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CA AO ILUMINISMO MODERNO
Introdução
Hegel não dedicou uma obra sistemática específica sobre a Educação. Entretanto, seu
vínculo profissional com a temática foi constante. Aos 23 anos, tornou-se preceptor em Berna,
atividade que exerceu também em Frankfurt, até tornar-se Professor da Universidade de Jena
em 1801. Obrigado a deixar Jena em virtude da invasão napoleônica, ele acaba assumindo o
cargo de professor e diretor do Ginásio de Nuremberg, graças a seu amigo e protetor Imma-
nuel Niethammer, então Conselheiro superior das escolas e dos cultos para a confissão protes-
tante. Aliás, devido a essa circunstância, Hegel assume a incumbência de implantar as refor-
mas de ensino planejadas por ele e outros na Normativa para a organização dos estabeleci-
mentos de ensino público do Reino (FERNANDES, 1994, p. 7). Durante esse período (1808 a
1816), exerce também a função de Conselheiro escolar, o que o obriga a entrar em contato
com as questões político-pedagógicas inerentes à organização das instituições de ensino. De-
pois destes 8 anos fora da universidade e vinculado ao ensino ginasial, Hegel finalmente rece-
be uma cátedra em Heidelberg (1816) e depois em Berlim (1818, substituindo Fichte). Em
1830, um ano antes de sua morte, torna-se reitor desta universidade, um símbolo da reforma
humanista proposta por Wilhelm von Humboldt (LUZURIAGA, 1990, p. 184).
Em função de sua atividade pedagógica, especialmente no período de 1808 a 1816,
Hegel elaborou alguns textos tratando de questões educacionais na forma de discursos, cartas
e relatórios, além de estudos apresentando didaticamente partes de seu sistema (reunidos na
edição conhecida como Propedêutica filosófica). Hegel já havia escrito a Fenomenologia do
espírito e nesse período publicou os três volumes da Ciência da lógica (1812, 1813 e 1816).
Seguindo aquilo que estabelecia a Normativa, que na classe superior do Ginásio os conteúdos
já tratados fossem agora reunidos numa exposição unitária, Hegel empenhou-se também em
elaborar aquilo que viria a ser sua Enciclopédia das ciências filosóficas, publicada pela pri-
meira vez em 1817 (NOCOLIN; PÖGGELER, 1969, p. 21). Em outras palavras, os “escritos
pedagógicos” de Hegel foram elaborados não só no momento em que ele se viu mergulhado
no cotidiano escolar, mas também em meio à sua elaboração teórica mais madura. Isso sugere
que eles são, em algum sentido, o resultado de um diálogo entre a experiência prática de um
2
Por não ter publicado uma obra específica sobre o tema, Hegel não pode ser classifi-
cado com um Filósofo da educação. Entretanto, é possível afirmar que seu próprio sistema
filosófico contém de forma imanente uma teoria pedagógica (MOOG apud GINZO, 1991, p.
14). Esse ponto de vista está diretamente ligado ao lugar decisivo que a cultura (espírito –
Geist) ocupa no sistema hegeliano. Embora Hegel também trate da natureza (na segunda parte
de sua Enciclopédia das ciências filosóficas), ela ocupa muito menos espaço nos seus escritos
do que a cultura humana em todas as suas dimensões. E a cultura é, em sentido hegeliano, o
resultado do processo formativo pelo qual passou a humanidade. Não se pode entendê-la sem
compreender a “lógica” de sua produção. A dialética hegeliana é essa lógica, desdobrada em
cada aspecto da cultura. Nesse sentido, ela também pode ser compreendida enquanto a lógica
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da formação da cultura humana, ou ainda, enquanto a lógica do processo educativo pelo qual
passou a humanidade.
É bem verdade que, pelo menos inicialmente, a natureza foi um tema muito importante
para Hegel, assim como para seu amigo Schelling. Segundo Hösle, a posição sobre o tema
constituiu a “differentia specifica entre, de um lado, Kant e Fichte, e, de outro, Schelling e
Hegel” (2007, p. 312). Mas a concepção hegeliana de natureza é justamente o que a torna me-
nos importante do que o espírito. Para ele, a natureza é “a ideia na forma do ser-outro”
(1989b, p. 11, § 247). E ainda, “a natureza deve considerar-se com um sistema de graus, dos
quais um brota necessariamente do outro e é a verdade próxima daquele de que resulta”
(1989b, p. 13, §249). Para Hegel, a natureza é a exterioridade da ideia. Ou seja, a liberdade e a
autodeterminação próprias do pensamento nela são substituídas pela mescla entre a necessi-
dade externa e a contingência. Mas a ideia está no interior da natureza. Esse elemento, que
tem a natureza como sua “casca”, vai-se desenvolvendo (não no sentido do evolucionismo,
mas apenas idealmente) até atingir sua exposição completa. Nesse momento, a ideia abandona
sua exterioridade e se revela nas formas cada vez mais autoconscientes do espírito. Assim, a
natureza é um nível em que a ideia não está presente em sua plenitude. Mais do que isso, a
própria natureza só pode ser compreendida adequadamente no nível do espírito, de tal forma
que este contém sua verdade oculta, íntima. Em razão disso, Hegel não terá dúvidas em afir-
mar na Estética: “Tudo quanto provém do espírito é superior ao que existe na natureza”
(1999, p. 27).
Portanto, os processos dialéticos de desenvolvimento cultural são os grandes temas da
Filosofia hegeliana. Esse itinerário começa num nível mais elementar, em que a subjetividade
apenas é capaz de distinguir o ser humano dos objetos naturais, passa pelas formas histórica e
socialmente objetivas de cultura e chega até as expressões mais idealizadas da arte, da religião
e da filosofia. Todo esse processo pode ser compreendido enquanto educação. É a humanida-
de que se desenvolve para formar-se, podendo então compreender não só o mundo, mas tam-
bém a si mesma.
Em algumas obras, essa compreensão do sistema hegeliano enquanto uma reflexão so-
bre a dinâmica formativa da humanidade é ainda mais fácil. A Fenomenologia do espírito de
1807 talvez seja o caso mais ilustrativo. De certo modo, o próprio papel sistemático dessa
obra é pedagógico, já que ela foi concebida como uma introdução ao sistema ou, mais exata-
mente, à Ciência da lógica. Seu papel seria não o de demonstrar determinadas teses, mas o de
fornecer os pressupostos necessários à própria compreensão da exposição dialética das cate-
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gorias fundamentais do sistema hegeliano.1 Mas, como a própria obra pressupõe já a validade
daquelas categorias, ou seja, articula-se como um saber embasado na ciência que quer intro-
duzir, Hegel a chamou de “ciência da experiência da consciência” (1992b, p. 72, § 88). Seu
papel seria o de expor a experiência pela qual passa a consciência ao tentar compreender o
mundo e a si mesma, partindo do ponto de vista mais ingênuo até elevar-se, através de seus
próprios erros e acertos, à perspectiva da ciência, do saber verdadeiro. Aliás, isso aproxima a
obra dos romances de formação, em que há a descrição de um processo de aprendizado atra-
vés do qual um personagem apreende a realidade externa ao mesmo tempo em que desenvol-
ve a si mesmo. No caso da Fenomenologia, esse personagem é a própria consciência humana
em geral, concebida obviamente sob o ponto de vista da perspectiva hegeliana em relação à
evolução do pensamento filosófico ocidental.2
Na Fenomenologia, Hegel toma como ponto de partida a certeza sensível, um modo de
compreender o mundo em que a consciência se vê completamente à parte dos objetos e co-
nhecendo-os na sua singularidade através dos sentidos. As contradições inerentes a essa pers-
pectiva levarão à sua refutação, mas também à elaboração de uma nova figura, a percepção.
Esse processo continuará até que a consciência converta-se em saber absoluto, superando sua
cisão com a objetividade.
Nesse viés, a Fenomenologia do espírito desenvolve o mesmo princípio pedagógico já
presente na dialética socrática. Na medida em que nos diálogos de Sócrates a verdade (mesmo
quando ela é aporética) surge como resultado do embate entre teses, sem o recurso a uma ver-
dade dada externamente, o aprender torna-se equivalente ao desenvolvimento autônomo da-
quele que investiga. Assim, ao escravo do Mênon não é ensinada a geometria. Ele a desenvol-
ve a partir das provocações de Sócrates e da consciência das contradições inerentes aos seus
próprios preconceitos. O processo educativo é autônomo e marcado por um grau cada vez
maior de autoconsciência (GABOARDI, 2010).
Além de o tema da educação estar presente indiretamente nesses aspectos gerais do
sistema hegeliano, pode-se identificar também alguns poucos momentos específicos em que
ele é mais diretamente tematizado. Schmied-Kowarzik (2005) salienta dois momentos: a se-
1
Esses pressupostos estão ligados principalmente à posição hegeliana a respeito da teoria do conhecimento de
matiz kantiana. (Cf. GABOARDI, 2002).
2
Por exemplo, Artur Bispo Santos Neto (2009) faz uma interessante aproximação entre a Fenomenologia do
espírito e o romance Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe.
5
les aptos para tais cargos é responsabilidade dos „institutos de educação pública‟ (ginásios e
universidades)” (SCHMIED-KOWARZIK, 2005, p. 168).
Isso é suficiente para deixar claro que as ideias sobre a educação surgem de modo
muito indireto nos trabalhos sistemáticos de Hegel. O tema nunca é exatamente a temática
central. Ao mesmo tempo, esses trabalhos são uma referência constante nos textos sobre edu-
cação que Hegel redigiu no período de 1808 a 1816, como parte de suas incumbências en-
quanto diretor de Ginásio e Conselheiro escolar. Procurarei mostrar isso a seguir.
De modo geral, nos discursos, cartas e relatórios em que Hegel aborda o tema da
Educação, transparece sua preocupação com o conteúdo clássico, especialmente no que se
refere à formação ginasial.
Aliás, cabe lembrar que na época de Hegel existiam na Alemanha dois centros de
formação: as Escolas elementares (Volksschulen) e os Institutos de ensino (Studien-anstalten).
Aquelas eram responsáveis por uma educação mais geral, acessível a todos, enquanto estes,
mais recentes, estavam voltados a um ensino de qualidade superior. As reformas de
Niethammer, através da Normativa para a organização dos estabelecimentos de ensino
público do Reino, referiam-se exatamente a estes institutos. Nos Institutos de ensino, todas as
crianças eram introduzidas num mesmo curso, chamado de Escola primária (8 a 12 anos). No
passo seguinte (12 a 14 anos), entretanto, já havia um primeiro nível de especialização. A
criança deveria ingressar ou no Proginásio, ou na Escola real. Esta preparava o aluno para
ingressar no Instituto real (14 a 18 anos), no qual receberia uma educação técnico-científica,
enquanto aquele conduziria ao Ginásio (também 14 a 18 anos), onde receberia uma formação
humanística que o levaria ao ensino universitário (GINZO, 1991, p. 22-3).
Pois bem, nas palavras do próprio Hegel, “o espírito e o fim do nosso estabelecimento
[Ginásio de Nuremberg] é a preparação para o estudo erudito, e com efeito, uma preparação
que está edificada na base dos gregos e dos romanos.” (1994c, p. 28, grifos do tradutor). A
literatura greco-romana era a marca tanto do Proginásio quanto do Ginásio. Em carta a
Niethammer de 1812, Hegel chega mesmo a levantar a suspeita de “que talvez o ensino
filosófico dentro dos ginásios possa parecer supérfluo, que o estudo da Antiguidade seja a
introdução à filosofia mais adaptada à juventude ginasial e a verdadeira segundo a sua
substância (1989a, p. 377-8, grifos do tradutor). E, no contexto da carta, a suspeita não parece
simplesmente retórica. Ele acaba não defendendo explicitamente o abandono do ensino de
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filosofia apenas para, como afirma, “não desviar de mim próprio o pão e a água” (1989a, p.
378).
Seu entusiasmo pela formação clássica, especialmente em relação ao ensino das
línguas antigas, leva-o a opor-se até mesmo aos movimentos nacionalistas, que defendiam o
abandono das línguas estrangeiras em prol da língua nacional (HEGEL, 1994c, p. 29-32). Para
ele, as línguas antigas não são um mero instrumento que se pode considerar útil ou não. Elas
formam o entendimento não só pela sua forma, mas por seu próprio conteúdo. A própria
substância da humanidade é enriquecida, em todas as suas dimensões, quando se entrega ao
estudo dos clássicos. A gramática dos gregos e dos romanos aperfeiçoa o intelecto, e suas
obras fornecem o alicerce para as ciências e para a vida ético-política, além de engrandecerem
esteticamente o espírito. Por isso, mesmo considerando desejável que o povo desenvolva sua
própria língua, Hegel julga ser imprescindível o mergulho nos clássicos.
Esse ponto talvez expresse muito bem a posição hegeliana em relação à pedagogia
moderna. Não se pode dizer que ele tenha estudado e aprofundado sua reflexão sobre a
temática. Trabalhos como os de Pestalozzi, Humboldt, Kant, Fichte, Herbart, Jean Paul e
mesmo Niethammer pouco o ocuparam ou não causaram nele grande impressão. Por isso,
“certo é que Hegel pouco se ocupou com a pedagogia recém-nascente como ciência”
(SCHMIED-KOWARZIK, 2005, p. 155). Assim, a sua defesa de um ensino ginasial baseado
na literatura e nas línguas antigas não decorre de uma reflexão sistemática à altura do que era
discutido em sua época. Ele parece prender-se justamente à posição que defendeu na
Fenomenologia do espírito, de uma cultura que foi produzida pelo espírito ao longo da
história e que agora precisa ser apresentada ao indivíduo para que ele possa ter condições de
relacionar-se com a realidade de seu tempo.
Para Hegel, embora os jovens sejam impacientes e tenham o desejo de entrar
imediatamente no mundo, ultrapassando os preparativos impostos pela escola,
o homem apercebeu-se do que é apenas sonho e brilho da vida e do que é a sua ver-
dade; ele experimentou que são os tesouros da sabedoria antiga, cedo implantados
no seu coração, que nos sustentam em toda a mudança de circunstâncias, que nos
fortalecem e suportam; ele experimentou como é grande o valor da cultura em geral,
tão grande que um antigo diria que a diferença entre um homem culto e um inculto é
tão grande como a diferença entre o homem em geral e uma pedra. (HEGEL, 1994a,
p. 22-3).
Esse ponto de vista certamente está vinculado à perspectiva que Hegel desenvolve
sobre o conhecimento na Fenomenologia do espírito, em que busca mostrar que a tentativa de
alcançar a realidade imediatamente é ingênua e mesmo paradoxal, por não poder dar conta de
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sem precisar responder a demandas que não lhe são adequadas. Nas suas palavras, “colocado
assim, lateralmente, tem tanto mais o direito de exigir que na sua existência à parte possa ser
admitido livremente e permaneça sem ser molestado por intromissões estranhas” (1994c,
p.31).
Hegel não perde de vista aqui a noção de totalidade, mas a entende, como é típico de
sua filosofia, como resultado de mediações.
dispensáveis, mas até mesmo a carga horária do Instituto real, excessivamente teórica
segundo sua avaliação, deve ser modificada para abrir espaço para esse contato direto com o
mundo do trabalho e com a profissão.
Por outro lado, no mesmo documento Hegel defende a necessidade de uma formação
geral também para os alunos que frequentam o Instituto real.
Pero, en la mayoría de estos destinos será suficiente, y en muchos casos incluso ven-
tajosos, después de la enseñanza escolar dedicar todavía algunos años a una forma-
ción general y a la fundamentación científica de los conocimientos. Estos conoci-
mientos generales son ciertamente, en conjunto, los mismos para aquellos destinos
particulares. (1991b, p. 170).
Quer dizer, mesmo no caso daqueles que não desejam uma formação universitária
erudita, alguns conhecimentos gerais, de caráter humanístico e vinculados aos fundamentos
das ciências, são imprescindíveis. Um povo, enquanto uma totalidade ética, deve diferenciar-
se nas várias habilidades de seus membros; mas, por outro lado, ele só se mantém coeso se se
nutre de uma só substância ética. Mas há também aqui um ponto de vista bastante claro sobre
o ser humano.
“Nada do que é humano me é alheio”. Essa máxima é retomada por Hegel aqui para
expressar seu propósito de compreender o conhecimento sistematicamente, tendo como
princípio a conexão entre a humanidade, expressa na cultura universal, e o indivíduo na sua
particularidade. Todas as ciências e também as técnicas são, no fundo, expressões do humano
e precisam ser concebidas nessa unidade. Assim, Hegel quer manter aberta a possibilidade da
unidade mesmo diante da pulverização dos saberes que já ocorria em sua época. E, para ele,
os conhecimentos que subjazem a toda essa diversidade são aqueles encontrados nos clássicos
do pensamento humano. Por isso, não se deve admitir que alguém se especialize
absolutamente em seu saber técnico-científico e se mantenha alienado (estranho) em relação
ao que há de mais humano nele mesmo.
Em vista disso, Hegel critica aqueles pais “que consideran como un mero medio y
como una agria condición a la lamentablemente imprescindible formación espiritual e
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científica, de la que con gusto verían dispensados a sus hijos” (1991b, p. 163). Para ele, esses
pais
son desagradecidos con esta enseñanza y creen no ver ninguna utilidad en ella, si no
hacen ningún uso directo de estas lenguas, – porque ellos no llegaron a comprender
y a tomar conciencia del influjo espiritual que aquella formación ha tenido sobre
ellos y, sin que lo sepan, la sigue teniendo todavía. (1991b, p. 163).
As pessoas que usufruíram de uma formação clássica muitas vezes podem considerá-la
inútil por ela não ser imediatamente aplicável. Entretanto, não observam que é esta formação
que as conduz cotidianamente, sem que se deem conta disso. Por isso, ela precisa ser imposta
a contragosto, e essa decisão cabe ao Estado.
Esse ponto de vista sobre a relação entre a consciência humana singular e a
universalidade do espírito decorre certamente da reflexão que Hegel desenvolveu na
Fenomenologia do espírito. Mesmo enquanto certeza sensível, a consciência já está imersa
nas mediações culturais. Isso é o que a consciência é em si, mas não necessariamente para si.
Isto é, em algumas de suas figuras particulares, a consciência estranha a si mesma, ao não
reconhecer-se como expressão do espírito universal. O ponto de vista dos pais seria um
exemplo dessa circunstância.
Aqui se vê que o ideal ético hegeliano penetra em sua concepção de ser humano,
fazendo com que a educação se torne um instrumento para a transformação do indivíduo em
vista do Estado. Mas, para ele, isso equivale à efetivação da própria natureza humana, já que a
cultura a ser ensinada é também a substância humana mais autêntica. Essa desvalorização das
perspectivas individuais em vista do universal e necessário marca o conceito de Educação que
subjaz aos escritos pedagógicos de Hegel. Mas seu fundamento encontra-se para além deles,
isto é, nas suas obras sistemáticas em que o espírito (a cultura universal) é exposto e
justificado.
O progredir da cultura não pode ser visto como a tranquila continuação de uma ca-
deia em que os elementos seguintes se venham juntar aos anteriores, ainda que ten-
do-os em consideração, mas a partir da sua própria matéria e sem que este trabalho
de prolongamento se dirija contra os primeiros. A cultura tem de ter uma matéria e
um objecto anterior, sobre o qual trabalha, modificando-o e dando-lhe uma nova
forma. É necessário que conquistemos o mundo da Antiguidade, tanto para o possu-
ir, como ainda mais para ter algo que nós transformemos. Porém, para se tornar ob-
jecto, a substância da natureza e do espírito tem que se ter posto defronte de nós, tem
de ter recebido a forma de algo estranho. (1994c, p. 34, grifo do tradutor).
infeliz aquele para quem o mundo imediato dos sentimentos se torna estranho; pois
isto não quer senão dizer que os laços individuais que criam uma ligação sagrada do
ânimo e dos pensamentos com a vida, a fé, o amor e a confiança, se rompem! – Para
a alienação que é condição da formação teórica não se exige esta dor ética, nem o
sofrimento do coração, mas sim a dor mais leve e o esforço da representação em se
ocupar com o que não é imediato, com o que é estranho, com algo que pertence à re-
cordação, à memória e ao pensamento. (1994c, p. 34).
(2005, p. 155). De fato, em nenhum momento Hegel analisa com cuidado e profundidade as
teses da pedagogia moderna. Em diversos momentos, faz asserções críticas aos teóricos
modernos da educação, principalmente Rousseau, mas apenas num tom polêmico e lacunar. O
desenvolvimento da pedagogia enquanto uma disciplina autônoma e a descoberta do mundo
infantil são situações encaradas com muita desconfiança por Hegel. De qualquer forma, sua
posição demarcou uma determinada visão sobre o ensino que continua servindo de referência
até hoje.4
Hegel se opõe totalmente a um aprendizado que esteja focado no desenvolvimento da
habilidade de pensar, indiferente ao conteúdo. Aqui pode-se pensar na difundida máxima
segundo a qual não se pode ensinar filosofia, mas apenas a filosofar. Ela se baseia na
afirmação de Kant segundo a qual “entre todas as ciências racionais (a priori) só é possível,
por conseguinte, aprender a matemática, mas nunca a filosofia (a não ser historicamente):
quanto ao que respeita a razão, apenas se pode, no máximo, aprender a filosofar” (1994, p.
660).5 Hegel identifica nessa tese, assim como na tendência geral da pedagogia iluminista,
uma defesa radical de um formalismo pedagógico que abandona por completo a preocupação
com os conteúdos que devem ser assimilados pelos alunos.
O ponto central do ataque hegeliano é a identificação de um dualismo entre forma e
conteúdo, entre método da filosofia e o conhecimento filosófico historicamente constituído.
Nas suas palavras,
Aqui, Hegel deixa de lado totalmente a questão de fundo do iluminismo, que era
propor uma crítica ao modelo escolástico de filosofia, em sua tendência de reduzir a
argumentação filosófica à referência a autoridades da tradição. Ignorando essa questão, ele
interpreta a ênfase no método, em primeiro lugar, como uma separação radical entre ele e
qualquer conteúdo e, em segundo, como um abandono da preocupação com o conhecimento
4
Para um panorama atual sobre a dualidade Kant-Hegel no ensino de Filosofia, pode-se consultar o trabalho de
Cesar Augusto Ramos (2007) e de Geraldo Balduino Horn (2008). A partir dos modelos fornecidos por Kant e
Hegel, diversas posições se desenvolvem, muitas tentando engendrar uma posição intermediária. Algumas dessas
alternativas, dentre autores brasileiros contemporâneos, podem ser encontradas em Ramiro Marques (2008),
Pedro G. A. Novelli (2005) e José Gonzalo A. Palacios (2007), dentre muitos outros.
5
Gerson L. Trombetta, Edison A. Casagranda e Altair A. Fávero (2002), entretanto, alertam que uma interpreta-
ção descontextualizada dessa afirmação pode levar a uma visão excessivamente formalista da posição kantiana,
que seria inadequada aos seus propósitos mais gerais. Talvez essa seja um dos problemas da leitura hegeliana.
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filosófico. No caso específico da educação, tal diretriz permitiria à escola deixar de lado a
necessidade de ensinar conteúdos, restringindo-se ao desenvolvimento da habilidade vazia do
pensar.6
Contra essa perspectiva, Hegel defende uma unidade fundamental entre forma e
conteúdo no ensino. Ainda usando a metáfora da viagem, ele afirma:
quando se conhece uma cidade e, em seguida, se chega a um rio, a outra cidade, etc.,
aprende-se, sem mais, deste modo a viajar, e não só se aprende, mas efetivamente já
se viaja. Assim, ao chegar-se a conhecer o conteúdo da filosofia, aprende-se não só o
filosofar, mas já efetivamente se filosofa. Também o fim do próprio aprender a
viajar seria apenas chegar a conhecer cidades, etc., o conteúdo (1989c, p. 371, grifo
do tradutor).
Hegel insere aqui uma visão teleológica sobre o aprendizado. O que dá sentido ao
aprender, assim como ao ato de investigar em geral, é seu fim: o conteúdo a ser adquirido. Por
essa relação teleológica, a natureza do aprender vincula-se diretamente ao conteúdo
aprendido, assim como uma viagem não pode ser separada dos caminhos que são
efetivamente percorridos. Ao ensinar filosofia, não se pode concebê-la como uma atitude
genérica, indiferente ao conteúdo. Na sua caracterização, está diretamente envolvido o
conteúdo que a determinada. Por isso, é necessário ensinar a filosofia como “um complexo
sistemático de ciências ricas de conteúdo”. Em oposição, “o filosofar assistemático é um
pensar fortuito, fragmentário, e a consequência é justamente a alma formal para o verdadeiro
conteúdo” (1989c, p. 372, grifo do tradutor). A forma que a filosofia precisa reconhecer no
seu desenvolvimento, assim como no seu ensino, é a lógica que articula sistematicamente seu
próprio conteúdo. Sem essa entrega ao próprio conteúdo, a filosofia reduz-se apenas a uma
atitude, a um desejo, que nunca encontra a sua realização e por isso permanece vazio.
Mas, para Hegel, o fato de o ensino ter como foco a transmissão e a assimilação de um
conteúdo sistematicamente organizado não contradiz a prerrogativa moderna de uma
educação voltada para o pensar autônomo. É apenas para a pedagogia moderna que a ênfase
no conteúdo a ser ensinado implica a eliminação da autonomia do educando do rol dos
6
Embora se possa concordar que a crítica de Hegel à pedagogia moderna é superficial, ela levanta um problema
importante, considerado também por teóricos contemporâneos. Por exemplo, Hannah Arendt afirma: “a Pedago-
gia transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a
ser ensinada” (1979, p. 231). Essa questão torna-se ainda mais interessante quando se pensa a formação de pro-
fessores nos cursos de licenciatura. Delegar à pedagogia a responsabilidade exclusiva sobre a formação docente,
fazendo-a ocorrer à margem da formação específica nas diversas áreas (física, química, geografia, letras etc.),
empobrece tanto a área pedagógica quanto a área específica. O resultado disso é a incapacidade de os futuros
professores tornarem a formação específica adequada ao desenvolvimento da atividade docente. Isso significa
que o desafio atual da interdisciplinaridade, ressaltado constantemente nas reflexões sobre o ensino, precisa
começar ultrapassando as barreiras disciplinares que isolam a pedagogia das demais áreas. Hegel talvez seja um
dos primeiros autores que, à sua maneira, vislumbrou os problemas desse formalismo pedagógico, que isola a
arte de ensinar do conteúdo a ser ensinado.
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objetivos educacionais. Nas palavras de Hegel, “como se, ao aprender o que é a substância,
causa ou seja o que for, eu não pensasse por mim mesmo, como se eu não produzisse por mim
mesmo estas determinações no meu pensar, mas as mesmas lhe fossem arrojadas como
pedras” (1989c, p. 372, grifos do tradutor). A unidade inescapável entre o pensamento e seu
conteúdo implica que a aquisição deste não pode dar-se sem ser acompanhada pelo
desenvolvimento daquele.
Por isso, Hegel não pretende substituir uma pedagogia formalista por outra
conteudística. Seu ponto de vista é, talvez, mais sofisticado. O que ele afirma é a inevitável
unidade entre forma e conteúdo. Mesmo numa pedagogia formalista, sempre se ensina
conteúdos. A questão é de que tipo são os conteúdos ensinados.
constitui um erro total considerar como mais fácil aquela via de acordo com a natu-
reza, que começa pelo sensível concreto e avança até o pensamento. É, pelo contrá-
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rio, a mais difícil, de mesma forma que é mais fácil pronunciar e ler os elementos da
língua falada, as letras tomadas individualmente, que palavras completas. Posto que
o abstrato é o mais simples, é mais fácil de compreender. Os acréscimos sensíveis
concretos têm de ser eliminados, desde logo; resulta, por conseguinte, supérfluo re-
ferir-se a eles previamente, dado que é preciso eliminá-los de novo e isso só produz
dispersão. O abstrato é, enquanto tal, suficientemente inteligível, tanto como é ne-
cessário; além disso, o reto entendimento só poderá produzir-se mediante a filosofia.
(HEGEL, 1989c, p. 374, grifos do tradutor).
Esse ponto fica claro considerando a argumentação anterior sobre o papel da escola
frente à cultura em geral. A cultura humana é resultado de um longo processo de alienação e
reconhecimento que não pode ser repetido na escola, pois submeteria os alunos à mesma
confusão à qual foi submetida a humanidade no seu desenvolvimento. É preciso tomar a
cultura humana a partir de seus resultados e expô-la abstratamente, ou seja, na forma de
conceitos adequadamente definidos e sistematicamente organizados. A referência ao sensível
é muito mais uma fonte de confusão, já que nele os conceitos estão sempre imersos em uma
complexidade que não pode ser compreendida senão justamente por aquele que possui já as
referências culturais. Nesse sentido, o saber que os alunos carregam consigo desde o início
não pode ser o ponto de partida do ensino. Esse saber é, antes de tudo, ignorância, não porque
não tenha de fato um conteúdo e que este não se relacione de alguma forma com o mundo. O
problema é que esse saber é pouco autoconsciente, de tal forma que não pode dar conta de si
mesmo e da realidade que pretende descrever. Consequentemente, cabe à escola introduzir
aqueles conceitos abstratos que dão sentido ao real. Esses conceitos terão de ser apreendidos
mecanicamente, ou seja, por repetição e memorização.
Além de criticar as abordagens formalistas e empiristas sobre o ensino ginasial, Hegel
vê com reservas o exercício da crítica e as tentativas de desenvolver abordagens totalizantes
(como as interdisciplinares ou transdisciplinares) nesse estágio de formação. Seguindo a
terminologia hegeliana, esses pontos entram em jogo quando ele discute o lugar da dialética e
da especulação.
Aqui é necessário lembrar os três momentos do “lógico”, definidos por Hegel na
Lógica da Enciclopédia como o abstrato ou intelectual, o dialético ou negativo-racional e o
especulativo ou positivo-racional (1988, p. 134, §79). O momento mais elevado, que é a
grande novidade que Hegel pensa ter introduzido, é justamente o especulativo, o qual reúne
em si os outros dois e é a verdade deles. Entretanto, em sua reflexão pedagógica, Hegel
sustenta que o momento abstrato ou intelectual deve ser “o prevalente na esfera ginasial”
(1989c, p. 375), por seu caráter material (conteudístico), mais adequado aos fins introdutórios
desse nível de formação. Esse momento caracteriza-se justamente pela ausência da crítica, já
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que as determinações (conceitos) não são questionadas em relação a seus fundamentos, e por
seu caráter fragmentário (disciplinar), na medida em que cada categoria é mantida isolada das
demais.
O segundo momento, o dialético, é o nível da crítica, das antíteses, das contradições.
Para Hegel, esse nível é “em parte, mais difícil do que o abstracto, em parte, o menos
interessante para a juventude, ávida de concreção e de realização” (1989c, p. 375). Ou seja,
para o filósofo, deve-se dar menos espaço à atividade crítica por ela comportar um nível de
dificuldade superior à capacidade dos estudantes de ensino médio e, além disso, não ser
atraente para eles. Ao que parece, na opinião de Hegel, os estudantes estão mais interessados
em verdades, em conhecimentos concretos, não em raciocínios cujos resultados são
aporéticos.
Já o terceiro momento, o especulativo, é “o conhecimento do oposto na sua unidade –
ou, mais exatamente, que os opostos são, na verdade, um” (1989c, p. 375). Embora este seja o
momento “genuinamente filosófico”, ele é também “naturalmente o mais difícil” (1989c, p.
376, grifos do tradutor). Por isso, sentencia Hegel, “aprender a pensar especulativamente [...]
deve, pois, considerar-se com uma meta necessária; a preparação para tal é o pensar abstracto
e, portanto, o dialéctico, ademais, a aquisição de representações de conteúdo especulativo”
(1989c, p. 376). Em outras palavras, embora o pensar especulativo seja a meta, ele não pode
ser exercitado diretamente no ensino ginasial, porque ele supõe o exercício anterior do nível
abstrato e do dialético. O máximo que se pode fornecer aí são representações de conteúdo
especulativo, mas não a especulação como tal. Subjaz a esse argumento a avaliação negativa
de Hegel a respeito da capacidade integradora dos estudantes, a capacidade de apanhar
determinações opostas (ou diferentes) e, criticando-as, reduzi-las à unidade. É justamente esse
momento especulativo o que fornece a Hegel as ferramentas para construir um sistema
filosófico pretensamente capaz de integrar as ciências de seu tempo. Assim, o que está sendo
negado ao ginásio é a possibilidade de um ensino transdisciplinar, totalizante, integrador.
Embora a meta seja o especulativo, o ensino ginasial é pensado por Hegel como
tipicamente abstrato, “em que o pensar, enquanto entendimento, atém-se à rígida
determinidade e à sua diferença relativamente às outras; uma tal abstração limitada surge ao
entendimento como subsistindo e existindo por si” (1988, p. 134, §80). Cada disciplina deve
ser ensinada como uma matéria separada, subsistindo por si mesma e atrelada a uma realidade
definidamente existente. Só passando por essa experiência do ensino abstrato é que o
estudante poderá, mais adiante, elevar seu pensamento ao nível da crítica e, por fim, ao
estágio propriamente filosófico.
21
Conclusão
Referências
7
Embora se possa afirmar que há uma contradição entre a criticidade e a sistematicidade do pensamento hegeli-
ano, como defende Luft (2001).
22
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