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VÉU NEGRO

1
De Jeffrey Crow

Jeffrey Crow parecia postiço dentro de seu uniforme de oficial graduado do


exército americano. Os membros delgados e sutis envoltos por sua pele
pálida lhe conferiam um ar desagradavelmente austero, velho apesar de
sua idade. Sua capacidade incrível de avaliar possibilidades múltiplas ao
mesmo tempo não só lhe fizeram merecer um alto posto no destacamento
de criptografia durante a segunda guerra como lhe tornaram paranóico ao
longo da vida. Tentava perceber os padrões inerentes a tudo que lhe
rodeava e, apesar da mente altamente analítica, pressentia (como
clarividente) um mal imbuído a cada espaço do código que banhava seus
olhos. E que fascínio terrível esse mal lhe exercia. Não podia ser
considerada uma pessoa de atos vis, mas a crueza da mão bruta do Reich
era um parágono da beleza perdida nos tempos industrializados em seu
coração jovem. Talvez não tenha sido por acaso que a sutil intermitência da
palavra Krähe durante sua varredura dos arquivos da Wehrmacht, a força
de defesa nazista, não lhe tenha passado em branco após a queda do
regime.
−1 −1 −1 −1
E = PRMLUL M R P .

Enquanto varria cada detalhe tentando conectar os documentos que ainda


permaneciam intactos após a tentativa de queima de arquivo da Gestapo,
deixou-se levar por um pequeno detalhe pessoal. Percebera que ninguém
de sua equipe parecia haver notado certa conexão entre um assunto
tratado de maneira aparentemente trivial pelo serviço secreto nazista.
Enquanto os demais estavam ocupados demais tentando quebrar os códigos
restantes da Máquina Enigma, usada para encriptar as mensagens do Reich,
ele se ateve a uma busca particular: as referências a uma pequena
instalação secreta cuja localização estava parcamente escondida nos
códigos. Kräheschutz. A maneira banal e desinteressada com que essa
instalação era tratada nos documentos, lhe sugeria a paranóia, não era
natural. Era como se os nazistas estivessem lhe dizendo “não perca seu
tempo olhando aqui, não é importante”. No entanto havia diversas
referências, pelo menos aos seus olhos, ao Kräheschutz que sugeriam
conexões tanto com as pesquisas científicas usando judeus como cobaia
quanto como o doutrinamento dos soldados. Estava certo de que ou se
tratava de uma armadilha ou uma estação contendo dados altamente
secretos do Reich. Tomado de arrogância, valeu-se da máxima entre os
fascinados pelo código que diz que o merecedor do conteúdo da mensagem
é aquele que conseguir decifrá-la. Este segredo havia de ser dele, pessoal,
íntimo, intransferível: preparava-se para visitar o abrigo do corvo, Die
Kräheschutz.
E = P(ρiRρ −i
)(ρjMρ − j
)(ρkLρ −k
)U(ρkL −1
ρ − k
)(ρjM −1
ρ − j
)(ρiR − 1
ρ −i
)P −

1
.

O problema que revolvia sua mente à noite, no entanto, era encontrar uma
maneira de visitar a instalação e permanecer incógnito. Como parte do
serviço secreto, sabia como era difícil não deixar rastros mínimos. Temia
também pela distância e localização, se empreendesse sua busca, sabia que
não haveria um retorno possível se fosse sozinho. Ele e sua equipe estavam
fazendo uso das instalações do PC Bruno a 40 quilômetros de Paris e suas
buscas apontavam que a instalação era baseada na Polônia, o que lhe faria
atravessar a Alemanha inteira, instável ainda, visto que a guerra recém
acabara. Como o PC Bruno era uma estação de inteligência regulada por um
esforço Franco-Polonês, decidiu utilizar a mesma tática que, pretensamente
acreditava, os nazistas estariam utilizando para ocultar o Kräheschutz:
dissimular. Pediu que sua equipe fosse transferida para o Biuro Szyfrów na
Polônia, onde havia as instalações de criptoanálise responsáveis por
quebrar o Engima. Ali possuiria maior chance de realizar suas visitas
incógnito e, na eventual dificuldade de decifrar algum documento, teria
todo o equipamento necessário a sua disposição.

Kräheschutz

As mãos de bronze do Príncipe Poniatowski não lhe pareceram exatamente


um gesto de boas vindas ao Palac Saski naquele dia barrento. A neve já era
marrom e lambuzava suas botas enquanto dificultosamente se aproximava
do Biuro Szyfrów. Havia de fingir uma tarefa qualquer com a sua equipe
para poder tentar sua fuga à noite. Ao final do dia seguiu a arrumar uma
pequena mala, estava tomado pelo desejo de revelar um código
desconhecido e pelo medo de ser pego. Carregava documentos secretos
que já deveriam estar nas mãos do alto clero da inteligência aliada, podia
ser acusado até de alta traição. Colocou uma pequena pistola em seu coldre
e jogou sua pequena mala pela janela dos fundos do seu quarto. Saiu de
seus aposentos e cumprimentou cordialmente os poucos guardas que
faziam a segurança do interior do prédio. Acordou um de seus assistentes e
pediu que ele lhe acompanhasse, apesar de estranhar o pedido noturno, o
jovem estava acostumado a cumprir ordens. Saíram do prédio e acenaram
para alguns guardas e seus dobermanns. Ao entrarem em um carro vago,
Crow discretamente apontou a pistola para seu assistente e ordenou-lhe
que desse a volta no prédio, onde pegou sua mala. Rumaram então pelas
ruas em ruínas de Varsóvia, em direção a fronteira da cidade. Ninguém
ouviu quando a arma disparou no horizonte.

Um carro manchado de sangue foi abandonado no meio do campo, sem


gasolina, juntamente com a sanidade de um homem. O céu começava a
clarear, anunciando que em breve o sol nasceria. Ele caminhava
decididamente com sua lanterna em direção a uma construção de ares
muito germânicos. Sobre um portão de ferro, vermelho de ferrugem, havia
uma águia em baixo relevo com suas garras carregando um círculo onde
uma suástica havia sido recentemente apagada a golpes de martelo. O
lugar estava deserto e um ofegante Jeffrey deu seus primeiros passos em
um segredo particular. Apesar de a guerra haver recém acabado e o
Kräheschutz estar distante de qualquer front, o estado em que as paredes,
as cortinas, os objetos se encontravam sugeria que a instalação houvera
sido abandonada muito antes. No hall de entrada, uma escada majestosa
cujo mármore já estava em pedaços levava a um segundo andar. No
entanto o que lhe interessava, de acordo com suas informações, era o que
estava por detrás dela. Uma cortina pesada de veludo vermelho encobria
um elevador de serviço. Com um rangido ele abriu a grade e desceu.
Quando o elevador parou, Jeffrey acionou um largo disjuntor que acionou
todas as luzes internas revelando o que parecia um misto de bunker e
biblioteca.

Danke, Zygalski

Todas as largas mesas de estudo estavam altamente empoeiradas ou roídas


por cupins e muitos dos livros encontravam-se fora das prateleiras e
espalhados pelo chão, como se alguém desesperado houvesse procurado
por algo a muito tempo atrás. A construção era cilíndrica, mais larga sob a
terra do que o prédio acima sugeria. Através de um vão central podia-se
contar seis andares abaixo e uma escada em espiral ao redor do cilindro
conduzia às instalações subjacentes. Ali encontrou diversos telégrafos,
mapas, mais livros espalhados, as conhecidas máquinas de encriptação,
mais mesas corroídas. Havia finalmente encontrado o seu próprio
esconderijo secreto nazista. Ali deveria existir uma quantidade imensa de
informação totalmente desconhecida aos aliados. Na obsessão que crescia
em sua mente, tomaria posse de grandes segredos estratégicos mas não
tinha a mínima idéia de que fazer com eles. Passou dias vasculhando a
biblioteca, decifrando mensagens. Havia roubado um conjunto de cartões
Zygalski, perfurados especialmente para decriptar as mensagens da
Máquina Enigma e, conforme avançava, entendia que o propósito militar
daquela base era de natureza muito menos bélica, mas sim ideológica.
Tratava os credos de maneira quase ritual, religiosa. Explanações quase
metafísicas sobre a superioridade ariana. Quanto mais se interava da base
do pensamento germânico, mais se sentia enobrecido. Delirava sobre um
renascimento daquela beleza violenta que admirava. Os dias se passavam
e, enquanto os códigos engordavam sua mente, definhavam seu corpo e a
luz tépida do gerador apenas lhe escondia a palidez. No entanto via no
espelho apenas um general do conhecimento. Detinha seu próprio feudo de
saber.

Ao remover uma série de livros de uma prateleira corroída soltou um grito e


o estrondo dos volumes caindo ao chão ecoou vão acima. Através de uma
larga fenda no fundo da prateleira havia um ombro vestido com a suástica.
Com toda a força que ainda restava, arrastou o móvel para liberar uma sala
escondida. Nada mais era do que um simples escritório. Uma mesa, cadeira,
mas não havia canetas sobre a mesa ou quadros nas paredes. Apenas um
oficial nazista ou o que restara dele, sentado. Apesar da suástica, seu
uniforme não coincidia com a de nenhuma classe da Wehrmacht. Não havia
sequer um indicador de sua patente. Sob sua mão esquelética estendida
sobre a mesa, encontrava-se uma folha rosa com um código escrito em tinta
vermelha. Ao lado, uma bacia rasa com um resto de água, viscosa e
esverdeada pelo tempo. Não acreditou ao interpretar os sinais presentes na
sala: aquele oficial estava ali apenas para a proteção daquela única folha de
código. A tinta vermelha deveria ser dissolvida na bacia imediatamente em
caso de ataque à base. Ele, e somente ele, sozinho, escondido atrás de uma
prateleira em um escritório nu, vazio. Jamais havia ouvido relato de algo
assim, o que sugeria a tremenda importância daquela folha, intacta.

E≡E

Removeu a folha da mão do cadáver e arrastou-se até sua mesa com os


cartões Zygalski e uma Enigma. Combinou e recombinou os cartões
centenas de vezes. Tentou outras centenas de combinações possíveis dos
cabos da máquina. Ajustou as engrenagens. Seus olhos se iluminaram e o
tônus de todos os seus membros desapareceu. A natureza do documento
excedia o metafísico mas, impressionantemente, sua lógica era inegável.
Era como um manual de instruções, instruções que obedecia conforme cada
linha do código era combinada em sua mente. Abriu um sorriso cavalar que
lhe rasgou as bochechas. Sentiu sua pele rachar conforme o conteúdo da
folha lhe parecia maior e maior em seus olhos. Cada camada que lhe
compunha se descolou conforme um brilho incandescente preenchia a sala,
via através das paredes, via tudo ao mesmo tempo. A beleza bruta que
almejava se deflorava à sua frente. Um grito saiu de sua garganta imaterial
corroendo o pouco de Ser que ainda lhe restava, sentia-se um Reich falando
a seu povo, suas mãos eram toda e cada arma de um exército e sua mente
continha toda estratégia. O brilho que tomava qualquer coisa que pudesse
ver foi transformando-se em vermelho até escurecer de vez. Quando tentou
abrir os olhos novamente, tirou duas moedas que cobriam suas pálpebras.
Tinha a folha rosa escrita em tinta vermelha em seu colo. Estava em seu
carro no meio do campo. Seu assistente pegou as moedas de sua mão com
um sorriso e lhe perguntou em qual direção desejava ir.

2
5, 4, 3, 2, 1

Motoristas buzinavam irritados procurando uma passagem impossível no


engarrafamento. Repórteres locais entusiasmados anunciavam o público
que a pouco lotara o show de fogos de artifício que, por tradição, ocorria na
avenida principal da cidade toda véspera de ano novo. O terror já havia
passado. Restava apenas um resquício ansioso em sua respiração e todo o
suor escorrera de seu rosto para o travesseiro. Não havia uma luz acesa no
apartamento, apenas os faróis dos carros através das frestas da persiana e
uma televisão distante na sala. A cada vez que os carros passavam na rua
logo abaixo, o quarto era iluminado e, num closet com a porta entreaberta,
dois rostos assustados o observavam.

Deitado de bruços, seu punho manchado de sangue apertava o lençol.


Quanto mais carros passavam, mais aqueles rostos lhe observavam. Era
insuportável. Levantou-se: seu corpo nu cheio de cicatrizes auto-infligidas e
sangue seco. Foi em direção ao closet, os rostos sumiram no escuro. Seu
punho apertado tremia e seus dentes rangiam quase ao ponto de quebrar.
Sua mão foi até a maçaneta e duas crianças soltaram gritos contidos no
fundo do closet. Não se decidia, a porta continuava entreaberta e um
soluçar de peitos invadia seu ouvido. Abriu levemente a porta, um carro
passou e ele pôde ver um casal de crianças encolhidos no canto. Urrou de
raiva e com um estrondo bateu a porta. Foi em direção à sala, suas roupas
estavam esparramadas em um sofá: era um uniforme. Vestiu-se e olhou
pela última vez para o seu quarto, o closet estava entreaberto novamente.
A luz da televisão iluminava o seu corpo e o dela, deitada no chão. Saiu e
sequer fechou a porta. O sangue ainda escorria do corpo dela, nua e
desfigurada. Apenas um véu negro cobria seu rosto.

Linha 35421

A cidade agora estava pacata. Havia sido, anos atrás, um vilarejo campestre
e a modernização que atingia as grandes capitais não chegara ainda.
Prédios com mais de cinco andares eram inexistentes e as largas avenidas
que atendiam caminhões agrícolas na época de colheita abrigavam um
punhado de carros naquele início de manhã. Pontualmente os ônibus
amarelos saíam de suas garagens e cortavam a avenida principal. Grupos
de crianças, às vezes acompanhadas de seus pais esperavam regiamente
pelo transporte das 8 horas. E como era de costume, subiam a escada dos
ônibus amarelos em alvoroço. A linha 35421 atendia a um bairro calmo do
subúrbio, distante, e levava jovens estudantes que não tinham mais do que
12 anos para o principal colégio, Saint Éloi, localizada na região central da
cidade, chamada de Paraíso pelos fundadores.

Ao passo que o ônibus avançava através do subúrbio, mais crianças


tripulavam o veículo. Ainda era período de férias e o ano iniciara-se a
apenas algumas semanas. Quem freqüentava a escola nesses dias era
apenas por estar matriculado em algum curso extraclasse. Logo, ao pegar
os passageiros na última parada antes da escola, o motorista pôde contar,
através do espelho retrovisor, 15 jovens alunos. Alguns estavam absortos
em seus próprios jogos, sozinhos ou em dupla, o restante conversava e ria
despreocupadamente. Enquanto atravessavam a avenida principal, a
neblina matinal se dissipava revelando um dia ensolarado. Ninguém
percebeu quando o ônibus 35421 não parou na frente do colégio.

As horas do dia passavam mas nenhum professor pareceu se importar com


a ausência de alguns alunos. Não era algo surpreendente durante os cursos
de férias. Com o passar da tarde, os períodos foram concluídos, cadernos
guardados, carteiras alinhadas, quadros negros e luzes apagados. Todas as
crianças presentes levaram suas mochilas aos seus respectivos ônibus e
retornaram às suas casas ao final do entardecer. Exceto 15. Ao final do dia
29 pais e mães, alguns professores e a direção do Saint Éloi encontravam-se
na delegacia da cidade e a polícia já relacionava o possível
desaparecimento das crianças com o roubo de um ônibus escolar de alguns
dias atrás. Era o comentário geral a insegurança que abatera
repentinamente a cidade: o caso da mulher assassinada e desfigurada
brutalmente da maneira que foi a alguns meses atrás havia fragilizado a
todos. Seu marido e casal de gêmeos haviam desaparecido e a polícia não
possuía um traço de algum suspeito.

O mês se passou e o período de férias da cidade chegava ao seu fim. O frio


do final do ano se dissipava aos poucos e a neve derretida embarrava
jardins e calçadas. Não havia rastro do ônibus roubado e das crianças. Em
alguns dias a cidade retomaria sua atividade normal e, não obstante se
preocupar com as buscas e os repórteres que praticamente acampavam a
frente da delegacia, a polícia ainda investigava internamente o
desaparecimento de algumas evidências do apartamento onde a mulher
houvera sido desfigurada: aparentemente o marido possuía algumas
relíquias da segunda guerra que acabaram sendo passadas a algum
contrabandista por um policial. As manchetes dos jornais replicavam
exaustivamente fotos dos pais desolados e cartazes com as crianças
desaparecidas já preenchiam a maioria dos muros e postes da cidade. No
entanto, no meio da noite, no início do segundo mês de buscas, uma ligação
anônima apontou o improvável: um ônibus escolar fora encontrado dentro
dos muros de uma construção.

“Desce”

Uma dúzia de viaturas cercava a construção e iluminava de azul e vermelho


as vigas nuas de metal. O desconforto dos oficiais era grande, o local não
ficava longe do Saint Éloi e o prefixo do ônibus coincidia tanto com o que
fora roubado como com o ônibus das crianças desaparecidas. Mal
iluminado, o canteiro de obras era largo, haveria de ser um prédio com
diversos apartamentos populares e sua estrutura de seus quatro andares
estava quase pronta. Os policiais avançavam cautelosamente, suas botas
no barro e as lanternas apoiadas no ombro. Vasculharam cada canto da
obra, estava tudo vazio: apenas o ônibus estacionado com a carroceria
manchada de terra. Não demorou muito para que o policial encarregado de
revistar o ônibus soltasse um grito de pavor. Não havia ninguém ali dentro,
alguns bancos de madeira haviam sido quebrados ou removidos, mas todas
as vestimentas das crianças ali se encontravam banhadas em sangue,
espalhadas pelo piso. A pouca esperança que restava de reaver os 15
estudantes acabara de ruir.

O delegado se reuniu com os colegas mais próximos ao lado do ônibus.


Alguns outros grupos de oficiais se formavam, a situação era irreal demais
para a cidade e à iminência do provável desfecho do caso os levava a
cochichar. Outro par de policiais se dividia em uma varredura detalhada do
recinto à busca de detalhes perdidos. O mais jovem deles aparentava uns
25 anos e buscava por dentro da estrutura de vigas do prédio, tentando não
tropeçar no material de construção, enquanto o outro revirava as
adjacências do prédio. Ao se aproximar do centro da construção percebeu
acima uma estrutura que se assemelhava a um fosso de elevador. Com um
frio na espinha percebeu que a parte no chão que estaria destinada a parte
das máquinas do elevador estava fechada por um alçapão de madeira.
Pensou que aquilo deveria ser provisório da obra, mas um pensamento
aterrador de que as crianças poderiam estar ali dentro lhe invadiu.
Enquanto estendia a mão para levantar cautelosamente a porta do alçapão,
sua outra mão intuitivamente se aproximava da arma em seu coldre.
Apenas uma fresta serviu para lhe confirmar: alguém estava ali dentro, uma
fraca luz de vela se percebia tremulando no fosso. Fechou a porta e correu
ao delegado. Todos os presentes se mobilizaram em torno do alçapão que
agora estava aberto.

O fosso se estendia em um corredor abaixo da terra, fracamente iluminado


por uma luz alaranjada. Uma escada de madeira estava jogada no fundo.
Um dos oficiais esticou a cabeça para dentro, mas o corredor fazia uma
curva abrupta um metro adiante e não era possível ver o que havia além. O
silêncio era perturbador. Com sua arma em punho, o delegado aproximou-
se da beira do fosso e em voz de comando gritou para que quem estivesse
ali dentro saísse com as mãos para cima. Passos apressados e o tropeçar de
alguém ofegante ecoaram pelo corredor. Uma batida metálica e o tremular
nervoso da vela pontuaram o nervosismo dos oficiais. O silêncio brutal havia
retornado. O delegado suava frio, pois esperava poder ouvir nem que fosse
um gemido infantil. A luz do corredor se intensificava à medida que o
silêncio era substituído por um suave craquelar. O jovem policial que havia
aberto o alçapão gritou “fogo!” e imediatamente saltou, junto com outros
quatro ou cinco colegas e o delegado para dentro do fosso.

Andreas Vogel

O delegado tinha os olhos inchados e o homem algemado à sua cadeira


atrás da mesa também, mas cada um por seus motivos. Com hematomas
no rosto e os cabelos quase ao ombro, ensebados, o homem pouco se
esforçava para responder ao delegado com sua voz fraca e rouca. Nem seu
nome o delegado conseguiu extrair. Já haviam lhe substituído o uniforme de
motorista escolar pelo macacão do presídio, mas o delegado ainda tremia
cada vez que seus olhos se encerravam, piscando. A lembrança era nítida: o
corpo do homem, vermelho, banhado de sangue em um quarto sem janelas,
acuado em um canto à luz de um incêndio.

Com um estrondo o delegado jogou na mesa um pesado martelo de


borracha, mas o homem pouco se alterou. Limitava-se a ofegar entre os
dentes, com o olhar vidrado. O oficial já não sabia o que perguntar a essa
altura, não existia mais razão naquele homem, era um psicopata.
Perguntou-lhe se aquele martelo havia sido usado como instrumento do
crime. O homem ignorou. O delegado gritou novamente: havia ele usado o
martelo para desfigurar o rosto de cada uma das 15 crianças? Os olhos do
homem focaram por um momento no delegado e disse “não só...”. De
súbito o homem empurrou-se para trás com os pés e a cadeira de metal fez
um guincho agudo raspando no chão de pedra. Com um grito jogou o corpo
para frente, desequilibrando-se e batendo de cara com o chão. Seu nariz
sangrava e rangendo os dentes e ofegando começou a recitar
compulsivamente seqüências desconexas de quatro letras. Entre espasmos
e gritos, retorcia sua cabeça, batendo na pedra gelada. Um enfermeiro
entrou correndo e aplicou-lhe uma seringa. O delegado ajudou a colocar a
cadeira e o homem no lugar novamente. Sua respiração se acalmou
levemente e seu semblante ficou mais suave. Os olhos se focaram
novamente no delegado que deu um passo atrás.

Os 15 corpos foram confirmados como o das crianças desaparecidas. O


ônibus foi confirmado como sendo o que fora roubado. O executor do
assassinato do ano novo também fora identificado. Os policiais que pularam
no fosso aquela noite se afastaram da corporação. O homem foi internado
em um sanatório e condenado à prisão perpétua. O que resta dele é o
registro do gravador, com tudo o que ele falou no interrogatório em um
lampejo de consciência:

Meu nome é Andreas Vogel, tenho quarenta anos e fui professor de História
do Saint Éloi por dez. Me demitiram de lá, começaram a me achar
impróprio, mas minha descoberta era maior que isso. Desfigurei o rosto de
minha esposa e abandonei meus dois filhos. Ela escolheu se opor, a decisão
não foi minha. A beleza da Verdade não é para ser vista por qualquer olho.
E eu vi, eu decifrei a Chave, eu abri a Porta. Eu me submeti ao que ninguém
suporta – Vogel bate a cabeça na mesa e começa a chorar – E-eu, eu abri
mão de tanto... Mas eu vi, e Aquilo é meu! Cegos todos! Cegos! Vocês!
Ignorantes! E vocês A perderam... Quem levou?! Quem?!!! – O delegado
pergunta sobre o que ele está falando – A Folha! E o que mais poderia ser?!
O Código, a Verdade... Eu fui idiota e deixei em casa... Algum ignorante
entre vocês deve ter levado... – Ele volta a ficar ofegante – Eu fiz cópias mas
vocês as deixaram queimar no fogo... e Eles me abandonaram... Me
deixaram à mercê daqueles malditos olhos... malditos... malditos...olhos dos
meus filhos... Eu tinha que acabar com eles... Quem sabe Eles me
perdoariam – O delegado pergunta sobre quem ele estaria falando mas não
recebe resposta – Eu me livrei dos olhos malditos... todos os cinco e aquele
“mais um” – E o delegado pergunta se não haveriam sido 15 crianças
mortas – é... cinco e “mais um”... matei 15. Cada um sentado ao chão
abraçando os joelhos com suas mãos e pés atados sem poder ver a Verdade
espalhada no chão. Lhes encerrei a cabeça no saco preto. Mas ainda tinham
os olhos malditos. Usei esse martelo... usei... usei... Eu esperava Ver
novamente... Ver... mas nunca mais Vi... Vocês chegaram e agora... não...
Vejo... mais... nada. – A gravação é interrompida por um guincho agudo.
Andreas Vogel teve uma convulsão seguida de uma parada cardíaca e foi
levado às pressas para o hospital.

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