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Departamento de História
“MUNGANGA NZAMBIRI”:
um estudo comparativo das concepções populares de cura
na corte imperial (1850-1888).
Rio de Janeiro
2008
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GLÍCIA CALDAS GONÇALVES DA SILVA
“MUNGANGA NZAMBIRI”:
um estudo comparativo das concepções populares de cura
na corte imperial (1850-1888).
Rio de Janeiro
2008
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Ficha Catalográfica
CALDAS, Glícia.
“MUNGANGA NZAMBIRI”: um estudo comparativo das
concepções populares de cura na corte imperial (1850-1888).
Dissertação (Mestrado em História Comparada).
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Orientação: Professor Doutor Francisco Weffort.
Co-orientação: Professora Doutora Márcia Contins.
Pós-Graduação em História Comparada.
1.Brasil africano. 2. Representações culturais. 3. Resistência escrava.
4. Religião. 5. Magia.
7
GLÍCIA CALDAS GONÇALVES DA SILVA
“MUNGANGA NZAMBIRI”:
um estudo comparativo das concepções populares de cura
na corte imperial (1850-1888).
Banca Examinadora:
________________________________________Orientador ( presidente)
Prof. Dr. Francisco Weffort
___________________________________Co-orientadora:
Prof. Dr. Márcia Contins
___________________________________Professor do PPGHC
Prof. Dr. Fábio Lessa
8
AGRADECIMENTOS
Caindo em um lugar comum, não posso fugir a ele, ao afirmar que esta dissertação é fruto de um
Diversos foram os arquivos onde realizei o levantamento e coleta das fontes, cabendo agradecer aos
contei com a presteza dos funcionários da Seção de Obras Raras e dos jornais, bem como, no
Arquivo Nacional (RJ), Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo do Tribunal do Júri (RJ). Aos
funcionários da biblioteca da UCAM que ao longo da pesquisa nos tornamos amigos, a Anna Senna-
bibliotecária, Robson, José Antonio, Matilde, incansáveis na busca pelos livros, teses e dissertações.
Há três pessoas que certamente merecem destaque, pois acompanharam minhas idéias mesmo antes
de se consolidarem, o Prof. Edson Borges, da UCAM, co-responsável pelo caminho que hoje trilho,
com toda sua paciência e dedicação, orientou as primeiras linhas do projeto, nas leituras,
direcionando e apurando minhas “idéias”; Prof. Mônica Lima, nas discussões dos seminários, nos
incansável nas suas considerações e avaliações. Agradeço a Edson, Mônica e Márcia, também a
amizade, o estímulo, a confiança e o profundo respeito com que me trataram, a intervenção séria,
Aos meus colegas do Colégio Estadual Dom Helder Câmara, agradeço a compreensão na reta final
deste trabalho, em especial, a diretora Regina Rodrigues. A Cláudia Viegas, a Claudinha, os socorros
9
Ao Prof. Flávio Edler da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz sou grata por ter discutido alguns pontos
desse trabalho quando da minha participação em um dos Seminários do PPGHC, também ao Prof.
Anderson José Machado de Oliveira sua valiosa contribuição. Ao prof. Didier Lahon agradeço por
ter, de forma crítica e inteligente examinado todos os capítulos desta dissertação. A Ronilda Iyakemi
da USP, amiga e incentivadora, sempre estimulando com suas críticas brilhantes, nunca deixando
secretárias Márcia Aparecida Ramos e Leniza Maria dos Santos, em momentos de desâmino e do
exercício de paciência pelas minhas ansiedades. Ao seu corpo docente, em particular a Prof. Regina
Bustamante, Prof. Silvio Almeida de Carvalho Filho, Prof. Fábio Lessa, Prof. Maria da Conceição
Pinto de Góes. Ao Prof. Francisco Weffort a orientação brilhante e competente, os méritos desse
É difícil para quem não é da área compreender o que significa a realização de uma dissertação,
depois de muitos anos longe da universidade, retornar foi um desafio, que não teria sido possível
sem os estímulos e cumplicidade de vocês. Aos meus filhos, Raphael e Celso Junior pela minha falta
de paciência e irritação. Mas sem vocês eu nada teria conseguido ou não teria finalidade. Ao meu tio
amado tio Gil e minha mãe Gilma (in memorian), sem eles não teria concluído a graduação, grande
10
EPÍGRAFE
“Osanyn, filho de Nanã e irmão de Oxumarê, Ewá e Obaluaê, era o senhor das
folhas, da ciência e das ervas, o orixá que conhece o segredo da cura e o mistério
da vida. Todos os orixás recorriam a Osanyn para curar qualquer moléstia,
qualquer mal do corpo. Todos dependiam dele na luta contra a doença. Todos
iam à casa de Osanyn oferecer seus sacrifícios. Em troca ele lhes dava preparados
mágicos: banhos, chás, infusões, pomadas, abô, beberagens. Curava as dores, as
feridas, os sangramentos; as disenterias, os inchaços e fraturas; livrava o corpo de
todos os males. Um dia Xangô, que era o deus da justiça, julgou que todos os
orixás deveriam compartilhar o poder de Osanyn, conhecendo o segredo das
ervas e o dom da cura. Xangô sentenciou que Osanyn dividisse as folhas com os
outros orixás, ele negou-se. Xangô ordenou a Yansan que soltasse os seus ventos
e trouxesse para o seu palácio todas as folhas das matas para serem distribuídas
aos orixás. Yansan deusa dos ventos, fez o que Xangô determinara, gerou um
furacão que derrubou as folhas das plantas e as arrastou em direção ao palácio de
Xangô. Osanyn percebeu o que acontecerá e gritou:
“Ewé, ewé Assá!”
“As folhas funcionam!”
Ele ordenou que as folhas voltassem às suas matas e elas obedeceram. Quase
todas as folhas retornaram, mas aquelas que ficaram em poder de Xangô
perderam o axé. O orixá-rei, que era justo, reconheceu o poder de Osanyn,
devendo ter o poder exclusivo das folhas. Osanyn, contudo, deu folhas para cada
orixá, deu uma ewé para cada um deles. Cada folha com seus axés e seus ofós,
que são cantigas de encantamento, sem as quais as folhas não funcionam. Mas os
segredos, guardou para si. Os orixás ficaram gratos e sempre o reverenciam
quando usam as folhas.”
(In: PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 153-
154.)
Utilizo um itan, uma lenda, do panteão Yorubá, Osanyn e Yansan são equivalências de Katendê e Kaango,
respectivamente, na cultura Bantu.
O universo mágico a muitos de nós fascina e estou incluída nele, evoco os poderes de Osanyn que me
permitiu transitar nos meandros das curas e a senhora do meu destino, minha essência de vida, que com a
brisa de seus ventos moldou minha própria história.
11
RESUMO
O presente estudo visa examinar as concepções populares de cura na Corte Imperial do Brasil,
recai na discussão da legitimação da medicina popular e da medicina acadêmica, das relações sociais
que envolviam aqueles que se dedicavam às diversas formas do ofício de cura e a relação conflituosa
com a medicina oficial. A necessidade de incorporar outros sujeitos políticos menos “legítimos”
simbolismos e rituais, apelos ao mundo da fé, da crença, da magia. O africano escravizado buscou e
utilizou diversas formas de resistências, tentando minimizar a adversidade das relações sociais numa
sociedade estratificada. As práticas da magia são inseridas em uma das formas de resistência escrava
Palavras chaves: Brasil africano, representações culturais, resistência escrava, religião, magia.
12
ABSTRACT
This study’s aim is to investigate the popular concepts of healing in the Imperial Court of Brazil,
specifically among the Black population in the second half of 19th century. By means of a
comparative approach it focuses on the discussion about the legitimization of the popular as well as
the official forms of medicine, on the social relations within which were those who dedicated
themselves to the diverse practices of healing, and on the conflicting relations between them and the
official medical discourse. It also focuses on the need to incorporate other officially “less
legitimized” agents, who have been silenced in the context of the medical discourse during the
imperial period, and on those practices strongly associated to symbolisms and rituals, as well as to
faith, beliefs and magic appeals. The enslaved Africans looked for and made use of many forms of
resistance, so minimizing the adversities of the social relations in a stratified society. Magic practices
are contextualized as one of the slaves’ forms of resistance against the slavery system, as an
13
SUMÁRIO
Introdução - 12
Ilustrações - 117
Fontes - 125
Bibliografia - 127
14
INTRODUÇÃO
O interesse em desenvolver uma pesquisa sobre as diversas “medicinas” no Rio de Janeiro Imperial e a
relação com a religião praticada pelos escravos, libertos e descendentes, surgiu, inicialmente, com as
atividades comunitárias realizadas em zona rural do Estado do Rio de Janeiro. As tradições do uso de
saúde, nos dias atuais, lembravam minha infância, as rezas para “espinhela caída” e “nervo torcido”,
“água benzida”, xaropes de ervas e raízes para fins variados, etc., são integrantes do meu universo
familiar. A curiosidade fez com que eu começasse pequenas pesquisas sobre as “origens” dessas
tradições, com vários indícios comecei a montar o estudo. Pensei, de início, em trabalhar com todo o
período da Corte imperial, mas a vastidão do corpus documental, proibia um corte temporal grande, optei
por “dar conta” da época da eclosão dos conflitos da medicina oficial, da luta pela sua legitimação junto
à população da Corte, dos “ataques” a qualquer outra prática médica diferenciada dela. Da necessidade
de incorporar outros sujeitos políticos menos “legítimos” oficialmente, silenciados no discurso sobre as
diversas medicinas do Brasil imperial, os agentes de cura. Especificamente nessa pesquisa, os praticantes
dos ofícios de curas negros e seus descendentes oriundos do tronco lingüístico Bantu, especialmente os
Bacongos.
A abordagem comparativa recaiu sobre as relações sociais que envolviam aqueles que se dedicavam às
diversas formas do ofício de curar e a relação conflituosa com a medicina oficial, que se julgava a
poder dos agentes de curar. O século XIX foi um período de grandes transformações para o Brasil, com
finais de 1849 e a última da Corte imperial no verão de 1889, os surtos epidêmicos conjugados com a
declarada “guerra” registrada nos periódicos da época, que se iniciaram em meados de 1850, dirigida a
todos aqueles que praticavam a medicina não acadêmica, delimitaram a escolha temporal da pesquisa, a
Do ponto de vista metodológico uma das minhas preocupações é não partir do macro para o micro, ou
seja, das instituições médicas para os agentes de curas. Para se entender como as representações culturais
das concepções de doença/cura da população negra aconteceram em solo brasileiro, necessário pequenas
“viagens” à África, examinando as tradições culturais do antigo Reino do Kongo pertencentes ao tronco
práticas mágicas africanas, tentando delinear os processos pelos quais o material cultural que foi
preservado pôde contribuir para recriação, ressemantização das instituições a que os escravos se
dedicaram no Novo Mundo, no caso da pesquisa, a religião, através das práticas de curas. Os
colonizadores já conviviam com um discurso sobre feitiçaria, antes de terem contato com os povos
africanos, o que fizeram foi transferir para o contexto africano os estereótipos sobre a feitiçaria e
feiticismo das crenças oriundas dos estratos populares europeus. Por falta de uma literatura própria
africana sobre a feitiçaria, a igreja aderiu ao amplo contorno da construção européia da feitiçaria. Para
Laura de Mello e Souza, o Brasil até meados de 1750, “pode ser caracterizado por uma espiritualidade
medieval, que se mostrou presente na organização das confrarias, refundindo espiritualidades diversas
torna-se imprescindível para o entendimento das concepções de doença/cura para população negra da
1
MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colônia.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.88.
16
Corte, constituindo o primeiro capítulo da pesquisa. Para esta parte, utilizo os processos da Inquisição de
Rio de Janeiro, tracei os passos da institucionalização do saber médico no Brasil Império, o que torna
importante para conhecer os espaços sociais da medicina popular. Consultando as fontes, ficou claro que
só chegaria aos agentes de cura através dos representantes da medicina acadêmica, não esquecendo que
essas fontes são oriundas da medicina oficial carregadas de preconceitos estereotipados, necessário
desconstruir o discurso e tentar chegar até o universo cultural dos curandeiros, da época. Um breve
histórico sobre os serviços de saúde do Império, abordando os vários conflitos médicos pela disputa do
seu lugar na sociedade, as dificuldades pela sua legitimação e a concorrência com os agentes de cura,
prestigiados pela população. A perseguição aos mais variados praticantes negros da medicina popular
muitas vezes, esteve ligada à repressão aos cultos de origens africanas, consideradas “bárbaras”,
“atrasadas”, “primitivas” e, por isso um sério entrave aos padrões de civilização e cultura desejados para
o Brasil. Cruzando dados colhidos nos periódicos da época com a documentação da Junta Central de
No terceiro capítulo, examino as relações sociais dos agentes de curas, em termos de sua eficácia, o
diferencial é encontrado mais nos parâmetros da relação estabelecida entre quem cura e quem deseja ser
curado, isto é, entre outros critérios, pela credibilidade e confiança. Esta relação se estabelece em
momentos de fragilidade desse último, que recorre a um agente de cura em quem possa confiar.
Contribuindo para essa confiança, partilhavam da mesma concepção de doença e cura, sobre a etiologia e
à eficácia simbólica2 dessas práticas, a importância maior na hora de escolher um tratamento recaía na
crença no poder ou no carisma de determinados agentes de cura, fosse das mazelas do corpo ou da alma.
As fontes desse momento foram os inquéritos instaurados pelo Inspetor geral da Junta Central de Higiene
pública e as denúncias dos periódicos. Os Relato dos viajantes que passaram pela cidade Imperial
proporcionaram um perfil do seu cotidiano, o próprio ambiente mórbido da cidade apontam para uma das
causas viáveis das doenças que afligiam a população escrava e descrevem atitudes da religiosidade negra
na Corte.
2
Cf. LÉVI-STRAUSS, “O feiticeiro e a magia” e “A eficácia simbólica”, In Antropologia estrutural. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. Ao trabalhar com essa noção, o autor refere-se à importância da crença na magia,
ou em outras formas de cura, para a sua eficácia, muito mais do que quaisquer fatores objetivos. O autor busca, ao
estudar determinadas práticas mágicas de curas, não os mecanismos concretos que tornariam possíveis tais curas,
mas na explicação baseada em um consenso, um reconhecimento social do poder de cura de quem exercia a atividade
terapêutica.
18
A MAGIA DO “FEITIÇO”:
Os estudos sobre a religião de matriz africana têm geralmente se concentrado sobre o relativo grau de
continuidade ou transformação sofrida pela cultura religiosa de origem africana no Novo Mundo.
Enquanto autores como Herskovits, Bastide têm dado uma ênfase especial à continuidade das formas
culturais africanas e à “tenacidade da tradição”, mais recentemente, outros autores têm notado as
Novo Mundo tem praticamente diluído a herança africana. Essa corrente interpretativa destaca a hibridez
especificidade do processo histórico e do contexto sociocultural brasileiro. Esse modelo critica uma
“busca por africanismos”, ou sobrevivências culturais africanas, empreendidas pelos estudiosos, o que,
em certos casos, é visto como forma de “exotizar” a religião. Mintz & Price podem ser considerados
como o cerne dessa corrente “crioula”3, e têm sugerido um enfoque diferente nos estudos sobre
continuidades e mudanças. Mais do que comparar as formas e funcionalidades dos elementos religiosos,
eles chamam a atenção para a necessidade de comparar o sentido dos “africanismos” e a persistência de
certas orientações cognitivas ou “visões do mundo” e sugerem comparar não os aspectos estruturais das
mundo novo. Os processos de crioulização são postulados opostos ao poder de resistência das etnicidades
3
HERSKOVITS, Melville J. “African gods and catholic saints in the new world negro belief ”. Anthropologist,
XXXIX (4), l937, pp. 635-643; BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das
interpenetrações de civilizações, São Paulo, Biblioteca pioneira de Ciências Sociais, 1970, 1° volume. Ver em MINTZ,
Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de
Janeiro: Pallas, Universidade Candido Mendes, 2003, nos conceitos de crioulização, os africanos escravizados
empregaram, padronizaram e transformaram materiais culturais em novas tradições no Novo Mundo, para dar
coerência, sentido e um certo grau de autonomia a sua nova condição.
20
africanas. O conceito de crioulização4 era originariamente, um modelo lingüístico que foi estabelecido a
outras formas culturais, ampliando este modelo para escreverem sobre culturas inteiras, Burke em seus
Visitar ritos e simbolismos religiosos dos povos da diáspora africana é imprescindível para o
moda africana”, da implicação na transposição do discurso europeu sobre “feitiçaria” para as práticas
religiosas africanas. A região do Congo-Angola foi daquelas que mais forneceu africanos para o Brasil,
especialmente para o sudeste, posição assumida no século XVII e consolidada na virada do século XVIII
para o XIX. Muito se escreveu, no âmbito da bibliografia etnológica e antropológica, sobre a importância
das religiosidades banto na chamada cultura afro-brasileira e bastaria isto para estimular investigações
mais sistemáticas sobre a história da região. A África Central, Congo/Angola, região responsável por
40% a 45% dos africanos escravizados, do final no século XVI até o XIX, embarcados pelo porto de
Angola. Luiz Felipe de Alencastro6 inverte para o Brasil e Angola, o que antes era visto pela
4
Cf. BURK, Peter. Hibridismo cultural. RS: Unisinos, 2003, pp. 61. Para o autor, o modelo de crioulização começou a
ser empregado para descrever uma situação na qual uma língua franca ou pidgin anterior desenvolve uma estrutura mais
complexa na medida em que as pessoas começam a utilizá-la para propósitos gerais ou mesmo como forma de tentativa
de comunicação entre vários grupos sociais de línguas diferentes, formando uma “outra língua”. Duas línguas em
contato se modificam e ficam mais parecidas e assim “convergem” e criam uma terceira língua.
5
Ibidem.
6
ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos viventes: formação no Brasil do Atlântico Sul. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. Ver em especial o capítulo 7 – Angola brasílica.
21
historiografia como comércio triangular e nos alerta para uma rota de comércio entre o Rio de Janeiro e
Angola, principalmente das “peças” humanas. A maioria da população negra da cidade imperial era
constituída por africanos escravizados saídos por Angola. Os primeiros contatos entre os europeus e os
africanos da África Centro-ocidental, nos séculos XVI e XVII, através da bacia dos rios Zaire e Cuanza,
chegando ao reino do Congo, facilitou o interesse dos portugueses no seu enraizamento ao longo dos
séculos seguintes, junto com eles, a missão jesuítica de converter os povos “gentios”. Adotarei como
catolicismo popular negro7, o que alguns autores, Marina de Mello e Souza, Thornton e outros, chamam
de cristianismo africano, construído de forma dinâmica, resultando da forma de interação dos materiais
do cristianismo com as diferentes cosmologias africanas, da existência de uma base comum entre as
religiões em contato. Não estou compactuando com os conceitos de Bastides, que atribuí ao catolicismo a
negro”, caracterizando-o como um “subcultura de classe”. A opção pelo termo, catolicismo popular
negro, é pela especificidade dos dogmas católicos, enquanto o cristianismo é mais amplo, abrangendo
muito mais do que somente os rituais e simbolismos da religião católica romana. Alterações ritualísticas
que na Europa levariam seus adeptos aos tribunais da Inquisição, na África foram imprescindíveis para a
É necessário compreendermos o significado da categoria “feitiçaria” para uma grande parte da África,
religiosidade da população negra no Brasil. Através do universo da “magia do feitiço”, utilizados para
7
Ver MELLO E SOUZA, Marina. Reis negros no Brasil escravista, história da festa de coroação de Rei Congo. Belo
Horizonte: UFMG, 2002, p.55; THORNTON, John. Africa and africans in the making of the Atlantic world, 1400-1680.
New York, Cambridge University Press, 1992, p. 235-271; Bastides, op.cit.,1972.
22
uma gama variável de situações: problemas amorosos, dificuldades financeiras, curas de doenças,
minimização das dificuldades das relações entre senhores e escravos, como também para provocar
infortúnios, desarranjos sentimentais, familiares, doenças. Outras, como um “contra feitiço”, para
contra atacar, como um “remédio” para as mazelas provocadas por feitiços, seja do corpo ou do espírito.
Através das práticas da religião tradicional de matriz africana ou do catolicismo popular negro, das
confrarias, irmandades, o africano escravizado buscou e utilizou diversas formas de resistências tentando
Alguns estudos importantes perceberam bem a relação entre a feitiçaria e tensões sociais, entre eles, o
trabalho de Evans-Pritchard8 sobre as bruxarias utilizadas pelos Azande, do sul do Sudão e nordeste do
Congo, publicado em 1937. Para o autor, a bruxaria explica porque pessoas sofrem infortúnios
particulares - acidente, doença, morte, perda de emprego. Ele alega, que a bruxaria como teoria da
causalidade está voltada para a singularidade do infortúnio. O “bruxo” coloca seus poderes malignos para
fora e causa o infortúnio. Evans-Pritchard desenvolve em seu trabalho, que a feitiçaria busca explicar o
porquê do infortúnio, o porquê da animosidade que causa nos homens o desejo de fazer o mal a outros.
Os sistemas de crenças na bruxaria tendem a ser fechado, absorvendo falhas e evidências aparentemente
contraditórias. Esse sistema de crenças é caracterizado por aquilo que ele chamou de “elaboração
secundária da crença”. Em muitos casos, onde a magia não funciona, a falha pode ser interpretada dentro
do sistema invocando-se outras crenças. Outro ponto importante abordado por ele, é que os bruxos
8
EVANS-PRITCHARD, E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p.26. Os
Azande pertencem ao tronco lingüístico Bantu, localizados na África Central. O bruxo tinha uma substância
localizada no estômago, qualquer pessoa poderia tê-la, independente de ser uma boa ou má pessoa, é uma qualidade
intrínseca. “Um ato de bruxaria é um ato psíquico, não possuí ritos, não profere cantações e não empregam drogas
mágicas”, p. 37. Os Azande fazem uma distinção entre bruxaria e feitiçaria, contra ambos eles empregam adivinhos,
oráculos e drogas mágicas.
23
estavam entre os inimigos e que a bruxaria era assunto que ligava a causa do infortúnio à moral das
relações sociais. A análise do autor dá uma natureza circular do raciocínio em qualquer sistema de
pensamento sobre as crenças, não estando restrita somente aos sistemas de crenças dos Azande, mas
permitindo comparações.
Cerca de trinta anos depois dos estudos de Evans-Pritchard sobre bruxaria entre os Azande, esta análise
foi objeto de reflexão acerca da feitiçaria européia. As mazelas trazidas por um difícil século XIV, com
pestes, fome, crise econômica, desesperança, pessimismo, herança abraçada pelo alvorecer da Época
Moderna e acrescida ainda de conflitos religiosos, fizeram aumentar cada vez mais as pressões sociais.
Assim, as desgraças que assolavam os indivíduos eram encarnadas na figura da bruxa, responsabilizadas
... na estrutura de uma sociedade que ainda permanecia amplamente no estágio mágico, a
bruxa era necessária, portanto, como bode expiatório, sendo aliás verdade que certos
indivíduos realmente procuraram desempenhar esse papel nefasto de enfeitiçador.9
.
Para Marc Augé, as bruxas, tentam resolver as angústias existenciais das suas épocas e de suas culturas,
Sublinha que as descrições de “bruxaria” africana que pôde fazer “ao vivo” (através das
confissões dos acusados, o rumor público ou os especialistas locais da cura e da contra
feitiçaria) evocam de maneira bastante notável aquelas que puderam recolher no seu tempo
os inquisidores e os juízes; os temas do desdobramento, a metamorfose e a ambigüidade da
relação feiticeiro/contra feiticeiro, nomeadamente apresentam sobre os dois continentes, em
uma e a outra história, numerosas analogias.10
Radcliffe-Brown lutou para que fosse suprimida a palavra “magia” da linguagem antropológica. A
9
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1800, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 376.
10
AUGE, Marc. ( apud Lahon, Didier. “Inquisição e pacto com o demônio e “magia” africana em Lisboa no século
XVIII”. Revista Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, nº 8, 2204, p. 62, transcrição da nota de nº 45).
24
religião supõe uma atitude de respeito, submissão e culto aos seres transcendentes e seus poderes.
Baseia-se na oração-petição exteriorizada de várias maneiras e espera atingir os seus objetivos, porque
confiança e relação pessoal. Malinowski11 impulsionou com os seus estudos na Nova Guiné, no
arquipélago Salomão e nas Ilhas Trobriand, o funcionalismo antropológico e, com base na utilidade,
distinguiu a magia da religião. Para ele, a magia serve para conseguir êxitos ou desviar perigos. É
utilitária, pois instrumentaliza métodos e poderes, tendo sempre em vista objetivos concretos e claros. A
Nas sociedades Bacongo e mais amplamente nas Banto, há três espécies de especialistas que ocupam o
âmbito das atividades da “magia”: o adivinho, o curandeiro e o feiticeiro. Muitas vezes as funções
desempenhadas pelo adivinho e o curandeiro podem ser reduzidas a um único especialista. O feiticeiro
seria aquele que atuaria para o desequilíbrio da comunidade ou de uma pessoa, utilizando a magia
maligna. Iremos examinar, brevemente, esses especialistas ritualísticos, numa comparação entre as suas
funções em África e no Brasil. No Brasil pela transposição do discurso europeu de feitiçaria para todas e
quaisquer práticas mágicas africanas, colocou-se muitas vezes, erroneamente, os três especialistas sob
As colônias portuguesas africanas eram quase todas pertencentes ao tronco lingüístico Bantu. Os povos
que o compõem, somente na década de 1860 receberiam esse nome, palavra que significa “homens ou
povo”, na grande maioria desses idiomas. Nos estudos sobre a escravidão ainda é comum ter-se a idéia
que a comunicação efetiva entre os africanos escravizados só teria se iniciado após a viagem para o Novo
11
MALINOSWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião, Lisboa: Ed. 70, 1988, pp. 70-149.
25
Mundo. Na diversidade das línguas entre os povos Banto muitos dos vocábulos-raízes indicavam os
conceitos básicos da vida cotidiana. Os Banto perceberam uma similitude em suas falas que propiciavam
uma forma de comunicação, muito antes da travessia do Atlântico12, no interior do próprio continente
africano. E esta descoberta não se restringiu apenas ao idioma, estendia-se também a outras áreas
culturais.
Com os africanos escravizados e as mercadorias africanas, oriundos da região dos bacongos, vinham as
representações culturais de sua cosmologia, maneiras de lidar com as coisas do mundo real e do
sobrenatural. Bacongo é o nome dado pelo qual a Antropologia e a História têm identificado os povos
habitantes de regiões do atual Congo e Angola. Algumas dessas maneiras podem ser identificadas nas
representações culturais recriadas por africanos de origem Banto e por seus descendentes, pelas várias
maneiras que os bacongos reinterpretavam símbolos e rituais estrangeiros, em termos básicos de sua
cultura de origem.
As instituições nodais ou nucleares em torno das quais os africanos escravizados ordenavam sua vida
devem ter-se voltado para certos problemas fundamentais, como o estabelecimento de amizades,
soluções para as crises da vida, a padronização social para lidar com o nascimento, a doença e a morte,
a formação de grupos religiosos e a solução dos problemas da servidão, muitas vezes, do estar doente,
etc. As instituições surgidas em qualquer população escrava nos primeiros tempos da escravidão do Novo
12
SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Revista da USP, São Paulo, n°
12, pp.48-67, 1991-1992, p.50. Os estudos clássicos sobre escravidão acreditam que as comunicações entre os
africanos escravizados só aconteceram com a chegada no Novo Mundo, com o aprendizado de um pídgins ou jargões
comerciais, isto é, uma língua com gramáticas e léxicos reduzidos, usadas em atividades especializadas, que
envolviam grupos sem uma língua comum.
26
Mundo podem ser vistas como uma espécie de arcabouço em que era possível empregar, padronizar e
transformar materiais culturais em novas tradições, os africanos escravizados transmigrados para o Novo
A maioria das religiões da África centro-ocidental parece ter tido em comum certos pressupostos
bem como sobre o papel ativo dos mortos na vida dos vivos, a receptividade das divindades, em sua
maioria, às ações humanas, à estreita relação entre o conflito social e a doença ou a desgraça. O saber
ritualístico tende a ser restrito a certos indivíduos ou grupos de culto. Uma parcela expressiva da religião
da África ocidental e central servia de meios de orientação ou, pelo menos, concentrava-se em
acontecimentos especiais, desde as doenças até as coroações, era considerável a parte de conhecimento
dos ritos substantivos nas mãos dos especialistas. Esta instrumentalização dos ritos incentivava a
experimentação com novas técnicas e práticas de povos vizinhos, como a adoção delas; logo, a maioria
das religiões da África centro-ocidental era relativamente permeável às influências estrangeiras e tendia a
ser agregativa, e não excludente, em sua orientação para as outras culturas. Dessa forma, também
aconteceu em solo brasileiro, onde os africanos escravizados, através dos materiais culturais africanos
que foi preservado agregando a outros novos, tornaram-se especialistas em determinada assistência
ritualística.
África Central, observaram que, apesar das diferenças existentes entre as práticas religiosas dos diversos
13
Ver CRAEMER, Vansina e Fox. “Religious Movements in Central Africa: a theoretical study”, In Comparative
studies in Society and History, (18), 1967, pp. 458-475.
27
povos centro-africanos, existia um referencial mais amplo e profundo a todas elas, o “complexo
objetivos considerados favoráveis e bons são integrantes da ordem natural das coisas. Esses valores
positivados pela cosmologia estão à saúde, a fecundidade, a segurança física, o equilíbrio, o poder, o
prestígio e a riqueza. O universo é harmônico e tudo que o desequilibra provêm de forças não naturais,
pessoas. A produção do dano pode ser proveniente da intenção inconsciente ou consciente de uma
pessoa de se utilizar certos rituais para atrair forças espirituais malévolas com a finalidade de causar o
mal, representados pela doença, infertilidade, miséria, morte, o negativo tem como causa a “feitiçaria”14.
Todo o conjunto de simbolismo e rituais das práticas religiosas da África Central visa à maximização da
ventura e a prevenção contra a desventura, permitindo uma efetiva proteção para as adversidades do
cotidiano. O equilíbrio harmônico quando ameaçado pela presença de forças negativas, faz com que os
povos se desencantem com os seus simbolismos, quando a comunidade sente que não mais está sendo
protegida da desventura. Esse sentimento coletivo propicia a emergência de novas experiências religiosas
que possam ser mais efetivas na preservação da comunidade. Novos simbolismos e rituais são inseridos
ou agregados para protegê-los da desventura, para tal é necessário que os materiais “estrangeiros”
possuam características em comum com aqueles a que estão em substituição. Esses novos materiais
agregados ou recriados tornam-se ícones religiosos em torno dos quais os movimentos de renovação
14
CRAEMER, Vansina e Fox .Op. Cit., p. 461.
28
1.1 Cosmogonia africana.
A cosmogonia africana é harmônica, o universo é coeso e tudo que o desequilibra é visto como
sobrenatural sortilégio mágico, produto de feitiçaria. O sagrado permeia de tal modo todos os setores da
vida africana, que se torna impossível realizar uma distinção formal entre o sagrado e o secular, entre o
espiritual e o material nas atividades do cotidiano. Uma força, poder ou energia permeia tudo. Como diz
Tempels15, o valor supremo é “a vida, a força, viver forte ou força vital”. Essa força não é
exclusivamente física ou corporal e sim uma força do ser total, sendo que sua expressão inclui os
progressos de ordem material e o prestígio social. Felicidade é possuir muita força e infelicidade é estar
privado dela. Toda doença, flagelo, fracasso e adversidade são expressões da ausência de força. Os
símbolos e rituais dotam a comunidade de uma força e proteção especial frente a adversidade da vida
Como os Banto só entendem a sua religião enquanto vivida e atuante em todos os momentos individuais
e sociais, a sua existência deve ser uma comunhão e uma entrega ativa. Para eles, a religião tradicional
concretiza-se quando o indivíduo e a comunidade comunicam com o mundo invisível e com o visível
através dos ritos, orações, sacrifícios, festas, ritos de iniciação, caça aos feiticeiros. Somente assim, há a
harmonia e o equilíbrio para a comunidade. Mas os flagelos, as mazelas estão sempre rondando as
15
TEMPELS, R.P.P. La philosophie bantoue. Paris, Colléction Présence Africaine, 1949. Também para o ocidente
existia essa mesma concepção, nas camadas populares até o fim do século XIX.
16
Ver CRAEMER, Vansina e Fox, op. cit., p.468. “Vida boa” para os banto é representada pela presença da
harmonia e equilíbrio, através de uma força espiritual, mágica.
29
também expressam pela magia a sua vivência espiritual. Religião e magia interpenetram-se e são
inseparáveis. A magia é religiosa, melhor, a Religião Tradicional, pela sua “dogmática”, exige a acção
permanente da magia”17. A magia tenta explicar a existência do mal no mundo, consegue atenuá-lo,
mas, paradoxalmente, agrava e facilita a sua difusão. Assim, a magia quando soluciona o mal
desempenha um papel psicológico e social, imprescindível, tendo que estar em constante atividade. Ela
surge como realidade única, embora ambivalente, sendo idênticos os processos de todas as ações mágicas
A prática do mal era apenas um componente do que deve ser entendido como um pacote de forças
religiosas ocultas. Em muitas sociedades centro-africanas não havia nenhum diferencial que distinguisse
os bons rituais dos rituais malévolos. Os rituais e simbolismos empregados eram os mesmos para o bem
e o mal, a diferença estava na finalidade ao qual se destinava18. As forças poderiam ser usadas para uma
variedade de atuações positivas, adivinhações, curas, fertilidade, auxílio com o gado, colheitas, sempre
visando restabelecer a harmonia, seja no plano individualizado ou para um grupo. Por outro lado, essas
mesmas forças poderiam ser usadas nas práticas de danos individuais ou coletivos. Para eles, se um
adivinho ou curandeiro tinha o poder de ver espíritos maus e expulsá-los com seus poderes, então
certamente estava habilitado a controlar formas similares do mal para os próprios propósitos nefastos
dele19. Esta circulariedade entre o mágico, a divindade e a reparação, demonstra a extraordinária natureza
17
ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. Cultura tradicional Banto. Luanda: Âncora, 1974, p. 544.
18
CF. EVANS-PRITCHARD, Op. Cit., p. 462. O autor analisa a feitiçaria como um sistema cognitivo capaz de
explicar o infortúnio.
19
SWEET, James H.. Recreating Africa: culture, Kinship, and religion in African-Portuguese World, 1441-1770.
London: The University of North Caroline Press, 2003, p. 61.
30
ambígua do discurso religioso nas sociedades africanas, estando presente à mesma dicotomia no
catolicismo.
infortúnio temporário, especialmente causado pela força humana oculta, através do binômio ventura
/desventura. Aqueles que usavam suas forças mágicas para causar danos a outros para benefícios
próprios, ao invés do melhoramento de sua comunidade, eram considerados malévolos. Um dos aspectos
de malevolência era um crescimento social e/ou econômico desigual entre o mágico e todos ou demais da
comunidade. Assim, dois dos sistemas clássicos da malevolência religiosa era o injusto sofrimento das
vítimas e a rápida e inexplicável prosperidade social e econômica por parte dos atormentadores
espirituais. Na perspectiva africana, escravidão e exploração econômica dos europeus preencheram esses
critérios, mas o impacto dessas fortes e desconhecidas novas formas de malevolência transformaram
Antes do contato com os europeus, os africanos viam a malevolência religiosa através de um prisma
micropolítico que permitia um antídoto religioso familiar. Bondade e maldade eram parte de uma mesma
continuidade cosmológica, e ambos poderiam ser controlados com rituais e práticas religiosas familiares.
Os europeus introduziram uma nova forma de malevolência social e econômica - o comércio de escravos
transatlântico, que transformou esse equilíbrio cosmológico. Guerras, doenças, migração forçada, e
outros infortúnios instigados pelo desejo europeu do trabalho escravo, tudo era entendido como parte dos
31
Para Sweet20, muitas sociedades da costa central africana acreditavam que os europeus levavam os
africanos escravizados para “comê-los”, e aproveitar suas “partes”, transformando-os em produtos que
seriam retornados ao comércio na África. Acreditavam que o óleo comestível era obtido da gordura dos
corpos africanos, os vinhos vermelhos eram o sangue, os queijos europeus eram os cérebros de suas
vítimas. A pólvora era as cinzas dos ossos dos africanos escravizados que eram queimados pelos seus
algozes. Este entendimento era embasado na cosmologia das sociedades da costa central africana, onde a
Kalunga21 significava a travessia do mundo real para o mundo espiritual, a linha tênue de comunicação
entre os dois mundos, podendo ser representado por um “espelho d’água”, uma superfície que refletisse
imagens, e mais tarde a palavra foi estendida ao oceano. Atravessar a Kalunga em navios negreiros,
representava uma morte prematura, nas mãos dos “feiticeiros brancos”, que alimentavam-se dos
corpos negros na terra dos mortos, as Américas. Para os bacongos, a cor branca simbolizava a morte, os
homens eram “pretos” mas seus espíritos “brancos”. Como resultado desta crença, do tráfico de africanos
escravizados e da associação do oceano com a Kalunga, foi fácil para os bacongos identificar a terra dos
brancos com a dos mortos. Com esse entendimento sobre a malevolência e prosperidade dos europeus,
demonstra quão profundamente o mercado escravo impactou o discurso africano. Para eles, os
europeus usavam de “feitiçaria”, forças ocultas, para escravizar e comercializar os corpos negros para o
próprio enriquecimento.
ser entendida como a mais mortal forma de feitiçaria, que necessitava de um poderoso “contra ataque”
20
SWEET, Op. Cit., p. 162.
21
Para os Banto, se a Kalunga era a linha divisória entre os dois mundos, real e espiritual, o que estava do outro
lado dela, pertencia a terra dos mortos – as Américas. Atravessá-lo significava o ingresso no outro mundo, o
espiritual. Ver SLENES, Op. Cit., pp. 53-54, onde o autor analisa a etimologia e a simbologia da palavra Kalunga.
32
religioso com o objetivo de ser libertado da maldição. Esta postura defensiva por parte dos africanos
escravizados direcionou-os para frente da categoria de magia do mundo ocidental. Por outro lado, os
portugueses já conviviam com um discurso sobre feitiçaria, antes de entrarem em contato com as
sociedades africanas, o que eles fizeram, foi transferir para o contexto africano a história estabelecida
sobre feitiçaria e feiticismo. Por falta de uma literatura indígena sobre a feitiçaria, a igreja portuguesa
aderiu ao amplo contorno da construção européia da feitiçaria. Era amplamente entendido que Deus
usava feitiço e o demônio para punir pecadores e testar a fé humana. O uso da força diabólica para contra
atacar a própria força do diabo foi proibido pela igreja, porque isto necessariamente significava invocar o
denômio. Apenas a prece e a fé em Deus poderiam contra atacar o poder diabólico de maneira segura e
cristã.
Antes do século XVII, os teólogos inquisitoriais portugueses começaram a comentar mais largamente
sobre a origem da feitiçaria e pactos com o diabo. Na visão de filósofos portugueses sobre a feitiçaria,
rituais, orações e símbolos usados para contra atacar o mal eram todos evidências de pacto com o
denômio. Mesmo os rituais que envolviam preces cristãs e o uso de objetos sagrados eram suspeitos. Na
maioria das vezes, eram utilizados por pessoas “profanas” contrárias a santidade das palavras ou aos
objetos utilizados. Para os portugueses essas pessoas eram todas consideradas como ignorantes, exóticas,
primitivas. Já durante o século XVII, o entendimento português sobre feitiçaria foi fundindo-se com o
surgimento do discurso de classe social, uma classe literata, educada e “civilizada”, tentando distanciar-se
das massas populares, que eram declaradas mergulhadas no mundo vulgar da superstição e da magia. O
clero, juízes, médicos e a maioria da elite, acreditavam na força do denômio, manipuladas através dos
Durante o século XVII, duas religiões diversas coabitam na cristandade européia; a dos
teólogos e a dos crentes – apesar dos esforços redobrados das elites para quebrar a cultura
arcaizante que sobrevivia no seio das massas cristianizadas havia séculos. A concepção
33
mágica do mundo atravessava as classes sociais, comuns ao gentil-homem e ao burguês,
aos homens das aldeias e ao dos campos.22 (Grifo nosso)
Eles não acreditavam que a feitiçaria fosse uma ameaça real para a ordem e a razão cristã. A maioria dos
feiticeiros portugueses atuava sozinho e não em grupos. O alarme que contagiou outros países europeus
não foi estendido a Portugal23. Acreditavam que pelo uso dos recursos de Deus, batismo, confissão,
comunhão, orações, e exorcismo, feiticeiros individuais poderiam ser combatidos. Essas crenças foram
estendidas ao Brasil, desde a época da colônia, quando os feiticeiros portugueses encontraram aqui com
as práticas religiosas africanas. O diferencial entre Brasil e Portugal era que os feiticeiros africanos
estavam presentes em grande número no Brasil e eram capazes de usar sua força espiritual contra seus
senhores “fisicamente”, ameaçando a fé católica. Todas as práticas religiosas africanas eram suspeitas de
Sweet24 nos alerta que, para a maioria das sociedades da África central, a escravidão era compreendida
como o resultado da maldade religiosa de Portugal, contrária aos mais poderosos antídotos religiosos
africanos, que eram reconhecidos e temidos pelos portugueses. Na tentativa de extinguir ou minimizar as
religiosas para contra atacar o que eles acreditavam ser “feiticeiros brancos”, causadores de sortilégios
mágicos, de infortúnios.
22
MELLO E SOUZA, Op. Cit., p. 88.
23
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”, 1600/1774. Lisboa: Notícias Editorial,
1998, p.104.
24
SWEET, Op. Cit., 163.
34
Um angola liberto em Salvador, em 1646, chamado Domingos Umbata25, foi denunciado por ajudar duas
“pretas” a melhorar seus relacionamentos com suas senhoras. As senhoras eram perversas e imputavam
as “pretas” muitos castigos. Para proteger as escravas da fúria de suas senhoras, Domingos fazia com que
se banhassem em uma bacia de água que continha folhas esmagadas, um guizo e um dente de jaguar, que
deveria ter trazido do continente africano ou comprado de algum outro africano recém chegado.
Presumivelmente, o banho as protegia das agruras do cativeiro, do poder do “feiticeiro branco” que
poderia usar de suas forças para trazer algum infortúnio as “negras”. Os africanos escravizados
utilizavam ritos e ícones de materiais da religião de matriz africana como forma de se proteger nas
relações escravas, muitas vezes, como forma preventiva aos ataques dos seus senhores.
Lembrando que na concepção africana, os europeus eram considerados “feiticeiros brancos”, assim, os
mais poderosos antídotos religiosos africanos eram usados para contra atacar, pretendiam mutilar ou
matar os “brancos” e suas famílias. Não só os africanos usaram suas forças religiosas para expressar
mágoas contra os brancos, mas quase toda a população negra. A recusa de alguns brancos em acreditar
entre veneno e feitiço, pela crença popular. Muitos ingredientes usados nas misturas das “feitiçarias”
pelos africanos escravizados ou forros, eram peçonhas, venenos, misturas de raízes, ervas. Os ritos e
simbolismos religiosos de matrizes africanas eram considerados pelos europeus como demoníacos.
Envenenamentos eram incluídos dentro das “práticas da magia”, sendo apenas, um outro lado dos
feitiços africanos, pela transposição do discurso europeu da “feitiçaria” para as “práticas mágicas
africanas”. Pelas mesmas razões de dominação e com formas bem parecidas e semelhantes, um “criado”
na Europa que pretendesse se vingar de seu senhor usando veneno seria atribuído a esse ingrediente
25
ANTT, Inquisição de Lisboa, cadernos do Promotor, nº 29, livro, 228, pp. 4-4v.
35
Na compreensão africana, venenos portugueses eram substâncias comuns carregadas de simbolismos
sagrados, acrescidos da “força mágica” para agir contra outras formas de feitiçaria ou malevolência. As
tentativas dos africanos escravizados de exterminar com os seus senhores26 através de venenos eram
respostas africanas aos feitiços dos senhores eram um “contra feitiço” mais poderoso. Os mesmos
ingredientes usados nas fórmulas para curar doenças ou infortúnios, eram também, utilizados para
provocar males, sempre carregados de ritos e ícones sagrados. Quase sempre, o resultado era atribuído a
uma deidade e nunca a substância natural, legitimando o “poder” e a “força” no sagrado. O veneno
transformado em feitiço era uma das formas de controle africano no discurso entre sagrado e profano em
Portugal e no Brasil, potencializando a “magia africana”. Além de ser uma das importantes formas de
resistência africana na diáspora. Quando o ato de “feitiço” era entre os próprios africanos escravizados
usando forças sagradas, eram sempre mais do que um ataque individual, era também um ataque contra
um “bem” material, atingindo o estado econômico e social de seu senhor, concretizando-se em um ato de
resistência contra o senhor. No Brasil a utilização dos ritos e simbolismos sagrados africanos persistiu
escravizados, foi comum o temor dos seus donos pela destruição de suas “propriedades humanas”,
através do uso de práticas mágico-religiosas, mais complexas e mais divulgadas aqui do que na África.
Entre os vários papéis dos agentes religiosos africanos, estava a figura do adivinho, de real importância
para o equilíbrio harmônico da comunidade africana e soube ser devidamente apropriado pelos senhores
de escravos no Novo Mundo. Realizavam uma variedade de atividades ritualística para invocar os
26
Cf. SWEET, Op. Cit., p. 169.
36
espíritos ancestrais, fazendo a intercomunicação entre o mundo dos vivos e dos além-túmulos (CF. figura
02). Medianeiro entre os dois espaços sagrado e profano o poderia predizer acontecimentos passados e
futuros, descobrir culpados por ilícitos, causas de doenças, curas, descobrir os autores de feitiços.
Atuando na pacificação das sociedades africanas, referentes ao seu equilíbrio e harmonia interna.
Nas sociedades centro-africanas, a magia praticada pelos feiticeiros era utilizada para atacar, “comer” a
vida de outra pessoa, prejudicando-a de diversas formas. O feiticeiro é temido pela comunidade. Atinge
seu poder utilizando os mesmos processos do adivinho. Acreditam que viva na comunidade, mas
ninguém o conhece. Atua às ocultas, realiza as ações mágicas malévolas, não se conhece o seu grau de
poder, nem o local e quando irá lançar o seu feitiço, é uma ação mágica invisível. Espalha um medo
permanente que só o adivinho e o curandeiro podem enfrentar. As práticas mágicas defensivas, utilizadas
protegem contra as forças malévolas. Era lícito castigar aquele que causou o mal. O curandeiro e o
adivinho têm poderes e empregam técnicas semelhantes às do feiticeiro, o diferencial reside no propósito
em que são empregados os ritos mágicos. O adivinho e o curandeiro são partes integrantes do universo
mágico-religioso dos bacongos. O adivinho é chamado de “ngambi”27, aquele que busca o mistério, a
tentativa para compreender os dois mundos uma relação com o sagrado, para realização dos rituais de
adivinhação ele faz uso do “ngombo”28, um cesto repleto de materiais diversos, portadores de saberes
mágicos ( Cf. figura 03). Por intermédio do “ngambi”, o homem entra em relação com as forças míticas
e espirituais da natureza. Elas permanecem sempre a disposições dos homens como meio de busca, como
27
CF. ALTUNA, Op. Cit., p. 566.
28
Ngombo - um cesto tendo diversos objetos que favorecem os métodos de adivinhação para os Bantu. MELLO E
SOUZA, Marina. África e Brasil africano São Paulo: Ática, 2006, Op. Cit., p. 44.
37
imediatas na vida. Para Altuna, muitas vezes, o adivinho impõe-se ao grupo, pela sua “força” e prestígio,
“a sociedade considera-os como “pessoas sagradas”, pelo facto de terem conseguido uma potência vital
extraordinária que os separa e diferencia dos outros. Encontram-se imersos, de uma maneira especial,
no mundo invisível”29.
Para Evans-Pritchard, o adivinho Azande é uma pessoa que conhece os segredos das ervas e de suas
ervas e comidas ingeridas pelo adivinho Zande lhe dará o poder de ver as bruxarias, quem as produziu e
como exterminá-las. O adivinho Zande exerce poderes sobrenaturais exclusivamente porque conhece as
drogas certas e porque as comeu da maneira certa. Suas profecias derivam da mágica que traz dentro de
si; sua inspiração não brota do Ser Supremo, nem dos espíritos dos mortos30. O autor ressalta a
importância do adivinho para o equilíbrio de uma comunidade. Ele é considerado como um de seus
“oráculos”, suas revelações e profecias são de valor idêntico às respostas obtidas pelos diversos oráculos,
ele pode funcionar tanto como adivinho como curador para as “bruxarias” que descobre:
O adivinho Azande é um mágico, enquanto adivinha, indica os bruxos; como mágico, ataca-
os. Mas é basicamente um adivinho...pode também agir como curador. Em ambos os papéis,
sua função é a mesma – combater a bruxaria. Enquanto adivinho, ele descobre onde está a
bruxaria, e como curador ele repara os danos causados por ela.31
Na intercomunicação entre os dois mundos, a revelação deveria ser legitimada pela sociedade. O
adivinho era um integrante especial da comunidade, respeitado e detentor de prestígio e poder. Sua
atuação era vista, geralmente, como “um serviço social”. Atuava como ponto principal para ter uma
29
ALTUNA, Op. Cit., p. 567.
30
EVANS-PRITCHARD, Op. Cit., p. 163.
31
EVANS-PRITCHARD, Op. Cit., p. 108. Os adivinhos nesta condição são conhecidos pela palavra ira avure,
enquanto como curador são conhecidos como binza, mas os termos são intercambiáveis na designação de suas
funções adivinhatórias.
38
sociedade equilibrada e pacífica. Com a transformação interna em África a ruptura social provocada pelo
sistema escravista reelaborou as funções do adivinho, para melhor adaptação a “nova identidade”
escrava, buscando explicações no mundo espiritual para escravidão. Nas comunidades escravas nascidas
africanos escravizados com essas especialidades, para adivinhar quem houvesse cometido algum ilícito
contra eles, fossem roubos, uso da feitiçaria ou fugas. Por que os rituais de adivinhação ressoavam com a
maioria das tradições culturais dos escravos, quase sempre aceitas como válidas, mesmo quando os
indicados do mal eram os próprios escravos. Isto reforçou o mecanismo religioso/judicial da instituição
escravista, auxiliando o senhor a determinar a culpabilidade dos “rebeldes” contra a escravidão. Mas era
também uma indicação da classe senhorial de apropriação32 de uma instituição africana de controle
social.
A adivinhação “adaptou-se” as novas mudanças nas relações sociais, na colônia portuguesa e na África,
“construindo” um arcabouço entre os interesses dos senhores e sua aceitação pela comunidade africana.
Na Bahia, em 1685, André Gomes de Medina33 havia perdido 15 escravos vítimas de “feitiçaria”, a
acusação recaiu sobre um negro forro Simão Congo, ex-escravo de André. Em busca de indícios que
32
SWEET, Op. Cit.,p.141. Outro exemplo de apropriação africana pelos portugueses é o mecanismo de mocano,
citado por FERREIRA, Roquinaldo, “Tranforming Atlantic salving: trade, warfare and territoriae control in
Angola, 1650-1800”. PHD – Dissertion, Ucla, 2003. . Este mecanismo era utilizado por africanos livres em Angola,
quando são presos injustamente e vendidos como escravos. Os injustiçados interpõem um recurso, um pedido a
autoridade colonial, alegando suas razões e solicitando à sua intervenção. Foi incorporado pelos Governadores
Gerais de Angola, no século XVII.
33
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo nº 8464.
39
servissem para comprovar a acusação, uma única prova foi a encontrada: a descoberta de uma panela
com ervas, unhas, dentes e pêlos de vários animais, na casa do “suspeito”. Impossível saber quais eram as
especificidades dos ingredientes encontrados na dita panela. O Sr. André chamou uma adivinha, escrava
negra Gracia Conga de outra fazenda, para desvendar o “mistério”. Na propriedade do senhor, a adivinha
preparou certos materiais na presença de todos. Ela ateou fogo em alguns gravetos, colocou sobre eles
um grande pote com água para ferver, com algumas pedras dentro. Todos deveriam retirar uma das
pedras do pote fervendo, somente o culpado sairia queimado. Os presentes fizeram uma roda em volta do
pote fervendo, Gracia dançou em torno dele, no sentido anti-horário, a dança dos adivinhos – “dançar
avure”, cantando e dizendo palavras, provavelmente, em seu idioma de origem. Cada um por sua vez, foi
colocando uma das mãos dentro do pote com água fervendo e retirando uma das pedras, nos escravos,
forros e brancos, apenas pequenas e leves queimaduras aconteceram. O forro Simão Congo ao retirar sua
mão e braço sofreu várias queimaduras graves. O ritual de adivinhação realizado pela escrava Gracia
Conga confirmou a suspeita já existente, de que o ex-escravo seria o culpado34. Ele defendeu-se
alegando que na panela encontrada, havia apenas “preparados” medicinais contra mordida de cobra.
Alegou também, que a acusação dos escravos dirigida a ele, era por ciúme pela condição de ser livre. A
liberdade foi-lhe concebida pela filha de André Gomes de Medina, tornando-se um lavrador de madeira.
A adivinhação, simplesmente, confirmou a culpa de quem já era considerado culpado, atuando como um
mecanismo religioso/judicial. O resultado foi satisfatório para ambos os lados envolvidos, o culpado era
alguém de fora da comunidade escrava, reestabelecendo o equilíbrio e reforçando o ritual como uma
34
CAVAZZ, Padre Giovanni Antonio. Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Lisboa:
Notícias, 1965, p. 109. Os rituais praticados pela africana escravizada eram largamente utilizados na África Central,
com alterações entre o continente africano e o reproduzido no Brasil. O autor descreve quando um feiticeiro coloca
um pote com água para ferver, dentro uma pedra. Os acusados deverão retirar a pedra com suas mãos, aquele que não
sair com queimaduras será aclamado inocente, dando-se o caso por encerrado. Quem se queimasse seria julgado
culpado. O ritual é realizado na presença da comunidade, mas para sua legitimação deve ser confirmado pelos
oráculos, o que não acontecia no Brasil. Existem outros relatos com rituais iguais na África, conhecido como a
provação de jaji. Sobre os ritos dos adivinhos ver EVANS-PRITCHARD, Op. Cit., 1978, cap. V, Os adivinhos,
pp.107-132.
40
solução favorável para todos. A liberdade e ascensão do negro forro Simão, eram vistos como resultados
malevolência religiosa, já examinada, aqueles que usavam “forças mágicas” para benefícios próprios, ao
escravo para um liberto economicamente auto-suficiente não era explicável por forças naturais, humanas
A apropriação pelos portugueses da instituição de adivinhação africana pode ser compreendida como
uma importante concessão de força judicial, implicando na diminuição das formas das estruturas judiciais
dos senhores. Sendo a instituição judicial legal da colônia, um tanto quanto precária, principalmente em
áreas rurais, uma parte considerável de senhores buscou legitimar este mecanismo que fez sua travessia
pelo Atlântico em uma forma aproximada a sua estrutura original, adaptando-se as novas
condições do sistema escravista, o que reforça a teoria de crioulização35 da diáspora africana nas
julgamento, os rituais poderiam ser vistos como simplesmente, formas de justiça africana, isentando os
Um outro ponto a ser observado nesse mecanismo, era alguns raros casos, em que os brancos aceitavam
as culpas dos ilícitos de seus próprios parentes e amigos. Antonio da Guiné36, escravo na Bahia,
procurado para adivinhar quem havia roubado dinheiro e uma cruz de prata do seu senhor, utilizou
35
Na teoria da crioulização, os africanos escravizados empregaram, padronizaram e transformou materiais culturais
africanos em novas tradições no Novo Mundo, para dar coerência, sentido e um certo grau de autonomia a sua nova
condição.
36
ANTT, Inquisição de Lisboa, cadernos do Promotor, livro 784, fls. 113-114.
41
uma bacia com água para as práticas da adivinhação. Não ficou esclarecida nos documentos, a real
origem africana de Antonio. Presumindo que seja da África central, devido à crença de que a linha
divisória entre os dois mundos, o material e o dos espíritos, era através de um espelho d’água. Um
orientações, respostas para as dificuldades de vida real. Antonio olhando a água, proferindo orações,
presumivelmente, em algum idioma africano, obteve a resposta esperada, o roubo fora efetuado pelo filho
mais novo do seu “dono”, revelando também, onde estava escondido, dentro de uma caixa em baixo de
uma das camas da casa. Achada a caixa, dentro estava o dinheiro e a cruz, no lugar indicado. O resultado
foi aceito pelo seu senhor, mas infelizmente, os documentos silenciaram sobre quais foram às atitudes da
punição pelo roubo. Porém, podemos nos atrever a supor, que o senhor não imaginaria que o responsável
adivinhadores africanos para desempenharem suas atividades para eles, os africanos eram capazes de
transformar a força religiosa em resistência à sua escravização, conseguindo prestígio não somente junto
a sua comunidade, mas também entre outras pessoas que acreditavam em suas práticas mágico-religiosas.
1.1.2 O Curandeiro
Nas sociedades africanas, em geral, o curandeiro é muito prestigiado pelo seu grupo, ele detêm os
segredos e práticas da “medicina”, conhecedor das ervas, raízes, banhos, vomitórios e ritos religiosos,
tem uma causalidade mística, uma mazela e só magicamente pode ser curada. O aprendizado para ser um
curandeiro é realizado por uma iniciação, por outro curandeiro, para que sofra uma mutação quantitativa
que lhe capacite para mergulhar na participação vital com clareza e segurança. É necessário que o
42
curandeiro tenha a presença de um antepassado, que se apresente durante a sua iniciação. O
conhecimento das causas das doenças e o tratamento mágico exigem ritos e simbolismos sagrados.
O conceito de doença tem que ser entendido dentro da cosmologia baconga. É sempre provocado por um
agente mágico, por uma força que prejudica. Ela está contida dentro do complexo cultural
ventura/desventura, precisamente na desventura. As doenças não eram coisas naturais, entretanto não
rejeitavam aquelas que provinham de tal causa, mordidas de bichos, envenenamentos, desastres, etc, mas
da culpabilidade do doente. Ela não é apenas conseqüência, é também sinal evidente de culpabilidade. O
curandeiro indica o “remédio”, nesses casos exigindo que o doente procure métodos de purificações,
quase sempre públicos, como confissões, lavagens, sacrifícios, ritos que possam libertar da culpa e
acalmar o “ofendido”, que normalmente é um espírito malévolo. A doença também pode ter a sua origem
pela introdução de objetos ou elementos estranhos dentro do corpo do doente, causados por habitantes do
mundo dos mortos, espíritos maus, ou por ações mágicas dos feiticeiros que podem atuar à distância e pô-
No reino dos ancestrais, nem todos os espíritos dos mortos têm a sua entrada garantida. Os anciãos
ficavam à entrada do reino para avaliarem quem teria o direito de entrar, ficando restrita aos maus
espíritos. Os proscritos ficavam vagando pelo mundo dos vivos, assustando-os e causando malefícios,
doenças, mortes, infortúnios, tornavam-se intermediários dos feiticeiros, eram utilizados por eles na
prática de algum mal. Os bacongos37 aprisionavam esses espíritos no interior de uma estatueta de madeira
37
Minkisi é palavra plural de nkisi, objetos confeccionados que se tornam sagrados. Ver SOARES, Márcio de Souza.
“A doença e a cura – saberes médicos e cultura popular na corte imperial”. Dissertação de Mestrado em História
Social, UFF, mimeo., 1999, p. 170; ver também Mello e Souza, op. cit., 65.
43
ou barro, os minkisi podiam ser manipulados por um homem comum ou pelos feiticeiros nas práticas
mágicas malévolas. Eles eram largamente utilizados na África central, principalmente pelos “sacerdotes”,
os nganga38.
A mais importante tarefa do curandeiro é identificar a doença A sua etiologia pode ser muito variada
Descobrir o que está afligindo uma pessoa é para ela e para a comunidade um indício de retorno a
fundamental são os ritos usados nas práticas mágicas, estes surtirão os efeitos para atacar e extirpar o
Durante a diagnose, o curandeiro comporta-se como um adivinho. Por isso dizíamos que
estas duas especialidades costumam encontrar-se reunidas no mesmo indivíduo. Os métodos
mais frequentes consistem no lançamento das entranhas dos animais, observação dos
transes, consulta aos feitiços protectores dos animais da sua arte, espalhar cinzas, flores ou
folhas sobre a água, conhecer, através de hábeis interrogatórios, as faltas cometidas pelos
clientes e os tabus que foram transgredidos e descobrir o seu comportamento social e
religioso.39 (grifo nosso)
O curandeiro e o adivinho são indispensáveis a harmonia das sociedades e muitas vezes as suas funções
são intercambiáveis, embora exista um espaço social para cada um deles, na prática estão intimamente
ligados. Na verdade, atua como adivinho e como curandeiro. Para Altuna40, o curandeiro é procurado
quando se conhece efeitos e causas da doença, o adivinho para efeitos conhecidos e causas
desconhecidas. No Brasil, muito mais do que na África, o adivinho e o curandeiro eram reduzidos a uma
busca pelo restabelecimento do corpo doente, fosse pelo malefício do espírito ou do corpo.
38
Os nganga eram líderes religiosos, especialistas que prestavam serviços privados e trabalhavam na confecção dos
minkisi.
39
ALTUNA, Op. Cit., p. 577.
40
ALTUNA, Op. Cit., p. 571.
44
O africano escravizado no Brasil, Manoel Angola, um escravo de ganho41 na Corte, em meados de 1868,
de propriedade de Sr. Luis Cortes, foi preso pelo delegado do 2ª Distrito de Sant’Anna denunciado pelo
crime de adivinhação, dar fortuna e prometer curar doenças e feitiços. Foi recolhido a cadeia em custódia
e junto com ele alguns objetos que usava em suas práticas mágicas. A denúncia foi realizada por uma das
pessoas que estivera sobre seus cuidados de curandeiro, uma senhorinha portuguesa “pobre”, que vivia
como costureira. No seu testemunho de acusação, ela alega que o procurou por “conta” de uma ferida na
perna direita que não cicatrizava nunca, provocando dores constantes e terríveis. A Madalena, esse era
seu nome, fora-lhe indicado esse “escravo” que era “poderoso na adivinhação dos males e sabia dos
segredos das ervas para as curas que não queriam curar”. Para saber o que causou aquele mal, o africano
escravizado Manoel Angola pegou uns “ossinhos”, que pareciam ser de galinha, fez uma roda no chão de
terra batida e os jogou com as duas mãos juntas na terra. Disse algumas palavras estranhas, parecia estar
conversando com alguém, fazia perguntas e tornava a jogar os “ossinhos”. Não satisfeito, pegou um pó
de cor cinza, esfregou nas mãos e juntou alguns grãos grandes, que Madalena não soube explicar o que
eram, procedendo da mesma forma que fez com os “ossinhos”. Com o auxílio de uma cruz com a
imagem do Cristo encravado nela, uma vela acesa e rezando uma oração que, segundo a testemunha
parecia a “Ave-Maria”, o curandeiro rezou a perna doente. Levantou-se e disse para Madalena que sabia
qual era a causa do aparecimento da ferida, a inveja por ela ter boas freguesas para consertos de roupas.
41
AN (RJ), Série justiça – polícia, escravos e moedas falsas, IJ6 193, ano 1868. Escravos de ganho eram os escravos
que passavam os dias trabalhando fora da casa de seu dono, fazendo serviços para terceiros ou alugados a estes. Ao
final do dia ou da semana tinha que entregar o “jornal”, certo quantia em dinheiro correspondente ao seu trabalho
externo. Era comum nos periódicos o oferecimento de africanos escravizados para serem alugados. No caso de
trabalhos recentes realizados no Brasil sobre casos de acusação de feitiçaria e de curandeirismo relacionados às
religiões de matriz africana, ver CONTINS, Márcia. “O caso da Pomba Gira: reflexões sobre crime, possessão e
imagem feminina”. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional, PPGAS/
UFRJ (1983) e MAGGIE, Yvonne (1992). “Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional. p.292”.
45
O feitiço fez com que ela comesse carne de porco e “apareceu à ferida” que não fechava42. Ele lhe deu
alguns papeizinhos com uns pós dentro que ela tinha que tomar misturados com água, esmagar umas
ervas para “besuntar” a perna, e não comer carne de porco para não alimentar o espírito malévolo que
estava causando o mal. Algum tempo depois, a ferida na perna de Madalena estava sarada. Ela pagou
com carne de porco e outros gêneros alimentícios os serviços do curandeiro, a fim de que pudesse
“acalmar” também o espírito malévolo. Os curandeiros recebiam por seus serviços pagamento em
dinheiro e muitas vezes em gêneros alimentícios. Os ritos e simbolismos utilizados pelo africano
escravizado Manoel Angola e as proximidades com as práticas dos curandeiros Banto, descritas por
Altuna, nos faz supor, que de alguma forma, ele teve contato com as formas de curas provenientes da
África centro-ocidental, agregando materiais do catolicismo popular negro, numa outra prática de crença,
ressemantizando-as. Nosso curandeiro “conversou” com os invisíveis, espíritos talvez ancestrais, mas não
houve possessão. Utilizou a adivinhação para chegar a causa da doença e os remédios a serem usados. A
ferida foi provocada por inveja, um infortúnio, um desequilíbrio que fez com a doente tivesse vontade de
comer carne de porco. Vontade provocada pela “força” de um espírito malévolo para que a ferida fosse
alimentada e não curasse. Realmente, sabemos que naquela época era comum o consumo de grandes
quantidades de carne de porco e nem sempre em boas condições de higiene. Manoel Angola recomenda
“remédios” e abstenção da carne de porco, Madalena se “livra” da ferida e agradece por estar livre de ser
atormentada por espíritos malévolos que gostavam de "comer” carne de porco, através de sua ferida. Não
foi Madalena quem o acusou, ela foi tentar testemunhar em seu favor. Não consta nos documentos quem
fez a denúncia e nem qual o rumo que tomou a prisão, somente que ele foi recolhido à cadeia em
42
AN (RJ), Op. Cit., pp. 4-5, testemunho da costureira portuguesa Madalena.
46
1.2 Catolicismo “à moda” centro-africana
O oceano, a Kalunga na cosmologia da África centro-ocidental, era domínio do além, pertencente a terra
dos mortos. Uma “estrada” para travessia ao mundo dos espíritos. Acreditavam que os corpos negros
teriam almas brancas, espíritos albinos. Com a chegada dos portugueses no litoral da África, vindos pelo
mar, os autóctones entenderam que eles chegavam da terra dos mortos, primeiro por virem através da
Kalunga e por serem semelhantes aos mortos – brancos, logo incluídos no sagrado. Na sua cosmologia,
aos mortos deviam homenagens, presentes, oferendas e obediência, podendo estes conferir alguns de seus
poderes aos vivos. Os utensílios trazidos pelos portugueses através da Kalunga, objetos nunca vistos,
despertaram grande interesse para os africanos. Os portugueses eram “brancos”, chegados pelo mar,
detentores de novos e eficazes “objetos poderosos” e foram, então, considerados “feiticeiros brancos”.
Os chefes africanos teriam interpretado os rituais oferecidos como uma nova versão do culto que lhes era
familiar.
Grande foi o impacto do catolicismo na vida dos centro-africanos e como eles transformaram a igreja
católica, colocando uma marca africana na vida religiosa nas colônias Atlânticas portuguesas. Muitos
obstáculos contribuíram para conversão católica, como e principalmente, a diferença entre as culturas
religiosas do Ocidente e dos panteões africanos e o não domínio, de modo satisfatório, das línguas
faladas, impossibilitando a tradução correta dos ritos e simbolismos do catolicismo, por faltarem
foi longo e desigual. No reino dos bacongos, começou pelas elites, operando paralelamente ao
catolicismo os materiais da religião tradicional africana, que eram “misturados” naturalmente por eles;
43
SWEET, Op. Cit., p.197.
47
não conseguiam compreender corretamente, os dogmas cristãos. Os centro-africanos não entendiam que
somente “convertidos” teriam o “direito” de suas almas serem salvas após as mortes – a salvação eterna
prometida pelos missionários católicos, caso contrário, seriam integrantes do “inferno”. A linha tênue
integrando seus universos cosmológicos. Com o tempo, a crença católica e suas práticas espalharam-se
entre a população, havendo “convertidos” até nas pequenas vilas do reino. A profundidade da
compreensão de ser católico permanecia obscura, a nível superficial. A cosmologia dos bacongos e dos
católicos eram muito diferentes, como resultantes, muitos deles viam o catolicismo através de sua própria
visão cultural. Foi incapaz de remover por completo as tradições religiosas locais, do que resultou um
Os ritos católicos foram adaptados numa tentativa de aproximação da cosmologia baconga. Alguns
rituais foram mais facilmente integrados a tradição cultural local, por terem correspondentes
cosmológicos. A confissão foi um desses ritos aceitos, era integrante do contexto cultural centro-africano.
O rito confessional era um dos procedimentos de cura utilizados pelos curandeiros, quando a doença era
advinda da culpabilidade do doente, por erro ritual ou não cumprimento de algum dever moral religioso.
O doente deveria se confessar em público, reconhecendo a sua culpa e aplacando a “ira” do ofendido, que
quase sempre, era um espírito ou um antepassado. Com a inserção dos ritos católicos, a confissão pública
realizada na presença da comunidade e indicada como “remédio” pelo curandeiro ou adivinho, foi
reinterpretada. O desequilíbrio provocado pelo “pecado” poderia gerar doenças. Para se livrarem de suas
culpas, confessar-se-iam com os padres e não mais na presença da comunidade, mas na presença de Deus
e de sua Corte Celestial, os Santos, Arcanjos e Serafins. A confissão continuava sendo interpretada pelos
bacongos como uma das formas de “remédio” para um infortúnio ou mazela e restabelecimento da
44
SWEET, Op. Cit., p.194.
48
harmonia. O diferencial era que o público estava presente nas confissões, fosse constituído pela
Nos primeiros tempos da diáspora africana, um grande número de africanos vindo da África centro-
ocidental chegava ao Brasil batizados. O entendimento de sua conversão era restrito, não compreendiam
corretamente, os ritos de seu batismo na costa africana. Um outro ponto pragmático era o uso do sal nos
ritos do batismo cristão, para os bacongos, a abstenção do sal conferia poderes especiais como aos dos
volta para a África, após suas mortes, para junto de seus ancestrais. Ao comerem o sal no batismo, os
centro-africanos renunciavam a seus poderes mágicos, expulsando seus demônios, que eram os espíritos
africanos de suas almas e se tornavam filhos do Deus cristão; não possuindo mais o poder, após a morte,
de retorno à terra de origem. Batizados à força, forçados a comer sal em sua iniciação ao mundo cristão
ou em comidas salgadas perdiam a esperança de regresso à África. Assinala Karasch45, que os escravos
que abandonavam a esperança de voltar a África ainda nesta vida, freqüentemente recorriam ao suicídio.
Na cosmologia dos bacongos, os espíritos após a morte “voltavam” para junto de seus antepassados, os
seus familiares, com o suicídio eles acreditavam que retornariam para a África. Os africanos escravizados
que eram embarcados em tumbeiros com destino ao Brasil eram batizados, e não evangelizados. O
batismo era “simbólico” para eles, composto apenas de três itens: era lhes dado um nome cristão, sal para
“comer” e água em sua cabeça, estava consumado o batismo. Eles não compreendiam a importância do
batismo para os dogmas católicos, achava-no simplesmente de ordem material, externa, profana, e não
pertencente ao universo mágico-religioso, ao sagrado, algo que apenas “fazia parte” da triste viagem, de
forma preventiva.
45
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de janeiro, l808-l850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
pp. 345-346.
49
Marina de Mello e Souza46 argumenta que os ritos católicos foram inseridos em universos culturais
encontro das duas religiões, dos seus “sacerdotes” e seguidores, nasceu o que a autora e outros chamam
diferentes cosmologias. Para ela, a conversão dos bacongos foi o resultado da compreensão particular que
Para Thornton, a base comum entre as práticas religiosas africanas dos bacongos e o catolicismo
fruto de inspirações e revelações do mundo espiritual, da intervenção desse mundo na vida dos vivos.
Partindo dessas proximidades, nos é permitido entender o processo de interações, conflitos, apropriações
autor chama a atenção para as revelações espirituais comuns as duas religiões em contato, contribuindo
para o fortalecimento de uma base comum entre ambas. O processo propiciador da “conversão” do
centro-africano ao catolicismo, estava centrado nas revelações recebidas pelos africanos através de suas
próprias tradições mágico-religiosas e validadas pelo clero local. Nzinga Mbamdi48, a rainha dos povos
Imbangala e Matamba, ao manter contatos com os sacerdotes católicos, cogitava permitir a eles,
estabelecer um enclave missionário em Matamba, no século XVII para “converter” o seu povo. Nzinga
46
MELLO E SOUZA, 2002, p. 65.
47
CF. THORNTON, Op. Cit., p.235-271, optei em transcrever o termo utilizado pelo autor.
48
THORNTON, Op. Cit., p.255-259.
50
procurou o conselho de três sacerdotes que lhe serviam de orientadores e possuíam a faculdade de
intercomunicação com os ancestrais. Cada um dos três foi possuído por um antepassado diferente da
rainha e ela fez a pergunta a eles, se deveria ou não aceitar o catolicismo. Cada um dos ancestrais a
aconselhou a “aceitar” o catolicismo, mas não significava que ela e nem o povo, deveriam esquecer dos
cultos aos ancestrais, já que eram eles que a estavam orientando para a solução do dilema. Essas mesmas
revelações foram muitas vezes aceitas por portugueses e pelos nativos, o que serviu para reforçar a
centro-africana com a católica. Também os padres católicos aceitaram as revelações africanas como
válidas, embora houvesse uma resistência por parte do clero em que as revelações dos autóctones
proviam do mundo dos mortos, dos antepassados, o que eles consideravam muitas vezes, parte com o
diabo. O que na mesma época na Europa, seria visto como heresia, parte diabólica, levando o seu ator a
fogueira,
... para que o movimento religioso seja caracterizado enquanto tal, a coletividade deve
aceitar as novas formas religiosas e transmiti-las a outros indivíduos e grupos. Uma nova
religião geralmente se compõe da recombinação de rituais, símbolos, crenças e mitos já
existentes, sendo apenas ocasionalmente incorporado material completamente novo. Um
movimento origina-se num líder, uma figura carismática, cuja inspiração fundamenta-se em
visões recebidas em sonhos ou em estados de possessão controlada. Para ser aceito e
incorporado, o material religioso tem que ser reconhecido, isto é, tem que fazer sentido
segundo os componentes fundamentais da religião tradicional. O objetivo de todos os
movimentos é prevenir a desventura e maximizar a ventura.50
A não abolição das crenças antigas, a pouca dedicação do clero europeu, mais preocupado em traficar
escravos do que em evangelizar e o uso instrumental da religião pelas elites, visto que o cristianismo era
campo receptivo para a introdução de novos materiais religiosos. O Reino do Kongo permaneceu entre
as populações de origem bacongo como uma referência mítica e religiosa que resistiu à decadência
49
THORNTON, Op. Cit., p.264.
50
CRAEMER, Vansina, Fox, (apud, MELLO E SOUZA, 2002, p. 69).
51
política e econômica do reino. O cristianismo continuou a orientar a identidade e as referências
religiosas desta população, mesmo com a diminuição da presença missionária após o século XVIII.
Sigo a interpretação, sintetizada em Thornton, que chama atenção para a tendência equivocada da parte
da missionação do século XIX, mais rígida e menos afeita a sincretismos e combinações51. As definições
possíveis de sincretismo52 ressaltam a construção de uma síntese, ainda que instável entre materiais e
cosmologias de dois sistemas religiosos postos em uma relação qualquer de hierarquia ou desigualdade,
como uma relação entre sistemas dominador e dominado, local e exógeno, particularizado e
universalizante. Esta definição não permite deter-se numa análise precisa de como o sistema considerado
subordinado ou particular retraduz, reelabora e insere a cosmologia dominante no seu próprio universo.
A noção geral de mistura ou mestiçagem também tende, a tomar os sistemas religiosos pré-contato como
sistemas homogêneos elidindo a percepção de pontos de contato entre duas culturas, bem como suas
satisfatoriamente nem da descrição nem da uma análise do fenômeno da “ conversão” dos bacongos,
No Centro africano como em muitas outras sociedades de diversas partes do mundo, o poder real era
vinculado ao poder religioso através de suas ligações com o mundo dos espíritos, mesmo quando o rei
conquistava o seu lugar militarmente. Os tributos pagos aos reis pelo povo, deviam garantir-lhes o direito
51
THORNTON, Op. Cit., p. 63.
52
As definições de sincretismo não caiam no senso comum geral de mistura entre religiões e/ou culturas.
52
da chuva, da fertilidade, da agricultura, da caça, da harmonia coletiva da comunidade. Os reis eram seus
líderes religiosos. Era comum entre as sociedades Banto o poder ser concentrado em torno dos chefes,
que centralizavam o poder religioso, militar e uma rede de solidariedade baseada em laços matrimoniais.
Com a introdução do tráfico transatlântico no continente africano, muitos chefes tiveram seus poderes
garantidos pelo “rico” comércio. Os poderes dos chefes bacongos não eram uma atividade puramente
humana, estavam intimamente ligados ao sagrado, só podendo serem controlados por rituais
apropriados. Tinham a capacidade de verem coisas sobrenaturais, participando ativamente dos atributos
do mundo dos mortos, uma ligação imbricada com o sagrado, com os antepassados. O que era um dos
fatores de fortalecimento do poder real. A conversão das elites congolesas reforçou acentuadamente o
poder real e dos chefes locais. A incorporação dos ritos e simbolismos católicos se deu sempre a partir da
recebidos em outro.
Marina de Mello e Souza esclarece que nos primeiros tempos da cristianização congolesa, cruzes, santos
e ostentáculos cristãos foram chamados de minkisi53 pelos próprios missionários. Buscando equivalências
no universo religioso africano, utilizaram a terminologia local corrente para objetos simbólicos sagrados,
numa tentativa, de vencer os significados e significantes diferenciais entre as duas religiões (Cf. figura
04). Assim, os missionários não chegaram a perceber que para os bacongos, o seu Deus supremo
continuava sendo o mesmo, Nzambi Mpungo, criador e senhor de todas as coisas e os santos
católicos, para eles, eram espíritos da natureza - os ancestrais, incorporando ao panteão africano, o
53
MELLO E SOUZA, Marina. “Santo Antonio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro” ,Revista Tempo,
Rio de Janeiro, v.º 6, nº 11, pp. 171-188, p. 174. A autora na nota n° 7, nos elucida sobre esses objetos sagrados:
“minkisi, objetos confeccionados e utilizados pelos sacerdotes, os nganga, havendo uma variedade de minkisi,
adequados a usos diferentes e compostos de ingredientes específicos de cada um. Tais ingredientes minerais, vegetais
e animais, cujo conjunto é chamado bilongo, definem as qualidades e os poderes dos minkisi nos quais são alojados
espíritos, e aos quais conferem poder, a partir dos rituais da sua combinação, da sua confecção e de seu uso,
fornecendo as possibilidades para os espíritos curem e ajudem as pessoas em situações diversas”.
53
sagrado católico. Junto com os ensinamentos cristãos, os religiosos levaram os objetos necessários à
realização do culto, que foram “agregados” como novos materiais mágico-religiosos inseridos no sistema
cultural do sagrado africano. Altuna define objetos mágicos, que coadunam com os minkisi, mas não os
nomeia:
... um objeto vulgar e inanimado, preparado por um especialista da magia. Este, por meio
de palavras, ritos e gestos, introduz ou proporciona morada a um espírito, a um
antepassado, ou a uma força vital nesse objeto, que, a partir desse momento, fica ao
serviço e sujeito à vontade do indivíduo ou comunidade que o possuí. Está cheio de uma
força vital que o dono pode manipular... o valor, o respeito sagrado e a eficácia provêm
da força que nele habita.54
Esses objetos de magia podiam ser construídos por qualquer pessoa, que lhe fosse recomendado para
solução de uma desventura, porém somente um especialista poderia “dar-lhe vida”, torná-lo “poderoso”:
o adivinho, curandeiro ou o feiticeiro, este o utilizaria para as práticas malévolas. Poderiam ser feitos de
madeira, pedra ou barro, tinham cavidades no centro do ventre, do pescoço ou da cabeça, onde o
especialista colocava pedaços de plantas e minerais diversos. Neste mesmo lugar seria aprisionado um
espírito, conferindo poderes para as diversas curas ou para proteção, exercendo a função de amuletos ou
talismãs ou alguma prática mágica, a quem o manipulasse. Em 10 de abril de 1835, na Corte imperial,
no 2° distrito de Sant’ana55, é pronunciado a prisão do preto mina escravo Teotônio Antonio Lima sob a
freqüente encontrar dentro dos feitiços pequenos crucifixos, medalhas, contas do rosário e outros
objetos cristãos. Pensam ser a melhor maneira de apropriar-se magicamente da virtualização que
54
Cf. ALTUNA, Op. Cit., p. 550. A semelhança entre os objetos mágicos descritos por Altuna e os minkisi citados
por Marina de Mello e Souza nos faz supor que sejam os mesmos instrumentos de magia.
55
AN (RJ)- Série justiça – polícia, escravos e moedas falsas, IJ6 170, ano 1835.
56
ALTUNA, Op. Cit., p. 553. Feitiço para o autor é um objeto que se torna instrumento da magia, pela similaridade
da descrição do objeto, provável ser um minkisi.
54
Para os bacongos o espaço ritual é dividido em uma cruz, o quadrante de cima destinado a Nzambi
Mpungo e os espíritos da natureza, o quadrante de baixo a terra dos homens e dos antepassados, o
elemento divisor é a água, sendo intercambiáveis. A cruz é o signo oculto dos quatro momentos do sol,
nos quais há reserva enormes de poder. As mulheres africanas exibiam cruzes pintadas de vermelho/preto
e o sinal de encruzilhada do Congo, mão direita para cima, mão esquerda para baixo. A cruz no
pensamento bacongo remete à idéia da vida como um ciclo contínuo, semelhante ao movimento de
rotação efetuado pelo sol, assim, como à possibilidade de conexão entre os dois mundos. Segundo Fu-
Kiau:
... o rito básico, e mais simples, a ser feito por todos aqueles que se querem tornar
mensageiros do mundo dos mortos e condutores de seu povo ou clã, é fazer um discurso
sobre uma cruz, desenhada no chão... são frisados os poderes religiosos que todo chefe deve
ter, os poderes temporal e religioso estão entrelaçados. Ao se colocar sobre a cruz, que
representa o ciclo da vida humana e a divisão entre os dois mundos, o chefe afirma a sua
capacidade de fazer conexão entre esses dois mundos e, assim, conduzir de maneira
adequada a vida da comunidade.57
A ressignificação da cruz foi um exemplo mais eloqüente da conversão do cristianismo dentro das
concepções locais. A cruz era um símbolo pré-existente à chegada missionária e indicava a interseção
entre o mundo dos vivos e dos mortos como a passagem entre eles. Associada à encruzilhada e aos
espaços de passagem e de comunicação com os mortos, como os cemitérios. A cruz58 indicava a barreira
horizontal, o grande corpo de água da qual se acreditava que vinham os mortos, estando associados a cor
57
FU-KIAU, (apud, MELLO E SOUZA, Op. Cit., p. 178).
58
A cruz Kongo aproxima-se mais da cruz grega (+).
55
A cruz, como muitos etnólogos pensavam, não foi introduzida na África centro-ocidental com as missões
jesuíticas, ela já integrava a cosmologia baconga. A sua aceitação pelo centro-africanos aconteceu através
de uma interpretação nas bases de suas próprias tradições. As sociedades bacongas tinham formas
particulares de vivenciar a religião, manipulando novos simbolismos e rituais a partir de suas culturas de
origem. Assim, também, o fizeram no Brasil, dando um matiz multifacetado a igreja católica,
Ao chegarem à Corte imperial, os africanos escravizados, encontraram uma cidade com múltiplas forças
imensidão de santos católicos dispostos a fazerem o bem, a proteger, curar e prevenir doenças
encontraram também, espíritos da natureza, alguns de origem indígena outros de diferentes procedências
africanas, todos formavam um amplo “exército” a seu favor. Seguindo as suas tradições centro-africanas
a população negra precisava obter um talismã para o auxílio às mazelas e fortalecimento às “forças”.
Para isso, tinha que seguir certos ritos e simbolismos, colocar o talismã em um santuário, fazer oferendas,
sacrifícios e ritos de purificação que tornassem os talismãs realmente eficazes. Um santo em um altar de
uma igreja católica significava um talismã poderoso em seu santuário. Seguindo os passos de Karasch59,
quando os africanos escravizados chegavam a Corte, filiavam-se a uma irmandade, em torno de um santo
catolicismo barroco, caracterizavam-se por elaboradas manifestações externas da fé, missas celebradas
por dezenas de padres, com corais e orquestras, ambientes altamente decorados, funerais grandiosos e
59
KARASCH, Op. Cit., p. 239.
56
procissões cheias de alegorias, com a participação de centenas de pessoas. Elas já existiam em
Portugal, desde o século XIII, dedicando-se as caridades dos desvalidos, fossem seus próprios
membros ou não. Eram integrantes das Confrarias, que se dividiam em: Ordens Terceiras e Irmandades,
sendo estas formadas em sua maioria por leigos. As Ordens Terceiras se associavam as ordens religiosas
espalhando-se da metrópole para as colônias. Era necessário para que funcionassem, fossem acolhidas
por uma igreja, ou construíssem a sua própria, e o seu compromisso (o estatuto) fosse regulamentado
através das Constituições Primeiras. Cada igreja podia alojar várias irmandades, veneravam seus santos
devotos em altares laterais, existindo também várias com o mesmo nome e a mesma adoração ao santo
padroeiro, em lugares distintos do Brasil, ou na mesma cidade, mas dificilmente na mesma igreja.
A distinção étnico-nacional constituía a lógica de estruturação social das confrarias no Brasil. O critério
de identidade dessas organizações foi a cor da pele em combinação com a nacionalidade. As irmandades
africanos se subdividiam de acordo com as etnias de origem. Imaginadas como veículo de acomodação e
domesticação do espírito africano, elas, na verdade, funcionavam como meios de afirmação cultural,
construção de identidade e solidariedade coletivas. Segundo Reis e Mariza60, os termos étnicos, como
nagôs, jejes, angolas, são representações de identidades que foram criadas pelo tráfico de escravos,
envolvendo grupos étnicos oriundos da África. Ou, como na época, o uso recorrente das chamadas
60
As considerações que brevemente faço sobre as irmandades na Corte imperial, inspira-se nos trabalhos de REIS,
João José, Morte é uma festa: ritos fúnebres e revoltas popular no Brasil no século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991 e ________ “Identidade e diversidade étnicas nas Irmandades no tempo da escravidão”. Tempo, Rio
de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1996, pp.7-33; SOARES, Mariza de Carvalho, Devotos da cor: identidade étnica,
religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 e________
“ O Império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no séc. XVIII”. Topoi 4, Rio de Janeiro, mar. 2002,
pp.59-83, KARASCH, Mary, Op. Cit., cap. 9, pp. 341-396.
57
todo o Mundo Novo. Mesmo tendo um componente étnico e também cultural, as nações, redefinem as
fronteiras entre os grupos étnicos através da formação de unidade mais inclusivas, fazendo
emergir uma esfera de solidariedade entre diferentes grupos étnicos, mesmo quando não existiam
condições previamente determinadas para isso. Instalados no Novo Mundo, os escravos se agrupam em
torno das ditas nações. Inicialmente uma identidade atribuída, a nação acaba sendo incorporada pelos
grupos e servindo, de forma alternativa ou combinada, como ponto de partida para o reforço de antigas
decorrem das populações traficadas e dos arranjos no interior de cada nação, em cada cidade, época e
transformação. Assim, na maioria das vezes, as irmandades se formavam em torno das identidades
A dificuldade que tinham os africanos escravos e libertos de formar famílias, pode explicar por que no
Brasil eles redefiniram a abrangência da palavra parente para incluir todos da mesma nação. Um nagô se
dizia parente de outro nagô, angola, de outro angola. Parente era aquele que pertencia à mesma nação,
num aspecto mais amplo - outro negro. A intensidade com que os escravos produziam parentescos
simbólicos ou fictícios revela como era grande o impacto do cativeiro sobre homens e mulheres vindo de
sociedades baseadas em estruturas de parentesco complexas, das quais o culto aos ancestrais era uma
parte muito importante. Na travessia do Atlântico morria a família africana e nasciam os primeiros laços
61
Cf. SLENES, Op. Cit., pp.52-53. Malungu, como escreve o autor, é vocábulo de raíz Bantu, significando no
Brasil: “companheiro, patrício, da mesma região, que veio no mesmo comboio”, ou ainda, “companheiros da mesma
jornada, aquele que compartilha do mesmo sofrimento”.
58
confraria formavam outra alternativa de parentesco ritual. Cabendo a família de irmãos oferecerem aos
seus membros, além de um espaço de convivência e identidade, socorro nas horas de necessidades, apoio
para conquista de alforria, meios de protesto contra os abusos senhoriais e, sobretudo rituais fúnebres.
Existia uma preocupação por parte dos africanos escravizados com os ritos fúnebres, uma forma de
melhor conduzir as almas após a morte, uma estreita ligação com a ancestralidade.
As irmandades eram organizadas como um gesto de devoção a santos específicos, que em troca da
proteção aos devotos recebiam homenagem em festas exuberantes, de trocas simbólicas, contidas na
formas de manipular com os talismãs poderosos - os santos. Essa atitude de promessa refletia tanto uma
preocupação com o destino das almas após a morte, quanto à proteção cotidiana do corpo. As irmandades
se adaptaram e foram também veículos de um catolicismo popular negro influenciado por práticas pagãs,
usos de escapulários, anéis, braceletes, manipulados como amuletos. No interior das irmandades,
dedicadas a diversos santos católicos, africanos de diversas nações, além de crioulos e pardos,
étnicas e a alianças interétnicas foram constantes na vida dos irmãos negros, como os foram os
relações das irmandades, sugerem a existência de um conjunto de estratégias sociais que circulavam
Na visão barroca do catolicismo, o santo não se contenta com uma simples prece individual, será
necessário para sua intercessão junto a Deus, uma festa exuberante, com músicas, danças, mascaradas,
banquetes e fogos de artifícios. Enquanto ideologia a religião era responsabilidade do clero da igreja,
cabendo aos irmãos o lado emblemático e mágico da religião. Nas festas dos santos padroeiros, elegiam
59
reis, rainhas, imperadores e imperatrizes, que eram relembrações do Reino africano do Kongo. Rituais
que transformavam a memória em força cultural viva, vinculada aos santos. Assim, os africanos reviviam
As irmandades foram uma das saídas encontradas pelos africanos escravizados transladados para o Novo
Mundo, para “lidar” com a adversidade em uma sociedade excludente, criando uma nova instituição de
“proteção”, “poder” e “prestígio”. Segundo Stuart Hall62, as identidades se constroem a partir das
diferenças, a “construção ou recriação” de novas identidades, com fronteiras mais flexíveis, que
pudessem trazer solidariedade e conforto nas horas mais difíceis. Traçaram-se acordos, negociações,
conflitos e alianças no interior das relações das irmandades, mais acima de tudo ela foi um eficaz
62
HALL, Stuart. “Quem precisa de identidade”, In Silva, Tomaz, Tadeu da (org.) Identidade e Diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
60
CAPÍTULO 2:
61
NA CONTRAMÃO DA FÉ – A CONSTRUÇÃO DO SABER MÉDICO
Ao longo da história construímos um discurso social-histórico sobre saúde e doença, o corpo, a vida.
Poderíamos dizer que a concepção de saúde e doença é particularmente reveladora do grupo social. Ela
mostra, de forma muito especial, como o indivíduo se situa na sociedade e como esta se situa em relação
ao indivíduo. Saúde e doença não são apenas conceitos biológicos, mas também acontecimentos
diferenciados de uma mesma sociedade. O indivíduo como ator de uma sociedade, não pode ser
examinado em qualquer um de seus aspectos social-histórico sem vislumbrar a própria sociedade que o
uma medicina que se considerava científica e qual o espaço legitimado pelo prestígio popular para
O século XIX foi um período de grandes transformações para o Brasil, com um conjunto de fatos
políticos, sociais, demográficos e econômicos que mudaram substancialmente a História do nosso país.
Os médicos formados em faculdades praticamente inexistiam no país até o início do século, eram os
permaneceram bastante procurados durante todo o período imperial. Diversas vezes os periódicos
ofereciam um apoio à luta contra o charlatanismo, categoria abrangente que era utilizada por intelectuais
médicos para qualificar toda e qualquer medicina diferente da sua, desde curandeiros, espíritas,
boticários até homeopatas e médicos estrangeiros cujos diplomas não tivessem sido convalidados pelas
62
Ao examinar o objeto de estudo, os praticantes da medicina popular, especificamente os africanos
escravizados e seus descendentes, ficou clara a inter-relação do poder político das instituições nele
agentes de cura sem vislumbrar os passos de legitimação da medicina acadêmica. O que aparece como
maneira variada, sendo indispensáveis inclusive a sua sustentação e atuação eficaz. As condições de
possibilidades políticas de saberes específicos, como a medicina, por exemplo, podem ser encontradas
não por uma relação direta com o Estado, considerado como um aparelho central e exclusivo de poder,
mas por uma articulação com poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena ação. Os
praticantes dos ofícios populares de curas inserem-se nesta outra forma de poder.
Uma grande parcela da população dos oitocentos acreditava que a doença não era coisa natural, as
moléstias eram provocadas por causas sobrenaturais, uma das causas poderia ser o castigo de Deus à
natureza pecadora do homem. Havia toda uma tradição cultural religiosa sobre doença e cura. O mundo
médico mostra-se se contrapondo a este universo que utilizam as chamadas superstições, como opostos
que não se aproximam. As fronteiras são flexíveis e, muitas vezes, intercambiáveis. No momento em
tempos e práticas. Esta divisão ocorre especialmente no discurso médico não refletindo nas suas
práticas. Nesse contexto seria impossível não acompanhar a própria elaboração das noções de saúde,
Com o “nascimento” da medicina social no Brasil a saúde pública orientou as transformações urbanas
ao mesmo tempo em que interveio nos espaços públicos e privados. A medicina estava longe de ser
homogênea apresentando dificuldades da elite médica para impor as medidas preconizadas por ela, além
63
do dissenso interno. Na disputa pela legitimação da medicina os médicos disputavam entre si e tinham
também como concorrente os agentes de cura, que contavam com grande aceitação popular.
A idéia de medicina acadêmica aqui localizada é aquela restrita aos médicos oficiais, os quais passavam
por uma formação acadêmica em uma das duas maiores cidades do país: Salvador ou Rio de Janeiro, ou
viajavam para o Velho Mundo, a Europa. Esta medicina nasceu, cresceu e desenvolveu-se junto às
elites. O percurso médico é identificado pelos sinais, registros deixados e marcados pela forma de atuar
com os problemas do corpo, porém existe todo um contexto de atuação com as mazelas do corpo doente
fora da fronteira do universo da medicina, sendo esse discurso não registrado oficialmente. Há um
universo de atividades marcado por informações fragmentadas e dispersas, de uma gama variada de
práticas e cuidados com a saúde, que não são regidos pela medicina acadêmica e silenciados pelos
dominantes.
Esta outra forma de curar não se preocupava em registrar seus passos, regida por outra lógica que
percorre o espaço da fé, da crença, da solidariedade e da tradição, estes homens e mulheres receitavam
chás, repousos, vomitórios, purgantes, rezas e banhos. O seu envolvimento em relações que nem sempre
traziam a marca do mercado e lidavam com uma série diversificada de entendimentos sobre a doença, o
remédio, o doente e o corpo. Eram pessoas que aprenderam as práticas com os mais velhos, que por sua
vez as receberam dos seus antepassados, de geração em geração, transmitidos pela tradição oral. Neste
grupo estão os benzedores, parteiras, curandeiros ou saludadores, sangradores, rezadores e raizeiros, dos
que fornecem referência dos chás e remédios caseiros, aquelas pessoas chamadas nos momentos de dor.
As atividades dos curandeiros estavam cercadas de certos mistérios. Não divulgavam suas fórmulas, não
explicavam suas atuações. Apelavam para o mundo da fé e da crença, auxiliados por orações, raízes,
64
flores, ervas, ícones religiosos. O curandeiro podia ou não desempenhar suas habilidades de cura como a
sua única atividade, aqueles que auxiliavam eventualmente a população necessitada, sem remuneração.
Podemos incluir: as parteiras, os boticários e os dentistas, que até a metade dos oitocentos não estavam
entre os que tinham formação acadêmica, eram os práticos. Havia todo um procedimento realizado pelos
curandeiros, raizeiros, benzedores, boticários e parteiras que incluía apelos ao mundo da fé. Existindo
pela medicina acadêmica, naquela época, uma dificuldade em compreender o modo de atuação daqueles
que exerciam o ofício de cura popular, seja através da arte médico-cirúrgica dos índios e negros, ou a
prática médica difundida entre os jesuítas, que incorporaram as suas boticas uma série de conhecimentos
indígenas da utilização medicinal das plantas brasileiras, mescladas com orações, ou as utilizadas pelos
curandeiros.
O Brasil imperial pode ser considerado, um “país periférico”, especializado na agricultura de exportação
tendo como centro propulsor o mundo rural. Sua desruralização será um processo lento, ainda
incompleto nas primeiras décadas de 1930. No século XIX, a urbanização, mesmo da cidade imperial do
Rio de Janeiro, é incipiente, e as ações que reformaram o urbano63 nesse período não tiveram o mesmo
significado das que reprojetaram as principais capitais européias na mesma época. Para Roberto
Machado64, a medicina que surgiu neste século, preocupada não só com o indivíduo doente, mas com
todas as instâncias da vida social, passava a ter um papel fundamental no planejamento urbano, era o
nascimento no Brasil da medicina social. Esta nova medicina, que estendia a todos em geral a noção de
63
O planejamento urbano seguiu regras estabelecidas pelos higienistas, não diferenciando do que acontecia no Velho
Mundo, o processo de tomada de poder da parte das instâncias medicais foi um processo idêntico ao conhecido na
Europa. Por exemplo, a Paris de hoje, é a obra do Barão Haussman, que destruiu quase todo o centro da antiga Paris,
insalubre, popular, para abrir as grandes avenidas que conhecemos hoje. Na Europa foi o início do afastamento das
classes populares para as periferias. De certa maneira os primeiros urbanistas foram os higienistas, não é uma atitude
especificamente brasileira, mas um movimento influenciado pela Europa.
64
MACHADO, Roberto. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro:
Graal, 1978.
65
doença, teria uma dimensão muito mais política que aquela do período colonial, que era mais curativa do
sendo esta medicina essencial política e progressiva, identificando-se com os ideais de civilização, a
serviço da modernidade. Modernizar a cidade não era apenas realizar reformas urbanas, mas também
medicalizar toda a sociedade, ou seja, intervir nos hábitos e costumes das pessoas, ditando novas formas
de relações familiares e novos padrões de comportamento. Ainda para este autor, é inseparável do saber
médico o poder conferido àquela classe: o domínio da ciência médica concederia aos higienistas uma
grande autoridade na vida política do país, e a influência dos médicos nas diversas instâncias da vida
pública seria oficializada através da criação em 1850 da Junta Central de Higiene Pública65.
As abordagens foucaultianas como as de Roberto Machado, Kátia Muricy e Jurandyr Freire Costa entre
outros66, radicaliza a relação entre o saber científico e o poder político dos médicos, como se fosse parte
integrante da medicina social “nascida” no século XIX. O de autoria de Madel Luz acaba seguindo os
mesmos problemas dos autores acima epigrafados. Tratam à medicina como uma instituição
homogênea, sempre coerente e de acordo com os interesses das autoridades públicas, transformando-a
num “instrumento verdadeiro do Estado”. Não estou negando a luta de um grupo de médicos, ou a
influência daquela ciência nas transformações sofridas pela sociedade brasileira, principalmente no
final do período colonial. Trata-se de relativizar essa imanência política da medicina, essa ligação tão
óbvia entre médicos e autoridades ao longo de todo o século XIX, na qual muitas vezes se insiste. Esse
65
A Junta Central de Higiene Pública, criada em 1850, era o órgão máximo da higiene, regulador, normatizador e
fiscalizador da medicina acadêmica imperial, legitimavam a grande autoridade dos médicos na intervenção das vidas
pública e privada. Em 1886, o órgão passou a se chamar Inspetoria-Geral de Higiene.
66
MACHADO, Op. Cit.; MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo:
companhia das Letras, 1988, p.15; COSTA, Jurandyr Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal,
1979. LUZ, Madel Teresinha. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de saúde (1850-1930). Rio
de Janeiro: Graal, 1982.
66
tipo de análise ignora os conflitos e as contradições no interior da classe médica ao longo de sua
medicina, que fornecia a base científica para o pacto social, durante o século XIX. Somente no final do
século os médicos teriam conseguido consolidar sua profissionalização, após muitas brigas com os
grupos políticos poderosos e dentro do seu próprio grupo. O autor historiciza o processo de legitimação
do saber médico perante os órgãos públicos de saúde, mostrando como e quando houve união de
ambos, convergindo para uma mesma estratégia. O que acontece, para ele, somente após importantes
reformas no ensino médico ocorridas em l884. Entretanto, ainda em 1888, aquela ciência estava longe
levada em conta, à relação dos médicos com as camadas populares da Corte Imperial, foi o que
constatei através dos periódicos da época, as denúncias de leitores sobre os delegados da Inspetoria de
Higiene, os “ataques” aos “charlatães” e aos curandeiros, e a disputa entre os próprios médicos. Os
autores acima citados se interessam pela história da medicina, pela sua legitimação, seja perante as
autoridades do governo ou no interior do debate científico. Flávio Edler, trabalhando com a história da
ciência, estuda os enclaves no seio dos profissionais da medicina acadêmica para compreender como a
destaque. Todos estão muito mais preocupados com as relações de poder dos médicos do que o saber
científico. Não é de seus interesses a legitimação da medicina por aqueles a quem ela se dirigia, não é
objeto de estudo a busca pelas relações sociais com a população, o que torna essa abordagem uma
67
EDLER, Flávio. “As reformas do ensino médico e a profissionalização da medicina na Corte do Rio de Janeiro,
1854-1884”. Dissertação de mestrado, Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, São Paulo, 1992, p.31.
67
2.1 Organização dos serviços de saúde na Corte Imperial
Os modelos de organização dos serviços de saúde, vigentes em Portugal, foram transferidos para o
Brasil colônia. A estrutura administrativa da Fisicatura era representada pelo Físico-Mor e pelo
Cirurgião-Mor do Reino, que usando das próprias atribuições, estabeleciam regimentos sanitários,
expediam avisos, alvarás e provisões para serem executados pelos representantes no Brasil. Em 1782,
objetivo fiscalizar o exercício da medicina e o controle das vendas de medicamentos, não alterando a
estrutura administrativa da medicina na colônia. Os serviços de saúde são prestados de forma precária
pelas Santas Casas de Misericórdia, pelos hospitais militares e pelas enfermarias das ordens religiosas.
Com a chegada da família real ao Brasil, em l808, D. João estabelece, os cargos de Físico-Mor e
suprir a falta de médicos no Brasil, cria em Salvador, a Escola de Cirurgia, em l9 de fevereiro de l808.
Com a transferência da família real para o Rio de Janeiro, D. João autoriza, no mesmo ano, uma outra
Escola de Anatomia, Cirurgia e Medicina, para formação de cirurgiões e clínicos, cada uma delas ligada
sensíveis alterações com o acréscimo de várias cadeiras dentre as quais, Introdução à Higiene. A partir
de então, passa a ser oficializado o ensino médico na Colônia. Depois da Independência, as Academias
medicina e mesmo de cirurgiões e boticários, tanto na Corte, como nas demais regiões do Brasil,
possibilita ao Regimento da Fisicatura-Mor prever a “legalização” das atividades dos agentes de cura,
Apesar do reconhecimento a medicina popular foi formalmente desvalorizada pela Fisicatura. Segundo
Tânia Salgado Pimenta, durante os vinte anos de atuação da Fisicatura, os agentes de cura foram
reconhecimento era possível com a finalidade de incorporar os agentes de cura a uma ligação de
dependência pessoal que seguiam a hierarquia social e às das práticas médicas acadêmicas. Eram
expedidas licenças ou cartas autorizando as práticas populares, que deveriam ser requeridas pelos
interessados. Qualquer um poderia requerer a carta junto a Fisicatura, ou pedido de licença provisório.
Sendo necessária a apresentação de um atestado assinado pelo mestre com quem havia aprendido
determinada arte de curar, devendo constar o tempo de aprendizagem e que também adquirira habilidade
naquela arte. Podendo, entretanto, ser substituído por declaração de pessoas de prestígio da comunidade
onde praticava a sua arte. Porém não havia muito interesse por parte desses agentes de cura em
oficializar suas atividades, muitos não sabiam que estavam trabalhando na ilegalidade e, aqueles que
sabiam não viam vantagens em obter a licença para suas práticas. Curandeiros, sangradores, parteiras
não se interessavam muito em obter a licença para oficializar atividades68, ter ou não a carta ou licença
68
PIMENTA, Tânia Salgado. “Terapeutas populares e Instituições médicas na primeira metade do século XIX”. In:
CHALHOUB, Sidney. Artes e Ofícios no Brasil: capítulos de história social. São Paulo: Unicamp, 2003, p. 310.
Segundo a autora, existia uma dificuldade da Fisicatura perante os agentes de cura, o que pode ser constatado através do
número de cartas e licenças concedidas referentes às categorias que lhe diziam respeito. Durante os 20 anos das
atividades da Fisicatura no Rio de Janeiro, apenas 207 sangradores, 66 parteiras e 27 curandeiros se oficializaram no
Brasil, o que corresponde, respectivamente, a l6%, 5% e 2% do total de títulos expedidos. O que destoa dos relatos dos
viajantes, dos periódicos e outras fontes.
69
não influenciava a população que buscava os seus trabalhos. Conforme Pimenta, as concepções
populares de doença e cura não divergiam sempre das acadêmicas nesse período. Mas estas eram
oficialmente aceitas como parâmetro para a avaliação de práticas aceitáveis ou não, tendo na matriz
atividades de fiscalização das boticas, dos armazéns de secos e molhados, dos portos foram designados
A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro é criada em 1829, pelos médicos Cruz Jobim e Soares de
Brasil, nos mesmos moldes da Academia de Medicina de Paris. Em l832, a Sociedade de Medicina do
Rio de Janeiro passou a ser consultada pelas Câmaras Municipais sobre as questões de saúde pública.
Academia Imperial de Medicina, uma de suas principais atuações é tornar-se um órgão de consulta do
Estado para assuntos referentes à saúde. Nessa época tem início um processo de formulações
sistemáticas das relações entre saúde e condições de vida na sociedade, resultante de uma nova medicina
social, mais preocupada com o coletivo e a prevenção, do que com a cura das doenças. O caráter
meramente biológico da doença progressivamente dá lugar a novas práticas médicas articuladas aos
projetos de reorganização social. O papel do Estado era cuidar da saúde da população, cabendo também
ao médico supervisionar de forma direta a saúde do povo. Para se dispor de um corpo médico
competente, era necessário decretar um regulamento de polícia médica que conduziria a educação
70
médica, bem como, supervisionar boticas e hospitais, prevenir epidemias, combater o charlatanismo e
possibilitar o esclarecimento da população. Neste período, há mudanças significativas nas relações entre
os agentes de cura e as instituições médicas, que são preteridos pela medicina acadêmica, e chamados
No Olimpo de Zeus, lugar de deuses “responsáveis”, fosse pelos diversos “setores da natureza”, o setor
designado - trabalho manual, também era lugar de desprestígio entre eles, hierarquizado e inferior.
Hefaísto, o deus grego do trabalho, é descrito como um ser monstruoso, feio, coxo, inchado,
desprestígio, da desvalorização. Na Grécia clássica a leveza e beleza da peça produzida pelo artesão, não
estavam ligadas a quem a executou, mas aquele que encomendou o trabalho. A arte do artesão não é
criativa, apenas dá forma à matéria a ser trabalhada69. Na Europa dos séculos XV-XVII começa o
percurso de valorização das artes manuais, o que somente no século XIX ocorrerá no Brasil. Entre os
profissionais que trabalham com as mazelas do corpo doente, os cirurgiões, os barbeiros, os boticários,
as parteiras, os curandeiros ou saludadores, e todos os mais que estão inclusos entre os práticos e os
médicos, existem uma diferenciação básica, que os classifica entre os profissionais de artes manuais e
intelectuais. Figueiredo nos esclarece sobre o estigma em “lidar” com o sangue, que desde os tempos
medievo persiste na Europa até o século XVII. Esta concepção influencia diretamente na hierarquização
e desvalorização daqueles que atuam junto às mazelas do corpo doente. No Brasil somente nas primeiras
69
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994,
p. 354.
71
décadas dos oitocentos esta concepção inicia sua mudança e os praticantes das artes manuais passam a
serem “valorizados”:
Um dos primeiros estigmas ao se tratar do corpo doente é o lidar com o sangue. O trato
com o sangue está carregado de conotações negativas, reacende/fortalece/reafirmam o
desprestígio do trabalho manual... O estigma do sangue faz ressurgir um tabu primitivo.
...De acordo com Le Goff a sociedade sanguinária do ocidente medieval oscilava entre o
deleite e o horror pelo sangue derramado, englobando desde os carrascos, passando pelos
cirurgiões, barbeiros, boticário a que praticavam sangrias, até os soldados. 70
No caso específico da medicina ocorre uma divisão entre aquele que manipula os
instrumentos (ferramentas) no cuidado com o corpo – o cirurgião - e aquele que avalia o
estado geral do paciente, identifica as doenças e prescrevem dietas, medicamentos,
repousos. Médico e cirurgião passam o ocupar espaços distintos no rol da arte de curar.
Neste reposicionamento entre o médico e o cirurgião, as atividades intelectuais são
dissociadas das atividades práticas. O médico é cada vez mais um homem letrado e sábio
que busca sua ciência muito mais nos livros do que na observação dos doentes. Já o
cirurgião é encarregado das atividades práticas: lida com o corpo em cirurgias, no trato
com as fraturas, no cuidado com as feridas. 71
O lugar do médico era hierarquicamente diferenciado do cirurgião que, por sua vez, possuía posição
superior a do barbeiro que também exercia atividades ligadas ao corpo doente. O campo da cirurgia na
medicina ocupava um espaço de menor prestígio, destinado às técnicas menos qualificadas, técnicas
que demandavam menos conhecimento e mais habilidades com as mãos. O trabalho do barbeiro e do
cirurgião estava diretamente relacionado com o corpo doente, com o sangue, e com as partes purulentas
do corpo. O cirurgião, um dos ofícios das artes mecânicas, com os seus instrumentos e sua habilidade
70
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar, cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em
Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002, p. 71. LE GOFF apud FIGUEIREDO, 2002, p.87, ver nota n° 73
e 74.
71
FIGUEIREDO, Op. Cit., p. 69.
72
A formação do médico e a do cirurgião permaneceu diferenciada até metade do século XIX, no Brasil.
O ofício de cirurgião está mais próximo da aprendizagem prática do que do ensino formal, e também,
pela associação de sua imagem a do barbeiro com seus navalhas. No início dos oitocentos, muitos
cirurgiões eram considerados práticos, não passando pelo ensino formal. Com a institucionalização do
saber médico, os cirurgiões eram graduados em um período de tempo menor que os médicos. Para o
avanço nos estudos da medicina é essencial que o trabalho manual receba uma positivação,
entre teoria e prática. Alguns cirurgiões72 completavam ou retornavam os estudos tornando-se médicos,
Importante, também, o papel da imprensa nas questões relativas às diferentes medicinas. Se muitas
vezes os jornais assumiam declaradamente o combate a tudo que era considerado criminoso ou
charlatanismo, em outros momentos eram eles mesmos que faziam ataques aos “doutores”, criticando
abusos e imperícias. Muitos relatos nos jornais mostravam divergências dos pacientes com os médicos;
outros, entre os próprios médicos, numa busca pela clientela e espaço social, existindo ainda, disputa
entre os esculápios pela clientela, além de terem os agentes de cura como concorrentes.
Diametralmente, cartas de pacientes agradecendo a certos médicos as suas curas, publicadas em vários
73
sociedade, nos permitiu entrever a concorrência conflituosa entre os próprios médicos acadêmicos, e
Muitas cartas publicadas nos jornais demonstravam o quanto os doentes relutavam em procurar um
médico quando estavam doentes. Após esgotar todos os meios tradicionalmente empregados, aquelas
pessoas rendiam-se aos recursos da ciência. Um relato escrito pelo Sr. Farias a um periódico73, narra que
sofreu durante 14 anos antes de se entregar a um cirurgião, encontrando-se curado após a cirurgia.
Durante todo esse tempo, o Sr. Farias sofreu relutando em se entregar a um médico, demonstrando que
as pessoas tentavam tudo, faziam ao máximo o que pudessem para não ser obrigadas a recorrerem a
medicina oficial.
Ao atacar seus adversários, os médicos deixavam claro para os leitores dos periódicos um outro lado
daquela medicina científica: as falhas e os absurdos que os esculápios tanto recriminavam quando se
referiam aos praticantes de cura, os chamados “charlatães”, eram também cometidos, e muito, por eles
mesmos. A disputa interna entre os médicos e a crença na origem das doenças contribuía para a escolha
dos doentes pelos métodos alternativos de cura. A preocupação dos médicos com os ataques que
vinham sofrendo e com a marcante presença dos “charlatães”, o que é evidenciado em teses médicas da
época, mostra uma luta a ser travada pela classe médica na tentativa de obter legitimidade perante
diferentes doentes, especialmente as camadas iletradas, vistas como propensas a deixar de lado as
73
Jornal O Paiz, em 24/01/1888, p.02.
74
O Dr. Meirelles, um dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, na Revista Médica
ignorância do povo:
“O povo geralmente não entende o que lhe é útil, e muitas vezes é incapaz desta
inteligência. É preciso que a autoridade, como mais instruída, e mais capaz desta
inteligência, faça o que entender que é útil e conveniente, sem se importar com o que faz
com representações e propostas. (...) que é preciso não descansar, e repetir constantemente
74
as mesmas causas para alcançar algum bom resultado”.
A Academia Imperial de Medicina esforçou-se por cumprir a tarefa de traduzir e atualizar a pauta
higienista. Diante das questões consagradas pela Geografia médica75, os médicos brasileiros
apresentaram respostas originais, algumas das quais se opunham aos velhos estereótipos europeus. Os
acadêmicos imputavam ao calor e a umidade um papel preponderante, dentre outros fatores climático-
telúricos na patologia nacional. Descrevendo sua ação direta como patogenia, ou indireta, miasmas, na
economia humana e, formas profiláticas para se evitar sua ação deletérica. Entretanto, de acordo com o
consenso médico da época, na composição dos estados mórbidos, os fatores morbígenos decisivos
seriam ligados aos hábitos higiênicos. Para Sigaud76, uma postura saudável seria aquela centrada na
exclusão dos principais agentes da mortalidade, o regime alimentar e o abuso no ato sexual, que
74
Cf. Revista Médica Fluminense, Niterói, fevereiro, I (11), 1836, pp.6-7.
75
Geografia médica era uma disciplina que pretendia conter o conhecimento patológico global. Seus mais influentes
representantes eram médicos europeus, geralmente ligados à administração colonial.
76
Ver SIGAUD, J. F. X. Du Climat et. des Maladies du Brésil ou Statistique Médicale de cet Empire. Paris: Chez
Fortin, Masson et Cie, Libraies, 1844, p.59.
75
Nos finais de 1849, o Rio de Janeiro Imperial é invadido pela primeira grande epidemia de febre
amarela, transformando a questão de saúde pública no Brasil. Tal fato é decisivo para a criação da Junta
Central de Higiene Pública77, deslocando da Academia Imperial de Medicina o papel central que ela
desempenhava, permitindo à Junta responsabilizar-se pelas questões administrativas que eram até então
maior centralização política do Império, que se seguiu à curta experiência liberal das regências, 1831-
1840.
Algumas funções que anteriormente eram de responsabilidade da Inspeção de Saúde do Porto e outras
das Câmaras Municipais, foram transferidas para a Junta Central de Higiene, criando conflitos que
deveriam ser solucionados dentro da própria instituição. Composta por um presidente escolhido pelo
da Armada. Uma das suas principais funções era de “polícia médica nas visitas das embarcações até
agora encarregadas à Inspeção da Saúde, e nas que devem fazer-se nas boticas, lojas de drogas,
mercados, armazéns, e em geral em todos os lugares, estabelecimentos, e casas donde possa provir
77
Com o objetivo de conter a doença, foi estabelecida, em 14 de fevereiro de 1850, a Comissão Central de Saúde
Pública, formada por membros da Academia Imperial de Medicina e por professores da Faculdade de Medicina. Poucos
meses depois, foi criada a Junta de Higiene Pública, que deveria zelar pela melhora do estado sanitário da cidade
Imperial e de “outras povoações do Império”, ver Coleção de leis do Brasil – CLB, Decreto de 14/09/1850. Contudo, a
forma como deveria funcionar só foi detalhada pelo regulamento de setembro de 1851, a partir do qual passou Higiene
Pública, ver Coleção de Leis do Brasil – CLB, Decreto de 29.09.1851 a ser denominada Junta Central de Higiene
Pública, ver Coleção de Leis do Brasil – CLB, Decreto de 29.09.1851.
78
Coleção de Leis do Brasil – CLB, Decreto de 14.09.1850.
76
2.3.1 Miasmas mefíticos.
No decorrer do século, os médicos brasileiros sob a influência do racionalismo iluminista em que tinham
medicina como seu grande aliado. Somente o saber acadêmico do médico brasileiro levaria a nação a
ser equiparada aos demais países civilizados do Velho Mundo, extinguindo com a herança da colônia.
Para os médicos do Brasil Imperial a doença deixava de ser um castigo de Deus para se transformar num
mal natural contagioso. Porém a identificação do mal dividiu os “doutores” durante muito tempo. Entre
as concepções médicas das causas de doenças da época, duas disputava maior número de adeptos. De
um lado estavam os que acreditavam na existência de um contagium vivum, ou seja, o contágio por meio
as pesquisas de John Snow79, que estudou o surto da cólera de Londres, em 1854, confirmadas pelas
Uma outra causa das doenças era embasada na teoria dos miasmas, que se consolidou desde o século
XVIII. Esta idéia estava baseada na noção de quando o ar fosse de qualidade má, as pessoas que o
ocorria diretamente através do meio ambiente, infectados por gases ou vapores pútridos, os miasmas. Os
médicos tinham a preocupação em limpar o ar, fazê-lo circular, extinguir com os odores e com as coisas
que o causavam. Segundo essa teoria, muitas doenças eram causadas por miasmas produzidos por
matéria orgânica em decomposição, os cadáveres, por exemplo, e águas estagnadas. Entretanto, algumas
eram indubitavelmente contagiosas, como a varíola, outras, como a febre amarela e a cólera, despertava
79
SNOW, John. Snow e cólera. New York, 1965, In International Journal of Epidemiology, 1:4 (1983), pp. 393-396,
discutem o caráter revolucionário das investigações de Snow para a teoria epidemiológica.
77
discussões e conflitos. A doença era considerada infecciosa quando se propagava por meio de miasmas
presentes no ar ou contagiosas quando transmitidas por pessoas doentes, ou ainda, através de objetos
manipulados por estes, implicando defender medidas profiláticas diferentes. Para os contagionistas,
seriam fundamentais as quarentenas, principalmente nos navios que chegavam aos portos e isolamento
infeccionistas consideravam tais providências ineficazes e defendiam medidas mais abrangentes para
transformar as condições locais e impedir a produção dos temidos miasmas, sendo priorizadas a
melhoria do estado higiênico da cidade e a adoção de regras sanitárias com respeito a habitação,
alimentação, trabalho e lazer. Os médicos defendiam arduamente seus pontos de vistas sobre as idéias
de contágio e infecção.
Os médicos adeptos da concepção dos miasmas, os infeccionistas, não sabiam com exatidão definir
Tomando a palavra em sua acepção laica, consideram-se sob este título todas as emanações
nocivas, que corrompem o ar, e atacam o corpo humano. Nada há mais obscuro do que a
natureza íntima dos miasmas: conhecemos muitas causas que os originam: podemos
apreciar grande número de seus efeitos perniciosos, e apenas sabemos o que eles são.
Submetendo-os à investigação de nossos sentidos, só o olfato nos pode advertir da sua
presença; não nos é dado tocá-los nem vê-los. A química mais engenhosa perde-se na
sutileza das doses e combinações miasmáticas; de ordinário, nada descobre no ar insalubre
ou mortífero que deles esteja infectado, e quando consegue reconhecer nela uma proporção
insólita, ou a presença acidental de algum princípio gasoso, não nos revela senão uma
diminutíssima parte do problema.80
80
CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Dicionário de medicina popular. 6ª ed., Paris, 1890. Biblioteca Nacional,
seção de obras raras. Dr. Chernoviz era um médico polonês, estabeleceu-se no Brasil, entre 1840-1855, na Corte
imperial. Em dezembro de 1840, filia-se a Academia Imperial de Medicina, como estratégia de visibilidade e
notoriedade. Publica aqui, em 1842, o Dicionário de Medicina Popular, destinado ao público em geral, ficando a obra
conhecida como o “Chernoviz”. Reunia diversas receitas úteis nas artes de curar, torna-se o “livro de cabeceira”,
principalmente, dos senhores de engenho, imposto pela própria dificuldade do número restrito de médicos formados nas
zonas rurais. Também é utilizado pelos praticantes das artes de cura, contaminando as referências simbólicas dos
diferentes saberes de cura mantidos pela tradição oral.
78
Não conhecer a real origem e os elementos constitutivos dos miasmas fez com que os infeccionistas
direcionassem a toda cidade uma inspeção constante. Para Chalhoub81, foram os philosophos
infeccionistas, que produziram o arcabouço ideológico básico das reformas urbanas realizadas em várias
capitais ocidentais na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte.
A partir de 1850, no Brasil, inicia-se o processo de transformação dos sepultamentos para fora dos adros
das igrejas e dos centros urbanos, havendo uma nova concepção sobre a doença por parte da medicina
acadêmica, que preconizava a prevenção das doenças, voltando-se para uma política de higienização dos
espaços urbanos, já que essa medicina acreditava nos “miasmas morbíficos” como focos de
Um outro ponto a ser abordado, era o que acontecia com os seus corpos após a morte, pelo fato de saúde
e doença estarem vinculadas a duas questões fundamentais para uma sociedade – a vida e a morte.
Cláudia Rodrigues discute as práticas de sepultamento eclesiásticas que foram trazidas e instituídas no
Brasil pelo colonizador, os “lugares de moradia” dos mortos eram correspondentes a uma relação dos
vivos para com eles, ocupando uma dada posição nas representações culturais e funerárias da época.
Houve uma transformação a partir da proibição dos sepultamentos no interior das igrejas, fundamentada
na teoria dos miasmas, terminando com a construção dos cemitérios públicos. Segundo Rodrigues:
81
Ver CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras, 1996, p.65.
79
As práticas de inumação até então vigentes foram consideradas pelos médicos como
passíveis de serem extintas, uma vez que as emanações cadavéricas poluiriam o ar, o que
era agravado pelo fato de serem muitas as igrejas localizadas no perímetro urbano, todas
repletas de sepulturas que, quando abertas na presença dos fiéis, provocavam odores
mefíticos, causadores de doenças e alimentadores das epidemias.82 (grifo nosso)
Na França do século XVIII, desenvolveu-se uma atitude hostil à proximidade com o moribundo e o
morto, que os médicos recomendavam fossem evitados por motivos de saúde pública, descreve Reis:
O suor, a urina, as fezes, animais mortos eram algumas das fontes de “infecção do ar”,
segundo os higienistas. Os cadáveres humanos contavam entre as principais causas de
formação de miasmas mefíticos, e afetavam com particular virulência a saúde dos vivos,
porque eram depositados em igrejas e cemitérios paroquiais dos centros urbanos.83
Com a descoberta dos miasmas veio a descoberta do mau cheiro da decomposição cadavérica,
substituindo o odorato piedoso da fase barroca. O cheiro fétido que exalava das sepulturas perturbava os
narizes daqueles que freqüentavam as igrejas e dos que moravam nas proximidades, afetando com
agressividade a saúde dos vivos. Os higienistas recomendavam uma permanente vigilância olfativa dos
cidadãos.
O conde de Resende, em 1798, propôs que a Câmara municipal organizasse uma consulta aos médicos
notáveis, sobre as causas da insalubridade do Rio de Janeiro. Diversos aspectos foram apontados como
causadores da “degeneração” do ar, dentre eles um era referente à urbanização. Um projeto para sanar os
82
Cf. RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na Cidade dos Vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, Divisão de Editoração, 1997, p. 22.
83
REIS, João José. A Morte é uma Festa – ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 76.
80
Numa portaria de 1825, o imperador alegando insalubridade das formas de sepultamento que eram de
outubro de 1828, um decreto imperial regulamentou a respeito da instituição de cemitérios fora dos
adros das igrejas, conferindo às Câmaras municipais a competência da matéria. A Câmara do Rio de
Janeiro, em 1828, promulga o novo Código de posturas municipais, que delibera sobre cemitérios e
enterros, ordenando que houvesse atestado de óbito prescrito por médico, normatizando a profundidade
das covas e o tempo que deviam ficar fechadas e proibindo enterros nas igrejas e conventos, que fosse
Medicina, através de sua comissão de salubridade, esteve desde a origem de sua elaboração,
consolidando a posição dos médicos no apoio às autoridades para o estabelecimento das medidas de
urbanização84. Leis que não foram cumpridas. Em 1841, um projeto dirigido à Câmara traz à tona
novamente o assunto da construção dos cemitérios, que ela se ocupasse o “quanto antes da instituição
de cemitérios, para de uma vez cessarem os enterros dentro das igrejas”85. Diversas normas eram
ditadas pela Câmara, o que significa que elas não eram cumpridas. Os motivos e envolvimentos socio-
políticos pela criação dos cemitérios não é uma questão para ser trabalhada neste trabalho, requerendo
Durante a primeira metade do século XIX, fortalecia entre as autoridades médicas e políticas, também
entre alguns populares, o medo da contaminação dos vivos pelos cadáveres sepultados no interior das
igrejas ou em cemitérios próximos as casas. Somente com a primeira grande epidemia de febre amarela
na Corte, é que tais cemitérios seriam realmente estabelecidos e os enterramentos deixariam de ser
84
MACHADO, Op. Cit., pp.189-190.
85
AGCRJ – Parecer da comissão instituída pela Câmara Municipal para apresentar um programa para os cemitérios
públicos. Rio de Janeiro: 11/12/1841.
81
realizados nos templos religiosos. A epidemia de febre amarela que assolou a Cidade imperial em 1849
provocou grande impacto sobre os cidadãos, provocando o medo entre os vivos, projetando o temor em
relação aos mortos, na difusão da concepção de que as sepulturas e seus cadáveres eram focos de
contaminação. Há séculos, os sepultamentos eram realizados dentro das igrejas ou ao seu redor, sem que
isso incomodasse a população da Corte. A epidemia trouxe modificações a esse costume. O medo do
contágio e da morte faria com que a proximidade entre vivos e mortos fosse temida, principalmente
higienistas rigorosas para os mais variados espaços da cidade, apontando, dentre elas, a necessidade de
transferir as sepulturas para longe dos limites das cidades; - a presença de uma imprensa cada vez mais
medidas de salubridade, com fins de empreender seu projeto de urbanização. Estes fatores contribuíram
O século XIX marcou o Brasil com o início da transformação no campo da medicina. Ela penetrou na
sociedade incorporando o urbano como alvo de reflexão da prática médica, passando a integrar o poder
do Estado através do apoio científico. O Estado reestruturou suas ações políticas, reconhecendo o valor
político das ações médicas. Deslocando-se o objeto da medicina, da doença para a saúde. Ela não
aceitava mais a ação direta sobre as doenças, apenas, buscava atuar sobre os componentes naturais,
A noção chave deste acordo foi à salubridade. A questão da salubridade levantada pela medicina ligou-
se de imediato ao interesse do país. O nascimento da medicina social teve como um de seus pontos
82
principais a higiene pública, uma luta pela regularização dos regulamentos sanitários, pelo controle de
sua aplicação por médicos, por mudanças nos costumes, pela intervenção nos hospitais, prisões, lugares
públicos, pelo estudo de epidemias e doenças contagiosas. É a extensão da jurisdição dos médicos nas
áreas públicas, privadas e urbanísticas. Uma das correspondências do Ministério da Justiça com a
chefatura da polícia da Corte, em meados de 1866, para prevenir uma epidemia de cólera, escreve
medidas serem tomadas, pois a cólera ataca portos que comercializavam com o Brasil:
- zelo no aceio das praias, praças, lugares públicos, evitando o quanto possível o acúmulo
de detrito e imundície;
- impedir a venda de vegetais selecionados, gêneros secos e líquidos de má qualidade ou
deteriorados; - frequentes visitas domiciliares para obrigarem os habitantes a conservarem o
necessário aceio;
- evitar grandes acúmulos de pessoas em recintos estreitos e insalubres no centro da cidade:
há casas com o nome de cortiços... 86.
A abrangência da salubridade transpõe muros e chega aos cemitérios. Preocupados acima de tudo em
“ditar normas” e investidos do poder de polícia médica, o órgão de higiene pública em 17/10/1888 cria
regulamentos para orientar os serviços funerários, impondo regras rígidas a serem seguidas, o que nem
sempre acontecia. Nas “Instruções especiais referentes aos cemitérios, aos serviços funerários em
86
AN, IJ6 - 517, Série Justiça, Polícia, escravos e moedas falsas, 1866, provável - julho.
87
AGCRJ, códice 8-3-3, Inspetoria Geral de Higiene Pública (atas) p.180. A Instrução é assinada pelo médico
Gonçalves Cruz, inspetor geral.
83
contagiosas não devem receber armações de panos velhos, etc., que se prestem á vehículo
para a transmissibilidade e propagação da moléstia.
... os caixões destinados aos cadáveres infeccionados são construídos iguais aos outros,
porém pintados com mistura de piche e ácido phenico...
... este caixão será colocado dentro de outro de madeira resistente hermeticamente fechado,
com o seu interior protegido pela pintura desinfetante. Estes servirão para proteger os
caixões comuns de enterro, no trajeto da casa ao cemitério...
... o cadáver descerá ao túmulo no primeiro caixão e o outro será reaproveitado, após ser
submetido a desinfecção rigoroso.88
criação do Estado nacional. O período joanino marca o início deste processo. Os problemas
demográficos criados pelo aumento da população na cidade do Rio de Janeiro pela transformação em
Corte imperial acentuaram as deficiências urbanas. A elite tinha hábitos de consumo, lazer, higiene,
vestuário e moradia, que não encontrava respaldo em uma cidade provinciana. A pressão populacional e
médica até o final do século XVIII está muito mais voltada à arrecadação de impostos do que para
saúde, no Império a medicina passou a ser solicitada mais insistentemente. Segundo a concepção de
diversos governantes, o combate às epidemias e à insalubridade tornava-se necessário para fazer do Rio
de Janeiro imperial uma cidade à altura das grandes metrópoles européias, afastando definitivamente o
estigma de doenças, do atraso colonial, e isso só seria possível por meio de grandes reformas urbanas.
Acreditava-se que este era o caminho para conduzir a cidade ao “progresso” e a “civilização”. Cabendo
aos higienistas não somente combater as epidemias, mais ampliando para todos os problemas sociais.
88
AGCRJ, códice 8-3-3, Inspetoria Geral de Higiene Pública (atas). As notas são transcrições de parte dos artigos
das Instruções especiais, artigos 2, 6, 7 e 8, pp. 181/182
84
Para Jurandir Freire da Costa89, um dos trunfos da superioridade médica, foi à técnica de higienização
das populações. Na Colônia a conduta anti-higiênica dos habitantes era um dos empecilhos
fundamentais à saúde da cidade. A ação vigilante da justiça atuava no mesmo universo que caracterizava
a represália aos marginais, com mecanismos de sanções penais. Ela era descontínua, fragmentar e não
era preventiva. A medicina incentivou o interesse do indivíduo por sua própria saúde. Contava ainda,
com a participação do Estado na sustentação de sua política de saúde. Enquanto na Colônia a visão
supérflua, no Império a ética leiga dos higienistas fez ver que a saúde da população e do Estado
Um dos objetos dos higienistas é a família, dirigindo-se exclusivamente às famílias da elite da Corte
Imperial. A medicina, em sua atuação higiênica, recebeu a herança da Colônia. Segundo Jurandir:
Não interessava ao Estado modificar o padrão higiênico da família escrava que deveria continuar
obedecendo ao código punitivo de sempre. Estes, junto com todos os pobres da Corte, eram casos de
infração higiênica. A eles eram dedicadas outras formas de polícias médicas91. Foi sobre a elite que a
medicina fez incidir sua política familiar, criticando a família colonial nos seus crimes contra a saúde.
89
COSTA, Op. Cit., p.29.
90
COSTA, Op. Cit, pp. 30-31.
91
Policia médica passa a ser definida como um conjunto de teorias e práticas que se aplicam à saúde e bem-estar da
população, dizendo respeito a: procriação, bem-estar da mãe e criança, prevenção de acidentes, controle e prevenção de
epidemias, organização de estatísticas, esclarecimentos do povo em termos de saúde, garantia de cuidados médicos,
organização da profissão médica, combate ao charlatanismo. A medicina integrada no Estado adquire estatuto social ao
fazer da sociedade seu objetivo. A polícia médica é sua expressão. MACHADO,Roberto, Op. Cit., p.167.
85
As camadas dos marginalizados, escravos, forros, africanos ou negros, ciganos, em fim dos pobres,
continuam sob a tutela da polícia, ao recrutamento militar ou aos espaços de segregação higienizados
O espaço urbano passou a ser esquadrinhado, a medicina projeta e executa a construção de espaços
específicos que tinham por finalidade um caráter social. Instituições como hospitais, cemitérios, prisões
e hospícios, vistos como frutos do crescimento das cidades e, portanto, indispensáveis ao seu
funcionamento, serviam, segundo os médicos, de focos de doenças, representando um perigo para todo o
urbano. Não podiam e nem deveriam ser abolidos, devendo, porém, ser expulsos do centro urbano das
cidades, já que suas localizações não obedeciam aos critérios da salubridade. Eram infectados ao contato
com os locais onde estavam instalados, e as exalações e miasmas que geravam em seus espaços
fechados, por sua vez, os infectavam, assim como a toda cidade, constituindo-se em focos de epidemia e
contágios.
partir dos primeiros anos de 1850, e as condições de higiene dessas habitações coletivas. Locais de
92
Não cabe nesta pesquisa um detalhamento sobre cortiços, estalagens e Higiene Pública, um estudo mais detalhado
ver Sidney Chalhoub, Op. Cit.; VAZ, Lilian Fessler. Contribuição ao estudo da produção e transformação do espaço
da habitação popular. As habitações coletivas no Rio de Janeiro Antigo, Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado,
PUR/UFRJ, 1985.
93
Segundo CARPENDER, Mary. (apud CHALHOUB, Op. Cit., pp. 20/30) escritora inglesa, que fez um estudo em
1840 sobre criminalidade - classes perigosas, utilizando a terminologia do século XIX, eram constituídas pelas pessoas
que já houvessem passado pela prisão, ou as que, mesmo não tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustendo
e o de sua família através da prática de furtos e não do trabalho. Chalhoub descreve como a classe pobre é “englobada”
pela classe perigosa. Assim, a noção de pobreza de um indivíduo era fato suficiente para torná-lo um malfeitor em
potencial.
86
de escravos, libertos e negros livres em geral. Os hábitos desses moradores eram nocivos à saúde, a toda
à sociedade, porque as moradias coletivas seriam focos de contaminação e disseminação das doenças em
geral. Intensificando-se em meados de 1870 a luta pela demolição dessas moradias coletivas, a decisão
política de expulsar as classes populares das áreas centrais da Corte, vinculadas à política de higiene
pública. Os delegados da Junta Central de Higiene alegavam insalubridade nessas moradias, grande
aglomerado de pessoas por cômodos com pouca circulação de ar e precárias condições de higiene,
permitindo o “ataque” do órgão público. A demolição dos cortiços e estalagens por questões de higiene
Os subdelegados da Junta deveriam visitar regularmente os cortiços e estalagens94 para certificar-se que
os proprietários das moradias coletivas estavam conservando-os dentro do asseio aceitável pelo órgão.
Ficava proibido o enterramento dentro dos quintais dos detritos fecais, das águas servidas e lixos,
deveriam ser despachados nos lugares apropriados. Havia a exigência de locais específicos para as
responsabilidade dos fiscais das freguesias. Essas eram algumas das medidas propostas em projetos
regulamentar a existência das habitações coletivas e a Junta Central de Higiene, encarregada de zelar
pelas questões de saúde pública. Nem sempre o convívio entre os habitantes dos cortiços e
94
AGCRJ, Códice 41-3-36, Cortiços; ofícios da Secretaria de Polícia e do Ministério do Império sobre as medidas a
adotar com referência aos cortiços, 1860. Códice 43-1-25, Estalagens e cortiços. Requerimento e outros papéis relativos
à existência e à fiscalização sanitária e de costumes dessas habitações coletivas, 1834-1889; Códice 44-2-7, fls. 07-20,
Habitações coletivas, estalagens ou cortiços, 1855, 1864 - 1866, 1868. Vários regulamentos foram analisados pela
comissão de postura da Câmara de projetos para melhoria das condições higiênicas das habitações populares da Corte.
87
representantes da Junta foi harmonioso, houve muitos entraves em nome da saúde pública e da
Mesmo com todas as parafernálias do órgão público, imbuídos do poder de polícia médica, do prestígio
social que usufruíam, do controle e vigilância dos subdelegados da Junta, não conseguiram conter o
exercício dos agentes de cura. Os práticos seguem atuando, atendendo aos que os solicitam, exercem
suas atividades à margem do controle oficial. Mesmo com as leis, decretos e portarias instituídas pelos
órgãos responsáveis pela expedição das cartas-licenças, cartas de examinação, existem várias indicações
respectivas cartas. As cartas eram obtidas através de uma avaliação de seus conhecimentos e práticas,
realizadas em geral, por médicos indicados pelas Câmaras Municipais. Os documentos apontam para
uma falha no “controle” desses praticantes da medicina alternativa, mesmo com as multas e penalidades
existentes para suas atuações, existiam poucas eficácias de controle. Os praticantes da medicina não
acadêmica continuam seus ofícios junto às mazelas do corpo doente, durante todo o oitocentos. Há uma
infinidade de aspectos que merecem ser focalizados, os quais vão desde a credibilidade desses
praticantes de cura junto à população e o respeito que gozam até sua sensibilidade para intervir nos
momentos delicados do corpo doente. O diferencial é encontrado mais nos parâmetros da relação
estabelecida entre quem cura e quem deseja ser curado, isto é, entre outros critérios pela credibilidade e
confiança. Essa relação se estabelece em momentos de fragilidade do doente, que recorre a um agente de
cura em que possa confiar. Contribuindo para essa confiança, a concepção de doença e cura, sobre a
95
Um estudo mais minucioso sobre o tema: CHALHOUB, Op. Cit.; VAZ, Op. Cit.; BACKHEUSER, Everardo.
Habitações populares. Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e negócios Interiores, Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1906, publicado anteriormente na Revista Renascença, com o título – “Onde moram os pobres ”; ABREU,
Maurício de Almeida. “Da habitação ao habitat: a questão da habitação popular no Rio de Janeiro e sua evolução”.
Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol1, n°. 2, jan-abr., 1986, pp. 47-58.
88
etiologia e o tratamento do corpo doente, relacionada às visões cosmológicas dessas pessoas,
96
XAVIER, Regina . “Dos males e suas curas”. In: CHALHOUB, Op. Cit.2003, pp.346/347.
89
CAPÍTULO 3:
Os africanos escravizados aqui chegados durante todo o período escravista, provinham de várias regiões
África, assim era difícil registrar a real origem africana dos escravos nas Américas. Entre o final do
século XVIII e 1850, um enorme contingente de africanos escravizados foi introduzido no Brasil,
especialmente no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, oriundos principalmente da África Bantu. A
população escrava na cidade Imperial após as primeiras décadas dos oitocentos ainda era em sua maioria
A demanda por escravos na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XIX, deu-se pela transferência
da Corte portuguesa e a abertura dos portos para os navios estrangeiros. No Rio esse afluxo populacional
incidiu em uma região pouco povoada, sendo a presença africana marcada pelos altos índices, alterando o
ritmo normal do lugar. A cidade cresce em população tornando-se necessário o aumento da mão-de-obra
escrava, estimulando a renovação pelo tráfico de homens. Em 1850 com o fim do tráfico transatlântico, a
população africana não é mais renovada continuamente na cidade Imperial, dá-se o início do tráfico
interprovincial, principalmente da cidade de Salvador e de outros portos nordestinos para a Corte. Cada
97
Cantiga entoada nas Casas de Umbanda atuais, fortificando as ações curativas dos preto-velhos, entidades
ancestrais.
98
KARASCH, Mary. A vidas dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p. 50.
91
grupo cultural africano escravizado, introduzido na cidade, compartilhou uma parte de suas tradições,
A sociedade escrava carioca era inerentemente diferente, porque a maioria dos escravos
fora forçada a deixar tudo e todos que fizessem sentido pra trás. Para esses outsiders, não
havia família extensa para aliviar o fardo da escravidão, nem culturas familiares para
sustentar laços com gerações passadas. Famílias, culturas e comunidades tinham de ser
forjadas novamente na cidade. O desafio para ser escravo no Rio era criar uma vida com
sentido em meio a indivíduos díspares que compartilhavam poucos valores, criar grupos a
partir do caos de muitos.99
A Corte Imperial tinha uma grande população negra. Embora esse número fosse levado, as fontes
“desaparecimento” dos negros, uma das causas estava nas doenças que os afligiam, a cólera, a malária,
varíola, entre outras. A tuberculose foi a principal causa mortis entre a escravaria da Corte, estando
diretamente relacionada com os baixos padrões socioeconômicos de existência. As condições de vida dos
escravos na cidade do Rio de Janeiro, quanto á higiene, habitação, vestuário, alimentação, eram uma das
A doença, segundo Delumeau100, desde o final o século XIII, também pode ser interpretada como castigo
divino à natureza pecadora do homem na terra, relembrando-lhe as suas ações e forçando-o a uma
reflexão, penitência (dor e incômodo) e finalmente, arrependimento. Interessa-nos um exame acerca das
concepções populares de cura na corte oitocentista. Homens e mulheres tinham diferentes “maneiras” de
tratar e lidar com o corpo doente. Utilizavam ritos e ícones religiosos, através da recriação da religião
99
KARASCH, Op. Cit., p. 36.
100
Cf. DELUMEAU, Jean. O medo do Ocidente, 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras,
l989. O autor nos alerta para o fato de que nos séculos XV a XVII, as doenças, pestes e calamidades eram associadas
freqüentemente à cólera divina, relatando a prática de recorrer à misericórdia divina, nos atos de confissão, abstinência
e procissões para aplacar a ira divina, p. 148.
92
tradicional de matriz africana incorporando a cultura popular européia e a indígena. Essas eram práticas
regidas pelo cosmo mágico, representações culturais religiosas de doença e corpo doente.
Havia a idéia entre os negros no século XIX no Brasil, de que determinadas doenças podiam estar
associadas à perseguição deles pelos homens brancos, os senhores de escravos. Neste contexto, a doença
pode ser entendida como “feitiços” a cargo do poder dos feiticeiros que conseguiam manipular as forças
nefastas do universo. O flagelo causado pelo sortilégio mágico era apenas uma das possibilidades, pois
havia doenças provocadas pela violação de uma tradição, por erro ritual, ou pelo descumprimento de
deveres religiosos. Acreditavam que a doença não era coisa natural, as moléstias eram sempre provocadas
por causas sobrenaturais – causas estas que poderiam ou não ter sido realizadas por feitiços, sendo a cura,
prioritariamente ritual. Havia toda uma tradição cultural religiosa sobre doença e cura101, a extensão da fé
que cura. Quando a magia de curar falha a resposta existente é logo explicada, a encontramos em Evans-
Pritchard102: “... se a magia não consegue atingir o seu objetivo, o fato é logo explicado racionalmente
por ter havido alguma desobediência às regras, ou porque se ignoraram certas prescrições, ou porque
Para o entendimento da época, procurar obter curas através de meios sobrenaturais e com a utilização de
objetos “profanos”, aproximavam os agentes de cura da “feitiçaria”, muitos daqueles que lidavam com as
101
CHALHOUB, Op. Cit, p.137.
102
EVAN-PRITCHARD, E.E. Antropologia Social da Religião. Rio de janeiro: Campus, l978, p. 44.
93
práticas de restabelecimento da saúde lhes eram atribuído o termo de feiticeiros. Curavam-se doenças,
mas também se curavam feitiços. A magia era utilizada para solucionar varias situações: problemas
eram ex-escravos, mas o mundo mágico não era restrito somente a eles, sendo utilizado e praticado por
todos aqueles que nele acreditassem, complicando e enriquecendo os cultos, sendo na magia que as
experimenta todos os produtos que estão ao seu alcance, reinterpretando o sentido de objetos e rituais
“estrangeiros”. Novos adereços são disponibilizados para o auxílio às artes de curar. Não só aos escravos
e seus descendentes estava vinculada esta outra medicina, mas a todos que acreditavam em sua atuação,
A população negra numa sociedade senhorial, elitizada, onde na escala hierárquica o escravo e o forro
física, moral e psicológica pelo próprio sistema escravista, sua difícil condição de sobrevivência era de
algum modo compensada com as práticas mágicas, freqüentemente aqueles que detinham os segredos das
curas, do espírito ou do corpo, eram chamados de “feiticeiros”. Detentores de saberes “mágicos”, a fama
pública fazia-os requisitados também por brancos, o que geralmente elevava seu status junto à sua
própria comunidade e possibilitava, através das curas, dos feitiços amorosos e das confecções das
mandigas, a obtenção de ganhos materiais não só em dinheiro, mas ainda em gêneros. Negros
“feiticeiros” também se armaram com suas “magias” para defenderem-se das agruras do cativeiro, em
103
Ver SAMPAIO, Gabriela. Nas Trincheiras da Cura – as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial.
Campinas: Unicamp, CECULT-IFCH, 2001. Mostra que não somente os desfavorecidos, os pobres, procuravam os
serviços dos curandeiros; os documentos da Fisicatura comprovam o mesmo, Arquivo Nacional (AN) - Fisicatura-Mor,
caixa 478.
94
tentativas variadas de aplacar a ira senhorial, escaparem de castigos e maus-tratos, dessa forma resistindo
No Brasil os africanos escravizados urdiram toda sorte de práticas mágicas para se livrarem da ira de seus
senhores. A resistência ao sistema escravista no mundo colonial se apresentou sob diversas formas, desde
formas explícitas – como as fugas individuais e coletivas, revoltas e formação de quilombos – até as mais
sutis, vinculadas ao quotidiano e vivenciadas no interior do próprio sistema, como roubos, suicídios,
segunda categoria, sendo consideradas necessárias à formação social escravista colonial, uma vez que
eram, ao mesmo tempo, alternativas de luta contra o sistema, “muitas vezes a única possível”105, e
Uma das funções mais importantes dos chamados “feiticeiros” era curar doenças e enfermidades. Tendo
em vista, que também a população da Corte imperial, acreditava que as moléstias eram causadas por
forças não biológicas, como mau-olhado, maus pensamentos, maus espíritos, bruxaria e feitiçaria;
somente os “feiticeiros” eram freqüentemente bem sucedidos na cura, em especial, dos escravos. Para
Mbiti:
104
REIS, João & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
105
MELLO E SOUZA, Laura. O Diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 205. No Brasil essa crença no poder redentor e purificador da violência física
encontrou aliado na necessidade escravista do castigo exemplar. Escravos podiam ser legitimamente castigados também
porque eram feiticeiros. Enxergá-los como feiticeiros, por sua vez, foi uma das manifestações da paranóia da camada
senhorial na colônia.
95
os escravos ficassem invulneráveis, adivinhar o futuro e, sobretudo, curar doenças,
106
detectando e expulsando bruxos e feiticeiros. (Grifo nosso).
Karasch, baseada em Gerald W. Hartwing traz a distinção africana entre feitiçaria e bruxaria, já que,
muitas vezes, os escravos no Brasil, ficavam doentes ou morriam e lhes eram atribuída como causa a
feitiçaria ou bruxaria:
Em muitas sociedades africanas, faz-se uma distinção entre bruxaria (“uma responsabilidade
inconsciente pelo dano”) e feitiçaria (uma “intenção consciente” de causar dano). A
(responsabilidade inconsciente) pelo dano aplica-se à relação entre senhores, doenças e
morte de escravos, pois os donos não conseguiam compreender todas as conseqüências de
sua decisão de possuir escravos sobre a saúde e a expectativa de vida. Os escravos, por sua
vez, talvez entendessem as doenças como as armas de seus senhores, ou seja, como feitiçaria
daqueles que pretendiam causar-lhes dano.107
Há estudos sobre o Brasil colônia, de Laura de Mello e Souza, baseados em fontes geradas pela
Inquisição, onde homens e mulheres por exercerem atividades de curas preventivas, foram acusados e
interrogados, pelo ilícito de feitiçaria e bruxaria108. Sem dúvida os africanos que eram especialistas no
restabelecimento das mazelas, conhecedores dos preparos de ervas e remédios para o tratamento de
moléstias tropicais tinham êxito. Dessa forma, a maioria dos escravos da Corte procurava a atenção
médica de seus líderes religiosos, e as escravas geralmente eram atendidas no parto por negras mais
106
MBITI (apud Karasch, p. 12); ver também, SAMPAIO, Gabriela. A história do feiticeiro Juca Rosa: cultura e
relações sociais no Rio de Janeiro Imperial. Tese de doutorado em História, IFCH – Unicamp, mimeo., 2000. Gabriela
nos diz que várias pessoas, de camadas sociais diversas, procuravam por Juca Rosa, nome que era conhecido um
famoso feiticeiro da corte, para tratar de diferentes problemas, amorosos, financeiros, doenças, proteger contra
malefícios (utilizando para isso, o uso junto ao corpo de amuletos e ou breves).
107
KARASCH, Op. Cit., pp. 539-540, nota l do capítulo 6 – Armas dos feiticeiros: doenças; mais conceitos de bruxaria
e feitiçaria como causa de doença e morte são explorados no capítulo 9, da mesma obra.
108
MELLO E SOUZA, l986. As fontes utilizadas foram as devassas eclesiásticas, aqueles que utilizavam formas
alternativas para curar doenças, lhes eram atribuída essas curas, ao pacto com o diabo. Examina dois processos em face
de negros presos pela Inquisição, acusados de práticas mágico-religiosas pelo uso da bolsa de mandinga em Portugal: o
de José Francisco Pedroso, e o de José Francisco Pereira, natural da Costa da Mina, escravos no Brasil antes de irem
para Portugal, p. 318.
96
Usando o sentido amplo das concepções populares de doença e cura, existia a forma de prevenção do
infortúnio, da mazela física, através do uso das cartas de tocar e bolsas de mandigas. Com a função de
amuletos, desde a época do Brasil colônia, costumes também utilizados pelos escravos e forros em
Portugal. Tinham por finalidade prevenir contra as armas de fogo ou brancas, proteger contra malefícios.
Lahon109 utilizando as fontes dos processos inquisitoriais em Portugal, examina as “magias” africanas,
estuda o uso das bolsas de mandinga (Cf. figura 06). Atribuí sua origem aos negros mandingas,
denominação genérica (imprecisa) aos povos instalados no território mandinga da Alta Guiné. O seu
conteúdo era diferentes e indeterminados pós, cabelos, unhas de aves e papéis com orações cobertas por
cristão utilizado numa outra prática de proteção. Para sua eficácia era necessária uma série de ritos
“agregando” materiais da religião tradicional africana e catolicismo popular. Uma outra forma de
proteção, descrita pelo autor, era a carta de tocar, um conjunto de papéis que se devia usar junto ao corpo
para, através desse contato, lhe transmitir as suas virtudes protetivas. Neles encontravam-se referências
aos objetos contra os quais se pretendia ser protegido, as armas brancas ou de fogo. Continha igualmente
diversos grafismos com símbolos da paixão de Cristo, uma série de palavras ou orações nas quais se
exprimiam as virtudes que se pretendiam alcançar. As orações escritas freqüentemente recorriam a São
109
LAHON, Didier. “Inquisições, pacto com o Diabo e “Magia” africana em Lisboa no século XVII”. Revista Topoi,
Rio de Janeiro, n°8, pp. 9-7, 2005, p.27. Também MELLO E SOUZA, 1986, faz referência a sua larga utilização entre
os africanos escravizados no Brasil colônia.
97
O forro Joaquim do Congo é preso na freguesia de Santa Rita por tentativa de roubar um senhor, dentre
seus pertences é encontrado um amuleto que trazia preso por um alfinete a sua camisa110. O dito talismã
é composto de vários objetos que juntos confirmavam sua eficácia protetiva. Composto de um saco feito
indeterminado, um pedaço de chumbo, um moeda de prata, um osso e alguns papéis com grafismos
variados e orações. Estas como outros símbolos de difíceis compreensão deveriam ser colocadas embaixo
da pedra do altar de uma igreja, mais não era qualquer uma e sim, igrejas com santos padroeiros negros,
santos de devoção da população negra. As folhas de orações eram dobradas e reduzidas a um pequeno
Examinando os objetos encontrados na dita bolsa: a pedra de raio também conhecida como pedra-de-
corisco associada à deidade dos trovões, justiceiro, poderoso e viril. No panteão Bantu é chamado por
Nzazi, Laman111 o cita como o próprio raio ou pai do trovão. Na África, essas pedras são achadas quando
os raios atingem outras grandes, que são quebradas pelo seu impacto e atribuídas a uma deidade o seu
domínio e poder:
...estas pedras são associadas aos cultos dos deuses do céu e, sob forma de machado de dois
gumes, simbolizam Xangô. Onde cai o raio, os seus sacerdotes procuram as pedras-de-
corisco lançadas pelo orixá, consideradas como a emanação do deus e portadoras de axé, a
sua força mística. Para manter sua força e vitalidade, as pedras são depositadas sobre um
altar, feito de almofariz de madeira esculpida, e aspergias com o sangue dos seus animais
consagrados, o carneiro em particular.112
110
AN (RJ), Série justiça – polícia, escravos e moedas falsas, IJ6516, 1862. O preto forro Joaquim do Congo fora
preso por tentativa de roubo e não pelo porte de bolsa de mandinga ou prática de feitiçaria, não havendo alusão a
depoimentos de testemunhas pelo uso de práticas mágicas.
111
LAMAN, K. Dictionnaire Kikongo-Français. Bruxelles: Institut Royal Colonial Belge, 1936, p 156. No panteão
Bantu Nzazi é destinado a acalmar a cólera do raio, o próprio raio em si mesmo. É semelhante ao Xangô do panteão
Yorubá, que também é representado pelos trovões e raios.
112
Ver LAHON, Op. Cit., p.35.
98
Para as pedras, os grafismos e as orações adquirirem valor sagrado tornavam-se necessário uma série de
rituais simbólicos para serem emanadas de forças mágicas, capazes de proteger seus portadores dos
infortúnios e restabelecer a harmonia. As orações e os desenhos eram colocados sob a pedra de um altar
de um templo católico, sobre a qual um certo número de missas devia ser celebrado, tornando-os talismãs
poderosos. A correspondência simbólica entre a pedra de altar da igreja e o sacrifício realizado sobre o
altar consagrado a Xangô na África, é tão evidente que a pedra de altar era chamada pela população negra
de pedra de ara. Outro componente encontrado na bolsa foi o olho-de-gato, também, portador de
dualismo interpretativo. Por um lado, possui a qualidade de clarividência, na África Central as bolsas dos
curandeiros eram fabricadas com a pele do gato selvagem113. De outro, a sua visão noturna está ligada a
Os africanos escravizados, forros e libertos utilizavam também escapulários, dois pedaços de pano
bordados, presos por um cordão duplo com um retrato de um santo e sua oração, de Santa Ephigênia, São
Benedito, São Elesbão ou Nossa Senhora do Rosário, que eram santos de suas devoções; costurados em
saquinhos e usados junto ao corpo, também utilizavam um cavalo-marinho, unido à pele. As negras
velhas, muitas delas, especializavam-se em fazer amuletos de obi114 para afastar o mal e o mau-olhado
(CF. figura 07). Era comum encontrar-se na frente de uma barbearia de um negro um chifre de carneiro
pintado com as pontas de vermelho, contendo um obi, preso na parede de frente para a porta de entrada,
para defender das influências negativas115. Realmente eram várias práticas mágicas associando métodos
de proteção que se reforçavam mutuamente: a bolsa de mandinga, a carta de tocar e os talismãs. Mas
113
Conforme MAUPOIL, B. La Geómance à làncienne côte des esclaves. Paris: Institut d`Ethnologie, 3ª ed., 1998, p. 104.
114
Obi é um fruto ritualístico, a noz-da-cola. É fruto de árvore africana aclimatada no Brasil, indispensável nos ritos da religião
de matriz africana, também é usado nas comidas africanas.
115
EWBANK, Thomaz. Life in Brazil; or a journal of a visit of the cocoa and the palm... 1856. Reimpressão. Detroit, 1971, pp.
248-249. O autor explica o uso desses amuletos, inclusive um pequeno feito de chifre de boi, utilizado para os mesmos fins.
99
não podemos pensar que era especificamente de origem africana e sim resingnificações de materiais da
religião tradicional da África agregados a outros do catolicismo popular. Não somente lançava-se mão da
magia para curar, mas também para prevenir, contra aqueles que tinham o poder de movimentar as
forças sobrenaturais do universo. Os amuletos eram manipulados como talismãs poderosos que poderiam
tornar o seu portador invulnerável as mazelas, ferimentos de armas, mordidas de cobras e outros animais.
Principalmente em uma cidade onde as doenças, as rixas, os ajustes de contas e, inumeráveis confrontos
Amuletos individuais para trazer boa sorte ou afastar o mal, especialmente a doença, estavam por toda a
parte, usavam-no abertamente sobre o corpo ou em suas roupas. Seus usuários podiam exibir abertamente
as imagens dos santos sem risco de serem perseguidos pela polícia ou de verem seus ídolos destruídos. A
crença no poder de curar, proteger e confortar as pessoas atribuídas aos santos contribuía para costurar
solidariedades diárias entre aqueles que procuravam o auxílio espiritual desses seres. Cada santo tinha a
sua própria especialidade nos ofícios de cura. A adoração dos santos e dos objetos sagrados realizava o
desejo de conforto e proteção espiritual dos fiéis. A veneração a um determinado santo fundamentava-se
na crença de que além de ele representar um exemplo ideal de conduta podia acionar recursos para aliviar
as adversidades enfrentadas pelos seus adeptos no plano terrestre, de tal maneira que as doenças, as
procissões e as localidades, eram confiadas aos cuidados especiais de um santo apropriado. Delumeau116
esclarece que a devoção a São Sebastião como protetor contra as doenças epidêmicas era oriunda do
116
DELUMEAU, Op. Cit., pp. 113-116.
100
ocidente desde o século VII, após a peste negra de 1348 a sua “fama” se consolidou. Desde os tempos
medievo construiu-se hagiografias para dar sustentações aos mitos e crenças cristãos, a história de São
Sebastião como protetor das epidemias obedece a relações analógicas. O imaginário cristão acreditava
que a peste atingia a população em forma de uma chuva de flechas, enviadas por um Deus colérico com
as condutas humanas. São Sebastião havia morrido crivado por elas, os devotos passaram a acreditar que
o santo os protegia contra a doença que fossem pestilentas. Há fortes indícios de que certos santos e
deidades possuem o “poder” de controlar determinadas doenças e seus efeitos, podem prevenir ou
provocá-las, concordamos como Chalhoub quando ele identifica essa particularidade como “controle
dual”.
Os santos eram enviados por Deus, intercessores divinos, ligando o profano ao sagrado ajudavam
aliviando as dores. Os principais “advogados” celestiais eram: São Brás curava as afecções de garganta,
as brônquicas; São Miguel Arcanjo considerado o príncipe dos extirpadores do câncer e tumores; São
Francisco de Paula removia as cataratas dos olhos, tumores do cérebro e água da cabeça; São Judas
Tadeu era amigo dos asmáticos e famoso em remover obstruções de suas traquéias, seu pagamento era
um par de velas; Santa Isabel protetora dos hospitais; Santa Bárbara protegia contra os raios e ferimentos
deles decorrentes; São Lázaro era o patrono do leprosário da cidade; Santa Rita a quem se atribuía o
poder de tornar possíveis as coisas impossíveis e curar doenças incuráveis. As diversas versões de Nossa
Senhora: Nossa Senhora da Saúde, das Dores, da Glória, de Belém, da Candelária, da Boa Morte, do
Bom Sucesso, da Conceição, do Parto, do Rosário, do Carmo, da Ajuda, das Cabeças, Mãe dos Homens,
cada uma delas com suas imagens e seus símbolos próprios. Ajudando e intercedendo ao sagrado pelo
bem estar de seus “filhos”, auxiliando os homens a redimirem-se de seus pecados e serem merecedores
101
Para Chalhoub117, a febre amarela, em meados dos oitocentos, que atingiu vários centros urbanos
brasileiros, no Rio de Janeiro, era entendida como: “... a idéia de que o vômito preto era o anjo da morte
que Deus enviou a esta cidade, é o enviado da justiça de Deus, a cólera divina fora despertada pelos
vícios e pecados da população do Rio...”. Lembremos que a população acreditava que as epidemias
poderiam ser causadas pela ira de Deus contra os pecados dos homens, através da dor forçando-os ao
arrependimento. A doença e a morte seriam decorrências do pecado original, maldição divina de Adão e
Eva e toda sua descendência, as mazelas do corpo eram oriundas na concupiscência da alma. Os santos
Nestas ocasiões as irmandades se esforçavam em preparar com esmero as procissões de penitências aos
seus santos padroeiros, como forma de arrependimentos pelos atos pecadores praticados. Em especial a
de São Roque e São Sebastião, considerados advogados contra as doenças epidêmicas, as pestes. Em
épocas que a cidade era agravada pelas pestes, os periódicos listavam uma lista enorme de procissões em
louvores aos santos118, bem como preces e ladainhas, em especial em intenção a São Benedito, santo
negro, que fora apontado como causador de uma das reincidências da peste após a procissão de cinzas de
1849. Carregados de preconceitos os participantes que integravam o cortejo, naquele ano, recusaram-se a
carregar o andor com a imagem de São Benedito, ficando ele esquecido na sacristia da igreja, sob a
alegação de que “branco não carrega negro nas costas, mesmo que seja Santo”119. Uma grande
epidemia atingiu o corte e foi entendida como vingança do Santo abandonado. No ano seguinte, São
117
CHALHOUB, Op.Cit., p. 162.
118
Ver os periódicos - Diário do Rio de Janeiro e Jornal do Commércio, em especial de 24 de março de 1850, na
seção “Comunicados.
119
CHAULHOUB,1996, Op.Cit., p. 137.
102
Benedito ocupou o seu lugar devido no séqüito, ganhando novos adornos e não faltou quem lhe quisesse
carregar o andor.
avaliação popular, a hóstia e a água benta eram vistas especialmente como uma espécie de medicamento
para os doentes e uma defesa contra as doenças epidêmicas. Thomas Ewbank120, um dos visitantes no
Rio, alude a um enorme consumo de hóstias e de água benta na quinta-feira santa nas diversas igrejas que
ele visitou por ocasião da Semana Santa. A simbiose entre o sagrado e o profano era uma constante no
universo da religiosidade popular no Brasil desde os tempos coloniais, mesclados pelas tradições
européias, indígenas e africanas. No Velho Mundo a piedade cristã das classes pobres convivia em plena
harmonia com antigas crenças de origem “pagãs”, muitas vezes, assumiam novos significados atribuídos
pela reinterpretação dos fiéis, no Brasil era comum que feitiços e orações se completassem. Na vida
cotidiana das famílias uma mazela invisível se abatia principalmente sobre as crianças, mas podendo
também fazer os adultos de vítimas, era o flagelo do “mau-olhado”, o Ewbank testemunhou o quanto era
O povo do Brasil padece disto. Formosas crianças padecem por causa de forças terrenas e
extraterrenas que lhes invejam a beleza; e não apenas bruxas e ogres, como ainda senhoras
elegantes possuem olho gordo. Quando o cabelo de uma mulher se torna prematuramente
cinzento ou caí por alguma doença, em nove casos sobre dez o responsável é o olhar de
alguma invejosa. Uma jovem senhora de nossa vizinhança tinha até há pouco tranças iguais
às de Eva em comprimento e macieza. Perdeu-as e ela diz que sabe muito bem qual é a
pessoa de sua amizade responsável pelo desastre. Quando um estranho acaricia a cabeça de
uma criança e diz que ela é bonita, etc., a ama e os pais inquietam-se, se ele não concluir
pedindo a Deus ou aos santos que a abençõe, isto sendo a prova de que não lhe está
dirigindo um mau-olhado. O poder de murchar diz-se estar associado àquele pelo qual as
serpentes atraem pássaros para as suas goelas; e que as humanas vítimas, uma vez atacadas,
adoecem, definham e se não forem socorridas morrem.121
120
EWBANK, Op. Cit., p. 174.
121
EWBANK, Op. Cit., p. 189.
103
Um amuleto muito importante era as figas, o uso desse talismã era bastante generalizado em todos os
moradores da corte, independente de sua condição social, confeccionados em ouro, prata ou marfim,
chumbo, coralina, chifres, ossos e madeira. A principal função era de proteção contra as doenças, mau-
olhado e feitiços. A sua utilização remonta a Antiguidade, onde eram usadas nos ritos de fertilidade
celebrados nas Ilhas mediterrâneas, chegando até o Ocidente pela expansão do Império Romano.
Segundo Ewbank, o primeiro dinheiro que um africano escravizado conseguia era empregado na
aquisição de uma figa. Também os chifres desempenhavam papel relevante de proteção, possuidores de
Agregando aos feitiços e as rezas, a população negra da Corte Imperial cercava-se de muitos talismãs
“sagrados” e “profanos” como forma de prevenção contra as forças espirituais malignas capazes de
provocar infortúnio (CF. figura 08). Independente do sexo, da idade e classe social, as pessoas recorriam
ao seu auxílio para se defenderem das mazelas provocadas pelas forças negativas do universo, alterar o
curso natural das circunstâncias quando desfavoráveis, afastar e curar doenças. O conteúdo simbólico
das combinações, cores, texturas, quantidades e materiais desses amuletos juntamente com vestimentas,
Ainda continuando com as observações do nosso viajante inglês radicado nos Estados Unidos, Ewbank,
sendo de religião protestante ele ignorava os significados dos ritos católicos e as práticas populares de
devoção aos santos. Numa visita a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, foi testemunha de um ato
Ao devotarem-se a um santo, os fiéis entrariam no circuito proposto por Geertz123 na medida que a
estes que estariam condicionados pela inserção sociocultural do devoto, já que é segundo o seu
patrimônio social que ele pode apropriar-se da figura do santo. Neste sentido, a devoção se colocaria
também com um dos componentes possíveis da construção de representações sociais, já que cada grupo
ao se estruturar para o culto nele imprime a sua marca e o faz veículo de suas questões particulares. Não
podemos esquecer que as questões sociais e raciais funcionaram como substrato para a construção das
práticas devocionais e, neste sentido, a identificação dos fiéis com seus respectivos santos de devoção
também se orientou pelos critérios presentes naquela sociedade. Deste modo, em tese, não só negros não
deveriam freqüentar igrejas e/ou irmandades de brancos, como também, os brancos não se identificariam
com os santos dos negros. Assim, a identidade se construía através do estabelecimento do contraste,
122
EWBANK, Op. Cit., pp. 218-219. Este mesmo episódio foi examinado por Márcio de Souza em seu estudo sobre
concepções de doença e cura. Cf. SOARES, Márcio de Souza. “A doença e a cura - saberes médicos e cultura popular
na Corte imperial”. Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, mímeo., 1999.
123
GEERTZ, Cliffod. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, l989, pp. 101-142. Ao propor o estudo
da religião enquanto sistema cultural, Clifford Geertz justifica sua pretensão argumentando que as suas possibilidades
se dão pelo fato de que a religião: modela comportamentos, motiva ações, ordena o mundo do crente, atualiza para ele a
divindade no mundo, interagindo e conferindo-lhe sentido.
105
onde a percepção do outro e do que lhe é inerente era fundamental na construção do perfil sociocultural
do grupo.
No plano da vida cotidiana, as escolhas dos votos devocionais se orientavam pelos critérios sociais de
distinção que embasavam uma sociedade escravista do Antigo Regime. Criou-se a idéia da existência de
santos para negros e santos para brancos. Segundo Luiz Mott124, alguns eclesiásticos argumentavam que
o culto a santos pretos poderia provocar nos brancos, atitudes de humildade, mas não era a realidade, o
episódio do “andor de São Benedito” da quarta feira de cinzas no ano de 1849, fornece-nos um excelente
estereótipos que, relacionados à cor da pele, ajudaram a identificar aqueles santos com a população
negra. Os africanos escravizados, forros e livres construíram laços de identificação com os santos
pretos. Estes laços passaram pelos arranjos da vida diária, onde as diversas redes de solidariedades
construídas se viram reforçadas pela proteção do santo de devoção. A identificação dos santos pretos
com a população negra pode ter sido forjado numa maior confiabilidade. Os santos podiam ser
considerados “parentes”, no uso extensivo da palavra, na similaridade da cor da pele. Como já vimos no
primeiro capítulo, para a concepção africana de parentesco125, classificada pela literatura antropológica
de “família extensa” ou “alargada”, com a ruptura dos laços familiares provocada pelo tráfico de
homens, parente pode ser todo aquele “semelhante”, abrangendo todos da mesma nação e por extensão
todos da mesma cor da pele. Um negro sentado à porta de uma barbearia exclama: “lá vem meu
124
Ver MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1993, p. 244.
125
Ver pp. 37-38 do I capítulo dessa Dissertação.
106
parente”126, quando à vista uma procissão, com o andor de Nossa Senhora representada em imagem de
pele negra.
Xapanã era um dos orixás mais conhecidos. A extensão do culto deste orixá entre nós é
verdadeiramente extraordinário. Em épocas epidêmicas, a cidade apresenta-se coberta de
sacrifícios – milho torrado com azeite-de-dendê pilado ou não – que são lançados em todos
os pontos em que as ruas se cruzam. 127
O comércio transatlântico de africanos tem seu término a partir de 1850, intensificando-se o translado
interprovincial, principalmente, entre a Bahia e a Corte. A cidade do Rio de Janeiro recebe um número
significativo de africanos escravizados sudaneses. Junto com eles chegam suas divindades, pertencentes
ao panteão Yorubá, é esclarecedor examinarmos como doença e cura está inserido em seu complexo
cultural. Assim como os Bantu, para os Yorubás as doenças possuem uma dimensão não biológica.
As divindades dos panteões africanos, quase todos, possuem controle dual, tanto podem prevenir quanto
causar determinados infortúnios. Na cultura Yorubá, Omulu é considerado “o orixá da varíola”, e por
extensão da doença/cura, Herskovits128 esclarece, “se o Senhor da Terra” havia trazido a doença, só a ele
126
QUINTÃO, Antonia Aparecida. “Lá vem meu parente”: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em
Pernambuco (século XVIII). São Paulo: Annablume, 2002.
127
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional/Editora da Unb,
1982, p. 138. Orixá do panteão Yorubá, Nagô, oriundo da África ocidental, a Nigéria atual. RODRIGUES,Nina
escrevendo sobre Salvador, examina a importância do culto a Xapanã para a epidemia de varíola, portador do controle
dual -tanto pode prevenir, afastar a possibilidade da doença como causá-la, como castigo por algum erro ou desrespeito
aos ritos religiosos.
128
CF. HERSKOVITS, Melville J. “African gods and catholic saints in the new word negro belief”. American
Anthropologist, XXXIX (4), 1937, p. 136.
107
competia proteger a sua gente e livrá-la de seus efeitos. Edison Carneiro chama Omolu de “médico dos
pobres”, de protetor dos negros humildes da Bahia. “Ele espalha a bexiga, a devastação e a peste, mas
deixa de lado, na sua faina destruidora, os filhos do continente africano. Ele protege, com o seu grande
corpo dolorido, a saúde das criaturas de Olorum...”129. Lê Hérisse descobriu que Sapatá-Omolu130 é,
mais ainda do que apenas a divindade da varíola, é o “fetiche do solo”, para empregar sua própria
expressão, ou, para a usada pelos africanos, o “rei da terra”. A varíola, para uma grande maioria dos
negros, era entendida como o castigo enviado por Omolu a todos que o desdenham ou deixam de adorá-
As causas das bexigas não são conhecidas; só se sabe que esta moléstia se comunica não só
pelo contágio, pela simples aproximação, mas até pela habitação nos mesmos lugares. Com
freqüência, grassa epidemicamente sobre muitas crianças e pessoas jovens da mesma
cidade; mas esta epidemia, geralmente mui mortífera, só se observa nos países em que a
ignorância, os preconceitos, ou a incúria se opõem à propagação da vacina.131
Com o entendimento de que as epidemias, principalmente da varíola, eram causadas por vontade das
divindades, por castigo de Deus, ou por qualquer outra causa não biológica, a campanha da vacinação
antivaríola encontrava um importante empecilho para sua atuação, especialmente, junto à população
negra da corte. Contribuindo para isto estavam as concepções religiosas de matriz africana dos diversos
grupos étnicos, que acreditavam que a moléstia devia seguir o seu curso natural sem interferências
externas. O lanceiro era visto com um agressor, aquele que pretendia intervir na vontade da divindade.
Seguindo os “saltos e saltinhos” de Chalhoub, ele esclarece que havia muito preconceito sobre a vacina,
havia tradições culturais diversas: bantu, yorubá, católica, médica e outras mais, convergindo para a
129
CARNEIRO, Edison. Negros Bantus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Biblioteca de Divulgação Scientífica,
XIV, pp. 85-90, 1937.
130
LÊ HÉRISSE, L’ ancien royaume du Dahomey, p. 128, apud, Herskovits, Dahomey, na Ancient West África
Kingdom, cap. XXVII 1938. O nome Sapata não é muito conhecido no Brasil, onde existe sob a forma de Xapanã; mas
é um nome “tabu” que pode acarretar doenças da pele a quem a pronuncia. Eis por que, na conversão, o termo é
substituído por Omolu.
131
CHERNOVITZ, (apud CHALHOUB, Op. Cit., p. 178).
108
noção de que dispensável e até ilegítima a intervenção do médico no tratamento da varíola. A
problemática da vacinação não é nosso objetivo central, deixemos maiores discussões para seus
estudiosos.132
Para as comunidades negras da corte, a crença na etiologia sobrenatural da doença servia para unir as
religiões de matriz africana e o catolicismo popular. Entre povos da África, do Dahomé, da região dos
Yorubanos e do centro africano, uma epidemia de varíola era um castigo que funcionava como
purificador dos males de uma comunidade inteira, a tentativa de interromper a marcha das “bolhas” era
devastadora implicando em mortes. Roger Bastide133 afirma que “a varíola é prova da amizade da
divindade, um sinal de Deus de tomar como ‘cavalo’ tal ou tal pessoa”. Ele conheceu alguns filhos de
Omulu que traziam no rosto as cicatrizes da mazela, para eles as marcas eram as formas da deidade
O conceito de controle dual trazido por Chalhoub para a divindade Omulu pode ser estendido a outros
orixás, cada um deles é possuidor de uma “especialidade e responsabilidade”, variando da forma mais
branda até a mais agressiva dela. O orixá Ogum pertencente ao panteão Yorubano, responsável pela
agricultura, tanto pode propiciar uma boa colheita quanto à perda dos grãos plantados. Ogum é o
“ferreiro” dos orixás e como todos os instrumentos que trabalham a terra são confeccionados em ferro,
132
Ver CHALHOUB, 1996, Op. Cit., A temática é centrada na cidade do Rio de Janeiro do séc. XIX, com a campanha
de vacinação antivaríola, as dificuldades sociais para sua prática, tendo em vista as diferentes concepções de doença/cura
para os diversos estratos sociais da população da Corte, as condições de insalubridade da cidade. Também ver,
NEEDELL, Jeffrey. The Revolta contra vacina of 1904: the revolt again “modernization” in belle-epopgue Rio de
Janeiro. HAAR, Durhan, v. 67, nº 2,pp. 233-269, may 1987; SEVCENKO, Nicolau. A revolta da Vacina: mentes
insanas em corpo rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.
133
CF. BASTIDE, Roger. Medicina e magia nos candomblé. In: RIBEIRO, René, e ______. Negros no Brasil:
religião, medicina e magia. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes, 1971, p. 14.
109
tornou-se a divindade da fertilidade dos grãos, da agricultura. A divindade feminina Yansan é
responsável pelos ventos, desde a brisa que refresca às tarde até o furacão que a tudo arrasa.
Nesse seu complexo cultural medicina e magia recebem a mesma denominação em virtude da
As mazelas físicas tinham suas origens na violação dos tabus, no descumprimento dos deveres para com
concebidas como castigo enviado pelas deidades ou pelos ancestrais, para os yorubás – eguns, quando
não se cumpriam suas obrigações para com eles. Os Orixás tem sob seu domínio tipos específicos de
doenças, detêm o poder da cura ou da prevenção. Cada orixá era considerado responsável por um
134
RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana no Brasil – os Iorubás. São Paulo: Oduduwa, 1996, p. 170. Osanyn é
uma divindade do complexo cultural yorubano, tendo seu domínio na floresta e sendo o responsável pelas ervas
(folhas), portador dos encantamentos que sacralizam as plantas, tornando-as curativas.
110
Relação entre Orixás de matriz cultural Yorubá e doenças - Corte Imperial
No panteão Yorubá como no Bantu, as folhas são utilizadas para vários ritos, inclusive e imprescindíveis
para as curas de doenças. O sistema de classificação das plantas está diretamente relacionado as
propriedades que lhe são atribuídas. Osanyn135 é o orixá da essência do mundo vegetal, conhecedor das
possibilidades terapêuticas de todas as plantas. É o segredo sagrado das folhas, que permite a esta
divindade o acesso a um saber de vital importância. Cada folha possui determinada virtude, há folhas da
fortuna e da felicidade, da longevidade, da coragem, das roupas, do corpo, dos pés, etc., mas existem
135
No panteão Bantu Katendê é o equivalente ao Osanyn do panteão Yorubá.
136
AUGURAS, Monique. O duplo e a metamorfose. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 120.
111
Relação entre Orixás de matriz cultural Yorubá e as folhas sagradas
Osanyn representa os segredos e as virtudes medicinais das ervas, até mesmo os outros orixás
necessitam dessa força da natureza. Cada deidade tem suas próprias ervas, mas Osanyn é o dono das
folhas e do conhecimento, ele detém o encantamento capaz de tornar uma folha profana em sagrada. Há
plantas para tudo, para as doenças, para alegria, amor, dinheiro, paz. Também para as tristezas, misérias,
112
As funções protetoras das ervas não aparecem explícitas nos discursos da cura, do mau-olhado, do
afastar maus espíritos, dos banhos de limpeza e dos banhos de cheiro. Proteção significa auxílio, ajuda,
abrigar, dedicação à pessoa ou coisa. A proteção estabelece a ligação entre os dois mundos: visível e
invisível. Segundo as religiões de matrizes africanas a vida não pode ser pensada sem as folhas.
Precisamos saber quando usar esta ou aquela folha, qual é a indicada para cada necessidade do
ancestral ou da violação de um tabu havia aquela em que era considerada como resultado da ação de
espíritos malvados. Podendo a enfermidade ser provocada por um feitiço, mas, de um modo ou de outro,
a doença era concebida como algo estranho instalado no interior do corpo doente. A crença generalizada
na possibilidade das doenças serem provocadas por feitiços era um pólo de tensão entre a população
“...estando ela testemunha ferida em sua casa e ajuntando-se aí gente começaram de tratar
de quem a curaria e vieram a falar em Tomé do Congo curador [...] E vindo o preto Tomé
do Congo seu marido dela testemunha e um outro escravo o acompanha [...] desejosos de
saber quem na ferira rogaram ao dito preto Tomé curador que lançasse água ao modo dos
curandeiros e lançando-a dissera que uma Leonor Fernandes mulher dum João Lopes lho
mandara fazer. Proferiu certas palavras estranhas, rezou com o auxílio de uma cruz,
esfregou umas ervas desconhecidas, cuspiu sobre a ferida e passou uns pós. Amarrou a
137
GEERTZ, Op. Cit., p. 106. Cf. o autor, o argumento de que os padrões culturais são modelos, que eles são
conjunto de símbolos cujas relações uns com os outros modelam as relações entre as entidades, os processos nos
sistemas físicos, orgânicos, sociais ou psicológicos. Os “modelos para” dizem respeito ao aprendizado automático, os
“modelos de” dão significados a forma psicológica e social, são as relações expressas no simbólico.
113
perna com uma fita de cor carmim. Tudo que o fez fora acompanhado pelo escravo que o
seguiu, repetindo tudo que o mestre falava, como se fora um eco.”138
Tomé do Congo era um “preto” acostumado com as “coisas de curas”, radicado na freguesia de Campo
Grande e Irajá, nas proximidades da Igreja da Nossa Senhora da Apresentação. No caso, o curandeiro
era pessoa do conhecimento da família, morador das proximidades do doente, usando de seus
conhecimentos mágicos agiu em defesa da mazela. Atribuindo causa a um mal enviado, a doença seria
causada por um feitiço, sendo necessários certos procedimentos ritualísticos para cessar-lhe a causa e a
ferida ser curada. Infelizmente não são esclarecidos mais detalhes sobre o caso. Mas podemos imaginar
determinados atos, “... lançasse água ao modo dos curandeiros...”, poderia Tomé olhar através de um
espelho d’água (uma bacia?) e relembrando que uma superfície d’água é a porta de entrada para a
comunicação com o mundo espiritual, ele faz suas adivinhações como os outros curandeiros examinados
no primeiro capítulo dessa pesquisa. O uso dos protetores mágicos de variadas espécies tinha em vista,
justamente, a criação de uma espécie de cordão isolador e, torno da pessoa, de modo a afugentar o mau-
olhado, a maldição, o feitiço, ou a intervenção do diabo. Os amuletos deixavam de ter uma função geral
de vedar o corpo à penetração de forças estranhas para se especializarem. Com este fim, a fita de cor
carmim amarrada à perna da senhora, tinha por finalidade proteger a mesma da continuidade da ferida.
Os passos dos agentes de cura são quase sempre, ocultos, silenciados e seus pacientes de difícil acesso,
muitas vezes, somente tornando-se visíveis quando transpõe as barreiras do conflito. O encontro entre as
diferentes práticas, mesmo o que ocorre em situações de repressão, tem um movimento de ida e volta e
não pode ser pensado como uma imposição de apenas um dos lados.
138
AN (RJ), série Justiça – polícia, escravos e moedas falsa, IJ6 487, 1873. O documento é endereçado ao Inspetor Geral
da Junta Central de Higiene, pedindo providências, pelo exercício ilegal da medicina, não encontramos respostas da
solicitação, já que a pessoa tratada piora da ferida, motivo da denúncia.
114
CONCLUSÃO:
simpatia e antipatia, constituindo um complexo campo de forças, surge no quadro de uma estreita
dependência do homem em relação à natureza. Nesse mundo encantado em que tudo tem significado, a
relação do homem com o cosmo-mágico é entendida no quadro dos ritmos da natureza, influências do
solidariedade e conflito gerada nas comunidades locais, nos grupos, camadas e ordens sociais, bem
como nos jogos de influências e de poder em que se assenta todo o social. A fluidez de fronteiras entre o
caracterizado por relativa indiferenciação entre o sensível e o inteligível, a imagem e a coisa, o signo e o
concepção européia do catolicismo deve ser compreendida em termos polissêmicos, uma vez que
pessoas de origem culturais distintas podem realizar um mesmo gesto e imprimir significados
completamente diferentes para aquilo que estão fazendo e, por conseguinte, nutrir expectativas diversas
ao praticarem atos semelhantes. Ao examinar a herança cultural trazida pelos africanos escravizados
116
para a compreensão da religiosidade negra no Novo Mundo, não significa de modo algum qualquer
percepção do importante papel desempenhado por aquelas matrizes culturais como um referencial
imprescindível para uma melhor compreensão das vivências do sagrado entre a população negra na
Corte Imperial.
Ao longo do século XIX a percepção sobre doenças e a maneira de lidar com elas em diferentes grupos
concepção de doença e cura relacionada a idéias de feitiços, ou de ligações com o “sobrenatural”, com
deuses e santos ou com problemas espirituais. Por outro lado, o entendimento integrado entre corpo e
espírito, com relação à saúde, tão comum no país, explica muito da popularidade dos agentes de cura
entre os paciente, que temiam os médicos acadêmicos e suas atuações. As práticas dos curandeiros
examinados passam por benzeduras, geralmente, acompanhadas por orações, bafejos, cuspidelas e
aplicações rituais de determinados materiais valorizados pela medicina popular, contando também com
A perseguição aos mais diferentes praticantes de cura, na maioria das vezes, esteve ligada à repressão a
cultos de negros e pobres, nos quais se identificavam matrizes culturais de origem africanas,
consideradas bárbaras, atrasadas e, por isso, um sério entrave aos padrões europeus de civilização e
cultura desejados para o Brasil. A herança colonial devia ser extirpada, as práticas mágico-religiosas
eram um dos sinais de atraso, levando há uma grande perseguição aos curandeiros, principalmente os
negros, classificados de charlatães pelos médicos higienistas. Os poucos médicos que havia eram caros e
muitos deles pertenciam a Junta Central de Higiene. Dentro da própria instituição médica havia mais
divergências e conflitos do que acordos em relação aos procedimentos utilizados, as brigas e disputas
117
acabavam nos jornais. Até mesmo a Junta Central de Higiene, sendo um órgão público, enfrentava fortes
dificuldades ao tentar implementar as medidas sanitárias na cidade imperial e nas províncias, lidando
com atitudes bem particulares dos diversos grupos sociais, contrários ao órgão da higiene.
A confiança incondicional no cosmo-mágico, no poder da oração, dos santos católicos, dos orixás, na
virtude dos amuletos, propiciava a condição indispensável para a eficácia da cura. Deste modo, ficava
vez que quando o resultado esperado não era atingido a explicação mais comum para o fracasso era que
havia ocorrido uma falha, podendo ser interpretada e absorvida dentro do próprio sistema de pensamento
estariam a salvo no imaginário coletivo. Era a fé que gerava as curas e não as curas que infundiam a fé
em determinado ritual ou objeto. Acreditava-se que um grande “feiticeiro” era capaz de curar, por haver
um consenso comum, um reconhecimento social do poder de cura daquele que estava exercendo as suas
práticas, a “eficácia simbólica”139 explicada por Lévi-Strauss. A procura pelas diferentes medicinas
estava relacionada, na percepção de muitos dos pacientes, à eficácia simbólica dessas terapias, a
determinados agentes de cura, fosse o malefício no corpo ou na alma. Havia a necessidade de que
houvesse crença na medicina acadêmica, ainda tão iniciante no Brasil do século XIX. Para que a mesma
tivesse êxito, faltava à medicina a sua eficácia, vem daí a relação estabelecida com o tema deste
trabalho. Através das fontes constatei que a medicina acadêmica poderia ser considerada a “outra
medicina”, uma parcela significativa da população procurava, a priori, pelos praticantes de curas e na
139
LÉVI-STRAUSS, “O feiticeiro e a magia” e “A eficácia simbólica”, In Antropologia estrutural. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975.
118
maioria das vezes, recorriam a medicina oficial só quando os métodos utilizados não produziam o efeito
desejado – a cura.
Anos se passaram, até séculos, mas muitas das doenças que afligiam a população negra e pobre
continuam. A recorrência ao mágico religioso como forma de manutenção harmônica, da cura das
mazelas se fazem presentes em nossos cotidianos. O jornal “O Globo”140 de 10/02/2008, traz em uma de
suas matérias da capa: “ Doenças da pobreza matam mais que trânsito”, as doenças ligadas á pobreza,
como diarréia, desnutrição, malária e tuberculose matam 33,5 mil pessoas por ano no Brasil”, as
mesmas que faziam vítimas fatais nos oitocentos. A medicina evoluiu tornou-se, sem sombra de dúvida,
científica, exercendo seu papel principal, salvar vidas. Conquistou e legitimou o seu status na sociedade,
não mais se preocupa em combater os “feiticeiros”141. Contudo, eles aqui estão no silêncio de suas
fórmulas, nas benzeduras, chás, banhos e outros procedimentos que compõem seus rituais, utilizados por
140
O Globo de 10/02/2008, ver capa e pp.14/15.
141
Refiro-me aqui a mesma categoria de feiticeiros tratados neste trabalho.
119
Anexo: 01
120
Anexo: 02
Adivinho da região da África Bantu com sua cesta de Ngombo. Pela disposição dos objetos
da cesta o adivinho chega às respostas das perguntas feitas aos espíritos ancestrais. MELLO
E SOUZA, 2006, Op. Cit., p. 44.
121
Anexo: 03
122
Anexo: 04
Nkisi contém vários elementos que lhe permitem intermediar os poderes dos espíritos e
interferir na vida dos homens, trazendo soluções para seus problemas. MELLO E SOUZA, 2006,
Op.Cit., p. 45 .
123
Anexo: 05
O CIRURGIÃO NEGRO. Em palavras do autor: “... Ele sabe emprestar as suas receitas um fundo
misterioso e mediante tais sortilégios, disfarça o simples curativo que os seus doentes já conhecem
por tradição”. Observamos na figura do cirurgião negro, uma bolsa junto ao seu corpo, que supomos
ser a bolsa de mandinga. DEBRET, Op. Cit., p. 177-178.
124
Anexo: 06
125
Anexo: 07
126
Anexo: 08
Amuletos e talismãs brasileiros. Utilizado pelas mulheres negras da Corte, agrupados ou isolados.
Além de seres usados para prevenir eram também símbolos de poder. EWBANK, Op. Cit., foto 18.
127
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- Jornal do Commércio (1855, 1867, 1880-1890).
- Jornal O Globo ( 2008).
128
CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES
*. “Inquisição, pacto com o demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVII” de Didier Lahon.
Figura: 06.
129
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