1 - inscrição no tema (como te afeta, convoca, seu lugar de fala)
Depois de percorrer diferentes caminhos, concluir outro curso de graduação e
continuar com a sensação de falta de plenitude profissional, aqui cheguei. A psicologia me acolheu e trouxe espaço para muitas dúvidas e questionamentos. Ao chegar ao fim dessa trajetória, acredito que essas dúvidas não serão completamente sanadas, o espaço está aberto para muitas outras. Hoje me vejo imersa em inúmeras reflexões relacionadas ao sujeito, ao sofrimento e a atuação dx psicólogx no campo da saúde mental. Ao começar o processo de escrita desse trabalho, tento resgatar em minha memória o momento em que a saúde mental me despertou interesse. É difícil identificar o momento exato, pois minha mãe, como funcionária da rede, sempre fez com que fosse um assunto muito presente em minha criação. Depois de algum tempo de reflexão, me dei conta que não consigo fugir de algumas cenas angustiantes que insistem em não sair da minha cabeça. Identifico duas que, além de se repetirem muito, são ricas em detalhes. Uma delas é uma visita ao Caps I - onde minha mãe atuava como assistente social -, eu com aproximadamente 10 anos de idade. Foi o primeiro contato direto com a realidade de usuários da rede de saúde mental, em um espaço onde tínhamos a mesma idade. A segunda cena é especificamente um episódio familiar: a internação pouco falada da minha avó no Nise da Silveira. Pouco sei sobre a história, apenas frações de conversas soltas entre familiares. Ao questionar, sempre ouvia que era assunto para outro momento - momento que nunca chegou. Frequentar espaços manicomiais não é nada agradável, eu diria que são difíceis de ocupar, e, ao pensar que esse foi um espaço habitado por pessoa tão presente em minha vida, sou tomada por uma angústia, da qual não tenho para onde fugir, e a qual me deixa claro que a saúde mental é mais que uma escolha, é um devir. Tenho convicção que falar sobre saúde mental pode não ser fácil, mas há algum tempo me sinto convocada para essa pauta, porém sem desconsiderar a colocação de Venturini de que " prevalece a voz dos libertadores, que falam no lugar dos libertados". Eu não quero ocupar esse lugar, mas busco uma luta que seja horizontal, que seja por conquistas de direitos, sem tirar o protagonismo de quem realmente o possui. Esse trabalho tem como objetivo dar lugar aos sentimentos que preencheram meus dias ao longo da experiência de estágio, que se deu na prática de acompanhamento terapêutico na rede de saúde mental no município de Campos dos Goytacazes - RJ. Ao ingressar no estágio, viví o conflito de dar voz ao desejo de ocupar esse lugar e a insegurança de não sustentar todas as angústias e desafios que surgiam diariamente. No primeiro dia de supervisão, ouvi com muita apreensão a informação que minha prática seria na Desins. Pensei que não daria conta, pensei em desistir. No primeiro dia eu de fato quis desistir, tive certeza que não suportaria lidar com tantas questões e veio, então, uma chuva de incertezas sobre a vida e as possibilidades de viver. Quão feliz eu fui no dia que me permiti acreditar que seria possível. Hoje, reconheço que realmente não foi fácil, mas foi incrível poder construir com três pessoas que me ensinaram diariamente outras formas de lidar com questões socialmente impostas, que refletiam nos olhos um brilho único a cada dia em que passavam em uma residência terapêutica. Pessoas que me ensinaram que é possível recomeçar depois de terem vivido tantas privações, inclusive a de liberdade. Afinal, morar em um manicômio, não é uma experiência positiva para ninguém. Amarantes compara a semelhança desse espaço ao sistema carcerário, repleto de privações, constituído em punições, controle e vigilância. O tratamento manicomial segue uma prática de isolamento social, proposta de Pinel que segue viva no modelos conservadores atuais. Ao buscar na memória detalhes dessa experiência, rapidamente vem à lembrança a primeira entrada em um manicômio em funcionamento. O cheiro era único e os gritos dos internos ecoaram na minha memória por muito tempo e até hoje, de forma que ainda lembro deles com muita clareza. Os pedidos eram basicamente os mesmos: para tirá-los daquele lugar. A entrada na enfermaria masculina foi dura e cruel. A cada passo, me questionava como era possível ter pessoas vivendo naquele espaço com pouca iluminação, muitas grades e condições que não representavam um ambiente dito hospitalar. Me questionava - e sigo me questionando - como é aceito socialmente a permanência dessas práticas manicomiais e como existem pessoas que acreditam que o serviço oferecido no manicômio representa alguma forma de cuidado aos internos. Me pergunto se nós, antimanicomialistas, não falhamos em transmitir nosso conhecimento e as informações que nos movem para mudar esse cenário. Os questionamentos não pararam e permaneço sem compreender como aquele lugar tão cruel é denominado hospital, uma vez que práticas “de cuidado” ali presentes não podem ser consideradas adequadas para o tratamento da loucura. É possível observar um ambiente sem higiene adequada, sem cuidado singular e individualizado, de contenções diversas, entre outras práticas onde se ignora a subjetividade do sujeito. Além das particularidades na existência de um manicômio, a unidade manicomial presente no município de Campos dos Goytacazes, é caracterizada por sua origem interligada com uma instituição religiosa, o que transmite à população local um apelo comovente para sua permanência. Apesar de haver a 18 anos da lei 10216/01 (a lei antimanicomial) que está em vigência, de forma que parte do seu funcionamento ocorre em função de doações de roupas e alimentos. Mesmo com a implementação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), o desejo popular pela permanência de um hospital manicomial, aponta para uma lógica hospitalocêntrica, onde o cuidado só pode existir através dessa unidade médica, e por meio do médico como portador do direito de cuidado. Ao longo de um ano acompanhando três pacientes em processo de saída do manicômio para uma Residência Terapêutica (RT), as visitas a esse espaço foram frequentes, o que gerou a possibilidade para muitos outros questionamentos e incômodos, que se transformaram em potência e desejo para desenvolver uma prática anti-manicomial até então não frequentes na realidade diária dessas pessoas. A partir disso, foram estabelecidos vínculos terapêuticos, momentos de escuta e atividades em outros espaços até então não ocupados por eles. Com o auxílio da cartografia, busco mapear meus passos, minhas experiências e as relações que surgiram nesse caminhar que foi o estágio em saúde mental. Foram muitos encontros, alguns desencontros e muitos afetos que preencheram meus dias. Com o intuito de buscar respostas para tantos questionamentos, almejo, aqui, compreender o processo de desisntitucionalização, conceito que, de acordo com Amarantes, surge nos Estados Unidos da América (EUA) para representar o processo de desospitalizar um corpo que carrega o peso de tantas marcas de uma vida institucionalizada e hospitalizada.A partir desse conceito, pretendo analisar o mesmo processo que se passa no município de Campos dos Goytacazes. Com efeito, me debruçarei sobre as mudanças ocorridas nas vidas dessas pessoas; a criação de novos vínculos e o (re)nascimento de uma vida pós manicômio, com novos desafios, novas (re)descobertas e novos desejos. Através da prática da psicologia, debaterei a necessidade de estagnação das práticas manicomiais e a importância da RAPS, no atual cenário político brasileiro. Dessa forma, espero contribuir para que outras pessoas tenham conhecimento sobre o assunto, e possam debater a prática hospitalocêntrica e asilar, ainda, espero somar para a desconstrução do estigma de usuários da rede de saúde mental como sujeito como louco e agressivo, mas sim um sujeito com afeto. O desejo pela saúde mental já tinha despertado, mas eu não imaginava que na desins - espaço que inicialmente relutei em ocupar - encontraria minha realização para entender que seria o espaço que gostaria de me dedicar profissionalmente. Lembro-me do instante em que tive vontade de falar com a supervisora para agradecer e avisar que não voltaria. Que sorte a minha ter deixado para falar isso depois, pois assim descobri que ali estava minha fonte para alimentar o desejo. Nesse momento parecia já saber o quão difícil seria lidar com essa realidade cruel diariamente. Mas foi ali, com essas pessoas, que encontrei a forma de transformar minhas angústias em potência transformadora e pude contribuir com meu desejo por uma sociedade realmente sem manicômios.