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ÍNDICE
Apresentação 3
Roxane Helena Rodrigues Rojo (LAEL/PUC-SP)
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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
APRESENTAÇÃO* *
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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
e outras tantas tenham emergido, não creio que tenham mudado radicalmente
os pressupostos ou os enfoques aqui representados.
E a pluralidade de designação do fenômeno, presente no título e nos
textos deste volume, parece-nos bastante representativa destes enfoques e
pressupostos. Termos como alfabetização, aquisição da escrita; (sócio-)
construção da escrita, letramento, em minha opinião, mais do que diretamente
reveladores de pressupostos teóricos, muitas vezes, nestes textos, são índices
das teorias com as quais, de uma maneira ou de outra, os autores estão ou
estiveram dialogando em suas investigações.
Mas - atenção -, diálogo não quer dizer unicamente acordo, isto é, adoção
de pressupostos semelhantes; muitas vezes, na comunicação cotidiana como
nos textos aqui presentes, diálogo quer dizer debate, confronto de opiniões e
posições divergentes.
O termo aquisição de escrita, assim como aquisição de linguagem,
adotado neste volume por muitos autores (de Lemos, Abaurre, Mayrink-
Sabinson, Nascimento), é um exemplo excelente desta dupla direção da
dialogia. Cunhado quando das pesquisas iniciais da Psicolingüística
chomskiana sobre os fenômenos da entrada da criança na linguagem, o termo
aquisição guarda em si a significação dos pressupostos inatistas da pesquisa
chomskiana: "adquire" algo aquele que tem um valor a trocar pelo bem
"adquirido". Assim, na postura chomskiana a partir da qual se desenvolveram
os primeiros trabalhos ditos psicolingüísticos sobre a "aquisição" de linguagem,
no início da década de 70, a criança era vista como dotada de um valor - as
capacidades inatas universais para a linguagem - que lhe permitia, em contato
com a linguagem em circulação (input), "adquirir" suas estruturas e regras.
Assim, o termo "aquisição" guarda em si uma significação inatista, com a qual
certos trabalhos aqui presentes estão, de uma ou de outra maneira, em
diálogo. É justamente índice deste diálogo a adoção do termo aquisição de
escrita.
O trabalho de de Lemos é exemplar neste sentido. Pesquisadora da
"aquisição de linguagem", desde seus trabalhos iniciais, de Lemos coloca-se
em permanente confronto com as teorias de base biológica e, em particular,
com as pesquisas de base chomskiana. Neste caso, o termo "aquisição" é uma
"arena" comum onde significados se confrontam: a base social, interativa, da
construção da linguagem, defendida por de Lemos, e a base biológica, inata,
proposta pelos pesquisadores em "aquisição". Os construtos teóricos e
interpretativos de de Lemos têm mudado e se sofisticado bastante no curso de
sua história exemplar de pesquisa, e, por isso mesmo, seu embate com as
teorias associais da linguagem tem se fortalecido. Da mesma maneira, a
presença do termo "aquisição" nos trabalhos de Abaurre e Nascimento pode
ser tomado como índice de seu permanente diálogo com as teorias e
descrições fonológicas e sintáticas da língua, presentes nos trabalhos
chomskianos.
Outros autores deste volume (Nascimento, Cagliari, Abaurre, Kleiman),
preferem, por vezes, o termo alfabetização , o que indica, como interlocutor
privilegiado no uso deste termo, o alfabetizador. Os quatro trabalhos têm em
comum uma interlocução permanente, e já histórica, nos textos e nas
assessorias, com os profissionais ativos da educação no ensino básico.
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esses sinais que, para nós, apresentam-se como transparentes. Ou ainda, não
podemos mais recuperar a opacidade com que esses sinais antes se
apresentavam também para nós.
Talvez seja o caráter irreversível dessa operação que atinge nossa
própria percepção que nos leve, portanto, a supor que a escrita é transparente
para aqueles que não sabem ler. Ou melhor, a supor que ela se torne
transparente pela simples apresentação ou exposição de relações entre letras
e sons, quer sob a forma de sílabas, quer sob a forma de palavras, quer sob a
forma de textos ou do que se supõe que umas e outros "querem dizer".
O que acabo de dizer parece contrapor-se ao que Emília Ferreiro e
Teberosky (1979 e outros) tiveram o mérito de mostrar, isto é, que a criança já
sabe sobre a escrita antes mesmo da alfabetização e que o reconhecimento
desse saber deve orientar as práticas escolares. Na verdade, penso que é a
pressuposição de transparência da escrita que explica pelo menos parte das
dificuldades do alfabetizado-professor em atribuir algum saber sobre a escrita
ao alfabetizando. Ao projetar sobre o alfabetizando sua própria relação com a
escrita, o alfabetizado fica impedido de "ler" os sinais - orais ou gráficos - em
que o primeiro deixa entrever um momento particular de sua particular relação
com a escrita.
Se isso faz algum sentido, qualquer metodologia deve começar por ser
uma interrogação sobre o que é aprender, o que é ensinar e o que aprender
tem a ver com o ensinar, quando está em jogo essa transformação pelo
simbólico.
É a partir dessa reflexão que me arrisco a propor uma metodologia do
mistério, isto é, a suspensão da transparência como estratégia que torne
possível a formulação de questões. Não é demais lembrar que a suspensão
da transparência ou da "naturalidade" está na origem da indagação científica.
Como suspender a transparência, depois de tê-la declarado processo
irreversível? A resposta a essa pergunta está em deslocar esse efeito de
transparência de seu lugar de "evidência fundante", para usar uma expressão
de Pêcheux (1988) e submetê-lo ao mesmo tipo de indagação a que foi
submetida a relação entre significante e significado por filósofos e lingüistas
(ver, a propósito, Lahud, 1977).
Todas as pesquisas reunidas neste volume, de uma maneira ou de
outra, remetem a essa indagação sobre como algo se torna outro ou passa a
se apresentar como outro à percepção e à interpretação, transformando assim
o sujeito em alguém que "lê", isto é, que vê o que não estava lá.
Além de não se apresentar por si próprio, não há, com efeito, nada no
que se apresenta como escrita que aponte para a oralidade que ela passa a
"representar" para o alfabetizado. Em seu texto, Cagliari soube mostrar de
forma eficaz, colocando-nos diante de exemplares de um sistema de escrita
não alfabético, como sua opacidade de "coisa" resiste a tentativas de decifrá-
los, mesmo quando se sabe a que correspondem oralmente, mesmo quando
se conhece sua tradução em português, seu significado.
Já os trabalhos de Mayrink-Sabinson e Rojo mostram que as práticas
discursivas orais em torno de objetos-portadores de textos estão na origem das
relações que se estabelecem entre a criança e o texto. Através dessas práticas
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Para uma crítica mais alentada e profunda da concepção da escrita como representação da
oralidade, ver Mota (1995).
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Para uma discussão mais geral sobre os pressupostos do ensino-aprendizagem que
qualificam a aquisição da linguagem oral como "natural", ver de Lemos (1991).
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Refiro o termo "acontecimento" ao sentido que lhe dá Pêcheux (1990), lembrando ainda
que, através dele, recupero e reformulo o que afirmei em trabalho anterior (1982: 136), isto
é, que a "linguagem [é um] objeto que se refaz a cada instância de seu uso".
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Uma exposição mais detalhada desta proposta no que diz respeito à aquisição da
linguagem oral encontra-se em de Lemos, 1992.
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Para o estatuto metodológico do erro na Aquisição de Linguagem, ver os trabalhos de
Figueira em geral e, particularmente, o capítulo da coletânea sobre Questões
Metodológicas, organizada por Pereira de Castro. Para a discussão das conseqüências
teóricas da interpretação do erro como sintoma de construção, ver a tese de doutorado de
Carvalho (1995).
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No artigo acima citado (de Lemos, 1992) trato esses dois tipos de relações como processos
metafóricos e metonímicos, apoiando-me em Jakobson (1963). Para uma análise e
discussão desses processos e, particularmente, dos processos metonímicos no monólogo
da criança no berço, ver Lier-de-Vitto (1994).
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Saussure deu estatuto teórico. Ao definir esses eixos como "duas esferas
distintas", mas interdependentes, em que "as relações e as diferenças entre
termos lingüísticos se desenvolvem" (Saussure, 1916/1987: 142), é que ele se
deu conta da necessidade de reconhecer tanto o que faz do "mecanismo da
língua [...] uma limitação do arbitrário"(op. cit.: 154) quanto "o jogo desse duplo
sistema no discurso" (op. cit.: 150)9.
No que concerne à aquisição de linguagem, isto é, à relação da criança
com a língua, o que limitaria a arbitrariedade vista do ângulo da relação entre
significantes? Ou o que impediria que se pensasse esse movimento como
aleatório? Para refletir sobre isso, é preciso voltar aos episódios acima e fazer
notar que, ainda que os "erros" e os enunciados insólitos de Mariana impeçam
que a eles se atribua significado quer lexical quer sentencial, sua relação com a
"situação" discursiva, o que inclui a fala da mãe, faz sentido. Não quero dizer
com isso que eles "representam" essa situação e, sim, que essa situação, o
que inclui a posição da criança nela, está inscrita neles; é por eles evocada.
Enfim, os fragmentos da fala do adulto que retornam na fala da criança
e que se cruzam entre si, são aqueles onde se deu essa inscrição. É por isso
mesmo que o que retorna é imprevisível e tem oposto resistência às tentativas
de colocar a fala da criança em estágios. É por isso que, ainda que não seja
aleatório, esse movimento - retorno e cruzamento - deixa marcas singulares na
fala da criança10.
Em que medida essa minha interpretação da aquisição da linguagem
oral abre possibilidades para se dar ao outro - interlocutor da criança - um lugar
que não seja nem o de transmissão, nem o de mera facilitação do processo?
Poder-se-ia argumentar que, nesse quadro, o adulto não passa de
provedor de falas ou textos que circularão fragmentados na fala da criança, o
que não o distinguiria suficientemente do provedor de "input" dos modelos
tradicionais de aquisição.
Para responder a essa possível objeção, basta lembrar que a fala do
adulto não retorna na da criança como produto de uma análise em constituintes
fonológicos, morfológicos ou sintáticos. Ela retorna como um fragmento em que
está de alguma forma inscrita a relação instaurada pelo adulto na situação
discursiva em que a criança foi interpretada. Cabe dizer ainda que essa
interpretação não tem origem no adulto mas no discurso em que ele próprio,
submetido ao funcionamento lingüístico-discursivo, é significado. A Análise de
Discurso da linha francesa e a Psicanálise são os espaços de teorização que
permitiriam desenvolver esse e outros aspectos dos processos de identificação
envolvidos nesse funcionamento.
Por outro lado, as primeiras relações entre fragmentos se dão no
diálogo, como efeito lingüístico-discursivo da fala do adulto na fala da criança,
efeito de linguagem sobre linguagem. As primeiras substituições que ocorrem
na fala de Mariana são operações sobre a fala da mãe 11, como mostra o
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Em meu trabalho sobre "Língua e discurso na teorização sobre aquisição de linguagem" (a
sair), tento interpretar essa tensão entre eixo sintagmático e paradigmático como lugar em
que Sassure rediscute a dicotomia língua versus fala.
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Sobre dados de singularidade na aquisição da escrita, ver Abaurre (1991).
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Em sua tese de mestrado, Maldonado (1995) mostra que erros como dómo por "durmo",
que incidem sobre verbos com alternância vocálica do português, resultam da colocação de
flexão na forma - no caso, "dorme" - que ocorre no turno precedente da mãe.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Milton do Nascimento
UFMG/CEALE
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Estes dados estão à disposição do público, com fichas por temas e por cruzamento de
temas.
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etc. Neste mesmo tipo (A) estariam, portanto, todos os fatores que pudessem
situar-nos quanto a um aspecto mais material ou sensorial ou psico-motor da
escrita e também quanto à compreensão daquilo que a escrita é.
No tipo (B), inicia-se os tipos de relações que estamos querendo
categorizar, que envolvem realmente conhecimento fonológico. Não vou
comentar todos os tipos, mas, apenas, como exemplo, o tipo (B) - violação de
convenções invariantes do código escrito, no que se refere às relações entre
fonemas e grafemas. A palavra importante aí é invariantes. Veja-se que, se
realmente o aluno percebe que há relação entre os dois sistemas que ele está
relacionando através da escrita, ele deve perceber - e vimos que isto é verdade
- que há relações diferentes. Estamos, então, tentando separar, nas suas
características, estas relações, para, depois, verificarmos - como verificamos -
que, nos textos mais avançados, por exemplo, este tipo (B) já está resolvido.
Nos textos de alunos que já estejam mais avançados ainda no processo, o tipo
(C) já está resolvido. E assim por diante. Os últimos a se resolverem são
aqueles da letra (H).
Compare-se, por exemplo, com (C): violação da representação gráfica
oficial de um fonema devido às relações opacas que se estabelecem entre este
fonema e seus alofones. Podemos ver que, na classe (B) e em suas várias
fontes, são relações que poderíamos, levando em conta a direção do
processamento (se é na direção da escrita ou se é na direção da leitura), dizer
que as relações em (B) são todas regulares. Ou seja, o aluno pode trabalhá-las
em termos de depreensão de generalidade, de regras. Já as relações em (C),
não. Entenda-se opacas aí - nesta relação: de um lado fonema, de outro
grafema - como efeito de um processo fonológico que esconde o
realcionamento dos dois sistemas. Por exemplo, em (B)7: relações opacas
oriundas da fala não padrão. Na fala do aluno, o infinitivo é /le-va/, /fa-ze/, /a-
ma/. Na ortografia, tenho a marcação do infinitivo com -r. Esta seria uma fonte
de „erro“ - o fato de, na fala padrão, o infinitivo se realizar desta maneira - que
é também uma fonte de opacidade, pois o aluno teria de fazer correspondência
com algo que não fala, para transcrever da maneira que o dialeto culto
realizaria fonicamente.
Note-se que, no tipo (D) - violação da representação gráfica de
seqüências de palavras -, colocamos uma coisa normalmente encarada como
inicial no processo de alfabetização. Isto é porque estamos olhando do ângulo
da criança. Apesar de, aparentemente, muitas vezes, no comecinho, ela já
estar segmentando, este é um trabalho de elaboração mais complexo, pois já
supõe uma análise mais global dos dois sistemas. Repare-se que o aprendiz
tem de partir de uma noção de unidade no âmbito da fala e realizar outro tipo
de unidade na escrita. Por isso, figuram aí dois tipos de fontes (unidades).
No tipo (E) - violação das regras gramaticais utilizadas na escrita -, o que
se vê é que, apesar de estarmos numa perspectiva onde o que interessa são
relações entre o sistema ortográfico e fonológico, temos de considerar também
a morfo-sintaxe. A fonologia não é o único elemento determinante da ortografia.
O tipo de „erro“ em (F) - violação das formas dicionarizadas -, em relação
a (B), representa outro tipo de aprendizagem, dentro daquela perspectiva de
se tomar aprendizagem como processo complexo. No caso de (B), a criança
pode chegar a operar com regras. Em (F), não há como falar de regras. Saber
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No grupo de Minas Gerais, a Profª Magda Soares já está levando a efeito este tipo de
pesquisa.
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Para se ler um texto escrito é preciso, antes de tudo, saber decifrar o que
está escrito. No mundo, ainda há vários sistemas de escrita que ainda não
foram decifrados (disco de Faistos, linear A, Maia, escrita de Mohenjo-Daro, da
Ilha de Páscoa, etc. (Jensen, 1970; Cagliari, 1987)). Ao tentarem uma
decifração, os cientistas começam a fazer hipóteses sobre o sistema,
procurando qualquer evidência que os ajude a ir, aos poucos, descobrindo tudo
o que precisam saber para ler este sistema de escrita. Esse foi o trabalho
realizado por muitos sábios que, nos últimos duzentos anos, decifraram muitos
sistemas antigos de escrita, como o egípcio, o cuneiforme, o linear B, etc.
(Doblhofer, 1962).
Uma pessoa qualquer que vive no meio urbano, mesmo sendo uma
criança, logo percebe que a escrita é uma realidade do mundo em que vive. Ao
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Meu objetivo, neste texto, é discutir fatos e não teorias. Sinto-me, portanto, à vontade para
dizer o que penso. Mas sei, também, que não existe análise sem teoria por trás, definindo o
ângulo pelo qual se comenta os fenômenos. Neste caso, há toda uma orientação lingüística
de minha formação.
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Uma vez que pretendo, apenas, comentar certos fatos da aquisição da leitura e da escrita
por crianças na alfabetização e não, discutir teorias ou interpretações diferentes, não faço,
aqui, uma revisão da literatura a respeito do assunto tratado. A curiosidade do leitor, porém,
será recompensada, se este se dispuser a realizar essa tarefa, uma vez que há muitos
trabalhos interessantes a respeito, sobretudo os da linha cognitivista, socio-interacionista ou do
chamado ”construtivismo”.
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Apesar da sílaba ser uma unidade fonética muito evidente e saliente para
qualquer falante, a linguagem não é só sons; é também significados. Por isso,
algumas crianças, além de aprenderem que se escreve com letras e que as
letras representam consoantes (articulações) e vogais (sonoridades), escrevem
apresentando problemas de segmentação. Aqui também, será a ortografia
quem irá dar a palavra final. A complexidade e a riqueza deste assunto, como
tópico de pesquisa, pode ser visto em trabalhos de Abaurre (1989a, 1989b).
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palavra fosse um ideograma. Ela sabe que aquilo é um ”desenho” que é uma
escrita e não, um simples desenho que representa, figurativamente, coisas do
mundo. Uma pessoa poderia aprender a ler e a escrever todas as palavras
desse modo. Na alfabetização, alguns alunos até começam desse modo. A sua
dificuldade em prosseguir, aprendendo desse modo, é a enorme quantidade de
ideogramas que teriam que aprender. Esse procedimento é encontrado, não
raramente, em alunos que são alfabetizados segundo o método do
BABEBIBOBU das cartilhas. Eles vão conseguindo desempenhar as tarefas
escolares até certo ponto, lendo e escrevendo as palavras já dominadas, como
se fossem ideogramas. Até o momento em que se deparam com palavras não
estudadas e revelam, então, que não sabem ler como deviam e,
conseqüentemente, não sabem escrever.
É curioso notar que, depois que uma pessoa se torna profunda
conhecedora do sistema de escrita que temos e exímia leitora, ela irá escrever
e ler as palavras como se fossem, de fato, ideogramas, não se preocupando
tanto com o caráter fonográfico do nosso sistema de escrita.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abaurre, M. B. (1989a) Oral and written texts: Beyond the descriptive illusion of
similarities and differences. Mimeo, inédito.
Cagliari, L. C. (1988) A leitura nas séries iniciais. Leitura: Teoria & Prática, 12:
4-11, ano 7, dezembro. P. Alegre: ALB.
Jensen, H. (1970) Sign, Symbol and Script. London: George Allen & Unwin
Ltd.
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INTRODUÇÃO
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Este texto é uma versão ampliada e revista de uma comunicação de mesmo título,
apresentada em 1990 no I Simpósio de Neuropsicologia, em Campinas, S.P.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
Nos dois exemplos acima, uma escrita já pronta serve como suporte para
"leituras" que traduzem um interesse da criança e parecem ter como objetivo
convencer o outro a ceder a esse interesse -- a escrita adquire, então, um
"poder", que vai além do simples poder de garantir a posse. A escrita é
invocada, "lê-se" o argumento, à sua autoridade não se espera contestação. A
origem dessa idéia de "poder", "autoridade" da escrita, pode ser traçada não
apenas a partir da idéia de que a escrita do próprio nome "garante a posse",
mas também da idéia de que a escrita pode determinar o comportamento do
adulto e/ou da própria criança, constituída em situações comuns na vida da
criança nesses dois anos e pouco de exposição a inúmeras leituras do mais
variado tipo de material escrito. A participação ativa da criança em eventos de
escrita em que se lêem bulas, receitas, instruções de como montar um
brinquedo novo, etc., e se age de acordo com o que a escrita diz, teria uma
contribuição na constituição dessa idéia de "poder" e "autoridade" da escrita.
Três meses mais tarde, Lia passa a se valer também do "agir como se
escrevesse" com um objetivo de "impor a autoridade da escrita", convencendo
o adulto de algo que lhe interessa. A primeira observação acontece aos
3;07;18, pouco depois de uma "briga" com o pai. Lia anuncia que vai escrever
uma carta para o pai e ouço-a dizendo, enquanto rabisca: "Papai. Eu adoro
você. Mas num pode ficar brigando comigo não!" Dada a ausência do pai no
momento (o que justificaria uma carta) e a distância em que se encontrava a
mãe, pode-se tomar o que Lia diz "por escrito" mais como um desabafo. Mas
ela se propõe a escrever uma carta e cartas têm destinatários - Lia sabe disso
porque vivencia a troca de cartas com os avós distantes. Usa-se, então, a
escrita para convencer a alguém ausente de algo que é do interesse próprio...
A observação que se segue mostra claramente essa tentativa de
convencimento a partir da "autoridade" da escrita:
(13) (3;O7;28) - Mãe e Lia conversam sobre hora de ir para a cama
(à noite). L.: "Eu devia ir prá cama cedo, né? Eu queria ir cedo!" M.:
"Então! Tá na hora! Agora tá cedo. O Pablo já foi dormir." L.: "Não!
Eu queria ir cedo. Junto com você." M.: "Mas a mamãe vai prá cama
é tarde!" L.: "Então eu queria ir tarde, junto com você e o papai." M.:
"Mas menina precisa ir prá cama cedo, prá crescer e ficar forte!"
(Enquanto conversávamos, Lia rabiscava formas circulares no papel
em que, antes, ela estivera fazendo "as letras de todo mundo" e ia
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
Para a criança, portanto, a escrita não se constitui como essa coisa fria,
que serve à memória, que quebra barreiras de espaço e tempo, que permite a
burocracia, etc. (ver Stubbs, 1980, sobre as funções da escrita para o adulto
letrado). A escrita se constitui como "mágica", como "poder". Ela aproxima,
permite a interação e a interlocução. Ela dá poderes a quem a manipula,
oferecendo argumentos irrefutáveis. Ela também serve de consolo:
(16) (3;11;19) - Lia, aflita com a reação do cachorro do avô a uma
tempestade, fala com ele: "Num precisa ter medo! Chuva é só uma
nuvem que bate na outra! Chuva é água! É só água, viu, Norman?
Num precisa ter medo!" (apropriando-se do que lhe disse a mãe
quando ela mesma teve medo de uma tempestade, algum tempo
antes). Pouco depois, diz "Vô contá uma historinha prá você,
Norman." Vai ao quarto e volta com o livro Tuca, vovó e Guto. Senta-
se ao lado do cachorro e passa a "ler" para ele, reproduzindo o texto
conhecido de inúmeras leituras.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
lo, destacá-lo de outras letras numa palavra ou texto, referir-se a ele de certas
maneiras - pelo seu nome ou por uma expressão lingüística que também se
presta à referência a objetos que são propriedade de alguém, uma vez que
"Esse é da Lia" também é utilizado em referência a objetos que pertencem à
criança. Num processo especular, a criança vai retomar o gesto e a fala do
adulto em referência às letras, constituindo-as como foco de sua atenção.
Por um período de cerca de cinco meses, a criança deixa de se interessar
pelos livrinhos. Não que a escrita deixe de ser objeto de sua curiosidade ou de
"leituras". Nesses cinco meses, as atividades envolvendo a escrita se dão em
torno de outros materiais portadores de texto. Incorporando o modo de falar do
adulto ao fazer uma leitura em voz alta, Lia vai produzir "leituras" que se
constituem numa série ininteligível de sons, mas que se diferenciam da fala por
uma entonação interpretada pelo adulto como "de leitura". Lia traz portadores
de texto, que entrega à mãe com um pedido - "Lê!"; ou toma das mãos do
adulto portadores de texto, anunciando "Ia lê!" ("Lia lê"), passando então a
vocalizar, enquanto olha a escrita, com entonação de quem lê. Quando o
adulto lê para ela, a criança às vezes repete em coro a leitura, ou completa as
sentenças, no caso de textos já conhecidos. Aos 2 anos e 2 dias, Lia pega um
dos seus livros favoritos e produz sua primeira leitura inteligível, após anunciar
"Vô lê": uma leitura baseada nas ilustrações, em que a entonação de quem lê
está ausente e em que marcas de oralidade se fazem presentes; uma "leitura"
que em nada se assemelha às leituras que a mãe fazia desse mesmo livro,
mas que parece incorporar os comentários da mãe sobre as figuras: "Aí...veste
a calça...aí...veste a buza...aí veste a buza (apontando a blusa na figura)... Aí
tá penteano o cabelo... Aí pôs chinelo... Aí... Aí...(hesita, vira a página)" "Aí, o
que, Lia?", pergunto. "Tabô." (fecha o livro).
pessoas que a criança conhece e que lhe são queridas (primos, tios, a babá). A
forma escolhida pelo adulto é, mais uma vez, a mesma usada para atribuir
propriedade, nesse caso sendo equivalente à utilizada quando se faz uma
"distribuição" de objetos ("Livro de papai, boneca de Lia, vestido de mamãe...")
Um segundo adulto, cujo nome é citado em relação a uma das letras, é
mobilizado pela criança aparentemente para ser apresentado à letra que tem
relação consigo, e também adere ao jogo de apresentar letras à criança. Seu
modo de se referir às letras só difere do primeiro adulto envolvido no sentido
em que, ao invés de dizer nomes de pessoas, ele diz nomes de objetos,
igualmente conhecidos, iniciados pela letra em foco, e presentes na figura.
Esse modo de se referir às letras como "de alguém", esse alguém sendo
sempre familiar à criança, é introduzido pelo adulto e se repete nas mais
variadas situações. A preocupação do adulto não parece ser apenas a de
informar à criança sobre a letra inicial dos nomes que pronuncia, porque a letra
E (inicial de Eric, o nome do pai) é apresentada como "a letra do papai", e o F
(inicial de Fernando, um amiguinho) é apresentada como "a letra do Dico" (que
é como Lia se referia a ele). Fazendo a relação "letra/nome de alguém
querido", o adulto parece ter como objetivo focalizar a atenção da criança na
letra, levando-a a discriminar uma da outra.
Um exemplo ocorrido aos 2 anos, 7 meses e 17 dias ilustra bem como se
estabeleceu esse "jogo" de reconhecimento de letras:
(21) (2;07;17) - Quando peguei o livro do ABC, apontei, na capa,
para a letra A e perguntei "Que que é isso?" Lia: "O bê de Ana."
Mãe: "Que?" Lia: "O bê de Ana" Mãe: "O a de Ana, né?" Em seguida
mostrei a figura da maçã, perguntando "O que que é isso?" Lia:
"Maçã." Aponto a bola "Que é isso?" Lia: "Bola". Apontei a letra B,
"Que que é isso?" Lia: "O bê de bola".. Mãe: "Muito bem! O bê de
bola!" Apontei em seguida a letra C, repetindo a pergunta e Lia
respondeu "O bê de Cleide." Mãe: "Ah! O cê de Cleide."
Lia parece, nessa ocasião, estar trabalhando já com uma hipótese de que
as letras têm proprietários, na base de um por letra, uma hipótese que contou
com a colaboração ativa do adulto em sua construção. Chamo a atenção do
leitor para o fato de que o adulto, no início, ofereceu à criança mais de um
nome em relação à cada letra apresentada (ver exemplo (20)), mas logo
estabeleceu uma "regra", consistentemente utilizada, que relacionava um só e
mesmo nome para cada letra. Essa "especialização" parece ter orientado a
atenção da criança para o aspecto figurativo das letras, levando-a a discriminar
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
umas das outras, conforme Ferreiro (1985) aponta. Mas essa "especialização"
também parece ter contribuído para que a idéia de que "a letra pertence a uma
e só pessoa" se constituisse. E é só quando a criança demonstra que constituiu
essa idéia que o adulto vai começar a reintroduzir outros nomes, agora não
exclusivamente de pessoas, mas também de objetos, relacionando-os às
letras.
O papel do adulto letrado é, pois, mais ativo que o de simples "informante"
sobre a escrita. É ele quem atribui intenções e interesses à criança, orienta sua
atenção para aspectos da escrita, recortando-a com o seu gesto e sua fala,
tornando-a significativa. O modo de falar sobre a escrita, as práticas
discursivas do adulto, recortadas e incorporadas pela criança, são, por sua vez,
retomadas e incorporadas pelo adulto, num jogo muito mais dinâmico do que o
que supõe o elemento letrado como "informante sobre a escrita" e o elemento
não-letrado como aquele que, a partir da informação recebida, vai construir,
sozinho, dependendo apenas do seu sistema assimilatório já construído, um
conhecimento sobre a escrita. Os dados apresentados acima mostram o adulto
letrado mais como um co-autor, co-construtor das hipóteses sobre a escrita.
A PRODUÇÃO DE ESCRITA
escrita, assim como a "hipótese de que as letras tem proprietários", conta com
a contribuição ativa do interlocutor e de sua linguagem, em sua construção.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
20
Agradecemos aqui o suporte financeiro viabilizado pelo CNPq e pela FAPESP.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
21
Na verdade, o projeto integrado tem objetivos mais amplos, que incluem a comparação de
processos de letramento emergente e de construção de linguagem em sujeitos de camadas
sociais, econômicas e culturais diversas. Assim, foram também colhidos dados de interação
familiar de dois outros sujeitos (P. e A.), de graus de letramento diversos. Neste texto,
analisaremos apenas os dados de H., que apresentam mais claramente processos de
letramento emergente. Para uma visão dos dados contrastivos dos três sujeitos, ver Rojo
(1995a; 1995b, em prep.).
22
Estamos qualificando os universos de investigacão (família; escola) como de "diferentes
graus de letramento", a partir dos diversos tipos de usos de escrita (emprático, homílico,
para transmissão de conhecimento coletivo acumulado, institucional (Ehlich, 1983)) que
nestes universos se apresentam. Qualificamos de baixo grau de letramento (BGL) aquele
universo onde os usos de escrita, quando existentes, têm caráter unicamente emprático
(para orientação temporo-espacial e usos mnemônicos) e de alto grau de letramento (AGL),
aquele universo que apresenta o conjunto dos usos identificados. O grau médio de
letramento (MGL) apresenta privilegiadamente alguns destes usos, mas não todos. Em
nosso caso, do sujeito A. (MGL), marcadamente usos institucionais (escrever/ler para o
trabalho; escrita escolar). Insistimos, aqui, no fato de que graus de letramento não se
equacionam, de nosso ponto de vista, a classes sociais. Pelo menos, não totalmente. É
óbvio e previsível que classes sociais menos favorecidas terão também, em sua maioria,
menores oportunidades de letramento e vice-versa. Mas esta não é a totalidade da questão,
que aqui se encontra equacionada ao histórico de letramento de cada sujeito, determinado
por uma inserção cultural, ao mesmo tempo, mais restrita e mais ampla. Logo, esta
abordagem nada tem a ver, como já se tentou sinalizar em algumas das exposições desta
nossa posição, com uma postura bernsteiniana.
23
O recorte que analisaremos neste texto vai de 02;01,17 até 03;05.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
sujeito. E o que pudemos notar é que, durante todo o período investigado (de
02;01,17 até 05;04,10), naturalmente, o jogo mais freqüente na interação
mediada por objetos-portadores de texto é o jogo de contar histórias. Mas a
instanciação destes jogos não se faz sem a mediação de jogos, anteriores na
construção da oralidade, tais como os de nomeação, reconhecimento e
dramático (Lier, 1985).
Segundo Lier (1985: 49), nos jogos de nomear e nos jogos de
reconhecimento, o que se negocia é
"...os contínuos sonoro e experiencial. Neles são desenvolvidas as
faces auditiva e articulatória do som da fala. Dentro dos jogos de
reconhecimento de objetos (do tipo "cadê X?"), um dos parceiros (a
mãe) recorta o contínuo sonoro enquanto o outro (a criança) recorta
o contínuo experiencial. Nos jogos de nomeação (do tipo "o que é
isso?") ocorre exatamente o inverso. Tais jogos poderiam também
ser entendidos como jogos de reversibilidade de papéis a nível
vocal.
Já os jogos dramáticos têm por marcação específica
"...perguntas do tipo 'como é que X faz?'. Sua característica
específica é a de proporcionar participações motoras ou sonoras
através de onomatopéias. Esse novo trabalho desenvolvido pelo par
interacional representa o primeiro passo em direção à síntese das
faces auditiva e articulatória do som que continuam a ser
trabalhadas dentro dos jogos de nomeação e reconhecimento de
objetos. (...) No jogo dramático se processa o elo entre a
comunicação mais primitiva na história da criança e a comunicação
verbal que vai emergir dentro do mesmo sistema comunicativo, onde
começará a se organizar como veículo dominante." Lier (1985: 50)
Para maior clareza, vejamos um exemplo, colhido aos 02;01,17:
(1) (...)
C1: (Pega o livro A Galinha Ruiva e começa a folhear deitada no colo da mãe)
M1: Que livro é este?
C2: A pilú.
M2: Quê?
C3: A pilú.
M3: Que que tem aí?
C4: A au-au.
M4: Tem au-au?
(...)
M5: E cadê o perú?
C5: Pilú tá qui. Ó pilú. (apontando no livro)
M6: E cadê a galinha?
C6: Ó galinha. (apontando)
M7: O que que a galinha tá fazendo?
C7: Galinha tá comenu pão da pipiu.
M8: A galinha tá comendu u pão do piupiu?
C8: É...
M9: Como é que a galinha fala?
C9: Có, có, có, có.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
(risos)
M10: Que mais tem aí?
C10: Ó au-au! Au! (imitando latido)
M11: Ó au-au!
C11: Ó galinha... Ó ga-linha... Ó pilú... Ó pipiu... (apontando as figuras no livro). Tá
comenu pipiu da galinha.
M12: O que que ele tá comendo?
C12: Da pipiu tá comenu... da ga/, da galinha.
M13: Pão da galinha?
C13: Da pão da galinha.
M14: Cumé que a galinha fala?
C14: Có, có, có, có.
M15: "Quem qué, qué, qué comê meu pão?"
C15: Eeeuuu! (risos)
M16: Você qué?
C16: Qué.
M17: Vocé qué cumê o pão da galinha?
C17: É.
M18: Hum... E quem tá comenu o pão da galinha?
C18: É a galinha tá cumenu pão. Podi ragá? (Mexendo na borda do livro)
(...)
conhecimento comum". As autoras advertem ainda que "...a relação entre esses dois
processos não é hierárquica, mas de simultaneidade. Um objeto ou um atributo de um
objeto pode estar sendo simetrizado enquanto outro é assimetrizado". (op. cit., p. 16).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
(2) (...)
M1: Como é? Essa é a história da...? Alice. (virando as páginas, até chegar ao
início da história)
C1: Da Alice. "Tati, tati, tati".
M2: Quem é esse? (apontando a figura no livro)
C2: Tati.
M3: Esse é o coelho.
C3: Tati, quelho! Ô qué mais! (virando a página)
M4: A Alice caiu num buraco beeeem fundo, né? Daí, quem ela achô lá embaixo?
Quem foi? (aponta a figura) Quem é esse? Coelho...
C4: Ó coleu! Achô lá embaxo du home.
M5: (Vira a página e aponta para outra ilustração) AÍ, ó, tá caindo num buraco bem
fuuuundo. AÍ, o coelho falava assim:...
C5: "Tati, tati..." (vira a página)
M7: "Eta! Eu tô atrasado! Tô atrasado!". AÍ, ela achô uma portinha bem
piquinininha (apontando). E aí ela tinha que ficá bem piquinininha, quinem a
portinha, né?
(...)
M8: Ói a porta! Ela tá grande de novo atrás da porta. (apontando)
C6: É.
M9: E aí, que mais?... E aí ela ficô...
E aí, ela chorô muito, chorô muito; chorô muito, chorô muito, e fez um laaaago de
lágrimas (passando o dedo no contorno da lago da ilustração). AÍ ela viu o coelho
de novo. Que que fala o coelho? (virando as páginas, parando numa ilustração e
apontando)
C7: Ele robô áua.
M10: Ele robô a água?
C8: É.
M11: Ele derrubô a água?
C9: É.
M12: É?
C10: Ele caiu, home.
M13: É... Ele fala assim: "é tarde, tô atrasado", né? (vira a página)
C11: Ele caiu.
M14: Ó ela nadando na água com o ratinho... (apontando) Hum, aí ela ficô
nadando na água com o ratinho, né? (vira a página)
Olha, quanto bicho! AÍ eles se juntaram todos na beira do lago pra contá história.
Que bicho tem aqui? Cadé o ratinho?
C12: Ratinho num tá qui.
Nadô. Ele nadô, ratinho. (apontando o lago)
M15: Ele nadô, o ratinho?
C13: Ratinho nadô.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
(...)
Como vemos neste exemplo, colhido cerca de um mês mais tarde, o
processo de superação que, futuramente, a nosso ver, vai levar das "proto-
narrativas" (dialógicas) às narrativas de tipo "estória" (monológicas) (Perroni,
passim) já se encontra mais avançado. A criança apresenta uma situação de
maior reciprocidade para o jogo de contar, sem uma simples simetrização dos
jogos mais primitivos propostos pelo parceiro na negociação de sua
participação no jogo de contar. Há vários indícios disto nesta amostra. As
nomeações/reconhecimentos/dramatizações negociadas aqui pelo adulto, ou
não são simetrizadas, ou, se o são, não o são por meio de procedimentos
simples de complementaridade.
A nomeação do portador negociada em M1 é simetrizada em C1 por meio
de uma complementaridade intraturno, onde a retomada desta nomeação é
imediatamente seguida da dramatização da fala de um dos participantes
principais da história (Coelho Branco), numa síntese, por recontextualização,
do nome da história com a fala de um de seus participantes principais. Como
se vê em C2, a fala típica deste participante passa a nomeá-lo. Está superada
a negociação "dramática" do exemplo (1) e a situação para o "jogo dramático"
dentro do jogo de contar - que retoma as vozes e falas dos personagens
centrais - é de reciprocidade, como indicam a complementaridade interturno em
C5 e a variação da fala do personagem em M7/M13.
Outras negociações de nomeação/reconhecimento, como as em M4/C6 e
M14/C14, são simetrizadas não por meio de uma simples complementaridade
interturno, mas intraturno, onde o que é acrescentado pela criança é a ação ou
a situação da ilustração em questão. A retomada especular deste acréscimo
em M15/C15 é também significativa.
Por outro lado, a negociação ("jogo dramático") não simetrizada presente
em M9/C13 é também indicativa da superação, por parte de H., destes jogos
mais primitivos no desenvolvimento em favor do jogo de contar.
Como ficará claro nos exemplos e comentários presentes no item 3. deste
trabalho, não julgamos que este processo dialético de superação opere apenas
nesta passagem do desenvolvimento, mas sim, que esta seja a dinâmica
própria de toda a relação interação oral/letramento emergente durante todo o
processo investigado.
(3) (...)
26
Note-se que, em C4/C5, é a própria criança que negocia o papel que o adulto passa a ter, a
partir de M6, de propor a negociação de papéis e contra-papéis no jogo.
27
Assumindo todas as implicações da releitura Benveniste/Bakhtin que a autora articula no
artigo.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
(4) (...)
28
Kato (ed) (1988).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
P2: "A Aventura de Três Patinhos na Floresta. Era verão e o tempo estava lindo."
(lendo e apontando, seguindo o texto escrito como dedo)
"As flores alegravam os campos. Nas águas de uma lagoa, três patinhos
amarelos brincavam e mergulhavam. Não sabiam os pobrezinhos que ali por perto
morava uma raposa desalmada. Queria duas coisas: chupar ovo de galinha e
comer patinho amarelo!"
Essa era e história que ele estava escrevendo. (apontando as letras impressas)
C2: (Fica atenta e faz sinal de assentimento com a cabeça)
Éééé...
P3: "Deu um sorriso: 'a história estava ficando ótima!'"
C3: (Olha para o copo perto do pai e aponta)
Quélo qui.
P4: Não. Aquele não. Aquele é ruim.
C4: Quélo bebê.
P5: Não. Aquele é do papai bebê. (Aponta para o texto) Qué que leia?
C5: (Faz gesto negativo com a cabeça)
Não. Cabô! Agora cabô.
(...)
texto, que passam a ser, para ela, índices de sua diferença em relação ao par
mais desenvolvido.
Este momento é precedido, em nossa amostra, por uma intensificação
quantitativa destas práticas monológicas por parte da pré-escola 29, devido à
mudança de escola que se verificou aos 02;08,29. Teríamos aqui, novamente,
um momento de superação dialética das práticas anteriores, este sim, agora,
aproximando definitivamente a criança das práticas narrativas letradas de sua
subcultura, responsáveis, no dizer de Lemos (1988) pela concepção do "ato de
ler como um 'outro modo de falar'", diríamos, monologizado (gênero
secundário, no sentido de Bakhtin, 1979b). No polo da afirmação e da
preservação dialética (DR) encontram-se todas as práticas/jogos anteriores no
desenvolvimento, que, como veremos em (5), não desaparecem (são
preservadas/modificadas) em suas "leituras" posteriores (a partir de 03;05). No
polo da negação dialética (DP), encontra-se, neste seu "silêncio" de 6 meses, a
prática monológica de leitura (do texto/ilustração), que já traz em si, embutida,
uma "fala letrada" (bookish-talk) muito mais aproximada das práticas de
produção/reprodução de textos do letramento mais avançado.
Este momento de negativa e de silêncio, de superação, já não se
caracteriza mais, empiricamente, por relações sincréticas de "colagem" de
recontextualizações: à polifonia sincreticamente atualizada, segue-se um
momento de "afonia", de perda de voz do sujeito, que, a nosso ver,
corresponde a um momento tenso de internalização dos(s) discurso(s)
(letrado(s)) do outro, responsável por um grande salto qualitativo no letramento
emergente e, inclusive, pela intensificação em nossa amostra (cf., a respeito,
Rojo, 1990), da busca da criança/adulto pelo "o quê e como está escrito", pela
materialidade da escrita (no dizer de Ferreiro, a "base alfabética" e a
"diferenciação icônico/não-icônico") - aquele objeto, afinal, responsável, por
"um outro modo de falar" do par mais desenvolvido.
Numa interpretação lacanianamente autorizada por Paín (1996),
poderíamos arriscar que talvez seja esta falta instalada na ignorância "sabida"
que possa vir a dar lugar ao desejo de saber e seja responsável pelo salto
qualitativo, identificado também nas pesquisas de Luria (1929), entre a escrita
imitativa ou de brinquedo e os momentos seguintes de construção de um saber
mais aproximado da tradição cultural de sua espécie.
O processo terminado de superação deste "silêncio" grávido de
letramento, aparece, em nossa amostra, a partir de 03;05, onde H. passa a
discriminar "histórias que sei“ e “histórias que vou contar do meu jeito",
"histórias de boca/histórias de livro". A primeira "história de livro que sei"
aparece justamente aos 03;05, no exemplo (5) abaixo, numa coleta onde I, M e
C interagem, "lendo", hora uma(s) hora outra(s), vários portadores. A leitura de
C é do portador Gato que Pulava em Sapato, intensamente lido e relido a
pedidos, durante o mês anterior, pelo pai, em episódios book-reading noturnos
e cotidianos, diarizados fora da situação de coleta.
29
Estas práticas escolares também foram acompanhadas no Projeto. Cf., a respeito,
Nogueira (1995).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
(5) (...)
C1: (Sentada na cama junto com M e I, "lendo" um livro, que abriu na primeira
página, deixando a capa no final)
M1: Peraí. Vamo começá de novo que eu perdi o começo.
I1: É, também.
M2: Ah, começa de novo.
C2: O Mimi era muito queridinho...
(vira a página)
e daí/ ele tinha uma linda cestinha.
(vira a página)
E daí/ ele.../ e daí a dona perguntava:
"- Não suba no telhado!"
E daí, ele ficô muito zangado.
(vira a página)
"- Que dóga!"
(vira a página)
E daí, muito tite.
(vira a página)
"- Que vida!"
E daí, ele fu... e daí, ele pulô de cabeça e entra nesse buraco. (apontando a
ilustração)
(vira a página)
E daí/ ele mesmo, mesmo, mesmo/ escorregô.
"- Socorro! Socorro!" ele falô.
(vira a página)
E daí/ a dona falava:
"- Viu? Eu combinei que você ia nu telhadu!"
"- Será que ele morreu?/ Não morreu, só quebô a perninha!"
(vira a página)
E daí/ veio oo... o dono dos bicho.
"- Será que eli vai sará?"
"- Vaaai... Eu cuido dele." o dono falô.
(vira a página)
E daí, eli sempi, sempi, sempi, ficô médio. O dono cuidô bem. E daí/ ele mesmo,
mesmo, mesmo, falô que, que, que, todo dia, ele mesmo, ia no telhado. Todo dia!
(vira a página)
E daí/ ele... ele não era o verdadeiro gato.
I2: Não era o verdadeiro gato?
C3: Hum-hum. (confirmãndo)
(vira duas páginas juntas)
E as coisa dele que... que... que... táva no porta-mala/ não servia pa eli mais...
Até ele tá nas coisa deli! (apontando, na ilustração, um retrato de Mimi guardado,
com as outras coisas, no armário)
(vira a página)
AÍ.../ E aí, a dona aperrrrrrtava a mão de tanto ele corrê... (imitando a ilustração
no gesto, apertando as duas mãos)
E daí, ele falô:
"- Não se ocupe, dona!"
(vira a página)
E daí/ ele foi correndo pra os... para o telhado.
(vira a página)
E daí/ ele foi mais longe. Foi aqui, foi aqui, foi aqui, e foi aqui, foi aqui, foi aqui.
(apontando as várias posições do gato na ilustração).
(vira a página)
E daí/ ele mesmo...
Foi a dona perguntava p'as amiga:
"- Aquele é meu gato!"
(vira a página)
E daí/ ele pulava em sapato mesmo! E... acabô-se!
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
(Fecha o livro)
I3: Nooossa! Que história, hein? (juntas)
M3: Nooossa! Que história bonita! ]
I4: Cê sabe contá direitiiinho!
M4: Qual ôtra que ce sabe contá?
(...)
30
Note-se que a criança equaciona este articulador narrativo ("e daí") ao ato de virar a página
e a uma cadência suprasegmental, responsável "pelo ato de ler como um outro modo de
falar". Para maiores detalhes desta análise, ver Rojo (1996).
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
para ceder voz ao personagem: "ele mesmo, mesmo, mesmo, falô que, que,
que, todo dia, ele mesmo, ia no telhado. Todo dia!".
Outras recontextualizações da fala letrada (bookish-talk) do par mais
desenvolvido, tais como "ele tinha uma linda cestinha" e "ele não era o
verdadeiro gato"31, em C2, e "ele foi correndo pra os... para o telhado"32, em C3,
fazem com que este salto qualitativo implique um avanço considerável do
letramento de H. e a aproxime mais fortemente das práticas e estruturas de
escrita do letramento avançado de sua subcultura letrada.
Na falta de documentação das interações referidas acima (só diarizadas,
mas não registradas em video), se rediagramassemos (5) de tal forma que o
leitor pudesse comparar o texto escrito original do portador, suas ilustrações e
o discurso interno recontextualizado por H. no exemplo, poderíamos ver que,
embora a referência básica da criança continue sendo a ilustração - agora não
mais como algo a ser "narrado", mas como "senha" do discurso do outro
internalizado -, este discurso do outro, ou mesmo, a criança em sua
recontextualização, recupera, em mais da metade das páginas, algumas
estruturas textuais literais, "passaportes" para a fala letrada.
Poderíamos também ver que o discurso direto do personagem ainda
detêm um privilégio na internalização. Podemos, a se verificar, na falta de
documentação, atribuir tal privilégio à voz do adulto internalizada (e a sua
seleção de segmentos textuais) ou a um mecanismo da criança que
privilegiaria, na internalização, tais segmentos.
Tanto é visível que as práticas anteriores (sobre a ilustração) não foram,
nesta monologização, completamente negadas (mas sim, parcialmente
preservadas), que algumas atuações dêiticas da criança, sobre a ilustração,
são notáveis em C2 ("e entra nesse buraco") e C3 ("Foi aqui, foi aqui, foi aqui,
e foi aqui, foi aqui, foi aqui. (apontando as várias posições do gato na
ilustração)"), preservando práticas/jogos anteriores no DLO.
Assim, o que podemos concluir da análise desta amostra é, por um lado,
que se mantêm, na análise, a interpretação dialético-materialista do processo
e, por outro que, nesta interpretação, necessitam revisão as noções de
"colagem/combinação livre" e "arcabouço" (novamente sincréticas), propostas
anteriormente para a análise destes mecanismos de monologização (cf.
Perroni, passim e de Lemos, 1992b).
Conforme de Lemos (1992b), prefaciando a publicação em livro do
trabalho de doutoramento de Perroni (1983):
"... outra [dessas] forma[s de narrar] é aquela em que domina um
procedimento de colagem, ou em que fragmentos de várias estórias
contadas pelo adulto se sucedem no interior de arcabouços
concretos (em oposição aqui à noção de macro-estruturas
abstratas). Tem-se aí, portanto, um movimento na direção da
significação que não se completa, em que o fragmento que sucede a
outro fragmento não o determina. É como se nessa fala apropriada
só ressoasse ainda a voz do outro e não se tivesse ainda aberto
31
Cabe notar que, neste segundo caso, a especularidade em I2 é significativa.
32
Note-se que a criança, de fato, articula o segmento "para o telhado" em "fala letrada", que
soa como [paraoteadu].
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
foram "...aberto[s] para a criança" nesta história: "...na linguagem“ e nas formas
do letramento de sua subcultura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Cadernos de Estudos Lingüísticos, 16: 75-96. Campinas:
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spoken and written language. NY: Basil Blackwell.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
Angela B. Kleiman
IEL/UNICAMP
Este trabalho tem por objetivo dar a conhecer dois projetos de pesquisa
cujo objetivo é investigar o fenômeno de letramento, mediante a análise da
interação entre sujeitos letrados e não letrados em contexto escolar 34.
Interessa-nos investigar como se dá o processo de tranformação social através
da linguagem, transformação esta que seria decorrência da introdução de
analfabetos adultos na cultura letrada.
* *
A presente conferência foi apresentada no I Grupo de Trabalho sobre Letramento,
Alfabetização e Desenvolvimento de Escrita, realizado na PUC-SP em outubro de 1991.
Era, então, o relato de um estado da arte de dois projetos sobre interação em sala de aula,
letramento e escolarização que apenas se iniciavam nesta época. Põe-se aqui, assim, a
questão da fidelidade ao texto anterior, ou aos resultados de pesquisa, hoje bem mais
avançados. Optamos, no texto a seguir, por uma solução em que mantemos, do texto
original, os tópicos que selecionamos para a discussão e o debate, ao mesmo tempo em
que apontamos, quando possível, as respostas que foram surgindo no percurso das
pesquisas e as novas perguntas que o melhor conhecimento desses tópicos iniciais fez
surgir. Assim sendo, algumas das questões que ocupavam um lugar central na reflexão no
momento do Encontro já foram objeto de trabalhos hoje publicados. Nesses casos, para um
tratamento mais extenso desses assuntos, remetemos o leitor às fontes.
34
Trata-se de um Projeto Integrado financiado pelo CNPq, Letramento e Escolarização: Uma
pesquisa para uma prática convergente, e de um Projeto Temático financiado pela FAPESP,
Interação e Aprendizagem de Língua: Subsídios para a auto-formação do professor.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
A INTERAÇÃO E O LETRAMENTO
A INTERAÇÃO E A APRENDIZAGEM
35
De fato, esse compromisso e vontade política não mudou. O que mudou, e radicalmente, é
a disponibilidade de verbas para a Educação. A cidade praticamente não tem indústria e
seu orçamento depende do repasse das verbas federais e estaduais.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
D: Tem vei que (xxx) tomá remédio em casa/ meió que í no médico
(x) tem vei que remédio em casa é meió que do médico
38
V. Kleiman, 1992, 1994, para uma análise mais abrangente do episódio em questão.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
/.../
D: Eu tenho uma tia (xxxx) que num deu remédio pra ela (x)
Remédio dela é remédio do mato.
/.../
P1: E não é um remédio?
D: Não um remédio (xxxx) Só remédio de planta.
P1: Então (x) essa planta (x) ela tá usando como um remédio para
ela (x) E você num acha que é remédio?
D: É, (x) É um remédio.
P1: Então“ (x) É uma planta.
D: Mas num é passada por médico
caseiros, ou „de mato“, eram, em alguns casos („tem vez“), melhores do que os
receitados por médico. Semelhante é a função deste recurso, quando introduz
como „conclusão“ do argumento da professora („então é uma planta“, isto é,
„há remédios de plantas“) aquilo que é, de fato, a premissa na argumentação
do aluno.
escolar - aliás, por causa dessa ilusão -, ele procura persuadir e, no processo,
explicita premissas, apresenta diversas glosas para sua tese, exemplifica,
enfim, engaja-se num processo de sobre-verbalização característico do
discurso letrado. E se a resistência não é em si suficiente para a
transformação, ela certamente exige um estado de conscientização, necessário
para a mudança40.
Este breve panorama sobre as questões que nos ocupam nos projetos
que desenvolvemos sobre a escrita, o letramento e a aprendizagem mostra
como esse campo de investigação é fértil, tanto para o estudo de questões
teóricas, ligadas à imponderável resignificação de sentidos na interação,
quanto para questões aplicadas, ligadas ao significado político do letramento e
da aquisição de escrita no contexto brasileiro.
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Fairclough, N. (1992) Discourse and Social Change. Cambridge: Polity Press.
Os remédios do mato são mais saudáveis, primeiro lugar. Minha avó foi curada
com remédio das plantas.
40
Ratto (op.cit.) aponta para conclusão semelhante em relação às estratégias argumentativas
de sujeitos não escolarizados que imitam modelos letrados, pois, para tal processo de
imitação emergir, é preciso a conscientização lingüística anterior, que, por envolver um
processo de reflexão e comparação com o discurso do outro, constituiria um dos pré-
requisitos para a aprendizagem.
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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
POSFÁCIO*
e sutil do que a que se observava na língua quando ainda não era escrita
passou a ser feita após a introdução dessa nova modalidade, com repercussão
tanto na fala como na escrita. Assim, uma diferenciação entre noções como
falar, dizer, responder, argumentar, retrucar, repetir e outras semelhantes,
obviamente vinculadas às atividades com a própria linguagem, parece ter sido
introduzida, na língua Shuar, mais ou menos concomitantemente à prática da
escrita. Este é um exemplo evidente de como o processo de letramento de uma
sociedade ágrafa leva a alterações significativas no próprio componente lexical
da língua dessa sociedade e é um bom exemplo, também, do que acima
afirmei: os efeitos da introdução da escrita mostram-se de maneira mais
transparente quando determinada sociedade começa a escrever a sua própria
língua.
Não obstante tais observações, cumpre deixar claro que o mesmo
problema continua a existir em sociedades complexas como a nossa, em que o
uso da escrita remonta já a alguns séculos. O texto de Kleiman levou-me, pois,
a refletir muito sobre esta questão. Os dados apresentados, assim como a
própria natureza das situações acompanhadas, lembram-nos a todo momento
que, em sociedades complexas, a vida de praticamente todos os indivíduos é
constante e diferentemente atravessada por atividades de escrita e de leitura.
Claro está que, para a maioria das pessoas que não escrevem e/ou não lêem,
esse contato acaba também ocorrendo, grande parte das vezes por vias muito
indiretas. Afinal, mesmo os analfabetos estão em freqüente contato com
pessoas alfabetizadas que, em maior ou menor grau, já manifestam na própria
fala a influência das estruturas e do léxico característicos de situações
particulares de escrita. Como determinar, então, até que ponto esse contato
prévio - que é lícito pressupor tenha existido - deixa ou não suas marcas nas
escolhas lingüísticas dos sujeitos observados?
A questão que vejo como a mais instigante no (e para) o trabalho de
Kleiman é a de saber o que este termo, letramento, inclui ou exclui, em uma
sociedade complexa como a nossa. Como já disse, penso que fica
relativamente mais fácil definir os limites do que se irá constituir em dado
pertinente para uma pesquisa sobre o letramento e seus efeitos
sociolingüísticos, em situações extremas, como aquelas que representam a
passagem de um estágio sem escrita ao estágio subseqüente em que ela
passa a ser utilizada socialmente. Por outro lado, são também
interessantissimas as situações como as contempladas na pesquisa de
Kleiman, em que é necessário pressupor que a vida, a língua e a cultura de
todos os indivíduos já trazem também muitas marcas - diferentes embora! - das
atividades de leitura e de escrita praticadas pela sociedade de um modo geral.
Nesse sentido, como já foi aliás apontado por de Lemos, é importante registrar
que os eventos de escrita que o projeto de Kleiman está tendo a oportunidade
de focalizar e analisar trazem também as marcas, nas próprias opções feitas
pelos sujeitos, da história individual de seu contato com o mundo e com a
linguagem dos indivíduos letrados. Cabe verificar, portanto, como essa história
é contada, de diferentes maneiras e através dos mais variados indícios, nessas
escritas singulares.
Finalmente, ainda sobre o trabalho de Kleiman, gostaria de dizer que os
dados aí privilegiados, tendo em vista o caráter etnográfico de que se reveste
sua coleta, precisam ser abordados a partir de categorias de análise que
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
garantam uma reflexão teórica rigorosa. Nunca é demais lembrar o risco que se
corre, em pesquisas etnográficas, de tomar o relato das situações
acompanhadas e descritas (e elas sempre garantem relatos muito
interessantes!) como sendo a própria análise. Esse é um desafio que todos
precisamos enfrentar, sobretudo aqueles que, como eu, relutam em buscar nos
dados apenas a confirmação (ou refutação) de teorias elaboradas a priori.
Tomar os dados como bons indícios do que se quer ver revelado em termos da
elaboração de uma relação entre a oralidade e a escrita; interpretar os eventos
registrados como algo que documenta, em um certo sentido, a história
individual dessa relação; atribuir um sentido por vezes mais geral ao que
inicialmente parece constituir-se em episódio idiossincrático; aí está, em
essência, a tarefa instigante e trabalhosa reservada àqueles que, como
Kleiman e colegas, dispuserem-se a abrir mão da postura por vezes mais
cômoda de encaixar os dados nos limites, não raro estreitos, das teorias
existentes.
Nos trabalhos de M. L. Mayrink-Sabinson e de R. H. R. Rojo, o que vejo
novamente aparecer, como aspecto de grande interesse para reflexão, é a
questão do evento singular, do episódio pleno de significação a ser descoberta,
do acontecimento particular com uma história a ser contada porque reveladora
dos processos que se busca entender. Mayrink-Sabinson e Rojo nos mostram,
em seus trabalhos, momentos representativos do modo como Lia e Helena,
seus respectivos sujeitos de pesquisa, vão construindo sua relação com a
escrita.
Como todos os trabalhos de aquisição da linguagem, estes trazem,
também, transcrições de episódios dialógicos envolvendo as crianças e os
adultos com quem elas interagem em situações particulares. Sempre que me
vejo diante de transcrições de dados como esses, percebo-me fazendo
algumas inferências sobre os aspectos fônicos - segmentais e prosódicos -
associados aos enunciados transcritos, aspectos esses que eu gostaria de ver
registrados de uma maneira mais fidedigna, dada a sua freqüente relevância
para a compreensão dos aspectos investigados. Aproveito, portanto, esta
excelente oportunidade, para fazer alguns comentários sobre a questão mesma
da adequação das transcrições aos propósitos de trabalhos centrados na
aquisição da linguagem.
Começo por dizer que, se me surpreendo freqüentemente a fazer uma
série de inferências sobre os aspectos fônicos não anotados em transcrições
como as que encontro nesses dois trabalhos, isso se deve, em parte, à minha
formação específica em fonética e fonologia (e também à minha paixão por
esses estudos - por que não assumi-lo...?). Assim, vejo-me sempre às voltas
com perguntas do tipo: Como será que esta criança já organiza o material
segmental (que nós tão tranqüilamente registramos através da ortografia da língua,
por vezes sem nos perguntarmos sobre a enorme distância entre os sons e sua
representação, nessa escrita)? Como será que está usando os recursos
prosódicos da língua, para marcar algumas significações? Que investimento estará
fazendo, por exemplo, em usos particulares da intonação?
De certa forma, é como se eu buscasse sempre uma informação que não
encontro registrada nas transcrições que leio. Por outro lado, devo reconhecer
que, nesses momentos, o meu embate é muito mais com as teorias fonéticas
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
Não estou, aqui, fazendo pela primeira vez tais perguntas (embaraçosas,
por sinal...). Talvez eu esteja apenas fazendo minhas, também, no contexto
particular desta discussão sobre a aquisição da representação escrita da
linguagem, as mesmas perplexidades que levaram o lingüista britânico J. R.
Firth, já na década de 50, a afirmar, em Sounds and Prosodies - artigo em que
demonstra enorme sensibilidade para os fatos prosódicos das línguas - que as
nossas teorias fonéticas e fonológicas trazem em si as fortes marcas da
história dos nossos sistemas alfabéticos de escrita.
Essas minhas últimas considerações justificam-se, penso, pela
necessidade que sinto de deixar bem marcada, aqui, a relação que percebo
entre essa discussão, se pensada no plano das próprias teorias lingüísticas, e
a questão que vem permeando todos os textos deste volume, relativa à
constante tensão entre a oralidade e a escrita e à maneira pela qual essas
duas modalidades da linguagem continuamente interagem. Na verdade,
mutatis mutandis, a discussão me parece ser a mesma.
Apesar desse reconhecido desconforto com os sistemas de transcrição
fonética existentes, devo dizer, no entanto, que há algumas situações em que
me sinto bastante à vontade com os sistemas (alfabéticos!) disponíveis para
transcrição fonética, e mesmo com os recursos (freqüentemente icônicos)
utilizados para o registro dos vários movimentos prosódicos. Em trabalhos de
curso, por exemplo, quando solicito a alunos meus que transcrevam dados de
diferentes variedades do português, ou mesmo de algumas línguas indígenas,
tenho geralmente a ilusão (talvez seja este, sim, o melhor termo), de que
consigo imaginar como "soam" os dados transcritos, mesmo antes de ouvir as
fitas, e a partir das transcrições, apenas.
Algumas situações, porém, mostram-me muito claramente os limites dos
sistemas alfabéticos de transcrição fonética. Lembro-me, aqui, de dois
momentos em que eu buscava os sons e não conseguia "ouvi-los", representá-
los de maneira minimamente adequada a partir das transcrições. O primeiro
desses momentos refere-se à transcrição da língua dos índios Pirahã. Entrei
em contacto com dados dessa língua através da tese de mestrado de M.
Filomena S. Sândalo (Aspectos da Língua Pirahã e a Noção de Polifonia), que
orientei juntamente com J. W. Geraldi no IEL/UNICAMP. Apesar das
transcrições cuidadosas, eu não conseguia reconhecer, ali, a língua que ouvia
nas fitas, os longüissimos glides vocálicos significativa e constantemente
modificados por movimentos tonais, a aparente indiferenciação, em alguns
momentos, de pontos precisos de articulação no interior de determinados
"espaços" consonantais... Todo esse "movimento", essa transição articulatória,
característica, aliás, de qualquer língua, apresenta-se aos nossos ouvidos, no
Pirahã, de maneira muito mais dramática, talvez devido aos longos contínuos
vocálicos, interrompidos ocasional e necessariamente por alguns ruídos
consonantais. Em situações como essas, é muito mais evidente a contribuição
da prosódia para a constituição de significações nos vários níveis lingüísticos e
no nível discursivo (ainda que, nas fases iniciais da investigação, tais
significações não sejam nem um pouco evidentes...). Também evidente,
nessas situações, é a insuficiência das nossas transcrições, que, no caso do
Pirahã, reduzem elaboradissimos glides vocálicos a uma mera representação
seqüencial de segmentos vocálicos.
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
Digo que tal atitude por parte desses investigadores — aqui explicitada e
assumida por Nascimento — é academicamente salutar porque o que ela
traduz, na verdade, é que não há certezas preliminares ou adesões irrestritas e
acríticas a determinadas teorias. Algumas dessas teorias, por outro lado, são
utilizadas, nessas pesquisas, de forma a possibilitar uma reflexão sempre
produtiva sobre os dados, dado o seu potencial heurístico.
Vamos tentar retomar, então, o real significado, para as nossas
discussões, de algumas das considerações feitas por Nascimento sobre os
rumos das pesquisas que ele aqui relatou. Comecemos pela sua crítica voltada
para um olhar que por vezes lançamos sobre os dados a partir, já, de unidades
lingüísticas pré-estabelecidas e de categorias e relações com as quais
habituamo-nos a trabalhar em nossas análises lingüísticas e que costumamos
ingenuamente supor que, de fato, estão por trás da relação som/letra conforme
estabelecida pela criança.
É evidente que, do ponto de vista do próprio sistema de representação
(de base alfabética), há uma relação entre a unidade mínima utilizada na
escrita — a letra — e um elemento fonológico por ela representado, o fonema,
entidade lingüística abstrata menor do que uma outra entidade, a sílaba.
Qualquer lingüista tem a obrigação de identificar tais elementos e as relações
entre eles, dada a linguagem oral e sua representação escrita de base
alfabética. Foi essa exatamente a informação tomada como pressuposto
relevante pelos pesquisadores desse grupo e, em um momento inicial da
pesquisa, determinante do modo como passaram a olhar, categorizar,
quantificar e interpretar os milhares de dados do seu corpus. No entanto, esse
pressuposto inicial - a natureza da relação letra/som - , levado para os dados
como uma informação que pudesse iluminar o processo mesmo de aquisição
da escrita, acaba rejeitado pelos pesquisadores como hipótese sobre a relação
inicial estabelecida pela criança que já percebe a base fonográfica da escrita.
Após tentativas iniciais (reconhecidas como mal-sucedidas) de elaborar
material de alfabetização baseado em uma seqüência de dificuldades no uso
das letras aparentemente justificada pelo corpus, eles logo percebem que não
é exatamente a relação som/letra que parece perturbar a criança em várias das
suas tentativas de escrever fonograficamente. Isso porque não parece tão
evidente assim que a criança já tenha resolvido um problema prévio, a saber, o
da sintaxe da própria sílaba, unidade de outro domínio fonológico, que deve
necessariamente analisar em constituintes para decidir sobre a quantidade e a
ordem das letras com que passa a escrever. Assim, o grupo rejeita a proposta
inicial de elaboração de um material que, conforme o projeto inicial, deveria
combinar os resultados da análise quantitativa dos erros das crianças com o
pressuposto de Lemle segundo o qual devem ser elaborados textos para os
alunos em fase de alfabetização em que aparecem, em um primeiro momento,
apenas determinadas vogais e consoantes (escolhidas a partir de critérios de
"facilidade" maior de percepção da relação som/letra, critérios estes baseados
no pressuposto de que algumas letras representam uma relação fonológica
mais transparente). Mas o que me parece mais importante ressaltar, a esse
respeito, é um dos motivos que levaram essas pesquisas por caminhos mais
interessantes. O que ficou logo claro para os pesquisadores da UFMG é que
eles deveriam também incluir, como varíavel a ser investigada, a própria
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
e também algum elemento que "modifica" esse núcleo, o som consonantal que
o precede. A partir dessa importante descoberta, passam a dispor de duas
posições silábicas que podem ser preenchidas com letras para representar as
vogais e as consoantes.
Essas considerações já me parecem suficientes para entendermos a
natureza do problema enfrentado por numerosas crianças em seu trabalho de
análise das estruturas silábicas para fins de escrita. Todos nós já encontramos
indícios, em nossos dados da escrita inicial, que sugerem uma certa dificuldade
na grafia de sílabas ditas "complexas". Essas sílabas são, na verdade, aquelas
que apresentam um onset ramificado, ou seja, as que apresentam dois sons
consonantais em posição pré-nuclear, e que são comumente representadas
como CCV. As crianças freqüentemente omitem a segunda consoante ou
colocam-na imediatamente após a vogal do núcleo. Que conclusão tirar desses
dados, já registrados em praticamente todas as pesquisas sobre as primeiras
manifestações de escrita alfabética? Ora, o que eles parecem indicar é que as
crianças, quando passam a admitir mais uma posição estrutural na análise que
vêm fazendo dos constituintes silábicos, não estão simplesmente trocando a
letra de lugar, já que são exatamente esses lugares ou posições estruturais
que elas estão delimitando, em sua análise! Se os lugares não estão ainda
estabelecidos, que sentido teria falarmos de troca, nessas circunstâncias?
É perfeitamente possível sustentar, acredito, com base em estudos sobre
percepção de sons, que as crianças em fase de aquisição da linguagem
demonstram capacidade para diferenciar holisticamente um "som" de outro
"som" (e o termo não é aqui usado no sentido de segmento), sem
necessariamente analisá-lo em constituintes menores. Assim, é razoável supor
que as crianças percebam como diferentes, na fala, coisas como fraco e farco,
o que não garante absolutamente que elas, ao tentarem escrever fraco,
produzam FRACO e não FARCO... Mais uma vez, perceber a diferença fônica
não implica necessariamente analisar uma unidade hierarquicamente mais
complexa do que o segmento, como a sílaba, em seus constituintes menores, e
ordená-los segundo uma seqüência pré-estabelecida... Esse momento de
análise da sílaba em estruturas mais complexas do que CV é um momento
muito importante, freqüentemente ignorado tanto pelos pesquisadores como
pelos professores, que costumam ver nas escritas como FARCO (por FRACO),
PIRMO (por PRIMO) e tantas outras, apenas casos de "troca de lugar das
letras".
Perceber, portanto, que é necessário introduzir nas pesquisas a questão
da maneira como as crianças vêm lidando, em suas escritas iniciais, com as
próprias estruturas silábicas, foi um movimento a meu ver muito significativo
nos trabalhos do grupo aqui representado por Nascimento, pois é esse
movimento que vem permitir uma redefinição, no âmbito desse projeto, das
próprias categorias de análise inicialmente tomadas como relevantes para
análise dos dados.
A análise da sílaba que anunciei nas considerações feitas nos parágrafos
precedentes não é ainda colocada nesses mesmos termos, nos trabalhos do
projeto da UFMG, que, pelo texto de Nascimento, apenas reconhecem a
necessidade de levar em conta a questão da estrutura silábica na análise dos
dados. Mas afirmo a grande importância desse movimento da pesquisa na
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
direção da sílaba, porque esse passo abre perspectivas para uma discussão
interessantissima, fundada nos pressupostos teóricos dos modelos fonológicos
não-lineares. Esses modelos atribuem à silaba um nível autônomo nas
representações fonológicas, o que permite que tal unidade possa ser tomada
como estruturante, em seu nível hierarquicamente superior, das seqüências de
segmentos a ela vinculados. Poder entender a sílaba como um domínio
específico no componente fonológico do português, a partir da sua posição nas
representações hierarquicamente organizadas, é, em última análise, dispor de
um quadro teórico de referências que nos possibilita explicar, ao mesmo
tempo, tanto a análise que os dados da escrita inicial indicam que as crianças
fazem das estruturas silábicas, como as próprias soluções escritas que
oferecem para os diferentes tipos de sílaba da língua.
Além da ênfase, justamente colocada por Nascimento, na questão da
sílaba, ao mencionar os movimentos observados nas pesquisas desenvolvidas
no âmbito do projeto da UFMG, ele nos falou também dos novos rumos que a
reflexão vem tomando por parte do grupo de pesquisadores. Ficou evidente,
em seu texto, que, além de um número significativamente maior de pesquisas
em desenvolvimento, há uma maior clareza com relação aos próprios
pressupostos da investigação e às questões teóricas envolvidas, que estão a
exigir a consideração das teorias fonológicas mais atuais.
Ainda ao ler Nascimento, dei-me conta de outra questão sobre a qual
todos nós, ao trabalharmos com dados representativos do processo de
aquisição da escrita, devemos refletir, antes de fazer qualquer opção teórico-
metodológica. Refiro-me ao problema de se trabalhar ou não com um grande
número de dados, escolha que implica a realização ou não de análises
quantitativas dos nossos corpora. Tentando traduzir a questão em termos mais
óbvios: que informações relevantes para a compreensão do processo poderiam
ficar escondidas nos dados quantitativos e ser eventualmente reveladas por
análises mais centradas em casos, em episódios, em eventos singulares por
vezes ricos de valiosos indícios do processo que se busca entender? É claro
que a questão pode ser formulada também ao contrário: o que os estudos de
dados episódicos não conseguem ver, sobre o processo de aquisição? Penso
que as duas posturas devem ser, em certa medida, complementares. Se, por
um lado, as macro-análises, quando bem feitas, costumam sempre fornecer
boas informações sobre tendências gerais (no nosso caso específico, do
comportamento das crianças no momento inicial de uso alfabético da escrita do
português), por outro, as micro-análises resgatam preciosas informações para
a elaboração de hipóteses por vezes mais gerais, a serem eventualmente
confirmadas (ou desconfirmadas) por análises fundadas na quantificação. Em
suma, há análises boas e há análises ruins e isso independe da opção pela
quantificação ou pela abordagem casual de dados. Mais importante do que
essa opção metodológica, que nos é facultada pelas próprias teorias, é
aprendermos a olhar para os nossos dados com boas perguntas; é a nossa
postura de constante insatisfação frente aos resultados provisórios obtidos; é a
nossa disponibilidade para questionar, a todo momento, as nossas hipóteses
iniciais, que devemos querer reformular sempre que os dados sugerirem que
há outras mais interessantes, do ponto de vista explicativo...
Finalmente, concluo estas minhas observações, que sei parciais, dizendo
que o que procurei fazer aqui foi articular, da maneira mais coerente possível,
Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS