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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

Departamento de História

Programa de Pós-Graduação em História Comparada

“MUNGANGA NZAMBIRI”:
um estudo comparativo das concepções populares de cura
na corte imperial (1850-1888).

Glícia Caldas Gonçalves da Silva

Orientador: Professor Doutor


Francisco Weffort
Co-orientador: professora Doutora
Márcia Contins

Rio de Janeiro
2008

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GLÍCIA CALDAS GONÇALVES DA SILVA

“MUNGANGA NZAMBIRI”:
um estudo comparativo das concepções populares de cura
na corte imperial (1850-1888).

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História


Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ),,, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Professor Doutor


Francisco Weffort
Co-orientador: Professora Doutora
Márcia Contins

Rio de Janeiro
2008
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Ficha Catalográfica

CALDAS, Glícia.
“MUNGANGA NZAMBIRI”: um estudo comparativo das
concepções populares de cura na corte imperial (1850-1888).
Dissertação (Mestrado em História Comparada).
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Orientação: Professor Doutor Francisco Weffort.
Co-orientação: Professora Doutora Márcia Contins.
Pós-Graduação em História Comparada.
1.Brasil africano. 2. Representações culturais. 3. Resistência escrava.
4. Religião. 5. Magia.

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GLÍCIA CALDAS GONÇALVES DA SILVA

“MUNGANGA NZAMBIRI”:
um estudo comparativo das concepções populares de cura
na corte imperial (1850-1888).

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada,


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Banca Examinadora:

________________________________________Orientador ( presidente)
Prof. Dr. Francisco Weffort

___________________________________Co-orientadora:
Prof. Dr. Márcia Contins

__________________________________ Professor Convidado


Prof. Dr. José Flávio Pessoa de Barros

___________________________________Professor do PPGHC
Prof. Dr. Fábio Lessa

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AGRADECIMENTOS

Caindo em um lugar comum, não posso fugir a ele, ao afirmar que esta dissertação é fruto de um

trabalho coletivo, no qual instituições e pessoas tiveram o seu papel.

Diversos foram os arquivos onde realizei o levantamento e coleta das fontes, cabendo agradecer aos

responsáveis pela administração e funcionários destas instituições. Na Biblioteca Nacional sempre

contei com a presteza dos funcionários da Seção de Obras Raras e dos jornais, bem como, no

Arquivo Nacional (RJ), Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo do Tribunal do Júri (RJ). Aos

funcionários da biblioteca da UCAM que ao longo da pesquisa nos tornamos amigos, a Anna Senna-

bibliotecária, Robson, José Antonio, Matilde, incansáveis na busca pelos livros, teses e dissertações.

Há três pessoas que certamente merecem destaque, pois acompanharam minhas idéias mesmo antes

de se consolidarem, o Prof. Edson Borges, da UCAM, co-responsável pelo caminho que hoje trilho,

com toda sua paciência e dedicação, orientou as primeiras linhas do projeto, nas leituras,

direcionando e apurando minhas “idéias”; Prof. Mônica Lima, nas discussões dos seminários, nos

esclarecimentos das dúvidas e a Prof. Márcia Contins, da UERJ, co-orientadora da pesquisa,

incansável nas suas considerações e avaliações. Agradeço a Edson, Mônica e Márcia, também a

amizade, o estímulo, a confiança e o profundo respeito com que me trataram, a intervenção séria,

ponderada diante do trabalho intelectual do outro.

Aos meus colegas do Colégio Estadual Dom Helder Câmara, agradeço a compreensão na reta final

deste trabalho, em especial, a diretora Regina Rodrigues. A Cláudia Viegas, a Claudinha, os socorros

na reta final, os desesperos do “não sei fazer”, a montagem e ilustrações da dissertação.

9
Ao Prof. Flávio Edler da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz sou grata por ter discutido alguns pontos

desse trabalho quando da minha participação em um dos Seminários do PPGHC, também ao Prof.

Anderson José Machado de Oliveira sua valiosa contribuição. Ao prof. Didier Lahon agradeço por

ter, de forma crítica e inteligente examinado todos os capítulos desta dissertação. A Ronilda Iyakemi

da USP, amiga e incentivadora, sempre estimulando com suas críticas brilhantes, nunca deixando

que eu desanimasse nos momentos mais complicados.

Ao departamento de Pós Graduação em História Comparada do IFCS-UFRJ agradeço o estímulo das

secretárias Márcia Aparecida Ramos e Leniza Maria dos Santos, em momentos de desâmino e do

exercício de paciência pelas minhas ansiedades. Ao seu corpo docente, em particular a Prof. Regina

Bustamante, Prof. Silvio Almeida de Carvalho Filho, Prof. Fábio Lessa, Prof. Maria da Conceição

Pinto de Góes. Ao Prof. Francisco Weffort a orientação brilhante e competente, os méritos desse

trabalho são frutos de sua intervenção.

É difícil para quem não é da área compreender o que significa a realização de uma dissertação,

depois de muitos anos longe da universidade, retornar foi um desafio, que não teria sido possível

sem os estímulos e cumplicidade de vocês. Aos meus filhos, Raphael e Celso Junior pela minha falta

de paciência e irritação. Mas sem vocês eu nada teria conseguido ou não teria finalidade. Ao meu tio

amado tio Gil e minha mãe Gilma (in memorian), sem eles não teria concluído a graduação, grande

incentivadores de meus estudos.

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EPÍGRAFE

“Osanyn, filho de Nanã e irmão de Oxumarê, Ewá e Obaluaê, era o senhor das
folhas, da ciência e das ervas, o orixá que conhece o segredo da cura e o mistério
da vida. Todos os orixás recorriam a Osanyn para curar qualquer moléstia,
qualquer mal do corpo. Todos dependiam dele na luta contra a doença. Todos
iam à casa de Osanyn oferecer seus sacrifícios. Em troca ele lhes dava preparados
mágicos: banhos, chás, infusões, pomadas, abô, beberagens. Curava as dores, as
feridas, os sangramentos; as disenterias, os inchaços e fraturas; livrava o corpo de
todos os males. Um dia Xangô, que era o deus da justiça, julgou que todos os
orixás deveriam compartilhar o poder de Osanyn, conhecendo o segredo das
ervas e o dom da cura. Xangô sentenciou que Osanyn dividisse as folhas com os
outros orixás, ele negou-se. Xangô ordenou a Yansan que soltasse os seus ventos
e trouxesse para o seu palácio todas as folhas das matas para serem distribuídas
aos orixás. Yansan deusa dos ventos, fez o que Xangô determinara, gerou um
furacão que derrubou as folhas das plantas e as arrastou em direção ao palácio de
Xangô. Osanyn percebeu o que acontecerá e gritou:
“Ewé, ewé Assá!”
“As folhas funcionam!”
Ele ordenou que as folhas voltassem às suas matas e elas obedeceram. Quase
todas as folhas retornaram, mas aquelas que ficaram em poder de Xangô
perderam o axé. O orixá-rei, que era justo, reconheceu o poder de Osanyn,
devendo ter o poder exclusivo das folhas. Osanyn, contudo, deu folhas para cada
orixá, deu uma ewé para cada um deles. Cada folha com seus axés e seus ofós,
que são cantigas de encantamento, sem as quais as folhas não funcionam. Mas os
segredos, guardou para si. Os orixás ficaram gratos e sempre o reverenciam
quando usam as folhas.”

(In: PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 153-
154.)

Utilizo um itan, uma lenda, do panteão Yorubá, Osanyn e Yansan são equivalências de Katendê e Kaango,
respectivamente, na cultura Bantu.

O universo mágico a muitos de nós fascina e estou incluída nele, evoco os poderes de Osanyn que me
permitiu transitar nos meandros das curas e a senhora do meu destino, minha essência de vida, que com a
brisa de seus ventos moldou minha própria história.

Ewé, Ewé Assá! Com a proteção de Osanyn, podemos iniciar a leitura.

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RESUMO

O presente estudo visa examinar as concepções populares de cura na Corte Imperial do Brasil,

especificamente da população negra, na segunda metade dos oitocentos. A abordagem comparativa

recai na discussão da legitimação da medicina popular e da medicina acadêmica, das relações sociais

que envolviam aqueles que se dedicavam às diversas formas do ofício de cura e a relação conflituosa

com a medicina oficial. A necessidade de incorporar outros sujeitos políticos menos “legítimos”

oficialmente, silenciados no discurso sobre a medicina do Brasil Imperial. Práticas carregadas de

simbolismos e rituais, apelos ao mundo da fé, da crença, da magia. O africano escravizado buscou e

utilizou diversas formas de resistências, tentando minimizar a adversidade das relações sociais numa

sociedade estratificada. As práticas da magia são inseridas em uma das formas de resistência escrava

contra o sistema escravista, como instrumento legitimador da repressão e violência.

Palavras chaves: Brasil africano, representações culturais, resistência escrava, religião, magia.

12
ABSTRACT

This study’s aim is to investigate the popular concepts of healing in the Imperial Court of Brazil,

specifically among the Black population in the second half of 19th century. By means of a

comparative approach it focuses on the discussion about the legitimization of the popular as well as

the official forms of medicine, on the social relations within which were those who dedicated

themselves to the diverse practices of healing, and on the conflicting relations between them and the

official medical discourse. It also focuses on the need to incorporate other officially “less

legitimized” agents, who have been silenced in the context of the medical discourse during the

imperial period, and on those practices strongly associated to symbolisms and rituals, as well as to

faith, beliefs and magic appeals. The enslaved Africans looked for and made use of many forms of

resistance, so minimizing the adversities of the social relations in a stratified society. Magic practices

are contextualized as one of the slaves’ forms of resistance against the slavery system, as an

instrument against repression and violence.

Keywords: African traditions in Brazil,salvery resistance, religion e magic.

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SUMÁRIO

Introdução - 12

Capítulo 1: A Magia do “feitiço”: apropriações africanas no Brasil Colônia - 17


1.1- Cosmogonia africana - 26
1.1.1-O equilíbrio harmônico e o papel do adivinho - 33
1.1.2-O curandeiro - 39
l. 2-Catolicismo “à moda” centro-africana - 44
1.2.1-Objetos mágicos africanos - 49
1.2.2-Do centro-africano às irmandades negras na Corte Imperial - 53

Capítulo 2: Na contramão da fé – a construção do saber médico - 59


2.1- Organização dos serviços de saúde na Corte Imperial - 65
2.2-Hefaísto – o deus grego do trabalho e a “desvalorização” das artes mecânicas - 68
2.3-Os periódicos e as questões médicas - 70
2.3.1-Miasmas mefíticos - 74
2.3.2-Insalubridade e sepultamento - 76
2.4-Espaço urbano e higiene - 81

Capítulo 3: Doença! Castigo de Deus? - 88


3.1- Concepções da população negra de doença/cura - 90
3.2- Os santos doutores - 97
3.2.1-Construindo identidades - devoção aos santos negros - 101
3.3 - Universo simbólico de matriz africana - 104

Considerações Finais - 113

Ilustrações - 117

Fontes - 125

Créditos das ilustrações - 126

Bibliografia - 127

14
INTRODUÇÃO

O interesse em desenvolver uma pesquisa sobre as diversas “medicinas” no Rio de Janeiro Imperial e a

relação com a religião praticada pelos escravos, libertos e descendentes, surgiu, inicialmente, com as

atividades comunitárias realizadas em zona rural do Estado do Rio de Janeiro. As tradições do uso de

“medicamentos alternativos”, uma outra lógica de explicação do corpo doente e do restabelecimento da

saúde, nos dias atuais, lembravam minha infância, as rezas para “espinhela caída” e “nervo torcido”,

“água benzida”, xaropes de ervas e raízes para fins variados, etc., são integrantes do meu universo

familiar. A curiosidade fez com que eu começasse pequenas pesquisas sobre as “origens” dessas

tradições, com vários indícios comecei a montar o estudo. Pensei, de início, em trabalhar com todo o

período da Corte imperial, mas a vastidão do corpus documental, proibia um corte temporal grande, optei

por “dar conta” da época da eclosão dos conflitos da medicina oficial, da luta pela sua legitimação junto

à população da Corte, dos “ataques” a qualquer outra prática médica diferenciada dela. Da necessidade

de incorporar outros sujeitos políticos menos “legítimos” oficialmente, silenciados no discurso sobre as

diversas medicinas do Brasil imperial, os agentes de cura. Especificamente nessa pesquisa, os praticantes

dos ofícios de curas negros e seus descendentes oriundos do tronco lingüístico Bantu, especialmente os

Bacongos.

A abordagem comparativa recaiu sobre as relações sociais que envolviam aqueles que se dedicavam às

diversas formas do ofício de curar e a relação conflituosa com a medicina oficial, que se julgava a

“medicina científica”. As inter-relações políticas da medicina acadêmica versus autenticação, prestígio e

poder dos agentes de curar. O século XIX foi um período de grandes transformações para o Brasil, com

um conjunto de fatos políticos, sociais, demográficos e econômicos que mudaram substancialmente a


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história do nosso país, neste panorama a pesquisa está situada. A primeira epidemia da febre amarela em

finais de 1849 e a última da Corte imperial no verão de 1889, os surtos epidêmicos conjugados com a

declarada “guerra” registrada nos periódicos da época, que se iniciaram em meados de 1850, dirigida a

todos aqueles que praticavam a medicina não acadêmica, delimitaram a escolha temporal da pesquisa, a

Corte imperial de 1850-1888.

Do ponto de vista metodológico uma das minhas preocupações é não partir do macro para o micro, ou

seja, das instituições médicas para os agentes de curas. Para se entender como as representações culturais

das concepções de doença/cura da população negra aconteceram em solo brasileiro, necessário pequenas

“viagens” à África, examinando as tradições culturais do antigo Reino do Kongo pertencentes ao tronco

lingüístico Bantu. Quais as implicações da transposição do discurso europeu de “feitiçaria” para as

práticas mágicas africanas, tentando delinear os processos pelos quais o material cultural que foi

preservado pôde contribuir para recriação, ressemantização das instituições a que os escravos se

dedicaram no Novo Mundo, no caso da pesquisa, a religião, através das práticas de curas. Os

colonizadores já conviviam com um discurso sobre feitiçaria, antes de terem contato com os povos

africanos, o que fizeram foi transferir para o contexto africano os estereótipos sobre a feitiçaria e

feiticismo das crenças oriundas dos estratos populares europeus. Por falta de uma literatura própria

africana sobre a feitiçaria, a igreja aderiu ao amplo contorno da construção européia da feitiçaria. Para

Laura de Mello e Souza, o Brasil até meados de 1750, “pode ser caracterizado por uma espiritualidade

medieval, que se mostrou presente na organização das confrarias, refundindo espiritualidades diversas

num todo absolutamente específico e simultaneamente multifacetado”1. Compreender este discurso

torna-se imprescindível para o entendimento das concepções de doença/cura para população negra da

1
MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colônia.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.88.

16
Corte, constituindo o primeiro capítulo da pesquisa. Para esta parte, utilizo os processos da Inquisição de

Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo e Arquivo Nacional (RJ).

No segundo momento, continuando no percurso na tentativa de compreender os curandeiros na cidade do

Rio de Janeiro, tracei os passos da institucionalização do saber médico no Brasil Império, o que torna

importante para conhecer os espaços sociais da medicina popular. Consultando as fontes, ficou claro que

só chegaria aos agentes de cura através dos representantes da medicina acadêmica, não esquecendo que

essas fontes são oriundas da medicina oficial carregadas de preconceitos estereotipados, necessário

desconstruir o discurso e tentar chegar até o universo cultural dos curandeiros, da época. Um breve

histórico sobre os serviços de saúde do Império, abordando os vários conflitos médicos pela disputa do

seu lugar na sociedade, as dificuldades pela sua legitimação e a concorrência com os agentes de cura,

prestigiados pela população. A perseguição aos mais variados praticantes negros da medicina popular

muitas vezes, esteve ligada à repressão aos cultos de origens africanas, consideradas “bárbaras”,

“atrasadas”, “primitivas” e, por isso um sério entrave aos padrões de civilização e cultura desejados para

o Brasil. Cruzando dados colhidos nos periódicos da época com a documentação da Junta Central de

Higiene Pública e da Secretaria da Polícia da Província, obtive um parâmetro de comparação entre a

legitimação das medicinas praticadas na cidade Imperial.

No terceiro capítulo, examino as relações sociais dos agentes de curas, em termos de sua eficácia, o

diferencial é encontrado mais nos parâmetros da relação estabelecida entre quem cura e quem deseja ser

curado, isto é, entre outros critérios, pela credibilidade e confiança. Esta relação se estabelece em

momentos de fragilidade desse último, que recorre a um agente de cura em quem possa confiar.

Contribuindo para essa confiança, partilhavam da mesma concepção de doença e cura, sobre a etiologia e

o tratamento do corpo doente, relacionadas às visões cosmológicas, principalmente, africanos e


17
descendentes. A procura pelas diferentes medicinas estava relacionada, na percepção de muitos pacientes

à eficácia simbólica2 dessas práticas, a importância maior na hora de escolher um tratamento recaía na

crença no poder ou no carisma de determinados agentes de cura, fosse das mazelas do corpo ou da alma.

As fontes desse momento foram os inquéritos instaurados pelo Inspetor geral da Junta Central de Higiene

pública e as denúncias dos periódicos. Os Relato dos viajantes que passaram pela cidade Imperial

proporcionaram um perfil do seu cotidiano, o próprio ambiente mórbido da cidade apontam para uma das

causas viáveis das doenças que afligiam a população escrava e descrevem atitudes da religiosidade negra

na Corte.

2
Cf. LÉVI-STRAUSS, “O feiticeiro e a magia” e “A eficácia simbólica”, In Antropologia estrutural. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. Ao trabalhar com essa noção, o autor refere-se à importância da crença na magia,
ou em outras formas de cura, para a sua eficácia, muito mais do que quaisquer fatores objetivos. O autor busca, ao
estudar determinadas práticas mágicas de curas, não os mecanismos concretos que tornariam possíveis tais curas,
mas na explicação baseada em um consenso, um reconhecimento social do poder de cura de quem exercia a atividade
terapêutica.

18
A MAGIA DO “FEITIÇO”:

APROPRIAÇÕES AFRICANAS NO BRASIL COLÔNIA.


19
A MAGIA DO FETIÇO: APROPRIAÇÕES AFRICANAS NO BRASIL COLÔNIA

Os estudos sobre a religião de matriz africana têm geralmente se concentrado sobre o relativo grau de

continuidade ou transformação sofrida pela cultura religiosa de origem africana no Novo Mundo.

Enquanto autores como Herskovits, Bastide têm dado uma ênfase especial à continuidade das formas

culturais africanas e à “tenacidade da tradição”, mais recentemente, outros autores têm notado as

“dramáticas” mudanças que ocorreram no processo de transferência, concluindo que a experiência no

Novo Mundo tem praticamente diluído a herança africana. Essa corrente interpretativa destaca a hibridez

ou crioulização da religião de matriz africana e a necessidade de estudá-la e entendê-la dentro da

especificidade do processo histórico e do contexto sociocultural brasileiro. Esse modelo critica uma

“busca por africanismos”, ou sobrevivências culturais africanas, empreendidas pelos estudiosos, o que,

em certos casos, é visto como forma de “exotizar” a religião. Mintz & Price podem ser considerados

como o cerne dessa corrente “crioula”3, e têm sugerido um enfoque diferente nos estudos sobre

continuidades e mudanças. Mais do que comparar as formas e funcionalidades dos elementos religiosos,

eles chamam a atenção para a necessidade de comparar o sentido dos “africanismos” e a persistência de

certas orientações cognitivas ou “visões do mundo” e sugerem comparar não os aspectos estruturais das

representações culturais, mas o que essas representações significam, pretendem e expressam em um

mundo novo. Os processos de crioulização são postulados opostos ao poder de resistência das etnicidades

3
HERSKOVITS, Melville J. “African gods and catholic saints in the new world negro belief ”. Anthropologist,
XXXIX (4), l937, pp. 635-643; BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das
interpenetrações de civilizações, São Paulo, Biblioteca pioneira de Ciências Sociais, 1970, 1° volume. Ver em MINTZ,
Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de
Janeiro: Pallas, Universidade Candido Mendes, 2003, nos conceitos de crioulização, os africanos escravizados
empregaram, padronizaram e transformaram materiais culturais em novas tradições no Novo Mundo, para dar
coerência, sentido e um certo grau de autonomia a sua nova condição.

20
africanas. O conceito de crioulização4 era originariamente, um modelo lingüístico que foi estabelecido a

outras formas culturais, ampliando este modelo para escreverem sobre culturas inteiras, Burke em seus

estudos sobre hibridismo cultural, escreve:

Vários scholars sugeriram a relevância deste modelo lingüístico para o estudo do


desenvolvimento da religião, da música, do estilo de moradia, vestuário e culinária afro-
americana (...) para se referir à emergência de novas formas culturais a partir de antigas
formas. (...) Podendo-se dizer as mesmas coisas a respeito do Brasil, onde diferentes culturas
africanas se fundiram e se mesclaram com tradições nativas e portuguesas e produziram um
nova ordem. 5

Visitar ritos e simbolismos religiosos dos povos da diáspora africana é imprescindível para o

entendimento de “agregações”, “apropriações” e “recriações” de representações culturais dos grupos de

africanos escravizados que foram transmigrados para o Brasil. Examinaremos as concepções do

entendimento da religiosidade centro africana pelos europeus, do “nascimento” de um catolicismo “à

moda africana”, da implicação na transposição do discurso europeu sobre “feitiçaria” para as práticas

religiosas africanas. A região do Congo-Angola foi daquelas que mais forneceu africanos para o Brasil,

especialmente para o sudeste, posição assumida no século XVII e consolidada na virada do século XVIII

para o XIX. Muito se escreveu, no âmbito da bibliografia etnológica e antropológica, sobre a importância

das religiosidades banto na chamada cultura afro-brasileira e bastaria isto para estimular investigações

mais sistemáticas sobre a história da região. A África Central, Congo/Angola, região responsável por

40% a 45% dos africanos escravizados, do final no século XVI até o XIX, embarcados pelo porto de

Angola. Luiz Felipe de Alencastro6 inverte para o Brasil e Angola, o que antes era visto pela

4
Cf. BURK, Peter. Hibridismo cultural. RS: Unisinos, 2003, pp. 61. Para o autor, o modelo de crioulização começou a
ser empregado para descrever uma situação na qual uma língua franca ou pidgin anterior desenvolve uma estrutura mais
complexa na medida em que as pessoas começam a utilizá-la para propósitos gerais ou mesmo como forma de tentativa
de comunicação entre vários grupos sociais de línguas diferentes, formando uma “outra língua”. Duas línguas em
contato se modificam e ficam mais parecidas e assim “convergem” e criam uma terceira língua.
5
Ibidem.
6
ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos viventes: formação no Brasil do Atlântico Sul. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. Ver em especial o capítulo 7 – Angola brasílica.

21
historiografia como comércio triangular e nos alerta para uma rota de comércio entre o Rio de Janeiro e

Angola, principalmente das “peças” humanas. A maioria da população negra da cidade imperial era

constituída por africanos escravizados saídos por Angola. Os primeiros contatos entre os europeus e os

africanos da África Centro-ocidental, nos séculos XVI e XVII, através da bacia dos rios Zaire e Cuanza,

chegando ao reino do Congo, facilitou o interesse dos portugueses no seu enraizamento ao longo dos

séculos seguintes, junto com eles, a missão jesuítica de converter os povos “gentios”. Adotarei como

catolicismo popular negro7, o que alguns autores, Marina de Mello e Souza, Thornton e outros, chamam

de cristianismo africano, construído de forma dinâmica, resultando da forma de interação dos materiais

do cristianismo com as diferentes cosmologias africanas, da existência de uma base comum entre as

religiões em contato. Não estou compactuando com os conceitos de Bastides, que atribuí ao catolicismo a

capacidade de pré moldar as religiões de matrizes africanas no processo de gestação de um “catolicismo

negro”, caracterizando-o como um “subcultura de classe”. A opção pelo termo, catolicismo popular

negro, é pela especificidade dos dogmas católicos, enquanto o cristianismo é mais amplo, abrangendo

muito mais do que somente os rituais e simbolismos da religião católica romana. Alterações ritualísticas

que na Europa levariam seus adeptos aos tribunais da Inquisição, na África foram imprescindíveis para a

implantação do catolicismo. Da apropriação do simbolismo sagrado africano, pelos colonizadores, em

uma outra prática de crença, em nome da “salvação das suas almas”.

É necessário compreendermos o significado da categoria “feitiçaria” para uma grande parte da África,

em comparação com a perspectiva ocidental, traçando um arcabouço da religiosidade africana e da

religiosidade da população negra no Brasil. Através do universo da “magia do feitiço”, utilizados para

7
Ver MELLO E SOUZA, Marina. Reis negros no Brasil escravista, história da festa de coroação de Rei Congo. Belo
Horizonte: UFMG, 2002, p.55; THORNTON, John. Africa and africans in the making of the Atlantic world, 1400-1680.
New York, Cambridge University Press, 1992, p. 235-271; Bastides, op.cit.,1972.

22
uma gama variável de situações: problemas amorosos, dificuldades financeiras, curas de doenças,

minimização das dificuldades das relações entre senhores e escravos, como também para provocar

infortúnios, desarranjos sentimentais, familiares, doenças. Outras, como um “contra feitiço”, para

contra atacar, como um “remédio” para as mazelas provocadas por feitiços, seja do corpo ou do espírito.

Através das práticas da religião tradicional de matriz africana ou do catolicismo popular negro, das

confrarias, irmandades, o africano escravizado buscou e utilizou diversas formas de resistências tentando

minimizar a adversidade das relações escravas.

Alguns estudos importantes perceberam bem a relação entre a feitiçaria e tensões sociais, entre eles, o

trabalho de Evans-Pritchard8 sobre as bruxarias utilizadas pelos Azande, do sul do Sudão e nordeste do

Congo, publicado em 1937. Para o autor, a bruxaria explica porque pessoas sofrem infortúnios

particulares - acidente, doença, morte, perda de emprego. Ele alega, que a bruxaria como teoria da

causalidade está voltada para a singularidade do infortúnio. O “bruxo” coloca seus poderes malignos para

fora e causa o infortúnio. Evans-Pritchard desenvolve em seu trabalho, que a feitiçaria busca explicar o

porquê do infortúnio, o porquê da animosidade que causa nos homens o desejo de fazer o mal a outros.

Os sistemas de crenças na bruxaria tendem a ser fechado, absorvendo falhas e evidências aparentemente

contraditórias. Esse sistema de crenças é caracterizado por aquilo que ele chamou de “elaboração

secundária da crença”. Em muitos casos, onde a magia não funciona, a falha pode ser interpretada dentro

do sistema invocando-se outras crenças. Outro ponto importante abordado por ele, é que os bruxos

8
EVANS-PRITCHARD, E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p.26. Os
Azande pertencem ao tronco lingüístico Bantu, localizados na África Central. O bruxo tinha uma substância
localizada no estômago, qualquer pessoa poderia tê-la, independente de ser uma boa ou má pessoa, é uma qualidade
intrínseca. “Um ato de bruxaria é um ato psíquico, não possuí ritos, não profere cantações e não empregam drogas
mágicas”, p. 37. Os Azande fazem uma distinção entre bruxaria e feitiçaria, contra ambos eles empregam adivinhos,
oráculos e drogas mágicas.

23
estavam entre os inimigos e que a bruxaria era assunto que ligava a causa do infortúnio à moral das

relações sociais. A análise do autor dá uma natureza circular do raciocínio em qualquer sistema de

pensamento sobre as crenças, não estando restrita somente aos sistemas de crenças dos Azande, mas

permitindo comparações.

Cerca de trinta anos depois dos estudos de Evans-Pritchard sobre bruxaria entre os Azande, esta análise

foi objeto de reflexão acerca da feitiçaria européia. As mazelas trazidas por um difícil século XIV, com

pestes, fome, crise econômica, desesperança, pessimismo, herança abraçada pelo alvorecer da Época

Moderna e acrescida ainda de conflitos religiosos, fizeram aumentar cada vez mais as pressões sociais.

Assim, as desgraças que assolavam os indivíduos eram encarnadas na figura da bruxa, responsabilizadas

por muitas destas intempéries. Segundo Jean Delumeau,

... na estrutura de uma sociedade que ainda permanecia amplamente no estágio mágico, a
bruxa era necessária, portanto, como bode expiatório, sendo aliás verdade que certos
indivíduos realmente procuraram desempenhar esse papel nefasto de enfeitiçador.9
.

Para Marc Augé, as bruxas, tentam resolver as angústias existenciais das suas épocas e de suas culturas,

desempenhando uma função social reconhecida (Cf. figura 01):

Sublinha que as descrições de “bruxaria” africana que pôde fazer “ao vivo” (através das
confissões dos acusados, o rumor público ou os especialistas locais da cura e da contra
feitiçaria) evocam de maneira bastante notável aquelas que puderam recolher no seu tempo
os inquisidores e os juízes; os temas do desdobramento, a metamorfose e a ambigüidade da
relação feiticeiro/contra feiticeiro, nomeadamente apresentam sobre os dois continentes, em
uma e a outra história, numerosas analogias.10

Muitos antropólogos e historiadores das religiões distinguiram teoricamente a magia da religião.

Radcliffe-Brown lutou para que fosse suprimida a palavra “magia” da linguagem antropológica. A

9
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1800, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 376.
10
AUGE, Marc. ( apud Lahon, Didier. “Inquisição e pacto com o demônio e “magia” africana em Lisboa no século
XVIII”. Revista Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, nº 8, 2204, p. 62, transcrição da nota de nº 45).

24
religião supõe uma atitude de respeito, submissão e culto aos seres transcendentes e seus poderes.

Baseia-se na oração-petição exteriorizada de várias maneiras e espera atingir os seus objetivos, porque

confia plenamente na liberalidade dos poderes sobre-humanos depois de invocados, aplacados e

suplicados. Exige da criatura, um sentimento de submissão a um poder superior, que chega à

confiança e relação pessoal. Malinowski11 impulsionou com os seus estudos na Nova Guiné, no

arquipélago Salomão e nas Ilhas Trobriand, o funcionalismo antropológico e, com base na utilidade,

distinguiu a magia da religião. Para ele, a magia serve para conseguir êxitos ou desviar perigos. É

utilitária, pois instrumentaliza métodos e poderes, tendo sempre em vista objetivos concretos e claros. A

magia é um complemento dos sistemas racionais do pensamento e do conhecimento.

Nas sociedades Bacongo e mais amplamente nas Banto, há três espécies de especialistas que ocupam o

âmbito das atividades da “magia”: o adivinho, o curandeiro e o feiticeiro. Muitas vezes as funções

desempenhadas pelo adivinho e o curandeiro podem ser reduzidas a um único especialista. O feiticeiro

seria aquele que atuaria para o desequilíbrio da comunidade ou de uma pessoa, utilizando a magia

maligna. Iremos examinar, brevemente, esses especialistas ritualísticos, numa comparação entre as suas

funções em África e no Brasil. No Brasil pela transposição do discurso europeu de feitiçaria para todas e

quaisquer práticas mágicas africanas, colocou-se muitas vezes, erroneamente, os três especialistas sob

um grande guarda chuva, o dos “feiticeiros”.

As colônias portuguesas africanas eram quase todas pertencentes ao tronco lingüístico Bantu. Os povos

que o compõem, somente na década de 1860 receberiam esse nome, palavra que significa “homens ou

povo”, na grande maioria desses idiomas. Nos estudos sobre a escravidão ainda é comum ter-se a idéia

que a comunicação efetiva entre os africanos escravizados só teria se iniciado após a viagem para o Novo
11
MALINOSWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião, Lisboa: Ed. 70, 1988, pp. 70-149.

25
Mundo. Na diversidade das línguas entre os povos Banto muitos dos vocábulos-raízes indicavam os

conceitos básicos da vida cotidiana. Os Banto perceberam uma similitude em suas falas que propiciavam

uma forma de comunicação, muito antes da travessia do Atlântico12, no interior do próprio continente

africano. E esta descoberta não se restringiu apenas ao idioma, estendia-se também a outras áreas

culturais.

Com os africanos escravizados e as mercadorias africanas, oriundos da região dos bacongos, vinham as

representações culturais de sua cosmologia, maneiras de lidar com as coisas do mundo real e do

sobrenatural. Bacongo é o nome dado pelo qual a Antropologia e a História têm identificado os povos

habitantes de regiões do atual Congo e Angola. Algumas dessas maneiras podem ser identificadas nas

representações culturais recriadas por africanos de origem Banto e por seus descendentes, pelas várias

maneiras que os bacongos reinterpretavam símbolos e rituais estrangeiros, em termos básicos de sua

cultura de origem.

As instituições nodais ou nucleares em torno das quais os africanos escravizados ordenavam sua vida

devem ter-se voltado para certos problemas fundamentais, como o estabelecimento de amizades,

desenvolvimento de grupos de parentesco, a constituição de unidades domésticas, o aperfeiçoamento de

soluções para as crises da vida, a padronização social para lidar com o nascimento, a doença e a morte,

a formação de grupos religiosos e a solução dos problemas da servidão, muitas vezes, do estar doente,

etc. As instituições surgidas em qualquer população escrava nos primeiros tempos da escravidão do Novo

12
SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Revista da USP, São Paulo, n°
12, pp.48-67, 1991-1992, p.50. Os estudos clássicos sobre escravidão acreditam que as comunicações entre os
africanos escravizados só aconteceram com a chegada no Novo Mundo, com o aprendizado de um pídgins ou jargões
comerciais, isto é, uma língua com gramáticas e léxicos reduzidos, usadas em atividades especializadas, que
envolviam grupos sem uma língua comum.

26
Mundo podem ser vistas como uma espécie de arcabouço em que era possível empregar, padronizar e

transformar materiais culturais em novas tradições, os africanos escravizados transmigrados para o Novo

Mundo “recriaram” instituições, constuíndo redes de solidariedade e empregando resistências

individualizadas ao sistema escravista .

A maioria das religiões da África centro-ocidental parece ter tido em comum certos pressupostos

fundamentais sobre a natureza da causalidade e a capacidade de a adivinhação revelar causas específicas,

bem como sobre o papel ativo dos mortos na vida dos vivos, a receptividade das divindades, em sua

maioria, às ações humanas, à estreita relação entre o conflito social e a doença ou a desgraça. O saber

ritualístico tende a ser restrito a certos indivíduos ou grupos de culto. Uma parcela expressiva da religião

da África ocidental e central servia de meios de orientação ou, pelo menos, concentrava-se em

acontecimentos especiais, desde as doenças até as coroações, era considerável a parte de conhecimento

dos ritos substantivos nas mãos dos especialistas. Esta instrumentalização dos ritos incentivava a

experimentação com novas técnicas e práticas de povos vizinhos, como a adoção delas; logo, a maioria

das religiões da África centro-ocidental era relativamente permeável às influências estrangeiras e tendia a

ser agregativa, e não excludente, em sua orientação para as outras culturas. Dessa forma, também

aconteceu em solo brasileiro, onde os africanos escravizados, através dos materiais culturais africanos

que foi preservado agregando a outros novos, tornaram-se especialistas em determinada assistência

ritualística.

Craemer, Vansina e Fox13, ao procurarem explicar a constante emergência de movimentos religiosos na

África Central, observaram que, apesar das diferenças existentes entre as práticas religiosas dos diversos

13
Ver CRAEMER, Vansina e Fox. “Religious Movements in Central Africa: a theoretical study”, In Comparative
studies in Society and History, (18), 1967, pp. 458-475.

27
povos centro-africanos, existia um referencial mais amplo e profundo a todas elas, o “complexo

ventura/desventura”. Eles perceberam que para a cosmologia centro-africana, todas as experiências e

objetivos considerados favoráveis e bons são integrantes da ordem natural das coisas. Esses valores

positivados pela cosmologia estão à saúde, a fecundidade, a segurança física, o equilíbrio, o poder, o

prestígio e a riqueza. O universo é harmônico e tudo que o desequilibra provêm de forças não naturais,

causados pela malignidade de pensamentos, sentimentos e ações individuais ou coletivas de outras

pessoas. A produção do dano pode ser proveniente da intenção inconsciente ou consciente de uma

pessoa de se utilizar certos rituais para atrair forças espirituais malévolas com a finalidade de causar o

mal, representados pela doença, infertilidade, miséria, morte, o negativo tem como causa a “feitiçaria”14.

Todo o conjunto de simbolismo e rituais das práticas religiosas da África Central visa à maximização da

ventura e a prevenção contra a desventura, permitindo uma efetiva proteção para as adversidades do

cotidiano. O equilíbrio harmônico quando ameaçado pela presença de forças negativas, faz com que os

povos se desencantem com os seus simbolismos, quando a comunidade sente que não mais está sendo

protegida da desventura. Esse sentimento coletivo propicia a emergência de novas experiências religiosas

que possam ser mais efetivas na preservação da comunidade. Novos simbolismos e rituais são inseridos

ou agregados para protegê-los da desventura, para tal é necessário que os materiais “estrangeiros”

possuam características em comum com aqueles a que estão em substituição. Esses novos materiais

agregados ou recriados tornam-se ícones religiosos em torno dos quais os movimentos de renovação

religiosos são construídos.

14
CRAEMER, Vansina e Fox .Op. Cit., p. 461.

28
1.1 Cosmogonia africana.

A cosmogonia africana é harmônica, o universo é coeso e tudo que o desequilibra é visto como

sobrenatural sortilégio mágico, produto de feitiçaria. O sagrado permeia de tal modo todos os setores da

vida africana, que se torna impossível realizar uma distinção formal entre o sagrado e o secular, entre o

espiritual e o material nas atividades do cotidiano. Uma força, poder ou energia permeia tudo. Como diz

Tempels15, o valor supremo é “a vida, a força, viver forte ou força vital”. Essa força não é

exclusivamente física ou corporal e sim uma força do ser total, sendo que sua expressão inclui os

progressos de ordem material e o prestígio social. Felicidade é possuir muita força e infelicidade é estar

privado dela. Toda doença, flagelo, fracasso e adversidade são expressões da ausência de força. Os

símbolos e rituais dotam a comunidade de uma força e proteção especial frente a adversidade da vida

diária, seu objetivo principal é preservar a “vida boa”16.

Como os Banto só entendem a sua religião enquanto vivida e atuante em todos os momentos individuais

e sociais, a sua existência deve ser uma comunhão e uma entrega ativa. Para eles, a religião tradicional

concretiza-se quando o indivíduo e a comunidade comunicam com o mundo invisível e com o visível

através dos ritos, orações, sacrifícios, festas, ritos de iniciação, caça aos feiticeiros. Somente assim, há a

harmonia e o equilíbrio para a comunidade. Mas os flagelos, as mazelas estão sempre rondando as

comunidades, exigindo a interferência de especialistas religiosos. Quando a magia perturba as relações

solidárias, só os especialistas, o adivinho e o curandeiro logram harmonizar a comunidade. “Os Banto

15
TEMPELS, R.P.P. La philosophie bantoue. Paris, Colléction Présence Africaine, 1949. Também para o ocidente
existia essa mesma concepção, nas camadas populares até o fim do século XIX.
16
Ver CRAEMER, Vansina e Fox, op. cit., p.468. “Vida boa” para os banto é representada pela presença da
harmonia e equilíbrio, através de uma força espiritual, mágica.

29
também expressam pela magia a sua vivência espiritual. Religião e magia interpenetram-se e são

inseparáveis. A magia é religiosa, melhor, a Religião Tradicional, pela sua “dogmática”, exige a acção

permanente da magia”17. A magia tenta explicar a existência do mal no mundo, consegue atenuá-lo,

mas, paradoxalmente, agrava e facilita a sua difusão. Assim, a magia quando soluciona o mal

desempenha um papel psicológico e social, imprescindível, tendo que estar em constante atividade. Ela

surge como realidade única, embora ambivalente, sendo idênticos os processos de todas as ações mágicas

e igualmente idênticas às forças manipuladas.

A prática do mal era apenas um componente do que deve ser entendido como um pacote de forças

religiosas ocultas. Em muitas sociedades centro-africanas não havia nenhum diferencial que distinguisse

os bons rituais dos rituais malévolos. Os rituais e simbolismos empregados eram os mesmos para o bem

e o mal, a diferença estava na finalidade ao qual se destinava18. As forças poderiam ser usadas para uma

variedade de atuações positivas, adivinhações, curas, fertilidade, auxílio com o gado, colheitas, sempre

visando restabelecer a harmonia, seja no plano individualizado ou para um grupo. Por outro lado, essas

mesmas forças poderiam ser usadas nas práticas de danos individuais ou coletivos. Para eles, se um

adivinho ou curandeiro tinha o poder de ver espíritos maus e expulsá-los com seus poderes, então

certamente estava habilitado a controlar formas similares do mal para os próprios propósitos nefastos

dele19. Esta circulariedade entre o mágico, a divindade e a reparação, demonstra a extraordinária natureza

17
ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. Cultura tradicional Banto. Luanda: Âncora, 1974, p. 544.
18
CF. EVANS-PRITCHARD, Op. Cit., p. 462. O autor analisa a feitiçaria como um sistema cognitivo capaz de
explicar o infortúnio.
19
SWEET, James H.. Recreating Africa: culture, Kinship, and religion in African-Portuguese World, 1441-1770.
London: The University of North Caroline Press, 2003, p. 61.

30
ambígua do discurso religioso nas sociedades africanas, estando presente à mesma dicotomia no

catolicismo.

Na África centro-ocidental os entendimentos sobre malevolência religiosa estavam ligados a um

infortúnio temporário, especialmente causado pela força humana oculta, através do binômio ventura

/desventura. Aqueles que usavam suas forças mágicas para causar danos a outros para benefícios

próprios, ao invés do melhoramento de sua comunidade, eram considerados malévolos. Um dos aspectos

de malevolência era um crescimento social e/ou econômico desigual entre o mágico e todos ou demais da

comunidade. Assim, dois dos sistemas clássicos da malevolência religiosa era o injusto sofrimento das

vítimas e a rápida e inexplicável prosperidade social e econômica por parte dos atormentadores

espirituais. Na perspectiva africana, escravidão e exploração econômica dos europeus preencheram esses

critérios, mas o impacto dessas fortes e desconhecidas novas formas de malevolência transformaram

radicalmente o significado religioso na África e na diáspora.

Antes do contato com os europeus, os africanos viam a malevolência religiosa através de um prisma

micropolítico que permitia um antídoto religioso familiar. Bondade e maldade eram parte de uma mesma

continuidade cosmológica, e ambos poderiam ser controlados com rituais e práticas religiosas familiares.

Os europeus introduziram uma nova forma de malevolência social e econômica - o comércio de escravos

transatlântico, que transformou esse equilíbrio cosmológico. Guerras, doenças, migração forçada, e

outros infortúnios instigados pelo desejo europeu do trabalho escravo, tudo era entendido como parte dos

poderes dos “feiticeiros brancos”.

31
Para Sweet20, muitas sociedades da costa central africana acreditavam que os europeus levavam os

africanos escravizados para “comê-los”, e aproveitar suas “partes”, transformando-os em produtos que

seriam retornados ao comércio na África. Acreditavam que o óleo comestível era obtido da gordura dos

corpos africanos, os vinhos vermelhos eram o sangue, os queijos europeus eram os cérebros de suas

vítimas. A pólvora era as cinzas dos ossos dos africanos escravizados que eram queimados pelos seus

algozes. Este entendimento era embasado na cosmologia das sociedades da costa central africana, onde a

Kalunga21 significava a travessia do mundo real para o mundo espiritual, a linha tênue de comunicação

entre os dois mundos, podendo ser representado por um “espelho d’água”, uma superfície que refletisse

imagens, e mais tarde a palavra foi estendida ao oceano. Atravessar a Kalunga em navios negreiros,

representava uma morte prematura, nas mãos dos “feiticeiros brancos”, que alimentavam-se dos

corpos negros na terra dos mortos, as Américas. Para os bacongos, a cor branca simbolizava a morte, os

homens eram “pretos” mas seus espíritos “brancos”. Como resultado desta crença, do tráfico de africanos

escravizados e da associação do oceano com a Kalunga, foi fácil para os bacongos identificar a terra dos

brancos com a dos mortos. Com esse entendimento sobre a malevolência e prosperidade dos europeus,

demonstra quão profundamente o mercado escravo impactou o discurso africano. Para eles, os

europeus usavam de “feitiçaria”, forças ocultas, para escravizar e comercializar os corpos negros para o

próprio enriquecimento.

Se o comércio escravo e a exploração econômica foram os impulsos transformadores de certas formas

religiosas “malévolas” em “feitiçaria” na África, então verdadeiramente, a escravidão transatlântica deve

ser entendida como a mais mortal forma de feitiçaria, que necessitava de um poderoso “contra ataque”

20
SWEET, Op. Cit., p. 162.
21
Para os Banto, se a Kalunga era a linha divisória entre os dois mundos, real e espiritual, o que estava do outro
lado dela, pertencia a terra dos mortos – as Américas. Atravessá-lo significava o ingresso no outro mundo, o
espiritual. Ver SLENES, Op. Cit., pp. 53-54, onde o autor analisa a etimologia e a simbologia da palavra Kalunga.

32
religioso com o objetivo de ser libertado da maldição. Esta postura defensiva por parte dos africanos

escravizados direcionou-os para frente da categoria de magia do mundo ocidental. Por outro lado, os

portugueses já conviviam com um discurso sobre feitiçaria, antes de entrarem em contato com as

sociedades africanas, o que eles fizeram, foi transferir para o contexto africano a história estabelecida

sobre feitiçaria e feiticismo. Por falta de uma literatura indígena sobre a feitiçaria, a igreja portuguesa

aderiu ao amplo contorno da construção européia da feitiçaria. Era amplamente entendido que Deus

usava feitiço e o demônio para punir pecadores e testar a fé humana. O uso da força diabólica para contra

atacar a própria força do diabo foi proibido pela igreja, porque isto necessariamente significava invocar o

denômio. Apenas a prece e a fé em Deus poderiam contra atacar o poder diabólico de maneira segura e

cristã.

Antes do século XVII, os teólogos inquisitoriais portugueses começaram a comentar mais largamente

sobre a origem da feitiçaria e pactos com o diabo. Na visão de filósofos portugueses sobre a feitiçaria,

rituais, orações e símbolos usados para contra atacar o mal eram todos evidências de pacto com o

denômio. Mesmo os rituais que envolviam preces cristãs e o uso de objetos sagrados eram suspeitos. Na

maioria das vezes, eram utilizados por pessoas “profanas” contrárias a santidade das palavras ou aos

objetos utilizados. Para os portugueses essas pessoas eram todas consideradas como ignorantes, exóticas,

primitivas. Já durante o século XVII, o entendimento português sobre feitiçaria foi fundindo-se com o

surgimento do discurso de classe social, uma classe literata, educada e “civilizada”, tentando distanciar-se

das massas populares, que eram declaradas mergulhadas no mundo vulgar da superstição e da magia. O

clero, juízes, médicos e a maioria da elite, acreditavam na força do denômio, manipuladas através dos

“feiticeiros”. Esclarece Laura de Mello e Souza:

Durante o século XVII, duas religiões diversas coabitam na cristandade européia; a dos
teólogos e a dos crentes – apesar dos esforços redobrados das elites para quebrar a cultura
arcaizante que sobrevivia no seio das massas cristianizadas havia séculos. A concepção

33
mágica do mundo atravessava as classes sociais, comuns ao gentil-homem e ao burguês,
aos homens das aldeias e ao dos campos.22 (Grifo nosso)

Eles não acreditavam que a feitiçaria fosse uma ameaça real para a ordem e a razão cristã. A maioria dos

feiticeiros portugueses atuava sozinho e não em grupos. O alarme que contagiou outros países europeus

não foi estendido a Portugal23. Acreditavam que pelo uso dos recursos de Deus, batismo, confissão,

comunhão, orações, e exorcismo, feiticeiros individuais poderiam ser combatidos. Essas crenças foram

estendidas ao Brasil, desde a época da colônia, quando os feiticeiros portugueses encontraram aqui com

as práticas religiosas africanas. O diferencial entre Brasil e Portugal era que os feiticeiros africanos

estavam presentes em grande número no Brasil e eram capazes de usar sua força espiritual contra seus

senhores “fisicamente”, ameaçando a fé católica. Todas as práticas religiosas africanas eram suspeitas de

serem rituais demoníacos.

Sweet24 nos alerta que, para a maioria das sociedades da África central, a escravidão era compreendida

como o resultado da maldade religiosa de Portugal, contrária aos mais poderosos antídotos religiosos

africanos, que eram reconhecidos e temidos pelos portugueses. Na tentativa de extinguir ou minimizar as

tormentas da escravidão, os maus tratos, rompimento de linhagens, má nutrição, vestimenta, doenças,

separação de parentesco e outros, os africanos escravizados e libertos, adaptaram práticas mágico-

religiosas para contra atacar o que eles acreditavam ser “feiticeiros brancos”, causadores de sortilégios

mágicos, de infortúnios.

22
MELLO E SOUZA, Op. Cit., p. 88.
23
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”, 1600/1774. Lisboa: Notícias Editorial,
1998, p.104.
24
SWEET, Op. Cit., 163.

34
Um angola liberto em Salvador, em 1646, chamado Domingos Umbata25, foi denunciado por ajudar duas

“pretas” a melhorar seus relacionamentos com suas senhoras. As senhoras eram perversas e imputavam

as “pretas” muitos castigos. Para proteger as escravas da fúria de suas senhoras, Domingos fazia com que

se banhassem em uma bacia de água que continha folhas esmagadas, um guizo e um dente de jaguar, que

deveria ter trazido do continente africano ou comprado de algum outro africano recém chegado.

Presumivelmente, o banho as protegia das agruras do cativeiro, do poder do “feiticeiro branco” que

poderia usar de suas forças para trazer algum infortúnio as “negras”. Os africanos escravizados

utilizavam ritos e ícones de materiais da religião de matriz africana como forma de se proteger nas

relações escravas, muitas vezes, como forma preventiva aos ataques dos seus senhores.

Lembrando que na concepção africana, os europeus eram considerados “feiticeiros brancos”, assim, os

mais poderosos antídotos religiosos africanos eram usados para contra atacar, pretendiam mutilar ou

matar os “brancos” e suas famílias. Não só os africanos usaram suas forças religiosas para expressar

mágoas contra os brancos, mas quase toda a população negra. A recusa de alguns brancos em acreditar

em formas africanas de “feitiçaria”, variava em função de diversos fatores, principalmente a confusão

entre veneno e feitiço, pela crença popular. Muitos ingredientes usados nas misturas das “feitiçarias”

pelos africanos escravizados ou forros, eram peçonhas, venenos, misturas de raízes, ervas. Os ritos e

simbolismos religiosos de matrizes africanas eram considerados pelos europeus como demoníacos.

Envenenamentos eram incluídos dentro das “práticas da magia”, sendo apenas, um outro lado dos

feitiços africanos, pela transposição do discurso europeu da “feitiçaria” para as “práticas mágicas

africanas”. Pelas mesmas razões de dominação e com formas bem parecidas e semelhantes, um “criado”

na Europa que pretendesse se vingar de seu senhor usando veneno seria atribuído a esse ingrediente

poderes mágicos malévolos.

25
ANTT, Inquisição de Lisboa, cadernos do Promotor, nº 29, livro, 228, pp. 4-4v.

35
Na compreensão africana, venenos portugueses eram substâncias comuns carregadas de simbolismos

sagrados, acrescidos da “força mágica” para agir contra outras formas de feitiçaria ou malevolência. As

tentativas dos africanos escravizados de exterminar com os seus senhores26 através de venenos eram

provavelmente, melhor entendidos, como tentativas de erradicar com os “feiticeiros brancos”. As

respostas africanas aos feitiços dos senhores eram um “contra feitiço” mais poderoso. Os mesmos

ingredientes usados nas fórmulas para curar doenças ou infortúnios, eram também, utilizados para

provocar males, sempre carregados de ritos e ícones sagrados. Quase sempre, o resultado era atribuído a

uma deidade e nunca a substância natural, legitimando o “poder” e a “força” no sagrado. O veneno

transformado em feitiço era uma das formas de controle africano no discurso entre sagrado e profano em

Portugal e no Brasil, potencializando a “magia africana”. Além de ser uma das importantes formas de

resistência africana na diáspora. Quando o ato de “feitiço” era entre os próprios africanos escravizados

usando forças sagradas, eram sempre mais do que um ataque individual, era também um ataque contra

um “bem” material, atingindo o estado econômico e social de seu senhor, concretizando-se em um ato de

resistência contra o senhor. No Brasil a utilização dos ritos e simbolismos sagrados africanos persistiu

através do entendimento de sua transformação em feitiçaria; com um número elevado de africanos

escravizados, foi comum o temor dos seus donos pela destruição de suas “propriedades humanas”,

através do uso de práticas mágico-religiosas, mais complexas e mais divulgadas aqui do que na África.

1.1.1 O equilíbrio harmônico e o papel do adivinho

Entre os vários papéis dos agentes religiosos africanos, estava a figura do adivinho, de real importância

para o equilíbrio harmônico da comunidade africana e soube ser devidamente apropriado pelos senhores

de escravos no Novo Mundo. Realizavam uma variedade de atividades ritualística para invocar os

26
Cf. SWEET, Op. Cit., p. 169.

36
espíritos ancestrais, fazendo a intercomunicação entre o mundo dos vivos e dos além-túmulos (CF. figura

02). Medianeiro entre os dois espaços sagrado e profano o poderia predizer acontecimentos passados e

futuros, descobrir culpados por ilícitos, causas de doenças, curas, descobrir os autores de feitiços.

Atuando na pacificação das sociedades africanas, referentes ao seu equilíbrio e harmonia interna.

Nas sociedades centro-africanas, a magia praticada pelos feiticeiros era utilizada para atacar, “comer” a

vida de outra pessoa, prejudicando-a de diversas formas. O feiticeiro é temido pela comunidade. Atinge

seu poder utilizando os mesmos processos do adivinho. Acreditam que viva na comunidade, mas

ninguém o conhece. Atua às ocultas, realiza as ações mágicas malévolas, não se conhece o seu grau de

poder, nem o local e quando irá lançar o seu feitiço, é uma ação mágica invisível. Espalha um medo

permanente que só o adivinho e o curandeiro podem enfrentar. As práticas mágicas defensivas, utilizadas

pelos adivinhos e curandeiros procuram desencadear forças compensatórias, que neutralizam ou

protegem contra as forças malévolas. Era lícito castigar aquele que causou o mal. O curandeiro e o

adivinho têm poderes e empregam técnicas semelhantes às do feiticeiro, o diferencial reside no propósito

em que são empregados os ritos mágicos. O adivinho e o curandeiro são partes integrantes do universo

mágico-religioso dos bacongos. O adivinho é chamado de “ngambi”27, aquele que busca o mistério, a

tentativa para compreender os dois mundos uma relação com o sagrado, para realização dos rituais de

adivinhação ele faz uso do “ngombo”28, um cesto repleto de materiais diversos, portadores de saberes

mágicos ( Cf. figura 03). Por intermédio do “ngambi”, o homem entra em relação com as forças míticas

e espirituais da natureza. Elas permanecem sempre a disposições dos homens como meio de busca, como

esforço de análise e de síntese dos elementos, acontecimentos, reações humanas e conseqüências

27
CF. ALTUNA, Op. Cit., p. 566.
28
Ngombo - um cesto tendo diversos objetos que favorecem os métodos de adivinhação para os Bantu. MELLO E
SOUZA, Marina. África e Brasil africano São Paulo: Ática, 2006, Op. Cit., p. 44.

37
imediatas na vida. Para Altuna, muitas vezes, o adivinho impõe-se ao grupo, pela sua “força” e prestígio,

“a sociedade considera-os como “pessoas sagradas”, pelo facto de terem conseguido uma potência vital

extraordinária que os separa e diferencia dos outros. Encontram-se imersos, de uma maneira especial,

no mundo invisível”29.

Para Evans-Pritchard, o adivinho Azande é uma pessoa que conhece os segredos das ervas e de suas

manipulações, que estão diretamente ligadas ao poder da adivinhação. A combinação de determinadas

ervas e comidas ingeridas pelo adivinho Zande lhe dará o poder de ver as bruxarias, quem as produziu e

como exterminá-las. O adivinho Zande exerce poderes sobrenaturais exclusivamente porque conhece as

drogas certas e porque as comeu da maneira certa. Suas profecias derivam da mágica que traz dentro de

si; sua inspiração não brota do Ser Supremo, nem dos espíritos dos mortos30. O autor ressalta a

importância do adivinho para o equilíbrio de uma comunidade. Ele é considerado como um de seus

“oráculos”, suas revelações e profecias são de valor idêntico às respostas obtidas pelos diversos oráculos,

ele pode funcionar tanto como adivinho como curador para as “bruxarias” que descobre:

O adivinho Azande é um mágico, enquanto adivinha, indica os bruxos; como mágico, ataca-
os. Mas é basicamente um adivinho...pode também agir como curador. Em ambos os papéis,
sua função é a mesma – combater a bruxaria. Enquanto adivinho, ele descobre onde está a
bruxaria, e como curador ele repara os danos causados por ela.31

Na intercomunicação entre os dois mundos, a revelação deveria ser legitimada pela sociedade. O

adivinho era um integrante especial da comunidade, respeitado e detentor de prestígio e poder. Sua

atuação era vista, geralmente, como “um serviço social”. Atuava como ponto principal para ter uma

29
ALTUNA, Op. Cit., p. 567.
30
EVANS-PRITCHARD, Op. Cit., p. 163.
31
EVANS-PRITCHARD, Op. Cit., p. 108. Os adivinhos nesta condição são conhecidos pela palavra ira avure,
enquanto como curador são conhecidos como binza, mas os termos são intercambiáveis na designação de suas
funções adivinhatórias.

38
sociedade equilibrada e pacífica. Com a transformação interna em África a ruptura social provocada pelo

sistema escravista reelaborou as funções do adivinho, para melhor adaptação a “nova identidade”

escrava, buscando explicações no mundo espiritual para escravidão. Nas comunidades escravas nascidas

na diáspora, os africanos utilizavam os adivinhos na tentativa de “criar” os mesmos modelos de equilíbrio

comunitário que os ajudavam em sua terra de origem.

Reconhecendo a larga aceitação da adivinhação nas comunidades escravas, os senhores usavam os

africanos escravizados com essas especialidades, para adivinhar quem houvesse cometido algum ilícito

contra eles, fossem roubos, uso da feitiçaria ou fugas. Por que os rituais de adivinhação ressoavam com a

maioria das tradições culturais dos escravos, quase sempre aceitas como válidas, mesmo quando os

indicados do mal eram os próprios escravos. Isto reforçou o mecanismo religioso/judicial da instituição

escravista, auxiliando o senhor a determinar a culpabilidade dos “rebeldes” contra a escravidão. Mas era

também uma indicação da classe senhorial de apropriação32 de uma instituição africana de controle

social.

A adivinhação “adaptou-se” as novas mudanças nas relações sociais, na colônia portuguesa e na África,

“construindo” um arcabouço entre os interesses dos senhores e sua aceitação pela comunidade africana.

Na Bahia, em 1685, André Gomes de Medina33 havia perdido 15 escravos vítimas de “feitiçaria”, a

acusação recaiu sobre um negro forro Simão Congo, ex-escravo de André. Em busca de indícios que

32
SWEET, Op. Cit.,p.141. Outro exemplo de apropriação africana pelos portugueses é o mecanismo de mocano,
citado por FERREIRA, Roquinaldo, “Tranforming Atlantic salving: trade, warfare and territoriae control in
Angola, 1650-1800”. PHD – Dissertion, Ucla, 2003. . Este mecanismo era utilizado por africanos livres em Angola,
quando são presos injustamente e vendidos como escravos. Os injustiçados interpõem um recurso, um pedido a
autoridade colonial, alegando suas razões e solicitando à sua intervenção. Foi incorporado pelos Governadores
Gerais de Angola, no século XVII.
33
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo nº 8464.

39
servissem para comprovar a acusação, uma única prova foi a encontrada: a descoberta de uma panela

com ervas, unhas, dentes e pêlos de vários animais, na casa do “suspeito”. Impossível saber quais eram as

especificidades dos ingredientes encontrados na dita panela. O Sr. André chamou uma adivinha, escrava

negra Gracia Conga de outra fazenda, para desvendar o “mistério”. Na propriedade do senhor, a adivinha

preparou certos materiais na presença de todos. Ela ateou fogo em alguns gravetos, colocou sobre eles

um grande pote com água para ferver, com algumas pedras dentro. Todos deveriam retirar uma das

pedras do pote fervendo, somente o culpado sairia queimado. Os presentes fizeram uma roda em volta do

pote fervendo, Gracia dançou em torno dele, no sentido anti-horário, a dança dos adivinhos – “dançar

avure”, cantando e dizendo palavras, provavelmente, em seu idioma de origem. Cada um por sua vez, foi

colocando uma das mãos dentro do pote com água fervendo e retirando uma das pedras, nos escravos,

forros e brancos, apenas pequenas e leves queimaduras aconteceram. O forro Simão Congo ao retirar sua

mão e braço sofreu várias queimaduras graves. O ritual de adivinhação realizado pela escrava Gracia

Conga confirmou a suspeita já existente, de que o ex-escravo seria o culpado34. Ele defendeu-se

alegando que na panela encontrada, havia apenas “preparados” medicinais contra mordida de cobra.

Alegou também, que a acusação dos escravos dirigida a ele, era por ciúme pela condição de ser livre. A

liberdade foi-lhe concebida pela filha de André Gomes de Medina, tornando-se um lavrador de madeira.

A adivinhação, simplesmente, confirmou a culpa de quem já era considerado culpado, atuando como um

mecanismo religioso/judicial. O resultado foi satisfatório para ambos os lados envolvidos, o culpado era

alguém de fora da comunidade escrava, reestabelecendo o equilíbrio e reforçando o ritual como uma

34
CAVAZZ, Padre Giovanni Antonio. Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Lisboa:
Notícias, 1965, p. 109. Os rituais praticados pela africana escravizada eram largamente utilizados na África Central,
com alterações entre o continente africano e o reproduzido no Brasil. O autor descreve quando um feiticeiro coloca
um pote com água para ferver, dentro uma pedra. Os acusados deverão retirar a pedra com suas mãos, aquele que não
sair com queimaduras será aclamado inocente, dando-se o caso por encerrado. Quem se queimasse seria julgado
culpado. O ritual é realizado na presença da comunidade, mas para sua legitimação deve ser confirmado pelos
oráculos, o que não acontecia no Brasil. Existem outros relatos com rituais iguais na África, conhecido como a
provação de jaji. Sobre os ritos dos adivinhos ver EVANS-PRITCHARD, Op. Cit., 1978, cap. V, Os adivinhos,
pp.107-132.

40
solução favorável para todos. A liberdade e ascensão do negro forro Simão, eram vistos como resultados

de algumas manipulações de forças sobrenaturais, até “feitiçarias”. Para o entendimento africano de

malevolência religiosa, já examinada, aqueles que usavam “forças mágicas” para benefícios próprios, ao

invés de melhoramento de sua comunidade, eram considerados malévolos. Ascensão rápida de um

escravo para um liberto economicamente auto-suficiente não era explicável por forças naturais, humanas

e sim através de manipulações de forças espirituais malévolas.

A apropriação pelos portugueses da instituição de adivinhação africana pode ser compreendida como

uma importante concessão de força judicial, implicando na diminuição das formas das estruturas judiciais

dos senhores. Sendo a instituição judicial legal da colônia, um tanto quanto precária, principalmente em

áreas rurais, uma parte considerável de senhores buscou legitimar este mecanismo que fez sua travessia

pelo Atlântico em uma forma aproximada a sua estrutura original, adaptando-se as novas

condições do sistema escravista, o que reforça a teoria de crioulização35 da diáspora africana nas

Américas. Os africanos escravizados atribuíam a outros africanos à culpa, nessas cerimônias de

julgamento, os rituais poderiam ser vistos como simplesmente, formas de justiça africana, isentando os

senhores de qualquer tipo de perseguição aos seus “bens”.

Um outro ponto a ser observado nesse mecanismo, era alguns raros casos, em que os brancos aceitavam

as culpas dos ilícitos de seus próprios parentes e amigos. Antonio da Guiné36, escravo na Bahia,

procurado para adivinhar quem havia roubado dinheiro e uma cruz de prata do seu senhor, utilizou

35
Na teoria da crioulização, os africanos escravizados empregaram, padronizaram e transformou materiais culturais
africanos em novas tradições no Novo Mundo, para dar coerência, sentido e um certo grau de autonomia a sua nova
condição.
36
ANTT, Inquisição de Lisboa, cadernos do Promotor, livro 784, fls. 113-114.

41
uma bacia com água para as práticas da adivinhação. Não ficou esclarecida nos documentos, a real

origem africana de Antonio. Presumindo que seja da África central, devido à crença de que a linha

divisória entre os dois mundos, o material e o dos espíritos, era através de um espelho d’água. Um

especialista “mágico-religioso” poderia fazer contatos com os mortos, os antepassados e obter

orientações, respostas para as dificuldades de vida real. Antonio olhando a água, proferindo orações,

presumivelmente, em algum idioma africano, obteve a resposta esperada, o roubo fora efetuado pelo filho

mais novo do seu “dono”, revelando também, onde estava escondido, dentro de uma caixa em baixo de

uma das camas da casa. Achada a caixa, dentro estava o dinheiro e a cruz, no lugar indicado. O resultado

foi aceito pelo seu senhor, mas infelizmente, os documentos silenciaram sobre quais foram às atitudes da

punição pelo roubo. Porém, podemos nos atrever a supor, que o senhor não imaginaria que o responsável

fosse um de seus filhos. A força da estrutura tornou-se completamente confusa, convergindo à

adivinhação em outra forma de resistência escrava. Várias vezes, os senhores procuravam os

adivinhadores africanos para desempenharem suas atividades para eles, os africanos eram capazes de

transformar a força religiosa em resistência à sua escravização, conseguindo prestígio não somente junto

a sua comunidade, mas também entre outras pessoas que acreditavam em suas práticas mágico-religiosas.

1.1.2 O Curandeiro

Nas sociedades africanas, em geral, o curandeiro é muito prestigiado pelo seu grupo, ele detêm os

segredos e práticas da “medicina”, conhecedor das ervas, raízes, banhos, vomitórios e ritos religiosos,

para o restabelecimento do equilíbrio do corpo e extermínio da desventura. Para os bacongos a doença

tem uma causalidade mística, uma mazela e só magicamente pode ser curada. O aprendizado para ser um

curandeiro é realizado por uma iniciação, por outro curandeiro, para que sofra uma mutação quantitativa

que lhe capacite para mergulhar na participação vital com clareza e segurança. É necessário que o
42
curandeiro tenha a presença de um antepassado, que se apresente durante a sua iniciação. O

conhecimento das causas das doenças e o tratamento mágico exigem ritos e simbolismos sagrados.

O conceito de doença tem que ser entendido dentro da cosmologia baconga. É sempre provocado por um

agente mágico, por uma força que prejudica. Ela está contida dentro do complexo cultural

ventura/desventura, precisamente na desventura. As doenças não eram coisas naturais, entretanto não

rejeitavam aquelas que provinham de tal causa, mordidas de bichos, envenenamentos, desastres, etc, mas

esta causalidade é simplesmente concomitante ou conseqüência de um sortilégio mágico, ou é resultado

da culpabilidade do doente. Ela não é apenas conseqüência, é também sinal evidente de culpabilidade. O

curandeiro indica o “remédio”, nesses casos exigindo que o doente procure métodos de purificações,

quase sempre públicos, como confissões, lavagens, sacrifícios, ritos que possam libertar da culpa e

acalmar o “ofendido”, que normalmente é um espírito malévolo. A doença também pode ter a sua origem

pela introdução de objetos ou elementos estranhos dentro do corpo do doente, causados por habitantes do

mundo dos mortos, espíritos maus, ou por ações mágicas dos feiticeiros que podem atuar à distância e pô-

los em contato com as vítimas.

No reino dos ancestrais, nem todos os espíritos dos mortos têm a sua entrada garantida. Os anciãos

ficavam à entrada do reino para avaliarem quem teria o direito de entrar, ficando restrita aos maus

espíritos. Os proscritos ficavam vagando pelo mundo dos vivos, assustando-os e causando malefícios,

doenças, mortes, infortúnios, tornavam-se intermediários dos feiticeiros, eram utilizados por eles na

prática de algum mal. Os bacongos37 aprisionavam esses espíritos no interior de uma estatueta de madeira

37
Minkisi é palavra plural de nkisi, objetos confeccionados que se tornam sagrados. Ver SOARES, Márcio de Souza.
“A doença e a cura – saberes médicos e cultura popular na corte imperial”. Dissertação de Mestrado em História
Social, UFF, mimeo., 1999, p. 170; ver também Mello e Souza, op. cit., 65.

43
ou barro, os minkisi podiam ser manipulados por um homem comum ou pelos feiticeiros nas práticas

mágicas malévolas. Eles eram largamente utilizados na África central, principalmente pelos “sacerdotes”,

os nganga38.

A mais importante tarefa do curandeiro é identificar a doença A sua etiologia pode ser muito variada

Descobrir o que está afligindo uma pessoa é para ela e para a comunidade um indício de retorno a

harmonia. Os “medicamentos” utilizados estão em um plano secundário na direção da cura, o

fundamental são os ritos usados nas práticas mágicas, estes surtirão os efeitos para atacar e extirpar o

mal. Segundo Altuna:

Durante a diagnose, o curandeiro comporta-se como um adivinho. Por isso dizíamos que
estas duas especialidades costumam encontrar-se reunidas no mesmo indivíduo. Os métodos
mais frequentes consistem no lançamento das entranhas dos animais, observação dos
transes, consulta aos feitiços protectores dos animais da sua arte, espalhar cinzas, flores ou
folhas sobre a água, conhecer, através de hábeis interrogatórios, as faltas cometidas pelos
clientes e os tabus que foram transgredidos e descobrir o seu comportamento social e
religioso.39 (grifo nosso)

O curandeiro e o adivinho são indispensáveis a harmonia das sociedades e muitas vezes as suas funções

são intercambiáveis, embora exista um espaço social para cada um deles, na prática estão intimamente

ligados. Na verdade, atua como adivinho e como curandeiro. Para Altuna40, o curandeiro é procurado

quando se conhece efeitos e causas da doença, o adivinho para efeitos conhecidos e causas

desconhecidas. No Brasil, muito mais do que na África, o adivinho e o curandeiro eram reduzidos a uma

única pessoa, no desempenho de suas práticas desempenhavam as duas funções mágico-religiosas, na

busca pelo restabelecimento do corpo doente, fosse pelo malefício do espírito ou do corpo.

38
Os nganga eram líderes religiosos, especialistas que prestavam serviços privados e trabalhavam na confecção dos
minkisi.
39
ALTUNA, Op. Cit., p. 577.
40
ALTUNA, Op. Cit., p. 571.

44
O africano escravizado no Brasil, Manoel Angola, um escravo de ganho41 na Corte, em meados de 1868,

de propriedade de Sr. Luis Cortes, foi preso pelo delegado do 2ª Distrito de Sant’Anna denunciado pelo

crime de adivinhação, dar fortuna e prometer curar doenças e feitiços. Foi recolhido a cadeia em custódia

e junto com ele alguns objetos que usava em suas práticas mágicas. A denúncia foi realizada por uma das

pessoas que estivera sobre seus cuidados de curandeiro, uma senhorinha portuguesa “pobre”, que vivia

como costureira. No seu testemunho de acusação, ela alega que o procurou por “conta” de uma ferida na

perna direita que não cicatrizava nunca, provocando dores constantes e terríveis. A Madalena, esse era

seu nome, fora-lhe indicado esse “escravo” que era “poderoso na adivinhação dos males e sabia dos

segredos das ervas para as curas que não queriam curar”. Para saber o que causou aquele mal, o africano

escravizado Manoel Angola pegou uns “ossinhos”, que pareciam ser de galinha, fez uma roda no chão de

terra batida e os jogou com as duas mãos juntas na terra. Disse algumas palavras estranhas, parecia estar

conversando com alguém, fazia perguntas e tornava a jogar os “ossinhos”. Não satisfeito, pegou um pó

de cor cinza, esfregou nas mãos e juntou alguns grãos grandes, que Madalena não soube explicar o que

eram, procedendo da mesma forma que fez com os “ossinhos”. Com o auxílio de uma cruz com a

imagem do Cristo encravado nela, uma vela acesa e rezando uma oração que, segundo a testemunha

parecia a “Ave-Maria”, o curandeiro rezou a perna doente. Levantou-se e disse para Madalena que sabia

qual era a causa do aparecimento da ferida, a inveja por ela ter boas freguesas para consertos de roupas.

41
AN (RJ), Série justiça – polícia, escravos e moedas falsas, IJ6 193, ano 1868. Escravos de ganho eram os escravos
que passavam os dias trabalhando fora da casa de seu dono, fazendo serviços para terceiros ou alugados a estes. Ao
final do dia ou da semana tinha que entregar o “jornal”, certo quantia em dinheiro correspondente ao seu trabalho
externo. Era comum nos periódicos o oferecimento de africanos escravizados para serem alugados. No caso de
trabalhos recentes realizados no Brasil sobre casos de acusação de feitiçaria e de curandeirismo relacionados às
religiões de matriz africana, ver CONTINS, Márcia. “O caso da Pomba Gira: reflexões sobre crime, possessão e
imagem feminina”. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional, PPGAS/
UFRJ (1983) e MAGGIE, Yvonne (1992). “Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional. p.292”.

45
O feitiço fez com que ela comesse carne de porco e “apareceu à ferida” que não fechava42. Ele lhe deu

alguns papeizinhos com uns pós dentro que ela tinha que tomar misturados com água, esmagar umas

ervas para “besuntar” a perna, e não comer carne de porco para não alimentar o espírito malévolo que

estava causando o mal. Algum tempo depois, a ferida na perna de Madalena estava sarada. Ela pagou

com carne de porco e outros gêneros alimentícios os serviços do curandeiro, a fim de que pudesse

“acalmar” também o espírito malévolo. Os curandeiros recebiam por seus serviços pagamento em

dinheiro e muitas vezes em gêneros alimentícios. Os ritos e simbolismos utilizados pelo africano

escravizado Manoel Angola e as proximidades com as práticas dos curandeiros Banto, descritas por

Altuna, nos faz supor, que de alguma forma, ele teve contato com as formas de curas provenientes da

África centro-ocidental, agregando materiais do catolicismo popular negro, numa outra prática de crença,

ressemantizando-as. Nosso curandeiro “conversou” com os invisíveis, espíritos talvez ancestrais, mas não

houve possessão. Utilizou a adivinhação para chegar a causa da doença e os remédios a serem usados. A

ferida foi provocada por inveja, um infortúnio, um desequilíbrio que fez com a doente tivesse vontade de

comer carne de porco. Vontade provocada pela “força” de um espírito malévolo para que a ferida fosse

alimentada e não curasse. Realmente, sabemos que naquela época era comum o consumo de grandes

quantidades de carne de porco e nem sempre em boas condições de higiene. Manoel Angola recomenda

“remédios” e abstenção da carne de porco, Madalena se “livra” da ferida e agradece por estar livre de ser

atormentada por espíritos malévolos que gostavam de "comer” carne de porco, através de sua ferida. Não

foi Madalena quem o acusou, ela foi tentar testemunhar em seu favor. Não consta nos documentos quem

fez a denúncia e nem qual o rumo que tomou a prisão, somente que ele foi recolhido à cadeia em

custódia. Qual e onde, é um mistério que cerca o nosso curandeiro.

42
AN (RJ), Op. Cit., pp. 4-5, testemunho da costureira portuguesa Madalena.

46
1.2 Catolicismo “à moda” centro-africana

O oceano, a Kalunga na cosmologia da África centro-ocidental, era domínio do além, pertencente a terra

dos mortos. Uma “estrada” para travessia ao mundo dos espíritos. Acreditavam que os corpos negros

teriam almas brancas, espíritos albinos. Com a chegada dos portugueses no litoral da África, vindos pelo

mar, os autóctones entenderam que eles chegavam da terra dos mortos, primeiro por virem através da

Kalunga e por serem semelhantes aos mortos – brancos, logo incluídos no sagrado. Na sua cosmologia,

aos mortos deviam homenagens, presentes, oferendas e obediência, podendo estes conferir alguns de seus

poderes aos vivos. Os utensílios trazidos pelos portugueses através da Kalunga, objetos nunca vistos,

despertaram grande interesse para os africanos. Os portugueses eram “brancos”, chegados pelo mar,

detentores de novos e eficazes “objetos poderosos” e foram, então, considerados “feiticeiros brancos”.

Os chefes africanos teriam interpretado os rituais oferecidos como uma nova versão do culto que lhes era

familiar.

Grande foi o impacto do catolicismo na vida dos centro-africanos e como eles transformaram a igreja

católica, colocando uma marca africana na vida religiosa nas colônias Atlânticas portuguesas. Muitos

obstáculos contribuíram para conversão católica, como e principalmente, a diferença entre as culturas

religiosas do Ocidente e dos panteões africanos e o não domínio, de modo satisfatório, das línguas

faladas, impossibilitando a tradução correta dos ritos e simbolismos do catolicismo, por faltarem

elementos lingüísticos correspondentes43. Nas colônias portuguesas Atlânticas o processo de conversão

foi longo e desigual. No reino dos bacongos, começou pelas elites, operando paralelamente ao

catolicismo os materiais da religião tradicional africana, que eram “misturados” naturalmente por eles;

43
SWEET, Op. Cit., p.197.

47
não conseguiam compreender corretamente, os dogmas cristãos. Os centro-africanos não entendiam que

somente “convertidos” teriam o “direito” de suas almas serem salvas após as mortes – a salvação eterna

prometida pelos missionários católicos, caso contrário, seriam integrantes do “inferno”. A linha tênue

entre conversão ao catolicismo, salvação e inferno, era-lhes praticamente incompreensível44, não

integrando seus universos cosmológicos. Com o tempo, a crença católica e suas práticas espalharam-se

entre a população, havendo “convertidos” até nas pequenas vilas do reino. A profundidade da

compreensão de ser católico permanecia obscura, a nível superficial. A cosmologia dos bacongos e dos

católicos eram muito diferentes, como resultantes, muitos deles viam o catolicismo através de sua própria

visão cultural. Foi incapaz de remover por completo as tradições religiosas locais, do que resultou um

complexo religioso original, híbrido, a um só tempo católico e bantu.

Os ritos católicos foram adaptados numa tentativa de aproximação da cosmologia baconga. Alguns

rituais foram mais facilmente integrados a tradição cultural local, por terem correspondentes

cosmológicos. A confissão foi um desses ritos aceitos, era integrante do contexto cultural centro-africano.

O rito confessional era um dos procedimentos de cura utilizados pelos curandeiros, quando a doença era

advinda da culpabilidade do doente, por erro ritual ou não cumprimento de algum dever moral religioso.

O doente deveria se confessar em público, reconhecendo a sua culpa e aplacando a “ira” do ofendido, que

quase sempre, era um espírito ou um antepassado. Com a inserção dos ritos católicos, a confissão pública

realizada na presença da comunidade e indicada como “remédio” pelo curandeiro ou adivinho, foi

reinterpretada. O desequilíbrio provocado pelo “pecado” poderia gerar doenças. Para se livrarem de suas

culpas, confessar-se-iam com os padres e não mais na presença da comunidade, mas na presença de Deus

e de sua Corte Celestial, os Santos, Arcanjos e Serafins. A confissão continuava sendo interpretada pelos

bacongos como uma das formas de “remédio” para um infortúnio ou mazela e restabelecimento da

44
SWEET, Op. Cit., p.194.

48
harmonia. O diferencial era que o público estava presente nas confissões, fosse constituído pela

comunidade ou pela Corte Celestial.

Nos primeiros tempos da diáspora africana, um grande número de africanos vindo da África centro-

ocidental chegava ao Brasil batizados. O entendimento de sua conversão era restrito, não compreendiam

corretamente, os ritos de seu batismo na costa africana. Um outro ponto pragmático era o uso do sal nos

ritos do batismo cristão, para os bacongos, a abstenção do sal conferia poderes especiais como aos dos

espíritos, poderes de adivinhação, de práticas do cosmo-mágico. Acreditavam que poderiam voar de

volta para a África, após suas mortes, para junto de seus ancestrais. Ao comerem o sal no batismo, os

centro-africanos renunciavam a seus poderes mágicos, expulsando seus demônios, que eram os espíritos

africanos de suas almas e se tornavam filhos do Deus cristão; não possuindo mais o poder, após a morte,

de retorno à terra de origem. Batizados à força, forçados a comer sal em sua iniciação ao mundo cristão

ou em comidas salgadas perdiam a esperança de regresso à África. Assinala Karasch45, que os escravos

que abandonavam a esperança de voltar a África ainda nesta vida, freqüentemente recorriam ao suicídio.

Na cosmologia dos bacongos, os espíritos após a morte “voltavam” para junto de seus antepassados, os

seus familiares, com o suicídio eles acreditavam que retornariam para a África. Os africanos escravizados

que eram embarcados em tumbeiros com destino ao Brasil eram batizados, e não evangelizados. O

batismo era “simbólico” para eles, composto apenas de três itens: era lhes dado um nome cristão, sal para

“comer” e água em sua cabeça, estava consumado o batismo. Eles não compreendiam a importância do

batismo para os dogmas católicos, achava-no simplesmente de ordem material, externa, profana, e não

pertencente ao universo mágico-religioso, ao sagrado, algo que apenas “fazia parte” da triste viagem, de

forma preventiva.

45
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de janeiro, l808-l850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
pp. 345-346.

49
Marina de Mello e Souza46 argumenta que os ritos católicos foram inseridos em universos culturais

completamente diferentes. Portugueses e africanos criaram um campo de compreensão mútua. Do

encontro das duas religiões, dos seus “sacerdotes” e seguidores, nasceu o que a autora e outros chamam

de “cristianismo africano”, aceitando vários materiais do catolicismo combinado de forma dinâmica às

diferentes cosmologias. Para ela, a conversão dos bacongos foi o resultado da compreensão particular que

tiveram da chegada dos portugueses.

Para Thornton, a base comum entre as práticas religiosas africanas dos bacongos e o catolicismo

resultava da convicção da existência de um mundo incorpóreo e de que o conhecimento religioso era

fruto de inspirações e revelações do mundo espiritual, da intervenção desse mundo na vida dos vivos.

Partindo dessas proximidades, nos é permitido entender o processo de interações, conflitos, apropriações

e reinterpretações entre os rituais e simbolismos católicos e as crenças africanas. Para o autor, o

“cristianismo africano”47 não foi fruto de uma combinação de cosmologias, e sim

dinamicamente construído, resultando da forma de interação e validação das revelações ocorridas. O

autor chama a atenção para as revelações espirituais comuns as duas religiões em contato, contribuindo

para o fortalecimento de uma base comum entre ambas. O processo propiciador da “conversão” do

centro-africano ao catolicismo, estava centrado nas revelações recebidas pelos africanos através de suas

próprias tradições mágico-religiosas e validadas pelo clero local. Nzinga Mbamdi48, a rainha dos povos

Imbangala e Matamba, ao manter contatos com os sacerdotes católicos, cogitava permitir a eles,

estabelecer um enclave missionário em Matamba, no século XVII para “converter” o seu povo. Nzinga

46
MELLO E SOUZA, 2002, p. 65.
47
CF. THORNTON, Op. Cit., p.235-271, optei em transcrever o termo utilizado pelo autor.
48
THORNTON, Op. Cit., p.255-259.

50
procurou o conselho de três sacerdotes que lhe serviam de orientadores e possuíam a faculdade de

intercomunicação com os ancestrais. Cada um dos três foi possuído por um antepassado diferente da

rainha e ela fez a pergunta a eles, se deveria ou não aceitar o catolicismo. Cada um dos ancestrais a

aconselhou a “aceitar” o catolicismo, mas não significava que ela e nem o povo, deveriam esquecer dos

cultos aos ancestrais, já que eram eles que a estavam orientando para a solução do dilema. Essas mesmas

revelações foram muitas vezes aceitas por portugueses e pelos nativos, o que serviu para reforçar a

“conversão” ao catolicismo. As revelações49 eram uma combinação de materiais da religião tradicional

centro-africana com a católica. Também os padres católicos aceitaram as revelações africanas como

válidas, embora houvesse uma resistência por parte do clero em que as revelações dos autóctones

proviam do mundo dos mortos, dos antepassados, o que eles consideravam muitas vezes, parte com o

diabo. O que na mesma época na Europa, seria visto como heresia, parte diabólica, levando o seu ator a

fogueira,

... para que o movimento religioso seja caracterizado enquanto tal, a coletividade deve
aceitar as novas formas religiosas e transmiti-las a outros indivíduos e grupos. Uma nova
religião geralmente se compõe da recombinação de rituais, símbolos, crenças e mitos já
existentes, sendo apenas ocasionalmente incorporado material completamente novo. Um
movimento origina-se num líder, uma figura carismática, cuja inspiração fundamenta-se em
visões recebidas em sonhos ou em estados de possessão controlada. Para ser aceito e
incorporado, o material religioso tem que ser reconhecido, isto é, tem que fazer sentido
segundo os componentes fundamentais da religião tradicional. O objetivo de todos os
movimentos é prevenir a desventura e maximizar a ventura.50

A não abolição das crenças antigas, a pouca dedicação do clero europeu, mais preocupado em traficar

escravos do que em evangelizar e o uso instrumental da religião pelas elites, visto que o cristianismo era

indissociado de um poder estrangeiro interessado na expansão mercantil e escravista, compuseram um

campo receptivo para a introdução de novos materiais religiosos. O Reino do Kongo permaneceu entre

as populações de origem bacongo como uma referência mítica e religiosa que resistiu à decadência

49
THORNTON, Op. Cit., p.264.
50
CRAEMER, Vansina, Fox, (apud, MELLO E SOUZA, 2002, p. 69).

51
política e econômica do reino. O cristianismo continuou a orientar a identidade e as referências

religiosas desta população, mesmo com a diminuição da presença missionária após o século XVIII.

Sigo a interpretação, sintetizada em Thornton, que chama atenção para a tendência equivocada da parte

de alguns pesquisadores de considerarem a eficácia e a validade da cristianização de um ponto de vista

da missionação do século XIX, mais rígida e menos afeita a sincretismos e combinações51. As definições

possíveis de sincretismo52 ressaltam a construção de uma síntese, ainda que instável entre materiais e

cosmologias de dois sistemas religiosos postos em uma relação qualquer de hierarquia ou desigualdade,

como uma relação entre sistemas dominador e dominado, local e exógeno, particularizado e

universalizante. Esta definição não permite deter-se numa análise precisa de como o sistema considerado

subordinado ou particular retraduz, reelabora e insere a cosmologia dominante no seu próprio universo.

A noção geral de mistura ou mestiçagem também tende, a tomar os sistemas religiosos pré-contato como

sistemas homogêneos elidindo a percepção de pontos de contato entre duas culturas, bem como suas

expectativas políticas, históricas e culturais menos evidentes. O sincretismo não dá conta

satisfatoriamente nem da descrição nem da uma análise do fenômeno da “ conversão” dos bacongos,

nem da utilização de novos símbolos religiosos cristãos por eles.

1.2.1 Objetos mágicos africanos

No Centro africano como em muitas outras sociedades de diversas partes do mundo, o poder real era

vinculado ao poder religioso através de suas ligações com o mundo dos espíritos, mesmo quando o rei

conquistava o seu lugar militarmente. Os tributos pagos aos reis pelo povo, deviam garantir-lhes o direito

51
THORNTON, Op. Cit., p. 63.
52
As definições de sincretismo não caiam no senso comum geral de mistura entre religiões e/ou culturas.

52
da chuva, da fertilidade, da agricultura, da caça, da harmonia coletiva da comunidade. Os reis eram seus

líderes religiosos. Era comum entre as sociedades Banto o poder ser concentrado em torno dos chefes,

que centralizavam o poder religioso, militar e uma rede de solidariedade baseada em laços matrimoniais.

Com a introdução do tráfico transatlântico no continente africano, muitos chefes tiveram seus poderes

garantidos pelo “rico” comércio. Os poderes dos chefes bacongos não eram uma atividade puramente

humana, estavam intimamente ligados ao sagrado, só podendo serem controlados por rituais

apropriados. Tinham a capacidade de verem coisas sobrenaturais, participando ativamente dos atributos

do mundo dos mortos, uma ligação imbricada com o sagrado, com os antepassados. O que era um dos

fatores de fortalecimento do poder real. A conversão das elites congolesas reforçou acentuadamente o

poder real e dos chefes locais. A incorporação dos ritos e simbolismos católicos se deu sempre a partir da

interpretação da cultura de origem dos bacongos. Os ensinamentos eram emitidos em um significado e

recebidos em outro.

Marina de Mello e Souza esclarece que nos primeiros tempos da cristianização congolesa, cruzes, santos

e ostentáculos cristãos foram chamados de minkisi53 pelos próprios missionários. Buscando equivalências

no universo religioso africano, utilizaram a terminologia local corrente para objetos simbólicos sagrados,

numa tentativa, de vencer os significados e significantes diferenciais entre as duas religiões (Cf. figura

04). Assim, os missionários não chegaram a perceber que para os bacongos, o seu Deus supremo

continuava sendo o mesmo, Nzambi Mpungo, criador e senhor de todas as coisas e os santos

católicos, para eles, eram espíritos da natureza - os ancestrais, incorporando ao panteão africano, o

53
MELLO E SOUZA, Marina. “Santo Antonio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro” ,Revista Tempo,
Rio de Janeiro, v.º 6, nº 11, pp. 171-188, p. 174. A autora na nota n° 7, nos elucida sobre esses objetos sagrados:
“minkisi, objetos confeccionados e utilizados pelos sacerdotes, os nganga, havendo uma variedade de minkisi,
adequados a usos diferentes e compostos de ingredientes específicos de cada um. Tais ingredientes minerais, vegetais
e animais, cujo conjunto é chamado bilongo, definem as qualidades e os poderes dos minkisi nos quais são alojados
espíritos, e aos quais conferem poder, a partir dos rituais da sua combinação, da sua confecção e de seu uso,
fornecendo as possibilidades para os espíritos curem e ajudem as pessoas em situações diversas”.

53
sagrado católico. Junto com os ensinamentos cristãos, os religiosos levaram os objetos necessários à

realização do culto, que foram “agregados” como novos materiais mágico-religiosos inseridos no sistema

cultural do sagrado africano. Altuna define objetos mágicos, que coadunam com os minkisi, mas não os

nomeia:

... um objeto vulgar e inanimado, preparado por um especialista da magia. Este, por meio
de palavras, ritos e gestos, introduz ou proporciona morada a um espírito, a um
antepassado, ou a uma força vital nesse objeto, que, a partir desse momento, fica ao
serviço e sujeito à vontade do indivíduo ou comunidade que o possuí. Está cheio de uma
força vital que o dono pode manipular... o valor, o respeito sagrado e a eficácia provêm
da força que nele habita.54

Esses objetos de magia podiam ser construídos por qualquer pessoa, que lhe fosse recomendado para

solução de uma desventura, porém somente um especialista poderia “dar-lhe vida”, torná-lo “poderoso”:

o adivinho, curandeiro ou o feiticeiro, este o utilizaria para as práticas malévolas. Poderiam ser feitos de

madeira, pedra ou barro, tinham cavidades no centro do ventre, do pescoço ou da cabeça, onde o

especialista colocava pedaços de plantas e minerais diversos. Neste mesmo lugar seria aprisionado um

espírito, conferindo poderes para as diversas curas ou para proteção, exercendo a função de amuletos ou

talismãs ou alguma prática mágica, a quem o manipulasse. Em 10 de abril de 1835, na Corte imperial,

no 2° distrito de Sant’ana55, é pronunciado a prisão do preto mina escravo Teotônio Antonio Lima sob a

acusação de portar “amuletos”, receber dinheiro artificiosamente a pretexto de dar fortuna.“Hoje, é

freqüente encontrar dentro dos feitiços pequenos crucifixos, medalhas, contas do rosário e outros

objetos cristãos. Pensam ser a melhor maneira de apropriar-se magicamente da virtualização que

proporcionou aos brancos o seu poderio”.56

54
Cf. ALTUNA, Op. Cit., p. 550. A semelhança entre os objetos mágicos descritos por Altuna e os minkisi citados
por Marina de Mello e Souza nos faz supor que sejam os mesmos instrumentos de magia.
55
AN (RJ)- Série justiça – polícia, escravos e moedas falsas, IJ6 170, ano 1835.
56
ALTUNA, Op. Cit., p. 553. Feitiço para o autor é um objeto que se torna instrumento da magia, pela similaridade
da descrição do objeto, provável ser um minkisi.

54
Para os bacongos o espaço ritual é dividido em uma cruz, o quadrante de cima destinado a Nzambi

Mpungo e os espíritos da natureza, o quadrante de baixo a terra dos homens e dos antepassados, o

elemento divisor é a água, sendo intercambiáveis. A cruz é o signo oculto dos quatro momentos do sol,

nos quais há reserva enormes de poder. As mulheres africanas exibiam cruzes pintadas de vermelho/preto

e o sinal de encruzilhada do Congo, mão direita para cima, mão esquerda para baixo. A cruz no

pensamento bacongo remete à idéia da vida como um ciclo contínuo, semelhante ao movimento de

rotação efetuado pelo sol, assim, como à possibilidade de conexão entre os dois mundos. Segundo Fu-

Kiau:

... o rito básico, e mais simples, a ser feito por todos aqueles que se querem tornar
mensageiros do mundo dos mortos e condutores de seu povo ou clã, é fazer um discurso
sobre uma cruz, desenhada no chão... são frisados os poderes religiosos que todo chefe deve
ter, os poderes temporal e religioso estão entrelaçados. Ao se colocar sobre a cruz, que
representa o ciclo da vida humana e a divisão entre os dois mundos, o chefe afirma a sua
capacidade de fazer conexão entre esses dois mundos e, assim, conduzir de maneira
adequada a vida da comunidade.57

A ressignificação da cruz foi um exemplo mais eloqüente da conversão do cristianismo dentro das

concepções locais. A cruz era um símbolo pré-existente à chegada missionária e indicava a interseção

entre o mundo dos vivos e dos mortos como a passagem entre eles. Associada à encruzilhada e aos

espaços de passagem e de comunicação com os mortos, como os cemitérios. A cruz58 indicava a barreira

horizontal, o grande corpo de água da qual se acreditava que vinham os mortos, estando associados a cor

branca - a cor negra estava associada ao mundo dos vivos.

57
FU-KIAU, (apud, MELLO E SOUZA, Op. Cit., p. 178).
58
A cruz Kongo aproxima-se mais da cruz grega (+).

55
A cruz, como muitos etnólogos pensavam, não foi introduzida na África centro-ocidental com as missões

jesuíticas, ela já integrava a cosmologia baconga. A sua aceitação pelo centro-africanos aconteceu através

de uma interpretação nas bases de suas próprias tradições. As sociedades bacongas tinham formas

particulares de vivenciar a religião, manipulando novos simbolismos e rituais a partir de suas culturas de

origem. Assim, também, o fizeram no Brasil, dando um matiz multifacetado a igreja católica,

transformando em catolicismo popular negro ou um catolicismo “a moda” africana.

1.2.2 Do centro-africano às irmandades negras na Corte imperial

Ao chegarem à Corte imperial, os africanos escravizados, encontraram uma cidade com múltiplas forças

mágicas para diminuir as tensões da desventura do cativeiro, ao restabelecimento da ventura. Uma

imensidão de santos católicos dispostos a fazerem o bem, a proteger, curar e prevenir doenças

encontraram também, espíritos da natureza, alguns de origem indígena outros de diferentes procedências

africanas, todos formavam um amplo “exército” a seu favor. Seguindo as suas tradições centro-africanas

a população negra precisava obter um talismã para o auxílio às mazelas e fortalecimento às “forças”.

Para isso, tinha que seguir certos ritos e simbolismos, colocar o talismã em um santuário, fazer oferendas,

sacrifícios e ritos de purificação que tornassem os talismãs realmente eficazes. Um santo em um altar de

uma igreja católica significava um talismã poderoso em seu santuário. Seguindo os passos de Karasch59,

quando os africanos escravizados chegavam a Corte, filiavam-se a uma irmandade, em torno de um santo

- o talismã e executavam as suas práticas religiosas. As irmandades vivenciadas através de um

catolicismo barroco, caracterizavam-se por elaboradas manifestações externas da fé, missas celebradas

por dezenas de padres, com corais e orquestras, ambientes altamente decorados, funerais grandiosos e

59
KARASCH, Op. Cit., p. 239.

56
procissões cheias de alegorias, com a participação de centenas de pessoas. Elas já existiam em

Portugal, desde o século XIII, dedicando-se as caridades dos desvalidos, fossem seus próprios

membros ou não. Eram integrantes das Confrarias, que se dividiam em: Ordens Terceiras e Irmandades,

sendo estas formadas em sua maioria por leigos. As Ordens Terceiras se associavam as ordens religiosas

conventuais, franciscanas, dominicanas, carmelitas. As Irmandades comuns foram mais numerosas,

espalhando-se da metrópole para as colônias. Era necessário para que funcionassem, fossem acolhidas

por uma igreja, ou construíssem a sua própria, e o seu compromisso (o estatuto) fosse regulamentado

através das Constituições Primeiras. Cada igreja podia alojar várias irmandades, veneravam seus santos

devotos em altares laterais, existindo também várias com o mesmo nome e a mesma adoração ao santo

padroeiro, em lugares distintos do Brasil, ou na mesma cidade, mas dificilmente na mesma igreja.

A distinção étnico-nacional constituía a lógica de estruturação social das confrarias no Brasil. O critério

de identidade dessas organizações foi a cor da pele em combinação com a nacionalidade. As irmandades

dos “homens de cor” se dividiam entre crioulos, mulatos e africanos. As irmandades de

africanos se subdividiam de acordo com as etnias de origem. Imaginadas como veículo de acomodação e

domesticação do espírito africano, elas, na verdade, funcionavam como meios de afirmação cultural,

construção de identidade e solidariedade coletivas. Segundo Reis e Mariza60, os termos étnicos, como

nagôs, jejes, angolas, são representações de identidades que foram criadas pelo tráfico de escravos,

envolvendo grupos étnicos oriundos da África. Ou, como na época, o uso recorrente das chamadas

“nações”, em substituição ao termo étnico, mecanismo de identificação e organização dos africanos em

60
As considerações que brevemente faço sobre as irmandades na Corte imperial, inspira-se nos trabalhos de REIS,
João José, Morte é uma festa: ritos fúnebres e revoltas popular no Brasil no século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991 e ________ “Identidade e diversidade étnicas nas Irmandades no tempo da escravidão”. Tempo, Rio
de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1996, pp.7-33; SOARES, Mariza de Carvalho, Devotos da cor: identidade étnica,
religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 e________
“ O Império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no séc. XVIII”. Topoi 4, Rio de Janeiro, mar. 2002,
pp.59-83, KARASCH, Mary, Op. Cit., cap. 9, pp. 341-396.

57
todo o Mundo Novo. Mesmo tendo um componente étnico e também cultural, as nações, redefinem as

fronteiras entre os grupos étnicos através da formação de unidade mais inclusivas, fazendo

emergir uma esfera de solidariedade entre diferentes grupos étnicos, mesmo quando não existiam

condições previamente determinadas para isso. Instalados no Novo Mundo, os escravos se agrupam em

torno das ditas nações. Inicialmente uma identidade atribuída, a nação acaba sendo incorporada pelos

grupos e servindo, de forma alternativa ou combinada, como ponto de partida para o reforço de antigas

fronteiras étnicas ou para o estabelecimento de novas configurações identitárias. Tais diferenças

decorrem das populações traficadas e dos arranjos no interior de cada nação, em cada cidade, época e

situação. Para Mariza, trata-se de um conjunto de configurações étnicas em permanente processo de

transformação. Assim, na maioria das vezes, as irmandades se formavam em torno das identidades

africanas mais amplas, criadas na diáspora.

A dificuldade que tinham os africanos escravos e libertos de formar famílias, pode explicar por que no

Brasil eles redefiniram a abrangência da palavra parente para incluir todos da mesma nação. Um nagô se

dizia parente de outro nagô, angola, de outro angola. Parente era aquele que pertencia à mesma nação,

num aspecto mais amplo - outro negro. A intensidade com que os escravos produziam parentescos

simbólicos ou fictícios revela como era grande o impacto do cativeiro sobre homens e mulheres vindo de

sociedades baseadas em estruturas de parentesco complexas, das quais o culto aos ancestrais era uma

parte muito importante. Na travessia do Atlântico morria a família africana e nasciam os primeiros laços

da fictícia família escrava, na relação entre os companheiros de viagem – os malungus61. Nessa

necessidade institucional de família a irmandade se constituiu enquanto individualidade, os irmãos de

61
Cf. SLENES, Op. Cit., pp.52-53. Malungu, como escreve o autor, é vocábulo de raíz Bantu, significando no
Brasil: “companheiro, patrício, da mesma região, que veio no mesmo comboio”, ou ainda, “companheiros da mesma
jornada, aquele que compartilha do mesmo sofrimento”.

58
confraria formavam outra alternativa de parentesco ritual. Cabendo a família de irmãos oferecerem aos

seus membros, além de um espaço de convivência e identidade, socorro nas horas de necessidades, apoio

para conquista de alforria, meios de protesto contra os abusos senhoriais e, sobretudo rituais fúnebres.

Existia uma preocupação por parte dos africanos escravizados com os ritos fúnebres, uma forma de

melhor conduzir as almas após a morte, uma estreita ligação com a ancestralidade.

As irmandades eram organizadas como um gesto de devoção a santos específicos, que em troca da

proteção aos devotos recebiam homenagem em festas exuberantes, de trocas simbólicas, contidas na

“promessa do santo - toma lá dá cá”. Enfatizando o mencionado anteriormente, funcionavam como

formas de manipular com os talismãs poderosos - os santos. Essa atitude de promessa refletia tanto uma

preocupação com o destino das almas após a morte, quanto à proteção cotidiana do corpo. As irmandades

se adaptaram e foram também veículos de um catolicismo popular negro influenciado por práticas pagãs,

usos de escapulários, anéis, braceletes, manipulados como amuletos. No interior das irmandades,

dedicadas a diversos santos católicos, africanos de diversas nações, além de crioulos e pardos,

desenvolveram práticas e enfrentamentos diversos. Questões relativas à identidade e à diversidade

étnicas e a alianças interétnicas foram constantes na vida dos irmãos negros, como os foram os

enfrentamentos e as negociações com os brancos. As celebrações, divisões, alianças e conflitos nas

relações das irmandades, sugerem a existência de um conjunto de estratégias sociais que circulavam

através do mundo negro no tempo da escravidão.

Na visão barroca do catolicismo, o santo não se contenta com uma simples prece individual, será

necessário para sua intercessão junto a Deus, uma festa exuberante, com músicas, danças, mascaradas,

banquetes e fogos de artifícios. Enquanto ideologia a religião era responsabilidade do clero da igreja,

cabendo aos irmãos o lado emblemático e mágico da religião. Nas festas dos santos padroeiros, elegiam
59
reis, rainhas, imperadores e imperatrizes, que eram relembrações do Reino africano do Kongo. Rituais

que transformavam a memória em força cultural viva, vinculada aos santos. Assim, os africanos reviviam

simbolicamente suas antigas tradições culturais e consolidavam, na prática, novas identidades.

As irmandades foram uma das saídas encontradas pelos africanos escravizados transladados para o Novo

Mundo, para “lidar” com a adversidade em uma sociedade excludente, criando uma nova instituição de

“proteção”, “poder” e “prestígio”. Segundo Stuart Hall62, as identidades se constroem a partir das

diferenças, a “construção ou recriação” de novas identidades, com fronteiras mais flexíveis, que

pudessem trazer solidariedade e conforto nas horas mais difíceis. Traçaram-se acordos, negociações,

conflitos e alianças no interior das relações das irmandades, mais acima de tudo ela foi um eficaz

instrumento de resistência cultural.

62
HALL, Stuart. “Quem precisa de identidade”, In Silva, Tomaz, Tadeu da (org.) Identidade e Diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

60
CAPÍTULO 2:

NA CONTRAMÃO DA FÉ – A CONSTRUÇÃO DO SABER MÉDICO.

61
NA CONTRAMÃO DA FÉ – A CONSTRUÇÃO DO SABER MÉDICO

Ao longo da história construímos um discurso social-histórico sobre saúde e doença, o corpo, a vida.

Poderíamos dizer que a concepção de saúde e doença é particularmente reveladora do grupo social. Ela

mostra, de forma muito especial, como o indivíduo se situa na sociedade e como esta se situa em relação

ao indivíduo. Saúde e doença não são apenas conceitos biológicos, mas também acontecimentos

culturais historicamente construídos de várias formas em diversas sociedades e em estratos

diferenciados de uma mesma sociedade. O indivíduo como ator de uma sociedade, não pode ser

examinado em qualquer um de seus aspectos social-histórico sem vislumbrar a própria sociedade que o

circunscreve e com a qual interage. É necessário compreendermos na Corte Imperial o “nascimento” de

uma medicina que se considerava científica e qual o espaço legitimado pelo prestígio popular para

aqueles que se dedicavam às diversas medicinas não acadêmicas.

O século XIX foi um período de grandes transformações para o Brasil, com um conjunto de fatos

políticos, sociais, demográficos e econômicos que mudaram substancialmente a História do nosso país.

Os médicos formados em faculdades praticamente inexistiam no país até o início do século, eram os

curandeiros ou saludadores, boticários, barbeiros sangradores, rezadores, parteiras, raizeiros, que

permaneceram bastante procurados durante todo o período imperial. Diversas vezes os periódicos

ofereciam um apoio à luta contra o charlatanismo, categoria abrangente que era utilizada por intelectuais

médicos para qualificar toda e qualquer medicina diferente da sua, desde curandeiros, espíritas,

boticários até homeopatas e médicos estrangeiros cujos diplomas não tivessem sido convalidados pelas

faculdades de medicina do país.

62
Ao examinar o objeto de estudo, os praticantes da medicina popular, especificamente os africanos

escravizados e seus descendentes, ficou clara a inter-relação do poder político das instituições nele

envolvidos e da impossibilidade de um estudo descarnado dele. Impossível chegar ao universo dos

agentes de cura sem vislumbrar os passos de legitimação da medicina acadêmica. O que aparece como

evidente é a existência de formas de exercícios do poder diferentes do Estado, a ele articulado de

maneira variada, sendo indispensáveis inclusive a sua sustentação e atuação eficaz. As condições de

possibilidades políticas de saberes específicos, como a medicina, por exemplo, podem ser encontradas

não por uma relação direta com o Estado, considerado como um aparelho central e exclusivo de poder,

mas por uma articulação com poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena ação. Os

praticantes dos ofícios populares de curas inserem-se nesta outra forma de poder.

Uma grande parcela da população dos oitocentos acreditava que a doença não era coisa natural, as

moléstias eram provocadas por causas sobrenaturais, uma das causas poderia ser o castigo de Deus à

natureza pecadora do homem. Havia toda uma tradição cultural religiosa sobre doença e cura. O mundo

médico mostra-se se contrapondo a este universo que utilizam as chamadas superstições, como opostos

que não se aproximam. As fronteiras são flexíveis e, muitas vezes, intercambiáveis. No momento em

que a medicina chamada de pré-científica e científica se impõe apresenta-se também um divisor de

tempos e práticas. Esta divisão ocorre especialmente no discurso médico não refletindo nas suas

práticas. Nesse contexto seria impossível não acompanhar a própria elaboração das noções de saúde,

salubridade e higiene pública.

Com o “nascimento” da medicina social no Brasil a saúde pública orientou as transformações urbanas

ao mesmo tempo em que interveio nos espaços públicos e privados. A medicina estava longe de ser

homogênea apresentando dificuldades da elite médica para impor as medidas preconizadas por ela, além
63
do dissenso interno. Na disputa pela legitimação da medicina os médicos disputavam entre si e tinham

também como concorrente os agentes de cura, que contavam com grande aceitação popular.

A idéia de medicina acadêmica aqui localizada é aquela restrita aos médicos oficiais, os quais passavam

por uma formação acadêmica em uma das duas maiores cidades do país: Salvador ou Rio de Janeiro, ou

viajavam para o Velho Mundo, a Europa. Esta medicina nasceu, cresceu e desenvolveu-se junto às

elites. O percurso médico é identificado pelos sinais, registros deixados e marcados pela forma de atuar

com os problemas do corpo, porém existe todo um contexto de atuação com as mazelas do corpo doente

fora da fronteira do universo da medicina, sendo esse discurso não registrado oficialmente. Há um

universo de atividades marcado por informações fragmentadas e dispersas, de uma gama variada de

práticas e cuidados com a saúde, que não são regidos pela medicina acadêmica e silenciados pelos

dominantes.

Esta outra forma de curar não se preocupava em registrar seus passos, regida por outra lógica que

percorre o espaço da fé, da crença, da solidariedade e da tradição, estes homens e mulheres receitavam

chás, repousos, vomitórios, purgantes, rezas e banhos. O seu envolvimento em relações que nem sempre

traziam a marca do mercado e lidavam com uma série diversificada de entendimentos sobre a doença, o

remédio, o doente e o corpo. Eram pessoas que aprenderam as práticas com os mais velhos, que por sua

vez as receberam dos seus antepassados, de geração em geração, transmitidos pela tradição oral. Neste

grupo estão os benzedores, parteiras, curandeiros ou saludadores, sangradores, rezadores e raizeiros, dos

que fornecem referência dos chás e remédios caseiros, aquelas pessoas chamadas nos momentos de dor.

As atividades dos curandeiros estavam cercadas de certos mistérios. Não divulgavam suas fórmulas, não

explicavam suas atuações. Apelavam para o mundo da fé e da crença, auxiliados por orações, raízes,
64
flores, ervas, ícones religiosos. O curandeiro podia ou não desempenhar suas habilidades de cura como a

sua única atividade, aqueles que auxiliavam eventualmente a população necessitada, sem remuneração.

Podemos incluir: as parteiras, os boticários e os dentistas, que até a metade dos oitocentos não estavam

entre os que tinham formação acadêmica, eram os práticos. Havia todo um procedimento realizado pelos

curandeiros, raizeiros, benzedores, boticários e parteiras que incluía apelos ao mundo da fé. Existindo

pela medicina acadêmica, naquela época, uma dificuldade em compreender o modo de atuação daqueles

que exerciam o ofício de cura popular, seja através da arte médico-cirúrgica dos índios e negros, ou a

prática médica difundida entre os jesuítas, que incorporaram as suas boticas uma série de conhecimentos

indígenas da utilização medicinal das plantas brasileiras, mescladas com orações, ou as utilizadas pelos

curandeiros.

O Brasil imperial pode ser considerado, um “país periférico”, especializado na agricultura de exportação

tendo como centro propulsor o mundo rural. Sua desruralização será um processo lento, ainda

incompleto nas primeiras décadas de 1930. No século XIX, a urbanização, mesmo da cidade imperial do

Rio de Janeiro, é incipiente, e as ações que reformaram o urbano63 nesse período não tiveram o mesmo

significado das que reprojetaram as principais capitais européias na mesma época. Para Roberto

Machado64, a medicina que surgiu neste século, preocupada não só com o indivíduo doente, mas com

todas as instâncias da vida social, passava a ter um papel fundamental no planejamento urbano, era o

nascimento no Brasil da medicina social. Esta nova medicina, que estendia a todos em geral a noção de

63
O planejamento urbano seguiu regras estabelecidas pelos higienistas, não diferenciando do que acontecia no Velho
Mundo, o processo de tomada de poder da parte das instâncias medicais foi um processo idêntico ao conhecido na
Europa. Por exemplo, a Paris de hoje, é a obra do Barão Haussman, que destruiu quase todo o centro da antiga Paris,
insalubre, popular, para abrir as grandes avenidas que conhecemos hoje. Na Europa foi o início do afastamento das
classes populares para as periferias. De certa maneira os primeiros urbanistas foram os higienistas, não é uma atitude
especificamente brasileira, mas um movimento influenciado pela Europa.
64
MACHADO, Roberto. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro:
Graal, 1978.

65
doença, teria uma dimensão muito mais política que aquela do período colonial, que era mais curativa do

que preventiva. As questões de saúde pública informavam e direcionavam as transformações da cidade,

sendo esta medicina essencial política e progressiva, identificando-se com os ideais de civilização, a

serviço da modernidade. Modernizar a cidade não era apenas realizar reformas urbanas, mas também

medicalizar toda a sociedade, ou seja, intervir nos hábitos e costumes das pessoas, ditando novas formas

de relações familiares e novos padrões de comportamento. Ainda para este autor, é inseparável do saber

médico o poder conferido àquela classe: o domínio da ciência médica concederia aos higienistas uma

grande autoridade na vida política do país, e a influência dos médicos nas diversas instâncias da vida

pública seria oficializada através da criação em 1850 da Junta Central de Higiene Pública65.

As abordagens foucaultianas como as de Roberto Machado, Kátia Muricy e Jurandyr Freire Costa entre

outros66, radicaliza a relação entre o saber científico e o poder político dos médicos, como se fosse parte

integrante da medicina social “nascida” no século XIX. O de autoria de Madel Luz acaba seguindo os

mesmos problemas dos autores acima epigrafados. Tratam à medicina como uma instituição

homogênea, sempre coerente e de acordo com os interesses das autoridades públicas, transformando-a

num “instrumento verdadeiro do Estado”. Não estou negando a luta de um grupo de médicos, ou a

influência daquela ciência nas transformações sofridas pela sociedade brasileira, principalmente no

final do período colonial. Trata-se de relativizar essa imanência política da medicina, essa ligação tão

óbvia entre médicos e autoridades ao longo de todo o século XIX, na qual muitas vezes se insiste. Esse

65
A Junta Central de Higiene Pública, criada em 1850, era o órgão máximo da higiene, regulador, normatizador e
fiscalizador da medicina acadêmica imperial, legitimavam a grande autoridade dos médicos na intervenção das vidas
pública e privada. Em 1886, o órgão passou a se chamar Inspetoria-Geral de Higiene.
66
MACHADO, Op. Cit.; MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo:
companhia das Letras, 1988, p.15; COSTA, Jurandyr Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal,
1979. LUZ, Madel Teresinha. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de saúde (1850-1930). Rio
de Janeiro: Graal, 1982.

66
tipo de análise ignora os conflitos e as contradições no interior da classe médica ao longo de sua

consolidação. Seguindo os passos de Flávio Edler67, ele afasta a imagem de homogeneidade da

medicina, que fornecia a base científica para o pacto social, durante o século XIX. Somente no final do

século os médicos teriam conseguido consolidar sua profissionalização, após muitas brigas com os

grupos políticos poderosos e dentro do seu próprio grupo. O autor historiciza o processo de legitimação

do saber médico perante os órgãos públicos de saúde, mostrando como e quando houve união de

ambos, convergindo para uma mesma estratégia. O que acontece, para ele, somente após importantes

reformas no ensino médico ocorridas em l884. Entretanto, ainda em 1888, aquela ciência estava longe

de ser homogênea, ou de se legitimar perante diversos setores da população. Principalmente se for

levada em conta, à relação dos médicos com as camadas populares da Corte Imperial, foi o que

constatei através dos periódicos da época, as denúncias de leitores sobre os delegados da Inspetoria de

Higiene, os “ataques” aos “charlatães” e aos curandeiros, e a disputa entre os próprios médicos. Os

autores acima citados se interessam pela história da medicina, pela sua legitimação, seja perante as

autoridades do governo ou no interior do debate científico. Flávio Edler, trabalhando com a história da

ciência, estuda os enclaves no seio dos profissionais da medicina acadêmica para compreender como a

cientificidade do saber médico se desenvolveu, levando os esculápios a conquistar um lugar de

destaque. Todos estão muito mais preocupados com as relações de poder dos médicos do que o saber

científico. Não é de seus interesses a legitimação da medicina por aqueles a quem ela se dirigia, não é

objeto de estudo a busca pelas relações sociais com a população, o que torna essa abordagem uma

história unilateral, “observada” somente pela ótica da medicina.

67
EDLER, Flávio. “As reformas do ensino médico e a profissionalização da medicina na Corte do Rio de Janeiro,
1854-1884”. Dissertação de mestrado, Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, São Paulo, 1992, p.31.

67
2.1 Organização dos serviços de saúde na Corte Imperial

Os modelos de organização dos serviços de saúde, vigentes em Portugal, foram transferidos para o

Brasil colônia. A estrutura administrativa da Fisicatura era representada pelo Físico-Mor e pelo

Cirurgião-Mor do Reino, que usando das próprias atribuições, estabeleciam regimentos sanitários,

expediam avisos, alvarás e provisões para serem executados pelos representantes no Brasil. Em 1782,

cria-se em Portugal, a Junta do Proto-Medicato, em substituição à estrutura da Fisicatura, tendo por

objetivo fiscalizar o exercício da medicina e o controle das vendas de medicamentos, não alterando a

estrutura administrativa da medicina na colônia. Os serviços de saúde são prestados de forma precária

pelas Santas Casas de Misericórdia, pelos hospitais militares e pelas enfermarias das ordens religiosas.

A população em geral era assistida pelos físicos, cirurgiões-barbeiros, barbeiro-sangradores, boticários,

curandeiros ou saludadores, parteiras, rezadores, raizeiros.

Com a chegada da família real ao Brasil, em l808, D. João estabelece, os cargos de Físico-Mor e

Cirurgião-Mor e a Fisicatura volta a atuar em substituição ao Proto-Medicato. Com a finalidade de

suprir a falta de médicos no Brasil, cria em Salvador, a Escola de Cirurgia, em l9 de fevereiro de l808.

Com a transferência da família real para o Rio de Janeiro, D. João autoriza, no mesmo ano, uma outra

Escola de Anatomia, Cirurgia e Medicina, para formação de cirurgiões e clínicos, cada uma delas ligada

a um hospital militar. Em 1813 e1815, respectivamente, as Escolas Cirúrgicas do Rio de Janeiro e da

Bahia, passam a denominarem-se Academias Médico-Cirúrgicas. Nesse período os currículos sofrem

sensíveis alterações com o acréscimo de várias cadeiras dentre as quais, Introdução à Higiene. A partir

de então, passa a ser oficializado o ensino médico na Colônia. Depois da Independência, as Academias

Médico-Cirúrgicas adquirem poder de conferir certificados de médicos e cirurgiões, libertando-se da


68
tutela da Fisicatura. Em 1832, as duas Escolas Médicas Cirúrgicas existentes no Brasil são

transformadas nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. A falta de profissionais de

medicina e mesmo de cirurgiões e boticários, tanto na Corte, como nas demais regiões do Brasil,

possibilita ao Regimento da Fisicatura-Mor prever a “legalização” das atividades dos agentes de cura,

sangradores, boticários, parteiras, curandeiros.

Apesar do reconhecimento a medicina popular foi formalmente desvalorizada pela Fisicatura. Segundo

Tânia Salgado Pimenta, durante os vinte anos de atuação da Fisicatura, os agentes de cura foram

reconhecidos como possuidores de um saber legítimo e autorizados a exercerem as suas atividades. O

reconhecimento era possível com a finalidade de incorporar os agentes de cura a uma ligação de

dependência pessoal que seguiam a hierarquia social e às das práticas médicas acadêmicas. Eram

expedidas licenças ou cartas autorizando as práticas populares, que deveriam ser requeridas pelos

interessados. Qualquer um poderia requerer a carta junto a Fisicatura, ou pedido de licença provisório.

Sendo necessária a apresentação de um atestado assinado pelo mestre com quem havia aprendido

determinada arte de curar, devendo constar o tempo de aprendizagem e que também adquirira habilidade

naquela arte. Podendo, entretanto, ser substituído por declaração de pessoas de prestígio da comunidade

onde praticava a sua arte. Porém não havia muito interesse por parte desses agentes de cura em

oficializar suas atividades, muitos não sabiam que estavam trabalhando na ilegalidade e, aqueles que

sabiam não viam vantagens em obter a licença para suas práticas. Curandeiros, sangradores, parteiras

não se interessavam muito em obter a licença para oficializar atividades68, ter ou não a carta ou licença

68
PIMENTA, Tânia Salgado. “Terapeutas populares e Instituições médicas na primeira metade do século XIX”. In:
CHALHOUB, Sidney. Artes e Ofícios no Brasil: capítulos de história social. São Paulo: Unicamp, 2003, p. 310.
Segundo a autora, existia uma dificuldade da Fisicatura perante os agentes de cura, o que pode ser constatado através do
número de cartas e licenças concedidas referentes às categorias que lhe diziam respeito. Durante os 20 anos das
atividades da Fisicatura no Rio de Janeiro, apenas 207 sangradores, 66 parteiras e 27 curandeiros se oficializaram no
Brasil, o que corresponde, respectivamente, a l6%, 5% e 2% do total de títulos expedidos. O que destoa dos relatos dos
viajantes, dos periódicos e outras fontes.

69
não influenciava a população que buscava os seus trabalhos. Conforme Pimenta, as concepções

populares de doença e cura não divergiam sempre das acadêmicas nesse período. Mas estas eram

oficialmente aceitas como parâmetro para a avaliação de práticas aceitáveis ou não, tendo na matriz

européia concepção de doença e cura ordenadas em classificações e métodos específicos de terapia.

Com a extinção da Fisicatura e dos cargos de Físico-Mor e Cirurgião-Mor do Império, em 1828, as

funções relativas à autorização e fiscalização do exercício de curar, ficaram sem substitutos. As

atividades de fiscalização das boticas, dos armazéns de secos e molhados, dos portos foram designados

as Câmaras Municipais, através do Regimento de 1828, colocando os médicos em franca oposição à

autoridade das Câmaras.

A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro é criada em 1829, pelos médicos Cruz Jobim e Soares de

Meirelles, com a finalidade de promoverem a defesa e o desenvolvimento das ciências médicas no

Brasil, nos mesmos moldes da Academia de Medicina de Paris. Em l832, a Sociedade de Medicina do

Rio de Janeiro passou a ser consultada pelas Câmaras Municipais sobre as questões de saúde pública.

Em 1835, durante o período regencial, a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro é transformada em

Academia Imperial de Medicina, uma de suas principais atuações é tornar-se um órgão de consulta do

Estado para assuntos referentes à saúde. Nessa época tem início um processo de formulações

sistemáticas das relações entre saúde e condições de vida na sociedade, resultante de uma nova medicina

social, mais preocupada com o coletivo e a prevenção, do que com a cura das doenças. O caráter

meramente biológico da doença progressivamente dá lugar a novas práticas médicas articuladas aos

projetos de reorganização social. O papel do Estado era cuidar da saúde da população, cabendo também

ao médico supervisionar de forma direta a saúde do povo. Para se dispor de um corpo médico

competente, era necessário decretar um regulamento de polícia médica que conduziria a educação

70
médica, bem como, supervisionar boticas e hospitais, prevenir epidemias, combater o charlatanismo e

possibilitar o esclarecimento da população. Neste período, há mudanças significativas nas relações entre

os agentes de cura e as instituições médicas, que são preteridos pela medicina acadêmica, e chamados

muitas vezes de “charlatães”.

2.2 Hefaísto – o deus grego do trabalho e a “desvalorização” das artes mecânicas

No Olimpo de Zeus, lugar de deuses “responsáveis”, fosse pelos diversos “setores da natureza”, o setor

designado - trabalho manual, também era lugar de desprestígio entre eles, hierarquizado e inferior.

Hefaísto, o deus grego do trabalho, é descrito como um ser monstruoso, feio, coxo, inchado,

ridicularizado entre os próprios deuses. Os trabalhos manuais, artesanais são acompanhados do

desprestígio, da desvalorização. Na Grécia clássica a leveza e beleza da peça produzida pelo artesão, não

estavam ligadas a quem a executou, mas aquele que encomendou o trabalho. A arte do artesão não é

criativa, apenas dá forma à matéria a ser trabalhada69. Na Europa dos séculos XV-XVII começa o

percurso de valorização das artes manuais, o que somente no século XIX ocorrerá no Brasil. Entre os

profissionais que trabalham com as mazelas do corpo doente, os cirurgiões, os barbeiros, os boticários,

as parteiras, os curandeiros ou saludadores, e todos os mais que estão inclusos entre os práticos e os

médicos, existem uma diferenciação básica, que os classifica entre os profissionais de artes manuais e

intelectuais. Figueiredo nos esclarece sobre o estigma em “lidar” com o sangue, que desde os tempos

medievo persiste na Europa até o século XVII. Esta concepção influencia diretamente na hierarquização

e desvalorização daqueles que atuam junto às mazelas do corpo doente. No Brasil somente nas primeiras

69
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994,
p. 354.

71
décadas dos oitocentos esta concepção inicia sua mudança e os praticantes das artes manuais passam a

serem “valorizados”:

Um dos primeiros estigmas ao se tratar do corpo doente é o lidar com o sangue. O trato
com o sangue está carregado de conotações negativas, reacende/fortalece/reafirmam o
desprestígio do trabalho manual... O estigma do sangue faz ressurgir um tabu primitivo.
...De acordo com Le Goff a sociedade sanguinária do ocidente medieval oscilava entre o
deleite e o horror pelo sangue derramado, englobando desde os carrascos, passando pelos
cirurgiões, barbeiros, boticário a que praticavam sangrias, até os soldados. 70

No caso específico da medicina ocorre uma divisão entre aquele que manipula os
instrumentos (ferramentas) no cuidado com o corpo – o cirurgião - e aquele que avalia o
estado geral do paciente, identifica as doenças e prescrevem dietas, medicamentos,
repousos. Médico e cirurgião passam o ocupar espaços distintos no rol da arte de curar.
Neste reposicionamento entre o médico e o cirurgião, as atividades intelectuais são
dissociadas das atividades práticas. O médico é cada vez mais um homem letrado e sábio
que busca sua ciência muito mais nos livros do que na observação dos doentes. Já o
cirurgião é encarregado das atividades práticas: lida com o corpo em cirurgias, no trato
com as fraturas, no cuidado com as feridas. 71

O lugar do médico era hierarquicamente diferenciado do cirurgião que, por sua vez, possuía posição

superior a do barbeiro que também exercia atividades ligadas ao corpo doente. O campo da cirurgia na

medicina ocupava um espaço de menor prestígio, destinado às técnicas menos qualificadas, técnicas

que demandavam menos conhecimento e mais habilidades com as mãos. O trabalho do barbeiro e do

cirurgião estava diretamente relacionado com o corpo doente, com o sangue, e com as partes purulentas

do corpo. O cirurgião, um dos ofícios das artes mecânicas, com os seus instrumentos e sua habilidade

aproximava-se do ofício do ferreiro, do deus Hefaísto. As atividades desempenhadas pelo cirurgião

encontravam-se vinculadas às atividades do barbeiro, em que as exigências referiam-se muito mais às

habilidades técnicas, manuais do que ao domínio do conhecimento e funcionamento do corpo humano.

70
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar, cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em
Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002, p. 71. LE GOFF apud FIGUEIREDO, 2002, p.87, ver nota n° 73
e 74.
71
FIGUEIREDO, Op. Cit., p. 69.

72
A formação do médico e a do cirurgião permaneceu diferenciada até metade do século XIX, no Brasil.

O ofício de cirurgião está mais próximo da aprendizagem prática do que do ensino formal, e também,

pela associação de sua imagem a do barbeiro com seus navalhas. No início dos oitocentos, muitos

cirurgiões eram considerados práticos, não passando pelo ensino formal. Com a institucionalização do

saber médico, os cirurgiões eram graduados em um período de tempo menor que os médicos. Para o

avanço nos estudos da medicina é essencial que o trabalho manual receba uma positivação,

possibilitando aos médicos e cirurgiões trabalharem em conjunto, culminando em um caminho paralelo

entre teoria e prática. Alguns cirurgiões72 completavam ou retornavam os estudos tornando-se médicos,

ascendendo profissionalmente e socialmente.

2.3 Os periódicos e as questões médicas

Importante, também, o papel da imprensa nas questões relativas às diferentes medicinas. Se muitas

vezes os jornais assumiam declaradamente o combate a tudo que era considerado criminoso ou

charlatanismo, em outros momentos eram eles mesmos que faziam ataques aos “doutores”, criticando

abusos e imperícias. Muitos relatos nos jornais mostravam divergências dos pacientes com os médicos;

outros, entre os próprios médicos, numa busca pela clientela e espaço social, existindo ainda, disputa

entre os esculápios pela clientela, além de terem os agentes de cura como concorrentes.

Diametralmente, cartas de pacientes agradecendo a certos médicos as suas curas, publicadas em vários

dias e periódicos diversos. A necessidade da medicina acadêmica em “disputar” o seu lugar na


72
A profissão de cirurgião era dividida em duas categorias: cirurgião aprovado e cirurgião formado. O primeiro
obtinha a carta depois de completar o quinto ano de estudo, estando habilitado “unicamente para poder curar neste
ramo da medicina (cirurgia) em todas as partes do Império”. O segundo depois de cursar o sexto ano do mesmo
curso, e repetindo as matérias do quarto e quinto anos, recebia a carta de cirurgião formado que o habilitava a “curar
de Cirurgia e Medicina em todas as partes do Império”. Ver SANTOS FILHO, Lycurgo. História da Medicina
brasileira. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1992, vol. II, p.54.

73
sociedade, nos permitiu entrever a concorrência conflituosa entre os próprios médicos acadêmicos, e

entre estes e as diversas medicinas alternativas.

Muitas cartas publicadas nos jornais demonstravam o quanto os doentes relutavam em procurar um

médico quando estavam doentes. Após esgotar todos os meios tradicionalmente empregados, aquelas

pessoas rendiam-se aos recursos da ciência. Um relato escrito pelo Sr. Farias a um periódico73, narra que

sofreu durante 14 anos antes de se entregar a um cirurgião, encontrando-se curado após a cirurgia.

Durante todo esse tempo, o Sr. Farias sofreu relutando em se entregar a um médico, demonstrando que

as pessoas tentavam tudo, faziam ao máximo o que pudessem para não ser obrigadas a recorrerem a

medicina oficial.

Ao atacar seus adversários, os médicos deixavam claro para os leitores dos periódicos um outro lado

daquela medicina científica: as falhas e os absurdos que os esculápios tanto recriminavam quando se

referiam aos praticantes de cura, os chamados “charlatães”, eram também cometidos, e muito, por eles

mesmos. A disputa interna entre os médicos e a crença na origem das doenças contribuía para a escolha

dos doentes pelos métodos alternativos de cura. A preocupação dos médicos com os ataques que

vinham sofrendo e com a marcante presença dos “charlatães”, o que é evidenciado em teses médicas da

época, mostra uma luta a ser travada pela classe médica na tentativa de obter legitimidade perante

diferentes doentes, especialmente as camadas iletradas, vistas como propensas a deixar de lado as

próprias tradições de cura em nome da ciência.

73
Jornal O Paiz, em 24/01/1888, p.02.

74
O Dr. Meirelles, um dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, na Revista Médica

Fluminense, justifica o reconhecimento do médico como autoridade responsável pelo combate à

ignorância do povo:

“O povo geralmente não entende o que lhe é útil, e muitas vezes é incapaz desta
inteligência. É preciso que a autoridade, como mais instruída, e mais capaz desta
inteligência, faça o que entender que é útil e conveniente, sem se importar com o que faz
com representações e propostas. (...) que é preciso não descansar, e repetir constantemente
74
as mesmas causas para alcançar algum bom resultado”.

A Academia Imperial de Medicina esforçou-se por cumprir a tarefa de traduzir e atualizar a pauta

higienista. Diante das questões consagradas pela Geografia médica75, os médicos brasileiros

apresentaram respostas originais, algumas das quais se opunham aos velhos estereótipos europeus. Os

acadêmicos imputavam ao calor e a umidade um papel preponderante, dentre outros fatores climático-

telúricos na patologia nacional. Descrevendo sua ação direta como patogenia, ou indireta, miasmas, na

economia humana e, formas profiláticas para se evitar sua ação deletérica. Entretanto, de acordo com o

consenso médico da época, na composição dos estados mórbidos, os fatores morbígenos decisivos

seriam ligados aos hábitos higiênicos. Para Sigaud76, uma postura saudável seria aquela centrada na

exclusão dos principais agentes da mortalidade, o regime alimentar e o abuso no ato sexual, que

redundaria numa atenuação dos efeitos climáticos, o calor, a umidade e os miasmas.

74
Cf. Revista Médica Fluminense, Niterói, fevereiro, I (11), 1836, pp.6-7.
75
Geografia médica era uma disciplina que pretendia conter o conhecimento patológico global. Seus mais influentes
representantes eram médicos europeus, geralmente ligados à administração colonial.
76
Ver SIGAUD, J. F. X. Du Climat et. des Maladies du Brésil ou Statistique Médicale de cet Empire. Paris: Chez
Fortin, Masson et Cie, Libraies, 1844, p.59.

75
Nos finais de 1849, o Rio de Janeiro Imperial é invadido pela primeira grande epidemia de febre

amarela, transformando a questão de saúde pública no Brasil. Tal fato é decisivo para a criação da Junta

Central de Higiene Pública77, deslocando da Academia Imperial de Medicina o papel central que ela

desempenhava, permitindo à Junta responsabilizar-se pelas questões administrativas que eram até então

de responsabilidade da Academia, tornando-se subserviente às diretrizes governamentais no período de

maior centralização política do Império, que se seguiu à curta experiência liberal das regências, 1831-

1840.

Algumas funções que anteriormente eram de responsabilidade da Inspeção de Saúde do Porto e outras

das Câmaras Municipais, foram transferidas para a Junta Central de Higiene, criando conflitos que

deveriam ser solucionados dentro da própria instituição. Composta por um presidente escolhido pelo

governo, o provedor de saúde do porto, o inspetor do Instituto Vacínico, o cirurgião-mor do Exército e o

da Armada. Uma das suas principais funções era de “polícia médica nas visitas das embarcações até

agora encarregadas à Inspeção da Saúde, e nas que devem fazer-se nas boticas, lojas de drogas,

mercados, armazéns, e em geral em todos os lugares, estabelecimentos, e casas donde possa provir

dano à Saúde pública78”.

77
Com o objetivo de conter a doença, foi estabelecida, em 14 de fevereiro de 1850, a Comissão Central de Saúde
Pública, formada por membros da Academia Imperial de Medicina e por professores da Faculdade de Medicina. Poucos
meses depois, foi criada a Junta de Higiene Pública, que deveria zelar pela melhora do estado sanitário da cidade
Imperial e de “outras povoações do Império”, ver Coleção de leis do Brasil – CLB, Decreto de 14/09/1850. Contudo, a
forma como deveria funcionar só foi detalhada pelo regulamento de setembro de 1851, a partir do qual passou Higiene
Pública, ver Coleção de Leis do Brasil – CLB, Decreto de 29.09.1851 a ser denominada Junta Central de Higiene
Pública, ver Coleção de Leis do Brasil – CLB, Decreto de 29.09.1851.
78
Coleção de Leis do Brasil – CLB, Decreto de 14.09.1850.

76
2.3.1 Miasmas mefíticos.

No decorrer do século, os médicos brasileiros sob a influência do racionalismo iluminista em que tinham

se formado, em direção à civilização e ao progresso, acreditavam no poder transformador da razão e na

medicina como seu grande aliado. Somente o saber acadêmico do médico brasileiro levaria a nação a

ser equiparada aos demais países civilizados do Velho Mundo, extinguindo com a herança da colônia.

Para os médicos do Brasil Imperial a doença deixava de ser um castigo de Deus para se transformar num

mal natural contagioso. Porém a identificação do mal dividiu os “doutores” durante muito tempo. Entre

as concepções médicas das causas de doenças da época, duas disputava maior número de adeptos. De

um lado estavam os que acreditavam na existência de um contagium vivum, ou seja, o contágio por meio

de microorganismos patológicos. A tese microbiana só se confirmou na segunda metade do século, com

as pesquisas de John Snow79, que estudou o surto da cólera de Londres, em 1854, confirmadas pelas

teses de Pasteur e demais cientistas europeus.

Uma outra causa das doenças era embasada na teoria dos miasmas, que se consolidou desde o século

XVIII. Esta idéia estava baseada na noção de quando o ar fosse de qualidade má, as pessoas que o

respirassem tornar-se-iam doentes. A infecção miasmática, ao contrário das infecções microbianas,

ocorria diretamente através do meio ambiente, infectados por gases ou vapores pútridos, os miasmas. Os

médicos tinham a preocupação em limpar o ar, fazê-lo circular, extinguir com os odores e com as coisas

que o causavam. Segundo essa teoria, muitas doenças eram causadas por miasmas produzidos por

matéria orgânica em decomposição, os cadáveres, por exemplo, e águas estagnadas. Entretanto, algumas

eram indubitavelmente contagiosas, como a varíola, outras, como a febre amarela e a cólera, despertava

79
SNOW, John. Snow e cólera. New York, 1965, In International Journal of Epidemiology, 1:4 (1983), pp. 393-396,
discutem o caráter revolucionário das investigações de Snow para a teoria epidemiológica.

77
discussões e conflitos. A doença era considerada infecciosa quando se propagava por meio de miasmas

presentes no ar ou contagiosas quando transmitidas por pessoas doentes, ou ainda, através de objetos

manipulados por estes, implicando defender medidas profiláticas diferentes. Para os contagionistas,

seriam fundamentais as quarentenas, principalmente nos navios que chegavam aos portos e isolamento

rigorosos dos doentes em hospitais estabelecidos em locais distantes do centro da cidade. Os

infeccionistas consideravam tais providências ineficazes e defendiam medidas mais abrangentes para

transformar as condições locais e impedir a produção dos temidos miasmas, sendo priorizadas a

melhoria do estado higiênico da cidade e a adoção de regras sanitárias com respeito a habitação,

alimentação, trabalho e lazer. Os médicos defendiam arduamente seus pontos de vistas sobre as idéias

de contágio e infecção.

Os médicos adeptos da concepção dos miasmas, os infeccionistas, não sabiam com exatidão definir

miasma. Encontramos em um dos dicionários de medicina popular utilizado, á época, o verbete de

Chernoviz, uma vaga conceituação de miasma:

Tomando a palavra em sua acepção laica, consideram-se sob este título todas as emanações
nocivas, que corrompem o ar, e atacam o corpo humano. Nada há mais obscuro do que a
natureza íntima dos miasmas: conhecemos muitas causas que os originam: podemos
apreciar grande número de seus efeitos perniciosos, e apenas sabemos o que eles são.
Submetendo-os à investigação de nossos sentidos, só o olfato nos pode advertir da sua
presença; não nos é dado tocá-los nem vê-los. A química mais engenhosa perde-se na
sutileza das doses e combinações miasmáticas; de ordinário, nada descobre no ar insalubre
ou mortífero que deles esteja infectado, e quando consegue reconhecer nela uma proporção
insólita, ou a presença acidental de algum princípio gasoso, não nos revela senão uma
diminutíssima parte do problema.80

80
CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Dicionário de medicina popular. 6ª ed., Paris, 1890. Biblioteca Nacional,
seção de obras raras. Dr. Chernoviz era um médico polonês, estabeleceu-se no Brasil, entre 1840-1855, na Corte
imperial. Em dezembro de 1840, filia-se a Academia Imperial de Medicina, como estratégia de visibilidade e
notoriedade. Publica aqui, em 1842, o Dicionário de Medicina Popular, destinado ao público em geral, ficando a obra
conhecida como o “Chernoviz”. Reunia diversas receitas úteis nas artes de curar, torna-se o “livro de cabeceira”,
principalmente, dos senhores de engenho, imposto pela própria dificuldade do número restrito de médicos formados nas
zonas rurais. Também é utilizado pelos praticantes das artes de cura, contaminando as referências simbólicas dos
diferentes saberes de cura mantidos pela tradição oral.

78
Não conhecer a real origem e os elementos constitutivos dos miasmas fez com que os infeccionistas

direcionassem a toda cidade uma inspeção constante. Para Chalhoub81, foram os philosophos

infeccionistas, que produziram o arcabouço ideológico básico das reformas urbanas realizadas em várias

capitais ocidentais na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte.

2.3.2 Insalubridade e sepultamento

A partir de 1850, no Brasil, inicia-se o processo de transformação dos sepultamentos para fora dos adros

das igrejas e dos centros urbanos, havendo uma nova concepção sobre a doença por parte da medicina

acadêmica, que preconizava a prevenção das doenças, voltando-se para uma política de higienização dos

espaços urbanos, já que essa medicina acreditava nos “miasmas morbíficos” como focos de

contaminação das infecções.

Um outro ponto a ser abordado, era o que acontecia com os seus corpos após a morte, pelo fato de saúde

e doença estarem vinculadas a duas questões fundamentais para uma sociedade – a vida e a morte.

Cláudia Rodrigues discute as práticas de sepultamento eclesiásticas que foram trazidas e instituídas no

Brasil pelo colonizador, os “lugares de moradia” dos mortos eram correspondentes a uma relação dos

vivos para com eles, ocupando uma dada posição nas representações culturais e funerárias da época.

Houve uma transformação a partir da proibição dos sepultamentos no interior das igrejas, fundamentada

na teoria dos miasmas, terminando com a construção dos cemitérios públicos. Segundo Rodrigues:

81
Ver CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras, 1996, p.65.

79
As práticas de inumação até então vigentes foram consideradas pelos médicos como
passíveis de serem extintas, uma vez que as emanações cadavéricas poluiriam o ar, o que
era agravado pelo fato de serem muitas as igrejas localizadas no perímetro urbano, todas
repletas de sepulturas que, quando abertas na presença dos fiéis, provocavam odores
mefíticos, causadores de doenças e alimentadores das epidemias.82 (grifo nosso)

Na França do século XVIII, desenvolveu-se uma atitude hostil à proximidade com o moribundo e o
morto, que os médicos recomendavam fossem evitados por motivos de saúde pública, descreve Reis:

O suor, a urina, as fezes, animais mortos eram algumas das fontes de “infecção do ar”,
segundo os higienistas. Os cadáveres humanos contavam entre as principais causas de
formação de miasmas mefíticos, e afetavam com particular virulência a saúde dos vivos,
porque eram depositados em igrejas e cemitérios paroquiais dos centros urbanos.83

Com a descoberta dos miasmas veio a descoberta do mau cheiro da decomposição cadavérica,

substituindo o odorato piedoso da fase barroca. O cheiro fétido que exalava das sepulturas perturbava os

narizes daqueles que freqüentavam as igrejas e dos que moravam nas proximidades, afetando com

agressividade a saúde dos vivos. Os higienistas recomendavam uma permanente vigilância olfativa dos

cidadãos.

O conde de Resende, em 1798, propôs que a Câmara municipal organizasse uma consulta aos médicos

notáveis, sobre as causas da insalubridade do Rio de Janeiro. Diversos aspectos foram apontados como

causadores da “degeneração” do ar, dentre eles um era referente à urbanização. Um projeto para sanar os

elementos da desordem que acarretavam o mau funcionamento do todo, redefinia os aspectos da

urbanização, que incluía a presença dos cemitérios.

82
Cf. RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na Cidade dos Vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, Divisão de Editoração, 1997, p. 22.
83
REIS, João José. A Morte é uma Festa – ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 76.

80
Numa portaria de 1825, o imperador alegando insalubridade das formas de sepultamento que eram de

uso no Rio de Janeiro, ordenou ao provedor-mor de Saúde o estabelecimento de um cemitério. Em

outubro de 1828, um decreto imperial regulamentou a respeito da instituição de cemitérios fora dos

adros das igrejas, conferindo às Câmaras municipais a competência da matéria. A Câmara do Rio de

Janeiro, em 1828, promulga o novo Código de posturas municipais, que delibera sobre cemitérios e

enterros, ordenando que houvesse atestado de óbito prescrito por médico, normatizando a profundidade

das covas e o tempo que deviam ficar fechadas e proibindo enterros nas igrejas e conventos, que fosse

construído um cemitério ou estabelecido um local de enterros. Para Roberto Machado, a Sociedade de

Medicina, através de sua comissão de salubridade, esteve desde a origem de sua elaboração,

consolidando a posição dos médicos no apoio às autoridades para o estabelecimento das medidas de

urbanização84. Leis que não foram cumpridas. Em 1841, um projeto dirigido à Câmara traz à tona

novamente o assunto da construção dos cemitérios, que ela se ocupasse o “quanto antes da instituição

de cemitérios, para de uma vez cessarem os enterros dentro das igrejas”85. Diversas normas eram

ditadas pela Câmara, o que significa que elas não eram cumpridas. Os motivos e envolvimentos socio-

políticos pela criação dos cemitérios não é uma questão para ser trabalhada neste trabalho, requerendo

outros caminhos a serem percorridos.

Durante a primeira metade do século XIX, fortalecia entre as autoridades médicas e políticas, também

entre alguns populares, o medo da contaminação dos vivos pelos cadáveres sepultados no interior das

igrejas ou em cemitérios próximos as casas. Somente com a primeira grande epidemia de febre amarela

na Corte, é que tais cemitérios seriam realmente estabelecidos e os enterramentos deixariam de ser

84
MACHADO, Op. Cit., pp.189-190.
85
AGCRJ – Parecer da comissão instituída pela Câmara Municipal para apresentar um programa para os cemitérios
públicos. Rio de Janeiro: 11/12/1841.

81
realizados nos templos religiosos. A epidemia de febre amarela que assolou a Cidade imperial em 1849

provocou grande impacto sobre os cidadãos, provocando o medo entre os vivos, projetando o temor em

relação aos mortos, na difusão da concepção de que as sepulturas e seus cadáveres eram focos de

contaminação. Há séculos, os sepultamentos eram realizados dentro das igrejas ou ao seu redor, sem que

isso incomodasse a população da Corte. A epidemia trouxe modificações a esse costume. O medo do

contágio e da morte faria com que a proximidade entre vivos e mortos fosse temida, principalmente

pelas concepções médicas. Concomitante a epidemia outros fatores contribuíram para o

desenvolvimento do medo em relação aos mortos: - o desenvolvimento, a partir da década de 1830, de

um saber médico que empenhado na prevenção de doenças, recomendava a implantação de medidas

higienistas rigorosas para os mais variados espaços da cidade, apontando, dentre elas, a necessidade de

transferir as sepulturas para longe dos limites das cidades; - a presença de uma imprensa cada vez mais

atuante na disseminação das informações; - a emergência do poder público, empenhado na adoção de

medidas de salubridade, com fins de empreender seu projeto de urbanização. Estes fatores contribuíram

para a criação da Junta Central de Higiene Pública.

O século XIX marcou o Brasil com o início da transformação no campo da medicina. Ela penetrou na

sociedade incorporando o urbano como alvo de reflexão da prática médica, passando a integrar o poder

do Estado através do apoio científico. O Estado reestruturou suas ações políticas, reconhecendo o valor

político das ações médicas. Deslocando-se o objeto da medicina, da doença para a saúde. Ela não

aceitava mais a ação direta sobre as doenças, apenas, buscava atuar sobre os componentes naturais,

urbanísticos e institucionais, de modo preventivo.

A noção chave deste acordo foi à salubridade. A questão da salubridade levantada pela medicina ligou-

se de imediato ao interesse do país. O nascimento da medicina social teve como um de seus pontos
82
principais a higiene pública, uma luta pela regularização dos regulamentos sanitários, pelo controle de

sua aplicação por médicos, por mudanças nos costumes, pela intervenção nos hospitais, prisões, lugares

públicos, pelo estudo de epidemias e doenças contagiosas. É a extensão da jurisdição dos médicos nas

áreas públicas, privadas e urbanísticas. Uma das correspondências do Ministério da Justiça com a

chefatura da polícia da Corte, em meados de 1866, para prevenir uma epidemia de cólera, escreve

medidas serem tomadas, pois a cólera ataca portos que comercializavam com o Brasil:

- zelo no aceio das praias, praças, lugares públicos, evitando o quanto possível o acúmulo
de detrito e imundície;
- impedir a venda de vegetais selecionados, gêneros secos e líquidos de má qualidade ou
deteriorados; - frequentes visitas domiciliares para obrigarem os habitantes a conservarem o
necessário aceio;
- evitar grandes acúmulos de pessoas em recintos estreitos e insalubres no centro da cidade:
há casas com o nome de cortiços... 86.

A abrangência da salubridade transpõe muros e chega aos cemitérios. Preocupados acima de tudo em

“ditar normas” e investidos do poder de polícia médica, o órgão de higiene pública em 17/10/1888 cria

regulamentos para orientar os serviços funerários, impondo regras rígidas a serem seguidas, o que nem

sempre acontecia. Nas “Instruções especiais referentes aos cemitérios, aos serviços funerários em

épocas normais e em quadras epidêmicas”87, o caput da regulamentação se refere a “épocas normais”;

composto de 19 artigos, todos enfatizando os enterros de “cadáveres infeccionados”, desde o tipo de

caixão até a quantidade de terra usada nos sepultamentos:

... ás capellas ou salas mortuárias de irmandades, hospitaes ou de casas particulares


destinadas á exposição de cadáveres de indivíduos fallecidos de moléstias infecto-

86
AN, IJ6 - 517, Série Justiça, Polícia, escravos e moedas falsas, 1866, provável - julho.
87
AGCRJ, códice 8-3-3, Inspetoria Geral de Higiene Pública (atas) p.180. A Instrução é assinada pelo médico
Gonçalves Cruz, inspetor geral.

83
contagiosas não devem receber armações de panos velhos, etc., que se prestem á vehículo
para a transmissibilidade e propagação da moléstia.
... os caixões destinados aos cadáveres infeccionados são construídos iguais aos outros,
porém pintados com mistura de piche e ácido phenico...
... este caixão será colocado dentro de outro de madeira resistente hermeticamente fechado,
com o seu interior protegido pela pintura desinfetante. Estes servirão para proteger os
caixões comuns de enterro, no trajeto da casa ao cemitério...
... o cadáver descerá ao túmulo no primeiro caixão e o outro será reaproveitado, após ser
submetido a desinfecção rigoroso.88

2.4 Espaço urbano e higiene

A normalização médica operou-se em estreita correspondência com o desenvolvimento urbano e a

criação do Estado nacional. O período joanino marca o início deste processo. Os problemas

demográficos criados pelo aumento da população na cidade do Rio de Janeiro pela transformação em

Corte imperial acentuaram as deficiências urbanas. A elite tinha hábitos de consumo, lazer, higiene,

vestuário e moradia, que não encontrava respaldo em uma cidade provinciana. A pressão populacional e

as exigências higiênicas da nova camada urbana aceleraram as necessidades de mudança. A política

médica até o final do século XVIII está muito mais voltada à arrecadação de impostos do que para

saúde, no Império a medicina passou a ser solicitada mais insistentemente. Segundo a concepção de

diversos governantes, o combate às epidemias e à insalubridade tornava-se necessário para fazer do Rio

de Janeiro imperial uma cidade à altura das grandes metrópoles européias, afastando definitivamente o

estigma de doenças, do atraso colonial, e isso só seria possível por meio de grandes reformas urbanas.

Acreditava-se que este era o caminho para conduzir a cidade ao “progresso” e a “civilização”. Cabendo

aos higienistas não somente combater as epidemias, mais ampliando para todos os problemas sociais.

88
AGCRJ, códice 8-3-3, Inspetoria Geral de Higiene Pública (atas). As notas são transcrições de parte dos artigos
das Instruções especiais, artigos 2, 6, 7 e 8, pp. 181/182

84
Para Jurandir Freire da Costa89, um dos trunfos da superioridade médica, foi à técnica de higienização

das populações. Na Colônia a conduta anti-higiênica dos habitantes era um dos empecilhos

fundamentais à saúde da cidade. A ação vigilante da justiça atuava no mesmo universo que caracterizava

a represália aos marginais, com mecanismos de sanções penais. Ela era descontínua, fragmentar e não

era preventiva. A medicina incentivou o interesse do indivíduo por sua própria saúde. Contava ainda,

com a participação do Estado na sustentação de sua política de saúde. Enquanto na Colônia a visão

caritativo-assistencial da religião reduzia a assistência médica a uma atividade social marginal e

supérflua, no Império a ética leiga dos higienistas fez ver que a saúde da população e do Estado

coincidia. A saúde da população inscrevia-se na política de Estado.

Um dos objetos dos higienistas é a família, dirigindo-se exclusivamente às famílias da elite da Corte

Imperial. A medicina, em sua atuação higiênica, recebeu a herança da Colônia. Segundo Jurandir:

A higienização das cidades, estratégias do Estado moderno, esbarrava freqüentemente nos


hábitos e condutas que repetiam a tradição familiar e levaram os indivíduos a não se
subordinarem aos objetivos do Governo. A reconversão das famílias ao estado pela higiene
tornou-se uma tarefa urgente dos médicos.90

Não interessava ao Estado modificar o padrão higiênico da família escrava que deveria continuar

obedecendo ao código punitivo de sempre. Estes, junto com todos os pobres da Corte, eram casos de

infração higiênica. A eles eram dedicadas outras formas de polícias médicas91. Foi sobre a elite que a

medicina fez incidir sua política familiar, criticando a família colonial nos seus crimes contra a saúde.

89
COSTA, Op. Cit., p.29.
90
COSTA, Op. Cit, pp. 30-31.
91
Policia médica passa a ser definida como um conjunto de teorias e práticas que se aplicam à saúde e bem-estar da
população, dizendo respeito a: procriação, bem-estar da mãe e criança, prevenção de acidentes, controle e prevenção de
epidemias, organização de estatísticas, esclarecimentos do povo em termos de saúde, garantia de cuidados médicos,
organização da profissão médica, combate ao charlatanismo. A medicina integrada no Estado adquire estatuto social ao
fazer da sociedade seu objetivo. A polícia médica é sua expressão. MACHADO,Roberto, Op. Cit., p.167.

85
As camadas dos marginalizados, escravos, forros, africanos ou negros, ciganos, em fim dos pobres,

continuam sob a tutela da polícia, ao recrutamento militar ou aos espaços de segregação higienizados

como prisões e asilos.

O espaço urbano passou a ser esquadrinhado, a medicina projeta e executa a construção de espaços

específicos que tinham por finalidade um caráter social. Instituições como hospitais, cemitérios, prisões

e hospícios, vistos como frutos do crescimento das cidades e, portanto, indispensáveis ao seu

funcionamento, serviam, segundo os médicos, de focos de doenças, representando um perigo para todo o

urbano. Não podiam e nem deveriam ser abolidos, devendo, porém, ser expulsos do centro urbano das

cidades, já que suas localizações não obedeciam aos critérios da salubridade. Eram infectados ao contato

com os locais onde estavam instalados, e as exalações e miasmas que geravam em seus espaços

fechados, por sua vez, os infectavam, assim como a toda cidade, constituindo-se em focos de epidemia e

contágios.

Os administradores da Corte começaram a notar a existência de cortiços e estalagens na cidade92, a

partir dos primeiros anos de 1850, e as condições de higiene dessas habitações coletivas. Locais de

habitações populares coletivas, de moradia de “classes pobres” e “classes perigosas”93, principalmente

92
Não cabe nesta pesquisa um detalhamento sobre cortiços, estalagens e Higiene Pública, um estudo mais detalhado
ver Sidney Chalhoub, Op. Cit.; VAZ, Lilian Fessler. Contribuição ao estudo da produção e transformação do espaço
da habitação popular. As habitações coletivas no Rio de Janeiro Antigo, Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado,
PUR/UFRJ, 1985.
93
Segundo CARPENDER, Mary. (apud CHALHOUB, Op. Cit., pp. 20/30) escritora inglesa, que fez um estudo em
1840 sobre criminalidade - classes perigosas, utilizando a terminologia do século XIX, eram constituídas pelas pessoas
que já houvessem passado pela prisão, ou as que, mesmo não tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustendo
e o de sua família através da prática de furtos e não do trabalho. Chalhoub descreve como a classe pobre é “englobada”
pela classe perigosa. Assim, a noção de pobreza de um indivíduo era fato suficiente para torná-lo um malfeitor em
potencial.

86
de escravos, libertos e negros livres em geral. Os hábitos desses moradores eram nocivos à saúde, a toda

à sociedade, porque as moradias coletivas seriam focos de contaminação e disseminação das doenças em

geral. Intensificando-se em meados de 1870 a luta pela demolição dessas moradias coletivas, a decisão

política de expulsar as classes populares das áreas centrais da Corte, vinculadas à política de higiene

pública. Os delegados da Junta Central de Higiene alegavam insalubridade nessas moradias, grande

aglomerado de pessoas por cômodos com pouca circulação de ar e precárias condições de higiene,

permitindo o “ataque” do órgão público. A demolição dos cortiços e estalagens por questões de higiene

pública gerou muitos conflitos e descontentamento da população pobre do Império.

Os subdelegados da Junta deveriam visitar regularmente os cortiços e estalagens94 para certificar-se que

os proprietários das moradias coletivas estavam conservando-os dentro do asseio aceitável pelo órgão.

Ficava proibido o enterramento dentro dos quintais dos detritos fecais, das águas servidas e lixos,

deveriam ser despachados nos lugares apropriados. Havia a exigência de locais específicos para as

latrinas e pontos de água, a verificação do cumprimento de todos os regulamentos era de

responsabilidade dos fiscais das freguesias. Essas eram algumas das medidas propostas em projetos

apresentados à Câmara Municipal da Corte, órgão responsável em analisar as medidas destinadas a

regulamentar a existência das habitações coletivas e a Junta Central de Higiene, encarregada de zelar

pelas questões de saúde pública. Nem sempre o convívio entre os habitantes dos cortiços e

94
AGCRJ, Códice 41-3-36, Cortiços; ofícios da Secretaria de Polícia e do Ministério do Império sobre as medidas a
adotar com referência aos cortiços, 1860. Códice 43-1-25, Estalagens e cortiços. Requerimento e outros papéis relativos
à existência e à fiscalização sanitária e de costumes dessas habitações coletivas, 1834-1889; Códice 44-2-7, fls. 07-20,
Habitações coletivas, estalagens ou cortiços, 1855, 1864 - 1866, 1868. Vários regulamentos foram analisados pela
comissão de postura da Câmara de projetos para melhoria das condições higiênicas das habitações populares da Corte.

87
representantes da Junta foi harmonioso, houve muitos entraves em nome da saúde pública e da

urbanização da cidade imperial95.

Mesmo com todas as parafernálias do órgão público, imbuídos do poder de polícia médica, do prestígio

social que usufruíam, do controle e vigilância dos subdelegados da Junta, não conseguiram conter o

exercício dos agentes de cura. Os práticos seguem atuando, atendendo aos que os solicitam, exercem

suas atividades à margem do controle oficial. Mesmo com as leis, decretos e portarias instituídas pelos

órgãos responsáveis pela expedição das cartas-licenças, cartas de examinação, existem várias indicações

de que se exerciam as atividades médicas, boticários, curandeiros, sangradores, parteiras, sem as

respectivas cartas. As cartas eram obtidas através de uma avaliação de seus conhecimentos e práticas,

realizadas em geral, por médicos indicados pelas Câmaras Municipais. Os documentos apontam para

uma falha no “controle” desses praticantes da medicina alternativa, mesmo com as multas e penalidades

existentes para suas atuações, existiam poucas eficácias de controle. Os praticantes da medicina não

acadêmica continuam seus ofícios junto às mazelas do corpo doente, durante todo o oitocentos. Há uma

infinidade de aspectos que merecem ser focalizados, os quais vão desde a credibilidade desses

praticantes de cura junto à população e o respeito que gozam até sua sensibilidade para intervir nos

momentos delicados do corpo doente. O diferencial é encontrado mais nos parâmetros da relação

estabelecida entre quem cura e quem deseja ser curado, isto é, entre outros critérios pela credibilidade e

confiança. Essa relação se estabelece em momentos de fragilidade do doente, que recorre a um agente de

cura em que possa confiar. Contribuindo para essa confiança, a concepção de doença e cura, sobre a

95
Um estudo mais minucioso sobre o tema: CHALHOUB, Op. Cit.; VAZ, Op. Cit.; BACKHEUSER, Everardo.
Habitações populares. Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e negócios Interiores, Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1906, publicado anteriormente na Revista Renascença, com o título – “Onde moram os pobres ”; ABREU,
Maurício de Almeida. “Da habitação ao habitat: a questão da habitação popular no Rio de Janeiro e sua evolução”.
Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol1, n°. 2, jan-abr., 1986, pp. 47-58.

88
etiologia e o tratamento do corpo doente, relacionada às visões cosmológicas dessas pessoas,

principalmente, a população negra96 (Cf. gravura 05).

96
XAVIER, Regina . “Dos males e suas curas”. In: CHALHOUB, Op. Cit.2003, pp.346/347.

89
CAPÍTULO 3:

DOENÇA! CASTIGO DE DEUS?


90
DOENÇA! CASTIGO DE DEUS?

“Sinhozinho não maltrate esse nego”.


esse nego foi que me curou,
esse nego da calça rasgada, camisa furada,
esse nego é dotor”. 97

Os africanos escravizados aqui chegados durante todo o período escravista, provinham de várias regiões

do continente africano. Recebiam um prenome cristão, acompanhado do nome do porto de embarque da

África, assim era difícil registrar a real origem africana dos escravos nas Américas. Entre o final do

século XVIII e 1850, um enorme contingente de africanos escravizados foi introduzido no Brasil,

especialmente no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, oriundos principalmente da África Bantu. A

população escrava na cidade Imperial após as primeiras décadas dos oitocentos ainda era em sua maioria

oriunda do Centro-Oeste africano, representando 66%, seguidos da África Oriental 98.

A demanda por escravos na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XIX, deu-se pela transferência

da Corte portuguesa e a abertura dos portos para os navios estrangeiros. No Rio esse afluxo populacional

incidiu em uma região pouco povoada, sendo a presença africana marcada pelos altos índices, alterando o

ritmo normal do lugar. A cidade cresce em população tornando-se necessário o aumento da mão-de-obra

escrava, estimulando a renovação pelo tráfico de homens. Em 1850 com o fim do tráfico transatlântico, a

população africana não é mais renovada continuamente na cidade Imperial, dá-se o início do tráfico

interprovincial, principalmente da cidade de Salvador e de outros portos nordestinos para a Corte. Cada

97
Cantiga entoada nas Casas de Umbanda atuais, fortificando as ações curativas dos preto-velhos, entidades
ancestrais.
98
KARASCH, Mary. A vidas dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p. 50.

91
grupo cultural africano escravizado, introduzido na cidade, compartilhou uma parte de suas tradições,

línguas, sistemas políticos e militares, especialmente os aspectos fundamentais de sua religião.

Segundo Mary Karasch:

A sociedade escrava carioca era inerentemente diferente, porque a maioria dos escravos
fora forçada a deixar tudo e todos que fizessem sentido pra trás. Para esses outsiders, não
havia família extensa para aliviar o fardo da escravidão, nem culturas familiares para
sustentar laços com gerações passadas. Famílias, culturas e comunidades tinham de ser
forjadas novamente na cidade. O desafio para ser escravo no Rio era criar uma vida com
sentido em meio a indivíduos díspares que compartilhavam poucos valores, criar grupos a
partir do caos de muitos.99

A Corte Imperial tinha uma grande população negra. Embora esse número fosse levado, as fontes

apontam para uma diminuição significativa dessa população.Vários foram os motivos do

“desaparecimento” dos negros, uma das causas estava nas doenças que os afligiam, a cólera, a malária,

varíola, entre outras. A tuberculose foi a principal causa mortis entre a escravaria da Corte, estando

diretamente relacionada com os baixos padrões socioeconômicos de existência. As condições de vida dos

escravos na cidade do Rio de Janeiro, quanto á higiene, habitação, vestuário, alimentação, eram uma das

formas de contribuição para as doenças que atingiam a essa clientela.

A doença, segundo Delumeau100, desde o final o século XIII, também pode ser interpretada como castigo

divino à natureza pecadora do homem na terra, relembrando-lhe as suas ações e forçando-o a uma

reflexão, penitência (dor e incômodo) e finalmente, arrependimento. Interessa-nos um exame acerca das

concepções populares de cura na corte oitocentista. Homens e mulheres tinham diferentes “maneiras” de

tratar e lidar com o corpo doente. Utilizavam ritos e ícones religiosos, através da recriação da religião

99
KARASCH, Op. Cit., p. 36.
100
Cf. DELUMEAU, Jean. O medo do Ocidente, 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras,
l989. O autor nos alerta para o fato de que nos séculos XV a XVII, as doenças, pestes e calamidades eram associadas
freqüentemente à cólera divina, relatando a prática de recorrer à misericórdia divina, nos atos de confissão, abstinência
e procissões para aplacar a ira divina, p. 148.

92
tradicional de matriz africana incorporando a cultura popular européia e a indígena. Essas eram práticas

regidas pelo cosmo mágico, representações culturais religiosas de doença e corpo doente.

3.1 Concepções da população negra de doença/cura.

Havia a idéia entre os negros no século XIX no Brasil, de que determinadas doenças podiam estar

associadas à perseguição deles pelos homens brancos, os senhores de escravos. Neste contexto, a doença

pode ser entendida como “feitiços” a cargo do poder dos feiticeiros que conseguiam manipular as forças

nefastas do universo. O flagelo causado pelo sortilégio mágico era apenas uma das possibilidades, pois

havia doenças provocadas pela violação de uma tradição, por erro ritual, ou pelo descumprimento de

deveres religiosos. Acreditavam que a doença não era coisa natural, as moléstias eram sempre provocadas

por causas sobrenaturais – causas estas que poderiam ou não ter sido realizadas por feitiços, sendo a cura,

prioritariamente ritual. Havia toda uma tradição cultural religiosa sobre doença e cura101, a extensão da fé

que cura. Quando a magia de curar falha a resposta existente é logo explicada, a encontramos em Evans-

Pritchard102: “... se a magia não consegue atingir o seu objetivo, o fato é logo explicado racionalmente

por ter havido alguma desobediência às regras, ou porque se ignoraram certas prescrições, ou porque

alguma força hostil se contrapôs à prática”.

Para o entendimento da época, procurar obter curas através de meios sobrenaturais e com a utilização de

objetos “profanos”, aproximavam os agentes de cura da “feitiçaria”, muitos daqueles que lidavam com as

101
CHALHOUB, Op. Cit, p.137.
102
EVAN-PRITCHARD, E.E. Antropologia Social da Religião. Rio de janeiro: Campus, l978, p. 44.

93
práticas de restabelecimento da saúde lhes eram atribuído o termo de feiticeiros. Curavam-se doenças,

mas também se curavam feitiços. A magia era utilizada para solucionar varias situações: problemas

amorosos, dificuldades financeiras e principalmente, problemas de saúde. Entre os feiticeiros muitos

eram ex-escravos, mas o mundo mágico não era restrito somente a eles, sendo utilizado e praticado por

todos aqueles que nele acreditassem, complicando e enriquecendo os cultos, sendo na magia que as

equivalências se processam mais acentuadamente. A magia seguindo suas leis de acumulação

experimenta todos os produtos que estão ao seu alcance, reinterpretando o sentido de objetos e rituais

“estrangeiros”. Novos adereços são disponibilizados para o auxílio às artes de curar. Não só aos escravos

e seus descendentes estava vinculada esta outra medicina, mas a todos que acreditavam em sua atuação,

independente da posição social103.

A população negra numa sociedade senhorial, elitizada, onde na escala hierárquica o escravo e o forro

estavam na base da pirâmide da hierarquia e os senhores “brancos” no ápice. Impostos à degradação

física, moral e psicológica pelo próprio sistema escravista, sua difícil condição de sobrevivência era de

algum modo compensada com as práticas mágicas, freqüentemente aqueles que detinham os segredos das

curas, do espírito ou do corpo, eram chamados de “feiticeiros”. Detentores de saberes “mágicos”, a fama

pública fazia-os requisitados também por brancos, o que geralmente elevava seu status junto à sua

própria comunidade e possibilitava, através das curas, dos feitiços amorosos e das confecções das

mandigas, a obtenção de ganhos materiais não só em dinheiro, mas ainda em gêneros. Negros

“feiticeiros” também se armaram com suas “magias” para defenderem-se das agruras do cativeiro, em

103
Ver SAMPAIO, Gabriela. Nas Trincheiras da Cura – as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial.
Campinas: Unicamp, CECULT-IFCH, 2001. Mostra que não somente os desfavorecidos, os pobres, procuravam os
serviços dos curandeiros; os documentos da Fisicatura comprovam o mesmo, Arquivo Nacional (AN) - Fisicatura-Mor,
caixa 478.

94
tentativas variadas de aplacar a ira senhorial, escaparem de castigos e maus-tratos, dessa forma resistindo

cotidianamente à sua condição.

No Brasil os africanos escravizados urdiram toda sorte de práticas mágicas para se livrarem da ira de seus

senhores. A resistência ao sistema escravista no mundo colonial se apresentou sob diversas formas, desde

formas explícitas – como as fugas individuais e coletivas, revoltas e formação de quilombos – até as mais

sutis, vinculadas ao quotidiano e vivenciadas no interior do próprio sistema, como roubos, suicídios,

abortos, assassinatos e boicotes à produção senhorial104. As práticas de magias inseriram-se nessa

segunda categoria, sendo consideradas necessárias à formação social escravista colonial, uma vez que

eram, ao mesmo tempo, alternativas de luta contra o sistema, “muitas vezes a única possível”105, e

instrumento legitimador da repressão e violência.

Uma das funções mais importantes dos chamados “feiticeiros” era curar doenças e enfermidades. Tendo

em vista, que também a população da Corte imperial, acreditava que as moléstias eram causadas por

forças não biológicas, como mau-olhado, maus pensamentos, maus espíritos, bruxaria e feitiçaria;

somente os “feiticeiros” eram freqüentemente bem sucedidos na cura, em especial, dos escravos. Para

Mbiti:

... considerassem os feiticeiros como líderes religiosos poderosos e eficazes, capazes de


manipular o sobrenatural e neutralizar o mal, inclusive donos cruéis e brutais, fazer com que

104
REIS, João & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
105
MELLO E SOUZA, Laura. O Diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 205. No Brasil essa crença no poder redentor e purificador da violência física
encontrou aliado na necessidade escravista do castigo exemplar. Escravos podiam ser legitimamente castigados também
porque eram feiticeiros. Enxergá-los como feiticeiros, por sua vez, foi uma das manifestações da paranóia da camada
senhorial na colônia.

95
os escravos ficassem invulneráveis, adivinhar o futuro e, sobretudo, curar doenças,
106
detectando e expulsando bruxos e feiticeiros. (Grifo nosso).

Karasch, baseada em Gerald W. Hartwing traz a distinção africana entre feitiçaria e bruxaria, já que,

muitas vezes, os escravos no Brasil, ficavam doentes ou morriam e lhes eram atribuída como causa a

feitiçaria ou bruxaria:

Em muitas sociedades africanas, faz-se uma distinção entre bruxaria (“uma responsabilidade
inconsciente pelo dano”) e feitiçaria (uma “intenção consciente” de causar dano). A
(responsabilidade inconsciente) pelo dano aplica-se à relação entre senhores, doenças e
morte de escravos, pois os donos não conseguiam compreender todas as conseqüências de
sua decisão de possuir escravos sobre a saúde e a expectativa de vida. Os escravos, por sua
vez, talvez entendessem as doenças como as armas de seus senhores, ou seja, como feitiçaria
daqueles que pretendiam causar-lhes dano.107

Há estudos sobre o Brasil colônia, de Laura de Mello e Souza, baseados em fontes geradas pela

Inquisição, onde homens e mulheres por exercerem atividades de curas preventivas, foram acusados e

interrogados, pelo ilícito de feitiçaria e bruxaria108. Sem dúvida os africanos que eram especialistas no

restabelecimento das mazelas, conhecedores dos preparos de ervas e remédios para o tratamento de

moléstias tropicais tinham êxito. Dessa forma, a maioria dos escravos da Corte procurava a atenção

médica de seus líderes religiosos, e as escravas geralmente eram atendidas no parto por negras mais

velhas que misturavam os conhecimentos do trabalho de parteira com rituais religiosos.

106
MBITI (apud Karasch, p. 12); ver também, SAMPAIO, Gabriela. A história do feiticeiro Juca Rosa: cultura e
relações sociais no Rio de Janeiro Imperial. Tese de doutorado em História, IFCH – Unicamp, mimeo., 2000. Gabriela
nos diz que várias pessoas, de camadas sociais diversas, procuravam por Juca Rosa, nome que era conhecido um
famoso feiticeiro da corte, para tratar de diferentes problemas, amorosos, financeiros, doenças, proteger contra
malefícios (utilizando para isso, o uso junto ao corpo de amuletos e ou breves).
107
KARASCH, Op. Cit., pp. 539-540, nota l do capítulo 6 – Armas dos feiticeiros: doenças; mais conceitos de bruxaria
e feitiçaria como causa de doença e morte são explorados no capítulo 9, da mesma obra.
108
MELLO E SOUZA, l986. As fontes utilizadas foram as devassas eclesiásticas, aqueles que utilizavam formas
alternativas para curar doenças, lhes eram atribuída essas curas, ao pacto com o diabo. Examina dois processos em face
de negros presos pela Inquisição, acusados de práticas mágico-religiosas pelo uso da bolsa de mandinga em Portugal: o
de José Francisco Pedroso, e o de José Francisco Pereira, natural da Costa da Mina, escravos no Brasil antes de irem
para Portugal, p. 318.

96
Usando o sentido amplo das concepções populares de doença e cura, existia a forma de prevenção do

infortúnio, da mazela física, através do uso das cartas de tocar e bolsas de mandigas. Com a função de

amuletos, desde a época do Brasil colônia, costumes também utilizados pelos escravos e forros em

Portugal. Tinham por finalidade prevenir contra as armas de fogo ou brancas, proteger contra malefícios.

Lahon109 utilizando as fontes dos processos inquisitoriais em Portugal, examina as “magias” africanas,

estuda o uso das bolsas de mandinga (Cf. figura 06). Atribuí sua origem aos negros mandingas,

denominação genérica (imprecisa) aos povos instalados no território mandinga da Alta Guiné. O seu

conteúdo era diferentes e indeterminados pós, cabelos, unhas de aves e papéis com orações cobertas por

desenhos de elementos da paixão de Cristo. Os escritos referem-se a um simbolismo eminentemente

cristão utilizado numa outra prática de proteção. Para sua eficácia era necessária uma série de ritos

“agregando” materiais da religião tradicional africana e catolicismo popular. Uma outra forma de

proteção, descrita pelo autor, era a carta de tocar, um conjunto de papéis que se devia usar junto ao corpo

para, através desse contato, lhe transmitir as suas virtudes protetivas. Neles encontravam-se referências

aos objetos contra os quais se pretendia ser protegido, as armas brancas ou de fogo. Continha igualmente

diversos grafismos com símbolos da paixão de Cristo, uma série de palavras ou orações nas quais se

exprimiam as virtudes que se pretendiam alcançar. As orações escritas freqüentemente recorriam a São

Cipriano ou a São Marcos.

109
LAHON, Didier. “Inquisições, pacto com o Diabo e “Magia” africana em Lisboa no século XVII”. Revista Topoi,
Rio de Janeiro, n°8, pp. 9-7, 2005, p.27. Também MELLO E SOUZA, 1986, faz referência a sua larga utilização entre
os africanos escravizados no Brasil colônia.

97
O forro Joaquim do Congo é preso na freguesia de Santa Rita por tentativa de roubar um senhor, dentre

seus pertences é encontrado um amuleto que trazia preso por um alfinete a sua camisa110. O dito talismã

é composto de vários objetos que juntos confirmavam sua eficácia protetiva. Composto de um saco feito

de pano branco, contendo uma pedra de raio, um olho-de-gado, um pedaço de enxofre, um pó

indeterminado, um pedaço de chumbo, um moeda de prata, um osso e alguns papéis com grafismos

variados e orações. Estas como outros símbolos de difíceis compreensão deveriam ser colocadas embaixo

da pedra do altar de uma igreja, mais não era qualquer uma e sim, igrejas com santos padroeiros negros,

santos de devoção da população negra. As folhas de orações eram dobradas e reduzidas a um pequeno

formato para caber dentro da bolsa.

Examinando os objetos encontrados na dita bolsa: a pedra de raio também conhecida como pedra-de-

corisco associada à deidade dos trovões, justiceiro, poderoso e viril. No panteão Bantu é chamado por

Nzazi, Laman111 o cita como o próprio raio ou pai do trovão. Na África, essas pedras são achadas quando

os raios atingem outras grandes, que são quebradas pelo seu impacto e atribuídas a uma deidade o seu

domínio e poder:

...estas pedras são associadas aos cultos dos deuses do céu e, sob forma de machado de dois
gumes, simbolizam Xangô. Onde cai o raio, os seus sacerdotes procuram as pedras-de-
corisco lançadas pelo orixá, consideradas como a emanação do deus e portadoras de axé, a
sua força mística. Para manter sua força e vitalidade, as pedras são depositadas sobre um
altar, feito de almofariz de madeira esculpida, e aspergias com o sangue dos seus animais
consagrados, o carneiro em particular.112

110
AN (RJ), Série justiça – polícia, escravos e moedas falsas, IJ6516, 1862. O preto forro Joaquim do Congo fora
preso por tentativa de roubo e não pelo porte de bolsa de mandinga ou prática de feitiçaria, não havendo alusão a
depoimentos de testemunhas pelo uso de práticas mágicas.
111
LAMAN, K. Dictionnaire Kikongo-Français. Bruxelles: Institut Royal Colonial Belge, 1936, p 156. No panteão
Bantu Nzazi é destinado a acalmar a cólera do raio, o próprio raio em si mesmo. É semelhante ao Xangô do panteão
Yorubá, que também é representado pelos trovões e raios.
112
Ver LAHON, Op. Cit., p.35.

98
Para as pedras, os grafismos e as orações adquirirem valor sagrado tornavam-se necessário uma série de

rituais simbólicos para serem emanadas de forças mágicas, capazes de proteger seus portadores dos

infortúnios e restabelecer a harmonia. As orações e os desenhos eram colocados sob a pedra de um altar

de um templo católico, sobre a qual um certo número de missas devia ser celebrado, tornando-os talismãs

poderosos. A correspondência simbólica entre a pedra de altar da igreja e o sacrifício realizado sobre o

altar consagrado a Xangô na África, é tão evidente que a pedra de altar era chamada pela população negra

de pedra de ara. Outro componente encontrado na bolsa foi o olho-de-gato, também, portador de

dualismo interpretativo. Por um lado, possui a qualidade de clarividência, na África Central as bolsas dos

curandeiros eram fabricadas com a pele do gato selvagem113. De outro, a sua visão noturna está ligada a

um dom maléfico e sobrenatural.

Os africanos escravizados, forros e libertos utilizavam também escapulários, dois pedaços de pano

bordados, presos por um cordão duplo com um retrato de um santo e sua oração, de Santa Ephigênia, São

Benedito, São Elesbão ou Nossa Senhora do Rosário, que eram santos de suas devoções; costurados em

saquinhos e usados junto ao corpo, também utilizavam um cavalo-marinho, unido à pele. As negras

velhas, muitas delas, especializavam-se em fazer amuletos de obi114 para afastar o mal e o mau-olhado

(CF. figura 07). Era comum encontrar-se na frente de uma barbearia de um negro um chifre de carneiro

pintado com as pontas de vermelho, contendo um obi, preso na parede de frente para a porta de entrada,

para defender das influências negativas115. Realmente eram várias práticas mágicas associando métodos

de proteção que se reforçavam mutuamente: a bolsa de mandinga, a carta de tocar e os talismãs. Mas

113
Conforme MAUPOIL, B. La Geómance à làncienne côte des esclaves. Paris: Institut d`Ethnologie, 3ª ed., 1998, p. 104.

114
Obi é um fruto ritualístico, a noz-da-cola. É fruto de árvore africana aclimatada no Brasil, indispensável nos ritos da religião
de matriz africana, também é usado nas comidas africanas.

115
EWBANK, Thomaz. Life in Brazil; or a journal of a visit of the cocoa and the palm... 1856. Reimpressão. Detroit, 1971, pp.
248-249. O autor explica o uso desses amuletos, inclusive um pequeno feito de chifre de boi, utilizado para os mesmos fins.

99
não podemos pensar que era especificamente de origem africana e sim resingnificações de materiais da

religião tradicional da África agregados a outros do catolicismo popular. Não somente lançava-se mão da

magia para curar, mas também para prevenir, contra aqueles que tinham o poder de movimentar as

forças sobrenaturais do universo. Os amuletos eram manipulados como talismãs poderosos que poderiam

tornar o seu portador invulnerável as mazelas, ferimentos de armas, mordidas de cobras e outros animais.

Principalmente em uma cidade onde as doenças, as rixas, os ajustes de contas e, inumeráveis confrontos

da clientela negra e pobre da Corte eram frequentes.

3.2 Os santos doutores

Amuletos individuais para trazer boa sorte ou afastar o mal, especialmente a doença, estavam por toda a

parte, usavam-no abertamente sobre o corpo ou em suas roupas. Seus usuários podiam exibir abertamente

as imagens dos santos sem risco de serem perseguidos pela polícia ou de verem seus ídolos destruídos. A

crença no poder de curar, proteger e confortar as pessoas atribuídas aos santos contribuía para costurar

solidariedades diárias entre aqueles que procuravam o auxílio espiritual desses seres. Cada santo tinha a

sua própria especialidade nos ofícios de cura. A adoração dos santos e dos objetos sagrados realizava o

desejo de conforto e proteção espiritual dos fiéis. A veneração a um determinado santo fundamentava-se

na crença de que além de ele representar um exemplo ideal de conduta podia acionar recursos para aliviar

as adversidades enfrentadas pelos seus adeptos no plano terrestre, de tal maneira que as doenças, as

procissões e as localidades, eram confiadas aos cuidados especiais de um santo apropriado. Delumeau116

esclarece que a devoção a São Sebastião como protetor contra as doenças epidêmicas era oriunda do

116
DELUMEAU, Op. Cit., pp. 113-116.

100
ocidente desde o século VII, após a peste negra de 1348 a sua “fama” se consolidou. Desde os tempos

medievo construiu-se hagiografias para dar sustentações aos mitos e crenças cristãos, a história de São

Sebastião como protetor das epidemias obedece a relações analógicas. O imaginário cristão acreditava

que a peste atingia a população em forma de uma chuva de flechas, enviadas por um Deus colérico com

as condutas humanas. São Sebastião havia morrido crivado por elas, os devotos passaram a acreditar que

o santo os protegia contra a doença que fossem pestilentas. Há fortes indícios de que certos santos e

deidades possuem o “poder” de controlar determinadas doenças e seus efeitos, podem prevenir ou

provocá-las, concordamos como Chalhoub quando ele identifica essa particularidade como “controle

dual”.

Os santos eram enviados por Deus, intercessores divinos, ligando o profano ao sagrado ajudavam

aliviando as dores. Os principais “advogados” celestiais eram: São Brás curava as afecções de garganta,

as brônquicas; São Miguel Arcanjo considerado o príncipe dos extirpadores do câncer e tumores; São

Francisco de Paula removia as cataratas dos olhos, tumores do cérebro e água da cabeça; São Judas

Tadeu era amigo dos asmáticos e famoso em remover obstruções de suas traquéias, seu pagamento era

um par de velas; Santa Isabel protetora dos hospitais; Santa Bárbara protegia contra os raios e ferimentos

deles decorrentes; São Lázaro era o patrono do leprosário da cidade; Santa Rita a quem se atribuía o

poder de tornar possíveis as coisas impossíveis e curar doenças incuráveis. As diversas versões de Nossa

Senhora: Nossa Senhora da Saúde, das Dores, da Glória, de Belém, da Candelária, da Boa Morte, do

Bom Sucesso, da Conceição, do Parto, do Rosário, do Carmo, da Ajuda, das Cabeças, Mãe dos Homens,

cada uma delas com suas imagens e seus símbolos próprios. Ajudando e intercedendo ao sagrado pelo

bem estar de seus “filhos”, auxiliando os homens a redimirem-se de seus pecados e serem merecedores

das benções divinas, aplacando a ira de Deus.

101
Para Chalhoub117, a febre amarela, em meados dos oitocentos, que atingiu vários centros urbanos

brasileiros, no Rio de Janeiro, era entendida como: “... a idéia de que o vômito preto era o anjo da morte

que Deus enviou a esta cidade, é o enviado da justiça de Deus, a cólera divina fora despertada pelos

vícios e pecados da população do Rio...”. Lembremos que a população acreditava que as epidemias

poderiam ser causadas pela ira de Deus contra os pecados dos homens, através da dor forçando-os ao

arrependimento. A doença e a morte seriam decorrências do pecado original, maldição divina de Adão e

Eva e toda sua descendência, as mazelas do corpo eram oriundas na concupiscência da alma. Os santos

eram intercessores divinos podendo atuar dentro de suas “especialidades”, propiciando o

restabelecimento da saúde do corpo.

Nestas ocasiões as irmandades se esforçavam em preparar com esmero as procissões de penitências aos

seus santos padroeiros, como forma de arrependimentos pelos atos pecadores praticados. Em especial a

de São Roque e São Sebastião, considerados advogados contra as doenças epidêmicas, as pestes. Em

épocas que a cidade era agravada pelas pestes, os periódicos listavam uma lista enorme de procissões em

louvores aos santos118, bem como preces e ladainhas, em especial em intenção a São Benedito, santo

negro, que fora apontado como causador de uma das reincidências da peste após a procissão de cinzas de

1849. Carregados de preconceitos os participantes que integravam o cortejo, naquele ano, recusaram-se a

carregar o andor com a imagem de São Benedito, ficando ele esquecido na sacristia da igreja, sob a

alegação de que “branco não carrega negro nas costas, mesmo que seja Santo”119. Uma grande

epidemia atingiu o corte e foi entendida como vingança do Santo abandonado. No ano seguinte, São

117
CHALHOUB, Op.Cit., p. 162.
118
Ver os periódicos - Diário do Rio de Janeiro e Jornal do Commércio, em especial de 24 de março de 1850, na
seção “Comunicados.
119
CHAULHOUB,1996, Op.Cit., p. 137.

102
Benedito ocupou o seu lugar devido no séqüito, ganhando novos adornos e não faltou quem lhe quisesse

carregar o andor.

As missas, os sacramentos, as moedas do ofertório, a igreja e o adro gozavam de um poder especial na

avaliação popular, a hóstia e a água benta eram vistas especialmente como uma espécie de medicamento

para os doentes e uma defesa contra as doenças epidêmicas. Thomas Ewbank120, um dos visitantes no

Rio, alude a um enorme consumo de hóstias e de água benta na quinta-feira santa nas diversas igrejas que

ele visitou por ocasião da Semana Santa. A simbiose entre o sagrado e o profano era uma constante no

universo da religiosidade popular no Brasil desde os tempos coloniais, mesclados pelas tradições

européias, indígenas e africanas. No Velho Mundo a piedade cristã das classes pobres convivia em plena

harmonia com antigas crenças de origem “pagãs”, muitas vezes, assumiam novos significados atribuídos

pela reinterpretação dos fiéis, no Brasil era comum que feitiços e orações se completassem. Na vida

cotidiana das famílias uma mazela invisível se abatia principalmente sobre as crianças, mas podendo

também fazer os adultos de vítimas, era o flagelo do “mau-olhado”, o Ewbank testemunhou o quanto era

preocupante a prevenção contra ele:

O povo do Brasil padece disto. Formosas crianças padecem por causa de forças terrenas e
extraterrenas que lhes invejam a beleza; e não apenas bruxas e ogres, como ainda senhoras
elegantes possuem olho gordo. Quando o cabelo de uma mulher se torna prematuramente
cinzento ou caí por alguma doença, em nove casos sobre dez o responsável é o olhar de
alguma invejosa. Uma jovem senhora de nossa vizinhança tinha até há pouco tranças iguais
às de Eva em comprimento e macieza. Perdeu-as e ela diz que sabe muito bem qual é a
pessoa de sua amizade responsável pelo desastre. Quando um estranho acaricia a cabeça de
uma criança e diz que ela é bonita, etc., a ama e os pais inquietam-se, se ele não concluir
pedindo a Deus ou aos santos que a abençõe, isto sendo a prova de que não lhe está
dirigindo um mau-olhado. O poder de murchar diz-se estar associado àquele pelo qual as
serpentes atraem pássaros para as suas goelas; e que as humanas vítimas, uma vez atacadas,
adoecem, definham e se não forem socorridas morrem.121

120
EWBANK, Op. Cit., p. 174.
121
EWBANK, Op. Cit., p. 189.

103
Um amuleto muito importante era as figas, o uso desse talismã era bastante generalizado em todos os

moradores da corte, independente de sua condição social, confeccionados em ouro, prata ou marfim,

chumbo, coralina, chifres, ossos e madeira. A principal função era de proteção contra as doenças, mau-

olhado e feitiços. A sua utilização remonta a Antiguidade, onde eram usadas nos ritos de fertilidade

celebrados nas Ilhas mediterrâneas, chegando até o Ocidente pela expansão do Império Romano.

Segundo Ewbank, o primeiro dinheiro que um africano escravizado conseguia era empregado na

aquisição de uma figa. Também os chifres desempenhavam papel relevante de proteção, possuidores de

poderes mágicos contra o mal-olhado, combater a feitiçaria e atrair bons espíritos.

Agregando aos feitiços e as rezas, a população negra da Corte Imperial cercava-se de muitos talismãs

“sagrados” e “profanos” como forma de prevenção contra as forças espirituais malignas capazes de

provocar infortúnio (CF. figura 08). Independente do sexo, da idade e classe social, as pessoas recorriam

ao seu auxílio para se defenderem das mazelas provocadas pelas forças negativas do universo, alterar o

curso natural das circunstâncias quando desfavoráveis, afastar e curar doenças. O conteúdo simbólico

das combinações, cores, texturas, quantidades e materiais desses amuletos juntamente com vestimentas,

penteados e escoriações rituais indicavam hierarquias sociais e religiosas, materiais fundamentais no

processo de resignificações da construção de identidades étnicas entre as diferentes nações africanas.

3.2.1 Construindo identidades - devoção aos santos negros

Ainda continuando com as observações do nosso viajante inglês radicado nos Estados Unidos, Ewbank,

sendo de religião protestante ele ignorava os significados dos ritos católicos e as práticas populares de

devoção aos santos. Numa visita a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, foi testemunha de um ato

devocional por um homem branco a um santo negro:


104
“Enquanto estava observando o altar, estremeci de ouvir um gemido ao meu lado. Voltei-
me e vi um homem branco, de quarenta ou cinqüenta anos, ajoelhado, quase me roçando.
Tinha-se aproximado com passos de lã. Um dos braços estava numa tipóia. Tinha o ar
cadavérico. Seus olhos lânguidos estavam fixos numa das imagens, a quem começou a
dirigir suas tristeza em voz abafada. Recuei e, chegando a H... apontei-lhe o indivíduo.
‘Sim’, disse H... com um encolhimento de ombros,“ele disse-me ontem que viria para ver
se Nossa Senhora do Rosário lhe curaria a ferida no braço”. ‘Mas por que veio a um igreja
de pretos?, perguntei. ‘Porque nos últimos dezoito meses, percorri todas as igrejas de
brancos sem que lograsse interessar qualquer santo em meu estado. A Virgem que ele agora
esta consultando tem seu altar neste lugar e tanto santos quanto médicos devem ser
procurados em suas residências próprias. Muitos brancos vêm aqui pedir auxílio, e muitos
fazem suas promessas a esta santa negra’ ”.122

Ao devotarem-se a um santo, os fiéis entrariam no circuito proposto por Geertz123 na medida que a

crença no poder do santo os levaria à adoção de determinados comportamentos, à prática de

determinadas ações e ao desenvolvimento de concepções de mundo segundo o que acreditam. Aspectos

estes que estariam condicionados pela inserção sociocultural do devoto, já que é segundo o seu

patrimônio social que ele pode apropriar-se da figura do santo. Neste sentido, a devoção se colocaria

também com um dos componentes possíveis da construção de representações sociais, já que cada grupo

ao se estruturar para o culto nele imprime a sua marca e o faz veículo de suas questões particulares. Não

podemos esquecer que as questões sociais e raciais funcionaram como substrato para a construção das

práticas devocionais e, neste sentido, a identificação dos fiéis com seus respectivos santos de devoção

também se orientou pelos critérios presentes naquela sociedade. Deste modo, em tese, não só negros não

deveriam freqüentar igrejas e/ou irmandades de brancos, como também, os brancos não se identificariam

com os santos dos negros. Assim, a identidade se construía através do estabelecimento do contraste,

122
EWBANK, Op. Cit., pp. 218-219. Este mesmo episódio foi examinado por Márcio de Souza em seu estudo sobre
concepções de doença e cura. Cf. SOARES, Márcio de Souza. “A doença e a cura - saberes médicos e cultura popular
na Corte imperial”. Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, mímeo., 1999.
123
GEERTZ, Cliffod. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, l989, pp. 101-142. Ao propor o estudo
da religião enquanto sistema cultural, Clifford Geertz justifica sua pretensão argumentando que as suas possibilidades
se dão pelo fato de que a religião: modela comportamentos, motiva ações, ordena o mundo do crente, atualiza para ele a
divindade no mundo, interagindo e conferindo-lhe sentido.

105
onde a percepção do outro e do que lhe é inerente era fundamental na construção do perfil sociocultural

do grupo.

No plano da vida cotidiana, as escolhas dos votos devocionais se orientavam pelos critérios sociais de

distinção que embasavam uma sociedade escravista do Antigo Regime. Criou-se a idéia da existência de

santos para negros e santos para brancos. Segundo Luiz Mott124, alguns eclesiásticos argumentavam que

o culto a santos pretos poderia provocar nos brancos, atitudes de humildade, mas não era a realidade, o

episódio do “andor de São Benedito” da quarta feira de cinzas no ano de 1849, fornece-nos um excelente

exemplo. Uma parcela significativa da população branca desenvolveu um processo de construção de

estereótipos que, relacionados à cor da pele, ajudaram a identificar aqueles santos com a população

negra. Os africanos escravizados, forros e livres construíram laços de identificação com os santos

pretos. Estes laços passaram pelos arranjos da vida diária, onde as diversas redes de solidariedades

construídas se viram reforçadas pela proteção do santo de devoção. A identificação dos santos pretos

com a população negra pode ter sido forjado numa maior confiabilidade. Os santos podiam ser

considerados “parentes”, no uso extensivo da palavra, na similaridade da cor da pele. Como já vimos no

primeiro capítulo, para a concepção africana de parentesco125, classificada pela literatura antropológica

de “família extensa” ou “alargada”, com a ruptura dos laços familiares provocada pelo tráfico de

homens, parente pode ser todo aquele “semelhante”, abrangendo todos da mesma nação e por extensão

todos da mesma cor da pele. Um negro sentado à porta de uma barbearia exclama: “lá vem meu

124
Ver MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1993, p. 244.
125
Ver pp. 37-38 do I capítulo dessa Dissertação.

106
parente”126, quando à vista uma procissão, com o andor de Nossa Senhora representada em imagem de

pele negra.

3.3 Universo simbólico de matriz africana

Xapanã era um dos orixás mais conhecidos. A extensão do culto deste orixá entre nós é
verdadeiramente extraordinário. Em épocas epidêmicas, a cidade apresenta-se coberta de
sacrifícios – milho torrado com azeite-de-dendê pilado ou não – que são lançados em todos
os pontos em que as ruas se cruzam. 127

O comércio transatlântico de africanos tem seu término a partir de 1850, intensificando-se o translado

interprovincial, principalmente, entre a Bahia e a Corte. A cidade do Rio de Janeiro recebe um número

significativo de africanos escravizados sudaneses. Junto com eles chegam suas divindades, pertencentes

ao panteão Yorubá, é esclarecedor examinarmos como doença e cura está inserido em seu complexo

cultural. Assim como os Bantu, para os Yorubás as doenças possuem uma dimensão não biológica.

As divindades dos panteões africanos, quase todos, possuem controle dual, tanto podem prevenir quanto

causar determinados infortúnios. Na cultura Yorubá, Omulu é considerado “o orixá da varíola”, e por

extensão da doença/cura, Herskovits128 esclarece, “se o Senhor da Terra” havia trazido a doença, só a ele

126
QUINTÃO, Antonia Aparecida. “Lá vem meu parente”: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em
Pernambuco (século XVIII). São Paulo: Annablume, 2002.
127
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional/Editora da Unb,
1982, p. 138. Orixá do panteão Yorubá, Nagô, oriundo da África ocidental, a Nigéria atual. RODRIGUES,Nina
escrevendo sobre Salvador, examina a importância do culto a Xapanã para a epidemia de varíola, portador do controle
dual -tanto pode prevenir, afastar a possibilidade da doença como causá-la, como castigo por algum erro ou desrespeito
aos ritos religiosos.
128
CF. HERSKOVITS, Melville J. “African gods and catholic saints in the new word negro belief”. American
Anthropologist, XXXIX (4), 1937, p. 136.

107
competia proteger a sua gente e livrá-la de seus efeitos. Edison Carneiro chama Omolu de “médico dos

pobres”, de protetor dos negros humildes da Bahia. “Ele espalha a bexiga, a devastação e a peste, mas

deixa de lado, na sua faina destruidora, os filhos do continente africano. Ele protege, com o seu grande

corpo dolorido, a saúde das criaturas de Olorum...”129. Lê Hérisse descobriu que Sapatá-Omolu130 é,

mais ainda do que apenas a divindade da varíola, é o “fetiche do solo”, para empregar sua própria

expressão, ou, para a usada pelos africanos, o “rei da terra”. A varíola, para uma grande maioria dos

negros, era entendida como o castigo enviado por Omolu a todos que o desdenham ou deixam de adorá-

lo. Escreveu Chernoviz sobre a varíola:

As causas das bexigas não são conhecidas; só se sabe que esta moléstia se comunica não só
pelo contágio, pela simples aproximação, mas até pela habitação nos mesmos lugares. Com
freqüência, grassa epidemicamente sobre muitas crianças e pessoas jovens da mesma
cidade; mas esta epidemia, geralmente mui mortífera, só se observa nos países em que a
ignorância, os preconceitos, ou a incúria se opõem à propagação da vacina.131

Com o entendimento de que as epidemias, principalmente da varíola, eram causadas por vontade das

divindades, por castigo de Deus, ou por qualquer outra causa não biológica, a campanha da vacinação

antivaríola encontrava um importante empecilho para sua atuação, especialmente, junto à população

negra da corte. Contribuindo para isto estavam as concepções religiosas de matriz africana dos diversos

grupos étnicos, que acreditavam que a moléstia devia seguir o seu curso natural sem interferências

externas. O lanceiro era visto com um agressor, aquele que pretendia intervir na vontade da divindade.

Seguindo os “saltos e saltinhos” de Chalhoub, ele esclarece que havia muito preconceito sobre a vacina,

havia tradições culturais diversas: bantu, yorubá, católica, médica e outras mais, convergindo para a

129
CARNEIRO, Edison. Negros Bantus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Biblioteca de Divulgação Scientífica,
XIV, pp. 85-90, 1937.
130
LÊ HÉRISSE, L’ ancien royaume du Dahomey, p. 128, apud, Herskovits, Dahomey, na Ancient West África
Kingdom, cap. XXVII 1938. O nome Sapata não é muito conhecido no Brasil, onde existe sob a forma de Xapanã; mas
é um nome “tabu” que pode acarretar doenças da pele a quem a pronuncia. Eis por que, na conversão, o termo é
substituído por Omolu.
131
CHERNOVITZ, (apud CHALHOUB, Op. Cit., p. 178).

108
noção de que dispensável e até ilegítima a intervenção do médico no tratamento da varíola. A

problemática da vacinação não é nosso objetivo central, deixemos maiores discussões para seus

estudiosos.132

Para as comunidades negras da corte, a crença na etiologia sobrenatural da doença servia para unir as

religiões de matriz africana e o catolicismo popular. Entre povos da África, do Dahomé, da região dos

Yorubanos e do centro africano, uma epidemia de varíola era um castigo que funcionava como

purificador dos males de uma comunidade inteira, a tentativa de interromper a marcha das “bolhas” era

devastadora implicando em mortes. Roger Bastide133 afirma que “a varíola é prova da amizade da

divindade, um sinal de Deus de tomar como ‘cavalo’ tal ou tal pessoa”. Ele conheceu alguns filhos de

Omulu que traziam no rosto as cicatrizes da mazela, para eles as marcas eram as formas da deidade

escolher seus filhos, como um chamado divino.

O conceito de controle dual trazido por Chalhoub para a divindade Omulu pode ser estendido a outros

orixás, cada um deles é possuidor de uma “especialidade e responsabilidade”, variando da forma mais

branda até a mais agressiva dela. O orixá Ogum pertencente ao panteão Yorubano, responsável pela

agricultura, tanto pode propiciar uma boa colheita quanto à perda dos grãos plantados. Ogum é o

“ferreiro” dos orixás e como todos os instrumentos que trabalham a terra são confeccionados em ferro,

132
Ver CHALHOUB, 1996, Op. Cit., A temática é centrada na cidade do Rio de Janeiro do séc. XIX, com a campanha
de vacinação antivaríola, as dificuldades sociais para sua prática, tendo em vista as diferentes concepções de doença/cura
para os diversos estratos sociais da população da Corte, as condições de insalubridade da cidade. Também ver,
NEEDELL, Jeffrey. The Revolta contra vacina of 1904: the revolt again “modernization” in belle-epopgue Rio de
Janeiro. HAAR, Durhan, v. 67, nº 2,pp. 233-269, may 1987; SEVCENKO, Nicolau. A revolta da Vacina: mentes
insanas em corpo rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.
133
CF. BASTIDE, Roger. Medicina e magia nos candomblé. In: RIBEIRO, René, e ______. Negros no Brasil:
religião, medicina e magia. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes, 1971, p. 14.

109
tornou-se a divindade da fertilidade dos grãos, da agricultura. A divindade feminina Yansan é

responsável pelos ventos, desde a brisa que refresca às tarde até o furacão que a tudo arrasa.

Nesse seu complexo cultural medicina e magia recebem a mesma denominação em virtude da

semelhança de suas práticas.

Magia e medicina, estreitamente relacionadas, pressupõem a ação de forças sobrenaturais


no universo e a possibilidade humana de exercer controle sobre tais forças. Enquanto artes
do uso de recursos e forças naturais para preservar ou restaurar a saúde, estando sob o
domínio de Osanyn; apoiam-se na crença de que divindade e espíritos auxiliam a cura e que
certas substâncias da natureza possuem qualidades inerentes, de significados ocultos; fazem
uso dos encantamentos.134

As mazelas físicas tinham suas origens na violação dos tabus, no descumprimento dos deveres para com

os orixás, requerendo oferendas de sacrifícios ou a celebração de certo ritual. As doenças eram

concebidas como castigo enviado pelas deidades ou pelos ancestrais, para os yorubás – eguns, quando

não se cumpriam suas obrigações para com eles. Os Orixás tem sob seu domínio tipos específicos de

doenças, detêm o poder da cura ou da prevenção. Cada orixá era considerado responsável por um

conjunto de categorias das doenças.

134
RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana no Brasil – os Iorubás. São Paulo: Oduduwa, 1996, p. 170. Osanyn é
uma divindade do complexo cultural yorubano, tendo seu domínio na floresta e sendo o responsável pelas ervas
(folhas), portador dos encantamentos que sacralizam as plantas, tornando-as curativas.

110
Relação entre Orixás de matriz cultural Yorubá e doenças - Corte Imperial

ORIXA Á DOMÍNIO IO DOENÇAS/CASTIGO


Exu Aberturas, portas, caminhos e Moléstia consuntivas, loucura;
encruzilhadas, fechamento do esôfago e do
estômago por colocação de
uma bola que impede a passagem
dos alimentos.
Ogum Ferro e guerra Moléstias consuntivas;
ataques de loucura;
acidentes envolvendo ferro e
hemorragias.
Oxossi Caça Moléstia consuntivas e ataques
De loucura.
Omulu Morte Varíola; lepra; erisipela, doenças
de pele e embolias.
Xangô Relâmpago Queimaduras.

Yansan Ventos, raios e tempestade. Ferimentos provocados pelos


raios.
Yemonjá Água Afogamento.

Oxum Água e amor voluptuoso Afogamento e doenças venéreas.

Fonte: BASTIDE, Roger. Op. Cit., 1971, p.16-17. Tabela 01.

No panteão Yorubá como no Bantu, as folhas são utilizadas para vários ritos, inclusive e imprescindíveis

para as curas de doenças. O sistema de classificação das plantas está diretamente relacionado as

propriedades que lhe são atribuídas. Osanyn135 é o orixá da essência do mundo vegetal, conhecedor das

possibilidades terapêuticas de todas as plantas. É o segredo sagrado das folhas, que permite a esta

divindade o acesso a um saber de vital importância. Cada folha possui determinada virtude, há folhas da

fortuna e da felicidade, da longevidade, da coragem, das roupas, do corpo, dos pés, etc., mas existem

também as folhas da miséria, a da fofoca e outras bem mais perigosas.136

135
No panteão Bantu Katendê é o equivalente ao Osanyn do panteão Yorubá.
136
AUGURAS, Monique. O duplo e a metamorfose. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 120.

111
Relação entre Orixás de matriz cultural Yorubá e as folhas sagradas

ORIXÁS SFOLHAS SAGRADAS

Exu Urtiga, cansação.

Ogum Aroeira, Abre-caminho, Espada de Ogum.

Oxossi Guiné, caiçara ou caatinga.

Osanyn Folha de abacate.

Omulu Canela de velho, Velame, Barba de velho.

Xangô Bradamundo, Para-raio.

Yansan Erva prata, Negamina.

Oxum Flor de malmequer, Oriri.

Yemonjá Brilhantina, Folha de colônia.

Nanan Flor de manacá.

Oxalá Saião, Folhas de algodão.

Fonte: BASTIDE, Op. Cit., 1971, p. 34. Tabela 02.

Osanyn representa os segredos e as virtudes medicinais das ervas, até mesmo os outros orixás

necessitam dessa força da natureza. Cada deidade tem suas próprias ervas, mas Osanyn é o dono das

folhas e do conhecimento, ele detém o encantamento capaz de tornar uma folha profana em sagrada. Há

plantas para tudo, para as doenças, para alegria, amor, dinheiro, paz. Também para as tristezas, misérias,

para vencer inimigos, atenuar o sofrimento de alguém. Osanyn é a seiva da vida.

112
As funções protetoras das ervas não aparecem explícitas nos discursos da cura, do mau-olhado, do

afastar maus espíritos, dos banhos de limpeza e dos banhos de cheiro. Proteção significa auxílio, ajuda,

abrigar, dedicação à pessoa ou coisa. A proteção estabelece a ligação entre os dois mundos: visível e

invisível. Segundo as religiões de matrizes africanas a vida não pode ser pensada sem as folhas.

Precisamos saber quando usar esta ou aquela folha, qual é a indicada para cada necessidade do

cotidiano137, sempre agregando ritos e simbolismos próprios a cada necessidade.

Intimamente vinculada à concepção da doença como sinal do descontentamento de um orixá, de um

ancestral ou da violação de um tabu havia aquela em que era considerada como resultado da ação de

espíritos malvados. Podendo a enfermidade ser provocada por um feitiço, mas, de um modo ou de outro,

a doença era concebida como algo estranho instalado no interior do corpo doente. A crença generalizada

na possibilidade das doenças serem provocadas por feitiços era um pólo de tensão entre a população

negra e também entre os senhores e africanos escravizados.

A ocorrência de alteração no estado de saúde era imputada freqüentemente, a interferências de

feiticeiros, bruxos ou inimigos pessoais:

“...estando ela testemunha ferida em sua casa e ajuntando-se aí gente começaram de tratar
de quem a curaria e vieram a falar em Tomé do Congo curador [...] E vindo o preto Tomé
do Congo seu marido dela testemunha e um outro escravo o acompanha [...] desejosos de
saber quem na ferira rogaram ao dito preto Tomé curador que lançasse água ao modo dos
curandeiros e lançando-a dissera que uma Leonor Fernandes mulher dum João Lopes lho
mandara fazer. Proferiu certas palavras estranhas, rezou com o auxílio de uma cruz,
esfregou umas ervas desconhecidas, cuspiu sobre a ferida e passou uns pós. Amarrou a

137
GEERTZ, Op. Cit., p. 106. Cf. o autor, o argumento de que os padrões culturais são modelos, que eles são
conjunto de símbolos cujas relações uns com os outros modelam as relações entre as entidades, os processos nos
sistemas físicos, orgânicos, sociais ou psicológicos. Os “modelos para” dizem respeito ao aprendizado automático, os
“modelos de” dão significados a forma psicológica e social, são as relações expressas no simbólico.

113
perna com uma fita de cor carmim. Tudo que o fez fora acompanhado pelo escravo que o
seguiu, repetindo tudo que o mestre falava, como se fora um eco.”138

Tomé do Congo era um “preto” acostumado com as “coisas de curas”, radicado na freguesia de Campo

Grande e Irajá, nas proximidades da Igreja da Nossa Senhora da Apresentação. No caso, o curandeiro

era pessoa do conhecimento da família, morador das proximidades do doente, usando de seus

conhecimentos mágicos agiu em defesa da mazela. Atribuindo causa a um mal enviado, a doença seria

causada por um feitiço, sendo necessários certos procedimentos ritualísticos para cessar-lhe a causa e a

ferida ser curada. Infelizmente não são esclarecidos mais detalhes sobre o caso. Mas podemos imaginar

determinados atos, “... lançasse água ao modo dos curandeiros...”, poderia Tomé olhar através de um

espelho d’água (uma bacia?) e relembrando que uma superfície d’água é a porta de entrada para a

comunicação com o mundo espiritual, ele faz suas adivinhações como os outros curandeiros examinados

no primeiro capítulo dessa pesquisa. O uso dos protetores mágicos de variadas espécies tinha em vista,

justamente, a criação de uma espécie de cordão isolador e, torno da pessoa, de modo a afugentar o mau-

olhado, a maldição, o feitiço, ou a intervenção do diabo. Os amuletos deixavam de ter uma função geral

de vedar o corpo à penetração de forças estranhas para se especializarem. Com este fim, a fita de cor

carmim amarrada à perna da senhora, tinha por finalidade proteger a mesma da continuidade da ferida.

Os passos dos agentes de cura são quase sempre, ocultos, silenciados e seus pacientes de difícil acesso,

muitas vezes, somente tornando-se visíveis quando transpõe as barreiras do conflito. O encontro entre as

diferentes práticas, mesmo o que ocorre em situações de repressão, tem um movimento de ida e volta e

não pode ser pensado como uma imposição de apenas um dos lados.

138
AN (RJ), série Justiça – polícia, escravos e moedas falsa, IJ6 487, 1873. O documento é endereçado ao Inspetor Geral
da Junta Central de Higiene, pedindo providências, pelo exercício ilegal da medicina, não encontramos respostas da
solicitação, já que a pessoa tratada piora da ferida, motivo da denúncia.

114
CONCLUSÃO:

A LEGITIMAÇÃO DA “OUTRA” MEDICINA.


115
A LEGITIMAÇÃO DA “OUTRA” MEDICINA

A representação do universo simbólico do cosmo-mágico, cujos materiais estabelecem entre si fluxos de

simpatia e antipatia, constituindo um complexo campo de forças, surge no quadro de uma estreita

dependência do homem em relação à natureza. Nesse mundo encantado em que tudo tem significado, a

relação do homem com o cosmo-mágico é entendida no quadro dos ritmos da natureza, influências do

universo superior, percepção que acentua a fragilidade essencial da condição humana.

Os quadros sociais do pensamento mítico, caracterizado de autoridade, clientelismo e patronato no seio

de uma sociedade rigidamente estratificada, explicam a projeção para o macrocosmo da dinâmica de

solidariedade e conflito gerada nas comunidades locais, nos grupos, camadas e ordens sociais, bem

como nos jogos de influências e de poder em que se assenta todo o social. A fluidez de fronteiras entre o

mundo superior e a inferior, o indivíduo e a comunidade, decorrem de um estado de consciência

caracterizado por relativa indiferenciação entre o sensível e o inteligível, a imagem e a coisa, o signo e o

designado. Nesse sistema de aparências e realidades dificilmente destrinçáveis, que agravam a

vulnerabilidade e a insegurança do indivíduo, torna-se indispensável o recurso a especialistas capazes de

desvendar as mensagens do cosmo-mágico, de contrair as agressões “sobrenaturais” e humanas, de

manipular o jogo das influências mágicas.

A especificidade da manipulação de símbolos e rituais católicos pelos africanos que a diferenciava da

concepção européia do catolicismo deve ser compreendida em termos polissêmicos, uma vez que

pessoas de origem culturais distintas podem realizar um mesmo gesto e imprimir significados

completamente diferentes para aquilo que estão fazendo e, por conseguinte, nutrir expectativas diversas

ao praticarem atos semelhantes. Ao examinar a herança cultural trazida pelos africanos escravizados
116
para a compreensão da religiosidade negra no Novo Mundo, não significa de modo algum qualquer

espécie de concordância minha em identificar “sobrevivências” africanas no Brasil, mas, antes a

percepção do importante papel desempenhado por aquelas matrizes culturais como um referencial

imprescindível para uma melhor compreensão das vivências do sagrado entre a população negra na

Corte Imperial.

Ao longo do século XIX a percepção sobre doenças e a maneira de lidar com elas em diferentes grupos

sociais, passava por um entendimento muito integrado do funcionamento do corpo e do espírito,

concepção de doença e cura relacionada a idéias de feitiços, ou de ligações com o “sobrenatural”, com

deuses e santos ou com problemas espirituais. Por outro lado, o entendimento integrado entre corpo e

espírito, com relação à saúde, tão comum no país, explica muito da popularidade dos agentes de cura

entre os paciente, que temiam os médicos acadêmicos e suas atuações. As práticas dos curandeiros

examinados passam por benzeduras, geralmente, acompanhadas por orações, bafejos, cuspidelas e

aplicações rituais de determinados materiais valorizados pela medicina popular, contando também com

o poder da palavra dita e da palavra escrita.

A perseguição aos mais diferentes praticantes de cura, na maioria das vezes, esteve ligada à repressão a

cultos de negros e pobres, nos quais se identificavam matrizes culturais de origem africanas,

consideradas bárbaras, atrasadas e, por isso, um sério entrave aos padrões europeus de civilização e

cultura desejados para o Brasil. A herança colonial devia ser extirpada, as práticas mágico-religiosas

eram um dos sinais de atraso, levando há uma grande perseguição aos curandeiros, principalmente os

negros, classificados de charlatães pelos médicos higienistas. Os poucos médicos que havia eram caros e

muitos deles pertenciam a Junta Central de Higiene. Dentro da própria instituição médica havia mais

divergências e conflitos do que acordos em relação aos procedimentos utilizados, as brigas e disputas
117
acabavam nos jornais. Até mesmo a Junta Central de Higiene, sendo um órgão público, enfrentava fortes

dificuldades ao tentar implementar as medidas sanitárias na cidade imperial e nas províncias, lidando

com atitudes bem particulares dos diversos grupos sociais, contrários ao órgão da higiene.

A confiança incondicional no cosmo-mágico, no poder da oração, dos santos católicos, dos orixás, na

virtude dos amuletos, propiciava a condição indispensável para a eficácia da cura. Deste modo, ficava

assegurada a preservação da base de sustentação da forma mágico-religiosa de conceber o mundo, uma

vez que quando o resultado esperado não era atingido a explicação mais comum para o fracasso era que

havia ocorrido uma falha, podendo ser interpretada e absorvida dentro do próprio sistema de pensamento

mágico-religioso. Em casos de experiências mal sucedidas a reputação dos rituais e simbolismos

estariam a salvo no imaginário coletivo. Era a fé que gerava as curas e não as curas que infundiam a fé

em determinado ritual ou objeto. Acreditava-se que um grande “feiticeiro” era capaz de curar, por haver

um consenso comum, um reconhecimento social do poder de cura daquele que estava exercendo as suas

práticas, a “eficácia simbólica”139 explicada por Lévi-Strauss. A procura pelas diferentes medicinas

estava relacionada, na percepção de muitos dos pacientes, à eficácia simbólica dessas terapias, a

importância maior na hora de escolher um tratamento recaía na crença no poder ou no carisma de

determinados agentes de cura, fosse o malefício no corpo ou na alma. Havia a necessidade de que

houvesse crença na medicina acadêmica, ainda tão iniciante no Brasil do século XIX. Para que a mesma

tivesse êxito, faltava à medicina a sua eficácia, vem daí a relação estabelecida com o tema deste

trabalho. Através das fontes constatei que a medicina acadêmica poderia ser considerada a “outra

medicina”, uma parcela significativa da população procurava, a priori, pelos praticantes de curas e na

139
LÉVI-STRAUSS, “O feiticeiro e a magia” e “A eficácia simbólica”, In Antropologia estrutural. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975.

118
maioria das vezes, recorriam a medicina oficial só quando os métodos utilizados não produziam o efeito

desejado – a cura.

Anos se passaram, até séculos, mas muitas das doenças que afligiam a população negra e pobre

continuam. A recorrência ao mágico religioso como forma de manutenção harmônica, da cura das

mazelas se fazem presentes em nossos cotidianos. O jornal “O Globo”140 de 10/02/2008, traz em uma de

suas matérias da capa: “ Doenças da pobreza matam mais que trânsito”, as doenças ligadas á pobreza,

como diarréia, desnutrição, malária e tuberculose matam 33,5 mil pessoas por ano no Brasil”, as

mesmas que faziam vítimas fatais nos oitocentos. A medicina evoluiu tornou-se, sem sombra de dúvida,

científica, exercendo seu papel principal, salvar vidas. Conquistou e legitimou o seu status na sociedade,

não mais se preocupa em combater os “feiticeiros”141. Contudo, eles aqui estão no silêncio de suas

fórmulas, nas benzeduras, chás, banhos e outros procedimentos que compõem seus rituais, utilizados por

todos nós que neles acreditamos.

140
O Globo de 10/02/2008, ver capa e pp.14/15.
141
Refiro-me aqui a mesma categoria de feiticeiros tratados neste trabalho.

119
Anexo: 01

O imaginário popular na concepção européia do cosmo-mágico. O poder das feiticeiras de se


transmutar e viajar para terras distantes ao encontro com o demônio. BETHENCOURT, Op. Cit.,
capa.

120
Anexo: 02

Adivinho da região da África Bantu com sua cesta de Ngombo. Pela disposição dos objetos
da cesta o adivinho chega às respostas das perguntas feitas aos espíritos ancestrais. MELLO
E SOUZA, 2006, Op. Cit., p. 44.

121
Anexo: 03

Cesto de adivinhação chamado de Ngombo, é um dos métodos de adivinhação para


os Bantu. MELLO E SOUZA, 2006, Op. Cit., p. 44.

122
Anexo: 04

Nkisi contém vários elementos que lhe permitem intermediar os poderes dos espíritos e
interferir na vida dos homens, trazendo soluções para seus problemas. MELLO E SOUZA, 2006,
Op.Cit., p. 45 .

123
Anexo: 05

O CIRURGIÃO NEGRO. Em palavras do autor: “... Ele sabe emprestar as suas receitas um fundo
misterioso e mediante tais sortilégios, disfarça o simples curativo que os seus doentes já conhecem
por tradição”. Observamos na figura do cirurgião negro, uma bolsa junto ao seu corpo, que supomos
ser a bolsa de mandinga. DEBRET, Op. Cit., p. 177-178.

124
Anexo: 06

Desenho encontrado dentro de uma Bolsa de mandinga. Podemos visualizar diversos


símbolos e ícones religiosos, misturando materiais da religião judaico-cristã com de matriz
africana, em uma outra prática de proteção. Segundo o autor, os desenhos eram gravados
com sangue, perceptível pela diferença cromática preta ou acastanhada, não explicando a
origem do sangue. Mas nos atrevemos a supor, que sejam de animais sacrificados para
prover a eficácia da proteção. LAHON, Op. Cit., p. 37.

125
Anexo: 07

Obi é um fruto ritualístico, a noz-da-cola (Cola acuminata). Fruto da árvore


africana aclimatada no Brasil, indispensável nos ritos das religiões de matriz
africana, também usado nas suas comidas. MELLO E SOUZA, 2006, Op. Cit., p. 18.

126
Anexo: 08

Amuletos e talismãs brasileiros. Utilizado pelas mulheres negras da Corte, agrupados ou isolados.
Além de seres usados para prevenir eram também símbolos de poder. EWBANK, Op. Cit., foto 18.

127
FONTES

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Arquivo Nacional da Torre do Tombo


- Inquisição de Lisboa – Cadernos do Promotor, n° 29, livro 228; livro 784
- Inquisição de Lisboa – processo n/ 8464.

Arquivo Nacional (RJ)


- Série Justiça – polícia, escravos e moedas falsas, IJ6 170 ( 1835); 516 (1862); 487 (1873);
193 (1868).
- Ministério do Império – Junta Central de Higiene Pública. Ofícios e documentos diversos, IS4-
39 e IS4-40 (1884).
- Fisicatura-mor – caixa 478, 475.
- Guia de Fundos – SPJ

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

- Atas da Inspetoria-Geral de Higiene Pública - Códices 8-3-3 (1888);


- Ofícios da Secretaria de Polícia e do Ministério do Império – códice 41-3-36 (1860); 43-1-25
(1834-1889); 44-2-7 (1835, 1864-1866, 1868).
- Avisos do Governo - códice

2. Impressas

Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro


- Seção de Obras Raras – Coleção de Leis do Brasil – CLB, Decreto de 14/09/1850; Decreto
29/09/1851.

Publicações Médicas
- Revista médica Fluminense, fevereiro I(11), 1866.
- Revista médica brasileira – Jornal da Academia Imperial de Medicina do Rio de janeiro, n° 1,1ª
ano, maio, 1841.

3. Periódicos

- O Paiz (1880-1890);
- Diário do Rio de Janeiro (1855-1867);
- Jornal do Commércio (1855, 1867, 1880-1890).
- Jornal O Globo ( 2008).

128
CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES

* Life in Brazil de Thomas Ewbank, 1971.


Figura: 08.

* Viagem Pitoresca e histórica ao Brasil de Jean Baptiste.


Figura: 05.

* África e Brasil africano de Marina de Mello e Souza.


Figuras: 02, 03, 04 e 07.

* O imaginário de magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI de Francisco


Bethencourt.
Figura: 01.

*. “Inquisição, pacto com o demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVII” de Didier Lahon.
Figura: 06.

129
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