Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
2
BOI rONCEIrO
UMA FÁBULA DE HORROR
RICARDO INHAN
Associação
Centro Cultural
3
4
APRESENTAÇÃO
O SILO E O FOSSO
Welington Andrade
5
a dois níveis de fabulação: um nível romanesco, que
oferece um quadro doméstico burguês, e outro realista,
no qual reside a potencialidade política do texto. Tal como
ocorre na epopeia homérica, a evocação do passado
corresponde à própria dramatização da ação, fornecendo
o passado a chave para o entendimento do presente.
Assim, a peça desinteressa-se do que simplesmente
aconteceu outrora, elegendo como sua principal linha
de força o que tais acontecimentos vividos no registro
do lá-então significam para esse casal mergulhado no
aqui-agora. A concentração temporal do texto é outra de
suas qualidades: toda a ação – de envergadura histórica –
condensa-se num lapso de tempo de uma noite somente.
Soma-se a isso o fato de que, por meio do manejo
de uma linguagem simples, o dramaturgo consegue
atingir efeitos estéticos cheios de nuances de sentido e
matizes simbólicos.
6
esperados no delineamento de um poderoso arquétipo de
tipo fantasmagórico, dos mais insuspeitos.
7
se de todos esses elementos, de cujo hibridismo extrai
seu atraente equilíbrio, a peça de Ricardo Inhan não
se acanha de tratar de uma situação excepcional, de
natureza sinistra. Habilmente inserida em um contexto
maior, de sistemática violência. Que submete animais e
homens ao mesmo jugo: os bois pachorrentos ao regime
da pancada e os seres fantasmagóricos ao da intimidação
física e moral. Sentirmo-nos ora como animais na
pastagem, ora como o próprio pasto – eis o terror nosso
de cada dia.
8
Boi Ronceiro - uma fábula de horror
Em três atos e um rascunho, por Ricardo Inhan
9
Nota: Espaços em branco, indicam silêncios e medos, tempo que
se passa sem que nada aconteça. Os sons e a estética podem
(devem) soar como um grande slasher (filme de horror B) dos
anos 1970/1980.
10
11
RASCUNHO
12
Um relógio que não funciona, uma pequena mesa de madeira e
uma janela que dá para um pasto imenso, compõem o cenário.
Ele, o Homem, está seguro de si. A Mulher, com um machucado
no rosto, não)
ATO UM
- rural -
Homem Num lugar como esse. Se você mora, vive num lugar
como esse. Assim. Ou você se joga da ponte ou sobrevive e
muda o mundo.
Homem Tá ouvindo?
Mulher Nada.
Homem É isso.
13
paisagem, pro mesmo mato, com o passar do tempo cê vai
acabar fazendo parte disso tudo. Vai ver.
Homem Na cidade.
Homem Não foi bom pra mim, não será bom pra ele.
14
Mulher Eu não sou um pasto.
Mulher Cê devia ter falado mais com seu pai. Ligado mais. Vindo
mais aqui. Deixou tudo para última hora, sempre deixa.
Homem Isso aqui, lá fora, tudo lá fora. A cidade, antes, era dele.
Agora não.
Homem O quê?
15
Mulher Acho que combino mais com um descampado.
(grilos)
Homem Rezando?
Mulher Enjoativo.
16
Mulher Na verdade um lugar como esse seria bom pra mim. Pra
ele, pra nós.
(grilos)
17
Homem Meu pai já foi dono desse pasto todo, desses bois todos
lá fora, dos pés de café, de toda a plantação que a gente ‘tava
admirando pela janela do carro. Do pasto e da cidade toda. Só
sobrou isso aqui. E essa merda de poltrona. E você ainda quer
dar uma customizada.
Mulher Esse pedaço de terra. Devia ficar com ele. Se não vale
nada, pelo menos pode plantar alguma coisa ao redor da casa, a
gente pode passar os finais de semana. De repente. Esses grilos
também te incomodam?
18
Mulher Ele tem algum problema?
Homem Ele tem problema. O pai dele trabalhava pro meu pai.
Acho. Eu era moleque.
Mulher Só não entendo pra que falar desse jeito. Ele sabia seu
nome, sabia muito de você, deus os pêsames, falou do seu pai,
do enterro. Ele foi ao enterro e você não.
Mulher Se mexeu?
19
(Ele se aproxima da janela. Sai logo em seguida. Não aguenta.
Ela permanece)
(grilos)
(grilos)
Homem Coisa do vento. Tão bem longe. A gente passou por eles,
não se lembra?
20
(grilos)
(Mugidos ao longe)
Homem A espingarda?
Mulher Levaram?
21
Homem A polícia?
Mulher Normal?
Homem Não.
22
Homem Do lado de lá da cerca.
Mulher E pra onde eles foram? Onde é que eles estão agora?
23
meus pés estavam enrolados nas raízes de um deles. Ele bateu
no vidro. Ele só disse um “oi, ocê tá com ele” e apontou pra você.
Me abaixei para pegar a bolsa, pra abrir a porta e.
24
Mulher Eu pensei no caminho todo até chegar aqui. Eu acho
melhor a gente voltar pra casa amanhã de manhã. Cê liga pros
seus parentes. Não tem um monte espalhado por aqui? Eles
resolvem tudo, se você quiser a sua parte nesse negócio, eles te
depositam. Não é mais fácil?
Homem Num lugar como esse, essa casa velha, são coisas que
acontecem.
Homem Esse lugar é meu. A casa do meu pai. A terra era dele e
agora é minha. Não faz sentido ficar em outro lugar na cidade,
senão aqui.
(Batidas na porta)
(Batidas na porta)
25
Homem Parentes? Todos querem um pedaço, mesmo que seja
nada. A gente tem que vasculhar os quartos, antes que eles
peguem o que tem de melhor.
(Batidas na porta)
(Batidas na porta)
(grilos)
26
ATO DOIS
- Silo -
Estranho Enjoado?
Homem Como?
Homem Deve ser. Mas tem a ver com meu pai. A casa.
(Corujas no teto)
Estranho Cê – disse?
27
Mulher A gente mora junto. Na cidade. Sabe?
Estranho Não.
Estranho Perto.
28
Homem Eu não voltei.
29
Mulher Na mesa?
(grilos)
30
(Ele caminha pela sala, o chão range)
Homem Cê sabe.
31
Estranho Às vezes. Eu sou o cabeça de vento. O – mongo. Eu
não falo com muita gente. Muita gente não fala comigo. Eles –
não.
(grilos)
Mulher Acho que é por isso que existem lugares como esse.
32
Homem Melhor você tomar o seu rumo.
(O Estranho a encara)
Estranho Que bom que eu não sou o único que acha isso. Isso –
dele.
(O Estranho o solta)
33
Estranho Manda que nem o pai. Que nem o velho. Só falta.
34
Homem Fiquei sabendo que cê fica perambulando no meio
do mato. Das plantações. Entrando na casa dos outros. Na
plantação dos outros. Vai acabar.
(Ela entra)
(Se servem)
Mulher Então, seu pai trabalhou para o pai dele. Cê morou por
aqui?
35
Mulher Por mim tudo bem. Estamos cansados. Quem não está?
(grilos)
Mulher Eu fiquei curiosa pela casa, tudo mofado. Ele não tinha
mais amigos? Ninguém? Mesmo?
36
Estranho Ele – ele – ele ficava encarando a janela, olhando pro
lado de fora. Um – fantasma – fantasma. Parado aqui na janela.
Se acenava de longe pra ele, ele apagava a luz. Tava doido da
cabeça. Da – cabeça.
Mulher A gente devia ter vindo pra cá mais vezes. A gente devia
ter tentado falar com ele. Eu devia ter feito você voltar pra cá. A
falar com o seu pai. Não entendo.
Estranho Se você tivesse ficado que nem eu. Que nem seu pai.
Que nem todo mundo aqui. Cê também. Cê – sabe. A gente
acaba que nem seu pai. Que nem o meu – pai. O pai dele
mandava no meu.
Mulher Eu não.
Homem Deve ter tido muito tempo para pensar. Ele bebia. Quem
bebe demais.
37
Homem Tem tempo isso. Muito tempo. Eu esqueço das coisas
muito fácil.
(mugidos)
Mulher Ser criança num lugar como esse deve fazer diferença.
Homem Cê não sabe. Nunca viveu assim. Num lugar como esse.
38
(O estranho aponta para ela)
Homem Normal.
Estranho Ele fala por você. Responde – por – sabe? Ele era
assim comigo – também – assim.
Estranho Cê deixa ele falar assim com você – sobre – você? Eles
são assim. Tem que segurar as rédeas, cavalos. São.
Homem É muito tarde já. A gente tem que acordar muito cedo.
Mulher Por mim, tudo bem. Eu era sozinha. Ele apareceu. Ele
está certo. Por mais que eu tenha medo, esse lugar, um lugar
como esse ia me fazer muito bem. Pelo menos não teria que
acordar de manhã, ir para um trabalho de merda, conversar com
pessoas tremendo a mão, gaguejando, pessoas de merda. Ter que
enfrentar metrôs e trens lotados, ter que aguentar os vizinhos
do condomínio, falando, falando e falando. Merda. Esse cheiro.
Eu posso aguentar. Quantas vezes por ano. Quatro? Até estocar
a comida para todo o gado? Eu aguento. Pelo menos aqui eu não
conheço ninguém e nem tenho que conhecer ninguém mais.
Não tem a preocupação de conhecer gente nova, pouca novidade
aparece e se aparece, eu escolho fazer parte ou não.
39
Estranho Quem colocou a cerca – o primeiro?
Mulher Como sabe? A minha dúvida também. Ele não tem esse
tipo de dúvida.
Mulher Ele não tem esse tipo de dúvida. Pra ele o avô colocou e
pronto.
Homem As coisas são como são. Não temos nada agora. Que
diferença isso faz?
Estranho Ele – o tipo. O tipo de gente. Que nem. Que nem ele.
Eles. Não tem dúvida. Nenhuma.
(Corujas no teto)
40
o pai dele me pegava trepando no silo, eu ‘tava morto, era cinto
na certa. Então... Eu e ele, a gente brincava de saltar no silo. O
silo novo, o cheiro era bem pior. A gente se acostuma. Todos.
Você também. Eu – ele... Um, dois, três. A gente saltava de uma
altura. E caía nos montes macios. Uma vez o pai dele viu o que a
gente fazia. Eu apanhei. Mas no outro dia, a gente – eu – ele... A
gente ‘tava lá, de novo. Firme e forte. Um, dois, três. Pulei.
Mulher É disso que falo quando digo que aqui pode ser bom pra
ele.
(grilos)
41
Mulher Isso é verdade? Sem ar.
Estranho Ele não será bom. Vai ser que nem o pai dele. Que –
nem.
(grilos)
(O Estranho o encara)
(O Estranho a encara)
42
ATO TRÊS
- Raiz -
Homem Nenhum de nós mudou nada. Nem meu pai. Nem ele.
Muito menos eu.
(Ela bebe)
43
Homem Cê sabe que às vezes eu sou como ele.
Mulher Saltos no silo. Silo mofado para os bois. Deixar ele sem
ar. Sem – ar.
44
Mulher Cê tá com medo?
Mulher Cê tem medo de terminar que nem seu pai. De ser o seu
pai pra ele?
45
Mulher Eu contei. O que eu falei pra ele? Falei que foi um
acidente. Uma batida. Alguma coisa assim. E ele chegou aqui,
quase sem ar. Ele não junta direito as palavras, ele não sabe
muito bem qual palavra vem depois da outra. Ele. Ele. Ele. Mas
ele me contou o que ele sente estando aqui. Te vendo de novo.
O que esse lugar fez com ele. O que seu pai fez com ele, com os
pais dele, o que cê fez com ele. E eu disse que foi um acidente.
Eu. Quem esteve aqui antes de seu avô? Cê nunca se perguntou?
Não quer.
Mulher Comer?
Mulher Cê era jovem, era uma criança. Tem a ver com o clima.
Homem Com esse tempo todo livre. Sem ter muito o que fazer.
46
Mulher Essa era a casa dele. Dos pais dele.
(grilos)
47
coloca sobre o móvel)
(Batidas na porta)
48
Eu. Eu. Eu. Eu devia ficar com alguma coisa. A espingarda não
era dele, assim como a casa.
Estranho Toda a vida do meu pai, da minha mãe. Ela. Ela. Ela.
Vive na cidade agora.
(grilos)
49
(A Folia de Reis se aproxima, lá fora)
Estranho Ele ainda tem medo, é? Quando pequeno ele fugia dos
Bastiões, não chegava perto. O pai dele. O pai dele. Comparava
ele comigo. Eu num tinha medo, até colocava a máscara pra
assustar ele na plantação. Ele se mijava, todo. Todo.
Mulher Aqui não é o seu lugar. Você não será um bom pai. Um –
bom – pai.
(A mulher se deita)
(Batidas na porta)
50
(Um tiro de espingarda)
(Luz cai)
51
52
53
Prefeitura de São Paulo João Doria
Secretaria de Cultura André Sturm
Boi Ronceiro - uma fábula de horror | Estreou no Centro Cultural São Paulo
em 9/6/2017 e realizou temporada até 2/7/2017 | Dramaturgia Ricardo Inhan
Direção Mariana Vaz Diretora colaboradora Juliana Jardim Elenco Luciana
Lyra, Paulo de Pontes e Pedro Stempnievski Cenografia Laura Andreato e
Mariana Vaz Figurino Laura Andreato Desenho de luz Melissa Guimarães Trilha
sonora Alessandra Leão Coprodução musical Missionário José Cenotécnico
Edson Luna Fotos Cacá Bernardes (Bruta Flor Filmes) Vídeo Bruta Flor Filmes
Design gráfico (capa) vinte design Produção Ariane Cuminale
54
55
WWW.CENTROCULTURAL.SP.GOV.BR
56