uma possibilidade de gerar danos ambientais.
Todavia, atento a esse panorama, o Direito Ambiental traz o princípio da
prevenção e da precaução como dois princípios estruturantes básicos que podem
ser utilizados para a gestão dos riscos ambientais, visando a não ocorrência de
danos que, na maior parte dos casos, são irreversíveis e apresentam efeitos
atemporais.
1342

Com o avanço e o aprofundamento do conhecimento científico sobre as


consequências dos danos ambientais decorrentes da poluição e da degradação
do meio ambiente, surge no cenário de proteção ambiental a ideia de que, frente
a um risco, “é melhor prevenir do que remediar” (SARLET; FENSTERSEIFER,
2017).
Nesse quadro, com “a [...] necessidade de se adotarem medidas no sentido
de evitar os danos ambientais já conhecidos” (SARLET; FENSTERSEIFER,
2017), emerge o princípio da prevenção, que “requer que a ação seja tomada em
um estágio inicial e, se possível, antes que o dano tenha realmente ocorrido”
(tradução nossa)9 (SANDS, 2003), sendo utilizado em “situações em que é
possível identificar cientificamente que uma atividade causará ou corre o risco de
causar danos ao meio ambiente, comandando que tais danos sejam impedidos
ou mitigados” (CAMPELLO, 2014).
Logo, o mesmo é aplicável “a impactos já conhecidos e dos quais se possa,
com segurança, estabelecer um conjunto de nexos de causalidade que seja
suficiente para a identificação dos impactos futuros mais prováveis” (ANTUNES,
2008), fazendo com que, frente a uma “atuação humana que comprovadamente
lesará de forma grave e irreversível bens ambientais, tal intervenção deve ser
travada” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2017).
Portanto, esse princípio “opera com o objetivo de antecipar a ocorrência do
dano ambiental na sua origem [...], evitando-se, assim, que o mesmo venha a
ocorrer. Isso em razão de as suas causas já serem conhecidas em termos
científicos” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2017); sua importância para a política
ambiental se dá pelo fato de que o mesmo “permite que sejam tomadas medidas
para proteger o meio ambiente em um estágio anterior, já que não se trata,
[necessariamente], de uma questão de reparação de danos depois de terem
ocorrido” (tradução nossa)10 (SANDS, 2003).
Um dos instrumentos que demonstra a aplicação prática desse princípio é
o estudo de impacto ambiental, que possibilita identificar, de forma antecipada, os
riscos que determinada atividade pode gerar e a ocorrência de danos ambientais,
viabilizando a adoção de medidas preventivas para evitar o seu acontecimento
ou, ao menos, possibilitando a mitigação de seus efeitos.
Contudo, não são em todos os casos que se tem conhecimento científico
consolidado acerca dos riscos e danos ambientais. Frente à essa questão, o
princípio da precaução surge para determinar a adoção de medidas eficazes
voltadas à proteção do meio ambiente mesmo diante de uma incerteza quanto ao
risco e à ocorrência do dano, uma vez que:

a ausência de um conhecimento científico adequado para assimilar a


complexidade dos fenômenos ecológicos e os efeitos negativos de
determinadas técnicas e substâncias empregadas pelo ser humano
podem levar, muitas vezes, a situações irreversíveis do ponto de vista
ambiental, como, por exemplo, a extinção de espécies de fauna e da
flora, além da degradação de ecossistemas inteiros (SARLET;
FENSTERSEIFER, 2017).

9 The preventive principle requires action to be taken at an early stage and, if possible, before
damage has actually occurred.
10 [...]it allows action to be taken to protect the environment at an earlier stage. It is no longer

primarily a question of repairing damage after it has occurred.


1343

Perante a impossibilidade científica de dominar com segurança todas as


consequências das atividades que interferem no meio ambiente, o princípio da
precaução busca “identificar os riscos e, ao invés de aguardar pelo pior, passar a
intervenção no sentido de adotar medidas para que as consequências negativas
não ocorram” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2017).
Deste modo, o mesmo estabelece que:

[...] diante da dúvida e da incerteza científica a respeito da segurança e


das consequências do uso de determinada substância ou tecnologia, o
operador do sistema jurídico deve ter como fio condutor uma postura
precavida, interpretando os instrumentos jurídicos que regem tais
relações sociais com a responsabilidade e a cautela que demanda a
importância existencial dos bens jurídicos ameaçados (vida, saúde,
qualidade ambiental e até mesmo, em alguns casos, a dignidade da
pessoa humana), inclusive em vista das futuras gerações (SARLET;
FENSTERSEIFER, 2017).

A aplicação em conjunto desses princípios é essencial para uma proteção


por completo do meio ambiente, pois permite a atuação diante de uma atividade
de risco que possa gerar um dano tanto em caso de certeza no que se refere ao
seu efeito, fazendo com que este deva ser prevenido, como preconiza o princípio
da prevenção, quanto em caso de dúvida ou incerteza, conforme determina o
princípio da prevenção.

5. CONCLUSÃO

A modificação da relação que o homem tem com a natureza e a adoção de


um modelo de desenvolvimento insustentável pautado na exploração
indiscriminada dos recursos naturais fizeram com que surgisse a crise ecológica
global enfrentada na atualidade. Tais mudanças tornaram-se tão profundas que
levantaram o debate, na geologia, sobre o Antropoceno, que seria uma época em
que o agente geológico não é mais uma força da natureza – como um meteoro,
por exemplo – mas o próprio ser humano.
Ainda que o marco de início dessa nova época esteja em discussão, não
há dúvida de que os impactos antrópicos no meio ambiente são de grandes
proporções. Esse cenário de crise ecológica global em uma nova época geológica,
que marca o “tempo do ser humano”, faz com que a sociedade moderna tenha
que lidar com todos os riscos ambientais que vêm com o progresso e com o
desenvolvimento.
Para tanto, visando a gestão desses riscos, o Direito Ambiental traz dois
princípios basilares consistentes no princípio da prevenção e da precaução. O
primeiro, tratando da gestão de riscos conhecidos pela ciência e, o segundo, dos
riscos desconhecidos ou que não tenham uma certeza científica consolidada.
Nesse contexto, conclui-se que, a aplicação conjunta dos dois princípios
mencionados e discutidos são de suma importância para a gestão dos riscos
ambientais frente a irreversibilidade dos danos ambientais, principalmente em um
contexto de crise ecológica global no Antropoceno e de uma sociedade que lida
com as consequências negativas do seu modelo de desenvolvimento.
Deste modo, tais princípios – quanto aplicados juntamente – propiciam um
arcabouço jurídico de proteção ambiental para atuar na gestão de riscos antes da
ocorrência do dano ou na mitigação de seus efeitos, tanto quando se tem
1344

conhecimento acerca das consequências e dos riscos que estão relacionados ao


dano, quanto não há essa certeza.

REFERÊNCIAS

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2017.

BECK, Ulrich. A política na sociedade de risco. Revista Ideias, Campinas, v. 2, n.


1, 2010.

___________. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo XXI España Editores,
2002.

___________. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo:


Editora 34, 2011.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BOSCO, Estevão. Sociedade de risco: introdução à sociologia cosmopolita de


Ulrich Beck. São Paulo: Annablume, 2016.

CAMPELLO, Lívia Gaigher Bósio. Princípios do Direito Internacional do Meio


Ambiente. In: CAMPELLO, Lívia Gaigher Bósio; DE SOUZA, Maria Claudia da
Silva Antunes; PADILHA, Norma Sueli. Direito Ambiental no Século XX:
efetividade e desafios. vol. 3. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014.

KOTZÉ, Louis J. Global Environmental Constitutionalism in the Anthopocene.


[S.l.]: Hart Publishing, 2016.

LEWS, Simon; MASLIN, Mark A. The Human Planet: how we created the
Anthropocene. [S.l.]: Yale University Press, 2018.

SANDS, Philippe. Principles of international environmental law. 2 ed. New York:


Cambridge University Press, 2003.

SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito ambiental:


introdução, fundamentos e teoria geral. São Paulo: Saraiva, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang; FENTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito


ambiental. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

SILVA, Pedro Francisco. Tributação Ambiental: normas tributárias imantadas por


valores ambientais. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. São Paulo, 2016.

STEFFEN, Will; CRUTZEN, Paul J.; MCNEILL, John. The Anthropocene: are
Humans now overwhelming the Great Forces of Nature?. Ambio, v. 36, n. 8, [S.l],
2007.
1345

TORRADO, Jesús Lima. Globalización y Derechos Humanos. Anuario de


filosofia del derecho. [S.l.], n. 17, 2000.
1346

O LITÍGIO ESTRATÉGICO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS – O CASO MARIA DA PENHA VS. BRASIL
THE STRATEGIC LITIGATION AT THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN
RIGHTS - THE MARIA DA PENHA CASE V. BRAZIL

Samira Rodrigues Pereira Alves


Orientador(a): Samantha Ribeiro Meyer-Plufg Marques

Resumo: O Sistema Interamericano de Direitos Humanos se destaca na defesa


e promoção dos direitos humanos, inclusive colaborando em prol da igualdade de
gênero. Assim, diversos casos de violência contra a mulher, respaldados pelo
SIDH, foram apresentados na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que
através das suas decisões e recomendações nortearam o rumo das políticas
voltadas as mulheres. No Brasil, o caso apresentado à Comissão é referente a
violência doméstica sofrida por Maria da Penha Maia Fernandes, formalizou
denúncia acusando o Estado brasileiro por negligência ao não punir o agressor.
O caso se tornou um caso paradigmático de Litígio Estratégico por inovar nas
questões judiciais e por promover o debate público provocando mudanças sociais
e legislativas. Pela ótica da litigância estratégica este artigo analisa a repercussão
do Caso Maria da Penha no Brasil, a partir das recomendações da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
Palavras-chaves: Litígio estratégico. Direitos humanos. Política pública.

Abstract: The Inter-American System of Human Rights excels in defending and


promoting human rights, including collaborating in favor of gender equality. Thus,
several cases of violence against women, supported by the IACHR, were
presented to the Inter-American Court of Human Rights, which through its
decisions and recommendations guided the direction of policies aimed at women.
In Brazil, the case presented to the Commission refers to the domestic violence
suffered by Maria da Penha Maia Fernandes, formalized a complaint accusing the
Brazilian State of negligence for not punishing the aggressor. The case became a
paradigmatic case of Strategic Litigation for innovating in judicial matters and for
promoting public debate leading to social and legislative changes. From the
perspective of strategic litigation this article analyzes the repercussion of the Maria
da Penha v. Brazil, based on the recommendations of the Inter-American Court of
Human Rights.
Keyword: Strategic litigation. Human rights. Public policy.

INTRODUÇÃO

A pauta feminina pela garantia e conquista de direitos é extensa,


envolvendo questões como trabalho, renda, participação social, saúde e o
enfrentamento da violência, esta por sua vez, considerada um dos tipos de
violação de direitos humanos mais comum, frequente no mundo todo, em todas
as culturas, requerendo um conjunto de ações que incluam sociedade civil e os
órgãos governamentais.
Os direitos foram se consolidando em decorrência da articulação política
das mulheres e a partir da década de 80, com a elaboração da Convenção para
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as mulheres (CEDAW –
ONU, 1979), adotada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas.
1347

O respeito, a proteção e a garantia dos direitos pelo Estado das políticas públicas
e de direitos humanos para mulheres começam a ser pensados e a a violência
contra mulher se torna preocupação central destas políticas públicas a nível
internacional geral.
Em 1994, através da Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar
e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, OEA) os
países assumem a obrigação de criar mecanismos internos para efetivação dos
direitos humanos das mulheres, incluindo a atenção ao acesso a justiça e a
proteção integral às mulheres vítimas de violência.
Estes documentos, se tornam declarações formais de direitos, voltados
para a eliminação de todas as formas de discriminação e dominação, construído
por meio de um extenso processo envolvendo sociedade, Estado e indivíduo e
que apesar de conquistar avanços legislativos e políticas públicas significativas,
ainda está inacabado.
Neste sentindo, frente a tantas outras demandas, criar, implementar e
tornar efetivo a política pública para mulheres se tornou um desafio constante.
Este desafio provoca um crescimento da litigância em temas relativos aos direitos
da mulher e aos demais temas da agenda de direitos humanos, obrigando a se
assegurar um mínimo de direitos e impulsionar avanços.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) tem se destacado
na defesa e promoção dos direitos humanos, inclusive colaborando em prol da
igualdade de gênero. Assim, diversos casos de violência contra a mulher,
respaldados pelo SIDH, foram apresentados a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CtIDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que
através das suas decisões e recomendações nortearam o rumo das políticas
voltadas as mulheres.
No Brasil, o caso mais emblemático apresentado na CIDH é referente a
violência doméstica sofrida por Maria da Penha Maia Fernandes, que após
sucessivos episódios de agressão e acusação de omissão do Estado na punição
do agressor, formulou denúncia à Comissão.
O caso Maria da Penha vs. Brasil se tornou um caso paradigmático de
Litígio Estratégico por inovar nas questões judiciais e pela capacidade que teve
de promover discussão pública que levou a mudanças sociais e legislativas.
Desta forma, nos últimos anos o litígio estratégico tornou-se uma via para
provocar o debate público sobre os direitos das mulheres, tanto no âmbito
internacional, quando no doméstico. Se por um lado as leis não transformam
comportamentos e percepções, a litigância estratégica, pela via internacional
impulsionou o debate, forçando uma reflexão da sociedade sobre as questões de
gênero podendo reconfigurar a percepção das desigualdades enfrentadas pelas
mulheres e a assimetria de poder.
Pela ótica da litigância estratégica, este artigo se propõem analisar a
repercussão do Caso Maria da Penha no Brasil, a partir das recomendações da
Corte Interamericana de Direitos Humanos.

LITÍGIO ESTRATÉGICO

O litígio estratégico é usado como uma forma de dar visibilidade a disputas


de grupos minoritários que buscam alcançar seus direitos. Nesse sentido são
escolhidos casos paradigmáticos que permitam romper paradigmas e buscar
soluções para questões coletivas de grupos vulneráveis, mediante causas
1348

judiciais, expondo condutas e estruturas que violam direitos e que provoquem um


efeito significativo nas políticas públicas, na legislação e na sociedade.
É uma ferramenta para promover direitos não garantidos, seja por
insuficiência do Estado bem como para sua proteção eficaz, a partir da
reinvindicação de grupos prejudicados que podem recorrer aos tribunais em
busca de justiça social. (CUMMINGS, RHODE, 2009, p. 606)
O propósito do litígio estratégico de interesse público é provocar mudanças
sociais para além de casos individuais, utilizando-se de meios legais de combate
a injustiças que não foram adequadamente tratadas na lei ou na política, sendo
um meio para que as pessoas afetadas por violações de direitos sejam ouvidas,
desencadeando a discussão dessas violações e destacando as deficiências da lei
ou a sua omissão.
Nos sistemas modernos de justiça, o litígio estratégico pode ter um lugar
chave, afinal o que se propõem nesse instrumento é alcançar além de uma
simples disputa entre particulares, dar visibilidade a casos de grupos menos
favorecidos, buscando romper paradigmas e alcançar soluções coletivas para
grupos em situação vulnerável. Por ser o litígio estratégico um instrumento que
envolve a interdisciplinariedade, não há uma definição única sobre seu conceito.
Correa, refere-se ao litígio de alto impacto como:

“El ejercicio del litigio de alto impacto, como forma alternativa pra enseñar
y ejercer el derecho, consiste em la estratégia de selecionar, analizar y
poner em marcha el litigio de ciertos casos que permitan lograr um efecto
significativo em las políticas púlbicas, la legilación y la sociedade civil de
un Estado o región. És un processo de identificación, socialización,
discusión y estrutucturación de problematicas sociales y a partir de allí
promover casos concretos para alcançar soluciones integrales a tales
problemáticas socialies, para lograr câmbios sociales sustanciales”.
(CORREA, 2008, p.1).

Segundo Cardoso (2012, p. 41) o litígio estratégico busca por meio do uso
do judiciário e de casos paradigmáticos, alcançar mudanças sociais. Os casos são
escolhidos como ferramenta para transformação da jurisprudência dos tribunais e
formação de precedentes para provocar mudanças legislativas ou de políticas
públicas.
O litígio estratégico não se delimita apenas à arena judicial, mas se insere
nas questões políticas. Deve ser capaz de chamar atenção aos abusos e
violações de direitos humanos e ressaltar a obrigação do Estado em cumprir suas
obrigações nacionais e internacionais.
Nem toda violação deve ser tratada pela via do litígio, mas a atenção deve
ser em situações que há divergência entre o direito interno e parâmetros
internacionais, e não há clareza acerca do direito existente ou a lei é
reiteradamente aplicada de maneira inexata ou arbitrária. (CONTRERAS apud
BAKER, CARVALHO, 2014, P. 467).
Internacionalmente, a tutela dos direitos da população feminina tem se
tornado tema relevante e frequente marcando importantes avanços e
demonstrando uma nova postura frente aos tratados internacionais de proteção
de direitos humanos. (DIAS, 2015, p. 38)
Os Estados partes têm assumido compromissos em tratados e convenções
internacionais, porém no âmbito interno por omissão ou negligência do Estado
os acordos não são cumpridos, criando divergência entre o direito interno e o
internacional. É a partir disso que o litígio estratégico surge como método para
1349

garantir algum êxito na resolução dos casos , recorrendo a Comissão para que
esta analise a compatibilidade dos tratados e instrumentos internacionais com a
legislação interna do Estado. (PIOVESAN, 2013, p. 335)

CASO MARIA DA PENHA vs. BRASIL

Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica, casada com um


professor universitário foi submetida a uma série de agressões e a duas tentativas
de homicídio pelo marido, após reiteradas denúncias e nenhuma providência
tomada, escreveu um livro e se uniu ao movimento de mulheres para buscar
punição ao agressor.
A história de agressão iniciou no decorrer do ano de 1983, sendo
oferecida a denúncia pelo Ministério Público em 1984 e apenas em 1991 o
agressor foi levado ao tribunal do júri, condenado oito anos de prisão, recorreu
em liberdade, teve o julgamento anulado. Em 1996 foi levado a novo júri, imposta
a pena de dez anos e seis meses de prisão, recorreu, novamente, em liberdade
sendo preso somente 19 anos após os fatos. Em outubro de 2002, foi liberado
depois de cumprir dois anos de prisão. (DIAS, 2015, p. 23)
A repercussão do caso levou o Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL)1, e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher (CLADEM)2, formalizarem denúncia à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos alegando tolerância do Estado Brasileiro ao
não ter tomado medidas efetivas para punir o agressor de Maria da Penha.3
A Comissão Interamericana solicitou declarações por parte do Brasil, que
não respondeu. Por dois anos seguintes, a Comissão reiterou o pedido, não tendo
êxito novamente. O Brasil permaneceu inerte, sequer manifestou a respeito, em
conformidade ao art. 39 do Regulamento da CIDH. (CUNHA; PINTO, 2008, p.
25), assim os fatos relatados foram presumidos como verdadeiros.
A denúncia provocou a publicação do relatório 54/2001 feito pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que se tornou um documento
indispensável para se entender a dinâmica da violência contra mulher no Brasil
que repercutiu no meio internacional incentivando o restabelecimento das
discussões sobre o tema4. (CUNHA; PINTO, 2018, p.26)
O relatório apontou as falhas do país, que na qualidade de parte da
Convenção Americana e Convenção de Belém do Pará, assumiu compromissos
de respeitar os dispositivos constantes nos tratados.
Além da obrigação de indenizar a vítima, a Comissão recomendou a
intensificação o processo de reforma para evitar a tolerância estatal e tratamento
discriminatório com respeito a violência doméstica, assim com capacitação e
sensibilização de agentes estatais, simplificação dos procedimentos judiciais para
reduzir o tempo processual, multiplicação de delegacias especializadas na defesa

1 CEJIL é um órgão não governamental de defesa e promoção dos direitos humanos junto aos
Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). http://www.cejilaniversario.org
2 CLADEM é uma rede feminista que trabalha pela pelo direitos das mulheres na América Latina

e Caribe, usando o direito como ferramenta de transformação. http://www.cladem.org


3Relatório No 54/01, publicado em 16 de abril de 2001.
https://cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso 07 de junho de 2019
1350

da mulher e planos pedagógico de unidades curriculares que ampliassem a


compreensão sobre o respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos.5
Frente a repercussão do caso, houve a urgência para sanar o problema,
e a saída encontrada foi reformular a legislação, pautando-se em um maior rigor
penal (FERRACINI NETO, 2010, p. 231)
As recomendações influenciaram o Estado brasileiro e a problemática
tornou-se um tema debatido plenamente.
Um grupo de Trabalho Interministerial formado por ONGs coordenadas
pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres foi criado pelo Decreto
5.030, em 31 de março de 2005. Elaborou-se um projeto de Lei denominado “Lei
do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher” que foi
encaminhado ao Congresso Nacional.
Após várias audiências públicas pelo Estados brasileiro e a mobilização
da sociedade civil, em 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei
11.340/2006, que foi uma resposta à pressão e aos debates promovidos em razão
da repercussão do caso.
Segundo Dias (2015, p. 34), a Lei foi considerada uma das três melhores
leis do mundo pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher,
trazendo avanços significativos como a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra Mulher (JVDFMs), outras novidade foram as medidas
processuais como a criação de medidas protetivas de urgência e a previsão de
um defensor público ou advogado para defesa dos direitos da vítima, e não
apenas do réu.
A política nacional de enfrentamento à violência contra mulheres começou
a ser construída em 2004 complementando-se com a elaboração dos Planos
Nacionais de Políticas para Mulheres. A promulgação da lei, mesmo que não de
forma integral, associada as políticas de enfrentamento tem apresentado
resultados significativos para o se comparado ao passado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caso Maria da Penha é um caso paradigmático de litígio estratégico


pois seu impacto social possibilitou reconfigurar o enfrentamento da violência
contra a mulher. Levada a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sob
a ótica da violência de gênero, foi um importante passo para que a Comissão
aplicasse a Convenção de Belém do Pará e promovesse o avanço na criação de
planos de ações voltados a proteção das mulheres em situação de violência.
A Lei 11.340/06 advém dessa mobilização provocada pelas
recomendações da Comissão ao Estado brasileiro que abriram espaço para a
interlocução com a sociedade e os poderes, promovendo mudanças não apenas
no judiciário, mas também na formulação de políticas públicas focadas em dar
uma atenção integral as vítimas.
O caso promoveu discussão pública criando pressão para uma mudança
social e legislativa. Se a perspectiva do litígio estratégico é também alcançar a
transformação social e o diálogo entre as políticas publicas existentes pode-se
considerar que o objetivo foi alcançado, no entanto apesar de avanços na
efetivação dos direitos das mulheres, do reconhecimento da violência de gênero

5 Relatório No. 54/01, parágrafo 61


1351

pela Comissão e na repercussão positiva do caso até a elaboração da Lei Maria


da Penha , ainda há um longo caminho para alcançar-se a igualdade de gênero.

REFERENCIAS

BARSTED, Leila L.: Lei Maria da Penha: Uma experiência bem-sucedida de


advocacy feminista CAMPOS. In: Carmen H. de (org). Lei Maria da Penha
comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumem
Juris, 2011.

CARDOSO, Evorah Litígio Estratégico e Sistema Interamericano de Direitos


Humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

CORREA MONTOYA, Lucas. Litigio de alto impacto: Estrategias alternativas


para enseñar y ejercer el Derecho, 7 Opinión Jurídica, No 14, 149-162, 149
(2008). Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=94512646010> .
Acesso 25 de setembro de 2019.

CONTRERAS, in BAKER, E.; CARVALHO, S. Experiências de litígio


estratégico no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.
SUR Revista Internacional de Direitos Humanos. Ed V1 no 20, 2014.

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei


Maria da Penha, Lei 11.340/2006. Comentada artigo por artigo. Salvador:
JusPodium, 2018.

DIAS, Berenice. A Lei Maria da Penha: A efetividade da Lei 11. 340/2006 de


combate a violência doméstica e familiar contra a mulher. 4ª. Ed. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

FERRACINI NETO, Ricardo. A violência doméstica contra a mulher e seus


aspectos criminológicos. Dissertação de Mestrado. USP. São Paulo, 2010.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional


Internacional. São Paulo. Saraiva, 2013.

CUMMINGS, Scott L.; RHODE, Deborha L. Public Interest Litigation: Insights


From Theory and Practice , Fordham Urb. L.J. 2009. p. 606. Disponível em:
https://ir.lawnet.fordham.edu/ulj/vol36/iss4/1/ Acesso 07 de setembro de 2019.

Caso Maria da Penha Maia Fernandes vs Brasil . Relatório No 54/01,


publicado em 16 de abril de 2001.
https://cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso 07 de setembro de
2019.
1352

O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO À LUZ DA


PROTEÇÃO INTERNACIONAL PELA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS
THE PRINCIPLE OF THE REASONABLE DURATION OF THE PROCESS IN
THE LIGHT OF INTERNATIONAL PROTECTION BY THE INTER-AMERICAN
COURT OF HUMAN RIGHTS

Hilda Dias Rodrigues de Souza


Anna Luiza Fernandes de Moraes
Orientador(a): Alexandre Pereira Bonna

Resumo: O presente trabalho analisará o princípio da razoável duração do


processo diante de sua proteção pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
À vista disso, é determinante ressaltar que o ímpeto da presente pesquisa
deságua na análise dos critérios que a Corte Interamericana de Direitos Humanos
utiliza para resolver a violação do direito à razoável duração do processo. Para
tanto, com o objetivo de refletir sobre a constante violação desse princípio, o
trabalho irá primeiramente analisar o conteúdo do direito humano à razoável
duração do processo. Ao final, examina-se casos no qual os Estados foram
condenados por violar tal princípio apresentado, momento em que serão
aprofundados os parâmetros que esta Corte utiliza para considerar o advento da
violação da duração razoável do processo.
Palavra-chave: Corte Interamericana. Razoável Duração do Processo. Violação

Abstract: The present paper will analyze the principle of reasonable length of the
process, given its protection by the Inter-American Court of Human Rights. In light
of this, it is crucial to note that the impetus of the present research flows into the
analysis of the criteria that the Inter-American Court of Human Rights uses to solve
problems related to the violation of this principle. Therefore, in order to reflect on
the constant violation of this principle, the research will first analyze the content of
the human right to a reasonable length of the process. In the end, it will look into
cases in which some states have been convicted of violating such principle,
observing the parameters used by the Court to consider the breach of the
reasonable length of the process.
Keywords: Inter-American Court. Reasonable duration of the process. Violation

1. INTRODUÇÃO

O Pacto de San José da Costa Rica nomeado igualmente como a


Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), concerne em um
tratado internacional entre os países membros da Organização dos Estados
Americanos (OEA). Referida Organização foi subscrita, em 22 de novembro de
1969, durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos,
na cidade de San José da Costa Rica.
Em virtude disso, apresenta-se em sua Convenção diversas garantias que
visam proteger os indivíduos de possíveis violações e abusos de poder proferidos
pelos Estados, sob sua vigência em resolução dos conflitos societário. Com o
intuito de tratar mais especificamente determinados aspectos, o estudo discorre
sobre o princípio da razoável duração do processo. Nesse sentido, destaca-se o
direito humano da razoável duração do processo, que consiste na ideia do Estado,
1353

ao solucionar os conflitos, deve declarar os direitos e efetiva-los em um prazo


razoável.
Face ao exposto torna-se evidente que o princípio a duração razoável do
processo deve ser cumprido frente a sua importância de efetivar a garantia de um
direito fundamental, ressaltando que tal princípio deve ser explorado
academicamente a fim de debater como a razoável duração do processo é tratada
em julgados nacionais e internacionais, mostrando-se um tema relevante frente
aos casos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresenta,
devendo ser debatido a fim de ensejar reflexões acerca da violação desse
princípio.
Posto isso, é importante ressaltar a importância dos artigos que elencam a
Convenção uma vez que foram assinados na Conferência Especializada
Interamericana sobre Direitos Humanos e adquiridos pelos Estados membros. O
artigo 7.5 destaca o direito de qualquer indivíduo, que estiver detido ou retido, ser
conduzido sem demora para um juiz ou autoridade que possua o domínio de
exercer funções judiciais. Em outras palavras, tem o direito de ser julgada
conforme um prazo razoável, ou deve ser posta em liberdade, sem prejuízo para
progressão do determinado processo.
Além disso, no viés do contexto abordado pela presente pesquisa, é
importante analisar o artigo 8.1 da CADH, a qual assegura que todas as pessoas
possuem o direito de serem ouvidas, conforme as garantias, dentro de um prazo
razoável. Assim,

As interpretações unilaterais dos Estados serão apresentadas aos juízes


internacionais e, se descabidas, não serão aceitas, e o Estado será
condenado por violação de seus compromissos internacionais (RAMOS,
2005, p.53).

Com isso, torna-se importante mencionar que o Estado é o garantidor dos


direitos humanos, enquanto responsável pela garantia da efetivação desses
direitos na prática social. Entretanto, configura-se também como seu violador,
enquanto poder limitador, tendo a obrigação de repará-lo para garantir o exercício
pleno da democracia à todos, uma vez que esta é a base do ordenamento jurídico
como um todo e deve ser assegurado como garantia da igualdade de direitos.
Assim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos visa corrigir e reparar
os danos causados pelo Estado quando este viola os direitos dos cidadãos,
devolvendo a eles o que lhe foram retirados.
No bojo do exposto, salientamos a problemática que move a pesquisa em
escopo, leia-se o problema de pesquisa, o qual se revela no seguinte emblema:
quais os parâmetros que a Corte Interamericana de Direitos Humanos utiliza para
considerar que o Estado violou o direito humano à duração razoável do processo?
Desta feita, explanado o que foi apresentado inicialmente, configura-se que o
ímpeto da presente pesquisa deságua no estudo referente aos preceitos utilizados
pela CIDH na resolução de casos por violação a duração razoável ao processo.
Ademais, cumpre salientar acerca da metodologia aplicada no fito de
desenvolver a presente pesquisa, a qual se perfaz por meio de revisão
bibliográfica bem como a concomitante análise de casos julgados da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Quanto aos critérios utilizados para a
escolha dos casos, foi dada primazia a casos com maior qualidade argumentativa
e complexidade fática, assim como à pluralidade de países, preferindo casos de
países ainda não abordados.
1354

Além disso, faz-se necessário elencar que o desenvolver do trabalho se


pormenoriza em dois sub tópicos, leia-se objetivos específicos, quais sejam: a)
refletir sobre o conteúdo da razoável duração do processo; b) pesquisar as
decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos perante a violação de
Estados que ratificaram o pacto San José da Costa Rica.

2. UMA PROPOSTA DE REFLEXÃO ACERCA DO PRINCÍPIO RAZOÁVEL


DURAÇÃO DO PROCESSO

Após a Segunda Guerra Mundial, surge a necessidade de normas para


respeitar os direitos individuais, relacionando tal fato com a dignidade da pessoa
humana. Assim, os direitos humanos também estão inseridos no âmbito nacional
interno em virtude do Brasil ter aderido certas normas, previstas no artigo 5ª e 6ª
da Constituição Federal. Para garantir que tais normas sejam efetivadas, houve a
construção de aparatos internacionais, como a Organização das Nações Unidas
(ONU) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além disso evidencia-se
que a CIDH, juntamente com o Pacto de San José da Costa Rica, objetiva corrigir
os danos causados pelo Estado quando o mesmo retira direitos invioláveis,
tornando imprescindível a discursão acerca da condenação dos Estados que
violem o direito da razoável duração do processo.
Diante da temática abordada, torna-se fundamental refletir sobre o princípio
da razoabilidade do processo, uma vez que está cada vez mais eminente a crise
que o judiciário enfrenta diante da violação desse princípio. É eminente mencionar
a relação existente entre os direitos humanos e a responsabilidade internacional
do Estado, uma vez que a violação de um direito humano assegurado pela Corte,
deságua na produção de efeitos negativos ao Estado, que arcarão com a
consequência do determinado julgamento. Dessa forma, a criação de tal aparato
jurídico tem por objetivo a incumbência do Estado por violar um direito assegurado
pelos países que se comprometeram com a concordância do pacto.
Isto posto, salienta-se a importância do cumprimento do prazo legal
estabelecido mediante a resolução de processos pelos Estados, em função da
essencialidade de garantir o amparo da justiça dado a virtude da dignidade que
integra a relação entre os indivíduos e os seus direitos legais. A razoável duração
do processo se ressalta como garantidora em um viés jurídico devido a ordem
constitucional e sistemática processual, sendo importante frisar que o Estado
Democrático de Direito exerce seu papel social pautado em garantir a vivencia
digna e harmônica entre a sociedade. Nesse sentido,

A morosidade na tramitação e julgamento de processos é de


forma uníssona, uma das maiores contrariedades enfrentadas por
quem recorre ao Judiciário. Gera sentimento de desamparo por
parte do detentor da razão [...], transformando-o em instrumento
de injustiças e consequentemente demonstrando a total
inefetividade do Poder Público em reverter tal situação (HOTE,
2007, p.469).

Frente ao exposto, confirma-se a necessidade de cumprimento dos tratos


firmados pelos Estados, com vista a garantir o direito à razoável duração do
processo. Em razão disso, dado o aumento da violação deste princípio, ocorre a
chamada “Crise no Judiciário” que destaca a persistente problemática, contida nos
sistemas nacionais e nos internacionais Assim, a doutrina processual tem como
1355

preceito de análise, na razoável duração do processo, os critérios de


complexidade da causa, estrutura física do juiz e a postura das partes. Nesse
ensejo, se revela determinante a importância de analisar como a Corte
Interamericana de Direitos Humanos interpreta as situações de violação ao
referido princípio pelos Estados.

3. PACTO SAN JOSÉ DA COSTA RICA E ESTADOS SIGNATÁRIOS: O


(DES)CUMPRIMENTO PRINCIPIOLÓGICO A PARTIR DA CORTE
INTERAMERICANA

Desta feita, abordaremos casos limitados à quatro países, que ratificaram


o Pacto de São José da Costa Rica, com o intuito de resguardar direitos civis e
políticos dos indivíduos.

3.1. CASO HERZOG VS. BRASIL

Neste caso, a sentença ocorreu em 15 de março de 20181. A Corte


Interamericana de Direitos Humanos julgou o Estado Brasileiro pela ausência de
investigação e de punição baseada nos princípios defendidos pelo ordenamento
jurídico e pela falha da justiça brasileira. O caso ocorreu em 1975 quando Vladimir
Herzog foi convocado para prestar esclarecimentos e se apresentou de forma
voluntária às autoridades militares, resultando em seu cruel assassinato dentro do
Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa
Interna. Entretanto, os responsáveis pela tortura e morte de Herzog não foram
julgados, uma vez que se beneficiavam-se da Lei da Anistia, de 1979, após 53
anos da prática do crime, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, pela prisão, tortura e morte do jornalista, e pela violação à
razoável duração do processo, princípio firmado pelo Brasil perante a Corte, e que
nesse caso não foi respeitado, ultrapassado o limite de tempo considerado
aceitável para o processo.
Além disso, A CIDH alegou que trata-se de um crime contra a humanidade,
não passível de anistia ou prescrição, e discorreu também que foi violado o direito
dos familiares às garantias judiciais, à proteção e ao conhecimento da verdade
sobre os fatos tal como o princípio da razoável duração do processo que deve
garantir a todos o direito a justiça em tempo justificável, determinando que sejam
reiniciadas as investigações sobre o caso e o processo penal cabível, para que
possa identificar, processar e punir os responsáveis pela morte da vítima.
Portanto, como forma de reparação do Estado Brasileiro diante do caso
abordado, a Corte decidiu que o Estado é responsável pela violação dos direitos
às garantias judiciais e à proteção judicial, declarando algumas obrigações, como:
a) O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade
internacional pelos fatos do presente caso, em desagravo à memória de Vladimir
Herzog e à falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis por sua
tortura e morte; b) O Estado deve reiniciar, com a devida diligência, a investigação
e o processo penal cabíveis, pelos fatos ocorridos em 25 de outubro de 1975, para
identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis pela tortura e
morte de Vladimir Herzog, em atenção ao caráter de crime contra a humanidade
desses fatos e às respectivas consequências jurídicas para o Direito Internacional;
1Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_por.pdf> Acesso em:
1 de out. 2019.
1356

c) O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade


internacional pelos fatos do presente caso, em desagravo à memória de Vladimir
Herzog e à falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis por sua
tortura e morte.

3.2. CASO BAYARRI VS. ARGENTINA

A sentença do caso mencionado, foi dada em 30 de outubro de 2018 2. A


Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a injustiça proferida pelo
o Estado da Argentina ao caso Bayarri uma vez que considerou que o tempo
transcorrido para a resolução do processo não foi razoável visto que injustamente
retirou-se durante treze anos a liberdade da vítima, extrapolando o princípio da
razoável duração do processo juntamente com outros diversos direitos
fundamentais. Além disso, essa atitude do estado gerou danos irreversíveis na
vida de Bayarri e de sua família devido à inocência constatada posteriormente na
resolução do caso, o que se evidencia que Bayarri perdeu sua liberdade
injustamente por um tempo ultrapassado e não poderá recupera-la.
É importante salientar que todos os indivíduos são possuidores de direitos
civis e políticos e esses devem ser respeitados pelo Estado que ao iniciar
determinado procedimento jurídico deve priorizar o direito dos indivíduos de
constatar a verdade dos fatos em um tempo razoável.
Posto isso, a Corte considerou ao analisar inteiramente o caso apresentado
que houve a violação de direitos humanos, tal como o direito de Bayarri ser julgado
em um tempo razoável privando-o de sua liberdade durantes treze anos à espera
de uma decisão judicial para solucionar o seu caso.
Assim, dentre as decisões da corte para punir o Estado, destacam-se: a) O
Estado deve assegurar a eliminação imediata do nome do senhor Juan Carlos
Bayarri de todos os registros públicos nos quais apareça com antecedentes
penais; b) O Estado deve oferecer gratuitamente, de forma imediata e pelo tempo
que seja necessário, o tratamento médico de que necessita o senhor Juan Carlos
Bayarri.

3.3. CASO SUÁREZ ROSERO VS. EQUADOR

Em 22 de Dezembro de 1995, foi constatada a prisão por policiais de Rafael


Ivan Suaréz devido à suspeita do seu envolvimento com o tráfico ilícito de
entorpecentes diante de sua organização internacional. Diante disso, constatou-
se que o indivíduo citado foi mantido preso e incomunicável por trinta e cinco dias,
e logo após esse determinado período, foi decretado a prisão preventiva de
Suárez, durando mais de 50 meses. A sentença desse caso foi realizada no dia
12 de novembro de 19973.
Analisado este caso, a CIDH afirma que o prazo razoável possui como
fundamento a ideia de que seja impedido que em casos como esse, o indivíduo
permaneça por tempo prolongado sob acusação, cabendo ao Estado o dever de
realizar um julgamento conforme um prazo razoável. A CIDH afirma que um dos
motivos para o Equador ser julgado, decorre da submissão de Suárez Rosero a

2 Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_187_por.pdf> Acesso em:


01 de out. 2019.
3 Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_35_por.doc> Acesso em:

02 de out. 2019.
1357

uma detenção detentiva prolongada, violando o direito da razoável duração do


processo, estabelecida no artigo 7.5 da Convenção.

A falta de uma resposta adequada e efetiva a suas tentativas de invocar


as garantias judiciais internas, bem como a não liberação do Senhor
Suárez, ou a ausência da intenção de fazê-lo por parte do Estado, em
um tempo razoável, bem como de assegurar que seria ouvido dentro de
um tempo igualmente razoável no processamento das acusações
formuladas contra ele (Caso Suárez Rosero Vs. Equador. Relatório,
1997, p.2).

Desse modo, pelo tempo ter excedido o prazo razoável e ter mantido o
indivíduo preso durante esse período, a Corte considerou que o Estado
equatoriano tenha violado os compromissos firmados no Pacto San José da Costa
Rica, uma vez que considera também o princípio da inocência subjaz o propósito
das garantias judiciais. Com isso, algumas das obrigações proferidas pela Corte
sob o Equador foram: a) Declaração de que o Equador ordene a investigação a
fim de determinar as pessoas responsáveis pela violação aos direitos humanos
declaradas na sentença e puni-las; b) Declaração de obrigação ao Equador de
pagar uma indenização à vítima e a seus familiares e reembolsar os gastos em
que tenham incorrido com as diligencias relacionadas ao processo.

3.4. CASO TARAZONA ARRIETA E OUTROS VS. PERU

Diante da violação ao período razoável do processo o Estado Peruano foi


condenado pela Convenção Americana por não submeter o caso Tarazona Arrieta
a resolução dos méritos em um prazo considerado digno. O caso se refere a morte
de duas pessoas e ferimentos em um terceiro quando foram surpreendidos por
um agente do exército peruano dentro de um transporte público, o estado resolveu
o caso com a aplicação da lei da Anistia, entretanto a mesma é incompatível com
a Convenção Americana.
À vista disso, a corte considerou que houve a violação por parte do Estado
Peruano de três maneiras que acabaram por resultar na violação ao direito do
prazo razoável do processo, a saber: a) o fato de o processo ter sido arquivado
por mais de 7 anos e quatro meses pela aplicação da Lei de Anistia 26.479; b) a
extensão de vários mandatos após a reabertura do processo criminal no ano 2003,
c) o tempo decorrido para efetivar o pagamento da indenização pelo Estado.
Com isso, a convenção decidiu que o Estado diante de todas as violações
cometidas no caso citado cumpra as determinações elencadas na sentença, dada
no dia 15 de outubro de 20144, à exemplo da efetivação através da publicação da
sentença da corte interamericana juntamente com o seu resumo; pagamento do
valor estabelecido na setença de reembolso de custos e despesas; ao fundo de
assitencia juridica às vitimas do tribunal e os montantes pagos durante o
processamento do caso presente diante do propósito de reaparar os danos
causados pela violação.

5. CONCLUSÃO

4Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_286_esp.pdf> Acesso


em: 02 de out. 2019.
1358

O presente trabalho abordoou esferas dos Direitos Humanos e Direito


Processual Civil, enfatizando o princípio da razoável duração do processo e seu
viés de proteção no âmbito internacional. Entretanto, o número de processos que
extrapolam esse chamado “tempo razoável” é excessivo, evidenciando assim a
sua ineficácia na prática social. Assim sendo, o indivíduo perde sua capacidade
plena de exercer os direitos garantidos pelo Estado e consequentemente de ter
uma vida com dignidade. Vale ressaltar que a razoável duração do processo é o
pilar inicial para garantir o direito a justiça, pois, quando é provocado o exercício
da jurisdição todos esperam receber o que lhe é de direito em um tempo razoável.
Portando, o princípio da razoabilidade do processo uma vez que é violado
deixa de cumprir outros diversos direitos e princípios garantidos no ordenamento
jurídico brasileiro resultando na falha da justiça garantida pelo Estado. Assim, com
a análise dos casos expostos é possível concluir que são parâmetros utilizados
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos: a complexibilidade da causa; a
atividade processual do interessado e a conduta das autoridades jurídicas. Tais
parâmetros podem ser interpretados analiticamente para casos envolvendo
diversos ramos do Direito.
Além disso, infere-se que fatores como a temporalidade, situações de
injustiça e falta de investigações intensivas de um determinado crime, interferem
diretamente no andamento processual, afetando o princípio da razoável duração
do processo e consequentemente retirando direitos humanos essenciais que são
responsabilidade do Estado garanti-los. A par disso, a importante pesquisa teve
por objetivo refletir sobre o conteúdo da razoável duração do processo e abarcar
as decisões proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos perante a
violação de Estados que ratificaram o pacto San José da Costa Rica fazendo-se
importante perceber os danos negativos excedentes que geram impactos
irreversíveis e impactantes na vida dos indivíduos que possuem esse direito a
resolução de conflitos em um tempo razoável e quando são desrespeitados por
seu garantidor obrigacional desse direito têm de ser punido severamente.

6. REFERÊNCIAS

CORTE IDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Bayarri Vs.


Argentina. Sentença de 30 de outubro de 2018. Série C, n° 318. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_187_por.pdf> Acesso em:
01 de out. 2019.

CORTE IDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Herzog Vs.


Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Série C, n° 353. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_por.pdf> Acesso em:
1 de out. 2019.

CORTE IDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Suárez Rosero


Vs. Equador. Sentença de 12 de novembro de 1997. Série C, n° 35. Disponível
em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_35_por.doc> Acesso
em: 02 de out. 2019.

CORTE IDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Tarazona Arrieta


e Outros Vs. Peru. Sentença de 15 de outubro de 2014. Série C, n° 286.
Disponível em:
1359

<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_286_esp.pdf> Acesso em:


02 de out. 2019.

DE FREITAS, Janaina Helena. O princípio da duração razoável do processo e a


responsabilidade do Estado. IV Encontro de pesquisas judiciárias da Escola
Superior da Magistratura do Estado de Alagoas, 2016.

FRANCO, Marcelo Veiga. A violação do direito fundamental à razoável duração


do processo como hipótese de dano moral. Revista Brasileira de Direitos
Fundamentais & Justiça, v. 7, n.23, p.256-282, 2013.

HOTE, Rejane Soares. A Garantia da Razoável duração do processo como


direito fundamental do indivíduo. Revista da Faculdade de Direito de Campos,
Campos dos Goytacazes, v. n. 10, p. 467-491. Jun., 2007.

OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos. 1969. Disponível em


https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm.
Acesso em: 01 out. 2019.

RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional do Estado por


violação de direitos humanos. Revista CeJ, v. 9, n. 29, p. 53-63, 2005.
1360

O RECONHECIMENTO DO POLIAMOR COMO ENTIDADE FAMILIAR À LUZ


DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
RECOGNITION OF POLYAMOR AS A FAMILY ENTITY IN THE LIGHT OF THE
HUMAN DIGNITY PRINCIPLE

Francisca Lorinda Silva de Sousa

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a possibilidade do


poliamor, considerado como a união de três ou mais pessoas através do vínculo
afetivo, consensual e honesto existente entre si, de ser reconhecido juridicamente
como entidade familiar, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo
em vista, que a Constituição Federal de 1988 atribui a tal princípio o status de
fundamento do Estado Democrático de Direito, assegurando a proteção aos
direitos e garantias fundamentais inerentes a todos os indivíduos, impedindo
qualquer tipo de discriminação. Portanto, faz-se necessário assegurar aos
indivíduos adeptos do poliamor uma existência digna, possibilitando-lhes viverem
uma relação que expresse seus anseios de vida e felicidade, devendo o Estado
tutelar as relações afetivas a fim de efetivar o respeito e proteção ao princípio da
dignidade da pessoa humana, ao pluralismo familiar, a liberdade e a igualdade.
Palavras-chave: Poliamor. Dignidade Humana. Reconhecimento.

Abstract: The aim of this article is to analyze the possibility of polyamory,


considered as the union of three or more persons through the affective, consensual
and honest bond existing among them, to be legally recognized as a family entity
in the light of the principle of the dignity of the human person , in view of the fact
that the Federal Constitution of 1988 attributes to this principle the status of the
foundation of the Democratic State of Law, ensuring the protection of the
fundamental rights and guarantees inherent in all individuals, preventing any kind
of discrimination. Therefore, it is necessary to assure to the individuals adherents
of the polyamory a dignified existence, enabling them to live a relationship that
expresses their longings of life and happiness, and the State should protect the
affective relations in order to effect the respect and protection to the principle of
the dignity the human person, family pluralism, freedom and equality.
Keywords: Polyamory. Human Dignity. Recognition.

1. INTRODUÇÃO

A família considerada a base da sociedade, sendo esta uma construção


social, está em constante evolução, ao passo que seu conceito vai se moldando
conforme a época e os indivíduos da sociedade em que esta está inserida,
surgindo novos arranjos familiares e consequentemente, questionamentos são
levantados acerca dessas novas relações familiares.
É nesse contexto que surge o poliamor, considerado como uma relação em
que múltiplos indivíduos se unem com base no vínculo afetivo, na honestidade e
no consensualismo, com o animus de constituírem uma família.
O presente estudo surge da inquietude de demonstrar que à luz do princípio
da dignidade da pessoa humana e do pluralismo familiar trazidos pela
Constituição Federal de 1988, o poliamor considerado como um novo arranjo
familiar carece de proteção jurídica, sendo necessário o seu reconhecimento
1361

como entidade familiar, a fim de assegurar aos indivíduos dessa relação os


direitos que lhes são inerentes, em especial sua dignidade.
No primeiro item analisa-se de forma sucinta o conceito de poliamor e suas
características a fim de propiciar um entendimento acerca desse instituto, a fim de
diferenciá-lo, especialmente, das relações paralelas e simultâneas.
No item seguinte aborda-se a respeito da grande evolução do conceito de
família ao longo do tempo, que passou de um conceito essencialmente patriarcal
e discriminatório baseado apenas no casamento, para um conceito plural e
igualitário pautado no vínculo afetivo de seus membros, evolução esta, devida
especialmente, ao advento da Constituição Federal de 1988, que determinou
como fundamento da República o princípio da dignidade da pessoa humana,
assegurando direitos e garantias fundamentais a todos os indivíduos, afastando
qualquer tipo de discriminação.
Por último, analisa-se a possibilidade do reconhecimento do poliamor como
entidade familiar, haja vista, tal reconhecimento implicar no efetivo respeito e
garantia do princípio da dignidade da pessoa humana, possibilitando aos seus
membros, dotados de dignidade, liberdade de escolha e igualdade, viverem uma
relação que reflita seus anseios de vida e de felicidade.
Pretende-se, portanto, através da utilização do método teórico demonstrar
que a concepção da família moderna não contempla apenas as relações
monogâmicas, mas também, aquelas constituídas pelo vínculo afetivo de
múltiplos membros que necessitam de reconhecimento e proteção estatal.

2. POLIAMOR: CONCEITO E SUAS CARACTERÍSTICAS

A sociedade está em constante evolução, ao passo que novos institutos


surgem e questionamentos são levantados. No que tange o Direito de Família,
novos núcleos familiares se amoldam e é nesse contexto que surge o poliamor.
O poliamor inaugura um conceito não-monogâmico, em que três ou mais
indivíduos se relacionam com base no vínculo afetivo, honesto e consensual
existente entre si.
Apesar das relações não-monogâmicas existirem a muito tempo, não
sendo possível indicar com precisão sua origem, o conceito de poliamor como
uma identidade relacional começa a ser construído apenas no início dos anos 90,
em especial na internet, sendo moldada a partir daí suas primeiras definições
(CARDOSO, 2010).
Segundo o site The Polyamory Society (2013, tradução nossa), o poliamor
é vinculado a escolhas e não a normas sociais, de forma responsável e ética:

Poliamor é a filosofia e prática não possessivas, honestas, responsáveis


e éticas de amar múltiplas pessoas simultaneamente. Poliamor enfatiza
conscientemente a escolha de quantos parceiros a pessoa deseja se
envolver, em vez de aceitar normas sociais que ditam amar apenas uma
pessoa de cada vez.

Embora haja muitas definições sobre o que é o Poliamor, não há nenhum


conceito consolidado, sendo necessário para o entendimento desse instituto,
analisar suas características a partir da relação plural, honesta e responsável
entre os sujeitos poliamoristas, baseada essencialmente no laço de afetividade
que unem esses indivíduos e na possibilidade de amar mais de uma pessoa ao
mesmo tempo, sendo que o consentimento dessa relação múltipla e a
1362

honestidade existente entre os participantes são o que a distingue das outras


relações não-monogâmicas como as relações simultâneas, paralelas e o
concubinato (KNOBLAUCH, 2018).
Portanto, é possível, a partir da análise das características e os diversos
conceitos de poliamor, aduzir que este tem como pontos centrais, o afeto, o
respeito e a transparência entre os participantes dessa relação, sendo possível
vislumbrar esse relacionamento como um formato de família.

3. CONCEITO DE FAMÍLIA E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A família como base da sociedade, vê-se mutável ao longo da história, se


moldando conforme as novas acepções e comportamentos dos indivíduos,
criando diversos formatos de acordo com a época e a sociedade em que está
inserida.
No que tange a evolução do conceito de família no ordenamento jurídico
brasileiro, podemos destacar que inicialmente, com o advento do Código Civil
1916, a família era essencialmente patriarcal, constituída a partir do casamento
civil e heterossexual, sendo que o homem ocupava posição de hierarquia superior
aos demais membros da família, evidenciando marcante desigualdade entre seus
membros (BRASIL, 1916).
Entretanto, ao longo do século XX, em especial após a Segunda Guerra
Mundial, as transformações sociais alteraram gradativamente a feição do direito
de família, contundo, foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988
(CF/88), que o conceito de família patriarcal se sucumbiu definitivamente (pelo
menos no plano formal), ao ser instaurado pela Carta Magna a igualdade de
gêneros, a partir de então todos os membros da família passaram a ter proteção
igualitária do Estado.
Ademais, o grande avanço introduzido pela CF/88 foi o de adotar como
fundamento basilar da República Federativa do Brasil o princípio da dignidade da
pessoa humana, disposto no art. 1º, III do referido diploma. Haja vista, que a
dignidade humana reveste-se como um direito inerente ao próprio ser humano,
assegurando um tratamento digno e em sentido amplo, a garantir total proteção
aos direitos e garantias individuais dos indivíduos.
No que diz respeito ao direito de família, o princípio da dignidade humana
atua de forma impositiva, visando garantir os direitos inerentes a cada um dos
membros do núcleo familiar, a despeito, por exemplo, da igualdade entre os
companheiros e cônjuges e a liberdade de orientação afetiva dos indivíduos.
A Carta Magna introduziu o pluralismo familiar, o que ocasionou mudanças
na própria estrutura da sociedade, passando a preponderar o vínculo afetivo ao
invés do casamento como o elemento a identificar o núcleo familiar, rompendo o
modelo restrito de família atrelado ao casamento, alterando assim, profundamente
o conceito arcaico de família (CARDIN, MOUTINHO, 2016).
Ainda no que diz respeito ao direito de família, é importante ressaltar que o
princípio da dignidade humana, considerado como o mais universal de todos os
princípios, é considerado um macroprincípio do qual decorrem outros princípios
basilares desse ramo do direito como a liberdade, a autonomia privada, a
igualdade, a solidariedade e a afetividade (DIAS, 2016).
É mister dizer que a família contemporânea baseia-se na afetividade de
seus membros para assim ser reconhecida como tal, o princípio da afetividade
está ligado ao fato dos indivíduos a partir do sentimento que os unem, constituírem
1363

um vínculo afetivo, surgindo assim o interesse de constituírem uma relação


continua, advindo assim, uma família.
A afetividade, ao decorrer do tempo fez-se essencial nas relações
familiares, tendo em vista a valorização dada a dignidade humana pela sociedade
e consequentemente pelo ordenamento jurídico, tornando-se a afetividade o
elemento principal para a construção dos diversos núcleos familiares modernos.
As relações familiares passaram a ser regidas pelos sentimentos de amor, afeto
e respeito entre os seus membros, sendo tal relação edificada pelo laço afetivo
que unem esses indivíduos (CARDIN, MOUTINHO, 2016).
Sendo assim, passou-se a se considerar como família novos núcleos
familiares constituídos através dos laços afetivos de seus membros, e estes novos
formatos continuam surgindo a partir da liberdade concedida aos indivíduos de
escolher com quem e de que forma desejam se relacionar, como é o caso do
poliamor, e cabe ao Estado dá total proteção a esses institutos.

4. O RECONHECIMENTO DO POLIAMOR COMO ENTIDADE FAMILIAR À LUZ


DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Ao abordar historicamente no ordenamento jurídico a evolução do conceito


de família, sendo esta, uma construção social, verifica-se a sua constante
mutação, surgindo assim, novos núcleos familiares baseados na afetividade e
honestidade de seus membros, que necessitam de proteção do Estado, não
podendo o Direito se olvidar de sua função, que é garantir o mínimo existencial ao
indivíduos, a fim de proteger sua dignidade.
No que diz respeito ao avanço do direito sobre as questões que envolvem
esses novos núcleos familiares, algumas alterações já ocorreram, como o
reconhecimento das uniões homoafetivas e das famílias monoparentais,
entretanto, faz-se necessário a abordagem de novos institutos, em especial o
poliamor como entidade familiar que carecem da proteção do Estado.
Neste sentido, o poliamor considerado como a relação não-monogâmica
em que três ou mais pessoas se unem de forma livre e honesta através do vínculo
de afetividade que permeia tal relação, com o animus de se constituir família, traz
a tona o questionamento acerca da possibilidade de se reconhecer no
ordenamento jurídico esta união como uma entidade familiar, tendo em vista o
novo tratamento dado ao conceito de família trazido pela Constituição Federal e
em especial pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Entretanto, a regulamentação do poliamor encontra obstáculos, em
especial na falácia de que a monogamia é um princípio a ser seguido para
designar as relações familiares, entendimento este equivocado.
Portanto, faz-se necessário, entendermos acerca da monogamia, sendo
que o ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito ao direito de família, a
reconhece como um valor que norteia as relações familiares, entretanto, é
necessário salientar que, embora esta seja um valor construído ao longo da
história, baseado em valores de cunho religioso e moral, não pode a monogamia
ser considerada um princípio, pois não há na legislação ou não Constituição
Federal dispositivo que a preceitua como princípio fundamental a ser seguido
(LUCENA E BATAGLIA, 2017).
Sobre o prisma do princípio da dignidade da pessoa humana não se pode
impor aos indivíduos constituírem uma família monogâmica apenas por esta se
tratar de um dogma religioso e moral. Reconhecer a monogamia como um
1364

princípio norteador do Direito de Família ocasionaria a impossibilidade de ser feliz


do indivíduo que anseia constituir uma família com membros múltiplos, tornando-
se com isso uma excludente do reconhecimento de diversos núcleos familiares,
contrariando assim, os princípios constitucionais norteadores das relações
familiares (SANTOS, VIEGAS, 2017).
Afastando, portanto, a ideia da monogamia ser considerada um princípio,
não sendo esta considerada elemento essencial para se conceituar família, isso
permite analisarmos o poliamor como uma relação passível de reconhecimento
como entidade familiar, tendo em vista não contrariar os princípios constitucionais
e norteadores das relações amorosas.
Os casos de constituição de famílias plurais estão cada vez mais evidentes
em nossa sociedade, indivíduos que buscam relações que expressem realmente
seus anseios e essências de vida, a fim de serem felizes, independentemente dos
rótulos que a sociedade impõe. Ademais, estes indivíduos objetivam terem seus
direitos resguardos através do reconhecimento de tais relações.
No Brasil, apesar dos casos de poliamor já existirem em meio a sociedade
há muito tempo, foi apenas em 2012 que ocorreu a primeira lavratura de Escritura
Pública de União Poliafetiva de um trisal, registrado em Cartório, na cidade de
Tupã-SP, tal escritura tinha por objetivo tornar pública a relação e garantir os
direitos dos membros da relação (IBDFAM, 2012).
Após o caso em comento, outros indivíduos que viviam em relações
poliamorosas começaram a lavrar Escrituras Públicas de União Poliafetiva, como
por exemplo, o registro da união entre três mulheres, lavrado em 2015 em um
cartório da Barra da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro.
Verifica-se que a união poliafetiva é uma realidade cada vez mais constante
na sociedade, em que os indivíduos desta, assumem a sua relação publicamente,
com a pretensão de que esta seja duradoura, unidos pelos laços de afetividade e
com o objetivo de constituírem família. Sendo que o registro da escritura pública
para declarar esse tipo de união tem o condão apenas de dar publicidade a uma
família poliafetiva que já existe, assegurando direitos aos seus membros, como
regime de bens, filiação, dissolução, sucessão, entre outros.
O Direito não pode negligenciar a existência do poliamor, tornando-se meio
excludente de direitos, os indivíduos que escolhem se relacionar dessa forma
necessitam de tutela jurídica para ter assegurado a proteção a direitos e garantias
fundamentais que lhes são inerentes, respeitando a sua dignidade, a liberdade de
escolha, a igualdade, a intimidade e a autonomia privada.
Reconhecer a união poliafetiva como entidade familiar é fazer valer o
pluralismo familiar trazido pela Constituição Federal de 1988, que presume novos
institutos familiares baseados no vínculo de afetividade que unem seus membros,
o que se mostra evidente nas relações poliamorosas, em que seus membros
agem de forma honesta, ética e consensual entre si, ligadas pelo afeto e o animus
de constituírem uma família.
Nesse sentido, não pode o Estado imputar aos indivíduos uma relação
monogâmica apenas para satisfazer o tradicionalismo e o conservadorismo
arraigado da sociedade, contrariando princípios basilares inerentes ao ser
humano, como a dignidade, a liberdade e a igualdade.
A família deve ser entendida de maneira ampla, através do pluralismo
familiar, independentemente de que forma este arranjo seja constituído,
respeitando as escolhas dos indivíduos.
1365

Podemos destacar que a partir da análise dos reflexos trazidos pela


Constituição Federal de 1988, pode-se considerar que as relações poliafetivas
podem dar origem a uma entidade familiar, merecendo efetiva proteção do Direito,
levando em consideração, principalmente o princípio da dignidade da pessoa
humana.
Tendo em vista, o princípio da dignidade da pessoa humana, podemos
concluir a possibilidade do reconhecimento do poliamor como entidade familiar
pelo ordenamento jurídico, pois o referido princípio não é apenas um limitador da
atuação estatal e sim um norteador de suas ações positivas, devendo o Estado
por meio de suas condutas promover a dignidade dos indivíduos.
Mostra-se indigno, portanto, o Estado dar tratamento diferenciado aos
inúmeros tipos de arranjos familiares, fazendo distinções entre relações
monogâmicas e poliamorosas, haja vista que, desde que respeitem a dignidade
de seus membros, independentemente das formas que se constituíram, devem
tais relações serem tuteladas pelo Direito.
Nesse sentido, através da análise do poliamor, podemos concluir que no
seio dessa relação existe o afeto, o respeito, a honestidade, o anseio de uma
construção de vida em comum dos seus membros, respeitando e assegurando,
assim, a dignidade dos indivíduos dessa relação, sendo esta mais uma razão para
o seu reconhecimento como entidade familiar.
Faz-se necessário assegurar o direito dos adeptos do poliamor de viverem
plenamente uma relação que se coaduna com os seus anseios de vida,
respeitando a sua dignidade e isso só será alcançado através da proteção
normativa dessa relação familiar, reconhecendo-a como família.
Nesse contexto, Luís Roberto Barroso (2011, p.126-127), considera que
“[...] todos os projetos pessoais e coletivos de vida, quando razoáveis, são dignos
de igual respeito e consideração, são merecedores de igual ‘reconhecimento’. ”
Portanto, para a garantia ao princípio da dignidade da pessoa humana,
torna-se imperativo o reconhecimento jurídico do poliamor como entidade familiar,
tendo em vista a promoção da dignidade de seus membros de viverem livremente
essa relação, sendo seus direitos assegurados pelo Estado.
Reconhecer o poliamor como entidade familiar significa respeitar e
assegurar aos integrantes dessa relação sua dignidade, possibilitando-lhes
desenvolverem, livremente, seus projetos de vida em família, em detrimento de
qualquer preconceito ou dogma imposto pela sociedade, haja vista que a
Constituição assegura a liberdade e pluralismo das relações familiares, sendo
ilegítima e inconstitucional a intervenção do Estado a fim de impedir e desamparar
a união poliafetiva formada por pessoas livres, iguais e dotadas de dignidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se aferir do estudo em tela que, as inúmeras transformações sociais,


culminaram em uma nova concepção do conceito de família, que inicialmente era
baseada no casamento e no domínio masculino para um conceito moderno, plural
e igualitário, tendo por base a afetividade entre seus membros.
É em meio a essas evoluções que surge o poliamor considerado como uma
relação não-monogâmica entre múltiplos indivíduos unidos pelo vínculo afetivo e
honesto e que necessita de proteção jurídica.
É mister salientar que o advento da Constituição Federal de 1988,
considerada como uma das maiores conquistas do Direito do último século, que
1366

determinou como fundamento basilar do Estado Democrático de Direito a


dignidade da pessoa humana, o constituinte fez expressa escolha a proteção à
pessoa em detrimento dos demais institutos, assegurando (pelo menos no plano
formal) ampla proteção aos direitos e garantias fundamentais inerentes aos seres
humanos.
Com efeito, o reconhecimento jurídico do poliamor faz-se necessário, haja
vista que este tem por objetivo assegurar aos membros dessa relação uma
existência digna, na qual estes podem escolher livremente como e de que forma
desejam se relacionar.
Ademais, não pode o Estado excluir de sua tutela jurídica os indivíduos
adeptos das relações poliafetivas, impossibilitando que estes vivam uma relação
que realmente expresse seus anseios de vida, pois tal, como qualquer relação os
membros do poliamor se unem através do vínculo afetivo existente entre si, com
o animus de constituírem uma família, objetivando uma comunhão de vida
duradoura, cabendo ao ordenamento jurídico assegurar os direitos e garantias
inerentes a esses indivíduos, possibilitando-lhes viver dignamente.
O Direito não pode negligenciar a existência das relações poliafetivas,
apenas para satisfazer o conservadorismo e o preconceito imposto pela
sociedade, chancelando assim, a injustiça. Não pode o Estado se olvidar da sua
tarefa de assegurar proteção a todos os indivíduos independentemente de
qualquer discriminação.
Por fim, pode-se concluir que reconhecer o poliamor como entidade familiar
revela-se como efetiva proteção a dignidade da pessoa humana, respeitando
assim, o pluralismo familiar, a liberdade, a igualdade e a intimidade dos indivíduos.

6. REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das


relações homoafetivas no Brasil. Revista Brasileira de Direito Constitucional
– RBDC. São Paulo. n. 17. p. 105-138. jan./jun. 2011.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


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15.03.2019.

CARDIN, Valéria Silva Galdino; MOUTINHO, Renata da Cosata Luz Pacheco.


Do Reconhecimento da União Poliafetiva como Entidade Familiar à Luz dos
Princípios Constitucionais. 2016. Disponível em:
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CARDOSO, Daniel dos Santos. Amando vári@ s–Individualização, redes,


ética e poliamor. 2010. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Disponível em:
<https://run.unl.pt/bitstream/10362/5704/1/Tese%20Mestrado%20Daniel%20Car
doso%2016422.pdf>. Acesso em 06.04.2019.
1367

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. Em e-book


baseada na 11ª ed. Impressa – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

IBDFAM. Escritura reconhece união afetiva a três.2012. Disponível em:


<http://www.ibdfam.org.br/noticias/4862/novosite>. Acesso em: 05.05.2019.

KNOBLAUCH, Fernando Daltro Costa. Poliamor: Entre a Autonomia Privada e


a Intervenção Estatal. 2018. Disponível em:
<http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/0ds65m46/wn2plsse/502i38hQ7hld8TrJ.
pdf>. Acesso em 20.04.2019.

LUCENA, Ana Paula Aparecida de; BATAGLIA, Danielle Camila dos Santos. O
Reconhecimento do Poliamorismo como Entidade Familiar e os Reflexos
Jurídicos no Ordenamento Brasileiro. 2017. Disponível em:
<http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/roj0xn13/wu0nu37x/z2o4rS8s170x0eHv.
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SANTOS, Anna Isabella de Oliveira; VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo.


Poliamor: Conceito, Aplicação e Efeitos. Cadernos do Programa de Pós-
Graduação em Direito–PPGDir./UFRGS, v. 12, n. 2. 2017. Disponível em:
<https://www.seer.ufrgs.br/index.php/ppgdir/article/view/72546>. Acesso em:
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THE POLYAMORY SOCIETY. Introduction to Polyamory: What is


Polyamory?. Disponível em: <http://www.polyamorysociety.org/page6.html>.
Acesso em: 15.03.2019.
1368

O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RETALIAÇÃO AO ADVENTO DA


MIXOFOBIA NA SOCIEDADE ALEMÃ
THE USE OF RESTORATIVE LAW AS RETALIATION AGAINST THE ADVENT
OF MYXOPHOBIA IN GERMAN SOCIETY

Lucas Martins Miranda Chelala


Thaís Peixoto Saraiva Coimbra

Resumo: A pesquisa que ora se apresenta consiste na avaliação, sob perspectiva


sociológica, da mixofobia no ambiente alemão e sua possível solução na Justiça
Restaurativa. O problema objeto da investigação científica proposta é: pode,
atualmente, a aplicação do Direito Penal na sociedade alemã solucionar sua
problemática em relação aos estigmas sociais dos imigrantes? Com o escrutínio
das reflexões preliminares sobre o tema, é possível afirmar aprioristicamente que
é provado a necessidade de repensar o modelo de segurança pública e de Justiça
que vem sendo implementado nas últimas décadas. A pesquisa pertence à
vertente metodológica jurídico-sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi
escolhido, na classificação de Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-
projetivo. Bem como o raciocínio desenvolvido será predominantemente dedutivo.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Mixofobia. Direito Internacional.

Abstract: The research here presented consists of the evaluation, under


sociological perspective, of the myxophobia in german environments and its
possible solution in Restorative Justice. The problem object of the scientific
investigation proposed is: can, currently, the application of Criminal Law in
Germanic Society solve the problematic related to the social stigmas of
immigrants? Scrutinizing the preliminary reflections of the theme, it is possible to
affirm that, aprioristically, the necessity of rethinking the model of public security
and justice implemented in the last decades and justice is a reality. The research
belongs to the juridical-sociological methodological aspect. Regarding the
investigation type, the projective-law was chosen from the classification of Witker
(1985) and Gustin (2010). Furthermore, the reasoning developed going to be
predominantly deductive.

Keywords: Restorative Justice. Myxophobia. International Law.

1. INTRODUÇÃO

Acontece nos tempos hodiernos um enorme salto no contingente de


refugiados que batem à porta da Europa em busca de asilo, entretanto, muros são
apressadamente erguidos para evitá-los. Sob esse viés, é necessário
compreender que o mundo vive uma crise humanitária e reconhecer a nossa
interdependência como espécie é o primeiro passo para parar a segregação
cotidiana dos indivíduos no âmbito social.
Primeiramente, o conceito do termo Mixofobia deriva do Grego Mixis e
Phobos que significam, nessa ordem, mistura e medo intenso, fobia. De acordo
com Bauman, o termo Mixofobia é o medo de misturar-se, como um impulso em
direção a ilhas da semelhança espalhadas no grande mar da variedade e da
diferença. (BAUMAN, 2009, p. 44)
1369

Destarte, o terrorismo acometido ao país Sírio é enxergado com pavor


pelos países receptores de imigrantes, como a Alemanha, pois citando o estudo
de Leite Filho (2003, p.19) publicado na Revista Jurídica, “o uso da força por
qualquer Estado, no sistema internacional, seja mediante uma guerra declarada
ou intervenções militares com objetivos humanitários, sempre significa sofrimento,
e muito desprezo pelo Direito Internacional”.

Além disso, a insegurança e o medo que passam a caracterizar a vida


nos grandes centros urbanos na contemporaneidade particularmente em
decorrência dos atentados terroristas ocorridos no início do milênio são
canalizados para determinados focos, em âmbitos concretos ou em
grupos que, independentemente do fato de serem precursores de mais
delinquência ou não, são temidos pela sociedade em razão da criação
de estereótipos. Nesse rumo, a “potencialidade terrorista”(...) contribui
para a construção de uma imagem distorcida dos imigrantes, o que
reflete nas respostas institucionais aos fenômenos migratórios.
(WERMUTH, 2014)

A Guerra civil ocorrente na Síria desde 2011, iniciada dentro do contexto


da Primavera Árabe, causou uma enorme onda de imigrações para os países
europeus, dentre eles a Alemanha sendo um dos principais focos, tendo recebido
em 2015 cerca de 98.783 solicitações para refúgio de Sírios. Entretanto, os
cidadãos não são tão receptivos devido a mixofobia existente, construída desde a
Segunda Guerra mundial contra os não arianos e reforçada na questão dos Sírios,
implicitamente, com a possível “ameaça”, suposta pelos cidadãos, do terrorismo
existente na Guerra Síria ser transferido ao país Alemão receptor de refugiados.
Ora, a mixofobia se retroalimenta: quanto mais o afastamento e a
segregação forem utilizadas como estratégias, mais eficaz ela será. Sendo assim,
enquanto as pessoas somente buscam a companhia e a convivência de quem se
encontram na mesma situação que elas, serão raros os momentos em que
confrontam com a desagradável necessidade de traduzir distintos universos de
significado, sendo mais provável que elas desaprendam como negociar os
significados e maneiras de conviver entre si. (BAUMAN, 2013, p. 85). Ou seja: é
necessário soluções que abarcam um Direito Penal Mínimo – visto que as sanções
comunais enrijecem o sistema de segregação atrelado a legislação alemã. Dito
isto, é nessa sociedade permeada por preconceito por parte da população contra
os estrangeiros, principalmente os não “arianos”, algo que foi alimentado através
das décadas de maneira implícita que se faz extremamente necessário o uso da
Justiça Restaurativa.

2. DESENVOLVIMENTO

A Alemanha, atualmente, não é o epítome do pensamento livre, como diria


um estadunidense. Um país com estigmas históricos do nazismo não poderia se
escusar sem uma legislação que proíbe certos comportamentos como a
reprodução da ideologia de Adolf Hitler ou, em formas até mais simples e
cotidianas, o racismo. Todavia, apesar da positivação, os resultados não são os
melhores devido as penas inextricáveis ao Direito Penal. É dito por Caio Lara
(2013): “Várias foram as condições que possibilitaram o ressurgimento
contemporâneo dos modelos restaurativos, mas pode-se dizer que o principal
fator tenha sido a crise do sistema retributivo em que são protagonistas o direito
penal e processual penal.”
1370

Indubitavelmente, o sistema retributivo, como supracitado, impacta na


divisão dos povos sírios e alemães: não basta uma simples pena nos casos mais
deploráveis e que causam indignação geral, isso só fomenta a segregação social
e cria um ciclo infinito. Assoma-se que a mixofobia é velada pelo medo dos povos
autóctones serem prejudicados – a única forma de ser combatida de maneira
efetiva é abandonando o alicerce do atualmente falho Direito Penal e absorvendo
meios consensuais de solução de conflitos.
No que tange ao nascimento do racismo e da mixofobia no âmago de
alguém, as razões divergentes propõe uma dificuldade no sistema retributivo de
solucionar o problema. Zehr, em 2008, mostrou que ofensores podem ter sido
vítimas de abusos na infância, podem carecer das habilidades e formação que
possibilitariam uma vida significativa, podem também buscar validação e
empoderamento, e o crime se tornaria uma forma de gritar por socorro, afirmar
sua condição de pessoa, até mesmo como superior.
Por isso, esses atos estão enquadrados na Justiça Restaurativa. O seu
cerne propõe a cura entre os indivíduos – o ofendido tem danos que precisam ser
reparados, e nos casos em evidência, muitos são danos emocionais permanentes
que podem parir crimes futuros pela marginalização forçada. Tendo sua dor
ouvida, os estereótipos são fenecidos e cessam os estigmas causados da
mixofobia. Quanto ao ofensor, tal cura também é necessária para entender a
gravidade de um delito que causou um dano não só para a vítima, mas para toda
a sociedade, responsabilizando-se pelos seus atos. (VIEIRA, 2017)
Exposto por Mary Koss:

Devido a seu foco no não encarceramento e o uso de um formato em


que os participantes e seus valores culturais compartilhados moldam a
resolução, o modelo do encontro restaurativo pode ajudar a mitigar o
racismo e o acesso desigual à justiça que é percebido como permeando
o sistema de justiça criminal norte-americano. (KOSS, Mary P. et al,
2005, p. 366)

A problemática da justiça retributiva é sua falta de compromisso com as


relações interpessoais, uma clara hipocrisia quando se trata de mixofobia. As
lacunas deixadas por esse sistema não visam propor soluções – os punidos só,
no máximo, mantêm seus atos racistas em privado, tentando evitar casos de
reincidência. Não existe a cura ao ofensor. Para Santos (2015): “a justiça
restaurativa pode ser um instrumento que consiga ajudar a restabelecer o
equilíbrio entre crime e o tipo de resposta a ser aplicada, com o resgate de todos
os interessados na solução do conflito interpessoal” (SANTOS, 2015). Ter seus
interesses ignorados pode ser, aprioristicamente, um dos motivos do ofensor
cometer crimes.
Volvendo ao país em evidência, a Alemanha encetou a aplicação da Justiça
Restaurativa logo na década de 80, com o Grupo de Trabalho Conciliação Autor-
Vítima (Arbeitskreis Täter-Opfer-Ausyleich). Sua máxima foi nos anos 90, com a
Lei de Reforma da Lei dos Tribunais de Jovens e a Lei para o
descongestionamento da Administração da Justiça (SICA, 2007), entretanto,
essas práticas não consideram a grandiosidade do problema hodierno que é a
mixofobia alemã.
Ademais, a pesquisa que se propõe pertence à vertente metodológica
jurídico-sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na
1371

classificação de Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-projetivo. Bem como


o raciocínio desenvolvido na pesquisa será predominantemente dedutivo.

3. CONCLUSÃO

Em suma, diante do estudado até então, para Wermuth (2014) houve um


enxugamento do Estado de Bem-Estar Social, emergente de um falacioso
pretexto de um parasitismo social
promovido pelos imigrantes. Ademais, a narrativa de defender seus privilégios faz
os discursos xenofóbicos novamente entrarem em cena. Pedro Scuro Neto aduz:

“fazer justiça” do ponto de vista restaurativo significa dar resposta


sistemática às infrações e a suas conseqüências, enfatizando a cura das
feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou reputação,
destacando a dor, a mágoa, o dano, a ofensa, o agravo causados pelo
malfeito, contando para isso com a participação de todos os envolvidos
(vítima, infrator, comunidade) na resolução dos problemas (conflitos)
criados por determinados incidentes. Práticas de justiça com objetivos
restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparação,
envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas
em relação convencional com sistema de Justiça, significando, assim,
trabalhar para restaurar, reconstituir, reconstruir; de sorte que todos os
envolvidos e afetados por um crime ou infração devem ter, se quiserem,
a oportunidade de participar do processo restaurativo (Scuro Neto,
2000).

Com a falha do atual sistema legislativo alemão em proteger os bens


jurídicos dos imigrantes, a uso da Justiça Restaurativa iria conscientizar os
agressores se utilizada da maneira correta, buscando tornar a sociedade em algo
verdadeiramente heterogênico. A criação de Juizados Especiais Criminais é
recomendada, levando em escrutínio casos mais simples onde alguma parte já foi
lesada. A Justiça Restaurativa pode satisfazer as dúvidas sobre a adequação das
formulações abolicionistas anteriores em relação às funções simbólicas e
instrumentais atualmente servidas pelo direito penal.
Diante do esposado, é também esclarecido que esse método de acesso a
justiça não só corrobora com a ultima ratio do Direito Penal, também fomenta a
necessidade de intercomunicação das áreas do Direito em busca de um Estado
Democrático de Direito que fala em uníssono. Nas palavras de Lara (2013, p. 90):
“A criação dos Núcleos de Justiça Restaurativa nos Tribunais fortaleceria a
interdisciplinaridade na administração da justiça e a singularidade de cada caso
teria melhores condições de ser escutada, favorecendo a disseminação da cultura
da paz.”
Na Alemanha, essas práticas restaurativas vêm ganhando espaço, e se faz
necessário o enfoque em tais políticas para preservar um cotidiano saudável em
um país com grandes fluxos de imigração – fato que, em outrora, no ensejo da
Justiça Restaurativa alemã, não era parte da realidade da nação. Ao pensamento
de Shigematsu (2015, p.1), “Fica-se evidente que o objetivo é institucionalizar
esse modelo restaurativo como uma forma de promover a pacificação social que
beneficie não somente o Estado, Poder Judiciário, como também as partes
envolvidas nas infrações penais, no polo ativo (ofensor), e no passivo (vítima).”
Há de se frisar que o meio restaurativo não é uma abolição completa ao
sistema penal vigente, mas sim, uma forma de complementá-lo, visto que uma de
suas funções é evitar o congestionamento de processos – o tempo do processo,
1372

na França, tem uma média de 34 dias. (FAGET, 2000, p. 80-84). Doravante, para
solucionar parte da mixofobia na Alemanha, é necessário ter em mente que antes
de sermos povos de diferentes etnias, pertencemos a uma só raça, a humana.
Para um indivíduo tratar outro igual como diferente, ele não está incólume: existem
erros em diversas áreas da sua criação e vida, e é somente com a Justiça
Restaurativa que esses danos podem ser expostos e curados, visando preservar
a dignidade de toda população.

4. REFERÊNCIAS

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1375

PARA ALÉM DAS DORES DE PARTO: UM ESTUDO SOBRE A VIOLAÇÃO DE


DIREITOS NOS AMBIENTES OBSTÉTRICOS
BEYOND BIRTH PAIN: A STUDY ON RIGHTS VIOLATION IN OBSTETRIC
ENVIROMENTS

Júlia Macedo Campolina Diniz


Darla Eduarda Ferreira Pinto

Resumo: Esta pesquisa pretende estudar as causas e investigar os


desdobramentos jurídico-sociológicos da Violência Obstétrica. Através do método
hipotético-dedutivo, é fim dela, também, discorrer sobre a fragilidade do direito da
mulher no contexto do parto. Essa problemática, cuja origem está no machismo
estrutural presente na sociedade brasileira, é aqui abordada e analisada à luz da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Com estudos sobre o tema, conclui-se
preliminarmente que a violência obstétrica é uma forma de violência de gênero, e
que sua resolução passa necessariamente por duas esferas da sociedade: a
cultural e a jurídica e deve necessariamente ser erradicado.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Violência obstétrica. Direitos da Mulher.

Abstract: This research aims to study the causes and investigate the legal and
sociological deployment of Obstetric Violence. Trough the hipotetic-deductive
method, it also aims to expatiate on womens rights vulnerability in the obstetric
environment. This problematic, whose origin is the structural chauvinism existent
in the brazilian society, is aproached under the lights of the Universal Declaration
of Human Rights and the Brazilian Constitution of 1988. Based on preliminar
studies, this work has concluded that obstetric violence is a form of gender
violence, and that both the juridic and the social socpe of the society has a part on
it´s ending.
Keywords: Human Rights. Obstetric violence. Womens Rights.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A violência obstétrica é um tema de extrema relevância não apenas por


afetar milhares de mulheres diariamente, mas por se tratar da violação sistemática
de uma série de direitos básicos constitucionalmente guardados. É um fenômeno
de causas sociais profundas, que devem ser endereçadas. O machismo estrutural
e a forte herança patriarcal da sociedade brasileira não deveriam ameaçar os
direitos da mulher, apesar de cotidianamente o fazerem- e as salas de parto não
têm sido exceção a essa realidade. Abuso verbal, negligência, feitura de
procedimentos coercivos ou não consentidos e/ou sem anestesia, e/ou sem
necessidade, recusa de administrar analgésicos, administração abusiva de
fármacos, violações graves de privacidade, negação do direito a acompanhante e
execução de procedimentos e manobras não recomendadas pela Organização
Mundial de Saúde – OMS (World Health Organization, 1996) e pelo Ministério da
Saúde são formas de violência obstétrica, e 1 a cada 4 mulheres são vitimadas
por ela no Brasil. O objetivo geral do trabalho é analisar os aspectos jurídicos e
sociológicos da violência obstétrica, determinar em que ambiente ela ocorre, quais
são as suas vítimas, analisar quais são suas possíveis causas e consequências.
À luz dos direitos Humanos, é objetivo dessa pesquisa, também, trazer visibilidade
1376

ao tema e conscientizar a população de quais são dos direitos da gestante no


período da gestação, do parto e do puerpério.
A pesquisa que se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-
sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação de
Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-projetivo. O raciocínio desenvolvido
na pesquisa será predominantemente hipotético-dedutivo. De acordo com a
técnica de análise de conteúdo, afirma-se que se trata de uma pesquisa teórica,
o que será possível a partir da análise de conteúdo dos textos doutrinários, normas
e demais dados colhidos na pesquisa.

2. DESENVOLVIMENTO

Consultórios médicos e salas de hospitais têm, na atualidade, sido os


ambientes de maior flexibilização de direitos humanos. Mesmo em Estados
Democráticos de Direito, livres de ditaduras e reconhecedores dos Direitos
Humanos, como é o caso do Brasil, as mulheres são levadas a pensar que no
momento em que elas entram num consultório médico, seu corpo não mais lhes
pertence. Não mais é entendido que qualquer toque que ali aconteça é concessão
da paciente ao médico, mas firma-se uma ideia ilusória de que, entre aquelas
quatro paredes, pelo tempo que durar a consulta, a mulher foi tutelada. Por um
curto período, a palavra “consentimento” não existe. Essa mentalidade, que é
geral na sociedade e comum ao médico e ao paciente, é clausula sine qua non
para a apropriação do corpo da mulher no momento do parto.
A violência obstétrica é consequência direta do machismo estrutural e
expressão da eterna fragilidade dos direitos das mulheres. Simone de Beauvoir
afirmava que as mulheres precisavam manter-se vigilantes a todo tempo, pois
seus direitos não eram permanentes; o fato de que mesmo após décadas de
movimentos emancipatórios o direito feminino de autonomia em relação ao próprio
corpo ser levianamente colocado em xeque comprova a tese da autora.
A vigilância a que Beauvoir se refere perpassa, necessariamente, pelo
estabelecimento de um extenso e significativo debate sobre o tema.
Isso se torna particularmente difícil, no entanto, quando há esforços
governamentais contrários a esse debate. Na sexta-feira, 03 de maio de 2019, um
despacho assinado por Mônica Almeida Neri, Coordenadora-Geral de Saúde das
Mulheres, Marcio Henrique de Oliveira Garcia, Diretor do Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas e Erno Harzheim, Secretário-Executivo, Substituto, foi
editado pelo Ministério da Saúde. Nele, o Ministério se posiciona contrariamente
ao uso do termo “violência obstétrica”, sob a alegação de que a definição da OMS
para “violência” é “uso intencional de força física ou poder (...) que resulte ou
possa resultar em sofrimento(...)”. Segundo o texto do despacho, essa
caracterização "estaria associada claramente a intencionalidade com a realização
do ato, independentemente do resultado produzido", e, portanto, “o termo
violência obstétrica tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a
busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério.” Não só
isso, mas o governo tem “fortalecido estratégias para a abolição do uso da
expressão”.
O Ministério Público Federal, em resposta, recomendou ao Ministério da
Saúde que "se abstenha de realizar ações voltadas a abolir o uso da expressão
violência obstétrica" e, "em vez disso, tome medidas para coibir tais práticas
agressivas e maus tratos”. A Recomendação destaca que a própria OMS
1377

"reconhece expressamente a ocorrência de maus tratos e violência no parto",


inclusive tendo publicado materiais sobre o tema.
No documento de 2014, "Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito
e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde", a OMS compilou 5
medidas a serem seguidas a fim de evitar e eliminar o desrespeito e os abusos
contra as mulheres durante a assistência institucional ao parto. A primeira citada
no texto é: maior apoio dos governos e de parceiros do desenvolvimento social
para a pesquisa e ação contra o desrespeito e os maus-tratos. O despacho
editado pelo MS representa um flagrante retrocesso na busca pela garantia e
efetivação dos direitos da mulher, e vai na contramão de esforços globais feitos
nesse sentido. Não condenar e não combater veemente a violência obstétrica é
ser complacente com a violação de direitos em função de gênero, e caracteriza
discriminação. Um governo omisso a essa realidade é cúmplice dessa violação.
Os “esforços para abolir o termo” que serão empreendidos pelo MS
demonstram desapoio governamental aos poucos, mas crescentes, movimentos
pró humanização do parto, e total desconsideração com as mulheres vítimas de
violência obstétrica- tenha o médico/instituição sido intencional na agressão ou
não. Fato é que, a intencionalidade ou falta dela não escusa nenhum profissional
da responsabilidade sobre seus atos.
Nomear um fenômeno contribui imensamente para a conscientização da
população sobre ele, e possibilita que uma discussão ampla seja estabelecida. É
essencial, principalmente para a resolução do problema da VO, que passa pela
denúncia dos casos, que haja na sociedade liberdade para falar sobre tema. Como
tudo relacionado ao corpo e sexualidade feminina, graças à herança patriarcal, é
um tabu falar abertamente sobre parto, que dirá sobre experiências traumáticas
durante sua ocorrência. Essa realidade, porém, precisa urgentemente ser
transformada, e os principais protagonistas nesse processo em andamento têm
sido os movimentos feministas e, no caso específico do parto, o ciberativismo de
mães e gestantes.
Nos últimos 5 anos, blogs e canais no youtube feitos por mães com objetivo
de instruir e conscientizar outras mulheres têm se tornado populares- e eficazes
na construção de ambientes obstétricos mais seguros. Através de depoimentos
pessoais e explicações simples sobre procedimentos comuns durante o pré-parto,
parto e puerpério (tricotomia, enema, rompimento artificial da bolsa, administração
de ocitocina, litotomia, episiotomia), parturientes têm chegado às salas de parto
mais cientes do que esperar, principalmente aquelas que elaboraram um plano de
parto (lista as preferências da gestante em relação a seu parto) a ser seguido.
Com a popularização do uso de planos de parto, as gestantes têm tido
maior contato prévio com os procedimentos normalmente relacionados com o
parto e nascimento, além de que, por meio dele, é fortalecido o diálogo entre a
gestante e equipe que a assistirá. A medida simples evita que mulheres sejam
submetidas, por exemplo, a procedimentos que num hospital são tidos como
rotina no pré-parto, como o enema (lavagem estomacal), mas que não é
recomendado pela OMS. O conhecimento confere autonomia à parturiente, e isso
foi percebido pelas próprias mulheres que já tinham dado à luz.
Além de quebrar o tabu do parto fomentar o conhecimento sobre o assunto,
o ciberativismo feminino de mães alerta sobre a violência obstétrica, sobre os
direitos da gestante, sobre qual tipo de prática é indicada pela OMS e pouco
adotada nos hospitais brasileiros, e sobre procedimentos não indicados pela
OMS, mas geralmente realizados por serem convenientes ao médicos.
1378

Outro alerta trazido a tona pelas mães ativistas pela humanização do parto,
mas negligenciado pelo MS, apesar de já ter sido endereçado pela OMS, é relativo
às altíssimas taxas de cesáreas feitas no Brasil. Líder nas taxas de cesáreas no
mundo, 52% dos partos do país são realizados nessa modalidade, e, quando
considerados somente os partos feitos no setor privado, esse número passa para
88%. A média global de cesáreas é de 19,1%. Estima-se que um milhão de
mulheres façam cesáreas desnecessárias anualmente.
Questões como parto, violência obstétrica e violação dos direitos da mulher
não podem ser negligenciadas, ou perderem visibilidade. Esses são fenômenos
interligados e que dependem da estigmatização social para se sustentarem. A VO
é um problema no Brasil, e não reconhecer seu nome não o faz menos real. Na
verdade, quanto menos for dito e feito sobre ele, mais frequente ele será e menos
amparo terá a vítima que optar por denunciar. O combate à violência contra a
mulher deve ser constante, e não pode estar desvinculada do ambiente obstétrico.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, conclui-se preliminarmente que a violência obstétrica é


uma forma de violência de gênero, e que sua resolução passa necessariamente
por duas esferas da sociedade: a cultural e a jurídica. Os elementos da sociedade
que perpetuam essa violência devem ser erradicados, e, para que os ambientes
obstétricos sejam seguros, é necessário que as vítimas tenham amparo legal, e
que os profissionais da saúde sejam extensivamente orientados sobre aos direitos
das gestantes, cabendo sanção àqueles que não for os respeitarem. Questões
como parto, violência obstétrica e violação dos direitos da mulher não podem ser
negligenciadas.

4. REFERÊNCIAS

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WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis en derecho: pautas


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Madrid: Civitas, 1985.
1380

POBREZA E A APOROFOBIA: A VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE E LIBERDADE


HUMANAS E A ATUAÇÃO DO ESTADO
POVERTY AND APOROPHOBIA: THE VIOLATION OF HUMAN DIGNITY AND
FREEDOM AND STATE ACTION

Daisy Rafaela da Silva


Davi Dias Ribeiro Arantes

Resumo: A Constituição Federal tem como objetivo construir uma sociedade livre,
justa e solidária, sendo necessário atentar para a erradicação da pobreza e
redução da desigualdade social. A pobreza compreendida pelas condições
socioeconômicas e privações é um ultraje à liberdade. A pessoa humana pobre
sofre por sua condição socioeconômica que obsta suas oportunidades, violando-
se de direito, sendo vítimas de aporofobia. O Estado deve criar e concretizar
políticas públicas para erradicação da pobreza e redução das desigualdades
sociais, porém parte de suas ações são assistencialistas que não permitem uma
sociedade verdadeiramente livre. Num contexto mundial, a pobreza aumenta em
virtude da relação entre o público e o mercado, no contexto capitalista neoliberal.
Muitas ações estatais, com fins de desenvolvimento, são políticas “aporofóbicas”,
tomadas durante (ou não) crises econômicas, que não permitem a emancipação,
tampouco a erradicação da pobreza e diminuição da desigualdade, prejudicando
a promoção da dignidade e liberdade, violando-se direitos humanos.
Palavras-chave: Pobreza. Aporofobia. Liberdade.

Abstract: The Federal Constitution aims to build a free, fair and solidary society,
and attention must be paid to eradicanting poverty and reducing social inequality.
Poverty comprised of socioeconomic conditions and deprivation is an outrage on
freedom. The poor people suffers in reason of their socioeconomic condition that
hinders their opportunities, violating their rights and being victims of aporophobia.
The State must create and implement public policies to eradicate poverty and
reduce social inaqualities, but part of this actions are welfare workers that do not
allow a truly free society. In a global context, poverty increases due to the relation
between the public and the market, in the neoliberal capitalist context. Many
developmental state actions are “aporophobic” policies, taken during (or not)
economic crises, which do not allow emancipation, nor the eradication of poverty
and reduction of inequality, undermining the promotion of dignity and freedom,
violating human rights.
Key words: Poverty. Aporophobia. Freedom.

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, trouxe em seu


artigo 3º objetivos fundamentais. Em seu primeiro inciso do artigo caracterizando
e identificando os ideais do país no objetivo de construir uma “sociedade livre,
justa e solidária (art.3º, I) - é a meta prioritária da República Federativa do Brasil,
irmanando-se com os ideários de liberdade, justiça e solidariedade humana.”
(BULOS, 2011, p.509).
Destaca-se aqui a característica de uma sociedade livre, objetivo que
envolve toda complexidade da vida dos cidadãos e, para que seja alcançada não
se basta, mas relaciona-se intrinsicamente com outros fatores como o
1381

desenvolvimento, pobreza e desigualdade social, temas atuais e urgentes e, por


essa razão tomam grande proporção nas discussões mundiais, “erradicar a
pobreza e reduzir as desigualdades é uma meta inevitável do mundo econômico
para os séculos XX e XXI” (CORTINA, 2017, p.140, tradução nossa)1
Observando os objetivos previstos na Constiuição Federal do país, tem-se
como necessário a condução de uma “guerra contra a pobreza” por entes públicos
que se utilizem de “armas políticas” (BAUMAN, 2017, p.85) a fim de promover a
sociedade realmente livre que se espera e oferecer dignidade aos que vivem no
território.

DESENVOLVIMENTO
O constituinte ao pensar os objetivos da República reconhece a importância
do desenvolvimento nacional, sabendo que “os recursos materiais são
imprescindíveis à melhoria das condições de vida do homem” (BULOS, 2011,
p.509). Acresceu também dentre os incisos do artigo terceiro um olhar atento a
questão da pobreza e desigualdade social, e sobre isso asseverou:

Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as


desigualdades sociais e regionais (art.3º, III) – ante a pobreza
generalizada, o desenvolvimento social impõe a sua extirpação
como única saída para o extermínio das desigualdades sociais e
regionais. A preocupação da constituinte de 1988 foi salutar, pois,
no Brasil, a pobreza, a indigência e a miséria são muito comuns,
o que distingue com o triste título de País do Terceiro Mundo.
(BULOS, 2011, p.509)

Não se deve delimitar aos objetivos encontrados no pequeno rol do texto


constitucional, que apresenta algumas prioridades, que os poderes públicos
devem efetivá-los. Nesse sentido, afirma Moraes:

Logicamente, o rol de objetivos do art.3º não é taxativo, tratando-


se somente da previsão de algumas finalidades primordiais a
serem perseguidas pela República Federativa do Brasil. Os
poderes públicos devem buscar os meios e instrumentos para
promover condições de igualdade real e efetiva e não somente
contentar-se com a igualdade formal (MORAES, 2014, p.21)

A liberdade toma espaço especial ao tratar dos objetivos do Brasil, que vêm
“a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana” (SILVA, 2014, p.108).
Quando a liberdade da pessoa humana é, de alguma forma violada, atingem-se
os direitos humanos e coloca-se em risco a própria democracia.

Vale dizer, portanto que é na democracia que a liberdade encontra


campo de expansão. É nela que o homem dispõe da mais ampla
possibilidade de coordenar os meios necessários à realização de
sua felicidade pessoal. Quanto mais o processo de
democratização avança, mais o homem se vai libertando dos
obstáculos que o constrangem, mais liberdade conquista. (SILVA,
2014, p.236)

1 “erradicar la pobreza y reducir desigualdades es una meta ineludible del mundo económico para
los siglos XX y XXI”
1382

A construção de uma sociedade livre, sem o desenvolvimento econômico,


torna-se improvável ou, ao menos mais dificultosa, muito menos sem a
erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais.
No Brasil, a pobreza extrema, que considera aqueles que vivem com
menos de R$140,00 mensais, atingiu em 2017 mais de 15,2 milhões de pessoas
(IBGE, 2018), um número preocupante devida tamanha proporção diante da
população brasileira. Entretanto o alerta se intensifica ao notar as perspectivas e
dinâmica da economia, do fim de 2014 até o segundo semestre de 2019, a renda
dos 50% mais pobres da população caiu 17,10%, já a dos 1% mais ricos subiu
10,11% (NERI, 2019), consequência, dente outros fatores da inflação de agosto
de 2019 que, para os mais pobres 0,12%, já para as famílias de maior poder
aquisitivo 0,08% (IPEA, 2019), desse modo o dito popular que “o pobre fica cada
vez mais pobre, e o rico cada vez mais rico” se materializa na realidade e é
comprovado pelos dados supra expostos.
Sobre a pobreza e consequentes privações, Amartya Sen considera que:

(...) a pobreza deve ser vista como privação de capacidades básicas em


vez de meramente como baixo nível de renda, que é o critério tradicional
de identificação da pobreza. A perspectiva da pobreza como privação de
capacidades não envolve nenhuma negação da ideia sensata de que a
baixa renda é claramente uma das causas da pobreza, pois a falta de
renda pode ser uma razão primordial da privação de capacidades de
uma pessoa. (SEN, 2010, p.120)

E na compreensão de que “a pobreza é, no fim das contas, falta de


liberdade” (CORTINA, 2017, p.129, tradução nossa)2, o cenário acima
apresentado é grave, pois a pobreza viola a dignidade e a liberdade, ou seja, priva
o ser humano de condições básicas por conta de sua condição econômica, e Sen
ainda fundamenta:

Existem boas razões para que se veja a pobreza como uma privação de
capacidades básicas, e não apenas como baixa renda. A privação de
capacidades elementares pode refletir-se em morte prematura,
subnutrição significativa (especialmente de crianças), morbidez
persistente, analfabetismo muito disseminado e outras deficiências.
(SEN, 2010, p.36)

A pobreza reprime, no sentido de privar a vida, tirar liberdades, mas


atentaremos aqui à liberdade objetiva, que “consiste na expressão externa do
querer individual, e implica o afastamento de obstáculo ou de coações, de modo
que o homem possa agir livremente.” (SILVA, 2014, p.233). Ao considerar que a
pobreza gera a privação das capacidades básicas, da possibilidade de
planejamento de vida e até mesmo a própria vida, nos referimos a obstáculos que
surgem a partir da questão econômica e assim oprimem os pobres.
Com o intuito de identificar, a fim de saciar a necessidade de apontar
corretamente e assim tornar possível combater as privações geradas em razão da
pobreza, Cortina cunha o termo “aporofobia”, para indicar o preconceito sofrido
pelos pobres. A autora entende que “colocar um nome a essa patologia social era
urgente para poder a diagnosticar com precisão, para tentar descobrir sua

2 “la pobreza es, a fin de las cuentas, falta de libertad”


1383

etiologia e propor tratamentos efetivos” (CORTINA, 2017, p.22, tradução nossa)3.


O neologismo vem do grego, áporos, “um termo para designar o pobre, sem
recursos” (CORTINA, p.23, tradução nossa)4 e fóbos, o mesmo de xenofobia e
homofobia, significando rechaço ou medo, desse modo aporofobia nomeia a
aversão aos pobres.
O poder público reconhece sua parte, prevista na Constituição da
República Federativa do Brasil, na tarefa de erradicação da pobreza e reduzir as
desigualdades sociais, porém nesse ponto se corre o risco das medidas estatais
se reduzirem ao assistencialismo, prolongando ou até mesmo melhorando a
condição de vida das pessoas que vivem na pobreza e extrema pobreza,
entretanto sem emancipa-las de fato, ou seja, sem proporcionar a elas a
verdadeira liberdade, e podermos considerar medidas como as “políticas de
austeridade”, prejudiciais aos pobres, ou que não visem sua efetiva liberdade,
considerando, serem “aporofóbicas”, quando vindas de um Estado “aporofóbico”.
Assim, Silva trata da libertação:

(...) o homem se liberta no correr da história pelo conhecimento e


consequente domínio das leis da natureza, na medida em quem
conhecendo as leis da necessidade, atua sobre a natureza real e social
para transformá-la no interesse da expansão de sua personalidade.
(SILVA, 2014, p.233)

A pessoa assistida, sem a oferta de instrução de qualquer espécie está


fadada a permanecer e até mesmo herdar sua condição, como acontece com as
famílias mais pobres, que chegam a levar 9 gerações para alcançar a renda média
(BBC, 2018), e parte da responsabilidade desse cenário se direciona ao Estado.
O poder público adotou diversas iniciativas com a justificativa de erradicar
a pobreza. Neste sentido, em 2003 o Fundo de Erradicação e Combate e
Erradicação da Pobreza, conhecido como programa Fome Zero, e também o
Programa Bolsa Família que, segundo o Relatório de Informações Sociais, do
Ministério da Cidadania, no mês de setembro de 2019 o programa beneficiou
13.537.137 famílias (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2019), entre diversos outros
programas sociais, todavia muitos extintos e mesmo os que permanecem não
apresentam resultados muito satisfatórios quando se pretende uma sociedade
plenamente livre.
O índice Gini, que mede a desigualdade de renda, variando de 0 à 1, sendo
1 o maior nível de desigualdade, na década de 1950 apontada 0,50 (IBGE,2006),
já no primeiro trimestre de 2019, indicou 0,627, alertando a maior concentração
de renda desde que o indicador começou a ser utilizado (FGV, 2019). Não só a
desigualdade, mas os dados afirmam o que diz Atkison: “Pobreza maior tende a
andar ao lado de estratos superiores mais concentrados” (2015, p.49). O hiato da
pobreza, cálculo do montante necessário para erradicação da pobreza, aumentou
comparado aos últimos anos, o que indica a radicalização da pobreza e
agravamento da situação da população carente (IBGE, 2018), assim reforçando a
ineficácia das medidas atuais adotadas pelo poder público.

CONCLUSÃO

3 “Poner un nombre a esa patología social era urgente para poder diagnosticarla con mayor
precisión, para intentar descubrir su etiología y proponer tratamientos efectivos.”
4 “(...)un término para designar al pobre, al sin recursos, y encontré el vocablo áporos.”
1384

O Estado brasileiro tendo como uma de suas metas/objetivos construir uma


sociedade livre deve atentar-se a realidade de sua população. Medidas estatais
assistencialistas e aporofóbicas, que prejudicam os pobres, em razão de sua
condição econômica, ou até mesmo aquelas que contribuem em momentos
emergenciais, não resolvem nem são adequadas se também dificultam o
horizonte de possibilidades para ascensão social e autonomia.
A reflexão de mudar o caráter das políticas estatais para erradicar a
pobreza e reduzir as desigualdades, é válida e necessária. “As políticas contra
pobreza podem ser tomadas como medidas de proteção das pessoas ou das
sociedades, ou como medidas de promoção das pessoas.” (CORTINA, 2017,
p.134, tradução nossa).5
Portanto, para atingir realmente o objetivo de uma sociedade imperada por
valores de liberdade, deve-se optar por medidas de promoção e não apenas
proteção de pessoas, oferecendo-lhes sim as necessidades para as emergências
atuais, porém sem esquecer e priorizando a oferta de oportunidades e
perspectivas de liberdade/autonomia, de quaisquer forma, mas que passam
necessariamente pela erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades
sociais.

REFERÊNCIAS

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Câmara. São Paulo: LeYa, 2015.

BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro:


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<https://g1.globo.com/politica/noticia/familias-pobres-brasileiras-levariam-9-
geracoes-para-alcancar-renda-media-diz-ocde.ghtml>. Acesso em: 10 out 2019

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São Paulo: Saraiva, 2011.

CORTINA, Adela. Aporofobia, el rechazo al pobre: um desafio para la


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do FGV IBRE. Portal FGV, 2019. Disponível em:
<https://portal.fgv.br/noticias/desigualdade-renda-brasil-bate-recorde-aponta-
levantamento-fgv-ibre>. Acesso em: 09 out 2019.

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em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-
agencia-de-noticias/releases/23298-sintese-de-indicadores-sociais-indicadores-
apontam-aumento-da-pobreza-entre-2016-e-2017>. Acesso em: 10 out 2019.

5“Las políticas antipobreza pueden tomarse como medidas de protección de las personas o de las
sociedades, o como medidas de promoción de las personas.”
1385

______. Estatísticas do século XX. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. Disponível em:
<https://seculoxx.ibge.gov.br/images/seculoxx/seculoxx.pdf> Acesso em: 09 out
2019.

IPEA. Inflação por faixa de renda – agosto/2019. Carta de Conjuntura ,11 set
2019. Disponível em: <
http://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/tag/inflacao-por-classe-
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MINISTÉRIO DA CIDADANIA. Relatório de Informações Sociais. Ministério da


Cidadania, 2019. Disponível em:
<https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/RIv3/geral/index.php#>. Acesso em: 10 out
2019.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 30. ed. São Paulo: Atlas,
2014.

NERI, Marcelo C. A escala da desigualdade – Qual foi o Impacto da Crise


sobre a Distribuição de Renda e a Pobreza? Rio de Janeiro: FGV Social, 2019.
Disponível em <https://portal.fgv.br/noticias/desigualdade-renda-brasil-bate-
recorde-aponta-levantamento-fgv-ibre> Acesso em: 09 out 2019.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das


Letras, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.37. ed. São
Paulo: Malheiros, 2014.
1386

SÉTIMO GARIBALDI: A PERPETUAÇÃO DA IMPUNIDADE NOS CONFLITOS


DE TERRA E DA SUPRESSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL
SÉTIMO GARIBALDI: THE PERPETUATION OF IMPUNITY IN LAND
CONFLICTS AND THE SUPPRESSION OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN
BRAZIL

Ana Laura Gonçalves Chicarelli


Lucas Gomes Delarco
Orientador(a): Valter Moura do Carmo

Resumo: A presente pesquisa versa sobre a relação do caso Sétimo Garibaldi, o


qual teve sua vida findada em meio a uma desocupação de terras, e a impunidade
presente nesses casos, com o problema latifundiário no Brasil. Apesar de
existirem leis regulamentando a partilha de latifúndios, na prática, o Estado
Brasileiro é omisso em relação ao problema, além de não se empenhar de forma
eficaz na divisão de terras, também não se mostra comprometido em julgar os
algozes que findam as vidas daqueles que apenas buscam seus direitos
afiançados por lei. Com a utilização do método dedutivo com análise
jurisprudencial, quantitativa e com base em doutrina nacional, é possível observar
que o problema da violência no campo se perpetua por décadas, mesmo após o
Estado brasileiro ter sido condenado perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH).
Palavras-chave: Reforma Agrária. Sétimo Garibaldi. Corte Interamericana de
Direitos Humanos.

Abstract: This research deals with the relationship of the Sétimo Garibaldi case,
which had his life ended in the middle of a land eviction, and the impunity present
in these cases, with the landowner problem in Brazil. Although there are laws
regulating the sharing of large estates, in practice the Brazilian State is silent on
the problem. In addition to not effectively committing itself to land division, it is also
not committed to judging the tormentors who end the lives of those who only seek
their rights provided by law. By using the deductive method with jurisprudential
analysis, quantitative and based on national doctrine, it is possible to observe that
the problem of violence in the countryside is perpetuated for decades, even after
the Brazilian State was condemned before the Inter-American Court of Human
Rights (IACHR)
Keyword: Agrarian Reform. Sétimo Garibaldi. Inter-American Court of Human
Rights.

INTRODUÇÃO

A pesquisa trata a respeito do caso ocorrido na cidade de Querência do


Norte, estado do Paraná, onde o Sr. Sétimo Garibaldi teve sua vida ceifada
durante uma operação de desocupação na Fazenda São Francisco. Na data dos
fatos, aproximadamente cinquenta famílias vinculadas ao Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra – MST, ocupavam a supracitada fazenda, quando um
grupo de homens encapuzados chegou ao local efetuando disparos com armas
de fogo. Sétimo, ao sair de sua barraca, foi atingido por um projétil e morreu em
decorrência de hemorragia. O grupo armado se evadiu, sem concluir a
desocupação.
1387

A luta da vítima que perdeu sua vida prematuramente retrata a violência


contra os trabalhadores do campo que, assim como Sétimo, morrem e têm sua
esperança findada a despeito da luta pela prática efetiva do estatuto de terras e
de uma reforma agrária eficaz e justa. O Estado deve garantir acesso à terra para
aqueles que nela vivem e trabalham, mas, em contrapartida, mostra-se omisso e
negligente em relação aos fatos, deixando famílias desamparadas e,
principalmente, trazendo por induzimento, em decorrência da cultura da
impunidade, um maior número de assassinatos e massacres.
Os objetivos almejados, na presente pesquisa, baseiam-se em ponderar
acerca da questão latifundiária no Brasil e traçar um paralelo com o direito e
garantia fundamental presente no artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal
de 1988, bem como analisar a evolução jurisprudencial da corte interamericana
de direitos humanos no caso Sétimo Garibaldi X Brasil e relacioná-lo à má
distribuição de terras no país. Analisar-se-á, também, se, mesmo após a
condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, os
números de conflitos no campo foram de fato levados ao judiciário, além de
verificar como as garantias presentes na declaração universal dos direitos
humanos são feridas na luta por terras no Brasil.
Visando alcançar os resultados e objetivos do trabalho, foi utilizado o
método dedutivo, com base na análise jurisprudencial, quantitativa e doutrina
nacional.

DESENVOLVIMENTO

O conflito de terras é presente no Brasil desde os primórdios da


colonização, já em 1530, com a criação das capitanias hereditárias e sesmarias.
Observa-se, então, que todo o vasto território brasileiro foi dividido em apenas
quinze faixas de terra, concentrando-se essas nas mãos de seus doze donatários.
Em 1822, após a independência do Brasil, a demarcação da área rural do país
deu-se pela lei do mais forte, trazendo como consequência, até os dias hodiernos,
a extrema violência no campo.
No seio da Constituição Federal de 1988, no artigo 5°, inciso XXIII, o
legislador traz como garantia fundamental o conceito de que a propriedade deve
atender a sua função social, deixando claro, desde então, que a cultura dos
latifúndios no Brasil estabelece uma grande dicotomia relacionada à matéria
legislativa. Assim como a lei nº 4.504 de 30 de novembro de 1964, denominada
de Estatuto da terra, que também é considerado um grande instrumento
relacionado à reforma agrária e política agrícola, traz em seu conteúdo diversos
artigos que regulam, na teoria, a divisão das terras em solo nacional. Porém,
apesar de existirem leis regulamentando a partilha dos latifúndios, os conflitos
pela posse da terra são presentes em todo o solo brasileiro, com uma maior
incidência e intensificação de violência nos embates. Principalmente no estado do
Pará, onde, de acordo com a comissão pastoral da terra, foi catalogada a
existência de 24 massacres no campo entre os anos de 1985 e 2019.
Sétimo Garibaldi, participante do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra - MST, é um dos casos mais marcantes e memoráveis que conecta
intimamente a falta de olhar para a questão latifundiária no país e a impunidade
daqueles que ceifam vidas em tentativas de desocupação de acampamentos
rurais. O Estado brasileiro não se empenhou para conseguir punir aqueles
1388

culpados pelo homicídio da pessoa supracitada, arquivando o inquérito policial,


deixando amigos e familiares desamparados, buscando justiça.
O caso foi entregue à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para
análise, no ano de 2003, pelas organizações Justiça Global, Rede Nacional de
Advogados e Advogadas Populares (RENAP) e Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) (CIDH, 2009, p. 1). Em 27 de março de 2007, foi proferido
pelo órgão um relatório de mérito, o qual, em seu conteúdo, possuía diversas
medidas que o Estado brasileiro deveria cumprir, porém, com a retórica negativa,
o caso foi reaberto na comissão e, em seguida, encaminhado para a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que julgou o caso. O Brasil, em posição de
réu, foi condenado a cumprir uma série de medidas, como a publicação da
sentença condenatória em todos os meios de comunicação oficial do Estado, o
dever de pagar indenização aos familiares da vítima, como também conduzir, de
forma eficiente, o inquérito policial com a finalidade de identificar, julgar e
sancionar os autores do assassinato de Sétimo, trazendo como consequência um
impulso aos tribunais brasileiros para que a impunidade relacionada aos conflitos
por terra diminuíssem drasticamente.
É importante ressaltar que o Estado foi condenado perante a Corte, uma
vez que deixou que os princípios basilares dos direitos humanos fossem
dizimados, contrariando totalmente o artigo III e VIII da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, que traz, em seu conteúdo, o princípio de que todos os seres
humanos possuem direito à vida e a receber, dos tribunais nacionais competentes,
remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhes sejam
reconhecidos pela constituição ou pela lei (ONU, 2018, p. 5).
Outrossim, diversos embates possuindo como tema central a divisão justa
da terra acontecem diariamente no Brasil. Em caso recente, em dezembro do ano
de 2018, líderes do MST foram mortos em acampamento na Paraíba, da mesma
maneira que Sétimo. Criminosos encapuzados invadiram o local onde todos se
encontravam e liquidaram, a tiros, dois líderes do movimento, enquanto esses
jantavam. No local, moravam cerca de 450 famílias, sobrevivendo da agricultura
familiar. É válido salientar que a terra ocupada pelas famílias se encontrava
abandonada há anos. As vítimas do executor, assim como o restante dos
moradores do local, possuíam como objetivo em comum a divisão latifundiária
garantida em lei, uma vez que essa declara que a terra deve atender sua função
social e ser dividida entre aqueles que da terra tiram o seu sustento.
Não obstante, de acordo com dados fornecidos pela página oficial do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, baseados no relatório nomeado
“Conflitos no Campo Brasil”, redigido e divulgado pela Comissão Pastoral da Terra
(CPT) no ano de 2017, 71 pessoas foram assassinadas no campo, o maior
número desde o ano de 2003, sendo que 73 indivíduos tiveram suas vidas
findadas em ocupações. Tendo em vista que o mesmo ano de 2017 foi o ano que
menos aconteceram ocupações de terra desde 1985, ano em que CPT começou
a elaborar os relatórios informativos sobre os Conflitos no Campo, é irrefutável
que as mortes em defluência aos embates no campo, em vez de diminuírem, estão
aumentando ou se mantendo no mesmo patamar de anos atrás. Fazendo, assim,
com que os ocupantes se sintam desamparados em face da lei.
Embora o Estado brasileiro tenha sido condenado perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, por não se mostrar assíduo na resolução da
morte de Sétimo, a impunidade se mantém constante em território nacional.
Segundo dados, apenas 5% dos casos de homicídios no campo foram levados a
1389

julgamento desde 1985. Número extremamente expressivo que retrata que,


apesar dos esforços internacionais para a diminuição da impunidade e
consequentemente uma redução nos ataques contra os ocupantes, a sentença
condenatória da Corte não possuiu a eficácia necessária. Ben Leather,
participante da ONG Global Witness, explica, em entrevista para o jornal BBC, o
porquê, em sua visão, de o Brasil continuar propiciando a impunidade. Em
primeira análise, nenhum governo brasileiro demonstrou vontade para enfrentar
os interesses econômicos para priorizar a proteção dos ativistas. Além disso, a
principal instituição que poderia enfrentar as causas do conflito pela terra, o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, vem sendo
enfraquecida pelo governo (BBC NEWS BRASIL, 2018).
Ademais, como já apontado em audiência pública da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias, na câmara dos deputados em 2016, a ausência de punição
relacionada a tal temática é apontada como uma das principais causas da
violência no campo, já que aqueles que se acham soberanos à legislação sentem-
se cada vez mais fortes para continuarem praticando os massacres nos latifúndios
improdutivos ocupados, acreditando que em tempo algum serão punidos pela
prática de seus atos desumanos. Durante a mesma assembleia, foram apontadas
diversas medidas para romper tal questão, entre elas, o fato de levarem a
julgamento os crimes ocorridos no local, o desarmamento dos indivíduos em áreas
de acampamentos rurais, a celeridade processual dos inquéritos já instaurados,
bem como uma maior fiscalização dos órgãos ambientais, com o fim de prevenir
eventuais crimes contra aqueles que apenas buscam seus direitos garantidos por
lei.
Indubitavelmente, é aspecto genuíno que os conflitos por terra, envolvendo
morte dos ocupantes, aniquila uma série de direitos e garantias fundamentais do
ser humano presentes na Constituição Federal de 1988 e na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, como também presentes em leis complementares, como
o Estatuto da Terra. Os direito à vida e à propriedade, visando manter a sua
própria subsistência, deveriam ser garantidos pelo Estado, e quando esses
fossem feridos, os responsáveis por tal ato deveriam sofrer as sanções previstas
pela própria lei, não ficando a par da impunidade judicial, essa que tanto
impulsiona e faz com que a violência no campo se perpetue.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante o pesquisado e todo o exposto apresentado no trabalho, segundo


dados de instituições competentes, como a CPT, a violência no campo não cessou
após a condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Apesar da decisão, condenando o Brasil e fazendo com que o país
devesse se empenhar efetivamente para solucionar o caso envolvendo a morte
de Sétimo Garibaldi, reabrindo o inquérito policial anteriormente arquivado e,
como consequência, punindo aqueles que retiraram de forma brutal sua vida.
A impunidade que rege essa temática de conflitos é absurdamente alta e
preocupante, apenas 5% dos casos são levados a julgamento, trazendo como
consequência a perpetuação dessa cultura em solo brasileiro. Aqueles que findam
vidas se sentem seguros para continuar cometendo tais atos, já que acreditam
que serão respaldados pela falta de aplicação das normas legais. Tal fato é de
extrema relevância para a observação e quebra desses números tão baixos, já
que a Corte Interamericana de direitos humanos é um tribunal internacional que
1390

deveria ter suas sentenças de fato cumpridas. Por fim, apesar dos números
irrisórios relacionados aos casos de mortes e massacres no campo que são
levados a julgamento, os membros do MST continuam buscando seus direitos por
uma reforma agrária digna e justa, com a esperança de que o estatuto da terra
seja de fato cumprido para aqueles que da terra vivem e tiram seu sustento e de
suas famílias e lhes seja concedido o direito à propriedade, mesmo que apenas
para a subsistência do grupo.

REFERÊNCIAS

BBC NEWS BRASIL. Brasil Tem Recorde de Assassinatos No Campo Em


2017, Mas Só Dois Casos São Esclarecidos. [S. l.], 24 jul. 2018. Disponível
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DF: Presidência da República, [1989]. Disponível em:
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23 de setembro de 2009. Disponível em:
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CPT. Conflitos no Campo Brasil 2017. Goiânia, Go: diversos autores, [2018].
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Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/41-
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MST. 2017 Registra Maior Número de Assassinatos No Campo Dos Últimos


14 Anos. [S. l.], 6 jun. 2018. Disponível em:
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ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. RJ: Unic [2009].


Disponível em:
https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 11
ago. 2019.
1391

Grupo de Trabalho:

DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO E


SUSTENTABILIDADE IV
Trabalhos publicados:

ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E A NECESSIDADE DE UMA ÉTICA PARA O


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

AGROTÓXICOS NO BRASIL: UM PARÂMETRO SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL


E TENDÊNCIAS LEGISLATIVAS

AMAZÔNIA E MEIO AMBIENTE: A CONTAMINAÇÃO POR MERCÚRIO EM


VIRTUDE DA MINERAÇÃO ARTESANAL DE OURO

ANÁLISE DOS ASPECTOS RELEVANTES DA IMPLEMENTAÇÃO DO


FUNRURAL PELA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
DO AGRONEGÓCIO

BRASIL E O DIREITO FUNDAMENTAL ÀS CIDADES SUSTENTÁVEIS

DIREITO AMBIENTAL E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS FRENTE AO ENTRAVE


ECONÔMICO

DIREITOS DOS ANIMAIS E SUA TUTELA NO BRASIL: AVANÇOS E


RETROCESSOS

ENSAIO SOBRE AS LACUNAS DA PROTEÇÃO JURÍDICA DOS BIOMAS


BRASILEIROS NO CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

MEIO AMBIENTE E MERCOSUL: UMA LEGISLAÇÃO HARMÔNICA COMO


MEIO DE PROTEÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

O DIREITO FUNDAMENTAL À CIDADE SUSTENTÁVEL

O FOMENTO À PRODUÇÃO DE ALIMENTOS ORGÂNICOS EM


ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA COMO ALTERNATIVA DE
POLÍTICA AGRÍCOLA SUSTENTÁVEL

UMA ANÁLISE SOBRE O PROJETO DE LEI DA CÂMARA N° 27, DE 2018


1392

ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E A NECESSIDADE DE UMA ÉTICA PARA O


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
TAX ADMINISTRATION AND THE NEED OF AN ETHICS FOR THE
SUSTAINABLE DEVELOPMENT

Abner da Silva Jaques


Orientador(a): Vladmir Oliveira da Silveira

Resumo: A pesquisa tem por objetivo um estudo sobre as balizas e limites éticos
e fiscais da atuação da administração tributária. Nesse sentido, se justifica em
razão da necessidade de se adequar o exercício do poder de tributar e a forma
reguladora da ordem econômica para a tutela dos direitos humanos dos cidadãos
contribuintes. A problemática consiste em verificar se a quarta dimensão dos
direitos humanos engloba o dever do Estado em pautar o exercício de sua
competência tributária também nos limites éticos, visando a concretização de
uma sustentabilidade social. O método utilizado será o hipotético-dedutivo, a
partir de pesquisas documentais e bibliográficas.
Palavras-chave: Direito internacional dos Direitos Humanos. Estado ético fiscal.
Direito Sustentável.

Abstract: This paper intends to study the tax administration’s actions and its
ethical and fiscal limits. Therefore, the present research is justified due to the
need to adapt the power to tax and the economic order’s regulatory form in order
to protect citizens taxpayers’ human rights. The problem, in this case, is to
ascertain whether human rights’ fourth dimension includes, or not, the State’s
duty to exercise its tax competence having an ethical limit, with the goal to
achieve the social sustainability. For this purpose, we used the hypothetical-
deductive method, with a documentary and bibliographic research.
KEYWORDS: International human rights law. Ethical tax state. Sustainable Law.

INTRODUÇÃO

Na evolução e construção dinâmica dos direitos humanos reconhece-se


a dignidade humana enquanto valor supremo, que é inestimável e distingue cada
ser humano. Nesse sentido, para a preservação dos direitos relativos a cada
dimensão (liberdades, igualdade e solidariedade) não há mais espaço para uma
concepção individualista de agentes, mas se exige uma atuação ética e conjunta
de todos (públicos e privados) no sentido de colocar o ser humano no epicentro
de todo um sistema.
Essa premissa também deve ser aplicada ao Estado em seu exercício do
poder de tributar, visando equalizar uma relação direta com os cidadãos que seja
capaz de preservar direitos de liberdade, igualdade e de solidariedade. Desse
modo, a presente pesquisa tem por objetivo um estudo sobre a ética na atuação
da Administração Tributária para incentivo ao desenvolvimento sustentável.
A problemática deste estudo consiste em aferir se a quarta dimensão dos
direitos humanos engloba o dever do Estado na adequação do exercício de sua
competência tributária também nos limites éticos, visando a concretização de
uma sustentabilidade social. A justificativa fica evidente tendo em vista a
necessidade de se compatibilizar o exercício do poder de tributar e a atuação do
1393

Estado na ordem econômica para o efetivo desenvolvimento com a tutela da


dignidade humana e em prol da sustentabilidade.
O método utilizado será o hipotético-dedutivo, em que a hipótese principal
é a de que a quarta dimensão dos direitos humanos também exige uma atuação
ética e responsável do Estado no cumprimento de suas atividades. Valer-se-á,
para tanto, de pesquisas documentais e bibliográficas, a fim de construir as
balizas e limites éticos e fiscais da administração tributária.

DESENVOLVIMENTO

A evolução e construção dos direitos humanos se trata de um processo


lento, imprevisível e de resistência, que observa valores necessários de tutela
em determinado momento histórico da sociedade, sobretudo quando insurgente
para preservação ou reafirmação da dignidade e da pessoa humana
(COMPARATO, 2010). Em razão da dificuldade em precisar o momento correto
de surgimento de uma concepção acerca da existência de um determinado
direito até então abstrato na história, os conceitos de dignidade e direitos
humanos foram moldados em conformidade com a cultura e a expressão das
sociedades à época (TRINDADE, 2003).
De todo modo adota-se o conceito de dignidade humana apresentada por
Pérez Luño (2010) e Ingo Sarlet (2001), que a entendem na condição de
qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, capaz de protegê-lo contra
tratamentos degradantes – seja de ordem física ou moral – e que garante
condições mínimas de sobrevivência. Nesse sentido, a dignidade se configura
com base em um entendimento lógico e individual, que reconhece cada ser
humano como um agente que possui valor1, seja ele transcendente ou imanente.
A axiologia advém de uma consideração enquanto um princípio geral e/ou
fundamental no direito internacional – e não de um direito autônomo inscrito –,
que é carreada especialmente por um conteúdo ético relevante, elementar para
o desenvolvimento e construção de seu próprio conteúdo.
Na medida em que o processo de dinamogenesis2 representa – após o
reconhecimento da de valores necessários de proteção – uma ampliação dos
direitos humanos em detrimento de um poder, é necessário salientar que sempre
diante do surgimento de uma esfera da dignidade humana que demande tutela
será possível assim o reconhecimento de uma nova classificação, desde que
estejam presentes os valores de tutela, um conteúdo e uma categoria de direito
preponderante (SILVEIRA, ROCASOLANO, 2010).

1 É partindo dessa compreensão, por exemplo, que Karl Marx formula a ideia de reificação dos
seres humanos e abomina qualquer instrumentalização na condição de engrenagem de um
sistema.
2 2 Compreende-se como processo de dinamogenesis a teoria segundo a qual serve para “[...]

expressar o desenvolvimento e o reconhecimento dos direitos humanos nas estruturas sociais,


por que eles são positivados em textos normativos e porque são criadas instituições para garanti-
los [...]. No processo da dinamogenesis, a comunidade social inicialmente reconhece como
valioso o valor que fundamenta os direitos humanos (dignidade da pessoa humana).
Reconhecido como valioso, este valor impulsiona o reconhecimento jurídico, conferindo
orientação e conteúdos novos (liberdade, igualdade, solidariedade, etc.) que expandirão o
conceito de dignidade da pessoa. Essa dignidade, por sua vez, junto ao conteúdo dos direitos
humanos concretos, é protegida mediante o complexo normativo e institucional representado
pelo direito” (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 199).
1394

No atual contexto da globalização3 – remontando-se ao período final do


século XX em diante –, em que é possível uma integração ligeira de pessoas, do
mercado, da intensificação do consumo e da prestação de serviços, da evolução
das tecnologias, de práticas capitalistas, da alteração e do compartilhamento de
culturas, tem-se uma nova deflagração de poder que, em razão do atual estágio
social, finda por ser desfragmentado e, portanto, de maior dificuldade para
resistência.
Como efeito da globalização, a preocupação com uma comunidade
internacional capitalista e neoliberal, sobretudo na ideia de que a mão invisível
do mercado é apta à correção de distorções – o capitalismo apresentado
enquanto poder incontestável, que submete a ele toda a vida humana –, impõe
a necessidade de ampla observação e de novos debates sociais, uma vez que
o aspecto social e solidário do mercado tem sido deixado à margem,
ocasionando em, por exemplo, marginalização da pobreza, degradação do meio
ambiente, exclusão social, entre outros, que representa a instrumentalização do
sistema econômico neoliberal para negar direitos humanos (BOBBIO, 2004).
Não há dúvidas que as preocupações hodiernas advindas das práticas de
mercado apresentam a necessidade do reconhecimento de novos horizontes
axiológicos capazes de tutelar valores ambientais, políticos, jurídicos, culturais,
sociais, entre outros. Isto porque, a globalização tem se apresentado como um
fenômeno que provoca desigualdade social, desemprego, instrumentalização do
meio ambiente e ofensa ao direito de desenvolvimento, sendo assim uma forma
manifesta de poder capaz de ofender os direitos humanos.
Assim, a quarta dimensão surge da necessidade de tutela de valores em
razão das inovações tecnológicas e dos riscos ao desenvolvimento. Frise-se que
a preponderância de valor em uma nova classificação se consubstancia no
reconhecimento de uma ética e de uma responsabilidade para a coletividade em
detrimento do próprio indivíduo, ou seja, adota como premissa uma análise
indutiva, partindo dos costumes próprios para identificar e valorar o que seja bom
para o grupo social e, doravante, consolidá-lo enquanto norma de
comportamento4 (BRITO, 2013).
No seio da quarta dimensão tem-se a responsabilidade e a ética enquanto
valores preponderantes, cujo conteúdo de direitos se faz presente em favor da
segurança, frente aos riscos da modernidade ao desenvolvimento. Assim, tais

3 Para fins do presente estudo, entende-se por globalização “[...] proceso amplio, contradictorio,
complejo, heterogéneo y profundo de cambio en las relaciones entre sociedades, naciones y
culturas que ha generado una dinámica de interdependencia en las esferas económica, política
y cultural, en las que se desenvuelve el actual proceso de mundialización y que hace posible que
acontecimientos, decisiones y actividades ocurridas en un determinado lugar del planeta
repercutan de forma muy significativa en otros lugares, en otras sociedades y en otras persona”.
(TORRADO, 2000, p. 47).
4 A dificuldade, nesse ponto, consiste em identificar qual o padrão ético a ser evocado. Melhor

explicando: se partiria em razão da solidariedade e do desenvolvimento enquanto valores da


terceira dimensão ou se a ética da coletividade em si mesma seria suficiente para atender as
necessidades de um grupo. Para Silveira e Rocasolano (2010, p. 182), por exemplo, no que diz
respeito às pesquisas científicas, a premissa da ética consubstanciaria na condição de “[...] um
novo valor que concretiza a dignidade humana para além da solidariedade”. Portanto, ter-se-ia
que contemporaneamente seria possível um equilíbrio além da dimensão da solidariedade, mas
com vistas à preservação da primeira e segunda dimensão. Importa dizer, portanto, que a ética
ou a responsabilidade científica enquanto valores preponderantes em uma quarta dimensão se
comunicam diretamente na preservação e observância das primeiras dimensões, mas com uma
perspectiva difusa e intergeracional preocupada com o futuro.
1395

quais os direitos de terceira dimensão, busca-se a tutela difusa, mas agora sob
uma perspectiva de horizontalidade dos direitos humanos fundamentais, capaz
de justificar a ideia de um Estado Necessário ou Ético de Direito.
A adoção de uma perspectiva ética para a proteção dos direitos humanos
na época da globalização influência em reflexões acerca da expressão do direito
econômico e sua relação com o direito ao desenvolvimento.
Em face às demandas evolutivas no campo econômico, sobretudo no que
diz respeito ao protagonismo do sistema capitalista na virada do século XIX –
quando passou a ocorrer o agrupamento de agentes privados e, por
consequência, a concentração do capital em favor de minorias e o aumento de
poder social de grandes empresas (SILVEIRA, 2006) –, viu-se a necessidade de
conjugar novos elementos, sejam eles políticos ou jurídicos, capazes de atribuir
uma relação equilibrada e de perseguir os interesses da coletividade, porquanto
“[...] os instrumentos jurídicos gerados pela crença numa ordem racional eterna,
arraigada na ordem racional humana perene, não se mostravam adequados para
a solução dos problemas decorrentes da materialidade da ordem econômica”
(FONSECA, 2004, p. 8).
Nessa esteira, Silveira (2006) pondera pela condição de um caráter de
interesse público da economia, em que o Estado passa por uma transição que
precisa deixar de atuar diretamente no plano econômico para assumir a função
de regulador jurídico das relações, visando atender uma justiça social, incentivar
o desenvolvimento e compatibilizar o exercício de direitos econômicos, culturais
e sociais com os direitos civis e políticos.
Essa perspectiva consiste na tentativa de delimitar o capitalismo por meio
de uma forma capaz de elevar o mercado “[...] a uma economia humanista de
mercado para satisfação universal do direito objetivo inato, correspondente à
dignidade da pessoa humana em suas dimensões de democracia e paz”
(SAYEG; BALERA, 2011, p. 14).
Denota-se que a preocupação da doutrina humanista consiste em buscar
meios de garantir o desenvolvimento, bem-estar da coletividade e a proteção dos
direitos humanos, independente da dimensão, a partir da regulação do direito
econômico. Nessa perspectiva, o homem é visto como um fim em si mesmo em
razão da qualidade intrínseca e diferencial que o protege, que é a dignidade
humana. Portanto, “[...] funciona assim como uma espécie de direito preservador
ou corretivo do sistema econômico, que não abre mão da ética e dos valores da
sociedade, ao mesmo tempo que trabalha ao lado da economia” (SILVEIRA,
2006, p. 124).
Essa perspectiva pode ser visualizada no direito brasileiro, pois a ordem
econômica tem sua fundação em dois pilares, que são, consoante a disciplina
do artigo 170, da Constituição Federal, a livre iniciativa e a valoração do trabalho
humano (BRASIL, CRFB, 1988); ou seja, há uma perspectiva de capital-trabalho
– que sustenta um modelo econômico capitalista – delimitada pelo
reconhecimento de uma necessidade de existência digna. Desse modo, Silveira
(2006, p. 98) bem destaca que o direito econômico interno “[...] possui uma clara
preocupação com a dignidade humana, que na Constituição apresenta-se como
um princípio estruturante e que germina nessa ordem”, por meio da perseguição
de uma justiça social (SILVEIRA, 2006, p. 98).
A adoção desses pilares dá ensejo ao reconhecimento de aplicação de
um ideal humanista e finalístico que vincula a atuação do Estado e dos demais
agentes privados à preservação de valores sociais. Sobre o assunto, Silveira
1396

(2006, p. 149) pondera que sob o pálio da Constituição econômica se “[...]


pretende, em última instância, a inclusão social, mesmo que para isso tenha que
intervir no âmbito econômico, seja em face do interesse privado ou do Estado-
governo”.
Desse modo, tem-se, na visão de Silveira (2006), a adoção constitucional
não de “[...] tutela da riqueza, mas sim da população, isto é, da existência digna
de todos, conforme os ditames da justiça social”, destacando que o
desenvolvimento econômico deve compreender em seu epicentro, a partir de
uma constituição econômica, alguns direitos, tais como: a) a igualdade de
oportunidades; b) a proteção contra fome; c) a moradia; d) de dispor de recursos
naturais; e) de estabelecer relações comerciais e financeiras convenientes; f) a
desfrutar dos serviços de saúde; entre outros (SILVEIRA, 2006).
Em verdade, a Constituição Federal Brasileira foi construída
sistematicamente para atribuir um diálogo interpretativo de valores que embora
não descritos em conjunto, servem como instrumento para a busca de justiça
social, da proteção da dignidade humana, erradicação da pobreza e redução de
desigualdade, que inclusive são princípios e objetivos da República (BRASIL,
CRFB, 1988).
Na perspectiva humanista, é possível inferir que a sua aplicação não se
remete apenas – no texto constitucional – à ordem econômica, porquanto para
se tratar sobre dignidade humana, justiça social, proteção da propriedade
privada, redução de desigualdades, entre outros princípios descritos no artigo
170, da Constituição Federal, é elementar uma sintetização e adequação dos
demais sistemas e instituições do Estado, que não necessariamente por meio da
ordem econômica.
Isso porque, após o período da segunda guerra mundial, a ciência do
direito passou por um processo de funcionalização e de reconhecimento da
existência de valores universais que deveriam permear seu conteúdo, de modo
que se rompeu com uma teoria eminentemente normativa e adotou-se como
direito a confluência entre fato social, valor e norma, dando azo a um paradigma
pós-positivista.
A partir daí, exigem-se de normas, atos do Poder Público, institutos
jurídicos, entre outros, o cumprimento de uma função social. Essa função, na
ótica de Duguit (2009), remete-se muito em razão do reconhecimento de que o
ser humano possui direito pela sua condição de ser gregário, razão pela qual
tem obrigações a cumprir com a sociedade. Nesse sentido, ele é detentor de
direito porque precisa atender obrigações com o meio social que é inserido
(SANTOS; OLIVEIRA, 2016).
A ideia de função social do direito pressupõe uma solidariedade dos
agentes entre si, ou seja, “[...] todos têm deveres para com todos, mas ninguém
tem direito algum propriamente dito, já que ninguém tem outro direito senão o de
cumprir sempre o seu dever” (SANTOS; OLIVEIRA, 2016, p. 112). Por isso,
direitos como o de propriedade, por exemplo, são justos na medida em que são
limitados por funções sociais impostas que atendam um interesse coletivo, e
cumpram com a ordenança constitucional vigente, que permeia não apenas a
ordem econômica, mas, como já dito, toda a ciência jurídica.
Pautado nessa perspectiva, reconhece-se também que o tributo possui
uma função social relevante, que impõe deveres não apenas à Administração
Tributária, mas também aos contribuintes. Importa observar a existência de uma
via de mão dupla na qual se exige uma atuação coletiva dos agentes para
1397

atendimento dos objetivos do Estado na preservação da dignidade humana, que


nesta circunstância perpassa, por óbvio, as três primeiras dimensões dos direitos
humanos: a liberdade negativa (1ª dimensão), pois delimita o exercício de poder
de tributar do Estado no alcance do patrimônio dos contribuintes (não confisco);
a liberdade positiva (2ª dimensão), pois o Estado tem o dever de garantir os
direitos sociais, mas necessita do auxílio dos contribuintes no recolhimento do
tributo, que é a sua principal fonte de renda e; proteção de patrimônios difusos
(3ª dimensão), como é o caso do meio ambiente, em que necessita de
cooperação no direito doméstico e internacional para sua concretização; e o
direito tributário pode ser utilizado, para tanto, como instrumento indutor de
comportamentos benéficos para a tutela do meio ambiente.
Em razão da transcendência da tributação com as dimensões dos direitos
humanos, é que se recorre ao objeto da quarta dimensão – ética – para se
sobrelevar a importância de uma comunicação mútua e da formação de um
Estado Ético também no exercício da tributação. Isto porque, considerando que
o tributo se trata de prestação pecuniária compulsória cujo objetivo se volta a
garantir um bom funcionamento do Estado visando o bem comum, tem-se o
dever comum da Administração Tributária e dos contribuintes na formulação de
uma justiça social e fiscal.
Essa situação está de acordo com uma ética da responsabilidade
proposta por Hans Jonas, que busca a identificação de um novo imperativo5 que
norteie as ações para que sejam positivamente no sentido de “[...] incluir em suas
escolhas presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu
querer”, haja vista que “[...] somente uma ética fundada na amplitude do ser pode
ter significado” (JONAS, 2006, p. 16-17, 48). Em outras palavras, o significado
da existência humana encontra sentido quando realizados atos cujo teor propicie
justamente a continuidade da existência humana de maneira digna. Assim, a
adoção de uma ordenança ética para a tributação é importante porque possibilita
um agir coletivo com um bem público e com a preservação de direitos humanos,
em especial os sociais.
Nessa linha de pensamentos que se defende a adoção de uma
perspectiva ética e humanista para a instituição de um Estado Fiscal, que seja
capaz de relacionar o contribuinte no centro da concretização de direitos
humanos a partir de sua própria atuação em conjunto com o Estado.
Para o Estado, seu maior desafio circunda o dever de que o recolhimento
por meio da tributação não detenha unicamente o caráter arrecadatório, mas sim
humanista sustentável e concretizador de direitos humanos, aproximando-o dos
seus tutelados. Isto porque, a arrecadação de tributos é a maneira pela qual o
Estado intervém em meio ao campo econômico e em favor da sociedade para
cumprir com seus objetivos, que é a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem
de todos. (BRASIL, CRFB, 1988).

5 Para Hans Jonas a ética tradicional circundava apenas dentro dos limites do ser humano
(individualismo), não afetando a natureza das coisas extra-humanas, de modo que o
entendimento da ética tinha a ver apenas com o presente, exteriorizando-se do individual para o
coletivo, enquanto que correto seria partir de um sentimento coletivo para à coletividade. Sua
preocupação não é meramente destinada a observar o perigo da pura e simples destruição física
da humanidade, mas sim na sua morte essencial, aquela relativa à desconstrução de seu ser
(JONAS, 2006, p. 18).
1398

Entende-se que uma percepção de Estado ético fiscal pode estabelecer


um diálogo direto, a partir da quarta dimensão dos direitos humanos, com as
classificações anteriores. E por ser um dever conjunto de atuação (vertical e
horizontal), vincula também os agentes privados no cumprimento de seus
objetivos e na imputação de um caráter ético e humanista nas atividades
relacionadas à produção de capital e riquezas.

CONCLUSÃO

O processo de resistência a poderes presente na dinamogenesis dos


direitos humanos resultou no reconhecimento de uma classificação que exige –
não só de modo vertical, mas também horizontal – uma atuação ética e
responsável de todos os agentes para a proteção de valores caros à sociedade
atual e também às futuras gerações. Assim, se compreendeu ser um dever
coletivo que vincula o Estado e todos os demais agentes privados, em se adotar
condutas capazes de estabelecer uma relação e um diálogo de proteção com os
direitos de primeira, segunda e terceira dimensão.
Na perspectiva do Estado, verificou-se o dever do Estado em atribuir
funções sociais às suas atividades de regulação e atuação na ordem econômica
e no sistema tributário, visando, sobretudo, a sustentabilidade social. Assim,
vislumbrou-se ser possível que a derivação ética e responsável da quarta
dimensão dos direitos humanos se direcione também às atividades do Estado,
sobretudo para pautar sua atuação com vistas à tutela de direitos de liberdade,
de igualdade e de solidariedade/fraternidade.

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1400

AGROTÓXICOS NO BRASIL: UM PARÂMETRO SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL


E TENDÊNCIAS LEGISLATIVAS
PESTICIDES IN BRASIL: A PARAMETER ON THE CURRENT SITUATION
AND LEGISLATIVE TRENDS

Vivian Frade Guedes


Orientador(a): Pedro Gomes Andrade

Resumo: O presente estudo tem por objetivo ampliar o diálogo sobre o uso de
agrotóxicos no Brasil, em consonância com a dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, analisa-se as consequências das mudanças legislativas
relacionadas aos agrotóxicos ocorridas em 2019, assim como destaca o Projeto
de Lei 6.299 /2002, em pauta no Congresso Nacional, de modo a discutir sobre
as implicações da eventual aprovação desse projeto. Essa analise tem em vista
os direitos a vida digna, à saúde, à informação, à liberdade de escolha e à
segurança alimentar, do mesmo modo que considera o conceito de Sociedade
de Risco criado por Ulrich Beck. É utilizado o raciocínio dedutivo, o tipo
metodológico jurídico-descritivo e a vertente jurídico-sociológica.
Palavras-chave: Agrotóxicos. Dignidade da Pessoa Humana. Sociedade de
Risco.

Abstract: The following study aims to broaden the dialogue on the use of
pesticides in Brazil in line with the dignity of the human. Thus, it is analyzed the
consequences of the legislative changes related to pesticides that occurred in
2019, as well as the Project of Law 6.299/2002, under consideration in the
National Congress, in order to discuss the implications of the eventual approval
of this project. This analysis focuses on the rights to decent life, health,
information, freedom of choice and food safety. just as it considers the concept
of Risk Society created by Ulrich Beck. It uses the deductive reasoning, the legal-
descriptive methodological type and the legal-sociological aspect.
Keywords: Pesticides. Dignity of The Human Person. Risk Society.

1. INTRODUÇÃO

Os agrotóxicos foram introduzidos no Brasil após a Revolução Verde, na


década de 70. De acordo com a pesquisadora Lia Giraldo (2011), que coordena
um grupo responsável por revisar estudos científicos sobre agrotóxicos em
processo de reavaliação, a entrada de agrotóxicos no Brasil foi promovida pelo
plano nacional de defensivos agrícolas, que condicionava o crédito rural ao uso
de agrotóxicos. Esse plano, por sua vez, é justificado pela pressão econômica
internacional e gerou intensas mudanças no espaço agrícola. Como a concessão
de financiamentos estava diretamente relacionada com o uso chamado “pacote
tecnológico”, muitos agricultores foram forçados a adquiri-lo, muitas vezes sem
necessidade.
Isso possibilitou que o Brasil se tornasse o maior consumidor de
agrotóxicos do mundo. Segundo dados da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco), de 2017, o Brasil consome 7 litros de agrotóxicos per capta
por ano. Diante da insegurança gerada pelos agrotóxicos, em 1989 foi aprovada
a lei 7.802, a Lei dos Agrotóxicos, regulamentando vários aspectos. Contudo, na
contramão das medidas tomadas pela Europa, o Brasil possui um crescimento
1401

exponencial autorização de uso desses defensivos.


Dessa forma há vários projetos de lei que podem flexibilizar a legislação
atual, destacando-se o Projeto de Lei 6.299/2002, por compactar vários outros
projetos de lei. O PL, que foi aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos
Deputados em 25 de junho de 2018, altera a lei 7.802/1989, possui 29 projetos
apensados e é chamado de “Lei do Alimento Mais Seguro” por seus defensores
e “Pacote do Veneno” por seus opositores.
Foram contrários à proposta mais de 320 institutos, nos quais se
destacam a Anvisa, o Ibama, o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e a Abrasco, além dos
Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente. O Ministério Público Federal (MPF)
também se pronunciou contra o PL ao encaminhar ao Congresso nota técnica
que aponta uma série de inconstitucionalidades presentes no projeto. Do mesmo
modo, a Organização das Nações Unidas (ONU) emitiu uma carta às autoridades
brasileiras em que demonstra apreensão com o avanço dessa proposta, cujo
relator é o membro da Frente Parlamentar Agropecuária (FMA) e deputado Luiz
Nishimori.
A partir dessas observações, adota-se como marco teórico a obra
“Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade”, do grande sociólogo
alemão Ulrich Beck, produzida em 1986. O conceito de Sociedade de Risco
traduz-se em uma sociedade na qual o extremo desenvolvimento industrial
resultou em riscos que são capazes de destruir toda a humanidade e que
escapam do controle das instituições. Os riscos são perigos criados pelo próprio
homem, não possuem um único agente culpado e afetam todos, independente
da classe social. Além disso, os riscos não são tão facilmente perceptíveis, como
destaca o autor:

Característica marcante dos riscos modernos, a invisibilidade que lhes


é inerente acarreta em uma dificuldade na sua percepção, à exemplo
de riscos como as contaminações nucleares e as substâncias tóxicas
nos alimentos, que escapam da percepção humana imediata (BECK,
2010, p. 32)

Desse modo, a teoria de Beck aborda sobre a dificuldade das pessoas em


identificar os riscos em que estão sujeitas, fazendo com que seja necessário um
esforço maior para percebê-las. De maneira análoga, também se torna difícil
encontrar um culpado pela existência do risco. Assim, o presente trabalho visa
ampliar a discussão sobre esses riscos, de forma a tentar torna-los mais
perceptíveis e menos danosos.

2. METODOLOGIA

A pesquisa proposta pertence à vertente jurídico-sociológica, pois


ultrapassa uma análise normativa ao investigar as consequências e ameaças da
liberação de agrotóxicos à sociedade. Quanto ao tipo metodológico, foi
escolhido, na definição de Witker (1985) e Gustin (2010) o tipo jurídico-descritivo,
uma vez que se trata de uma abordagem preliminar do problema jurídico dos
agrotóxicos. O raciocínio desenvolvido é o dedutivo e a técnica de pesquisa é a
teórica, por envolver a análise de normas e textos doutrinários.
Serão investigados o Projeto de Lei 6.299/02, os documentos emitidos
pelo MPF e pela ONU, dados estatísticos e notícias como dados primários. Serão
1402

dados secundários artigos, livros e pareceres de outras entidades sobre o tema.

3. DESENVOLVIMENTO

Apenas no ano de 2019, foram aprovados 382 agrotóxicos, de acordo com


a revista Exame em matéria publicada em outubro deste ano. O Ministério da
Agricultura (2019) defende a aprovação dessas substâncias com o argumento
de que são substâncias novas, menos tóxicas, mais modernas e mais seguras
ambientalmente. Entretanto, não há dados científicos que embasem essa
alegação. Pelo contrário, muitos dos produtos aprovados são substâncias não
tão recentes, cuja permissão para uso estava pendente nos órgãos de
fiscalização.
Não é controverso que os agrotóxicos possuem malefícios. Exemplos
desses malefícios são os altos índices de intoxicação de trabalhadores rurais, a
poluição do meio ambiente, destacando-se a contaminação de mananciais, a
grande morte de agentes polinizadores, tais como as abelhas, entre outros. Para
além, ressalta-se a questão da segurança alimentar, tendo em vista que não é
possível aferir com exatidão os riscos que a ingestão dessas substâncias
causam à saúde humana. Sobre a segurança alimentar, explica a ABRANDH
(2013):

No final da década de 1980 e início da década de 1990, o conceito de


segurança alimentar passou a incorporar também as noções de acesso
a alimentos seguros (não contaminados biológica ou quimicamente) e
de qualidade (nutricional, biológica, sanitária e tecnológica),
produzidos de forma sustentável, equilibrada e culturalmente aceitável.
(ABRANDH, 2013)

Desse modo, tendo em vista a promoção da Dignidade da Pessoa


Humana (art 1º, III da Constituição Federal de 1988), é dever do cidadão o seu
direito de escolha, de forma que possua acesso as informações adequadas para
que possa exercer esse direito. Por outro lado, deve-se colocar o direito à saúde
e à vida digna em primazia, de forma a não adotar procedimentos que possam
comprometer esses direitos.
Assim, tem-se que o governo brasileiro deve possibilitar ao cidadão a
oportunidade de escolher se deseja ingerir ou não alimentos que foram
cultivados com pesticidas. Porém, a política de incentivos fiscais atribuída aos
agrotóxicos, conforme aponta Pozzetti (2019), fere os direitos fundamentais à
vida, à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, uma vez que a
diferença de preço dos produtos orgânicos torna-se demasiadamente elevada,
retirando o direito de escolha da população mais pobre. Segundo o jornal O
Tempo (2019), apenas em 2018 o Brasil deixou de arrecadar mais de 2 bilhões
de reais com as isenções fiscais aos pesticidas, prejudicando os produtores
urbanos.
De maneira análoga, o PL 6.299, que tem como proposta flexibilizar a
legislação atual, juntamente com as recentes alterações normativas, podem ser
mais um risco aos direitos supracitados, de forma que se selecionou três, entre
diversos pontos polêmicos, para a realização de uma análise sobre os eventuais
riscos, dividindo-os em: riscos e toxidades, mudança na nomenclatura e
estabelecimento de prazo máximo para registro.
1403

3.1. RISCOS E TOXIDADE

Dentre as mudanças recentes pertinentes ao tema, destaca-se a


reclassificação, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da
toxidade dos agrotóxicos, em julho de 2019. A classificação toxicológica passou
de quatro para cinco categorias, além de estabelecer o item “não classificado”,
que de acordo com a Anvisa é para produtos de baixíssimo potencial de dano. A
justificativa dessa mudança, dada pela agência, é a harmonização com as regras
de países da União Europeia. Contudo, essa mudança possibilitou que os
produtos considerados como “extremamente tóxicos” passassem a corresponder
a apenas 2%, em contraposição com os 34% da classificação anterior, conforme
o jornal Brasil de Fato (2019). Além disso, o jornal também cita que, dos 353
princípios ativos comparáveis autorizados no Brasil, 155 são proibidos na
Europa, o que corresponde a 44% do total, o que demonstra uma de
desconsonância do argumento exposto, uma vez que não há uma harmonização
em relação a liberação desses produtos.
Na mesma linha que a alteração recém aprovada, em relação ao potencial
de risco, o PL. 6.299, no art. 4º, §3º, pretende alterar as exigências de proibições
de registro de agrotóxicos previstas no § 6o do art. 3º da Lei nº 7.802,
substituindo-as por “riscos inaceitáveis”. Assim, embora esses riscos sejam
definidos pelo próprio PL como “nível de risco considerado insatisfatório por
permanecer inseguro ao ser humano ou ao meio ambiente, mesmo com a
implementação das medidas de gerenciamento dos riscos”, é possível perceber
uma maior abstratividade nessa conceituação. Afinal, substâncias com
características teratogênicas, cancerígenas ou mutagênicas, por exemplo,
poderiam conter um risco aceitável? A ONU (2018), em parecer sobre o Projeto
de Lei 6.229, posicionou-se contra essa mudança da seguinte forma:

A brecha sobre o que seria cientificamente ‘riscos inaceitáveis’ abre


espaço para a introdução de produtos altamente tóxicos, ameaçando
diretamente os direitos à vida, à saúde e à água e alimentos seguros
dos habitantes brasileiros, assim como seus direitos à integridade física
e à liberdade da experiência científica sem consentimento (ONU, 2019,
tradução nossa)

Adiante, conforme relata o MPF, essa alteração também fere o Princípio


da Vedação do Retrocesso, pois supre a redação que apresenta proteção à
saúde e ao meio ambiente de forma mais efetiva.
Ademais, é possível perceber um certo descaso com a saúde humana no
voto do relator do PL, que utilizou uma citação para comparar a toxidade dos
agrotóxicos com a ingestão excessiva de determinados medicamentos, que
poderiam causar intoxicação. Entretanto, a bula dos medicamentos estabelece
a quantidade adequada a ser utilizada, diferentemente dos alimentos plantados
com o uso de agrotóxicos, afinal, além da frequente aplicação de agrotóxicos
acima da quantidade permitida no Brasil, não há como especificar a quantidade
exata de alimentos que uma pessoa pode consumir para não sofrer com
intoxicação derivada de resíduos de agrotóxicos.
Inclusive, Beck (2010) critica a forma como os riscos são determinados
por uma “média”, tendo em vista que a exposição das pessoas a esses riscos é
diferente, havendo sempre as pessoas que vão ficar acima e as que vão ficar
abaixo da média. Diante disso, também critica o pensamento exclusivamente
1404

científico envolvendo essas análises, que são marcados por um “déficit do


pensamento social”, ausência essa que não é percebida nem pelos sociólogos.

3.2. MUDANÇA DA NOMENCLATURA

Uma das mudanças principais mudanças legislativas que devem ser


analisadas futuramente consiste em substituir a nomenclatura “agrotóxicos” por
“produtos defensivos fitossanitários”. De acordo com o Subprocurador Geral da
República Nívio de Freitas (2018), essa medida visa atribuir um caráter
inofensivo a substâncias que não são. O MPF (2016) também já havia se
manifestado, relatando que “o termo ‘agrotóxicos’ (..) é palavra já amplamente
difundida e conhecida da população, sendo a substituição por termo novo, na
prática, ofensa aos princípios da transparência e da informação” e que “a
população será ludibriada por meio de uma ‘roupagem’ mais suave para o
mesmo produto, que continua apresentando os mesmos riscos e nocividade”.
Assim, a mudança na nomenclatura representa um grave retrocesso,
considerando que a substituição de “defensivo agrícola” para agrotóxicos foi um
dos avanços trazidos pela Lei 7.802/1989. “O termo defensivo agrícola carregava
uma conotação errônea de que as plantas são completamente vulneráveis a
pragas e doenças, escondendo os efeitos negativos à saúde humana e ao meio
ambiente” (CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA, 1997).

3.3. PRAZO MÁXIMO PARA REGISTRO

Outra possível mudança legislativa que merece atenção é a imposição de


um prazo máximo, presente no art. 3o, §9o do projeto em questão, para que os
órgãos responsáveis pelo Meio Ambiente, pela Agricultura e pela Saúde
apresentem manifestação conclusiva dos pleitos de registro e suas alterações.
Caso contrário, será emitido um Registro Temporário (RT) ou uma Autorização
Temporária (AT) pelo órgão registrante até que ocorra a manifestação
conclusiva. Essa medida é justificada pela morosidade, dos órgãos
responsáveis, em emitir pareceres
Novamente, o PL sobrepõe o interesse econômico em detrimento da
saúde e do meio ambiente. Como aponta o MPF (2018), é desnecessário apontar
os riscos da utilização indiscriminada de substâncias tóxicas. A mudança viola
os arts. 170 (incisos V e VI, sobre a defesa do consumidor e a defesa do meio
ambiente, respectivamente), 196 (sobre o papel do Estado em garantir a saúde)
e 225 (direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado) da Constituição
Federal de 1988. Além disso, também contraria diretamente o Decreto
Legislativo no 2 (texto da Convenção sobre a Diversidade Biológica), de 1994,
uma vez que o decreto indica que “a falta de plena certeza científica não deve
ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa
ameaça”. Por fim,

cabe ressaltar que o direito à alimentação tem sido invocado, muitas


vezes, para justificar a utilização de tecnologias e instrumentos nocivos
ao meio ambiente e às relações humanas. Em nome da defesa desse
direito, muitas vezes são, na verdade, defendidos interesses
econômicos, abrindo espaço para grandes devastações ambientais e
injustiças sociais. (BRAUNER; GRAFF, 2015, p. 396).
1405

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As alterações supracitadas não esgotam os diversos pontos em que as


tendências legislativas afetam a Dignidade da Pessoa Humana, em destaque os
direitos à saúde, à informação, à segurança, à livre escolha e à vida digna.
Compreender essas mudanças é fundamental para garantir que esses direitos
não sofram limitações e para que seja possível encontrar uma alternativa para
diminuir os efeitos da sociedade de risco.
Ao flexibilizar as normas para a permissão de substâncias tóxicas, a
saúde e o meio ambiente são diretamente afetados. Contudo, isso também
significa a flexibilização de normas de segurança, trazendo mais perigos para a
sociedade. Além do mais, as projeções legislativas futuras não estabelecem um
maior acesso à informação para os consumidores; pelo contrário, pretende
amenizar o efeito tóxico dos produtos em questão ao propor a mudança de
nomenclatura. Como o direito à informação está diretamente relacionado com o
da livre escolha (sem que haja a informação adequada não é possível exercer
completamente a livre escolha), ambos os direitos são comprometidos.
Apesar da aparente inconstitucionalidade de algumas propostas, é
evidente a inclinação agropecuária presente no Congresso Nacional, o que
facilita a aprovação dessas. Enquanto a Europa endurece sua legislação sobre
os agrotóxicos, o Brasil caminha em direção oposta.
Assim, conclui-se que por se tratar de um assunto que exige certo
conhecimento cientifico, a população tende a se afastar desses temas, confiando
aspectos vitais nas instituições e perdendo a capacidade de enxergar riscos
iminentes. Portanto, torna-se essencial a difusão de conhecimento e o
envolvimento popular na luta contra o retrocesso de direitos. A população, com
a finalidade de garantir seus direitos, não deve adotar justificativas políticas como
verdades absolutas, devendo sempre questionar a veracidade de discursos ditos
científicos.

REFERÊNCIAS

ABRANDH, Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos. O Direito


Humano à Alimentação Adequada e o Sistema de Segurança Alimentar e
Nutricional. Brasília, 2013.

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(Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 3a. ed. Belo Horizonte:
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1407

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. 4a Câmara de Coordenação e Revisão.


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Número de agrotóxicos que Anvisa considera "extremamente tóxicos" cai


de 34% para 2%. Brasil de Fato: São Paulo. 2 de Agosto de 2019. Disponível
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Special Procedures. Geneva: 2018. Disponível em:
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WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis em derecho: pautas


metodológicas y técnicas para el estudiante o investigador del derecho.
Madrid: Civitas, 1985.
1408

AMAZÔNIA E MEIO AMBIENTE: A CONTAMINAÇÃO POR MERCÚRIO EM


VIRTUDE DA MINERAÇÃO ARTESANAL DE OURO
AMAZON AND ENVIROMENT: MERCURY CONTAMINATION AGAINST
GOLDEN ARTISAN MINING

Débora Lira de Lacerda


Lucimar Prata dos Santos

Resumo: O artigo 225, caput, da Constituição federal de 1988, prevê o direito a


um meio ambiente ecologicamente equilibrado ocorre que este direito está sendo
violado pela grave contaminação das águas e do ar atmosférico por mercúrio na
Amazônia. Dentre os principais focos de contaminação está a atividade
mineradora irregular. No território brasileiro vislumbram-se normas que tratam
deste fenômeno, soma-se a isso a promulgação da Convenção de Minamata no
ano de 2018. Estudos demonstram que a contaminação por mercúrio pode
ocorrer de duas formas, através do contato direto com solos e rios afetados ou
de forma indireta através do consumo de peixes, atingindo não só a população
das cidades, mas principalmente os povos indígenas e comunidades
tradicionais.
Palavras-chaves: Meio Ambiente. Mercúrio. Comunidades Tradicionais.

Abstract: Article 225, caput, of the Federal Constitution of 1988, provides for the
right to an ecologically balanced environment it occurs that this right is being
violated by serious mercury contamination of water and atmospheric air in the
Amazon. Among the main focus of contamination is irregular mining activity. In
Brazil, there are rules that deal with this phenomenon and the promulgation of
Minamata Convention in 2018. Studies show that mercury contamination can
occur in two ways, through direct contact with affected soils and rivers or indirectly
through the consumption of fishes, affecting not only the population of cities, but
especially indigenous people and traditional communities.
Key-words: Environment. Mercury. Traditional Communities.

INTRODUÇÃO

O mercúrio é um dos metais mais antigos utilizados pelo ser humano, por
sua versatilidade é usado em diversas áreas, na indústria, mineração, setor
odontológico e na agricultura (CRESPO-LÓPES, 2009, p.3). Contudo do
desastre ocorrido em 1950, pela contaminação da baía de Minamata surgiu na
comunidade internacional uma consciência dos riscos trazidos pelo mercúrio a
saúde humana e ao meio ambiente.
A mineração seja em larga ou pequena escala ainda permanece como um
fator econômico na Amazônia, movimentando cerca de 3% do PIB da região
(BARTOLI, 2010, p.138). Ocorre que a atividade mineradora gera graves
impactos socioambientais, dentre eles assoreamento dos rios e a contaminação
pelo uso do mercúrio (PINHEIRO et al, 2007, p.53).
No contexto amazônico, os principais afetados por este tipo de
contaminação são os povos indígenas e comunidades tradicionais que por seu
vinculo com o meio ambiente, estão em contato direto com a natureza, ademais
o consumo de peixes configura a principal forma de alimentação destes povos
1409

(PINHEIRO et al, 2007, p.54), o que contribui para um aumento nos níveis de
bioacumulação e biomagnificação.
O Brasil é signatário da Convenção de Minamata, tendo a ratificado em
08 de agosto de 2017, ademais possui em seu ordenamento uma robusta
legislação acerca do tema, resta analisar a eficácia da aplicação da legislação
no país, somada a proteção dada ao meio ambiente pela Constituição Federal
de 1988. Procura-se, desta forma, investigar além dos efeitos da contaminação
na população em geral, os principais obstáculos encontrados para o combate
deste problema ambiental. A metodologia utilizada foi qualitativa e quantitativa,
com o uso de relatórios de organizações da sociedade civil e o estudo
bibliográfico.

1. A CONTAMINAÇÃO POR MERCÚRIO NAS COMUNIDADES


TRADICIONAIS

A exposição do meio ambiente e do ser humano ao mercúrio (Hg) ainda


que natural pelas relações biológicas, somente começou a ser tratada e
estudada de maneira mais aprofundada pela comunidade internacional, a partir
do final dos anos 50, quando se registrou a contaminação generalizada da baía
de Minamata, cidade situada no arquipélago sul do Japão e que contaminou a
fauna marinha, por meio da cadeia trófica alcançando o ser humano, resultando
em sequelas no corpo e no Sistema Nervoso Central (SILVA, 2017, p.51). Ainda
que este tenha sido o estopim para a conscientização sobre o uso desordenado
do metal, muitas regiões do globo produziam e o utilizavam diariamente no
mesmo período e entraram na lista de alerta, inclusive a Região Amazônica.
O mercúrio é considerado um dos elementos químicos mais utilizados
pelo ser humano. Quando está em seu estado elementar, é um líquido prateado,
sendo encontrado na natureza em duas formas (CRESPO-LÓPEZ, 2009, p.3).

However, mercury may also be present in two oxidized forms


[mercurous ion (Hg2+2) and mercuric ion (Hg+2)] and as different
organometallic species (alkyl mercury, alkoxy mercury and
phenylmercury), being the short chain alkyl mercury species, as
methylmercury (CH3Hg) and dimethylmercury ((CH3)2Hg), the most
dangerous compounds in terms of their toxicological effects.

Estudos demonstram que a região amazônica foi diretamente


contaminada por mercúrio (Hg) através da exploração desordenada cominada
com a mineração massiva, principalmente do ouro, durante o período dos anos
80 e 90, resultando neste período em 160 toneladas anuais de mercúrio
depositadas nos rios da região (Lacerda LD, 1997, p.196).
Basicamente, a contaminação através da mineração ocorre pelo processo
de refinamento do ouro através da amalgamação, posteriormente parte do metal
é transportada pela natureza, sendo carregado pelo ar, que em contato com
demais gases é transformado em vapor e disseminado. Com a oxidação do
mercúrio, as partículas se misturam com o solo e a água dos rios, e por possuir
alto teor de absorção e volatilidade, afeta a fauna aquática, principalmente os
peixes piscívoros (DOREA JG, 2003, p.232).

Nos peixes, a intoxicação por metais provoca uma série de distúrbios,


variando entre diminuição das defesas imunológicas, baixa fertilidade
e redução da taxa de crescimento, até patologias que podem levar
1410

estes organismos a morte. Especificamente o Hg, em dose elevada


causa mutações genéticas, sangramento pelo corpo, distúrbios
neurológicos e imunológicos, bem como alterações bioquímicas (LIMA,
2013).

Este processo cíclico do mercúrio afeta diretamente o equilíbrio biológico,


trazendo como consequência uma série de alterações do ambiente aquático e
da vida-útil do ser humano, inclusive na alimentação. A dieta amazônica é
constituída majoritariamente pelo consumo de peixes, o que resulta em registros
alarmantes quanto à presença do mercúrio dentro do organismo humano,
demonstrativos feitos por análises clínicas em comunidades da região
amazônica registraram quantidades acima do estabelecido (10 μg/g) pela
Organização Mundial da Saúde (CRESPO-LÓPEZ et al, 2009, p.3).
Os métodos utilizados no monitoramento das concentrações de mercúrio
no organismo humano vêm sendo realizadas por diversas instituições nacionais
e internacionais a fim de determinar o grau de contaminação e prever a longo
prazo os danos para o ser humano. Dentre estas pesquisas, foram a análise de
quatro comunidades da Amazônia, dentro do território do Pará, nas comunidades
São Luiz do Tapajós e Barreiras, no Rio Tapajós e, as comunidades Pindobal
Grande e Panacauera, na extensão do Rio Tocantins, com resultados que
demonstravam consideráveis concentrações de mercúrio no organismo de
crianças e adultos (PINHEIRO, M.C.N. et al., 2006, p.413).

In adults, no significant difference (P >0.05) in mercury content


was found when different age ranges were compared for the
same population, i.e., 15-24, 25-34, 25-44, 45-54, and >54 years.
Also, there was no difference between adults and children in
mercury exposure for the Pindobal Grande population. The
highest mercury levels were detected in the exposed populations
of São Luiz do Tapajós and Barreiras, greatly exceeding the limit
of 10 μg/g. In non-exposed communities, the Panacauera
population showed higher levels of mercury but still under 10
μg/g. A similar value was previously found in the riverside
community of Tabatinga, Pará State.

Em outra análise, determinou-se que os principais responsáveis pela


elevação das concentrações do mercúrio decorrem das ações da mineração do
ouro, resultando em um efeito direto no equilíbrio biológico da região.
(RODRIGUES-FILHO E MADDOCK, 1997, p.6; TELMER et al., 2006)

Results of mercury in surface waters from the Reserva Garimpeira do


Tapajós, the legal gold mining district of the basin. Dissolved mercury
concentrations were elevated in waters affected by mining operations
(up to 28 ng/L) when compared to concentrations in pristine rivers (7
ng/L). Median concentrations of mercury in suspended load from both
impacted and pristine water were 134 ng/g, and 80% of samples were
below 300 ng/g, in the range of naturally occurring superficial materials
in the tropics. Particulate mercury fluxes averaged 600 and 200 times
those of dissolved mercury in impacted and pristine waters,
respectively, and thus, particulate bound mercury represents the
pathway of riverborne mercury.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, os transtornos e efeitos


diretos ao homem são graduais e, ainda que lentos geram ataques ao Sistema
1411

Nervoso Central causando uma série de manifestações clínicas agudas e


crônicas que afetam principalmente fetos, crianças e mulheres, podendo gerar
sintomas como: ataxia, cegueira, afonia, parestesia, incapacidade de
concentração quando o contato é direito ao estado elementar do mercúrio, e,
quando o contato é por exposição ambiental, o período latente é de
aproximadamente 10 anos e, podendo ter efeitos feto-tóxico, com alterações
irreversíveis para o feto, sem o aparecimento de sintomas na mãe. Os sintomas
observados em neonatais e crianças, devido à exposição pré-natal, são a
paralisia cerebral, distúrbios mentais, retardamento do desenvolvimento de
várias funções psicomotoras, convulsões, cegueira e má-formação dos ouvidos
(MORGANO, et AL, 2005, p.251).
O monitoramento contínuo do teor do mercúrio nos peixes da região
poderia evitar a intoxicação humana (YALLOUZ, A, 2002, p.191). Devendo este
monitoramento ser planejado para ser simples e possa inclusive ser utilizado em
locais com menores ou nenhuma infra-estrutura e, possa ser manuseado e
operado por não especialistas após simples treinamentos, alcançando assim as
mais diversas comunidades e populações ribeirinhas (YALLOUZ, A., 2000,
p.464).
De forma conciliada é necessário rememorar o princípio da precaução
empregado dentro do direito ambiental, prevenindo possíveis condutas que
possam causar danos coletivos vinculados a situações catastróficas que podem
afetar os seres vivos (HAMMERSCHMIDT, 2002, p.99), afastando da região a
possibilidade de ocorrências similares a Minamata. A manutenção da vida
humana e da Amazônia deve prevalecer ao crescimento sistemático e ao
‘desenvolvimento’ descontrolado.

2. ARCABOUÇO LEGAL

O principal instrumento a ser citado no combate e prevenção do mercúrio


no Brasil é a Convenção de Minamata, promulgada em 14 de agosto de 2018,
pelo Decreto-Lei nº 9.470, que dispõe acerca das emissões e liberações do
mercúrio e seus compostos, tendo em vista a proteção da saúde humana e o
meio ambiente, apesar de ser um instrumento recente na legislação interna, o
Brasil conta com outras normas jurídicas importantes para a redução e combate
deste componente.
A Constituição Federal brasileira dispõe em seu artigo 225, caput, que
todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim além
de um direito, cria no parágrafo 1º, inciso V, um dever de defesa e proteção pelo
poder publico e pela coletividade (SILVA, 2017, p.864).

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º(...)
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade
de vida e o meio ambiente; (BRASIL, 1988)

A partir da interpretação do inciso V, é possível perceber que o poder


constituinte atribuiu uma responsabilidade ao poder publico, a de assegurar o
1412

controle da comercialização e produção de substâncias que ocasionem um risco


a saúde e ao meio ambiente da população em geral.
No ordenamento jurídico brasileiro, o órgão responsável por autorizar a
importação e o uso do mercúrio, gerenciar a comercialização e produção é o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis –
IBAMA. Através da Instrução Normativa nº 31/2009, estabeleceu o Cadastro
Técnico Federal, um registro obrigatório de empresas e pessoas físicas que
desenvolvam atividades sujeitas ao controle ambiental, neste sentido vinculando
também a atividade de mineração artesanal.
Mais especificamente, o Decreto nº 97.507/1989, permite o uso do
mercúrio na atividade garimpeira quando licenciada por órgão competente,
ademais no Amazonas vigoram as Resoluções nº 11/2012 e nº14/2012 do
Conselho Estadual do Meio Ambiente do Estado do Amazonas - CEMAAM que,
por sua vez, disciplinam o licenciamento ambiental de lavra garimpeira no Estado
assim como libera o uso do mercúrio na extração do ouro, desde que
comprovada a aquisição, é o que dispõe o art. 10 da Resolução nº 11/2012.
Quanto aos métodos empregados e os limites aceitáveis, a Portaria nº
435/1989 do IBAMA implanta o registro de equipamentos destinados ao controle
do mercúrio metálico em atividades de garimpagem de ouro em todo território
nacional, e a Resolução nº396/2008 do CONAMA regula os limites aceitáveis de
mercúrio em águas subterrâneas. Outro documento importante é a Portaria nº
685/1998 do Ministério da Saúde que prevê os limites máximos de
contaminantes inorgânicos, dentre estes o mercúrio, limitando a 0,5 mg/kg em
peixes não predadores e 1,0 mg/kg em peixes predadores.
Assim, é possível perceber que no Brasil existe vasta legislação dispondo
sobre a regulamentação do uso de mercúrio e sua comercialização ou produção,
através de alguns órgãos públicos que tentam reduzir a sua liberação no meio
ambiente. Contudo se verá no tópico seguinte as principais falhas na aplicação
destes dispositivos que ocasionam um aumento do nível de contaminação do ar
atmosférico, rios e solos do território brasileiro.

3. OS OBSTÁCULOS NO ENFRETAMENTO DESTE PROBLEMA


AMBIENTAL

O primeiro obstáculo encontrado se refere ao aumento das áreas de


mineração ilegal especificamente na Amazônia. Isto deriva da combinação de
diversos fatores – político, histórico e socioeconômico. Como discutido
anteriormente, a atividade mineradora foi um importante fator de crescimento
econômico para a região, e por consequência representa ainda hoje um meio de
subsistência das comunidades tradicionais e ribeirinhas.
Ocorre que conforme demonstrado pelo Relatório La realidad de La
Minería Ilegal em países amazônicos, grande parte da mineração ilegal está
relacionada com a dificuldade de acesso as estruturas orientadoras e a falta de
informação aos processos de legalização. Ademais, outra parte da mineração
ilegal vincula-se a atividades do crime organizado que se aproveita das lacunas
na lei para sua operação.
No processo criminal de nº 0000244-28.2019.4.01.3902, da 2a Vara de
Justiça de Santarém(PA), por exemplo, o MPF denunciou a empresa PCO-
OUROMINA-SANTARÉM por vincular ouro adquirido de forma clandestina ao
1413

longo das bacias do Tapajós, Paru e Jaru a Permissões de Lavras Garimpeiras


de áreas que estavam intocáveis.
Ainda segundo o relatório, os estados do Pará, Mato Grosso, Rondônia e
Roraima concentram as principais áreas de mineração ilegal. Outro
levantamento realizado pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental
Georenferenciada - RAISG, demonstra a existência de 201 áreas de mineração
ilegal na Amazônia brasileira.
Este fato é um problema para o Brasil, porque representa um mercado
complexo que atua as margens da lei. De forma que não só a mineração
artesanal é suscetível de ilegalidades, mas também a mineração de larga escala.
De acordo com a RAISG, as informações acerca da mineração ilegal ainda não
representam a situação real na Amazônia, a área extensa de floresta densa
facilita com que os garimpeiros ilegais mudem constantemente de localização
quando descobertos pelo poder publico.
Outro obstáculo é a falta de fiscalização bem como ausência de um
sistema de controle para localização de garimpos ilegais pelo poder público,
tendo em vista que até então as informações encontradas foram com base em
relatórios da sociedade civil. Diante disso é possível concluir que apesar de o
Brasil possuir uma ampla gama de regulamentações em diversas áreas do
ordenamento, a falta de uma fiscalização efetiva, a falha na publicização das
informações, e o distanciamento entre o poder público e a sociedade civil
dificultam o combate e prevenção deste problema ambiental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contaminação por mercúrio na Amazônia representa um risco à saúde


das populações tradicionais e ribeirinhas que por seu particular modo de vida
torna-se mais vulnerável à contaminação, tendo em vista seus efeitos
degenerativos no sistema nervoso central. Apesar de recente, a Convenção de
Minamata é um instrumento de adequação da normativa internacional ao
ordenamento jurídico brasileiro.
Ainda que apresente um robusto arcabouço legislativo referente ao tema,
o Brasil apresenta falhas que precisam ser combatidas tanto pelo poder público
quanto pela coletividade, em virtude de ser o meio ambiente um bem de uso
comum do povo. No sentido de adequar a legislação interna a convenção,
aumentar a fiscalização e o monitoramento pelas agencias de controle no intuito
de proteger a população em geral dos deletérios efeitos da contaminação,
aplicando-se assim o principio da precaução com um olhar para as gerações
futuras.
Diante deste contexto, visualizam-se dois pólos aparentemente
irreconciliáveis o extrativismo mineral e a proteção ao meio ambiente. Por ser
uma atividade que movimenta a economia local, a primeiro momento torna-se
impossível a proibição da mineração na Amazônia. O que acaba por deixar
apenas algumas alternativas, a de desenvolver ações que tornem este tipo de
atividade menos agressiva ao meio ambiente, a partir de uma perspectiva de
desenvolvimento sustentável.

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1414

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1416

ANÁLISE DOS ASPECTOS RELEVANTES DA IMPLEMENTAÇÃO DO


FUNRURAL PELA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
DO AGRONEGÓCIO
ANALYSIS OF ENVIRONMENTAL MANAGEMENT IN THE FACE OF
BUSINESS ECONOMIC ACTIVITY - A LEGAL AND ENVIRONMENTAL
VISION

Diego Monteiro de Arruda Fortes


Isadora Reginato Furlan

Resumo: O trabalho visa analisar e discutir a importância da gestão ambiental


na atividade econômica empresarial sob a ótica jurídica, bem como abordar a
temática do meio ambiente quando utilizado como estratégia de competitividade
entre empresas, mediante a apresentação de estudos sobre características,
consequências e responsabilidades. Para este fim, é relevante destacar que a
gestão ambiental tornou-se uma causa preocupante nas últimas décadas, com
o crescimento acelerado industrial e das populações urbanas, já que os impactos
negativos na natureza se tornam cada vez maiores. O artigo demonstra também
que as empresas devem procurar se enquadrar em normas para obter maior
visibilidade junto aos seus consumidores e se destacar entre outras empresas
que não se enquadram nestas mesmas normas, estabelecendo assim uma
política de compliance. Tentaremos responder a seguinte problemática: A
Gestão Ambiental é lucrativa para a atividade econômica empresarial? Para
responder de forma cientificamente válida, foi adotado o método de pesquisa
hipotético-dedutivo.
Palavras-chave: Gestão Ambiental. Atividade econômica empresarial.
Responsabilidade ambiental.

Abstract: This paper aims to analyze and discuss the importance of


environmental management in business economic activity from the legal
perspective, as well as addressing the environment when used as a strategy of
competitiveness between companies, by presenting studies on characteristics,
consequences and responsibilities. To this end, it is important to highlight that
environmental management has become a cause of concern in recent decades,
with the accelerated growth of industrial and urban populations, as the negative
impacts on nature become ever greater, environmental concern includes a
number of activities that must be managed to formulate management strategies
in companies, to ensure that they are in compliance with environmental laws and
to have the least possible impact on nature. The article also demonstrates that
companies should seek to comply with standards to gain greater visibility with
their consumers and stand out among other companies that do not meet these
standards, thus establishing a compliance policy. The social issue is also
fundamental for organizations, as it concerns its impact on the social system, so
it is fundamental to present theories about the benefits, difficulties and relevance
of adopting an Environmental Management System in the company. Through this
work we will try to answer the following problem: Is Environmental Management
really profitable for business economic activity? To answer in a scientifically valid
way, the hypothetical-deductive research method was adopted.
1417

Keywords: Environmental Management. Business economic activity.


Environmental responsibility.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como tema principal a gestão ambiental em face da


atividade econômica, abordando principalmente as vantagens que as empresas
adquirem na esfera competitiva com relação a outras empresas que não tem a
implantação da gestão ambiental, levando em conta que a maior parte das
empresas instaladas no Brasil e ligadas ao mercado internacional tem como
demanda competitiva algum tipo de gestão ambiental.
A problemática que se apresenta é quais são as principais vantagens na
gestão econômica empresarial.
Se destaca a importância da gestão ambiental através de dois pilares. De
um lado temos a preocupação ambiental como foco empresarial, considerando
que as empresas com esse tipo de preocupação possuem um diferencial
mercadológico, uma vez que a sociedade está cada vez mais evoluída e
assimilando seu papel de consumidor consciente. O segundo pilar gira em torno
da responsabilidade ambiental. Nos dias atuais manter uma política de
compliance já se tornou uma obrigação empresarial, porém, essa temática não
pode ser considerada apenas sob a ótica mercadológica, mas sim
responsabilidade jurídica ambiental como fator de existência e aceitação
mercadológica.

OBJETIVOS E MÉTODO

A pesquisa bem como método de abordagem de pesquisa o hipotético


dedutivo, com a utilização da metodologia baseada na análise de livros, artigos,
leis e documentos oficiais que influenciam diretamente ou indiretamente o tema.
O objetivo geral é analisar as vantagens que empresas que adotam a
gestão ambiental adquirem na esfera competitiva com relação a outras
empresas que não tem a implantação de tal Gestão.
A preservação do meio ambiente tem se tornado cada dia mais um foco
de preocupação da sociedade e demonstra de forma dinâmica suas maiores
expectativas sobre o assunto. Já o cidadão comum espera que o Poder Público
faça legislações que sejam cada vez mais restritivas e severas para disciplinar
as condutas ambientais e a fiscalização nas empresas, dada as recentes
catástrofes ambientais.
O meio ambiente de cada empresa é constituído por diversas formas de
relacionamento, levando em consideração as áreas gerenciais, operacionais,
técnicas, entre outras. Aliado a esses fatores internos, a empresa também possui
uma estreita relação com seus clientes, fornecedores, comunidades e
consumidores, com a adoção desse tipo de gestão, consequentemente vem o
lucro, ou seja, resultado e não objetivo.
O Sistema de Gestão Ambiental (SGA), é um processo de
administração que coloca ênfase na sustentabilidade, e tenta resolver questões
de caráter ambiental ou prevenir possíveis consequências negativas
relacionadas aos processos de produção das empresas.
Nos dias atuais, a preocupação com o meio ambiente tem sido cada vez
maior, principalmente na esfera da atividade econômica, neste sentido o
1418

gerenciamento ambiental não pode ignorar o conceito de ambiente empresarial


em seus objetivos, pois este desenvolvimento possibilita melhorias nos
resultados das relações internas e externas, na produtividade, na qualidade e
nos negócios.
Existem os métodos de: prevenção, remediação e recuperação de danos,
e o dever de diligência dos administradores de sociedades é nada menos que
as suas obrigações, os cuidados que devem ter, pois a responsabilidade do
administrador alcança os aspectos de responsabilidade civil, societária,
tributária, administrativa, trabalhista, criminal e ambiental.
Com o crescimento da competitividade, as empresas no geral,
começaram a se adequar às inúmeras orientações internacionais de um mundo
globalizado, e com a era contemporânea, não basta mais ter qualidade, preço,
certificações, já que os gestores das organizações devem ter um diferencial que
garanta não apenas a sobrevivência das organizações, mas também a
verdadeira harmonia entre o ambiente interno e externo. Por conta disso, a
questão ambiental agora faz parte da nova agenda global, consciente e ética do
ramo econômico empresarial, fazendo alcançar seu principal objetivo que é
promover o equilíbrio entre a proteção ambiental e as necessidades
socioeconômicas.
O mercado se torna cada vez mais exigente, a sociedade tem aprendido
com o tempo, e almeja por relações mais íntegras e responsáveis e o direito
tem uma grande contribuição para a correta implementação de um sistema de
política ambiental, já que serve como fator balizador de observâncias mínimas
necessárias que dariam contorno a um saudável SGA.
LERENA (1996) diz que a análise da forma de integração da gestão
ambiental deve levar em conta que a integração é variável segundo a empresa;
parecem existir tantas configurações estruturais quanto às empresas.
Portanto, cada empresa deve analisar e garantir a escolha da integração
da gestão que melhor se encaixe a sua realidade, de acordo com sua
especialidade, prioridades e situação econômica.
O SGA corresponde a um conjunto de atividades administrativas e
operacionais inter-relacionadas para abordar os problemas ambientais atuais ou
para prevenir o seu surgimento (Barbieri, 2007).
Existem diversas vantagens para a implantação de um SGA, dentre elas
destacam-se: melhorias no desempenho ambiental, redução de custos e
desperdícios, atendimento das expectativas dos clientes, fortalecimento da
reputação corporativa, facilitação na entrada em mercado internacional, melhoria
na economia de recursos, melhoria na imagem corporativa, entre outras.
Quando consideramos a questão ambiental do ponto de vista empresarial,
a primeira dúvida que surge diz respeito ao aspecto econômico. A idéia que
prevalece é de que qualquer providência que venha a ser tomada em relação à
variável ambiental traz consigo o aumento de despesas e o consequente
acréscimo dos custos do processo produtivo.1
Dependendo de como a empresa atua em relação aos problemas
ambientais decorrentes das suas atividades, ela pode desenvolver três
diferentes abordagens, aqui denominadas controle da poluição, prevenção da
poluição e incorporação dessas questões na estratégia empresarial. Essas
abordagens também podem ser vistas como fases de um processo de

1 DONAIRE, Denis – Gestão Ambiental na Empresa – Atlas, 2ª Edição, 2004, cap.4, pg.51.
1419

implementação gradual de práticas de gestão ambiental numa dada empresa


(BARBIERE, 2008).
É necessário considerar, portanto, que a integração da gestão ambiental
nas distintas atividades requer e gera ao mesmo tempo uma enorme quantidade
de informações, das quais os profissionais têm necessidade para executar suas
tarefas.2
A Atuação Responsável ajudou a melhorar o desempenho das indústrias
químicas. Entre 1990 e1996, as emissões de substâncias tóxicas pelas
indústrias do setor nos Estados Unidos caíram 60%, enquanto a produção
crescia 20%.3
Diante deste contexto, é indiscutível que a questão ambiental até hoje
exerce papel importante no setor empresarial, pois isso acaba sendo um
diferencial, já que os empresários que adotam o SGA estão na frente em questão
de competitividade, pois, ainda que se tenha um caminho longo a percorrer, os
primeiros passos vêm sendo ultimados.
A gestão ambiental e a responsabilidade social tornam-se importantes
instrumentos gerenciais para capacitação e criação de condições de
competitividade para as organizações, qualquer que seja seu segmento
econômico. (TACHIZAWA,2005)
O desenvolvimento sustentável não se refere somente ao ambiente, mas
também promove a imagem da empresa como um todo e automaticamente
agrega valor à marca, levando em consideração as parcerias duráveis que tais
empresas fazem o que por fim leva ao crescimento orientado, tal
responsabilidade se tornou um diferencial para as empresas e também uma
necessidade, pois o investimento na gestão também faz com que a empresa
respeite os princípios éticos fundamentais.
O compromisso com o cumprimento e a conformidade é muito importante
para as empresas, pois, em termos de gestão ambiental, a adoção de um SGA
é voluntária, portanto, nenhuma empresa é obrigada a adotar uma política
ambiental ou procedimentos ambientais, salvo em casos de requisitos exigidos
por lei.
Existem também os benefícios estratégicos, que tornam as empresas
mais competitivas, o que faz com que as empresas que adotam o sistema
socioambiental saiam na frente das outras na conquista de novos clientes ou
até mesmo na fidelização de clientes antigos. Atualmente, as empresas
fornecem mais informações detalhadas sobre o seu desempenho ambiental,
suas melhorias e ajudas ao meio ambiente e é isso que representa uma
vantagem no mercado.
A implementação de um sistema de gestão ambiental é um processo
voluntário, e por conta disso, as empresas adeptas a este sistema oferecem mais
informações sobre o seu desempenho ambiental, fazendo com que haja uma
melhora nas relações com seus acionistas, fornecedores e consumidores, e tal
atitude acaba representando uma vantagem de mercado.4
2 CORAZZA, R.I. Gestão ambiental e mudanças da estrutura organizacional. RAE-eletrônica,
2(2): 1-23. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/raeel/v2n2/v2n2a06.pdf Acesso: 07 de
fevereiro de 2018.
3 ALMEIDA, Fernando - O Bom Negócio da Sustentabilidade, pg. 26 - Editora Nova Fronteira,

2002
4 Sistema de Gestão Ambiental – Disponível em: <http://www.teraambiental.com.br/blog-da-tera-

ambiental/sistema-de-gestao-ambiental-sga-o-que-e-e-qual-e-a-sua-importancia> Acessado
em: 20 de fevereiro de 2018.
1420

Com a prática da responsabilidade socioambiental e a sua evidenciação,


as empresas adquirem retorno institucional, gerando benefícios tanto para ela
como para a sociedade, como nem todas as empresas adotam algum sistema
ambiental, considera-se um diferencial, a gestão ambiental que é bem aplicada
permite a redução de custos nas empresas, bem como a diminuição do
desperdício de matéria primas e recursos e reduz também custos relacionados
a danos ao meio ambiente.

CONCLUSÃO

Não se pretende aqui esgotar a discussão do tema, até porque, com as


recentes catástrofes ambientais, ele se tornou o centro de muitas discussões,
seja de ordem política, econômica ou jurídica.
Mas claro está que a implantação de um sistema de gestão ambiental é
parâmetro mínimo que a empresa que olhar para o futuro deve observar. Como
afirmamos anteriormente, a gestão ambiental não é mais sinônimo de custo ou
burocracia, pelo contrário, é uma ferramenta essencial de sobrevivência.
O mercado se torna cada vez mais exigente, a sociedade tem aprendido
com o tempo, e almeja por relações mais íntegras e responsáveis.
O direito tem uma grande contribuição para a correta implementação de
um sistema de política ambiental, já que serve como fator balizador de
observâncias mínimas necessárias que dariam contorno a um saudável SGA.
E temos que acrescentar de forma conclusiva, que o direito tem uma
contribuição que vai além das linhas gerais da legislação pertinente e aplicável,
pois ao adotarmos o sistema pós positivista de interpretação jurídica, trouxemos
os princípios para a base de sustentação do sistema jurídica, princípios tais
constituídos a partir da ética, e que na política de compliance, que certamente
estaria presente em qualquer SGA, teria papel fundamental.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Fernando - O Bom Negócio da Sustentabilidade - Editora Nova


Fronteira, 2002;

BARBIERI, J. C – Gestão Ambiental Empresarial, São Paulo, Saraiva, 2ª


Edição, 2008.

CORAZZA, R.I. Gestão ambiental e mudanças da estrutura organizacional.


RAE-eletrônica, 2(2): 1-23. 2003. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/raeel/v2n2/v2n2a06.pdf Acesso: 07 de fevereiro de
2018.

DONAIRE, Denis – Gestão Ambiental na Empresa – Atlas, 2ª Edição, 2004;


Guia de governança corporativa – Disponível em:
http://www.ibgc.org.br/index.php/publicacoes/guias Acessado em: 26 de
fevereiro de 2018.

Licenciamento Ambiental – Disponível em:


<http://www.licenciamentoambiental.eng.br/beneficios-da-implementacao-de-
sistemas-de-gestao-ambiental/> Acessado em: 23 de fevereiro de 2018.
1421

Sistema de Gestão Ambiental – Disponível em:


<http://www.teraambiental.com.br/blog-da-tera-ambiental/sistema-de-gestao-
ambiental-sga-o-que-e-e-qual-e-a-sua-importancia> Acessado em: 20 de
fevereiro de 2018.

Planalto – Constituição Federal - Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acessado em:
23 de fevereiro de 2018.

PLANALTO – Lei nº 6938/81 – Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm Acessado em: 21de fevereiro
de 2018.

Rosa, Fraceto e Moschini-Carlos – Meio Ambiente e Sustentabilidade –


Capítulo: Gestão Ambiental, pg.381 – Editora Bookman.

SABBAGH, Roberta Buendia – Gestão Ambiental – Governo do Estado de


São Paulo, Secretaria do Meio Ambiente – pg. 24 - São Paulo, 2011
1422

BRASIL E O DIREITO FUNDAMENTAL ÀS CIDADES SUSTENTÁVEIS


BRAZIL AND THE FUNDAMENTAL RIGHT TO SUSTAINABLE CITIES

Rodrigo de Oliveira Ferreira


Ari Rogério Ferra Júnior

Resumo: O processo de urbanização no Brasil e no mundo tem gerado


importantes debates visando a afirmação das cidades sustentáveis. Em razão
da relevância do tema, o presente artigo tem por objeto enfatizar o direito às
cidades sustentáveis como um direito humano de terceira geração. Aponta os
dilemas que distanciam as cidades da sustentabilidade. Apesar da necessária
evolução, o Brasil é um país alinhado com o que preconiza o Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável 11 e conta com um arcabouço jurídico relevante,
tendo como fundamento principal a Constituição Federal e legislações
infraconstitucionais, especialmente, o Plano Diretor, obrigatório para cidades
com mais de vinte mil habitantes, e o Estatuto da Cidade. Por meio de um estudo
detalhado e pragmático, pretende-se enfatizar a cidade sustentável como um
direito fundamental. Para a conclusão dessa pesquisa, será utilizado o método
dedutivo e indutivo, com pesquisas bibliográficas, análise de legislações, sendo
a pesquisa exploratória e descritiva.
Palavras-chave: Cidades Sustentáveis. Urbanização. Direito fundamental.

ABSTRACT: The urbanization process in Brazil and worldwide has generated


important debates aiming at the affirmation of sustainable cities. Due to the
relevance of the theme, this paper aims to emphasize the right to sustainable
cities as a third generation human right. It points out the dilemmas that distance
cities from sustainability. Despite the necessary evolution, Brazil is a country in
line with what the Sustainable Development Goal 11 advocates and has a
relevant legal framework, having as its main foundation the Federal Constitution
and nonconstitutional legislations, especially the Master Plan, mandatory for
cities with more than twenty thousand inhabitants, and the City Statute. Through
a detailed and pragmatic study, we intend to emphasize the sustainable city as a
fundamental right. For the conclusion of this research, the deductive and
inductive method will be used, with bibliographical research, legislative analysis,
and exploratory and descriptive research.
Keywords: Sustainable cities. Urbanization. Fundamental right.

INTRODUÇÃO

O processo de urbanização no Brasil revela profunda alteração no quadro


ambiental e social do País, demonstrando, na maioria das vezes, uma ausência
de planejamento das políticas públicas para um desenvolvimento urbano
sustentável. O impacto ambiental gerado pelo crescimento desordenado das
cidades tornou-se uma grande preocupação entre as comunidades, o Poder
Público e os legisladores.
No entanto, todos têm direito a uma cidade sustentável, com moradia
digna, saneamento ambiental, mobilidade urbana com transporte público de
qualidade, infraestrutura urbana.
Para a efetivação deste direito é necessária uma convergência de
esforços entre a comunidade, entendendo-se esta como indivíduos, pessoas
1423

jurídicas, sociedade civil organizada, e os entes públicos, para uma discussão


sobre quais medidas concretas podem ser utilizadas para a construção de uma
cidade sustentável.
Assim, este trabalho visa demonstrar quais ferramentas podem ser
utilizadas para se enfrentar os diversos dilemas que rodeiam o tema, destacando
a importância do Plano Diretor e do Estatuto da Cidade como meios garantidores
para do direito fundamental às cidades sustentáveis.
Para chegar a um resultado satisfatório, o presente trabalho utilizou o
método dedutivo e indutivo, com pesquisas bibliográficas, análise de legislações,
sendo a pesquisa exploratória e descritiva.

1. A RELAÇÃO ENTRE AS CIDADES SUSTENTÁVEIS E OS DIREITOS


HUMANOS

Se em um primeiro momento buscou-se consagrar a liberdade do


indivíduo, o que vários autores pontuam como os direitos humanos de primeira
geração, passando-se, num segundo momento, a garantir aqueles direitos
sociais, econômicos e culturais, o que exigiu do Estado uma atuação positiva
para resguardar condições mínimas de dignidade na vida humana (direitos
humanos de segunda geração), a sociedade atual, a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial, concebeu aqueles direitos de solidariedade, direitos cujo sujeito
não é mais o indivíduo, nem a coletividade, mas o próprio gênero humano.
Diante disso, pode-se afirmar que a evolução histórica dos direitos
humanos é pautada na dinamogênesis, ou seja, dá-se de acordo com o que a
sociedade entende como justo e valioso naquele determinado momento histórico
que está vivendo.Conforme destacam SILVEIRA e CONTIPELLI (2008, p. 2576)

Dentro deste novo olhar, supera-se a exclusividade da tutela estatal,


isto é, não se permite mais fragmentar o ser humano nesta ou naquela
categoria de pessoas, ou seja, vinculada a este ou àquele Estado, mas
sim como um gênero, que possui anseios e necessidades comuns.
Oportuno assinalar, que é imprescindível neste objetivo a união de
esforços na construção de um mundo melhor, canalizando a
preocupação com a paz, o desenvolvimento, o meio ambiente, entre
outros temas difusos e globais.

Justamente nos direitos humanos de terceira geração se insere o direito


ao desenvolvimento, que consagra princípios e regras jurídicas que possibilitam
ao indivíduo o pleno acesso aos recursos suficientes à sua subsistência, como
educação, moradia, alimentação, saúde, emprego, cultura, entre outros, os quais
lhe proporcionarão condições mínimas para uma existência adequada às
necessidades constantes do mundo globalizado. (SILVEIRA, CONTIPELLI,
2008).
No Brasil, consagrando estes direitos, a Constituição Federal de 1988,
logo no início de seu texto (artigo 1°, III), estabeleceu que a dignidade da pessoa
humana (valor sobre o qual se assentam os direitos humanos fundamentais) se
constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Em seguida
(no art.3°), a Constituição definiu os objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, dentre os quais se inclui: a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e
da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e a
1424

promoção do bem-estar de todos, excluída qualquer forma de discriminação.


Pode-se incluir entre esses direitos o direito às cidades sustentáveis.
Com efeito, ao longo das últimas décadas, erigiu-se uma preocupação
com o meio ambiente mais equilibrado e com o desenvolvimento sustentável, o
que levou, por conseguinte, a uma preocupação com a proteção ambiental. Junto
a essas preocupações, vieram as preocupações com a busca de qualidade de
vida do ser humano, o que está intimamente ligado a vários aspectos que uma
cidade deve proporcionar: mobilidade, preservação de áreas verdes, reciclagem
de lixo, políticas de resíduos sólidos, entre diversas outras.
A Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, em Conferência
realizada pela Organização das Nações Unidas, em 1972, aprovou em seu
documento o Princípio de que “O homem tem o direito fundamental à liberdade,
à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio
ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-
estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as
gerações presentes e futuras”.
No ano de 2015, o Brasil assumiu, perante a ONU, o compromisso de
canalizar seus esforços de políticas públicas para que o país atinja, até 2030, as
metas estabelecidas na Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Em
conjunto com os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o
objetivo do ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis – oferece uma
agenda de desenvolvimento compartilhada globalmente para “tornar as cidades
e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”.
Do mesmo modo, a Nova Agenda Urbana, no âmbito da Conferência
Habitat III, conferiu ao Brasil certo protagonismo nas discussões, principalmente
pela experiência vivida a partir do Estatuto da Cidade, que é referência
internacional de instrumento jurídico.
É de fácil compreensão, portanto, a relação intrínseca entre os Direitos
Humanos e as Cidades Sustentáveis, podendo-se afirmar que o direito às
cidades sustentáveis é um direito humano de terceira geração.

2. O DIREITO ÀS CIDADES SUSTENTÁVEIS

Com a mudança de paradigmas da sociedade, que passou a exigir


demandas voltadas ao meio ambiente equilibrado, buscando qualidade de vida,
a fim de assegurar seus direitos fundamentais, as atenções foram voltadas para
as cidades. Afinal, é nas cidades que as pessoas vivem e convivem, moram, que
produzem; é nas cidades que a vida acontece.
Henri Lefebvre (2008) compreendia que o direito à cidade não se realiza
simplesmente pela construção de moradias e outros bens materiais por parte de
um Estado autoritário planificador, mas sim como um apelo, uma exigência, uma
forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na
socialização, ao habitat e ao habitar. Referido autor defende a ideia de que as
cidades devem ser organizadas pelos próprios indivíduos, como uma verdadeira
obra coletiva, a partir de uma visão de transformação humanizadora, como
espaço de materialização dos princípios de justiça social e ambiental.
De acordo com Piva (2000), a cidade apresenta-se como um bem
ambiental por abranger todos os aspectos do meio ambiente, no qual se inclui o
meio ambiente artificial, comprovando, portanto, a essencialidade dele à vida
1425

humana, entendido como meio social onde as atividades e relações humanas se


desenvolvem, na busca pela sadia qualidade de vida.
Nos termos postos por Cavalazzi (2007, p.69), a cidade sustentável seria
aquela onde se concretiza a compatibilização dos princípios de justiça
distributiva com o equilíbrio das relações de todos os atores sociais; implicando
o “desenvolvimento econômico compatível com a preservação ambiental e a
qualidade de vida dos habitantes; em uma palavra, equidade”.
O crescimento das formas de vida urbana representa fator de grande
protagonismo na dinâmica da relação entre o homem e a natureza. Essa relação
entre sociedade e meio ambiente é materializada através das cidades. Assim,
em razão do mundo urbano que se estabeleceu nas últimas décadas, não há
como dissociar qualidade de vida da noção de meio ambiente artificial e da
consequente importância de sua sustentabilidade.
No entanto, à medida que as cidades foram se desenvolvendo, na maioria
das vezes, de maneira desordenada, cresceram também os problemas que
envolvem o meio ambiente artificial, como a falta de saneamento básico e de
instrumentos adequados de gestão dos resíduos urbanos; o déficit habitacional;
a precariedade da infraestrutura urbana; a crise de mobilidade.
Como se vê, os desafios enfrentados em prol do cumprimento do ODS 11
da Agenda 2030 (Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos,
seguros, resilientes e sustentáveis) são relevantes e de difícil solução.
Nesse aspecto, é preciso uma mudança de mentalidade dos indivíduos e
do Estado, pelas gerações presentes e futuras, com ações compromissadas, sob
a ótica da preservação ambiental, e em busca da dignidade humana para, ao
menos, mitigar a insustentabilidade natural das cidades.

3. O PLANO DIRETOR E O ESTATUTO DA CIDADE COMO FERRAMENTAS


PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL ÀS CIDADES
SUSTENTÁVEIS

Na esteira dos direitos humanos de terceira geração, o legislador passou


a se atentar para as questões ligadas ao desenvolvimento sustentável e, via
reflexa, às cidades sustentáveis. Passou-se, então, a ser pavimentado o
caminho que leva ao cumprimento desses direitos, com a edição de leis e demais
atos normativos visando regulamentar as atividades que podem causar
degradação ambiental, bem como visando a proteção do meio ambiente.
Com efeito, a Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988,
destinou um Capítulo inteiro à política urbana, o que foi considerado um enorme
avanço no texto constitucional, aliado à expressa referência ao “direito
urbanístico” (art.24, I), à imposição da responsabilidade compartilhada entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, para promover programas
de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de
saneamento básico (art.23, IX); além da vinculação do direito de propriedade à
sua função social (art.5º, incisos XXII e XXIII).
Ademais, ao estabelecer o direito fundamental à propriedade e ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, a Carta Magna impôs a compatibilização
entre interesses individuais e coletivos, assegurando, para tanto, por seu artigo
182, o desenvolvimento das funções sociais da cidade como garantia do bem-
estar social como objetivos da política de desenvolvimento urbano.
1426

Além disso, este artigo estabeleceu que todas as cidades com mais de
20.000 habitantes devem ter Plano Diretor. Pode-se afirmar que o Plano Diretor
é instrumento fundamental para o processo de planejamento municipal, devendo
consubstanciar diretrizes e metas para o desenvolvimento econômico e
ordenamento territorial das cidades. Trata-se de um plano que deverá ser
revisado a cada dez anos. A garantia da participação popular durante todo o
processo de gestação da política urbana, desde a concepção até a
implementação do plano diretor e das leis específicas, é uma condição jurídica
de validade dos planos aprovados (GUIMARAENS, 2010).
Tal preceito constitucional faz com que as gestões públicas municipais
tenham em suas diretrizes obrigatórias, o planejamento urbano; o que não
necessitaria ser feito por imposição legal, já que uma cidade sem planejamento
é um amontoado de pessoas e edificações desordenadas, gerando um caos em
todos os setores urbanos.
Por sua vez, coube ao Estatuto da Cidade, que entrou em vigor em 10 de
julho de 2001 (Lei Federal n. 10.257), regulamentando o capítulo constitucional
da Política Urbana, instituir um importante arsenal normativo capaz de municiar
a Reforma Urbana em muitos de seus propósitos, especialmente na
implementação de políticas focadas na redução da desigualdade social e na
construção democrática das cidades.
O parágrafo único do artigo 1º do Estatuto da Cidade dispõe que esse
diploma legal “estabelece normas de ordem pública e interesse social que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e
do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. Já o caput do
artigo 2º propõe como objetivo da Política Urbana “o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e da propriedade urbana”.
Como se pode inferir, o Estatuto estabelece um regramento abrangente
para a cidade, incorporando a questão ambiental. É a própria lei que estabelece
a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e
futuras gerações.
Além disso, estabelece como diretrizes da política urbana a gestão
democrática; a integração de políticas públicas, privadas e sociais, visando o
interesse social; o planejamento do desenvolvimento das cidades de modo a
evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e os efeitos seus efeitos
negativos sobre o meio ambiente; a oferta de equipamentos urbanos e
comunitários, serviços públicos e de transporte de qualidade e a ordenação e
controle do uso do solo, visando principalmente que a propriedade cumpra sua
função social.
Neste ponto, interessa observar que, para que se inicie efetivamente a
caminhada rumo ao desenvolvimento urbano sustentável, é indispensável a
integração das agendas "verde" e "marrom", de forma a estabelecer a adequada
relação entre urbanização, pobreza e degradação ambiental, o que se observa
ter sido considerado no Estatuto da Cidade, pois trouxe elementos essenciais de
articulação, entre as agendas, como a função social da cidade, a função social
da propriedade e o direito à cidade sustentável.
E, assim, positivou-se um novo direito em nosso ordenamento jurídico que
consegue reunir direitos fundamentais (como moradia, trabalho, lazer e outros)
aliados a importantes condições para a garantia do bem-estar dos habitantes
1427

das cidades; tendo como base aquelas normas básicas e fundamentais contidas
na Constituição Federal.
Todos estes instrumentos são extremamente eficientes, auxiliando o
Poder Público Municipal na busca de um planejamento urbano mais sustentável.
Mas não basta estar inserido na lei, é necessário estar implementado e
regulamentado pelos Municípios. Este é o grande desafio, pois isto demanda
vontade política, planejamento orçamentário prévio e preparação da
comunidade.

CONCLUSÃO

A ideia de direito à cidade tem sido construída, no Brasil, ao longo das


últimas décadas, de forma estruturalmente vinculada à noção de acesso ao
espaço urbano, visando à garantia do direito à cidade.
A Constituição Federal, por meio de Capítulo destinado à Política Urbana
avalizou o que já vinha sendo discutido pela sociedade e pelos gestores, tendo
como objetivo precípuo a diminuição dos problemas causados pelo crescimento
desordenado das cidades, bem como evitar que novos surgissem.
Diante de tal quadro e no que diz respeito ao desenvolvimento das
cidades, à necessária proteção do meio ambiente e à garantia de direitos sociais,
impõe-se uma alteração de postura, tanto dos indivíduos, por meio de uma
educação ambiental, quanto da Administração Pública, mediante políticas
públicas efetivas, que garantam o bem-estar de todos.
O Plano Diretor e o Estatuto da Cidade são legislações que não só
fomentam aos Municípios para que estabeleçam políticas públicas destinadas a
busca de uma cidade sustentável, como impõem aos gestores e aos cidadãos a
participação na construção de um ambiente mais sadio e sustentável.
Constatou-se que o direito à cidade sustentável significa a possibilidade
de práticas e vivências que possam modificar ou subverter usos do espaço,
primando pelas questões ambientais e sociais diante do desenvolvimento
urbano, visando à sadia qualidade de vida na cidade.
Dessa forma, conclui-se que a cidade, em sendo bem ambiental e espaço
social de convivência, deve buscar a consecução de um bem comum: a justiça
social, entendida como a inclusão dos indivíduos no espaço urbano,
assegurando a todos o direito à sadia qualidade de vida.

REFERÊNCIAS

CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli. O estatuto epistemológico do Direito


Urbanístico Brasileiro: possibilidades e obstáculos na tutela do direito à cidade.
In: COUTINHO, Ronaldo;

BONIZATO, Luigi. Direito da Cidade: novas concepções sobre as relações


jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

GUIMARAENS, Maria Etelvina B. A participação na revisão dos Planos


Diretores. Coleção Cadernos da Cidade, n. 17. CIDADE – Centro de
Assessoria e Estudos Urbanos. Jan. 2010.
1428

HARVEY, David. A Justiça Social e a Cidade. Prefácio e Trad. de Armando


Corrêa da Silva. São Paulo: Hucitec, 1980.

LEFEBVRE, Henri. Espaço e Política. Trad. de ANDRADE, Margarida Maria e


MARTINS, Sérgio. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2000.

ROLNIK, Raquel. 10 anos do Estatuto da Cidade: das lutas pela reforma


urbana às cidades da Copa do Mundo. In: RIBEIRO, A.-C. T.; VAZ, L. F.;
SILVA, M. L. P. (Org.). Quem planeja o território? Atores, arenas e
estratégias. Rio de Janeiro: Letra Capital; Anpur, 2012.

SILVEIRA, Vladmir Oliveira; CONTIPELLI, Ernani. Direitos Humanos


Econômicos na perspectiva da Solidariedade: desenvolvimento integral. XVI
Encontro Nacional CONPEDI, 2008.
1429

DIREITO AMBIENTAL E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS FRENTE AO


ENTRAVE ECONÔMICO
ENVIRONMENTAL LAW AND CLIMATE CHANGE FACING THE ECONOMIC
BARRIER

Waleska Miguel Batista


Júlio César Silva Santos
Orientador(a): Silvio Luiz de Almeida

Resumo: Neste artigo, pretende-se ilustrar que as ambições para o crescimento


econômico são maiores que os imperativos ambientais, razão pela qual as
políticas nesse sentido restam prejudicadas. A vasta legislação com diretrizes de
mitigação e adaptação às mudanças climáticas. As forças de mercado acabam
influenciando na efetividade das normas jurídicas e consequentemente na
formulação e implementação de políticas públicas. Conclui-se que os gases de
efeito estufa é um dos fatores que corroboram com as drásticas mudanças
climáticas, todavia o seu controle ou formas de minimizar a sua dispersão não é
efetiva, motivo pelo qual existe a necessidade de políticas públicas que garantam
um meio ambiente seguro para o bem da sociedade e até do mercado.
Palavras-chave: Mudanças climáticas. Economia. Direito Ambiental.

Abstract: In this article, we intend to illustrate that the ambitions for economic
growth are greater than the environmental imperatives, which is why policies in
this sense remain undermined. Extensive legislation with climate change
mitigation and adaptation guidelines. Economics forces end up influencing the
effectiveness of legal norms and consequently the formulation and
implementation of public policies. It is concluded that greenhouse gases are one
of the factors that corroborate with drastic climate change, however their control
or ways to minimize their dispersion is not effective, which is why there is a need
for public policies that guarantee an environment. insurance for the good of
society and even the market.
Keywords: Climate change. Economy. Environmental Law.

INTRODUÇÃO

A Declaração de Estocolmo consagrou o direito fundamental ao meio


ambiente no âmbito internacional, consagrando o direito ambiental no Brasil com
a inserção do artigo 225 na Carta Magna que garante um direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado (BRASIL, 1988)1. E impõe a União,
Estados e Municípios a formulação e implementação políticas próprias de
combate às mudanças climáticas observando as convenções e acordos
internacionais internalizados no ordenamento jurídico brasileiro.
A Convenção-Quadro de Mudanças Climáticas e o Protocolo de Quioto
são os principais tratados internacionais sobre mitigação e adaptação às
mudanças do clima, dos quais o Brasil é signatário, de modo que repercute na
formulação e implementação de políticas públicas no âmbito nacional, regional
e local. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas

1Art.
225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
1430

foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto (executivo ou legislativo?) n. 2.652,
de 1º de julho de 1998, e o Protocolo de Quioto foi ratificado pelo Decreto
(executivo ou legislativo) n. 5.445, de 12 de maio de 2005.
O Brasil teve participação de destaque, na COP 15, em 2009,
comprometendo-se voluntariamente em reduzir entre 36,1% e 38,9% a emissão
de GEE, bem como reduzir 80% do desmatamento na Amazônia até o ano de
20202. Para ratificar o compromisso de redução das emissões de GEE foi
instituída a Lei Federal n. 13.798/2009 que dispõe sobre a Política Nacional de
Mudanças Climática, tendo como uma de suas diretrizes o estímulo e apoio aos
governos estaduais e municipais na execução de políticas de mitigação às
mudanças climáticas (PNMC, 2008).
Desta forma, o governo estabeleceu três grandes diretrizes para a
PNMC: redução das emissões de GEE e aumento das remoções por
sumidouros; preservação, conservação e recuperação dos recursos ambientais,
com ênfase em iniciativas de redução do desmatamento e reflorestamento, que
até 2010 se colocava como principal desafio do governo brasileiro para diminuir
as emissões de GEE; e estabelecimento de medidas de adaptação pelas três
esferas da federação (NEVES; CHANG; PIERRI, 2015).
Insta ressaltar que, na COP 21, em 2015 o Brasil se comprometeu em
adotar um novo acordo em reduzir as emissões de gases de efeito estufa em
37% até 2025 e apresentou o indicativo de redução de 43%, até 2030, em
relação aos níveis de 2005, com o objetivo de fortalecer uma resposta global à
ameaça das mudanças climáticas (MMA, 2017). O Brasil reportou tais metas e
ratificou o Acordo de Paris, porém ainda não internalizou o referido acordo ao
ordenamento jurídico brasileiro.

DESENVOLVIMENTO

Diante disto, verifica-se que o Brasil possui um aparato jurídico para


coordenar o governo nacional, regional e local a assumir metas e compromissos
de mitigação e adaptação às mudanças do clima, sem prejuízo as ações
conjuntas de todas as esferas governamentais, bem como que conte com o
apoio do setor privado e da sociedade em geral, para que assim a Política
Nacional de Mudanças Climáticas possa ser efetiva e alcançar as metas
assumidas na COP 21.
Para a elaboração de uma política sólida, segundo Souza (2013) faz-se
necessário estabelecer claramente cinco etapas que devem ser rigidamente
cumpridas, qual sejam: a definição ou reconhecimento do problema; a inclusão
a agenda pública; a definição da política pública; a implementação;
monitoramento e avaliação das políticas em execução; e por fim, reestruturação
e continuidade.
Em relação às políticas públicas em mudanças climáticas, das 27
unidades da Federação (UFs) brasileiras, dezesseis já criaram suas políticas e
quatro possuem projeto sde lei (PLs). Entretanto, somente o estado de São
Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Paraíba possuem metas de redução
ou estabilização de emissões de GEE (INSTITUTO ETHOS/FÓRUM CLIMA,
2017).

2 Disponível em: <http://www.cop15.gov.br/pt-BR/index6ffe.html?page=noticias/cafe-


presisidente-cop15>. Acesso em: 16 de junho de 2017.
1431

A partir dessas constatações temos em mente que as relações sociais


com o meio ambiente provocam tensões, inclusive porque vivemos em uma
sociedade contraditória, mas questionamos se para a teoria econômica do direito
é vantajoso persistir na destruição da ambiente brasileiro.
Em tempos de crise, mitiga-se todos as formas de direitos sociais e
individuais sob a justificativa de que existe a necessidade de corte de orçamento,
redução de gastos entre outros argumentos que tomam a forma jurídica.
Mas o direito não é manifestação de argumentação jurídica, uma vez se
a norma é doadora de sentido, é isso que deve regular a sua forma de
manifestação das relações sociais.
É importante destacar que o direito ao meio ambiente é de caráter
solidário e transgeracional e por isso trata de direito fundamental com
reconhecimento em plano interno e internacional. Entretanto de acordo com
Fernandes (2008, p. 24):

[...] apesar da normatização dos instrumentos de controle ambiental


que visam compatibilizar o desenvolvimento e o ambiente e os
preceitos constitucionais, na prática se vê que o ambiente ainda vem
sendo degradado de forma aleatória e sem a devida preocupação dos
empreendedores e do Poder Público, que buscam os lucros através da
falta de investimentos nos processos adequados de produção e porque
o Poder Público não desenvolve políticas públicas sustentáveis.

Interpretando-se o posicionamento do autor, entende-se que por mais que


o país assuma compromisso com as mudanças climáticas em âmbito regional
ou local, a questão ambiental ainda carece de efetividade e aplicabilidade frente
ao crescimento econômico, já que a promoção do direito ao meio ambiente
equilibrado demanda por ações governamentais que efetivem a promoção do
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, por meio de
políticas públicas.
Ocorre que a possibilidade de elaboração de políticas públicas faz como
que os autores de combate a mudança climática tenham as suas reinvindicações
suprimidas, pois se perpetuará a ideia de que existe uma norma a respeito da
matéria.
Segundo Alves (2015, p. 15), “a norma não é em si ilusória”, pois ela está
em uma dimensão que pode ser utilizada conforme a intenção do grupo
dominante que a manipula, uma vez que depende das forças sociais e dos
agentes operadores do direito, que atuam conforme a sua absolvição da
sociedade, utilizando a norma para o seu propósito.
A busca pelo crescimento econômico por meio da exploração dos
recursos naturais sem respeito aos limites entrópicos se mostra incongruente,
tornando evidente que o atual modo de produção causa sérios impactos ao meio
ambiente, como a emissão de poluentes e o desmatamento, e implicando
diretamente na efetividade de uma política de mitigação e adaptação às
mudanças climáticas.
Nenhum desenvolvimento será possível sem a inserção de mudanças nas
cidades, uma vez que nela existem grandes desigualdades acentuadas pelo
planejamento segregador existente (LEFEBVRE, 2001). As cidades estão
crescendo de modo acelerado, conjuntamente, os seus problemas aparecem
desde as necessidades dos cidadãos até a infraestrutura urbana.
1432

CONCLUSÃO

Os dados coletados pelo setor de energia e processos industriais


revelaram que até 2013 o transporte individual foi responsável por 78% das
emissões de GEE (IEMA, 2015). Ou seja, existe a necessidade ambiental de que
as políticas retornem a época desenvolvimentista, como metrô, trem
metropolitano, trem de carga, dutovias, hidrovias, ramais rodoviários são as
propostas do Governo para a sustentabilidade paulista (SISTEMA AMBIENTAL
PAULISTA, 2017, b).
Percebe-se que as forças econômicas levantam obstáculos para a
materialização de propostas mais sustentáveis para as áreas das cidades, pois
o incentivo de transporte individual sempre foi progressivo. Entretanto, o
transporte público tem pouco incentivo, pois a precariedade das suas condições,
sequer são sanadas ou minimizadas. Outro fator que corrobora com a ausência
aplicabilidade para o combate a mudança climática está ligado ao combustível
utilizado, pois os gastos com manutenção, a confiabilidade do produto e o uso
em larga escala ainda se encontra em discussão junto ao Governo do Estado de
São Paulo (IEMA, 2015).
Apesar da norma de mudança climática estar prevista há oito anos no
ordenamento jurídico do Estado de São Paulo, ela não tem tido real efetividade,
uma vez que as normas a respeito do combate a mudanças climáticas
permanecem restritas a transcrições, ou seja, a formalidade. As barreiras
mencionadas apenas confirmam que não houve concretização as políticas de
mudanças climáticas no Estado de São Paulo (IEMA, 2015).
No mesmo período o número de ônibus (transporte público) reduziu de
159.438 para 161.435. Ou seja, os veículos individuais ganharam mais espaço
do que os veículos de transporte público, afrontando cabalmente a legislação.
As Empresas Privadas que foram as maiores beneficiarias, visto que no
círculo de transportes públicos existem setores de combustível e rodoviárias,
programando a expansão de sua atividade econômica.
Vizeu, Meneghetti e Seifert (2012) esclarecem a necessidade de uma
mudança de paradigma no modo de produção capitalista e que a
sustentabilidade não se apresente como um discurso utilitarista na medida em
que serve aos interesses do sistema de capital. A afirmação de Alves (2015,
p.28) que “o direito é sempre um instrumento político”, refletindo todas as
contingências sociais, fazendo com que as normas sejam cumpridas em
momentos estratégicos, apenas.

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1434

DIREITOS DOS ANIMAIS E SUA TUTELA NO BRASIL: AVANÇOS E


RETROCESSOS
ANIMAL RIGHTS AND THEIR GUARDIANSHIP IN BRAZIL: ADVANCES AND
REGRESSIONS

Patrícia Estolano Francelino


Orientador(a): Lívia Gaigher Bósio Campello

Resumo: Compreende-se por “senciente” um indício de que existe um “eu” –


nos animais – que vivencia e experimenta sensações. É o que diferencia
indivíduos vivos de “meras coisas vivas” (como, por exemplo, as bactérias, as
plantas, etc.). A partir de então, as discussões sobre a objetificação do animal
não-humano emergem na sociedade e culminam também por necessidade de
mudanças no ordenamento jurídico brasileiro. Isto posto, questiona-se: Os
direitos dos animais estão sendo efetivados no ordenamento jurídico nacional na
era do desenvolvimento sustentável global? O objetivo geral desta pesquisa é
estudar e debater a possibilidade de uma interpretação restritiva sobre o bem-
estar animal não-humano no ordenamento jurídico nacional, em face à proteção
constitucional do acesso à cultura e ao entretenimento dos seres humanos. Para
tanto, o método de pesquisa utilizado tem por base a pesquisa exploratória e
descritiva, bibliográfica e documental, com uma análise do tema por meio de
obras e artigos científicos.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Direitos dos Animais. Desenvolvimento
Sustentável.

Abstract: Understand by "experience" an indication that there is a "me" - in


animals - that experiences and experiences sensations. This is what
differentiates living individuals from "mere living things" (such as bacteria, plants,
etc.). From then on, discussions about the objectification of the nonhuman animal
emerge in society and also culminate in the need for changes in the Brazilian
legal system. That said, one wonders: Are animal rights being enforced in the
national legal system in the era of global sustainable development? The general
objective of this research is to study and debate the possibility of a restrictive
interpretation of non-human animal welfare in the national legal system, in view
of the constitutional protection of human access to culture and entertainment.
Therefore, the research method used is based on exploratory and descriptive,
bibliographic and documentary research, with an analysis of the theme through
works and scientific articles.
Keywords: Human Rights. Animal rights. Sustainable development.

INTRODUÇÃO

É possível considerar que por séculos seres humanos e animais


coexistem no planeta sob uma relação que permeia desde o mutualismo até uma
exploração abusiva. Imbuídos por uma consciência designada racional, os
humanos administram a fauna e flora como julgam conveniente, ou seja, para
seu próprio benefício, com intuito de sanar suas necessidades físicas (saúde e
alimentação); e psicológicas (esporte e entretenimento), ainda que estas
ocorram sobre o sofrimento de outras espécies, justificadas como um mal
necessário.
1435

Contudo, as discussões sobre a objetificação do animal não-humano


emergem na sociedade e culminam também por necessidade de mudanças no
ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, faz-se primordial, nestes termos,
fomentar a produção científica em prol daqueles que não possuem voz ativa para
defender sua existência como seres vivos, sensíveis e detentores de direitos. E,
de tal maneira, cabe também à comunidade acadêmica munir cientificamente a
discussão, com objetivos de extrair do plano valorativo e incluir os direitos dos
animais no plano real da estrutura jurídico nacional.
Ademais, conflitos importantes afloram quando se têm, no caso, valores
constitucionais em tensão: o direito à manifestação cultural e ao lazer, em afronta
ao direito de proteção dos animais contra tratamentos cruéis. Haja vista que
também está previsto na Carta Magna brasileira o direito fundamental do acesso
à cultura, ao esporte, ao lazer e ao entretenimento. Esta pesquisa, portanto, tem
como intuito realizar uma avaliação crítica das formas pela qual o Brasil,
conforme a distribuição de competências legislativas e executivas estabelecidas
pelo pacto federativo, produz e aplica normativas que buscam pela proteção do
direito animal a não crueldade em todo território nacional, e suas relações com
o direito constitucional humano à cultura e ao entretenimento.
Desse modo, questiona-se: como salvaguardar o direito do animal não
humano à proteção contra maus tratos frente ao conflitante direito humano de
manifestar-se culturalmente, ainda que, para tanto, animais sejam utilizados de
modo cruel? A partir dessa indagação, tem-se como objetivo geral analisar,
estudar e debater a possibilidade de uma interpretação restritiva sobre o bem-
estar animal não-humano no ordenamento jurídico nacional, em face à proteção
constitucional do acesso à cultura, ao entretenimento e ao desenvolvimento
econômico dos seres humanos.
Tendo como objetivos específicos verificar como destaque a proteção
jurídica constitucional do direito animal a não crueldade, com base no princípio
da solidariedade entre espécies; bem como, analisar o conflito social e jurídico
emergente entre a exposição de animais em vitrines, zoológicos e aquários, e o
direito humano ao desenvolvimento econômico e ao entretenimento, ainda que
estes ocorram em detrimento de outra espécie.
O presente trabalho se torna imprescindível para uma evolução da
temática, tanto no debate sobre a conservação da dignidade de todas as
espécies quanto para a conscientização do valor moral e real da manutenção da
vida, sem uso cruel, sob todas as suas formas. Assim, será factível a inserção
na sociedade acadêmico-científica a importância de se discutir os limites entre
bem-estar animal e crueldade, visando, sobretudo, os respaldos legais que a
legislação brasileira traz com relação ao assunto, examinando tanto a
constitucionalidade dos documentos positivados quanto a defesa do não
retrocesso concernente à temática. Por fim, estabelecer os direitos dos animais
a partir de sua valoração intrínseca, torna-se substancial para que seja possível
coibir o retrocesso legislativo no ordenamento jurídico brasileiro.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Denomina-se “senciente” (de senciência: conceito que combina os


termos “sensibilidade” e “consciência”) o organismo vivo que não apenas
representa reações orgânicas ou físico-químicas aos estímulos que afetam o seu
corpo (sensibilidade), mas também percebe esses estímulos como estados
1436

mentais positivos ou negativos (consciência). É, portanto, um indício de que


existe um “eu” – nos animais – que vivencia e experimenta sensações. É o que
diferencia indivíduos vivos de “meras coisas vivas” (como, por exemplo, as
bactérias, as plantas, etc.).
Desse modo, o estudo mais acurado sobre o bem-estar animal dialoga
com os objetivos de melhor atender e avaliar a qualidade de vida dos indivíduos
das mais variadas espécies; o que possibilita a tomada de medidas, elaboração
de protocolos e normas que estabeleçam a harmonia entre a interação humano
animal, excluindo-se o caráter antropocêntrico dessa relação. De tal forma,
mostra-se coerente que para se alcançar a otimização e a determinação dos
animais como seres sencientes que são, é de estrito dever humano racionalizar
os conhecimentos que respaldam a temática e respeitar as condições e os limites
que imperam sobre sua interação ambiental como um todo.
Assegurado pela Carta Magna, o direito a um ambiente ecologicamente
equilibrado é um direito fundamental que deve ser garantido pelo Estado, tendo
em vista o seu impacto direto no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
afetando tanto os seres humanos quanto os animais não humanos. Nesse caso,
segundo De Santana Gordilho (2018) “a depender do paradigma utilizado, os
animais podem ser considerados objeto de direito ou sujeito de direito. Na
primeira hipótese, eles são considerados seres sensíveis ou sencientes e, por
esta condição, merecem uma proteção diferenciada em nosso ordenamento
jurídico.”
Sobre a evolução dos conceitos que vislumbram pela tutela dos direitos
dos animais, Campello (2018) deixa inequívoca a atual vivência em uma era de
direitos mais que dinâmicos, sendo estas ferramentas de transformação da
realidade nacional e internacional. E, diante da existência de conflitos
principiológicos que ocorrem no ordenamento jurídico nacional, faz-se basilar a
interposição da racionalidade humana sob a vertente do Princípio da
Solidariedade entre espécies, utilizando da suposta superioridade destes como
um instrumento equiparador em favor dos demais animais não humanos, seres
incapazes de manifestar-se em sua defesa.
O primeiro caso de prática tida como manifestação cultural que usufruía
do sofrimento animal como base do entretenimento humano chegou ao Supremo
Tribunal Federal sob a Recurso Extraordinário N. 153.531-8, Santa Catarina,
julgado em 04 de fevereiro de 1997, o qual por maioria dos votos foi dado
provimento ao recurso nos termos do voto do relator que destacou a Farra do
Boi como “uma prática abertamente violenta e cruel para com animais” e não
desejável pela Constituição Federal.
Posterior ao emblemático caso da Farra do Boi, outra importante Ação
Direta de Inconstitucionalidade, pleiteada pela declaração de
inconstitucionalidade da lei n. 11.366/00, também do Estado de Santa Catarina,
que autorizava e regulava a criação, a exposição e a realização de brigas de
galo, foi julgada a ADI n. 2.514-7 pelo Supremo Tribunal FederaL em 29 de junho
de 2005. E por unanimidade dos votos, a norma que regulamentava a Briga de
Galo foi declarada inconstitucional sob os fundamentos do Ministro Relator Eros
Grau, que destacou que “ao autorizar a odiosa competição entre galos, o
legislador estadual ignorou o comando contido no inciso VII do § 1º do artigo 225
da Constituição do Brasil, que expressamente veda práticas que submetam os
animais à crueldade.
1437

Correspondente a ADI n. 2.514-7/2005, a Suprema Corte apreciou a


Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.856 em 26 de maio de 2011, para
declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 2.895, de 20 de março de 1998, do
Estado do Rio de Janeiro que também positivava a prática da Briga de Galo. A
ADI n. 1.856 foi julgada improcedente, por unanimidade dos votos, nos termos
do voto do Ministro Relator Celso de Mello que fundamentou arguindo que a
pretensão “reside na prática de atos revestidos de inquestionável crueldade
contra aves das Raças Combatentes (gallus-gallus) que são submetidas a maus-
tratos” transgredindo a regra constante do inciso VII do § 1º do artigo 225 da
Constituição da República.
Em 06 de outubro de 2016, julgou-se no Supremo Tribunal Federal a
Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.983, por maioria dos votos declarou
inconstitucional a Lei n. 15.299 de 08 de janeiro de 2013, do Estado do Ceará,
que regulamentava a Vaquejada como prática desportiva e cultural. O Ministro
Relator Marco Aurélio fundamentou seu voto alegando que “a crueldade
intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como
resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988”,
sobressaindo-se no âmbito de interesses fundamentais envolvidos no processo
a pretensão de proteção do meio ambiente em face ao direito humano de
manifestar-se culturalmente.
Nesta toada, nota-se diante dos julgados pertinentes à matéria, que o
Supremo Tribunal Federal constituiu ao longo dos anos um sólido
posicionamento favorável a proteção e resguardo do direito dos animais de não
serem submetidos à crueldade em face ao direito humano de manifestar-se
culturalmente. Contudo, em colisão com a decisão da Suprema Corte, a Emenda
Constitucional 96, de 6.6.2017, instaurou como não crueis as práticas
desportivas que utilizem animais, condicionando que, para tanto, estas sejam
caracterizadas como manifestações culturais, inserindo o controvertido § 7° ao
art. 225 da Constituição Federal de 1988, que expressa:

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste


artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem
animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do
art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza
imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser
regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos
animais envolvidos.

Evidencia-se, portanto, a incidência do efeito backlash em desfavor do


julgamento da ADI 4.983 de 2016, que reconheceu a inconstitucionalidade da
vaquejada por esta infringir os preceitos constitucionais de submissão de
animais a práticas crueis, bem como o da garantia humana a um ambiente
ecologicamente equilibrado, resguardados pelo art. 225 e incisos da Carta
Magna. Esse efeito pode ser compreendido como uma reação negativa (popular,
institucional) contra determinada decisão, típica do Constitucionalismo
Democrático (MARINHO, 2018).
Tal posicionamento rebate todos os esforços pela proteção e amparo aos
direitos dos animais, como anteriormente previa expresso pela Constituição.
Cabe ressaltar que o 7º parágrafo inserido não aniquila, porém, flexibiliza a tutela
dos animais não humanos de não serem submetidos à crueldade; é uma fenda
que expõe seres vivos à dor física e sofrimento psíquico e, sobretudo, não se
1438

justifica pelo seu argumento mercadológico e antropocêntrico do bem estar


humano de poder manifestar-se culturalmente. Entre as imensas e diversificadas
possibilidades dos seres humanos exteriorizarem suas expressões culturais e
tradições, hodiernamente, não é tolerável a uma sociedade evoluída utilizar-se
do sádico uso de animais nestas manifestações.
Como observado, a referida emenda derrubou o entendimento sobre a
matéria estabelecido pela Suprema Corte e, consequentemente, outras Ações
Diretas de Inconstitucionalidade que versavam sobre a temática tiveram seu
objeto prejudicado, culminando no retrocesso da luta em defesa dos direitos dos
animais não humanos de não serem submetidos à crueldade. Dessa maneira,
na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5713, decidida de forma monocrática
no dia 2 de março de 2018, ao versar contra a Lei n° 10428, de 20 de janeiro de
2015, do Estado da Paraíba, pode-se notar a impossibilidade do Supremo
Tribunal Federal de aplicar sua jurisprudência ao destacar que:

A promulgação da Emenda de nº 96, em 6 de junho de 2017, implicou


alteração superveniente do parâmetro de controle. Apesar de mantida
a redação do inciso VII do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal,
incluiu-se o § 7º, a revelar não serem cruéis as práticas desportivas
que utilizem animais, desde que reconhecidas como manifestações
culturais e nas condições que especifica.

Na mesma toada, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5711 interposta


contra a Lei n° 1906, de 19 de junho de 2015, do Estado do Amapá, também
teve seu objeto deturpado pela supramencionada emenda e, dessa forma, o
Supremo Tribunal Federal fundamenta em sua decisão monocrática que
“Mediante ato do poder constituinte derivado, modificou-se, de forma
substancial, o tratamento constitucionalmente conferido à vaquejada, ficando
prejudicada a análise desta ação, observada a jurisprudência do Supremo.”.
A partir de então, nota-se que os esforços pela tutela jurídica dos
direitos dos animais, ainda que resguardada em instâncias superiores do
judiciária, frustra-se ao colidir com os interesses econômicos e sociais humanos.
Esse efeito back lash sobre a matéria é o retrato angariado pelo
antropocentrismo, marcado pelo uso e instrumentalização indiscriminada tanto
dos animais não humanos quanto do meio ambiente como um todo, em prol do
lucro incessante e do gozo de suas tradições para satisfação de um bem estar
coletivo e exclusivamente humano.
Porém, em contrapartida, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.728
de 2017, proposta pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, tramita na
Suprema Corte e carrega a alegação de que a Emenda Constitucional 96/2017
violou o cerne do direito ao meio ambiente equilibrado, sob a ótica da proibição
do tratamento cruel aos animais não humanos, resguardados pelo artigo 225,
parágrafo 1º, inciso VII, da Magna Carta. Nesse sentido, o controle de
constitucionalidade a que será submetida a Emenda Constitucional 96/2017
reacende a possibilidade de correção de um significativo retrocesso estabelecido
sobre a tutela dos animais não humanos.
Cumpre destacar, que por todos os pontos expostos, ainda que avanços
significativos tenham ocorrido no ordenamento jurídico nacional, com base nas
decisões emplacadas à Suprema Corte, ainda o cenário mostra-se hostil quando
se tratam de conflitos principiológicos que colocam em choque os direitos dos
animais e os interesses estritamente humanos. Ainda que sejam reconhecidos
1439

como sujeitos passíveis de tutela jurisdicional, a ação humana mostra-se


contundente ao buscar saídas que desvirtuem direitos garantidos aos animais,
assim como vislumbrado pela Emenda Constitucional 96/2017, o que coloca em
evidência a importância da luta contra a crueldade estabelecida aos animais não
humanos, seres sensíveis e detentores de direitos.

CONCLUSÃO

Diante do abordado, evidencia-se a fragilidade da tutela dos direitos


animal perante os antropocêntricos interesses humanos, que ao colidirem,
deixam manifesta a prevalência destes em face ao sofrimento e à
instrumentalização de seres vivos, sencientes e, também, detentores de direitos.
E para que seja alcançado o amparo jurídico, é necessário que se atribuia à
espécie humana, pelo Princípio da Solidariedade entre espécies, o papel de
reconhecer a outorga valorativa intrínseca dos animais não humanos,
respeitando, desse modo, tanto a comparência fática quanto a existência jurídica
dos indivíduos, independente de sua condição racional, dirimindo a
hierarquização das espécies e a sobreposição de valores econômicos e
antropocêntricos interesses humanos. De tal modo, será possível, a partir da
pesquisa proposta, fomentar o debate sobre a tutela dos direitos dos animais e
os valores jurídico sociais que atingem tanto seres humanos quanto os animais
não humanos.

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1443

ENSAIO SOBRE AS LACUNAS DA PROTEÇÃO JURÍDICA DOS BIOMAS


BRASILEIROS NO CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
ESSAY ON THE GAPS IN THE LEGAL PROTECTION OF BRAZILIAN
BIOMMS IN THE CONTEXT OF SUSTAINABLE DEVELOPMENT

Ana Carolina Vieira de Barros


Orientador(a): Lívia Gaigher Bósio Campello

Resumo: A riqueza ecológica brasileira é retratada pelos diversos biomas que


compõem o país: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e
Pampa. Entretanto, nem todos são igualmente considerados como patrimônio
nacional pela Constituição Federal. Como a proteção dessa imensa variabilidade
genética pode contribuir com o desenvolvimento sustentável? A falta de
regulamentação jurídica, a existência de lacunas legislativas e a precária
fiscalização influem na crise ecológica da atualidade, pois abrem espaço para
práticas prejudiciais ao meio ambiente. Nesse contexto, o objetivo desse estudo
foi retratar os principais biomas nacionais e os instrumentos jurídicos de
proteção, busca-se também pontuar os benefícios da biodiversidade,
principalmente da rica diversidade genética brasileira, em consonância com a
tendência global de respeito ao meio ambiente para assegurar as presentes e
futuras gerações. O método de abordagem foi o dedutivo, partindo de conceitos
genéricos até a particularização, na perspectiva qualitativa, por meio da pesquisa
documental e bibliográfica.
Palavras-chave: Direito Ambiental. Biodiversidade. Biomas.

Abstract: The Brazilian ecological richness is portrayed by the various biomes


that comprise the country: Amazon, Cerrado, Caatinga, Atlantic Forest, Pantanal
and Pampa. However, not all are equally regarded as national heritage by the
Federal constitution. How can the protection of this immense genetic variability
contribute to sustainable development? The lack of legal regulation, the existence
of legislative gaps and the precarious oversight influence the current ecological
crisis, as they open up space for environmentally harmful practices. In This
context, the objective of this study was to review the main national biome and the
legal instruments of protection, and also seeks to score the benefits of
biodiversity, mainly of the rich Brazilian genetic diversity, in In line with the global
tendency to respect the environment to ensure the present and future
generations. The method of approach was the deductive, starting from generic
concepts to particularization, in the qualitative perspective, through documental
and bibliographic research.

KEYWORDS: Environmental law. Biodiversity. Biomes.

1. INTRODUÇÃO

As queimadas que recentemente atingiram o Brasil foram responsáveis


por reacender a importância da preservação dos biomas nacionais. Em poucas
semanas, a onda de gás carbônico e fuligem foi detectada pela população
brasileira, afinal, o impacto na qualidade de vida dos seres humanos (e não
humanos) foi sentido e observado até mesmo pela comunidade internacional.
São Paulo (SP) escureceu à tarde, em Campo Grande (MS) o famoso pôr-do-sol
1444

foi assistido por trás de névoa e em parte da Amazônia os animais eram vistos
fugindo do fogo. De fato, a crise ecológica bateu à porta do cidadão brasileiro.
O desmatamento indiscriminado, o não cumprimento da legislação
ambiental, a falta de fiscalização do poder público e a existência de atividades
ilegais (garimpo, biopirataria, entre outras) ameaçam diversos ecossistemas
nacionais. Dessa forma, o compromisso de proteção da biodiversidade firmado
pelo Brasil por meio da Convenção sobre Diversidade Ecológica e o Protocolo
de Nagoya não teria melhores resultados se os biomas brasileiros de maior
relevância fossem igualmente considerados como a base da diversidade da
genética e houvesse regulamentação jurídica capaz de aliar à preservação
destes ao desenvolvimento sustentável?
Nesse contexto é possível observar que a repercussão da situação ora
retratada permeou novamente as discussões ambientais no seio dos poderes
legislativo e executivo. No Congresso Nacional, antigos debates sobre a
necessidade de proteção jurídica dos biomas nacionais e, principalmente, da rica
biodiversidade por eles guardada passaram a ter maior visibilidade. Prova disso
foi a audiência pública interativa realizada pela Comissão de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável em conjunto com a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias com o tema “Riqueza e Potencialidades do Bioma
Caatinga”, no dia 01/10/2019.
O estudo em foco possui como objetivo principal retratar os principais
biomas nacionais e os instrumentos jurídicos de proteção destes no Brasil.
Ademais, de forma mais específica, busca-se pontuar os benefícios da
biodiversidade, principalmente da rica diversidade genética brasileira, na
construção de um país alicerçado na sustentabilidade, em consonância com a
tendência global de respeito ao meio ambiente para assegurar as presentes e
futuras gerações. Para a execução desse trabalho, o método de abordagem
utilizado foi o dedutivo, partindo de conceitos genéricos até a particularização,
na perspectiva qualitativa, por meio da pesquisa documental e bibliográfica.
A regulamentação e o preenchimento das lacunas legislativas referentes
à salvaguarda da biodiversidade, além da potencialização das políticas de
preservação, asseguram a continuidade dos ecossistemas. O direito ao
desenvolvimento, como a síntese entre os direitos civis, políticos, econômicos e
culturais, é indissociável do caráter sustentável entre a comunidade e a natureza.
Um país megadiverso como o Brasil é imprescindível na batalha que o homem
trava contra a própria crise ecológica que criou, afinal, a variabilidade genética
gera vida e sobrevivência de todas as espécies, incluindo a humana.

2. BIODIVERSIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A história das espécies é a própria narrativa da biodiversidade. Isto é


devido ao fato de que a variabilidade genética dos organismos, a constante
evolução destes e a troca do material genético entre os seres possibilitaram, em
conjunto com condições naturais favoráveis, a existência e o estabelecimento de
ricos e diversos ecossistemas ao redor do mundo.
A junção de toda essa riqueza biológica é a biodiversidade global.
Localmente, a diversidade é notada pela existência de múltiplas espécies em um
determinado ecossistema. Tais relações mantém o funcionamento natural do
planeta, favorecendo o aparecimento e a continuidade da vida. Para os
1445

humanos, a evolução proporcionada pela biodiversidade é um ideal de liberdade


(SHIM, 2003).
Conceitualmente, o termo biodiversidade teve seu fundamento alicerçado
nas ideias do cientista Walter G. Rosen. Estas foram decisivas para a
organização e acontecimento do Fórum Nacional sobre Biodiversidade, em
1986, na cidade de Washington/EUA. Posteriormente, o termo apareceu no
universo científico por meio da publicação dos resultados do encontro
mencionado pelo biólogo Edward O. Wilson (FRANCO, 2013).
Sobre a definição do termo é relevante colecionar:

O termo diversidade biológica, muitas vezes abreviado para


biodiversidade, é um termo abrangente usado para descrever o
número, a variedade e a variabilidade de organismos vivos numa dada
assembleia. Por conseguinte, biodiversidade engloba a totalidade da
vida na terra [...] A biodiversidade pode ser descrita em termos de
genes, espécies e ecossistemas, correspondendo a três níveis
fundamentais e relacionados com a hierarquia da organização
biológica (PEARCE; MORAN, 1997, p. 17-18).

É essa valiosa informação genética que permite ao ser humano utilizar os


recursos biológicos na solução de questões cotidianas. A cura de doenças, a
descoberta de remédios, o implemento da agricultura, os avanços na ciência,
tudo isso é resultado da manipulação da diversidade. É a biotecnologia que entra
em cena na resolução de problemas que afetam o ser humano globalmente.
Portanto, a participação da biodiversidade e seu manejo são decisivas
para o implemento do desenvolvimento sustentável na atualidade. Até porque a
mudança na forma como o ser humano se relaciona com a natureza impacta de
forma abrupta no estilo capitalista, vez que o exacerbado consumo e o uso
indiscriminado e irresponsável dos recursos naturais são repensados. Nesse
contexto, é importante consignar que o conceito de desenvolvimento econômico
não é resumido apenas pela ideia de crescimento econômico e abarca, também,
as esferas político, econômica, social e cultural, a fim de que haja o desfrute de
direitos humanos e liberdades fundamentais (SARLET; FENSTERSEIFER,
2017).
Voltar a economia para as potencialidades da biodiversidade é uma
alternativa viável entre produções sustentáveis e participação da comunidade.
Boa parte das descobertas científicas estão relacionadas a utilização do
composto natural por populações locais, as quais unem economia à preservação
da natureza. Veja-se:

Os recursos da biodiversidade podem atuar como coadjuvante nesse


processo desenvolvimentista, com legislação adequada que permita a
justa repartição de benefícios. Pode-se afirmar ser possível e
necessária a utilização de produtos da biodiversidade pelo ser humano,
realizada com fundamento na preservação dos direitos fundamentais e
objetivos fundamentais prescritos na Constituição, para todas as
finalidades que possibilitem sua utilidade para melhor condição da vida
humana [...] Nesse contexto, torna-se imprescindível pensar no
conhecimento científico como necessário para promover a
sustentabilidade e como meio para a preservação da biodiversidade e
para o desenvolvimento de comunidades que tradicionalmente tenham
como parte de sua vida esse ambiente natural. Novas tecnologias de
caráter sustentável têm aptidão para representar uma alternativa para
a manutenção dos recursos naturais e para a igualitária repartição dos
1446

proveitos de sua utilização, causando impacto positivo no


desenvolvimento local de comunidades tradicionais, com respeito à
diversidade e à resiliência dos domínios (TURINE; MACEDO, 2017, p.
181).

A megadiversidade brasileira é primordial para a manutenção da vida no


planeta. Ocorre que tal riqueza biológica está distribuída pela larga extensão do
território brasileiro, o qual ecologicamente é dividido em biomas. Não obstante,
nem todos são equitativamente protegidos pela legislação nacional e por isso
existem ameaças diárias à preservação destes, considerando as inúmeras
práticas ilegais (desmatamento indiscriminado, extrativismo ilegal, biopirataria,
entre outros), intensificadas pela falta de fiscalização ao cumprimento da lei
ambiental.

3. BIOMAS BRASILEIROS E A LEGISLAÇÃO NACIONAL

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Ministério do


Meio Ambiente firmaram, no ano de 2003, um termo de cooperação que resultou
na confecção do mapa de biomas brasileiros. São eles: Bioma Amazônia, Bioma
Mata Atlântica, Bioma Caatinga, Bioma Cerrado, Bioma Pantanal e Bioma
Pampa.
O termo bioma é descrito como “um espeço geográfico natural que ocorre
em áreas que vão desde algumas dezenas de milhares até alguns milhões de
quilômetros quadrados, caracterizando-se pela sua uniformidade de clima,
condições edáficas e fitofisionomia” (COUTINHO, 2016, p. 26). É correto
diferenciar bioma de ecossistema, já que este constitui nas relações entre
componentes bióticos e abióticos de determinado lugar, independente da
localização geográfica ou homogeneidade de características climáticas,
relacionados ao solo, fauna e flora, as quais caracterizam, por sua vez, um
bioma.
O bioma Amazônia é composto por florestas tropicais pluviais, as quais
abarcam riqueza biológica inestimável, entre os estados do Acre, Amazonas,
Roraima, Pará, Amapá, Rondônia, Maranhão, Mato Grosso e Tocantins. Além
disso, está presente em outros oito países sul-americanos. A Mata Atlântica é
uma formação vegetal localizada na região litorânea brasileira e abrange a costa
leste, sudeste e sul do Brasil.
A Caatinga é encontrada no semiárido nordestino, sendo comum em
regiões de chuvas escassas. Já o Cerrado é o bioma característico da região
centro-oeste, possuindo solo arenoso e clima que varia entre épocas de chuva
e seca. O Pantanal compreende uma grande planície que se alaga nos períodos
de chuva, estando presente nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Por fim, o Pampa, também conhecido como Campos Sulinos ou Campanha
Gaúcha, é achado no estado do Rio Grande do Sul e é formado principalmente
por vegetação de pequeno porte.
Para a preservação dos biomas é necessário antes de tudo que exista
regulamentação jurídica acerca da proteção do meio ambiente e,
consequentemente, da biodiversidade. Na seara internacional é imprescindível
citar a Convenção de Diversidade Biológica. O respectivo tratado foi firmado em
1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida como ECO-92. Constitui verdadeiro
arcabouço conceitual e jurídico acerca da proteção da biodiversidade e está
1447

alicerçado na conservação e no uso sustentável da biodiversidade, além da justa


e equitativa repartição dos benefícios oriundos da manipulação dos recursos
genéticos. O documento foi ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo
n. 2 de 1994 e do Decreto Executivo n. 2.519 de 1998.
Em âmbito nacional, a Constituição Federal de 1988 assegura pelo art. 1º,
III, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito. O mínimo existencial garantido ao ser humano também
possui dimensão ecológica, visto que o desenvolvimento da vida depende da
qualidade do meio ambiente para que cada indivíduo possa progredir (SARLET;
FENSTERSEIFER, 2017).
Em sequência, o art. 225 do diploma constitucional confere perspectivas
relevantes em matéria ambiental. Primeiramente, é direito de todos ter acesso a
um meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo este bem de uso comum
do povo e essencial à sadia manutenção da vida. Ademais, cabe ao Poder
Público e à coletividade a defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações. Portanto, o equilíbrio ambiental é um direito constitucional não só de
caráter individual, mas também difuso, de interesse de toda a sociedade
(FIORILLO; DIAFÉRIA, 2012).
No que tange aos biomas, o artigo supramencionado cuidou em seu §4º
de estabelecer a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar,
o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira como patrimônios nacionais. Isso
implica a utilização destes na forma da lei, dentro de condições que assegurem
a preservação ambiental, inclusive dos recursos naturais. Como anteriormente
explicitado, o mapa de biomas brasileiros foi desenvolvido somente no ano de
2003, por conseguinte, no momento da elaboração do texto constitucional as
principais vegetações e “biomas” conhecidos foram aqueles assinalados no
referido dispositivo da CF/88.
Como notado, os biomas Cerrado, Caatinga e Pampa não estão no rol do
texto constitucional. Entretanto, o Congresso Nacional já discute a possibilidade,
por exemplo, da Caatinga e do Cerrado serem incluídos nessa listagem, através
da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 504/2010, sendo que uma
petição com cerca de 570.000 (quinhentas e setenta mil) assinaturas foi entregue
no dia 11/09/2019 na Câmara dos Deputados para aprovação da medida.
A preservação da Caatinga também é notada pelo Projeto de Lei n.
4.623/2019 que discute medidas de combate ao desmatamento da vegetação
nativa, o estabelecimento de uma política de extrativismo sustentável e o
zoneamento econômico-ecológico. O Pantanal ainda não possui uma
regulamentação e fiscalização mais ativa, até mesmo porque a rica
biodiversidade do bioma não é totalmente conhecida. A lei n.º 12.954/2014 criou
o Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal, a fim de gerar conhecimento sobre
a região e desenvolver um banco de dados sobre essas informações.
A conservação, a proteção, a regeneração e a utilização da Mata
Atlântica estão estabelecidas pela Lei n. 11.428/2006. Já em relação ao bioma
Amazônia, as preocupações internacionais e nacionais são tamanhas em
relação ao crescente número de queimadas e ao flagrante desmatamento que
esclarecimentos foram requisitados ao Ministério do Meio Ambiente, em
audiência pública na manhã do dia 10/10/2019.
Portanto, nota-se que os biomas ainda não estão equitativamente
protegidos, sendo que alguns não são definidos como patrimônio nacional,
embora sejam guardem rica biodiversidade, a qual pode ser aliada ao
1448

desenvolvimento sustentável. É momento de políticas públicas serem discutidas


para que seja reavaliado o modo de exploração dos recursos naturais, bem como
seja reestruturada a forma como fiscalização ambiental se estabelece.

4. CONCLUSÃO

O Brasil, como um país megadiverso, possui rica diversidade biológica.


Ocorre que toda essa variabilidade genética está distribuída pelo território
nacional em seis grandes biomas. O desafio, por sua vez, consiste em conceder
proteção equitativa para estes e repensar práticas econômicas que possam levar
a gradativa destruição ambiental.
O desenvolvimento sustentável requer muito mais do que práticas
econômicas adequadas ao resguarde das presentes e futuras gerações. É
imprescindível haver conexão entre o ser humano e meio ambiente que o cerca,
como uma unidade que se autorregula e garante a continuidade da vida do
planeta.
Além disso, a conservação e a garantia do patrimônio genético nacional
são as maiores aliadas no estabelecimento de um novo panorama de
desenvolvimento. O fortalecimento das comunidades locais que utilizam os
frutos da biodiversidade como centro de sua economia é um dos pontos chave
para a preservação dos biomas ao mesmo tempo em que gera economia.
O presente resumo mostrou de forma sucinta que a proteção dos biomas
ainda não foi totalmente abarcada pela legislação brasileira. Com sorte, a
participação popular tem sido definitiva para a mudança dessa situação. Desde
que as queimadas atingiram o Brasil de forma mais intensa no último mês,
mostrando a face negativa do agronegócio, denunciando o desmatamento
indiscriminado e colocando em pauta os incêndios criminosos, a população e
seus representantes passaram a intensificar a discussão sobre o tema.
Dessa forma, o país traça novos rumos para o cenário da biodiversidade.
Entretanto, a existência de uma legislação coerente não será a única ferramenta
dessa mudança. As políticas públicas e, principalmente, os mecanismos de
fiscalização terão que ser adequados para que o conteúdo da lei seja cumprido
de maneira eficaz. Por fim, é importante relacionar que o ativismo ambiental e a
participação pública são imprescindíveis nessa luta. Afinal, o maior bem do
brasileiro é a diversidade que está em seu território.

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e Assessoramento Superiores - DAS; altera a Lei nº 10.683, de 28 de maio de
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1451

MEIO AMBIENTE E MERCOSUL: UMA LEGISLAÇÃO HARMÔNICA COMO


MEIO DE PROTEÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS
MEDIO AMBIENTE Y MERCOSUR: UNA LEGISLACION ARMÓNICA COMO
MEDIO DE PROTECCIÓN DE RECURSOS NATURALES

Bárbara Beatriz Lobato Cruz


Orientador(a): Juliana Rodrigues Freitas

Resumo: O Mercosul, bloco econômico do qual o Brasil faz parte, vem desde
sua formação, nos anos 90, buscando sua consolidação no cenário
internacional. Tal bloco, possui como Estados-membros países com riquezas
naturais singulares, como a floresta amazônica, a Patagônia e o aquífero
Guarani. Diante dessa realidade e do cenário atual global, se faz necessário
crescer economicamente, porém sem degradar o meio ambiente sadio, ou seja,
a busca pelo desenvolvimento sustentável se faz presente de maneira imperiosa.
Dessa forma, como meio de proteger seus recursos naturais e também garantir
reconhecimento internacional no que diz respeito à proteção ambiental, é de
suma importância que o Mercosul busque formas de harmonizar as leis
ambientais de seus países-membros a fim de criar uma legislação ambiental
consistente que defenda, de forma conjunta, os recursos naturais de seus
Estados-membros, garantindo um desenvolvimento sustentável.

Palavras-chave: Mercosul. Desenvolvimento Sustentável. Cooperação.

Resumen: Mercosur, el bloque económico del que Brasil forma parte, ha existido
desde su inicio en la década de 1990, buscando su consolidación en la escena
internacional. Este bloque tiene como Estados miembros países con riquezas
naturales singulares, como la selva amazónica, la Patagonia y el acuífero
guaraní. Dada esta realidad y el escenario global actual, es necesario crecer
económicamente, pero sin degradar el medio ambiente saludable, es decir, la
búsqueda del desarrollo sostenible está presente de manera imperiosa. Por lo
tanto, como medio de proteger sus recursos naturales y también garantizar el
reconocimiento internacional en materia de protección del medio ambiente, es
de suma importancia que el Mercosur busque formas de armonizar las leyes
ambientales de sus países miembros a fin de crear una legislación ambiental
coherente que defienda conjuntamente los recursos naturales de sus Estados
miembros, para garantizar el desarrollo sostenible.
Palabras clave: Mercosur. Desarrollo Sostenible. Cooperacíon.

INTRODUÇÃO

O Mercado Comum do Sul (Mercosul) iniciou suas atividades como


organização intergovernamental em 26 de março de 1991, através do Tratado
de Assunção, tendo como objetivo alcançar o Mercado Comum do Sul até 31 de
dezembro de 1994, finalizando as duas fases do processo de integração: zona
de livre comércio e união aduaneira, durante esse período de transição.
Um pouco depois do surgimento do Mercosul, ocorreu no Rio de Janeiro
a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, mais conhecida como
Rio-92. Nesta conferência, os Estados participantes reconheceram a
necessidade de adoção de medidas globais para a proteção ambiental. Para se
1452

alcançar esse desenvolvimento sustentável, dentro de um bloco de integração


regional, deve haver um esforço de harmonizar as legislações ambientais de
seus Estados Partes. (OLIVEIRA e ESPÍNDOLA, 2015)
É inegável que os países que compõe o Mercosul possuem uma grande
riqueza de recursos naturais, um dos principais fatores nada mais é que a
presença da floresta amazônica nessa região, ultrapassando os limites
transfronteiriços dos países que a integram. Além disso, a Argentina, o Brasil, o
Paraguai e o Uruguai são países conhecidos por serem exportadores de
produtos agrícolas e pecuários.
A proteção do meio ambiente e a busca pelo desenvolvimento sustentável
atualmente são temáticas centrais nos debates internacionais. Tal fato se deve
ao mal-uso dos recursos naturais não ficam reclusos dentro das fronteiras de um
país, podendo afetar outras nações. No Mercosul, o assunto está restrito às
discussões em subgrupo e de forma não integrada pelos Estados-membros,
demonstrando a desatenção do bloco ao assunto. (MORAES, MORAES e
MATTOS, 2012).
Portanto, deve-se buscar mecanismos que contribuam com uma
legislação ambiental mais específica e unificada dentro do Mercosul, não só
como forma de proteção do meio ambiente regional, mas também para mostrar
no quadro internacional, o comprometimento do bloco com a proteção e defesa
de seus recursos naturais, conhecidos mundialmente.

OBJETIVOS

O objetivo central desse trabalho é evidenciar a importância de uma


legislação ambiental unificada e concisa dentro do Mercosul, uma vez que seus
países membros são detentores de recursos naturais e ecossistemas de suma
importância como: Amazônia, Patagônia e montanhas andinas.
Além disso, é imperativo a busca por uma agenda verde harmonizada
entre os países do bloco. Para isso, é necessária uma breve análise sobre o
ordenamento jurídico dos Estados-membros no que diz respeito ao meio
ambiente e desenvolvimento. (MORAES, MORAES e MATTOS, 2012).
Ademais, esta pesquisa visa também uma breve analise do Acordo-
Quadro Sobre Meio Ambiente no Mercosul, e como este acordo influenciou no
surgimento de uma política regional de meio ambiente dentro do bloco
econômico.

METODOLOGIA

Análise de artigos científicos e bibliografia complementar, somado a


apreciação de legislação ambiental referente ao Mercosul e aos seus Estados-
membros.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dentre os Estados-membros, o Brasil é o país que possui a legislação


ambiental mais avançada, sendo norteada pelo art. 225 da Constituição Federal
de 1988 em seu título VIII, capítulo VI:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
1453

de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de


defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder
público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover
o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de
material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e
seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a
alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada
qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que
justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade
de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade. (grifo nosso).

Juntamente com os preceitos constitucionais, o Brasil também possui uma


vasta legislação complementar sobre o tema, com ênfase na lei nº 4771/65, a
qual estabeleceu que as florestas no território nacional são bens de interesse
comum a todos os habitantes do país. Além da lei nº 6938/81 que tornou
obrigatório o licenciamento ambiental para atividades ou empreendimentos com
potencial lesivo ao meio ambiente.
A Argentina, possui em seu texto constitucional referências à proteção do
meio ambiente em seu art 411. Contudo, há conflitos no ordenamento, uma vez
que os estados possuem soberania para legislar sobre o assunto. Devido a isso,
em 1993, aconteceu o Pacto Federal Ambiental com as províncias argentinas,
no entanto, este documento não elenca normas uniformes vigentes em todo
território nacional, sendo apenas um documento norteador de políticas públicas
sobre o desenvolvimento ambiental. (MORAES, MORAES e MATTOS, 2012).
Paraguai e Uruguai também possuem textos constitucionais consoantes
à proteção ambiental, entretanto, não possuem uma legislação complementar
mais detalhada e segura como a brasileira. Podemos perceber, portanto, que
cada Estado-membro integrou ao bloco suas questões inerentes à proteção
ambiental presente em seus ordenamentos jurídicos próprios.
Dessa forma, os textos referentes à proteção ambiental dentro do
Mercosul começaram a dar seus primeiros passos logo após a Rio-92. Contudo,
inicialmente resultou apenas em tratados e reuniões que visavam temas
específicos envolvendo o meio ambiente e não a preocupação por estabelecer

1 ARGENTINA. Constitución (1994). Articulo 41 “Todos los habitantes gozan del derecho a um
ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano y para que las atividades productivas
satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras, y tienen
el deber de preservarlo. El danho ambiental generara prioritariamente la obligacion de
recomponer, segun lo establezca la ley.”
1454

uma legislação ambiental unificada ao bloco. O documento de maior relevância


nesse sentido é o Acordo-Quadro Sobre o Meio Ambiente (AQMAM), aprovado
em 2001 e aditado em 2004 pelo Conselho do Mercado Comum (CMC),
inaugurando a tutela ambiental regional.
Tal acordo prioriza a normatização do desenvolvimento sustentável e a
proteção do meio ambiente, e por conseguinte, a qualidade desse
desenvolvimento. Destarte é estabelecido o princípio de desenvolvimento
sustentável regional do Mercosul, que condicionará todas as tratativas do bloco,
bem como é criado o Direito Ambiental do Mercosul, mediante a regulamentação
da promoção da proteção ambiental e incentivo à coordenação de políticas seto-
riais. (D’ISEP, 2017). Portanto, o AQMAM possui uma proteção ambiental
integrada, com o papel de orientar o Mercosul como sujeito de direito
internacional. Sendo assim, o presente acordo prioriza duas espécies de
proteção: a autônoma, ao direcionar os rumos da cooperação para uma política
ambiental comum; a integrada, que é reafirmada no art. 3º, b, figurando como
princípio e como objetivo (art. 4), quando da imposição do desenvolvimento
sustentável, que permeia todo o Acordo Ambiental. (D’ISEP, 2017).

CONCLUSÃO

Sendo assim, podemos concluir que o AQMAM se tornou um instrumento


de suma importância para estabelecer o compromisso de política ambiental
dentro do Mercado Comum do Sul, situação na qual os Estados-membros do
Mercosul partilham da responsabilidade de instrumentalizar e viabilizar a tutela
do meio ambiente local. Além disso, o acordo em tela proporciona o exercício da
cooperação entre os países em prol de um bem comum.
É inegável que os países membros do Mercosul demonstram certa
preocupação sobre a temática ambiental, reconhecendo a necessidade de uma
harmonização entre as leis que abordam tal temática, bem como, seus
obstáculos para isto. Entretanto, mesmo com a existência de algumas
legislações que versam sobre o assunto, não é possível encontrar uma
verdadeira política ambiental mercosulista, com um marco legal ambiental geral.
(OLIVEIRA e ESPÍNDOLA, 2015).
Portanto, os esforços por parte dos Estados-membros para alcançar essa
harmonização legislativa devem continuar, pois são de suma importância dentro
do processo de integração regional. Ademais, ao explanar sobre as legislações
ambientais domésticas dos países membros, podemos perceber que há
similaridades entre elas, como a forte influencia de conferências e tratados
internacionais por exemplo, e isso é um ponto positivo para se alcançar o objetivo
da harmonização ambiental dentro do bloco, uma vez que demonstra que os
textos constitucionais partem de uma origem em comum. (OLIVEIRA e
ESPÍNDOLA, 2015).
Assenta destacar também que a desejada harmonização ambiental no
Mercosul não se refere apenas a uma legislação una, mas também à cooperação
dos Estados-membros em alcançar normas coerentes sobre essa temática.
Além disso, diante do quadro internacional atual, a necessidade de aliar
desenvolvimento sustentável e crescimento econômico se faz de extrema
necessidade. O mercado consumidor vem elevando seus níveis de preocupação
com a degradação dos recursos ambientais, sendo necessário abandonar os
meios de consumo antigos e se adequar às novas demandas globais. Por isso,
1455

se o Mercosul deseja em um futuro próximo discutir com outros blocos


econômicos de forma igual, precisa buscar formas de adequar-se ao que o
presente exige, ou seja, não pode se eximir da discussão ambiental e do
desenvolvimento sustentável.

REFERÊNCIAS

ARGENTINA. Constituição (1994). Constituición Nacional Argentina. Buenos


Aires, 1994.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Senado, 1988.

D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Mercosul e o meio ambiente: análise da


tutela regional ambiental. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 1,
2017 p. 283-293.

DE MORAES, Isaias Albertin, DE MORAES Flavia, MATTOS Beatriz Rodrigues


Bessa. O Metcosul e a importância de uma legislação ambiental
harmonizada. Revista de Direito Internacional, Brasília,, v. 9, n. 3, 2012, p. 91-
101.

OLIVEIRA, Celso Malan, ESPÍNDOLA Isabela Battistello. Harmonização das


normas jurídicas ambientais nos países do mercosul. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
753X2015000400002, Acesso em: 25 set. 2019.
1456

O DIREITO FUNDAMENTAL À CIDADE SUSTENTÁVEL


THE FUNDAMENTAL RIGHT TO THE SUSTAINABLE CITY

João Victor Maciel de Almeida Aquino


Wellington Oliveira de Souza dos Anjos Costa
Orientador(a): Mozart Victor Ramos da Silveira

Resumo: O Brasil é um país de contrastes e isso se denota no modo como as


cidades brasileiras, desde grandes metrópoles a pequenas cidades,
desenvolvem-se. A ausência de políticas públicas e planejamento urbano
acarretam em diversos problemas de ordem social, econômica, política e
jurídica. Nessa testilha, sob uma análise sistemática do ordenamento jurídico
brasileiro e dos direitos humanos, tem-se discutido a existência do direito
fundamental à cidade sustentável, oponível a todos. Este se baseia em outros
direitos fundamentais (vida, meio ambiente equilibrado, moradia) e propõe que
todo o ser humano tem direito de, como expressão de sua dignidade, viver em
um ambiente urbano no qual se garantam a justiça social, a equidade, a
democracia e o desenvolvimento sustentável. Este trabalho se propõe a
compreender de que forma este direito fundamental se constrói e se insere no
contexto do ordenamento jurídico brasileiro, avaliando suas bases teórico-
jurídicas e seu potencial de garantia de direitos e observância da dignidade da
pessoa humana. Para tanto, fez-se uso de uma pesquisa bibliográfica e
documental, desenvolvida a partir do método dedutivo.
Palavras-chave: Direito à cidade. Direitos humanos. Direitos fundamentais.

Abstract: Brazil is a country of contrasts and this is the way in which Brazilian
cities, from large metropolises to small cities, develop. The absence of public
policies and urban planning entail several problems of social, economic, political
and juridical order. In this testimony, under a systematic analysis of the Brazilian
legal and the human rights, the existence of the fundamental right to the
sustainable city has been discussed, which is opposed to all. This is based on
other fundamental rights (life, balanced environment, housing) and proposes that
every human being has the right, as an expression of their dignity, to live in an
urban environment in which social justice, equity, democracy and sustainable
development are ensured. This work proposes to understand how this
fundamental right is built and inserted in the context of the Brazilian legal order,
evaluating its theoretical and legal bases and its potential to guarantee rights and
observance of the dignity of the human person. For this purpose, a bibliographic
and documentary research was used, developed from the deductive method.
Keywords: Right to the city. Human rights. Fundamental rights.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, no Brasil e no mundo, as cidades passaram a


possuir um significado diverso do que aquele que possuíam há pouco mais de
um século. A compreensão destas como simples aglomerado humano passou a
ser paulatinamente substituída por uma noção que se constrói a partir de direitos
e cujo objetivo é atender aos anseios dos indivíduos. No pós-guerra foram várias
as normas de direitos humanos que propuseram mudanças drásticas na lógica
urbana a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) já trazia como
1457

dever do Estado a concessão de moradia digna aos indivíduos. No mesmo


sentido, o Pacto de Direitos Econômicos e Sociais (PIDESC) de 1966, além de
repisar o ônus de prover moradia digna e de qualidade, ampliou e estabeleceu
critérios para a sua tutela.
Assim, até a celebração da Agenda 2030 pela Organização das Nações
Unidas (ONU), os modos como os seres humanos e o espaço urbano interagem
foram redimensionados e o direito humano que limitava à moradia
tendencialmente se converte ao direito à cidade, que ao se comunicar com
outros, como o direito à vida, ao meio ambiente equilibrado, a saúde e o lazer,
formaram o que hoje se concebe o direito à cidade sustentável, que foi alçado
como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, estando ligado
intimamente à dignidade da pessoa humana.
Não obstante, a perspectiva normativa de direito à cidade possuir
inspirações na proposta Lefebvreana, mas com ela não se confunde, uma vez
que a perspectiva clássica de direito à cidade é revolucionária, entendendo que
o referido direito só seria possível de se realizar com uma mudança radical no
padrão do processo de industrialização, que é o indutor de problemas urbanos
relativos ao crescimento, à planificação, às questões de moradia,
desenvolvimento e também as demandas da “cultura”, do uso para reprodução
social da cidade por todos os cidadãos (LEFEBVRE, 2010).
Desse modo, o ordenamento jurídico brasileiro possui uma série de
normas constitucionais e infraconstitucionais que se propõe a uma análise da
cidade sob um enfoque alinhado às normas internacionais. A Lei 10.257/2001,
por exemplo, estabelece como uma das diretrizes da politica urbana brasileira o
direito à cidade sustentável. Partindo-se desse pressuposto, defende-se a
existência de um direito fundamental à cidade sustentável no âmbito da
legislação interna.
Este trabalho pretende analisar a existência do direito fundamental à
cidade saudável no complexo legislativo brasileiro, partindo de uma análise
focada no seu estabelecimento como direito fundamental, investigando as
características desse direito e os elementos que estabelecem a sua
fundamentalidade. Na primeira parte, abordar-se-á o modo como se construiu
teoricamente o direito fundamental à cidade, considerando-se aspectos
históricos, jurídicos e constitucionais. Na segunda, por sua vez, discutir-se-á o
caráter de fundamentalidade do direito à cidade sustentável e como este se
caracteriza no ordenamento jurídico. Para tanto, utilizou-se do método científico
indutivo e dedutivo, sendo este desenvolvido a partir da investigação
bibliográfica e revisão da literatura disponível.

1. O DIREITO FUNDAMENTAL À CIDADE SUSTENTÁVEL

O Brasil é um país historicamente desigual, cheio de contrastes e com


uma dinâmica sociocultural única, sendo o espaço urbano um retrato fidedigno
destas disparidades. Contemporaneamente, as cidades, e isso abrangendo
desde pequenos povoamentos a grandes metrópoles, guardam em si um
ecossistema cujo desenvolvimento se dá muitas vezes de forma desordenada,
o que importa em dilemas de ordem social, econômica, política e, sobretudo,
jurídica.
Para ilustrar o referido, cita-se o estudo Mapa da Desigualdade 2018,
realizado pela Rede Nossa São Paulo, que analisou a diferença de indicadores,
1458

como expectativa de vida, cidadãos com emprego formal, número de aparelhos


culturais e etc., entre os bairros da capital paulista. Por exemplo, o estudo
revelou que num espaço de pouco mais de dez quilômetros de distância, entre
os bairros de Perdizes e Paraisópolis, instala-se um abismo. No que concerne à
expectativa de vida, esta salta de 80,05 no primeiro bairro para 65,56 no
segundo, uma diferença de 15 anos. Da mesma forma o número de pessoas
empregadas em um grupo de dez indivíduos, totaliza 45% em Perdizes,
enquanto em Paraisópolis esse mesmo número mal chega a 25%. (BETIM;
ALESSI, 2018).
A herança de desigualdades é histórica e no contexto do espaço urbano
demonstra-se de forma latente. As primeiras cidades brasileiras foram pensadas
em um contexto onde estas serviam como ferramenta de consolidação do poder
colonial e oligárquico, tendo a sua estrutura e organização sido concebidas para
servir a um pequeno grupo de privilegiados, deixando de contemplar a grande
massa de indivíduos de classes sociais menos abastadas, que formavam, e
ainda formam, substancialmente sua população.
Nessa testilha, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) estabeleceu uma
série de dispositivos que versam sobre aspectos atinentes à cidade,
reconsiderando as funções dessa para a sociedade, promovendo uma série de
direitos e garantias que se inserem como ferramentas de busca pelo princípio
elencado como um dos fundamentos da República, qual seja a dignidade da
pessoa humana. A título de exemplo, pode-se citar direito fundamental à
moradia, constante ao art. 6º e as regras de política urbana expostas nos arts.
182 e 183 da Carta Magna. A estes dispositivos, somam-se aqueles de natureza
infraconstitucional, como é o caso da Lei n.º 10.257/2001, o Estatuto das
Cidades.
Partindo-se de uma análise da tradição jurídica brasileira, vê-se que as
questões referentes à ordem urbana, aqui abrangidos aspectos como moradia,
planejamento urbano, controle sanitário, dentre outros, passaram a atrair o
interesse com o processo de industrialização ocorrida nas décadas de 30 e 40 e
que resultaram numa expansão dos aglomerados urbanos.
Possuía-se à época uma concepção jurídica dos espaços urbanos ligada
às noções de propriedade estabelecidas pelo Código Civil de 1916, que calcada
na compreensão liberal, relegava aos particulares a composição dos centros
urbanos, seguindo a lógica do laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde
va de lui-même1. (SILVEIRA, 2013, p. 55). As poucas legislações que existiam
até a metade do século XX, tratavam de aspectos referentes a patrimônio público
e histórico, regularização fundiária e demais questões que, embora versassem
sobre aspectos da ocupação urbana, não quebravam a tensão superficial da
tessitura social e pouco apresentavam respostas para a resolução dos conflitos
existentes.
A Constituição Federal de 1988 trouxe uma mudança drástica,
inaugurando uma ordem constitucional mais alinhada às realidades sociais e
baseada em pressupostos alinhados aos direitos humanos, como a já citada
dignidade da pessoa humana, mas também se filiando a outros princípios, como
o da igualdade e o da solidariedade. As normas pós-constitucionais que tratam
sobre o direito urbanístico logram em repensar a forma como se relacionam os
indivíduos, a sociedade, o Estado e o espaço geográfico ocupado. Se

1 Deixai fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo. (tradução nossa).
1459

anteriormente a tônica do Estado era pouco intervir no modo como a ocupação


espacial se desenvolvia, após a CF/88 a situação se inverteu e o Estado passou
a tutelar de forma mais próxima à organização tanto nas áreas urbanas, quanto
rurais. O próprio art. 182 estabeleceu como incumbência dos Municípios a
elaboração e gestão desses planos. In verbis: “Art. 182. A política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”.
(BRASIL, 2001)
Nessa senda, aduzem Pinheiro e Rodrigues (2012, p. 374):

Por esse viés, foi atribuído por via constitucional ao Poder Público, em
cooperação com a sociedade civil e entidades privadas, a árdua tarefa
de repensar, planejar e fornecer mecanismos de concretização dos
direitos pertinentes aos espaços citadinos, dentre eles o direito
fundamental à cidade sustentável, que implica uma série de
transformações na forma de produção e consumo das cidades,
ampliando as dimensões dos mecanismos citadinos para toda a
população, com o intuito de abranger, em especial, áreas urbanas
marginais, assim como as populações rurais ou semi-rurais que se
localizam no entorno dos centros urbanizados e consomem os
mecanismos da cidade.

Na ordem pós-constitucional, o direito à cidade sustentável insere-se em


um contexto diametralmente diverso do que previamente tratado. Este é
expressão não só de garantias fundamentais individuais, mas também de
direitos relativos à coletividade, desenvolvendo-se, assim, do mesmo modo que
os direitos transindividuais. Nesse sentido, cita-se, por exemplo, a função social
da propriedade, onde o interesse e o bem-estar coletivo sobrepõem-se aos
interesses individuais.
O direito à moradia encontra-se, conforme já referido, exposto no art. 6º
da Constituição Federal, no entanto, por si só não esgota nem apresenta as
bases para a construção do direito urbanístico e a discussão quanto aos
problemas referentes à ocupação do território. Para tanto, foi decisiva a
promulgação da Lei n.º 10.257/2001, o Estatuto das Cidades (EdC). Esta trouxe
a instrumentalização da política urbana a qual se referem os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal, estabelecendo os meios e as diretrizes pelas quais o Poder
Público dará efetividade à norma constitucional, constantes no art. 2º da
legislação. Logo em seu inciso primeiro, consta a como diretriz geral a garantia
do direito à cidade sustentável.

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno


desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito
a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
presentes e futuras gerações. (BRASIL, 2001).

Quando da celebração de normas internacionais de direitos humanos,


como o PIDESC, pacificou-se a existência de um direito fundamental à cidade,
baseado nos ditames constitucionais e nos direitos humanos, como o direito à
moradia (art. 6º, CF/88), o direito a habitação (art. 25 da Declaração Universal
1460

de Direitos Humanos) e o direito de circulação e de residência (art. 22 da


Convenção Americana sobre Direitos Humanos).
Assim, o direito à cidade sustentável possui uma dimensão que ultrapassa
o simples direito à moradia. Este abrange, dentre outras coisas, a participação
democrática dos indivíduos, a equidade de oportunidades e a busca pela
eliminação das desigualdades sociais, possuindo um aspecto profundamente
ligado a eliminação das disparidades e a efetivação de outros diretos com ele
relacionados, tal como o direito fundamental ao lazer, expresso no art. 6º da
CF/88. Para estabelecer-se uma definição do direito à cidade, cita-se o que
leciona Eva Garcia Chueca (2016, p. 11), a saber:

The right to the city is the outcome of decades of collective and bottom-
up creation that epitomizes a new paradigm providing an alternative
framework to re-think cities and human settlements on the basis of the
principles of social justice, equity, democracy and sustainability. It
envisions the effective fulfillment of all internationally agreed human
rights and Sustainable Development Goals, while dealing with a
dimension of urban problems that classic human rights’ standards do
not tackle: spatial exclusion, its causes and consequences. On this
basis, the right to the city consists in the right of all inhabitants (present
and future; permanent and temporary) to use, occupy, produce, govern
and enjoy just, inclusive, safe and sustainable cities, villages and
settlements defined as common goods.2

Contemporaneamente, com base nas diretrizes determinadas pelo EdC,


junto ao que fora estabelecido no sistema internacional de proteção dos direitos
humanos, existe uma discussão quanto à existência de um direito fundamental
à cidade sustentável, que seria um aspecto do direito à cidade, alçando como de
vital importância para este o caráter da sustentabilidade, não apenas do ponto
de vista ambiental, mas também social, cultural, geográfico, econômico e
político.
Este direito se insere em um contexto em que a sustentabilidade se
estabelece como uma preocupação de todos os agentes, sejam ele os
indivíduos, a sociedade, os Estados ou as Organizações não governamentais. A
necessidade de se pensar os aglomerados urbanos sob o ponto de vista
sustentável é demonstrada pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS), assentado na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU)
por meio do ODS número 11 que se resumo em “Tornar as cidades e os
assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”.
De acordo com a Agenda, os Estados signatários se comprometem a até
2030 unir esforços e cooperar para “garantir o acesso de todos à habitação
segura, adequada e a preço acessível, e aos serviços básicos e urbanizar as
favelas”, “aumentar a urbanização inclusiva e sustentável, e as capacidades para

2 O direito à cidade é o resultado de décadas de criação coletiva e de baixo para cima que
sintetiza um novo paradigma, proporcionando um quadro alternativo para repensar as cidades e
assentamentos humanos baseado nos princípios de justiça social, equidade, democracia e
sustentabilidade. Ela prevê o cumprimento efetivo de todos os direitos humanos acordados
internacionalmente e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, ao lidar com uma
dimensão de problemas urbanos que os direitos humanos clássicos não abordam: exclusão
espacial, suas causas e consequências. Nesta base, o direito à cidade consiste no direito de
todos os habitantes (presente e futuro; permanente e temporária) para usar, ocupar, produzir,
governar e desfrutar de cidades aldeias, e assentamentos, inclusivos, seguros e sustentáveis,
definidos como bens comuns. (tradução nossa).
1461

o planejamento e gestão de assentamentos humanos participativos, integrados


e sustentáveis, em todos os países” e “proporcionar o acesso universal a
espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e verdes, particularmente para
as mulheres e crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência”. (ONU,
2015).
Assim, resta avaliar se nesse contexto o direito à cidade sustentável se
identifica como um direito fundamental.

2. A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO E A SUA CARACTERIZAÇÃO COMO


TAL

Os Direitos Fundamentais, importante destacar, representam a dimensão


dos diretos humanos que se insere no âmbito interno dos Estados. Os direitos
humanos carecem, nos sistemas jurídicos atuais, de sanções aplicáveis ao seu
descumprimento. Em que pese os instrumentos internacionais de direitos
humanos prevejam punições para os Estados que não observem os seus
dispositivos, estes ainda não possuem efetividade que suficientemente coíba a
prática ou repare o dano. Em razão de ausência de ferramentas, os Direitos
Fundamentais são imprescindíveis para que seja dada eficácia aos direitos
humanos, dotando-os de materialidade e ampliando a realidade da ordem
constitucional os ditames de proteção à pessoa humana.
É necessário questionar-se o que dota o direito de seu caráter de
fundamental. Sendo a resposta para tal questionamento importante para a
compreensão se o direito à cidade sustentável é um direito fundamental.

Nesta perspectiva, é preciso enfatizar que, no sentido jurídico-


constitucional, determinado direito é fundamental não apenas pela
relevância do bem jurídico tutelado considerado em si mesmo (por
mais importante que seja), mas especialmente pela relevância daquele
bem jurídico na perspectiva das opções do constituinte, acompanhada
da atribuição da hierarquia normativa correspondente e do regime
jurídico- constitucional assegurado pelo constituinte às normas de
direitos fundamentais. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p.
350-351).

Do que lecionam Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2017, p. 350-351), pode-se


estabelecer que para se compreender um direito como sendo fundamental é
necessário que o bem jurídico por ele tutela seja relevante e que o constituinte o
atribua uma hierarquia normativa que seja superior a das leis comuns.
Em um sentido jurídico-filosófico, Robert Alexy refere-se a Immanuel Kant
ao discorrer sobre o caráter de fundamentalidade dos direitos (1911, p. 237 apud
ALEXY, 2012, p. 181), que ensinou como sendo seu fundamento “a liberdade
(independência de ser coagido pelo arbítrio de outrem), desde que possa existir
em conjunto com a liberdade dos outros com base em uma lei geral”, identifica-
se como direito “único, original e conferido a todos”, em razão de sua
“humanidade”, que se demonstra, segundo Kant, na capacidade racional do
indivíduo.
Por sua vez, Larenz compreendia como sendo os direitos fundamentais
baseados em uma concepção, que embora seguisse no mesmo direcionamento
de Kant, deste se diferenciava, pois se partia de uma relação jurídica e não de
concepções atreladas ao direito natural ou a critérios de racionalidade, mas sim
ao que filósofos como Thomas Hobbes e John Locke denominariam de contrato
1462

social. Veja-se “nós entendemos que a relação jurídica fundamental é o direito


de alguém a ser respeitado por todos como pessoa e, ao mesmo tempo, o seu
dever, em relação aos outros, de respeitá-los como pessoas (...). Nessa relação,
o ‘direito’ de uma pessoa é aquilo que lhe cabe ou lhe é devido enquanto pessoa,
e aquilo que os outros são obrigados ou vinculados a lhe garantir ou a respeitar”.
(LARENZ, 1935, p. 60 apud ALEXY, 2012, p. 181).
Assim, Alexy explica que para se compreender a fundamentalidade de um
direito, deve-se analisar a forma como este é constituído, em atenção aos seus
pressupostos ético-filosóficos e jurídico-dogmáticos. No primeiro caso, a
fundamentalidade esta lastreada pela relevância social e moral que o direito
possui perante a sociedade. Por sua vez, no que diz respeito a segunda hipótese
a fundamentalidade está baseada na forma como o direito está inserido na
ordem jurídica, atendendo a requisitos de hierarquia que a atribuem validade.
Em se tratando do direito fundamental à cidade sustentável, podemos
situar o seu fundamento ético-filosófico na importância que as cidades e seus
elementos possuem para a dignidade da pessoa humana, funcionando como
espaço onde os seus direitos humanos à vida, à saúde, ao meio ambiente
equilibrado, ao lazer e outros demais, se desenvolvem, sendo o controle do
aspectos do desenvolvimento urbano uma forma de tutela-los. Nesse sentido,
essa faceta do direito à cidade encontra reflexos distantes na obra de Lefebvre,
quando ele nos diz que:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito


à liberdade, à individualização na socialização ao habitat e ao habitar.
Direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem
distinto do direito à propriedade) (LEFÈBVRE, 2010, p. 134).

Por sua vez, no que concerne ao fundamento jurídico-dogmático, o direito


a cidade embora não esteja estabelecido literalmente na CF/88, pode ser
compreendido numa análise sistêmica do ordenamento jurídico, não se
esgotando nas diretrizes de planejamento urbano, mas se coadunando com
outros direitos de igual fundamentalidade, tal qual o direito social ao lazer, o
direito ao meio ambiente. É dizer que o direito em comento se origina de outros
direitos fundamentais e pela eficácia destes, pode ter a sua eficácia constatada.
De acordo com Welter e Pires (2010, p.64-65), o direito fundamental à
cidade sustentável pode ser constatado com base nos seguintes postulados: a)
função social da propriedade; b) direito social à moradia; c) direito à democracia
participativa; d) direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e d)
princípio da dignidade da pessoa humana.
Embora possa parecer complexo estabelecer um direito partindo-se de
outros, já existe no ordenamento jurídico um número considerável de direitos,
princípios e institutos que se originam da interpretação sistemática da ordem
jurídico-constitucional em conjunção com o previsto no sistema internacional de
proteção dos direitos humanos. É o caso do mínimo existencial que mesmo não
positivado, decorre da dignidade da pessoa humana. Portanto, o direito
fundamental à cidade sustentável pode ser considerado como tal, inserindo-se
no ordenamento jurídico brasileiro com base numa análise sistemática das
diversas normas internas e internacionais que exprimem o pressuposto básico
deste direito, qual seja a garantia da dignidade da pessoa humana nas relações
e desigualdades que se estabelecem nos aglomerados urbanos.
1463

CONCLUSÃO

Nas últimas décadas, especialmente a partir do pós-guerra, com a


Declaração Universal dos Direitos Humanos, o modo como a cidade e os
indivíduos se relacionam foi alterada drasticamente. A ocupação geográfica
passou a ser balizada não apenas por interesses individuais e com o único
objetivo de ocupação ou exploração, mas sim por um conjunto de direitos
humanos e princípios que procuram estabelecer a cidade como espaço de
desenvolvimento humano.
Analisando-se o ordenamento jurídico brasileiro, e em atenção aquilo que
se encontra previsto nas normas internacionais de proteção de direitos humanos,
é capaz constatar a existência do direito fundamental à cidade sustentável, que
se constrói num contexto de mudanças políticas, sociais e econômicas. Nesse
sentido, a pedra de torque da forma como se concebem as cidades passa a se
identificar pela forma em que essas são voltadas aos indivíduos que nelas
habitam. Além disso, é possível identificar o direito fundamental à cidade
sustentável como produto do Estado Democrático de Direito.
O direito fundamental à cidade sustentável logra como aspecto relevante
a sua capacidade em conjugar em si diversas feições, tutelando direitos que vão
desde o direito fundamental ao meio equilibrado à proteção da dignidade da
pessoa humana, estabelecendo às cidades um significado que ultrapasse a
simples ocupação do espaço geográfico.

REFERÊNCIAS

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Kimberly e Mariana. São Paulo: El País, 2018.

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Acesso em: 05 out. 2019.
1465

O FOMENTO À PRODUÇÃO DE ALIMENTOS ORGÂNICOS EM


ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA COMO ALTERNATIVA DE
POLÍTICA AGRÍCOLA SUSTENTÁVEL
THE PROMOTION OF ORGANIC FOOD PRODUCTION IN AGRARIAN
REFORM SETTLEMENTS ASAN ALTERNATIVE TO SUSTAINABLE
AGRICULTURAL POLICY

Eduardo Henrique Magiano Perdigão Lima Cardoso Ferro


Dauana Bottoni Vanzela
Orientador(a): Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: O presente estudo tem como objetivo demonstrar o fomento da


Administração Pública para a produção de alimentos orgânicos nos projetos de
assentamento de Reforma Agrária do Brasil como alternativa de política pública
agrícola sustentável. A pesquisa síntese sobre a Reforma Agrária no Brasil, como
política de assistência e de desenvolvimento. A partir disto, parte do marco
teórico de Amartya Sen sobre o desenvolvimento como liberdade, em que a ética
e a economia devem andar ladeadas para a promoção do desenvolvimento
sustentável. Assim, examina as políticas públicas agrícolas do Brasil e a
importância do fomento na produção de alimentos orgânicos como alternativa
sustentável ao atual modelo de produção agrícola.
Palavras-chave: Reforma agrária. Alimentos orgânicos. Fomento.

Abstract: The present study aims to demonstrate the promotion of Public


Administration for the production of organic food in the Brazilian Agrarian Reform
settlement projects as an alternative to sustainable agricultural public policy. The
research synthesis about the Agrarian Reform in Brazil, as assistance and
development policy. From this, part of Amartya Sen's theoretical framework on
development as freedom, in which ethics and economics must be flanked to
promote sustainable development. Thus, it examines Brazil's agricultural public
policies and the importance of promoting organic food production as a
sustainable alternative to the current agricultural production model.
Keyword: Land reform. Organic foods. Fomentation.

1. INTRODUÇÃO

O planeta enfrenta uma crise ambiental sem precedentes. A ação


destrutiva causada pelo ser humano de seu próprio habitat tem gerado o
aquecimento global e derretimento das calotas polares, secas, tornados,
terremotos e diversos fenômenos climatológicos que colocam em risco a própria
espécie.
Dentro deste cenário, podem ser apontados como um dos principais
causadores do desequilíbrio ambiental os atuais modelos de política agrícola de
latifúndio de monocultura, tanto pelo desmatamento, como pela forma de
produção com base no uso desenfreado de agrotóxicos que afetam todo o
sistema.
Referido modelo traz à reflexão a teoria de Amartya Sem sobre o que é
desenvolvimento e o papel da ética e outros princípios subjacentes na sua
promoção. A análise apenas de aspectos econômicos como PIB, renda per
capta, etc., no desenvolvimento de uma nação traz desigualdade e compromete
1466

o compromisso de prevalência de direitos fundamentais para todos.


Surge, então, o conceito de desenvolvimento sustentável, de forma que o
desenvolvimento de uma nação não seja considerado apenas sob a ótica
econômica, mas de forma que se assegure os direitos sociais e a
sustentabilidade ambiental para a atual e futuras gerações.
O presente estudo pretende analisar modelos já existentes de políticas
agrícolas compatíveis com o desenvolvimento sustentável no Brasil em que a
Administração Pública atua como agente de fomento na produção de alimentos
orgânicos em projetos de assentamento de reforma agrária. Por se tratar de uma
pesquisa exploratória e descritiva utilizar-se-á o método dedutivo.

2. A REFORMA AGRÁRIA COMO POLÍTICA DESENVOLVIMENTISTA.

A reforma agrária é uma política pública de reorganização da estrutura


fundiária com o objetivo de promover e proporcionar a redistribuição das
propriedades rurais improdutivas no Brasil. Em seu âmago, intenciona-se
desapropriar um latifúndio que não cumpre sua função social e redistribuí-lo em
várias parcelas a ser destinada a uma família de camponeses para desenvolver
a agricultura familiar.
A Constituição da República, embora reserve o Capítulo III como “DA
POLÍTICA AGRÍCOLA E FUNDIÁRIA E DA REFORMA AGRÁRIA”, não traz uma
definição sobre o programa e seu significado, trazendo apenas uma das
hipóteses de aquisição do imóvel que é a desapropriação e, implicitamente,
demonstrando que a distribuição de terra visa eliminar imóveis rurais que não
cumpram sua função social1.
Benedito Marques e Carla Marques afirmam que o regime sesmarial
empregado no processo de colonização do Brasil e o vácuo legislativo entre a
extinção das sesmarias – que se deu em 1822 - e o advento de uma lei
reguladora de aquisição de terras – o advento da Lei de Terras se deu em 1950
– é a principal causa das concentração de extensas áreas nas mãos de poucos
(MARQUES e MARQUES, 2017, p. 125).
A Lei n. 601/50 (Lei de Terras), cujo escopo era corrigir as distorções
apontadas, não solucionou o grave problema da má distribuição de terras, nem
mesmo com a mudança para o regime Republicano.
Somente após as recomendações da “Carta de Punta del Este”, da qual
o Brasil foi signatário, a qual se construiu em documento no Congresso realizado
em 1960, no Uruguai, sob o patrocínio da “Aliança para o progresso”, além de
um certo grau de conscientização ocorrida em alguns segmentos da opinião
pública, provavelmente não teríamos a então norma mais importante do Brasil
de regulação de política agrícola de aquisição de terras: o Estatuto da Terra
(MARQUES, 2017, p. 126).
A Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1.964, veio finalmente dar contornos
essenciais para a configuração da reforma agrária no Brasil. A intenção
legislativa à época era tentar corrigir mais de três séculos de regime sesmarial
no Brasil. Pela primeira vez o país obteve uma legislação específica sobre a
reforma agrária e seus propósitos de justiça social.
A proposta do Estatuto da Terra era de fazer da reforma agrária um
instrumento de política pública de reordenamento da distribuição de terra no

1Art. 184 da Constituição da República Federativa do Brasil


1467

Brasil, aplicando-se justiça social e visando o aumento da produtividade,


levando-se em conta o progresso e o bem-estar do trabalhador rural, bem como
o desenvolvimento econômico do país.
Como se pode observar, a política de reforma agrária detém aspectos
tanto em relação à assistência social – que é a redistribuição de terras ao
agricultor familiar – como em relação ao desenvolvimento econômico regional –
que é a implementação de uma comunidade para efetivar a produtividade de um
então latifúndio improdutivo.
Assim, tem-se na reforma agrária dois marcos importantes: a
redistribuição fundiária (espaço físico) e a reforma agrícola (atividade econômica
e social), considerados essenciais para o desenvolvimento
econômico e social de um país.

3. A IMPORTÂNCIA DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS ORGÂNICOS PARA


A SUSTENTABILIDADE

Amartya Sen traz à discussão sobre o desenvolvimento uma análise


crítica da função de liberdade e igualdade na delimitação do que é e de como se
interpreta o desenvolver-se (SEN, 2010).
Ele faz uma análise dos aspectos técnicos precípuos da economia como
o PIB, renda per capta, etc, como meio para se pensar e realizar a expansão de
liberdades, rompendo com um modelo de interpretação de desenvolvimento em
que a economia é o único meio legítimo e capaz de medir o desenvolvimento de
uma nação.
Sobre este aspecto, a aproximação de desenvolvimento e liberdade se
insere na tentativa de pensar um modelo justo para o mundo contemporâneo.
Pauta-se, assim, uma reaproximação entre economia e ética, ao invés de um
mero pensamento pragmático de autointeresse e distanciamento do
comportamento individual do comportamento social.
Para Sen, portanto:

Pode-se dizer que a importância da abordagem ética diminuiu


substancialmente com a evolução da economia moderna. A
metodologia chamada “economia positiva” não apenas se esquivou da
análise econômica normativa como também teve o efeito de deixar de
lado uma variedade de considerações éticas complexas que afetam o
comportamento humano real e que, do ponto de vista dos economistas
que estudam esse comportamento, são primordialmente fatos e não
juízos normativos. Examinando as proporções das ênfases nas
publicações da economia moderna, é difícil não notar a aversão às
análises normativas profundas e o descaso pela influência das
considerações éticas sobre a caracterização do comportamento
humano real (SEN, 1999, p. 23).

Para o desenvolvimento sustentável é necessário que haja uma


harmonização entre o desenvolvimento econômico, a preservação do meio
ambiente, a justiça social (acesso a serviços públicos de qualidade), a qualidade
de vida e o uso racional dos recursos da natureza). Ou seja, a ética e a economia
ladeadas.
A Constituição da República elencou diversas normas imediatas e
programáticas para o desenvolvimento sustentável. Inovou sobre o tema em
relação às Constituições anteriores pela primeira vez quando, ao tratar do meio
1468

ambiente, citou a necessidade do seu desenvolvimento equilibrado para garantia


do direito das futuras gerações2.
Vladmir Silveira e Lívia Campello trazem contornos sobre o conceito de
desenvolvimento sustentável:

A definição mais emblemática de “desenvolvimento sustentável” é a


estabelecida no relatório Nosso Futuro Comum, o
“Relatório Brundtland” de 1987, da Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, que afirma: “A humanidade tem a
capacidade de realizar o desenvolvimento sustentável – para garantir
que ele atenda às necessidades do presente, sem comprometer a
capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias
necessidades”.
Ademais, o conceito de desenvolvimento sustentável não implica
limites em termos absolutos, mas limitações impostas pelo atual estado
da tecnologia e organização social sobre os recursos ambientais, e
pela capacidade da biosfera para absorver os efeitos de atividades
humanas. Mas a tecnologia e organização social podem ser geridas e
melhoradas para abrir caminho para uma nova era de crescimento
econômico”. E, ainda, em essência, o desenvolvimento sustentável é
um “processo de mudança no qual a exploração dos recursos, a
direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento
tecnológico e a mudança institucional, estão todos em harmonia para
melhorar tanto o potencial atual como futuro, a fim de atender às
necessidades e aspirações humanas (CAMPELLO e SILVEIRA, 2016,
P. 549-572).

Dentro deste contexto, no Brasil surge um debate preocupante sobre a


produção de alimentos e manejo da agricultura. No país, prevalece um modelo
de grandes latifúndios de monocultura cuja produção é voltada à exportação,
sendo tal atividade o grande diferencial para garantir o superávit da balança
econômica.
Tal política agrícola tem se sustentando a partir do progressivo uso
desenfreado de agrotóxicos e outras substâncias químicas em seu processo
produtivo. Em apenas dez meses de Governo do atual Presidente da República
já foram liberados 325 novos agrotóxicos e outras substâncias químicas
aplicados diretamente no solo e nas plantações3.
O uso indiscriminado de agrotóxicos nos grandes latifúndios voltados à
agricultura no país é assunto urgente porque suas consequências são imediatas
e seus efeitos nocivos detêm longo prazo. A maneira como os alimentos são
produzidos interfere não somente na saúde de quem vai comê-los, mas também
em todo o ambiente de produção, além de outros fatores ambientais de escala
global que são afetados.
Um dos grandes debates hoje sobre o uso de agrotóxicos é a apicultura.
O uso indiscriminado de agrotóxicos está aniquilando as abelhas e esse é um
problema mundial. As consequências são sentidas diretamente na produção de
alimentos. É que as abelhas são responsáveis pela polinização das plantas,
elemento crucial do ciclo da natureza, logo, essenciais para a sobrevivência da
vida no planeta.

2Id. Art. 225.


3Disponível em <https://revistaforum.com.br/brasil/com-aval-de-ruralistas-na-camara-governo-
bolsonaro-libera-mais-63-agrotoxicos-e-numero-chega-a-325/> Acesso em 06 de outubro de
2019.
1469

As plantas que têm flor precisam ser polinizadas para produzir sementes
e sobreviver e quem faz esse trabalho são as abelhas. Considerando que cerca
de dois terços da dieta dos seres humanos vêm de plantas polinizadas, caso
esse ritmo continue, de acordo com estudos, há indicação de que em 2035 as
abelhas estarão extintas (USP, 2019)4.
Os principais inimigos das abelhas são os agrotóxicos neonicotinoides,
uma classe de inseticidas derivados da nicotina, como por exemplo o
Clotianidina, Imidacloprid e o Tiametoxam. A diferença para outros venenos é
que eles têm a capacidade de se espalhar por todas as partes da planta. Por
isso, costuma ser colocado na semente, e tudo acaba com vestígios: flores,
ramos, raízes e até no néctar e pólen. Eles são usados em diversas culturas
como de algodão, milho, soja, arroz e batata.5
Além do aspecto global, a questão dos agrotóxicos também coloca em
risco à saúde de quem se alimenta e o meio ambiente da produção agrícola. Os
danos causados por esses produtos na população, principalmente nos
trabalhadores e comunidades rurais, e no meio ambiente.
Da contaminação dos alimentos, da terra, das águas – que em algumas
situações torna-se imprópria para o consumo humano – temos a intoxicação de
seres vivos, como os mamíferos (incluindo o homem), peixes, aves e insetos.
Regiões com alto uso de agrotóxicos apresentam incidência de câncer6 bem
acima da média nacional e mundial.
E é neste cenário que hoje predomina a política agrícola brasileira que
surge como alternativa a cultura dos alimentos orgânicos, que são aqueles
produzidos com métodos que não utilizam agrotóxicos sintéticos, transgênicos
ou fertilizantes químicos. As técnicas usadas no processo de produção respeitam
o meio ambiente e visam manter a qualidade do alimento.
Para produzir alimentos orgânicos o produtor deve fazer um plano de
manejo orgânico, ou seja, um planejamento de ações, o que auxilia como
manejar a produção e seguir o caminho para a sustentabilidade.
A produção de alimentos orgânicos visa produzir alimentos de qualidade
nutritiva, seguros e em quantidade suficiente. E os benefícios não se restringem
à qualidade do alimento. O plano de manejo de alimentos orgânicos visa
conservar e aumentar a qualidade do solo a longo prazo, manter a
agrobiodiversidade do sistema de produção, utilizar recursos renováveis e criar
um equilíbrio econômico entre agricultura e pecuária visando o desenvolvimento
sustentável.

4. O FOMENTO À PRODUÇÃO DE ORGÂNICOS COMO POLÍTICA DE


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.

4Disponível em < https://jornal.usp.br/atualidades/uso-de-agrotoxicos-pode-levar-a-extincao-de-


abelhas/> Acesso em 28 de maio de 2019.
5Disponível em <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Meio-
Ambiente/noticia/2019/05/apicultores-brasileiros-encontram-meio-bilhao-de-abelhas-mortas-
em-tres-meses.html> Acesso em 28 de maio de 2019.
6A relação entre a incidência de câncer e o consumo de alimentos contaminados com agrotóxicos

é objeto de ampla pesquisa e apontadas pelo Instituto nacional do Câncer. Pesquisas


desenvolvidas pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO e a Fundação
Oswaldo Cruz – FIOCRUZ apontam para diversas doenças neurológicas, motoras e mentais,
além de distúrbios de comportamento e hormônios, entre outras, fato que deu ensejo ao “Dossiê
Abrasco”, publicado em 2015.
1470

O fomento é uma política pública propulsora para o agente privado exercer


o serviço público, mas a referida política não é necessariamente individualizada,
visto que o serviço público não se restringe à ótica de contraprestação
individualizada ou a um grupo, mas também a toda sociedade, como por
exemplo o fomento para o desenvolvimento regional sustentável.
Melina Girardi Fachin propõe o conceito de desenvolvimento que permeia
a Constituição de 1988 pode ser encarado sob um viés extrínseco e outro
intrínseco. O primeiro deles, presente em passagens como o art. 3º, II e o art.
174, §1º (que aludem a desenvolvimento nacional), diz respeito ao plano estatal,
relacionando-se com o crescimento da produção econômica e o equilíbrio da
estruturação organizacional e financeira do Estado. O segundo, de caráter
subjetivo, refere-se à implementação de condições materiais de existência digna,
que permitam a cada cidadão o livre desenvolvimento de sua personalidade
(FACHIN, 2010, p. 180-193).
Então veja-se: quando o Estado desapropria um grande latifúndio
improdutivo e implanta um projeto de assentamento de reforma agrária, desde
já se observa o fomento ao desenvolvimento regional local. O caráter intrínseco
da Reforma Agrária é a política de assistência social para beneficiar o agricultor
a ter sua terra para produzir. Já o seu caráter extrínseco, é a Administração
Pública fomentando a partir desses agricultores o desenvolvimento regional
local.
Quando da concessão dos lotes de reforma agrária, hoje com critérios
estabelecidos pela Lei n. 13.465/17, o beneficiário firma um contrato de
concessão de uso da terra com o INCRA e recebe um crédito inicial de instalação
para suas primeiras necessidades.
Posteriormente, o agricultor instalado pleiteia junto ao INCRA a
Declaração de Aptidão ao Pronaf -DAP. Referido documento é o seu passaporte
para acesso às políticas públicas de fomento, dentre elas o crédito rural do
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); a Política
Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural; e os programas de compras
públicas, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de
Alimentação Escolar (Pnae).
O PRONAF possui diversos subprogramas que são específicos para o
perfil do agricultor, sendo o PRONAF-Agroecologia responsável pelo
financiamento a agricultores e produtores rurais familiares, pessoas físicas, para
investimento em sistemas de produção agroecológicos ou orgânicos, incluindo-
se os custos relativos à implantação e manutenção do empreendimento. A partir
deste crédito de fomento o beneficiário do lote passa produzir alimentos
orgânicos.
É preciso compreender que a política de produção de alimentos orgânicos
está dentro das diretrizes da formulação de políticas agrícolas do país. A Lei n.
11.326/06 que estabelece o modelo de formulação da Política Nacional da
Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais apresenta princípios
e mecanismos para tanto. Veja-se:

Art.4 A Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos


Familiares Rurais observará, dentre outros, os seguintes princípios:
(...)
II - sustentabilidade ambiental, social e econômica;
(...)
1471

Art. 5o Para atingir seus objetivos, a Política Nacional da Agricultura


Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais promoverá o
planejamento e a execução das ações, de forma a compatibilizar as
seguintes áreas:
I - crédito e fundo de aval;
II - infraestrutura e serviços;
III - assistência técnica e extensão rural;

Invoca-se da leitura da lei que a formulação de políticas de agricultura da


Administração Pública vai além da mera concessão de crédito, como também a
disponibilização de infraestrutura e a disponibilização de serviços de assistência
técnica e extensão rural.
A assistência técnica oferecida pelo Governo Federal ao assentado se dá,
via de regra, pela formação de Convênios entre o INCRA e órgãos estaduais e
municipais para a contratação de profissionais que realizam assistência técnica
dentro dos assentamentos de reforma agrária.
Além disto, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA
possui um órgão especializado na prestação desse serviço, a Agência Nacional
de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater). A agência é responsável por
promover programas de assistência técnica e extensão rural e a integração do
sistema de pesquisa agropecuária; qualificar profissionais de assistência técnica
e extensão rural; e incentivar a inovação tecnológica e a apropriação de
conhecimentos científicos de natureza técnica, econômica, ambiental e social.
A instituição também é responsável por credenciar e monitorar entidades,
públicas e privadas, que pretendem prestar serviços de assistência técnica;
contratar serviços de assistência técnica e extensão rural; realizar parcerias com
órgãos públicos e entidades privadas; e universalizar os serviços prestados a
todos os pequenos e médios agricultores.
O fomento à produção de alimentos orgânicos no Brasil não se restringe
à concessão de terra, crédito e assistência à produção. O Governo Federal
possui programas específicos para o escoamento da produção desses
alimentos, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é uma ação do
governo federal que garante a alimentação escolar a todos os estudantes dos
ensinos infantil, fundamental e médio das escolas públicas e filantrópicas. Isso
acontece por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento para a Educação
(FNDE), que repassa os recursos financeiros para todos os estados e
municípios7
A Lei 11.947/09 dispõe que do total dos recursos financeiros repassados
pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser
utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura
familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-
se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas
e comunidades quilombolas.

7Orgânicosna alimentação escolar: a agricultura alimentando o saber. Cartilha de informação à


população elaborada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, Fundo Nacional de
Desenvolvimento á Educação – FNDE e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento –
MAPA.
1472

5. CONCLUSÃO

A política agrícola hoje praticada no Brasil vem comprometendo a saúde


pública, o meio ambiente e causando danos que ecoam em todo o planeta. A
liberação de agrotóxicos e substâncias químicas nos grandes latifúndios de
monocultura voltados à exportação no Brasil demonstram um caráter
governamental de que o desenvolvimento se resume apenas ao aspecto
econômico, o que vai de encontro a própria Constituição.
Através da política de Reforma Agrária o Brasil possui diversas diretrizes
para que a Administração Pública promova o manejo sustentável da terra com a
produção de alimentos orgânicos. Em um modelo de fomento que começa desde
a redistribuição da terra que não cumpria a função social da propriedade,
passando pelo processo de produção, comercialização e incentivos, é possível
a reversão da atual forma de que se pratica a política agrícola para uma
alternativa em consonância com a sustentabilidade.
Em que pese a diversidade de normativas sobre a produção de alimentos
orgânicos no Brasil, principalmente com foco no agricultor familiar dentro dos
projetos de assentamento de reforma agrária, as normas possuem em sua
maioria caráter programático e precisam de efetividade para que se consolide a
política de sustentabilidade.

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possível ressigni8cação entre a Constituição Brasileira e o Sistema
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1473

UMA ANÁLISE SOBRE O PROJETO DE LEI DA CÂMARA N° 27, DE 2018


AN ANALYSIS ON THE CHAMBER'S LAW PROJECT NO. 27, 2018

Amanda Szolnoky Ferreira Cabral Bambini Silva


Orientador(a): Valter Moura do Carmo

Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo analisar o projeto de lei (PLC
27/2018) do deputado Ricardo Izar (PP-SP). De acordo com o texto, os animais
não poderão mais ter o status de objeto. O projeto estabelece que os animais
passam a ter natureza jurídica sui generis, como sujeitos de direitos
despersonificados, ou seja, passam a ser reconhecidos como seres dotados de
natureza biológica e emocional e passíveis de sofrimento. Para esta análise foi
utilizado, em especial, o método de pesquisa bibliográfica, considerado por
muitos como o início de toda pesquisa. Os resultados da pesquisa apontam a
tendência aplicação dos direitos fundamentais aos animais.
Palavras-chave: Animais. Direitos. Lei.

Abstract: This research aims to analyze the bill (PLC 27/2018) of Deputy Ricardo
Izar (PP-SP). According to the text, animals can no longer have the status of
object, the bill establishes that animals become sui generis legal nature, as
subjects of depersonified rights. That is, they are now recognized as beings
endowed with biological and emotional nature and capable of suffering. For this
analysis it was used, in particular, the method of bibliographic research,
considered by many as the beginning of all research. The research results show
the tendency to apply fundamental rights to animals.
Keywords: Animals. Rights. Law.

INTRODUÇÃO

Neste artigo iremos discutir um assunto de grande importância para


algumas pessoas, entretanto pode ser considerado uma perda de tempo para
outras, porém, o que não se pode negar, é que seja um assunto cada vez mais
discutido nos tempos atuais. No dia 19 de agosto deste ano, foi aprovado um
projeto de lei que faz com que animais não sejam mais considerados "coisas",
mas sim serem passíveis de sentir dor e/ou sofrimento. O objetivo desse novo
projeto é o de trazer mudanças na lei contra os maus tratos aos animais, tendo
aflorado discussões se esse projeto vai incidir/prejudicar as atividades do
agronegócio, uma vez que a atividade é de extrema importância para a economia
brasileira.
Com essas mudanças previstas no projeto de lei, alguns especialistas
temem que ele possa criar dificuldades para a criação de gado, uma vez que não
diferencia os animais domésticos dos animais criados para o abate, além de não
diferenciar, também, dos animais que causam incômodos (como ratos, pombos
etc.). Além disso, o projeto deixaria os pedidos de habeas corpus para os animais
muito mais fáceis de ocorrer, o que corroboraria com o que os defensores dos
animais defendem.

DESENVOLVIMENTO
1474

Em países como Inglaterra e Estados Unidos, existe um ramo do Direito


que ainda é pouco conhecido no Brasil, o Direito Animal. No Direito Civil, animais
são tratados como coisa corpórea, móvel e fungível. Ou seja, nosso Código Civil
equipara os animais a qualquer outro objeto, desprovido de direito próprio e só
identificado enquanto tutelado por alguém. Mais especificamente, animais
integram a categoria das “coisas móveis semoventes”, ou seja, são “coisas” que
se movem por si mesmas.
Um exemplo que reforça a ideia de coisa é o artigo 920 do CC que fala da
“venda de animais defeituosos” e o artigo 1046 debruça-se sobre o “aluguer de
animais”.
A dificuldade em proteger os chamados elementos naturais (como o ar, a
água, a fauna e a flora) se dá pelo fato de não serem bens que podem ser
apropriados pelo homem e nem resguardados pelo direito de propriedade, o que
vem levando um número cada vez maior de juristas e filósofos a questionar o
modelo antropocentrista e afirmar que: tão importante quanto a dignidade
humana para a sociedade é a dignidade da natureza. Em outras palavras, para
que o Homem possa usufruir da natureza, é preciso parar de tratá-la como um
simples ambiente e comece a tratá-la como uma entidade dona de sua própria
dignidade.
Entretanto, o projeto de lei n° 27, de 2018, foi criado com a intenção de
mudar esse status dos animais. O texto desse projeto procura trazer mais direitos
aos animais não humanos, como a sua proteção (art. 2°, II do texto inicial), o
reconhecimento de sua natureza biológica e emocional (art. 2°, III, do texto
inicial), além de afirmar que apesar de não serem humanos, possuem uma
natureza jurídica sui generis, vedando assim o seu tratamento como coisa (art
3°, do texto inicial).
O Brasil não é o único país a mudar o modo como os animais são vistos,
juridicamente falando. Desde 1988, na Áustria, os animais não são coisas; na
Holanda, desde 2011; França, desde 2015; Portugal, desde 2017; mesmo na
nossa vizinha Argentina que, em abril de 2017, concedeu um habeas corpus a
um chimpanzé chamado Cecilia. Ela foi transferida de um zoológico argentino,
onde vivia presa e sem ter contato com nenhum outro animal de sua espécie,
para um santuário no Brasil, onde vive atualmente acompanhada de cerca de 50
outros chimpanzés.
Mesmo no Estado brasileiro, já tivemos casos de habeas corpus em favor
de animais. Como é o caso do chimpanzé Jimmy, que estava preso em um
zoológico, privado do seu direito de liberdade de locomoção e de vida digna. O
pedido do habeas corpus foi feito com base no artigo 5°, LXVIII da Constituição
Federal de 1988, que diz: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém
sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.” Percebe-se que não se diz
“pessoa” ou “ser humano”, mas sim “alguém”, o que leva os protetores dos
animais a se utilizarem do artigo para retirar animais de locais onde eles estão
sendo abusados ou privados de seus direitos (GORDILHO, 2010).
Além disso, temos também no Brasil o caso do chimpanzé Suíça, que
estava aprisionada no Jardim Zoológico de Salvador, sendo privado, portanto,
de seu direito à liberdade de locomoção. A jaula também estava com problemas
de infiltração, podendo trazer problemas de saúde ao chimpanzé. Nesse habeas
corpus foi utilizado como argumento principal o artigo 5°, LXVIII, de modo
semelhante ao caso citado anteriormente (GORDILHO, 2006).
1475

Obviamente, é importante ressaltar que nem tudo é tão simples. Uma das
principais críticas a esse projeto é que não há nada nele que especifique o que
é maltrato e o que não é. Esse fato pode, e provavelmente afetará, e muito, o
agronegócio brasileiro, pois como a lei é breve, pode ser distorcida, causando
medo naqueles que dependem da criação de gado para o abate. Também
afirmam que os defensores dos animais mais extremos podem se utilizar dessa
lei para a defesa de animais considerados incômodos, como ratos, lagartos,
pombas etc.
Como vemos, o reconhecimento da dignidade e dos direitos fundamentais
dos animais têm um desdobramento de extrema importância para o direito do
país, mesmo que não leve ao reconhecimento de uma personalidade jurídica.
Há quem diga também que os avanços dos direitos dos animais não se
dão somente por causa seus militantes, mas sim pela individualização cada vez
maior dos seres humanos. Com apartamentos cada vez menores e com cada
vez mais pessoas preferindo viver sozinhas, animais (como cães e gatos) vem
sendo uma das principais formas de companhia, fazendo com que as pessoas
cada vez mais desejem que esses seus companheiros de apartamento tenham
mais direitos.
Desde a antiguidade que se afirma que o ser humano é um animal social,
mesmo que a teoria contratualista tenha surgido para explicar sua formação, a
verdade é que o ser humano antes não conseguia viver sozinho, mas com os
avanços da tecnologia e com as mudanças na sociedade, cada vez mais o ser
humano se afasta da vida em sociedade e prefere viver recluso em um
apartamento. E conforme isso ocorre, também há um aumento dos números de
animais adotados/comprados por membros da sociedade e, como consequência
direita, ocorre cada vez mais um aumento dos direitos desses animais.
Um exemplo claro desse avanço é que, atualmente, um prédio não pode
proibir animais em um condomínio. No dia 14 de maio de 2019, o STJ decidiu
que um condomínio não pode proibir que seus moradores tenham animais
domésticos no apartamento. Pelo entendimento da Terceira Turma do tribunal,
as convenções do condomínio podem fazer restrições aos animais que
apresentarem riscos à saúde ou à segurança dos outros moradores, mas a
proibição completa de animais, ou somente a um tipo de animal, é ilegal.

CONCLUSÃO

Com tudo isso, podemos perceber que, mesmo que polêmicos, os


avanços dos direitos dos animais não podem ser impedidos. Em uma sociedade
que está em constante mudança, nada mais natural de que o Direito também
esteja sempre mudando, isto é, acompanhando as mudanças da sociedade. As
leis mudam, quase que diariamente, antigamente trair era crime previsto no
código penal (CP), mas, conforme a sociedade foi se transformando, acabou
sendo retirado do novo CP. A “coisificação” dos animais pode ser comparada de
maneira bem clara a essa situação, antigamente um animal não passava de um
adereço, hoje é quase como um membro da família e no futuro será um ser
detentor de direitos fundamentais inegáveis.
Atualmente, os animais são responsabilidade somente dos seus donos,
mas no futuro provavelmente os animais serão portadores de direitos
fundamentais, não exatamente iguais aos dos seres humanos atualmente, mas
ainda assim terão direitos que não poderão ser retirados deles. Em suma, no
1476

futuro, provavelmente próximo, animais não poderão ser tratados e comparados


como coisas, mas sim como animais.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DE DIREITOS ANIMAIS - ANDA (org.). Animais são


tratados pela lei como “coisas”. Jusbrasil, 27 mar. 2015. Disponível em:
https://anda.jusbrasil.com.br/noticias/177074974/animais-sao-tratados-pela-lei-
como-coisas. Acesso em: 9 out. 2019

CAPUCHA, Luiz. Não, as pessoas não são como os outros animais. Público,
Lisboa, Portugal, 6 nov. 2018. Disponível em:
https://www.publico.pt/2018/11/06/sociedade/opiniao/nao-pessoas-nao-sao-
animais-1850022. Acesso em: 9 out. 2019.

GORDILHO, Heron Santana. Habeas Corpus em favor de Jimmy, chimpanzé


preso no Jardim Zoológico de Niterói - Rio de Janeiro. Revista Brasileira de
Direito Animal, Salvador, v. 5, n. 6, p. 337-379, jan./jun. 2010. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/11080/7993. Acesso em:
10 out. 2019.

GORDILHO, Heron Santana. Habeas Corpus impetrado em favor da


chimpanzé Suíça na 9ª Vara Criminal de Salvador (BA). Revista Brasileira de
Direito Animal, Salvador, v. 1, n. 1, p. 261-280, 2006. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/10258/7314. Acesso em:
10 out. 2019.
1477

Grupo de Trabalho:

PROCESSO CIVIL E ACESSO À JUSTIÇA I


Trabalhos publicados:

A FOME E O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA: UMA


REFLEXÃO CONTEMPORÂNEA SOBRE O FENÔMENO MUNDIAL DA FOME

A MANUTENÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS: LIMITAÇÃO DA PROTEÇÃO


CONSTITUCIONAL À MATERNIDADE NA REFORMA PREVIDENCIÁRIA

ASPECTOS JURÍDICOS ACERCA DA DIFUSÃO DAS PLATAFORMAS


DIGITAIS PARA INVESTIMENTOS E NEGOCIAÇÕES DE PRECATÓRIOS
JUDICIAIS

BARREIRAS DISCRIMINATÓRIAS DO DIREITO BRASILEIRO

DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL O CONCEITO JURÍDICO DE PESSOA E


O INÍCIO DA PERSONALIDADE

JURISDIÇÃO EM PERSPECTIVA: O FRACASSO DA GRATUIDADE E A


LITIGÂNCIA SEM RISCO NOS JUIZADOS ESPECIAIS

MEDIAÇÃO: O MÉTODO ALTERNATIVO PARA ACESSO À ORDEM JURÍDICA


JUSTA E ADEQUADA

O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

O ACESSO DESJUDICIALIZADO À JUSTIÇA E O PROTAGONISMO DAS


SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS DE NOTAS E DE REGISTROS PÚBLICOS

O DIREITO SISTÊMICO COMO INSTRUMENTO DE HUMANIZAÇÃO NOS


CONFLITOS JURISDICIONAIS

O PARADIGMA DA RELAÇÃO ENTRE DEMOCRATIZAÇÃO DE ACESSO À


JUSTIÇA E RESPOSTA JURISDICIONAL EFETIVA
1478

A FOME E O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA: UMA


REFLEXÃO CONTEMPORÂNEA SOBRE O FENÔMENO MUNDIAL DA FOME
HAMBRE Y DERECHO HUMANO A LA COMIDA ADECUADA: UNA
REFLEXIÓN CONTEMPORÁNEA SOBRE EL FENÓMENO DEL HAMBRE
MUNDIAL
Durcelania da Silva Soares
Regina Vera Villas Bôas

Resumo: O presente estudo aprecia o vocábulo “fome” como um fenômeno


mundial, que assola grande parte da humanidade, desafiando a materialização
do Direito Humano à Alimentação Adequada, no enfrentamento das situações
de vulnerabilidades dela decorrentes. O fenômeno da fome designa uma enorme
preocupação mundial, razão pela qual a Organização das Nações Unidas para
Alimentação e a Agricultura (FAO) tem desenvolvido, no mundo inteiro, trabalho
relevante, relacionado à motivação e conscientização de centenas de governos
sobre a necessidade de assumirem compromissos internacionais, objetivando a
erradicação da fome. Valendo-se do método de investigação dialético,
desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica, documental e eletrônica, a
pesquisa conclui que os governos, vêm trabalhando, no combate à pobreza e à
fome, buscando a sua erradicação, mas muitas pessoas, ainda experimentam a
fome, de ambos os lados, é imperioso o reconhecimento da necessidade do
fortalecimento do valor do Direito Humano à Alimentação Adequada.
Palavras-Chaves: Fome. Fenômeno Mundial. Direito Humano à Alimentação
Adequada.

Resumen: El presente estudio aprecia la palabra "hambre" como un fenómeno


mundial que afecta a gran parte de la humanidad, desafiando la materialización
del derecho humano a una alimentación adecuada, al enfrentar las situaciones
de vulnerabilidad derivadas de él. El fenómeno del hambre es una gran
preocupación mundial, por lo que la Organización de las Naciones Unidas para
la Alimentación y la Agricultura (FAO) ha estado haciendo un trabajo relevante
en todo el mundo para motivar y sensibilizar a cientos de gobiernos sobre la
necesidad de asumir compromisos internacionales destinados a erradicar el
hambre. Utilizando el método de investigación dialéctica, desarrollado a través
de la investigación bibliográfica, documental y electrónica, la investigación
concluye que los gobiernos han estado trabajando para combatir la pobreza y el
hambre, buscando su erradicación, pero muchas personas aún experimentan
hambre en ambos lados, es imperativo reconocer la necesidad de fortalecer el
valor del derecho humano a una alimentación adecuada.
Palavras llave: Hambre. Fenómeno mundial. Derecho humano a una
alimentación adecuada.

INTRODUÇÃO

Desde os tempos remotos, o combate à fome e à pobreza marca


importante luta da pessoa humana, estando referida batalha, inscrita na própria
trajetória humana. A luta pelo direito humano à alimentação adequada,
brutalmente violado pelo próprio Estado garantidor, corrobora a transformação
deste Estado, em Estado violador.
1479

Atualmente, a fome continua presente nos inúmeros lares, moradias e


variadas residências de pessoas, reforçando vulnerabilidade que se atrelam a
debilidades, doenças, epidemias e mortes, atingindo pessoas de todas as
idades.
Nessa seara, o Direito Humano à Alimentação Adequada e o Direito
Fundamental Social à Alimentação devem materializar o acesso de todos à uma
alimentação diária suficiente, que atenda às necessidades nutricionais de cada
indivíduo, objetivando a garantia de uma vida ativa, saudável e digna.
Observa-se que, nos últimos anos, de um lado, a segurança alimentar tem
sido vista, pelos Estados nacionais e internacionais, como um problema e estes,
por sua vez, passam a tratar a questão do Direito Humano à Alimentação
Adequada, não como uma questão de política de Estado, mas sim, como uma
questão de política de Governo, tornando as questões caóticas, a cada mudança
de Governo. Em contrapartida, os indivíduos que sofrem com a fome contribuem
para o aumento da parcela da população em situação de vulnerabilidade social,
sempre que têm o seu direito à alimentação violado.
A presente pesquisa objetiva, também, apurar os valores dos
investimentos relacionados ao enfrentamento da fome, extraindo a situação atual
relacionada à (in) efetividade de referido Direito Fundamental Social no Brasil e
no mundo, o que é feito a partir da estrutura apresentada por Jean Ziegler, que
traz a problemática da fome, sob a percepção contemporânea, como um
fenômeno mundial que destrói, anualmente, dezenas de milhões de pessoas,
devendo, por isso, ser considerado como o “escândalo do século”.
A relevância da pesquisa se justifica pela total atualidade da temática, e
pela especificidade do tema proposto para o estudo, existindo um número restrito
de pesquisas verticalizas sobre a matéria, fato este que revela um empecilho a
ser enfrentado, e suscita a necessidade de se provocar inúmeros debates sobre
referida problemática.
Utilizou-se na elaboração da pesquisa o método de investigação dialético,
desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica, documental e eletrônica,
coletando-se dados de diversas fontes, entre outras, legislações, livros, revistas
e periódicos especializados na matéria, notadamente, os que se referem às
organizações internacionais.

1 A FOME: UM FENÔMENO MUNDIAL

Josué de Castro, na Conferência de Alimentação de Hot Springs, em


1948, aponta as “manchas negras” da fome mundial, e valendo-se da
terminologia “conspiração de silêncio em torno da fome”, alerta sobre a
necessário de quebra-las, afirmando que

[...] quarenta e quatro nações, através dos depoimentos de eminentes


técnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as
condições reais de alimentação dos seus respectivos povos e
planejaram as medidas conjuntas a serem levadas a efeito para que
sejam apagadas ou pelo menos clareadas, nos mapas mundi da
demografia qualitativa, estas manchas negras, que representam
núcleos de populações subnutridas e famintas, populações que
exteriorizam, em suas características de inferioridade antropológica,
em seus alarmantes índices de mortalidade e em seus quadros
nosológicos de carências alimentares [...] a penúria orgânica, a fome
global ou específica de um, de vários e, às vezes, de todos os
1480

elementos indispensáveis à nutrição humana. (CASTRO, 2003, p.


53).

A fome é um fenômeno antigo, que sempre esteve presente nas pautas


políticas internacionais, como uma grande preocupação de todos, e que ocupa
espaços importantes nas pautas governamentais, o que vem, assim, retratado
por Castro (2003, p. 12), ao prefaciar a primeira edição de Geografia da fome
“[...] para cada mil publicações tratando dos problemas da guerra, pode-se contar
com um trabalho acerca da fome”, sustentando, também, “ser o estrago feito pela
fome muito maior do que os estragos feitos pelas guerras e pelas epidemias
juntas”. Contudo, a partir do século XXI, a agenda internacional passou a ganhar
conotações bem mais definidas quanto à temática alimentar. É certo que, no
campo das relações internacionais, tem-se buscado a paz nos planos político e
econômico, paz esta que impõe levar-se os debates relacionados aos Direitos
Humanos e à Justiça Social para o âmbito internacional, o que corrobora as
reflexões e ações relacionadas à fome mundial, que passa a ocupar com
destaque a pauta internacional.
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura
(FAO) tem desenvolvido, no mundo inteiro, trabalho muito importante
relacionado à motivação e conscientização dos governos de inúmeros países,
sobre a necessidade de eles (governos) assumirem compromissos
internacionais, objetivando a erradicação da fome. Tanto é verdade que no
encontro da I Cúpula Mundial da Alimentação, em 1996, os líderes mundiais se
comprometeram a realizar esforços permanentes para erradicar a fome em todos
os países, extraindo do referido encontro, o objetivo imediato de reduzir pela
metade o número de pessoas subalimentadas, até o ano de 2015 (Declaração
de Roma, 1996).
Na segunda Cimeira Mundial sobre Alimentação em Roma, no ano de
2002, os chefes de Estado e de Governo reafirmaram o direito de todos, ao
acesso a alimentos seguros e nutritivos, conforme o direito fundamental de
abrigo contra a fome, que busca estabelecer diretrizes voluntárias ao alcance à
segurança alimentar de todos, no nível mundial (FAO, 1996).
A temática relacionada à segurança alimentar que ainda é um desafio a
ser enfrentado pela sociedade, necessita de ações ativas para ser superado,
observando-se, porém, que as comunidades internacionais não têm medido
esforços na busca da erradicação da fome no planeta, atuando a cooperação
internacional no sentido de convencerem os países a participarem da discussão
sobre a erradicação da fome, o que é, assim, anotado por Mota (2015, p. 58)

[...] a despeito de ter mudado o padrão de implementação dos


programas de cooperação internacional para a superação da fome, o
tema tem convencido outros países a participarem das discussões,
onde o tema é prioritário; como é o caso das chamadas nações
emergentes, entre elas, Brasil, a Índia e a China, e do restante do
mundo em desenvolvimento.

Percebe-se que, apesar de vários países estarem sensibilizados para a


questão da erradicação da fome no mundo, ainda se tem muito a discutir sobre
referido assunto, sendo Ziegler (2013,a, p. 79) categórico, ao questionar a
possibilidade de, diante da atual capacidade de produção de alimentos, ainda ter
pessoas que morrem pela falta desse alimento, afirmando que “[...] um grande
número das crianças morre logo após o nascimento, como consequência da
1481

subalimentação fetal ou porque suas mães, subalimentadas, não podem aleitá-


las”.. São crianças cuja sina é vir ao mundo apenas para morrer e morrer de
fome.
Certo é que o direito humano à alimentação adequada é reconhecido em
vários documentos das leis internacionais, entre eles invoca-se o Pacto
Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que se refere à
alimentação, no artigo 11, de maneira mais abrangente, anotando ser “[...] direito
de todas as pessoas ter um nível de vida suficiente para si e para as suas
famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a
um melhoramento constante das suas condições de existência”. (ONU, 1966).
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(PIDESC) trouxe no seu preâmbulo, em consonância com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a idealização de um mundo livre da
miséria e reconhecendo o direito fundamental de todas as pessoas estarem livre
da fome.
E tratando especificamente do direito à alimentação adequada, no ano de
1999, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (CESCR)
elabora documento denominado Comentário Geral 12, que passa a fixar uma
série de parâmetros importantes para assegurar a todos, mundialmente, o Direito
Humano à Alimentação Adequada. O Comentário concebe que o direito à
alimentação adequada deve ser interpretado como um itinerário a ser realizado
progressivamente, desde um patamar mínimo de calorias, proteínas e outros
nutrientes necessários, tendo os Estados a obrigação de tomar as medidas
necessárias à mitigação e alívio do sofrimento causado por esse fenômeno
(BRASIL, 2013, p. 18).
Com o objetivo de avançar na efetivação do Direito Humano à Alimentação
Adequada (DHAA) e ampliar o debate, o Comentário Geral nº 12, assim, o define:

O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem,


mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso
físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos
meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não
deverá, portanto, ser interpretado num sentido estrito ou restritivo, que
equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e
outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada deverá
ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os estados têm a
obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar
e aliviar a fome, como estipulado no parágrafo 2, do artigo 11, mesmo
em épocas de desastres, naturais ou não. (ONU, 1999, p. 2).

Cabe, então, ao Estado “[...] respeitar, proteger e facilitar a ação de


indivíduos e comunidades em busca da capacidade de alimentar-se de forma
digna, colaborando para que todos possam ter uma vida saudável, ativa,
participativa e de qualidade” (PODESTÁ, 2011, p. 26). O Comentário Geral nº
12 informa que os Estados-membros devem assumir as obrigações de
respeitar, proteger, promover e prover o Direito Humano à Alimentação
Adequada. Nesse sentido, a atuação do Estado deve estar vinculada a medidas
que objetivam prover condições aos indivíduos relacionadas à capacidade de
produzir e adquirir sua própria alimentação, deixando de experimentar a fome.
Importante lembrar que a alimentação adequada é aquela adequada ao
contexto e às condições culturais, sociais e econômicas da pessoa que irá
consumi-la, relacionadas à adequação nutricional e cultural da dieta,
1482

necessitando estar livre de substâncias nocivas, cuidando-se de que ela não


esteja contaminada e que contenha as especificações nutricionais do alimento a
ser consumido. A noção de alimentação adequada deve estar relacionada à
nutrição, estando vinculada ao acesso à alimentação, a qualidade e quantidade
suficiente a ser consumida, diariamente, de maneira a atender às necessidades
básicas nutricionais de cada indivíduo, na manutenção da sua saúde, tomado o
cuidado de não se reduzir essa alimentação à ingestão de algo que somente
mitigue a fome (RANGEL, 2018a, p. 82).
Na contemporaneidade, a definição de fome busca captar a dimensão do
sofrimento humano que está ausente em muitas descrições oficiais da
insegurança alimentar, a saber: a angústia intolerável, que tortura todo “ser”
faminto, desde o momento que desperta, podendo ser a angústia, a mais terrível
manifestação de sofrimento psicológico, diante das múltiplas dores e
enfermidades de que padece um corpo desnutrido. Jean Ziegler (2013a, p. 32)
destaca que “[...] dolorosa é a morte pela fome. A agonia é longa e provoca
sofrimentos insuportáveis. Ela destrói lentamente o corpo, mas também o
psiquismo”.
De acordo com o relatório da FAO (2018, p. 3-4) pelo terceiro ano
consecutivo, ocorreu aumento da fome no nível mundial, chegando a 821
milhões, o número de pessoas subnutridas, em 2017. Conforme o relatório, a
proporção de pessoas subnutridas na população mundial pode ter atingido
10,9%, em 2017, sendo que em 2016 atingiu 10,8%, e no ano de 2015, 10,6%.
Isto significa dizer que o mundo não alcançará a meta do Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) de erradicar a pobreza e a fome de maneira
sustentável, até o ano de 2030, erradicação esta, relacionada a todas as formas
e dimensões de pobreza, incluindo a pobreza extrema, que é o maior desafio
global e, requisito indispensável ao desenvolvimento sustentável.
Todos os 193 estados-membros da Organização das Nações Unidas
(ONU) assinaram um compromisso global, em setembro de 2015, contendo 17
objetivos para transformação do mundo, por meio da agenda 2030, onde um dos
objetivos principais consiste em acabar com a fome, alcançar a segurança
alimentar e melhoria da nutrição, promovendo a agricultura sustentável, até o
ano de 2030. A adoção desses objetivos assegura a aceitação de um caminho
voltado para o desenvolvimento de todos os países do mundo, e somente por
meio do desenvolvimento sustentável se poderá alcançar a meta de erradicação
da pobreza e da fome.
A agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável (ONUBR, 2018b)
busca, por meio da meta da ODS libertar a raça humana da tirania da pobreza e
da penúria com a erradicação da fome no mundo. São medidas ousadas,
transformadoras e necessárias. A agenda universal é ambiciosa, contudo
necessária. Os referidos objetivos buscam a concretização dos direitos humanos
de todos, alcançando a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres
e das meninas, buscando exterminar a pobreza em todas as suas formas e
lugares, acabando com a fome e alcançar a segurança alimentar com a melhoria
da nutrição, promovendo-se a agricultura sustentável.
Contudo, o fenômeno fome está longe de ser erradicado, pois a “[...] a
fome é um flagelo fabricado pelos homens contra outros homens” (MELLO;
NEVES, 2007, p. 8), e não propriamente a falta de alimentos. Pode-se dizer que
a fome se relaciona com a capacidade que tem o homem e adquirir o seu próprio
sustento, devendo o Estado capacitá-lo e garantir-lhe a concretização do Direito
1483

Humano à Alimentação Adequada, afastando-os da pobreza extrema.


Quando se afirma ser a pobreza uma violação dos direitos humanos,
constata-se que os direitos dos mais pobres estão limitados, ficando eles
privados dos bens necessários à sobrevivência, entre os quais se encontra,
notadamente, a alimentação, a qual deveria ser assegurada a todos,
resguardando a dignidade de cada um. Isso porque a ausência de alimentação
retira a dignidade do ser, promove a pobreza e a degradação do ser humano,
motivando conflitos sociais, razões pelas quais ela deve ser combatida, sempre.
A erradicação da pobreza é dever do Estado e direito assegurado a todo cidadão.
Não há dúvidas de que, em qualquer parte do mundo, a pobreza é
entendida como a ausência ou a privação de uma necessidade básica do ser
humano, oscilando, muitas vezes, quanto à intensidade desta privação. A falta
de rendimentos impede que o indivíduo se alimente e, sendo a alimentação a
primeira condição básica à sua sobrevivência, caso não efetivada, poderá
ocasionar o seu estado de indigência e, também, a sua morte (VILLAS BÔAS e
SOARES, 2017, p.80).
O direito de se ter, todos os dias, o alimento adequado sobre a mesa, é de
todo ser humano. E, veja-se, é um direito do homem, e não, somente, um ato de
caridade esperado por ele, conforme exaltado, a seguir

O Estado e qualquer ser humano deve sempre prestar a caridade,


ofertando alimentos a quem estiver deles desprovido, porém, cada
homem, antes de se dizer satisfeito com a alimentação recebida, de
maneira caridosa, deve sim, cobrar do Estado a efetividade desta
prestação, porque a alimentação adequada é dever do Estado perante
os homens do seu povo. (VILLAS BÔAS E SOARES, 2017, p. 82)

Alimentar-se de maneira adequada propicia o enfrentamento do estado da


fome, corrobora a realização da dignidade de cada ser, pois a alimentação reduz
as desigualdades sociais, caminhando sempre na direção da concretização do
princípio da solidariedade.
Mundialmente, deseja-se que o fenômeno “fome” seja encarado de
maneira franca, aberta e de frente, afastando-se tabus antigos que, no lugar de
auxiliar no combate à fome, de um lado, propicia um afastamento de todos da
problemática, um sentimento de repulsa e de distanciamento e, de outro lado,
corrobora a vergonha, a baixa-estima e a indignidade daquele que sente o mal
da fome. O combate à fome é uma luta de toda a sociedade mundial, que busca
a concretização da igualdade social, razão pela qual ela deve ser denunciada,
sempre (VILLAS BÔAS e SOARES, 2017, p.88).
Extrai-se dos ensinamentos de Helene, Marcondes e Nunes (1997, p. 7)
que “[...] a fome não é consequência da falta de alimento, mas da falta de
democracia, de um tipo de democracia que diga que todos nós temos direito a
uma alimentação compatível com nossa idade, nossas necessidades e
dignidade”.
Ao analisar o fenômeno fome na atualidade não se pode confundir apenas
com o apetite ou vontade de comer, mas a fome está relacionada à subnutrição,
ou seja, ingestão calórica inferior às calorias gastas por um ser humano normal
para funcionamento normal do organismo, que é chamada de “[...] global,
energética ou calórica [...]”. (ABRAMOVAY, 1983, p. 14). Sabe-se que, mesmo
havendo consumo de alimentos, ainda assim poderá existir a fome parcial,
quando falta na alimentação uma das substâncias vitais (vitaminas, minerais ou
1484

proteínas), ou quando a ingestão dessa substancia é insuficiente.


Apresenta Abramovay (1983, p. 15) um conceito de “fome parcial ou
específica”, que é aquela se dá quando há ausência de proteínas, vitaminas ou
minerais, ou quando estão todos esses componentes presentes, mas em
quantidade inadequada. Ressalta que a ausência constante de qualquer uma
dessas substâncias ou a “monotonia alimentar” determinará, “cedo ou tarde,
lesões orgânicas”.
Já para Castro (1968, p. 81), “fome parcial” é o mesmo que fome oculta,
sendo a monotonia alimentar um “[...] hábito do homem civilizado de nutrir-se à
base de um número restrito de substâncias alimentares”. O autor chama a
atenção para algumas fomes específicas: a) A “fome da proteína”, que ele
acredita ser “[...] uma das formas mais graves e generalizadas de carências”.
(CASTRO, 1968, p. 85); b) A “fome de minerais”, pois “[...] uma dieta completa
sob os vários aspectos da alimentação, não contendo, porém, certa dose de
cálcio ou ferro, por exemplo, acarreta perturbações graves ao ser vivo que a
consome”. (CASTRO, 1968, p. 91); c) A “fome de vitaminas”, extremamente
preocupante, pois

[...] a falta de vitaminas ocasiona não só doenças típicas,


características, como é o caso da xeroftalmia, do beribéri, da pelagra,
do escorbuto, mas também estados infinitos de mal-estar,
perturbações obscuras que traduzem a fome oculta ou latente.
(CASTRO, 1968, p. 101).

Certo é que a fome atua no ser humano marcando não só o seu corpo,
como também, a sua alma. Para Castro (1968, p. 118), “[...] nenhum fator do
meio ambiente atua sobre o homem de maneira tão despótica, tão marcante,
como o fator da alimentação”. Há de se procurar capacitar o ser humano com o
objetivo de políticas de combate à fome, sendo que tais políticas não podem ser
apenas direcionadas à erradicação da fome, mas capacitar os indivíduos
investindo em educação, serviços de saúde etc., e mantendo o debate sobre a
relação nutrida entre fome, pobreza e desigualdade.

CONCLUSÃO

Apresente pesquisa analisa questões relevantes relacionadas ao


enfrentamento da fome apontando se, de fato, o Direito Humano à Alimentação
Adequada está sendo concretizado, sob o prisma da dignidade da pessoa
humana, insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 1º,
III e na DHDU, artigo 25.
Partiu-se, primeiramente, de um estudo sobre o significado da fome e as
consequências trazida por ela, constatando-se que ela, a fome, continua
matando milhões de pessoas no mundo, até hoje, sendo que o número de
pessoas que passa fome no mundo é crescente, aumentando de 815 milhões de
indivíduos, em 2016, para quase 821 milhões em 2017.
Extraiu-se dos estudos que por mais que se tenha realizado esforços para
enfrentar a problemática da fome, ultimamente, o número de pessoas que vivem
em situação de insegurança alimentar, tem sempre crescido, denotando que a
fome continua rondando os lares no Brasil e no Mundo, quer a fome extrema
quer a fome relacionada à ausência de alimentação adequada.
1485

Constatou-se, também, que a pobreza que gera a fome, ainda tem que ser
vencida, sendo necessário para tanto, alcançar-se a redução das injustiças
sociais nas sociedades existentes, buscando-se concretizar o princípio da
igualdade social entre todos os indivíduos, caminhando-se para a materialização
da solidariedade. A dignidade da pessoa humana e o respeito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado em benefício das gerações presentes e futuras está
completamente atrelado à concretização do Direito Humano à Alimentação
Adequada, objetivo a ser alcançado pelo desenvolvimento sustentável (ODS).

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1487

A MANUTENÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS: LIMITAÇÃO DA PROTEÇÃO


CONSTITUCIONAL À MATERNIDADE NA REFORMA PREVIDENCIÁRIA
THE MAINTENANCE OF SOCIAL RIGHTS: LIMITATION OF
CONSTITUCIONAL PROTECTION TO MATERNITY IN SOCIAL SECURITY
REFORM

Raíssa Stegemann Rocha Creado


Orientador(a): Regina Vera Villas Bôas

Resumo: o artigo tem por objeto de pesquisa a proteção constitucional à


maternidade, abarcada no artigo 201, inciso II da Constituição Federal Brasileira,
problematizada quanto a alteração prevista pela Reforma Previdenciária (PEC
06/2019), que intenta substituir o termo ‘proteção à maternidade’ por ‘salário-
maternidade’. Para tanto, vale-se da metodologia analítica vias bibliográfica,
legal e jurisprudencial e, em caráter conclusivo, demonstra significativa redução
da tutela constitucional à maternidade, visto que a atividade interpretativa do
Poder Judiciário, que revela-se progressista à medida em que tende a sentenciar
ampliando a tutela constitucional à maternidade, estará limitada a um benefício
específico, caso seja integralmente aprovada a reforma previdenciária.
Palavras-chave: Proteção à maternidade. Tutela constitucional. Reforma
Previdenciária.

Abstract: the article has as object of research the constitucional protection to


maternity, contemplated in the article 201, item II of the Federal Constitution of
Brasil, problematized as to the alteration foreseen by the social security reform
(PEC 06/2019), which seeks to replace the term “maternity protection” with
“maternity pay”. The methodology is analitycal and the research is bibliographic,
legal and jurisprudential and, in conclusion, its demonstrate a significant
reduction in constitucional maternity protection, because the interpretative activity
of the Judiciary, which proves to be progressive as it tends to sentence extending
the constitucional protection, will be limited to a specific benefit, if the social
security reform is fully aproved.
Key-words: Maternity protection. Constitucional guardianship. Social security
reform.

INTRODUÇÃO

Notório que a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB),


promulgada em outubro de 1988, materializa-se expressando a vontade do
constituinte por uma Carta Magna não apenas garantista, muito mais abrangente
em direitos e garantias que as chamadas constituições sintéticas, mas também
dirigente, pois que ali abarcou medidas futuras que possam orientar à construção
de uma democracia social e pluralista.
Neste sentido, por certo que as dogmáticas jurídicas trazidas no bojo
constitucional assentam-se nos mesmos ideais do constituinte, visando a
construção social livre, justa e solidária em um Estado Democrático de Direito,
pelo que o Estado Brasileiro deve ter por objetivo a manutenção sistêmica dos
poderes e a progressiva expansão e efetivação dos direitos e garantias
fundamentais, assim como das demais premissas abarcadas pela Constituição.
1488

Destas, destaca-se no presente trabalho a proteção à maternidade no


contexto previdenciário, disposta mais especificamente no artigo 201, inciso II da
CRFB/88, que dispõe, de modo geral, que a Previdência Social será organizada
de modo a preservar o equilíbrio financeiro e atender, nos termos da lei, dentre
outras premissas conglobadas no artigo, a proteção à maternidade
(especialmente à gestante), restando inequívoco que o termo “atender” ali
disposto garante o sentido de que a Previdência Social é que deve prestar-se a
auxiliar na proteção à maternidade.
Destarte, atualmente tramita na Comissão de Constituição e Justiça e
Cidadania (CCJ), em Brasília – DF, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
número 06/2019, apresentada em fevereiro do corrente ano e capitaneada pelo
Ministro da Economia da atual gestão, Paulo Roberto Nunes Guedes.
Referida PEC propõe-se a reestruturar todo sistema de previdência social
brasileiro pela alteração de uma série de fatores e normativas previdenciárias,
justificando-se principalmente no argumento de que os objetivos programáticos
constitucionais de desenvolvimento da nação e combate a pobreza exigem um
ambiente macroeconômico estável, que não será viável sem uma reforma no
sistema previdenciário brasileiro atual.
Com este notável viés econômico, entre as mudanças da PEC há a
alteração do artigo 201, inciso II da CRFB, que trata justamente da proteção à
maternidade nos ideários da previdência social: pela nova redação, mediante
aceite da proposta, a Constituição passará a vigorar com a substituição do termo
“proteção à maternidade” por “salário-maternidade”.
Ocorre que o caráter genérico da expressão “proteção à maternidade” tem
possibilitado ao Poder Judiciário uma interpretação extensiva desta tutela
jurídica, resultando em sentenças e acórdãos que reconhecem benefícios e
concessões além do patamar mínimo garantido pela norma constitucional, em
um exercício hermenêutico progressivo – vez que a proteção à maternidade
pode concretizar-se de vários modos, não estando restrita apenas ao pagamento
de salário-maternidade.
Eis, portanto, o problema de pesquisa a que se proporá a investigação do
presente artigo: a substituição dos termos, que incluirá em definitivo o benefício
específico do salário-maternidade, afetará a proteção constitucional à
maternidade quanto as possibilidades hermenêuticas do Poder Judiciário no
caso concreto?
Para proceder tal investigação científica se usará da metodologia analítica
pelas vias jurisprudencial, legal e doutrinária, primando-se pelo verificar dos
impactos práticos que poderão decorrer da substituição dos termos supracitados
nos casos concretos que coloquem-se mediante o Poder Judiciário.

DESENVOLVIMENTO

A previdência social, enquanto direito social constitucionalmente previsto,


não diz respeito somente à parte da estruturação sistêmica da seguridade social,
no qual está englobada, mas a todo um complexo de normas e premissas que
se concretizam em diversas frentes e mediante instrumentos distintos – nesse
sentido, o próprio artigo 201 da CRFB/88 abrange diversos aspectos (à exemplo,
a cobertura de doença, invalidez, morte, idade avançada, entre outros).
Pela perspectiva constitucional da maternidade propriamente dita, objeto
de pesquisa da presente investigação científica, o inciso II do artigo 201 da
1489

CRFB/88 cuidou de estabelecer que os planos contributivos da previdência


social devem atender, nos termos da lei, à proteção à maternidade e, em
especial, tutelar a gestante (MARTINS, 2005, p. 121).
Inegável, portanto, que esta tutela tem fundamental importância, não
apenas para a beneficiária direta, cuja condição gravídica ou materna a torna
vulnerável frente ao mercado de trabalho, como para a criança, na medida em
que resguarda-se seu interesse no contato e acompanhamento materno e
também para a sociedade, pela continuidade populacional e manutenção do
bem-estar coletivo (SILVA, 2014. p. 320).
Já na seara previdenciária, a proteção à maternidade tem no benefício do
salário- maternidade seu maior aporte, caracterizado pela concessão de uma
renda a pessoa que se afasta das atividades laborais em razão do nascimento
do filho, aborto não criminoso ou adoção, pelo prazo de 120 dias, contados do
período compreendido entre até 28 dias antes do parto e 91 dias após o
nascimento, sendo que, caso haja antecipação do nascimento, o benefício é
recebido por 120 dias após o evento (CASTRO; LAZZARI, 2016, p. 578).
Trata-se de um instituto de extrema importância na proteção social e
econômica das mulheres gestantes e mães, vez que permite sua preservação
física e mental, facilita o contato e os cuidados necessários aos filhos e família,
simultaneamente resguardando seus interesses profissionais e sua renda, sem
diminuir nem deteriorar sua condição feminina (CASTRO; LAZZARI, 2016, p.
849).
Contudo, o cerne jurídico da proteção à maternidade não raramente é
objeto de alterações legislativas – à exemplo da reforma trabalhista, que
modificou os incisos II e III do artigo 394 – A da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) para permitir a atividade de empregadas gestantes e lactantes
em locais insalubres, dispositivo legal atualmente suspenso em razão do
reconhecimento de sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal
(STF), na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5.938.
Ao ser abarcada pela Reforma Previdenciária, o instituto jurídico da
maternidade novamente passa a ser objeto de modificação legislativa, tornando-
se passível de alterações substanciais que, consequentemente, implicam novos
significados e maneiras de aplicação possíveis.
Isto porque o segundo capítulo constitucional, que é destinado ao
regramento da seguridade social, sofreria mudança na sua terceira seção, que
hodiernamente expressa pelo artigo 201, inciso II, a organização da previdência
social segundo o equilíbrio econômico e atendendo, nos termos da lei e dentre
outros, a proteção à maternidade.
A mudança, neste ínterim, tem viés substitutivo: pretende-se a troca do
termo “proteção à maternidade” por “salário-maternidade”, este último um
benefício específico do regramento previdenciário:

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime


geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados
critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá,
nos termos da lei, a:
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade
avançada;
II - proteção à maternidade, especialmente à gestante;
III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego
involuntário;
1490

IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos


segurados de baixa renda;
V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou
companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.
(BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. grifo
nosso).

A simples leitura do dispositivo constitucional revela o caráter protetivo


que a previdência social tem quanto à proteção à maternidade, em especial,
consubstanciado pela expressão “atenderá, nos termos da lei”, que evidencia a
disposição da estrutura previdenciária a meios e fins que assistam e assegurem
a maternidade, em especial, a gestação (SILVA, 2014. p. 320).
Embora, à priori, possa parecer uma substituição pouco impactante, a
troca de termos significa um grande hiato interpretativo, quase um novo
paradigma, afinal, o termo “proteção à maternidade” revela-se mais amplo e
abrangente, podendo se concretizar por fins e instrumentos variados dentro do
contexto previdenciário, ao passo que a fixação de “salário-maternidade” condiz
à concessão de um benefício específico da previdência, com métricas e
requisitos cartesianamente definidos em lei.
Neste sentido, ressalta-se que um dos efeitos práticos mais notáveis da
maleabilidade conferida pelo termo atual, “proteção à maternidade”, é
exatamente a prolação de decisões, nos mais variados graus judiciais,
concedendo a extensão ou prolongamento de benefícios previdenciários em
ações que envolvam temas sensíveis à maternidade, o que é possível graças à
margem vasta interpretativa extraída do artigo 201, II conjuntamente ao artigo
7° da CRFB/88, que trata dos direitos dos trabalhadores.
Há de se considerar, ainda, que a tutela à maternidade de modo geral, e
não apenas no âmbito constitucional, transcende à um elevado objetivo social:
por um lado, protege a condição feminina em seu emprego e renda,
possibilitando o repouso necessário a uma fase de preparação para a chegada
da criança e de intensas mudanças físicas e mentais; por outro, resguarda os
interesses da própria criança, cujos primeiros meses ultra-interinos necessitam
cuidados especiais em vistas de um desenvolvimento sadio e pleno
(CARVALHO, 1991, p. 275).
Neste sentido, as decisões prolatadas pelo Poder Judiciário Brasileiro em
sede de ações previdenciárias que versam sobre aspectos da maternidade, em
especial gestações, revelam-se farta documentação comprobatória de que a
margem interpretativa viabilizada pelo uso do termo “proteção à maternidade” no
artigo 201, II da CRFB/88 assegura efeitos práticos via hermenêutica extensiva,
em sua maioria benéficas à sociedade.
Ressalte-se que por hermenêutica extensiva entende-se aquela
interpretação que, considerando a mens legis, amplia o sentido da norma,
desapegando-se do conteúdo formal ou “letra da lei” para buscar o ‘espírito da
lei’, a finalidade teleológica buscada pela mesma (FERRAZ, 2001, p. 290 - 292),
neste caso, com visível preocupação em alcançar o bem-estar social e o
resguardo dos interesses da mulher e da criança.
Como primeiro exemplo, de uma série cuja pesquisa preocupou-se em
selecionar as mais recentes com fim de provar a atualidade do método
interpretativo, abaixo uma prolação reconhecendo a necessidade de se estender
o benefício do salário-maternidade para além do estabelecido em lei:
1491

Considerando que a licença-maternidade destina-se a assegurar a


saúde e o bem estar da mãe e da criança, proporcionando um período
de convivência necessário ao bom desenvolvimento físico e emocional
desta, pode-se concluir, em uma interpretação teleológica, que a
consecução desses objetivos requer que o benefício de salário-
maternidade seja estendido nos casos em que o recém-nascido
permanece internado em UTI.
Verifica-se que, em situação análoga, de crianças que nasceram
acometidas por sequelas neurológicas decorrentes de doenças
transmitidas pelo Aedes aegypti, a Lei 13.301/2016 ampliou a duração
do benefício de salário-maternidade de 120 para 180 dias, nos termos
do art. 18, § 3º, considerando a necessidade de maior cuidado e
acolhimento pela mãe, concretizando-se o direito fundamental de
proteção à maternidade (art. 6º e 201, II, da Constituição do Brasil)

(JEF – MG. Processo: 0000458-12.2018.4.01.9380. Relator: Desem.


Alexandre Ferreira Infante Vieira. Data do julgamento: 06/07/2018.
Grifo nosso).

Ressalta-se, in casu, que o prolongamento do benefício para crianças


internadas nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) foi aplicado por analogia à
crianças que pereceram sequelas neurológicas por contaminação patológica vis
Aedes Aegypti, por ser medida que concretiza o direito fundamental de proteção
à maternidade, com expressa remissão ao artigo 201, II da CRFB/88.
Em outra ação, o Judiciário ressalta que a interpretação literal do artigo
não pode ser subterfúgio para retrocesso ou redução da tutela jurídica:

[...]
Embora o art. 97 do Decreto 3.048/1999 não inclua a hipótese de
demissão sem justa causa, atendendo à proteção à maternidade
(Constituição, artigo 201, inciso II), especialmente à gestante, não se
pode privilegiar interpretação literal, em detrimento da finalidade
social e individual do benefício do salário-maternidade. Destaque-se
que, em tal situação, cabe ao INSS suportar diretamente o
pagamento do salário-maternidade, não sendo razoável impor à
empregada demitida buscar da empresa a satisfação pecuniária
[...]
(TRF-3 – A.C: 00053990520164039999 – SP. Relator: Desem.
Federal Fausto de Sanctis. data de julgamento: 26/09/2016. Grifo
nosso).

Outro paradigma importante da extensão dos benefícios previdenciários


para melhor atendimento dos preceitos de proteção à maternidade deu-se com
decisões que reafirmam a condição legal de igualdade entre mães biológicas e
mães adotivas, também parcialmente pautadas pelo interesse do artigo 201, II
da CRFB/88:

DIREITO PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA.


BENEFÍCIO DE SALÁRIO-MATERNIDADE. PRESENÇA DOS
REQUISITOS LEGAIS. MÃE ADOTIVA. CONCESSÃO.
[...]
A proteção à gestante assegurada pela Constituição Federal (arts. 7º,
XVIII, e 201, II) materializada no salário-maternidade e na licença-
maternidade foi estendida à mãe adotiva, a teor do art. 71-A, da Lei
10.421/02, com redação dada pela Lei n. 12.873/13, que equiparou o
período de gozo do benefício em relação a todos os casos de adoção.
1492

(TRF-3. REOMS: 00056713520154036183 – SP. Relator: Desem.


Federal Gilberto Jordan, Data de Julgamento: 30/01/2017. Grifo
nosso).

E, ainda que não necessariamente ampliando a concessão do benefício


previdenciária do salário-maternidade, também abundam decisões onde,
independente do direito a ser liquidado em sentença, evidencia-se a
importância basilar de se assegurar e dar máxima eficácia à proteção à
maternidade:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SALÁRIO-


MATERNIDADE. RESPONSABILIDADE DO INSS PELO
PAGAMENTO DO BENEFÍCIO.
1. A Constituição Federal, nos artigos 6º e 201, inciso II, assegura
proteção à maternidade, especialmente à gestante, mediante a
inclusão do direito de licença à gestante, sem prejuízo do emprego e
do salário, com a duração de cento e vinte dias (inc. XVIII do art. 6º,
CF).
(TRF-4 – A.G: 50572765620174040000 5057276-
56.2017.4.04.0000. Relator: Luiz Antonio Bonat. Data de Julgamento:
17/04/2018. Turma Regional Suplementar do PR. Grifo nosso).

PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE


INSTRUMENTO. SALÁRIO-MATERNIDADE. TUTELA DA
EVIDÊNCIA. ART. 311 DO CPC. REQUISITOS DO ART. 71 DA LBPS
PREENCHIDOS.
[...]
3. É de rigor, pois, reconhecer máxima eficácia ao direito social de
especial proteção à maternidade e à infância (art. 6º, caput, da
Constituição), bem como ao preceito contido no art. 201, II, da CRFB,
a reger a organização da Previdência Social.
(TRF-4 - AG: 50341841520184040000 5034184-15.2018.4.04.0000,
Relator: CELSO KIPPER, Data de Julgamento: 20/03/2019, Turma
Regional Suplementar de SC. Grifo nosso).

Assim, valendo-se da prerrogativa hermenêutica, o Judiciário Brasileiro


tem ampliado a tutela à maternidade, assegurando cada vez mais prestações
assistências além das calcadas nos patamares mínimos, como forma de
respeitar os preceitos constitucionais e, sobretudo, promover a continuidade e
efetivação dos direitos fundamentais e sociais, interpretação que sofrerá
substancial limitação com a aprovação da PEC, pela possível amarra do
Judiciário aos limites exclusivos do benefício.

CONCLUSÃO

Irrefutável que a proteção à maternidade no campo previdenciário


resguarda interesses difusos mútuos, atingindo a cidadã, assistindo-a em
momento de vulnerabilidade e garantindo-a quanto ao sustento próprio e da
criança, os interesses da criança nascida ou vindoura, que não priva-se do
vínculo materno, e, por conseguinte, os interesses sociais, que tem na
maternidade a garantia de sua continuidade e na proteção jurídica a construção
de uma sociedade plural e assistencial.
Por tal importância, e considerando o status de direito social atribuído à
maternidade pela própria Constituição Federal, mister que, embora o benefício
previdenciário condizente seja de fato o salário-maternidade, a proteção à
1493

maternidade não se encerra neste: é muito mais abrangente e inclusivo, evocado


pelo Judiciário para a concessão ampliada de benefícios.
Em tais interpretações extensivas, onde o benefício previdenciário é
concedido para além do mínimo legal, observa-se um claro movimento de
continuidade progressiva dos direitos fundamentais, do intento garantista no qual
assenta-se a estrutura social democrática do país, possível pela margem
interpretativa que o termo “proteção à maternidade” fornece.
Embora possa parecer pouco significativa, a substituição do atual termo
pela expressão “salário-maternidade” representa lesiva alteração a atual
dinâmica, pois que a hermenêutica judiciária não mais poderá respaldar-se na
ampla tutela da proteção à maternidade para alçar novos patamares concessivos
uma vez que, aceitos os termos da PEC n. 06/2019, estará condicionada aos
requisitos únicos do benefício em questão, claramente limitados.
Desse modo, resta concluído da presente pesquisa que a problemática
analisada implica a redução substancial da amplitude do direito social à
maternidade e sua tutela jurídica, cujos efeitos práticos, via judiciário, estarão
suplantados aos parâmetros estritos do benefício previdenciário do salário-
maternidade.

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1495

ASPECTOS JURÍDICOS ACERCA DA DIFUSÃO DAS PLATAFORMAS


DIGITAIS PARA INVESTIMENTOS E NEGOCIAÇÕES DE PRECATÓRIOS
JUDICIAIS
LEGAL ASPECTS ABOUT DIFFUSION OF DIGITAL PLATFORMS FOR
INVESTMENT AND NEGOTIATING PRECATORY NEGOTIATIONS

Richard Bassan
Cristiana Carlos do Amaral Cantidio
Orientador(a): Bruno Bastos de Oliveira

Resumo: O presente estudo pretende realizar análise das tecnologias aplicadas


ao Direito com ênfase na utilização de plataformas digitais para investimentos e
negociações de precatórios, como meio alternativo para investimentos, cessão
destes créditos e redução do tempo de espera dos pagamentos dos débitos
judiciais pelos Tribunais. Utilizando-se de pesquisa exploratória, bibliográfica e
qualitativa, o objeto de investigação reside nos aspectos regulatórios acerca do
surgimento dos ambientes virtuais destinados a identificação e negociação os
títulos precatórios e suas implicações na tarefa de proporcionar a otimização de
investimentos e negociações relacionadas aos precatórios. Conclui-se pela
necessidade do aparelhamento tecnológico do Poder Judiciário para auxiliar
efetivamente no pagamento dos débitos judiciais, através de sistemas digitais
como as plataformas de negociação que se proliferam em ritmo acelerado,
gerando consequências que precisam ser exploradas.
Palavras-chave: Direito. Plataformas Digitais. Precatórios Judiciais.

Abstract: The present study intends to analyze the technologies applied to the
law with emphasis on the use of digital platforms for investments and negotiation
of precatories, as an alternative means for investments, assignment of these
credits and reduction of the waiting time for payments of judicial debts by the
Courts. Using exploratory, bibliographical and qualitative research, the object of
investigation resides in the regulatory aspects about the emergence of virtual
environments for the identification and negotiation of precatory titles and their
implications in the task of providing the optimization of investments and
negotiations related to the precatory ones. It is concluded that there is a need for
the technological equipment of the Judiciary to effectively assist in the payment
of judicial debts, through digital systems such as negotiating platforms that
proliferate at a fast pace, generating consequences that need to be explored.
Keywords: Law. Digital Platforms. Judicial Precatory.

INTRODUÇÃO

O problema envolvendo o pagamento da dívida pública por meio de


precatório é imprescindível para a compreensão do objeto de estudo aqui
analisado, assim como, a falta de celeridade no cumprimento das obrigações e
o cenário legislativo gerador de um arcabouço de normas que acabam por
procrastinar as obrigações constitucionais e papel do Poder Judiciário e
Legislativo.
O panorama dos precatórios nos tribunais apresenta-se deficitário e a
sobrecarga dos mesmos por processos dessa natureza possuem morosidade
significativa para sua execução. Observa-se, contudo, um leque de argumentos
1496

utilizados pelas Fazendas Públicas para o inadimplemento dos precatórios,


revelando-se na falta de compromisso honradez do Poder Público, em pagar o
que lhe é devido.
Vê-se como pano de fundo do triste cenário apresentado as disputas
normativas visando proteger o Poder Legislativo, manifestadas por meio de
implementações sistemáticas de emendas constitucionais, com vícios
inconstitucionais, reiterados parcelamentos e inúmeras outras concessões que
caracterizam o sistema de pagamento de precatórios, nos moldes apresentados,
fadado ao insucesso.
Com a promulgação da Emenda Constitucional n° 62/2009, vislumbrou-
se maior segurança quanto à cessão dos créditos por precatórios. Os elementos
inerentes à legislação em comento favoreceu, por exemplo, o crescimento e
aquecimento mercadológico neste segmento, criando-se determinados fundos
de precatórios, tornando-se de certo modo lucrativo o investimento de longo
prazo, como também a possibilidade de recebimento dos valores por
antecipação, mediante deságio. Instituições financeiras e o crescente mercado
tecnológico, por meio de tecnologias da informação e em inteligência artificial,
passaram a ganhar espaço, alargando e possibilitando a otimização das
transações de precatórios.
A utilização de plataformas digitais nesta conjuntura beneficia a gestão,
investimentos e negociação de precatórios, tanto para o cruzamento de
informações, como pelas possibilidades de investimentos, de antecipação de
pagamento, cálculos de rentabilidade média anual, assim como a análise dos
riscos e vantagens de investimentos, entre outros.

1. PANORAMA DOS PRECATÓRIOS JUDICIAIS NOS TRIBUNAIS


BRASILEIROS

Importante destacar que os créditos em pecúnia contra a Fazenda


Pública, ainda que entendidos como solventes possuem procedimentos
diferentes daqueles que são aplicados ao sujeito particular. As regras
estabelecidas à Fazenda Pública diferem quanto a critérios de execução de
quantia certa, como a penhorabilidade e a alienação de bens, pois estes, não
podem ser penhorados e são inalienáveis.
Entretanto, para a gestão dos recursos públicos, verifica-se a necessidade
de tratamento igualitário daqueles que possuem créditos de ente público.
Portanto, no procedimento de execução contra a Fazenda Pública utiliza-se
mecanismo específico denominado precatório, por meio do qual se dá a quitação
da dívida pública, como se verifica no artigo 100 da Carta Maior de 19881.
Sobre este tema, são os ensinamentos de Celso Ribeiro Bastos:

Notar-se que se os bens públicos fossem penhoráveis, como são os


bens dos particulares, não haveria necessidade de precatório. Este só
foi criado em virtude da impenhorabilidade desses bens. A propósito, o
precatório tem sua origem no direito processual civil, mais
precisamente na prática forense. Ao que parece, sua forma mais
rudimentar nasceu da imaginação de um juiz diante de um problema

1BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 14 set.
2019.
1497

surgido na execução da sentença contra uma Câmara Municipal, em


que um particular pleiteava o pagamento de certa quantia. A
impenhorabilidade dos bens públicos não poderia isentar a Fazenda
Pública de pagar o seu débito. O engenhoso magistrado resolveu a
questão expedindo precatória de vênia, com o que determinou a
penhora do próprio dinheiro da tesouraria da Câmara. Surgia, assim, a
forma primitiva de requisição que seria mais tarde encampada pelo
precatório2.

Observa-se que o precatório constitui-se em uma carta que o juízo da


execução expede, encaminhada para o Presidente do Tribunal, solicitando que
esse, determine a ordem de pagamento aos órgãos da administração pública
incumbidos de dar quitação a dívida oriundas das decisões judiciais.

Portanto, se a diligência de requisição parte do juízo da execução


especial, ela somente se completa com a intermediação do Presidente
do Tribunal, de maneira que o “precatório” é um instrumento no qual se
distingue 2 (duas) fases procedimentais: a) a expedição de carta (o
instrumento de precatório), encaminhada ao Presidente do Tribunal; b)
após registro e tramitação de regularidade perante o Tribunal, a
expedição do ofício de requisição ou ofício requisitório dirigido ao órgão
público encarregado do cumprimento da condenação pecuniária. Daí o
uso da expressão “precatório-requisitório”3.

Verifica-se, portanto, que os precatórios são processados da seguinte


maneira:

Os precatórios são processados da seguinte forma: (1). Liquidada a


condenação e apurado o quantum, o juiz da execução judicial (1º
instância) oficializa ao Presidente do Tribunal, ao qual está vinculado,
para que este requisite o pagamento de quantia certa em desfavor da
Fazenda Pública devedora (Federal, Distrital, Estadual ou Municipal).
(2) Em seguida, de posse das informações da condenação, o
Presidente do Tribunal respectivo expede requisição de precatório para
que o Poder Executivo reserve determina quantia e que a lance como
despesa em sua Lei Orçamentária Anual (LOA). (3) No Regime
Ordinário de Precatórios, as requisições efetivadas até o dia 1º de julho
devem ser pagas até o final do exercício financeiro seguinte,
respeitando-se a ordem cronológica de lançamento dos precatórios,
como também, os requisitos de preferência 4. Os com natureza
alimentícia são pagos primeiro, entre estes, os de titulares portadores
de deficiência, com mais de 60 anos ou com doença grave, art. 100,
§2º, §3º e §5º, da CRFB/88.

Neste panorama, imperioso se faz analisar a pesquisa desenvolvida por


Moraes Cid Maximillian, ao relatar a condição relacionada à distribuição,
morosidade e quantificação dos precatórios no âmbito dos tribunais federais, a
saber: o tempo médio para formação do precatório é de 10 (dez) anos, sendo o

2BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à constituição do Brasil. v. 4. t. III. 2ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 116.
3SILVA, Américo Luís Martins da. Precatório-requisitório e requisição de pequeno valor

(RPV). 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 162.


4ABRAHAM, Marcus. Reflexões sobre a EC 62/2009: a compensação de precatórios com

créditos da Fazenda Pública. Revista tributária e de finanças públicas. São Paulo: RT, n. 94,
set.-out. 2010. p. 230.
1498

tribunal mais veloz o TRF 4ª região, que leva em torno de 7,7 anos, e o menos
produtivo o TRF da 5ª Região, com 13,6 (treze virgula seis) anos.5
É neste cenário que se evidencia a necessidade de buscar novas
ferramentas que propiciem a implementação de métodos alternativos para a
redefinição de processos e mecanismos financeiros mais eficientes, por
exemplo, o surgimento dos ambientes virtuais destinados à identificação,
acompanhamento, negociação e investimentos em títulos precatórios, como
caminho viável a agilização dos pagamentos das requisições, o que será
abordado a frente.

2. AMBIENTES VIRTUAIS DESTINADOS A IDENTIFICAÇÃO E NEGOCIAÇÃO


DOS TÍTULOS

Corrobora-se com a premissa de que o aquecimento mercadológico, por


meio dos fundos de precatórios e na contemporaneidade com a ampla
disseminação dos ambientes virtuais, oriundos do crescimento e
desenvolvimento tecnológico, capacitou as o Direito com ferramentas capazes
de minimizar mazelas, como a morosidade da prestação jurisdicional,
possibilitando ainda que investimentos e negociações de precatórios possam ser
inteligentemente e mais rapidamente resolvidos.
No campo da comercialização de precatórios, a tecnologia se mostra
maneira inovadora e contemporânea para investimentos, cujas plataformas de
capital e precatório tornam viáveis a aplicação de investimentos para pessoas
físicas, ou seja, cessão de títulos judiciais pela internet, porém observa-se que
alguns precatórios com valores altos ainda são menos acessíveis para
investidores de pequeno porte.
Percebe-se a partir deste filtro de acesso que a tecnologia em inteligência
artificial, utilizando robôs que fazem varredura nos dados dos tribunais buscando
os precatórios e seus titulares de uma maneira segura e com rapidez, ou seja,
quando o título é de valor elevado, a empresa faz o rateio e efetua a compra
entre os investidores interessados6.
Note-se nas palavras de Isabel Filgueiras a dinâmica das transações
realizadas comumente nas plataformas virtuais de comercialização de
precatórios:

O investimento inicial na Hurst é de R$ 10 mil e o retorno é considerado


de médio prazo, variando de 12 a 36 meses. O valor do rendimento
total varia, e muito e, depende de negociação e da data de emissão do
papel. Todo precatório tem correção monetária e juros simples, não
compostos. Eles incidem apenas uma vez sob o valor corrigido. Onde se
ganha dinheiro mesmo nesse tipo de transação é no desconto na compra
do precatório. Você compra um papel que vale, por exemplo, R$ 70 mil por
R$ 50 mil. Quem vende abre mão do valor cheio para receber logo o
dinheiro. Quem compra, fica com o valor integral do precatório, mais a

5 UNB. Disponível em: http://www.repositorio.unb.br/handle/10482/20448. Acesso em: 16 set.


2019, p. 37.
6FILGUEIRAS, Isabel. Plataformas virtuais permitem investimento em precatórios. Vale à

pena comprar esses títulos? Valor Investe. Disponível em:


https://valorinveste.globo.com/produtos/renda-fixa/noticia/2019/07/22/plataformas-virtuais-
permitem-investimento-em-precatorios-vale-a-pena-comprar-esses-titulos.ghtml. São Paulo,
22/07/2019. Acesso em: 20 set. 2019.
1499

correção, os juros, descontando a comissão da corretora ou dos


intermediários7.

O panorama de negociação de títulos precatórios por meio de plataformas


digitais que se utilizam de tecnologias disruptivas, tal como a inteligência artificial, já
está amplamente difundida e crescendo no mercado, merecendo neste cenário a
análise de como se dá a prática desses investimentos e suas características.

3. INVESTIMENTO E ANTECIPAÇÃO DE PAGAMENTO DE TÍTULOS


PRECATÓRIOS NOS AMBIENTES VIRTUAIS

Afere-se que os investimentos ocorrem por intermédio de agentes


pertencentes a empresas que, utilizando-se de plataformas digitais e robôs, ou
seja, por meio da tecnologia em inteligência artificial, encontram e fazem a
negociação com o indivíduo que é possuidor e recebedor. Ou seja, após a
compra do título a dívida é repassada para a empresa de investimentos e, após
a liquidação rateia-se entre os investidores, podendo o precatório permanecer
no nome da empresa ou cliente, variando conforme a característica da empresa
intermediadora8.
Sobre as particularidades desta alternativa de investimentos, discorre
Isabel Filgueiras:

Os títulos que preveem pagamento para pessoas, não empresas,


costumeiramente entram numa fila de prioridade. Há também como
negociar com o órgão devedor, com descontos máximos de 40% para
acelerar o pagamento. Mas, mesmo após o acordo, o pagamento pode
demorar a sair. Há ainda uma lista de pessoas que são prioritárias e
têm direito de saltar na fila de pagamento, como idosos e pessoas com
doenças graves, contudo, precisa de atestado para confirmar a
condição. Investir em precatórios é uma alternativa, mas exige
cuidados. Não é um investimento recomendado para quem tem pressa.
Há o risco de demora do pagamento e tem baixa liquidez. Significa que
não pode ser resgatado em poucos dias, como um CDB ou título do
Tesouro Direto. Se for optar por essa aplicação, disponha uma quantia
da qual não vai precisar por um bom tempo9.

Necessário neste ambiente observar alguns cuidados quanto aos títulos


disponibilizados nestas plataformas, como possibilidade de demora no
pagamento, baixa liquidez etc. Outro cuidado que merece relevante atenção,
tanto para quem vende como para quem compra estes títulos no ambiente
virtual, é a imprescindibilidade de orientação e participação de advogado,
especialmente nos casos de cessões de precatórios, onde o processo de compra

7FILGUEIRAS, Isabel. Plataformas virtuais permitem investimento em precatórios. Vale à


pena comprar esses títulos? Valor Investe. Disponível em:
https://valorinveste.globo.com/produtos/renda-fixa/noticia/2019/07/22/plataformas-virtuais-
permitem-investimento-em-precatorios-vale-a-pena-comprar-esses-titulos.ghtml. São Paulo,
22/07/2019. Acesso em: 20 set. 2019.
8OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2017, p. 580.


9FILGUEIRAS, Isabel. Plataformas virtuais permitem investimento em precatórios. Vale à

pena comprar esses títulos? Valor Investe. Disponível em:


https://valorinveste.globo.com/produtos/renda-fixa/noticia/2019/07/22/plataformas-virtuais-
permitem-investimento-em-precatorios-vale-a-pena-comprar-esses-titulos.ghtml. São Paulo,
22/07/2019. Acesso em: 20 set. 2019.
1500

e venda visando a antecipação do pagamento é realizado através de contrato de


cessão de crédito, momento em que determinado credor do precatório cede a
terceiros seu crédito, transferindo a sua titularidade e recebendo remuneração
por isso.
Referido processo de compra e venda não é ilegal, pelo contrário,
encontra guarida no artigo 100, parágrafos 13º e 14º da Constituição Federal,
cujo comando deixa claro a possibilidade de cessão, independente da anuência
do devedor, contudo, a cessão, que se opera em cartório, somente produzirá
efeitos após a comunicação, por meio de petição protocolizada ao Tribunal de
origem e à entidade devedora, o que reforça a imprescindibilidade da orientação
e participação de advogado, ainda que este precatório seja comercializado no
ambiente virtual.
No tocante a participação do advogado, observa-se que algumas
plataformas se utilizam da contratação destes profissionais, como destaca Isabel
Filgueiras:

Tanto a Hurst Capital como a Precatórios Já estão no mercado


há cerca de dois anos. Ambas dizem que contam com time de
advogados de ponta e tentam realizar processos transparentes,
com documentos e certificados de compra que garantam que o
investidor vai receber o dinheiro uma vez que o precatório seja
pago pelo órgão devedor. As empresas fazem uma avaliação
dos precatórios que chegam e vasculhamos tudo, escolhemos
os melhores e apresentamos para o investidor. Ele pode decidir
continuar com nossa assessoria ou escolher um desses
precatórios e seguir com o investimento por conta própria. Na
hora da compra, o precatório é transferido para o nome do
investidor. Cada um sabe qual o precatório e qual o percentual
ele tem do precatório. Mas a pessoa pode tocar a vida sozinha,
pode ter um advogado e ele vai acompanhar o precatório até ser
recebido10.

Tal fato ora presenciado corrobora com a legislação vigente, notadamente


com o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, especialmente quanto às
disposições contidas nos artigos 1º, inciso I, artigo 3º, artigo 4º, que destacam
dentre outras disposições, as atividades privativas de advocacia, o exercício da
atividade e a nulidade de ato privativo de advogado praticado por pessoa não
inscrita na OAB.
Com efeito, neste cenário de inovação tecnológica, pautado na
possibilidade de compra, venda e investimentos em precatórios na ambiente
virtual e ante os riscos que norteiam estas operações, o papel do advogado se
mostra imprescindível, tanto pela previsão contida nos comandos acima
delineados aduzidos no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, quanto e
especialmente pela dinâmica estabelecida nos parágrafos 13º e 14º, do artigo
100, da Constituição, cuja aplicação prática guarda total sintonia com o Estatuto
da Ordem dos Advogados do Brasil, merecendo relevante destaque.

10FILGUEIRAS, Isabel. Plataformas virtuais permitem investimento em precatórios. Vale a


pena comprar esses títulos? Valor Investe. Disponível em:
https://valorinveste.globo.com/produtos/renda-fixa/noticia/2019/07/22/plataformas-virtuais-
permitem-investimento-em-precatorios-vale-a-pena-comprar-esses-titulos.ghtml. São Paulo,
22/07/2019. Acesso em: 20 set. 2019.
1501

CONCLUSÃO

A morosidade na prestação jurisdicional nas Varas da Fazenda Pública e


nos Tribunais relacionados aos processos para quitação de precatórios se deve
a dificuldade estrutural relativa à capacidade de analisar os processos e a
consequente remessa das expedições dos ofícios requisitórios de precatórios
para o Tribunal. Percebe-se notório o cenário das inadimplências e decisões
judiciais proferidas e não cumpridas, a espera para a quitação de precatórios,
levando credores a esperarem anos para terem seus créditos satisfeitos,
configurando-se patente desrespeito aos princípios constitucionais e garantias
fundamentais alicerçados na Constituição Federal de 1988.
Com a evolução histórica e tecnológica, a legislação também galgou
alternativas para acompanhar a realidade dos precatórios. A tecnologia
disruptiva por sua vez, vem se mostrando ferramenta aliada na modernização do
Judiciário, tal como o que se nota com o uso da Inteligência Artificial, sendo que
no âmbito das relações entre particulares, possibilitou por meio de plataformas
digitais, o surgimento de alternativa inovadora e célere para a realização de
investimentos e negociações de venda e compra de precatórios.
Mesmo diante dos benefícios trazidos, tais investimentos possuem riscos
e os investidores ou mesmo os negociadores que operam nestas plataformas
carecem do aconselhamento e acompanhamento jurídico de profissional inscrito
nos quadros da OAB como advogado, ante a complexidade e dinâmica do
negócio e face às previsões contidas no ordenamento jurídico, tal como aquelas
estampadas na Constituição Federal em seu artigo 100, parágrafos 13º e 14º, e
as contidas no Estatuto da OAB.

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dispositivos ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir
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1503

BARREIRAS DISCRIMINATÓRIAS DO DIREITO BRASILEIRO


DISCRIMINATORY BARRIERS OF BRAZILIAN LAW

Thiago Izac de Souza


Maria Fernanda Vaz Oliveira

Resumo: Ao analisar a estrutura judiciária brasileira, percebe-se que não há o


devido tratamento do Estado perante todos os cidadãos. Barreiras como fatores
econômicos, geográficos e culturais fazem com que seleta parte da população
não consiga ter acesso à justiça. Entretanto, a acessibilidade ao poder judiciário
deve ser considerada como um direito humano indispensável para a harmonia
da coletividade, assim como previsto na Constituição Federal e por conseguinte,
é direito de todos pleitear perante o Estado. Todavia, na realidade social, aqueles
tipificados como marginalizados, haverá impedimentos que façam essa parcela
da população hesitar em recorrer aos tribunais. O método da pesquisa que se
pretende realizar é jurídico-interpretativo, junto ao exame de classificação dos
fatos pelo método dialético.
Palavras chave: Acesso à Justiça. Poder Judiciário. Reforma da justiça.

Abstract: When analyzing the Brazilian judicial structure, it is clear that there is
no proper treatment of the state for all citizens. Barriers such as economic,
geographical and cultural factors mean that a select part of the population cannot
access justice, however, accessibility to the judiciary must be considered as a
human right and indispensable for the harmony of the community, as provided in
the Federal Constitution. Therefore, it is the right of all to claim before the State,
however, in social reality for those typified as marginalized, there will be
impediments that make this portion of the population hesitate to go to court. The
research method that is intended to be carried out is legal-interpretative, along
with the examination of the classification of facts by the dialectical method.
Keywords: Access to Justice. Judicial power. Reform of justice.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente projeto de pesquisa situa-se na área Direito Humanos e


subárea Direito ao acesso à justiça como Direito Fundamental.
O tema-problema da pesquisa que se pretende desenvolver é como o
Estado atua perante a resolução de conflitos judiciais para com a população
marginalizada dentro da sociedade, a qual enfrenta barreiras econômicas,
sociais e culturais para que seja alcançado o efetivo acesso à justiça e aos
tribunais.
O problema objeto da investigação científica proposta é: se é previsto na
Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXXV, o acesso à justiça referente a
lesão ou ameaça a direito, constitui-se então à todos o direito de pleitear perante
o Estado uma solução para os conflitos, ou seja, o direito de ação, como também
o direito a um processo justo, efetivo e de razoável duração, para concretização
da prestação jurisdicional estatal?
A partir das reflexões preliminares sobre o tema, é possível afirmar
inicialmente que o Estado concede direitos in book mas não está in action, isto
é, no corpo constitucional formal há a exteriorização de normas que
preponderam sobre todos os cidadãos brasileiros ou naturalizados sem distinção
1504

de classe social, formação educacional ou cultural. Entretanto, não é o que


ocorre na realidade social, sendo a justiça seletiva, categorizada por fatores
como a cor da pele, a posição social e ideológica partidária, o patrimônio
acumulado, as origens familiares, região em que mora da cidade, gênero, etc.
Visto isso, é direito de todos pleitear perante o Estado, todavia, para aqueles
tipificados como marginalizados, haverá impedimentos que façam essa parcela
da população hesitar em recorrer aos tribunais.
Nesse sentido, o objetivo geral do trabalho é constatar que a justiça
brasileira é categoricamente dominada por um grupo seleto de magistrados que
não dão o suporte necessário para que a justiça seja efetiva à todos. Ademais,
a estrutura judiciária dos tribunais corrobora para que seja feita apenas para
aqueles que detêm nível educacional e poder aquisitivo.
Tem-se como objetivos específicos do trabalho: a análise que o acesso à
justiça possui três tipos de barreiras para cumprir sua efetividade: as barreiras
econômicas, resultado do custo para se ingressar em juízo, tais como custas e
honorários de advogados; as barreiras geográficas, diante da dificuldade do
Judiciário manter-se presente em todas as áreas habitadas do território nacional;
e as barreiras burocráticas, provenientes do despreparo da estrutura judiciária
para enfrentar a quantidade de processos a que é exposta. A verificação que a
justiça é um direito fundamental, básico dos direitos humanos, que faz parte do
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas
proclamar os direitos de todos. A certificação que o direito não pode ser uma
instituição de caráter fechado que apenas uma parcela da população seja
beneficiada com o sistema jurídico vigente. E por fim, demonstrar que a tutela
jurisdicional efetiva, no Estado Democrático de Direito, não é apenas uma
garantia em si, mas também um direito fundamental.
A pesquisa que se propõe pertence à vertente metodológica jurídico-
sociológica. No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação
de Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-interpretativo. O raciocínio
desenvolvido na pesquisa será predominantemente dialético. Quanto à natureza
dos dados, serão dados secundários fundamentados em livros históricos e teses.
De acordo com a técnica de análise de conteúdo, afirma-se que trata-se de uma
pesquisa teórica, o que será possível a partir da análise de conteúdo dos textos,
doutrinas, normas e demais dados colhidos na pesquisa.

2. TÓPICOS DE ARGUMENTAÇÃO

Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra, a 15 de Novembro de


1940. É Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973) e
Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison.
Foi também Global Legal Scholar da Universidade de Warwick e Professor
Visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. Tem escrito e
publicado extensivamente nas áreas de sociologia do direito, sociologia política,
epistemologia, estudos pós-coloniais, e sobre os temas dos movimentos sociais,
globalização, democracia participativa, reforma do Estado, direitos humanos,
com trabalho de campo realizado em Portugal, Brasil, Colômbia entre outros
países. Seu grande livro “ Para uma revolução democrática da justiça ” é obra
fundamental que será utilizada para o marco teórico no qual a presente pesquisa
se baseia. Segundo o autor:
1505

Somos herdeiros das promessas da modernidade e, muito embora as


promessas tenham sido auspiciosas e grandiloqüentes (igualdade,
liberdade, fraternidade), temos acumulado um espólio de dívidas. Cada
vez mais e de forma mais insidiosa, temos convivido no interior de
Estados democráticos clivados por sociedades fascizantes em que os
índices de desenvolvimento são acompanhados por indicadores
gritantes de desigualdade, exclusão social e degradação ecológica.
Utilizando a expressão de Warat, a promessa de igualdade nunca
passou de uma fantasia jurídica. “Uma forma de hierarquia se
estabelece, desta maneira, sob a forma de uma sociedade
individualista e administrativa. Se todos se tornam juridicamente iguais,
eles vêm a ser igualmente dominados por uma instância que lhes é
superior. A uniformidade, a igualização e a homogeneização dos
indivíduos facilita o exercício do poder absoluto em vez de impedi-lo”.
Se as promessas da modernidade continham em si um vigoroso
potencial emancipatório, o afunilamento deste projeto político-cultural,
a par do avanço e da consolidação do capitalismo como modo de
produção, transformou a emancipação e a regulação social em duas
faces da mesma moeda (SANTOS, 2008)

Boaventura propõe dois modos para solucionar os problemas de


produção e consolidação do capitalismo: em primeira instância, que haja a
reconciliação da sociedade em que vivemos, e em segundo plano, a
transgressão de fronteiras políticas, culturais e principalmente sociais, tendo em
vista que o Direito é um elemento subjetivo que propicia a emancipação e
segregação social.
Todavia, para Boaventura é necessário que haja uma revolução
democrática dentro do Direito, a fim de que haja a democratização da justiça e
da sociedade como um todo.

A revolução democrática do direito e da justiça só faz verdadeiramente


sentido no âmbito de uma revolução mais ampla que inclua a
democratização do Estado e da sociedade. Centrando-me no sistema
jurídico e judicial estatal, começo por chamar a atenção para o fato de
o direito, para ser exercido democraticamente, ter de assentar numa
cultura democrática, tanto mais preciosa quanto mais difíceis são as
condições em que ela se constrói. Tais condições são, efetivamente,
muito difíceis, especialmente em face da distância que separa os
direitos das práticas sociais que impunemente os violam. A frustração
sistemática das expectativas democráticas pode levar à desistência da
democracia e, com isso, à desistência da crença no papel do direito na
construção da democracia (SANTOS, 2008)

É indubitável ressaltar que no Brasil, a falta de políticas sociais e públicas


faz com que haja o uso exacerbado dos tribunais de justiça, sendo estes vistos
como único modo de resolução de conflitos e a obtenção de direitos. Outrossim,
quando as pessoas têm consciência de seus direitos, elas recorrem para que
efetivamente os obtenham. Frente a problemática, na mesma medida que ocorre
a judicialização da política, ocorre a politização dos tribunais, tornando-os
parciais e controversos. Em consequência, os tribunais e o poder judiciário
perdem legitimidade perante ao Estado e a população civil, e em troca disso, se
é esperado que todos os problemas que o sistema político não consegue
resolver, sejam solucionados pelos magistrados nos respectivos órgãos
responsáveis. Santos ressalta que:
1506

A tarefa fundamental do sistema judicial é garantir a certeza e a


previsibilidade das relações jurídicas, clarificar e proteger os direitos de
propriedade, exigir o cumprimento das obrigações contratuais, etc. O
sistema judicial é responsável por prestar um serviço eqüitativo, ágil e
transparente. Conseqüentemente deve-se reformar tendo em vista
atingir o consenso global. A reforma judicial passa a ser um
componente essencial do novo modelo de desenvolvimento e a base
de uma boa administração (SANTOS, 2008)

Por fim, o autor, valoriza aproximação entre a Justiça e a cidadania,


justificando que essa relação traz inovações institucionais que devem ser
incentivadas e fomentadas cada vez mais. Outro vetor apontado como essencial
para a revolução democrática da Justiça é a mudança do ensino do Direito e da
formação profissional, devendo haver uma ruptura do sistema atual, com o
surgimento de uma formação que seja permanente e que gere uma “consciência
complexa, feita da dupla aspiração de igualdade e de respeito da diferença”
(SANTOS, 2008)
Ao final, Boaventura diz ser necessário a busca por uma nova cultura
jurídica, como meio de aproximação dos cidadãos à Justiça. Embasado no
isolamento característico do sistema judiciário, este acaba por não aproximar os
seres humanos da Justiça, acarretando a não consagração das reformas por
estar fora da sua cultura. A conclusão do autor é que a revolução democrática
da Justiça proposta por ele é uma tarefa extremamente exigente, mas
igualmente simples e revolucionária, ou seja, é a de que “sem direitos de
cidadania efetivos a democracia é uma ditadura mal disfarçada”. (SANTOS,
2008)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, ao analisar o funcionamento da estrutura judiciária


brasileira e o acesso aos tribunais e advogados, percebe-se que os cidadãos
pobres tendem a não ter conhecimento sobre seus direitos de tal forma a
influenciar sua capacidade de reivindicar direitos e garantias fundamentais. A
acessibilidade ao poder judiciário deve ser considerada como um direito humano
e indispensável para a harmonia da coletividade e, assim, a justiça não pode
possuir barreiras, como a situação financeira e geográfica, para que haja a
inserção de uma ação judicial, portanto, Boaventura de Santos percebe que:

Quanto mais baixo é o estrato socioeconômico do cidadão menos


provável é que conheça advogado ou que tenha amigos que conheçam
advogados, menos provável é que saiba onde e como e quando pode
contatar o advogado, e maior é a distância geográfica entre o lugar
onde vive ou trabalha e a zona da cidade onde se encontram os
escritórios de advocacia e os tribunais. (SANTOS, 1985, p.127)

A distância geográfica representa um abismo entre o poder judiciário e a


população marginalizada. É possível identificar localidades que são totalmente
excluídas em relação a esse acesso. Pode-se ser certificado na realidade social
que os órgãos jurisdicionais tem sua sede em locais onde a alta classe social
habita e portanto, órgãos como Ministério Público, Tribunal de Justiça, Polícia
Federal entre outros são sediados onde a classe dominante vive, o que contribui
para que a justiça seja seletiva. Por conseguinte, para que o pobre, morador de
1507

subúrbios procure ajuda do Estado, é necessário que pegue de 2 a 3 ônibus e


ande de metrô, além de que, ainda irá perder um dia inteiro de trabalho para tal.
Outrossim, o rico resolve todos seus problemas muitas vezes sem nem sair de
casa, por meio de um telefonema. Boaventura de Santos reitera que:

A distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto


maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa
distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos,
mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam
estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades
econômicas. Em primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos
tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, têm mais
dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo
problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou as
possibilidades de reparação jurídica. (SANTOS, 1994, p. 74)

A falta de condições socioeconômicas que estes encontram mediante a


justiça revela um caráter elitista, deixando a massa sujeita a injustiças que
permeia uma crença de descredibilidade, fazendo a mesma acreditar que a
justiça é um privilégio das classes mais favorecidas. Dessa forma, a
desconfiança na justiça por parte dessa população facilita a origem de um Estado
paralelo, já que o Estado elitista não cumpre seu papel constitucional, e perde
suas funções administrativas, legislativas, judiciais e funções de governo. Por
conseguinte, é imprescindível o pensamento de Engels:

O Estado não é, de modo algum, um poder que se impõe à sociedade


de fora para dentro. É um produto da sociedade quando esta chega a
determinado grau de desenvolvimento, e a confissão de que esta
sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria
e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue
conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com
interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a
sociedade em uma luta estéril, faz-se necessário um poder colocado
acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo
dentro dos limites da ordem. Este poder, nascido da sociedade, mas
posto acima dela, e dela se distanciando cada vez mais, é o Estado.
(ENGELS, 1884, p.135-136)

O temor de represálias é também outro fator que interfere ao acesso à


justiça, tendo em vista que as pessoas deixam de lutar pela reivindicação dos
bens jurídicos lesados, com receio de sofrer retaliação pelo causador da lesão,
o que reafirma o descrédito do poder judiciário.
Não apenas o temor de represálias impede que a justiça seja feita, mas
mesmo quando esta é procurada, os locais que deveriam solucionar e sentenciar
os procedimentos jurídicos encontram-se em estado de defasagem,
principalmente no âmbito de processamento judicial, tendo diversas causas que
não são solucionadas por não haver eficiência e harmonia para tal. Enio Silva
sustenta que:

Não basta ainda que o poder público dê garantias de amplo acesso à


Justiça, conforme obriga a CF/88 (inciso XXXV do art. 5o). Seu dever
é de ministrar uma Justiça célere, dentro do que se considera um prazo
razoável de duração do processo. E se o Judiciário não pode ainda
oferecer essa necessária celeridade processual, o Estado não pode
ficar inerte, sob pena de estar violando um mandamento constitucional.
1508

Deverá, assim, a esfera de poder público competente providenciar os


meios que garantam a celeridade da tramitação processual. (SILVA,
2008, p.25)

Por conseguinte, conclui-se que no Brasil não há uma justiça efetiva para
todos, e que existem sim barreiras criadas para que algumas classes sociais
sejam impedidas de obter acesso ao poder judiciário. Assim como José Murilo:

Do ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros


podem ser divididos em classes. Há os de primeira classe ou
“doutores”, que estão acima da lei, que sempre conseguem defender
seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social. Os
doutores são invariavelmente brancos, ricos, bem vestidos com
formação universitária. São empresários, banqueiros, grandes
proprietários rurais e urbanos, políticos, profissionais liberais, altos
funcionários. Frequentemente, mantém vínculos importantes nos
negócios, no governo, no próprio Judiciário. Esses vínculos permitem
que a lei só funcione em seu benéfico. [...] Ao lado dessa elite
privilegiada, existe uma grande massa de “cidadãos simples”, de
segunda classe, que estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei [...].
Essas pessoas nem sempre têm noção exata de seus direitos, e
quando a tem carecem dos meios necessários para os fazer valer,
como o acesso aos órgãos e autoridades competentes e os recursos
para custear demandas judiciais [...]. Para eles, existem os códigos
civis e penais, mas aplicados de maneira parcial e incerta. Finalmente,
há os “elementos” do jargão policial, cidadãos de terceira classe. É a
grande população marginal das grandes cidades, trabalhadores
urbanos e rurais sem carteira assinada, posseiros, empregadas
domésticas, biscateiros, camelôs, menores abandonados, mendigos
[...]. Na prática, ignoram seus direitos civis ou os têm sistematicamente
desrespeitado por outros cidadãos, pelo governo, pela polícia. Não se
sentem protegidos pela sociedade e pelas leis [...]. Para eles vale
apenas o Código Penal. (CARVALHO, 2005, p. 215-217)

Entretanto, essa realidade social está totalmente divergente da prevista


Constituição Federal de 1988, a qual defende no art. 5, XXXV, a justiça ao bem
lesado à todos sem qualquer tipo de distinção. O acesso à justiça significa
acesso às ferramentas de poder político e do bem coletivo, e não individual. Em
suma, profundas reformas processuais, novos mecanismos e novos
protagonismos no acesso ao direito e à justiça são fundamentais para que a
realidade jurídica progrida para o bem coletivo e, assim o acesso à justiça seja
tratado verdadeiramente como um direito fundamental.

4. REFERÊNCIAS

ACESSO À JUSTIÇA como direito humano e fundamental. Jus.com.br.


Disponível em https://jus.com.br/artigos/62423/acesso-a-justica-como-direito-
humano-e-fundamental. Acesso em 29 de set de 2019.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do


Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

CARVALHO, José Murilo de. 2005 (2001). Cidadania no Brasil – o longo


caminho. 7ª ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira.
1509

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do


Estado.
Tradução de Leandro Konder. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Obras
escolhidas, Volume 3. São Paulo: Alfa-Omega, /d, p. 7-143

GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca.


(Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 3ª. ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2010.
O DIREITO FUNDAMENTAL ao acesso à justiça. Conteúdo Jurídico.
Disponível em https://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48517/o-
direito-fundamental-ao-acesso-a-justica. Acesso em 29 de set de 2019.
OS OBSTÁCULOS PARA o acesso à justiça e os meios alternativos para a
resolução dos conflitos. Jus.com.br. Disponível em
https://jus.com.br/artigos/62758/os-obstaculos-para-o-acesso-a-justica-e-os-
meios-alternativos-para-a-resolucao-dos-conflitos. Acesso em 29 de set de
2019.

SANTOS, Boaventura de Sousa, Para uma revolução democrática da


justiça. São Paulo: Cortez, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na


pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.

SILVA, Enio. A garantia constitucional da razoável duração do processo e


a defesa do Estado. São Paulo, 2008.

WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis en derecho: pautas


metodológicas y técnicas para el estudiante o investigador del derecho.
Madrid: Civitas, 1985.
1510

DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL: O CONCEITO JURÍDICO DE PESSOA E


O INÍCIO DA PERSONALIDADE
CIVIL LAW AND CIVIL PROCEEDINGS: THE LEGAL CONCEPT OF PERSON
AND THE BEGINNING OF PERSONALITY

Flávia Laura Sguarçalo da Silva


Orientador (a): Cecília Rodrigues Frutuoso Hildebrand

Resumo: Subsistem muitas controvérsias no que diz respeito ao início da


personalidade jurídica em nosso ordenamento jurídico, entretanto, esse assunto
deveria ser mais discutido para uma posição melhor fundamentada e com mais
coerência. Nascituro é aquele que irá nascer, que já foi concebido e que está
ainda no ventre. O Código Civil de 2002 dispõe: “Art. 2o A personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro. Na presente pesquisa busca-se entender as
posições doutrinarias diante do tema, que expressam o conceito, portanto, a
denominação do produto da concepção que ainda não foi retirado do ventre
materno. A polêmica doutrinária não reside, todavia, em se ter a exata
compreensão do conceito de nascituro que é matéria pacífica, mas, sim, em se
resolver na ciência jurídica a respeito de quando se dá o surgimento da
personalidade civil.
Palavras-chave: Personalidade Civil. Nascituro. Direitos.

Abstract: Many controversies exist what concerns the beginning of the legal
personality in our legal ordenamento, meantime, this subject should be more
discussed for a better substantiated position and with more coherence. Nascituro
is he who will be going to be born, what was already conceived and what is still
in the belly. The civil code of 2002 arranges: "2nd article To civil personality of
the person begins of the birth with life; but the law runs to safety, from the
conception, the rights of the nascituro. In the present is sought to understand the
positions you would write dogmas before the subject, which they express the
concept, so, the denomination of the product of the conception that was still not
withdrawn of the motherly belly. The controversy doutrinária does not reside,
however, in there has been the right understanding of the concept of Nascituro
that is a peace-loving matter, but, yes, in be resolving in the legal science as to
when there happens the appearance of the civil personality.
Key words: Civil personality. Nascituro. Rights.

INTRODUÇÃO

É de extrema importância a reflexão relacionada a situação jurídica do


nascituro e o início da sua personalidade civil, é um tema fartamente debatido
no âmbito jurídico, principalmente com relação a quais direitos e garantias lhe
são atribuídos. O presente resumo apresenta as teorias que descrevem a
natureza da personalidade jurídica e os reflexos da doutrina jurídica acerca dos
direitos e garantias do nascituro no ordenamento jurídico brasileiro.
Adentra-se no tema, não somente almejando trazer ricas comparações
doutrinarias, mas enfatizando principalmente sua aplicabilidade de acordo a
norma descrita em lei e finalmente quais as consequências referentes à
aplicação de uma ou outra corrente em processos judiciais.
1511

Conjuntamente serão abordadas situações exemplificadas onde o direito


ao nascituro e a personalidade jurídica são abordados diariamente, casos nos
quais o direito à vida se sobrepõe a quaisquer outras circunstâncias, sendo
levado sobretudo o respeito aos Direitos Humanos. Buscamos trazer
comparativos, situações, que limitam os direitos do nascituro e o inicio da
proteção da integridade física e psíquica da mulher.

DESENVOLVIMENTO

NASCITURO NO ORDENAMENTO JURÍDICO

O nascituro é o feto durante sua gestação, ainda não preenche o primeiro


dos requisitos necessários à existência da pessoa, isto é, o nascimento com vida,
mas desde a concepção já é protegido.
Há necessidade de se fazer uma análise da proteção ao nascituro no
sistema legal brasileiro, discutindo a qual das teorias a seguir se amoldam,
partindo necessariamente do art. 2° do Código Civil, dispositivo legal que serve
de base para justificar o início da personalidade. Prosseguimos com a discussão
sobre a natureza jurídica do nascituro através de várias correntes doutrinárias,
as quais podem ser resumidas em apenas três:

[...] a natalista, que considera o início da personalidade a partir do


nascimento com vida, dentro da orientação do art. 2° do Código Civil.
A doutrina da personalidade condicional, também denominada
concepcionista condicionada, que considera que a personalidade
começa com a concepção, sob a condição do feto nascer com vida.
A doutrina concepcionista que defende a tese de que o nascituro tem
personalidade jurídica desde a concepção, ou seja, ostenta direitos
próprios protegidos pela lei, já com o seu surgimento. – (O INÍCIO DA
PERSONALIDADE E OS DIREITOS DO NASCITURO EM FACE DA
DOUTRINA JURÍDICA DA PROTEÇÃO INTEGRAL - Paulo Ricardo
de Souza Bezerra, Promotor de Justiça – Ministério Público do
Estado do Pará)

A princípio, por nascituro deve-se entender, segundo a doutrina civilista,


o ser vivo que está por nascer. Expressa o conceito, portanto, a denominação
do produto da concepção que ainda não foi retirado do ventre materno. A
polêmica doutrinária não reside, todavia, em se ter a exata compreensão do
conceito de nascituro, mas, sim, em se resolver na ciência jurídica a respeito de
quando se dá o surgimento da personalidade civil. Trata-se de buscar a resposta
à seguinte indagação: a personalidade jurídica do indivíduo se instaura com a
concepção ou tão somente após o nascimento com vida do ser humano?
Veja, de acordo com o art. 2° do Código Civil, o nascituro adquire
personalidade jurídica ao nascer com vida, mas tem seus direitos resguardados
desde a concepção.
A seguir será estudado a fundo o conceito de cada uma das teorias
abordadas por nossa doutrina.

DOUTRINA CONCEPCIONISTA
1512

Dentre as diversas teorias explicativas desse fenômeno, destaca-se


a concepcionista, que é o entendimento defendido por grandes juristas como,
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (2002:91), Maria Helena Diniz (2002,
p.27), Flávio Tartuce (2007, v. 6.), dentre outros, ambos defendem que o
nascituro é pessoa humana, tendo direitos resguardados pela lei e pelo
ordenamento jurídico, ou seja, o nascituro é considerado pessoa desde sua
concepção, adquirindo personalidade e sendo tutor de direito, considera-se
também o nascituro, sendo tutor de todos os direitos como filho. De acordo com
essa teoria, a personalidade jurídica independe do nascimento com vida, ou seja,
ostenta direitos próprios protegidos pela lei, já com o seu surgimento. Acerca da
tese concepcionisca, nos explica Silmara Juny Chinelato:

[...] juridicamente, entram em perplexidade total aqueles que tenham


que afirmar a impossibilidade de atribuir capacidade ao nascituro ‘por
este não ser pessoa’. A legislação de todos os povos civilizados é a
primeira a desmenti-lo. Não há nação que se preze onde não se
reconheça a necessidade de proteger os direitos do nascituro (Código
chinês, art. 1º). Ora, quem diz direitos, afirma capacidade. Quem afirma
capacidade, reconhece personalidade.

O que nos diz o professor Rodolfo Pamplona:

[...] Independentemente de se reconhecer o atributo da personalidade


jurídica, o fato é que seria um absurdo resguardar direitos desde o
surgimento da vida intrauterina se não se autorizasse a proteção deste
nascituro - direito à vida - para que justamente pudesse usufruir estes
direitos. Qualquer atentado à integridade do que está por nascer pode,
assim, ser considerado um ato obstativo do gozo de direitos

Segundo Maria Helena Diniz (2002, p. 113): “O embrião, ou o nascituro,


tem resguardados, normativamente, desde a concepção, os direitos, porque a
partir dela passa a ter existência e vida orgânica e biológica própria,
independente da de sua mãe. Se as normas o protegem é porque tem
personalidade jurídica. Um dos direitos mais básicos do nascituro é o direito à
vida, uma vez que a prática do aborto é considerada criminosa pelo direito
brasileiro” art. 124 do Código Penal.
A renomada doutrinadora, em construção interessante, classifica a
personalidade jurídica em formal e material. A personalidade jurídica formal seria
aquela relacionada com os direitos da personalidade, o que o nascituro já tem
desde a concepção; enquanto que a personalidade jurídica material manteria
relação com os direitos patrimoniais, e o nascituro só a adquire com o
nascimento com vida.

DOUTRINA NATALISTA

O art. 2º do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002), é um dispositivo


que afirma, in verbis, que "a personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro.” Ao analisar-se o dispositivo de maneira desmembrada, veja a
indicação das duas rivais teorias da concepção, o que torna o texto ali constante,
pelo menos na sua essência, um pouco contraditório e confuso. na primeira
parte, ao elucidar que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento
1513

com vida [...]", verifica-se que o nascituro, portanto, não seria pessoa, e,
consequentemente, não teria direito algum, tese essa sustentada pela teoria
natalista.
Para a teoria natalista, suscintamente falando, o nascituro não possui, por
hora, qualquer direito, já que o código civil exige o nascimento com vida para
que o venha ter. O questionamento que a teoria natalista nos traz é: Ora, se o
nascituro não é pessoa humana, seria ele uma coisa? Objeto? Tendo em vista
que, para os natalistas, o nascituro não é pessoa de direitos, portanto, não é
pessoa. Do ponto de vista prático, a teoria natalista nega ao nascituro mesmo os
seus direitos fundamentais, relacionados com a sua personalidade
Segundo o doutrinador Silvio de Salvo Venosa (condição do nascituro -
2003:142) “O fato de o nascituro ter proteção legal, podendo inclusive pedir
alimentos, não deve levar a imaginar que tenha ele personalidade tal como a
concebe o ordenamento. Ou, sob outros termos, o fato de ter ele capacidade
para alguns atos não significa que o ordenamento lhe atribuiu personalidade.
Embora haja quem sufrague o contrário, trata-se de uma situação que somente
se aproxima da personalidade, mas com esta não se equipara. A personalidade
somente advém do nascimento com vida.” Ele deixa claro ainda que existem
tentativas legislativas no sentido de ampliar essa proteção ao próprio embrião.

TEORIA DA PERSONALIDADE CONDICIONADA

Essa teoria entende o nascituro como sujeito de direitos, tendo o


nascimento com vida como condição suspensiva, previsto no art. 125¹ CC Lei
10406/02, sendo, portanto, a mãe quem responde temporariamente pelo feto,
conservando os seus direitos que foram eventualmente suspensos. (art. 130²
CC) Contudo, alguns direitos já estão assegurados desde a concepçã. Ou seja,
o nascituro possui direitos eventuais.
A grande crítica que se faz a essa teoria, é que ela é voltada para
questões patrimoniais, não respondendo pelo apelo de personalidade e pessoais
do nascituro. Vale ressaltar, por oportuno, que os direitos da personalidade, não
devem ficar sujeitos a condição, termo ou encargo, afinal, o nascituro não tem
direitos, mas apenas direitos eventuais sob condição suspensiva, ou seja, uma
mera expectativa de direitos.
Acerca desse tema Paulo Nader (2016) aponta que embora o código civil
de 1916 e 2002 adotem a teoria natalista, o legislador possuía a alternativa de
fixar a partir da concepção ou nascimento com vida a proteção ao nascituro ou
embrião, nesta linhagem de pensamento, ele sustenta o exposto apontando que
Teixeira de Freitas e Clovis Bevilaqua como civilistas de expressão defendem a
teoria concepcionista.
Existe uma contestação em massa sob o início da personalidade, quando
adentramos na questão do aborto por exemplo. Sendo o inicio da personalidade
civil após o nascimento com vida, por qual motivo concreto a vida do feto deve
ser protegida pelo nosso código penal antes mesmo de ser considerado pessoa
pela medicina? Representante do Instituto Brasileiro de Direito Civil, a professora
Ana Carla Harmatiuk Matos sustentou, em sua exposição na audiência pública
sobre o aborto, que o Código Civil resguarda os direitos do nascituro sem,
contudo, equivalê-los à personalidade jurídica decorrente do nascimento com
vida. Segundo a expositora, o Código garante uma proteção progressiva do
nascituro em direção à aquisição de sua personalidade futura, e somente após
1514

o nascimento ele será titular pleno de todos os direitos garantidos no


ordenamento jurídico. (2018, ADPF 442)
Nessa ponderação, ela defendeu que a gestante deve receber valorização
diferenciada e é merecedora de maior proteção. Trazendo para a discussão mais
uma vez, a teoria natalista, que abordada desse ponto de vista, resguarda os
direitos da mulher relacionados a sua autonomia.

CONCLUSÃO

Após a reflexão acerca do nascituro e o início da personalidade, é


exponencial a dificuldade em embasar-se em uma única teoria e generalizar sua
aplicação. Em exemplo veja de forma conclusa como cada teoria aborda o
nascituro e sua eficácia em casos específicos.
Faz-se necessário explicitar, de que maneira a jurisprudência tem se
posicionado diante do aborto em fetos anencefálicos. Após uma análise, foi
encontrada uma decisão do STF, proferida através do relator, Ministro Marco
Aurélio, em uma sessão presidida pelo Ministro Cesar Peluso, referente a uma
petição da CNTS (Confederação nacional dos trabalhadores na saúde)
representada pelo Doutor Luis Roberto Barroso. O pleito final versa sobre a
técnica da interpretação conforme a Constituição, assentada a premissa de que
apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito passivo
do crime de aborto. Evocou Nelson Hungria, em “Comentários ao Código Penal”:

ADPF 54 / DF [...]não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o


produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que
as conseqüências dos atos praticados se resolvem unicamente contra
a mulher. O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser
um produto fisiológico e não patológico. Se a gravidez se apresenta
como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir
sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto,
não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a
presumida possibilidade de continuação da vida do feto.

Por fim a decisão proferida foi a seguinte:

[...] Então, requer, sob o ângulo acautelador, a suspensão do


andamento de processos ou dos efeitos de decisões judiciais que
tenham como alvo a aplicação dos dispositivos do Código Penal, nas
hipóteses de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos,
assentando-se o direito constitucional da gestante de se submeter a
procedimento que leve à interrupção da gravidez e do profissional de
saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a
ocorrência da anomalia. O pedido final visa à declaração da
inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da
interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal
– Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica
do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados
por médico habilitado.

Após essa análise sobre as teorias do nascituro e o início da


personalidade, atinar pontos primordiais que cada teoria aborda, e de que forma
cada uma delas é aplicada no ordenamento jurídico brasileiro, através de uma
minuciosa pesquisa doutrinaria, concluímos que alternando entre os casos, o
1515

STJ busca uma aplicação adequada entre as teorias, dentre eles, destacou-se
que a interrupção da gravidez em casos de encéfalos sequer se encontra
tipificada em Lei como forma de aborto, trazendo consigo o entendimento, de
que o Código Civil descreve o início da personalidade civil após nascimento com
vida, portanto o nascituro possui uma mera expectativa de direitos. O caso
supracitado por exemplo, nos traz pleno exercício da teoria natalista.
A teoria da personalidade condicionada por sua vez, abrange uma
questão de direitos suspensos temporariamente, essa observação nos leva a
analisar o que nos diz o art. 2° do Código Civil, deixa claro onde começa a
personalidade civil da pessoa, que é no seu nascimento com vida. Analisando
de forma concreta, a teoria da personalidade condicionada está apropriada de
acordo com o descrito em lei, onde a genitora do feto responde por ele
defendendo esses direitos até que o feto, visto como pessoa, nasça com vida. O
ponto visto como “problemático” dessa teoria, como citado no corpo do resumo,
é que ela trata dos direitos patrimoniais do nascituro, e não dos direitos pessoais
ou fundamentais, direitos esses que deveriam ser analisados com mais
amplitude, afinal adentra-se em uma questão imponente, onde realmente nasce
a pessoa do nascituro.
Acerca da teoria concepcionista, entende ser plausível a construção de
Maria Helena Diniz, para quem o nascituro tem personalidade jurídica formal –
relacionada com os direitos da personalidade; mas não personalidade jurídica
material – relacionada com os direitos patrimoniais, o que somente é adquirido
com o nascimento com vida, justamente porque o nascituro possui seus direitos
patrimoniais após seu nascimento com vida.
Entende-se que todas as teorias descritas são aplicadas de forma parcial
ou concreta no ordenamento jurídico. Mesmo com tantos caminhos e a
imparcialidade nas decisões, torna-se abstruso tratar desse tema na prática e
aplicar somente uma das proposições de forma genérica, levando em
consideração que existem casos, divergentes entre si e que as teorias comboiam
corretamente a lei na sua forma específica.

REFERÊNCIAS

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AZEVEDO, Antonio Junqueira. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa


humana. In Revista Trimestral de Direito Civil. Volume nº 9. Rio de Janeiro:
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CHINELATO, Silmara Juny. Adoção de nascituro e a quarta era dos direitos:


razões para e alterar o caput do artigo 1.621 do novo Código Civil. In:
DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões
controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003, v. 1.

DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 22. ed. São Paulo:
Saraiva, 2005, v. I.
1516

DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 3.

TARTUCE, Flavio. A situação Jurídica do nascituro: Uma página a ser virada


no Direito Brasileito.
1517

JURISDIÇÃO EM PERSPECTIVA: O FRACASSO DA GRATUIDADE E A


LITIGÂNCIA SEM RISCO NOS JUIZADOS ESPECIAIS
PERSPECTIVE JURISDICTION: THE FAILURE OF FREE AND RISK-FREE
LITIGATION IN SPECIAL JUDGES

Bruno Cristian Gabriel


Gabriel Pereira Nascimento

Resumo: A presente pesquisa busca se debruçar na análise da origem e


finalidade da criação dos Juizados Especiais, e sobretudo, se após algumas
décadas de sua criação, se efetivamente vem surtindo os resultados almejados.
Sabe-se, que foi Mauro Cappelletti e Garth os precursores do conceito de acesso
à justiça, e que foram estes autores que trouxeram transformação considerável,
correspondendo tal transformação a uma mudança equivalente ao estudo e
ensinamento do próprio processo civil. Não obstante as duas primeiras ondas
renovatórias trazidas pelo estudo de tais autores, denominado “Projeto
Florença”, a terceira onda teve como foco a melhoria e a desburocratização do
processo, priorizando com processos mais objetivos e tramitação menos
burocrática. O regime dos juizados no Brasil acabou por assegurar o acesso
formal a todos cidadãos, implementando a isenção de custas inicias e verbas
sucumbenciais. E é nesse ponto que se debruçara o presente trabalho, na
análise da efetividade desta implementação da isenção de custas iniciais e
verbas sucumbenciais, analisando se a utilização por este procedimento vem
sendo realizada de forma inadequada, ou seja, não por ser um procedimento
menos burocrático, mas sim um procedimento sem riscos.
Palavras chave: Processo Civil. Juizados Especiais. Litigância

Abstract: This research aims to analyze the origin and purpose of the creation
of Special Courts, and especially if after some decades of its creation, the desired
results have been effectively achieved. It is known that Mauro Cappelletti and
Garth were the forerunners of the concept of access to justice, and it was these
authors who brought about considerable transformation, corresponding to such
a change equivalent to the study and teaching of the civil process itself.
Notwithstanding the first two renewal waves brought by the study of such authors,
called “Project Florence”, the third wave focused on process improvement and
bureaucracy, prioritizing with more objective processes and less bureaucratic
procedures. The court system in Brazil eventually ensured formal access to all
citizens, implementing the exemption from initial costs and succumbing funds.
And it is at this point that the present work will be analyzed, in the analysis of the
effectiveness of this implementation of the exemption of initial costs and
sucumbencial sums, analyzing if the use by this procedure has been performed
improperly, that is, not because it is a less bureaucratic procedure. but a risk-free
procedure.
Keywords: Civil Procedure. Special Courts. Litigation.

INTRODUÇÃO

A análise acadêmica acerca da eficiência do Poder Judiciário, dada a


morosidade com que os quase 80 milhões de processos que tramitam junto ao
Poder Judiciário, é da mais alta relevância. Os estudos realizados pelo Conselho
1518

Nacional de Justiça1 apontam que o Poder Judiciário finalizou no ano de 2018


com 78,7 milhões de processos.
Assim, é inegável que os impactos sociais e econômicos causados pela
morosidade judicial2 são gravíssimos e passaram a ser analisados pela
academia como uma temática própria, com especial enfoque nas nefastas
consequências em relação não só à demora na prolação da decisão judicial e
consequente não efetivação de direitos legislados.
Aliás neste sentido FUX e BODART (2019, p.31) sustentam:

Nada obstante os preceitos constitucionais e legais em favor da


expansão do acesso à justiça, a realidade é deveras diversa. A crise
da justiça civil brasileira é uma velha conhecida. O historiador Stuart B.
Shwartz, da Yale University (EUA), relata problemas relacionados à
lentidão da Justiça e ao excesso de trabalho nas Cortes desde a era
do Brasil Colonial.

Aliás, a Constituição Federal de 1988 dando força não somente aos


instrumentos de efetivação ao acesso à justiça, mas trazendo em seu artigo 5º,
inciso XXXV, que “a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça de
lesão”, acabou por consagrar o direito de acesso à justiça como garantia basilar
do próprio Estado Democrático de Direito.
Assim, para uma melhor compreensão, preliminarmente será abordado o
contexto histórico do Acesso à Justiça e a assimilação do resultado do Projeto
Florença pela cultura jurídica brasileira, para então desenvolver a evolução dos
Juizados Especiais, analisando-se as principais demandas discutidas nesse
âmbito e sobretudo, se tal procedimento vem trazendo o resultado almejado pela
terceira onda processual, ou seja, assegurar o acesso formal a todos cidadãos,
implementando a isenção de custas inicias e verbas sucumbenciais.
O problema central da presente pesquisa diz respeito à essa litigância
desenfreada e sem ônus no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, o que em
tese afastaria o propósito almejado quando do desenvolvimento da terceira onda
renovatória por Mauro Cappelletti e Garth. Assim, a questão a ser respondida
pela presente pesquisa é em que medida a gratuidade dos juizados especiais
não fomenta a litigância lotérica? Ou seja, em que medida, as partes não se
aproveitam de tal procedimento para litigar de forma gratuita e sem ônus
sucumbencial?
Para obter estas respostas e para o bom desenvolvimento desta
pesquisa, se utilizará do método hipotético dedutivo, utilizando-se de pesquisa
bibliográfica.

1. DO PROJETO FLORENÇA E AS ONDAS RENOVATÓRIAS

O estudo realizado no Centro de Estudos de Direito Processual


Comparado de Florença, que mais tarde restou conhecido como Projeto
Florença, iniciou-se a discussão do tema acesso à justiça, com vistas a delimitar
seu real significado e possíveis desdobramentos desse termo.

1Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisa-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em 05


out. 2019 às 11:24.
2 Dentre várias referências nacionais, destaca-se: AMARAL, 2001 / BARROSO, 2007 /

GABBAY; CUNHA, 2012. E dentre as estrangeiras, YAMIN; GLOPPEN, 2011 / GAURI;


BRINKS, 2008.
1519

Embora a conceituação de acesso à justiça seja matéria demasiadamente


árdua, Cappelletti e Garth lograram êxito em seus estudos, determinando duas
finalidades básicas do sistema jurídico:

A expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição,


mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico
– o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou
resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema
deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir
resultados que sejam individual e socialmente justos. [...], uma
premissa básica será a de que a justiça social, tal como desejada por
nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo.
(CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.08)

Cappelletti e Garth identificam que o conceito de acesso à justiça sofreu


transformação considerável, correspondendo tal transformação a uma mudança
equivalente ao estudo e ensinamento do próprio processo civil.
Assim, no decorrer das décadas, o estudo desenvolvido em Florença
apontou a existência do que denominaram três ondas:

O recente despertar de interesse em torno do acesso efetivo à Justiça


levou a três posições básicas, pelo menos nos países do mundo
Ocidental. Tendo início em 1965, estes posicionamentos emergiram
mais ou menos em sequência cronológica. Podemos afirmar que a
primeira solução para o acesso – a primeira “onda” desse movimento
novo – foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas
tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses
“difusos”, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do
consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a
chamar simplesmente “enfoque de acesso à justiça” porque inclui os
posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando,
dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo
mais articulado e compreensivo. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.31)

E o que de fato nos interessa na presente pesquisa, é a terceira onda


renovatória que buscou a desburocratização do processo. E, nesse sentido, os
Juizados Especiais representam, ao menos em tese, o acesso à justiça na
terceira onda, isto porque são adequados aos anseios de uma justiça rápida,
sem custos e formalismos (ABREU, 2008), pois os Juizados Especiais foram
concebidos para facilitar o acesso à Justiça partindo-se da percepção de que
causas de pequeno valor econômico não estavam sendo levadas à apreciação
do Judiciário. (DINAMARCO, 1988)

2. DOS JUIZADOS ESPECIAIS NO BRASIL

Embora não se desconheça que o Brasil tenha dado tratamento às causas


de pequeno valor em experiências isoladas3, essas não guardam relação com a
criação dos Juizados Especiais Cíveis, inspirados no sistema americano de
common law. (CARNEIRO, 1985).

3 Os juizados especiais tiveram como experiência pioneira, no Brasil, os Conselhos de


Conciliação e Arbitramento, criados no Estado do Rio Grande do Sul, em 1982, pela Associação
dos Magistrados do Rio Grande do Sul (AJURIS) e pelo Tribunal de Justiça do mesmo Estado.
Nesse sentido, ver Sérgio Roberto Lema, 2016
1520

Os Juizados Especiais, mais do que uma mera modificação


procedimental, mostraram-se como uma inovação, trazendo consigo, uma
inédita filosofia na solução de conflitos, com estratégia diferenciada no
tratamento da demanda, técnica de abreviação e simplificação de procedimento
e uma criação de um subsistema próprio, desligado, independente da justiça
comum. (WATANABE, 1985).
Nesse sentido, explica Léslie Shérida Ferraz, as inovações trazidas pela
Constituição Federal de 1988:

As inovações da Carta em relação à Lei n. 7244/84 foram: (i) a


instituição do juiz leigo, ao lado do juiz togado; (ii) a inserção da
execução das causas cíveis, que constava no projeto original, mas
fora excluída; (iii) a criação, ao lado dos Juizados Especiais Cíveis, dos
Juizados Especiais Criminais; (iv) a alteração do objeto, de causas de
reduzido valor econômico, para causas cíveis de menor complexidade;
(v) autorização da transação. (FERRAZ, 2010, p.45)

Atendendo ao comando constitucional, adveio, posteriormente, a Lei n.


9099/95, instituindo aos Juizados Especiais Cíveis a função precípua de tratar
das causas de menor complexidade, tendo como princípios a oralidade,
simplicidade, informalidade, celeridade e a própria economia processual.
(CHIMENTI, 2000)
Todavia, em razão do advento da Lei 9.099/95 e a revogação expressa da Lei n.
7244/84, que dispõe4 não somente às causas cíveis de menor complexidade,
mas também, dentre elas, as causas de menor valor, qual seja, de até 40
(quarenta) salários mínimos. (Essa ideia não está completa) (ALVIM, 2007)
E ainda, como observa, ainda, Reinaldo Filho (1999), em razão de pressão
exercida por entidades de classe, a Lei 9.099/95 facultou ao cidadão a
contratação de advogado somente nas causas que não excedam 20 (vinte)
salários mínimos, sendo obrigatório naquelas cujo valor ultrapasse 20 (vinte)
salários mínimos.
A criação dos juizados de pequenas causas e, posteriormente, dos
juizados especiais, teve no seu ideário, propostas que apontavam para a
estruturação de uma justiça mais próxima do povo e de suas prementes
necessidades.
Inicialmente, se preordenaram a receber a litigiosidade contida,
projetando uma perspectiva exitosa.
Todavia, a observação mais atenta revela outra realidade: deficiências
estruturais e organizacionais, insuficiência de recursos humanos e materiais não
têm permitido recepcionar, tempestiva e eficazmente, o afluxo crescente de
processos.
Como resultado, veem-se pautas sobrecarregadas, audiências
postergadas, retardo no julgamento célere. Isso gera uma desorientação aos
jurisdicionados a respeito de qual porta devem bater, razão pela qual faz com
que muitos acabem preferindo a justiça dita comum, desaguando na crise
numérica.
III – DO FRACASSO DOS JUIZADOS ESPECIAIS E A LITGÂNCIA

4 Lei 9099/95 - Art. 3º O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo
e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas: I - as causas cujo
valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo.
1521

Hodiernamente, os Juizados Especiais são gratuitos nas causa em


primeira instância, nos termos do art. 54 da lei 9.099/1995, ou seja, o "acesso
ao Juizado Especial independerá, em primeiro grau de jurisdição, do
pagamento de custas, taxas ou despesas".
Analisando o art. 55 da mesma lei, é possível se verificar que o vencido
não terá que pagar as custas, assim como a sucumbência de honorários
advocatícios, pois conforme o dispositivo, a "sentença de primeiro grau não
condenará o vencido em custas e honorários de advogado, ressalvados os
casos de litigância de má-fé".
Já quando se trata de fase recursal, para que aquele que não tenha ficado
satisfeito com a tutela jurisdicional e tenha intensão de reforma-la, há a
necessidade do recolhimento de custas, a exceção são os casos de gratuidade
concedida pela justiça ao recorrente. (MACHADO, 2019)
O óbice para litigar no Brasil antes das ondas renovatórias do acesso à
justiça, criado através do estudo denominado Projeto Florença desenvolvido por
Cappelletti e Garth, teria que ser vencido, isto porque, constatado que os custos
para se pleitear frente ao poder judiciário eram elevados, ocasionando por via
de consequência que a parte menos afortunada, ainda que conseguisse
ingressar com sua demanda frente ao poder judiciário, não teria meios de custear
todo o processo que se demonstrava complexo e burocrático.
O acesso à justiça gratuito nos JECs buscou propiciar o direito de acesso
à justiça a aqueles cidadãos que não possuem condições para custear o
processo judicial em sua plenitude, trazendo com isso um acesso à justiça à
todos. Ou seja, nas causas de menor complexidade, buscou trazer a lei 9099/90
um procedimento mais simples, célere, informal e que dispensasse custas
iniciais e honorários de sucumbência em primeira instância.
Contudo, abri possibilidade para que todos ou quase todos litigassem e
pudessem pleitear o que quiser, realizando quaisquer pleitos, já que a princípio
não se custa nada para litigar nos juizados especiais, pois o autor pode interpor
com ou sem fundamento. (MACHADO, 2019)
Essa estratégia utilizada para vencer os obstáculos do acesso à justiça,
trouxe uma brecha e que fica evidenciado quando analisado o relatório justiça
em números, estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, que aponta a
morosidade enfrentada pelos quase 80 milhões de processos que tramitam
junto ao Poder Judiciário5.
Assim, deve ser levado em consideração o aumento desenfreado de
pedidos no âmbito dos Juizados Especiais, em que o autor sabe que a ação tem
uma probabilidade muito grande de não lograr êxito, mas em razão da ausência
de riscos, em função da isenção de custas e verba sucumbêncial, procura o
Estado para dirimir aquele suposto conflito, que muitas vezes poderia ter ser
resolvido por autocomposição ou outro meio para a resolução da lide. Aliás,
nesse sentido:

O problema é que a solução adotada pelo legislador ao longo do


tempo se mostrou propensa a estimular o demandismo – ou seja,
o ingresso de ações judiciais em que o autor tem ciência de que

5 Disponível em
http://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=Q
VS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shResumoDespFT Acesso em 24/10/2017 as
18:20
1522

não tem razão ou de que poderia resolver o problema em sede


extrajudicial, mas prefere se dirigir ao Poder Judiciário
simplesmente porque não custa nada e tem a possibilidade de até
mesmo receber alguma compensação por isso. (ROQUE;
GAJARDONI; DELLORE; MACHADO e OLIVEIRA, 2019)

O volume exorbitante de demandas judiciais distribuídas no âmbito dos


Juizados Especiais, não torna possível a efetiva entrega da tutela jurisdicional
em tempo razoável.
A imensidão de ações judiciais tramitando, muitas delas pleiteando
valores irrisórios, ou ainda demandas temerárias, retarda a averiguação e do
julgamento de casos realmente sérios, o que faz com que os fundamentos da
celeridade, informalidade dos Juizados Especiais se torne apenas aparente.
Temos os Juizados Especiais Federais e da Fazenda Pública que estão
caminhando para o mesmo lugar, com milhares de demandas, e uma quantidade
exorbitante de sentenças, na qual, mitiga direitos e desrespeita precedentes,
qual seja, havendo a inexistência de resolução de conflitos adequadamente.
(MACHADO, 2019)
Mais de 1% (um inteiro) do PIB brasileiro é destinado para despesas com
o poder judiciário, o que nos faz perceber que além do demandismo propiciar a
morosidade e a consequente ineficiência da jurisdição, acarreta também o
aumento dos custos e despesas do poder judiciário o que implicam elevadíssimo
déficit aos cofres públicos.
Ainda que tal circunstancia não seja atribuível exclusivamente aos
Juizados Especiais, “nos termos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), o estoque de processos judiciais de julgamentos em 2017 alcançou marca
de 80,1 milhões, acumulando um acréscimo de 31,9% desde 2009” (FUX e
BODART, 2019, p. 32).
Com isso traz a perspectiva de um Estado sobrecarregado de processos,
e os Juizados Especiais, sem qualquer filtro, seja pela gratuidade seja pela
ausência de ônus, vem contribuindo e fomentando não só a litigância, mas ainda
mais preocupante, vem fomentando a litigância lotérica.
Como não poderia deixar de ser, o acesso ilimitado aos Juizados
Especiais também tem sido alvo de discussões e debates.
Hoje a uma grande discussão diz respeito aos limite para ações que
seriam “insignificantes” ou em que autor estivesse abusando da boa-fé pública:

Poderiam existir diversos modelos para isso, mas sugerimos aquele


em que o autor não precisaria pagar custas no início da demanda,
ao protocolar a petição inicial. Mas, na hipótese de improcedência, a
sentença já o condenaria nos encargos da sucumbência. Como em
tudo na vida, o autor avaliaria o risco de sua iniciativa antes do
ingresso do processo nos juizados especiais, na perspectiva de que,
acaso vencido, será responsabilizado pelas custas processuais e
honorários advocatícios. (ROQUE; GAJARDONI; DELLORE;
MACHADO e OLIVEIRA, 2019)

E ainda:

sob a perspectiva do réu, sua derrota implicaria condenação nas


custas processuais e honorários advocatícios, o que poderia servir
como mais um incentivo para que ele se dispusesse a resolver
extrajudicialmente a questão ou, pelo menos, estivesse aberto a uma
1523

autocomposição antes da sentença. (ROQUE; GAJARDONI;


DELLORE; MACHADO e OLIVEIRA, 2019)

A solução proposta, tem como base a tentativa de inibir o cidadão de


procurar a jurisdição para propor qualquer ação, buscando trazer certos riscos
para as partes, o que ocorre em qualquer outro procedimento. O autor ou réu
vencido no processo, seria obrigado a pagar o custo da manutenção e
despesas, acrescidos ainda do valor referente os honorários sucumbências
para o advogado, fazendo com que o autor antes de entrar com a ação
pudesse observar com cautela a probabilidade de êxito, e com isso, buscar
frear o demandismo nos Juizados Especiais, e por via de consequência,
fomentar a ideia nos cidadãos na procura de métodos alternativos para a
resolução do conflito.
Assim, fica claro que a gratuidade criada para possibilitar o acesso à
justiça nos Juizados Especiais, tem sido um fracasso, pois como visto, gera a
inexistência de risco na litigância e com isso fomenta o demandismo,
acarretando um processo demasiadamente moroso, principalmente pela
quantidade considerável de petições improcedentes, além da ineficiência das
sentenças que acabam não atendendo seu principal objetivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resta evidente pelos relatórios publicados anualmente pelo Conselho


Nacional de Justiça a crise numérica vivenciada pelo Poder Judiciário brasileiro.
E nesse sentido, é necessário uma análise sob o viés Econômico do Direito,
sobretudo com relação aos Juizados Especiais, que foi objeto de estudo. Restou
comprovado uma massissa utilização indevida daquele procedimento, ou seja,
as partes não se utilizam daquele procedimento por ser mais célere, menos
burocrático, mas sim para se valer da gratuidade e litigar sem riscos, o que
fomenta a famigerada litigância lotérica.
Não se duvide que a ideia dos juizados especiais foi a aproximação da
população do próprio poder judiciário, trazendo um procedimento mais célere e
menos burocrático. Contudo, o que se observa de fato é a utilização de tal
procedimento com o intuito de um demandismo sem risco, e tal matéria precisa
ser debatida. Assim, é extremamente necessário uma releitura do acesso à
justiça, sobretudo no que tange à gratuidade de tal procedimento. Mas não é só,
é necessário o incentivo às partes para resolução de seus conflitos por meio da
autocomposição, bem como resta necessário uma cobrança mínima para as
custas do processo, observando a exceção, claro, nos casos de preenchidos
os requisitos para deferimento de gratuidade. Resta necessário ainda, a
previsão de sucumbência neste procedimento, levando o vencido, sendo ele
réu ou autor a obrigação de pagar as custas processuais e sucumbenciais, nas
mesmas medidas ou critérios do procedimento comum que dispõe o CPC
Por fim, perceba que é necessário mecanismos para reduzir demandas
infundadas e irracionais, com isso tornando o procedimento dos Juizados um
sistema justo e efetivo, no qual, aquele que utilize a jurisdição arque com ao
menos as custas processuais, e com isso evite com que a população venha a
arcar com esse demandismo lotérico observado na atualidade.

REFERÊNCIAS
1524

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Pequenas Causas. In:____________ (Coord.) Juizado Especial de Pequenas
Causas. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1985
1526

MEDIAÇÃO: O MÉTODO ALTERNATIVO PARA ACESSO À ORDEM


JURÍDICA JUSTA E ADEQUADA
MEDIATION: THE ALTERNATIVE METHOD FOR ACCESSING FAIR AND
SUITABLE LEGAL ORDER

Auany Pinheiro da Silva

Resumo: A presente pesquisa tem o objetivo de analisar a eficácia da mediação


em relação ao princípio da efetiva prestação jurisdicional e não, destacar os
problemas enfrentados pelo sistema judiciário. Ao estarmos diante de um litígio,
é comum, pensarmos no Poder Judiciário, como meio de solução. Por isso, criou-
se a Mediação como método alternativo para facilitar o efetivo acesso à justiça
e impedir uma acirrada disputa Judicial. Na Mediação, as partes, na presença de
um Mediador, com intuito de chegarem a um acordo, têm a oportunidade de
solucionar as questões importantes de modo simples e célere. Tornando assim,
um meio, de desafogar o Poder Judiciário.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Mediação. Meios alternativos.

Abstract: This research aims to analyze the effectiveness of mediation in relation


to the principle of effective action to provide judicial services and not to highlight
the problems faced by the judiciary. When facing a dispute, it is common to think
of the judiciary as a means of solution. For this reason, it created Mediation as
an alternative method to facilitate or effect access to justice and to prevent a
judicial dispute. In Mediation, as parties, in the presence of a Mediator, in order
to reach an agreement, they have the opportunity to solve problems as important
issues in a simple and popular way. Thus making it a means, unburden or
Judiciary.
Keywords: Access to justice. Mediation. Alternative means.

INTRODUÇÃO

Está previsto na Constituição de Federal de 1988, em seu art. 5°, inc.


XXXV, o reconhecimento da legitimação universal, isto é, qualquer pessoa está
legitimidade a recorrer ao Poder Judiciário, quando verificar-se lesão ou ameaça
ao direito. Ou seja, é uma garantia constitucional do direito subjetivo, do sujeito,
provocar o Estado, a fim de que este exerça sua jurisdição, através da aplicação
do ordenamento jurídico ao caso concreto.
No dia 30 de dezembro de 2004, foi aprovada a Emenda Constitucional
n° 45, inserindo-se ao rol de direitos e garantias fundamentais, a aplicação da
razoável duração do processo, além dos meios que garantem a celeridade
processual. Tal Emenda é considerada como o começo da Reforma do
Judiciário, objetivando alcançar a efetividade da tutela jurisdicional.
Ainda com o propósito de se obter o integro exercício de um direito
constitucional, criou-se o Conselho Nacional de Justiça –CNJ, que editou a
Resolução n° 125, de 29 de novembro de 2010, dispondo sobre o tratamento
apropriado dos conflitos de interesse na esfera do Poder Judiciário.
Deste modo, em 2015, fora publicada a Lei Federal n° 13.140, de 2015
conhecida também como Lei de Mediação, assim como a Lei Federal n° 13.105,
de 2015 que entrou em vigor apenas em 2016, estreando o Novo Código de
Processo Civil.
1527

Com as mencionadas inovações legislativas, tenta-se buscar soluções


tanto para os conflitos de interesse da sociedade, como para a crise enfrentada
pelo Poder Judiciário.
É possível a justiça brasileira conciliar a celeridade processual com a
efetiva garantia constitucional, através do método alternativo de mediação?

1. O DIREITO CONSTITUCIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA E A EFETIVA


APLICAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL

Como vimos acima, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5°, inc.
XXXV, consagra o direito de acesso ao judiciário em casos de lesão ou ameaça
ao direito e a Emenda Constitucional n° 45, de 30 de dezembro de 2004,
estabeleceu a necessidade da razoável duração do processo e adoção de meios
para a celeridade processual.
Referidas garantias são previstas, também, no Pacto de San José da
Costa Rica, em especial ao art. 8°, in verbis:

Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e


dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente,
independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na
apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na
determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista,
fiscal ou de qualquer outra natureza.

Uma vez expostas tais previsões legais quanto ao direito constitucional de


acesso à justiça. Passamos a conceituar a expressão “acesso à justiça”.
Mauro Capelletti e Bryant Gart (1988, p.3) definem:

(…) A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de difícil


definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do
sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar
seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado.
Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo,
ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.
(...)

Os autores acrescentam, ainda, que o conceito de acesso à justiça se


transforma de acordo com as mudanças equivalentes ao estudo e ensino do
processo civil (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.9)
Pautando-se do conceito de que o acesso ao sistema judiciário deve se
dar de forma igualitária e justa, percebe-se que há certa distância quanto ao
conceito e prática. Observando a deficiência na aplicabilidade do direito
constitucional de acionar a tutela jurisdicional.
Seguindo-se a contextualização. Na ilustre obra O Novo Processo Civil,
afirmam os autores:

Ao proibir a justiça de mão própria e afirmar que a “lei não excluirá da


apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”(art. 5°,
XXXV, da CFRB), nossa Constituição afirma a existência de direito à
tutela jurisdicional adequada e efetiva. Ao reproduzir semelhante
dispositivo, o art. 3°, caput, funciona como uma cláusula de destaque
desse compromisso do novo Código. Obviamente, a proibição da
autotutela só pode acarretar o dever do Estado Constitucional de
prestar tutela jurisdicional idônea aos direitos. Pensar de forma diversa
1528

significa esvaziar não só o direito à autotutela jurisdicional (plano do


direito processual), mas também próprio direito material, isto é, o direito
à tutela do direito (plano do direito material). É por essa razão que
direito à tutela jurisdicional só pode ser concebido como direito à tutela
jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva (arts. 5°, inc. XXXV e
LXXVIII, da CFRB, e 3° e 4°, do CPC). (MARINONI; ARENHART;
MITIDIERO, 2015, p. 168)

Na busca de limitar o poder do mais forte, surgiu o monopólio jurisdicional


do Estado, visando a composição dos conflitos, mantendo a convivência pacífica
entre as pessoas (BECELLAR, 2012, p. 13). Uma vez que o Estado chamou para
si o poder jurisdicional, impôs princípios constitucionais para uma tutela
jurisdicional adequada e efetiva, porém não é o que se vê na prática.
Para um efetivo acesso à justiça, primeiramente deve-se identificar quais
os obstáculos existentes (CAPPELLETTI, 1988, p. 15). Partindo da premissa que
existem obstáculos a serem quebrados para, assim, haver efetiva prestação da
tutela jurisdicional, passamos a analisar a crise enfrentada pelo Poder Judiciário.

2. A CRISE DO PODER JUDICIÁRIO E OS INSTRUMENTOS CRIADOS


VISANDO À DIMINUIÇÃO DA MOROSIDADE PROCESSUAL

A morosidade processual é reconhecida até mesmo pelo Poder Judiciário,


considerando os inúmeros processos em trâmite e a exigência da sociedade por
um processo mais ligeiro.
A partir da Constituição de 1988, a sociedade passou a ter mais
consciência dos seus direitos, abrindo mão da autotutela e buscando a tutela
jurisdicional do Estado para a resolução de seus litígios. Resultando no
abarrotamento do sistema judiciário.
Os autores Cintra, Grinover e Dinamarco (2010, p.32) explicam:

(...) O ideal seria a pronta solução dos conflitos, tão logo apresentados
ao juiz. Mas com isso não é possível, eis aí a demora na solução dos
conflitos como causa de enfraquecimento do sistema (...)

Sendo assim, a lentidão processual é considerada uma das causas do


descrédito do sistema judiciário. O cidadão quando busca a tutela jurisdicional,
espera do Poder Judiciário a obrigação de dar uma resposta instantânea.
Entretanto, é notório que a justiça é demorada.
Com o aumento da população e o número de casos ajuizados, tem-de por
conseguinte a morosidade processual, sem que os tribunais consigam atenuar
ou resolver o que se consumou, denominar crise da justiça ou crise do Poder
Judiciário. (BACELLAR, 2012, p. 22).
É certo que a razoável duração do processo, é um direito constitucional
da sociedade e um dever do judiciário, levando-se em consideração que o
magistrado não pode decidir sobre o litígio de forma superficial, sem garantir uma
justa justiça.
Ao tempo em que, a sociedade cobra uma justiça célere, o Poder
Judiciário precisa de tempo para reflexão e decisão de cada conflito, evitando-
se injustiças. Porém, esse tempo não pode se prolongar, ferindo assim, o
princípio da razoável duração do processo e a celeridade processual.
Neste ínterim, foram promovidas inovações legislativas, a fim de que seja
satisfeita a necessidade da sociedade por uma justa e célere justiça. Dentre as
1529

quais, destaca-se a Resolução n. 125, de 29 de novembro de 2010, editada pelo


Conselho Nacional de Justiça; a Lei Federal n. 13.140, de 26 de junho de 2015,
conhecida como a Lei de Mediação; e o Novo Código de Processo Civil.
A Resolução n. 125/2010, do CNJ, prevê expressamente em seu art. 1º,
parágrafo único:

Aos órgãos judiciários incumbe, nos termos do art. 334 do Novo Código
de Processo Civil combinado com o art. 27 da Lei de Mediação, antes
da solução adjudicada mediante sentenças, oferecer outros
mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados
meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim
prestar atendimento e orientação ao cidadão.

Prefiro a necessidade de se oferecer outros mecanismos de soluções


processuais, pelos órgãos do judiciário, o Código de Processo Civil, modernizou
ao destacar a necessidade do Estado promover a solução consensual de
conflitos, conforme menciona o art. 3º: a conciliação, a mediação e outros
métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no
curso do processo judicial (BRASIL, 2015).

3. O INSTITUTO JURÍDICO DA MEDIAÇÃO NO ORDENAMENTO


BRASILEIRO

Os métodos alternativos para solução dos conflitos, tenta abandonar a


cultura da judicialização e traz a possibilidade de resolver os conflitos de formas
consensuais. Esses métodos trazem benefícios, dente eles, esses métodos
trazem benefícios, dente eles: a possibilidade de solucionar o conflito sem
acionar o Poder Judiciário, redução das custas, satisfação olé do cidadão é
melhor acesso à justiça.
Portanto, ainda questiona-se, se esses meios extrajudiciais, poderão
harmonizar o sistema, diante dessa cultura litigiosa, pois à medida que todos
querem vencer, a mediação estabelece igualdade entre as partes, desta forma,
ninguém vencerá nem perderá, apenas terá uma solução consensual.
Na mediação, o mediador não opinara, apenas facilitará o diálogo das
partes.

4. CONCLUSÃO

A elaboração da presente pesquisa, mostrou que a mediação apresenta-


se como forma de impedir a acirrada disputa judicial, otimizando tempo e
propiciou a verificação da efetividade da tutela jurisdicional. Além disso, tem o
intuito de amenizar o abarrotamento judicial.
A demora na prestação jurisdicional causa às partes envolvidas
ansiedade e prejuízos de ordem material a exigir justa e adequada solução em
tempo a aceitável.
Diante do exposto, conclui-se que o Estado brasileiro vive uma crise e
busca caminhos para a superação, que passa pela desjudicialização, não como
discurso, mas como prática necessária que permita o acesso à justiça nos
âmbitos extrajudiciais e judiciais. Vislumbra um longo caminho nessa jornada,
dada a cultura conservadora no âmbito do Judiciário.
1530

5. REFERÊNCIAS

BACELLAR, Roberto Portuga. Mediação e Arbitragem.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen


Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO,


Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. Ed. 26º, 2010. Editora
Magalheiros, São Paulo.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. O


Novo Processo Civil. Ed. 1ª, 2015. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo.
1531

O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL


ACCESO A LA JUSTICIA COMO LEY FUNDAMENTAL

Laura Maria Ferreira Moreira

Resumo: Esse trabalho tem por objetivo geral analisar o acesso à justiça, direito
fundamental essencial para a concretização da dignidade humana, à luz das
noções de política pública e advocacia. Pretende-se também, apresentar as
características dos direitos fundamentais, categoria à qual pertence o acesso à
justiça, bem como a duração do processo; apresentar breve histórico evolutivo
do acesso à justiça no Brasil, identificando definições para a expressão na
doutrina; abordar aspectos relacionados ao acesso à justiça nas ondas
renovatórias do direito processual civil e advocacia. A situação-problema
elaborada abordará solução para como fazer do acesso à justiça, direito
fundamental essencial para a concretização da dignidade humana, um
instrumento para o enfrentamento do déficit de cidadania verificado na sociedade
contemporânea.
Palavras-chave: Justiça. Advocacia. Cidadania.

Resumen: El objetivo principal de este trabajo es analizar el acceso a la justicia,


un derecho fundamental fundamental para la realización de la dignidad humana,
a la luz de las nociones de política pública y promoción. También se pretende
presentar las características de los derechos fundamentales, una categoría a la
que pertenece el acceso a la justicia; presentar una breve historia evolutiva del
acceso a la justicia en Brasil, identificando definiciones para la expresión en la
doctrina; para abordar aspectos relacionados con el acceso a la justicia en las
olas renovadoras del derecho procesal civil y la defensa. La situación
problemática elaborada abordará una solución sobre cómo hacer que el acceso
a la justicia, un derecho fundamental esencial para la realización de la dignidad
humana, sea un instrumento para enfrentar el déficit de ciudadanía en la
sociedad contemporánea.
Palabras clave: Justicia. Abogacía. Ciudadania

INTRODUÇÃO

O acesso à justiça é direito que se encontra consagrado no bojo da


Constituição Federal de 1988, mais precisamente no inciso XXXV do artigo 5º,
que dispõe sobre a não exclusão pela lei da apreciação de ameaça de lesão ou
de direito por parte do Poder Judiciário1. Trata-se de um importante direito
fundamental, dotado, pois, de todos os seus atributos, tais como a universalidade
e a irrenunciabilidade2.
Diante disso, elaborou-se como situação-problema a análise de como
fazer do acesso à justiça, direito fundamental essencial para a concretização da
dignidade humana, um instrumento para o enfrentamento do déficit de cidadania
verificado na sociedade contemporânea.

1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


1988. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm> Acesso
em: 12 dez. 2018.
2 PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e direitos fundamentais. 15.

ed. São Paulo: Saraiva, 2015. (Coleção Sinopses Jurídicas)


1532

A justificativa para a elaboração deste estudo reside na necessidade


sentida de realizar, em relação à temática sob análise, a abordagem que fora
aqui proposta. Pretende-se, pois, focar os argumentos referentes ao acesso à
justiça na contemporaneidade como forma de garantir Direitos essenciais, sob o
viés de avaliação de política pública e advocacia. A importância da discussão
sobre a temática apresenta-se não somente para a comunidade acadêmica,
como, também, para os operadores do Direito, bem como para a sociedade em
geral.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento da investigação pode ser
classificada, quanto aos procedimentos, como bibliográfica, já que se parte de
material já publicado anteriormente3.
Em relação à natureza da pesquisa, trata-se de pesquisa do tipo aplicada,
tendo em vista que se busca, por meio dela, gerar conhecimentos possíveis de
serem aplicados na prática, com direcionamento voltado para a solução de
problemas específicos, envolvendo, pois, interesses e verdades locais4.
Quanto aos objetivos, ela é exploratória, pois nela se busca compreensão
acerca do problema de pesquisa5. Já em se tratando da abordagem do
problema, tem-se que esta é do tipo qualitativa, já que se está diante de um
objeto de pesquisa que não comporta quantificação6.
Para uma melhor apresentação, estruturou-se o desenvolvimento em
capítulos, que foram elaborados para atender os objetivos do estudo.

CONCEITO, DEFINIÇÕES E OBJETIVO DO ACESSO À JUSTIÇA

De acordo com Marinoni7, o princípio do acesso à justiça, que também é


denominado pelo autor de princípio da inafastabilidade da jurisdição, do acesso
irrestrito ou da indeclinabilidade, tem sido objeto de estudos no âmbito do direito
nacional e, também, no de outros países, tendo em vista que, conforme
Dinamarco8, a preocupação que se tem com a efetiva prestação da jurisdição se
dá tanto no direito interno como no internacional.
De acordo com Capelletti e Garth9, de um lado, tem-se os problemas do
acesso à justiça de ordem social, jurídica e econômica, que são resolvidos no
âmbito jurídico, gerando efeitos de cunho econômico e social. De outro, porém,
são sistematizadas soluções para o acesso à justiça em três ondas renovatórias.
A primeira onda renovatória, de acordo com os autores, se preocupou com
a superação de uma marginalização de classes sociais periféricas, que não
tinham acesso à justiça em função da necessidade de pagamento de despesas
processuais, como também da necessidade de adentrarem ao processo
somente representadas por advogados, embora isso pudesse ser resolvido com
a assistência judiciária gratuita. A segunda onda renovatória direcionou os
olhares para a necessidade de se ampliar o âmbito de atuação do Judiciário,

3 VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administração. 14. ed.


São Paulo: Atlas, 2013.
4 Idem.
5 VERGARA, 2013. Op. cit.
6 RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3. ed. São Paulo:

Atlas, 2007.
7 MARININONI, 2000. Op. cit.
8 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. I. São Paulo:

Malheiros, 2002.
9 CAPELLETTI; GARTH, 1993. Op. cit.
1533

defendendo interesses que não fossem restritos aos indivíduos. A terceira onda
renovatória, por sua vez, revisitaria a própria concepção de acesso à justiça,
dando-lhe nova roupagem no sentido de superação das adversidades que
existem para que se tenha uma prestação efetiva da tutela jurisdicional10.
Para melhor compreender a problemática em que se insere este estudo,
há que, primeiramente, se apresentar conceito para o que sejam os direitos
fundamentais.
De acordo com Alexandre Pinto11, é possível contemplar os direitos
fundamentais como sendo, em sua essência, direitos representativos das
liberdades públicas, abrangendo valores eternos e universais, que, em razão de
sua natureza, impõem estrita observância ao Estado e seu amparo irrestrito.
Nessa roupagem, assim os contempla:

“Constituem os Direitos Fundamentais legítimas prerrogativas que,...”

Veja-se que, inicialmente, a menção feita foi a direitos e garantias


fundamentais, não se restringindo aos direitos fundamentais, o que demonstra a
existência de diferenças entre um e outro. Tais discrepâncias, na visão de
Bezerra12, se dão porque os direitos contemplam bens e vantagens com
prescrição na norma constitucional, garantindo, assim, faculdades, liberdades e
possibilidades individuais.
As garantias, por outro lado, podem ser compreendidas como
instrumentos que se encontram constitucionalizados, por meio dos quais se
exercem direitos assegurados previamente. Servem, também, à sua reparação
em caso de violação. Por esta visão, tem-se, pois, que as garantias apresentam
tanto caráter repressivo, como no caso dos remédios constitucionais, como
preventivo13.
Consoante lição de Lenza14, dentre vários critérios, costuma-se, na
doutrina, classificar os direitos fundamentais em gerações, também
denominadas dimensões. Para esse estudo, se adotará a terminologia
“geração”.
De acordo com Branco15, a primeira geração de direitos fundamentais
inclui os direitos que são mencionados nas Revoluções americana e francesa.
Historicamente, estes direitos representam os primeiros direitos fundamentais do
homem que foram positivados. Segundo o autor, eles encerram em sua
essência, uma pretensão de caráter universal, já que são considerados
indispensáveis à existência humana.
Também Lenza16 dá importante contribuição, ao sustentar que os direitos
fundamentais de primeira geração marcaram a transformação de um Estado com
características autoritárias para um Estado de Direito. Na visão do autor, é
possível identificar, em sua determinação, elevado respeito às liberdades

10 Idem.
11 PINTO, Alexandre Guimarães Gavião. Direitos fundamentais: legítimas prerrogativas de
liberdade, igualdade e dignidade. Revista da EMERJ, v. 12, n. 46, 2009.
12 BEZERRA, Paulo César Santos. Acesso a justiça: um problema ético-social no plano da

realização do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.


13 BRANCO, 2014. Op. cit.
14 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:

Saraiva, 2012.
15 BRANCO, 2014. Op. cit.
16 LENZA, 2012. Op. cit.
1534

individuais, demonstrando-se, ainda, perspectiva clara de absenteísmo do


Estado.
Passados os anos, porém, diante do descaso por parte do Estado para
com os problemas sociais, que teria culminado na caracterização de um Estado
Liberal, que, somando-se às pressões que foram originadas da industrialização
que se propagava, bem como ao forte impacto do crescimento demográfico e do
agravamento ocorrido em relação às disparidades sociais foram surgindo novas
reivindicações, que buscavam, em seu bojo, impor ao Poder Público uma
assunção de um papel ativo em relação à realização da justiça social17.
Deve-se, porém, destacar que, de acordo com Branco18, não é possível
contemplar nos direitos de segunda geração correspondência com uma pretensa
abstenção estatal. Pelo contrário, o que se tem é um chamamento para o
necessário cumprimento de prestações postas como positivas. Nesse contexto,
compreendeu-se que não era o bastante proporcionar o direito à propriedade e
à liberdade, sendo necessário, também, garantir uma igualdade perante a lei
(igualdade formal), noção esta que, em período posterior, foi estendida para
atingir uma igualdade real, ou material.
Desse modo, é por meio de tais direitos que se busca o estabelecimento
de uma liberdade real e igual para todos, cuja efetivação se dará por meio da
realização de ações corretivas perpetradas pelos Poderes Públicos. Tratam-se,
desse modo, de direitos que se referem à assistência social, à saúde, à
educação, ao trabalho e ao lazer, dentre outros que foram igualmente nominados
direitos sociais, já que atrelados estavam a reivindicações feitas por justiça
social, que tinham como titulares, na maioria das vezes, indivíduos em sua
singularidade, ou ainda, grupos de pessoas, como aposentados e
trabalhadores19.
Em relação aos direitos fundamentais de terceira geração, é possível
contemplá-los como resultados de mudanças profundas ocorridas no ambiente
internacional, diante do desenvolvimento tecnológico e científico crescentes que
se foi experimentando ao longo dos anos, bem como a partir do surgimento de
uma sociedade dita de massa. assim, surgiram novos problemas e
preocupações mundiais, tais como as relativas à proteção do consumidor e à
preservação do meio ambiente. Diante disso, nasceram os direitos de
solidariedade ou fraternidade20.
No Brasil, o acesso à justiça, bem como a celeridade na solução da lide,
foram elevados à condição de direito e garantia fundamental ao ser inserto no
texto constitucional em seu artigo 5º, inciso XXXV
Para o leigo, pura e simplesmente, o acesso à justiça refletiria “a mera
oportunidade de estar perante o juiz”21. Em outras palavras, no senso comum,
tem-se que o acesso à justiça é concebido como sinônimo de se estar em juízo.
Também nesse sentido, é possível citar Leal22, para quem se deve contemplar o
acesso à justiça nada mais como a possibilidade de se comparecer diante do

17 BRANCO, 2014. Op. cit.


18 Idem.
19 BRANCO, 2014. Op. cit.
20 MASSON, 2015. Op. cit.
21 BEZERRA, 2001. Op. cit. p. 125.
22 LEAL, Luciana de Oliveira. O acesso à justiça e a celeridade na tutela jurisdicional.

Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=053fc292-1768-4876-


a1df-53ed17508a86&groupId=10136>. Acesso em: 10 jan. 2019.
1535

Estado, por meio de seus órgãos jurisdicionais, exercitando os direitos de defesa


e de ação.
Portanova23, por sua vez, entende o acesso à justiça como “um princípio
bem geral, pré-processual e até supraconstitucional”. Para ele,

[...] é um poder quase absoluto no processo civil, mercê da natureza


do direito material a que se visa atuar24.

Já Marinoni25, entende que a Justiça deve ser acessível a todos,


indistintamente, sob pena de se tolher o direito de acesso à justiça, afrontando,
desse modo, um direito fundamental essencial para que todos os demais direitos
possam também ser reivindicados. Com isso, de acordo com o segundo, estar-
se-ia diante de uma falsa garantia, ou, ainda, de uma garantia que se encontra
disponível somente para os que possam pagar por ela, o que, em sua visão,
seria algo absurdo.
Em relação ao conceito de efetividade do processo, destaque-se que, de
acordo com Bedaque26, a efetividade da tutela jurisdicional guarda relação com
a maior identidade possível entre o cumprimento espontâneo das regras postas
pelo direito material e o resultado do processo. Para ele, ao contrário, a ineficácia
ou inefetividade da tutela jurisdicional representa verdadeira denegação dessa
mesma tutela.
Desse modo, o que se pode destacar é que o acesso à justiça, no Brasil,
é um direito fundamental, consubstanciando-se em uma espécie de direito
preliminar, cuja garantia é essencial para que todos os outros direitos sejam
igualmente assegurados. Seu conceito, como visto, extrapola a mera admissão
do processo ou, ainda, a possibilidade de se poder ingressar em juízo,
consubstanciando-se, para além, em uma garantia de que os cidadãos poderão
demandar e se defender adequadamente em juízo. Desse modo, tem-se como
objetivo para o acesso à justiça o de servir à efetividade no processo com os
recursos e meios a ele inerentes, buscando obter um saudável provimento
jurisdicional em um tempo que possa suprir a necessidade pela qual se buscou
o judiciário para tal.

CONCLUSÃO

Como restou demonstrado por meio dos resultados obtidos do


levantamento bibliográfico realizado, especialmente em Cappelletti e Garth, os
estudiosos do que seria um movimento de acesso à justiça se uniram em busca
de construir um sistema procedimental e jurídico com características mais
humanas. Essa base primeira persiste até os dias atuais, ensejando a criação
de novos instrumentos capazes de promover a garantia de tão importante direito
fundamental, que, nessa roupagem, instituída pela Constituição de 1988, o faz
como essencial à própria dignidade da pessoa humana.
Diante disso, esforços vêm sendo envidados no sentido de simplificar os
procedimentos em geral, promovendo, assim, maior simplificação também dos

23 PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
24 Idem, p. 109.
25 MARINONI, 2000. Op. cit.
26 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias

e de urgência (tentativa de sistematização). 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.


1536

feitos, o que se vê, por exemplo, com a aplicação de princípios processuais, tais
como o da livre apreciação de provas, o da oralidade, o da concentração dos
procedimentos e a garantia de que o contato entre partes, juízes e testemunhas
será imediato e o resultado num tempo razoavelmente curto.
Além da simplificação, verificam-se, também, métodos alternativos para
se proceder à decisão das causas judiciais, evitando o prolongamento da lide. É
o que ocorre, por exemplo, com a conciliação e com o juízo arbitral, ensejando
incentivos econômicos por parte do Poder Público para que elas ocorram.
O fato é que as conquistas que foram contabilizadas pelo movimento de
acesso à justiça em prol da construção de uma ordem social cidadã e justa não
podem ser menosprezadas. No entanto, deve-se, ainda, considerar que, diante
da dinâmica que tem o processo social, novos direitos surgem a todo instante,
estando, ainda, muitos dos que são proclamados pela modernidade sem
efetivação – alvo que somente se atingirá com a normatização de procedimentos
e com a criação de espaços alternativos para, neles, se proceder a resolução de
conflitos e com o fomento de escritórios de assessoria jurídica popular, dentre
outros.
O fato é que, como foi visto, o que se tem é que a luta pela efetivação do
acesso aos direitos fundamentais, essenciais para a concretização da dignidade
humana, extrapola o âmbito do Direito, sendo necessária a elaboração de ações
públicas pautadas na pluralidade e na dialética com o objetivo de transpor os
desafios que se mostram cada vez mais complexos e maiores, colocando-se ao
exercício da cidadania na contemporaneidade.
Há que se destacar também que a celeridade processual, ou seja, a
solução à lide apresentada pelo cidadão ao judiciário, deve se dar de forma
a se considerar em tempo razoável. A grande questão é que “tempo
razoável” envolve subjetividade, pois a depender de que lado se está no
processo, o razoável se dá em tempos diferentes.

REFERÊNCIAS

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Direitos fundamentais. In: ______;


MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2014.

BRASIL. II Pacto Republicano de Estado por um sistema de justiça mais


acessível, ágil e efetivo. Brasília 2009. Disponível em
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1538

O ACESSO DESJUDICIALIZADO À JUSTIÇA E O PROTAGONISMO DAS


SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS DE NOTAS E DE REGISTROS PÚBLICOS
NON-JUDICIAL ACCESS TO JUSTICE AND THE PROTAGONISM OF
EXTRAJUDICIAL SERVICES OF PUBLIC NOTARIES AND REGISTRY

Taysa Pacca Ferraz de Camargo


Caio Pacca Ferraz de Camargo

Resumo: A concepção de um acesso à Justiça estritamente atrelado ao efetivo


exercício do direito de ação perante o Judiciário levou ao congestionamento dos
tribunais brasileiros, de modo a inviabilizar, em alguns casos, a prestação
jurisdicional em prazo condizente com as demandas econômicas e sociais da
atualidade. Diante disso, observou-se uma revisão do sentido material da
garantia de acesso à Justiça, sob uma ótica mais aberta, menos dependente da
atuação judicial, o que levou à transferência da prática de diversos atos jurídicos
que não envolvessem litígio aos notários e registradores, que, garantem a
mesma segurança jurídica, de maneira muito mais célere.
Palavras-chave: Acesso à Justiça. Desjudicialização. Serventias extrajudiciais.

Abstract: An access to Justice strictly linked to the effective exercise of judicial


litigation led to the congestion of Brazilian courts, making impossible, in some
cases, to provide a judicial suppling in a timely manner consistent with current
economic and social demands. The revision of the meaning of guaranteeing
access to Justice from a broader perspective was compulsory and allowed the
tranference to notaries and registrars the practices of various legal acts that do
not involve disputes, guaranting the same legal certainty but faster.
Keywords: Access to Justice. Dejudicialization. Public Notaries and Registry.

INTRODUÇÃO

O esgotamento da noção de acesso à Justiça como mero exercício do


direito de ação perante o Judiciário levou ao alargamento da noção dessa
garantia, a fim de nela incorporar métodos alternativos de resolução de conflitos.
Nesse contexto a legislação nacional vem, com sucesso, transferindo às
serventias extrajudiciais atribuições antes exclusivamente afetas ao Judiciário,
como meio assegurar a prestação jurisdicional, mas de maneira desjudicializada.
São, pois, estes os aspectos abordados nesta pesquisa, elaborada pelo
método hipotético-dedutivo, e dividida nos dois tópicos que, a seguir, tratam do
acesso desjudicializado à justiça e do protagonismo das serventias extrajudiciais
na sua concretização.

1. O ACESSO DESJUDICIALIZADO À JUSTIÇA

Para que exista uma sociedade justa e igualitária é imprescindível a


aplicabilidade efetiva da garantia de acesso à Justiça, por ser esse um dos
pilares sobre o qual se sustenta o Estado Democrático de Direito (TAVARES,
2012, p. 730), no qual inequivocamente se constituí a República Federativa do
Brasil, nos termos do art. 1° da Constituição Federal de 1988, cujo preâmbulo,
como evocativo da ideologia que animou sua promulgação, enuncia a Justiça
como um dos seus valores supremos. Afinal, é pelo acesso à Justiça que, em
1539

última análise, se concretizam todos os demais direitos reconhecidos pela ordem


constitucional e legal brasileira.
Sobre a evolução do conceito teórico de acesso à Justiça, Mauro
Cappelletti e Bryant Garth (1988, pp. 11-12) averbam que “o direito ao acesso
efetivo [à Justiça] tem sido progressivamente reconhecido como sendo de
importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a
titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para
sua efetiva reivindicação”, e arremata: “O aceso à justiça pode, portanto, ser
encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos –
de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas
proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12).
Nessa senda, a Lei Maior brasileira de 1988, consagrou no seu artigo 5º,
XXXV, o amplo acesso ao Judiciário no rol dos direitos e garantias fundamentais
ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito”.
Essa garantia, comumente denominada pela doutrina como o princípio da
inafastabilidade da jurisdição, expressa, nos dizeres de Vicente Paulo e Marcelo
Alexandrino (2012, p. 160), que “[...] entre nós, somente o Poder Judiciário
decide definitivamente, com força de coisa julgada (sistema de jurisdição única)”,
o que revela “[...] princípio relacionado à própria estrutura jurídica-política do
Estado brasileiro” (op. cit., p. 160), de modo que a todos se assegura, sempre
que entenderem sofrer de lesão ou ameaça a direito que se julguem titulares “[...]
a possibilidade de provocar e obter decisão de um Poder independente e
imparcial” (op. cit., p. 160).
Dessa garantia constitucional, observa ainda Alexandre de Moraes (2006,
p. 294), decorre o postulado de que “a toda violação de um direito responde uma
ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue”.
Conquanto a inafastabilidade da jurisdição não mais fosse novidade nos
textos constitucionais brasileiros,1 na Carta Política de 1988 foi ela alçada à
condição de garantia fundamental e ampliada, não mais se restringindo
textualmente aos direitos individuais, além de expressamente permitir o acesso
ao Judiciário em caso de ameaça, e não mais apenas da lesão já consumada.
Tal garantia constitucional, aliada a tantas outras que inovaram o cenário
jurídico brasileiro após a Carta de 1988, acabaram por destacar o Judiciário “na
paisagem institucional brasileira”, como observou Luís Roberto Barroso (2015,
pp. 511-512) em razão da:

[...] reconstitucionalização do país: recuperadas as liberdades


democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais
deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a
desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e
o Executivo. Uma segunda razão, foi o aumento da demanda por
justiça na sociedade brasileira. De fato, sob a Constituição de 1988,
houve uma revitalização da cidadania e uma melhor conscientização
das pessoas em relação à proteção de seus interesses. Além disso, o
texto constitucional criou novos direitos e novas ações, bem como
ampliou as hipóteses de legitimação extraordinária e de tutela coletiva.

1 Dispositivo similar, mas não idêntico constava desde o texto da Constituição Federal de 1946
(art. 141, §4º) “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de
direito individual” e foi repetido na de 1967: art. 150, § 4º: “A lei não poderá excluir da apreciação
do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”.
1540

Se por um lado tal movimento foi absolutamente benéfico, por representar


uma legítima demanda de Justiça pela sociedade, por outro levou ao
congestionamento da estrutura judiciária brasileira que não consegue distribuir
a Justiça com a presteza que o mundo contemporâneo exige tampouco na
mesma velocidade se multiplicavam os processos.
Veja-se que no último relatório “Justiça em Números”2, do CNJ,
apresentado em 2019, tendo por ano-base o de 2018, revelou-se que foram
ajuizados 28,1 milhões novos processos além do montante de 78,7 milhões que
já estavam em tramitação, aguardando solução definitiva. Ao todo, são mais de
100 milhões de processos atualmente em tramitação no Judiciário.
O resultado dessa combinação não tardou a se revelar no nocivo retardo
na prestação jurisdicional, que, muitas vezes, chegava ou ultrapassava uma
década, o que acabava representando a negação dessa prestação em muitas
situações, pois pelo fluir do tempo, o bem da vida já nem mais podia ser
alcançado quando proferida a decisão judicial, a indicar que “a Justiça que não
cumpre suas funções dentro de ‘um prazo razoável’ é, para muitas pessoas, uma
Justiça inacessível” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 21).
Embora situações como esta ainda persistam, sobretudo em processos
que envolvem as pessoas jurídicas de direito público, diversos foram e
continuam sendo os esforços para superação desse cenário.
Uma iniciativa de suma importância foi a promulgação da Emenda
Constitucional nº 45/2004, conhecida como a de reforma do Judiciário, que
inseriu o inciso LXXVIII ao art. 5º da Magna Carta, a fim de assegurar a todos,
no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação.
Outra, de caráter mais concreto, foi a criação do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), com mandato para controlar a atividade administrativa e financeira
do Judiciário e fazer controle ético-disciplinar de seus membros, nos termos
decididos na ADI nº 3.367, do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu
a constitucionalidade desse novo Órgão, que pela primeira vez, como observou
Paulo Luiz Schmidt (2015, p. 12), permitiu aos tribunais brasileiros, delinear um
Planejamento Estratégico e traçarem, em 2009, dez metas conjuntas de
nivelamento, dentre elas a Meta 2, que, conforme se colhe no site do próprio
CNJ: “teve por objetivo a identificação e o julgamento dos processos judiciais
mais antigos, distribuídos aos magistrados até 31/12/2005” pela qual o Judiciário
“[...] buscou estabelecer a duração razoável do processo na Justiça”, tendo sido
o “começo de uma luta que contagiou o Poder Judiciário do País a acabar com
o estoque de processos causadores de altas taxas de congestionamento nos
tribunais”3.
Todavia, tais esforços por si só se mostraram insuficientes ante a
incessante complexidade que dia-a-dia toma a sociedade contemporânea.

2 Relatório Justiça em Números é a “principal fonte das estatísticas oficiais do Poder Judiciário,
anualmente, desde 2004, o Relatório Justiça em Números divulga a realidade dos tribunais
brasileiros, com muitos detalhamentos da estrutura e litigiosidade, além dos indicadores e das
análises essenciais para subsidiar a Gestão Judiciária brasileira”. In: BRASIL. Conselho Nacional
de Justiça. Justiça em Números. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/pesquisas-
judiciarias/justicaemnumeros/2016-10-21-13-13-04/pj-justica-em-numeros>. Acesso em 29 de
setembro de 2019.
3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/gestao-e-

planejamento/metas/sobre-as-metas/>. Acesso em: 14 de Out. de 2019.


1541

Fortalece-se a opinião de que “a tutela jurisdicional tradicional não é o


único meio de conduzir as pessoas à ordem jurídica justa, eliminando conflitos e
satisfazendo pretensões justas” (DINAMARCO, 2013, p. 122), pois, como ensina
Ada Pellegrini Grinover (2016, p. 75) o efetivo acesso à justiça é aquele que
permite o acesso à ordem jurídica justa, através de uma tutela adequada que
resolva os conflitos e, consequentemente, resulte na pacificação social, o que
vai além do mero acesso ao Poder Judiciário.
Assim, paralelamente a tais esforços, ganhou força o movimento de
“desjudicialização”, que passou a ver a possibilidade de prestação da jurisdição
por outros agentes, públicos ou privados, além do Poder Judiciário, como bem
sintetizou José Renato Nalini (2000, p. 100): “Assim como a normatividade não
é monopólio do Legislativo, a realização do justo não é monopólio do Judiciário.
Há lugar para a mediação, para a arbitragem, para a negociação, para o juiz de
aluguel e outras modalidades de solução dos conflitos”, mas também por novos
métodos, de hétero e autocomposição, como a arbitragem, a conciliação,
mediação e a negociação, estes três últimos possíveis de ocorrer mesmo no
próprio processo judicial.
Parelha a lição de Rodolfo de Camargo Mancuso (2009, pp. 157-158), ao
citar outros métodos de resoluções de controvérsias não confiados ao Judiciário,
mas a órgãos parajurisdicinais, dentre outros, a Justiça de Paz (art. 98, I), a
Justiça Desportiva (CF, art. 217, §1º), os Tribunais de Contas (CF, art. 71), os
Tabelionatos (Lei 11.441/2007: CPC arts. 982, 983, 1.031 e 1.124-A, e os
árbitros (Lei 9.307/1997: art. 18).
Essa, aliás, já era uma das alternativas apontadas por Cappelletti e Garth
(1988, pp. 142-156), ao analisarem o êxito que o recurso a serviços de
profissionais parajurídicos apresentou na prestação de serviços jurídicos no
efetivo acesso à Justiça, o que, claro, certamente incluí a prevenção do litígio
pelo aconselhamento jurídico prévio e adequado.
O acesso à Justiça, na contemporânea concepção funda-se no “acesso
aos métodos mais adequados à resolução dos conflitos, estejam eles dentro ou
fora do Poder Judiciário” (BACELLAR, 2012, p. 53).
Recentemente, vimos a cristalização desse movimento com a positivação,
no art. 3º, do Código de Processo Civil de 2015, da previsão expressa nos §§ 1º
ao 3º, de métodos alternativos ao Judiciário na resolução de conflitos, listados
ao lado da retomada infraconstitucional do texto do inciso XXXV, do art. 5º, da
Constituição Federal, que além da vedação de exclusão da apreciação
jurisdicional de ameaça ou lesão a direito prevê: (a) a permissão do uso da
arbitragem, na forma da lei; (b) o dever de o Estado promover, sempre que
possível, a solução consensual dos conflitos; e (c) o dever de estímulo da
conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos
por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público,
inclusive no curso do processo judicial.
Tal previsão legal revela o compromisso do Estado em multiplicar as
portas de acesso à proteção dos direitos dos indivíduos e coletividades, cujo
intuito é fornecer várias opções (“portas”) de solução de conflitos
alternativamente ao Poder Judiciário. Esse “sistema multiportas é o complexo de
opções que cada pessoa tem à sua disposição para buscar solucionar um
conflito a partir de diferentes métodos” (TARTUCE, 2018, p. 71).
1542

Todas essas iniciativas apontam a um acesso à Justiça renovado, menos


dependente do acesso ao Judiciário e mais desjudicializado, portanto, ocupando
as serventias extrajudiciais relevante destaque nesse esforço.

2. O PROTAGONISMO DAS SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS NA


CONCRETUDE DO ACESSO DESJUDICIALIZADO À JUSTIÇA

Seguindo essa tendência de desjudicialização, as atividades registrais e


tabelioas vêm ganhando destaque por representar uma forma célere, econômica
e eficiente de acesso à justiça, dessa forma, o legislador nacional está
transferindo paulatinamente parte que historicamente estava afeta ao Judiciário
às serventias extrajudiciais.
Assim, viu-se a possibilidade de retificação de registros imobiliários e civis
das pessoas naturais, nos casos de erros evidentes, sem a necessidade de
ajuizamento de ação a tanto (Leis nº 10.931/2004 e 13.484/2017), a
possibilidade do protesto de Certidões de Dívida Ativa (CDA’s) como medida
mais célere e efetiva a execução fiscal, tendente a garantir a solvência dos
créditos tributários (12.767/2012), a possibilidade de registro do divórcio direto
puro, decretado por autoridade judiciária estrangeira no registro civil (Provimento
CNJ nº 53/2016).
Deles, destacamos algumas dos mais proeminentes exemplos, adiante
descritos, e seus resultados estatísticos, colhidos do relatório “Cartório em
Números”, elaborado pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil -
ANOREG/BR.
Em 2007, foi editada a Lei nº 11.441, que possibilitou a realização de
divórcio, separação, inventário e partilha extrajudicialmente, nos Tabelionatos de
Notas, com a finalidade de tornar mais ágil, célere, econômica e efetiva a prática
desses atos e, ao mesmo tempo, ajudar a desafogar o congestionado Judiciário.
Desde a edição da mencionada lei em 2007, já foram lavradas, no Brasil,
até 2018, mais de dois milhões de escrituras públicas de inventários, partilhas,
separações e divórcios consensuais. Desse total, 649.236 representam atos de
divórcio, 49.521 separações consensuais, 21.150 partilhas, 87.770
sobrepartilhas e 1.293.842 milhões de inventários extrajudiciais. Todos esses
casos foram resolvidos extrajudicialmente, contribuindo ao acesso
desjudicializado à Justiça, de maneira muito célere, haja vista que a elaboração
e lavratura de um dessas escrituras não costuma exigir mais de um mês.
Em 2012, com a publicação do Provimento nº 16 do CNJ, permitiu-se que
o reconhecimento de paternidade fosse realizado diretamente nos cartórios de
Registro Civil, e desde então, até março de 2019, já foram efetivados 103.267
reconhecimento.
Em maio de 2013 o CNJ publicou a Resolução nº 175 permitindo que os
Registros Civis de Pessoas Naturais realizassem casamentos entre pessoas do
mesmo sexo, assegurando aos casais homoafetivos, em absoluta paridade com
os casais heteroafetivos, o acesso à formalização da sua união, sem ter de exigir
que ajuizassem ação a tanto. Desde a publicação dessa normativa, já foram
realizados ao todo 37 mil casamentos homoafetivos. Só no ano passado, em
2018, foram realizados 9.977 casamentos homoafetivos.
Ademais, desde a edição do Novo Código de Processo Civil (Lei
13.105/2015) permitiu-se o reconhecimento da aquisição da propriedade
imobiliária pelo procedimento da usucapião extrajudicial, reduzindo
1543

drasticamente o prazo necessário ao seu reconhecimento, em comparação com


o procedimento judicial desse jaez, assegurando o necessário equilíbrio entre a
necessária proteção à propriedade privada e sua função social. Desde então, até
2018, foram realizadas 226.842 atas notariais de comprovação da posse
prolongada e ininterrupta de bens imóveis para dar início ao procedimento de
usucapião extrajudicial.
Em agosto de 2016, a pedido do Ministério das Relações Exteriores, o
CNJ editou a Resolução nº 228 que permitiu que o apostilamento (legalização
de documentos para ter validade no exterior) fosse realizado diretamente nos
cartórios, desburocratizando um processo que envolvia três etapas,
deslocamentos e alto custo, em um único procedimento a ser realizado em
qualquer cartório brasileiro, e até então já foram realizados quatro milhões de
atos no país.
Em novembro de 2017, a Corregedoria Nacional de Justiça publicou o
Provimento nº 63, que permitiu o reconhecimento da paternidade e maternidade
socioafetivos, diretamente no cartório de registro civil. Desde então, até 2018, já
foram realizadas 44.942 averbações de paternidade e/ou maternidade
socioafetiva no Brasil.
Em março de 2018 o STF reconheceu, no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4275, que os transgêneros, independentemente da cirurgia
de transgenitalização ou da realização de tratamentos hormonais ou
patologizantes, têm o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no
registro civil de pessoas naturais. Nessa calha, a Corregedoria Nacional de
Justiça editou o Provimento nº 73, padronizando a averbação da alteração do
prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa
transgênero e transexuais diretamente em cartório, sem necessidade do
ajuizamento de ação a tanto. Desde junho de 2018, já foram realizadas mais de
2.591 mudanças de nome e sexo diretamente nos cartórios brasileiros.
Percebe-se, assim, como resposta ao esgotamento do Judiciário, uma
propensão à retirada da competência jurisdicional de diversos atos de jurisdição
voluntária, isto é, de negócios jurídicos em que há administração pública de
interesses privados, mas em que não há lide ou litígio (LOUREIRO, 2016, p.
1029).
As serventias extrajudiciais, geridas por particulares, sob fiscalização do
Poder Judiciário, costumam conseguir prestar um serviço muito mais acessível
e célere à população, sobretudo pela capilaridade de sua presença, pois existem
13.627 cartórios distribuídos pelos 5.570 municípios brasileiros.
Ponto que não se pode descurar, diz respeito ao necessário equilíbrio
entre o avança de atribuições de novas prerrogativas aos notários e
registradores e sua remuneração, pois, a prestação da atividade notarial e
registral, no Brasil, é, por força do art. 236 da CF/1988, obrigatoriamente
delegada a particulares, aprovados em concorridíssimo concurso público, que o
exploram por sua conta e risco e sob fiscalização do Poder Judiciário, sendo
remunerados pelos emolumentos (art. 1º da Lei 10.169/2000 e art. 28, da Lei
8.935/94). Ou seja, essa transferência de possibilidades, deve ser acompanhada
por um equilíbrio econômico e financeiro da delegação da serventia extrajudicial,
como bem destacou Marcelo Benacchio (2019), em entrevista à Revista
Registrando o Direito:

Eu acho que tem sempre que se preocupar com a viabilidade


econômico-financeira, porque isso também garante a independência
1544

do titular. Um titular que não tem uma remuneração adequada não é


uma coisa boa a longo prazo. Temos que ter essa preocupação no
sentido de preservar esse equilíbrio. Se eu começo a colocar muitas
gratuidades em um serviço que se organiza de forma privada é
delicado.

Percebe-se, portanto, que as serventias extrajudiciais têm atendido de


forma eficiente, segura, célere e econômica as demandas sociais que lhe foram
atribuídas, a permitir serem solucionadas extrajudicialmente, pois os serviços de
notas e registros públicos asseguram, por sua intervenção nos atos e negócios
jurídicos que lavram, a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia,
evitando, assim, aliás, futuros litígios e, dessa forma, contribuindo de maneira
inequívoca ao efetivo acesso à Justiça em sua semântica mais contemporânea.
Essas serventias estão prontas para, assegurado o equilíbrio econômico
e financeiro da delegação, continuar a contribuir com a ampliação e celeridade
da distribuição desta nova Justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O assoberbamento do Judiciário revelou as vicissitudes da compreensão


do acesso à Justiça como estrita sinonímia do exercício do direito de ação
perante tal Poder estatal.
Avançou-se, pois, no delineamento de uma garantia de acesso à Justiça
mais ampla, cujo núcleo é a solução adequada e efetiva dos conflitos, em um
prazo razoável e de maneira menos custosa sob os aspectos econômico e
emocional aos envolvidos.
Essa nova compreensão da distribuição da Justiça levou ao acolhimento
de novos métodos de resolução de conflitos que, em complementação ao acesso
ao Judiciário, desempenham atividades que convergem ao estabelecimento de
uma ordem jurídica justa e em tempo razoável, além de, pelo assessoramento
legal, buscar evitar os litígios.
Nesse contexto, o legislador nacional paulatinamente transferiu aos
notários e registradores, profissionais do direito selecionados em concorrido
concurso público, a possibilidade de formalizar diversos atos jurídicos, desde
que despidos de litígio, antes exclusivamente afetos ao Judiciário, de modo a
assegurar a indispensável segurança jurídica, mas com agilidade ímpar,
consentânea às exigências da contemporaneidade e valorizadora da dignidade
humana pela prevalência da vontade comum dos próprios envolvidos.
O protagonismo das serventias extrajudiciais nesse novo modelo de
acesso à Justiça ficou evidenciado nos dados divulgados no relatório “Cartório
em Números”, a indicar o acerto dessa trilha, que pode ser ainda mais
aprimorada, desde que não se descure do necessário equilíbrio econômico e
financeiro da delegação das serventias.

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1546

O DIREITO SISTÊMICO COMO INSTRUMENTO DE HUMANIZAÇÃO NOS


CONFLITOS JURISDICIONAIS
THE SYSTEMIC LAW AS AN INSTRUMENT OF HUMANIZATION IN
JURISDICTIONAL CONFLICTS

Denise Teixeira Neri


Ana Maria Viola de Sousa

Resumo: A presente pesquisa objetiva denotar o fenômeno do Direito Sistêmico


sob a perspectiva das Constelações Sistêmicas respaldados por métodos
alternativos de solução de conflitos da Mediação e Conciliação, tendo como
importância a garantia dos Direitos Fundamentais protegidos pela Constituição
Federal, tratados internacionais e julgados da paz, sendo apreciada a celeridade
em processos judiciais que de outra forma seriam prolongados. O Direito
Sistêmico consiste em auxiliar no procedimento de Conciliação quando o
processo ultrapassa a esfera judicial, sendo um pacificador de conflitos mais
humanizado, de forma que sejam considerados todos os participantes inclusive
os excluídos do conflito, de modo que as partes conflitantes se conscientizem o
que perpetua a lide ao invés que lhes sejam impostas uma decisão.
Palavras-chave: Conflito. Humanização. Constelações Sistêmicas.

Abstract: The present research aims to denote the Systemic Law phenomenon
from the perspective of the systemic Constellations supported by the alternative
methods of conflict resolution of the Mediation and Conciliation, having as
importance the guarantee of the fundamental rights protected by the Federal
Constitution, international treaties and judged of the peace, being the speed
appreciated otherwise would result in lengthy court proceedings. Systemic law is
to assist in the Conciliation procedure when the process goes beyond the judicial
sphere, being a more humanized conflict peacemaker so that all participants
including those excluded in the conflict are considered, so that the conflicting
parties become aware of what perpetuates the deal rather than being imposed a
decision.
Keywords: Conflict. Humanization. Systemic constellations.

INTRODUÇÃO

Mediante a necessidade do Direito em acompanhar as mudanças


costumeiras da sociedade, o poder judiciário se preocupou em incluir no
ordenamento métodos alternativos para resolução de conflitos jurisdicionais.
Nessa premissa, surgem os métodos autocompositivos, tais como conciliação,
mediação e arbitragem que buscam sanar conflitos de forma pacífica pairando
de comum acordo a vontade entre as partes.
Entretanto, as relações humanas apresentam cada vez mais
complexidade, uma vez que, se busca investigar por soluções mais
humanizadas no sistema jurisdicional. Assim, o Direito Sistêmico consiste na
prática das constelações sistêmicas para solucionar conflitos jurisdicionais,
tendo como prisma a relevância dos métodos alternativos que auxiliam a justiça
através de meios consensuais de resolução de conflitos.
Para o poder judiciário à luz da resolução 125 do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) convergente à Lei 13.105/2015, dispõe aos operadores do Direito
1547

a deliberação de utilizar métodos alternativos que auxilie a justiça de maneira


efetiva em situações extrajudiciais.

DESENVOLVIMENTO

O acesso à justiça tem como garantia Constitucional o princípio da


inafastabilidade da jurisdição, que se encontra resguardado no artigo 5º, inciso
XXXV da Constituição Federal, assim: “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
Assim, se entende o acesso à justiça como princípio básico devidamente
tutelado a todos os cidadãos sem discriminação de classe social, sendo possível
recorrer à justiça quando sentir o seu direito lesionado. Além do texto
constitucional, o artigo 8º da Convenção Interamericana sobre os Direitos
Humanos de São José da Costa Rica também garante que: “toda pessoa tem
direito de ser ouvida, com garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz
ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente
por lei.” Dessa forma, reforça que o acesso à justiça é uma garantia fundamental
do ser humano que não deve ser violado.
Embora o acesso à justiça seja um direito, há em que se falar na
morosidade devido à grande quantidade de demandas que se encontram no
sistema judiciário, bem como, os custos processuais para dar marcha ao
processo. Mediante determinada situação que o Poder Judiciário e o Código de
Processo Civil incluíram os métodos alternativos de auxílio à justiça através da
Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça em consonância à Lei de
Mediação 13.140/2015 a fim de se adequar as necessidades da sociedade, sem
que pessoas com menos recursos sejam prejudicadas pela onerosidade das
demandas judiciais.
Evidente são os benefícios das autocomposições que permitem com que
as partes litigantes resolvam os conflitos de maneira consensual sem que um
terceiro imponha uma decisão. Maria Tereza Fonseca Dias aduz que a
autocomposição:

Trata-se de técnica dialógica, não adversarial, cuja proposta aos


participantes é a realização de um acordo final, como conclusão do
entendimento intersubjetivo de suas pretensões. Para isso, é
imprescindível a distinção das posições aparentes dos participantes e
de seus verdadeiros interesses durante o processo. O entendimento
da causa geradora do conflito é requisito para eficácia do acordo.
Ademais, a resolução da controvérsia no fator original do problema
contribui para pacificação social, no sentido de evitar o nascimento de
outros conflitos na mesma relação social. (DIAS, 2016, p. 46)

Muito embora a autocomposição seja o recurso pacificador mais


acessível à justiça, cada técnica atende determinada necessidade. Nesse
sentido, se busca o auxílio em demais searas para possibilitar uma
autocomposição mais efetiva.
Nas palavras de Sami Storch é possível entender o âmago das
constelações no que diz respeito à inserção das partes de maneira atuante sem
objetivar o sentido da polaridade oposta entre os litigantes ou mesmo o
desentendimento, muito pelo contrário, a humanicidade traz à tona o melhor
desenvolver da lide:
1548

As constelações familiares consistem em um trabalho no qual pessoas


são convidadas a representar membros da família de uma outra
pessoa (o cliente) e, ao serem posicionadas umas em relação às
outras, sentem como se fossem as próprias pessoas representadas,
expressando seus sentimentos de forma impressionante, ainda que
não as conheçam. Vêm à tona as dinâmicas ocultas no sistema do
cliente que lhe causam os transtornos, mesmo que relativas a fatos
ocorridos em gerações passadas, inclusive fatos que ele desconhece.
Pode-se propor frases e movimentos que desfaçam os
emaranhamentos, restabelecendo-se a ordem, unindo os que no
passado foram separados, proporcionando alívio a todos os membros
da família e fazendo desaparecer a necessidade inconsciente do
conflito, trazendo paz às relações.

Com amparo na Resolução 125/2010 que deu margem ao legislador a


utilizar métodos autocompositivos, surge no Brasil o Direito Sistêmico, termo
cunhado pelo magistrado Sami Storch para definir a aplicação das Constelações
nas diretrizes de Bert Hellinger no âmbito jurisdicional. Assim, nas palavras de
Sami Storch: “A expressão “direito sistêmico”, no contexto aqui abordado, surgiu
da análise do direito sob uma ótica baseada nas ordens superiores que regem
as relações humanas, segundo a ciência da constelação familiar sistêmica
desenvolvida pelo terapeuta e filósofo alemão Bert Hellinger.” (STORCH, 2010)
As Constelações Sistêmicas constituem um método terapêutico que
funciona através de dinâmicas por pessoas ou por bonecos, para representar a
vida da pessoa que busca ser constelada, de modo que possa identificar o
causador do conflito. O método das Constelações consiste em observar as
relações familiares em que determinados comportamentos repetitivos refletem
em outros membros do sistema. Quando o sistema se encontra em desarmonia,
surgem conflitos familiares causando espirais de conflito, quando as ordens do
amor são restabelecidas todo o sistema volta a pertencer ao seu devido lugar.
Bert Hellinger explicou a importância das ordens do amor:

Quando a ordem é restaurada, isso gera um sentimento de alivio, de


paz, de possibilidades de fazer algo em conjunto. Esse é o significado
da frase simples: “Tudo ficará em ordem”. Repentinamente, tem-se
uma sensação de alívio. Essas ordens são descobertas, não impostas.
Eu as encontro através das constelações familiares.
(HOVEL;HELLINGER, 2010, p.44)

A partir do conhecimento das vivências das Constelações, o juiz Sami


Storch(2010) “decidiu aplicar as técnicas nas audiências de família, como
maneira de solucionar conflitos que não podem ser resolvidos com a sentença”.
(STORCH, 2010)
Um exemplo a ser mencionado é a o auxílio que o Direito Sistêmico opera
em casos de violência contra a mulher, conforme relatos da 1ª Vara
Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Cuiabá,
Mato Grosso:

Em meio às explicações, as mulheres verbalizaram seus próprios


conflitos, receberam orientações práticas da consteladora sobre o que
elas poderiam fazer para solucioná-los e puderam compreender onde
muitos conflitos se originam. “O conhecimento dos princípios
sistêmicos traz às mulheres uma possibilidade de mudarem sua
postura vitimizada, justamente porque elas conseguem observar o que
não vem funcionando e como podem fazer diferente nos seus
1549

relacionamentos. As vítimas demonstram compreensão da ordem


sistêmica e entendem a repetição do ciclo de violência” (TJMT, 2016)

Assim, o Direito Sistêmico que em primeiro momento surgiu para resolver


litígios familiares, se encontra atualmente em diversas áreas do Direito, conforme
o exemplo acima, bem como, escritórios de advocacia e cursos de
especialização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações humanas têm como função basilar manter uma sociedade


harmônica, em que se observam por costumes, comportamentos e
necessidades que evoluem conforme o tempo. Assim, o Poder Judiciário, se
adapta de acordo com as necessidades sociais que a lei não consegue suprir,
sendo necessário incorporar no âmbito judiciário métodos alternativos para
auxiliar a justiça e atender demandas que vão além da esfera judicial.
O mecanismo de autocomposição permite as partes, em comum acordo
consigam solucionar o conflito de forma amistosa e célere que contribui para a
economia processual. Assim, o Direito Sistêmico se apresenta como uma
ferramenta eficaz para solucionar conflitos quando as técnicas de
autocomposição se encontram limitados para solucionar o conflito.
Com a aplicação das técnicas das Constelações, fora possível obterem
mais acordos em audiências de conciliação, o que reforça a sua eficácia. Outros
ramos do Direito adotaram o método Sistêmico como aqui abordado, bem como,
a especialidade dos advogados sistêmicos que buscam a melhor solução para o
seu cliente abordando a política da paz como fator primordial para a solução de
conflitos.
Desse modo, busca as Constelações para a solução de impasses e tornar
o acordo mais consolidado, sendo considerada a ferramenta mais eficaz em
favor da sociedade, tendo como objetivo principal a pacificação social
proporcionando a humanização da justiça.

REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Tereza Fonseca. A Mediação na Administração Pública e os


novos caminhos para a solução de problemas e controvérsias no setor
público. Direito do Estado. Salvador, 2016.

HOVEL, Gabriele; HELLINGER, Bert. Constelações Familiares - O


Reconhecimento das Ordens do Amor. 13ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2010.

STORCH, Sami. O que é Direito sistêmico? 2010. Disponível em:


https://direitosistemico.wordpress.com/2010/11/29/o-que-e-direito-sistemico/.
Acesso em: 09.Out. 2019.

_______________. Direito sistêmico é uma luz no campo dos meios


adequados de solução de conflitos. Disponível em
<https://www.conjur.com.br/2018-jun-20/sami-storch-direito-sistemico-euma-
luz-solucao-conflitos> Acesso em 09. Out. 2019.
1550

TJMT- Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Conhecimento do direito


sistêmico ajuda vítimas de violência em MT. Disponível em
<https://www.cnj.jus.br/conhecimento-do-direito-sistemico-ajuda-vitimas-de-
violencia-em-mt/> Acesso em 09.Out.2019.
1551

O PARADIGMA DA RELAÇÃO ENTRE DEMOCRATIZAÇÃO DE ACESSO À


JUSTIÇA E RESPOSTA JURISDICIONAL EFETIVA
THE PARADIGM OF THE RELATIONSHIP BETWEEN DEMOCRATIZATION
OF ACCESS TO JUSTICE AND EFFECTIVE JURISDICTIONAL RESPONSE

Julio Cezar da Silveira Couceiro

Resumo: O presente trabalho realiza uma abordagem do grande movimento


surgido, após a segunda guerra mundial, que objetivava promover uma
aproximação maior entre a ciência jurídica e os problemas da sociedade, através
de iniciativas no sentido de democratizar e equacionar o acesso à justiça à
grande parte da sociedade até então, desassistida. Nesse sentido, analisa-se se
referido movimento, que representou a mais contundente expressão de ruptura
entre os paradigmas liberal e social, no Direito Processual, alcançado seu grande
ápice com a pesquisa empírica denominada Projeto Florença de Acesso à
Justiça e suas respectivas proposições de matizes socializantes e de cunho
procedimental, sob uma perspectiva internacional, trouxeram meios e condições
para que este acesso seja deflagrado de forma ampla e efetiva, no direito pátrio,
no sentido de serem alcançados resultados, não apenas práticos, como também,
justos.
Palavras-chave: Socialização Processual. Acesso à Justiça. Efetividade.

Summary: This paper approaches the great movement that emerged after World
War II, which aimed to promote a closer approximation between legal science
and the problems of society through initiatives to democratize and equate access
to justice for much of the world. hitherto unassisted society. In this sense, it is
analyzed if this movement, which represented the most striking expression of
rupture between the liberal and social paradigms, in the Procedural Law, reached
its great apex with the empirical research called Florence Project of Access to
Justice and its respective hues propositions. Socializing and procedural issues,
from an international perspective, have provided the means and conditions for
this access to be broadly and effectively triggered, in national law, in order to
achieve not only practical but also fair results.
Keywords: Procedural Socialization. Access to justice. Effectiveness.

1. INTRODUÇÃO

É inegável que, numa perspectiva globalizada, movimentos de ordem


política, econômica, social e cultural, havidos em determinadas épocas,
resvalam diretamente nas mais variadas temáticas do Estado, destacando-se
especialmente aqui, para os contornos do presente trabalho, a jurisdição.
Nessa perspectiva que surgiu, logo após a segunda guerra mundial, um
grande movimento de reformas que objetivava promover uma aproximação
maior entre a jurisdição e os problemas da sociedade (NUNES, 2011, p.108).
Tal movimento, que representou para o direito processual, o rompimento
entre os paradigmas liberal e social, inaugurou um novo tempo de direitos
sociais, mais especificamente, no que tange ao acesso à justiça, sendo
necessariamente exigido do Judiciário, a partir dessa nova leitura, uma outra
postura, no sentido de absorver, interpretar e aplicar adequadamente as
reformas implementadas.
1552

O ponto mais característico desse novo tempo foi consubstanciado por


um grande projeto de pesquisa empírica, desenvolvido em Florença, na Itália
(CAPELLETTI, 1982, p.2), denominado Projeto Florença de Acesso à Justiça,
onde através das chamadas ondas renovatórias de acesso à justiça, consolidou
proposições de matizes socializantes que também ecoaram no Direito
Processual Brasileiro, implementando diversas contribuições que se
notabilizaram pela ampliação e democratização do acesso à justiça aos mais
necessitados.
Se por um lado, são muito positivas as iniciativas implementadas no
sentido de se facilitar o acesso à justiça; por outro, também devem ser as
proposições e os esforços no sentido de que esse acesso seja realizado de uma
forma efetiva, objetivando não apenas alcançar resultados práticos e
prontamente visíveis, como também, justos (WATANABE, 1988, p.128)1.
Dessa forma, pretende-se aqui avaliar as influências e as contribuições
do Projeto Florença de Acesso à Justiça, que foram refletidas no direito pátrio;
quais as melhorias alcançadas na concretização da amplitude de acesso à
justiça, bem como, se estas tiveram o condão de torná-lo efetivo e seguro ao
destinatário da prestação dos serviços judiciais.

2. O SOCIALISMO PROCESSUAL E O MOVIMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA

Logo após a segunda guerra mundial, começou-se a identificar um


movimento tendente a promover uma maior aproximação entre a ciência jurídica
e os problemas da sociedade. Trata-se do movimento de reforma processual
denominado “socialismo processual” (DENTI, 1971 apud NUNES, 2011, p.108).
Tal movimento, inaugurou uma nova era de direitos, que deu causa a uma
verdadeira ruptura entre o liberalismo e a regra de direito que reinava até então,
conforme destacou Mauro Cappelletti (1994, p.95-96):

A idéia de acesso é a resposta histórica à crítica do liberalismo e da


regra de direito. Semelhante crítica, em suas expressões extremas,
sustenta que as liberdades civis e políticas tradicionais são uma
promessa fútil, na verdade um engodo para aqueles que, por motivos
econômicos, sociais e culturais, de facto não são capazes de atingir
tais liberdades e tirar proveitos delas.

Como corolário desse movimento que, nos idos da década de 70 (NUNES,


2011, p.115), começaram a surgir iniciativas no sentido de democratizar e
equacionar o acesso à justiça, possibilitando, principalmente aos mais
necessitados, a se utilizarem mais efetivamente da justiça, bem como,
questionamentos acerca da capacidade de as partes se adaptarem aos novos
direitos, além de polemizarem os já recorridos problemas enfrentados até então,
tais como, lentidão, custos e o enorme formalismo até então existente em
relação a certos procedimentos judiciais.
Com base nesse sentimento de reforma, que o movimento pela
socialização processual encontrou o seu ápice num enorme projeto de pesquisa

1 A expressão justo aqui remete à ideia de acesso a ordem jurídica justa, na concepção
desenvolvida por Watanabe, segundo a qual, o acesso à justiça não deve se limitar pura e
simplesmente no acesso aos Tribunais.
1553

que envolveu 23 países2, representados por seletos juristas, que responderam a


um questionário, cujas proposições e críticas, foram consolidados num relatório
que apontava os problemas existentes nos mais variados sistemas
internacionais de justiça, apresentando diagnósticos e hipóteses de acesso à
justiça a partir da identificação dos problemas que se desenvolveram no Estudo,
no sentido de alcançar as possíveis soluções técnicas para a crise de acesso a
direitos, nos seus respectivos sistemas jurídicos (NUNES, 2011, p.115). O
projeto foi efetivamente levado a cabo em 1973, sob a direção de Mauro
Capelletti, cujos resultados somente foram publicados em 1978, que se
denominou “Projeto Florença de Acesso à Justiça”, possibilitando um
compartilhamento de experiências entre todos os países envolvidos que
serviram de base para o movimento reformista que buscava, em tese, uma maior
participação das partes envolvidas nas demandas, assim como, a diminuição do
papel do juiz, na condução do processo, idealizados sobre ondas de reformas.
Dessa forma que restou amplamente conhecida a Teoria das Ondas
Renovatórias de Acesso à Justiça, por meio da qual estipulou-se movimentos
que se sobrepunham e se renovavam, de forma concatenada e cronológica.

3. ONDAS RENOVATÓRIAS DE ACESSO À JUSTIÇA

A primeira onda renovatória de acesso à justiça, apresentava um cunho


voltado para a assistência judiciária gratuita, com o intuito de alcançar as
populações mais necessitadas. Estes, desmotivadas pelos altos custos do
processo e da representação por meio de advogado, bem como, pela falta de
conhecimento necessário para reivindicar ou exercer seus direitos,
reconhecendo nisto uma verdadeira barreira de acesso, foram renunciando aos
mesmos.
Assim que, o primeiro movimento das chamadas ondas renovatórias de
acesso, que começa a ser despertado como consciência social a partir da
década de 60 (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 33), consistia em viabilizar uma
assistência jurídica integral e gratuita, onde o Estado se comprometeria a arcar
com as custas do processo e assistência jurídica, por meio de advogados
públicos ou particulares patrocinados pelo Estado.
Já a segunda onda renovatória de acesso à justiça (1980) visava
assegurar a tutela efetiva dos interesses difusos e coletivos, já que o processo
civil clássico não se encontrava preparado para a tutela de interesses que não
fossem individuais e patrimoniais, como os interesses coletivos e difusos:
Centrando seu foco de preocupação especificamente nos
interesses difusos, esta segunda onda de reformas forçou
a reflexão sobre noções tradicionais muito básicas do
processo civil e sobre o papel dos tribunais. Sem dúvida,
uma verdadeira “revolução” está se desenvolvendo no
processo civil. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 33).
Como dito, os litígios de grande escala não encontravam, no processo,
respostas efetivas, já que este, estava mais voltado para as pequenas causas e
causas individuais:

2Segundo Dierle José Coelho Nunes (2011, p.90), participaram do projeto os seguintes países:
Austrália, Áustria, Bulgária, Canadá, Chile, China, Colômbia, Inglaterra, França, Alemanha,
Holanda, Hungria, Indonésia, Israel, Itália, Japão, México, Polônia, União Soviética, Espanha,
Suécia, Estados Unidos e Uruguai.
1554

A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a


proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um
assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma
controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios
interesses individuais. [...] A visão individualista do devido processo
judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se fundindo
com uma concepção social, coletiva. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988,
p. 49-51).

A terceira onda renovatória de acesso à justiça, por sua vez, estabelecia


a simplificação de procedimentos e a utilização de meios privados e informais de
solução de conflitos, com objetivo de tornar o processo mais simples, célere,
menos custoso e mais acessível aos mais necessitados, no intuito de eliminar
as barreiras que inviabilizavam o acesso à justiça, objetivando, por conseguinte,
resultados mais justos, que não refletissem as desigualdades havidas entre as
partes:

O novo enfoque de acesso à Justiça, no entanto, tem alcance muito


mais amplo. Essa “terceira onda” de reforma inclui a advocacia, judicial
ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos,
mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições
e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e
mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o
denominamos de “o enfoque do acesso à Justiça” por sua abrangência.
Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas
primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas
de uma série de possibilidades para melhorar o acesso.
(CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.67-68)

4. O MOVIMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA NO DIREITO PÁTRIO

Embora o Brasil não tenha sido um dos grupos de Países escolhidos para
integrar o Projeto Florença de Acesso à Justiça, tem-se, em um contexto geral,
como inegável os reflexos e influências advindas desse Projeto que, por aqui, foi
abarcado pela instrumentalidade do processo e sua ordem jurídica justa. O ápice
do movimento de socialização processual, foi acolhido pela chamada corrente
instrumentalista do processo, conforme destacou Dinamarco (2009, p. 359):

Tudo quanto foi dito ao longo da obra volta-se a essa síntese muito
generosa que na literatura moderna leva o nome de acesso à justiça.
Falar em instrumentalidade do processo ou em sua efetividade
significa, no contexto, falar dele como algo à disposição das pessoas
com vista a fazê-las mais felizes.

Mas as discussões mais articuladas acerca do Projeto Florença, somente


foram sentidas aqui no Brasil com maior ênfase a partir da década de 80, com o
advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Entre os reflexos e influências de tal movimento, no Brasil, pode-se citar
como advindos da primeira onda renovatória, a prestação de assistência jurídica
por meio da defensoria pública e de advogados particulares custeados pelo
Poder Público. Neste ponto, destaca-se como um importante marco no direito de
acesso à justiça, o advento da Lei de Assistência Judiciária (Lei nº 1.060, de 5
1555

de fevereiro de 1950), que foi e continua a ser3 o instrumento legal apto a


disciplinar e proporcionar assistência jurídica integral e gratuita aos mais
necessitados.
Da mesma forma, foram grandes as influências, por aqui, da segunda
onda renovatória de acesso à justiça, que visou assegurar uma tutela
jurisdicional efetiva e diferenciada dos interesses difusos, coletivos e mais tarde,
dos individuais homogêneos, das quais, se pode citar, a Lei de Ação Civil Pública
(Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei
nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), no que tange aos direitos transindividuais.
Aqui, como dito, fica muita clara as influências e contribuições de tal teoria
com a instrumentalidade do processo, conforme DINAMARCO (2003, p. 25):

(...) a visão instrumental do processualista moderno transparece


também, de modo bastante visível, nas preocupações do legislador
brasileiro da atualidade, como se vê na Lei dos Juizados Especiais, na
Lei da Ação Civil Pública, no Código de Defesa do Consumidor e no
Código de Defesa da Criança e do Adolescente (medidas destinadas à
efetividade do processo).

Já a terceira onda renovatória de acesso à justiça, que visava


especialmente a simplificação de procedimentos e a utilização de meios privados
e informais de solução de conflitos, representou, entre nós, outra grande
ampliação do conceito de acesso à justiça, viabilizando, por exemplo, o juízo
arbitral, os métodos consensuais de solução de conflitos, os incentivos
econômicos que ajudavam a melhorar o acesso à justiça, representando uma
reformulação do processo como um todo para que a prestação jurisdicional fosse
mais efetiva e a duração do processo mais razoável.
Como corolário desta onda renovatória de acesso à justiça é possível
citar, como exemplo, a criação (pelo menos nos moldes que conhecemos
atualmente) do instituto da antecipação de tutela4, através da reforma processual
implementada pelo legislador em 19945, bem como, a criação dos Juizados de
Pequenas Causas e mais tarde dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei
nº 9.099, de 26 de setembro de 1995).

5. A EFETIVIDADE DO PROCESSO COMO DESAFIO

Como visto, estes movimentos ocasionaram uma reformulação do


processo como um todo, equacionando a sua relação com a justiça social, na
medida em que possibilitou acesso à justiça a grande parte da sociedade antes
desassistida.
Ocorre que, se por um lado foram muito importantes todas as iniciativas
no sentido de democratizar o acesso à justiça, por outro e não menos importante,
se torna também viabilizar institutos e mecanismos efetivos de prestação da
tutela jurisdicional.
3 O art. 1.072 do Código de Processo Civil/15, revogou diversos dispositivos da Lei 1.060/50,
especialmente no que tange à gratuidade da justiça, que passa a ser disciplinada a partir do art.
98 do CPC/15. A Lei 1.060/50, atualmente, dispõe especificamente quanto à Assistência
Judiciária Gratuita.
4 A Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994, alterou, entre outras disposições, o art. 273 do Código

de Processo Civil de 1973, no sentido de possibilitar a antecipação de tutela total ou parcial.


5 Antes existiam as ações cautelares, com caráter satisfativo, em procedimentos especiais, ou

seja, as liminares eram possíveis, mas apenas em situações especiais e específicas


1556

Nesse passo, é importante impingir um olhar atento sobre a estrutura do


Poder Judiciário como um todo, sobretudo se este preserva a inserção social,
não de forma isolada, mas somada a um conjunto de ações voltadas para a
preservação da efetividade nas resoluções dos conflitos, conforme destacou
Cappelletti (1988, p.73):

É necessário, em suma, verificar o papel e importância dos diversos


fatores e barreiras envolvidas, de modo a desenvolver instituições
efetivas para enfrentá-los. O enfoque de acesso à Justiça pretende
levar em conta todos esses fatores. Há um crescente reconhecimento
da utilidade e mesmo da necessidade de tal enfoque no mundo atual.
Assim, a sociedade, diante desse novo enfoque de acesso à justiça,
necessita de um estudo crítico da atuação do Poder Judiciário e de
todo o aparato judicial que o cerca.

A efetividade do processo, precisa ser repensada através de uma


perspectiva social sim, mas ao mesmo tempo jurídica, através de uma revisão
de suas bases e procedimentos, que vão, desde uma representação processual
digna da parte, esta anterior à distribuição da demanda, até a prolação de
sentenças justas, claras e precisamente fundamentadas, no intuito de não
somente garantir o acesso, mas instituir mecanismos efetivos e satisfatórios de
resolução destes conflitos de maneira digna aos destinatários da jurisdição, os
clientes da justiça (WATANABE, 1988).
Não se presta aqui, de maneira alguma, a criticar a possibilidade de maior
acesso à justiça e sim jogar um foco de luz sobre tudo aquilo que vem depois
deste acesso, no intuito de torná-lo efetivo e justo.

CONCLUSÃO

O movimento de socialização processual, deflagrado sob perspectiva


internacional, após a segunda guerra e mais bem caracterizado com o advento
do Projeto Florença de Acesso à Justiça, gerou grandes contribuições no que
tange ao acesso à justiça. Nesse sentido, todas as proposições implementadas
no sentido de se buscar um alargamento das vias Estatais foram muito positivas
no que tange ao direito do jurisdicionado bater às portas do Poder Judiciário e
ter a sua demanda atendida e analisada pelo Estado Juiz.
Nesse prisma, tem-se que os reflexos deste movimento de socialização
processual e das proposições do Projeto Florença, através das ondas
renovatórias, influenciaram no Brasil o surgimento e a concretização de
importantes institutos que foram, gradativamente, sendo incorporados ao nosso
ordenamento jurídico, especialmente no direito processual.
Ocorre que, se por um lado foram muito importantes todas as iniciativas
no sentido de democratizar o acesso à justiça, por outro e não menos importante,
deveriam ter sido as proposições no sentido de viabilizar mecanismos mais
efetivos de prestação da tutela jurisdicional. Ao Estado não basta disponibilizar
meios de acesso à justiça. Deve, antes de tudo, propiciar mecanismos efetivos
de prestação da tutela jurisdicional, que vão desde o momento da receptação de
novas demandas a ele direcionadas, passando pelo processamento e
tratamento destas, até o seu respectivo arquivamento.
A garantia legítima de acesso à justiça, assim, como um dos direitos mais
básicos do cidadão, deve ser repensada hoje sob o prisma da efetividade, com
enfoque maior na justiça e na qualidade da decisão, bem como, em seus reflexos
1557

perante a sociedade, de forma que não sejam alcançados resultados apenas


quantitativos.
Daí a necessidade de se jogar um foco de luz sobre o momento posterior
à implementação de acesso à justiça, tais como, a necessidade de uma melhor
fundamentação das decisões judiciais; diminuição de decisões procrastinatória,
no processo; mecanismos de diminuição de utilização abusiva do direito
processual, pelas partes, que tende a gerar morosidade; melhor aparelhamento
das defensorias ou mesmo a utilização de advogados privados, por meio de
convênios com o Estado, de forma se permitir uma prestação de serviços
adequada ao atendimento das demandas dos usuários com insuficiência de
recursos comprovadas; fortalecimento das demandas coletivas; ou seja, eliminar
todas as barreiras que possam representar uma grande dificuldade ou mesmo,
frustação para a realização da justiça ao jurisdicionado.

REFERÊNCIAS

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen


Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.

CAPPELLETTI, Mauro. Os Métodos Alternativos de solução de conflito no


quadro do movimento universal de acesso à justiça. Revista de Processo,
n. 74, p. 82-97. São Paulo, 1994.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 11 ed.,


São Paulo: Malheiros, 2003.

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. 1ª ed., 3ª


reimpr. Curitiba: Juruá, 2011.

WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada Pellegrino; e DINAMARCO, Candido


Rangel. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. In Participação e Processo.
São Paulo: 1ª ed. Revista dos Tribunais, 1988.
1558

Grupo de Trabalho:

PROCESSO CIVIL E ACESSO À JUSTIÇA II


Trabalhos publicados:

A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA PROTEÇÃO DO DIREITO À


MORADIA POR MEIO DA TUTELA POSSESSÓRIA COLETIVA

FAZENDA PÚBLICA E A COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DO PEDIDO


DE SUSPENSÃO DE SEGURANÇA

O FIM DA COISA SOBERANAMENTE JULGADA À LUZ DO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL

O PROTAGONISMO DA ATIVIDADE JURISPRUDENCIAL DOS TRIBUNAIS E


O DESPRESTÍGIO DO LEGISLADOR EM RELAÇÃO À JUDICIALIZAÇÃO DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS

O ROL TAXATIVO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO E A IMPORTÂNCIA DE


SUA MITIGAÇÃO

OS PRECEDENTES JUDICIAIS COMO INSTRUMENTO DE APROXIMAÇÃO


ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA.

PROCESSO CIVIL EM PERSPECTIVA: UMA ANÁLISE DA COOPERAÇÃO


JURÍDICA INTERNACIONAL NOS PROCESSOS TRANSFRONTEIRIÇOS

PROGRAMAS DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NO BRASIL.


1559

A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA PROTEÇÃO DO DIREITO À


MORADIA POR MEIO DA TUTELA POSSESSÓRIA COLETIVA
THE PERFORMANCE OF THE PUBLIC DEFENDER IN THE PROTECTION
OF THE RIGHT TO HOUSING THROUGH THE GUARDIANSHIP OF
COLLECTIVE POSSESSION

Marilza Romero de Aquino


João Victor Maciel de Almeida Aquino
Orientador(a): Felipe Garcia Telò

Resumo: O direito à moradia ganhou nas últimas décadas, graças à


Constituição Federal de 1988, um status diferente dentro do ordenamento
jurídico. A carta magna sagrou este como um direito de ordem social e, além
disso, institui, em seu artigo 23, como competência dos entes federados, União,
Estados e Municípios, promover programas que busquem melhorar as condições
habitacionais da população. A partir deste marco normativo, o tema referente à
moradia ganhou novas proporções e a ideia de ocupação do espaço urbano uma
nova formatação. Infelizmente a aplicação da norma constitucional encontrou
óbice na realidade social brasileira. O modo como o espaço urbano foi distribuído
e ocupado ainda reflete as desigualdades surgidas durante as primeiras décadas
do século XX e, por conseguinte, dificulta a garantia efetiva do direito. Nesse
contexto, tem cabido ao judiciário, em especial à Defensoria Pública, tomar
medidas que busquem mitigar as disparidades fáticas. O presente trabalho
busca analisar o papel que a instituição da Defensoria Pública tem tido na
defesa, particularmente em sede coletiva, na tutela e salvaguarda desse direito.
Palavras-chave: Tutela Possessória. Direito à moradia. Direito Urbanístico.

Abstract: The right to housing has gained in recent decades, thanks to the
Federal constitution of 1988, a different status within the legal framework. The
Magna Carta has been a social right and, moreover, establishes, in article 23, the
competence of the federate entities, the Union,
states and municipalities, promote programs that seek to improve the
house conditions of the population. From this normative framework, the theme
regarding housing has gained new proportions and the idea of occupying urban
space a new format. Unfortunately, the application of the constitutional norm
found it obvious in the Brazilian social reality. The way in which the urban space
was distributed and occupied still reflects the inequalities that emerged during the
first decades of the twentieth century and, therefore, hinders the effective
guarantee of the right. In this context, the judiciary, in particular the Public
Defender's Office, has to take measures that seek to mitigate the phatic
disparities. The present work seeks to analyze the role that the institution of the
public defender has had in the defense, particularly in the collective headquarters,
in the guardianship and safeguard of this right.
Keywords: Collective Possession. Right to Housing. Urbanistic Law.

INTRODUÇÃO

A urbanização do Brasil, assim como a maioria dos processos que


impactou de forma considerável a organização social e econômica, realizou-se
de maneira desregrada. Os primeiros governos nacionais, tanto o imperial,
1560

quanto o republicano, promoveram políticas de ocupação do espaço territorial


brasileiro, principalmente em âmbito rural, por meio da viabilização de fluxos de
imigrantes europeus e asiáticos. Enquanto a principal preocupação do governo
era o preenchimento do vazio demográfico nas regiões norte e centro-oeste do
Brasil, as grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro, cresciam de
maneira desenfreada. Foi justamente nesse período, entre final do século XIX e
inicio do século XX, que surgiram as primeiras favelas brasileiras.
Posteriormente na primeira metade do século XX, iniciou-se, em várias
cidades brasileiras, o processo de modernização e reurbanização. A
europeização do tecido urbano das metrópoles brasileiras socialmente teve um
custo alto. As populações pobres que ocupavam os centros, e regiões
adjacentes dessas cidades, foram removidas e transferidas para as periferias.
Famoso é o caso da Vila Kennedy no Rio de Janeiro, que foi criada em 1963,
nos arredores da então capital federal, como alternativa da política habitacional
para a solução do problema das favelas e hoje se tornou um dos bairros mais
violentos da Zona Oeste do Rio.
Ao se abordar a ocupação do espaço territorial urbano sob o viés jurídico
é necessário que se vá além da análise econômica e social das políticas
habitacionais. Sob o aspecto legal, é necessário, a priori, que se identifique sua
principal característica, qual seja, a ambiguidade entre a quantidade de
legislação e normas reguladoras e o elevado grau de descumprimento dessas
mesmas normas. Embora o Brasil tenha nas últimas décadas adotado uma série
de medidas legislativas, como o Estatuto das Cidades, e administrativas, como
as diversas políticas públicas em nível nacional, estadual e municipal, que
denotam a importância das políticas habitacionais, inclusive reafirmando o
caráter constitucional do direito a moradia, permanece a cultura de que na
ocupação do espaço prevalecem os interesses políticos e econômicos em
detrimento daqueles que mais beneficiem a população como um todo.
Nesse contexto, o poder judiciário tem tido papel de relevante importância,
visto que, na falta do Estado, este cumpre a função de garantir as prestações
positivas do Estado. Igualmente importante, é o papel da Defensoria Pública,
que patrocina o interesse individual e, nesse caso devido a própria natureza do
direito, o coletivo.
Este trabalho busca analisar a atuação do referido órgão nesses conflitos,
levantando no primeiro item a natureza constitucional do direito possessório, no
segundo, por sua vez, analisar-se-á, de forma específica, a atuação da
Defensoria Pública na tutela em âmbito individual e coletivo desse direito e as
ferramentas processuais existentes para que isso seja realizado. A elaboração
do presente foi feita com o emprego dos métodos dedutivo e indutivo, realizando-
se para a sua produção a pesquisa, coleta e análise de material bibliográfico
sobre o tema.

1. O DIREITO CONSTITUCIONAL À MORADIA

Após a segunda guerra mundial, iniciou-se na parte continental na


Europa, uma movimentação, influenciada principalmente pela doutrina do teórico
austríaco Hans Kelsen, que tinha como principal objetivo reconduzir o texto
constitucional a um novo patamar de relevância. A reconstitucionalização dos
Estados europeus propiciou a conversão do status quo do texto constitucional e,
junto do fortalecimento da democracia, formou o modelo político do Estado
1561

democrático de direito. A função da Constituição passou de simples texto


ideológico e programático, para assumir a função de núcleo e fundamento de
todo um sistema jurídico.
No Brasil, o processo de reconstitucionalização se deu com a
promulgação da Carta Magna em 1988. Esta foi responsável por cristalizar uma
série de direitos relevantes para a garantia daquilo que foi preconizado como um
dos fundamentos da República e da ordem constitucional, a dignidade da
pessoa. Foi nesta Constituição que o direito à moradia foi consagrado como tal.
Embora já fosse norma constitucionalmente positivada, esse direito só foi
expressamente reafirmado com a Emenda Constitucional 26 de 14 de fevereiro
de 2000, após doze anos de promulgação da Constituição. Atualmente, resta
claro a sua natureza como direito fundamental, autônomo e de ordem existencial.
Além disso, houve um esforço legislativo e jurisprudencial para delimitar o seu
conteúdo material, visto que a norma constitucional não o desenvolve
substancialmente. Trata-se, portanto, de uma norma flexível que pode ter seu
sentido estendido com base em meios interpretativos e de acordo com o sistema
internacional de proteção dos direitos humanos. Este, no entanto, não pode
prescindir a relação entre este direito com o princípio da dignidade da pessoa
humana, em especial seu aspecto garantista, necessário para a manutenção de
um parâmetro mínimo de qualidade de vida que garanta condições para a sua
existência decente. (SARLET; MARINONI e MITIDIERO, 2017, p. 682).
Embora seja um direito constitucional, no plano real, são diversas as
dissensões que surgem em sede do direito à moradia. No Brasil contemporâneo,
identifica-se nos centros urbanos o principal meio onde problemas fundiários se
desenvolvem. A concentração de propriedade, somada a especulação
imobiliária e a incapacidade das políticas habitacionais faz surgir conflitos entre
dois grupos sociais diametralmente opostos no cenário da ocupação do espaço
urbano. De um lado se encontram proprietários de imóveis desocupados e sem
nenhuma função social e do outro se encontram indivíduos a margem do
processo de urbanização que, como meio de garantir um teto por pelo menos
alguns dias, invadem esses imóveis. (CARVALHO; RODRIGUES, 2014, p. 6). A
partir da ocupação desses locais, inicia-se um processo que culmina em uma
série de efeitos sociais, econômicos, políticos e jurídicos. Os chamados conflitos
fundiários são definidos pelo artigo 3º da Resolução n.º 87 do Ministério das
Cidades (BRASIL, 2013, p. 19, apud CARVALHO; RODRIGUES, 2015, p. 6)
como sendo a: “Disputa pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem como
impacto de empreendimentos públicos e privados, envolvendo famílias de baixa
renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção
do Estado na garantia do direito humano à moradia e à cidade”.
Ademais, em se tratando dos conflitos fundiários é importante ressaltar
que quanto a esses imóveis desocupados recai a falta daquilo que a Constituição
Federal preconiza no seu artigo 5º, XXIII, a Função Social. Nos imóveis urbanos
a noção de função social perpassa o seu uso principalmente para fins de
moradia. Sob esse escopo, a propriedade urbana que não cumpre sua função
social é aquela que frustra três requisitos alternativos: a) não estar edificada; b)
estar subutilizada; c) não estar sendo utilizada. O cumprimento da função social
torna-se o limite para o exercício do direito a propriedade, portanto, por meio de
uma interpretação sistemática da Constituição, este só está garantido ao
indivíduo que atender a este requisito no uso e fruição de seu bem imóvel.
(VELOSO; PEIXOTO; FABER, 2017, p. 128).
1562

1.2. DIREITO À MORADIA E A RELEVÂNCIA DA POSSE

O direito à moradia hoje assume uma acepção razoavelmente mais


complexa e que ultrapassa o simples conceito de possuir um teto ou abrigo. De
acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos e Sociais (PIDESC)
da Organização das Nações Unidas (ONU), do qual o Brasil é signatário, aduz
que a moradia adequada, do ponto de vista que busca garantir as condições
mínimas de vida, deve possuir as seguintes características: I. Segurança jurídica
da posse; II. Disponibilidade dos serviços, materiais, benefícios e infraestrutura;
III. Gastos suportáveis; IV. Habitabilidade; V. Acessibilidade; VI. Localização; e
VIII. Adequação cultural (ONU, 2014, p. 2, apud CARVALHO; RODRIGUES,
2015, p. 4).
Dentre os pontos elencados pelo texto normativo internacional, cabe
ressaltar o uso do termo segurança jurídica da posse. Ao abordar a posse, a
ONU procura ampliar a efetividade daquilo que é estabelecido em sede do Direito
Internacional. Além da celeuma em relação a soberania estatal, grande parte dos
textos normativos internacionais são de caráter puramente programático ou
ideológico, o que dificulta, a depender do ordenamento jurídico, a aplicação do
instituto. No Brasil, por exemplo, durante muitos anos foi muito comum que as
normas internacionais das quais o país fosse signatário não tivessem nenhuma
aplicação devido a necessidade de sua recepção na ordem jurídica nacional. A
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, um dos principais instrumentos
do sistema interamericano de Direitos Humanos, embora assinada em 1969, só
entrou em vigor no país em 1992.
Ainda sobre esse aspecto a ONU, por meio do Comentário Geral n.º 4 do
Comitê de dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC), esclarece que
em qualquer tipo de ocupação “[...] todas as pessoas devem possuir um grau de
segurança de posse que lhes garanta a proteção legal contra despejo forçado,
perturbação e qualquer tipo de outras ameaças” (ONU, 2014, p. 7, CARVALHO;
RODRIGUES, 2015, p. 4).

2. A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA TUTELA DO DIREITO À


MORADIA E AS FERRAMENTAIS DISPONÍVEIS EM ÂMBITO PROCESSUAL

Por um lado existe o direito constitucional à propriedade que, no cenário


político e social brasileiro, colide com o direito a moradia, sendo a proteção da
posse também um direito fundamental com grande relevância social. A
ocupação urbana de forma coletiva, como decorrência do direito à moradia, em
terrenos improdutivos ou abandonados é uma das funções institucionais da
Defensoria Pública. Essas ocupações são as que dão origem as ações
possessórias.
No Código de Processo Civil de 2015, essas ações possuem um capítulo
próprio, compreendidos entre os artigos 554 e 566. O CPC não trouxe mudanças
significativas no modo como as ações possessórias eram tratadas no Código de
1973. A principal diferença entre ambos se encontra, principalmente, na
regulamentação da legitimidade coletiva e a possibilidade de que nesses
conflitos possessórios se opere a mediação. São nessas hipóteses em que a
Defensoria Pública atua e o legislador ao elaborar o Código reconhece a
importância da ação desse órgão como função essencial à justiça, bem como
instrumento da ordem democrática. (DE PAULA, 2017, p. 52).
1563

A atuação da Defensoria tem como objetivo principal o de realizar a


regularização fundiária. Este processo envolve uma série de medidas jurídicas
(onde diretamente atua o órgão), sociais, urbanísticas e ambientais que visam a
legalização e integração da ocupação no contexto maior das cidades. Muitos dos
assentamentos localizados nas periferias sofrem com a falta de acesso a
serviços básicos, como saneamento, coleta de lixo e assistência médica.
Portanto, é importante ressaltar que a regularização está intrinsecamente
correlacionada com a garantia não apenas do direito fundamental à moradia,
mas a todo um arcabouço de institutos que visam a proteção da dignidade da
pessoa humana e nesse caso da garantia do exercício da cidadania e do
impedimento da discriminação e marginalização daqueles que se encontram em
situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Os tipos mais comuns de irregularidade fundiária são de duas ordens, a
dominial e a urbanístico-ambiental. No primeiro caso aquele que ocupa um
espaço público ou privado não possui garantia jurídica da manutenção de sua
posse por ausência de título legalmente válido. Já no segundo caso, a
irregularidade ocorre quando existe a falta de cumprimento da legislação urbana
e ambiental. Devido a relevância e a amplitude de direitos que a realização de
uma regularização fundiária afeta, é comum que exista na Defensoria Pública
órgãos ou núcleos de atuação especifica que são destinados a agir em
demandas desta natureza. (DPE/MT, 2012).
Como exemplo, pode-se citar o Núcleo de Habitação e Urbanismo (NHU)
da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, criado em 2006. A missão deste
de acordo com o órgão é “servir de instrumento de luta das comunidades
carentes pela promoção do direito à moradia e do direito à cidade, de modo a
garantir o bem de todos e a dignidade de cada um como pessoa humana”
(NASSAR, 2011).
Em sede processual, a atuação da Defensoria Pública é principalmente
realizada em âmbito do processo coletivo. A redação dada ao artigo 104 da
Constituição Federal, pela Emenda Constitucional n.º 80 de 2014 reafirmou a
competência de atuação do órgão em sede coletiva em todos os graus de forma
judicial e extrajudicial. As ocupações fundiárias são geralmente formadas por
diversas famílias que possuem como liame instituidor de relação jurídica, e
consequentemente àquilo que os caracteriza como uma coletividade, a
ocupação da terra sem que exista uma regularização fundiária que possibilite o
uso e fruição na forma da lei.
Sobre esse aspecto, cabe ressaltar que no caso em tela, trata-se de direito
coletivo individual homogêneo, ocupando a classe do direito coletivo que a priori
é individual, mas devido a situação fática, é tratado de forma coletiva.
A Defensoria vinha atuando nas últimas décadas majoritariamente por
meio de ajuizamento de ações civis públicas. Nestas o órgão figura como
substituto processual dos titulares do direito objeto do litigio, fazendo uso da
legitimidade extraordinária, ondem defende interesse alheio em nome próprio,
que lhes é garantida pelo artigo 5º, II, da Lei n.º 7.347/2018 que regula as ações
civis públicas.
Na maioria dos casos em que o órgão figurava como parte existia sempre
um risco iminente à posse dos moradores, como uma ação de reintegração de
posse promovida pelo proprietário do local ocupado. O papel
predominantemente reativo da Defensoria teve uma mudança crucial a partir do
novo Código de Processo Civil de 2015. (NASSAR, 2011).
1564

O Código de Processo Civil (CPC) trouxe uma série de alterações no


Capítulo que dispõe a respeito das ações possessórias. Estes lograram avanço
principalmente no tocante à facilitação da atuação da Defensoria, como
patrocinadora do direito dos hipossuficientes, seja em caráter processual em
juízo ou anteriormente à instauração da ação possessória propriamente dita,
possibilitando que ocorresse a quebra do padrão no qual a Defensoria só era
acionada como último recurso de defesa das partes lesadas.
À princípio, dentre as mudanças, destaca-se o previsto do § 1º do artigo
554, este determina que, nas ações possessórias em que figurem grande
número de pessoas no polo passivo, desde que em situação de hipossuficiência
financeira, a Defensoria Pública deverá ser obrigatoriamente intimada para que
tome as medidas, guardadas as proporções de seu papel processual como
terceira interessada, que julgar necessárias para a efetiva salvaguarda do direito
à moradia e dos que naturalmente se correlacionem com este.
Nesse caso, a defensoria atuará como custus vulnerabilis et plebis,
assumindo lugar de interveniente na tutela dos interesses dos hipossuficientes e
não o de representante da parte, como no caso das ações civis públicas. O modo
de intervenção do órgão é suis generis e tem sido definido doutrinariamente
como atuação de terceiro interessado em nome próprio, em consonância com
as competências institucionais de defesa da dignidade da pessoa humana, da
redução das desigualdades sociais, na afirmação do estado democrático de
direito, bem como na prevalência e efetividade dos direitos humanos.
Antes de se fazer analisa da segunda alteração trazida pelo novel CPC é
necessário que se compreenda o peso que existe no lapso temporal desde o
início da ocupação até a propositura da ação possessória. A posse do local
ocupado pode ser de força velha ou de força nova e, a depender de qual das
forças se configure, irá influir de forma significativa no andamento processual. A
posse de força velha é aquela que existe há mais de um ano e um dia e da força
nova a que subsiste há período menor que o de um ano e um dia.
O referido é importante tendo em vista o previsto no artigo 562 do CPC.
Segundo a norma, a ação que for fundada sobre ocupação de força nova terá
proferida pelo juiz medida liminar, inaudita altera pars, que decida pela
manutenção ou reintegração de posse do local objeto da ação. No entanto, de
acordo com o que aduz o artigo 565, caso a posse seja de força velha, a liminar
não poderá ser concedida pelo juiz sem que este designe audiência de
mediação. Mais uma vez a Defensoria Pública será, conforme o § 2º, intimada
caso haja parte hipossuficiente no polo passivo da demanda, intimidada para
comparecer na audiência como terceira interessada.
As mudanças realizadas na sistemática do CPC servem para ampliar a
proteção dos sujeitos que são dotados de grave vulnerabilidade na dinâmica
processual. Um dos pontos que o CPC reitera é do que deve haver
obrigatoriamente a existência de hipossuficiente para que a defensoria seja
intimidada.
Nesse diapasão, cabe destacar que a Defensoria é essencial e
constitucionalmente incumbida de promover o direito daquele que, de acordo
com o artigo 134 e o inciso LXXIV do artigo 5º, não possui recursos insuficientes
para defender seu direito em juízo, o hipossuficiente econômico.
Nos últimos anos, tem prevalecido uma tendência, consagrada
principalmente quando o litígio é de natureza coletiva, de se ampliar o conceito
de hipossuficiência. O alargamento do que se entende como hipossuficiência
1565

tem se demonstrado necessário, visto que, muito graças ao Código de Defesa


do Consumidor, percebeu-se que o critério econômico não é suficiente para
indicar que determinado indivíduo se encontra em caráter de vulnerabilidade.
Admite-se, portanto, a existência de uma definição dada por outros
denominadores, como é o caso da hipossuficiência técnica que ocorre nos casos
em que à parte vulnerável falta conhecimento técnico-científico.
A ampliação de correlaciona com todo o sistema que garante ao individuo
o acesso à justiça, como o extenso rol de garantias constitucionais e
processuais, como o princípio do contraditório e ampla defesa e o da
inafastabilidade da jurisdição. Limitar o conceito de hipossuficiência ao aspecto
puramente econômico não é o melhor modo para que se dê total efetividade ao
acesso à justiça, visto que o conceito atualmente dado ao instituto é o de que se
trata de direito fundamental que ultrapassa a simples noção de acesso à
jurisdição e envolve uma dimensão social muito mais ampla.

CONCLUSÃO

O papel da Defensoria Pública nas ações possessórias coletivas se revela


no atual estágio social e econômico um trabalho de grande relevância. A
regularização fundiária realizada pelo órgão é importante para garantir o direito
à moradia e, além disso, todo os outros direitos constitucional e
internacionalmente garantidos, como a dignidade da pessoa humana. A atuação
do órgão tem reiterado o seu papel como função essencial à justiça, garantindo
não apenas a promoção do dos direitos e interesses individuais daqueles que
estão diretamente envolvidos, mas de toda uma coletividade.
A legislação urbana brasileira é ímpar no contexto dos países latino-
americanos. O sistema normativo garante o direito à moradia e a garantia do
indivíduo à cidade (aqui entendida como uma série de sistemas sociais,
econômicos, culturais e legais).
Em que pese se encontre ainda em descompasso com as garantias em
matéria constitucional e internacional, o Brasil tem caminhado ao
reconhecimento e a busca pela sua materialização, estabelecendo, como no
caso da tutela possessória coletiva, ferramentas necessárias para tanto.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Diário Oficial


da União, Brasília, DF, 05 out. 1988.

BRASIL. Lei 10.257 de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183


da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá
outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 de Julho de
2001.

BRASIL. Lei 13.105 de 16 de Março de 2015. Código de Processo Civil. Diário


Oficial da União, Brasília, DF, 17 de Marços de 2015.

CARVALHO, Cláudio Oliveira; RODRIGUES, Raoni. O novo código de


processo civil e as ações possessórias – Novas perspectivas para os conflitos
1566

fundiários coletivos? Revista de Direito da Cidade, vol. 07, nº 4. Número


Especial, p. 1750-1770. São Paulo, 2015.

DE PAULA, Vinicius Lamego. Da tutela dos interesses da coletividade


vulnerável pela Defensoria Pública nas ações possessórias a partir do novo
CPC. Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, n. 5, p. 51-
63. São Paulo, 2017. Disponível em: <
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_bib
lioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/Cad-Def-Pub-
SP_n.5.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019.

DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MATO GROSSO (DPE/MT).


Regularização Fundiária Urbana. 2012. Disponível em:
<http://www.defensoriapublica.mt.gov.br/portal/index.php/cetic/item/8581-
regulariza%C3%A7%C3%A3o-fundi%C3%A1ria-urbana>. Acesso em
10/09/2019.

NASSAR, Paulo André. Judicialização do Direito à Moradia e


Transformação Social: análise das Ações Civis Públicas da Defensoria
Pública do Estado de São Paulo. 2011. 134 fls. Dissertação (Mestrado em
Direito e Desenvolvimento). Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas. São Paulo, 2011.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.


Curso de Direito Constitucional. Saraiva: São Paulo, 2017.
1567

FAZENDA PÚBLICA E A COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DO PEDIDO


DE SUSPENSÃO DE SEGURANÇA
PUBLIC FARM AND THE JURISDICTION FOR THE SAFETY SUSPENSION
APPLICATION

Jessica Sério Miranda


Estevão Grill Pontone
Orientador(a): Adriano da Silva Ribeiro

Resumo: O objetivo deste resumo é contribuir para reflexão e debate acerca do


tema Fazenda Pública e a competência para o pedido de suspensão de
segurança, seja na Justiça Federal e na Justiça Estadual, bem como no Supremo
Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça. Para o desenvolvimento da
pesquisa, o método utilizado será o dedutivo, com base na pesquisa
bibliográfica, no exame dos textos constitucionais e legais. Constata-se que a
competência para apreciar o pedido de suspensão é do presidente do tribunal
competente para julgar o recurso contra a decisão concessiva do provimento
liminar, antecipatório ou final de mérito.
Palavras-chave: Fazenda Pública. Competência para julgamento. Suspensão
de Segurança.

Resumen: El objetivo de este resumen es contribuir a la reflexión y debate sobre


el tema Hacienda Pública y la competencia para la solicitud de suspensión de
seguridad, sea en la Justicia Federal y en la Justicia Estatal, así como en el
Supremo Tribunal Federal y en el Superior Tribunal de Justicia. Para el desarrollo
de la investigación, el método utilizado será el deductivo, con base en la
investigación doctrinal, en el examen de los textos constitucionales y legales. Se
constata que la competencia para apreciar la solicitud de suspensión es del
presidente del tribunal competente para juzgar el recurso contra la decisión
concesiva de la provisión preliminar, anticipatoria o final de mérito.
Palabras clave: Hacienda Pública. Competencia para el juicio. Suspensión de
seguridad.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste resumo é contribuir para reflexão e debate acerca do


tema Fazenda Pública e a competência para o pedido de suspensão de
segurança. Portanto, tema amplo no ordenamento jurídico. Mas, o que se
pretende discutir é mais modesto. Não se trata de estudar todo o tema, mas, sim,
a competência para o pedido de suspensão de segurança.
Para o desenvolvimento da pesquisa, o método utilizado será o dedutivo,
com base na pesquisa doutrinária, no exame dos textos constitucionais e legais.
Por fim, o trabalho será estruturado partindo-se, inicialmente, de uma
conceituação do que é Fazenda Pública e os seus princípios norteadores. A
seguir, far-se-á uma breve compreensão da capacidade postulatória da Fazenda
Pública. Em prosseguimento, examinar-se-á a competência para o pedido de
suspensão de segurança, na Justiça Federal e na Justiça Estadual, bem como
no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça. Nas
considerações finais, procurar-se-á sintetizar o estado atual do tema.
1568

REFERENCIAIS TEÓRICOS SOBRE A FAZENDA PÚBLICA

O presente capítulo apresentará referenciais teóricos sobre a Fazenda


Pública e seus princípios norteadores. Antes de adentrar no tema, objeto deste
item, importante compreender o significado da Fazenda Pública no ordenamento
jurídico.
Anote-se que a expressão Fazenda Pública está ligada a área da
Administração Pública, responsável pela gestão das finanças, a fixação e
implementação de políticas econômicas. Nas palavras de Leonardo Cunha:

Fazenda Pública é expressão que se relaciona com as finanças


estatais, estando imbricada com o termo Erário, representando o
aspecto financeiro do ente público. Não é por acaso a utilização, com
frequência, da terminologia Ministério da Fazenda ou Secretaria da
Fazenda para designar, respectivamente, o órgão despersonalizado da
União ou do Estado responsável pela política econômica desenvolvida
pelo Governo. (CUNHA, 2017, p. 1)

Em Direito Processual, quando se refere à Fazenda Pública em juízo,


ensina Leonardo Cunha, a expressão apresenta-se como sinônimo do Poder
Público em juízo, ou do Estado em juízo (CUNHA, 2017, p. 1). Segundo Hely
Lopes Meirelles, a Administração Pública, em juízo, “recebe a designação
tradicional de Fazenda Pública, porque seu erário é que suporta os encargos
patrimoniais da demanda” (MEIRELLES, 1998, p. 590).
No processo em que haja a presença de uma pessoa jurídica de direito
público, esta pode ser designada, genericamente, de Fazenda Pública, afirma
Leonardo Cunha (2017, p. 1-2). O que importa deixar evidente, sustenta
Leonardo Cunha, “é que o conceito de Fazenda Pública abrange a União, os
Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e
fundações públicas” (CUNHA, 2017, p. 2).

PRINCÍPIOS DA FAZENDA PÚBLICA

Quando a Fazenda Pública é parte em uma ação judicial, usufrui de certas


prerrogativas que não são atinentes aos particulares, pois esta é uma
peculiaridade do órgão público, desnivelando as partes nas relações jurídicas,
afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2008, p. 710). A propósito dessas
prerrogativas, destacam-se dois princípios: da supremacia do interesse público
e o da isonomia.
A expressão interesse público, nas palavras de Leonardo Cunha, está
associada “não raras vezes, a outros termos similares, tais como interesse geral,
interesse difuso, interesse coletivo, utilidade pública, ora mencionados no
mesmo sentido, ora em sentidos díspares” (CUNHA, 2017, p. 26).
Por interesse público, a partir do estudo de Maria Sylvia Zanella Di PIetro,
entende-se que é o bem estar coletivo, sendo que o mesmo somente começou
a se desenvolver quando superado o Direito Civil e o individualismo, para assim
tornar-se fundamento para todo o direito público, o de que os interesses públicos
têm supremacia sobre os individuais (DI PIETRO, 2008, p. 64).
Segundo ensina o Celso Antônio Bandeira de Mello, “o interesse público
é resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm
1569

quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo


simples fato de o serem” (MELLO, 1995, p. 71).
Na supremacia do interesse público, portanto, os interesses estatais nem
sempre prevalecem sobre os dos administrados, “mas que o interesse público,
definido a partir da ponderação, deve prevalecer em certa atividade concreta
sobre interesses isolados, sejam particulares, sejam estatais” (RODRIGUES,
2016, p. 10-11). Pode-se dizer, valendo-se de Maria Sylvia Di Pietro, que “a
Administração Pública não é titular do interesse público, mas apenas a sua
guardiã; ela tem que zelar pela sua proteção. Daí a indisponibilidade do interesse
público” (DI PIETRO, 1991, p. 163).
Portanto, o princípio da supremacia do interesse público está intrínseco
no conceito e nos fundamentos da Fazenda Pública, já que é preservado pelo
Estado, que responde pela gerência da Administração Pública.
A prerrogativa da isonomia confere ao ente público o exercício de uma
atividade sem maiores prejuízos ao erário, pois é promotora do interesse público,
justificando as prerrogativas e privilégios processuais, em favor da Fazenda
Pública (CUNHA, 2009, p. 36).
É, em outras palavras, o que assevera Alexandre Freitas Câmara:

Não se pode ver, porém, neste princípio da igualdade uma garantia


meramente formal. A falsa ideia de que todos são iguais e, por isso,
merecem o mesmo tratamento é contrária à adequada aplicação do
princípio da isonomia. As diversidades existentes entre todas as
pessoas devem ser respeitadas para que a garantia da igualdade, mais
do que meramente formal, seja uma garantia substancial. Assim é que,
mais do que nunca, deve-se obedecer aqui à regra que determina
tratamento igual às pessoas iguais, e tratamento desigual às pessoas
desiguais. (CÂMARA, 2002, p. 37)

Fixadas essas premissas, passa-se a compreender a capacidade


postulatória da Fazenda Pública.

CAPACIDADE POSTULATÓRIA

Para Leonardo Cunha, “um dos requisitos de validade dos atos


processuais é a capacidade postulatória, que consiste na possibilidade de se
postular em juízo” (CUNHA, 2017, p. 5). Assim, e tratando-se de Fazenda
Pública, sua representação é feita, via de regra, por procuradores judiciais, que
são titulares de cargos públicos privativos de advogados, regularmente inscritos
na OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, detendo, portanto, capacidade
postulatória.
Ensina Hélio do Valle Pereira que os procuradores públicos:

[...] adquirem o poder de representação pela só condição funcional, o


que os desonera de apresentação de instrumento de mandato. Seria
contraditório que detivessem aquela qualidade por decorrência
normativa e simultaneamente houvessem de comprovar poder de
representação volitivo. A procuração é materialização de negócio
jurídico, circunstância incompatível com a natureza da relação que se
estabelece entre o órgão público e seus procuradores. Seu poder de
representação está in re ipsa. Não por acaso, descabe
substabelecimento dos poderes advindos da lei decorrentes da
nomeação (fato que, mesmo inesperado, acontece no cotidiano
forense). (PEREIRA, 2003, p. 82)
1570

Nesse contexto, o procurador público, investido no cargo adquire a


representação da Fazenda Pública, ou presentação, portanto, nos termos dos
arts. 131 e 132 da Constituição da República (BRASIL, 1988), em juízo pela
Advocacia Pública. No Código de Processo Civil de 2015, de acordo com o art.
182, cabe à Advocacia Pública, na forma da lei, defender e promover os
interesses públicos da União, dos Estados, do Distrito Federa e dos Municípios,
por meio da representação judicial, em todos os âmbitos federativos, das
pessoas jurídicas de direito público que integram a Administração direta e
indireta (BRASIL, 2015).
Assim, a presentação judicial da União é realizada pela Advocacia-Geral
da União, que, diretamente ou mediante algum órgão vinculado, representa
judicialmente a União, servindo, ainda, de atividades de consultoria e
assessoramento jurídico ao Poder Executivo. À Procuradoria-Geral Federal, que
também está vinculada à Advocacia-Geral da União, compete a representação
judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais. Há, também,
a Procuradoria-Geral da União, subordinada ao Advogado-Geral, que possui
incumbência de representar judicialmente a União perante os tribunais
superiores. Vale dizer, nas palavras de Leonardo Cunha (2017, p. 8), que o
Advogado-Geral representa judicialmente a União junto ao Supremo Tribunal
Federal.
Afirma Leonardo Cunha que, embora o Procurador-Geral represente
judicialmente a União perante os Tribunais Superiores, a lei lhe franqueia tal
representação perante os demais tribunais e, igualmente, perante a primeira
instância da Justiça Federal (CUNHA, 2017, p. 9).
Quanto a presentação judicial do Estado, ocorre através dos procuradores
dos Estados, organizados em carreira, na qual o ingresso depende de concurso
público de provas e títulos, com a participação da OAB – Ordem dos Advogados
do Brasil em todas as suas fases. Os procuradores do Estado, orienta Leonardo
Cunha, integram a Procuradoria-Geral do Estado, órgão componente da
Administração Pública direta estadual (CUNHA, 2017, p. 12).
Já a presentação judicial do Município, nos termos do Código de Processo
Civil de 2015, art. 182, ocorre pela Advocacia Pública. Fato importante registrar
quanto ao art. 75, inciso III, do Código de Processo Civil de 2015, que dispõe ser
o Município representado em juízo, ativa e passivamente, por seu prefeito ou
procurador (BRASIL, 2015). Anote-se que em alguns Municípios de pequeno
porte, não há o cargo de procurador judicial, devendo, conforme ensina Bruno
Macedo, nessas hipóteses, a representação ser confiada ao prefeito, que poderá
constituir advogado, outorgando-lhe poderes mediante procuração a ser exigida
em juízo (MACEDO, 2015, p. 43).
Por fim, a presentação judicial do Distrito Federal, em juízo, ocorre por
sua Procuradoria-Geral, equiparada, para todos os efeitos, às Secretarias de
Estado, tendo por finalidade exercer a Advocacia Pública, cabendo-lhe, ainda,
prestar a orientação normativa e a supervisão técnica do sistema jurídico do
Distrito Federal. Registra Leonardo Cunha que a Procuradoria-Geral do Distrito
Federal – PRG/DF – é instituição de natureza permanente, essencial à Justiça e
à Administração, competindo-lhe a representação judicial e a consultoria jurídica
do Distrito Federal, como atribuições privativas dos respectivos procuradores, na
forma do art. 132, da Constituição da República (CUNHA, 2017, p. 14).
1571

Delineada a capacidade postulatória da Fazenda Pública, cabe, na


próxima parte deste trabalho, perquirir acerca da competência para o pedido de
suspensão de segurança, no Poder Judiciário.

COMPETÊNCIA PARA O PEDIDO DE SUSPENSÃO DE SEGURANÇA

Viu-se, na parte anterior desta pesquisa, o conceito de Fazenda Pública,


seus princípios e, principalmente, a capacidade postulatória em juízo e os
representantes judiciais, sejam na União, no Estado, no Município e no Distrito
Federal. Interessa compreender, neste item, a Fazenda Pública e a
competência, no caso, com significado aplicado no Poder Judiciário, bem como
a previsão legal e a natureza jurídica do pedido de suspensão.
Para tanto, buscaremos compreender a competência para apreciar o
pedido de suspensão de segurança na Justiça Federal, na Justiça Estadual, no
Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça.

PREVISÃO LEGAL E NATUREZA JURÍDICA

O pedido de efeito suspensivo de liminar ou de segurança é conferido às


pessoas jurídicas de direito público, através de leis extravagantes, sempre que
ocorrer lesão a um dos interesses públicos relevantes.
Para Leonardo Cunha, o pedido de efeito suspensivo é “para evitar grave
lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas e será dirigido ao
presidente do respectivo tribunal, de modo a suspender a execução ou o
cumprimento da liminar” (CUNHA, 2017, p. 605). Portanto, tem como objetivo
sobrestar o cumprimento da liminar ou da ordem concedida, a permitir desobrigar
a Fazenda Pública do cumprimento da medida.
Na legislação brasileira, o art. 15 da Lei 12.016/2009 (BRASIL, 2009)
prevê o pedido de suspensão em mandado de segurança, permitindo que a
pessoa jurídica de direito público ou o Ministério Público dirija tal pedido ao
presidente do respectivo tribunal.
Na verdade, entende Leonardo Cunha, a terminologia suspensão de
segurança “passou-se a adotar, por convenção ou por tradição, [...] porquanto o
pedido de suspensão foi, originariamente, criado para o processo de mandado
de segurança, com vistas a suspender os efeitos da liminar ou da segurança
concedida” (CUNHA, 2017, p. 606).
Para Flávia Brandão, a suspensão de execução das medidas de urgência
nas ações contra o poder público:

[...]teve como sua primeira expressão, o instituto da segurança, que foi


introduzido no ordenamento jurídico com a Lei nº 191, de 16 de janeiro
de 1936, que regulou o mandado de segurança previsto na
Constituição de 1934. A sua intenção era dar efeito suspensivo ao
recurso interposto contra a decisão favorável ao impetrante, sempre
tendo em vista o princípio, então, dominante, da supremacia do
interesse público sobre o privado. A regra foi mantida no Código de
Processo Civil de 39, que introduziu as causas justificadoras do pedido
de suspensão (evitar lesão à ordem, à saúde ou à segurança pública).
Posteriormente surge a Lei nº 1.533/51 que, ao prever o instituto,
omitiu-se quanto aos motivos ensejadores do requerimento da
suspensão, ficando, deste modo, ao alvedrio do presidente do tribunal
competente a justificativa para o deferimento ou não da suspensão da
segurança. (BRANDÃO, 2003, p. 29-30)
1572

Importante compreender, também, a natureza jurídica do referido pedido,


considerado ato postulatório, que deverá conter pedido e causa de pedir.
Portanto, o pedido é o da sustação da eficácia da decisão impugnada, sem que
se peça sua anulação ou reforma. A causa de pedir é a violação a um dos
interesses juridicamente protegidos previstos nas hipóteses de cabimento
(CUNHA, 2017, p. 609).
E quanto à legitimidade, enfim, todos aqueles que integram o conceito de
Fazenda Pública podem valer-se da medida de contracautela. Portanto, pode ser
intentado pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal, pelos Municípios,
pelas autarquias e fundações públicas. Por assim ser, em se tratando de
competência, registre-se que a competência para apreciar o pedido de
suspensão é do presidente do tribunal que teria competência para julgar o
recurso contra a decisão concessiva do provimento liminar, antecipatório ou final
de mérito.
E o contexto para que assim ocorra, explica Leonardo Cunha, “é o
provimento provisório deferido por um juízo de primeira instância, que poderá ter
sua eficácia sustada por decisão tomada no âmbito do pedido de suspensão pelo
presidente do tribunal ao qual esteja vinculado” (CUNHA, 2017, p. 615).
Desse modo, ensina Leonardo Cunha, deferido o provimento liminar por
um juízo de primeira instância, é possível o ajuizamento do pedido de suspensão
para o presidente do Tribunal ao qual aquele juiz esteja vinculado (CUNHA,
2017, p. 615).
A petição será dirigida ao presidente do tribunal, contendo os fatos e
fundamentos da demanda, bem como demonstrando o teor da decisão
hostilizada e o dano a um ou mais dos interesses públicos (saúde, economia,
segurança e/ou ordem pública). Apresentada a petição do pedido de suspensão,
informa Leonardo Cunha (2017), o presidente do tribunal poderá adotar uma das
seguintes medidas:

a) determinar a “emenda” ou complementação da petição, com o


esclarecimento de algum detalhe ou a juntada de algum documento
essencial que não tenha sido trazido, a exemplo da cópia da decisão
que se pretende suspender; b)rejeitar o pedido de suspensão, por não
vislumbrar a lesão à ordem, à economia, à saúde nem à segurança
pública; c)determinar a intimação do autor e do Ministério Público para
que se pronunciem em 72 (setenta e duas) horas; d)conceder,
liminarmente, o pedido, sobrestando o cumprimento da decisão.
(CUNHA, 2017, p. 623)

Com essas considerações, a seguir, será possível compreender a


competência para o pedido e o processamento da suspensão de segurança.
Além disso, faz-se referência a alguns julgados do Supremo Tribunal Federal e
do Superior Tribunal de Justiça.

JUSTIÇA FEDERAL

A liminar sendo deferida pelo juiz federal, o pedido de suspensão será


intentado perante o presidente do respectivo Tribunal Regional Federal. Registro
importante, a orientar o pedido de suspensão, quando o juiz estadual esteja
exercendo competência federal, nos termos do art. 103, §3º, da Constituição da
República (BRASIL, 1988), deverá ser intentado perante o presidente do
1573

Tribunal Regional Federal que abranja aquela área geográfica. Com isso, o juiz
estadual, dotado dessa competência, está hierarquicamente submetido ao
Tribunal Regional Federal.
No caso de liminar concedida originariamente pelo Tribunal Regional
Federal o pedido de suspensão deverá ser endereçado ao Supremo Tribunal
Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, a depender da matéria, ser
constitucional ou infraconstitucional.

JUSTIÇA ESTADUAL

A liminar ou provimento de urgência sendo deferida por juiz estadual, o


pedido de suspensão será intentado perante o presidente do respectivo Tribunal
de Justiça. No caso de liminar concedida originariamente pelo Tribunal de Justiça
o pedido de suspensão deverá ser endereçado ao Supremo Tribunal Federal ou
ao Superior Tribunal de Justiça, a depender da matéria, ser constitucional ou
infraconstitucional.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Importante anotar que, sendo o provimento concedido, originariamente,


por membro de Tribunal, o pedido de suspensão deverá ser intentado junto ao
Presidente do Supremo Tribunal Federal, quando fundada a causa em matéria
constitucional. Anote-se que concedida a liminar pelo relator, cabe o pedido de
suspensão ao Presidente do Supremo Tribunal Federal e não ao próprio
presidente do tribunal, seja Estadual ou Federal.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O procedimento aqui, pois, sendo o provimento concedido,


originariamente, por membro de Tribunal, o pedido de suspensão deverá ser
intentado junto ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça, quando fundada
a causa em matéria infraconstitucional. Frise-se que concedida a liminar pelo
relator, cabe o pedido de suspensão ao Presidente do Superior Tribunal de
Justiça e não ao próprio presidente do tribunal.
Considerando o exposto revela-se importante compreender a
competência para o pedido de suspensão da segurança, evitando-se prejuízos
para a Fazenda Pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se, no presente estudo, pode-se compreender o tema Fazenda


Pública e a competência para o pedido de suspensão de segurança, com
destaque para a competência para intentar o pedido de suspensão de
segurança.
A propósito, foi possível compreender que a expressão Fazenda Pública
está ligada a área da Administração Pública, responsável pela gestão das
finanças, a fixação e implementação de políticas econômicas. Quanto à
capacidade postulatória, anote-se a possibilidade de postular no Poder
Judiciário, e tratando-se de Fazenda Pública, sua representação é feita, via de
regra, por procuradores judiciais, que são titulares de cargos públicos privativos
1574

de advogados, regularmente inscritos na OAB – Ordem dos Advogados do


Brasil, detendo, portanto, capacidade postulatória.
Na legislação brasileira, o art. 15 da Lei 12.016/2009 (BRASIL, 2009)
prevê o pedido de suspensão em mandado de segurança, permitindo que a
pessoa jurídica de direito público ou o Ministério Público dirija tal pedido ao
presidente do respectivo tribunal.
Foi possível constatar que a competência para apreciar o pedido de
suspensão é do presidente do tribunal competente para julgar o recurso contra
a decisão concessiva do provimento liminar, antecipatório ou final de mérito.

REFERÊNCIAS

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Gláucia Carvalho. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
1576

O FIM DA COISA SOBERANAMENTE JULGADA À LUZ DO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL
THE END OF THE SOVEREIGNLY JUDGED THING IN LIGHT OF THE CODE
OF CIVIL PROCEDURE

Fernanda Marinho Antunes de Carvalho


Juliana Bueno Lima de Aguiar
Orientador(a): Laís Alves Camargos

Resumo: A pesquisa visa abordar previsões consagradas pelo Código de


Processo Civil, em seus artigos 525 §15º e 975 §2º, que violam a coisa
soberanamente julgada. O cerne da violação é verificado na viabilidade de ação
rescisória que não respeita o prazo bienal previsto para seu ajuizamento, posto
que o termo a quo será o trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal ou a descoberta de prova nova. A metodologia consistiu na
análise da doutrina, de teses de doutorado e de decisão do Superior Tribunal de
Justiça. Como marco teórico, foram utilizados os estudos de Humberto Theodoro
Júnior acerca do conceito de “soberania” e “coisa julgada”. Constatou-se que a
possibilidade relativamente ampla da alegação de inconstitucionalidade nas
decisões judiciais ou a descoberta de prova nova por ação não sujeita ao prazo
da rescisória ameaça não apenas a segurança jurídica como também a
efetividade processual.
Palavras-chave: Coisa soberanamente julgada. Segurança jurídica. Direito
Processual Civil.

Abstract: The research aims to address predictions enshrined in the Code of


Civil Procedure, in its articles 525 §15 and 975 §2, that violate the sovereignly
issue preclusion. The core of the violation is verified in the feasibility of recissory
action that doesn’t respect the biennial period provided for its filing, because the
initial term starts with the claim preclusion of the final decision of the Federal
Supreme Court or the discovery of new evidence. The methodology consisted in
the analysis of the doctrine, doctoral theses and decision of the Superior Court of
Justice. As a theoretical framework, the studies by Humberto Theodoro Júnior
about the concept of “sovereignty” and “issue preclusion” were used. It was found
that the relatively broad possibility of alleging unconstitutionality in court decisions
or the discovery of new evidence by some action doesn’t submitted to termination
period threatens not only legal certainty but also procedural effectiveness.
Key words: Sovereignly Judged Thing. Legal certainty. Civil Procedural Law.

INTRODUÇÃO

O presente resumo expandido foi desenvolvido com o intuito de analisar


o instituto da coisa soberanamente julgada à luz do Código de Processo Civil
(CPC/15). Partiu-se da hipótese segundo a qual, com a modificação do termo a
quo para o ajuizamento da ação rescisória nos casos previstos pelo artigo 525,
§ 15 e 975, § 2º, o legislador teria optado pelo fim da coisa soberanamente
julgada, o que foi confirmado ao final desta pesquisa.
Para tanto, foi realizada análise bibliográfica, exegese normativa e análise
jurisprudencial. Foi utilizado o método hipotético dedutivo e a pesquisa foi do tipo
descritiva, atingindo seu objetivo final e confirmando a hipótese proposta.
1577

Inicialmente, foram precisamente definidos os conceitos de “segurança


jurídica” e de “coisa julgada” de modo que instituto da coisa julgada foi detalhado
sob suas diferentes dimensões.
Em seguida, foram analisados os dispositivos pertinentes ao tema à luz
do Código de Processo Civil (CPC/73) e do CPC/15, especificamente no que
tange à possibilidade de ajuizamento da ação rescisória.
Procurou-se, então, verificar se as modificações realizadas pelo legislador
de 2015 ensejaram o fim da coisa soberanamente julgada, considerando a
exegese dos artigos 525 §15 e 975 §2º, bem com do artigo 741 do CPC/73. No
que toca a este, foi analisado um acórdão no âmbito do Superior Tribunal de
Justiça, o RESP 1189619, para delimitar sua interpretação e verificar se as
hipóteses trazidas pelo CPC/15 indicam, de fato, o fim da coisa soberanamente
julgada, e sua repercussão na segurança jurídica e na efetividade do sistema
processual civil.
Ressalta-se a relevância do presente estudo na compreensão do CPC/15
diante da importância do instituto da coisa julgada, que traduz consequências
evidentes à segurança jurídica e à estabilidade das relações processuais. O
estudo minucioso das alterações trazidas pelo referido diploma se revela
essencial para a compreensão da ordem jurídica em vigor.

DESENVOLVIMENTO

A segurança jurídica é um dos fundamentos do Estado Democrático de


Direito e visa a estabilidade das relações jurídicas. Reforça-se, assim, a
importância do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada,
tutelando-se a legítima confiança depositada pelos indivíduos nessas relações.
Apesar da dificuldade da delimitação precisa de seu conceito, será
utilizada a abordagem definida por Eduardo Yoshikawa em sua tese de
doutorado:

O escopo da segurança jurídica é conferir estabilidade ao passado e


previsibilidade ao futuro, o que não se identifica propriamente com a
ideia de certeza em termos absolutos, pois também é inerente ao
Direito a possibilidade de mudança ao longo do tempo, como forma de
assegurar a sua utilidade como mecanismos de adaptação social.
(YOSHIKAWA, 2014, p. 8).

Destarte, a segurança jurídica se mostra presente em diversos princípios


e aspectos do direito processual. No que tange às sentenças, traduz-se na ideia
de que as decisões judiciais devem ter a produção de efeitos de forma plena
apenas após se tornarem definitivas, ou seja, a partir do trânsito em julgado
(YOSHIKAWA, 2014).
A coisa julgada, por sua vez, é instituto intrinsecamente relacionado com
a estabilidade das manifestações do Estado, sendo essencial à segurança
jurídica revestir a decisão judicial de imutabilidade. E é pela sua importância que
o instituto possui, inclusive, tratamento constitucional, recebendo especial
proteção a fim de preservar a imutabilidade dos pronunciamentos proferidos
pelos juízes e tribunais, consoante artigo 5º da Constituição da República de
1988 (CR/88): “Art. 5º [...] XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada;” (BRASIL, 1988).
1578

O referido instituto é verificado, ainda, na Lei de Introdução às Normas do


Direito Brasileiro (LINDB), que prescreve, em seu artigo 6º, o respeito ao ato
jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada (BRASIL, 2010a).
Assim, nota-se que a previsão do legislador, no que tange à coisa julgada,
traduz os anseios sociais, reconhecidos pelo Estado, de evitar a perpetuação
dos diversos litígios (THEODORO JUNIOR, 2015), garantindo a certeza, a
estabilidade e a segurança para as relações jurídicas processuais, bem como a
efetividade das decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais.
O Código de Processo Civil de 2015, por sua vez, define a coisa julgada
como instituto processual de ordem pública que torna imutável e indiscutível a
decisão judicial de mérito não mais sujeita a recurso, nos termos do artigo 502
(BRASIL, 2015). Assim, torna-se imperativa a extinção do processo sem
resolução do mérito (art. 485, inciso V, CPC/151) quando uma lide é rediscutida
após seu trânsito em julgado (art. 337, §1º2 e §4º3 do CPC/15).
Importante ressaltar que coisa julgada divide-se em material e formal:
embora ambas atuem a fim de vedar o reexame do mérito, esta produz efeitos
em relação ao mesmo processo em que a decisão foi proferida e aquela, por sua
vez, possui eficácia no mesmo processo ou em qualquer outro.
O legislador inovou ao conceder não só às sentenças a garantia da coisa
julgada, conforme previa o Código de Processo Civil de 19734, mas, sim, a toda
decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
Ainda que a regra seja a imutabilidade desta decisão que se torna
indiscutível, o legislador fez previsão de um remédio processual para a
desconstituição da coisa julgada: a ação rescisória.
Nos termos do artigo 975 do CPC/15, a decisão de mérito transitada em
julgado apenas pode ser desconstituída mediante o ajuizamento de ação
rescisória da sentença, observando-se o prazo decadencial de dois anos
(BRASIL, 2015).
Observa-se, então, a existência de dois graus da referida coisa julgada,
quais sejam, a coisa julgada e a coisa soberanamente julgada, de modo que esta
última ocorre nos casos em que houver o exaurimento do prazo decadencial para
o ajuizamento da ação rescisória ou quando essa ação é julgada improcedente
(THEODORO JUNIOR, 2015).
Neste ínterim, um dos temas que merece destaque nas discussões
jurídicas atuais se ampara nas decisões jurisdicionais transitadas em julgado em
que se impera a autoridade da coisa julgada material, mas que traduzem
aspectos de inconstitucionalidade. Assim, em algumas situações, a decisão
transitada em julgado que seja contrária a acórdão do Supremo Tribunal Federal
(STF) é passível de modificação por meio da ação rescisória, mesmo após o
lapso temporal bienal previsto no Código de Processo Civil de 15. Trata-se,
portanto, da coisa julgada inconstitucional.

1 “Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando: [...] V - reconhecer a existência de perempção,
de litispendência ou de coisa julgada;” (BRASIL, 2015).
2 “§ 1º Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada quando se reproduz ação anteriormente

ajuizada.” (BRASIL, 2015).


3 “§ 4º Há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por decisão transitada em

julgado.” (BRASIL, 2015).


4 “Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: [...]”

(BRASIL, 1973)
1579

O entendimento acerca das possibilidades de revisão da decisão


revestida de imutabilidade vem tendo seus contornos delineados desde o Código
de Processo Civil de 1973 que, em seu artigo 741, parágrafo único, determinava:

Art. 741 Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só


poderão versar sobre: [...] II - inexigibilidade do título; [...] Parágrafo
único. Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se
também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo
declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em
aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição
Federal. (BRASIL, 1973).

Em 2010, no julgamento do RESP 1189619, o Superior Tribunal de


Justiça conferiu interpretação restritiva ao referido artigo, de modo que ele
deveria abarcar, tão somente, as sentenças fundadas em norma inconstitucional,
assim consideradas as que: (a) aplicaram norma declarada inconstitucional; (b)
aplicaram norma em situação tida por inconstitucional; ou (c) aplicaram norma
com um sentido tido por inconstitucional. Em qualquer desses casos, entendeu
o STJ, seria necessário que a inconstitucionalidade tivesse sido declarada em
precedente do STF, em controle concentrado ou difuso e independentemente de
resolução do Senado (BRASIL, 2010b).
Para que se pudesse, portanto, arguir a inconstitucionalidade da
sentença, a parte deveria demonstrar, no momento de sua impugnação, que
referida decisão contrariou decisão do STF. O Código de Processo Civil de 15,
por sua vez, manteve o entendimento no artigo 525 ao determinar que, quando
o STF decidir contrariamente à coisa julgada, esta poderá ser objeto de ação
rescisória após o prazo decadencial previsto para seu ajuizamento, de forma que
o prazo bienal será computado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo
STF:

Art. 525. [...] § 1º Na impugnação, o executado poderá alegar:


III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;
[...] § 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo,
considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título
executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em
aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo
Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em
controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal
Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança
jurídica.
§ 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser
anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda. (BRASIL, 2015).

Conforme pode-se colher do artigo 525, a decisão a que se pretende


rescindir por intermédio da impugnação deveria ser anterior ao trânsito em
julgado da decisão exequenda, entendimento que já se consolidou durante a
vigência do Código de Processo Civil de 1973. Se a decisão, entretanto, for
proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação
rescisória, nos termos do parágrafo 15º do referido artigo:

Art. 525 [...] § 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o


trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo
1580

prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo


Supremo Tribunal Federal. (BRASIL, 2015).

Observa-se, aqui, fato que, aparentemente, pode causar perplexidade: a


modificação do termo a quo para o ajuizamento da rescisória, pois o prazo terá
início a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal, o que parece ter criado uma nova hipótese de rescisória, diferente
daquela a que se refere o artigo 9755, o qual prevê o prazo de dois anos da ultima
decisão naquele processo para interposição da ação rescisória.
A nova hipótese prevista no CPC/15, ainda que a pretexto de dar eficácia
às decisões do STF no controle da constitucionalidade, causa grave insegurança
jurídica, porquanto, não raro, a corte máxima muda abruptamente o seu
entendimento acerca de determinado tema jurídico.
Por uma outra análise, observa-se, ainda, mais uma hipótese em que
poderá ocorrer a rescisão da decisão de mérito transitada em julgado
extrapolando os limites do prazo decadencial bienal da ação rescisória. Trata-se
das situações de descoberta de prova nova que ocorrem, nos termos do art. 966,
inciso VII, do CPC/15, quando obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em
julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso,
capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável (BRASIL, 2015).
Nesses casos, o prazo para ajuizamento da ação rescisória terá como termo a
quo a data de descoberta da referida prova, consoante §2º do art. 975, do CPC:

Art. 975 [...] § 2º Se fundada a ação no inciso VII do art. 966, o termo
inicial do prazo será a data de descoberta da prova nova, observado o
prazo máximo de 5 (cinco) anos, contado do trânsito em julgado da
última decisão proferida no processo. (BRASIL, 2015).

Nota-se, pois, o descuido do legislador com relação à coisa


soberanamente julgada e à segurança jurídica ao consagrar a viabilidade da
modificação do termo a quo para a ação rescisória com o intuito de modificar a
decisão de mérito transitada em julgado em hipóteses relativamente amplas.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, pode-se concluir que, ainda que a imutabilidade da


coisa julgada tenha o condão de evitar a perpetuação dos diversos litígios e de
garantir segurança e estabilidade às relações jurídicas, há situações em que é
possível a sua desconstituição por intermédio da ação rescisória. O NCPC, ao
determinar a modificação do termo a quo para ação rescisória que vise modificar
a decisão de mérito transitada em julgada, acaba por criar certa insegurança
jurídica, vez que o prazo para a ação rescisória contar-se-á do trânsito em
julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. O mesmo ocorre
na hipótese relativa à descoberta de prova nova, em que o prazo para
ajuizamento da ação rescisória contar-se-á da data de descoberta desta prova.
Observa-se, pois, diante das análises realizadas, a violação à coisa
soberanamente julgada ou mesmo seu fim, que não mais se dará quando houver
o exaurimento do dies ad quem para propositura da ação rescisória ou quando
essa ação for julgada improcedente. Reforça-se que isso ocorre em razão da
5“Art. 975. O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da
última decisão proferida no processo.” (BRASIL, 2015).
1581

consagração, pelo CPC/15, da viabilidade de ajuizamento de ação rescisória


cujo termo inicial não mais observa o trânsito em julgado da última decisão
proferida no processo, estando a referida coisa julgada sujeita à decisão do
Supremo Tribunal Federal e à descoberta de prova nova.
Verifica-se, assim, que não está sendo devidamente considerada a
grande importância da segurança jurídica e a excepcionalidade das hipóteses
que suavizam a coisa julgada. A possibilidade relativamente ampla de os
sucumbentes alegarem inconstitucionalidade nas decisões judiciais ou a
descoberta de prova nova por ação não sujeita ao prazo da rescisória ameaça
não apenas a segurança jurídica como também a efetividade processual, tendo
em vista que pode ser um mecanismo de procrastinação dos resultados do
processo.
Nota-se a necessidade, portanto, de aprofundamento em estudos que
visem o contínuo aperfeiçoamento legislativo da matéria, que demanda um juízo
de proporcionalidade e razoabilidade a fim de constatar hipóteses restritas em
que a garantia da segurança jurídica poderá ser sobreposta por outras. A
propósito, é razoável e seguro que a coisa julgada prepondere sobre a
retroatividade da decisão do STF, evitando a perpetuação de litígios inseridos no
âmbito do Judiciário e de situações já consolidadas.
Conclui-se, dessa forma, que as hipóteses trazidas pelo CPC, em seus
artigos 525 §15º e 975 §2º, traduzem-se no fim da coisa soberanamente julgada,
gerando repercussões negativas na estabilidade das relações jurídicas e na
efetividade do sistema processual civil.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Processo Civil. Brasília, DF, Senado, 1973. Disponível


em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869impressao.htm. Acesso em:
09 out. 2019.

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em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
Acesso em: 09 out. 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.
Acesso em: 09 out. 2019.

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lei/Del4657compilado.htm. Acesso em: 09 out. 2019.

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Ministro Castro Meira, julgado em 25/08/2010, publicado no Diário de Justiça
eletrônico de 02/09/2010. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=1189619&b=ACO
R&thesaurus=JURIDICO&p=true. Acesso em: 09 out. 2019.
1582

YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Processo (in)civil e


(in)segurança jurídica. 2014. Tese (doutorado). Faculdade de direito da
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 56. ed.


v. 1. Cidade: Rio de Janeiro. Forense, 2015.
1583

O PROTAGONISMO DA ATIVIDADE JURISPRUDENCIAL DOS TRIBUNAIS E


O DESPRESTÍGIO DO LEGISLADOR EM RELAÇÃO À JUDICIALIZAÇÃO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
THE PROTAGONISM OF THE COURT'S LEGAL ACTIVITY AND THE
LEGISLATOR'S DISPOSAL IN RELATION TO THE JUDICIALIZATION OF
PUBLIC POLICIES

Ellen Catarino Palmeira

Resumo: O presente trabalho faz uma análise do chamado protagonismo do


Poder Judiciário. Sem pretensão de esgotar o estudo, porém, com a intenção de
colaborar com o aprimoramento do estudo sobre o protagonismo do Poder
Judiciário, no cenário atual do brasileiro, se faz necessário investigar o tema
proposto, como fenômeno social. Nesta temática, o ponto de partida do estudo,
se revela na necessidade de destrinchar o papel exercido pelo Poder Judiciário,
com enfoque de analisar a eficiência de tal atuação de casos que envolvem os
direitos fundamentais do ser humano, consagrados em nossa ordem
constitucional. Foi utilizado o método de pesquisa hipotético-dedutivo.
Palavras-chave: Protagonismo judicial. Separação dos poderes. Ativismo
judicial.

Abstract: This paper analyzes the so-called protagonism of the judiciary. Without
pretending to exhaust the study, however, with the intention of collaborating with
the improvement of the study on the protagonism of the Judiciary Power, in the
Brazilian current scenario, it is necessary to investigate the proposed theme, such
as social history. In this theme, the starting point of the study reveals the need to
destroy the role played by the judiciary, focusing on the efficiency of the
performance of cases involving the fundamental rights of human beings,
enshrined in our constitutional request. The hypothetical-deductive research
method was used.
Keyword: Judicial protagonism. Selection of powers. Judicial activism.

INTRODUÇÃO

Com olhos para o assunto a ser tratado, pelo presente estudo, emerge a
situação atual do Poder Judiciário brasileiro, que por sua vez, vive um momento
crítico, com a majoração exponencial de novas demandas, causando uma grade
crise numérica.
Induvidoso que, o Poder Judiciário tem o dever de prestar a tutela
jurisdicional de forma célere e justa. Certo, pois, que quando a decisão judicial
não se dá de forma tempestiva, pode ocasionar danos irreparáveis ao objeto da
ação. Logo, o direito vem a perecer.
Neste cenário, o assoberbamento das instituições da justiça e uma crise
judiciária, causam, além da entrega insatisfatória do serviço de soluções de
conflito, a mitigação do princípio de acesso à justiça.
Por outro lado, o Estado brasileiro vive um momento em que há o
protagonismo do Poder Judiciário, ao buscar soluções para além do seu alcance,
quando era de competência dos demais poderes que compõem o sistema
tripartite. Certo, pois, que esse protagonismo é bom, mas, ao mesmo tempo,
1584

perigoso. Portanto, trata-se de algo preocupante e ruim, que deve atenção


especial.

DESENVOLVIMENTO

Desde a Segunda Guerra Mundial, verifica-se que, na maior parte dos


países ocidentais, houve um avanço da atuação do Poder Judiciário, em relação
aos demais poderes.
Neste sentido, há de se recordar que, a Constituição Federal de 1988
adotou a teoria tripartite, qual seja: dividir as funções do Estado, em três poderes,
os chamados Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. Tendo por
certo que, esta divisão é respaldada como cláusula pétrea, não sendo possível
ser objeto de modificação. Essa Teoria da Separação de Poderes foi esboçada
na teoria de “check and balances”, ou seja, o que chamados de “Sistema de
Freios e Contrapesos”.
Desta feita, a Constituição Federal se debruça, em seu art. 2º, na referida
separação de poderes e no sistema de freios e contrapesos, ao regular a
harmonia e independência entre os três poderes. Há, de se ressaltar, a brilhante
ordem lógica e cronológica presente no mencionado artigo, quando impõe o
Poder Legislativo, como responsável pela criação das leis, trazendo consigo o
princípio da legalidade; logo após, o Poder Executivo, como aquele que tem o
dever de executar as leis e, por fim, o Poder Judiciário, encarregado de dar a
decisão final, de forma a atender sua função típica de aplicar o direito ao caso
concreto.
Ademais, oportuno dizer que se trata de assunto de importância ímpar,
além do que, ao Poder Judiciário é atribuída a árdua tarefa de garantir a
legalidade dos atos praticados, em nossa sociedade, fazendo com que as leis
sejam respeitadas em todos os planos.
Assim, em regra, os juízes, membros do Poder Judiciário, são vinculados
ao direito posto e aos valores e categorias da dogmática do Direito, portanto,
eles não criam nem inventam o direito, apenas estão vinculados à uma norma
jurídica, utilizando-se da hermenêutica e de paradigmas valorativos ou pontos
de vista pessoais não compartilhados em um senso comum. De igual parte, um
demandante, envergado com sua legitimidade ad causam, provoca o Poder
Judiciário a exercer sua atribuição de interpretar e aplicar o Direito ao caso
concreto, limitando-se ao ordenamento jurídico vigente à época.
Entretanto, a doutrina de Cappelletti (1999) entende, que a pluralização
da sociedade gera demandas de toda ordem, por vezes conflitantes, que
conduzem a uma inoperância do Legislativo, constatada num legislar em
abstrato com cláusulas abertas e indeterminadas, o que abre espaço para a
atuação do “juiz legislador”.
No cenário do constitucionalismo moderno, o Poder Judiciário é
impulsionado a exercer um papel que, originalmente, não é de sua competência:
intervir, diretamente, na ordem social. Neste sentido, procura-se demonstrar que
com o avanço desse fenômeno mundial conceituado como judicialização da
política, o modelo positivista que transformava os juízes e meros executores da
lei, passou a exigir do Poder Judiciário a tarefa de auxiliar na construção de uma
sociedade voltada à satisfação dos princípios e objetivos prescritos na
Constituição Federal.
1585

Essa atuação é fundamentada inclusive pelo Ilustre Ministro do Supremo


Tribunal Federal STF, Luís Roberto Barroso, que explana sobre a ideia de
ativismo judicial estar associada à participação mais ampla e intensa do Poder
Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais.
Nesse sentido, calha bem transcrever as palavras de Luís Roberto
Barroso:

Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão


política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário,
e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o
Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da
República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como
intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para
juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na
argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno
tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência
mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional
brasileiro. A seguir, uma tentativa de sistematização da matéria.

Portanto, há uma interação entre o Judiciário e a Política, na medida em


que o Judiciário produz decisões que interferem na atuação do Poder Legislativo
e do Poder Executivo. Desta forma, com o surgimento de demandas inovadoras,
no âmbito judicial, não há como afirmar que o juiz deve se limitar ao aplicar uma
decisão política que anteriormente foi adotada pelos demais Poderes. Assim, o
juiz deve interpretar de forma subjetiva para aplicar o Direito ao caso concreto,
ainda mais, quando se tratar de litígios que antes não existiam, bem como que
não há previsão legal em nosso ordenamento jurídico.
Inegável que, nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal vem
decidindo, diversos casos de repercussão midiática, à luz de princípios
constitucionais, com respaldo no art. 5º, §2º, da Constituição Federal:

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem


outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte.

Ademias, há notório conhecimento, por parte do Poder Legislativo, quanto


à problemática de o Judiciário aplicar legislações que não foram editadas de
forma clara, levando a interpretações conflituosas, ou até mesmo, a tomada de
decisões políticas, pelo judiciário, diante das promessas consolidadas nos textos
constitucionais, atraindo o chamado ativismo judicial.
Assim é que, o Magistrado, ao exercer o seu papel de aplicar a lei ao caso
concreto, causam danos que comprometem o Estado.
Neste sentido, conclui Streck:

Em face do que foi exposto, entendo que o Poder Judiciário não pode
assumir uma postura passiva diante da sociedade. Na perspectiva aqui
defendida, concebe-se ao Poder Judiciário (lato sensu, entendido aqui
como justiça constitucional) uma nova inversão no âmbito das relações
dos poderes de Estado, levando-o a transcender as funções de checks
anda balances, mediante uma atuação que leve em conta a
perspectiva de que os direitos construídos democraticamente – e
postos na Constituição – têm precedência mesmo contra textos
legislativos produzidos por maiorias eventuais.
1586

Portanto, extrai-se de todo o arcabouço doutrinário e jurisprudencial que


a Constituição brasileira requer uma interpretação com olhos atualizados, pois
os fatos se rebelam contra as normas, causando, assim, as inúmeras emendas
à Constituição. Ademais, o Poder Legislativo se coloca inoperante, surgindo,
assim, o Poder Judiciário, como figura protagonista, para adequar o Direito com
a realidade social, pois, como se sabe, o Direito não acompanha com a mesma
celeridade as demandas da sociedade atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante deste cenário brasileiro, em relação à atuação do Poder Judiciário,


diversos fatores devem ser levados em consideração, para tentar-se chegar ao
um senso comum.
A ampliação da garantia constitucional de acesso à justiça, aliada à cultura
do litígio, contribuem, diariamente, para o assoberbamento do judiciário e,
consequentemente, o seu protagonismo.
O que se deve se reestabelecer é a função que, anteriormente, foi
atribuída ao judiciário, com a prevalência da última palavra, haja vista o seu
distanciamento da política.
Neste sentido, é de extrema importância evidenciar que existem limites
entre o direito e a política, cabendo a cada qual a sua função típica. Respeitando-
se, primordialmente, a separação dos poderes.

REFERÊNCIAS

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direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-
positivismo. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização
Jurídica, v. 1, n. 6, setembro, p. 1-32, 2001. Disponível em:
http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista15/revista15_11.p
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_____________________. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade


Democrática. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 13, p. 71-79,
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BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional I. 8 ed. rev. e atern.


11 de acordo com a Emenda Constitucional n. 76/2013. São Paulo: Saraiva,
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CAPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen


Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988, reimpresso 2002.

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto


Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1999.

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Curitiba, n. 23, 2004. Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
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MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São


Paulo: Martins Fontes, 1996.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3 ed. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
1588

O ROL TAXATIVO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO E A IMPORTÂNCIA DE


SUA MITIGAÇÃO
THE TAX ROLL OF BILL OF REVIEW AND THE IMPORTANCE OF ITS
MITIGATION

Emely Carvalho Moura


Orientador(a): Neusa Messias Migliorini

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo realizar uma análise sobre a
nova sistemática, concernente às alterações trazidas pelo Código de Processo
Civil de 2015 acerca do recurso de Agravo de Instrumento, previsto no artigo
1.015 do CPC. O novo ordenamento jurídico processual limitou e estabeleceu
expressamente as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento gerando
uma discussão doutrinária quanto à interpretação do caráter do rol do referido
artigo, razão pela qual analisamos a decisão proferida pelo Superior Tribunal de
Justiça que estabeleceu uma nova teoria quanto à natureza do rol do dispositivo
regulador do recurso de Agravo de Instrumento, isto é, a taxatividade mitigada.
Palavras-chave: Código de Processo Civil de 2015. Recursos. Taxatividade
mitigada.

Abstract: This paper aims to perform an analysis of the new system, associated
the changes brought by the Code of Civil Procedure 2015 regarding the appeal
of Bill of Review, provided for in article 1.015 of the CPC. The new procedural
legal order explicitly limited and established the hypotheses of the
appropriateness of the Bill of Review, generating a doctrinal discussion as to the
interpretation of the character, of the referred article, reason why we analyzed the
decision issued by the Superior Court that established a new theory relative to
the nature of the role of the regulatory appeal of the Bill of Review, that is, the
mitigated taxativity.
Keywords: Civil Procedure Code 2015. Resources. Mitigated Taxativity

INTRODUÇÃO

Existem diversas situações de conflito e elas são inerentes ao convívio


em sociedade, na qual as vontades são ilimitadas e os recursos são escassos.
Esses conflitos podem ser solucionados através de diversos métodos, e o
processo judicial é um deles.
O processo de conhecimento envolve um pedido do autor, ou seja,
aquele que efetiva o direito de ação, para a resolução de uma lide. Diante disso,
o juiz analisará todos os requisitos necessários, determinará a produção de
provas e chegará a uma decisão reconhecendo um direito de uma das partes.
No presente trabalho discorreremos sobre o rol taxativo do agravo de
instrumento, constante do artigo 1.015 do CPC e traçaremos a importância de
sua mitigação, nos limitando apenas ao processo de conhecimento, uma vez
que recente decisão do STJ exclui a aplicabilidade do rol taxativo para o
processo de execução, assim como, para o processo de inventário e para as
decisões proferidas na fase de liquidação de sentença ou cumprimento de
sentença.
A importância do tema justifica-se, pois é comum o descontentamento
do ser humano com atos que não estejam em conformidade com seus
1589

pensamentos diante de determinada situação, e no que se refere à matéria


jurídica, não poderia ser diferente, tendo em vista que, o direito rege relações
sociais.
Por sua vez, diante de tais inconformismos, a lei lhe assegura o direito
de recorrer, sendo que na atual sistemática processual, a possibilidade de
recorrer de decisões interlocutórias, no processo de conhecimento, passou a
ser limitada e ganhou interpretações diversas com relação à taxatividade do rol
do artigo 1.015 do CPC.

1. RECURSOS

O conceito de recurso, para a maioria dos doutrinadores processualistas,


pode ser definido como um meio de impugnação contra decisões judiciais, ou
seja, é o instrumento utilizado com a finalidade de provocar a reforma de uma
determinada decisão que ainda não tenha transitado em julgado.
Segundo Fredie Didier, o recurso é “o meio ou instrumento destinado a
provocar o reexame da decisão judicial, no mesmo processo em que proferida,
com a finalidade de obter-lhe a invalidação, a reforma, o esclarecimento ou a
integração” (2015, p. 87).
Desta forma, ressalta-se que os recursos são expressões do regime
Democrático dentro do Processo, vez que aquele que se vê inconformado com
uma decisão, pode insurgir-se e trazer seus argumentos para análise e posterior
modificação, anulação ou esclarecimento da decisão impugnada.

2. AGRAVO DE INSTRUMENTO E SUA NOVA SISTEMÁTICA NO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL

O artigo 203 do Código de Processo Civil de 20151 define os atos judiciais,


sendo eles: sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
Segundo Wambier e Talamini (2016, p. 468), decisões interlocutórias,
são:

Todo pronunciamento com conteúdo decisório proferido no curso do


procedimento, que não encerra a fase cognitiva nem o processo de
execução. É um conceito atingido por exclusão: se o pronunciamento
decisório encerra a fase cognitiva ou a execução, tem-se sentença; se
não encerra a fase cognitiva nem a execução, mas não tem conteúdo
decisório, é despacho de mero expediente. Todo o resto é decisão
interlocutória.

Portanto, as decisões interlocutórias possuem grande relevância ao


processo, tendo poder de deferir ou negar requerimentos redigidos pelas partes,

1 Art. 203 Os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e


despachos.§ 1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença
é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase
cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.§ 2º Decisão interlocutória é
todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre no § 1º.§ 3º São
despachos todos os demais pronunciamentos do juiz praticados no processo, de ofício ou a
requerimento da parte.§ 4º Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória,
independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz
quando necessário.
1590

ou, até mesmo, determinar questões incidentais. Devido a essa grande


importância, há um recurso específico com a finalidade de atacar o conteúdo
dessas decisões, denominado “Agravo de Instrumento”, atualmente, previsto nos
artigos 1.015 do Código de Processo Civil de 2015.
O CPC atual, trouxe a proposta de redução do número de recursos
existentes, o que também ocorreu com as hipóteses de interposição de agravo
de instrumento. Vejamos o trecho abaixo, de acordo com o pensamento do
Ministro Luiz Fux:

A redução do número de recursos hodiernamente existentes, como a


eliminação dos embargos infringentes e o agravo, como regra,
adotando-se no primeiro grau de jurisdição uma única impugnação da
sentença final, oportunidade em que a parte poderá manifestar todas
as suas irresignações quanto aos atos decisórios proferidos no curso
do processo, ressalvada a tutela de urgência impugnável de imediato
por agravo de instrumento, coadjuvarão o sistema no alcance dessa
almejada celeridade, sem a violação das cláusulas que compõe o novo
processo civil constitucional.

A exclusão do agravo retido delimitou o rol de decisões submetidas ao


agravo de instrumento, definindo as decisões passíveis deste recurso e trouxe a
possibilidade de recorrer-se de decisões interlocutórias, na ocasião da
interposição da apelação, todavia esta exclusão poderá trazer prejuízos
imediatos às partes.
Segundo os ensinamentos de Didier Jr.:

O Código de Processo Civil de 2015 eliminou a figura do agravo retido


e estabeleceu um rol de decisões sujeitas a agravo de instrumento.
Somente são agraváveis as decisões nos casos previstos em lei. As
decisões não agraváveis devem ser atacadas na apelação (2017, p.
205).

Nesta linha, um tema que vem enfrentando debates e repercussões na


doutrina e nos tribunais é acerca da taxatividade ou não das hipóteses de
cabimento de agravo de instrumento, expressas no artigo 1.015 do CPC.
Tema controvertido, o qual ensejou esta pesquisa.

3. INTERPRETAÇÕES REFERENTES AO ROL DO DISPOSITIVO


REGULADOR DO AGRAVO DE INSTRUMENTO

Assim como disposto no tópico anterior, o artigo 1.015 do Código de


Processo Civil de 2015 regula as hipóteses de cabimento do recurso agravo de
instrumento.
Primeiramente, é importante frisar que o novo código buscou proporcionar
um equilíbrio com a finalidade de diminuir o número de recursos direcionados
aos tribunais e a possibilidade imediata das decisões interlocutórias.
Desta forma, foram eliminadas as expressões abertas de cabimento
trazendo situações específicas em que são cabíveis o recurso de agravo de
instrumento. Nesse passo, por não haver mais expressões abertas, passou-se a
discutir sobre a interpretação do mencionado rol.
As hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento estão
expressas no artigo 1.015, do novo Código de Processo Civil, são elas:
1591

i) tutelas provisórias; ii) mérito do processo; iii) rejeição da alegação de


convenção de arbitragem; iv) incidente de desconsideração da
personalidade jurídica; v) rejeição do pedido de gratuidade da justiça
ou acolhimento do pedido de sua revogação; vi) exibição ou posse de
documento ou coisa; vii) exclusão de litisconsorte; viii) rejeição do
pedido de limitação do litisconsórcio; ix) admissão ou inadmissão de
intervenção de terceiros; x) concessão, modificação ou revogação do
efeito suspensivo aos embargos à execução; e xi) redistribuição do
ônus da prova nos termos do § 1º do art. 373.

Ainda, neste sentido, o parágrafo único do referido artigo complementa


seu rol, de forma a acrescentar que o agravo de instrumento também se
enquadra contra, segundo Humberto Theodoro (2016, p.1304), “decisões
proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença,
no processo de execução e no processo de inventário”.
Didier Jr (2017, p.205), explica que não são todas as decisões passíveis
de serem atacadas através do recurso de agravo, nesse sentido dispõe:

Esse regime, porém, restringe-se à fase de conhecimento, não se


aplicando às fases de liquidação e de cumprimento da sentença, nem
ao processo de execução de título extrajudicial. Nestes casos, toda e
qualquer decisão interlocutória é passível de agravo de instrumento
(art. 1.015, par. ún., CPC). Como o processo de falência é um processo
de execução universal, também caberá, sempre, agravo de
instrumento contra as decisões interlocutórias, nesses casos. Também
cabe agravo de instrumento contra qualquer decisão interlocutória
proferida em processo de inventário (art. 1.015, par. ún, CPC).

O professor Alexandre Freitas Câmara (2016, p.523), também entende


que o rol do artigo 1.015 do Código de Processo Civil é taxativo, ou seja, só cabe
agravo de instrumento para casos previstos em lei, neste sentido, não há
admissão de interpretações extensivas.

Agravo de instrumento é o recurso adequado para impugnar algumas


decisões interlocutórias, expressamente indicadas em lei como
recorríveis em separado. Ademais, admite-se agravo de instrumento
contra qualquer outra decisão interlocutória que a lei processual
expressamente declare agravável, como se dá, por exemplo, no caso
da decisão que receba a petição inicial após o desenvolvimento da fase
preliminar do procedimento da “ação de improbidade administrativa
(art. 17, §10, da Lei 84259/1992).

Por sua vez, há uma segunda corrente, a qual defende a interpretação


extensiva com relação ao rol taxativo do artigo 1015 do CPC.
Concernente ao conceito de interpretação extensiva, Ferraz Jr (2012, p.
271) esclarece que se trata de “um modo de interpretação que amplia o sentido
da norma para além do contido em sua letra”. Assim, de acordo com essa teoria,
por mais que a hipótese não esteja expressa no rol do artigo 1.015, admite-se o
agravo de instrumento, pois estão incluídas de forma implícita no corpo da
norma. A interpretação extensiva, tem como fundamento a interpretação
teológica e a interpretação sistemática.
De acordo com Nunes (2008, p. 273) “a interpretação é teleológica e
considera os fins aos quais a norma jurídica se dirige (telos = fim).”
1592

Neste diapasão, o professor Didier Jr. (2016, p.205), explica que apesar
de o rol que prevê as possibilidades de cabimento do agravo de instrumento ser
taxativo, é possível a admissão de interpretação extensiva. Vejamos:

As hipóteses de agravo de instrumento estão previstas em rol taxativo.


A taxatividade não é, porém, incompatível com a interpretação
extensiva. Embora taxativas as hipóteses de decisões agraváveis, é
possível interpretação extensiva de cada um do seu tipo.
Tradicionalmente, a interpretação pode ser literal, mas há, de igual
modo, as interpretações corretivas e outras formas de reinterpretação
substitutiva.

Seguindo este pensamento, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz


Arenhart e Daniel Mitidiero (2016, p. 1.074), concernente ao art. 1.015,
acrescentam que:

O fato de o legislador construir um rol taxativo não elimina a


necessidade de interpretação para sua compreensão: em outras
palavras, a taxatividade não elimina a equivocidade dos dispositivos e
a necessidade de se adscrever sentido aos textos mediante
interpretação.

Em consonância com essas citações, há a argumentação de que o


legislador não logrou êxito em tentar estabelecer todas as hipóteses de
urgências que devem ser submetidas ao imediato julgamento através do agravo
de instrumento, ademais, acreditam que a limitação das possibilidades de
cabimento do recurso em destaque não cumpriram com o intuito de tornar o
andamento judicial mais célere, tendo em vista que, a norma processual anterior
já o reservava apenas para os casos em que a urgência fosse demonstrada.
Com base na discussão gerada acerca das possibilidades de se agravar
de decisões que não estão estabelecidas expressamente no rol do artigo 1.015,
encontramos jurisprudências diversas, inclusive dentro de um mesmo Tribunal,
levando a insegurança Jurídica:

Agravo De Instrumento. 0006242-77.2017.8.19.0000 Decisão que


indeferiu o pedido de modificação de cláusula de guarda compartilhada
que fora feito pela agravada. Ausência de interesse de recorrer nessa
parte. Peça inicial do recurso de onde não se extrai qualquer conclusão
lógica. Art. 1.015 do CPC/15. Rol taxativo. Decisão que não se
enquadra em nenhuma das hipóteses ali elencadas. Não
conhecimento do recurso face a inadmissibilidade na forma do art. 932,
lll do CPC/15. 0006242-77.2017.8.19.0000 - Agravo de Instrumento -
íntegra do acórdão em segredo de justiça - data de julgamento:
15/02/2017.

Agravo de Instrumento 0029124-67.2016.8.19.0000 O rol do artigo


1.015, do CPC, é exemplificativo, admitindo outras hipóteses, em
especial a dos autos que desacolhe exceção de incompetência.
(Agravo de Instrumento n.º 0029124-67.2016.8.19.0000; Relatora Des.
Helda Lima Meireles, 3ª Câmara Cível do TJERJ, julgado em
21/07/2016).

Portanto, é evidente que a não pacificação ao que se refere à taxatividade


do rol do artigo 1.015 do Código de Processo Civil, tanto na doutrina
1593

especializada quanto nos julgamentos dos tribunais, enfatiza a insegurança


jurídica perante os operadores de direito e justifica a discussão do tema.

4. DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA CONCERNENTE AO


AGRAVO DE INSTRUMENTO

Diante das controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias sobre o


assunto, a ministra Nancy Andrighi sentiu a necessidade de trazer uma
pacificação com relação ao tema, assim, afetou o Recurso Especial nº
1.696.396 – Mato Grosso, de sua relatoria ao rito dos recursos repetitivos, e em
decorrência disso, o caso foi estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça como
o Tema Repetitivo 988.
Portanto, em dezembro de 2018, a Corte Especial do STJ, com apertada
maioria, eis que, cinco ministros votaram no sentido de que o rol era taxativo de
forma restritiva, não possibilitando que qualquer decisão não prevista
expressamente seja agravável, decidiu por ampliar as possibilidades de
interposição do agravo de instrumento para além das já expressas no referido
artigo.
A Ministra Nancy Andrighi propôs pela taxatividade mitigada do artigo
1.015 do CPC, pois, a literal restrição do rol seria ineficaz em solucionar decisões
que pudessem acontecer, “A taxatividade do artigo 1.015 é incapaz de tutelar
adequadamente todas as questões em que pronunciamentos judiciais poderão
causar sérios prejuízos e que, por isso, deverão ser imediatamente
reexaminadas pelo segundo grau de jurisdição”. (2017, p. 37).
De acordo com o entendimento da ministra o rol deixa de abarcar uma
série de questões urgentes, decisões que podem causar prejuízo às partes,
tendo em vista a inutilidade da impugnação futura. Ainda, considera inadequado
o manejo do mandado de segurança para ocasionar o reexame de decisões já
estipuladas.
Dessa forma, a mudança da natureza do rol do art.1.015, por parte do
STJ, estabeleceu a taxatividade mitigada, ou seja, a teoria abrangida é de que o
rol é taxativo, porém, admite uma flexibilização de questões excepcionais e
previamente determinadas e não questões a serem criadas a cada passo.
Argumentou-se sobre o Supremo Tribunal de Justiça ser responsável por
realizar a interpretação do artigo em destaque. A impugnação sobre a
competência do foro ou a impugnação de uma decisão que indefere o pedido de
segredo de justiça, são exemplos citados no voto da ministra de situações que
não podem aguardar apreciação, sendo que podem comprometer a efetivação
da justiça no âmbito processual.
Portanto, entende-se que a “urgência” é um dos critérios para justificar e
possibilitar a interposição do recurso antes da sentença, mediante a ineficácia
de uma rediscussão futura, desta maneira, a parte deverá demonstrar requisitos
que evidenciam o cabimento excepcional e o Tribunal analisará a
admissibilidade da alegação, de acordo com os requisitos: urgência e utilidade.
Assim, estabeleceu-se a seguinte tese, pela Ministra Relatora, (2017,
p.48):

O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite


a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência
decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de
apelação.
1594

O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, através do Recurso Especial nº


1.696.396/MT, em conformidade com a teoria da taxatividade mitigada do artigo
1.015 do CPC de 2015, com concordância com o estabelecido pela Ministra
Relatora, concernente ao requisito de “urgência”.

A tese que se propõe consiste em, a partir de um requisito objetivo – a


urgência que decorre da inutilidade futura do julgamento do recurso
diferido da apelação –, possibilitar a recorribilidade imediata de
decisões interlocutórias fora da lista do art. 1.015 do CPC, sempre em
caráter excepcional e desde que preenchido o requisito urgência,
independentemente do uso da interpretação extensiva ou analógica
dos incisos do art. 1.015 do CPC, porque, como demonstrado, nem
mesmo essas técnicas hermenêuticas são suficientes para abarcar
todas as situações. (2017, p.38).

Contudo, é importante ressaltar, que ainda não se chegou a pacificação


do entendimento a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, mantém o
pensamento de que o rol do referido artigo é estritamente taxativo, eis que, a
tese proposta pela Ministra Nancy, poderá ser prejudicial ao ordenamento
jurídico, ocasionando a insegurança jurídica ao que se refere à preclusão.
Segundo seu entendimento, não é de competência do STJ realizar alterações ao
dispositivo legal a substituir o legislador, neste caso, aduz haver a necessidade
de um projeto lei. Estas são as palavras de Maria Thereza de Assis Moura:
"penso que a tese proposta em seu voto poderá causar um efeito perverso (...),
cada tribunal decidirá conforme sua convicção. Ou seja, o repetitivo não cumprirá
sua função paradigmática”.
Em vista disso, é evidente que o referido impasse das decisões
interlocutórias ainda é objeto de uma série de entendimentos controversos
quanto a interpretação do rol. E por isso, ainda não é possível estabelecer a
questão como solucionada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da pesquisa realizada, foi possível perceber que o CPC de 2015
trouxe diversas modificações ao recurso de agravo de instrumento, inclusive,
acerca da limitação das hipóteses de seu cabimento.
Grande parte dos doutrinadores entenderam pela taxatividade do rol do
artigo 1.015 do CPC, por outro lado, outros doutrinadores defendem sobre a
aplicação de uma interpretação extensiva, permitindo-se a interposição do
recurso contra decisões que venham a causar danos de difícil ou impossível
reparação às partes.
Neste diapasão, diante de todas as controversas, prevaleceu o voto da
Ministra Nancy Andrighi, defendendo a mitigação da taxatividade do rol, a fim de
admitir o cabimento do recurso diante dos requisitos de urgência e utilidade,
assim, os tribunais deverão analisar, sempre preservando os ideais de coerência
e integridade.
Por fim, é possível concluir que a tese que defende a taxatividade mitigada
não está totalmente pacificada, tendo em vista, o voto da Ministra Maria Thereza
Assis Moura, que alega acerca a incompetência dos STJ em realizar qualquer
alteração no referido dispositivo, sendo que, esse tipo de modificação
demandaria de um projeto lei para sanar eventuais lacunas.
1595

REFERÊNCIAS

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm>. Acesso em: 24/04/2019.

______. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados


Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em: 24/04/2019.

______. Lei nº 11.187, de 19 de outubro de 2005. Altera a Lei no 5.869, de 11


de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, para conferir nova disciplina ao
cabimento dos agravos retido e de instrumento, e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2005/lei/l11187.htm>. Acesso em: 24/04/2019.

______. Código de Processo Civil, de 16 de março de 2015. Disponível em:


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24.2016.8.19.0000; Relator: Des. Luiz Fernando da Andrade Pinto. Disponível
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1596

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WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 3. ed. São


Paulo: RT, 2000.
1597

OS PRECEDENTES JUDICIAIS COMO INSTRUMENTO DE APROXIMAÇÃO


ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA.
THE JUDICIAL PRECEDENTS AS AN INSTRUMENT OF APPROXIMATION
BETWEEN LAW AND JUSTICE.

Marcelo Fernandes e Silva

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar e dar continuidade à


discussão sobre a importância do Instituto dos Precedentes Judiciais na
uniformização das decisões do Judiciário brasileiro, preservando e garantindo
Direitos Fundamentais, agindo como instrumento, através de suas ferramentas
de utilização (Distinguishing, Overruling e Overriding), possível para garantir os
princípios da efetividade, produzindo segurança jurídica e maior sensação de
justiça. Para isso, faremos uma análise conceitual de Direito e Justiça na visão
de Aristóteles e Ronald Dworkin. Analisaremos, ainda, alguns objetivos do
Sistema de Precedentes no Código de Processo Civil. Após a análise conceitual
de Direito e Justiça, o intuito é analisar e expor se o instituto dos precedentes
pode agir como Instrumento processual para diminuir a sensação que os
jurisdicionados possuem de injustiça. Por fim, concluiremos que, com as
ferramentas de aplicação dos Precedentes Judiciais utilizadas adequadamente
teremos uma justiça eficiente e um judiciário coerente.
Palavras-chave: Precedentes Judiciais. Direito. Justiça.

Abstract: This article aims to present and continue the discussion about the
importance of the Institute of Judicial Precedents in the standardization of the
decisions of the Brazilian Judiciary, preserving and guaranteeing Fundamental
Rights, acting as an instrument through its utilization tools (Distinguishing,
Overruling and Overriding). ), possible to guarantee the principles of
effectiveness, producing legal certainty and greater sense of justice. For this, we
will make a conceptual analysis of Law and Justice in the view of Aristotle and
Ronald Dworkin. We will also analyze some objectives of the Precedent System
in the Code of Civil Procedure. After the conceptual analysis of law and justice,
the purpose is to analyze and expose whether the precedent institute can act as
a procedural instrument to diminish the sense that the jurisdictional parties have
injustice. Finally, we will conclude that with the properly used Judicial Precedents
enforcement tools we will have efficient justice and a coherent judiciary.
Keywords: Judicial Precedents. Right. Justice.

INTRODUÇÃO

Existe uma grande dificuldade da sociedade em diferenciar o Direito de


Justiça, principalmente, diante do cenário atual, onde parece que estamos
cheios de Direitos que não produzem justiça em meio a todos os conflitos e
divergências sociais, políticas e morais existentes.
Os conflitos e as divergências tem levado as pessoas a buscarem o
judiciário brasileiro desejando que seja feita justiça, contudo, o máximo que estão
recebendo, na maioria das vezes, é o Direito já escrito, sem o mínimo de
sensibilidade por parte dos magistrados, gerando a sensação de injustiça.
Portanto, no intuito de se obter respostas para os questionamentos
apresentados, bem como desenvolver de maneira satisfatória a presente
1598

pesquisa, será utilizado o método hipotético dedutivo, utilizando-se de pesquisa


bibliográfica.
Assim, a princípio, não é o objetivo deste texto concluir o assunto sobre
os benefícios que os precedentes judicias poderão produzir através da sua
devida aplicação através de suas ferramentas, diminuindo a distância existente
entre o Direito e a Justiça, diante decisões tão divergentes em casos análogos,
mas continuar a discussão, para que com o passar do tempo possamos
aperfeiçoar cada vez mais o tema.

1. DIREITO E JUSTIÇA

De acordo com o conceito Aristotélico, o Direito e a Justiça estão ligados


a uma disposição de caráter e vontade de fazer ou não o que é justo, assim, ser
justo é tornar-se equitativo praticando atos que estão em concordância com a
Lei.
Em uma concepção mais moderna, Dworkin afirma que a justiça é
remetida a uma análise do que pode ser justo moralmente e politicamente,
alterando essa concepção de pessoa para pessoa, possuindo cada um, de
acordo com a sua concepção, a convicção do que vem a ser justiça. Nesse
sentido, o direito são as decisões políticas tomadas por pessoas, supostamente
justas, que permitem ao Estado fazer uso da força para realizar justiça para a
sociedade.
Para se compreender o contraponto, se é que existe, entre direito e
justiça, vejamos o que pensam os dois autores sobre o conceito de direito.
Na visão aristotélica1, o direito está em respeitar a lei prescrita pela arte
do legislador, porque são legítimos e contemplam os atos de todos os homens
contidos na sociedade, independentemente de sua virtude, no intuito de produzir
e preservar a felicidade e, para isso, não podem serem realizadas ás pressas,
pois a contrário sensu, produzirão infelicidade.
No entendimento de Ronald Dworkin: “O direito nada mais é que aquilo
que as instituições jurídicas, como as legislaturas, as câmaras municipais e os
tribunais, decidiram no passado”2.
Assim, o direito e a justiça, na visão dos dois autores, encontram um ponto
em comum, ou seja, para se produzir e preservar a justiça há a necessidade de
que o legislativo, utilize a sua arte de legislar, para produzir leis que contemplam
possíveis atos de conduta de uma sociedade e, no caso de alguma omissão, o
judiciário decida com equidade analisando sempre o que já foi decidido em
situações semelhantes.
Ao analisar os dois conceitos, infelizmente, a lei promulgada e escrita para
a sociedade brasileira, diante de todo cenário político, social, moral e ético tem
caído em descrédito, pois o que a sociedade busca por meio das leis, além de
garantia dos direitos, é a sensação de que em cada caso a justiça foi realizada,
o que infelizmente não tem ocorrido.
No entanto, após a análise realizada acima, procuraremos refletir se a
aplicação dos precedentes judiciais adotados pelo Código de Processo Civil será
capaz de, tendo em vista a mudança constante da sociedade, bem como as
constantes alterações no entendimento do que é o direito e, como consequência,
do que é justo, poderão solidificar as interpretações quanto as leis já criadas e
1 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Editora Nova Cultural. Ano 1991. 4ª Edição, p. 98
2 DWORKIN, Ronald. O império do Direito, Editora Martins Fontes. Ano 1999, 1ª Edição, p. 10
1599

trazendo soluções, através do judiciário, as questões omissas, produzindo


estabilidade, felicidade e a sensação de justiça para a sociedade.

2. PRECEDENTES JUDICIAIS E SEUS OBJETIVOS

Na análise discorrida acima, certificamos que na visão de Aristóteles a


Justiça está na disposição de a sociedade fazer o que é justo, sendo que para
isso é necessário respeitar as leis criadas pelo legislador no uso de sua arte e,
analisamos ainda, no entendimento de Ronald Dworkin, que para se entender o
Direito, faz-se necessário analisar as leis, bem como as decisões passadas,
tanto do legislativo como das instituições jurídicas.
Nesse contexto, diante da falta de respeito pelos entendimentos das leis
decididas no passado, tornou-se extremamente necessário solidificar o sistema
de precedentes no Direito brasileiro, previsto na Constituição Federal e no
Código de Processo Civil.
Desse modo, cumpre destacar que, Precedente Judicial, de acordo com
Estefânia Maria de Queiroz Barboza, é, por definição, a pratica de decidir casos
com base nas decisões tomadas em casos similares no passado por meio de
mecanismos que identificam a experiência comum ou questões semelhantes
entre os casos”3.
Portanto, é um dever dos tribunais solidificarem as suas decisões e os
seus entendimentos sobre os diversos temas jurídicos, tornando-os públicos
para que, não só os profissionais jurídicos, mas toda a sociedade possa ter
conhecimento quanto a interpretação da Suprema Corte sobre cada matéria,
conforme o que está previsto no Livro III, a partir do artigo 926 do Código de
Processo Civil.
Desta forma, a sociedade, diante do Direito escrito, sente-se injustiçada e
um dos fatos relevantes para esse sentimento são as divergências e as
diferentes maneiras de se julgar casos semelhantes, ou seja, com a mesma ratio
decidendi.
Nesse sentido, Teresa Arruda Alvim Wambier ensina que:

[...]é imprescindível que se perceba a necessidade de respeito à


jurisprudência firmada – e até mesmo a um só precedente, se se tratar
do STF – existe com relação aos próprios órgãos prolatores da
decisão, que deve ser respeitada. Por isso é que se deve insistir na
necessidade de estabilidade da jurisprudência dos órgãos superiores,
sob pena de inaceitável desrespeito ao princípio da isonomia e de o
próprio ordenamento jurídico, juntamente com o Estado Democrático
de Direito, ruírem definitivamente4.

A existência dos precedentes traz segurança e igualdade de regras para


todos os jurisdicionados que se encontrem com processos semelhantes no
Judiciário brasileiro, produzindo justiça, pois os iguais estão sendo tratados de
maneira igual.

3 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes Judiciais e Segurança Jurídica. Editora


Saraiva. São Paulo. Ano 2014, pag.198.
4 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil –

artigo por artigo. Revista dos Tribunais. 2ª Edição revista, atualizada e ampliada. Ano 2016.
Pag. 1457.
1600

Portanto, ao tratar sobre a igualdade, Marcus Vinicius Rios Gonçalves


afirma que, “sob o aspecto processual, a isonomia revela-se na necessidade de
dar às partes tratamento igualitário em relação ao exercício de direitos e
faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à
aplicação de sanções processuais5”.
Assim, é extremamente necessário, se desejamos ter, além de decisões
justas e efetivas, um Sistema Jurídico com maior Efetividade, buscarmos a
garantia de tratamento igualitário entre às partes, em relação, não só no
exercício dos direitos, mas também quanto as faculdades processuais, pois só
assim caminharemos rumo a justiça.
Nesse sentido, a estabilidade das decisões, de acordo com Eduardo
Cambi e Vinicius Gonçalves Almeida6, pode refletir positivamente na sociedade
brasileira, evitando-se, inclusive, a sensação de injustiça, ou seja, que o Direito
funciona para uma parte da sociedade e para a outra menos favorecida não,
motivo pelo qual, extrai-se a importância dada pelos legisladores na formulação
do Código de Processo Civil de 2015, procurando colocar, de fato, as partes em
igualdade.
Desta forma, os principais objetivos dos Precedentes Judiciais são
assegurar a efetividade das garantias Constitucionais, o devido processo legal,
isonomia, segurança jurídica, efetividade da Tutela Jurisdicional, Previsibilidade,
coerência jurídica, bem como desestimular a litigância de má-fé produzindo
maior eficiência.

3. PRECEDENTES JUDICIAIS – INSTRUMENTO DE APROXIMAÇÃO


ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA

O Direito e a Justiça na concepção popular, soa como palavras sinônimas,


contudo, na prática popular, traz a sensação de que são palavras antônimas.
Learned Hand disse: “Tenho mais medo de um processo judicial que da
morte ou dos impostos”7, tal afirmação é feita porque infelizmente sabemos como
poderá começar um processo judicial, mas não temos a mínima ideia, diante dos
muitos entendimentos divergentes, de como irá terminar e muitas vezes quem
estava certo saí errado e quem estava errado termina como o certo.
Nesse sentido, Ronald Dworkin afirma que:

Os processos judiciais são importantes em outro aspecto que não pode


ser avaliado em termos de dinheiro, nem mesmo de liberdade. Há,
inevitavelmente, uma dimensão moral associada a um processo
judicial legal e, portanto, um risco permanente de uma forma
inequívoca de injustiça pública. Um juiz deve decidir não simplesmente
quem vai ter o quê, mas quem agiu bem, quem cumpriu com suas
responsabilidades de cidadão, e quem, de propósito, por cobiça ou
insensibilidade, ignorou suas próprias responsabilidades para com os

5 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 9ª Edição. Editora
Saraiva. São Paulo. Ano 2018, pag. 94.
6“A estabilidade processual é alcançada quando a tutela jurisprudencial opera de maneira

isonômica e razoavelmente previsível. Há segurança jurídica nas relações processuais quando


se oferece uma expectativa válida aos jurisdicionados sobre os possíveis resultados da atividade
jurisdicional”. CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Vinicius Gonçalves. Segurança jurídica e isonomia
como vetores argumentativos para a aplicação dos precedentes judiciais. Revista de Processo.
Ano 2016, pag. 282
7 Mão Sábia (N. do T.)
1601

outros, ou exagerou as responsabilidades dos outros para consigo


mesmo8.

Repise-se que, os juízes precisam ter a percepção e a sensibilidade de


que, quando estão diante de um processo, não estão julgando documentos e
analisando argumentos, mas muitas das vezes estão julgando destinos9 de
pessoas que, tendo conhecimento da Lei e do entendimento dos tribunais,
aguardam por justiça.
Contudo, com a constante mudança de entendimento nos julgamentos
das Cortes Superiores, bem como dos Tribunais que compõem o Judiciário
brasileiro, tal fato só faz com que pessoas, chamados aventureiros jurídicos,
proponham ações aguardando por um novo entendimento, no intuito de levar
vantagem sobre outrem, resultando em injustiças que provocam prejuízos
maiores do que o apenas financeiro.
Desta forma, cumpre ressaltar, os Precedentes Judiciais tornam-se um
instrumento ou instituto que, através das decisões reiteradas e discutidas de
maneira ampla, trazem a sociedade estabilidade, previsibilidade, segurança
jurídica, isonomia e principalmente maior sensação de justiça.
Portanto, é de extrema importância que os Tribunais, ao cumprirem o
determinado no artigo 926 e seguintes do Código de Processo Civil –
uniformizando as suas decisões, dando publicidade e fortalecendo os
precedentes judiciais – garantem com que as decisões dos juízes sejam, em
casos análogos, previsíveis, independente de quem sejam as partes.
Nesse sentido, resta claro que a falta de isonomia das decisões judiciais,
juntadas a outros problemas, como por exemplo o congestionamento do
judiciário, causam obstáculos para que o sistema jurídico brasileiro possa tornar-
se mais justo e efetivo, podendo gerar nos jurisdicionados maior segurança
jurídica quanto ao procedimento processual adotado e entendimento pela lei.
Por óbvio, através dos precedentes, a sociedade não buscará o Estado
de Direito para se obter apenas uma resposta, mas por meio dos precedentes,
buscará a efetivação e a garantia dos seus direitos.
Assim, por mais que uma das partes tenha mais recursos financeiros do
que outra, tratando-se de caso análogo, o juiz não poderá prolatar decisão
diferente da já decidida, a não ser que faça uso das ferramentas processuais,
bem como fundamente o porque aquele caso é diferente do primeiro.
Portanto, com a devida aplicação dos Precedentes Judiciais, acredito que
a sociedade brasileira poderá tornar-se mais ética, voltada a resolução de
conflitos por meio da conciliação e mediação, colocando fim a essa cultura
jurídica de que tudo precisa de um litígio para ser resolvido.
Importante ressaltar que, os Precedentes Judiciais não significam
engessamento do Judiciário, como alguns doutrinadores querem demonstrar, ao
contrário, ocorrendo a sua devida aplicação, tanto por magistrados como por
advogados, trará fortalecimento não só ao sistema processual, mas ao sistema
jurídico como um todo, contudo, há a necessidade de se aplicar corretamente as
técnicas de uniformização das decisões.

8DWORKIN, Ronald. O império do Direito, Editora Martins Fontes. Ano 1999, 1ª Edição, p. 3, 4.
9No dia 24 de maio de 2019, o Ministro Marco Aurélio realizou uma Seminário na Universidade
Nove de Julho e, ao fazer menção quanto as responsabilidades de um juiz, realizou a seguinte
afirmação: “Não julgamos papéis, julgamos destinos”.
1602

Destaca-se, os Precedentes Judiciais não são absolutos, podem ser


superados caso a sociedade evolua, até porque a sociedade é dinâmica e está
em constante mudança, no entanto, faz-se necessário que correta utilização das
técnicas de superação, como o Distinguishing, Overruling e Overrinding.
Assim, quando uma sociedade procura resolver seus conflitos apenas
com o litígio, todos perdem, mas com o conhecimento prévio do entendimento
dos tribunais, a melhor solução será a resolução do conflito através da
conciliação e mediação, chegando a uma proporcionalidade, onde todos ganham
e todos sentem a sensação de “JUSTIÇA”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito devidamente aplicado e exercido por seus profissionais tem o


poder de transformar politicamente, socialmente, moralmente e eticamente uma
sociedade. A sociedade brasileira sempre clamou por Justiça, mas durante
muitos anos, não teve acesso ao Direito, contudo, com as reformas no Código
Civil, Código de Processo Civil e atualizações legislativas, passou a ter garantido
o acesso ao Direito.
Entretanto, não é o acesso ao Direito que a sociedade precisa, mas sim o
acesso á Justiça, pois, infelizmente, não são poucas as pessoas que no decorrer
da história brasileira, procuraram exercer o Direito acreditando receber a Justiça
e, na verdade, receberam injustiça.
Assim, acredito que, se o instituto dos Precedentes Judiciais for
implantado de maneira correta, não só implantado; porque ele já existe através
de Súmulas Vinculantes e outros instrumentos regulamentados pelo Código de
Processo Civil no Livro III; mas respeitado, para que não venhamos ter tantos
casos análogos com decisões divergentes, a sociedade terá estabilidade das
decisões, previsibilidade, segurança jurídica ao buscar o direito, isonomia e,
acredito, amenizado a distância entre o Direito e a Justiça.
As injustiças processuais e as incertezas processuais vivenciadas, tem
produzido danos muito mais caros do que os monetários, como os psicológicos,
sociais e morais, pois, mesmo diante de uma conduta responsável de cada
cidadão, pela insegurança nas decisões, o jurisdicionado não consegue
enxergar no Direito meios de receber Justiça.
Portanto, diante dos argumentos apresentados, acreditamos que o
sistema de Precedentes Judiciais pode auxiliar a garantir o Princípio da
Efetividade, segurança jurídica no Sistema Jurídico Brasileiro, bem como poderá
servir de Instrumento de aproximação entre o Direito e a Justiça.

REFERÊNCIAS

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BALBINO, Thamara Estéfane Martins. O Precedente Vinculante no Direito


Processual Civil Brasileiro e o Direito Fundamental da Igualdade. Dissertação
de Mestrado, Universidade de Itaúna. Itaúna. Ano 2018.

BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes Judiciais e Segurança


Jurídica. Editora Saraiva. São Paulo. Ano 2014.
1603

BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes Judiciais e Segurança


Jurídica. Editora Saraiva. São Paulo. Ano 2014.

CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Vinicius Gonçalves. Segurança jurídica e


isonomia como vetores argumentativos para a aplicação dos precedentes
judiciais. Revista de Processo. Ano 2016;

DWORKIN, Ronald. O império do Direito, Editora Martins Fontes. Ano 1999, 1ª


Edição.

GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O Neoconstitucionalismo e o Fim do Estado


de Direito. Editora Saraiva. São Paulo, Ano 2014.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado.


9ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo. Ano 2018, pag. 94.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Editora Forense.


19ª Edição, Ano 2010.

MITIDIERO, Daniel. Precedentes, Jurisprudência e Súmulas no novo código de


Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo, vol. 245/2015, p. 333/349.
Jul/2015. DTR\2015\11014;

MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à


interpretação, da jurisprudência ao precedente. Editora Revista dos Tribunais.
São Paulo. Ano 2013.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros Comentários ao Novo Código de


Processo Civil – artigo por artigo. Revista dos Tribunais. 2ª Edição revista,
atualizada e ampliada. Ano 2016.

Íntegra da reportagem publicada na seção “Notícias” do STJ. Disponível em:


[www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105
392].

Mão Sábia (N. do T.)


1604

PROCESSO CIVIL EM PERSPECTIVA: UMA ANÁLISE DA COOPERAÇÃO


JURÍDICA INTERNACIONAL NOS PROCESSOS TRANSFRONTEIRIÇOS
CIVIL PERSPECTIVE PROCESS: AN ANALYSIS OF INTERNATIONAL
LEGAL COOPERATION IN CROSS-BORDER PROCESSES

Bruno Cristian Gabriel


Caroline de Oliveira Sousa

Resumo: O processo de massificação das relações possui intrínseca ligação


com o processo de globalização, o que por via de consequência encurta a
distância entre Estados, superando limites fronteiriços. Assim, em razão destas
relações internacionais, vêm sendo exigido cada vez mais do Estado à
efetivação das prestações jurisdicionais transfronteiriças, não apenas nos
confins da jurisdição nacional, mas também nos processos que necessitam de
auxilio internacional, o que requer uma releitura do próprio direito do acesso à
justiça. Assim, o presente trabalho se debruçará na análise dos principais
entraves enfrentados pelo acesso à justiça na perspectiva dos chamados
processos transfronteiriços, visando demonstrar a necessidade de uma efetiva
tutela jurisdicional em tempo razoável, bem como a importância do processo
enquanto instrumento pacificador da sociedade e da segurança jurídica.
Palavras-chave: Acesso à Justiça. Globalização. Cooperação Jurídica
Internacional.

Abstract: The process of massification of relations is intrinsically linked to the


process of globalization, which consequently shortens the distance between
states, overcoming border boundaries. Thus, because of these international
relations, the State is increasingly required to carry out cross-border judicial
benefits, not only within the confines of national jurisdiction, but also in cases
requiring international assistance, which requires a re-reading of the law of the
State itself. access to justice. Thus, the present work will focus on the main
obstacles faced by access to justice from the perspective of so-called cross-
border cases, aiming to demonstrate the need for effective judicial protection in
a reasonable time, as well as the importance of the process as a pacifying
instrument of society and society. legal certainty.
Keyword: Access to Justice. Globalization. International Legal Cooperation.

INTRODUÇÃO

Não é demais lembrarmos que a globalização deve ser observada sob


diversos enfoques, mas todos eles convergem para a transformação dos
ambientes nacionais em esferas globais. Nesse sentido, temas que antes eram
observados estritamente como nacionais, passaram à escala mundial,
modificando por completo a dinâmica das relações públicas, sociais, mas
sobretudo a jurídica. (JUNIOR, Ademar)
Assim, o foco do presente trabalho é justamente este conjunto de desafios
que à globalização impõe à jurisdição contemporânea.
A análise acadêmica acerca da eficiência do Poder Judiciário, dada a
morosidade com que os quase 80 milhões de processos que tramitam junto ao
Poder Judiciário, é da mais alta relevância. Os estudos realizados pelo Conselho
1605

Nacional de Justiça1 apontam que o Poder Judiciário finalizou no ano de 2018


com 78,7 milhões de processos.
Assim, é inegável que os impactos sociais e econômicos causados pela
morosidade judicial2 são gravíssimos e passaram a ser analisados pela
academia como uma temática própria, com especial enfoque nas nefastas
consequências em relação não só à demora na prolação da decisão judicial e
consequente não efetivação de direitos legislados.
Aliás neste sentido FUX e BODART (2019, p.31) sustentam:

Nada obstante os preceitos constitucionais e legais em favor da


expansão do acesso à justiça, a realidade é deveras diversa. A crise
da justiça civil brasileira é uma velha conhecida. O historiador Stuart B.
Shwartz, da Yale University (EUA), relata problemas relacionados à
lentidão da Justiça e ao excesso de trabalho nas Cortes desde a era
do Brasil Colonial.

Nesse sentido, se englobam àqueles processos em que se dependa da


cooperação jurídica internacional. Assim, o problema enfrentado pela presente
pesquisa é saber de que forma esses processos que ultrapassam as fronteiras
da jurisdição nacional vem sendo enfrentado pela ordem processual civil, e
sobretudo, em que medida que a utilização da cooperação jurisdicional
internacional como instrumento para a efetivação do acesso à justiça nas
relações jurídicas privadas internacionais vem sendo efetiva.
Para obter estas respostas e para o bom desenvolvimento desta
pesquisa, se utilizará do método hipotético dedutivo, utilizando-se de pesquisa
bibliográfica.

1. DO PROJETO FLORENÇA E AS ONDAS RENOVATÓRIAS

Para a ciência jurídica, justiça tem relação ao tratamento equitativo


daqueles que estão submetidos a sistemas legais e jurídicos. Isso pode ser
observado no próprio preâmbulo da Constituição Federal do Brasil de 1988, ao
elevar a justiça como valor supremo do Estado Democrático de Direito.
Contudo, foi Mauro Cappelletti juntamente com Bryant Garth quem mais
dedicaram seus estudos ao tema, em especial, no denominado “Projeto
Florença”, onde puderam contar com a participação de sociólogos e outros
profissionais das ciências sociais de diversos países que, ao se debruçarem
sobre informações dos sistemas de justiça da Alemanha, Austrália, Bulgária,
Canadá, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Hungria,
Indonésia, Israel, Itália, Japão, México, Polônia, Suécia, União Soviética e
Uruguai, puderam reunir diversas informações acerca das principais barreiras ao
efetivo acesso à justiça, culminando na publicação do Relatório Geral do Projeto
Florença, intitulado de Acess to Justice: The WorldwideMovement to Make
Rights Effective – A Generak Report, que resultou, ao final, uma obra de seis
tomos, publicada ao final da década de 70, como bem explica Ribas Filho:

1Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisa-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em 05


out. 2019 às 11:24.
2 Dentre várias referências nacionais, destaca-se: AMARAL, 2001 / BARROSO, 2007 / GABBAY;

CUNHA, 2012. E dentre as estrangeiras, YAMIN; GLOPPEN, 2011 / GAURI; BRINKS, 2008.
1606

O tema do acesso à justiça tem constituído em nossa era uma questão


central da democracia participativa. A partir do lançamento da notável
obra de MAURO CAPPELLETTI & BRYANT GARTH: Acess to Justice:
The Worldwide Movement to Make Righs Effective – A General Report,
editada em Milão em 1978, o material tem fascinado os espíritos mais
sensíveis, ocupado a atenção de estudiosos e pesquisadores,
despertado a atenção da mídia e provocado a reflexão do homem
comum. (RIBAS FILHO, 1996, p.11)

O acesso à justiça corresponde ao acesso às instituições do sistema de


justiça, tendo intrínseca ligação com a performance do poder judiciário na própria
distribuição da justiça. E é exatamente nesse enfoque que o Projeto Florença se
desenvolveu, tendo como objeto delimitado o acesso efetivo ao judiciário, como
é possível identificar já na introdução de seu relatório geral, que o denominou
como acesso efetivo aos serviços judiciários. (RIBAS FILHO, 1996)
Temas relativos ao acesso à justiça começaram a ser debatidos no Brasil
na década de 70, no âmbito do processo civil em 1980, com a publicação da
versão brasileira do relatório “Acess to Justice a world survey”, de Cappelletti e
Garth, contendo as reflexões extraídas pelo chamado Projeto Florença.
(ASPERTI, 2018)
Mas foi a própria Constituição Federal de 1988 que dando força não
somente aos instrumentos de efetivação ao acesso à justiça, trouxe em seu
artigo 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou
ameaça de lesão”, consagrando o direito de acesso à justiça como garantia
basilar do próprio Estado Democrático de Direito.

2. O PROCESSO DE MASSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES E GLOBALIZAÇÃO

No contexto histórico o processo de massificação possui inter-relação com


a globalização. Destaca-se pois, a revolução industrial ocorrida no século XVIII
inicialmente na Inglaterra e logo após com a perceptível força propulsora do
capitalismo, sobreveio o avanço da mundialização na produção de bens e
relações de consumo, constatada até os dias atuais.
A grande mudança da sociedade pós-revolução industrial corroborou
para a concretização do pensamento compartilhado por ZYGMUNT BAUMAN
(1999), afirmando que a globalização seria o destino irremediável do mundo, o
processo em que todos seriam afetados da mesma maneira e na mesma
intensidade, isso faria a felicidade de alguns e a infelicidade de outros.
As eliminações de barreiras circunstanciais antes encontradas nas
diversas situações fora das fronteiras nacionais encurtaram a distância entre as
nações e superaram os limites fronteiriços, resultando um número populacional
exacerbado á procura de satisfazer suas necessidades. Esse panorama, ganha
um contraste mais acentuado no que diz respeito à intensificação das relações
de consumo. O crescimento do comércio eletrônico fortalece e facilita a obtenção
de produtos estrangeiros fabricado por empresas que tem sede em outro Estado
assim como salienta NADIA DE ARAÚJO (2005), os contratos internacionais que
envolvem consumidores estão cada vez mais frequentes e há de se notar o
avanço dos mesmos, possibilitando contratos de adesão já prontos.
Ao dissertar sobre esta relevante questão, MAZUOLLI (2018, p.22)
preleciona:
1607

Atualmente, pode-se mesmo dizer que as fronteiras e os limites


de um dado Estado existem somente para si, não para as
relações humanas, que diuturnamente experimentam a
movimentação de milhares de pessoas ao redor da Terra.
Contratos são concluídos, todos os dias, em várias partes do
mundo, por pessoas de nacionalidades distintas; consumidores
de um país, sem ultrapassar qualquer fronteira, adquirem
produtos do exterior pelo comércio eletrônico; pessoas viajam
diuturnamente a turismo e a negócio para outros países;
enfermos buscam tratamento médico especializado no exterior;
estudantes de um país fazem intercâmbio para estudar em outro;
casamentos entre estrangeiros são realizados em terceiros
Estados; sentenças proferidas num país são homologadas em
outros; sucessões de bens de estrangeiros situados no país são
constantemente abertas; sociedades comerciais estabelecem
filiais ou sucursais em outros Estados etc. Todos esses fatores
somados demonstram claramente uma crescente
“internacionalização” das relações sociais, especialmente no
contexto atual de um mundo cada vez mais “circulante”.

Sucede quê, a evolução das relações comerciais e os desdobramentos


econômicos auxiliaram no processo de massificação e globalização, um fator
que se multiplica internacionalmente, sendo abrangido principalmente pelo
grande cenário informático atual, um vínculo que se prolonga ao longo dos
séculos e fortifica a tendência de procedimentos realizados de maneira rápida e
célere a partir da integração estabelecida entre os países. Isto faz com que tais
procedimentos sejam cobrados em todos os aspectos incluindo o âmbito do
poder judiciário que também é alvo de uma sociedade massificada tendo em
vista a globalização até aqui alcançada.

3. OS DESAFIOS DO ACESSO Á JUSTIÇA NOS PROCESSOS


TRANSFRONTEIRIÇOS

O acesso à justiça é um princípio fundamental previsto na magna carta, a


constituição federal de 1988, isso significa dizer que o mesmo está
regulamentado no corpo de normas do topo de todo o ordenamento jurídico
assim pensado e retratado pela pirâmide de KELSEN (1998).
No mesmo sentido sustenta DINAMARCO (2000, p. 304):

Muito mais do que um princípio, o acesso à justiça é a síntese


de todos os princípios e garantias do processo, seja a nível
constitucional ou infraconstitucional, seja em sede legislativa ou
doutrinária e jurisprudencial. Chega-se à ideia do acesso à
justiça, que é o polo metodológico mais importante do sistema
processual na atualidade, mediante o exame de todos e de
qualquer um dos grandes princípios.

Assim destaca POZZATTI JUNIOR (2015), a contemporaneidade na


perspectiva das relações internacionais tem exigido do Estado à efetivação das
prestações jurisdicionais transfronteiriças, não apenas nos confins da jurisdição
nacional, mas também nos processos que necessitam de auxilio internacional,
estes requerem uma releitura do direito de acesso á justiça.
A fim de apresentar os desafios enfrentados pela justiça transfronteiriça,
é importante reconhecer a existência de óbices no âmbito institucional e de
ordem normativa. Á respeito do primeiro é notável a despreparação das
1608

autoridades que compõem o sistema de justiça nas matérias mais complexas


que demandam cooperação jurídica, pois estas não se enquadram no conceito
de soberania sobre o qual se edifica o preceito de jurisdição. ALLARD
GARAPON (2005).
Outro aspecto é o desafio de ordem econômica, pois há elevados custos
nesses litígios que se expandem internacionalmente, estando intrinsecamente
relacionado com a morosidade processual afetando diretamente a parte mais
vulnerável, não tendo condições de arcar com todas as despesas que se
prolonga até o possível exaurimento da demanda.
Ainda ALLARD GARAPON (2005, p. 18) aduz que:

Também conformam o entrave à justiça transfronteiriça as


extensas burocracias nacionais pra implementar o processo
transfronteiriço e o formalismo exagerado dos procedimentos
judiciais quando da homologação dos atos produzidos no
exterior. Além disso, o desconhecimento dos juízes em matéria
de litígios internacionais tende a ser muito mais acentuado que
no âmbito interno, afinal, o juiz é afrontado pela aplicação de um
direito que ele não conhece.

A relevância jurídica discutida sobre a dificuldade do acesso á justiça


como também o funcionamento do poder judiciário e administração pública, não
aborda apenas a duração razoável do processo, mas aprofunda-se no
levantamento de empecilhos técnicos ou relacionados à prática jurídica
propriamente. Trata da tentativa de impedir a desigualdade dos processos
nacionais entre os processos que envolvem elementos de conexão internacional.
(HONEETH, 2003).
Assegura SADEK (2004, p. 15) que:

Por funcionamento anormal da administração da justiça


entendesse todo e qualquer descumprimento à norma jurídica
válida, uma vez que não pode justamente o Estado de Direito
furtar-se a cumprir a norma (princípios e regras) que impõe às
partes. Acontece que a estrutura atual do Judiciário não dá conta
de processar as demandas que chegam ao sistema de justiça.
Trata-se de “uma estrutura pesada, sem agilidade, incapaz de
fornecer soluções em tempo razoável, previsíveis e a custos
acessíveis para todos”.

4. CONVENÇÃO DE HAIA SOBRE O ACESSO INTERNACIONAL À JUSTIÇA

A procura por remediar os obstáculos presentes nos processos de


conexão internacional que se propagou no contexto de mundialização, em 1980
aconteceu a Conferência de Haia sobre o Direito Internacional Privado que
produziu a Convenção sobre o Acesso Internacional à Justiça, mas entrou em
vigor internacionalmente somente em 1988.
Tendo em vista a inexistência de norma que garante o acesso á justiça
internacional, a convenção de Haia alcança os pontos omissos concernentes aos
imigrantes, como assim dispõe o artigo primeiro “os nacionais e os habitualmente
residentes em qualquer Estado Contratante terão o direito de receber assistência
judiciária para procedimentos judiciais referentes a matéria civil e comercial em
outro Estado Contratante, nas mesmas condições que receberiam caso fossem
1609

nacionais ou residentes habituais daquele Estado” (Conferência de Haia sobre o


DIPr, 1980).
O objetivo real é a prévia garantia de assistência jurídica aos nacionais
como também aos residentes do país, estabelecendo assim uma espécie de
expansão das leis internas de cada país. Foi também preceituada a designação
de uma autoridade central na qual o Estado nomeará, com a finalidade de
receber e executar as solicitações de assistência judiciária, com o intuito de
reduzir a morosidade do processo. (Conferência de Haia sobre o DIPr, 1980).
POZZATTI JUNIOR(2015,p.257) disserta que:

Para enfrentar o excesso de burocracia que cerca o processo


transfronteiriço, o artigo 10 dispensa de legalização ou qualquer
outra formalidade análoga todos os documentos enviados
conforme a Convenção, da mesma forma que “nenhuma
cobrança será efetuada pela transmissão, recepção ou decisão
a respeito das solicitações de assistência judiciária”. Uma das
mais festejadas vantagens da adoção da convenção é dar
isenção de caução aos não residentes no foro, quando forem
residentes de um Estado contratante e estiverem litigando em
outro Estado signatário. No caso do judiciário brasileiro, por
exemplo, será dada isenção de caução a todos os não
domiciliados no Brasil, mesmo aos brasileiros vivendo no
exterior. O Brasil já reconhece essa isenção para os residentes
de países membros do MERCOSUL e em outros acordos
bilaterais. Desta forma, a isenção da caução do art. 14202 da
Convenção passa a ser uma norma especial, aplicável aos
países parte da convenção, excepcionando a regra geral do art.
835 do Código de Processo Civil, aplicável aos Estados não
membros.

Verifica-se, portanto, que a convenção de Haia esclarece a obscuridade


jurídica dos processos cujo há necessidade de cooperação internacional, com a
elaboração de alguns preceitos á garantirem o mínimo do direito de acesso á
justiça para os nacionais e estrangeiros, porém há de se notar que ainda existem
muitos entraves processuais que abrange todo o judiciário e dificultam a tutela
jurisdicional almejada.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível observar a preocupação de Mauro Cappelletti juntamente


com Bryant Garth no denominado “Projeto Florença” quanto ao efetivo acesso à
justiça. Preocupação trazida por nossa Constituição Federal de 1988.
Não obstante os estudos realizados por tais autores, restou evidenciado
que o direito enquanto ciência, é um instrumento de reflexo do mundo, no qual é
necessário acompanhar a evolução social e transformar-se constantemente em
busca de novos modelos para se aproximar do ideal de justiça. Diante de uma
sociedade complexa com fortes vínculos supranacionais, percebe-se a ausência
de diplomas que ampliem as possibilidades de conexões satisfatória fora das
fronteiras, prejudicando assim o efetivo acesso à justiça.
Assim a efetiva necessidade de criação de meios para atingir o efetivo
acesso à justiça, e de fato tais meios foram criados pela sistemática processual,
como a carta rogatória, a homologação de sentença estrangeira e ainda o auxilio
direto.
1610

Todavia, verificou-se que os custos de um processo judicial são


maximizados para as demandas que exijam de uma comunicação com sistema
judiciários externos, o que dificulta o acesso à justiça daqueles menos
abastados. Ora, é simples a conclusão aqui trazida, àquelas partes com mais
recursos podem buscar serviços mais especializados, inclusive contratando
escritórios em várias jurisdições, o que por via de consequência lhe permite
elaborar e executar estratégias de litígio internacional não disponíveis para
aqueles que não possui condições para custear tais serviços. Mas não é só,
verificou-se ainda como entrave ao acesso efetivo à justiça, a burocracia trazida
pelos procedimentos de cooperação jurídica internacional, que esbarra inclusive
no próprio princípio constitucional da razoável duração do processo, isto porque,
a morosidade das comunicações entre estas jurisdições de países diferentes
causa enorme gravame àquelas partes mais fracas e menos abastadas.
Assim, constata-se que existe um dever do Estado disciplinar sobre
normas de cooperação internacional que visem maneiras mais céleres e
acessíveis, na tentativa de impedir estes vários obstáculos que delongam a tutela
jurisdicional.

REFERÊNCIAS

ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização. A nova


revolução do Direito. Lisboa: Piaget, 2005.

ARAÚJO, Nádia de. Contratos internacionais e consumidores nas Américas e


no Mercosul: análise da proposta Brasileira para uma convenção
interamericana na Cidip-VII. Revista Brasileira de Direito Internacional.
Curitiba, vol. 2, n. 2, jul.-dez. 2005.

ASPERTI, Marília Cecilia de Araujo. Acesso à Justiça e Técnicas de


Julgamento de Casos Repetitivos

BAUMAN,Zygmunt. Globalização consequências humanas (tradução: Marcus


Penchel). Rio de Janeiro: 1999.
Conferência de Haia sobre o DIPr. Convenção sobre o Acesso Internacional à
Justiça 1980.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São


Paulo: Malheiros, 2005.

FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de


Janeiro: Editora Forense, 2019.

HONEETH, Axel. Luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos conflitos


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JUNIOR, Ademar Pozzatti. Cooperação Internacional como acesso à justiça


nas relações internacionais: os desafios do direito brasileiro para a
implementação de uma cultura cosmopolitana. Disponível em:
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1611

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2015.
1612

PROGRAMAS DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NO BRASIL.


ALTERNATIVE DISPUTE RESOLUTION PROGRAMS IN BRAZIL.

Patrícia Pacheco Rodrigues


Orientador(a): Samantha Ribeiro Meyer- Pflug Marques

Resumo: Neste analisamos os programas implementados pelo Poder Judiciário,


a Defensoria Pública e o Ministério Público dos Estados brasileiros, conforme o
“Relatório de estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil”,
promovido pelo Ministério da Justiça (atual Ministério da Justiça e Segurança
Pública). Destacam-se as práticas que buscam a mediação de conflitos
direcionadas a efetiva pacificação social e reposição processual das vítimas de
violência. O que pode ser replicado em tais práticas, e ser base no planejamento
de políticas de aprimoramento de práticas consensuais de resolução de conflitos.
Para este propósito será utilizado o método dedutivo, por pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Razoável duração do processo. Poder Judiciário. Mediação de
conflitos.

Abstract: In this we analyzes the programs implemented by the Judiciary, the


Public Defender's, and the Public Prosecutor's in Brazil, according to the
“Relatório de estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil”,
promoted by the Ministry of Justice. They stand out as practices that seek the
mediation of conflicts directed to an effective social pacification and the
procedural reposition of victims of violence. What will can be replicated as a
practice, and to be base in the planning of policies to improve consensual conflict
resolution practices. For this purpose, the deductive approach will be used in the
bibliographic research.
Keywords: Reasonable duration of proceedings. Judiciary. Conflict Mediation.

INTRODUÇÃO

No presente tem-se por propósito analisar a eficiência de modelos


alternativos à justiça tradicional, se responderiam às expectativas das vítimas de
violência, e se explicitaria uma nova ótica para a temática, permitindo às partes
sentirem-se à vontade para falarem e serem ouvidas, com a expansão da técnica
da escuta ativa na mediação de conflitos, já que a forma burocratizada que se
dá a atual sistemática de Justiça, é um dos fatores que levam as vítimas a
permanecerem nas relações violentas, sendo que a intermediação de um
conciliador/mediador, que não emita juízo de valor sobre as partes, nem as
julguem sobre os atos cometidos, facilitaria o diálogo e a satisfação mútuos com
respeito e consideração.
Em 2000, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 1325
sobre mulheres, paz e segurança, que exige a participação das mulheres na
construção da paz, a proteção das violações dos direitos humanos, e a promoção
do acesso à justiça e aos serviços para enfrentar a discriminação. Assim como
há o programa das Nações Unidas para o desenvolvimento em criar métodos
alternativos para a resolução de conflitos (Resolução nº 2002/12 da ONU) que
recomenda o uso de programas em Justiça Restaurativa para a resolução de
conflitos em matéria criminal. “De um modo ou de outro, a ética moderna baseia-
1613

se no reconhecimento da dignidade de cada ser humano e no respeito pelo outro.


A lei moral é baseada na dignidade.” (MATE, 2008, p.31, tradução nossa)1
A Justiça Restaurativa, para a referida resolução da ONU, significa:
qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer
outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam
ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a
ajuda de um facilitador. Ressalta ainda, que os processos restaurativos podem
incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária
(conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). Subsidiando a questão
histórica sobre a evolução do papel da vítima, que tem seu ponto central em
considerar atualmente que:

a vítima "veio para ficar" em nossos sistemas processuais ou, dizendo


de outro modo, passou de "ator de elenco a um dos protagonistas" da
trama processual. [...] Não é possível hoje pensar em um sistema
processual penal sem considerar que uma variável relevante de seu
desenho inclui a intervenção e os direitos das vítimas em seu
desenvolvimento. É suficiente observar para isso o desenvolvimento
que os instrumentos internacionais estão tendo nesta área, mas
especialmente o impacto que a questão teve ao nível das legislações
locais. (DUCE, 2014, p. 741, tradução nossa) 2

Em 2000, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,


lançou o Plano Nacional de Segurança Pública, que vigorou por apenas dois
anos. Já em 2007 foi criado o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança
Pública e Cidadania) na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ano em
que também foi encaminhado ao Congresso Nacional o projeto de lei para
criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).
Recentemente foi instituído o SUSP (Lei nº 13.675/2018) que cria a
Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) que tem
como um de seus objetivos “estimular e apoiar a realização de ações de
prevenção à violência e à criminalidade, com prioridade para aquelas
relacionadas à letalidade da população jovem negra, das mulheres e de outros
grupos vulneráveis” (artigo 6º, inciso IV, da lei nº 13.675/2018), mas que não
aborda formas alternativas de justiça.
Diante desse cenário, de resgate a vítima e destaque aos grupos de
vulneráveis o ordenamento jurídico deve estar aberto a críticas, evitando-se
cargas de subjetivismos. Sistemas Judiciários não constituem estruturas
inabaláveis, devem estar em consonância com o progresso, e o avanço que vem
com a mudança, e indo além da jurisdição é que se poderá promover essa
evolução do Direito.
A concepção de Direito puramente dentro do conteúdo dogmático, afasta
a preocupação com a sociedade para a qual o Direito foi posto. O ideal, numa

1 De una manera u otra las éticas modernas se basan en el reconocimiento de la dignidad de


todo ser humano y en el respeto del otro. La ley moral se basa pues en la dignidad.
2 la víctima ha “llegado para quedarse” en nuestros sistemas procesales o, dicho de otra manera,

ha pasado de ser “un actor de reparto a uno de los protagonistas” de la trama procesal. [...] No
es posible me parece hoy día pensar un sistema procesal penal sin considerar que una variable
relevante de su diseño incluya la intervención y derechos de las víctimas en el desarrollo del
mismo. Basta observar para ello el desarrollo que están teniendo instrumentos internacionales
en esta área, pero especialmente el impacto que el tema ha tenido a nivel de legislaciones
locales.
1614

visão do Direito como ciência jurídica e social, importante, portanto, para ele os
fenômenos sociais que devem ser levados em conta, assim como, pelos seus
operadores. O Direito é atualizado tanto por aqueles que tipicamente o criam,
Legislativo, quanto por aqueles que tipicamente o aplicam, Judiciário. Esta
simbiose que faz com que as mudanças do contexto social, na qual está inserido,
promova em si mudanças em consonância com as necessidades sociais, que
atualmente exige uma Justiça mais célere, eficiente, e que efetivamente
promova a pacificação social, nesse sentido que desenvolvemos o próximo
capítulo.

ANÁLISE DE PROGRAMAS JUDICIAIS DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NO


BRASIL.

A mediação vista como uma complementação do sistema judiciário, e não


apenas para prevenir conflitos, mas para resolver, regular as partes e
transformar o convívio social. Assim como para adequar as instituições, que
podem se desajustar face as mudanças sociais e diante da globalização, em um
conceito antropológico. Atualizar o Direito Processual Penal ao novo contexto
intercultural, em relação as suas várias funções que quando clássicas:

circunscrevem o papel do processo penal para o desempenho do


"direito de punir" do Estado, pode-se dizer que, no processo penal
contemporâneo, não pode levar de volta para a unidade a
multiplicidade de funções assumidas pelo processo penal, portanto,
com tal função clássica de desempenho apenas do “direito de punir”
do Estado, em sistemas democráticos contemporâneos têm aparecido
e outros estão justapostos, tais como a proteção do direito à liberdade,
o direito à proteção da vítima e o direito de se reintegrar a pessoa sob
investigação. (SENDRA, 2009, p. 50, tradução nossa) 3

O relatório de estudo qualitativo sobre as boas práticas em mediação no


Brasil, promovido pelo Ministério da Justiça, com a Secretaria de Reforma do
Judiciário, em 2014, objetivou o estudo de boas práticas de mediação, existentes
no cenário nacional, implementadas pelo Poder Judiciário, a Defensoria Pública
e o Ministério Público, assim como por instituições de mediação ligadas ao Poder
Judiciário. Foram descritas e submetidas à análise crítica visando serem
replicadas, pretendendo oferecer subsídios para o planejamento de políticas de
aprimoramento de práticas consensuais de resolução de conflitos. (GRINOVER
et al., 2014, p.06)
Na região Sudeste, o trabalho identificou 78 casos na região Sudeste, e
foi realizada atualização do banco de dados para considerar as edições de 2012
e 2013 do Prêmio Innovare (tem como objetivo identificar, divulgar e difundir
práticas que contribuam para o aprimoramento da Justiça no Brasil),
encontradas 06 práticas deferidas e 01 prática com menção honrosa em 2012 e
na edição 2013 do mesmo prêmio foram encontradas 04 práticas deferidas.

3 circunscriben la función del proceso penal a la actuación del “ius puniendi" del Estado, cabe
afirmar que, en el proceso penal contemporáneo, no se puede reconducir a la unidad la
multiplicidad de funciones que asume el proceso penal, pues, junto a dicha clásica función de
actuación del «derecho de penar>> del Estado, en los sistemas democráticos contemporáneos,
han aparecido y se yuxtaponen otras, como lo son la protección del derecho a la libertad, la del
derecho a la tutela de la víctima y la de reinserción del propio investigado.
1615

Os critérios de escolha adotados, em geral, levaram em consideração a


representatividade da prática, envolvimento dos atores do sistema de justiça,
institucionalização, consolidação e existência de informações para a pesquisa
de campo e coleta de dados, o que levou a escolha de um caso por região do
Brasil, que serão analisados a seguir. (GRINOVER et al., 2014, p.24)
Após o mapeamento de experiências dos atores de Justiça, na região
Sudeste, foi escolhido o primeiro caso, desenvolvido no Estado de São Paulo e
relacionado à mediação no Judiciário, trata-se do Centro Judiciário de Solução
de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) da comarca de Jundiaí. A escolha se justifica
por ser representativo de um movimento de criação dessas unidades judiciárias
pela Resolução nº 125/2010, do CNJ, que “objetiva consolidar política judiciária
nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder
Judiciário, com incentivo e aperfeiçoamento de mecanismos consensuais de
solução de conflito, em especial a mediação e a conciliação.” (GRINOVER et al.,
2014, p.24-25) A competência do CEJUSC Jundiaí para a realização de
mediação e conciliação processual e pré-processual envolve conflitos cíveis,
fazendários, previdenciários e de família. “De todo modo, sua agenda é
composta majoritariamente por conflitos cíveis e de família.” (GRINOVER et al.,
2014, p.34)
“O objetivo do programa é alcançar a pacificação social, a ampliação do
acesso à justiça e a efetividade das atividades jurisdicionais por meio da tentativa
de estabelecer diálogo entre sujeitos conflitantes.” (GRINOVER et al., 2014,
p.35) por intermédio de realização das sessões e audiências de conciliação e
de mediação a cargo de conciliadores e mediadores, bem como o atendimento
e a orientação aos cidadãos que possuem dúvidas e questões jurídicas,
conforme artigo 8º da Resolução CNJ n. 125/2010 do Conselho Nacional de
Justiça. São fiscalizados e instalados pelos Núcleos Permanentes de Métodos
Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMECs) dos tribunais, conforme
artigo 7º da Resolução CNJ n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça. Como
resultado da prática a satisfação do usuário com a mediação, verificou-se que
“67% dos usuários entenderam que foi excelente a satisfação com a mediação,
enquanto 29% entenderam que foi satisfatória, sendo que 1% entendeu que a
satisfação com a mediação foi ruim e 3% entenderam que a questão não se
aplicava aos seus casos.” (GRINOVER et al., 2014, p.35).
O segundo estudo de caso, da região Nordeste, foram os Núcleos de
Mediação Comunitária de Fortaleza, a iniciativa com maior consolidação dentre
as encontradas, com informações disponíveis e estar em funcionamento desde
1999, desde sua criação com vínculos com o Ministério Público e a Defensoria
Pública do Estado do Ceará (GRINOVER et al., 2014, p.60). Os objetivos dos
Núcleos de Mediação Comunitária, de acordo com a Resolução nº. 1/2007,
focam em três pilares: educação em direitos, trabalho em rede e promoção da
mediação comunitária enquanto forma de sensibilizar a população sobre a
relevância da solução pacífica dos conflitos, contribuindo para a redução da
violência e melhoria da qualidade de vida da comunidade. (GRINOVER et al.,
2014, p.70)
Recepcionam conflitos de diversas naturezas que envolvam indivíduos da
comunidade para mediação: ameaça, crime contra a honra, conflito de dívida,
familiar, de vizinho, reconhecimento de paternidade, de apropriação, de imóvel,
trabalhista, escolar, societário, do consumidor e pensão alimentícia. Há,
também, procedimentos informais de encaminhamento de casos por Delegacias,
1616

Juizados especiais cíveis, Conselhos tutelares, Ministério Público e Centros de


referência da assistência social. (GRINOVER et al., 2014, p.70-72)
Como metodologia é a entrega da carta-convite feita por um motoqueiro
contratado pelo núcleo (e não pelo correio), o que garante a sua entrega de
forma célere e em mãos, e a sessão de mediação pode ser realizada em até sete
dias após o primeiro atendimento, em que um mediador, que conduz o
procedimento, e um co-mediador, que relata o que ocorreu em formulário durante
as pré-mediações, ao final, lavra-se o termo de mediação. (GRINOVER et al.,
2014, p.73-74)
Os relatórios estatísticos anuais de 2010, 2011 e 2013 e o relatório
semestral de 2014 também trazem o percentual de êxito nas mediações
realizadas em cada núcleo. A média de êxito no ano de 2010 foi de 83,05%. No
ano de 2011, foi de 87,51%. Já no relatório do ano de 2012, não foi apresentada
a média de êxito. No ano de 2013, a média foi de 83,59%, enquanto que no
primeiro semestre de 2014, a média de êxito foi de 85,37%. O que se percebe
desses números é que a média de mediações exitosas vem se mantendo alta
nos últimos anos. (GRINOVER et al., 2014, p.83)
O terceiro estudo de caso, na região Sul, o Programa Municipal de
Pacificação Restaurativa de Caxias do Sul - Caxias da Paz, onde há altos índices
de violência e contando com a participação ativa de representantes da sociedade
civil, da rede socioeducativa (Poder Executivo) e do sistema de Justiça
(GRINOVER et al., 2014, p.88), teve início em junho de 2010. O objetivo do
Programa de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul consiste em:

contribuir com as demais ações da política pública destinada à


pacificação social por meio da implementação da metodologia
restaurativa, consistente em processo de diálogo destinado a criar um
espaço seguro para se discutir problemas sensíveis aos envolvidos e
buscar uma melhora em seu relacionamento. Essa metodologia busca
restabelecer relações sociais e reparar danos sofridos, colaborando
com a redução da cultura punitiva e a construção de respostas mais
efetivas aos conflitos. [...] O Programa abrange conflitos de naturezas
diversas com conteúdo relacional continuativo associado a uma
conflitiva crônica reiterada, submetidos ou não à apreciação judicial,
com enfoque principal na assistência social, na educação, na
segurança e na saúde. (GRINOVER et al., 2014, p.96-97)

O Programa além de ter as três Centrais (Judicial, Comunitária e da


Infância e da Juventude), ainda atua em diversas ramificações na cidade de
Caxias do Sul, “estando presente também nas escolas, igrejas, penitenciárias,
casas de medidas socioeducativas para jovens infratores, entre outros locais,
formando-se assim uma verdadeira rede de atuação enraizada.” (GRINOVER et
al., 2014, p.101) Das diferentes metodologias para realizar práticas
restaurativas, a utilizada no Programa de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul
consiste essencialmente na realização de Círculos de construção de paz. “Em
breve síntese, essa metodologia consiste em sentar pessoas em uma roda para
que dialoguem e busquem alcançar determinadas finalidades
preestabelecidas[...]”(GRINOVER et al., 2014, p.104) O principal fator de
sucesso apontado foi:

o envolvimento de diversos órgãos do Poder Executivo e do Poder


Judiciário no desenho, implementação, financiamento e
monitoramento da prática. Outro elemento apontado consiste na
1617

consolidação de programa sólido que conta com o apoio de órgãos da


administração pública e de organizações da sociedade civil,
especialmente após sua institucionalização mediante a edição da Lei
Municipal nº 7.754/2014. (GRINOVER et al., 2014, p.109)

Após a análise dos dados, conclui-se que o programa obteve resultados


significativos, “tanto na dimensão quantitativa, tendo em vista que atendeu 2.162
pessoas no período estudado, quanto no aspecto qualitativo, pois obteve
resultados concretos e simbólicos de transformação do paradigma da
conflitualidade e da violência.” (GRINOVER et al., 2014, p.114) O programa
deverá expandir a disseminação das práticas restaurativas, especialmente “junto
às escolas e universidades da cidade. Acredita-se que Justiça Restaurativa deva
ser incluída na grade extracurricular universitária e que todas as escolas possam
ter centros de prática restaurativa.” (GRINOVER et al., 2014, p.117-118)
O quarto estudo de caso, na região Centro-Oeste, o Núcleo Permanente
de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Mato Grosso do Sul
(NUPEMEC - MS). O Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução
de Conflitos (NUPEMEC) do Mato Grosso do Sul foi criado por meio do
Provimento nº 230, de 30 de março de 2011 e teve como objetivo a
regulamentação da Resolução nº 125, de novembro de 2010 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). Possui parceria do Poder Judiciário com a Defensoria
Pública Estadual e com as universidades Anhanguera e Estácio de Sá 4.
(GRINOVER et al., 2014, p.119) O NUPEMEC – MS difere do CEJUSC Jundiaí
porque:

sua coordenação é atribuída a órgão colegiado composto por membros


do TJMS. A centralização do programa no Tribunal tem potencializado
a capacidade de divulgação e conscientização dos membros da
magistratura a respeito de práticas autocompositivas de solução de
conflitos e viabilizado uma expansão planejada do programa dentro do
Estado. [...] foi possível denotar que a centralização da implantação e
expansão do NUPEMEC no Tribunal de Justiça e não em magistrado
de primeira instância colaborou para uma maior e mais rápida
conscientização dos magistrados Sul Mato Grossenses a respeito da
mediação, está viabilizando uma expansão uniforme do programa e
torna mais fácil a captação de recursos. (GRINOVER et al., 2014,
p.119-121)

Os mecanismos de solução de conflito utilizados no NUPEMEC são a


mediação e a conciliação, e os conflitos a ele submetidos envolvem questões
familiares ou cíveis, mas essencialmente com mediação de conflitos de família.
(GRINOVER et al., 2014, p.122) Das sessões que resultaram em acordo, a
avaliação sobre a satisfação do usuário:

com o resultado da sessão e sobre a justiça de tal resultado foi positiva,


destacando-se, contudo, que alguns respondentes não acharam o
resultado da mediação justo pelo fato de não terem chegado a um
acordo. Todos afirmam que procurariam novamente o programa e o
indicariam a conhecidos. (GRINOVER et al., 2014, p.135)

4
A parceria do programa com as universidades Anhanguera e Estácio de Sá consiste no fornecimento por
elas de espaço físico e recursos materiais, além de ser fomentada a participação de seus professores e alunos
no programa como mediadores voluntários. (GRINOVER et al., 2014, p.121)
1618

O quinto, e último, estudo de caso, na região Norte, o trabalho


desenvolvido pela Defensoria Pública no Município de Tucuruí, em interlocução
com organizações da sociedade civil, “com uso de técnicas de mediação na
busca de soluções coletivas para problemas que afetam a população
hipossuficiente do município, tais como a proteção ao deficiente físico, idoso,
criança e adolescente e mulheres vítimas de violência doméstica.” (GRINOVER
et al., 2014, p.154)
A Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, organiza a
Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve
normas gerais para sua organização nos Estados. Em seu art. 4º, inc. II,
estabelece como função institucional da Defensoria Pública “promover,
prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre
as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação,
arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos.” A
metodologia do atendimento pela Defensoria Pública consiste em:

Após o atendimento, a Defensoria Pública encaminha um motorista


para levar a intimação à parte contrária, contendo o dia e hora da
sessão de mediação. Caso a parte não compareça ou se as partes não
chegarem a um acordo, o defensor público irá representar aquela que
buscou a instituição e ingressará com as medidas judiciais
competentes. Já nas mediações interinstitucionais, a Defensoria
Pública toma conhecimento das problemáticas envolvendo direitos
coletivos de grupos vulneráveis por meio de seus contatos com grupos
e organizações da sociedade civil, que remetem suas demandas para
que sejam realizadas audiências públicas nas quais defensores
públicos intermediam o diálogo junto aos entes públicos e privados
envolvidos. (GRINOVER et al., 2014, p.158)

Na mediação interinstitucional merecem destaque as questões


relacionadas à violência doméstica que teve ensejo após a divulgação do Mapa
da Violência de 2012 (WAISELFISZ, 2011, p.37), em que o Município de Tucuruí
ocupou a 10ª posição entre os municípios com maiores índices de homicídios
contra as mulheres:

A Defensoria resolveu abordar esse problema de forma mais ampla,


desenvolvendo o projeto da “Voz Ativa”, em que são realizadas
palestras, programas de rádio e outras iniciativas que visam à
conscientização de comunidades sobre a problemática da violência
doméstica. Como iniciativa inserida no projeto da Voz Ativa, a
Defensoria se colocou como órgão de intermediação das tratativas
entre a Eletronorte e o Conselho Municipal da Mulher para a cessão de
um prédio para abrigar a Casa de Proteção da Mulher, tendo realizado
audiência pública com participação de organizações de defesa dos
direitos da mulher e indivíduos da comunidade. (GRINOVER et al.,
2014, p.160)

Como resultados do projeto, de modo geral, constatou-se que “a maior


parte dos casos resultou em acordo, sendo que a maioria dos respondentes
declarou que tiveram a oportunidade de se expressar e que as regras foram bem
esclarecidas no procedimento.” O Defensor Público coordenador do programa
ressaltou:
1619

[...]não tenho dúvida que a Defensoria Pública ela vai ter um papel
muito importante até mesmo para desafogar a situação do Judiciário,
que hoje em dia a gente vê os processos se arrastando durante 10 ,15
anos, as vezes por falta de uma conciliação efetiva. E se a gente
realmente desenvolver essa conciliação, essa mediação, a gente vai
fazer com que somente algumas demandas mesmo vão para o
Judiciário, mas a maioria das questões vão ser resolvidas aqui.
(GRINOVER et al., 2014, p.165)

No mesmo sentido das práticas aqui apresentadas está o prêmio do Poder


Judiciário, Conciliar é Legal, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
em 2010, vem como parte da Semana Nacional de Conciliação, alinhado à
Resolução CNJ n. 125/2010, que busca: identificar, premiar, disseminar e
estimular a realização de ações de modernização no âmbito do Poder Judiciário
que estejam contribuindo para a aproximação das partes, a efetiva pacificação
e, consequentemente, o aprimoramento da Justiça. Foram constituídos como
temas o Respeito à mulher, desconstruindo a violência doméstica e construindo
diálogos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos estudos apresentados se faz necessário o incentivo dos


programas de mediação e conciliação como uma política pública, já que esses
projetos vêm sendo feitos, em sua grande maioria, por núcleos do Judiciário e
do Ministério Público, entendidos como uma fase do processo, portanto inserido
no conflito já judicializado, ou por ONGs autonomamente, sem diretrizes
uniformizadas. Há necessidade de expansão da realização de práticas pré-
judicialmente voltadas para a mediação de conflitos:

Com efeito, um alto grau de institucionalização implica regras


consolidadas, que garantam o perfil e a continuidade no tempo de uma
prática ou de procedimentos. Nesse sentido, uma experiência de
mediação altamente consolidada seria aquela com condições de
promover e consolidar métodos, de se manter no tempo,
independentemente das pessoas que ocupem circunstancialmente
posições de liderança. (GRINOVER et al., 2014, p.166)

Analisar com mais profundidade o conflito e perguntar as pessoas quais


problemas possuem, e isso já no primeiro contato com as partes. Com um
procedimento estruturado diante da solicitação concreta pela parte, os
mediadores além de apresentarem o projeto ao qual se vinculam, o seu
funcionamento, assim como também nesse momento fazem a difusão do próprio
serviço, com a gestão da informação e orientação da parte, no sentido de quais
as possibilidades jurídicas a seguir diante de seu caso concreto. O
direcionamento eficiente para os demais serviços públicos, com o entendimento
do problema é possível ao mediador gestionar qual o encaminhamento caso a
caso.
Unificar as informações para que possa ter uma estatística confiável, que
promova a ampliação dos serviços de mediação, assim como também melhor
estruturar o que está em desenvolvimento em cada Estado brasileiro, e com isso
possibilitar, no futuro, um serviço padronizado, unificado e em rede, que
assegure o efetivo cuidado dos conflitos que lhes são postos, e a valorização
dos profissionais de mediação, com o reconhecimento do trabalho desenvolvido,
1620

e a atuação da polícia de confronto apenas para os casos que exijam ações


enérgicas, e a via judicial como última ferramenta para a solução de conflitos.

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