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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

ÍNDICE

Apresentação 3
Roxane Helena Rodrigues Rojo (LAEL/PUC-SP)

Sobre a aquisição da escrita: Algumas questões 7


Cláudia T. G. de Lemos (IEL/UNICAMP)

A alfabetização como objeto de estudo: uma perspectiva 19


processual
Milton do Nascimento (UFMG/CEALE)

A respeito de alguns fatos do ensino e da aprendizagem da 35


leitura e da escrita pelas crianças na alfabetização
Luiz Carlos Cagliari (IEL/UNICAMP)

Reflexões sobre o processo de aquisição da escrita 51


Maria Laura Mayrink-Sabinson (IEL/UNICAMP)

O letramento na ontogênese: Uma perspectiva sócio- 71


construtivista
Roxane Helena Rodrigues Rojo (LAEL/PUC-SP)

Ação e mudança na sala de aula: Uma pesquisa sobre 99


letramento e interação
Angela B. Kleiman (IEL/UNICAMP)

Posfácio: A aquisição da escrita do português - Considerações 119


sobre diferentes perspectivas de análise
Maria Bernadete Marques Abaurre (IEL/UNICAMP)

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

APRESENTAÇÃO* *

Roxane Helena Rodrigues Rojo


LAEL/PUC-SP

Alfabetização, aquisição da escrita; (sócio-)construção da escrita,


letramento... A variedade de designação do fenômeno da entrada do sujeito no
mundo da escrita, representada no título deste volume, é mais do que mera
sinonímia. Ela é bastante significativa no que diz respeito às diferentes vias de
abordagem do fenômeno e bastante representativa dos principais embates -
teóricos e práticos - que têm atravessado o cotidiano do alfabetizador e dos
profissionais interessados no desenvolvimento da escrita na última década.
Psicólogos, pedagogos, educadores em geral e também os lingüistas - teóricos
e aplicados - têm sido convocados a participar da reflexão sobre o fenômeno e
a interagir neste cotidiano. Este livro é justamente uma coletânea dedicada a
representar o pensamento dos lingüistas ativos neste processo no início dos
anos 90.
Os textos que aqui aparecem foram conferências apresentadas e
debatidas durante o I Grupo de Trabalho sobre Letramento, Alfabetização e
Desenvolvimento de Escrita, realizado, sob minha coordenação, na PUC-SP,
pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Lingüística Aplicada ao Ensino
de Línguas (LAEL), em fins de outubro de 1991.
Este Grupo de Trabalho tinha como objetivo principal expor, debater e
sintetizar os principais trabalhos de investigação sobre o tema, em curso no
início dos anos 90. Como bem indica Nascimento em seu texto, com base em
dados de pesquisa do CEALE (Centro de Estudos da Alfabetização e Leitura)
da UFMG, o impulso inicial do interesse dos lingüistas pela temática da
alfabetização data dos anos 80 e foram trabalhos pioneiros neste campo
aqueles de fonólogos ou sintaticistas interessados nas questões de ortografia e
de sua relação com a fonologia, tais como os trabalhos de Lemle, no Rio de
Janeiro, e de Abaurre e Cagliari, na UNICAMP. Assim, no início dos anos 90,
julgamos interessante ter uma visão de conjunto dos proincipais trabalhos de
pesquisa que estavam sendo então conduzidos e debater metateoricamente
seus principais pontos de convergência e suas principais divergências.
Embora já alguns anos separem este livro de seu evento de origem, não
creio que as posições da Lingüística brasileira, aqui representadas, sobre a
questão da entrada da criança no mundo da escrita tenham mudado
substancialmente. É claro que as pesquisas relatadas avançaram em termos
de seus resultados e solidificaram e lapidaram as posições, muitas vezes
iniciais, consubstanciadas nos textos. Alguns destes resultados já circulam, em
forma de textos, livros, ou mesmo, do porte que adquiriu, em Minas Gerais, o
CEALE , ligado à UFMG, sede das pesquisas comentadas no texto de
Nascimento, neste volume. Entretanto, embora as pesquisas tenham avançado
* *
A possibilidade de organização tanto desta coletânea como do evento que a gerou deve-
se, em boa parte, aos subsídios CNPq (Bolsa Pesquisador/Pesquisa Integrada) e FAPESP
(Organização de Evento e Estágio de Pós-Doutoramento no Exterior), a quem
agradecemos.
*

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

e outras tantas tenham emergido, não creio que tenham mudado radicalmente
os pressupostos ou os enfoques aqui representados.
E a pluralidade de designação do fenômeno, presente no título e nos
textos deste volume, parece-nos bastante representativa destes enfoques e
pressupostos. Termos como alfabetização, aquisição da escrita; (sócio-)
construção da escrita, letramento, em minha opinião, mais do que diretamente
reveladores de pressupostos teóricos, muitas vezes, nestes textos, são índices
das teorias com as quais, de uma maneira ou de outra, os autores estão ou
estiveram dialogando em suas investigações.
Mas - atenção -, diálogo não quer dizer unicamente acordo, isto é, adoção
de pressupostos semelhantes; muitas vezes, na comunicação cotidiana como
nos textos aqui presentes, diálogo quer dizer debate, confronto de opiniões e
posições divergentes.
O termo aquisição de escrita, assim como aquisição de linguagem,
adotado neste volume por muitos autores (de Lemos, Abaurre, Mayrink-
Sabinson, Nascimento), é um exemplo excelente desta dupla direção da
dialogia. Cunhado quando das pesquisas iniciais da Psicolingüística
chomskiana sobre os fenômenos da entrada da criança na linguagem, o termo
aquisição guarda em si a significação dos pressupostos inatistas da pesquisa
chomskiana: "adquire" algo aquele que tem um valor a trocar pelo bem
"adquirido". Assim, na postura chomskiana a partir da qual se desenvolveram
os primeiros trabalhos ditos psicolingüísticos sobre a "aquisição" de linguagem,
no início da década de 70, a criança era vista como dotada de um valor - as
capacidades inatas universais para a linguagem - que lhe permitia, em contato
com a linguagem em circulação (input), "adquirir" suas estruturas e regras.
Assim, o termo "aquisição" guarda em si uma significação inatista, com a qual
certos trabalhos aqui presentes estão, de uma ou de outra maneira, em
diálogo. É justamente índice deste diálogo a adoção do termo aquisição de
escrita.
O trabalho de de Lemos é exemplar neste sentido. Pesquisadora da
"aquisição de linguagem", desde seus trabalhos iniciais, de Lemos coloca-se
em permanente confronto com as teorias de base biológica e, em particular,
com as pesquisas de base chomskiana. Neste caso, o termo "aquisição" é uma
"arena" comum onde significados se confrontam: a base social, interativa, da
construção da linguagem, defendida por de Lemos, e a base biológica, inata,
proposta pelos pesquisadores em "aquisição". Os construtos teóricos e
interpretativos de de Lemos têm mudado e se sofisticado bastante no curso de
sua história exemplar de pesquisa, e, por isso mesmo, seu embate com as
teorias associais da linguagem tem se fortalecido. Da mesma maneira, a
presença do termo "aquisição" nos trabalhos de Abaurre e Nascimento pode
ser tomado como índice de seu permanente diálogo com as teorias e
descrições fonológicas e sintáticas da língua, presentes nos trabalhos
chomskianos.
Outros autores deste volume (Nascimento, Cagliari, Abaurre, Kleiman),
preferem, por vezes, o termo alfabetização , o que indica, como interlocutor
privilegiado no uso deste termo, o alfabetizador. Os quatro trabalhos têm em
comum uma interlocução permanente, e já histórica, nos textos e nas
assessorias, com os profissionais ativos da educação no ensino básico.

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

O termo (sócio) construção da escrita, presente nos textos de Rojo e


Mayrink-Sabinson, são indicativos da adoção de pressupostos sócio-históricos
(vygotskianos) e construtivistas no que diz respeito à apropriação, por parte da
criança, das práticas dos significados, dos usos e dos conhecimentos ligados à
escrita numa sociedade letrada.
De todas as terminologias aqui adotadas, a mais polissêmica e que
apresenta maior flutuação de significado, nos textos aqui presentes (Rojo,
Kleiman) como nas pesquisas em geral, é o de letramento. Por isso mesmo,
boa parte do texto de Kleiman é dedicado ao esclarecimento de seu significado
e de suas relações com a cultura e as práticas sociais, com a interação, com o
ensino-aprendizagem (cf. também a respeito o texto de Kleiman (1995), em Os
Significados do Letramento). Em todos os trabalhos, entretanto, o uso deste
termo implica a adoção de pressupostos teóricos (sociológicos, etnográficos)
onde a interação social tem um peso decisivo na construção da escrita pela
criança.
Assim, neste volume, temos representados, nas pesquisas lingüísticas
sobre o tema da alfabetização, diferentes pressupostos, teorias e interlocutores
básicos. Alguns textos, como o de abertura (de Lemos) e o de fechamento
(Abaurre), que funcionam, de certa maneira, como prefácio e posfácio do
volume, trazem ao leitor, além da própria contribuição das autoras, uma visão
geral crítica dos textos e pesquisas presentes na coletânea e estão em diálogo
com o leitor deste livro, assim como com os diferentes autores.
Cagliari e Nascimento, em seu texto, têm como interlocutor básico o
alfabetizador. O primeiro, questionando, a partir da história dos diferentes
sistemas de escrita e dos conhecimentos elaborados pela Fonologia em
Lingüística, alguns pressupostos, conceitos e dogmas a partir dos quais o
alfabetizador elabora seu pensar e sua prática sobre a alfabetização. O
segundo, a partir de um volume considerável de dados quantificados em
diferentes pesquisas levadas a termo pelo CEALE/UFMG, e de diferentes
teorias sobre aprendizagem e sobre linguagem, traz contribuições de peso para
a reflexão sobre o processo de construção do uso e do conhecimento da
criança sobre nosso sistema de escrita.
Os textos de Mayrink-Sabinson e de Rojo, a partir de metodologia de
pesquisa semelhante (estudo de caso longitudinal com sujeito de alto grau de
letramento) e de mesmos pressupostos, apresentam análises qualitativas e em
detalhe de diferentes aspectos e processos envolvidos na construção do uso e
das representações do sistema de escrita, por parte de crianças, com grande
contato e intensidade de interações envolvendo a escrita, no período anterior à
alfabetização propriamente dita.
O texto de Kleiman, expondo duas diferentes pesquisas em curso,
tematiza, ao contrário, diferentes aspectos e processos envolvidos na
alfabetização de jovens e adultos de baixo grau de letramento e cujo contato
com a letra e com a escola tem como marca o conflito cultural.
É esperando, portanto, que esta coletânea possa lhe trazer - a você, leitor
- uma visão geral das pesquisas lingüísticas sobre alfabetização e letramento,
que o convidamos então, sem mais demora, a adentrar conosco este mundo da
escrita visto pelos olhos daquele que com ele faz seus primeiros contatos.

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

SOBRE A AQUISIÇÃO DA ESCRITA: ALGUMAS QUESTÕES *

Cláudia T.G. de Lemos


Departamento de Lingüística
IEL-UNICAMP

Minha presença neste volume representa o reconhecimento de que é


possível, a alguém que estuda aquisição de linguagem, dizer algo sobre o
acesso da criança à escrita. Eleger a Lingüística - e as disciplinas que a têm
como referência - como um espaço teórico-metodológico para a discussão da
escrita e de sua aquisição é tornar conseqüente o fato de que é de linguagem
que se trata, quando disso se trata.
Não me parece, contudo, que se deva entender como conseqüente ao
reconhecimento da Lingüística como lugar de um saber sobre a linguagem, que
este saber seja visto como disponível sob a forma de certezas e respostas às
questões que o processo de alfabetização coloca. Penso, ao contrário, que
essa escolha só pode vir a ter conseqüências, se a Lingüística for tomada
como lugar onde o que não se sabe sobre a linguagem é reconhecido e
produz questões.
Este modo de pensar a relação da Lingüística com outras disciplinas e,
em particular, com aquelas cujo objeto inclui uma prática - pedagógica ou
clínica -, ganha importância quando o que está em discussão é o processo que
se tem chamado de aquisição da escrita. Para estudá-lo ou comprendê-lo,
algumas dessas disciplinas, de suas linhas de pesquisa e teorização, têm
chegado a importar da Lingüística conceitos e procedimentos descritivos. No
quadro dessas disciplinas e áreas, esses conceitos e procedimentos têm sido
integrados, quer como explicativos do que se encontra na escrita do aprendiz,
quer para justificar práticas ou métodos, não se levando em conta, portanto,
nem as questões que levaram à sua formulação, nem aquelas que essa
mesma formulação suscita. O que, enfim, se esquece é que a Lingüística,
como qualquer outra ciência, é um lugar onde o que se sabe serve, acima de
tudo, para interrogar e se transforma em um saber interrogar.
Não é minha intenção enfrentar aqui uma pergunta crucial: a que incide
sobre as condições de possibilidade da pesquisa inter/transdisciplinar. No que
toca à alfabetização ou ao processo mais amplo de aquisição da escrita, mais
razoável seria começar por tratar as questões que ele suscita não como
questões a serem resolvidas pela Lingüística, mas como questões que se
apresentam como tal também para a Lingüística. Ou ainda, como questões que
a Lingüística antes contribui para formular do que para resolver.
Para isso, também é preciso ter em mente o que o texto de Milton do
Nascimento neste volume põe em evidência, a saber, a impossibilidade de se
esgotar o conhecimento sobre a linguagem, dadas as múltiplas faces sob as
quais ela se apresenta à indagação. O mínimo que se pode extrair dessa
afirmação é que o que venho chamando de Lingüística em um sentido amplo,

* * Agradeço aqui à CAPES, pela Bolsa de Dedicação Acadêmica (1991-1995) e à


Universidade Católica de Leuven, pelo "fellowship" de 1995, subsídios que possibilitaram o
desenvolvimento de minhas pesquisas e a redação final deste texto, em setembro de 1995.

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

não é um campo homogêneo: nele se defrontam diferentes teorias, diferentes


pontos de vista sobre a linguagem, a partir dos quais se constituem diferentes
objetos. Essa diferença não se faz ver apenas no corpo de conhecimentos
sobre a linguagem que cada teoria exibe, mas, a meu ver, nas questões que
cada teoria permite formular a partir desses conhecimentos.
É exemplar nesse sentido a posição de Chomsky (1986: 222-223)
relativamente à questão sobre como o conhecimento da linguagem é posto em
uso. Logo após ter reafirmado a capacidade da teoria gerativa de dar conta do
que é conhecer uma língua e de como esse conhecimento é adquirido, ele não
hesita em dizer que o uso desse conhecimento, principalmente no que
concerne à produção, coloca problemas muito sérios, "talvez, mistérios
impenetráveis para a mente humana". Na mesma linha, parece possível
entender a resposta por ele dada, em Manágua, a uma pergunta, feita
provavelmente por um professor, sobre como poderiam ser usados os achados
recentes, expostos em suas palestras sobre teoria gerativa , no ensino de
línguas e da tradução. Ao fim de uma resposta longa sobre a importância da
motivação na aprendizagem, que inclui uma discussão sobre a
descontinuidade entre teoria e prática, Chomsky diz:
"A conclusão adequada, a meu ver, é esta: use seu bom senso e
sua experiência e não dê ouvidos demais aos cientistas a não ser
que você ache que o que eles dizem tenha realmente um valor
prático e ajude a entender os problemas que você enfrenta, como
às vezes, de fato, é o caso." (Chomsky, 1988: 182, tradução e
ênfase minhas)
Entre outras coisas, o que aproxima os dois textos é que, neles, limites
são reconhecidos, ainda que, no primeiro, eles sejam atribuídos à mente
humana e, no segundo, à ciência, mais precisamente às ciências da
linguagem. A exemplaridade desse reconhecimento se deve tanto à autoridade
científica de quem o enuncia quanto à distinção entre mistério e
questão/problema insinuada. Não seria "mistério" a questão que uma
determinada teoria não tem nem sequer condições de formular? Com efeito,
para que uma ciência ou teoria científica "ajude a entender os problemas" que
uma determinada prática enfrenta, não seria necessário primeiro que ela se
deixasse perturbar por essa prática de modo a transformá-la em questões?
Muito se tem falado e escrito sobre as dificuldades da escola brasileira
em cumprir sua tarefa de alfabetizar e de introduzir nas práticas efetivas da
leitura e da escrita aqueles que delas estão excluídos, dada a marginalidade de
sua participação em uma sociedade letrada. Parece-me que, no que diz
respeito ao funcionamento da linguagem, pouco do que se tem falado e escrito
tem tomado a forma de mistérios ou de questões. Os textos reunidos neste
volume me levaram a uma reflexão preliminar sobre alguns pontos, cuja
obscuridade emerge da própria luz sobre eles lançada por esses trabalhos.
O primeiro deles diz respeito ao caráter irreversível da transformação que
se opera em nós pelo simbólico. Uma vez transformados pela escrita em
alguém que pode ler ou escrever, não é possível subtrairmo-nos a seu efeito 1,
nem concebermos qual é a relação que aquele que não sabe ler tem com
1
Essa observação deve ser relacionada com o que Eni Orlandi (1990) tem definido como
"injunção à interpretação".

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esses sinais que, para nós, apresentam-se como transparentes. Ou ainda, não
podemos mais recuperar a opacidade com que esses sinais antes se
apresentavam também para nós.
Talvez seja o caráter irreversível dessa operação que atinge nossa
própria percepção que nos leve, portanto, a supor que a escrita é transparente
para aqueles que não sabem ler. Ou melhor, a supor que ela se torne
transparente pela simples apresentação ou exposição de relações entre letras
e sons, quer sob a forma de sílabas, quer sob a forma de palavras, quer sob a
forma de textos ou do que se supõe que umas e outros "querem dizer".
O que acabo de dizer parece contrapor-se ao que Emília Ferreiro e
Teberosky (1979 e outros) tiveram o mérito de mostrar, isto é, que a criança já
sabe sobre a escrita antes mesmo da alfabetização e que o reconhecimento
desse saber deve orientar as práticas escolares. Na verdade, penso que é a
pressuposição de transparência da escrita que explica pelo menos parte das
dificuldades do alfabetizado-professor em atribuir algum saber sobre a escrita
ao alfabetizando. Ao projetar sobre o alfabetizando sua própria relação com a
escrita, o alfabetizado fica impedido de "ler" os sinais - orais ou gráficos - em
que o primeiro deixa entrever um momento particular de sua particular relação
com a escrita.
Se isso faz algum sentido, qualquer metodologia deve começar por ser
uma interrogação sobre o que é aprender, o que é ensinar e o que aprender
tem a ver com o ensinar, quando está em jogo essa transformação pelo
simbólico.
É a partir dessa reflexão que me arrisco a propor uma metodologia do
mistério, isto é, a suspensão da transparência como estratégia que torne
possível a formulação de questões. Não é demais lembrar que a suspensão
da transparência ou da "naturalidade" está na origem da indagação científica.
Como suspender a transparência, depois de tê-la declarado processo
irreversível? A resposta a essa pergunta está em deslocar esse efeito de
transparência de seu lugar de "evidência fundante", para usar uma expressão
de Pêcheux (1988) e submetê-lo ao mesmo tipo de indagação a que foi
submetida a relação entre significante e significado por filósofos e lingüistas
(ver, a propósito, Lahud, 1977).
Todas as pesquisas reunidas neste volume, de uma maneira ou de
outra, remetem a essa indagação sobre como algo se torna outro ou passa a
se apresentar como outro à percepção e à interpretação, transformando assim
o sujeito em alguém que "lê", isto é, que vê o que não estava lá.
Além de não se apresentar por si próprio, não há, com efeito, nada no
que se apresenta como escrita que aponte para a oralidade que ela passa a
"representar" para o alfabetizado. Em seu texto, Cagliari soube mostrar de
forma eficaz, colocando-nos diante de exemplares de um sistema de escrita
não alfabético, como sua opacidade de "coisa" resiste a tentativas de decifrá-
los, mesmo quando se sabe a que correspondem oralmente, mesmo quando
se conhece sua tradução em português, seu significado.
Já os trabalhos de Mayrink-Sabinson e Rojo mostram que as práticas
discursivas orais em torno de objetos-portadores de textos estão na origem das
relações que se estabelecem entre a criança e o texto. Através dessas práticas

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

é que o texto deixa seu estado de "coisa" para se transformar em objeto


significado antes pelos seus efeitos estruturantes sobre essas mesmas práticas
orais do que pelas suas propriedades perceptuais positivas. Não se trata aí,
portanto, de uma oralidade que desvenda o texto escrito nem que é por ele
representada, mas de uma prática discursiva oral que, de algum modo, o
significa, isto é, que o torna significante para um sujeito.
Por outro lado, ambas as pesquisas sobre letramento apresentadas no
texto de Angela Kleiman têm, entre seus objetivos e questões, o de identificar
os mecanismos sociais de exclusão e seu modo de atuar no processo de
alfabetização. A possibilidade de fazê-lo, conforme se depreende do trabalho
de Kleiman, depende de que se possa ir além da avaliação do grau e modo de
acesso a textos escritos e, principalmente, além de uma concepção de acesso
como exposição à escrita e/ou participação em situações de leitura/escrita. Isso
supõe, entre muitas outras coisas, analisar situações de escrita como práticas
discursivas escolares cujos mecanismos de inclusão e exclusão, por serem
lingüistico-discursivos, não são transparentes.
Mas de que modo se opera essa transformação de/em alguém que
passa a ver o que não via e é assim capturado pela escrita enquanto
funcionamento simbólico? Esta pergunta nos leva ao segundo ponto desta
reflexão.
Com o uso do termo "tranformação", o que tenho em mente é por em
discussão tanto a concepção da escrita como representação dos sons da fala 2,
quanto a "naturalização" da continuidade da escrita relativamente à oralidade.
Já que não há nada no sinal da escrita que, em si mesmo, aponte para a
materialidade sonora, que mediação é, então, necessária para que se dê essa
transformação que produz, ao mesmo tempo, um sujeito - outro modo de "ver" -
e um objeto - o que se dá a "ver" para esse sujeito e que através do qual ele se
vê "vendo"?
Seria interessante, a esta altura, lembrar de novo que essa mediação
tem sido pensada no interior da relação ensino-aprendizagem: a uma aquisição
"natural" da linguagem oral se seguiria o aprendizado dirigido da escrita 3. Não é
relevante aqui, ainda que tenha muita importância, o fato de muitas crianças
aprenderem a ler "naturalmente", sem serem ensinadas. O que chama atenção
nessa oposição entre "natural" versus aprendido é que ela mostra o que tem
ficado escondido quando se discute a aquisição da escrita. A saber, ainda que
os métodos tradicionais de alfabetização apostem na transparência ou na
relação direta entre oralidade e escrita, a crença na escrita como um
conhecimento a ser ensinado/aprendido aponta um intervalo a ser preenchido,
uma descontinuidade.
A oscilação entre essa aposta e essa crença torna ainda mais difícil o
entendimento do que seria a mediação no contexto ensino-aprendizagem. Se,
de um lado, a assunção do pressuposto de transparência também permite
pensar em mediação como transmissão, de outro lado, o pressuposto de não-

2
Para uma crítica mais alentada e profunda da concepção da escrita como representação da
oralidade, ver Mota (1995).
3
Para uma discussão mais geral sobre os pressupostos do ensino-aprendizagem que
qualificam a aquisição da linguagem oral como "natural", ver de Lemos (1991).

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

continuidade "natural" entre linguagem oral e escrita leva, no mínimo, à


indagação sobre o que é transmitido (e como).
A partir dessa observação se poderia, então, pensar que o termo
"transformação" tem aqui o mesmo valor que "construção", o que aproximaria
esta minha reflexão de posições construtivistas. Não é esse o caso: tais
posições implicam desenvolvimento, supõem uma teleologia e, portanto, um
sujeito que se desenvolve a partir da construção do objeto enquanto objeto de
conhecimento, a ele submetido, por ele dominado. Ao tratar a aquisição da
escrita, assim como a aquisição de linguagem em geral, como transformação
ou mudança que se opera através do funcionamento simbólico, o que tenho em
mente é sujeito e objeto (para um sujeito) como efeitos desse funcionamento.
Isso significa que não se parte da interação sujeito-e-objeto, mas da linguagem.
Isso significa que não se chega a um sujeito que se apropria do objeto a um
certo ponto de seu percurso, que faz dele um conhecimento, um saber estável
que o esgota. A cada ato/"acontecimento" 4 de leitura/escrita se pode refazer
essa relação nesse funcionamento.
Contudo, é importante reconhecer que as propostas construtivistas,
inspiradas quer em Piaget, quer em Vygotsky, não dão lugar a que se pense a
aquisição/desenvolvimento da escrita a partir da transmissão de conhecimento
do adulto para a criança, ou daquele que sabe para o aprendiz. Mesmo para
Vygotsky, que considerava os processos intersubjetivos como responsáveis
pelo funcionamento intra-subjetivo, "as operações com signos" não são
transmitidas, mas derivam de "uma série de transformações qualitativas
complexas" ( Vygotsky, 1930/1978: 45).
Por isso mesmo, tanto as propostas construtivistas inspiradas em
Vygotsky, quanto a posição aqui esboçada 5, na medida em que assumem a
interação como lugar de transformação, têm o compromisso de responder
teoricamente sobre o que distingue a mediação da transmissão. Enfim, o
compromisso de explicitar o papel do outro - interlocutor-alfabetizado -, do
alfabetizando e o das práticas discursivas, escolares e não-escolares, em que
o texto escrito está de algum modo em questão.
Essa é uma condição necessária para que se possa ir minimamente
além do senso comum ao se falar em interação e ensino, ou ainda ao se
atribuir ao professor ou à escola responsabilidades pelo sucesso ou fracasso
no que diz respeito à alfabetização ou, melhor dizendo, à relação da criança
com a escrita.
A fim de traçar, em linhas gerais, o espaço em que, do meu ponto de
vista, se poderia pensar o lugar do outro na aquisição da escrita, é necessário
que eu me detenha primeiro no que tenho pensado mais recentemente sobre
aquisição da linguagem oral. Para isso, vou me servir de dois episódios de uma
mesma sessão de gravação de Mariana, aos dois anos e um mês de idade, em
diálogo com sua mãe.

4
Refiro o termo "acontecimento" ao sentido que lhe dá Pêcheux (1990), lembrando ainda
que, através dele, recupero e reformulo o que afirmei em trabalho anterior (1982: 136), isto
é, que a "linguagem [é um] objeto que se refaz a cada instância de seu uso".
5
Uma exposição mais detalhada desta proposta no que diz respeito à aquisição da
linguagem oral encontra-se em de Lemos, 1992.

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(1) Mariana tenta por de pé, encostado na parede, um boneco


grande de plástico:
Ma.: vamo tilá ele de pé
tila ele de pé
ai, eu seguro,
tá encostado?

(2) Mesma situação de (1):


Ma.: põe/põe minha aqui o péto
põe mim pé aqui
Mãe: Que pé?(como quem não entende o que Ma. está dizendo)
Ma: a/ugustado assim.

Observe-se, em primeiro lugar, que a fala de Mariana remete


diretamente a falas anteriores da mãe na mesma situação, a de tentar "por de
pé" o boneco, de mantê-lo de pé, segurando-o "encostado" na parede.
Fragmentos dessa fala se repõem na fala de Mariana em episódios anteriores
a (1) e (2) e, com eles, gestos e ações sobre o mesmo boneco. Em (1) e (2),
porém, esses fragmentos da fala da mãe se cruzam com outros fragmentos de
outros textos-diálogos, cruzamentos esses que, na superfície da fala de
Mariana, dão-se agora como "erros".
Como descrever a expressão tirar ele de pé sem relacioná-la com o
fato de que "por", ainda que faça parte da expressão "por de pé", também
funciona em oposição a "tirar" ("por x"/"tirar x"), em que toma um sentido
diferente do que toma em "por em pé"? Como interpretar a presença de minha
em (1) e de mim em (2), que se alternam na mesma posição nessas cadeias,
senão levando em conta sua semelhança (e sua diferença) e a expressão põe
de pé pra mim, que ocorre na fala de Mariana em episódios anteriores?
Interpretação semelhante deve ser dada a péto ("perto") na primeira linha de
(2) em sua relação com pé na segunda linha, que mostra ainda o movimento
de aproximação entre "por de pé" e "por perto". Fica para ser decifrada a
palavra que atravessou "encostado" em ugustado.
Chamo a atenção para o fato de que, num primeiro momento, a fala do
adulto se apresenta na fala da criança com uma aparência "correta" e no
"contexto adequado". Nem é preciso dizer que os "erros" que se seguem a
essa aparente correção também cederão lugar a uma fala que não difere da do
adulto de sua comunidade.
Esse fenômeno, conhecido na Psicologia do Desenvolvimento como
Curva em U6, pela representação em diagrama da seqüência cronológica
correção-erro-correção, tem sido considerado como evidência empírica de que
os erros representam o momento do desenvolvimento em que as crianças
fazem hipóteses sobre as regularidades/regras da língua a que estão expostas.
Note-se, porém, que os erros sobre os quais incide essa interpretação da
criança como um sujeito que faz hipóteses sobre a língua enquanto objeto de
6
Uma apresentação da curva em U no que concerne particularmente à aquisição de
linguagem pode ser encontrada em Karmiloff-Smith (1986).

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

conhecimento são aqueles interpretáveis como regularizações de formas


irregulares e cujo exemplo clássico, na literatura em língua portuguesa, é o uso
de "fazi" por "fiz"7.
Os "erros" em questão aqui não são regularizações ou
ultrageneralizações de regras morfológicas, como é o caso de "fazi", nem têm a
sua previsibilidade. Mostram, isso sim, que os fragmentos da fala do adulto se
relacionam entre si na fala da criança de um modo que não se pode prever a
partir da língua como sistema estabelecido, estático. O que não quer dizer que
essas relações não indiciem uma sistematicidade, um funcionamento da língua
que orna substituíveis - e, por isso mesmo, semelhantes - fragmentos cuja
identidade assenta na diferença.
Note-se ainda que tais relações não se dão entre palavras, mas entre
fragmentos que se apresentam (para os falantes adultos) como cadeias, e que
palavras/segmentos só emergem como unidades/constituintes de cadeias a
partir da relação que se faz ver pela substituição. Relações entre cadeias, por
outro lado, se dão também seqüencialmente, produzindo encadeamentos
insólitos, embora evoquem o texto de onde provêm 8, como se pode depreender
do episódio (3), ocorrido na mesma época que (1) e (2).

(3) Mariana aponta para um anúncio publicitário, em uma página de


uma revista. A modelo do anúncio não é quem ela "refere" como
Betty:
Ma.: Você viu aqui amiga papai é essa?
Essa amiga?
É essa?
Mãe: Quem que é a amiga do papai?
Ma.: Essa, Betty.
Mãe: Ah, ela chama Betty?
Ma: amiga papai
éta/eu/e/a/a/
o papai tabaia
papai faz filme
essa/essa amiga papai.

Esse movimento da língua, que ganha visibilidade na fala da criança e


que, no adulto, fica submerso, irrompendo no lapso, alçando-se no poético,
remete à tensão entre o eixo sintagmático e o eixo paradigmático a que

7
Para o estatuto metodológico do erro na Aquisição de Linguagem, ver os trabalhos de
Figueira em geral e, particularmente, o capítulo da coletânea sobre Questões
Metodológicas, organizada por Pereira de Castro. Para a discussão das conseqüências
teóricas da interpretação do erro como sintoma de construção, ver a tese de doutorado de
Carvalho (1995).
8
No artigo acima citado (de Lemos, 1992) trato esses dois tipos de relações como processos
metafóricos e metonímicos, apoiando-me em Jakobson (1963). Para uma análise e
discussão desses processos e, particularmente, dos processos metonímicos no monólogo
da criança no berço, ver Lier-de-Vitto (1994).

12
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Saussure deu estatuto teórico. Ao definir esses eixos como "duas esferas
distintas", mas interdependentes, em que "as relações e as diferenças entre
termos lingüísticos se desenvolvem" (Saussure, 1916/1987: 142), é que ele se
deu conta da necessidade de reconhecer tanto o que faz do "mecanismo da
língua [...] uma limitação do arbitrário"(op. cit.: 154) quanto "o jogo desse duplo
sistema no discurso" (op. cit.: 150)9.
No que concerne à aquisição de linguagem, isto é, à relação da criança
com a língua, o que limitaria a arbitrariedade vista do ângulo da relação entre
significantes? Ou o que impediria que se pensasse esse movimento como
aleatório? Para refletir sobre isso, é preciso voltar aos episódios acima e fazer
notar que, ainda que os "erros" e os enunciados insólitos de Mariana impeçam
que a eles se atribua significado quer lexical quer sentencial, sua relação com a
"situação" discursiva, o que inclui a fala da mãe, faz sentido. Não quero dizer
com isso que eles "representam" essa situação e, sim, que essa situação, o
que inclui a posição da criança nela, está inscrita neles; é por eles evocada.
Enfim, os fragmentos da fala do adulto que retornam na fala da criança
e que se cruzam entre si, são aqueles onde se deu essa inscrição. É por isso
mesmo que o que retorna é imprevisível e tem oposto resistência às tentativas
de colocar a fala da criança em estágios. É por isso que, ainda que não seja
aleatório, esse movimento - retorno e cruzamento - deixa marcas singulares na
fala da criança10.
Em que medida essa minha interpretação da aquisição da linguagem
oral abre possibilidades para se dar ao outro - interlocutor da criança - um lugar
que não seja nem o de transmissão, nem o de mera facilitação do processo?
Poder-se-ia argumentar que, nesse quadro, o adulto não passa de
provedor de falas ou textos que circularão fragmentados na fala da criança, o
que não o distinguiria suficientemente do provedor de "input" dos modelos
tradicionais de aquisição.
Para responder a essa possível objeção, basta lembrar que a fala do
adulto não retorna na da criança como produto de uma análise em constituintes
fonológicos, morfológicos ou sintáticos. Ela retorna como um fragmento em que
está de alguma forma inscrita a relação instaurada pelo adulto na situação
discursiva em que a criança foi interpretada. Cabe dizer ainda que essa
interpretação não tem origem no adulto mas no discurso em que ele próprio,
submetido ao funcionamento lingüístico-discursivo, é significado. A Análise de
Discurso da linha francesa e a Psicanálise são os espaços de teorização que
permitiriam desenvolver esse e outros aspectos dos processos de identificação
envolvidos nesse funcionamento.
Por outro lado, as primeiras relações entre fragmentos se dão no
diálogo, como efeito lingüístico-discursivo da fala do adulto na fala da criança,
efeito de linguagem sobre linguagem. As primeiras substituições que ocorrem
na fala de Mariana são operações sobre a fala da mãe 11, como mostra o

9
Em meu trabalho sobre "Língua e discurso na teorização sobre aquisição de linguagem" (a
sair), tento interpretar essa tensão entre eixo sintagmático e paradigmático como lugar em
que Sassure rediscute a dicotomia língua versus fala.
10
Sobre dados de singularidade na aquisição da escrita, ver Abaurre (1991).

13
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

episódio (4). Chamo a atenção para o último enunciado da criança, do qual se


depreende os limites gramaticais e semânticos dessas operações.

(4) Mariana, com um ano e nove meses, joga brinquedos no chão,


fazendo muito barulho. Nessas ocasiões, sua mãe a repreende
dizendo que o barulho vai acordar o bebê da vizinha.
Ma: A Fávia tá nananda?
Mãe: A Flávia foi pra praia.
Ma: Maco foi pa paia?
Mãe: O Marco foi pra praia.
Ma: Telo Maco.
Mãe: E a Mariana?
Ma: Mamãe, Mariana foi pa paia?
Mãe: Oi você aqui.

Do que acabei de expor, é possível fazer pelo menos uma primeira


tentativa de discernir o outro da/na aquisição da escrita. É preciso começar
pelas práticas discursivas orais em que o texto escrito é significado, passando
a fazer sentido como objeto para a criança. Trabalhos sobre a concepção de
texto escrito do alfabetizando e, particularmente, a tese de Mota (1995)
mostram que, assim como os fragmentos da fala do adulto retornam na fala da
criança como significantes da situação discursiva instaurada pelo texto-
discurso do adulto, aspectos gráficos de textos escritos se repõem na escrita
inicial da criança.
É óbvio que esses "fragmentos de escrita", em que se inscreveram
aspectos da prática discursiva oral que puseram a criança em uma relação
significante com textos escritos, não "representam" os sons dessa fala que os
tornou de alguma forma perceptíveis. Contudo, é possível pensar que,
entrando em relação com outros fragmentos de escrita, em que se inscreveram
outras práticas discursivas orais, eles sejam ressignificados, isto é, dêem-se a
perceber para o alfabetizando em outros de seus aspectos gráficos. Já que
essa ressignificação incide também sobre as práticas discursivas orais, por que
não pensar, como propõe Mota (op. cit.), que, desse modo, fragmentos de
textos escritos entrem em relação com textos orais? Assim como o texto oral
instaura relações com objetos, relações que são significadas como referenciais,
o texto escrito pode entrar em relação com o texto oral, ganhando uma
significação que vem a ser interpretada como referência a ele.
Nesse processo de ressignificação que incidiria fundamentalmente
sobre cadeias de textos-discursos e não, sobre unidades como palavras e
sílabas, letras e fonemas - produtos desses processos -, o papel do outro seria,
como na aquisição da linguagem oral, o de intérprete. Lendo para a criança,
interrogando a criança sobre o sentido do que "escreveu", escrevendo para a
criança ler, o alfabetizado, como outro que se oferece ao mesmo tempo como

11
Em sua tese de mestrado, Maldonado (1995) mostra que erros como dómo por "durmo",
que incidem sobre verbos com alternância vocálica do português, resultam da colocação de
flexão na forma - no caso, "dorme" - que ocorre no turno precedente da mãe.

14
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

semelhante e como diferente, insere-a no movimento lingüístico-discursivo da


escrita.
Gostaria de terminar, trazendo para a reflexão do leitor um episódio de
que participei mais como observadora perplexa do que como interlocutora.
Diante da insistência da mãe de uma criança, sucessivamente reprovada na
primeira série do primeiro grau, aceitei "avaliar" a sua escrita. Sem saber muito
o que fazer, peço a ela que escreva alguma coisa. Numa impecável letra
arredondada, em ortografia correta, ela escreve : "A casa é de Maria". Diante
da aparência de cartilha dessa escrita, peço então para ela que escreva
alguma coisa sobre a irmã. Com dificuldade, entre várias interrupções, numa
letra apertada, ela escreve algo em que, dada a "troca de letras", os problemas
de separação de palavras, mal pude reconhecer a frase "Minha irmã bateu ni
mim". Mas, só aí, pude perceber sua escrita em movimento em um texto em
que ela não se apresentava como excluída, como na frase da cartilha e na letra
da professora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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do II Encontro Nacional de Aquisição de Linguagem: 5-49. Porto
Alegre: CEAL/PUC-RS.
Carvalho, G. M. (1995) Erro de Pessoa: Levantamento de questões sobre o
equívoco em aquisição de linguagem. Tese de Doutorado, inédita.
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- (1988) Language and Problems of Knowledge: Managua Lectures.
Cambridge, Mass.: The M.I.T. Press.
Ferreiro, E. & A. Teberosky (1979) Los Sistemas de Escritura en el
Desarrollo del Niño. Cidade do México: Siglo XXI.
Figueira, R. A. (a sair) O erro como dado de eleição no estudo da aquisição da
linguagem. Em M. F. Pereira de Castro (Ed.) Questões Metodológicas.
Campinas: Editora da UNICAMP.
Jakobson, R. (1963) Deux aspects du langage et deux types d'aphasie. In
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linguagem. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 22: 149-152.

15
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

- (1992) Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de


cambio. Substratum, 1: 121-136.
- (a sair) Língua e discurso na teorização sobre aquisição de linguagem.
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Lier-de-Vitto, M. F. A. F. (1994) Os Monólogos da Criança: "Delírios da
língua". Tese de doutorado. Campinas: IEL/UNICAMP, a sair pela Editora
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Vocálica: Uma análise socio-interacionista. Tese de mestrado.
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escrita. Tese de doutorado, inédita. SP: PUC-SP.
Orlandi, E. P. (1990) Terra à Vista. SP: Cortez.
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Vygotsky, L. S. (1930/1978) Mind in Society: The development of higher
psychological processes. Cambridge: Harvard University Press.

16
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

A ALFABETIZAÇÃO COMO OBJETO DE ESTUDO: UMA PERSPECTIVA


PROCESSUAL

Milton do Nascimento
UFMG/CEALE

A finalidade deste volume é o debate metateórico das pesquisas


lingüísticas sobre letramento e alfabetização que vêm sendo desenvolvidas em
algumas Universidades do país.
Meu texto representa, aqui, o trabalho sobre este tema do grupo de
pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, na verdade,
está se concentrando em torno do Centro de Estudos da Alfabetização e
Leitura (CEALE), que acabamos de criar oficialmente na Universidade Federal,
na Faculdade de Educação, e cuja diretora é a Profª Magda Soares. Neste
grupo, há pesquisadores da Faculdade de Educação e da Faculdade de Letras.
Além disso, o Centro conta com pesquisadores de outras instituições do
Estado, reunindo não só pessoal universitário, mas também, da Secretaria de
Educação do Estado de Minas Gerais, da Prefeitura de Belo Horizonte e de
Contagem. É um projeto de porte, empreendendo, hoje, nove pesquisas, que
serão aqui discutidas12. As pesquisas aqui consideradas são conduzidas no
Mestrado em Educação (Faculdade de Educação/UFMG) e em Letras
(Faculdade de Letras/UFMG) e no CEALE. A tendência é a de que, a curto
prazo, este Centro passe a congregar a maioria das pesquisas desenvolvidas
em Minas Gerais sobre o processo de alfabetização, ditando os parâmetros a
serem utilizados na sua definição, organização e implementação. Essa é a
razão porque julgo interessante considerar aqui a maneira como as pesquisas
em andamento no CEALE têm concebido o processo de alfabetização como
seu objeto de estudo.
Inicialmente, considerarei nossa delimitação do processo de alfabetização
como objeto de estudo. Neste momento, procurarei destacar já alguns
pressupostos teóricos e metodológicos assumidos pelo grupo. A seguir,
apresentarei um esboço do que poderíamos chamar de „o quadro de referência
teórica“ ou de o ponto de vista que enforma nossos trabalhos. Em terceiro
lugar, com o objetivo de deixar mais explícito nosso ponto de vista, destacarei,
a título de exemplo, alguns procedimentos adotados na condução de dois tipos
de pesquisa que estamos realizando. E, finalmente, como conclusão, vou
procurar apresentar um resumo dos pressupostos teóricos.
Vejamos, em primeiro lugar, a delimitação do processo de alfabetização
como objeto de estudo. Como vemos este nosso objeto de estudo?
As pesquisas atualmente em andamento no CEALE definiram-se,
basicamente, a partir da pesquisa da Profª Magda Soares, entitulada
Alfabetização no Brasil: O estado do conhecimento, publicada em livro pela
EDUC, em 1990, com data de 1989. Nesse livro, analisa-se artigos publicados
em periódicos especializados, dissertações e teses, produzidos na áreas de
Educação, Psicologia e Letras, no Brasil, no período de 1950 a 1986.
12
Não vou me referir a nenhuma destas pesquisas em particular, a não ser para ilustrar ou
mostrar alguma conseqüência do aspecto teórico ou metodológico abordado.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Na verdade, nas palavras da própria autora, esta pesquisa „teve como


objetivo a identificação da produção acadêmica e científica sobre a aquisição
da língua escrita pela criança no processo de escolarização regular e sua
descrição à luz de determinadas categorias: os temas que têm sido
privilegiados; as referências teóricas que vêm enformando estudos e
pesquisas; os ideários pedagógicos a elas subjacentes; os gêneros em que o
conhecimento produzido se expressa. Procurou-se, ainda, indicar as relações
entre essas categorias e evidenciar-se, sob uma perspectiva histórica, a
presença, maior ou menor, ao longo do período analisado, dos diferentes
temas, referenciais teóricos, ideários pedagógicos e gêneros. A fim de
contribuir para a identificação de estudos e pesquisas necessários na área de
alfabetização e oferecer subsídios para a definição de uma política adequada
de incentivo à pesquisa nesta área, buscou-se também determinar lacunas,
apontando temas ausentes ou insuficientemente explorados; referenciais
teóricos cuja presença na produção de conhecimento sobre alfabetização é
ainda pouco significativa; alternativas metodológicas de investigação que,
embora promissoras, ainda são pouco utilizadas na pesquisa sobre
alfabetização“ (Soares, 1989).
Há resultados interessantes deste esforço em situar as pesquisas em
alfabetização no Brasil13. Por exemplo, saber-se que a Lingüística está presente
e preocupando-se com a alfabetização a partir dos anos 70 e, mais
significativamente, somente nos anos 80; que se tem pouquissimos trabalhos
em Lingüística e de que tipo são estes trabalhos. Nesse trabalho, Soares
constata, ao lado de um aspecto quantitativo - crescimento numérico da
produção de estudos e pesquisas sobre alfabetização -, um importante aspecto
qualitativo: a diversidade de enfoques com que se tem ampliado a análise do
processo de aquisição da escrita. E atribui este fato ao reconhecimento recente
da complexidade do fenômeno alfabetização e da multiplicidade de facetas sob
as quais este fenômeno pode e deve ser considerado. Mas observa: „a
multiplicidade de perspectivas e a pluralidade de enfoques sobre alfabetização
não trarão colaboração realmente efetiva, enquanto não se tentar uma
articulação das análises provenientes de diferentes áreas de conhecimento,
articulação que busque ou integrar estruturalmente estudos e resultados de
pesquisa, ou evidenciar e explicitar incoerências e resultados incompatíveis“
(Soares, op. cit.).
A partir deste quadro geral, as pesquisas do CEALE vêm, justamente,
implementando esta tentativa de articulação que tem orientado a especificação
do processo de alfabetização como objeto de estudo. Ou seja, ao tomá-lo como
objeto de pesquisa, em qualquer das suas várias facetas, procura-se, sempre,
não perder de vista sua complexidade, admitindo-se, de antemão, „a
necessidade de articulação e integração de estudos e pesquisas desenvolvidas
no âmbito da Psicologia, da Lingüística, da Psicolingüística, da
Sociolingüística, etc.“ (Soares, op. cit.).
Isso, de um lado, determina uma maneira de se conceber os objetos de
pesquisa e, de outro, certas opções teóricas e metodológicas que exporemos a
seguir.

13
Estes dados estão à disposição do público, com fichas por temas e por cruzamento de
temas.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

No que concerne à maneira de se conceber os objetos de estudo,


procuramos deixar claro que o foco de nossas pesquisas sobre alfabetização
deve se situar no processo de alfabetização e não apenas em produtos
encontráveis neste processo. Isto tem várias conseqüências, não só em termos
de definição e condução das pesquisas, mas também em termos de seus
possíveis resultados. Pesquisadores que, trabalhando sobre o processo de
alfabetização, não levarem em conta esta determinação de foco sobre o objeto
pesquisado, podem adotar procedimentos e parâmetros que, como bem
observam Abaurre & Cagliari (1985: 26), „podem ser adequados para
descrever os produtos, mas não ajudam a compreender os processos
subjacentes à elaboração do discurso oral e escrito“.
É o que se observa na maioria das pesquisas que estudam as relações
entre o sistema ortográfico e o sistema fonológico. Pode-se constatar que tais
pesquisas ou consideram diretamente as correlações estabelecidas do ponto
de vista do pesquisador entre os dois sistemas, sem caracterizar o trabalho do
aprendiz que os processa, ou, se consideram o trabalho do aprendiz, no
processamento de tais relações, consideram-no fora do processo de
alfabetização, sem levar em conta as reais condições de produção neste
processo.
Tendo delimitado como objeto de estudo este ou aquele aspecto do
processo real de alfabetização, as pesquisas desenvolvidas no CEALE/UFMG,
- como pesquisa-intervenção ou como pesquisa de descrição e verificação -
estão todas focadas nesta vertente processual, quer tematizem processos
informais, não escolares, de aquisição de escrita, quer, como tendemos a
privilegiar, tematizem o processo de alfabetização formal, escolar, das classes
populares, dos colégios p·blicos.
Portanto, qual é a base de integração, o ponto comum em torno do qual
se organizam as pesquisas da UFMG, que se pretendem integradas neste
Centro de Estudos sobre Alfabetização e Leitura? A primeira é uma discussão
sobre como se conceber este objeto de estudo complexo e processual. Logo, a
primeira base para a integração de pesquisas está na definição do objeto.
Mas é evidente que esta pretendida integração de pesquisas - integração
no recorte do objeto - não se realiza apenas por uma concepção semelhante
do objeto de estudo, do processo de alfabetização. Ela se torna possível,
principalmente, pela adoção, por parte dos pesquisadores, de certos
pressupostos teóricos comuns, que vão embasar o conjunto dos trabalhos.
Numa visão processual, agora do trabalho do pesquisador, admite-se que o
ponto de vista, o referencial teórico utilizado na delimitação do objeto de estudo
e na organização de uma pesquisa não é estático, dado de uma vez por todas.
De certa maneira, ele é também construído, ou reconstruído, no desenvolver
da pesquisa.
Por isso mesmo, ao tentar explicitar o que há de convergente nos
referenciais teóricos que sustentam as pesquisas sobre alfabetização aqui
consideradas, vou me limitar a destacar apenas duas ou três noções nucleares
que, creio, são assumidas por todos os pesquisadores envolvidos nas
pesquisas. Destas duas ou três conceituações decorrem os demais construtos
teóricos que compõem os respectivos quadros de referência.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

A primeira concepção realmente negociada pelo grupo refere-se à noção


de aprendizagem. Poderíamos afirmar que, de maneira correlata à concepção
do objeto de pesquisa como fenômeno complexo, os pesquisadores a que nos
referimos também entendem o ato de conhecer como um processo complexo.
Creio mesmo que todos concordariam, no essencial, com Souza Lima (1990),
num artigo sobre construtivismo e alfabetização publicado no último número da
Revista da Faculdade de Educação/UFMG, onde a autora afirma que:
„aprender é um processo complexo. Estudá-lo implica necessariamente que se
faça um recorte. Entender este recorte como totalidade do processo de
aprender é, evidentemente, um reducionismo. Em Educação, temos lidado
continuamente com reducionismos que são, muitas vezes, encarados como
teorias fechadas ou por seu formulador ou por seus seguidores, mais
comumente, pelos segundos. Teorias estas que, pretensamente, dariam conta
da complexidade do aprender. Esta postura determina a limitação da própria
teoria como elemento de compreesão da realidade. Nesta perspectiva, ela
torna-se totalmente inadequada, uma vez que o aprender requer, para ser
compreendido, uma abordagem mais abrangente que envolve várias áreas do
conhecimento. Exemplo recente deste equívoco tem sido a utilização do
construtivismo, conceitualmente mal definido, cujos princípios são utilizados
para fundamentar as práticas díspares de sala de aula. Este fato é
conseqüência da transposição direta de uma teoria de uma área de
conhecimento para outra. O construtivismo não é uma proposta pedagógica,
não esgota as questões complexas que estão envolvidas no ato de ensinar e
aprender, que não são meramente de ordem psicológica. O construtivismo
apresenta um quadro teórico sobre o processo de construção do conhecimento
no ser humano, a partir de uma abordagem específica do indivíduo. Dentro da
Psicologia, existem outras teorias, que assumem o princípio do papel ativo da
criança na elaboração de seu conhecimento. Só que a relação entre sujeito e
conhecimento é vista sob um prisma distinto e de maior complexidade que no
construtivismo, na medida em que consideram o social e o cultural como
constitutivos do processo de construção do conhecimento“ (Souza Lima, op.
cit.).
Nesta citação, podemos afirmar que a autora caracteriza bastante bem e
nos pontos essenciais a noção de aprendizagem com que procuramos
trabalhar em nossas pesquisas: a) a concepção do ato de aprender e ensinar
como fenômeno complexo, que requer uma abordagem mais abrangente, que
uma só área do conhecimento não pode oferecer; b) a certeza de que o ato de
aprender e ensinar envolve questões que não são meramente de ordem
psicológica, ou seja, envolve considerações também de ordem lingüística; c) o
papel ativo da criança na elaboração de seu conhecimento, visto de uma
maneira mais ampla, que engloba o social, o cultural e, especificamente, as
condições de produção da alfabetização.
A segunda concepção representativa do enfoque do grupo é a noção de
aprendizagem da escrita, ou seja, diz respeito à especificidade da
aprendizagem da escrita. Um pressuposto adotado, de maneira geral, na
condução das pesquisas em pauta, é o de que, no momento da alfabetização
propriamente dita - o momento posterior àquele em que a criança já descobriu
com que tipo de escrita ela vai trabalhar ou o momento em que a criança entra
efetivamente na escola -, os alfabetizandos utilizam de maneira crucial os seus
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

conhecimentos da língua na construção e organização das sucessivas


representações gráficas da fala, que os conduzem ao domínio das regras
oficiais de escrita.
Portanto, um pressuposto central é este: de que o conhecimento
lingüístico é básico, é um elemento determinante, constituinte essencial, da
construção do conhecimento sobre a escrita pela criança. Isso corresponde a
dizer que a construção do conhecimento da escrita é essencilamente mediada
pela competência lingüística do aprendiz. Ela é um dos fatores determinantes -
condição de existência - da elaboração das hipóteses e estratégias por ele
utilizadas na construção de seu conhecimento sobre a escrita.
Concepção esta que nos leva a considerar a aprendizagem da escrita
como tendo características que a distinguem de outros tipos de aprendizagem.
A construção de conhecimento sobre a escrita é um tipo de aprendizagem que
tem características específicas em relação a outros tipos de aprendizagem.
Este foi um ponto muito discutido, pois é comum, no campo da Psicologia ou
de uma certa Psicologia, afirmar-se a universalidade da dinâmica dos
processos de aprendizagem.
Note-se que o fato dos pesquisadores em questão assumirem que o
conhecimento lingüístico do alfabetizando é um fator constitutivo essencial no
processo de construção de seu conhecimento da escrita, não implica que todos
concordem teoricamente em aspectos que concernem à gênese desta
competência. Este é um ponto bastante controverso. Como este conhecimento
é construído, qual sua base, qual sua modalidade de construção, quanto a isso
há bastante divergência no grupo de pesquisadores. Há muitos pesquisadores,
lá e fora de lá, que realmente colocam este conhecimento lingüístico, esta
competência, como central e como fazendo parte do objeto pesquisado.
Mas sejam quais forem as particularidades das teorias sobre aquisição de
linguagem com que operam, os pesquisadores da UFMG, ao colocarem os
conhecimentos lingüísticos do alfabetizando como fator essencial no processo
de aquisição da escrita, estão incluindo a linguagem oral como um dos
elementos constituintes do objeto de pesquisa. Pois dizer que é essencial o
conhecimento lingüístico, implica dizer a centralidade da atuação lingüística, do
desempenho lingüístico na oralidade. E isto evidencia a necessidade de
programarmos mais pesquisas do tipo das que Soares (1989: 108) chama de
pesquisas de intervenção, em que o pesquisador intervêm no processo de
alfabetização, introduzindo um ou mais elementos novos ou variáveis.
Se estamos colocando que toda a construção do conhecimento sobre
escrita é intermediado e tem como base a atuação lingüística do sujeito, seja
como ponto de referência, seja como condição de aprendizagem, e se
tomamos o processo de alfabetização daquela sala de aula particular, daquele
colégio tal como ele é organizado, é impossível simplesmente observarmos
como as crianças utilizam este seu conhecimento da linguagem oral. Temos de
intervir, reorganizar. Isto se torna um ajuste necessário no objeto a ser
pesquisado - o processo de alfabetização -, principalmente porque, citando
Cagliari (1986: 99) em sua maneira contundente de dizer, „a incompetência
dos professores de alfabetização em lidar com a linguagem oral é tão trágica
que, a meu ver, é um dos pontos que provocam um impasse ao progresso
escolar de muitos alunos“.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

É verdade que a formação que estamos dando - nós que formamos os


professores -, em termos de trabalhar com a linguagem oral, não capacita
estes professores para que coloquem esta centralidade de processos que
acontecem em linguagem oral e que intervêm na linguagem escrita. Nesse
ponto, Cagliari teria razão ainda hoje. Portanto, para estudarmos esse
processo de alfabetização, temos de fazer certos ajustes.
Colocando a atuação lingüística do alfabetizando como um elemento
propulsor so processo de construção do conhecimento da escrita, os
pesquisadores da UFMG estão conscientes do que diz Abaurre (1988: 14): „o
grande desafio está em sermos capazes de interpretar todas as hipóteses que
fazem as crianças no momento inicial da aquisição da escrita, para trabalhar a
partir dessas hipóteses na busca da escrita convencional socialmente
valorizada“.
Portanto, os dois tópicos que são pilares básicos do quadro de referência
destas pesquisas são as noções de aprendizagem e de aprendizagem da
escrita, tendo, esta ·ltima, como elemento constitutivo essencial o
conhecimento lingüístico do aprendiz. Isso implica, como decorrência, uma
perspectiva de pesquisa: o objeto pesquisado passa a ser, exatamente, este
suceder de hipóteses que a criança realiza desde o momento em que ela
começa a ter contato com a escrita, até o momento em que ela é capaz de
produzir escrita oficial.
Os pesquisadores concordam também com Abaurre, no mesmo texto
citado acima, em que „as crianças incorporam desde cedo, em sua produção
escrita, aspectos convencionais da escrita“. Isto não é de si tão evidente. Há
pesquisas que afirmam que a criança constrói seu conhecimento da escrita a
partir de seu conhecimento lingüístico e, a partit daí, começam a levantar
hipóteses e dados, levando-se em conta só a linguagem oral. Mas, em termos
processuais, a criança, quando entra na escola, já tem algumas idéias sobre
escrita. A cada momento, ela recebe informações sobre escrita do professor,
etc., e, em suas produções, ela demonstra exatamente que ela está levando
em conta elementos da escrita oficial. E, se estamos, a partir do produto das
crianças, tentando reelaborar as hipóteses com que ela os produz, temos de
levar em conta, em termos processuais, não só seu conhecimento da
oralidade, mas também como ela opera com seu conhecimento da escrita.
Mais ainda, estes pesquisadores postulam que, em termos processuais, é
necessário, nas pesquisas sobre alfabetização, tentar trabalhar com uma teoria
das relações entre sistema fonológico e sistema ortográfico construída pelas
crianças. Notem bem: relações construídas pela criança e não propostas pelo
lingnista.
Para isto, o que procuramos fazer foi tentar estabelecer uma primeira
categorização dos tipos de relações envolvidas na interrelação que a criança
estabelece entre os dois sistemas,. a partir da análise da produção das
crianças nesse processo e buscando verificar as hipóteses com que ela
trabalha, para, possivelmente, no melhor dos mundos, chegarmos a poder
descrever o caminho normal, o caminho usual que toda criança, num ritmo ou
noutro, segue até a sua aquisição de escrita.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Tínhamos uma pesquisa anterior, que estávamos começando em 1985 14,


que partia da „análise de erro“ das crianças; não uma „análise de erro“
localizada, mas da perspectiva da história dos tipos de „erros“ que ela produz
nesta tentativa de correlacionar estes dois sistemas. Uma „análise de erro“
sistemática, tentando isolar as variáveis (método, classe social, idade, sexo),
num método de teoria da variação, e visando uma certa topologia de „erros“, de
modo a chegarmos a ter uma certa base para começarmos a falar das
hipóteses desta criança.
A partir dos primeiros dados (até 1985, tínhamos chegado a trabalhar com
51.000 dados, todos eles digitados conforme variáveis estruturais/não
estruturais), chegamos à conclusão que, a maior dificuldade de análise se
apresenta face aos chamados "dados espontâneos". Quando se trata do
processo de alfabetização, é preciso ter cuidado, pois corremos o risco de o
aluno estar totalmente conduzido pelo professor, reproduzindo formas
memorizadas, produzindo formas que o professor ensinou e, então, o dado já
não se presta a este tipo de análise de produto, onde se busca saber, através
daquilo que o aluno realiza, como ele desempenha a tarefa de fazer
correlações entre os dois sistemas (fonológico e ortográfico) e produzir esta ou
outra escrita. Mas mesmo assim, podemos, com este tipo de método, chegar a
caminhar na direção de nossas hipóteses, pois aquilo que foge a esta
reprodução, se chegarmos a determinar como e porque foge, podemos
encontrar o que buscmos. Apesar de todo o controle, a criança ainda se
manifesta.
Tínhamos trabalhado com 51.000 dados (cf. Anexo I), mas com um
número mínimo de „erro“s. Tivemos, então, necessidade de ampliar o Banco
de Dados, trabalhando outros tipos de textos: redações informais, produzidas
num grau maior de informalidade para ficar mais perto do texto espontâneo;
textos colhidos em Supletivo, onde não havia formação escolar realmente
regular; etc. São estes os dados que temos agora no Banco de Dados: 857.000
dados categorizados e codificados. Estamos trabalhando sistematicamente
estes dados, a partir de oito arquivos que abrangem: a marcação da
nasalidade; sílabas travadas; dígrafos; ditongos; os processos que a criança
utiliza para a segmentação da escrita; como a criança adquire ou como ela
resolve o problema da composição do texto em seus aspectos anafóricos -
anáfora no sentido amplo; etc.
Portanto, trata-se de uma análise de produto, quantitativa, a partir da
metodologia da teoria da variação, que visa estabelecer uma topologia de
„erros“ de alfabetização, com o objetivo de tentar depreender as hipóteses
subjacentes a esta correlação que a criança faz entre sistema fonológico e
sistema ortográfico.
Paralelamente, vínhamos trabalhando, também desde 1985, numa
pesquisa de alfabetização de adultos, onde havíamos organizado o processo
de alfabetização numa seriação de atividades didáticas, a partir de certas
relações entre os dois sistemas.
14
Esta pesquisa, hoje, já está com mais de 850.000 dados - todos computados e com
disquettes à disposição no Banco de Dados - obtidos a partir de redações de crianças
selecionadas em termos de tipo de colégio (classe não privilegiada/classe privilegiada; rede
privada/rede pública), de série e idade, de sexo do informante (masculino/feminino) e pelo
tipo de método adotado na alfabetização (global/não global).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Neste segundo trabalho, fomos descobrindo que, na verdade, quando


dizíamos que a sílaba é um elemento essencial na aprendizagem da escrita de
palavras, não estávamos totalmente certos. Não se tratava realmente da sílaba
ou de aspectos segmentais. Nesta pesquisa-intervenção, ensinávamos
primeiramente leitura e só depois, escrita. Tínhamos a pressuposição de que,
assim, os alunos iriam escrever mais facilmente, mas foi o contrário. Eles
começaram a voltar ao zero, como se nunca tivessem visto a escrita; a não
segmentar. Portanto, ler é uma coisa e escrever, outra: o processo recomeça.
Uma das perguntas que nos colocávamos, então, era: por que que estes
rapazes insistem em escrever só até a tônica? Da tônica para frente, não
transcreviam. Ou então, conforme o tipo de enunciação na leitura, escreviam
de um jeito ou de outro. Começamos, portanto, a perceber aspectos muito mais
ligados ao suprasegmento que aos segmentos.
A partir daí, começamos a identificar uma certa natureza destes
processos; a ver que os „erros“ podiam ser categorizados. Poderíamos ter
dado uma descrição muito melhor destes processos, se tivéssemos trabalhado
com outros tipos de Fonologia que não a Linear. Estamos caminhando para
isso. MAs o importante é que começamos a organizar uma "taxonomia de
'erros'" de ortografia, no processo de alfabetização.
Insisto aqui no fato de que é necessário compreender bem isto que nós
chamamos de "taxonomia de 'erros'", pois pode-se entender que estamos
fazendo taxonomia de erros (sem aspas). Tem-se de entender este trabalho
como um instrumento utilizado na tentativa de pesquisar um aspecto do
processo de alfabetização. E o que quer dizer isto? Quer dizer que, na
verdade, não organizamos o material em função disto, mas que este é um
instrumento para que se possa, na análise do material, ver realmente que tipo
de relações os alunos fazem na produção de seu texto.
Esta taxonomia foi colocada em termos de tipos de „erros“ e fontes de
„erros“, como se pode ver no Anexo II. São Tipos de „erros“: (a) violação do
tipo de escrita; (b) violação de convenções invariantes do código escrito, no
que se refere às relações entre fonemas e grafemas; (c) violação da
representação gráfica oficial de um fonema, devido às relações opacas que se
estabelecem entre este fonema e seus alofones; (d) violação da representação
gráfica de seqüências de palavras; (e) violação das regras gramaticais
utilizadas na escrita; (f) violação das formas dicionarizadas; (g) violação das
regras que dizem respeito à forma do texto; e (h) „erros“ de hipercorreção.
Cada um destes tipos de „erro“ é subcategorizado pelas fontes de „erro“,
numeradas em arábico no Anexo.
O que interessa aqui é que estávamos usando esta taxonomia como
instrumento para separar determinados tipos de processo relativos às
hipóteses a respeito da relação entre os dois sistemas. Além disso, esta não é
a taxonomia completa. E apenas uma amostra, para colocar a idéia da
pesquisa.
Por exemplo, o tipo (A) - violação do tipo de escrita -, em seu subtipo (A)1
- utiliza-se de algo que não seja alfabeto oficial -, é uma categorização que visa
detectar as intervenções que não são propriamente „lingüísticas“, que estão
ligadas ao problema da descoberta do tipo de escrita com que o aluno está
trabalhando; ao problema sensório-motor, de percepção, de espacialização,
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

etc. Neste mesmo tipo (A) estariam, portanto, todos os fatores que pudessem
situar-nos quanto a um aspecto mais material ou sensorial ou psico-motor da
escrita e também quanto à compreensão daquilo que a escrita é.
No tipo (B), inicia-se os tipos de relações que estamos querendo
categorizar, que envolvem realmente conhecimento fonológico. Não vou
comentar todos os tipos, mas, apenas, como exemplo, o tipo (B) - violação de
convenções invariantes do código escrito, no que se refere às relações entre
fonemas e grafemas. A palavra importante aí é invariantes. Veja-se que, se
realmente o aluno percebe que há relação entre os dois sistemas que ele está
relacionando através da escrita, ele deve perceber - e vimos que isto é verdade
- que há relações diferentes. Estamos, então, tentando separar, nas suas
características, estas relações, para, depois, verificarmos - como verificamos -
que, nos textos mais avançados, por exemplo, este tipo (B) já está resolvido.
Nos textos de alunos que já estejam mais avançados ainda no processo, o tipo
(C) já está resolvido. E assim por diante. Os últimos a se resolverem são
aqueles da letra (H).
Compare-se, por exemplo, com (C): violação da representação gráfica
oficial de um fonema devido às relações opacas que se estabelecem entre este
fonema e seus alofones. Podemos ver que, na classe (B) e em suas várias
fontes, são relações que poderíamos, levando em conta a direção do
processamento (se é na direção da escrita ou se é na direção da leitura), dizer
que as relações em (B) são todas regulares. Ou seja, o aluno pode trabalhá-las
em termos de depreensão de generalidade, de regras. Já as relações em (C),
não. Entenda-se opacas aí - nesta relação: de um lado fonema, de outro
grafema - como efeito de um processo fonológico que esconde o
realcionamento dos dois sistemas. Por exemplo, em (B)7: relações opacas
oriundas da fala não padrão. Na fala do aluno, o infinitivo é /le-va/, /fa-ze/, /a-
ma/. Na ortografia, tenho a marcação do infinitivo com -r. Esta seria uma fonte
de „erro“ - o fato de, na fala padrão, o infinitivo se realizar desta maneira - que
é também uma fonte de opacidade, pois o aluno teria de fazer correspondência
com algo que não fala, para transcrever da maneira que o dialeto culto
realizaria fonicamente.
Note-se que, no tipo (D) - violação da representação gráfica de
seqüências de palavras -, colocamos uma coisa normalmente encarada como
inicial no processo de alfabetização. Isto é porque estamos olhando do ângulo
da criança. Apesar de, aparentemente, muitas vezes, no comecinho, ela já
estar segmentando, este é um trabalho de elaboração mais complexo, pois já
supõe uma análise mais global dos dois sistemas. Repare-se que o aprendiz
tem de partir de uma noção de unidade no âmbito da fala e realizar outro tipo
de unidade na escrita. Por isso, figuram aí dois tipos de fontes (unidades).
No tipo (E) - violação das regras gramaticais utilizadas na escrita -, o que
se vê é que, apesar de estarmos numa perspectiva onde o que interessa são
relações entre o sistema ortográfico e fonológico, temos de considerar também
a morfo-sintaxe. A fonologia não é o único elemento determinante da ortografia.
O tipo de „erro“ em (F) - violação das formas dicionarizadas -, em relação
a (B), representa outro tipo de aprendizagem, dentro daquela perspectiva de
se tomar aprendizagem como processo complexo. No caso de (B), a criança
pode chegar a operar com regras. Em (F), não há como falar de regras. Saber
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

se /sitw/ se escreve com c- ou com s- é uma aprendizagem praticamente


ideográfica, de memorização, de dicionário. Este tipo de „desvio“ da ortografia
oficial apresenta um tipo de relação onde posso esperar que, realmente,
mesmo os alunos mais avançados na aquisição do processo terão problemas.
Já no tipo (G) - violação das regras que dizem respeito à forma do texto -,
estamos caminhando da regularidade inicial para aquilo que é mais
ideossincrático; daquilo que está mais de acordo com a natureza do processo,
para aquilo que é mais convencional.
O que temos feito com esta tipologia ou taxonomia? Neste momento,
estamos tentando montar, com um Colégio da Prefeitura de Contagem, um
sistema de alfabetização que leve em conta este tipo de distribuição categorial
das relações entre os dois sistemas. Em que sentido? Não no sentido - que
tentamos no início -, de prepararmos textos que somente tenham relações de
um ou de outro tipo. Isto acaba por impossibilitar os textos: não há texto e nem
linguagem. Mas no sentido de formar o professor, para que ele possa,
aplicando esta taxonomia sobre os textos produzidos por crianças e
controlados de uma maneira mais ou menos sistemática, levantar a topografia
de „erros“ de seu(s) grupo(s) e dizer alguma coisa sobre a sua dinâmica da
construção do conhecimento sobre a escrita.
Em síntese, minha intenção neste texto, ao relatar como encaramos e
como organizamos a pesquisa em alfabetização no CEALE/UFMG, foi, em
primeiro lugar, mostrar que estudar o processo de alfabetização é um problema
também para nós. E que estamos tentando solucionar este problema,
trabalhando de maneira a que possamos dizer como concebemos e olhamos
este objeto de estudo.
Vimos que, no que se refere à concepção deste objeto, acentuamos seu
caráter processual e complexo e que, portanto, envolve necessariamente
olhares de várias áreas. Para encará-lo assim, temos de trabalhar com uma
noção de aprendizagem bastante mais complexa - que, também ela, tome
subsídios de várias áreas - e com uma noção de aprendizagem da escrita - e aí
se encontra o que mais importa - que coloque o foco de nossas pesquisas não
no produto, não no texto, mas nos seus mecanismos de produção. Por isso,
trabalharmos com uma concepção de aprendizagem que, em termos
processuais, coloca no centro da construção do conhecimento sobre a escrita a
competência, isto é, o desempenho lingüístico da criança na oralidade, tomado
não só como ponto de referência para ela, mas também como elemento
constitutivo do processo.
Portanto, a partir destas concepções sobre aprendizagem da escrita,
nossas pesquisas consistem em procurar interpretar algo daquilo que se passa
com a criança nesta construção do seu conhecimento da escrita. Para
sabermos sobre isto, estamos buscando instrumentos que nos permitam situar
a criança neste processo de alfabetização. Por exemplo, quando dizemos que
se trata de uma hipótese que a criança faz, a partir de seu conhecimento
lingüístico, é necessário que vejamos, conscientemente, se se trata realmente
de uma hipótese que podemos atribuir à natureza do conhecimento específico
ou se faz parte da intervenção do método, da organização do processo, de
outras intervenções de outros fatores não estruturais que possamos detectar.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Com isso pretendemos que, desenvolvendo este tipo de estudo, dentro de


algum tempo, possamos partir para um outro tipo de investigação 15_ em que,
para se estudar o processo de alfabetização, estude-se também as suas
condições de produção, ou seja, o que faz com que este processo de
alfabetização, numa escola de Minas Gerais, que teve esta história particular,
onde certos tipos de pesquisa, ao longo do tempo, influenciaram a montagem
deste tipo de processo de alfabetização, seja desta maneira e não de outra.
Neste sentido, temos também uma série de pesquisas sobre aspectos
históricos ligados à alfabetização. Principalmente, um Projeto Integrado com
quatro pesquisas, onde, por exemplo, uma delas pretende detectar como a
literatura, a partir de 1950 a 1986, tem tratado o problema da dificuldade de
aprendizagem. Isto porque a dificuldade de aprendizagem foi um tema
recorrente em alfabetização, até os anos 70, e ainda influencia a organização
do processo de alfabetização. Ora, partindo-se do pressuposto de que, em
termos processuais, a dificuldade de aprendizagem vai descrever muito menos
a ação do aprendiz e muito mais aquilo que define esta ação como problema
de aprendizagem, é preciso mapear o que se diz sobre dificuldade de
aprendizagem para se ver em relação a que quadro de referência isto é
determinado; que tipo de teoria (lingüística, ou não lingüística) subjaz a isso.
Nossa tentativa é justamente, portanto, a de articular os tipos de pesquisa
que eu chamaria de mais propriamente lingüísticas, como as que descrevi ao
longo do texto, a estes outros tipos de pesquisa - como este mapeamento da
noção de dificuldade de aprendizagem ou como outra pesquisa, sobre o papel
do IPEAD (um centro de alfabetização dos Estados Unidos) na formação de
alfabetizadores em Minas Gerais ou, ainda, com pesquisas sobre a formação
do alfabetizador, seus valores, seu imaginário, sua técnica. Tal tentativa
decorre, tal como quis demonstrar neste texto, de nossa definição de objeto de
estudo, encarado não como alfabetização ou aquisição individual de escrita,
mas como processo complexo, enfocado a partir deste quadro de referenciais
teóricos que está em construção, em permanente diálogo interdisciplinar entre
as diversas áreas que produzem conhecimento sobre alfabetização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [verificar e completar fontes]

Abaurre, M. B. & L. C. Cagliari (1985) Textos espontâneos na 1ª série:


Evidência da utilização, pela criança, de sua percepção fonética da fala
para representar e segmentar a escrita. Cadernos CEDES, 14: 25-29.
SP: Cortez Ed.
- (1988) The interplay between spontaneous writing and underlying
linguistic representations. European Journal of Psychology of
Education, 3(4): 415-430.
Cagliari, L. C. (1986) A ortografia na escola e na vida. In Isto se Aprende com
o Ciclo Básico, Projeto Ipê, Curso II: 97-108. SP: CENP-SE-SP.

15
No grupo de Minas Gerais, a Profª Magda Soares já está levando a efeito este tipo de
pesquisa.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Soares, M. (1989) Alfabetização no Brasil: O estado do conhecimento. SP:


EDUC/PUC-SP, 1990.
Souza Lima, E. (1990) Construtivismo e alfabetização. Revista da Faculdade
de Educação. BH: UFMG, 1990.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

ANEXO I: CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

O corpus analisado constituía-se, inicialmente, de 51.946 dados. No


decorrer da análise, uma vez descartados os "erros" que não se mostraram
significativos, este corpus passou a se constituir de 27.298 dados, assim
distribuídos:

CATEGORIA PROBLEMA N° DE CASOS N° DE ERROS


I - NASALIDADE 1 - m 963 26
2-n 1.246 58
3 - ão 315 16
4 - am 229 26
5-ã 18 02
TOTAL 2.771 128
II - DIGRAFOS 1 - nh 581 13
2 - rr 105 11
3 - ch, lh, gu, qu 1.065 29
TOTAL 1.751 53
III - TRAÇO DE 12.602 54
VOZ TOTAL 12.602 54
IV - SILABAS 1-r 1.280 59
TRAVADAS 2-s 2.567 90
3-l 265 31
TOTAL 4.112 180
V - DITONGOS 2.065 44
TOTAL 2.065 44
VI - SILABAS 1 - S intervocálico 616 57
CORONAIS 2 - S inicial 851 27
3 - Z intervocálico 447 28
4 - /S/ pré-vocá 269 17
lico
5 - /Z/ diante de 114 16
e, i
TOTAL 2.297 145
VII - DESINÊNCIA 204 19
DE GERÚNDIO TOTAL 204 19
VIII - 1.496 13
ALÇAMENTO TOTAL 1.496 13
DE /E/ PRÉ-
TÔNICO
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

ANEXO II: TIPOS E FONTES DE "ERROS"

Esta tipologia de "erros" conta com oito classes diferentes, determinadas


segundo o aspecto da escrita que esteja sendo violado.
(A) Violação do tipo de escrita:
(A)1 - utiliza-se de algo que não seja o alfabeto oficial;
(A)2 - uma letra não é traçada corretamente.
As fontes para este tipo de "erro" são as seguintes:
(1) O aprendiz ainda não percebeu quais são as unidades que a escrita
alfabética pretende representar e escreve coisas como bblt (=borboleta), bde
(=bonde).
(2) O aprendiz desenha uma letra x no lugar de uma letra y por incapacidade
de fazer discriminações visuais (m/n, p/q, b/d), por incapacidade de fazer
discriminações auditivas (p/b, t/d, s/z), ou por pura distração (qualquer dos
exemplos anteriores).

(B) Violação de convenções invariantes do código escrito, no que se refere às


relações entre fonemas e grafemas:
(3) Um mesmo grafema representa dois fonemas diferentes, conforme o
contexto em que ele ocorra. Ex:
Grafema r:
- fonema /h/ nos contextos ##______V 'rato'
V______V 'honra'
V______C 'irmos'
C$______V 'bilro'
- fonema /r/ nos contextos V______V 'cara'
C______V 'trata'

(4) Um mesmo fonema é representado por dois grafemas diferentes, conforme


o contexto em que ele ocorra. Ex:
Fonema /h/
- grafema rr no contexto V_______V 'carro'
- grafema r nos demais ambientes.
(5) A vogal nasalizada é representada por um dígrafo Vn/Vm, no caso de
nasalidade primária em interior de palavra, ou por um dígrafo V/Vm, no caso de
nasalidade primária em fim de palavra.
Ex: anda, venda, pinta, ponta, junta
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

samba, sempre, limpo, bomba, tumba


lã, tem, fim, bom, mutum
Note-se que estas convenções são invariantes, isto é, não admitem excessões.
Além disso, nos exemplos acima, as convenções funcionam nos dois sentidos,
no que se refere a fonema/grafema. Note-se que é possível que a convenção
funcione apenas no sentido grafema/fonema: o grafema s no contexto
V_______V só pode representar o fonema /z/, como em 'casa', 'rosa',
'miserável', etc. Mas o fonema /z/, no contexto V______V, pode ser
representado também pelos grafemas z ('reza') ou x ('exato') e no contexto
V_______V, o grafema s pode representar tanto /z/ ('trânsito') quanto /s/
('ânsia').

(C) Violação da representação gráfica oficial de um fonema devido às relações


opacas que se estabelecem entre este fonema e seus alofones:
(6) Relações opacas oriundas da fala padrão:
Ex: sol [w] (cf. solar [l])
jure [i] em alguns dialetos (que fundem jure com júri) e [e] noutros (que
mantém separado jure e júri).
(7) Relações opacas oriundas da fala não padrão:
Ex: levar [°] (cf. levarmos [h]).
(8) Relações opacas oriundas do condicionamento lexical de certos processos
fonológicos:
Ex: cenoura [e] ceroula [i]
comício [o] comida [u]
(9) Relações opacas oriundas da não especificação de um traço de um
arquifonema, traço este que é preenchido no contexto:
Ex: deste [s] desde [z]
paz [s] pazes [z]
(10) Relações opacas oriundas do desvozeamento, que, em português, se dá
em situações bem específicas.
(11) Relações opacas oriundas da reinterpretação de seqüências de fonemas
em seqüências de fones.
Este caso se refere, especificamente, aos fenômenos da monotongação (ou
redução de ditongos) e da ditongação.
Ex: /ow/ > [o] falou 'falô'
/o/ > [ow] professora 'professoura'

(D) Violação da representação gráfica de seqüências de palavras:


(12) Relações opacas entre palavras morfológicas e palavras fonológicas.
Ex: opato (=o pato), mileva (=me leva)
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(13) Relações opacas entre palavras morfológicas e grupos de força.


Ex: jalicotei (=já lhe contei), casamarela (=casa amarela)

(E) Violação das regras gramaticais utilizadas na escrita:


(14) Relações opacas entre a morfologia da fala e da escrita.
Ex: as casa branca (=as casas brancas)
nós foi lá (=nós fomos lá)

(15) Relações opacas entre a sintaxe da fala e da escrita.


Ex: tem casa vendendo ali (=ali tem casa sendo vendida)
quando ele 1 viu ele1 naquela situação... (=quando ele se viu naquela
situação...)

(F) Violação das formas dicionarizadas:


(16) As formas X e Y são dicionarizadas, mas remetem a conceitos diferentes.
Ex: cesta-feira (=sexta feira)
seção espírita (=sessão espírita)
cinto muito (=sinto muito)
(17) A forma X é dicionarizada, mas a forma Y, não.
Ex: jelo (=gelo)
xoque (=choque)
noço (=nosso)
(18) Uma entrada de dicionário Z [inclui/exclui] um acento gráfico.
Ex: codigo (=código)
mála (=mala)

(G) Violação das regras que dizem respeito à forma do texto:


(19) Não utilização, ou utilização inadequada, de recursos como parágrafos,
aspas, negritos, travessões, etc.

(H) „Erros“ de hipercorreção:


(20) Uma forma X' é criada por analogia a uma forma X que, pela ação de uma
regra Y, passa a x'.
Ex: jogol (=jogou) :: gol <Y> [gow]
X' X x'
Y = /l/ /___## passa a [w].
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

A RESPEITO DE ALGUNS FATOS DO ENSINO E DA APRENDIZAGEM DA


LEITURA E DA ESCRITA PELAS CRIANÇAS NA ALFABETIZAÇÃO

Luiz Carlos Cagliari


IEL/UNICAMP
I

As atividades de leitura e de escrita têm sido objeto de estudo de muitos


pesquisadores, sobretudo nas últimas décadas. Tem-se estudado o fenômeno
de muitos pontos de vista, trazendo-se, assim, contribuições para uma melhor
compreensão dos fatos envolvidos e, conseqüentemente, para uma melhor
atividade escolar16.
Neste trabalho, procuro analisar alguns fatos de conhecimento geral,
porém, interpretados, às vezes, de maneira própria, de acordo com o ponto de
vista específico de um lingüista interessado, sobretudo, nos aspectos fonéticos
da fala e na natureza, estrutura e usos dos sistemas de escrita. Pretendo,
assim, ampliar um pouco um tipo de discussão que, certamente, levará o
debate dessas questões a um melhor entendimento do processo de aquisição
da leitura e da escrita na alfabetização. Ainda há muito o que pesquisar e o que
discutir e, aqui, faço apenas uma pequena contribuição 17.

II

Para se ler um texto escrito é preciso, antes de tudo, saber decifrar o que
está escrito. No mundo, ainda há vários sistemas de escrita que ainda não
foram decifrados (disco de Faistos, linear A, Maia, escrita de Mohenjo-Daro, da
Ilha de Páscoa, etc. (Jensen, 1970; Cagliari, 1987)). Ao tentarem uma
decifração, os cientistas começam a fazer hipóteses sobre o sistema,
procurando qualquer evidência que os ajude a ir, aos poucos, descobrindo tudo
o que precisam saber para ler este sistema de escrita. Esse foi o trabalho
realizado por muitos sábios que, nos últimos duzentos anos, decifraram muitos
sistemas antigos de escrita, como o egípcio, o cuneiforme, o linear B, etc.
(Doblhofer, 1962).
Uma pessoa qualquer que vive no meio urbano, mesmo sendo uma
criança, logo percebe que a escrita é uma realidade do mundo em que vive. Ao
16
Meu objetivo, neste texto, é discutir fatos e não teorias. Sinto-me, portanto, à vontade para
dizer o que penso. Mas sei, também, que não existe análise sem teoria por trás, definindo o
ângulo pelo qual se comenta os fenômenos. Neste caso, há toda uma orientação lingüística
de minha formação.
172
Uma vez que pretendo, apenas, comentar certos fatos da aquisição da leitura e da escrita
por crianças na alfabetização e não, discutir teorias ou interpretações diferentes, não faço,
aqui, uma revisão da literatura a respeito do assunto tratado. A curiosidade do leitor, porém,
será recompensada, se este se dispuser a realizar essa tarefa, uma vez que há muitos
trabalhos interessantes a respeito, sobretudo os da linha cognitivista, socio-interacionista ou do
chamado ”construtivismo”.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

tentar entender melhor como a escrita é, essa pessoa começa a fazer


especulações a respeito do uso desse objeto e de sua estrutura interna e
organização externa, como, aliás, faz com qualquer coisa do mundo que queira
conhecer.
Assim como o cientista anda por vários caminhos até chegar à verdade e
decifrar um sistema de escrita antigo, assim também, uma criança envereda
por muitos caminhos, até chegar a descobrir o que precisa saber para decifrar
e ler o nosso sistema de escrita e poder escrevê-lo adequadamente.
O sábio progride à medida que compara o que já fez com uma nova
descoberta. A criança procede da mesma maneira. Por essa razão, é
importante que as descobertas parciais já feitas sejam explicitadas, registradas,
para que possam ir se constituindo em elementos com os quais as pessoas
vão construindo o seu conhecimento a respeito do objeto que investigam e
estudam.

III

Nas aulas de alfabetização, muitas vezes, é dada uma ênfase muito


grande ao processo de ensino, deixando-se, na prática, o processo de
aprendizagem relegado a um plano secundário. Obviamente, o ato de ensinar
pode ser feito por um professor diante de um grupo de alunos; nesse sentido, é
um ato coletivo. A aprendizagem, porém, será sempre um ato individual. Cada
pessoa aprende por si, de acordo com suas características pessoais, ou, como
se costuma dizer, cada um aprende segundo seu ”metabolismo”.
Uma criança, na sala de alfabetização, encontra-se numa situação
semelhante à de um cientista diante de um documento com uma escrita não
decifrada. Ambos começam a procurar uma entrada para esse mundo, para
descobrir como o sistema de escrita funciona. Neste caso, tudo é difícil e não
faz sentido pretender aprender o que se precisa numa ordem de dificuldades
escolhida de antemão e com exemplos ”facilitadores”. Também não existem
hipóteses naturais, organizadas em etapas ou períodos. Inútil começar-se com
escritas ideográficas, pictográficas ou convencionais, para se chegar a uma
escrita fonográfica; ou vice-versa. A única coisa importante são os
conhecimentos que cada um tem, construídos pelos indivíduos, por influência
da cultura onde vivem, ou elaborados criativamente pelo próprio pesquisador.
Se pudéssemos partir de uma linha pré-determinada de construção do
conhecimento, já teríamos, há quinhentos anos, decifrado o sistema de escrita
Maia.
Descobrir o mundo, a vida e o homem é o desafio de cada homem como
ser racional. O homem é, por sua natureza, um eterno descobridor. As crianças
adoram aprender e, se dermos chances a elas, aprenderão seja o que for. O
caminho de cada um tem o seu colorido e a sua paisagem, mas, com um
pouco de ajuda, as crianças aprendem o nosso sistema de escrita facilmente e
tornam-se seus usuários. A escola não precisa se preocupar muito com a
aprendizagem: isto as crianças farão por si. Precisa preocupar-se com dar
chances às crianças para vivenciarem o que precisam aprender, sentirem que
o que fazem é significativo e vale a pena ser feito. Sem esse interesse
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

realmente sentido pelas crianças, as atividades da escola podem não passar


de um jogo, de um brinquedo, de uma obrigação, que alguns podem realizar e,
outros, inconformados, se passar.

IV

Alunos que são submetidos a um processo de alfabetização, seguindo o


método das cartilhas (com livro ou não), são alunos que são expostos
exclusivamente ao processo de ensino. O método ensina tudo, passo por
passo, numa ordem hierarquicamente estabelecida, do mais fácil para o mais
difícil. O aluno, seja ele quem for, parte de um ponto inicial zero, igual para
todos, e vai progradindo, através dos elementos já dominados, de maneira
lógica e ordenada. A todo instante, são feitos testes de avaliação (ditados,
exercícios estruturais, leitura perante a classe), para que o professor avalie se
o aluno ”acompanha” ou se ficou para trás. Neste último caso, tudo é repetido
de novo, para ver se o aluno, desta vez, aprende. Se ainda assim não
aprender, repete-se mais uma vez, remanejam-se os alunos atrasados para
uma classe especial, para não atrapalharem os que progrediram, até que o
aluno, à força de ficar reprovado, desista de estudar, julgando-se incapaz. E a
escola lamenta a chance que a criança teve e que não soube aproveitar (sic!).
O método das cartilhas não leva em consideração o processo de
aprendizagem. Quando diz que faz a verificação da aprendizagem através de
ditados, provas, etc., na verdade, está verificando, não se o aluno aprendeu ou
não, mas se o aluno sabe responder ao que se pergunta, reproduzir um modelo
que lhe foi apresentado, demonstrar que o professor ensinou direito. O que se
passa na mente do aluno, as razões pelas quais ele faz ou deixa de fazer algo,
são coisas que o método não permite que o aluno manifeste.

Um método de alfabetização que leve em conta o processo de


aprendizagem deve deixar um espaço para que o aluno exponha suas idéias a
respeito do que aprende. Isto pode ser feito não de maneira dissertativa (como
faz o professor, quando ensina), mas através da realização de trabalhos, onde
se pode ver o que o aluno fez e descobrir o que o levou a fazer o que fez, do
jeito que fez. Quando o aluno toma a iniciativa e diz algo, ou escreve, ou lê, ele
coloca, nessas atividades, seus conhecimentos. Como ele, nesse momento,
conhece apenas parcialmente o que está fazendo, inevitavelmente, irá cometer
acertos e erros. Da análise desses acertos e erros, pode-se descobrir o que o
aluno sabe e o que não sabe, se sabe ao certo ou se está tomando decisões
equivocadas, estranhas e incorretas.
Porque as cartilhas dirigem demais a vida do aluno na escola, ele tem que
seguir apenas um caminho, por onde passam todos; só pode pensar conforme
o método manda e fazer apenas o que está previsto no programa. Para alguns
alunos, esse ”caminho” até que é ”suave” no começo, mas depois, quando
acaba a cartilha e se vêem na situação de terem de lidar não apenas com
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

elementos já dominados, como na cartilha, mas com o novo e desconhecido,


então, não sabem mais progredir, aprender, e a escola, que parecia tão
organizada, torna-se uma enorme confusão para essas crianças. Aquilo que
parecia tão organizado na cartilha, torna-se um caos fora dela e o aluno,
geralmente, não tem mais a quem recorrer.
Por outro lado, aquele aluno que tem seu espaço para revelar suas
hipóteses, através de sua iniciativa, em trabalhos escolares, parece, no
começo, em meio a um enorme caos. Mas, aos poucos, vai aprendendo a
organizar seus conhecimentos e a adequá-los à realidade e, aos poucos, tudo
vai achando seu lugar e sua razão de ser, de tal modo que esse aluno acaba
aprendendo não só o que deve, em termos de conteúdo, mas também aprende
a aprender: aprende como ele, do jeito que é, deve fazer para construir seus
conhecimentos. A escola precisa se preocupar antes com a aquisição do
processo de aprendizagem e depois com os resultados obtidos pelas crianças.
Alfabetizar pelas cartilhas (isto é, pelo BABEBIBOBU) é desastroso e,
quando o aluno aprende e progride nos estudos, faz isto apesar da escola.
Para outros alunos, o método é catastrófico e sem solução para os seus
problemas, dificuldades e perplexidades, ao tentarem construir os seus
conhecimentos na alfabetização.

VI

Um bom trabalho de alfabetização precisa levar em conta o processo de


ensino e de aprendizagem de maneira equilibrada e adequada. O professor
tem uma tarefa a realizar em sala de aula e não pode ser um mero expectador
do que faz o aluno ou um simples facilitador do processo de aprendizagem,
apenas passando tarefas. Cabe a ele ensinar também e, assim, ajudar cada
aluno a dar um passo adiante e progredir na construção de seus
conhecimentos.
Com as novas idéias do construtivismo, alguns professores têm levado os
trabalhos de alfabetização para o extremo oposto ao das cartilhas, também
com graves conseqüências para alguns alunos. É o caso absurdo do professor
que pretende tirar todos os conhecimentos a partir do aluno e, para tanto, acha
que sua tarefa não é a de ensinar, mas, apenas, a de promover situações para
o aluno fazer algo. Tudo o que o aluno faz é valorizado - mesmo que se
constate que ele começa a andar em círculos e não consegue ir além do que
faz -, na esperança de que, um dia, ele descubra a solução de seu problema.
Isto pode demorar demais e o aluno se vir ridicularizado pelos seus colegas,
perturbado pelos pais, quando não acontece, para sua grande surpresa, um
convite por parte da escola para ele se retirar ou para ir para uma ”classe se
alunos de seu nível”. Muitos eufemismos e hipocrisias.
No extremo, por exemplo, algumas classes, estudando algo escrito,
parecem-se com um grupo de pessoas completamente desnorteadas diante do
sistema de escrita; como turistas curiosos vendo peças de um Museu: todos
dão palpites e não se constrói nada. A escola tem que ser diferente: como o
professor conhece o sistema de escrita que usamos (e alguns alunos
conhecem alguns de seus aspectos), a escola deve dispor desses
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

conhecimentos para ajudar quem não sabe. Não é só o professor que é um


mediador entre uma atividade e um aluno que aprende, mas os próprios alunos
podem ser mediadores uns dos outros, quando trabalham juntos e
compartilham seus conhecimentos.
Deixar o aluno construir seus conhecimentos é fundamental como
atividade própria do aluno. Ensiná-lo, ajudá-lo a progredir é também
fundamental como atividade do professor e como objetivo que dá a razão de
ser de uma escola. Se for apenas para constatar o que cada um faz na vida,
não é preciso escola.
Essa situação não é própria só da alfabetização. Em séries adiantadas,
alguns professores não vão além da simples constatação das tarefas
realizadas pelos alunos e da atribuição de notas. O professor não sabe ensinar
(ou não ensina simplesmente), quando um aluno, sistematicamente, escreve
errado a ortografia das palavras, não sabe escrever um texto adequadamente,
não sabe resolver determinadas dificuldades de matemática, química, etc. Nas
séries mais adiantadas, é ainda mais difícil encontrar escolas que deixam
alunos serem mestres de seus colegas, mediadores do processo de
aprendizagem de seus companheiros. A interação social, infelizmente, ainda é
um fato ausente de nossas salas de aula e, com isso, a escola perde uma
importante ferramenta de aprendizagem. É curioso como o ensino precisa ser
compartilhado, vivido, para fazer sentido para os indivìduos e ser memorizado
e usado, quando necessário. Pois é exatamente assim que aprendemos.
Ensinar não é repetir um modelo até que se aprenda o que ele quer dizer.
Ensinar é compartilhar as dificuldades do aprendiz, analisá-las, entendê-las e
sugerir soluções. Como, a cada momento, um indivíduo está numa situação
histórica diferente da construção da sua vida e de seus conhecimentos, a cada
momento o ensinar é diferente.
Por outro lado, nenhum processo de ensino pode se realizar, se o
professor desconhece o que acontece com o aluno no seu processo de
aprendizagem. Todo programa de ensino pode, de antemão, unicamente,
estabelecer linhas gerais. Na sua realização, ele precisa se adequar à
realidade de cada um dos aprendizes.
Conhecer a realidade do aluno não é uma tarefa metodológica ou
psicológica: é interpretar de maneira correta os conhecimentos que o aprendiz
tem a respeito do que faz e do jeito que faz. Para isto, o professor não precisa
de conselhos pedagógicos, mas de conhecimentos técnicos específicos,
detalhados e completos, a respeito do assunto que ensina e das coisas que o
aluno está querendo aprender.

VII
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Penetrar no mundo da aprendizagem é tarefa difícil, porque, em outras


palavras, de certo modo, é penetrar na mente das pessoas; é descobrir o que
elas pensam, quando realizam algo. Se essa tarefa não for realizada
corretamente, em vez de descobrir o que a outra pessoa pensa, o analisador
pode se equivocar, interpretar com pré-conceitos de sua parte, pode chegar ao
erro por ignorância. Se este pesquisador representar uma autoridade, suas
conclusões podem ter sérias conseqüências para a vida da escola e das
pessoas. Quantos alunos não aprendem por causa da ignorância de seus
professores que não sabem avaliar corretamente o que o aluno faz? Por
exemplo, na alfabetização, um aluno escreve uma palavra com as letras
devidas, mas, porque escreve com uma péssima letra, o professor pensa que
ele escreveu ortograficamente errado.
Esse é um perigo que os cientistas, sobretudo da área de ciências
humanas, sempre enfrentam, quando estão realizando seus projetos de
pesquisa. Pessoas que investigam a linguagem, ou outra coisa qualquer
através da linguagem, precisam ser profundos conhecedores de como a
linguagem é, o que, mesmo para um lingüista experiente, ainda não é uma
tarefa fácil e simples. Um exemplo antológico é a maneira como algumas
pessoas chegaram à conclusão a respeito do chamado ”realismo nominal”. Por
exemplo, se se perguntar a uma criança não alfabetizada: ”que palavra é
maior, BOI ou FORMIGA?”, ela dirá que é BOI. A razão pela qual ela diz BOI e
não FORMIGA, segundo alguns, é porque a criança, nesse momento, só sabe
pensar a linguagem com relação ao mundo material, isto é, só sabe fazer um
uso concreto (sic!) da linguagem; não consegue abstrair. Daí vem a expressão
”realismo nominal”. Ora, esse tipo de pergunta é, pelo menos, estranho para os
fins que se deseja investigar, porque toda palavra não tem apenas sons (ou,
pior ainda, letras), mas significados, que estão indissoluvelmente associados
aos sons. Portanto, uma ”palavra” enquanto tal, pode ser tomada pelo
significante (sons) ou pelo significado. A criança tinha duas opções e escolheu
a interpretação semântica, dizendo BOI, uma vez que no uso comum da
linguagem, guiamo-nos, de maneira mais consciente pela semântica e não pela
fonética. Se a pergunta feita à criança fosse, por exemplo: ”quando você fala,
você mexe mais a boca, quando fala a palavra BOI, ou quando fala a palavra
FORMIGA?”, a criança iria responder indicando a palavra FORMIGA e não,
BOI. O tipo de pergunta induz a um tipo especial de resposta.
Além disto, é curioso que as pessoas que procuram saber se as crianças
sabem ”abstrair”, interpretem a ”palavra” como algo concreto. O que é concreto
é a pronúncia e a escrita. A palavra como tal não tem tamanho, peso, não
ocupa espaço, ou seja, é imaterial e, como um conceito - diferente de uma
imagem -, é totalmente abstrata. Por isso, mesmo quando a criança diz BOI ou
FORMIGA, será sempre uma resposta estranha, a uma pergunta sem sentido.

VIII
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Ao lidar com a linguagem é preciso, ainda, tomar cuidado com relação


aos rótulos que se atribui, na análise, a determinados fatos. Como os rótulos
são palavras e podem ser termos técnicos, com definições rigorosas, o seu uso
indevido pode levar a análise a interpretações equivocadas. Por exemplo, a
noção de sílaba é algo muito claramente definido, quer foneticamente, quer nos
sistemas de escrita (embora, fonologicamente, possa ser redefinida à
conveniência das teorias).
No entanto, é muito comum o uso desse rótulo para classificar fatos que
não se caracterizam, na verdade, como o que se define, nas ciências da
linguagem, por ”sílaba”. Um exemplo famoso é o uso equivocado da noção de
sílaba para definir regras de acentuação e de uso de hífen na língua
portuguesa (Cagliari, 1989).
Um sistema de escrita, que tem caracteres com valores silábicos, é
aquele que usa um caractere para cada exemplo de sílaba, segundo o sistema
lingüístico dessa língua, como a escrita cuneiforme, a japonesa, as escritas
indianas e tantas outras. Neste caso, o caractere representa um padrão
composto de consoantes e de vogais. Tem-se, então, caracteres diferentes ,
por exemplo, para as vogais, quando usadas isoladamente em sílabas, e para
as composições de consoantes e de vogais. As escritas indianas caracterizam-
se por padrões silábicos do tipo CV, onde V é sempre a vogal ”a”. A escrita
japonesa, por sua vez, associa consoantes com vogais diferentes, à moda das
cartilhas (Baeiou).
Uma outra maneira de se escrever consiste em representar apenas as
consoantes das palavras. As línguas semíticas antigas (egípcio, fenício,
hebraico, árabe) registravam, na escrita, apenas as consoantes,
individualmente ou em grupos (Jensen, 1970; Cagliari, 1987). Em egípcio,
representava as consoantes PR, mas podia-se escrever PR com  = P e =
R. No nosso sistema, temos a letra X que pode representar duas sílabas ou
duas consoantes: TAXI = TA-KI-SI ou TA-KSI, ou o T, que pode representar um
ou dois sons, como em TIA = TI-A ou TCHI-A; em grego, a letra psi ()
representa duas consoantes, isto é, P + S.
A representação apenas de consoantes na escrita não pode ser chamada
de representação silábica, mesmo quando uma letra ocupa o lugar de uma
sílaba, se o sistema pretende, com essas letras, representar apenas as
consoantes. Nestes casos, as letras não representam padrões silábicos, mas
tão somente os elementos consonantais.
Quando, numa fase inicial, uma criança tenta escrever fazendo bolinhas
ou rabiscos, ela pode ir atribuindo um rabisco a cada palavra ou a cada sílaba
que vai pronunciando. Esse sistema de escrita que está construindo e
convencionalizando para si, nesse momento, é um sistema logográfico
(representando palavras por caracteres individuais) ou silábico (representando
sílabas por caracteres isolados). Considerar este segundo tipo de escrita como
pré-silábico é, sem dúvida, muito estranho ou equivocado. O fato de não usar
letras do nosso alfabeto não é argumento para ser ”pré-silábica”. Ela é,
simplesmente, pré-letrada (do ponto de vista do nosso sistema de escrita).
As crianças, quando estão aprendendo a relacionar letras com sons da
fala, usam, entre outras estratégias, a enunciação da fala por sílabas, dizendo,
por exemplo, CA-VA-LO. Ao fazerem isso, podem prolongar a vogal - CAAA-
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

VAAA-LOOO -, o que mostra a vogal como sendo a parte mais saliente da


prolação. Se elas acharem que basta uma letra para cada unidade da fala
(sílaba), neste caso, escolhendo o elemento fonético mais saliente, poderão
escrever AAO para ”cavalo”. Mas, se por outro lado, em vez de darem ouvidos
à sonoridade das sílabas, resolverem observar os movimentos articulatórios
que fazem ao silabar, irão colocar em destaque o início das sílabas - dizendo
CA-CA-CA, VA-VA-VA, LO-LO-LO - e, ao registrarem a escrita da palavra,
poderão tentar escrever ”cavalo” com CVL.
É curioso observar que essas crianças já conhecem algumas relações
entre letras e sons. Sabem que A = A, O = O, V = V, etc., mas optam por
representar, na escrita, apenas aquilo que lhes parece mais saliente do ponto
de vista auditivo (vogais) ou articulatório (consoantes).
Ao transferirem essas observações fonéticas para a escrita, as crianças
têm duas opções: ou escrevem ”cavalo” só com as vogais AAO, ou só com as
consoantes CVL, porque acham que basta escrever uma letra para cada
sílaba. Porém, ficam confusas ao ler, se escreverem ”sapato” com AAO e,
compararem com o AAO de ”cavalo”. às vezes, chegam à conclusão de que se
trata de um caso de ambigüidade na escrita, lendo ora CAVALO, ora SAPATO.
às vezes, optam pela escrita das consoantes, achando melhor esse sistema:
CVL e SPT.
Algumas crianças escrevem, ainda, BBLT para ”borboleta” e PSC para
”pescar” (dito ”pescá”), ou ainda, AUAI para ”saudade”, AAI para ”rapaz” (dito
”rapais”). Estes exemplos mostram que nem sempre procuram atribuir uma
letra a uma sílaba, mas que observam os elementos vocálicos e consonantais
da fala e escrevem representando essas saliências fonéticas que, às vezes,
correspondem às sílabas e, às vezes, não. Curiosamente, a observação do que
escrevem, leva as crianças a refazerem a sua fala normal, ao lerem, atribuindo
uma letra a cada sílaba, dizendo: RA-PA-IS, ou confundindo-se todas, lendo,
PE-SE-CA ou PE-SA-CA, em vez de PES-CA. Ao lerem a palavra ”cavalo”,
elas não têm problemas, guiando-se pelas vogais ou pelas consoantes que
escreveram, mas ao lerem ”pescar”, atribuem uma sílaba a cada consoante ou
acabam a leitura verificando que sobrou uma letra.
Isso tudo mostra que, na verdade, são as maneiras como as crianças
analisam as saliências fonéticas que as levam a escrever do jeito que fazem,
só com vogais ou só com consoantes, e não a simples atribuição de uma letra
a uma sílaba. Depois de ter escrito, quando a criança é solicitada a explicar o
que fez, nesse momento, procura uma explicação (para responder) e acaba
revelando que escreve realacionando uma letra para cada sílaba, porque, na
verdade, não tem condições discursivas para explicar ao seu interlocutor o que
realmente fez (baseando-se nas saliências auditivas e articulatórias). Note-se
também que elas têm estratégias diferentes para escrever e para ler.

IX
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

A escrita alfabética - a que representa os sons das sílabas através de


consoantes e vogais - existe apenas como ponto de partida dos nossos
sistemas de escrita e não como ponto de chegada. A simples escrita alfabética
não passa de uma transcrição fonética. O nosso sistema de escrita, mais do
que alfabético, é ortográfico. Se as pessoas escrevessem simplesmente
alfabeticamente, uma mesma palavra seria escrita de maneiras diferentes, por
falantes de dialetos diferentes numa mesma língua, ou por um mesmo falante,
em circunstâncias diferentes, quando, ao observar a sua fala, percebe que fala
palavras de maneiras diferentes. Por exemplo, ao escrever a palavra ”pote”,
poderia escrever POTE ou POTI ou, talvez, até POTH. Um outro falante
poderia escrever POTCHI, porque é assim que se diz no seu dialeto. Uma
palavra como ”dentro” poderia ser escrita DENTRO, DENTRO, DENTRU e,
talvez, até DRENTO.
A representação de consoantes e vogais serve apenas para se observar a
fala e ter-se uma orientação inicial para escrever uma palavra. Depois, é
preciso conhecer qual é a ortografia da palavra e representá-la da maneira
estabelecida. Da mesma maneira, quem escreve ideograficamente, como
ponto de partida, baseia-se nas idéias para escolher os caracteres apropriados,
mas sua decisão final será sempre ortográfica, isto é, deverá saber quais,
dentre os caracteres possíveis, deve utilizar para atender as convenções
estabelecidas pelo seu sistema de escrita. Isto para evitar que cada usuário
escreva à sua moda, o que é proibido em todos os sistemas de escrita.
Portanto, o princípio alfabético da escrita que temos não garante uma
escrita correta. Quando nós - usuários assíduos da escrita - escrevemos,
guiamo-nos não pela natureza alfabética das letras, mas pelo princípio
ortográfico. É por isso que podemos escrever cursivamente, rabiscando letras
incompreensíveis, com formas gráficas que não têm nada a ver com o que
deveriam ser, mas, nem por isso, o que escrevemos torna-se incompreensível
para nós leitores, porque conseguimos reconhecer, naquelas garatujas de
escrita, uma palavra e sabemos, por consegüinte, quais as letras com que deve
ser escrita e, finalmente, lemos e não nos assustamos com o nosso modo de
escrever. Se dependêssemos da escrita alfabética, seria impossível ler nessas
circunstâncias, muitas vezes.
Além dessas maneiras de interpretação da escrita pela criança (e pelo
adulto) (Ferreiro, 1979), há outros fatos igualmente importantes e atuantes na
construção dos conhecimentos da escrita e da leitura pelas crianças (Cagliari,
1989).

A sociedade forma a sua cultura e as pessoas, mesmo indiretamente,


compartilham, através da cultura, conhecimentos típicos da escola e de
métodos de ensino, mesmo que nunca tenham estado numa sala de aula. Um
falante de inglês, por exemplo, é levado a dizer as letras de uma palavra
(spelling), quando quer esclarecer seu interlocutor que não o entendeu ou não
sabe escrever o seu nome. Um falante de português, por outro lado, é levado a
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

dizer a palavra silabando-a. Falantes não alfabetizados são levados, em geral,


a repetir a palavra como um todo, confiando na semântica e não na fonética.
As pessoas ouvem um indivíduo, querendo saber como se escreve uma
palavra, perguntar: ”‘cachorro’ se escreve com X? ‘úmido’ se escreve com H?”
ou, se estiver em fase de alfabetização: ”‘cachorro’ se escreve com CA de
‘caneca’? ‘hoje’ se escreve com O de ‘homem’?”, etc. Isto não ocorre só na
escola; ocorre também em casa, no trabalho, enfim, onde se precisa escrever.
O modelo da escola fica na vida. Esses modos de se referir ao sistema de
escrita, impregnados na cultura, revelam métodos de alfabetização e processos
de uso do conhecimento sobre a escrita e a leitura que as pessoas usam na
sociedade. A maioria das crianças, quando entram na escola para se
alfabetizarem, já tomaram contato com este tipo de comportamento alguma vez
em sua vida e, não raramente, esperam que a escola faça exatamente isso
(mais do que as crianças, seus pais têm essa expectativa e tudo que é
diferente, parece inadequado).

XI

Apesar da sílaba ser uma unidade fonética muito evidente e saliente para
qualquer falante, a linguagem não é só sons; é também significados. Por isso,
algumas crianças, além de aprenderem que se escreve com letras e que as
letras representam consoantes (articulações) e vogais (sonoridades), escrevem
apresentando problemas de segmentação. Aqui também, será a ortografia
quem irá dar a palavra final. A complexidade e a riqueza deste assunto, como
tópico de pesquisa, pode ser visto em trabalhos de Abaurre (1989a, 1989b).

XII

O sistema ortográfico neutraliza a variação lingüística na escrita, mas, em


compensação, cria relações complicadas entre letras e sons, tornando a escrita
alfabética um referencial muito ruim para o ensino na alfabetização. Porque as
relações entre letras e sons, com a ortografia, estendem-se a todos os
diferentes modos de falar a língua, quando as crianças vão escrever uma
palavra e ainda não sabem sua ortografia, elas procuram, num primeiro
momento, escrever como elas acham que as palavras podem ser escritas
(Teberosky, 1989). Ao fazerem isto, elas revelam seus conhecimentos e
hipóteses sobre o sitema de escrita. Por exemplo, o aluno escreve DICI
porque, com essas letras, pode-se ler DISSE, o que não aconteceria se, em
vez do que fez, tivesse escrito APLO. Neste último caso, o aluno sabe que se
deve escrever com letras, mas não sabe ainda que as letras representam sons
determinados, razão pela qual não deve usar qualquer letra para escrever
qualquer palavra. A leitura cria e guia a escrita, estabelece os seus limites de
uso e constitui a alma dos sistemas de escrita. Para um estudo mais detalhado
deste assunto, veja Abaurre (1985) e Cagliari (1989).
Uma outra perspectiva apoiada no caráter alfabético das letras e que leva
alguns alunos a escreverem errado é a observação da própria fala, quando a
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

fala apresenta formas lexicais diferentes daquelas contempladas pela


ortografia. Isto se deve, basicamente, à variação lingüística, ou seja, ao modo
como se dizem as palavras em diferentes dialetos. É o caso do aluno que fala
DRENTU, PRANTA, PATIO, PSICRETA e tem que escrever ”dentro”, ”planta”,
”patinho”, ”bicicleta” e assim por diante. O mesmo se aplica a questões de
concordância: ele diz: OZOMI TRABAIA, UZLIVRU, NOIZ VAI... e tem que
escrever: ”os homens trabalham”, ”os livros”, ”nós vamos”.

XIII

Os alunos aprendem os nomes das letras e sabem que, no nosso sistema


de escrita, existe, de certo modo, um princípio acrofônico: o nome das letras
serve de guia para mostrar que sons elas representam. Pro exemplo, dizemos:
”a, é, i, ó, u” (no alfabeto, porém, dizemos ”ê” e ”ô”). A letra C tem o nome ”cê”
e representa o som ”sss”; a letra F tem o nome ”efe” e, tirando as vogais, fica
com o som de ”fff”, e assim por diante. Só a letra H e o W não servem para isto.
Com estas idéias, um aluno pode tentar escrever a palavra ”hélice” com LC; ou
HTO, para ”gato”; ou CAMLO, para ”camelo”; e assim por diante.

XIV

Uma evidência de um outro procedimento usado pelas crianças para lidar


com o sistema de escrita, encontra-se, mais freqüentemente, na leitura. É o
caso dos alunos que foram alfabetizados pelo método do BABEBIBOBU das
cartilhas (palavras-chave, família de sílabas, sílaba geradora) e, quando vão
ler, dizem, em voz alta, não apenas a palavra como deveria ser lida, mas os
procedimentos de decifração que usam, quase como que querendo explicar
como lêem juntamente com a própria leitura. Assim, o aluno vai ler a palavra
”lata” e diz: LE-A-LA, TE-A-TA, LA-TA. Provavelmente faz o mesmo quando
escreve, o que pode ser mais um tipo de explicação para o fato de que
algumas crianças escrevem, em ditados, LT para ”lata”, uma vez que o L deve
ser entendido como La-Le-Li-Lo-Lu e o T como Ta-Te-Ti-To-Tu. Alguns alunos,
no início, chegam mesmo a escrever coisas como: ”lata te ti to tu” ou ”casa se
zi zo zu”.
A expressão popular ”duvideodó” exemplifica um processo de decifração
de leitura típico de quem estudou pelo método do BABEBIBOBU. É curioso
como esta expressão fonética, associada ao verbo ”duvidar”, serve para
mostrar, ao interlocutor, a certeza daquilo que se diz, imitando a certeza de
como se lê na escola, para a professora avaliar.

XV
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Quando uma criança começa a ler, nåo apenas estudando o valor


fonético das letras, mas em busca de um texto, mesmo que seja curto, do
tamanho de uma frase, às vezes, acrescenta ou elimina palavras escritas. Ela
pode eliminar palavras quando não sabe o que está escrito, ou quando não
sabe o que elas significam e não consegue extrair a informação necessária do
contexto, como, aliás, fazemos nós, usuários habituais da leitura. Quando
lemos, precisamos interpretar algo pensado e formulado lingüisticamente por
outrem. Porém, para ler e entender, devemos reprocessar estas informações,
como se fôssemos dizer isso espontaneamente (Cagliari, 1988). Ao nos
apropriarmos do texto, na leitura, após a decifração, normalmente
acrescentamos nossa opinião, nossa meditação, nossos devaneios e, às
vezes, até modificamos o literal do texto. Isto tudo ocorre na nossa mente, mas
não podemos externar esses sentimentos, pois a leitura pública nos obriga a
sermos fiéis ao que o texto escrito tem de literal. Essa convenção social é
desconhecida por algumas crianças, quando começam a ler. Por isso, diante
de um texto como: ”Maria comeu bolo na festa da prima”, uma criança pode ler
à moda das histórias que ouve e dizer: ”Era uma vez ,uma menina, que se
chamava Maria, que foi na festa e comeu o bolo da prima”. Esse tipo de leitura
mostra um excelente leitor porque, além de saber decifrar o que está escrito, lê
com emoções, apropriando-se do texto e fazendo-o seu. É assim, certamente,
que lemos, em silêncio, poesias e romances e, até, notícias nos jornais. Alguns
não são capazes de ler, sem interromper de vez em quando para dar seus
palpites. Na escola, porém, a leitura não é para ser feita assim, pelo menos, a
leitura pública, em voz alta.
às vezes, quando se pede para a criança explicar o que ela leu,
mostrando as palavras, ela pode ficar confusa, uma vez que a ”sua leitura” não
bate com o ”literal” do texto. É curioso observar que, nestas ocasiões,
freqüentemente, a criança procura, no texto, a palavra que corresponde ao foco
do enunciado, segundo sua interpretação. Aí, ela mostra uma palavra qualquer
e diz que é ”bolo” (no caso do texto acima). O conceito de leitura literal aplica-
se para ela às relações entre letras e sons e serve, apenas, para palavras
isoladas. A leitura de um texto apresenta outras estratégias discursivas que
podem levar o observador desinformado a concluir que a criança não sabe ler,
ou que só lê verbos ou substantivos, ou que só identifica sujeito e predicado.
A leitura mencionada acima é diferente daquela que a criança faz
inventando tudo de sua cabeça, quando ainda não aprendeu a decifrar a
escrita, dizendo qualquer coisa para qualquer texto, simplesmente para
responder a uma pergunta ou para fazer uma atividade pedida pela professora.
Ainda a respeito de leitura e leitores, gostaria de fazer uma observação
com relação à chamada ”leitura incidental”, ou seja, aquela leitura que uma
pessoa analfabeta faz de algo escrito com letras, reconhecendo uma escrita
”estereotipada”, representando, por exemplo, a marca de um produto. Essa
pessoa não sabe as relações entre letras e sons e, por isso, não generaliza seu
processo de decifração, segundo nosso sistema de escrita, estendendo-o a
outras palavras. A leitura incidental, porém, é um bom ponto de partida. Ela se
processa como se a escrita não fosse de base fonográfica, mas ideográfica
(como os pictogramas e os números, por exemplo) A pessoa lê como se a
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

palavra fosse um ideograma. Ela sabe que aquilo é um ”desenho” que é uma
escrita e não, um simples desenho que representa, figurativamente, coisas do
mundo. Uma pessoa poderia aprender a ler e a escrever todas as palavras
desse modo. Na alfabetização, alguns alunos até começam desse modo. A sua
dificuldade em prosseguir, aprendendo desse modo, é a enorme quantidade de
ideogramas que teriam que aprender. Esse procedimento é encontrado, não
raramente, em alunos que são alfabetizados segundo o método do
BABEBIBOBU das cartilhas. Eles vão conseguindo desempenhar as tarefas
escolares até certo ponto, lendo e escrevendo as palavras já dominadas, como
se fossem ideogramas. Até o momento em que se deparam com palavras não
estudadas e revelam, então, que não sabem ler como deviam e,
conseqüentemente, não sabem escrever.
É curioso notar que, depois que uma pessoa se torna profunda
conhecedora do sistema de escrita que temos e exímia leitora, ela irá escrever
e ler as palavras como se fossem, de fato, ideogramas, não se preocupando
tanto com o caráter fonográfico do nosso sistema de escrita.

XVI

O exposto acima mostra como uma criança pode trilhar muitos e


diferentes caminhos para aprender a ler e escrever. Há muitos procedimentos
que ela pode seguir para obter os resultados esperados pela escola. Ver,
nessas hipóteses, etapas necessárias e pré-determinadas que conduzem,
naturalmente, a criança a construir seus conhecimentos sobre a escrita e a
leitura é uma temeridade. O conhecimento se constrói com a somatória das
informações que se interiorizam e das relações que se estabelecem entre elas
na mente dos indivíduos. Uma pessoa que começa pela leitura incidental, por
exemplo, já opera com um sistema de escrita muito sofisticado e, às vezes,
mais ainda do que aquele que apenas relaciona letras e sons, seguindo o
sistema alfabético. Como pode estar numa fase pré-silábica, silábica ou
alfabética, uma criança que começa a aprender a ler pelos números? Quando
escrevemos 7 ou 8, como relacionamos letras e sons? Os números só são
aprendidos da maneira como se faz ”leitura incidental”, considerando-se cada
algarismo como um ideograma e o número, como um outro ideograma, como 2
e 5 (dois e cinco) e 25 (vinte e cinco). Um sistema de escrita do tipo egípcio
jamais permitiria que as pessoas fossem alfabéticas (no sentido de colocar
vogais e consoantes nas palavras). E uma vez adquirido o sistema pleno de
escrita, persistiria ainda o uso ”pré-silábico” para o usuário. Na verdade, o uso
dos determinativos semânticos de sistemas de escrita, como o egípcio, parece-
me uma grande sofisticação do sistema de escrita, para facilitar a leitura e
tornar a escrita mais atraente, e não um estágio primitivo, de uma fase precária
da construção do conhecimento desses sistemas de escrita. O próprio sistema
semítico, sem a representação das vogais, como poderia levar as crianças a
uma etapa alfabética, como querem algumas pessoas que seguem os
trabalhos de Emília Ferreiro?18
18
A própria autora tem dito e enfatizado que seu trabalho não resulta num método de
alfabetização. Mas, como ela o chama de ”psicogênese da leitura e da escrita” e trabalha
numa linha piagetiana construtivista, fica muito fácil para seu leitor concluir que, se aquilo
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Não só cada sistema de escrita tem suas especificidades, como também


cada aprendiz tem sua maneira de aprender, seguindo suas próprias
especificidades. Voltamos, assim, à discussão anterior à respeito do ensino e
da aprendizagem. As crianças precisam de seu espaço próprio e de condições
favoráveis para poderem construir seus conhecimentos na escola; mas
precisam também que o professor as ajude, quando necessário, explicando a
elas o que elas já sabem, o que fizeram e porque fizeram, nas suas tentativas
de aprendizagem, e o que precisam fazer e como, para dar um passo à frente e
progredir, sobretudo se elas, por iniciativa própria, não descobrem o que
devem fazer para progredir19.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Abaurre, M. B. & L. C. Cagliari (1985) Textos espontâneos na 1ª série:


Evidência da utilização, pela criança, de sua percepção fonética da fala
para representar e segmentar a escrita. Cadernos CEDES, 14: 25-29.
SP: Cortez Ed.

Abaurre, M. B. (1989a) Oral and written texts: Beyond the descriptive illusion of
similarities and differences. Mimeo, inédito.

Abaurre, M. B. (1989b) Hipóteses iniciais de escrita: evidências da percepção,


por pré-escolares, de unidades ritmico-entoacionais da fala. Anais do IV
Encontro Nacional da ANPOLL, a sair.

Cagliari, L. C. (1986) A ortografia na escola e na vida. In Isto se Aprende com


o Ciclo Básico, Projeto Ipê, Curso II: 97-108. SP: CENP-SE-SP.

Cagliari, L. C. (1987) Introdução aos Estudos dos Sistemas de Escrita:


História, natureza e usos da escrita. A sair.

Cagliari, L. C. (1988) A leitura nas séries iniciais. Leitura: Teoria & Prática, 12:
4-11, ano 7, dezembro. P. Alegre: ALB.

Cagliari, L. C. (1989) Alfabetização e Lingüística. SP: Ed. Scipione.


que ela diz é a maneira natural como as crianças adquirem o conhecimento da leitura e da
escrita, seguindo as várias etapas e estágios mostrados pelas suas conclusões de
pesquisa, então, esse é o caminho que a escola deve seguir. De fato, apesar dos protestos
da autora, muitos professores alfabetizadores viram, no trabalho de Emília Ferreiro, não
apenas uma pesquisa acadêmica, mas uma proposta metodológica de alfabetização e
relutam muito, ou mesmo ficam muito frustrados, quando ouvem que ”devem seguir Emília
Ferreiro”, mas ”sem o seu método, porque ele não existe”.
19
O construtivismo piagetiano não é a única teoria psicológica a querer explicar a gênese do
conhecimento. Há outras teorias psicológicas (filosóficas e lingüísticas), com propostas
muito diferentes. O trabalho de Emília Ferreiro, seguindo o construtivismo piagetiano, é uma
hipótese que tenta interpretar os dados colhidos e observados, de determinado modo,
procurando aplicar à realidade assim configurada uma das várias teorias psicológicas sobre
o conhecimento. O construtivismo tem se mostrado uma boa teoria em muitos casos e,
desde Piaget, tem evoluído, enfatizando, mais recentemente, o lado social e interacionista,
onde o conhecimento é algo compartilhado já na sua construção e não se reduz apenas a
uma tarefa solitária do indivíduo.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Doblhofer, E. (1962) A Maravilhosa História das Línguas: Decifração dos


símbolos e das línguas extintas. SP: IBRASA.

Ferreiro, E. & A. Teberosky (1979) Los Sistemas de Escritura en el


Desarollo del Niño. México: Siglo XXI.

Jensen, H. (1970) Sign, Symbol and Script. London: George Allen & Unwin
Ltd.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE AQUISIÇÃO DA ESCRITA *

Maria Laura T. Mayrink-Sabinson


IEL/UNICAMP

INTRODUÇÃO

A idéia de manter um registro longitudinal do que dissesse respeito à


aquisição da escrita por uma criança surgiu a partir da leitura de trabalhos de
Emilia Ferreiro e colaboradores, nos idos de 1981. Incomodaram-me as
distinções que se faziam em Ferreiro & Teberosky (1979), decorrentes da linha
teórica adotada pelas autoras, entre conhecimentos socialmente
transmitidos (nomes das letras, dos numerais, orientação espacial da escrita,
etc.) e conhecimentos que independiam do social, construções próprias
da criança, (as várias "...hipóteses construídas pela criança, que são produtos
de uma elaboração própria. É evidente que o que denominamos de 'hipóteses
do nome', 'critério de quantidade mínima e de variedade' não podem ter sido
transmitidas por nenhum adulto, mas sim 'deduzidas' pela criança em função
das propriedades do objeto a conhecer" (Ferreiro & Teberosky, 1986:266)).
Alguns dos exemplos apresentados pelas autoras como evidência dessa
construção de conhecimentos sobre a escrita levavam-me a questionar o papel
do adulto nesse processo.
Nos trabalhos sobre a aquisição da escrita de Ferreiro e colaboradores
(Ferreiro, 1982; 1984; 1985; 1990; Ferreiro & Teberosky, 1979; Ferreiro et alii,
1982), na linha do construtivismo piagetiano, atribui-se ao adulto letrado um
papel de simples "suporte", "informante" sobre a escrita. O trabalho de
construção de conhecimentos sobre a escrita seria exclusivo da criança, a
partir da sua interação com o próprio objeto (escrita), desconsiderando o fato
de essa interação sujeito/escrita ser mediada por um interlocutor (e sua
linguagem), "...que atribui um significado e/ou pede à criança que atribua um
significado às marcas feitas no papel. E a quem a criança passa a pedir
marcas no papel como índices(...) de um ato de falar a cujo significado se
acrescenta esse de poder ser representado como marcas em um papel." (de
Lemos, 1988: 13).
Um registro longitudinal da história de contato de uma criança com a
escrita pareceu-me, na ocasião, uma maneira interessante de obter dados que
permitissem refletir um pouco mais sobre o processo de aquisição da escrita,
em situações não planejadas nem controladas como as situações-experimento
do trabalho de Ferreiro, possibilitando ver o papel do adulto e da linguagem
nesse processo.
Leituras na área da aquisição da linguagem oral, dentro do chamado
sócio-interacionismo ou sócio-construtivismo, especialmente os textos do grupo

* *
Este texto é uma versão ampliada e revista de uma comunicação de mesmo título,
apresentada em 1990 no I Simpósio de Neuropsicologia, em Campinas, S.P.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

de Psicolingüística do IEL/UNICAMP, levavam-me a desconfiar dessa distinção


entre o que é socialmente transmitido e o que não o é.
Os trabalhos desenvolvidos no interior do projeto de aquisição da
linguagem do IEL/Unicamp (de Lemos, 1981; 1982; 1985; 1988; Scarpa, 1987)
têm considerado a linguagem como atividade constitutiva do conhecimento do
mundo pela criança. "Linguagem e conhecimento do mundo estão intimamente
relacionados e passam pela mediação do outro, do interlocutor. [...] A dialogia
[...] vai proporcionar, ao mesmo tempo, a constituição da criança e do próprio
interlocutor como sujeitos do diálogo (os papéis no diálogo), a segmentação da
ação e dos objetos do mundo físico sobre os quais a criança vai operar, e a
própria construção da linguagem, que por si é um objeto sobre o qual a criança
também vai operar." (Scarpa, 1987: 119).
Iniciei, em agosto de 1983, o registro longitudinal-observacional, sob a
forma de um diário, dos contatos com a escrita de minha filha, quando ela
completou um ano de idade. Esse diário foi mantido até os 7 anos e 3 meses,
quando Lia completou a 1ª série, sendo declarada "alfabetizada" pela escola. A
preocupação, na elaboração desse diário, foi a de registrar os encontros dessa
criança, filha de pais altamente letrados (ambos professores universitários,
portadores de título de doutorado), com a linguagem escrita. Até os 2 anos e 6
meses a criança convivia, principalmente, com os pais e uma babá (1º grau
completo). A partir de então passou a freqüentar uma classe de maternal,
numa escola em que não havia a preocupação e a tentativa de alfabetizar na
pré-escola.
Do diário em questão constam basicamente o que Heath (1982)
denomina de "literacy events", definidos como "eventos em que a linguagem
escrita é essencial à natureza das interações e aos processos e estratégias
interpretativas de seus participantes" (cf. Heath, 1982: 50). O diário inclui ainda
observações esparsas sobre o desenvolvimento lingüístico e não-lingüístico da
criança. Estas anotações têm-se constituído em uma rica fonte de reflexões
sobre o processo de aquisição da escrita por esta criança, que convive com a
escrita e com indivíduos letrados desde o seu nascimento.
As anotações eram feitas a posteriori, uma vez que eu estava envolvida
na maioria das interações, mas tentei fazê-las o mais próximo possível do
evento de letramento em questão. Quando possível, anotei o que Lia dizia no
momento mesmo da fala, quando a "forma" dessa fala chamava muito a
atenção, procurando fazê-lo quase que imediatamente após, para que as
limitações de memória não interferissem muito no registro. De qualquer
maneira, é importante apontar que houve uma seleção feita pela mãe-
investigadora dos fatos registrados. Uma seleção não intencionada, devo dizer,
mas os fatos anotados foram os que, na ocasião de seu acontecimento,
chamaram-me a atenção como "relevantes" para os meus propósitos de pensar
a aquisição da escrita. Houve, igualmente, a interferência da memória, talvez
em muitos momentos. A vantagem principal de anotações em diário vem da
abrangência que isso permite: mais fatos sobre essa história de contato com a
escrita puderam ser levantados, uma vez que esses "eventos de escrita"
ocorriam nos momentos mais inesperados. A utilização de meios mecânicos de
gravação, ou de um anotador externo, limitaria e modificaria o registro dos fatos
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(tornando-os menos "naturais"), a não ser que fosse possível mantê-los em


funcionamento constante.
Até o momento examinei mais de perto as anotações que dizem respeito
aos três primeiros anos do diário -- de 1 ano e 12 dias, quando se iniciaram, até
cerca dos 4 anos de Lia. Estas anotações foram organizadas da seguinte
maneira: a) as anotações de fatos que apontam para um trabalho de
constituição da escrita como foco de atenção e interesse; b) aquelas que dizem
respeito à constituição de usos e funções da escrita; c) as anotações de fatos
que indicam como se deu a constituição das letras (elementos de uma escrita
de base alfabética, como a que utilizamos) como foco de atenção/interesse da
criança e da idéia (hipótese) de que as letras teriam "proprietários"; d) aquelas
que dizem respeito à produção de "escrita" nesse período.

A CONSTITUIÇÃO DO INTERESSE PELA ESCRITA

Como já foi dito, os contatos de Lia com a escrita iniciam-se cedo: o


processo de constituição de conhecimentos sobre a escrita, pode-se dizer,
ocorrendo ao mesmo tempo que o processo de aquisição da linguagem oral.
Livros e material escrito, bem como o falar a respeito de escrita, adultos lendo
e escrevendo, estiveram presentes na vida da criança desde sempre.
Aos 9 meses, Lia ganhou seu primeiro livrinho, especialmente comprado
para ela pelos pais que queriam salvar os próprios livros. Mexer nas estantes
dos pais (e ouvir um "Não-não-não!", sendo-lhe retirados os livros) era, no
período que vai de cerca de 7 meses (quando a criança começa a se
locomover sozinha pela casa) até depois dos 12 meses, uma forma eficiente de
obter a atenção dos adultos. As interações que envolviam os livros permitidos,
nessa época, eram basicamente semelhantes às descritas em Ninio & Bruner
(1978): criança e mãe ocupam turnos apontando e falando sobre figuras nos
livros. Nenhuma leitura era feita especialmente para a criança, nem a escrita
era apontada para ela.
Começo a ler para Lia quando, aos 1 ano e 18 dias, observo-a passando
o dedinho indicador sobre as letras grandes, em vermelho sobre um fundo azul,
numa embalagem de sacos de lixo que ela retira do armário na cozinha. Na
ocasião, aproximo-me (estava inicialmente a cerca de dois metros), sento-me a
seu lado, retomo o gesto de passar o dedo sobre a escrita e leio a palavra
escrita "Sanito". Ou seja, a ação de Lia de passar o dedo pela escrita, o seu
olhar a escrita, são interpretados por mim como indício de interesse pela
escrita (e não pela cor, a textura do material plástico, etc.). E, tendo-lhe
atribuido um interesse pela escrita, ajo de acordo, retomando o seu gesto de
apontar e lendo a escrita. Eu diria que, a partir de então, o adulto se empenha,
junto à criança, na constituição de um interesse pela escrita. As inúmeras
ocasiões, que se seguem a esta, em que a criança é observada a olhar e
passar o dedo sobre escritas, de início sempre visualmente salientes (fatores
externos atraindo a atenção da criança para esse objeto, conforme Luria
(1979)), são seguidas, um grande número de vezes, de um retomar o gesto da
criança e da leitura do que está escrito.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Nos quatro meses que se seguem, aumentam as ocasiões em que mãe e


criança interagem dessa maneira, com livros e material escrito variado (cartas,
cartões, bulas de remédios, rótulos de produtos variados). Com 1 ano, 4 meses
e 9 dias, Lia produz a sua primeira "leitura": olhando fixamente um portador de
escrita, vocaliza uma seqüência de sons ininteligíveis para o adulto, mas que a
mãe aceita e interpreta como "leitura".
Nesses quatro meses, a escrita parece ser alçada aos olhos da criança,
como objeto merecedor de atenção e de comportamentos especiais --
comportamentos que o adulto interpreta e aceita como tentativas de leitura
("Oh! Cê tá lendo!"; "A Lia tá lendo."; "Que que cê tá lendo aí?"). De um
interesse atribuído pelo adulto, a partir de uma atenção decorrente,
provavelmente, de fatores externos (saliência visual da escrita pelo seu
tamanho, cor, contraste, etc.) constrói-se um interesse interno, constituído
socialmente na interação adulto letrado/criança (cf. Luria, 1979). O adulto seria
um co-construtor desse interesse, co-responsável pelo alçamento da escrita a
foco de atenção da criança.
Que a escrita se tornou foco de atenção -- atenção devida não mais a
fatores externos --, é demonstrado por observações como uma efetuada aos 2
anos, 10 meses e 9 dias, quando Lia nota a ausência de uma escrita esperada,
num lencinho de papel que ela retira da bolsa de uma amiga da família, e que,
diferentemente de ocasiões anteriores, não contém o nome dessa amiga
impresso em dourado. Lia diz, com ar desapontado: "Num tem escrito! Cadê o
escrito?". Ou numa observação efetuada aos 2 anos, 11 meses e 21 dias,
quando Lia traz e entrega à mãe uma chupeta, pedindo "Lê aqui prá mim!", um
pedido insistente que levou a mãe, depois de muito esforço, a perceber que,
realmente, havia algo a ser lido dentro do bico de plástico transparente da
chupeta -- a palavra "Choux", escrita em letras minúsculas, em relevo.

OS USOS E FUNÇÕES DA ESCRITA PARA A CRIANÇA

Os primeiros "usos" que a criança faz da escrita, ou de material contendo


escrita, parecem constituir-se em "usos rituais", em que comportamentos
verbais e não-verbais dos adultos letrados, observáveis em situações bem
específicas e repetidas no dia-a-dia (como "falar ao telefone" ou
"dar/tomar/passar remédio"), são incorporados pela criança (cf.Mayrink-
Sabinson, 1987; 1990):
(1) (1;10;12) - Lia com telefone de brinquedo, diz
"neta.neta.vevê.vevê.", recebendo caneta e papel do adulto. Séria,
fone no ouvido, Lia diz "uhum", enquanto rabisca no papel.
(2) (1;10;21) - Lia olha livro de endereços, enquanto disca o telefone
de brinquedo, dizendo "sete.nove.sete.nove" (os números finais do
telefone de casa).
(3) (2;5;2) - Mãe anuncia que vai telefonar para a vovó Dazinha. Lia:
"Eu telefono". Corre para o telefone. Mãe pega o fone, Lia pega o
caderno de endereços, folheia-o, aponta a escrita numa das
páginas, dizendo: "Vovó Dazinha. Aqui. Achei. 'Vovó Dazinha'" (dito
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

com entonação de quem lê -- fala mais lenta -- seguindo com o dedo


a escrita, da esquerda para a direita).
(4) (2;7.1) _ Lia brinca com a mãe, de dar remédio a um urso de
pelúcia. Mãe segura o urso, fazendo com que recuse o remédio a
cada vez que Lia se aproxima, Lia dando gargalhadas com a
brincadeira. No decorrer da brincadeira, Lia anuncia "Preciso ver a
bula". Pega um toquinho de madeira na mesinha próxima, olha
fixamente e vocaliza sons sem sentido, que mãe não entende. Mãe:
"O que que tá escrito aí?" Lia: "'Remédio para dar para ursos'"
(como se lesse).

Ou seja, os atos de "ler" e de "escrever" nomes e números são


incorporados como parte da situação de "falar ao telefone"; o "ler a bula", como
parte da situação de "dar/tomar/passar remédio". Essas são situações
freqüentemente vivenciadas pela criança e pelos adultos que convivem com ela
e os adultos em questão têm por hábito consultar agendas telefônicas, dizer
em voz alta o número do telefone ao discá-lo ou ao atendê-lo, consultar bulas
de remédios que são usados pela criança, etc.
Aos 2;O5;22 acontece, pela primeira vez, um uso do "falar como se lesse"
cujo objetivo parece ser o de "seduzir" a mãe, convencendo-a a deixar que a
criança mantenha a posse de um objeto:
(5) (2;05;22) - Mãe tenta pegar um vidro de perfume das mãos de
Lia. "Não!Vô lê aqui! Vô lê aqui!" (afasta-se da mãe, segurando o
vidro, aponta o rótulo, passa o dedo pela escrita, falando como se
lesse):"'Perfume. Per-fu-me'.'Viu?"
Esse uso da escrita como "instrumento de sedução" vai aparecer mais
explicitamente em situações como:
(6) (2;10;13) - Depois de "briga" com os pais, que passam a fingir
não prestar atenção nela, Lia deita-se sobre um jornal no chão e
passa a apontar a escrita, "lendo": "Aqui. 'Lia Mayrink Sabinson.
Mamãe Mayrink Sabinson. Papai Mayrink Sabinson'", e continua
falando mais baixo, como se lesse, até que os adultos falem com
ela.
(7) (2;ll;27) - Visitas, todos conversam na sala; Lia insiste com a mãe
para que leia, recebendo recusa. Lia leva os livros para J. (um dos
visitantes), depois de choramingar algumas vezes "Ninguém lê prá
mim! Ninguém lê!". J. começa a ler para Lia, e, quando comete um
engano lendo "mede palma" por "mede palmo", Lia corrige "Não! É
mede palmo! Cê tá lendo errado!". J. se corrige e continua a leitura,
que é logo interrompida por Lia "Você sabe a história da Galinha
Ovolina?" J.: "Não!" L.: "Você sabe a história do Passarinho
Vermelho?" J.: "Não!" L.: "E a do Maneco Caneco?" J.: "Também
não sei." L.: "Então, depois você lê, tá?"
(8) (3;01;11) - Mãe fala ao telefone, conversa comprida. Lia pega um
cartão de aniversário e passa a "ler" (sílabas sem sentido) em voz
bem alta e perto da mãe, até obter sua atenção.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

O que há de comum nestas e em outras situações (e eram bastante


freqüentes nesse período), em que Lia parece usar pedidos de leitura ou
"leituras" que ela mesma faz para seduzir o adulto e obter dele a atençào, é
que nelas, por vários motivos, o adulto (mais comumente a mãe), ocupa-se
com alguém ou alguma coisa e não especificamente com a própria criança,
negando-lhe, momentaneamente, uma atenção a que ela, como única criança
da casa, está acostumada.
Qual seria a origem desse uso que a criança faz da escrita? Uma
explicação talvez se encontre no próprio "jogo de sedução" armado pelo adulto,
um jogo no qual o adulto, mais especificamente a mãe, constitui com a criança
um interesse e uma atenção para com a escrita (cf. Mayrink-Sabinson, 1989).
Atribuindo um interesse pela escrita à criança, ao observá-la
apontando/passando o dedo por escritas que, momentaneamente e por razões
externas - como sua cor, tamanho, contraste com o fundo, etc. -, atraem sua
atenção, o adulto age como se esse interesse fosse real: aproxima-se, retoma
o comportamento não-verbal da criança, apontando ele mesmo, lê para a
criança. A escrita passa assim a ser destacada, (re)alçada pelo gesto e pela
fala.
O comportamento do adulto em relação à escrita, por sua vez, é
incorporado pela criança. O adulto não espera mais pela atenção momentânea
da criança, passando ele mesmo a tentar atrair essa atenção para a escrita,
apontando-a, sublinhando-a com o dedo, lendo-a para a criança. Nesse jogo,
que envolve proximidade física, atenção irrestrita do adulto à criança e atenção
à escrita, constitui-se o interesse pela escrita. A criança é "seduzida" pelo
adulto e pela escrita, mas logo passa de "seduzida" a "sedutora", revertendo o
jogo. Lia, aos 2 anos e 5 meses, provavelmente já se deu conta, ou começa a
se dar conta de que, quando ela age como se lesse ou requisita leituras, os
adultos familiares lhe dão atenção, deixam outros afazeres para atendê-la. Isto
é especialmente verdadeiro no caso da mãe, interessada em aquisição de
escrita e preocupada em colher seus dados... A estratégia de ler (assumir o
papel de "leitor") ou requisitar leitura (atribuir ao adulto esse papel), obtendo
assim a atenção do adulto, é, pois, uma construção conjunta, utilizada com
freqüência pela criança, não sendo, no entanto, sua única estratégia para obter
atenção. Lia também recorre às birras, ao mexer em coisas proibidas, como
qualquer criança pequena.
A situação descrita em (7) mostra como a criança parece generalizar o
uso da escrita como instrumento de sedução, seduzindo um outro adulto,
constituindo-o no papel de "leitor", que interage com ela e lhe oferece uma
atenção não compartilhada com outros. O exemplo (7) mostra ainda como a
criança consegue manter esse "leitor" no seu papel, perguntando-lhe,
engenhosamente, "Você sabe tal e tal histórias?" e não simplesmente "Você lê
prá mim tal e tal histórias?" (ou "Você continua no papel de leitor?"). Lia já deve
ter percebido, pela sua história de pedidos de leitura à mãe, que uma pergunta
mais direta é também muito mais passível de uma resposta negativa... Lia
seduz e prende J. no papel de "leitor", oferecendo-lhe a oportunidade de saber
histórias que ele mesmo diz não conhecer, o que parece também indicar que a
criança começa a construir a idéia de que se pode saber algo lendo a seu
respeito, de que a escrita pode ser usada com a função de informar(-se).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Outro exemplo interessante desse uso da escrita como instrumento de


sedução foi observado também aos 2;10;13, como a situação descrita em (7):
Lia protesta quando a mãe lhe toma um lápis com que brincava e, ao obtê-lo de
volta olha, aponta e "lê" a escrita no objeto: "Aqui. 'Lia'". Diferentemente do que
se dá no exemplo (5), o "falar como se lesse", neste caso, segue-se à
retomada do objeto, como se servisse para garantir sua posse. E essa posse é
garantida pela "leitura" do próprio nome. Esta observação se deu cerca de
quatro meses após a entrada da criança para a escola, ocasião em que seus
objetos foram marcados com seu nome e em que sua curiosidade a respeito
dessa escrita foi satisfeita com explicações como "Eu tô escrevendo Lia aqui,
prá todo mundo saber que isso é da Lia", ou "Eu tô pondo o seu nome prá
ninguém pegar sua lancheira". Explicações como essas vão levar a criança a
constituir a idéia de que "a escrita do nome próprio num objeto torna-o
propriedade pessoal", de que Lia vai-se servir bastante quando, por volta dos
quatro anos, aprende a escrever o próprio nome, conforme se pode ver no
"caso da borracha da Tânia". Trata-se do seguinte:
(9) (4;01;15) - Lia encontra em casa uma borracha que T.
esquecera. Chega-se, toda feliz, para a mãe, dizendo: "Adivinha o
que que a Taninha esqueceu aqui?" M: "Num sei. O que?" L: "Oh!
(mostrando) A borracha dela! Agora é minha!". Tento argumentar
que não, Lia insistindo que sim. Falo que T. ficaria triste, etc. Lia,
então, resolve guardar a borracha para T. e leva-a para o quarto.
(10) (4;01;16) - Lia, no quarto, escreve o próprio nome na borracha
da T. Depois vem até à copa para me mostrar: "Oh! Escrevi Lia na
borracha da Tânia. Agora ela é da Lia, é minha, tá?" Quando peguei
a borracha das mãos dela, ela me mostrou o nome escrito: "Aqui, e
aqui eu fiz essa outra" (virando a borracha para mostrar o A). De um
lado da borracha, que é branca, ficou algo como um LIT, sendo que
o que parece um T está na beiradinha da borracha. Do outro lado Lia
fez o A . Minha suspeita é que Lia tentou fazer o A, mas, como
estava muito na beirinha, acabou virando a borracha e fazendo o A
do outro lado. Mais tarde, comento o fato com o pai, na presença de
Lia, mostrando-lhe a borracha e dizendo que Lia dizia-se a dona e
tinha até escrito o nome para garantir a posse. L: "É. Agora tem o
meu nome e é minha!" O pai passa a argumentar com ela: "Então,
se você escreve Lia na boneca da Tatiana, a boneca fica sendo
sua?" Lia hesita, parece pensar antes de responder: "Não." P: "E se
você escrever Lia no carrinho do Dico, o carrinho fica sendo seu?" L:
"Não." P: "Então?" L: "Eu escrevi Lia prá Taninha não perder... que
assim o F. num pode pegar que é da Tânia. É prá Tânia saber que a
borracha é dela."

O exemplo (10) mostra que, mesmo quando o adulto questiona a idéia de


que "a escrita do nome próprio garante a posse", as "explicações" que a
criança constrói ainda apelam a essa idéia, e à linguagem que o adulto utiliza
para explicar o porquê se escreve nomes nos objetos.
A partir dos 3 anos e 4 meses, os atos que se praticam com a escrita
passam a ser usados para convencer o adulto ou outra criança de alguma
coisa que é do próprio interesse:
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(11) (3;04;01) - Lia com pasta de dentes, que veio no saquinho de


presentes Natal, ganhos da escola. Quer usá-la, mas a mãe
comenta que ela não vai gostar da pasta. Lia: "Vou sim. Olha aqui.
(aponta a escrita na embalagem e "lê") 'Pasta de dentes bem
gostosa!'"
(12) (3;04;22) - Lia e Tiago (primo de 3;11;10) discutindo pela posse
de uma caixa vazia, que Lia se recusa a emprestar, em represália
por não ter podido brincar com carrinho do Tiago, pouco antes.
Durante essa discussão, Lia aponta escrita na caixa e passa a ler
"razões" para não dá-la à Tiago ("Caixa para criança, não é para
meninos."). Tiago retruca, apontando outra escrita e lendo
igualmente "razões" para obtê-la.

Nos dois exemplos acima, uma escrita já pronta serve como suporte para
"leituras" que traduzem um interesse da criança e parecem ter como objetivo
convencer o outro a ceder a esse interesse -- a escrita adquire, então, um
"poder", que vai além do simples poder de garantir a posse. A escrita é
invocada, "lê-se" o argumento, à sua autoridade não se espera contestação. A
origem dessa idéia de "poder", "autoridade" da escrita, pode ser traçada não
apenas a partir da idéia de que a escrita do próprio nome "garante a posse",
mas também da idéia de que a escrita pode determinar o comportamento do
adulto e/ou da própria criança, constituída em situações comuns na vida da
criança nesses dois anos e pouco de exposição a inúmeras leituras do mais
variado tipo de material escrito. A participação ativa da criança em eventos de
escrita em que se lêem bulas, receitas, instruções de como montar um
brinquedo novo, etc., e se age de acordo com o que a escrita diz, teria uma
contribuição na constituição dessa idéia de "poder" e "autoridade" da escrita.
Três meses mais tarde, Lia passa a se valer também do "agir como se
escrevesse" com um objetivo de "impor a autoridade da escrita", convencendo
o adulto de algo que lhe interessa. A primeira observação acontece aos
3;07;18, pouco depois de uma "briga" com o pai. Lia anuncia que vai escrever
uma carta para o pai e ouço-a dizendo, enquanto rabisca: "Papai. Eu adoro
você. Mas num pode ficar brigando comigo não!" Dada a ausência do pai no
momento (o que justificaria uma carta) e a distância em que se encontrava a
mãe, pode-se tomar o que Lia diz "por escrito" mais como um desabafo. Mas
ela se propõe a escrever uma carta e cartas têm destinatários - Lia sabe disso
porque vivencia a troca de cartas com os avós distantes. Usa-se, então, a
escrita para convencer a alguém ausente de algo que é do interesse próprio...
A observação que se segue mostra claramente essa tentativa de
convencimento a partir da "autoridade" da escrita:
(13) (3;O7;28) - Mãe e Lia conversam sobre hora de ir para a cama
(à noite). L.: "Eu devia ir prá cama cedo, né? Eu queria ir cedo!" M.:
"Então! Tá na hora! Agora tá cedo. O Pablo já foi dormir." L.: "Não!
Eu queria ir cedo. Junto com você." M.: "Mas a mamãe vai prá cama
é tarde!" L.: "Então eu queria ir tarde, junto com você e o papai." M.:
"Mas menina precisa ir prá cama cedo, prá crescer e ficar forte!"
(Enquanto conversávamos, Lia rabiscava formas circulares no papel
em que, antes, ela estivera fazendo "as letras de todo mundo" e ia
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

virando a folha. Neste ponto da conversa, ela faz zigzags pequenos,


no canto superior da folha, e mostrando-os, diz: "Oh! Está escrito
aqui: 'Menina vai prá cama tarde para não crescer!'" (com entonação
de quem lê).

Dois meses depois, esse "agir como se lesse", em que se apela à


autoridade da escrita, faz o seu aparecimento nas situações de "faz de conta":
(14) (3;09;24) - Mãe e Lia brincando de bruxa. Lia, para a mãe no
papel de bruxa: "Eu vou dormir agora. Você vem e bate na bunda
com sua vassoura, tá?" Faço o combinado, e, quando Lia "acorda",
finjo não ter sido eu (também combinado). Lia: "Me dá o cartão"
(finge pegar algo no meu colo e, de mão aberta, olhando para mim,
"lê": "'A bruxa malvada bateu na sua bunda'" (1ª vez) e "'A bruxa
malvada bateu na sua bunda outra vez'" (2ª e 3ª vezes em que a
brincadeira se repetiu).

Aqui, o apelo à autoridade da escrita se faz não tanto no sentido de


convencer alguém de alguma coisa (ou, talvez, de convencer a "bruxa-mãe" a
não mentir), mas principalmente no sentido da "veracidade" da escrita -- "eu
não vi, mas sei, porque está escrito e a escrita não mente". Uma das funções
da escrita é a de fornecer informações - e essas são fonte de poder. A
observação que se segue é mais um indício de que Lia está constituindo essa
idéia:
(15) (3;11;06) - Lia comenta com o pai porque não gostou de visita
feita ao museu, onde havia uma exposição sobre lobos: "Não gostei
porque lobo come gente!" O pai argumentava que não e Lia citou a
evidência para sua afirmação: "Come sim! Comeu Chapeuzinho
Vermelho!" Pai: "Comeu nada! Isso é só história!" Lia: "Comeu sim!
Eu li!" (em tom muito convincente, dando o papo por encerrado).

Para a criança, portanto, a escrita não se constitui como essa coisa fria,
que serve à memória, que quebra barreiras de espaço e tempo, que permite a
burocracia, etc. (ver Stubbs, 1980, sobre as funções da escrita para o adulto
letrado). A escrita se constitui como "mágica", como "poder". Ela aproxima,
permite a interação e a interlocução. Ela dá poderes a quem a manipula,
oferecendo argumentos irrefutáveis. Ela também serve de consolo:
(16) (3;11;19) - Lia, aflita com a reação do cachorro do avô a uma
tempestade, fala com ele: "Num precisa ter medo! Chuva é só uma
nuvem que bate na outra! Chuva é água! É só água, viu, Norman?
Num precisa ter medo!" (apropriando-se do que lhe disse a mãe
quando ela mesma teve medo de uma tempestade, algum tempo
antes). Pouco depois, diz "Vô contá uma historinha prá você,
Norman." Vai ao quarto e volta com o livro Tuca, vovó e Guto. Senta-
se ao lado do cachorro e passa a "ler" para ele, reproduzindo o texto
conhecido de inúmeras leituras.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

A CONSTITUIÇÃO DAS LETRAS COMO FOCO DE ATENÇÃO E DA IDÉIA


DE QUE LETRAS TÊM PROPRIETÁRIOS

Com 1 ano, 8 meses e 3 dias, Lia é apresentada ao "mundo das letras". O


pai aponta a letra A, numa plaqueta em que está escrito o nome LAURA (com
que a criança e os pais brincavam até então, os adultos pedindo a Lia que
mostrasse onde estava escrito "Laura" ou "mamãe", "Eric" ou "papai") e diz o
nome da letra "a", que Lia repete, apontando indistintamente a plaqueta. O pai
aponta novamente o A e pergunta "Que que é isto?". Lia repete "a". Portanto, a
primeira "informação" sobre letras é fornecida pelo adulto letrado, num
momento em que a escrita é foco de atenção conjunta da criança e dos adultos
presentes. O adulto que, até então, não "recortava" as letras do conjunto em
que elas se apresentavam (ou seja, da palavra ou texto escrito) passa a
"destacá-la" para a criança, apontando-a e nomeando-a. A criança, num
processo de especularidade, incorpora o gesto de apontar do adulto e seu
modo de se referir à letra, embora o seu apontar à esmo indique que ela não
discrimina ainda as formas das letras. O adulto não estaria aqui apenas
informando à criança sobre o nome da letra ou sua forma. Ele estaria também,
e principalmente, recortando, destacando esse objeto - a letra - como
merecedor de atenção, num jogo semelhante ao que possibilitou a constituição
da escrita como foco de atenção e interesse (Mayrink-Sabinson, 1991).
Nos três dias que se seguem voltam a ocorrer interações entre a mãe e a
criança em que as letras se tornam foco de atenção:
(17) (1;08;04) - Eu e Lia vimos juntas o livro do ABC. Além das
figuras, Lia apontou letras que eu nomeava à medida em que eram
apontadas.
(18) (1;08;05) - Com o livro do ABC, que Lia foi buscar no quarto
para ver as figuras do Papai Noel ("iéu") e da girafa ("áfa"), Lia
passou a apontar as letras, que eu nomeava à medida em que ela
apontava. A única que Lia repetiu foi o "xis".
(19) (1;08;06) - À noite, com o livro do ABC, que Lia folheava,
apontando e nomeando figuras, Lia apontou para a letra B, dizendo
"Bê". Não entendi logo, depois confirmei: "Bê". Em seguida apontei a
letra A, perguntando "E essa?". Lia disse "a". Em seguida, começa a
virar as folhas, aparentemente procurando alguma figura. Apontei
para a letra L e disse "Esse é da Lia."

O livro envolvido é o mesmo, o do ABC, no qual as letras aparecem


destacadas, são grandes e coloridas. No primeiro dia, a criança aponta letras,
que a mãe nomeia. No segundo dia, o mesmo acontece, mas a criança repete
o nome de uma das letras nomeadas, num processo de especularidade
imediata (cf. de Lemos, 1982). No terceiro dia, é a criança quem toma a
iniciativa de apontar e nomear uma das letras - "Bê" - o que parece
surpreender a mãe, que demora um pouco a confirmar "Bê". Quando a criança,
folheando o livro, pára na página da letra L, a mãe aponta essa letra e diz
"Esse é da Lia." Ou seja, a partir de um interesse por letras, que é atribuido à
criança pelos adultos que interagem com ela, passa-se a singularizar esse
objeto (a letra, elemento mínimo da nossa escrita de base alfabética), apontá-
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

lo, destacá-lo de outras letras numa palavra ou texto, referir-se a ele de certas
maneiras - pelo seu nome ou por uma expressão lingüística que também se
presta à referência a objetos que são propriedade de alguém, uma vez que
"Esse é da Lia" também é utilizado em referência a objetos que pertencem à
criança. Num processo especular, a criança vai retomar o gesto e a fala do
adulto em referência às letras, constituindo-as como foco de sua atenção.
Por um período de cerca de cinco meses, a criança deixa de se interessar
pelos livrinhos. Não que a escrita deixe de ser objeto de sua curiosidade ou de
"leituras". Nesses cinco meses, as atividades envolvendo a escrita se dão em
torno de outros materiais portadores de texto. Incorporando o modo de falar do
adulto ao fazer uma leitura em voz alta, Lia vai produzir "leituras" que se
constituem numa série ininteligível de sons, mas que se diferenciam da fala por
uma entonação interpretada pelo adulto como "de leitura". Lia traz portadores
de texto, que entrega à mãe com um pedido - "Lê!"; ou toma das mãos do
adulto portadores de texto, anunciando "Ia lê!" ("Lia lê"), passando então a
vocalizar, enquanto olha a escrita, com entonação de quem lê. Quando o
adulto lê para ela, a criança às vezes repete em coro a leitura, ou completa as
sentenças, no caso de textos já conhecidos. Aos 2 anos e 2 dias, Lia pega um
dos seus livros favoritos e produz sua primeira leitura inteligível, após anunciar
"Vô lê": uma leitura baseada nas ilustrações, em que a entonação de quem lê
está ausente e em que marcas de oralidade se fazem presentes; uma "leitura"
que em nada se assemelha às leituras que a mãe fazia desse mesmo livro,
mas que parece incorporar os comentários da mãe sobre as figuras: "Aí...veste
a calça...aí...veste a buza...aí veste a buza (apontando a blusa na figura)... Aí
tá penteano o cabelo... Aí pôs chinelo... Aí... Aí...(hesita, vira a página)" "Aí, o
que, Lia?", pergunto. "Tabô." (fecha o livro).

Aos 2 anos, 1 mês e 8 dias, o adulto volta a atribuir à criança um


interesse pelas letras:
(20) (2;01;08) Lia volta a se interessar por um livro, A Família Urso,
e, ao chegar à figura do ursinho com seus brinquedos, puxa o dedo
indicador da mãe e o coloca sobre a figura do bloquinho de letras, o
que é interpretado como um pedido para dizer os nomes das letras
do bloco. Mãe inicialmente diz "Bê, Cê, A, Tê", ao apontar as letras.
Depois começa a dizer "A de Alice, Cê de Cacau, Tê de Tiago". Lia
pede inúmeras repetições. Mais tarde a mãe passa a dizer "A de
Alice, de Ana." "CÊ de Cacau, de Cleide." Então Lia vai buscar
Cleide na cozinha - nós estávamos na copa - e aponta a letra C
dizendo "Teide". Cleide passa a apontar as letras, dizendo "Bê de
borboleta, de bloco, de bola" (vai apontando a letra e figuras, na
mesma página, de objetos cujos nomes se iniciam pela letra em
questão) "Esse é o Tê de tartaruga, de trenzinho..." (apontando as
figuras na página).
Aqui se pode ver que, a partir de uma atribuição à criança de um
interesse pelas letras que aparecem na figura do bloco (mais uma vez isoladas,
coloridas, se bem que menores que aquelas do livro do ABC), o adulto passa a
nomeá-las. Depois, além de nomeá-las, inclui um nome iniciado por essa letra.
E, finalmente, o adulto nomeia as letras e acrescenta mais de um nome de
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

pessoas que a criança conhece e que lhe são queridas (primos, tios, a babá). A
forma escolhida pelo adulto é, mais uma vez, a mesma usada para atribuir
propriedade, nesse caso sendo equivalente à utilizada quando se faz uma
"distribuição" de objetos ("Livro de papai, boneca de Lia, vestido de mamãe...")
Um segundo adulto, cujo nome é citado em relação a uma das letras, é
mobilizado pela criança aparentemente para ser apresentado à letra que tem
relação consigo, e também adere ao jogo de apresentar letras à criança. Seu
modo de se referir às letras só difere do primeiro adulto envolvido no sentido
em que, ao invés de dizer nomes de pessoas, ele diz nomes de objetos,
igualmente conhecidos, iniciados pela letra em foco, e presentes na figura.
Esse modo de se referir às letras como "de alguém", esse alguém sendo
sempre familiar à criança, é introduzido pelo adulto e se repete nas mais
variadas situações. A preocupação do adulto não parece ser apenas a de
informar à criança sobre a letra inicial dos nomes que pronuncia, porque a letra
E (inicial de Eric, o nome do pai) é apresentada como "a letra do papai", e o F
(inicial de Fernando, um amiguinho) é apresentada como "a letra do Dico" (que
é como Lia se referia a ele). Fazendo a relação "letra/nome de alguém
querido", o adulto parece ter como objetivo focalizar a atenção da criança na
letra, levando-a a discriminar uma da outra.
Um exemplo ocorrido aos 2 anos, 7 meses e 17 dias ilustra bem como se
estabeleceu esse "jogo" de reconhecimento de letras:
(21) (2;07;17) - Quando peguei o livro do ABC, apontei, na capa,
para a letra A e perguntei "Que que é isso?" Lia: "O bê de Ana."
Mãe: "Que?" Lia: "O bê de Ana" Mãe: "O a de Ana, né?" Em seguida
mostrei a figura da maçã, perguntando "O que que é isso?" Lia:
"Maçã." Aponto a bola "Que é isso?" Lia: "Bola". Apontei a letra B,
"Que que é isso?" Lia: "O bê de bola".. Mãe: "Muito bem! O bê de
bola!" Apontei em seguida a letra C, repetindo a pergunta e Lia
respondeu "O bê de Cleide." Mãe: "Ah! O cê de Cleide."

Como se vê, a criança adota uma fórmula, incorporada da fala do adulto -


"O bê de ----", o espaço sendo preenchido com nomes de pessoas ou objetos,
também incorporados da fala do adulto em relação às letras. O vocábulo "bê"
nesse momento não representa o nome específico de uma determinada letra,
mas seria uma espécie de "coringa", aplicável a toda e qualquer letra. Às
vezes, ele parece ser usado de forma apropriada ("O bê de bola"), o que
recebe o incentivo do adulto ("Muito bem! O bê de bola!"), mas o que se segue
na interação demonstra o caráter genérico desse vocábulo.
Um mês depois (2;8;16), a criança continua se referindo às letras, que
estão se tornando conhecidas por essa relação de correspondência (A/Ana;
B/bola; C/Cleide, etc.), ainda da mesma forma. Nessa data, o pai, no momento
distante da criança, ouvindo-a referir-se à letra E (da palavra EVENFLO, em
relevo na mamadeira que ela segurava) como "O bê de papai", diz, "Não é o bê
de papai. É o pê de papai. O mê de mamãe. O ele de Lia.", enfatizando os
nomes das letras. Lia, em seguida à fala do pai, pergunta: "Cadê o mê de
Cleide?", incorporando a ênfase e o nome de uma das letras que o pai disse.
O adulto passa, a partir dessa época, a "especializar" um nome para cada
letra. A criança, em cuja fala há indícios de que vinha construindo uma noção
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

de "propriedade" desde cerca de 1 ano e 5 meses, constitui, então a idéia de


que as letras são propriedade de alguém:
(22) (3;00;09) Lia encontra uma ficha em que está escrito LEÃO, e
mostra-a, dizendo, entusiasmada: "Esse é meu!" "Por que?",
pergunto-lhe. Lia aponta a letra L e diz "A minha letra! Esse é meu!",
ou seja, a presença da letra L na palavra serve de índice da escrita
do nome "Lia". Pouco depois, Lia pede que eu escreva "papai".
Quando lhe mostro PAPAI, Lia olha, parece em dúvida, pergunta:
"Que que é esse?" Aponto a escrita e leio "Papai". Lia, espantada:
"Mas por que que num tem a letra do papai? Num tem a letra do
papai!" .

Ou seja, constituída a partir das práticas discursivas do adulto, do modo


como o adulto lhe apresenta as letras, essa idéia de que letras são propriedade
de alguém vai servir à criança como índice para a "leitura" - se há um L, "a letra
da Lia", deve estar escrito "Lia"; se não há um E, "a letra do papai", como pode
estar escrito "papai"?
Conflitos semelhantes vão acontecer a partir de então, motivados por
essa idéia de que as letras são propriedades de alguém, uma idéia constituída
com a "ajuda" do adulto. E é a partir da manifestação desse conflito que o
adulto recomeça a introduzir outros nomes, agora não exclusivamente de
pessoas, relacionando-os às letras:
(23) (3;00;18) Pais "testam" o reconhecimento de letras (na palavra
PLOFT, em realce num livro que a mãe lia para a criança). O pai,
após ouvir Lia identificar o L como "É minha!", afirma "É de Laura
também". Lia, brava, protesta: "Não! É minha!" A mãe,então,
interfere, dizendo "É. Essa é a letra de Lia, mas é também de
Laura...", sendo interrompida por Lia que diz, enquanto abraça a
mãe "Da minha mamãe!" -- ou seja, Lia parece admitir, então,
partilhar a "minha" letra com a "minha mamãe". Mas a mãe retoma
sua fala interrompida, continuando "É. Mas é de Lara, também. E
sabe de quem mais? De Lucinha. De lápis. De livro.". Lia ouve em
silêncio, mas volta a protestar quando o pai acrescenta um novo
proprietário à lista "Da tia Lia.", gritando: "Não!".
(24) (3;00;19) Com a mesma palavra PLOFT, Lia aponta o L,
dizendo "Letra", enquanto cutuca a barriga da mãe e a própria.
Pergunto: "Letra? Que letra?", e Lia responde: "Da Lia e da mamãe
também." M: "É. A letra de Lia, e de Laura, e de Lucinha... que
mais?" L: "Não! Minha e da mamãe! Só!"

Lia parece, nessa ocasião, estar trabalhando já com uma hipótese de que
as letras têm proprietários, na base de um por letra, uma hipótese que contou
com a colaboração ativa do adulto em sua construção. Chamo a atenção do
leitor para o fato de que o adulto, no início, ofereceu à criança mais de um
nome em relação à cada letra apresentada (ver exemplo (20)), mas logo
estabeleceu uma "regra", consistentemente utilizada, que relacionava um só e
mesmo nome para cada letra. Essa "especialização" parece ter orientado a
atenção da criança para o aspecto figurativo das letras, levando-a a discriminar
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

umas das outras, conforme Ferreiro (1985) aponta. Mas essa "especialização"
também parece ter contribuído para que a idéia de que "a letra pertence a uma
e só pessoa" se constituisse. E é só quando a criança demonstra que constituiu
essa idéia que o adulto vai começar a reintroduzir outros nomes, agora não
exclusivamente de pessoas, mas também de objetos, relacionando-os às
letras.
O papel do adulto letrado é, pois, mais ativo que o de simples "informante"
sobre a escrita. É ele quem atribui intenções e interesses à criança, orienta sua
atenção para aspectos da escrita, recortando-a com o seu gesto e sua fala,
tornando-a significativa. O modo de falar sobre a escrita, as práticas
discursivas do adulto, recortadas e incorporadas pela criança, são, por sua vez,
retomadas e incorporadas pelo adulto, num jogo muito mais dinâmico do que o
que supõe o elemento letrado como "informante sobre a escrita" e o elemento
não-letrado como aquele que, a partir da informação recebida, vai construir,
sozinho, dependendo apenas do seu sistema assimilatório já construído, um
conhecimento sobre a escrita. Os dados apresentados acima mostram o adulto
letrado mais como um co-autor, co-construtor das hipóteses sobre a escrita.

A PRODUÇÃO DE ESCRITA

Quanto à produção de escrita, Lia teve a sua disposição lápis e papel


desde muito cedo, assim como a oportunidade de observar e participar de atos
de escrita sendo praticados a sua volta. Aos 1 ano e 6 meses, Lia produzia
rabiscos, anunciando-os com um "vevê" ("escrever"). Não havia, por parte dos
adultos, qualquer tentativa de dar-lhe modelos, embora suas garatujas fossem
aceitas e interpretadas como tentativas de escrever ("Ah! Você tá escrevendo?"
"Que que cê tá escrevendo?").
Aos 2 anos, 5 meses e 23 dias, Lia rabiscava e a mãe diz "Faz um
pauzinho." Lia desenha então um traço vertical. "Agora faz uma bolinha". Lia
produz um pequeno círculo ao lado do "pauzinho". É então que a mãe passa a
desenhar letras e a criança, tomando-lhe o lápis, rabisca sobre elas.
A partir daí, há outras ocasiões em que a mãe escreve diante de Lia,
chamando sua atenção para a escrita que está sendo produzida.
(25) (3;00;17) - Lia trabalha numa "carta" para os avós. Desenha e
depois de feito o desenho anuncia "Oh! Eu fiz uma bonequinha
aqui!". Ela alternava rabiscos mais amplos e zigzags menores - num
destes ela disse estar escrito "mamãe". Um dos rabiscos foi
apontado enquanto ela dizia "Oh! Eu fiz a letra da Ana!" (parecia
muito entusiasmada). Sugeri, então, que ela fizesse "a letra da Lia",
"pro vovô Harvey saber que foi a Lia que escreveu essa carta prá
ele." Lia começou a traçar uma linha vertical, e eu: "Olha! A letra da
Lia se faz assim" e tracei um L com o indicador, no ar. Lia imitou a
direção do movimento, traçando vários rabiscos semelhantes a um
L, bem grandes. Peguei a mão dela e traçamos juntas um L menor.
Ao ver o resultado, Lia comentou: "É a letra da Liazinha."
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Ou seja, entre ter a capacidade de coordenar seu traçado à pedido do


adulto e se valer dela para traçar letras (a letra da Lia sendo reconhecida
desde cerca de 2 anos e 7 meses), algum tempo se passa. O exemplo acima
mostra ainda que, apesar de a criança, desde cerca de 2 anos, indicar já fazer
uma distinção entre "escrita" e "não-escrita" (quando a mãe a "testa" com
perguntas do tipo "Onde que tem coisa prá mamãe ler prá você?", ela
apontando consistentemente a escrita (2;2;20); ou respondendo a perguntas
como "Tem coisa prá ler aqui?", diante de página em branco ou só com figuras,
com um "Não. Aqui num tem letra. Aqui.", enquanto vira a folha do livro para
apontar a escrita (2;4;3)), essa distinção ainda está sendo construída, conforme
o comentário acima mostra: a escrita parece estar sendo entendida como uma
maneira diferente de desenhar - uma idéia que também parece ser construída
com a cooperação do adulto (aos 2;5;23, quando a mãe desenha pela primeira
vez letras como "modelo", a criança pede "Faz papai", e a mãe desenha então
a letra P; antes disso, um pedido como esse era atendido com um desenho...)
Aos 3 anos, 1 mês e 6 dias, a mãe escreve nome e sobrenome da criança
numa mochila escolar. Lia ao lado, assiste, e vai "lendo": mãe desenha o L, e
ela diz "Lia"; mãe desenha o I, e ela diz "Li..." "...A" enquanto desenho o A.
Continuo escrevendo o sobrenome, ela olhando, e logo depois comenta
"Quantas letras! (passa o dedo pela escrita já feita) Muita letra!" M: "O que que
eu tô escrevendo aqui?" L: "'Prá ninguém pegar'." (com entonação de quem lê).
É essa a primeira vez que a quantidade de letras numa escrita parece ter-se
constituído em foco de atenção. E o interessante é que, doze dias depois
(3;1;18) começo a notar que "a letra de Lia" passa a ter três segmentos e a fala
passa a ser segmentada para acompanhar o traçado. Interessante também
que, depois desse L de três porções, a letra U é apontada algumas vezes como
"a letra da Lia" - uma "confusão" que nunca ocorrera anteriormente.
Aos 3 anos e 5 meses, o repertório de letras começa a aumentar. Ao ver
a criança desenhando figuras quadrangulares (que ela viu sendo traçadas num
programa infantil da televisão), a mãe propõe ensinar-lhe "a letra do papai"
(ausente há 3 meses e de quem a criança se mostrava muito saudosa) e Lia
traça, sem qualquer problema, a letra E que lhe é oferecida como modelo. No
mesmo dia aprende também "a letra do vovô Harvey", o H. Ao praticar o
desenho dessas letras, em várias ocasiões posteriores, Lia faz coincidir
segmentos das letras com segmentos de fala, não necessariamente, mas às
vezes silábicos.
Com o desenho de letras, coexistem traçados em zigzag, que parecem se
especializar para a escrita de "textos", as letras sendo produzidas como
"escrita de nomes" - uma distinção aparentemente paralela a uma outra que ela
vinha fazendo desde cerca de dois anos, cuja origem parece estar nas práticas
de "leitura" do adulto: uma leitura corrida, dramatizada, de textos longos
(livrinhos, bulas, instruções, etc.) e uma leitura lenta, segmentada, de textos
curtos (rótulos de produtos), esta acompanhada de um passar o dedo sob a
escrita (ver Mayrink-Sabinson, 1987). O zigzag como "escrita de textos" reflete,
em espelho, o como a escrita manuscrita (e Lia assistia a muitos atos de
escrita manuscrita) deve parecer à criança (ver em Harste & Burke, 1982, como
as garatujas iniciais das crianças refletem a escrita adulta). Assim como as
"leituras" que Lia produz nesse período refletem o modo de ler do adulto --
numa representação, de início "global" do ato de ler, que vai-se diferenciando
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

para incorporar aspectos do uso social que os adultos fazem da escrita,


levando-a a diferenciar "o que está escrito onde". Também as "escritas"
produzidas parecem seguir esse caminho.
O uso de mais de uma letra para produzir uma escrita só vai aparecer
mais tarde, após os 3 anos e 7 meses. É quando Lia tenta, pela primeira vez,
copiar seu próprio nome a partir de um modelo dado pela mãe (numa situação
em que a criança tinha-se proposto espontaneamente: "Agora eu vou fazer as
letras de todo mundo" e, após dar uma exibição de seu repertório de letras,
pede à mãe que escreva "Lia" e aceita a sugestão da mãe: "Eu faço aqui em
cima e você faz aqui em baixo, tá?").
As primeiras escritas com mais de uma letra que não são "cópias" de um
modelo vão aparecer aos 3 anos, 8 meses e 28 dias, quando a criança brinca
com um "computador" (um brinquedo da Texas Instruments), teclando letras
em seqüência, até que o limite da tela (7 letras) seja preenchido:
(26) (3;08;28) - De início, Lia vai batendo as letras, sem anunciar
nenhuma intenção de escrita. Depois anuncia: "Vou escrever Tiago",
e, diferentemente de antes, tecla apenas 5 letras (a primeira delas
sendo o T, "a letra de Tiago"). Vendo essa escrita, pergunto "Tiago
tem só essas letras?" L: "É" M: "Por que?" Lia parece hesitar, a
procura de uma resposta e diz "Porque...porque...porque ele ainda é
pequeno." Peço, então, que ela escreva Rodrigo (nome do irmão
mais velho do Tiago). L: "Qual que é a letra do Rodrigo?" (enquanto
apaga a escrita anterior). Mostro-lhe o R, dizendo "Essa aqui, o
erre." Lia tecla o R e todas as letras que o aparelho permite,
enchendo a tela. M: "Aí é Rodrigo?" L: "É. 'Rodrigo'" (lendo,
enquanto passa o dedo indicador sob a escrita). M: "Rodrigo tem
mais letras que Tiago?" L: "É. O Rodrigo é maior." Em seguida peço
que escreva Natália (nome da irmã mais nova do Tiago) L: "Qual
que é a letra da Natália?" Mostro o N, que Lia tecla, e, em seguida,
outras letras são tecladas, até encher a tela. M: "O que que você
escreveu?" L: "Natália." M: "Natália tem muitas letras?" Lia hesita:
"Não. (apaga tudo) Ela é pequenininha ainda..." Volta a teclar três
letras.

As respostas de Lia, que sugerem uma "hipótese pictográfica" da escrita,


devem-se, na verdade, ao modo de perguntar do adulto. Após utilizar,
espontaneamente, 5 letras para a escrita de Tiago, ela se vê na obrigação de
responder por que "só tem essas letras" - a hesitação, os falsos começos,
mostram o trabalho de busca de uma resposta que satisfaça o adulto: "ele
ainda é pequeno" parece-lhe uma boa resposta... e é o que ela diz. O adulto
lhe pergunta, a respeito das 7 letras usadas para escrever Rodrigo - "Rodrigo
tem mais letras que Tiago" - e aceita, sem comentários, sua escrita e a
resposta - "O Rodrigo é maior." Quando lhe pede a escrita de Natália, Lia volta
a utilizar 7 letras, mas tem que enfrentar, de novo, o adulto: "Natália tem muitas
letras?". Nova hesitação em busca de algo que convença - Natália não pode ter
todas essas letras (se pudesse, por que o adulto perguntaria?) - deve ter
menos, porque "ela é pequenininha ainda". Essa "hipótese pictográfica" da
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

escrita, assim como a "hipótese de que as letras tem proprietários", conta com
a contribuição ativa do interlocutor e de sua linguagem, em sua construção.

CONCLUSÃO

Os dados da história de contatos de Lia com a escrita parecem mostrar


que tanto o interesse pela escrita (o alçamento da escrita como objeto
merecedor de atenção e recipiente privilegiado de certos comportamentos),
como as funções e os usos construidos para a escrita (o para que a escrita
pode/deve ser utilizada) e os conhecimentos (as hipóteses) a respeito desse
objeto contam com a participação ativa do adulto e de sua linguagem na sua
constituição.
É o adulto que - por atribuir intenções, interesses à criança; interpretar
seu comportamento e agir como se a criança realmente tivesse essas
intenções, esses interesses; por ler a escrita que a criança apontou por acaso,
(re)cortando, (re)alçando a escrita e seus elementos constitutivos, através de
gesto e da fala; por estar atento ao que a criança já é capaz de fazer (às vezes
atribuindo-lhe mais capacidade do que ela realmente tem); por falar sobre a
escrita de uma certa maneira, fazendo-a significativa - possibilita a constituição
mesma desse interesse e conhecimentos.
Não se trata, pois, de um adulto que informa sobre a escrita e de uma
criança que constrói seu conhecimento a partir dessa informação e das
propriedades do objeto a conhecer. Não se trata, também, de uma construção
linear, cumulativa, de conhecimentos, mas de um processo de constituição de
conhecimentos que apresenta idas e vindas, em que nem tudo está integrado
de início.

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

O LETRAMENTO NA ONTOGÊNESE: UMA PERSPECTIVA SOCIO-


CONSTRUTIVISTA

Roxane Helena Rodrigues Rojo


LAEL/PUC-SP

Adotar uma visão sócio-construtivista da construção do letramento e da


linguagem escrita significa, entre outras coisas, repensar as relações entre as
modalidades oral e escrita do discurso neste processo. Significa também
afirmar o papel constitutivo da interação social para a construção da linguagem
(letrada) e, logo, para os usos e conhecimentos do objeto escrito construídos
pela criança.
Como mostra de Lemos (1986: 244-245), ter uma visão sócio-
construtivista sobre o desenvolvimento da linguagem implica (a) mostrar
"... como a interação altera e amplia os modos de funcionamento do
organismo, transformando-os em linguagem e como a linguagem,
por sua vez, os transforma, fazendo-os ascender a um nível de
funcionamento superior"; (b) "... observar não só esse processo
gradual de discretização e sistematização das várias faces da
linguagem, como o papel da interação neste processo"; e (c) não
perder de vista "...o modo como os papéis sociais, inscritos em cada
fragmento de discurso, são gradualmente assumidos e organizados
pela criança e que é deste processo que emerge a possibilidade
dela se conceber, a si e ao outro, como sujeito".
Sendo a escrita uma modalidade de linguagem inquestionavelmente
social e culturalmente constituída, com maior justeza estas afirmãções cabem à
construção da linguagem escrita. Paradoxalmente entretanto, quase não há
trabalhos sócio-construtivistas sobre este processo de construção.
Os pesquisadores de aquisição de linguagem oral tendem hoje a
reconhecer que o processo de letramento encontra-se em estreita relação com
a construção social do discurso oral (sobretudo narrativo). Scarpa (1987: 126-
127), que afirma uma "continuidade processual" entre a aquisição e
desenvolvimento de linguagem oral e a aprendizagem da escrita:
"...Não é um processo linear. Ao contrário da idéia razoavelmente
difundida de complexidade cumulativa, tão cara à escola, é um
processo de construção que envolve idas e vindas, reorganizações,
reestruturações não concomitantes de subsistemas, articulações
entre eles (...) Em todos os casos, o sujeito está necessariamente
presente, assim como o outro, o mundo e a própria linguagem, em
interação e inter-relação".
Segundo a autora, é só a visão de linguagem, aprendizagem e
desenvolvimento que a escola tem - que é fragmentária e decontextualizante -
que a torna responsável por uma ruptura de processo, na medida em que
promove o estranhamento do sujeito e "toma como ponto de partida o ponto de
chegada", supondo como categoria pronta o procedimento ainda não analisado
e não discretizado.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Também de Lemos (1988) coloca a possibilidade de um olhar sócio-


construtivista sobre o desenvolvimento de linguagem escrita e levanta, neste
texto, importantes questões sobre a relação oralidade/letramento e o papel dos
jogos neste desenvolvimento. Especialmente, indica que devemos rever alguns
pressupostos que caracterizam a oralidade como processo "natural" que
precede o processo de educação "formal" da escrita e pensar no papel crucial
do jogo de faz-de-conta no desenvolvimento do letramento.
Sabemos que, inicialmente, o desenvolvimento de linguagem escrita ou
do processo de letramento da criança é dependente, por um lado, do grau de
letramento da instituição familiar a que pertence - i.e., da maior ou menor
presença, em seu cotidiano, de práticas de leitura e de escrita - e, por outro,
como ressalta de Lemos (1988: 11), dos "... diferentes modos de participação
da criança nas práticas discursivas orais em que estas atividades ganham
sentido".
Segundo a autora, é o modo de participação da criança, ainda na
oralidade, nestas práticas de leitura/escritura, dependentes do grau de
letramento familiar (e, acrescentaríamos, da instituição escolar e/ou pré-escolar
em que a criança está inserida), que lhe permite construir uma relação com a
escrita enquanto prática discursiva e enquanto objeto.
"... É através dessa prática que a criança vai reconhecer o ato de ler
como um outro modo de falar e que o objeto-portador de texto se
torna mediador de um outro tipo de relação com o mundo e com o
Outro" (id. ibid.).
Dentre estas práticas orais, a autora ressalta a relevância do jogo de faz-
de-conta para o processo de letramento. É no "fazer-de-conta que lê“ e no
"fazer-de-conta que escreve" - eles próprios práticas interacionais orais - que o
objeto e as práticas escritas são recortadas e ganham (ou não) sentido(s) para
a criança.
Estes jogos e práticas se dão em diferentes instituições sociais (família,
pré-escola, escola e, ainda, outras menos geralmente distribuídas) que
consignam ao sujeito diferentes papéis e possibilidades: o daquele que pode
ler e escrever ou fazer de conta que lê e escreve e o daquele que não o pode
porque não o sabe. É na presença/ausência do brincar de ler para a criança
(jogos de contar), do brincar de ler com a criança, do brincar de desenhar e
escrever (jogos de faz-de-conta) que se reencontra o sentido social da escrita
daquela subcultura letrada.
A partir destes pressupostos mais gerais, temos desenvolvido um projeto
integrado de pesquisa20 no Programa de Estudos Pós-Graduados em
Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas (LAEL) da PUC-SP, cujo objetivo
central é fazer uma releitura sócio-construtivista dos dados do letramento e da
construção de linguagem oral e escrita. Os dados deste projeto vêm sendo
colhidos desde 1988, em situação de interação sobre objetos portadores de
texto em universo familiar e pré-escolar - processo este determinante do

20
Agradecemos aqui o suporte financeiro viabilizado pelo CNPq e pela FAPESP.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

letramento inicial -, em criança (H.) 21 cujo universo familiar/escolar apresenta


alto grau de letramento22.
Os dados que aqui serão descritos e analisados são relativos a uma
coleta longitudinal de interações familiares sobre portadores de textos, com
gravações quinzenais em vídeo, num período que vai de 02;01,17 até
05;04,1023. São gravações feitas num contexto natural de interação da criança
com membros variados da família e com o pesquisador, interações estas
muitas vezes mediadas por objetos-portadores de texto, por ser esta uma
prática familiar habitual. O sujeito é uma menina (H.), pertencente a um
universo familiar de alto grau de letramento, cujos pais são professores
universitários e com quatro irmãos mais velhos já alfabetizados e
escolarizados. Ela própria, freqüenta a pré-escola desde um ano de idade. Nos
anos iniciais de coleta, sua irmã (J.) estava em processo de alfabetização.

1. AS RELAÇÕES ENTRE AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM ORAL E O


PROCESSO DE LETRAMENTO EMERGENTE

Scarpa (1987) e de Lemos (1988) propõem a existência de uma


continuidade entre os processos de aquisição de linguagem oral e de
letramento. Disto decorrem uma série de indagações sobre o caráter desta
relação de continuidade.
O momento inicial destas indagações corresponde à escolha da unidade
de análise destes processos. O sócio-interacionismo/construtivismo brasileiro
tem proposto, ao longo de seu desenvolvimento, sucessivas unidades de

21
Na verdade, o projeto integrado tem objetivos mais amplos, que incluem a comparação de
processos de letramento emergente e de construção de linguagem em sujeitos de camadas
sociais, econômicas e culturais diversas. Assim, foram também colhidos dados de interação
familiar de dois outros sujeitos (P. e A.), de graus de letramento diversos. Neste texto,
analisaremos apenas os dados de H., que apresentam mais claramente processos de
letramento emergente. Para uma visão dos dados contrastivos dos três sujeitos, ver Rojo
(1995a; 1995b, em prep.).
22
Estamos qualificando os universos de investigacão (família; escola) como de "diferentes
graus de letramento", a partir dos diversos tipos de usos de escrita (emprático, homílico,
para transmissão de conhecimento coletivo acumulado, institucional (Ehlich, 1983)) que
nestes universos se apresentam. Qualificamos de baixo grau de letramento (BGL) aquele
universo onde os usos de escrita, quando existentes, têm caráter unicamente emprático
(para orientação temporo-espacial e usos mnemônicos) e de alto grau de letramento (AGL),
aquele universo que apresenta o conjunto dos usos identificados. O grau médio de
letramento (MGL) apresenta privilegiadamente alguns destes usos, mas não todos. Em
nosso caso, do sujeito A. (MGL), marcadamente usos institucionais (escrever/ler para o
trabalho; escrita escolar). Insistimos, aqui, no fato de que graus de letramento não se
equacionam, de nosso ponto de vista, a classes sociais. Pelo menos, não totalmente. É
óbvio e previsível que classes sociais menos favorecidas terão também, em sua maioria,
menores oportunidades de letramento e vice-versa. Mas esta não é a totalidade da questão,
que aqui se encontra equacionada ao histórico de letramento de cada sujeito, determinado
por uma inserção cultural, ao mesmo tempo, mais restrita e mais ampla. Logo, esta
abordagem nada tem a ver, como já se tentou sinalizar em algumas das exposições desta
nossa posição, com uma postura bernsteiniana.
23
O recorte que analisaremos neste texto vai de 02;01,17 até 03;05.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

análise para o desenvolvimento de linguagem oral (cf., a respeito, de Lemos,


1989). Dentre elas, o diálogo, o discurso, o jogo.
Não é nova a afirmação do papel fundamental do jogo na aquisição de
linguagem da criança. Já Bruner (1975), marcava o papel estruturante que têm
os jogos comunicativos na interação mãe-criança, determinante do
desenvolvimento de linguagem oral. Trabalhos brasileiros mais recentes, de
linha sócio-interacionista, que reenfocam a interação lingüística como
constitutiva do sujeito, do mundo e da linguagem, afirmam também o jogo
como unidade de análise interacional privilegiada. Visto o desenvolvimento
como
"... o conjunto de todas as ações necessárias desenvolvidas em
parceria sobre o mundo", seria "... através da relação entre os jogos
que se poderia tentar uma explicação do desenvolvimento como
processo contínuo de transformações graduais" (Lier, 1985: 48-49).
Ou, como processo histórico.
A partir destes pressupostos, toda uma série de jogos interacionais têm
sido identificados na interação social mãe-criança pelos trabalhos
interacionistas, sócio-interacionistas e sócio-construtivistas. Desde jogos como
o "peek-a-boo" ("cadê/achou"), estruturantes da ausência do objeto materno,
até jogos de reconhecimento, de nomear, dramáticos, de contar, estruturantes
de diversas facetas do mundo "objetivo", do sujeito e da linguagem.
Adotando-se o "jogo como unidade de análise" (Lier, 1985), a primeira
relação de continuidade entre as constituições da oralidade e do letramento
que pode ser identificada nos dados é a reinstanciação de jogos contituídos na
oralidade, no processo de constituição do letramento (Brant de Carvalho, 1989;
Brant de Carvalho-Dauden, 1993; Rojo, 1990; 1991a; 1994d; e Fernandes,
1995).
Como Mayrink-Sabinson (passim, mas especialmente, 1987), pudemos
identificar, no histórico interacional de H., dois tipos de práticas distintos: (a)
práticas que recortavam para a criança concepções sobre a tecitura do objeto
escrito - sua materialidade e organização - e (b) usos deste objeto, que
viabilizavam a constituição de um discurso interno, de uma "dialogia interna"
como quer de Lemos (1989), responsável por um "outro modo de falar" à
maneira da escrita. Julgamos que ambas as práticas confluem no sentido da
constituição - complexa e posterior - de concepções sobre a escrita que estão,
de alguma maneira, descritas, nos trabalhos construtivistas correntes (cf.
Ferreiro, Teberosky, Abaurre, por exemplo). Neste texto, vamos nos centrar no
segundo tipo de prática, tendo como unidade de análise os jogos de linguagem.
Diversos trabalhos sobre o letramento emergente (Bissex, 1980; Britton,
1983; Garton & Pratt, 1989; Heath, 1982; 1983; Ninio & Bruner, 1978; Ninio,
1980; Pflaum, 1986; Teale, 1982; 1984) indicam reiteradamente a onipresença
do jogo de nomear nas "leituras" conjuntas iniciais entre adulto/criança.
Entretanto, tais trabalhos não estão preocupados com as relações entre
oralidade e letramento e portanto, encaram o dado em seu caráter empírico,
sem interpretação ou busca das relações interjogos.
Ora, nossa indagação incide justamente sobre a trama desta passagem
oralidade/escrita que torna as práticas orais capazes de tecer o letramento do
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

sujeito. E o que pudemos notar é que, durante todo o período investigado (de
02;01,17 até 05;04,10), naturalmente, o jogo mais freqüente na interação
mediada por objetos-portadores de texto é o jogo de contar histórias. Mas a
instanciação destes jogos não se faz sem a mediação de jogos, anteriores na
construção da oralidade, tais como os de nomeação, reconhecimento e
dramático (Lier, 1985).
Segundo Lier (1985: 49), nos jogos de nomear e nos jogos de
reconhecimento, o que se negocia é
"...os contínuos sonoro e experiencial. Neles são desenvolvidas as
faces auditiva e articulatória do som da fala. Dentro dos jogos de
reconhecimento de objetos (do tipo "cadê X?"), um dos parceiros (a
mãe) recorta o contínuo sonoro enquanto o outro (a criança) recorta
o contínuo experiencial. Nos jogos de nomeação (do tipo "o que é
isso?") ocorre exatamente o inverso. Tais jogos poderiam também
ser entendidos como jogos de reversibilidade de papéis a nível
vocal.
Já os jogos dramáticos têm por marcação específica
"...perguntas do tipo 'como é que X faz?'. Sua característica
específica é a de proporcionar participações motoras ou sonoras
através de onomatopéias. Esse novo trabalho desenvolvido pelo par
interacional representa o primeiro passo em direção à síntese das
faces auditiva e articulatória do som que continuam a ser
trabalhadas dentro dos jogos de nomeação e reconhecimento de
objetos. (...) No jogo dramático se processa o elo entre a
comunicação mais primitiva na história da criança e a comunicação
verbal que vai emergir dentro do mesmo sistema comunicativo, onde
começará a se organizar como veículo dominante." Lier (1985: 50)
Para maior clareza, vejamos um exemplo, colhido aos 02;01,17:

(1) (...)

C1: (Pega o livro A Galinha Ruiva e começa a folhear deitada no colo da mãe)
M1: Que livro é este?
C2: A pilú.
M2: Quê?
C3: A pilú.
M3: Que que tem aí?
C4: A au-au.
M4: Tem au-au?
(...)
M5: E cadê o perú?
C5: Pilú tá qui. Ó pilú. (apontando no livro)
M6: E cadê a galinha?
C6: Ó galinha. (apontando)
M7: O que que a galinha tá fazendo?
C7: Galinha tá comenu pão da pipiu.
M8: A galinha tá comendu u pão do piupiu?
C8: É...
M9: Como é que a galinha fala?
C9: Có, có, có, có.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(risos)
M10: Que mais tem aí?
C10: Ó au-au! Au! (imitando latido)
M11: Ó au-au!
C11: Ó galinha... Ó ga-linha... Ó pilú... Ó pipiu... (apontando as figuras no livro). Tá
comenu pipiu da galinha.
M12: O que que ele tá comendo?
C12: Da pipiu tá comenu... da ga/, da galinha.
M13: Pão da galinha?
C13: Da pão da galinha.
M14: Cumé que a galinha fala?
C14: Có, có, có, có.
M15: "Quem qué, qué, qué comê meu pão?"
C15: Eeeuuu! (risos)
M16: Você qué?
C16: Qué.
M17: Vocé qué cumê o pão da galinha?
C17: É.
M18: Hum... E quem tá comenu o pão da galinha?
C18: É a galinha tá cumenu pão. Podi ragá? (Mexendo na borda do livro)
(...)

Embora este seja apenas um exemplo, esta matriz interacional é sempre


reeditada nos dados durante os primeiros 10 meses de coleta (até cerca de
02;11,01), e, logo, merece análise.
Como podemos ver, do 1° turno da mãe (M1) ao 6° turno da criança (C6),
o objeto negociado é a nomeação/reconhecimento (jogo de nomear/jogo de
reconhecimento) das ilustrações do portador, para a qual a criança se encontra
em situação de reciprocidade, dado o alto grau de complementaridade inter e
intraturnos24 instaurado nesta seqüência. A partir de M7, a mãe assimetriza,
propondo a negociação de um jogo de contar (cuja simetrização25 de fato, não
24
Estes processos encontram-se definidos em de Lemos (1985: 18) como (a) "o processo de
especularidade ou de incorporação pela criança de parte ou de todo o enunciado adulto no
nível segmental; (b) o processo de complementaridade interturnos, em que a resposta da
criança preenche um lugar 'semântico', 'sintático' e 'pragmático' instaurado pelo enunciado
imediatamente precedente do adulto; (c) o processo de complementaridade intraturnos
em que o enunciado da criança resulta da incorporação de parte do enunciado do adulto
imediatamente precedente e de sua combinação com um vocábulo complementar". Na base
dos processos de complementaridade estaria uma especularidade diferida, que levaria,
gradualmente, a criança a uma situação de reciprocidade em relação ao adulto,
dependente, "...em grande parte, do desenvolvimento de sua capacidade de representar as
intenções, a atenção e o conhecimento de seu interlocutor. Em outras palavras, de sua
capacidade de instanciar uma perspectiva estruturante, papel que, no início, cabe
fundamentalmente ao adulto." (op.cit., p. 19)
25
Segundo Lier, Palladino & Maia (1991: 16-17), "...os elementos trazidos para a interação na
estrutura da permuta são simetrizados quando se estabelece um consenso entre os
participantes a respeito desses elementos. Consenso aqui é entendido como acordo relativo
que se expressa através da aceitação de um dado objeto para negociação e pela
subseqüente realização de operações semelhantes sobre tal objeto o qual vai,
gradualmente, se constituir em objeto de conhecimento. (...) Pode-se dizer que o processo
de simetrização corresponde aos momentos de estabilização de conhecimentos, ou seja,
de consenso entre os participantes da interação a respeito de um dado objeto e que os
movimentos que antecedem ou sucedem tais momentos constituem o processo de
assimetrização, que deve ser entendido, portanto, como o momento de tentativa de
ajustamento entre as ações da mãe e da criança em que elementos específicos dos
repertórios individuais estão sendo negociados para se transformarem em elementos de
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

se realiza do ponto de vista de M, já que "quem come o pão da galinha é o


pipiu"), que é intermitentemente "interrompido" por jogos dramáticos (“como é
que X faz?“) (M9/C9 e M14 a C17) e jogos de nomear (“o que é X?“) (M10 a
M11). Resta saber se se trata aqui de jogos autônomos ou de uma relação
interjogos que merece explicação.
Ora, em primeiro lugar, porque propor negociações para as quais a
criança já se encontra situação de reciprocidade? Aqui, nomear/reconhecer
"au-au, galinha, perú e piupiu" deixa de ter o mesmo valor das interações orais
onde o que se negocia é o que Lier (1985) definiu, i.e., a nomeação ela própria
em termos de significado (jogo de reconhecimento) e de significante (jogo de
nomear).
Não é esta a negociação que está sendo proposta por M., mas a citação
dos participantes da ação que irá se desenrolar no jogo de contar narrativo
subseqüente. Neste sentido, não há propriamente jogos de
nomeação/reconhecimento e de contar, mas o jogo de contar se inicia, numa
situação de reciprocidade, pela nomeação/reconhecimento de seus
participantes.
Um argumento a favor desta análise encontra-se, sobretudo, na
instanciação dos ditos jogos dramáticos nos turnos acima citados, que exige
uma releitura da definição proposta por Lier (1985). A criança está em situação
de reciprocidade para o "jogo dramático" tal como definido por Lier, tanto em
seu 9° turno, como em seu 14°. Entretanto, não há simetrização da negociação
do ponto de vista do adulto, em nenhum dos dois casos, o que se pode inferir
pela ausência de especularidade e pelos risos após o 9° turno de C., pelo
retorno da negociação em M14 e pelo 15° turno de M. (M15), onde, ao invés da
onomatopéia, esta instancia a fala "típica" do personagem Galinha Ruiva.
Portanto, aqui também se verifica uma relação interjogos onde o dito
"jogo dramático" não tem mais sua caráter primitivo no desenvolvimento de
linguagem oral (DLO), mas se reinstancia como "caracterizador" da
personagem dentro do jogo de contar, provocando um jogo de papéis que se
segue a M15 (M15/C18) , negociando, não mais o proposto por Lier (1985),
mas perspectivas e papéis (vozes e falas) desde os quais se articula o narrado.
Este processo (relação jogo de contar/jogo de papéis), aliás, em nossos dados,
encontra o auge de sua produtividade no mesmo período (de 02;01;17 a
02;11,01).
Portanto, estaremos considerando, para efeitos de análise de dados, que
se trata, desde C1, de uma forma dialógica do jogo de contar, que tem sua
tecitura sócio-histórica realizada na recontextualização de jogos mais primitivos
do DLO, como relação interjogos privilegiada.

2. RELAÇÃO CONTÍNUA: CONTINUIDADE SINCRÉTICA OU


CONTINUIDADE DIALÉTICA?

conhecimento comum". As autoras advertem ainda que "...a relação entre esses dois
processos não é hierárquica, mas de simultaneidade. Um objeto ou um atributo de um
objeto pode estar sendo simetrizado enquanto outro é assimetrizado". (op. cit., p. 16).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Discutindo as diferenças existentes na interação social em episódios de


leitura de livros com crianças, Teale (1984: 113) afirma que, em geral, o
resultados dos estudos indicam que
"...fatores tais como o tipo de texto, o número de vezes que o livro já
foi lido (...), o número de crianças envolvidas na leitura e as
características de temperamento e o ambiente sociocultural dos
participantes, assim como a idade ou nível de desenvolvimento da
criança, afetam aquilo que acontece quando os pais lêem para seus
filhos."
Daí decorre, para o autor (cf. também Ninio, 1980 e Heath, 1983), que
"...as características sócio-interacionais e a linguagem dos eventos
de letramento estão diretamente ligadas às habilidades de
letramento emergentes e às concepções da criança aí envolvidas"
(id. ibid.)
Trata-se aqui, portanto, de se lançar um olhar mais cuidadoso sobre qual
a natureza desta "ligação direta" entre interação social e letramento emergente.
Como o próprio autor afirma,
"... a natureza de eventos de leitura de livro (book-reading) (assim
como de outras interações no processo de letramento) precisa se
transformar em nosso interesse central nas tentativas de
entendermos o desenvolvimento inicial do letramento." (Teale,
op.cit., p. 144).
A partir da discussão proposta em nosso item 1, podemos afirmar que os
processos interacionais identificados no desenvolvimento de linguagem oral
pelos pesquisadores sócio-interacionistas estão presentes nestes episódios de
leitura compartilhada, entendidos como episódios de emergência do
letramento. Tanto os processos e mecanismos interacionais intrajogo
(especularidade, complementaridade inter e intraturno, reciprocidade), quanto
alguns dos próprios jogos identificados, em seus formatos típicos (nomeação,
reconhecimento, "dramático", de papel, de contar). E, neste sentido, fica
transparente a afirmãção de de Lemos (1988) de que "é nas práticas orais que
a escrita ganha sentido para a criança".
No entanto, estabelecer o percurso sócio-histórico desta dotação de
sentido, implica, a nosso ver, a discussão da relação interjogos neste
desenvolvimento e não simplesmente sua descrição empírica.
As formas de jogo de contar e a distribuição dos modos de participação
(seja do adulto ou da criança), nestas interações sobre portador de texto do
período em foco, variam muito e não são unívocas.
Hora, o participante mais desenvolvido (em geral, quando o interlocutor
empírico é a mãe, a investigadora ou os irmãos mais velhos de sexo
masculino) instancia um jogo de contar onde quem "narra" é a criança, como
no exemplo (1); hora, quem assume o papel de "narrador" é o adulto, mas
negocia, intermitentemente, a participação da criança recorrendo a
nomeação/reconhecimento ou "jogo dramático", simetrizados (ou não) pela
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

criança, como no exemplo (2). Às vezes, a criança instancia um jogo de papéis


decontextualizado de práticas escolares, que é renegociado pelo adulto como
jogo de contar (cf. exemplo (3)).
Hora, o interlocutor empírico (a irmã alfabetizanda, por exemplo) "narra" a
partir da ilustração, monologicamente, sem ceder participação à criança a não
ser do lugar de "ouvinte", "observador" ou "espectador" de sua "leitura"; hora, o
interlocutor empírico (como, por exemplo, o pai e alguns professores, em nosso
corpus) lê a história a partir do texto, sem recurso à ilustração e colocando a
criança neste mesmo papel de "observador" ou "espectador" da leitura (cf.
exemplo (4)). Este dois últimos tipos de prática provocavam, até 02;11,
sistematicamente, assimetrias ruptoras.
Como se vê, estas diferentes formas do jogo de contar, que atribuem ao
sujeito diferentes papéis e "modos de participação", não se encontram numa
distribuição contínua de caráter linear, mas se apresentam concomitantemente
no período, na dependência das práticas adotadas pelo interlocutor empírico
em questão. Um mesmo portador pode, no período, ser lido e relido por
diferentes interlocutores de formas bastante diversas, atribuindo ao sujeito
papéis também bastante diversos.
Não se trata, portanto, a nosso ver, do tipo de portador ou do texto em
questão, da quantidade de vezes que o texto foi relido, etc. (como sugerem as
pesquisas sobre letramento emergente), mas das práticas interacionais que
foram inscritas no objeto e das relações que a criança estabelece entre tais
práticas. Para efeitos de clareza do texto (e não porque estas práticas se dêem
seqüencialmente), discutiremos, em primeiro lugar, as práticas que atribuem ao
sujeito um lugar de participante e, em seguida, as que lhe atribuem lugar
discursivo de observador (cf. de Lemos, 1988).
A nível da descrição empírica, a conclusão de nosso item 1 indica, para
as práticas que atribuem ao sujeito um papel de participante, uma relação
interjogos forte entre o jogo de contar instaurado a partir da ilustração do
portador e os jogos de nomeação/reconhecimento, por um lado e
"dramático"/de papéis por outro.
Em todo o período em análise (02;01 a 03;05), o jogo de contar
freqüentemente se instaura a partir destes jogos mais primitivos no
desenvolvimento. Mais que isso, o modo privilegiado de participação da criança
nos jogos de contar é o destes jogos mais primitivos.
Uma explicação corrente, na literatura sócio-construtivista para o
desenvolvimento de linguagem oral (cf. de Lemos, 1986; 1989), para os
mecanismos responsáveis por esta relação interjogos, seria a de
"especularidade diferida" ou de "decontextualização/recontextualização" de
episódios interacionais anteriores no desenvolvimento.
Retornando a nosso exemplo (1), a possibilidade da criança de negociar
com seu par interacional mais desenvolvido a narrativa dA Galinha Ruiva no
jogo de contar, estaria em seu mecanismo de retirar de contexto(s) de origem
(decontextualizar) fragmentos de discurso (nomeação/reconhecimento/jogo
"dramático"), anteriormente negociados na história interacional do par, e de
(re)colocá-los num novo contexto (recontextualizar) de "leitura" de portador de
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

texto, à maneira da "colagem" sincrética (cf., a respeito, Perroni, passim e de


Lemos, 1992b).
De fato, neste nível de análise, não seria outra coisa que moveria a
criança no conjunto de seus turnos e seriam exemplos particularmente claros
deste processo os turnos C9/C14, para decontextualização/recontextualização
e C11, para "colagem" de recontextualizações.
Gostaríamos, entretanto, de opor, ou melhor, sotopor, a esta leitura
sincrética, uma leitura dialética. Tomando C11 como um exemplo sincrético
típico, gostaríamos de indagar sobre as relações dialéticas sotopostas a este
processo aparentemente sincrético de “colagem“.
Quando, ainda no item 1, indagamo-nos a repeito do objeto negociado
nessa seqüência interacional e optamos por concluir que se trata, desde C1, de
um único jogo de contar, iniciado e entremeado de jogos de nomeação,
reconhecimento e "dramáticos" que se deslocaram de função em relação a
suas propostas iniciais no desenvolvimento, definidas por Lier (1985),
pressupusemos que o objeto negociado por parte do par mais desenvolvido,
desde C1, era a "narração" da história dA Galinha Ruiva (que, parcialmente, se
realiza em C11), ou, se quisermos dizer de outro modo, mais vygotskiano, isto
é o que se encontrava no desenvolvimento potencial (DP). O recurso a jogos
mais primitivos no desenvolvimento real (DR), dever-se-ia a uma certa forma
de "sintonia" do adulto com as possibilidades da criança, que se constituiria no
motor do avanço, na zona de desenvolvimento potencial (ZDP), presente na
seqüência em questão.
Utilizar, aqui, estas noções vygotskianas significa fazer apelo a uma
dinâmica dialética (e não sincrética) de superação. Assim, para uma leitura
dialética do evento, teríamos, no polo da afirmação e da preservação dialética
(DR) da seqüência, aquele esquema interacional para o qual a criança está em
situação de reciprocidade (os jogos de nomeção/reconhecimento e
"dramáticos", tal qual instaurados, de forma quantitativamente relevante, no
percurso histórico anterior do desenvolvimento, inclusive, no que diz respeito a
seus formatos (formats, no sentido bruneriano)). Já no polo da negação
dialética (DP), encontrar-se-ía o objeto negociado no jogo de contar pelo par
interacional mais desenvolvido (a "narração" da ilustração em questão,
incluindo a consciência da existência e dos papéis de seus participantes, a
partir do "lugar" do "narrador"). O turno C11, em sua aparência sincrética, seria,
nesta análise, um dos momentos relevantes de superação dialética nesta
construção histórica (ZDP), mudança qualitativa intanciada devido à
intensificação de quantidade destas práticas, em seu polo negativo. Dito de
outro modo, é a partir da intensificação destas práticas que a criança pode
passar às "proto-narrativas" (Perroni, 1979).
O que é "negado", nesta prática intermediária, são os objetos negociados
anteriormente por meio destes jogos: o adulto não negocia mais a nomeação
de objetos do mundo e suas onomatopéias, mas a enumeração dos
participantes da ação e seus papéis. O que é "preservado" (temporariamente) é
o formato do jogo, que faz parte de DR e que permite à criança o lugar de
participante do papel de "narrador". O aparente sincretismo é um momento de
superação, de salto qualitativo em direção ao jogo de contar histórias, sintoma
de avanço no DP.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Neste sentido, concordamos mais com o tipo de relação proposta por


Scarpa (1987) que com aquele proposto por Lier (1983). Nos fatos do
desenvolvimento não haveria um processo de "transformações graduais", sem
"saltos qualitativos", mas, como aponta Scarpa (1987: 126-127), um processo
complexo, de "reorganizações e reestruturações de diversos subsistemas".
Acrescentaríamos que a dinâmica de tais reestruturações é dialética.
Um argumento empírico a favor de tal leitura de dados se encontra em
nosso exemplo (2) abaixo, prototípico do segundo tipo de prática, com a
criança no lugar de participante da interação, que comentamos acima: aquela
em que o adulto desempenha o papel de narrador, mas negocia também a
participação da criança. O exemplo é retirado de uma gravação aos 02;02,13
em que mãe e criança "lêem" Alice no País das Maravilhas:

(2) (...)

M1: Como é? Essa é a história da...? Alice. (virando as páginas, até chegar ao
início da história)
C1: Da Alice. "Tati, tati, tati".
M2: Quem é esse? (apontando a figura no livro)
C2: Tati.
M3: Esse é o coelho.
C3: Tati, quelho! Ô qué mais! (virando a página)
M4: A Alice caiu num buraco beeeem fundo, né? Daí, quem ela achô lá embaixo?
Quem foi? (aponta a figura) Quem é esse? Coelho...
C4: Ó coleu! Achô lá embaxo du home.
M5: (Vira a página e aponta para outra ilustração) AÍ, ó, tá caindo num buraco bem
fuuuundo. AÍ, o coelho falava assim:...
C5: "Tati, tati..." (vira a página)
M7: "Eta! Eu tô atrasado! Tô atrasado!". AÍ, ela achô uma portinha bem
piquinininha (apontando). E aí ela tinha que ficá bem piquinininha, quinem a
portinha, né?
(...)
M8: Ói a porta! Ela tá grande de novo atrás da porta. (apontando)
C6: É.
M9: E aí, que mais?... E aí ela ficô...
E aí, ela chorô muito, chorô muito; chorô muito, chorô muito, e fez um laaaago de
lágrimas (passando o dedo no contorno da lago da ilustração). AÍ ela viu o coelho
de novo. Que que fala o coelho? (virando as páginas, parando numa ilustração e
apontando)
C7: Ele robô áua.
M10: Ele robô a água?
C8: É.
M11: Ele derrubô a água?
C9: É.
M12: É?
C10: Ele caiu, home.
M13: É... Ele fala assim: "é tarde, tô atrasado", né? (vira a página)
C11: Ele caiu.
M14: Ó ela nadando na água com o ratinho... (apontando) Hum, aí ela ficô
nadando na água com o ratinho, né? (vira a página)
Olha, quanto bicho! AÍ eles se juntaram todos na beira do lago pra contá história.
Que bicho tem aqui? Cadé o ratinho?
C12: Ratinho num tá qui.
Nadô. Ele nadô, ratinho. (apontando o lago)
M15: Ele nadô, o ratinho?
C13: Ratinho nadô.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(...)
Como vemos neste exemplo, colhido cerca de um mês mais tarde, o
processo de superação que, futuramente, a nosso ver, vai levar das "proto-
narrativas" (dialógicas) às narrativas de tipo "estória" (monológicas) (Perroni,
passim) já se encontra mais avançado. A criança apresenta uma situação de
maior reciprocidade para o jogo de contar, sem uma simples simetrização dos
jogos mais primitivos propostos pelo parceiro na negociação de sua
participação no jogo de contar. Há vários indícios disto nesta amostra. As
nomeações/reconhecimentos/dramatizações negociadas aqui pelo adulto, ou
não são simetrizadas, ou, se o são, não o são por meio de procedimentos
simples de complementaridade.
A nomeação do portador negociada em M1 é simetrizada em C1 por meio
de uma complementaridade intraturno, onde a retomada desta nomeação é
imediatamente seguida da dramatização da fala de um dos participantes
principais da história (Coelho Branco), numa síntese, por recontextualização,
do nome da história com a fala de um de seus participantes principais. Como
se vê em C2, a fala típica deste participante passa a nomeá-lo. Está superada
a negociação "dramática" do exemplo (1) e a situação para o "jogo dramático"
dentro do jogo de contar - que retoma as vozes e falas dos personagens
centrais - é de reciprocidade, como indicam a complementaridade interturno em
C5 e a variação da fala do personagem em M7/M13.
Outras negociações de nomeação/reconhecimento, como as em M4/C6 e
M14/C14, são simetrizadas não por meio de uma simples complementaridade
interturno, mas intraturno, onde o que é acrescentado pela criança é a ação ou
a situação da ilustração em questão. A retomada especular deste acréscimo
em M15/C15 é também significativa.
Por outro lado, a negociação ("jogo dramático") não simetrizada presente
em M9/C13 é também indicativa da superação, por parte de H., destes jogos
mais primitivos no desenvolvimento em favor do jogo de contar.
Como ficará claro nos exemplos e comentários presentes no item 3. deste
trabalho, não julgamos que este processo dialético de superação opere apenas
nesta passagem do desenvolvimento, mas sim, que esta seja a dinâmica
própria de toda a relação interação oral/letramento emergente durante todo o
processo investigado.

3. NARRATIVA E ESCRITURA: DAS PERSPECTIVAS E DA CONSTITUIÇÃO


DO SUJEITO (LETRADO)

Uma terceira prática, daquelas que atribuem ao sujeito um lugar


participante na interação mencionadas anteriormente, foi bastante
reinstanciada, em geral pela criança, no período em foco. Trata-se da relação
interjogos entre o jogo de papéis e o jogo de contar (cf. Rojo, 1991a; 1991b;
Fernandes, 1995). Uma amostra desta prática encontra-se no exemplo (3)
abaixo, colhido aos 02;04,17, numa interação sobre portador de texto onde
mãe, criança e a investigadora estão "lendo" Chapeuzinho Vermelho:
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(3) (...)

I1: Conta uma história pra mim.


M1: Cê sabe contá uma história pra ela?
C1: (Olha pra mãe e pega todos os livros que juntou)
M2: Cê sabe. Cê sabe contá a história da Chapeuzinho, num sabe?
I2: Conta a história da Chapeuzinha pra mim? Cadê u livru da Chapeuzinha?
C2: Tá lá.
I3: Tá lá? Vamu pegá pra contá a história da Chapeuzinha pra mim?
(...)
M3: E cadê a Chapeuzinho?
C3: (Vira as páginas do livro)
M4: Hí! Sumiu o Chapeuzinho! Acho que ele ficou pra trás (voltando as páginas).
Eu achei o Lobo, serve?
I4: Olha aqui! (apontando no livro) Como é que é esta história?
C4: Ó Chapeuzinho Vermelho. Vamu cantá Chapeuzinho Vermelhu?
M5: Vamu!
C5: Canta, mãe!
M6: Vamu. Como é que é? "Pela estrada afora/ eu vou/ tão sozinha/ levar estes
doces para a vovozinha/ A estrada é longa/ o caminho é deserto/ e o Lobo Mau
passeia aqui por perto/ Mas à tardinha/ ao sol poente/ ooo Lobo Mau caiu e
quebrô os dente" (cantando).
C6: (Anda e passeia, imitando nos gestos Chapeuzinho. Sai do quarto, dá uma
volta pela casa e volta).
I5: Pronto!
M7: Que que cê foi fazê, Chapeuzinho? Cê foi levá docinho pra...?
C7: Vovó.
I6: E daí?
C8: (Volta e senta)
M8: Vem cá! E aí? Chegô lá, quem que cê encontrô? Oo...
C9: Logu Mau na cama da vovó.
M9: Ah! E aí?
C10: Á, á, á, á... Logu Mau tá di sapéu mai, na cama. Olha! Logu Mau vai pegá u
Sapeuzinhu!
M10: Na camaaa? Nooossa! Que medo! E aí, que que u Chapeuzinhu fala pra eli?
"Pra que estas orelhas tão... Graaandes!"
C11: Grandes! (com gestos)
C12: Pa ti selá!
M11: "E pra que estes olhos tão grandes?"
C13: Pa ti selá!
M12: "E pra que este nariz tão grande?"
C14: Pá, pá, pá... olhá!
M13: Ah! (risos) "E pra que essa boca tão grande?"
C15: Pá ti comê!!! (mordendo a mãe)
M14: Ai, ai ai!!! (risos) E aí ele NHOCT! Comeu o Chapeuzinho! E daí?
C16: Eli pediu pá cama, pá fazê xixi cama da vovozinha.
M15: Ele pediu a cama da vovozinha pra fazê xixi na cama?
C17: Ó. Logu Mau fez xixi na cama.
M16: Como que é a música do Lobu Mau? Como faz o Lobo Mau? "Eu sou o Lobo
Mau/ Lobo Mau/ Lobo Mau/ e pego as criancinhas pra fazê mingau/ Eu hoje estou
contente/ vai haver festança/ pego a H. pra enchê a minha pança"!
I7: E aí, o caçador? Ele chega?
M17: Cadê o caçador?
C18: Caçadô? (voltando ao livro)
I8: É.
C19: A cama, saiu cama da Logu Mau.
I9: O caçador saiu da cama do Lobo Mau?
C20: É.
I10: E daí?
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

M18: Comeu a Chapeuzinha!


C21: Olha a casinha! A Logu Mau tá duminu!
M19: E quem é essi? (apontando)
C22: É, é, é... uma coisa...
M20: É o caçador.
C23: É caçadô.
M21: Que que ele vai fazê com u Lobo Mau?
C24: A Logu Mau...
M22: PUM! PUM! Vai matá o Lobo Mau!
C25: PUM! PUM!
M23: Vai matá o Lobo Mau... Abrí a barriga... Ó lá: PUM! PUM! (apontando a
figura) Abrí a barriga dele...E quem que sai da barriga do Lobo Mau? A vovozinha
e a?... Chapeuzinho.
C26: É vovozinha.
M24: É vovozinha aqui! (apontando)
C27: É vovozinha também. Ele abre a barriguinha?
M25: É. Ó a barriguinha aberta. (apontando) Como é que a Chapeuzinha fala pro
Lobo Mau?
C28: Eli abi... Olha aqui... Lobu Mau faz sim...
M26 e I11: Morreeu!
I12: Eli tá com a língua pra fora!
C29: A língua... Essi é a bala du Logu Mau? (apontando a figura)
M27: Nãaao! É a língua. Como é que a Chapeuzinha fala pro Lobo Mau?
C30: Vamu vê ota tólia? Ota. Cabô! (Indo para a estante de livros).
(...)

O que se pode notar, neste terceiro exemplo, é que a negociação inicial


proposta na amostra (I1/C4) é a de um jogo de contar, que continua
entremeado, como nas amostras anteriores, de jogos de reconhecimento
(I2/C2, M17/C18, C29/M27) e de nomeação (M19/C23, C26/M24), mas de
modo bem menos intenso e bastante diverso. Já não são mais estes jogos que
propiciam a participação da criança no jogo de contar. Ao contrário, aqui, numa
situação de maior reciprocidade para o jogo de contar, é o jogo de papéis que
aparece com este caráter.
Podemos afirmar que esta situação de reciprocidade é bastante nítida até
o turno I7, onde começa-se a tematizar a resolução da história. De I1 a I7, a
intensidade de processos de complementaridade interturnos e, mesmo,
algumas assimetrizações propostas pela criança depõem a favor dessa
situação de reciprocidade. Entretanto, quando emerge a figura do "caçador" e a
seqüência posterior da história (morte do Lobo/salvamento de Chapeuzinho e
Vovó), a partir de I7, aumentam os processos de especularidade imediata
(C18, C23, C25, C26) ou diferida (C27, C28), que culminam numa assimetria
ruptora (C30), indicando uma situação de não-reciprocidade. Neste segmento
(C18/C30), intensificam-se também os jogos de nomeação/reconhecimento.
A interface jogo de papel/jogo de contar talvez nos dê a chave da razão
pela qual H. não pode aceitar o aparecimento do caçador e a morte do Lobo,
preferindo achar que o Lobo come todo mundo e depois vai tranqüilamente
dormir e chupar bala, além, é claro, de fazer xixi na cama da Vovozinha.
Se voltarmos ao exemplo (1) (M14/C18), veremos que uma das formas
primitivas de emergência do jogo de papéis nessas interações é a negociação
do dito "jogo dramático". Parece haver também uma forte relação interjogos
entre esses "jogos dramáticos" ("Como é que faz X?"), mais primitivos no DLO,
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

e os jogos de papéis emergentes no ingresso da criança no mundo das


histórias (“story world“) (Britton, 1983).
A passagem dialética que se dá entre "Como é que X faz?" e "Como é
que X fala/canta?", neste momento do desenvolvimento, merece análise mais
acurada. Se em (1), por um lado, a criança simetriza o "jogo dramático",
recorrendo a recontextualizações de dramatizações ocorridas no "mundo real";
em (2), por outro, ela o simetriza, recorrendo a recontextualizações da "fala
típica" do personagem (outras vezes a refrões e/ou canções típicas do caráter
ficcional principal - protagonista/antagonista - da história) - neste caso, "Tati,
tati, tati!". Já em (3), é a própria criança que negocia esta simetrização ("Canta,
mãe!"), sem nenhuma passagem direta pelo dito "jogo dramático".
Embora muitas interpretações desta relação interjogos possam ser
propostas, preferimos assumir, aqui, uma segundo a qual não há diferença
entre "jogo dramático" e de papéis (daqui por diante, jogo de papéis), desde o
início do DLO, pois, sempre, este jogo ("Como faz/fala/canta X?") é definido
pela sua propriedade de negociar com a criança um deslocamento de
perspectiva/papel, a partir do qual o objeto negociado ganha sentido para a
criança. Como vemos, a relação mundo atual/mundo possível desempenha
aqui uma polaridade dialética negativa relevante.
O fato é que, em (3), por uma recontextualização de matriz interacional de
origem (pré-)escolar, H. encontra-se em situação de reciprocidade (C4/C5)
para negociar um jogo de papéis que entremeia seu "narrar", através de
cantigas e refrões (vozes repetidas na história) que lhe atribuem um papel
interno à esta.
Como atribuimos a importância desta relação interjogos (papéis/contar)
no DLO, sobretudo no desenvolvimento do discurso narrativo (DDN) como
lugar de passagem oralidade/escrita, ao fato de que é nela que o sujeito tem
condições de experienciar perspectivas e lugares discursivos e o deslocamento
destas perspectivas e lugares, que contribui para a monologização do discurso,
deter-nos-emos mais detalhadamente na análise dos segmentos C4/M16 e
M25/C30, como dois segmentos muito diversos da amostra (3).
No primeiro segmento (C4/M16) deste jogo de contar entremeado de jogo
de papéis, temos uma situação de reciprocidade para este deslizamento de
perspectivas, vale notar, quando as perspectivas negociadas são as de
Chapeuzinho, as do Lobo e as do narrador. Depõem a favor desta
interpretação, não só a assimetrização em C4/C5, como também, de novo, a
presença quase exclusiva de procedimentos de complementaridade na
seqüência.
No entanto, a constatação desta reciprocidade para o jogo de papéis
pouco nos diz a respeito da especificidade deste deslizamento de perspectivas.
Cabe notar, em primeiro lugar, que este jogo entremeado no contar
parece ser privilegiadamente instaurado por cantigas ou vozes/refrões
recursivos na história, que têm por propriedade central o fato de colocarem em
cena, de modo padrão ("formatado"), os caracteres em questão e de serem
fragmentos discursivos destes personagens no sentido benvenisteano do termo
(Benveniste, 1956; 1958; 1959), i.e., de instaurarem um discurso direto entre os
personagens, onde ambos se configuram numa relação eu-tu (M6, M10/M14,
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

M16). Estes segmentos têm, talvez por isso, a propriedade de instaurar um


jogo de papéis onde a assunção de papéis (C6, C12/C15) e de contra-papéis
(M7/M8, M10/M14) é imediata.
A análise mais interessante desse segmento não se resume na mera
instanciação recíproca de um jogo de papéis. A cada segmento onde se os
negociou26 (M6/M8 e M10/M14), segue-se um segmento onde o que o adulto
negocia, com maior (I) ou menor (M) convicção, é que a criança reassuma, no
jogo de contar, o papel de "narrador objetivo" e extraposto às perspectivas até
então experienciadas (I6, M9, M14/C17). Duas marcas discursivas são
constantes nestes segmentos: o deslocamento à terceira pessoa e ao discurso
indireto (no sentido benvenisteano de "história") (C10/M10, M14/M16) e as
expressões "e daí?/e aí?" (I6, M9, M14, I7) (cf. também a respeito Rojo, 1996).
Contrastantemente, no segundo segmento em pauta (I7/C30), dada a
situação de não reciprocidade, seja para o jogo de contar este segmento da
história, seja para o reconhecimento/nomeação dos caracteres dele
participantes, as tentativas de deslizamento da perspectiva do narrador para
outras perspectivas (M25 e M27) ou não são simetrizadas (C28) ou são
seguidas de assimetria ruptora (C30).
Se esquematizarmos esta análise no mesmo sentido de Fontana (1989) 27,
teremos, nesta amostra (C4/M16), um deslocamento de lugares/perspectivas
interno à história correspondente ao esquema abaixo:

Como se vê em (3), a negociação do deslizamento de perspectivas do


narrar implica a articulação da narrativa a partir de diferentes lugares para
I/M/C: do lugar de Chapeuzinho ou do Lobo Mau que vivem, na ação ou na
linguagem, a trama da história; do lugar de Chapeuzinho que narra, de sua
perspectiva, o que ocorre ao Lobo Mau; do lugar do narrador que, extraposto a

26
Note-se que, em C4/C5, é a própria criança que negocia o papel que o adulto passa a ter, a
partir de M6, de propor a negociação de papéis e contra-papéis no jogo.
27
Assumindo todas as implicações da releitura Benveniste/Bakhtin que a autora articula no
artigo.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

tais perspectivas, visualiza, panoramicamente, a ação dos personagens,


podendo ou não (C16/17) projetar-se num deles.
Como nota de Lemos (1992a: 9), o jogo de papéis
"... envolve, no mínimo, dois níveis de estrutura discursiva. O
primeiro é (...) o nível pelo qual se anuncia a tomada de um papel. E
é dentro de uma tal estrutura discursiva que uma segunda está
encaixada, i.e., aquela em que o locutor que diz 'eu' toma uma
posição de terceira pessoa a partir da qual ele pode representar o
caráter que então ocupará a posição de 'eu'.(...) Um processo de
descentração semelhante ocorre no discurso narrativo. A tomada de
posição de narrador requer a habilidade do locutor em deixar a
posição-'eu' que assume ao dizer 'Vou contar uma estória para
você', em favor do papel de observador, que é a posição discursiva
de terceira pessoa. É ainda a partir desta posição que o narrador
domina ambas as perspectivas (de protagonista e de antagonista),
assinalando-lhes o status de locutores em 1  pessoa (aqueles que
dizem 'eu'), capaz de fundar uma posição-'você' complementar e
uma outra posição em terceira pessoa, interna à narrativa."
Este efeito de "caixa chinesa", já apontado por Fontana (1989) ao referir-
se a diferentes planos enunciativos e à multifocalização/ficcionalização na
narrativa, deve, em nosso exemplo (3), ser expandido também numa outra
direção: externa. Ao "eu-você" que conjuntamente contam a história se interpõe
um "eu-você" interno à história (Chapeuzinho/Lobo), que obriga também o
deslocamento da perspectiva "ele". No 1° plano (externo), a referência dêitica
de "ele" é a própria história articulada do lugar do narrador e concretizada na
interação "eu/você" pelo portador e suas ilustrações. No plano interno, a
perspectiva "ele" depende do lugar negociado para o foco de perspectiva
(narrador/Chapeuzinho/Lobo) que pode referenciar a terceira pessoa a
qualquer um dos dois caracteres ou a cada um deles exclusivamente, como
também a quaisquer outros objetos narrativos presentes no mundo ficcional.
Somente das duas últimas perspectivas, o portador e suas ilustrações deixam
de ter importância, sendo substituidos pelo investimento no papel, onde o
gestual, o accional e suprasegmental passam a ter maior importância.
Portanto, este tipo de relação interjogos (jogo de contar/jogo de papel),
identificada no decorrer do 1° ano da amostra, é crucial na constutuição da
narrativa letrada e monologizada e tem por propriedade permitir a
experienciação de diferentes perspectivas do lugar de observador e
participante (sem separação destes lugares: participante da
interação/observador da história; participante da história na
interação/observador do outro (caráter/par)), constitutiva das possibilidades
narrativas.
Temos aí, logo, algo a acrescentar a de Lemos (1988: 10-11), quando
afirma que,
"... na maioria das vezes, o acesso da criança a textos - ou a objetos
portadores de textos - e a situações em que textos são produzidos,
é identificado com a posição de espectador. E ainda quando se diz
que a criança participa destas atividades ou manipula estes objetos,
não fica claro como práticas discursivas orais, e, portanto,
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

interpretáveis pela criança, permeiam estas atividades e oferecem a


ela lugares e modos de participação. (...) Tanto a contribuição de
Lúcia Browne Rego a este volume28, quanto o trabalho de Mayrink-
Sabinson (1987) demostram que os papéis que a criança assume na
prática que consiste no ato de ler para alguém ouvir não são os de
espectador. São, antes, os que se abrem como lugares a serem
ocupados por um destinatário a quem se pode dar ou negar o
direito de intervir na interação de que também é protagonista."
Diríamos que, quando se lhe atribui tal direito de intervenção, abrem-se-
lhe (e, com ela, se negociam) modos e lugares de participação na interação
que instituem consigo, dependendo da perspectiva negociada, a necessidade
de "encarnar" o caráter narrativo, de observá-lo do lugar de outro(s)
personagem(ns) (cf. M8/C10, no exemplo (3)), de observá-lo do lugar de
espectador reservado ao narrador/autor (Bakhtin, 1979a), perspectivas estas,
todas, constitutivas tanto da narrativa como do letramento.
Acrescentaríamos também que o "mundo" narrado (atual ou diferentes
mundos possíveis) tem forte determinação sobre estas possibilidades de
perspectivas (Rojo, 1991b) e que, assim como o lugar de participante interno
ao plano narrativo - instaurado pelos jogos de papel, refrões e cantigas nas
interações destes eventos de letramento - tem grande importância na
constituição do recorte dos caráteres e das possibilidades dialógico-narrativas
(e do letramento) da criança; assim também, o lugar de observador ou
espectador do plano interno da narrativa - instaurado pelos jogos de nomear,
de reconhecimento e de contar nestes eventos interativos de letramento -
detêm papel constitutivo importante em sua monologização, aproximando a
criança da narrativa letrada existente em nossa cultura, no subgrupo sócio-
cultural do sujeito investigado.
Entretanto, esta passagem da dialogia à monologia (ou, como quer
Perroni-Simões (1979), das proto-narrativas às narrativas propriamente ditas)
não se explica se não explorarmos o segundo tipo de práticas que citamos
anteriormente: aquelas práticas monológicas por parte do par, que atribuem à
criança, na interação, o papel exclusivo de observador/ouvinte/espectador do
outro-leitor.
Como dissemos no início deste texto, em nossa amostra, estas práticas
eram essencialmente instauradas em interações com a irmã alfabetizanda, o
pai e os professores, seja em atos de leitura da ilustração ou do texto. Nos
primeiros 10 meses da amostra, estas práticas provocavam sistematicamente
assimetrias ruptoras, como a que se vê na amostra em (4), colhida aos 02;04 ,
onde pai e criança "lêem" O Homem no Sótão, de Ricardo Azevedo:

(4) (...)

P1: (Pega o livro e folheia)


Olha o lobo, ói aí.
Ó uma barata!
Ó como ele escreve (referindo-se à ilustração do personagem que é um escritor)
C1: (Olha a ilustração)

28
Kato (ed) (1988).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

P2: "A Aventura de Três Patinhos na Floresta. Era verão e o tempo estava lindo."
(lendo e apontando, seguindo o texto escrito como dedo)
"As flores alegravam os campos. Nas águas de uma lagoa, três patinhos
amarelos brincavam e mergulhavam. Não sabiam os pobrezinhos que ali por perto
morava uma raposa desalmada. Queria duas coisas: chupar ovo de galinha e
comer patinho amarelo!"
Essa era e história que ele estava escrevendo. (apontando as letras impressas)
C2: (Fica atenta e faz sinal de assentimento com a cabeça)
Éééé...
P3: "Deu um sorriso: 'a história estava ficando ótima!'"
C3: (Olha para o copo perto do pai e aponta)
Quélo qui.
P4: Não. Aquele não. Aquele é ruim.
C4: Quélo bebê.
P5: Não. Aquele é do papai bebê. (Aponta para o texto) Qué que leia?
C5: (Faz gesto negativo com a cabeça)
Não. Cabô! Agora cabô.
(...)

Embora provocassem sistematicamente assimetrias ruptoras, nem por


isso tais práticas desapareceram ou foram eliminadas por estes pares
interacionais durante os primeiros 10 meses de coleta.
Subitamente, aos 02;11,01, numa coleta onde, a criança se coloca
constantemente no papel de "professora", H declara não saber contar ou "ler".
Nega-se a participar dos jogos anteriores, até mesmo do jogo de contar e dos
jogos de papéis, porque "só você qui sabi/puque você é bem gandi... Dessi
tamanhu...", negativa esta que perdura por cerca 6 meses na amostra (até
03;05), preferindo a criança, durante este período, colocar-se no papel de
"destinatário" ou espectador dos atos de leitura (de texto ou da ilustração) dos
pares interacionais, de preferência leituras repetidas exatamente.
De onde vem esta recusa em participar de jogos que apreciou durante
todo um ano? Poderíamos atribuir esta mudança à intensificação das práticas
escolares de leituras de livros infantis (“book-reading“) que, em geral, não
incorporam interações dialógicas ou jogos deste tipo e que atribuem à criança
um papel cujo traço é o "não saber" e, disto concluir, que tais práticas
(escolares ou familiares) "impostas" são "autoritárias" e impedem a voz das
crianças. No entanto, preferimos dar a este momento de nossa amostra outra
interpretação.
Já Vygotsky (1930a: 32) chamava a atenção para o fato de que
"...inicialmente, esse processo de solução de problema em conjunto
com outra pessoa [DP] não é diferenciado pela criança no que se
refere aos papéis desempenhados por ela e por quem a ajuda."
Neste nosso exemplo específico, é como se a situação de assimetria para
os atos de ler e escrever e, logo, a assimetria dos papéis, fosse ignorada pela
criança até 02;11, o que lhe permite entrar no "jogo de faz de conta que lê e
escreve" (de Lemos, 1988).
Esta situação assimétrica é percebida, a um certo momento, como
resultado de todo um histórico interacional e o "saber que não sabe" ler
impede-a de participar em jogos de contar a partir de objetos-portadores de
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

texto, que passam a ser, para ela, índices de sua diferença em relação ao par
mais desenvolvido.
Este momento é precedido, em nossa amostra, por uma intensificação
quantitativa destas práticas monológicas por parte da pré-escola 29, devido à
mudança de escola que se verificou aos 02;08,29. Teríamos aqui, novamente,
um momento de superação dialética das práticas anteriores, este sim, agora,
aproximando definitivamente a criança das práticas narrativas letradas de sua
subcultura, responsáveis, no dizer de Lemos (1988) pela concepção do "ato de
ler como um 'outro modo de falar'", diríamos, monologizado (gênero
secundário, no sentido de Bakhtin, 1979b). No polo da afirmação e da
preservação dialética (DR) encontram-se todas as práticas/jogos anteriores no
desenvolvimento, que, como veremos em (5), não desaparecem (são
preservadas/modificadas) em suas "leituras" posteriores (a partir de 03;05). No
polo da negação dialética (DP), encontra-se, neste seu "silêncio" de 6 meses, a
prática monológica de leitura (do texto/ilustração), que já traz em si, embutida,
uma "fala letrada" (bookish-talk) muito mais aproximada das práticas de
produção/reprodução de textos do letramento mais avançado.
Este momento de negativa e de silêncio, de superação, já não se
caracteriza mais, empiricamente, por relações sincréticas de "colagem" de
recontextualizações: à polifonia sincreticamente atualizada, segue-se um
momento de "afonia", de perda de voz do sujeito, que, a nosso ver,
corresponde a um momento tenso de internalização dos(s) discurso(s)
(letrado(s)) do outro, responsável por um grande salto qualitativo no letramento
emergente e, inclusive, pela intensificação em nossa amostra (cf., a respeito,
Rojo, 1990), da busca da criança/adulto pelo "o quê e como está escrito", pela
materialidade da escrita (no dizer de Ferreiro, a "base alfabética" e a
"diferenciação icônico/não-icônico") - aquele objeto, afinal, responsável, por
"um outro modo de falar" do par mais desenvolvido.
Numa interpretação lacanianamente autorizada por Paín (1996),
poderíamos arriscar que talvez seja esta falta instalada na ignorância "sabida"
que possa vir a dar lugar ao desejo de saber e seja responsável pelo salto
qualitativo, identificado também nas pesquisas de Luria (1929), entre a escrita
imitativa ou de brinquedo e os momentos seguintes de construção de um saber
mais aproximado da tradição cultural de sua espécie.
O processo terminado de superação deste "silêncio" grávido de
letramento, aparece, em nossa amostra, a partir de 03;05, onde H. passa a
discriminar "histórias que sei“ e “histórias que vou contar do meu jeito",
"histórias de boca/histórias de livro". A primeira "história de livro que sei"
aparece justamente aos 03;05, no exemplo (5) abaixo, numa coleta onde I, M e
C interagem, "lendo", hora uma(s) hora outra(s), vários portadores. A leitura de
C é do portador Gato que Pulava em Sapato, intensamente lido e relido a
pedidos, durante o mês anterior, pelo pai, em episódios book-reading noturnos
e cotidianos, diarizados fora da situação de coleta.

29
Estas práticas escolares também foram acompanhadas no Projeto. Cf., a respeito,
Nogueira (1995).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(5) (...)

C1: (Sentada na cama junto com M e I, "lendo" um livro, que abriu na primeira
página, deixando a capa no final)
M1: Peraí. Vamo começá de novo que eu perdi o começo.
I1: É, também.
M2: Ah, começa de novo.
C2: O Mimi era muito queridinho...
(vira a página)
e daí/ ele tinha uma linda cestinha.
(vira a página)
E daí/ ele.../ e daí a dona perguntava:
"- Não suba no telhado!"
E daí, ele ficô muito zangado.
(vira a página)
"- Que dóga!"
(vira a página)
E daí, muito tite.
(vira a página)
"- Que vida!"
E daí, ele fu... e daí, ele pulô de cabeça e entra nesse buraco. (apontando a
ilustração)
(vira a página)
E daí/ ele mesmo, mesmo, mesmo/ escorregô.
"- Socorro! Socorro!" ele falô.
(vira a página)
E daí/ a dona falava:
"- Viu? Eu combinei que você ia nu telhadu!"
"- Será que ele morreu?/ Não morreu, só quebô a perninha!"
(vira a página)
E daí/ veio oo... o dono dos bicho.
"- Será que eli vai sará?"
"- Vaaai... Eu cuido dele." o dono falô.
(vira a página)
E daí, eli sempi, sempi, sempi, ficô médio. O dono cuidô bem. E daí/ ele mesmo,
mesmo, mesmo, falô que, que, que, todo dia, ele mesmo, ia no telhado. Todo dia!
(vira a página)
E daí/ ele... ele não era o verdadeiro gato.
I2: Não era o verdadeiro gato?
C3: Hum-hum. (confirmãndo)
(vira duas páginas juntas)
E as coisa dele que... que... que... táva no porta-mala/ não servia pa eli mais...
Até ele tá nas coisa deli! (apontando, na ilustração, um retrato de Mimi guardado,
com as outras coisas, no armário)
(vira a página)
AÍ.../ E aí, a dona aperrrrrrtava a mão de tanto ele corrê... (imitando a ilustração
no gesto, apertando as duas mãos)
E daí, ele falô:
"- Não se ocupe, dona!"
(vira a página)
E daí/ ele foi correndo pra os... para o telhado.
(vira a página)
E daí/ ele foi mais longe. Foi aqui, foi aqui, foi aqui, e foi aqui, foi aqui, foi aqui.
(apontando as várias posições do gato na ilustração).
(vira a página)
E daí/ ele mesmo...
Foi a dona perguntava p'as amiga:
"- Aquele é meu gato!"
(vira a página)
E daí/ ele pulava em sapato mesmo! E... acabô-se!
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(Fecha o livro)
I3: Nooossa! Que história, hein? (juntas)
M3: Nooossa! Que história bonita! ]
I4: Cê sabe contá direitiiinho!
M4: Qual ôtra que ce sabe contá?
(...)

O que vemos em (5) já não se constitui mais numa dialogia empírica,


onde a leitura da ilustração é negociada entre os pares interacionais a partir de
diferentes jogos que atribuem aos participantes da interação diferentes papéis
e perspectivas, mas um discurso "monologizado" (só interrompido em I2),
resultado da internalização do(s) discurso(s) do outro, que poderíamos
qualificar, como Bakhtin (1974), de palavras próprias-alheias. A ilustração
perde sua função de suporte de leitura para os pares interacionais e passa a
ser - como era, alguns meses atrás, para a irmã alfabetizanda - uma espécie
de "senha" deste discurso interior, que recontextualiza episódios interacionais
de leitura propriamente dita e de narração das ilustrações.
Note-se que tal monologização se opera a partir da assunção da criança
do papel do outro como aquele que "sabe ler" monologicamente, a partir de
uma perspectiva extraposta à história. Os enunciados do par mais
desenvolvido que, antes, em (3), apareciam como negociação do
deslocamento de perspectiva para aquela do "narrador" extraposto ao mundo
narrado ("e daí?", "e aí?"), são aqui recontextualizados pela criança, sendo
responsáveis pela articulação do caráter monológico da narrativa e viabilizando
a manutenção da perspectiva extraposta30.
Dito de outro modo, nesta superação dialética da dialogia pela monologia
(gênero secundário), elementos originários da forma dialógica jogo de
contar/jogo de papel, responsáveis pelo deslocamento à perspectiva extraposta
do narrador, como o enunciado "e daí?/e aí?", são preservados na nova forma
monológica, mas adquirindo outra função que se sobrepõe à anterior: a de
responsável pela continuidade monologizada da narrativa.
A intensificação das leituras de ilustrações a partir de fala letrada
("histórias de boca") e do texto escrito ("histórias de livro"), por parte dos pares
mais desenvolvidos, exigida, aliás, pela própria criança durante o período em
foco, permite recontextualizações de enunciados do adulto que também
determinam a possibilidade de manutenção de uma tal perspectiva extraposta
e de uma tal monologia. Referimo-nos aqui aos verbos "dicendi", marcadores
da passagem do discurso indireto do narrador para o discurso direto dos
personagens, que aparecem em (5), e que são próprios da fala letrada (em C2:
"a dona perguntava: '- Não suba no telhado!'"; "'- Socorro! Socorro!' ele falô"; "a
dona falava: '- Viu? Eu combinei que você ia no telhado!'"; "'- Vaaai... Eu cuido
dele.' o dono falô"; em C3: "ele falô: '- Não se ocupe, dona!'"; "a dona
perguntava p'as amiga: '- Aquele é meu gato!'").
Aparece mesmo, em C2, uma recontextualização de fragmento de
discurso indireto onde a criança não se desloca da perspectiva do narrador

30
Note-se que a criança equaciona este articulador narrativo ("e daí") ao ato de virar a página
e a uma cadência suprasegmental, responsável "pelo ato de ler como um outro modo de
falar". Para maiores detalhes desta análise, ver Rojo (1996).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

para ceder voz ao personagem: "ele mesmo, mesmo, mesmo, falô que, que,
que, todo dia, ele mesmo, ia no telhado. Todo dia!".
Outras recontextualizações da fala letrada (bookish-talk) do par mais
desenvolvido, tais como "ele tinha uma linda cestinha" e "ele não era o
verdadeiro gato"31, em C2, e "ele foi correndo pra os... para o telhado"32, em C3,
fazem com que este salto qualitativo implique um avanço considerável do
letramento de H. e a aproxime mais fortemente das práticas e estruturas de
escrita do letramento avançado de sua subcultura letrada.
Na falta de documentação das interações referidas acima (só diarizadas,
mas não registradas em video), se rediagramassemos (5) de tal forma que o
leitor pudesse comparar o texto escrito original do portador, suas ilustrações e
o discurso interno recontextualizado por H. no exemplo, poderíamos ver que,
embora a referência básica da criança continue sendo a ilustração - agora não
mais como algo a ser "narrado", mas como "senha" do discurso do outro
internalizado -, este discurso do outro, ou mesmo, a criança em sua
recontextualização, recupera, em mais da metade das páginas, algumas
estruturas textuais literais, "passaportes" para a fala letrada.
Poderíamos também ver que o discurso direto do personagem ainda
detêm um privilégio na internalização. Podemos, a se verificar, na falta de
documentação, atribuir tal privilégio à voz do adulto internalizada (e a sua
seleção de segmentos textuais) ou a um mecanismo da criança que
privilegiaria, na internalização, tais segmentos.
Tanto é visível que as práticas anteriores (sobre a ilustração) não foram,
nesta monologização, completamente negadas (mas sim, parcialmente
preservadas), que algumas atuações dêiticas da criança, sobre a ilustração,
são notáveis em C2 ("e entra nesse buraco") e C3 ("Foi aqui, foi aqui, foi aqui,
e foi aqui, foi aqui, foi aqui. (apontando as várias posições do gato na
ilustração)"), preservando práticas/jogos anteriores no DLO.
Assim, o que podemos concluir da análise desta amostra é, por um lado,
que se mantêm, na análise, a interpretação dialético-materialista do processo
e, por outro que, nesta interpretação, necessitam revisão as noções de
"colagem/combinação livre" e "arcabouço" (novamente sincréticas), propostas
anteriormente para a análise destes mecanismos de monologização (cf.
Perroni, passim e de Lemos, 1992b).
Conforme de Lemos (1992b), prefaciando a publicação em livro do
trabalho de doutoramento de Perroni (1983):
"... outra [dessas] forma[s de narrar] é aquela em que domina um
procedimento de colagem, ou em que fragmentos de várias estórias
contadas pelo adulto se sucedem no interior de arcabouços
concretos (em oposição aqui à noção de macro-estruturas
abstratas). Tem-se aí, portanto, um movimento na direção da
significação que não se completa, em que o fragmento que sucede a
outro fragmento não o determina. É como se nessa fala apropriada
só ressoasse ainda a voz do outro e não se tivesse ainda aberto
31
Cabe notar que, neste segundo caso, a especularidade em I2 é significativa.
32
Note-se que a criança, de fato, articula o segmento "para o telhado" em "fala letrada", que
soa como [paraoteadu].
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

para a criança um lugar na linguagem onde essa fala pudesse ser


interpretada."
Como esperamos ter exposto anteriormente, o recurso a interpretações
sincréticas ("colagens", "combinações livres", "relações de 'tudo ao mesmo
tempo'" (sic, Perroni, 1986: 26), etc.) detêm-se na empiria do fenômeno - que,
aliás, como vimos, pode ser "sintomatizado" pelo sincretismo ou pelo "silêncio"
-, sem a interpretação de processo esperada de abordagens sócio-históricas.
Assim fazendo, perde-se de vista que tais fragmentos recontextualizados não
se dão aleatoriamente, como numa interpretação sincrética - onde "...o
fragmento que sucede a outro fragmento não o determina" -, mas, ao contrário,
dispõem-se numa ordem socialmente reconhecível: aquela da, se se quiser,
cristalização das práticas em discurso (Bakhtin, 1929); se se quiser,
internalização do discurso do par mais desenvolvido como prática (universal)
da subcultura em questão (Vygotsky, 1930b).
Um argumento empírico a favor de que há uma totalidade nas
instanciações da criança neste momento, ocorre justamente em (5), onde a
criança não recontextualiza "... fragmentos de várias estórias contadas pelo
adulto [que] se sucedem no interior de arcabouços concretos", mas
recontextualiza um discurso interior constituido nas diversas práticas de
(re)contagens desta particular história. Não se nega, aqui, que fragmentos do
tipo "e daí" foram reinstanciados em outras ocorrências interacionais não
referentes a esta história e, que, portanto, foram, muitissimo mais recorrentes
que a história em questão. Mas, a instanciação do discurso monologizado em
(5) pela criança decontextualiza-se basicamente destas práticas 33.
Por outro lado, em que sentido é que uma criança pode recontextualizar
fragmentos a partir de "...arcabouços concretos (em oposição aqui à noção de
macro-estruturas abstratas)"? De onde viriam tais "arcabouços concretos"? O
"arcabouço" no discurso em (5) seria a articulação "e dai/... e daí/... e daí..."?
Ora, como vimos, esta articulação tem raízes históricas bem mais arcaicas (no
jogo de contar/papel) que os textos monologizados com a criança. De que
maneira a criança poderia "adquirir" um "arcabouço" vazio a ser "preenchido"
por fragmentos colados sincreticamente? Pressupõe-se que o par mais
desenvolvido instanciará discursos do tipo: "Era uma vez.....E aí, um dia,....... E
daí... e daí... e daí... Foram felizes para sempre"?
Preferimos, aqui, uma interpretação segundo a qual trata-se de
sucessivas internalizações do discurso do outro (ou, segundo Bakhtin, das
palavras-alheias) que levarão, no curso histórico do desenvolvimento, a
cristalizações de esquemas discursivos - próprios desta subcultura letrada
(universais concretos) -, que poderiam, até - porque não? - ser interpretados
posteriormente à escolarização avançada, como "'macro-estruturas'
(superestruturas?) 'abstratas'".
À metáfora do mosaico sincrético, preferimos a do daguerreótipo, onde
sucessivas cristalizações e superações se sobrepõem numa imagem gestáltica
unificada pelo sentido da história.
Sem dúvida, só há, neste processo "...a voz do outro", mas muitos
lugares/papéis/perspectivas - como esperamos ter demonstrado neste artigo -
33
Para uma análise mais em detalhe sobre a presença e o valor de movimentos sincréticos
na construção da monologização, ver Rojo (1996).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

foram "...aberto[s] para a criança" nesta história: "...na linguagem“ e nas formas
do letramento de sua subcultura.

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

AÇÃO E MUDANÇA NA SALA DE AULA: UMA PESQUISA SOBRE


LETRAMENTO E INTERAÇÃO* *

Angela B. Kleiman
IEL/UNICAMP

Este trabalho tem por objetivo dar a conhecer dois projetos de pesquisa
cujo objetivo é investigar o fenômeno de letramento, mediante a análise da
interação entre sujeitos letrados e não letrados em contexto escolar 34.
Interessa-nos investigar como se dá o processo de tranformação social através
da linguagem, transformação esta que seria decorrência da introdução de
analfabetos adultos na cultura letrada.

A INTERAÇÃO E A LINGÜÍSTICA APLICADA

Como, aqui, o olhar para esse objeto de estudo é o do lingüista aplicado,


as metáforas que começam a surgir nessa área de atuação em relação ao
objeto de pesquisa, tais como „interação e aprendizagem“, „interação na
aprendizagem“, „construção de conhecimento na interação“, são, ao mesmo
tempo que renovadoras e revigorantes, preocupantes.

Preocupantes, porque a nossa área de investigação, no que se refere ao


ensino de línguas, tem se caracterizado por uma dependência estreita demais
das contribuições teóricas de outras áreas afins, particularmente da Lingüística.
Estaríamos, então, presenciando mais um caso de adoção irreflexiva de uma
conceitualização mais - ou menos - pertinente às nossas preocupações, tal
como o foram a adoção do estruturalismo bloomfieldiano e do behaviorismo
nos métodos audio-linguais da década de 50 e 60; das teorias gerativo-
transformacionais nos enfoques cognitivistas da década de 70; ou da
pragmática e da semântica da enunciação nos enfoques comunicativos e
funcionais da década de 80.

* *
A presente conferência foi apresentada no I Grupo de Trabalho sobre Letramento,
Alfabetização e Desenvolvimento de Escrita, realizado na PUC-SP em outubro de 1991.
Era, então, o relato de um estado da arte de dois projetos sobre interação em sala de aula,
letramento e escolarização que apenas se iniciavam nesta época. Põe-se aqui, assim, a
questão da fidelidade ao texto anterior, ou aos resultados de pesquisa, hoje bem mais
avançados. Optamos, no texto a seguir, por uma solução em que mantemos, do texto
original, os tópicos que selecionamos para a discussão e o debate, ao mesmo tempo em
que apontamos, quando possível, as respostas que foram surgindo no percurso das
pesquisas e as novas perguntas que o melhor conhecimento desses tópicos iniciais fez
surgir. Assim sendo, algumas das questões que ocupavam um lugar central na reflexão no
momento do Encontro já foram objeto de trabalhos hoje publicados. Nesses casos, para um
tratamento mais extenso desses assuntos, remetemos o leitor às fontes.
34
Trata-se de um Projeto Integrado financiado pelo CNPq, Letramento e Escolarização: Uma
pesquisa para uma prática convergente, e de um Projeto Temático financiado pela FAPESP,
Interação e Aprendizagem de Língua: Subsídios para a auto-formação do professor.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Acreditamos que, num sentido importante, a preocupação não procede,


pois, hoje, a Lingüística Aplicada constitui seus próprios objetos de pesquisa,
que ultrapassam o âmbito restrito da pesquisa sobre aplicações da Lingüística
aos métodos de ensino. Tal é o caso do estudo da interação na aprendizagem,
cujo foco é a linguagem, e que, no processo de desvendamento desse objeto,
pode trazer contribuições específicas para as áreas que investigam a inscrição
do social na linguagem, tanto do ponto de vista da relação entre os macro-
aspectos da interação e a linguagem, como a sociolingüística interacional
(Gumperz, 1982), a etnografia da escola (Erickson, 1984; 1986/1990), quanto
do ponto de vista do papel da interação na construção da linguagem, no
individual cognitivo, como a psicolingüística (Vygotsky, 1978; de Lemos, 1986;
Wertsch, 1988), ou ainda, quanto da constituição de sujeitos e objetos no
discurso, como na(s) análise(s) de discurso (Orlandi, 1987, 1988; Fairclough,
1992).

A INTERAÇÃO E O LETRAMENTO

Nas referidas pesquisas, a especificidade do estudo da interação na


escola emerge da conjunção com o que tem sido chamado por alguns de
tecnologia do letramento, num esforço para apreender a dimensão
instrumentadora e capacitadora (empowering) que a escrita tem na sociedade
moderna.

O letramento, hoje visto pela grande maioria dos estudiosos (como


Scribner & Cole, 1981; Street, 1984; Heath, 1982, 1983; Scollon & Scollon,
1980; Gee, 1990), como maneiras de estruturação discursiva que afetam, como
outras formas de falar sobre o mundo, a nossa própria relação com esse
mundo, constitui-se no segundo grande objeto de pesquisa no nosso estudo. A
escola, principal agência de um tipo de letramento, o letramento acadêmico
(chamado de autônomo por Street, op. cit.), serve de cenário privilegiado para
o exame dos aspectos ideológicos, socialmente determinados, do fenômeno,
especialmente, quando contrastamos aspectos da cultura letrada com aspectos
da cultura escolar.

O nosso estudo da interação entre professor e adultos não escolarizados


é orientado, portanto, pelas seguintes questões: a) quais as interações que
estimulam a aprendizagem em contextos de comunicação intercultural? b) o
que a linguagem nos revela sobre a natureza da tarefa cognitiva envolvida na
alfabetização de adultos? c) o que o discurso evidencia sobre as mudanças
nas participações e as relações sociais, em virtude das relações constituídas
no grupo, durante o processo de construção de identidades sociais decorrente
da introdução dos adultos na cultura letrada (ou escolar) majoritária?

A INTERAÇÃO E A APRENDIZAGEM

A última pergunta acima pode ser desdobrada em muitas outras, algumas


das quais têm sido focalizadas em trabalhos interpretativos na linha da
etnografia da escola: a estrutura de participação em sala de aula devida à
desigual distribuição de poder; os mecanismos utilizados para a ratificação dos
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

papéis institucionais; a dinâmica de mudança e de confirmação das estruturas


de participação social nos eventos de letramento em sala de aula são todos
aspectos cruciais para questões relativas à aprendizagem em contexto escolar
e são particularmente relevantes para aspectos característicos do processo
escolar brasileiro, especialmente para a questão do fracasso generalizado na
aquisição da escrita pelos grupos marginalizados.

Erickson (1987), por exemplo, mostra convincentemente que o que é


basicamente responsável pelo fracasso e a evasão escolar é o que ele
denomina de estilos de comunicação divergentes entre professor e aluno.
Por outro lado, quando se consegue o que o mesmo autor chama de
privatização da instrução, isto é, a criação de contextos de interação diádica
com cada um dos alunos, consegue-se a aprendizagem. As evidências
apontam, marcadamente, para a conclusão de serem as formas culturalmente
determinadas de organização da fala, em grande parte, responsáveis pelas
falhas ou sucessos na comunicação e, por extensão, na aprendizagem.

O contexto de aprendizagem focalizado em nosso projeto constitui,


acreditamos, um caso especial para o estudo dos processos de linguagem que
reproduzem ou mudam relações sociais, bem como a relação entre esses
processos e a aprendizagem. Nesse contexto de comunicação intercultural,
encontram-se problematizados os vários parâmetros determinantes do sucesso
ou do fracasso na aprendizagem. Isto porque, à desigualdade que é
constitutiva do discurso escolar, devemos acrescentar outra que advém da
própria condição do adulto analfabeto: o estigma que ser analfabeto acarreta
para o adulto, numa sociedade letrada, a diminuição que a condição de aluno
iniciante lhe traz, além da desconstrução que sofre enquanto sujeito, uma vez
que seu saber não encontra espaço na escola, que privilegia o saber livresco.

Em tais condições, a interação é difícil, resultando, muitas vezes, na


resistência e no conflito. A instrução, o repasse de novas informações visado
nesse contexto, precisa, para ser bem sucedido, de um professor que
encaminhe o processo baseando-se, por um lado, numa interpretação
adequada do discurso do aluno enquanto lugar de constituição (e de
transformação) de seus valores socio-culturais (interpretação esta que seria
uma manifestação do que é denominado de ôpedagogia culturalmente
sensívelö, por Erickson (1987)) e no conhecimento íntimo e profundo de seu
objeto de ensino, por outro.

A primeira exigência, que poderia reduzir os pontos de conflito,


certamente implica a presença de um professor extremamente sensível às
diferenças culturais, tanto para fazer a leitura e interpretação do discurso do
aluno, quanto para criar os suportes necessários para a compreensão m·tua,
condição necessária para a aprendizagem.

Em relação às mudanças socio-cognitivas, isto é, dos esquemas de


conhecimento, o professor precisaria de muita clareza sobre o que está
envolvido nessa mudança, qual o objeto de aprendizagem, e como ele pode
ser construído pelo aluno. Educadores neo-vygotskianos, como Cazden (1989),
propõem uma ação facilitadora da tarefa cognitiva que consistiria na criação de
suportes temporários (scaffoldings) para a aquisição de uma tarefa complexa.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Esse desmembramento e análise de uma tarefa tão complexa em tarefas,


ou partes, ou etapas mais simples, entretanto, requeria do professor uma
compreensão daquilo que lhe é essencial. Ele precisaria, nas palavras de
Cazden (op.cit.), desenvolver procedimentos que funcionassem como uma
lente fotográfica: o aluno pode, em determinado momento, estar olhando
apenas para um detalhe minúsculo da tarefa, mas também pode, em qualquer
instante, voltar à visão panorâmica que a percepção da tarefa em sua
globalidade implicaria, graças ao contexto mental construído por professor e
aluno durante a interação, contexto esse que possuiria aquilo que é essencial.

No caso da aprendizagem da escrita, por exemplo, aspectos essenciais


da tarefa incluiriam os conceitos de autoria, de interlocução, de função, de
canonicidade das formas legitimadas da escrita, aspectos estes que, na
maioria das vezes, não têm espaço no trabalho escolar com a escrita, mesmo
porque, como mostram já as nossas observações iniciais, o professor não é
mais um representante pleno da cultura letrada e a sua concepção da escrita,
pobre e empobrecedora, está desprovida dos aspectos centrais, que cederam
lugar para o formal, o acidental, o secundário.

Ainda quando, aparentemente, há um esforço por parte do professor para


propiciar as condições para que o próprio aluno construa seu conhecimento
sobre um assunto relevante ao objeto de ensino, a ação pedagógica pode
perder de vista o objetivo central. Consideremos, novamente, um exemplo
retirado de Cazden (op.cit.) que descreve duas tarefas por ela observadas,
para o ensino do código, em duas aulas de 1ª série. Em ambas as aulas, o
objetivo imediato é a grafia das palavras.

Numa das aulas, a professora promoveu uma discussão sobre o que


constituiria uma maneira possível, ou provável, de grafar as palavras em
questão (determinadas pelo currículo). As crianças faziam hipóteses sobre
essas possibilidades, sendo o papel da professora o de ratificar, ou não, essas
hipóteses. A interação ocorria, então, entre a professora e os alunos, com a
professora avaliando a fala do aluno, e o tópico da interação era a ortografia.

Na outra aula observada, encontravam-se, nos bolsões de um mural,


cartões que continham as palavras que os alunos desconheciam e de que
poderiam precisar (também determinadas pelo currículo). Quando a criança
estava escrevendo e precisava usar uma palavra cuja grafia era desconhecida,
ela podia ir até o mural e procurá-la num dos cartões. Para realizar
eficientemente essa busca, ela precisava ter alguma hipótese sobre a
ortografia da palavra em questão (as letras ou sílaba iniciais, por exemplo);
porém, na maioria das vezes, a busca era facilitada por outro colega que
estava com a palavra - ou que se deparara com ela, enquanto procurava outra
-, pois o mural era lugar constantemente freqüentado por vários alunos ao
mesmo tempo. A interação se dava entre os colegas que conversavam sobre
uma ação que permitiria a continuidade de outra tarefa, a de criar um texto.

Em ambos os casos, o objetivo parcial é a aprendizagem do código e, em


ambos há uma participação da criança na construção de sua aprendizagem.
No entanto, apenas no último, um objetivo menor - foco concentrado do aluno
numa etapa - possibilita a retomada da visão panorâmica a que nos referíamos
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

anteriormente (neste caso, aprender a escrever escrevendo), sem a qual o


essencial do processo de aprender a escrever some na proliferação de
detalhes que tal aprendizado requer.

Em contextos como os que estamos observando, as possibilidades de


atingir a aprendizagem parecem muito mais remotas, pois a própria concepção
de ensino dos professores é questionável, uma vez que estes professores
pressupõem que a mera apresentação de informações deveria garantir a
aprendizagem. Só assim podemos entender uma queixa constante destes
professores: „ensino, canso de ensinar, mas meus alunos não aprendem
nada“. Todavia, as tarefas propostas pelas professoras observadas não
parecem obedecer a decisões programáticas ou curriculares globais de longo
prazo, mas apenas a decisões locais, a fim de preencher o tempo com
atividades relativamente plausíveis e cujas respostas ou soluções o professor
conhece de antemão.

E a natureza dessas tarefas permite entrever tanto pressupostos sobre a


escrita quanto características do processo de letramento desse professor que
são indício forte de que o alfabetizador consegue representar seu papel de
sujeito letrado na escola somente porque o seu discurso - e o discurso de seus
alunos - reproduzem as condições sociais que legitimam o professor enquanto
membro dessa cultura. Sem essa reprodução assegurada pela instituição, não
reconhecemos esse professor como um sujeito letrado.

O LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL

Detenhamo-nos mais um momento no letramento, que entendemos como


as práticas e eventos relacionados ao uso, função e impacto social da escrita
(Kleiman, 1995). Essa concepção de letramento não o limita aos eventos e
práticas comunicativas mediadas pelo texto escrito, isto é, às práticas que
envolvem de fato ler e escrever. O letramento está também presente na
oralidade, uma vez que, em sociedades tecnológicas como a nossa, o impacto
da escrita é de largo alcance: uma atividade que envolve apenas a modalidade
oral, como escutar notícias de rádio, é um evento de letramento, pois o texto
ouvido tem as marcas de planejamento e lexicalização, típicas da modalidade
escrita (a respeito das diferenças entre as modalidades oral e escrita, v., por
exemplo, Chafe & Danielewicz, 1987).

O letramento adquire múltiplas funções e significados, dependendo do


contexto em que ele é desenvolvido, isto é, da agência de letramento por ele
responsável. Sabemos hoje, por exemplo, que as instituições políticas são das
mais efetivas agências de letramento, aproximando muito rapidamente a
oralidade de sujeitos não alfabetizados da oralidade letrada, quanto às suas
características argumentativas. Isto é, mesmo que não alfabetizado, o
participante de grupos sindicais, por exemplo, traz, na sua argumentação, os
traços característicos da escrita, mostrando, na sua ação, a consciência da
necessidade dessas formas de argumentação para alcançar o que quer e
influenciar os outros (Ratto, 1995).

A escola, por outro lado, transforma a oralidade de seus alunos,


especificamente, através da introdução do código da escrita, tanto
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

superimpondo marcas formais da fala letrada (particularmente, a fonologia e a


morfologia), complementares às de outros registros, em outros contextos, (cuja
funcionalidade fica assim restrita ao contexto de sala de aula), bem como
acrescentando alguns gêneros para descrever tarefas independentes do
contexto (Scribner & Cole, op.cit.; Luria, 1976).

Já a família letrada constitui a agência de letramento mais eficiente para


garantir o sucesso escolar e, portanto, a reprodução do privilégio (Bourdieu &
Passeron, 1975). Nela, as práticas e usos da escrita são fato cotidiano,
corriqueiro, inseparável de outros fatores e fazeres: a leitura do jornal como
parte integrante do café da manhã; a redação de um bilhete ou a consulta a
uma agenda como suportes da memória; a leitura de um livro de cabeceira
como aspecto importante do lazer ou do descanso; o rabisco como ocupação
manual durante a concentração; o uso do texto escrito como fonte de
informações permitem que, antes de conhecer a forma da escrita, a criança
conheça seu sentido e sua função.

Assim, nesse contexto, o letramento é desenvolvido mediante a


participação da criança em eventos que pressupõem o conhecimento da escrita
e o valor do livro como fonte fidedigna de informação e transmissão de valores,
aspectos estes que subjazem ao processo de escolarização com vistas ao
desenvolvimento do letramento acadêmico. Note-se que, para as crianças cujo
letramento se inicia no lar, no processo de socialização primária, não procede a
preocupação de se ele aprenderá a ler ou não, muito presente, entretanto, nos
pais de grupos marginalizados.

Numa relação tutorial, a criança aprende novas formas discursivas, cujo


conhecimento é pressuposto pela escola, tais como: responder perguntas
retóricas, informando o interlocutor sobre aquilo que já é conhecimento
partilhado; construir relatos centrados num tópico; fazer e falar sobre este fazer
simultaneamente, mediante, por exemplo, a descrição do processo de
execução de uma ação ou tarefa; comparar e contrastar fatos, objetos e ações
vivenciados, com fatos, objetos e ações livrescos, inventados. A escola não
introduz, para esta criança, uma nova maneira de falar sobre o mundo, mas
apenas seleciona novos tópicos, mais artificiais para a exercitação de gêneros
e formas discursivas já familiares (Heath, 1982, 1983; Cazden, 1989; Kleiman,
1993b).

CONTEXTO, MÉTODO E PARTICIPANTES

Tendo em vista a caracterização de letramento acima delineada, algumas


das questões que nos propomos a investigar dizem respeito à natureza dos
eventos de letramento em contexto escolar; a como estes são construídos no
processo de interação entre professor e aluno; a como são percebidos pelos
participantes e a quais são os pontos em comum entre o evento de letramento
na aula de alfabetização de adultos e as necessidades de uso de escrita no
cotidiano desses alunos, por um lado, e o letramento acadêmico, por outro.

Como corolário de uma concepção crítica das práticas escolares e, mais


especificamente, do discurso de sala de aula, estes projetos de pesquisa estão
também orientados para a intervenção. Um de seus objetivos importantes visa
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

a formação continuada do professor alfabetizador, cuja situação periférica


quanto ao letramento já apontamos. O contexto de intervenção crítica são os
cursos supletivos de alfabetização de uma pequena cidade no interior paulista.

As professoras participantes, egressas de escolas de magistério, foram,


elas mesmas, submetidas ao processo de escolarização que começa e acaba
numa concepção da escrita desvinculada de funções e significados
socialmente determinados. Os seus alunos, adultos e adolescentes
analfabetos, trabalhadores rurais e migrantes recentes na cidade, são filhos e
irmãos de outros analfabetos, não dispondo, portanto, de parâmetros que lhes
permitam aceitar aquilo que é necessário para aprender a ler e escrever e
descartar o irrelevante, o nonsense. Daí fornecermos, para essas professoras,
um contraponto que questiona suas práticas e pressupostos, visando
mudanças nas suas concepções da escrita, do ensino e da aprendizagem, que
lhes possibilitem transformarem suas práticas profissionais, se assim o
desejarem.

Além das reuniões semanais com as professoras no programa de apoio,


realizamos visitas semanais à sala de aula, para a coleta de dados, utilizando,
para tal, uma metodologia de cunho etnográfico. As aulas são gravadas em
áudio e/ou em vídeo. É também mantido um registro escrito das atividades,
mediante o registro em diário e mediante o arquivo do material de ensino
selecionado pelas professoras e dos cadernos de alguns dos alunos. Outros
documentos são também arquivados, como as fichas com dados socio-
econômicos dos alunos e os materiais que a Secretaria da Educação da Rede
Pública faz circular.

O compromisso da Prefeitura da cidade com o programa de alfabetização


de adultos era total, no início do processo de pesquisa e de formação contínua
de seus docentes. Havia, num primeiro momento, dois professores por sala de
aula, de maneira a se resolver o problema, bastante comum nas aulas de
alfabetização de adultos, da grande heterogeneidade dos alunos quanto ao seu
nível de conhecimento da escrita. Havia também um compromisso de formar
pequenas bibliotecas de sala de aula, a fim de diversificar os materiais com que
os alunos entram em contato35.

Predizivelmente, este compromisso político, de nivel micro-estrutural se


considerarmos o contexto nacional, não tem sido suficiente para garantir o
sucesso dos cursos supletivos de alfabetização e para resolver os problemas
de evasão, ausentismo e perpetuação do ciclo de analfabetismo, cujas causas
precisam de transformações sociais mais profundas para serem erradicadas.
Esses jovens (metade dos alunos são adolescentes menores de 18 anos) são
representantes típicos de uma população analfabeta muito homogênea quanto
à extração social no país (Oliveira, 1992): não freqüentaram ou feqüentaram a
escola muito irregularmente, até a segunda série, migraram do campo para a
pequena cidade, e nela exercem trabalhos desqualificados na única indústria
da cidade ou nas fazendas próximas.

35
De fato, esse compromisso e vontade política não mudou. O que mudou, e radicalmente, é
a disponibilidade de verbas para a Educação. A cidade praticamente não tem indústria e
seu orçamento depende do repasse das verbas federais e estaduais.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Mas também ao professor cabe boa parcela da responsabilidade pelo


fracasso dos programas de alfabetização de adultos. Em primeiro lugar, porque
muitos deles não se sentem motivados a tentar mudanças, achando que a
responsabilidade pela aprendizagem é do aluno, exclusivamente. Assim,
apesar de expressarem desconforto sobre a situação, preferem não participar
de um processo de aprendizagem que, sem dúvida, também poderá ser tenso
e desconfortável.

Em segundo lugar, porque não estão habilitados a ensinar aquilo que


devem ensinar. Desconsiderando o perfeito desenvolvimento do que estamos
denominando de letramento ambiental, isto é, a leitura de textos curtos
informativos e/ou propagandísticos sobre assuntos do cotidiano, como
outdoors, placas, manchetes de jornais locais, avisos, o professor que estamos
observando parece não ter desenvolvido estratégias propriamente letradas
para a leitura mais envolvente, que exige um envolvimento cognitivo
sustentado a fim de fazer sentido de unidades maiores, com sucessivas
camadas de significação, ou de construir sentidos mediante a criação de um
texto. Quanto a este último aspecto, foi constatado, por exemplo, que até a
redação de cartas para autoridades locais, sobre assuntos que estavam
afetando a comunidade, era uma tarefa fora do alcance das alfabetizadoras. O
fato não é surpreendente, visto que, para várias delas, a instituição que as
introduziu ao letramento foi a escola, pois eram o primeiro membro da família a
ser escolarizado.

ORALIDADE E LETRAMENTO NO DISCURSO DO ALFABETIZADOR

No discurso oral das professoras participantes do projeto, encontramos


pistas salientes de que seu letramento de tipo acadêmico não contém aqueles
traços que são considerados, por autores como Tannen (1980) e Chafe (1984),
como índices de uma orientação letrada do falante. Vejamos um exemplo,
registrado durante uma aula de leitura e analisado em mais detalhes em
Kleiman (1993a). Percebemos uma predisposição para recontextualizar
elementos de uma tarefa abstrata em relação ao espaço físico partilhado pelo
professor e aluno. Isto, em vez de facilitar a tarefa do aluno, causava confusão
quanto ao objetivo desta recontextualização, que era o ensino da distribuição,
no papel, dos sinais gráficos da escrita.

Assim, espaços destinados a essa distribuição - como lado ou margem


esquerdo ou direito, topo da página, acima e abaixo da linha, fim da linha - são
referidos como „o lado da Ana“, „para o chão“, „para acima (da lousa)“ e
problemas que têm apenas a ver com a distribuição dos traços de uma letra
para acima ou para abaixo da linha (P por p, por exemplo), eram
diagnosticados como problemas de desconhecimento do uso de maiúsculas e
minúsculas. Embora alguns procedimentos de recontextualização possam ser
efetivos em interações com dois ou três participantes apenas, eles não
funcionam na interação complexa de sala de aula, na qual, por exemplo, alguns
alunos estão na frente, de um lado ou de outro da referida Ana e onde a página
do aluno reproduz na horizontalidade as relações que o professor dispõe
verticalmente na lousa. Essa ineficácia fica evidente nos constantes erros dos
alunos e na necessidade de repetir, a cada momento da aula, o conjunto de
instruções.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

As dificuldades do professor na construção desse novo objeto, a escrita,


ficavam também evidentes na retomada de assuntos relativamente simples
sobre esse objeto, como, por exemplo, o ensino do código. Também aqui
percebia-se a orientação mais oral do professor, nas tentativas de retomar
aspectos já apresentados mediante o apelo ao contexto em que esse aspecto
tinha sido originalmente ensinado. Por exemplo, qualquer referência à sílaba
„l+vogal“ (la, le, li, lo, lu) era inevitavelmente introduzida fazendo-se uma
menção à „família do Luciano, pois era o nome desse aluno que tinha servido
como palavra detonadora para o ensino dessa unidade silábica. Dada a
ambigüidade da expressão, a referência é particularmente infeliz 36.

Quando essas mesmas alfabetizadoras começaram a utilizar textos para


o ensino de leitura, essa orientação oral ficou ainda mais evidente. Em primeiro
lugar, pelo destaque exagerado para a atividade, como algo fora do comum,
não integrado ao cotidiano de sala de aula (lembrando-nos fortemente do
destaque apontado por Heath (1982) para os eventos de letramento em
contexto familiar, na comunidade de Roadville). Assim, numa aula observada,
antes de entregar o texto para a leitura, a professora anuncia que haverá uma
„aula diferente“, solicitando que lápis e papel sejam guardados.

O texto entregue era um pequeno artigo de jornal que havíamos


selecionado, dentro de uma unidade sobre drogas que estava sendo
desenvolvida, para discussão com as professoras. Já o repasse imediato dos
textos utilizados nessas aulas de formação das professoras, o que sempre
acontecia37, indica o quanto era limitado seu acesso a textos outros que
aqueles do livro didático.

Na situação que estamos descrevendo, o objetivo de nosso trabalho com


as professoras era duplo, envolvendo uma reflexão sobre a linguagem e o
processo de leitura, mediante a análise do texto e a inferência da posição do
autor, e uma reflexão sobre o ensino, mediante a discussão de estratégias
pedagógicas.

Do ponto de vista da construção de sentido na leitura, visávamos mostrar


como a polifonia era construída pelo jornalista (explícita, através do uso de
citações enquadradas por aspas) e como podia ser atribuida uma intenção ao
autor, através da análise do léxico por ele usado. Do ponto de vista da
dimensão pedagógica da tarefa, o texto foi ainda analisado em relação à sua
legibilidade para um aluno iniciante, levando em consideração, para isso,
aspectos formais relativos ao formato (gravura, manchete, lead) e ao uso de
palavras de estrutura silábica conhecida do aluno (como por exemplo, „droga“,
„coca“, „cocaína“) bem como aspectos relativos à familiaridade e ao interesse
36
Um outro aspecto da oralidade do professor que contrasta com a oralidade letrada, mais
recentemente analisado (Signorini & Kleiman, 1994), diz respeito às características do
discurso explicativo desse professor, que não apresentam o efeito genérico, independente
das relações interpessoais, da explicação letrada.
37
_ No início desse processo de formação, concomitantemente ao relato na apresentação.
Uma das mudanças mais notáveis das professoras é decorrente da convicção de que elas
precisam saber muito mais sobre o assunto daquilo que está contido no texto selecionado
para o ensino, o que as tem motivado para a leitura extensa, constante, como atividade
integrante do preparo de aula e, conseqnentemente, tem lhes dado a autonomia para a
seleção de textos, que, no começo, não tinham.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

do assunto para o aluno (o envolvimento do jogador Maradona com as drogas).


Continuando o processo de construir com as professoras uma metalinguagem
para a aula de leitura, tínhamos chamado a atenção para a necessidade de
entregar ao aluno o texto com as linhas de cada coluna numeradas, para
facilitar a localização de trechos ou palavras específicas cuja referência fosse
necessária, no decorrer de uma aula.

A lista seguinte resume os subtópicos desenvolvidos por uma professora,


após a leitura, primeiro silenciosa e depois oral, do texto pelos alunos:
1 - discussão da foto que acompanhava o texto;
2 - introdução das palavras „nome“ e „sobrenome“, seguida de
perguntas sobre nomes de cidades que aparecem no texto;
3 - discussão sobre viagens a diversas cidades;
4 - discussão de „coluna“, „parágrafo“ e „aspas“, que suscita uma
pergunta de aluno sobre se „aspas é o mesmo que vírgula“;
5 - escritura, na lousa, de palavras que, segundo a professora,
resumiriam o texto („vício“, „droga“, „cocaína“ e „Maradona“);
6 - explicação do significado de duas palavras do texto, „divulgação“
e „procurador“;
7 - discussão sobre o que é „vício“ e os tipos de „vício“ existentes.

A lista se assemelha, por sua diversidade de assuntos, a um roteiro de


lembretes ou notas sobre a discussão anterior do texto, já mencionada, da qual
a professora tinha participado. O aspecto central daquela discussão (isto é,
marcadores lingüísticos da posição do autor), que unificava os vários
subtópicos, não foi, entretanto, recuperado e, por isso, em vez de uma aula de
leitura - isto é, uma aula cujo objetivo é o ensino de estratégias para fazer
sentido de uma unidade semântica pré-existente à interação -, deparamo-nos
com uma série de tópicos construídos mediante a resignificação de palavras
isoladas do texto, ao invés de mediante a ativação de esquemas para a
resignificação global.

Coexistem, no discurso da professora, sem que sejam articulados,


elementos de diversos discursos sobre a escrita: o escolar, o acadêmico, o de
senso comum. Em alguns casos, a discussão ecoa temas levantados na
reunião de formação („colunas“, „parágrafos“, „aspas“); outras explicações
sobre palavras que não eram temáticas e cujo significado não tinha
preocupado os alunos (i.e., „divulgação“ e „procurador“), só podem ter sido
selecionadas em obediência ao pressuposto de que o letramento, ou melhor, a
escolarização, implica conhecer (e portanto ensinar) formas eruditas; já outras
escolhas obedecem critérios aparentemente programáticos (por exemplo, a
focalização de „nomes“ e „sobrenomes“ reforça o ensino ortográfico de usos de
maiúsculas e minúsculas); nos demais casos, as escolhas estão claramente
determinadas pelas associações temáticas que as palavras evocam,
independentemente da sua função na construção de uma rede semântica no
texto (por exemplo, „viagens“, por associação com nomes de cidades; „vício“,
por associação com drogas).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

O resultado é claramente reminiscente de uma organização retórica da


tradição oral - a organização episódica - e contrapõe-se à organização
centrada no tópico, característica do letramento acadêmico (v. Cazden, op.cit.).

Independentemente de outras, e mais importantes, transformações que a


leitura envolvente traz para o indivíduo, ela certamente o ajuda a aprender essa
forma de organização retórica, muito valorizada pela escola. Entretanto, existe
também nesse discurso uma incipiente mudança, presente na convergência,
não articulada, de elementos de outros discursos. Se essa mudança resultará
ou não numa transformação social do sujeito é uma pergunta de pesquisa que
consideramos das mais relevantes (v. Fairclough, op. cit.; Orlandi, op.cit.; que
tratam de noções como interdiscursividade e intertextualidade que explicam
essa articulação de elementos provenientes de diversas formações
discursivas).

EMERGÊNCIA DO LETRAMENTO, RESISTÊNCIA E CONSCIENTIZAÇÃO


CULTURAL

Nesta primeira etapa que estamos observando, a precariedade do


letramento do professor, conseqüente de suas concepções sobre a escrita e de
sua limitada experiência como leitor e escritor, não lhe permite assumir um
papel crítico em relação aos conteúdos do currículo e do programa: ele pode
apenas reproduzir e, portanto, não há lugar para as transformações que
poderiam ser instituídas através das práticas discursivas em sala de aula que
propiciem, de fato, as condições necessárias para os alunos construirem novas
identidades sociais através do processo de aquisição da escrita.

Examinaremos, a seguir, os efeitos desse letramento marginal do


professor no trabalho com adultos, focalizando um adolescente de uma das
turmas observadas, primeiro em relação aos textos que produz e, em seguida,
em relação à sua interação com a professora.

O aluno - D. - tem quatorze anos e não terminou de cursar a segunda


série no programa regular. Depois de completar os quatorze anos, quando o
Estado não é mais responsável pela sua escolarização, passou a freqüentar o
curso supletivo de alfabetização. Durante o dia, ele trabalha como vendedor
ambulante de sorvetes, mas já realizou muitos outros tipos de trabalhos na
roça.

D. é, nas palavras da professora, „um aluno revoltado“. O que nós


percebemos, nas observações, é que se trata de um jovem extremamente
resistente às práticas da professora: rejeita os textos, se recusa a escrever
respostas na lousa, faz apartes a seus colegas, que resultam no riso do grupo.

É também um jovem que gosta de escrever e que, em seus textos, deixa


marcas de que seu nível de conscientização sobre a natureza e função da
escrita é bastante desenvolvido. No texto a seguir, por exemplo, um dos
primeiros que ele escreveu, ele mostra que está ciente da importância da
atribuição de autoria na escrita e se inscreve como autor já de início. A tarefa
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

proposta era indicar se gostava mais de „namorar“ ou de „ficar“ e, portanto,


esta inscrição tem a força argumentativa de um marcador de atitude
proposicional - „esta é a minha opinião“:

Meu nome é D. R S. Netanto Vando apelido mas num


gosto. Eu gosto de namorar porque a gente se diverte
muito bem o nome dela se chama C. C.

No exemplo a seguir, sua tentativa de se construir como autor é


dificultada pelo seu desconhecimento de repertórios da escrita. A utilização de
um modelo da oralidade para persuadir é por ele transformada em escrita
através do simples expediente de classificar seu texto como notícia e de
designar-se seu autor. Com isso, ele confere ao texto a canonicidade que seu
desconhecimento da forma lhe impede conferir:

Pessoal, escute essa notícia das balas que num podem


ser vendidas o nome da bala e van melle por favor não
comprem esta bala porque esta bala está contraminada
de cocaína. Notícia da semana. Autor: D R S

Textos como estes mostram que o aluno alcançou um nível de


conscientização sobre as relações entre a escrita e o poder, particularmente da
relação entre legitimidade e canonicidade, por um lado, e legitimidade e
atribuição de autoria, por outro. Certamente, essas percepções não são
resultantes do ensino da escrita na escola, uma vez que aí se enfatiza apenas
o formal e, como fica marcante pelas correções meramente ortográficas a que
seus textos são submetidos, não são percepções que encontram espaço para
reflexão na sala de aula.

As tentativas de D. de se constituir em sujeito nesse contexto escolar em


que os alunos são vistos como objetos indiferenciados, não se limitam à
escrita. Num episódio marcante, ele rompe a estrutura canônica da aula
(Sinclair & Coulthard, 1975) - que, até o momento de sua intervenção,
reproduzia a estrutura típica quanto à distribuição e extensão dos turnos, à
seleção e o desenvolvimento dos tópicos e à designação, pelo professor, do
aluno que deveria tomar o turno - e faz, sem ser solicitado, um comentário que
contesta os pressupostos que subjazem ao discurso da professora,
pressupostos esses que reproduziam, sem questionamento, crenças e valores
de grupos letrados, majoritários, em relação ao tratamento da doença por
médicos, ao uso de remédios da indústria farmacêutica para o tratamento da
doença e à consulta ao texto escrito como fonte fidedigna de informações.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

A aula consistia na leitura de um texto retirado de um manual para a


alfabetização de adultos, que descrevia o que é uma bula, com o objetivo de
alertar o leitor para os perigos da automedicação. Além deste texto descritivo, a
professora levara também uma bula. Pequenos trechos descritivos tinham sido
exaustivamente lidos e comentados (sendo que o comentário consistia na
releitura, pela professora, do trecho, acompanhado de perguntas sobre o
significado de cada palavra).

Depois de 70 minutos de desenvolvimento da aula nesses parâmetros,


quando a professora designa um aluno para ler o último trecho (a saber,
„efeitos colaterais: explica alguns problemas que podem aparecer na pessoa
que usa o remédio“), D. assume a palavra e contesta os implícitos que
subjaziam ao discurso do autor do texto, partilhados pela professora: ele afirma
a superioridade (ocasional) do remédio caseiro 38. Vejamos o trecho relevante:

D: Tem vei que (xxx) tomá remédio em casa/ meió que í no médico
(x) tem vei que remédio em casa é meió que do médico

Imediatamente, a professora contesta o aluno, negando repetidas vezes


(„não é não, D.“, „que que é isso, D.?“, „no médico não é mais seguro?“), mas
D. insiste na sua opinião e finalmente a reitera da seguinte forma:

D: Remédio de mato é meió.


P1: Hã?
D: Remédio de agora num presta.
P1: Como que num presta?
D: (quase inaudível) Num sei.
P1: Remédio de agora? E por que ceis acham que os
médicos estudam?
D: Nã::o (x) Eles estudam pra ficá lá sentado (x) Ganhá dinheiro dos
pobre (xxxx)
P1: A::h (x) Estudam pra ficar sentados (x) A::h (x) E você acha que
(x) que que ele poder/ quando ele vai consultá ele vai dá aquele
remédio lá::: de 1900, ou vai dá um remédio que
D: Um remédio de agora
P1: A::hh (x) Você num falou que o remédio é uma porcaria?
J: Não professora (x) ele (xxx)
P1: Cada vez fez o quê? Eles descobrem coisa nova não é?
D: Tem vei né.
P1: Tem vez?
D: Tem vez (x) EU acho.

38
V. Kleiman, 1992, 1994, para uma análise mais abrangente do episódio em questão.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

/.../
D: Eu tenho uma tia (xxxx) que num deu remédio pra ela (x)
Remédio dela é remédio do mato.
/.../
P1: E não é um remédio?
D: Não um remédio (xxxx) Só remédio de planta.
P1: Então (x) essa planta (x) ela tá usando como um remédio para
ela (x) E você num acha que é remédio?
D: É, (x) É um remédio.
P1: Então“ (x) É uma planta.
D: Mas num é passada por médico

A interação é extraordinária do ponto de vista estrutural, pragmático,


textual. Se a considerarmos a partir de uma perspectiva textual, vemos que a
professora usa muito eficientemente os marcadores típicos da interação em
sala de aula (v. Marcuschi, 1986), como a repetição no turno avaliativo, para
contestar a fala do aluno, produzindo, ao mesmo tempo, um efeito coesivo que
confere unidade ao que são dois textos distintos que se contrapõem.

Por exemplo, a frase „remédio de agora“, com intonação ascendente,


prefaciando uma pergunta, não tem a função de solicitar mais informações
sobre o tópico: trata-se de uma solicitação para o aluno justificar sua opinião
(„e porque cêis acham que os médicos estudam?“). Por outro lado, a unidade
mais marcante da interação, que se inicia com a professora repetindo a frase
„estudam para ficar sentados“, prefacia o malentendido que levará o aluno a
uma opinião insustentável: a oposição que o aluno tinha significado mediante o
processo de substituição lexical, entre „remédio de agora“ ou „remédio de
médico“ (equivalendo a remédio da indústria farmacêutica), por um lado, e
„remédio de casa“ ou „remédio de mato“, por outro, é resignificada pela
professora como uma oposição entre os remédios da indústria farmacêutica
obsoletos, por um lado, e os remédios modernos dessa mesma indústria, por
outro.

Além disso, um marcador que usualmente indica monitoração da


compreensão, „a::h“, aqui funciona para reorientar os argumentos de D., com a
finalidade de dar sustentação à argumentação da professora. Por exemplo, o
enunciado „a::h, você num falou que o remédio era uma porcaria?“ serve como
prefácio de uma aparente retomada de um argumento do aluno, que, na
verdade, ele nunca usou. Fato este evidente para os demais alunos, já que um
colega tenta interferir, negando a inferência não autorizada da professora.

Finalmente, ainda analisando os aspectos textuais, os marcadores


conclusivos nesta interação conflitiva têm também a função de fazer convergir
num texto os dois textos que são antagônicos: a expressão „então“ introduz um
argumento que teria sido inferido da fala do aluno („você não acha que [o
remédio de planta] é remédio“), mas que é, novamente, uma inferência não
autorizada: note-se que o aluno iniciou o diálogo afirmando que os remédios
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

caseiros, ou „de mato“, eram, em alguns casos („tem vez“), melhores do que os
receitados por médico. Semelhante é a função deste recurso, quando introduz
como „conclusão“ do argumento da professora („então é uma planta“, isto é,
„há remédios de plantas“) aquilo que é, de fato, a premissa na argumentação
do aluno.

Do ponto de vista da interação, vista como o lugar em que as estruturas


sociais são reproduzidas, mas também como o lugar em que identidades
sociais podem ser transformadas, esta interação permite analisar a relação
entre poder e discurso; mais especificamente, como a relação assimétrica
consegue ser reproduzida, neste caso, através da camuflagem do conflito,
mediante o uso dos mecanismos institucionais (a estrutura da interação, por
exemplo) que permitem à professora direcionar os argumentos para qualquer
lado, levando os argumentos a conclusões insustentáveis (o que permite
responsabilizar o aluno pelas falácias na argumentação) ou se apropriando,
quando necessário, da argumentação do aluno. O fracasso na recuperação da
autoria está também pré-determinado por esses mecanismos: a
impossibilidade de relativização dos argumentos, que o aluno tenta repetidas
vezes (quando ele diz „eu acho“, „é a minha opinião“, „às vezes“), está pré-
determinada estruturalmente pela organização discursiva que permite ao
professor, mas não ao aluno, não só dizer, mas retomar o dizer do outro para
avaliá-lo e deturpá-lo.

Entretanto, o conflito que se instaura através dessa interação pode vir a


ter um efeito transformador. Não na professora (que, quando confrontada com
essa aula para determinar se haveria algum aspecto de sua atuação que ela
mudaria, não escolheu essa interação e caracterizou D. como „aluno
revoltado“), mas, talvez, no aluno. A tensão perceptível entre professor e aluno,
proveniente do fato de o professor manipular tão grosseiramente o discurso do
aluno, pode levar este último à resistência, que, por sua vez, pode ter
diferentes conseqüências para a aprendizagem: a resistência pode
desencadear no aluno o processo de oposição cultural que Erickson (1987)
postula como uma das causas do fracasso escolar das minorias. Por outro
lado, a resistência poderia, em princípio, ser um dos fatores desencadeadores
da aprendizagem, pois trata-se do estado em oposição ao estado de
indiferença, de total ausência de engajamento cognitivo e/ou afetivo. Esse
estado, aliás, tal qual acontece quando a oposição cultural é desenvolvida,
torna-se possível somente quando existe o que estamos denominando
„conscientização cultural“ do aluno.

De fato, D. resiste até o fim, defendendo sua posição de maneira cada


vez mais precisa39. Apesar de estar iludido quanto às regras envolvidas na
interação e na construção de um texto de gênero argumentativo em contexto
39
Terminada essa aula de leitura, perguntamos a D. se não gostaria de escrever o que ele
pensava sobre remédios. Ele ditou para a investigadora o seguinte texto (cuja ortografia e
concordância nominal e verbal foram normatizadas):
Remédio da planta
Eu gostaria do remédio das plantas porque é melhor de que da farmácia.
Eu não vou com a cara dos médicos por que os mais velhos dizem que o remédio
do mato é tripo mais melhor.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

escolar - aliás, por causa dessa ilusão -, ele procura persuadir e, no processo,
explicita premissas, apresenta diversas glosas para sua tese, exemplifica,
enfim, engaja-se num processo de sobre-verbalização característico do
discurso letrado. E se a resistência não é em si suficiente para a
transformação, ela certamente exige um estado de conscientização, necessário
para a mudança40.

Este breve panorama sobre as questões que nos ocupam nos projetos
que desenvolvemos sobre a escrita, o letramento e a aprendizagem mostra
como esse campo de investigação é fértil, tanto para o estudo de questões
teóricas, ligadas à imponderável resignificação de sentidos na interação,
quanto para questões aplicadas, ligadas ao significado político do letramento e
da aquisição de escrita no contexto brasileiro.

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Fairclough, N. (1992) Discourse and Social Change. Cambridge: Polity Press.
Os remédios do mato são mais saudáveis, primeiro lugar. Minha avó foi curada
com remédio das plantas.
40
Ratto (op.cit.) aponta para conclusão semelhante em relação às estratégias argumentativas
de sujeitos não escolarizados que imitam modelos letrados, pois, para tal processo de
imitação emergir, é preciso a conscientização lingüística anterior, que, por envolver um
processo de reflexão e comparação com o discurso do outro, constituiria um dos pré-
requisitos para a aprendizagem.
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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

POSFÁCIO*

A AQUISIÇÃO DA ESCRITA DO PORTUGUÊS: CONSIDERAÇÕES SOBRE


DIFERENTES PERSPECTIVAS DE ANÁLISE

Maria Bernadete Marques Abaurre


IEL/UNICAMP

Cada um dos textos do presente volume "ressoa" em mim de modo


diverso. Há sempre algum dado ou alguma observação singular que faz com
que, em determinado momento da leitura, eu comece a pensar em outras
questões, a tentar estabelecer algumas relações com outros dados da escrita
inicial ou com discussões anteriores. Procurarei, neste posfácio, explicitar
essas minhas reações, o que equivale, talvez, a objetivar aquilo que, para mim,
adquire saliência particular em cada trabalho.
Começo pelo texto de L. C. Cagliari. Ao ler seu trabalho, surpreendi-me a
pensar sobre o grande mistério que é a escrita. Nós, adultos letrados, quando
forçados a pensar sobre o assunto, parecemos prontos a admitir que as
crianças ainda não sabem muitas coisas sobre a escrita e sobre suas relações
com a oralidade. Na prática, no entanto, muito freqüentemente nos
esqueçemos também desse fato óbvio... A atestar isso, estão inúmeras
práticas escolares baseadas em pressupostos discutíveis; estão também
muitas das atividades com leitura e escrita conduzidas nas salas de aula; estão
as metáforas utilizadas pelos professores para falar sobre a linguagem e as
categorias e os conceitos fundados em uma metalinguagem que se supõe,
erroneamente, que as crianças entendam sem maiores problemas.
Por trás de tantos equívocos pedagógicos não estaria, talvez, uma certa
presunção por parte de todos os falantes que escrevem, ou seja, uma falsa
"segurança" com relação à escrita - sintoma de que para nós, adultos, a escrita
perdeu o fascínio que advém exatamente do fato de que continua sempre a
esconder tantos mistérios?
O que sempre me encantou, nos trabalhos de Cagliari, foi o fato de
colocarem necessariamente em evidência esse lado misterioso dos sistemas
de escrita. Seus textos acabam por revelar, através dos indícios escritos das
perplexidades das crianças, tudo aquilo que continuamos, como adultos, a não
saber sobre as bases e o modo de funcionamento dos vários sistemas de
escrita e sobre os diferentes alfabetos.
Ao ler Cagliari e refletir sobre os dados que ele nos apresenta em seu
texto, recordei-me de um episódio que vivi recentemente, envolvendo o uso de
diferentes escritas alfabéticas. Lembro-me de ter recebido, há pouco tempo,
uma carta escrita em inglês por uma pessoa que, sendo falante nativa de
russo, escreve quase sempre em língua russa, usando, pois, o alfabeto cirílico.
* *
No evento que deu origem a este volume (ver Apresentação), Bernardete Abaurre tinha o
papel de debatedora. Por isto, neste texto, Abaurre levanta observaçãoes, reflexões e
discussõs sobre aspectos variados dos trabalhos expostos nos textos anteriores. Optamos
por manter assim esta contribuição justamente no sentido de o texto final não „fechar“ o
volume, mas abrir vias de reflexão para seu leitor [nota da organizadora].
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Perturbou-me enormemente o fato de que, embora a carta fosse escrita em


inglês, o desenho das letras trazia as marcas evidentes de um gesto e de um
ritmo característicos da escrita cirílica. Eu lia, assim, enunciados da língua
inglesa, mas o que via, em termos gráficos, era um desenho que criava em
mim a expectativa da língua russa.
As considerações de Cagliari, ao me recordarem esse momento de
perturbação, fizeram-me também refletir sobre o grande mistério que deve ser,
para as crianças, algo que para os adultos talvez pareça trivial: o desenho
preciso das letras, as equivalências funcionais entre desenhos alternativos e as
mínimas diferenças de traçado que podem ter função opositiva. Se para nós,
que usamos há décadas um mesmo sistema alfabético, essa interpretação
parece óbvia, isso se deve ao fato de que aprendemos a atribuir a todas as
variações no desenho das letras um determinado valor funcional no âmbito do
sistema de representação. Para as crianças, às voltas com o aprendizado
desse valor, a grande variação que caracteriza não só o traçado das letras,
mas também os diferentes estilos de letras e as caligrafias individuais, constitui,
provavelmente, um dos grandes mistérios da escrita...
Parece-me importante insistir sobre esse aspecto, justamente porque é
prática freqüente solicitar às crianças que façam certas atividades com a
escrita que pressupõem uma diferenciação já elaborada e consolidada relativa
ao traçado das letras. Assumimos, apressada e equivocadamente, que esse é,
para o aprendiz, um dos aspectos mais transparentes da escrita alfabética. Na
verdade, talvez seja um dos mais opacos, o que nos autoriza a supor que
muitas crianças podem passar grande parte do seu tempo buscando o sentido
de tantas variações no desenho dos símbolos escritos.
Talvez o que falte, na reflexão de Cagliari, seja a explicitação dessa
opacidade. Ele parece por vezes acreditar em uma transparência que os seus
próprios dados insistem em negar. Não é nem um pouco óbvio que as crianças
vejam a escrita como nós a vemos, muito menos que a segmentem, analisem
e interpretem à nossa maneira. Elas parecem, isto sim, estar sempre em busca
de pistas que as ajudem a delimitar porções significativas para os recortes que
fazem do material escrito, recortes esses com quais passam a trabalhar.
Estas considerações dão-me a oportunidade de dizer que minha própria
pesquisa em aquisição da escrita tem-se voltado especialmente para o estudo
dos procedimentos utilizados pelas crianças para segmentar a escrita, tomada
inicialmente como um conjunto de blocos ou porções não-analisadas,
separadas por espaços em branco. Sabemos hoje que essas porções são
identificadas de maneira diferente por diferentes crianças, que, em diferentes
situações e por diferentes motivos, manipulam-nas em um processo contínuo
de recorte e atribuição de significado aos elementos da escrita. Nesse sentido,
o trabalho pioneiro de E. Ferreiro e A. Teberosky, registrado em seu livro A
Psicogênese da Língua Escrita, tem o grande mérito, dentre outros, de alertar
os próprios lingüistas para a maneira opaca como se apresenta, para as
crianças, a representação escrita da linguagem. Pode-se dizer que a
consciência desse fato aumentou o interesse da Lingüística pelos dados da
aquisição da linguagem escrita, uma vez que eles passaram a ser vistos como
preciosa fonte de indícios sobre a natureza do trabalho realizado pelas crianças
com a linguagem.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Ainda a respeito da opacidade da escrita em processos de aquisição,


podemos pensar estes processos no caso dos deficientes auditivos (DA's).
Sobre essa questão venho já refletindo há algum tempo. Oriento, no momento,
uma tese de mestrado (de Ivani S. Mendes) a respeito da organização sintática
na escrita de DA's crianças e adolescentes. O objetivo desse trabalho é o de
determinar, por um lado, algumas características de organização sintática que
pareceriam mais naturais aos DA's, e, por outro, algumas opções de
organização depreensíveis da sua escrita que poderiam, talvez, ser atribuídas
à influência das próprias escritas que lhes servem constantemente de modelo.
Parece-me que, se quisermos trabalhar com a perspectiva de desvendar
o processo peculiar de aquisição da escrita em uma situação-limite como a dos
DA's, processo que nos interessa conhecer melhor em função de decisões de
ordem pedagógica, é imperioso formular e tentar responder a algumas
indagações prévias sobre a própria organização sintática da linguagem dos
DA's. Nesse sentido, é extremamente importante aprendermos a olhar para a
escrita que começam a produzir, particularmente nos momentos iniciais do
processo de aquisição, com a expectativa de aí encontrar algumas marcas
dessa sintaxe. Esses dados podem, pois, servir de base tanto para a reflexão
dos lingüistas interessados na validação das teorias sintáticas mais modernas,
como para os educadores preocupados com as decisões de caráter
pedagógico.
Quem está habituado a trabalhar com DA's já se deve ter dado conta do
fato de que, em alguns episódios iniciais de escrita, os não-ouvintes por vezes
dão aos elementos dos enunciados que dizem haver escrito uma ordem que a
nós, ouvintes, parece anti-natural. No entanto, admitindo-se um critério
alternativo de organização sintática superficial, essa ordem passa a fazer,
também, muito sentido. A pergunta interessante a fazer, portanto, é a seguinte:
que reflexão encontramos (ou não) nas atuais teorias sintáticas, que permitiria
explicar a organização dada pelos DA's, em qualquer forma de linguagem por
eles utilizada, para expressar uma determinada articulação conceitual? É
também relevante saber em que medida uma maior compreensão da
organização sintática da linguagem (aqui entendida em um sentido bem amplo
do termo) dos DA's auxiliaria ou não a própria teoria lingüística no
entendimento da organização sintática da linguagem dos ouvintes, adquirida,
desde o início do processo, através da mediação da linguagem dos adultos,
tomada como input. Vale notar que os efeitos do contato mais tardio do DA
com um input escrito representativo da sintaxe dos ouvintes deve ter efeitos
para a organização sintática de sua própria linguagem. Esses efeitos merecem
ser investigados e estão longe, eu diria, de ser conhecidos e teoricamente
explorados, no presente estado das nossas pesquisas sobre o assunto.
Não usei aqui o termo input por acaso. Não quero, evidentemente, reduzir
um problema de investigação tão complexa à questão do input.. Meu objetivo é
apenas o de chamar a atenção para o fato de que há diferenças evidentes de
sintaxe se rigorosamente comparadas as manifestações de linguagem dos
ouvintes e dos DA's, e para o fato de que dispomos, hoje, de teorias sintáticas
suficientemente sofisticadas para dar conta dessas diferenças. Por outro lado,
ao chamar a atenção para a questão de um eventual efeito do input (aqui
entendido como conjunto de enunciados dos ouvintes) em casos de eventual
re-organização sintática por parte dos DA's, penso em episódios
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

aparentemente singelos, como o que a seguir mencionarei, episódios que,


estou certa, guardam estreita relação com as observações que fiz nos
parágrafos anteriores.
Em tese de mestrado orientada por Maria Laura Mayrink-Sabinson
(IEL/UNICAMP), Zilda Gesuelli relata e discute episódios ocorridos durante
acompanhamento dos momentos iniciais do processo de aquisição da escrita
por crianças deficientes auditivas. Quando as crianças já mostravam suficiente
curiosidade a respeito das letras e do seu uso, eram por vezes solicitadas a
utilizá-las para escrever algum enunciado "ditado" pela professora (através de
recursos de diversos tipos: fala, gestos etc.); por vezes eram também
solicitadas a usar as letras para escrever o que quisessem. Uma diferença
marcante na sintaxe dos elementos ordenados pelas crianças, na leitura que
faziam dos seus escritos, pôde ser obsevada nos dois tipos de situação criados
para a escrita. Assim, quando a professora "ditava" algo como O gato caiu da
árvore, não era infreqüente que a "leitura" de alguma criança, feita a partir da
seqüência de letras por ela colocadas no papel, seguisse essa mesma ordem
dos elementos no enunciado tomado como input. Quando, no entanto, alguma
criança tomava a decisão de usar letras para representar, no papel, algo
correspondente a No domingo, mamãe pintou a unha de vermelho, podia "ler"
posteriormente o que havia "escrito" como Vermelho unha domingo mamãe,
fornecendo, assim, preciosos indícios de uma organização sintática
preferencialmente centrada na relação entre tópicos e comentários.
Refiro-me precisamente a diferenças como essas quando penso na
extrema relevância das pesquisas voltadas para a aquisição da escrita por
deficientes auditivos. Esses trabalhos revestem-se de particular importância
não só em termos de suas implicações pedagógicas e metodológicas, mas
também em termos de suas conseqüências teóricas.
Já ao ler o trabalho de A. Kleiman, percebi-me às voltas, durante todo o
tempo, com o conceito mesmo de letramento e com a questão da possível
delimitação desse conceito. O que quero dizer, na verdade, é que vejo como
muito mais simples (possível? factível?) uma aplicação significativa do conceito
para a compreensão dos usos da escrita e de seus efeitos nos usuários em
sociedades onde a escrita foi ou está sendo recentemente introduzida, pois tal
situação não só define, necessaria e imediatamente, a questão das mudanças
e efeitos sociais produzidos pela introdução da modalidade escrita (por mais
semelhante que ainda se apresente, em relação à fala), como permite um
acompanhamento mais próximo de eventuais mudanças lingüísticas
resultantes da tensão imediatamente instaurada pela nova relação entre
oralidade e escrita.
Lembro-me, a propósito, de dados interessantes apresentados e
discutidos por M. Gnerre, em trabalho que tematiza a questão das modificações
lexicais no sistema lingüístico resultantes da recente introdução da escrita entre
os índios Shuar do oriente do Equador. Os Shuar passaram a escrever sua
língua há umas três décadas, mais ou menos. Segundo Gnerre, podem-se já
encontrar, na língua desses índios, indícios de que o próprio fato de a língua ter
desenvolvido uma modalidade escrita de representação passou a exigir um
refinamento em termos da classe lexical à qual estão associados os itens
relativos às atividades verbais. Uma diferenciação lexical muito mais sofisticada
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

e sutil do que a que se observava na língua quando ainda não era escrita
passou a ser feita após a introdução dessa nova modalidade, com repercussão
tanto na fala como na escrita. Assim, uma diferenciação entre noções como
falar, dizer, responder, argumentar, retrucar, repetir e outras semelhantes,
obviamente vinculadas às atividades com a própria linguagem, parece ter sido
introduzida, na língua Shuar, mais ou menos concomitantemente à prática da
escrita. Este é um exemplo evidente de como o processo de letramento de uma
sociedade ágrafa leva a alterações significativas no próprio componente lexical
da língua dessa sociedade e é um bom exemplo, também, do que acima
afirmei: os efeitos da introdução da escrita mostram-se de maneira mais
transparente quando determinada sociedade começa a escrever a sua própria
língua.
Não obstante tais observações, cumpre deixar claro que o mesmo
problema continua a existir em sociedades complexas como a nossa, em que o
uso da escrita remonta já a alguns séculos. O texto de Kleiman levou-me, pois,
a refletir muito sobre esta questão. Os dados apresentados, assim como a
própria natureza das situações acompanhadas, lembram-nos a todo momento
que, em sociedades complexas, a vida de praticamente todos os indivíduos é
constante e diferentemente atravessada por atividades de escrita e de leitura.
Claro está que, para a maioria das pessoas que não escrevem e/ou não lêem,
esse contato acaba também ocorrendo, grande parte das vezes por vias muito
indiretas. Afinal, mesmo os analfabetos estão em freqüente contato com
pessoas alfabetizadas que, em maior ou menor grau, já manifestam na própria
fala a influência das estruturas e do léxico característicos de situações
particulares de escrita. Como determinar, então, até que ponto esse contato
prévio - que é lícito pressupor tenha existido - deixa ou não suas marcas nas
escolhas lingüísticas dos sujeitos observados?
A questão que vejo como a mais instigante no (e para) o trabalho de
Kleiman é a de saber o que este termo, letramento, inclui ou exclui, em uma
sociedade complexa como a nossa. Como já disse, penso que fica
relativamente mais fácil definir os limites do que se irá constituir em dado
pertinente para uma pesquisa sobre o letramento e seus efeitos
sociolingüísticos, em situações extremas, como aquelas que representam a
passagem de um estágio sem escrita ao estágio subseqüente em que ela
passa a ser utilizada socialmente. Por outro lado, são também
interessantissimas as situações como as contempladas na pesquisa de
Kleiman, em que é necessário pressupor que a vida, a língua e a cultura de
todos os indivíduos já trazem também muitas marcas - diferentes embora! - das
atividades de leitura e de escrita praticadas pela sociedade de um modo geral.
Nesse sentido, como já foi aliás apontado por de Lemos, é importante registrar
que os eventos de escrita que o projeto de Kleiman está tendo a oportunidade
de focalizar e analisar trazem também as marcas, nas próprias opções feitas
pelos sujeitos, da história individual de seu contato com o mundo e com a
linguagem dos indivíduos letrados. Cabe verificar, portanto, como essa história
é contada, de diferentes maneiras e através dos mais variados indícios, nessas
escritas singulares.
Finalmente, ainda sobre o trabalho de Kleiman, gostaria de dizer que os
dados aí privilegiados, tendo em vista o caráter etnográfico de que se reveste
sua coleta, precisam ser abordados a partir de categorias de análise que
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

garantam uma reflexão teórica rigorosa. Nunca é demais lembrar o risco que se
corre, em pesquisas etnográficas, de tomar o relato das situações
acompanhadas e descritas (e elas sempre garantem relatos muito
interessantes!) como sendo a própria análise. Esse é um desafio que todos
precisamos enfrentar, sobretudo aqueles que, como eu, relutam em buscar nos
dados apenas a confirmação (ou refutação) de teorias elaboradas a priori.
Tomar os dados como bons indícios do que se quer ver revelado em termos da
elaboração de uma relação entre a oralidade e a escrita; interpretar os eventos
registrados como algo que documenta, em um certo sentido, a história
individual dessa relação; atribuir um sentido por vezes mais geral ao que
inicialmente parece constituir-se em episódio idiossincrático; aí está, em
essência, a tarefa instigante e trabalhosa reservada àqueles que, como
Kleiman e colegas, dispuserem-se a abrir mão da postura por vezes mais
cômoda de encaixar os dados nos limites, não raro estreitos, das teorias
existentes.
Nos trabalhos de M. L. Mayrink-Sabinson e de R. H. R. Rojo, o que vejo
novamente aparecer, como aspecto de grande interesse para reflexão, é a
questão do evento singular, do episódio pleno de significação a ser descoberta,
do acontecimento particular com uma história a ser contada porque reveladora
dos processos que se busca entender. Mayrink-Sabinson e Rojo nos mostram,
em seus trabalhos, momentos representativos do modo como Lia e Helena,
seus respectivos sujeitos de pesquisa, vão construindo sua relação com a
escrita.
Como todos os trabalhos de aquisição da linguagem, estes trazem,
também, transcrições de episódios dialógicos envolvendo as crianças e os
adultos com quem elas interagem em situações particulares. Sempre que me
vejo diante de transcrições de dados como esses, percebo-me fazendo
algumas inferências sobre os aspectos fônicos - segmentais e prosódicos -
associados aos enunciados transcritos, aspectos esses que eu gostaria de ver
registrados de uma maneira mais fidedigna, dada a sua freqüente relevância
para a compreensão dos aspectos investigados. Aproveito, portanto, esta
excelente oportunidade, para fazer alguns comentários sobre a questão mesma
da adequação das transcrições aos propósitos de trabalhos centrados na
aquisição da linguagem.
Começo por dizer que, se me surpreendo freqüentemente a fazer uma
série de inferências sobre os aspectos fônicos não anotados em transcrições
como as que encontro nesses dois trabalhos, isso se deve, em parte, à minha
formação específica em fonética e fonologia (e também à minha paixão por
esses estudos - por que não assumi-lo...?). Assim, vejo-me sempre às voltas
com perguntas do tipo: Como será que esta criança já organiza o material
segmental (que nós tão tranqüilamente registramos através da ortografia da língua,
por vezes sem nos perguntarmos sobre a enorme distância entre os sons e sua
representação, nessa escrita)? Como será que está usando os recursos
prosódicos da língua, para marcar algumas significações? Que investimento estará
fazendo, por exemplo, em usos particulares da intonação?
De certa forma, é como se eu buscasse sempre uma informação que não
encontro registrada nas transcrições que leio. Por outro lado, devo reconhecer
que, nesses momentos, o meu embate é muito mais com as teorias fonéticas
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

existentes, com os aspectos fônicos que elas costumam privilegiar e, em


conseqüência, com os sistemas de transcrição que nos levam a adotar ao
transcrever os dados. Na verdade, são essas mesmas teorias que, de certa
forma, levam os investigadores a fazer determinados recortes, em termos do
material fônico, e a privilegiar alguns aspectos em detrimento de outros, em
suas transcrições. Esses aspectos nem sempre são os mais reveladores em
termos dos fenômenos que se busca compreender, por exemplo no caso
específico da aquisição da linguagem, situação particular em que os fatos
fônicos mais interessantes para investigação costumam freqüentemente situar-
se na interseção entre o segmental e o prosódico. Portanto, ao mesmo tempo
em que me surpreendo cobrando dos pesquisadores uma transcrição mais
adequada ao que imagino serem os fatos, dou-me conta de que, além daquilo
que, em uma certa medida, já consigo inferir, as transcrições fonéticas
tradicionais não acrescentariam mesmo muita informação a mais...
Os trabalhos de Mayrink-Sabinson e Rojo, nesse sentido, além do grande
interesse dos dados que apresentam, dão-me esta excelente oportunidade
para continuar uma discussão que sempre faço comigo mesma, enquanto
fonóloga, enquanto alguém que está sempre, por dever de ofício, às voltas com
transcrições fonéticas dos mais diversos tipos de enunciados: a discussão
sobre a adequação dos sistemas de transcrição dos sons da fala a diferentes
situações de investigação em que tal registro faz-se necessário.
Foi pensando em situações-limite como as representadas pelos
momentos iniciais da aquisição da representação escrita da linguagem - em
que, por vezes, adquire particular visibilidade a representação da oralidade
com a qual as crianças estão operando em contextos específicos - que percebi
mais claramente as limitações dos sistemas de transcrição fonética dos quais
habitualmente nos servimos como instrumental para registro dos dados fônicos
das línguas naturais. Afinal, situações-limite como a da aquisição da linguagem
(e outras...) parecem apontar, inequivocamente, para o papel estruturante dos
fenômenos prosódicos em termos da relação que com a linguagem
estabelecem os seus sujeitos. Mas, seria de fato possível dispor de uma teoria
fonética que nos fornecesse algum outro sistema de transcrição de sons, que
melhor integrasse os fatos prosódicos e os segmentais? Talvez valha a pena
pensar na hipótese de que tal teoria nunca tenha sido elaborada porque nós,
lingüistas em geral e foneticistas e fonólogos em particular, enquanto
representantes da civilização ocidental, somos todos usuários de um sistema
de escrita de base alfabética, que, ao definir suas unidades básicas para fins
de representação gráfica, privilegiou os segmentos e, ao fazê-lo, acabou por
excluir dramaticamente dessa representação o plano prosódico.
Pergunto-me, por exemplo, se em uma outra cultura em que a escrita não
é alfabética, poderia ter surgido, em condições adequadas, alguma outra teoria
fonética que resultasse naturalmente em um sistema de transcrição que
captasse de forma mais adequada a relação entre os planos segmental e
prosódico, nas línguas naturais. Ou, dito de outra maneira: será que o fato de
não dispormos de tal teoria fonética indica que os próprios foneticistas
representantes de culturas em que as escritas são, por exemplo, ideográficas,
não teriam sido, eles mesmos, influenciados por teorias "ocidentais", mediadas
desde muito tempo por sistemas alfabéticos de escrita?
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Não estou, aqui, fazendo pela primeira vez tais perguntas (embaraçosas,
por sinal...). Talvez eu esteja apenas fazendo minhas, também, no contexto
particular desta discussão sobre a aquisição da representação escrita da
linguagem, as mesmas perplexidades que levaram o lingüista britânico J. R.
Firth, já na década de 50, a afirmar, em Sounds and Prosodies - artigo em que
demonstra enorme sensibilidade para os fatos prosódicos das línguas - que as
nossas teorias fonéticas e fonológicas trazem em si as fortes marcas da
história dos nossos sistemas alfabéticos de escrita.
Essas minhas últimas considerações justificam-se, penso, pela
necessidade que sinto de deixar bem marcada, aqui, a relação que percebo
entre essa discussão, se pensada no plano das próprias teorias lingüísticas, e
a questão que vem permeando todos os textos deste volume, relativa à
constante tensão entre a oralidade e a escrita e à maneira pela qual essas
duas modalidades da linguagem continuamente interagem. Na verdade,
mutatis mutandis, a discussão me parece ser a mesma.
Apesar desse reconhecido desconforto com os sistemas de transcrição
fonética existentes, devo dizer, no entanto, que há algumas situações em que
me sinto bastante à vontade com os sistemas (alfabéticos!) disponíveis para
transcrição fonética, e mesmo com os recursos (freqüentemente icônicos)
utilizados para o registro dos vários movimentos prosódicos. Em trabalhos de
curso, por exemplo, quando solicito a alunos meus que transcrevam dados de
diferentes variedades do português, ou mesmo de algumas línguas indígenas,
tenho geralmente a ilusão (talvez seja este, sim, o melhor termo), de que
consigo imaginar como "soam" os dados transcritos, mesmo antes de ouvir as
fitas, e a partir das transcrições, apenas.
Algumas situações, porém, mostram-me muito claramente os limites dos
sistemas alfabéticos de transcrição fonética. Lembro-me, aqui, de dois
momentos em que eu buscava os sons e não conseguia "ouvi-los", representá-
los de maneira minimamente adequada a partir das transcrições. O primeiro
desses momentos refere-se à transcrição da língua dos índios Pirahã. Entrei
em contacto com dados dessa língua através da tese de mestrado de M.
Filomena S. Sândalo (Aspectos da Língua Pirahã e a Noção de Polifonia), que
orientei juntamente com J. W. Geraldi no IEL/UNICAMP. Apesar das
transcrições cuidadosas, eu não conseguia reconhecer, ali, a língua que ouvia
nas fitas, os longüissimos glides vocálicos significativa e constantemente
modificados por movimentos tonais, a aparente indiferenciação, em alguns
momentos, de pontos precisos de articulação no interior de determinados
"espaços" consonantais... Todo esse "movimento", essa transição articulatória,
característica, aliás, de qualquer língua, apresenta-se aos nossos ouvidos, no
Pirahã, de maneira muito mais dramática, talvez devido aos longos contínuos
vocálicos, interrompidos ocasional e necessariamente por alguns ruídos
consonantais. Em situações como essas, é muito mais evidente a contribuição
da prosódia para a constituição de significações nos vários níveis lingüísticos e
no nível discursivo (ainda que, nas fases iniciais da investigação, tais
significações não sejam nem um pouco evidentes...). Também evidente,
nessas situações, é a insuficiência das nossas transcrições, que, no caso do
Pirahã, reduzem elaboradissimos glides vocálicos a uma mera representação
seqüencial de segmentos vocálicos.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

A segunda situação-limite a que gostaria de fazer referência aqui é a da


tentativa de transcrição da fala de um deficiente auditivo, feita por uma minha
aluna de um curso de pós-graduação. Ao ouvir a fita a que a transcrição fazia
referência, dei-me conta de que o que eu tinha sido capaz de imaginar como
contínuo fônico, a partir apenas dos símbolos utilizados, quase nada tinha a ver
com o que eu posteriormente ouvi, não por falta de prática de transcrição por
parte da aluna, mas por limitações do próprio sistema de transcrição utilizado.
Todas essas minhas longas considerações pretendem simplesmente
justificar o interesse que sempre trago para a análise dos aspectos fônicos
envolvidos em qualquer situação de produção de fala. Por esse motivo, ao ler
os trabalhos de Rojo e Mayrink-Sabinson, perguntei-me o tempo todo sobre
como teriam de fato sido enunciados os turnos dos vários diálogos tomados
para reflexão. Ambas as autoras preocuparam-se em encaixar, nas
transcrições ortográficas dos dados, aqueles aspectos mais salientes da
pronúncia, que por um motivo ou outro acabam por chamar mais a atenção de
quem registra por escrito algum episódio de fala. São momentos em que, de
certa forma, subverte-se o próprio sistema de escrita utilizado, na tentativa de
não perder informações intuitivamente tidas como relevantes para a
compreensão do que será posteriormente analisado. Sempre deixamos de
registrar tantas informações importantes, no entanto, sobretudo no tocante à
prosódia...
A propósito, vale lembrar que não é raro observarmos, em trabalhos
(acadêmicos ou não) sobre alfabetização, tentativas de utilização da escrita
ortográfica do português para representar a pronúncia de crianças falantes de
modalidades socialmente estigmatizadas. Nessas situações, é comum o
transcritor procurar registrar os levantamentos das vogais finais átonas, bem
como segmentos ou inteiras sílabas que "desaparecem" na fala de tais
crianças. Nossa escrita, sem dúvida, presta-se ao registro dessas (e de outras)
variações da pronúncia com relação à suposta norma. O que é
interessantíssimo comentar, no entanto, é o fato de freqüentemente poderem
ser observadas as mesmas variações na fala dos professores; daqueles,
inclusive, que são falantes da modalidade de prestígio. Afinal, determinados
processos fonológicos que modificam ou suprimem segmentos são comuns à
fala de todos, em português, e independem das modalidades em questão!
Verifica-se então que, nesses casos, o sistema de escrita da língua acaba
sendo usado de forma a marcar, com conotação negativa na fala de uns,
aquelas mesmas variações de pronúncia que apaga, na fala de outros... É o
caso de nos perguntarmos se isso não ocorreria pelo fato de já ouvirmos
"ideologicamente" a fala de uns e de outros, a partir dos seus papéis sociais.
Penso que seja esse o caso, de fato, e creio que esse procedimento
aparentemente inconsciente por parte de alguns pesquisadores merece alguma
reflexão.
Voltemos, porém, aos trabalhos de Rojo e de Mayrink-Sabinson, que
deram margem a todas essas minhas reflexões, que espero sejam pertinentes
no contexto desta discussão. No trabalho das duas autoras volta,
insistentemente, uma questão que já mencionei anteriormente e que também
foi focalizada por de Lemos, em seu texto deste volume. Refiro-me à questão
da segmentação, dos recortes feitos pelas crianças no material fônico ou
escrito com o qual estão em contacto durante o processo de aquisição da
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

linguagem oral e escrita. Observando os dados de Lia, por exemplo, sujeito da


pesquisa de Mayrink-Sabinson, parece-me muito evidente, em vários
momentos, que há um constante movimento nas duas direções: da escrita para
recortes fônicos e do fônico para recortes gráficos, na escrita. Assim, se
determinado elemento fônico (segmental ou prosódico) adquire para ela uma
saliência particular, recortes particulares que faz nos elementos gráficos
escolhidos para compor sua escrita podem acabar revelando uma "inspiração"
fônica, digamos assim. Por outro lado, se algum aspecto gráfico ou a escolha
de letras, particularmente na escrita dos adultos, chama sua atenção, ela dá
mostras de que, a partir desses elementos salientes da escrita, passa a operar
sobre o material fônico, parecendo recortá-lo e reinterpretá-lo, atribuindo novas
significações a segmentos ou porções da fala a partir de uma "inspiração"
gráfica.
Penso, portanto, que por vezes é suficiente a observação curiosa de um
conjunto de dados como os da Lia, representativos de um momento particular
de seu processo de aquisição da escrita, para que nos demos conta de quão
inadequado (e talvez inútil!) seria tentar entender os vários contornos que vai
adquirindo a escrita da criança, a partir, exclusivamente, da fala ou da própria
escrita. Creio que não há esperança de resultados teoricamente significativos
para pesquisas que coloquem questão de tal complexidade em termos tão
simplistas.
Também o trabalho de Rojo ajuda-me a enfatizar a necessidade de
buscarmos compreender os procedimentos através dos quais as crianças,
durante a aquisição da linguagem, recortam continuamente alguns elementos
salientes, seja de forma, seja de conteúdo, em vários níveis de organização.
Nos dados apresentados e discutidos por Rojo, pode-se perceber que, embora
ela não se tenha proposto investigar a questão a partir desse aspecto
específico dos recortes, é possível abordar a questão sob esse ângulo. Assim,
a partir da consideração de eventos narrativos orais tomados como um todo,
identificam-se momentos particulares nos diálogos adulto/criança, ao longo das
seqüências dos turnos, que podem ser interpretados como episódios
particulares de um jogo de nomear, a partir do qual a criança vai recortando e
delineando elementos constitutivos da narrativa. No caso específico dos dados
considerados, refiro-me às personagens. Creio, no entanto, que procedimentos
de segmentação semelhantes podem ser utilizados pelas crianças na
elaboração de outros elementos das narrativas e de outros gêneros
discursivos. Entendo, pois, que a noção de recorte a partir de algo que se
apresenta inicialmente como contínuo, não deve ser entendida como aplicável
apenas a um material fônico ou gráfico. O que nos mostram exemplarmente os
dados de Rojo é um outro tipo de recorte: a criança, a partir de eventos
narrativos a ela apresentados através de episódios de leitura, por exemplo,
identifica e recorta elementos constitutivos desse tipo de texto que
posteriormente re-articula com base em seu próprio "projeto de narrativa".
Acredito, portanto, que a hipótese de pesquisa segundo a qual a criança
está sempre às voltas com procedimentos de recorte de algo que em um
primeiro momento se lhe apresenta como integrado, completo e previamente
articulado pelo outro, é muito produtiva para a organização de uma série de
observações que vários de nós, interessados no processo de aquisição da
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

linguagem, já vimos fazendo há algum tempo, em nossos trabalhos e


pesquisas.
Quer-me parecer que muitas das considerações até aqui feitas delimitam,
necessariamente, uma outra questão, referente à maneira mesma como vimos
abordando a questão da relação oralidade/escrita, nessas e em outras
pesquisas. Dos muitos trabalhos já lidos que focalizam essa relação, concluo
que a grande maioria tem procurado caracterizar as estruturas da oralidade a
partir das estruturas da escrita, pois somente a partir de tal pressuposto podem
ser apontadas como "tendências" da oralidade a menor ocorrência de
estruturas subordinadas, de voz passiva, de nominalizações, etc.
Tentando colocar o problema em outros termos, o que quero dizer é que,
para entender a maneira como funcionam na linguagem oral os elementos
pronominais, por exemplo, é necessário pensar imediatamente em um outro
tipo de relação que aí se estabelece entre linguagem, contexto de enunciação
e interlocutores, pois é exatamente essa relação de natureza bem diferente da
estabelecida pela escrita que vai licenciar, por assim dizer, o uso de pronomes.
Da mesma forma, é essa mesma natureza diferente - de uma relação que
sabemos constitutiva da própria linguagem! - que pode nos ajudar a entender
os fatores, muitas vezes discursivos ou mesmo pragmáticos, que nos levam a
nominalizar, passivizar, coordenar, subordinar, enfim, as estruturas lingüísticas,
quando falamos ou quando escrevemos. Partir, portanto, da própria natureza
da relação entre o lingüístico, o discursivo e o pragmático parece-me via muito
mais indicada para um melhor conhecimento das opções que, em última
análise, caracterizam a forma que assume a linguagem em suas modalidades
oral e escrita. Trata-se, mais uma vez, creio eu, de privilegiar o processo e não
o produto como lugar inicial de investigação, para que se possam vislumbrar as
questões mais relevantes a servirem de quadro de referências conceituais no
âmbito das quais devem ser feitas quaisquer outras perguntas específicas
sobre os dados. É necessário, em suma, mudar o olhar que vimos lançando,
até o momento, sobre a relação oralidade/escrita. Há que formular,
urgentemente, as perguntas prévias...
É hora de passarmos ao texto de Nascimento. Meu contacto inicial com
as pesquisas sobre aquisição da escrita desenvolvidas por pesquisadores da
UFMG deu-se em 1989, em reunião da Associação Brasileira de Lingüística,
realizada na UFRJ, quando o próprio Nascimento apresentou o trabalho que
hoje mencionou aqui. Da participação de Nascimento neste volume, quero,
desde logo, resgatar uma noção várias vezes utilizada por ele para fazer
referência a diferentes momentos das pesquisas do grupo que representa: a
noção de movimento.
Assim, sua preocupação ao referir-se ao texto de 1989 foi sobretudo a de
marcar o fato de que as suas pesquisas e as dos colegas têm manifestado a
constante preocupação em definir como provisórios os resultados obtidos em
cada etapa. Essa consciência da provisoriedade é decorrente de uma saudável
postura de indagação constante frente aos dados, ou, dizendo de uma outra
maneira, de permanente insatisfação com as categorias e conceitos que a
própria teoria lingüística coloca previamente à nossa disposição para uma
abordagem preliminar dos fenômenos a serem investigados.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Digo que tal atitude por parte desses investigadores — aqui explicitada e
assumida por Nascimento — é academicamente salutar porque o que ela
traduz, na verdade, é que não há certezas preliminares ou adesões irrestritas e
acríticas a determinadas teorias. Algumas dessas teorias, por outro lado, são
utilizadas, nessas pesquisas, de forma a possibilitar uma reflexão sempre
produtiva sobre os dados, dado o seu potencial heurístico.
Vamos tentar retomar, então, o real significado, para as nossas
discussões, de algumas das considerações feitas por Nascimento sobre os
rumos das pesquisas que ele aqui relatou. Comecemos pela sua crítica voltada
para um olhar que por vezes lançamos sobre os dados a partir, já, de unidades
lingüísticas pré-estabelecidas e de categorias e relações com as quais
habituamo-nos a trabalhar em nossas análises lingüísticas e que costumamos
ingenuamente supor que, de fato, estão por trás da relação som/letra conforme
estabelecida pela criança.
É evidente que, do ponto de vista do próprio sistema de representação
(de base alfabética), há uma relação entre a unidade mínima utilizada na
escrita — a letra — e um elemento fonológico por ela representado, o fonema,
entidade lingüística abstrata menor do que uma outra entidade, a sílaba.
Qualquer lingüista tem a obrigação de identificar tais elementos e as relações
entre eles, dada a linguagem oral e sua representação escrita de base
alfabética. Foi essa exatamente a informação tomada como pressuposto
relevante pelos pesquisadores desse grupo e, em um momento inicial da
pesquisa, determinante do modo como passaram a olhar, categorizar,
quantificar e interpretar os milhares de dados do seu corpus. No entanto, esse
pressuposto inicial - a natureza da relação letra/som - , levado para os dados
como uma informação que pudesse iluminar o processo mesmo de aquisição
da escrita, acaba rejeitado pelos pesquisadores como hipótese sobre a relação
inicial estabelecida pela criança que já percebe a base fonográfica da escrita.
Após tentativas iniciais (reconhecidas como mal-sucedidas) de elaborar
material de alfabetização baseado em uma seqüência de dificuldades no uso
das letras aparentemente justificada pelo corpus, eles logo percebem que não
é exatamente a relação som/letra que parece perturbar a criança em várias das
suas tentativas de escrever fonograficamente. Isso porque não parece tão
evidente assim que a criança já tenha resolvido um problema prévio, a saber, o
da sintaxe da própria sílaba, unidade de outro domínio fonológico, que deve
necessariamente analisar em constituintes para decidir sobre a quantidade e a
ordem das letras com que passa a escrever. Assim, o grupo rejeita a proposta
inicial de elaboração de um material que, conforme o projeto inicial, deveria
combinar os resultados da análise quantitativa dos erros das crianças com o
pressuposto de Lemle segundo o qual devem ser elaborados textos para os
alunos em fase de alfabetização em que aparecem, em um primeiro momento,
apenas determinadas vogais e consoantes (escolhidas a partir de critérios de
"facilidade" maior de percepção da relação som/letra, critérios estes baseados
no pressuposto de que algumas letras representam uma relação fonológica
mais transparente). Mas o que me parece mais importante ressaltar, a esse
respeito, é um dos motivos que levaram essas pesquisas por caminhos mais
interessantes. O que ficou logo claro para os pesquisadores da UFMG é que
eles deveriam também incluir, como varíavel a ser investigada, a própria
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

estrutura silábica, ausente dos primeiros trabalhos preocupados apenas com a


relação segmento/letra.
É claro que o que levou a esse movimento na direção da sílaba foi a
sensibilidade dos pesquisadores para perceber, nos dados das muitas crianças
do projeto, que o momento inicial da alfabetização coloca o falante
necessariamente às voltas não simplesmente com sílabas, mas com a sua
estrutura interna, vale dizer: com os seus constituintes e as relações
hierárquicas entre eles estabelecidas.
Já sabemos, a partir da observação do comportamento lingüístico de
falantes de diferentes culturas - crianças ou adultos -, que, em alguns contextos
específicos de uso da linguagem, a maneira de pronunciar os enunciados pode
tornar particularmente salientes as sílabas. Recortar os enunciados em termos
de sílabas é um recurso freqüentemente explorado em jogos de linguagem,
brincadeiras infantis, e em determinados contextos discursivos em que se
busca enfatizar algo. Quem não se lembra, por exemplo, de brincadeiras em
que uma certa criança, escolhida para executar determinada tarefa, acabava
indicada pela sílaba final de um enunciado segmentado como mi-nha-mãe-
man-dou-di-zer-pra-eu-ti-rar-es-si-da-qui!? (se a nossa memória nos ajuda,
neste momento, talvez nos lembremos até de como manipulávamos, por vezes,
o enunciado, de forma a mudar um pouco a própria segmentação silábica para
que a escolha recaísse sobre quem queríamos...). Vários trabalhos voltados
para a percepção dos sons têm sugerido ser mais natural os falantes operarem
com as sílabas, e não com segmentos fônicos menores, em reais situações de
uso da linguagem (o que não implica, evidentemente, que eles não possam
operar com os segmentos, já que também demonstram fazê-lo, mais
freqüentemente - embora não exclusivamente! - em situações experimentais).
Do fato de que as crianças operam naturalmente com as sílabas não
decorre necessariamente, no entanto, que elas já analisam as sílabas em seus
constituintes menores quando começam a alfabetizar-se. Esse pressuposto
equivocado tem impedido, a meu ver, que se perceba o próprio trabalho de
análise da sílaba, que a criança passa necessariamente a fazer quando entra
em contato com a escrita de base alfabética, já que tal análise é condição para
o aprendizado do modo de funcionamento desse sistema de representação.
Nunca é demais repetir, creio, que é em grande medida a partir dessa análise
que a criança decidirá quantas letras usará para escrever cada sílaba, e em
que seqüência as ordenará.
O que as pesquisas relatadas por Nascimento têm confirmado são as
muitas observações já feitas por outros pesquisadores, a partir de dados
menos controlados, de que quando as crianças começam a ver estrutura nas
sílabas elas inicialmente analisam essas unidades em termos de dois
constituintes, apenas: CV (o que corresponde à chamada sílaba canônica,
encontrada em todas as línguas naturais). Os fortes indícios de que é essa a
análise mais facilmente feita vêm da freqüência extraordinariamente maior dos
acertos na grafia de sílabas que representam, como realizações da estrutura
silábica virtual mais complexa da língua portuguesa, apenas o preenchimento
do núcleo vocálico e da posição inicial consonantal de um onset não-
ramificado. Parece, assim, que as crianças, nesse momento, identificam a
parte mais substantiva (pois definidora!) da sílaba, que é o seu núcleo vocálico,
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

e também algum elemento que "modifica" esse núcleo, o som consonantal que
o precede. A partir dessa importante descoberta, passam a dispor de duas
posições silábicas que podem ser preenchidas com letras para representar as
vogais e as consoantes.
Essas considerações já me parecem suficientes para entendermos a
natureza do problema enfrentado por numerosas crianças em seu trabalho de
análise das estruturas silábicas para fins de escrita. Todos nós já encontramos
indícios, em nossos dados da escrita inicial, que sugerem uma certa dificuldade
na grafia de sílabas ditas "complexas". Essas sílabas são, na verdade, aquelas
que apresentam um onset ramificado, ou seja, as que apresentam dois sons
consonantais em posição pré-nuclear, e que são comumente representadas
como CCV. As crianças freqüentemente omitem a segunda consoante ou
colocam-na imediatamente após a vogal do núcleo. Que conclusão tirar desses
dados, já registrados em praticamente todas as pesquisas sobre as primeiras
manifestações de escrita alfabética? Ora, o que eles parecem indicar é que as
crianças, quando passam a admitir mais uma posição estrutural na análise que
vêm fazendo dos constituintes silábicos, não estão simplesmente trocando a
letra de lugar, já que são exatamente esses lugares ou posições estruturais
que elas estão delimitando, em sua análise! Se os lugares não estão ainda
estabelecidos, que sentido teria falarmos de troca, nessas circunstâncias?
É perfeitamente possível sustentar, acredito, com base em estudos sobre
percepção de sons, que as crianças em fase de aquisição da linguagem
demonstram capacidade para diferenciar holisticamente um "som" de outro
"som" (e o termo não é aqui usado no sentido de segmento), sem
necessariamente analisá-lo em constituintes menores. Assim, é razoável supor
que as crianças percebam como diferentes, na fala, coisas como fraco e farco,
o que não garante absolutamente que elas, ao tentarem escrever fraco,
produzam FRACO e não FARCO... Mais uma vez, perceber a diferença fônica
não implica necessariamente analisar uma unidade hierarquicamente mais
complexa do que o segmento, como a sílaba, em seus constituintes menores, e
ordená-los segundo uma seqüência pré-estabelecida... Esse momento de
análise da sílaba em estruturas mais complexas do que CV é um momento
muito importante, freqüentemente ignorado tanto pelos pesquisadores como
pelos professores, que costumam ver nas escritas como FARCO (por FRACO),
PIRMO (por PRIMO) e tantas outras, apenas casos de "troca de lugar das
letras".
Perceber, portanto, que é necessário introduzir nas pesquisas a questão
da maneira como as crianças vêm lidando, em suas escritas iniciais, com as
próprias estruturas silábicas, foi um movimento a meu ver muito significativo
nos trabalhos do grupo aqui representado por Nascimento, pois é esse
movimento que vem permitir uma redefinição, no âmbito desse projeto, das
próprias categorias de análise inicialmente tomadas como relevantes para
análise dos dados.
A análise da sílaba que anunciei nas considerações feitas nos parágrafos
precedentes não é ainda colocada nesses mesmos termos, nos trabalhos do
projeto da UFMG, que, pelo texto de Nascimento, apenas reconhecem a
necessidade de levar em conta a questão da estrutura silábica na análise dos
dados. Mas afirmo a grande importância desse movimento da pesquisa na
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

direção da sílaba, porque esse passo abre perspectivas para uma discussão
interessantissima, fundada nos pressupostos teóricos dos modelos fonológicos
não-lineares. Esses modelos atribuem à silaba um nível autônomo nas
representações fonológicas, o que permite que tal unidade possa ser tomada
como estruturante, em seu nível hierarquicamente superior, das seqüências de
segmentos a ela vinculados. Poder entender a sílaba como um domínio
específico no componente fonológico do português, a partir da sua posição nas
representações hierarquicamente organizadas, é, em última análise, dispor de
um quadro teórico de referências que nos possibilita explicar, ao mesmo
tempo, tanto a análise que os dados da escrita inicial indicam que as crianças
fazem das estruturas silábicas, como as próprias soluções escritas que
oferecem para os diferentes tipos de sílaba da língua.
Além da ênfase, justamente colocada por Nascimento, na questão da
sílaba, ao mencionar os movimentos observados nas pesquisas desenvolvidas
no âmbito do projeto da UFMG, ele nos falou também dos novos rumos que a
reflexão vem tomando por parte do grupo de pesquisadores. Ficou evidente,
em seu texto, que, além de um número significativamente maior de pesquisas
em desenvolvimento, há uma maior clareza com relação aos próprios
pressupostos da investigação e às questões teóricas envolvidas, que estão a
exigir a consideração das teorias fonológicas mais atuais.
Ainda ao ler Nascimento, dei-me conta de outra questão sobre a qual
todos nós, ao trabalharmos com dados representativos do processo de
aquisição da escrita, devemos refletir, antes de fazer qualquer opção teórico-
metodológica. Refiro-me ao problema de se trabalhar ou não com um grande
número de dados, escolha que implica a realização ou não de análises
quantitativas dos nossos corpora. Tentando traduzir a questão em termos mais
óbvios: que informações relevantes para a compreensão do processo poderiam
ficar escondidas nos dados quantitativos e ser eventualmente reveladas por
análises mais centradas em casos, em episódios, em eventos singulares por
vezes ricos de valiosos indícios do processo que se busca entender? É claro
que a questão pode ser formulada também ao contrário: o que os estudos de
dados episódicos não conseguem ver, sobre o processo de aquisição? Penso
que as duas posturas devem ser, em certa medida, complementares. Se, por
um lado, as macro-análises, quando bem feitas, costumam sempre fornecer
boas informações sobre tendências gerais (no nosso caso específico, do
comportamento das crianças no momento inicial de uso alfabético da escrita do
português), por outro, as micro-análises resgatam preciosas informações para
a elaboração de hipóteses por vezes mais gerais, a serem eventualmente
confirmadas (ou desconfirmadas) por análises fundadas na quantificação. Em
suma, há análises boas e há análises ruins e isso independe da opção pela
quantificação ou pela abordagem casual de dados. Mais importante do que
essa opção metodológica, que nos é facultada pelas próprias teorias, é
aprendermos a olhar para os nossos dados com boas perguntas; é a nossa
postura de constante insatisfação frente aos resultados provisórios obtidos; é a
nossa disponibilidade para questionar, a todo momento, as nossas hipóteses
iniciais, que devemos querer reformular sempre que os dados sugerirem que
há outras mais interessantes, do ponto de vista explicativo...
Finalmente, concluo estas minhas observações, que sei parciais, dizendo
que o que procurei fazer aqui foi articular, da maneira mais coerente possível,
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

algumas das minhas próprias preocupações sobre o tema da aquisição da


representação escrita da linguagem e sobre a complexa relação entre oralidade
e escrita. Minhas escolhas basearam-se nos aspectos de cada um dos
trabalhos que adquiriram, para mim, alguma saliência particular, em função das
questões sobre as quais há algum tempo me venho debruçando. Mediadas,
portanto, pelo meu próprio olhar já dirigido, de certa forma, para alguns
aspectos dos dados, essas escolhas nem de longe esgotam as questões
interessantíssimas que todos os trabalhos que aqui figuram oferecem para a
nossa reflexão.
Este exercício de discussão foi para mim valiosíssimo. Ele veio reforçar a
minha crença de que os lingüistas, chamados cada vez mais a participar dos
debates sobre a aquisição da escrita e alfabetização, devem continuamente
refletir sobre o real significado dos dados da aquisição da linguagem oral e
escrita para as próprias teorias lingüísticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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