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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

BRUNO CRASNEK LUZ

A GARANTIA DA OBSERVÂNCIA DAS DIRETRIZES POPULARES NA EXECUÇÃO


DO PLANO DIRETOR

Florianópolis

2010
BRUNO CRASNEK LUZ

A GARANTIA DA OBSERVÂNCIA DAS DIRETRIZES POPULARES NA EXECUÇÃO


DO PLANO DIRETOR

Monografia submetida à Universidade Federal de Santa


Catarina como requisito parcial para a obtenção do grau de
Bacharel em Direito.

Orientador: Professor Doutor Airton Lisle Cerqueira Leite


Seelaender

Florianópolis

2010
TERMO DE APROVAÇÃO

A presente monografia, intitulada "A garantia da observância das diretrizes


populares na elaboração do Plano Diretor", elaborada pelo acadêmico Bruno Crasnek Luz e
aprovada pela Banca Examinadora composta pelos membros abaixo assinados, obteve
aprovação com nota _____ (_______________________), sendo julgada adequada para o
cumprimento do requisito legal previsto no art. 9º da Portaria nº 1886/94/MEC, regulamentado
pela Universidade Federal de Santa Catarina através da Resolução n. 003/95/CEPE.

Florianópolis, 18 de novembro de 2010.

_______________________________________________

Dr. Airton Lisle Cerqueira Leite Seelaender (UFSC), Orientador

_____________________________________________

Dr. José Isaac Pilati (UFSC), Membro

_____________________________________________

Bel. Felipe de Farias Ramos (UFSC), Membro


Dedico este trabalho às Professoras de minha vida:

Àquela que é pai, amiga, artesã, mestre, psicóloga, confidente, médica, fã, ídolo. Acima de
tudo, é exemplo. Não se satisfaz em ser mãe.

Àquela que, por ser avó, só fez amar.

Àquelas duas outras mães que adoçaram a infância, celebraram a adolescência e agora
aplaudem o adulto apaixonado pelo bem-servir à coletividade e intransigente defensor do que
é (de) direito que ajudaram a formar.
Ao Professor Doutor Airton Cerqueira Leite Seelander, cuja paciência de Jó foi por mim
posta à prova.

Ao Professor Mestre, de Direito e de Justiça, Henry Petry Junior.

Aos amigos Ana Roberta, Juliana, Michele Vargas, Michele Xavier, Cícero, Felipe e
Guilherme, que preenchiam os dias no Tribunal de Justiça de Santa Catarina com profundas
lições, aguerridas discussões e longas risadas.

Aos Procuradores da República Anderson Lodetti Cunha de Oliveira e Daniel Ricken, e ao


Coordenador da Procuradoria da República no Município de Joaçaba, Professor Mauricio
Eing, pelo inestimável aprendizado e pela compreensão nas incontáveis e imprevisíveis
desventuras entre Joaçaba e Florianópolis.

Aos colegas da Procuradoria da República no Município de Joaçaba, Ana Maria, Clarice,


Gerusa, Joana, Márcia, Sílvia, Filipe e Marcelo, e também Bárbara, Caroline, Katiane, Paula
e Luan, que tão bem me acolheram em meu primeiro vôo desacompanhado.

Ao Thiago André e à grande amizade que construímos num lugar onde não se fazem amigos.

Aos irmãos que, comigo, recomeçaram a festa, reacenderam a luz, reencontraram o povo e
reaqueceram a noite.

Ao Ágape. Como devo te cantar, tu que por tudo que és mereces o louvor?
“Ils ne savent pas que les maisons font la ville mais que les citoyens font la Cité.”

Jean-Jacques Rousseau
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

Adin – Ação Direta de Inconstitucionalidade

CESC – Constituição do Estado de Santa Catarina de 1989

CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna

CF – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

EC – Emenda à Constituição

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

LC – Lei Complementar

ONU – Organização das Nações Unidas

PLC – Projeto de Lei Complementar

TJ – Tribunal de Justiça
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9

1 DA TRIBO À METRÓPOLE: O FENÔNEMO DA FORMAÇÃO DOS


AGLOMERADOS URBANOS NA HISTÓRIA E SEUS REFLEXOS NO BRASIL 12

1.1 O AGLOMERADO URBANO ................................................................................ 12

1.2 A CIDADE DO CAPITAL ...................................................................................... 16

1.3 A URBANIZAÇÃO NO BRASIL .......................................................................... 20

2 A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E A PARTICIPAÇÃO POPULAR


CONSTITUCIONALIZADA: ASPECTOS POLÍTICO-CONSTITUCIONAIS DO
EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA DIRETA ................................................................ 29

2.1 A NOÇÃO DE PARTICIPAÇÃO NAS TEORIAS DEMOCRÁTICAS ............... 29

2.2 A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ORDEM CONSTITUCIONAL


NACIONAL ................................................................................................................... 36

2.3 O MUNICÍPIO NA FEDERAÇÃO BRASILEIRA: O FEDERALISMO


TRIPARTITE E A EXTENSÃO DO PODER DO ENTE MUNICIPAL NA ORDEM
JURÍDICO-POLÍTICA NACIONAL ............................................................................ 42

2.4 O ENTE MUNICIPAL E A POLÍTICA URBANA COMO LOCUS DE


EFETIVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................... 47

3 A EFETIVIDADE DA MANIFESTAÇÃO POPULAR NA ELABORAÇÃO DAS


POLÍTICAS PÚBLICAS URBANAS ............................................................................. 53

3.1 AS NORMAS DE INSPIRAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE REGEM O


PLANEJAMENTO URBANÍSTICO: O ESTATUTO DA CIDADE E O PLANO
DIRETOR ...................................................................................................................... 53
3.2 A INAFASTABILIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA
ELABORAÇÃO DO PLANO DIRETOR ..................................................................... 59

3.3 OS INTRUMENTOS JURÍDICOS DE IMPUGNAÇÃO DOS ATOS DE


ALTERAÇÃO DO PLANO DIRETOR ........................................................................ 68

CONCLUSÕES ................................................................................................................. 73

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 75
9

INTRODUÇÃO

Tomando por fundamento o disposto no parágrafo primeiro do art. 181 da


Constituição Federal, o presente trabalho tem por objetivo verificar, pelo estudo dos diplomas
legais em vigor e à luz dos princípios imperativos do Estado Democrático de Direito, os meios
de participação popular na elaboração das diretrizes de desenvolvimento urbano municipal.
Pretende-se, contudo, avançar na discussão acerca dos instrumentos legados pelo legislador ao
cidadão para interferir diretamente na formulação de políticas públicas de sua cidade.

O município é a menor unidade de exercício do poder político constitucionamente


estabelecida, e sua natural proximidade com os cidadãos faz com que seja ali o local onde
mais se faz sentir a participação da comunidade. Seja de forma organizada, seja pela
intervenção individual, a proximidade dos mandatários e das estruturas de poder do cidadão
favorece o contato entre representantes e representados. As intervenções do poder público são
sentidas no âmbito municipal com maior intensidade, afetando de forma direta a vida dos
moradores. É o espaço da concretização dos direitos sociais por excelência: saúde, educação,
lazer, trabalho, segurança, habitação.

Mais que meros cidadãos passivos chamados ao exercício do “dever democrático”


a cada dois anos para definir quem será sua voz nos Poderes Constituídos, a sociedade
contemporânea assiste ao surgimento de movimentos organizados oriundos do seio da própria
população a fim de reivindicar sua participação no processo de tomada de decisões que afetem
seu dia-a-dia. E tais movimentos não se restringem à defesa de interesses locais: a emergência
de direitos de titularidade transindividual permitiu a criação de entidades que se propõem a
tutelar tais garantias. O exercício do poder desloca, desta forma, seu eixo para encontrar
ressonância no espaço público não-governamental, com a superveniência de novos atores no
arranjo político.

Diplomas legais de caráter democratizante, a iniciar pela Constituição Federal de


1988, ampliaram a possibilidade do exercício do poder pela via direta, sem representantes ou
intermediários. Mais que um direito da cidadania, é dever da Administração Pública,
10

consolidado em diplomas legais diversos, ouvir a população no processo de tomada de


decisões sensíveis.

Por tais razões, este trabalho monográfico busca estudar os mecanismos de


ampliação da participação popular na política de desenvolvimento urbano municipal, quer
individualmente, quer por meio de organizações representativas de bairros ou de interesses
específicos – v.g., defesa do meio-ambiente, dos dos direitos do infante, do adolescente e do
idoso. Prossegue-se a fim de verificar quais instrumentos são legados pelo ordenamento
jurídico para compelir os entes administrativos a ouvir os clamores populares e, após sua
incorporação ao ordenamento jurídico, garantir sua efetividade.

Para a elaboração da presente pesquisa, elaborada em procedimento monográfico,


utilizou-se o método de abordagem dedutivo, tilizou-se como fonte de pesquisa a revisão
bibliográfica de fontes primárias e secundárias. O estudo foi estruturado em três capítulos, de
forma a possibilitar a compreensão da evolução da comunidade local como âmbito
privilegiado para a promoção do exercício democrático do poder político, especialmente no
que toca à elaboração das políticas de desenvolvimento do próprio agrupamento urbano.

O primeiro capítulo revisará, de forma breve, a evolução da complexidade dos


aglomerados humanos a partir da Antiguidade, verificando de que forma os núcleos familiares
organizados em tribos estabelecem núcleos permanentes de conveniência e de que forma tais
agrumamentos se organizam no decorrer da história. Recuperará ainda a importância da
Revolução Industrial na formação dos conceitos de cidade e de urbanismo, que definem a
sociedade moderna. Verificar-se-á ainda de que forma o processo de criação e consolidação
dos núcleos urbanos foi conduzido no Brasil, refletindo a lógica de exploração e de segregação
social que permearam o desenvolvimento do Estado.

O segundo capítulo terá como foco a ampliação da participação popular direta no


exercício do poder, intervindo diretamente na atividade administrativa estatal. De início,
buscar-se-á contrapor o modelo representativo com o modelo participativo de democracia, de
forma a identificar as características das teorias que dão lastro ao ideário democrático previsto
na ordem jurídico-política brasileira a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Identificar-se-á em quais momentos e de que forma a Constituição dá preferência à
participação popular direta em detrimento da Teoria da Representação. Ao passo que se
11

identificam, tanto nas teorias democráticas quanto no texto constitucional, que o ambiente
preferencial para o exercício das liberdades democráticas é o município, passará a ser objeto
de análise a forma pela qual a esfera local de poder é organizada pela Constituição Federal,
com foco no reforço de sua autonomia e nas atribuições delegadas pelo constituinte ao ente
municipal.

Ao final, o terceiro capítulo discutirá os atos normativos legados à população pela


Constituição Federal para intervir diretamente na planificação do desenvolvimento local. A
partir daí, passar-se-á a apurar na legislação que regulamenta o tema de que forma está
prevista a intervenção popular no processo de elaboração da política urbana. Simultaneamente,
aferir-se-á os modos pelos quais pode-se garantir a efetiva participação e o não-esvaziamento
posterior das diretrizes estabelecidas nos processos de construção dos projetos. Ao final, tem-
se por objetivo verificar os instrumentos pelos quais a população poderá requerer do Poder
Judiciário a anulação de atos em que o administrador ou o legislador abusam do poder político
para alterar indevidamente os projetos de desenvolvimento urbano, ao arrepio da vocação
democrática que a Constituição Federal lega à cidadania no tema.
12

1. DA TRIBO À METRÓPOLE: O FENÔNEMO DA FORMAÇÃO DOS


AGLOMERADOS URBANOS NA HISTÓRIA E SEUS REFLEXOS NO BRASIL

1.1. O AGLOMERADO URBANO

A ordenação do solo urbano é problemática que encontra origens nos primeiros


agrupamentos humanos.

CREVELD define a cidade na antiguidade "como um assentamento permanente


cujas casas são construídas com material durável, como pedra ou tijolo". As cidades poderiam
ser divididas em três classes:

É provável que a maioria fosse governada por chefes subordinados.


(…) Esse tipo se distingue das chefias principalmente pelo sistema
administrativo mais avançado e por uma estrutura social mais
complexa. Aos aristocratas e plebeus acrescenta-se um grupo de
autoridades nomeadas – que, já que tinham de ser cultos, não eram
simples sub-chefes – , bem como uma classe de pessoas que não eram
livres, ou escravos. (…) Uma segunda classe de cidades não
representava nenhuma comunidade independente. Faziam parte de
entidades políticas muito maiores às quais serviam de capitais ou
centros provinciais. Tal era o caso, o mais remoto que foi possível
encontrar, da Mesopotâmia após sua unificação, nas mãos de Sargão
(…). Por fim, o terceiro tipo compreende as cidades de governo
autônomo. (…) Só nessas cidades autogovernadas, os gregos, os
romanos e talvez também os etruscos e os fenícios (Cartago) puderam
criar um novo princípio de governo; só nessas cidades houve uma
forma de governo que perdurou durante séculos e que constituiu o
mundo “clássico".1

O núcleo da organização social sai, portanto, do âmbito tribal para ser exercido em
um espaço coletivo, congregador de múltiplos núcleos familiares (fratria, curia). O
movimento é o resultado do abandono de práticas nômades com o desenvolvimento da
agricultura, possibilitando assim a sedentarização e a consequente fixação do homem à terra.
Eliminando a necessidade de periódicas migrações em busca de alimento, agora provido pela
terra e pela domesticação de animais, as instalações provisórias dão espaço à formação de
estruturas habitacionais permanentes e espaços de convivência das famílias expandidas. Esses

_______________
1
CREVELD, 2004, p. 31
13

núcleos unem-se por laços sanguíneos e religiosos2, indeléveis ainda da noção de propriedade:
"a família, que por dever e por religião fica sempre agrupada ao redor desse altar [dedicado
aos deuses familiares], fixa-se ao solo como o próprio altar"3.

O avanço na formação dos núcleos permanentes de convivência, num estágio


denominado como pré-urbano, ligado à sociedade gentílica4, é marcado por uma gradual
separação entre as esferas pública (demósios, res publica) e privada (ídios, res privada). A
noção de autoridade sofria influências metafísicas. A própria estrutura organizacional da
cidade reunia – quer no rei, quer no magistrado – destacados papeis políticos e religiosos
concomitantes5. Nesse sentido, convergem Coulanges6 e Creveld quando ressaltam que

o pensamento pré-moderno, independentemente de civilização ou grau


de desenvolvimento, não conseguiu conceber a corporação como
entidade jurídica abstrata distinta de suas autoridades e de seus
membros. Isso ajuda a explicar o papel da religião nessas sociedades;
dada a ausência da corporação tanto na vida pública quanto na vida
privada, muitas de suas funções, tais como exercer a propriedade e
proporcionar legitimidade, eram atribuídas a divindades igualmente
invisíveis.7

De qualquer forma, a origem da cidade enquanto "organização complexa, com


diferenças de posições sociais e econômicas, especialização de trabalho não-agrícola e divisão
de classe"8 a partilhar espaço comum ganha corpo à medida que surgem atividades
propriamente urbanas. O singelo agrupamento popular calcado nas relações familiares-
religiosas cede terreno a um espaço de convivência cujas dimensões e complexidade das inter-
relações entre seus integrantes exige a criação de certa estrutura administrativa própria e
secularizada, no âmbito do que se denominaria direito público. Nessas sociedades, a chefia
organizava-se não mais baseada em laços familiares, ou seja, a relação hierárquica governante-
governados não se sustenta pela consanguinidade, tampouco pela “propriedade” dos súditos
pelo chefe. Da mesma forma, as diferenças entre as classes, fora do âmbito familiar e
_______________
2
Impende destacar que o conceito de família na antiga Roma é indissociável da religião. Fustel de Coulanges
consigna que "o que une os membros da família antiga é algo mais poderoso que o nascimento, que o
sentimento, que a força física: é a religião do fogo sagrado e dos antepassados. Essa religião faz com que a
família forme um só corpo nesta e na outra vida. A família antiga é mais uma associação religiosa que uma
associação natural." (COULANGES, 2001, p. 38).
3
COULANGES, 2004, p. 83
4
SILVA, 2008, p. 20.
5
COULANGES, 2004, p. 198.
6
COULANGES, 2001, p. 111.
7
CREVELD, 2004, p. 82.
8
LIVERANI, Mauro apud SILVA, 2001, p. 20.
14

escravista, reduziam-se às relações sociais: inexistia vínculo de domínio, em sentido estrito, de


um determinado grupo por outro; os governantes eram iguais.

No direito privado a prestação de serviços ganha destaque como atividade


laborativa, desvencilhada das tradicionais atividades agropecuárias; o comércio é a grande
força motriz do desenvolvimento de tais aglomerações complexas. É nesse contexto que ganha
importância a ordenada ocupação do solo, que outrora flertava com a infinidade e com a
anarquia. Passa-se a exigir regramento determinado das intervenções humanas no espaço,
disciplina-se de que forma os espaços habitáveis nos núcleos de concentração populacional
serão erigidos e planeja-se a expansão da área ocupada. E de tais preocupações extrai-se,
justamente, o conceito de urbanismo, delimitado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto como
o “conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistematizados e informados por
princípios apropriados, que tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionado
aos espaços habitáveis”9.

E a partir daqui é colocada a questão que dá fundamento ao presente trabalho: a


cidade, como se viu, deixa de ser simples aglomeração de populares enlaçados pelo parentesco
e transforma-se num espaço de exercício do poder.

As invasões bárbaras e a falência de Roma demolem as estruturas clássicas


existentes até então. O exercício do poder que, num passado recente, havia se concentrado nas
instituições estatais é fragmentado, ao passo que, segundo Creveld, “a estrutura resultante não
se baseava em laços de família (...) nem em ordens burocráticas”, mas “numa rede de lealdade
que vinculava todos os membros da aristocracia tanto aos superiores quanto aos inferiores”10.
O sistema de suserania e vassalagem que substitui a estrutura imperial altera o locus da
tomada de decisão, materialmente, para os pequenos núcleos locais e seus governantes.

Após o esfacelamento do Império Romano e a consolidação do sistema feudal na


Europa, os núcleos populacionais propriamente urbanos – e que encontrarão seu apogeu no
Renascimento – passaram, com o tempo, a ser organizados quer como cidades livres, quer
como cidades-fortaleza semiorganizadas e como feudos. Muitas dessas surgiram em pontos

_______________
9
Apud FIGUEIREDO, 2005, p. 33.
10
CREVELD, 2004, pp. 73-74.
15

estratégicos a atividade comercial, colocando-se como verdadeiros entrepostos em torno de


confluência de rotas comerciais terrestres, portos ou pontos de destacada atividade extrativista.
É onde a cidade moderna encontra seu embrião.

É, contudo, a partir da Revolução Industrial no século XVIII que o fenômeno de


concentração populacional nas cidades ganha destaque jamais antes visto. O processo de
urbanização institui-se de forma definitiva e num ritmo frenético, à medida que a mecanização
da indústria exige que um maciço número de trabalhadores abandone a atividade artesanal e se
engaje no piso das fábricas, no controle das máquinas e na extração dos materiais necessários
para manter as caldeiras em funcionamento.

A cidade industrial moderna é definida como “uma organização humana


complexa, caracterizada pela educação de massa, um sistema de classes fluido e um tremendo
avanço tecnológico que usa novas fontes de energia”11. O jovem sistema capitalista, a
industrialização nascente e o reconhecimento da propriedade privada como direito “inviolável
e sagrado” nos termos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 podem ser
identificados como forças propulsoras do novo modelo urbano, que mesmo dois séculos após
sua emergência ainda não restou superado12.

Para que se possa dimensionar o efeito e a velocidade das mudanças sociais que a
industrialização impôs à sociedade que respirava os primeiros ares (sulfurosos) da Idade
Contemporânea, toma-se como exemplo a evolução populacional da cidade de Londres no
século XIX. Em 1801, contavam-se 1.096.784 habitantes. Decorridos cinquenta e nove anos, o
recenseamento de 1860 contou 3.188.485 moradores13. Antes do fim do século, a população
de Londres superava quatro milhões. O crescimento em menos de seis décadas alcançou
inéditos e astronômicos 190%, praticamente triplicando a população londrina, o que se deve
em grande parte à migração em massa do campo à capital.

Nesse tema, Célson Ferrari faz constar:

_______________
11
SILVA, 2008, p. 21.
12
José Afonso da Silva invoca Mario Liverani e menciona a superação do modelo tradicional de cidade
industrual. A ela referindo-se como “cidade pós-industrial”, propõe uma simbiose entre os espaços urbano e
rural decorrente do fortalecimento do setor de prestação de serviços e do avanço da tecnologia (SILVA, 2008,
p. 21).
13
OLD BAYLEY PROCEEDINGS ONLINE. A population history of London. Disponível em:
http://www.oldbaileyonline.org/static/Population-history-of-london.jsp. Acesso em: 7 dez. 2009.
16

Em 1800, no início da Revolução Industrial, contavam-se apenas 20


cidades de mais de 100.000 habitantes e nenhuma cidade que atingisse
1.000.000 de habitantes; e apenas 1,7% da população mundial era
urbana; em 1850, já existiam 4 cidades com 1.000.000 ou mais de
habitantes; em 1900 esse número subiu para 19.14

A falência da estrutura urbana tradicional, absolutamente despreparada para


receber um influxo populacional dessa envergadura, é visível. As urbes “produzidas” pela
Revolução Industrial dos últimos anos do século XIX e do início do século XX beiravam a
insalubridade. À nova cidade, embrião do capitalismo, “tendo como agentes geradores e
principais elementos do novo complexo urbano a mina, a fábrica, a estrada de ferro e o
cortiço”15, aplicavam-se implacavelmente “as mesmas ruas tristes, os mesmos becos soturnos
e cheios de lixo, a mesma ausência de espaços abertos para o brinquedo das crianças e de
jardins; a mesma falta de coerência e de individualidade em relação à vizinhança local”16.

A realidade vivida na Europa e nos Estados Unidos da América do século XIX,


porém, chegou aos Estados periféricos com décadas de atraso. O processo de urbanização de
espaços marginais de desenvolvimento, especialmente a América Latina, a África
Subsaariana, a Península Somali, a Ásia Meridional e o Sudoeste Asiático, chega apenas, com
limitações, no século XX. E impende relevar que, em muitos desses lugares, a migração para
as cidades é fruto não do maior desenvolvimento das áreas urbanas senão da absoluta miséria
das áreas rurais, da impossibilidade de acesso a produtos de necessidade elementar para a
manutenção da vida ou pela fuga de conflitos armados já de caráter endêmico.

1.2. A CIDADE DO CAPITAL

O crescimento urbano acelerado após a Revolução Industrial, fruto do sistema


econômico capitalista que se alastra a todo vapor, inaugura a cidade moderna. Nesse sentido,
Jean-Louis Harouel, por sua fez, faz consignar que “o urbanismo tal como o conhecemos, que

_______________
14
FERRARI, 1982, p. 230.
15
NOLASCO, 2008, pp. 44-45.
16
Ibid, p. 47.
17

se pretende uma ciência dos estabelecimentos humanos, nasce em decorrência da Revolução


Industrial”17. Raquel Rolnik, por sua vez, vai mais longe e batiza a cidade moderna como
“cidade do capital”18.

A própria Carta de Atenas, manifesto resultante do IV Congresso Internacional de


Arquitetura Moderna19, firma a força da Industrialização como novo paradigma da ciência/arte
urbanística:

A cidade era de formato incerto, mais frequentemente em círculo ou


semicírculo. Quando era uma cidade de colonização, organizavam-na
como um acampamento, com eixos de ângulos retos e cercada de
paliçadas retilíneas. Tudo nela era organizado segundo a proporção, a
hierarquia e a conveniência. Os caminhos partiam dos portões da
muralha e estendiam-se obliquamente na direção de alvos distantes.
Podemos encontrar ainda no desenho das cidades o primeiro núcleo
compacto do burgo, as muralhas sucessivas e o traçado dos caminhos
divergentes. As pessoas aí se aglomeravam e encontravam, conforme o
grau de civilização, uma dose variável de bem-estar. Aqui, regras
profundamente humanas ditavam a escolha dos dispositivos; ali,
constrangimentos arbitrários davam origem a injustiças flagrantes.
Sobreveio a era do maquinismo. A uma medida milenar, que se
poderia crer imutável, a velocidade do passo humano, somou-se uma
medida em plena evolução, a velocidade dos veículos mecânicos. 20

A indústria é o grande pólo atrativo de massas populacionais oriundas do campo,


que se instalam nas cidades exigindo uma estrutura mínima para sua manutenção. Com o
crescimento da atividade produtiva, a construção de novas residências expande os
assentamentos urbanos. Como consequência, o comércio também se fortalece, de forma a
abastecer com produtos e serviços os novos moradores.

Jean-Louis Harouel constata:

Enquanto no início do século XIX todas as nações ocupam 80% de sua


produção ativa no setor primário (agricultura), 8% no secundário
(indústria), e 12% no terciário (serviços), assiste-se nos países
industrializados a uma verdadeira fundição do setor primário em
benefício do secundário e no terciário (...)

Assim, nos países desenvolvidos, um número restrito de agricultores,


na ordem de 5 a 10% da população ativa, é suficiente para alimentar o
conjunto dos habitantes. Ora, eles são 80% dois séculos antes. Isto
significa que todos os excedentes, que exploram as terras menos
_______________
17
HAROUEL, 1990, p. 114
18
ROLNIK, 1994, p. 30.
19
A Carta de Atenas é conceituada por Harouel “verdadeiro catecismo do urbanismo progressista”, visualizando
nele caráter doutrinal (1990, p. 119).
20
IPHAN, <s/d>, p. 4.
18

rentáveis, são obrigados a partir. O êxodo rural transforma-os, mesmo


a contragosto, em citadinos. O despovoamento do campo acarreta o
aumento da população nas cidades. 21

Até então, a dimensão dos núcleos urbanos não preocupava os poderes


constituídos de forma contundente, sendo as intervenções urbanísticas integralmente devidas
aos desígnios dos governantes, nas mais diversas formas de organização de poder no decorrer
dos séculos e das regiões. Os fins estéticos eram determinantes, apesar de não exclusivos.
Com a corrida às cidades, não havia sistematização capaz de disciplinar e conter a expansão
dos assentamentos, que cresciam em velocidade muito superior à dos investimentos públicos
para dotar as novas edificações de mínima padronização – e isso quer organizar a ocupação do
espaço, para proteger a saúde pública. A criação do urbanismo como ciência e a incorporação
do planejamento urbano ao ordenamento jurídico, portanto, se dá de forma definitiva no vácuo
da expansão urbana do Século XIX.

Não se está a dizer, de pronto ressalvamos, que os núcleos urbanos antigos são
caracterizados pela desordem e falta de planejamento. A distinção entre as realidades
existentes antes e depois da Revolução Industrial é deveras marcante para o urbanismo, e a
escalada desenvolvimentista descortina uma realidade absolutamente inédita:

La revolución industrial, el aumento demográfico en proporciones


otrora imposibles a lo largo de la historia, como consequencia de los
adelantos de la medicina, las nuevas relaciones sociales, las nuevas
formas de transporte, la separación de los lugares de trabajo, de
residencia y de esparcimiento, distendieron, primeiro, las viejas
estructuras de orden y, luego, las rompieron.22

Não se afirma tampouco que a legislação urbanística se constrói, exclusivamente,


a partir da Industrialização. Pelo contrário: desde 1607 exige-se, em Paris, requerimento para
alinhamento de construção ou reforma de imóvel ao longo de via pública. Em Rennes, o
Conselho do Rei baixou decreto disciplinando o arranjo urbano, “que especifica os materiais a
ser utilizados, prevê subterrâneos com abóbadas, proíbe as saliências”, e traz ainda “um plano
de alinhamento e um desenho de fachada obrigatório em todas as ruas”23, em que se apontam
três nítidas preocupações: circulação de pessoas, segurança (principalmente contra incêndios)

_______________
21
HAROUEL, 1990, p. 101-102.
22
BRAUNFELS, 1983, p. 11.
23
HAROUEL, 1985, p. 88.
19

e estética. A legislação de Londres direcionada à reconstrução após o incêndio de 1666, assim


como a disciplina urbana imposta em Lisboa após o terremoto de 1755.

Todavia, não se nega que, especialmente no medievo, a construção dos


assentamentos humanos, espontânea e gradual, adapta-se mais ao espaço geográfico do que
nele intervem24. Era a arte de embelezar a cidade – embelir la ville25.

Deste modo, as exigências da cidade contemporânea enterram o urbanismo


clássico, definido por José Afonso da Silva como “primitivo e empírico” 26. De um lado, os
utopistas já propunham a superação do modelo clássico de cidade até então vigente,
fortemente caracterizado pelos estamentos sociais. A alternativa apresentada privilegia
pequenos núcleos habitacionais uniformes e autossuficientes: é na busca da composição ideal
de cidade que se debruçam os teóricos do século XVIII, que propõem estruturas como o
falanstério (Fourier) e o familistério (Godin), verdadeiros palácios sociais, ou Icária (Cabet),
de habitações individuais distribuídas num formato quadriculado que admite o comunismo
integral27.

Em contraposição, a corrente progressista lança mão de instrumentos de ordenação


urbana a fim de disciplinar, por meio da limitação do direito de fruição da propriedade, o
crescimento e o desenvolvimento urbano. Supera-se o paradigma do mero embelezamento, cá
e lá revelador de alguma preocupação com a salubridade. A partir da doutrina elaborada pelo
Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, o urbanismo toma corpo como ciência
autônoma. Do I CIAM, a corroborar com os paradigmas urbanísticos progressistas, vem a
definição moderna de urbanismo, que declara o peremptório rompimento com a ordem
anterior:

o urbanismo é a ordenação dos lugares e dos locais diversos que


devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e
espiritual em todas as suas manifestações, individuais ou coletivas.
Abarca tanto as aglomerações urbanas como os agrupamentos rurais. O
urbanismo já não pode estar submetido exclusivamente às regras de
esteticismo gratuito. É, por sua essência mesma, de ordem funcional.
As três funções fundamentais para cuja realização deve velar o
urbanismo são: 1º) habitar; 2º) trabalhar; 3º) recrear-se. Seus objetivos

_______________
24
ROLNIK, 1994, p. 33.
25
MEIRELLES , 2003, p. 490.
26
SILVA, 2008, p. 88.
27
HAROUEL, 1985, p. 125.
20

são: a) a ocupação do solo; b) a organização da circulação; c) a


legislação.28

A nova cidade é, antes de tudo, pragmática. Não mais é o “conjunto de edifícios


dispostos em ruas e cercados por um muro comum”29, definição trazida pela Encyclopédie
francesa de 1772 para Ville. É sim um organismo simbiótico que dialoga, simultaneamente,
com fatores diversos. Os geográficos determinam – cada vez menos, é verdade – seus limites
de expansão. Os proprietários exploram, de fato, o espaço geográfico, através de suas
intervenções de caráter individual. A sociedade, por sua vez, no afã de sistematizar sua
própria existência – direção e ritmo da expansão social – , impõe condições para a fruição da
terra, patrocinando intervenções destinadas à criação e manutenção do espaço público.

Em síntese, a manifestação de Carlos Ari Sundfeld:

Conquanto as normas urbanísticas tenham antepassados ilustres


(regulamentos edilícios, normas de alinhamento, as leis de
desapropriação etc.), seria um anacronismo pensar em um direito
urbanístico anterior ao século XX. O direito urbanístico é o reflexo, no
mundo jurídico, dos desafios e problemas derivados da urbanização
moderna (concentração populacional, escassez de espaço, poluição) e
das ideias da ciência do urbanismo (como a de plano urbanístico,
consagrada a partir da década de 30). Estes foram os fatores
responsáveis pelo paulatino surgimento de soluções e mecanismos que,
frente ao direito civil e ao direito administrativo da época, soaram
impertinentes ou originais e que acabaram se aglutinando em torno da
expressão “direito urbanístico”. 30

1.3. A URBANIZAÇÃO NO BRASIL

O desenvolvimento de estruturas urbanas no Brasil foi inexoravelmente marcado


pela exploração colonial exercida por Portugal nos mais de trezentos anos de dominação. Por
tal razão, e até mesmo em razão das características próprias dos povos pré-colombianos aqui
assentados, o fenômeno da construção de agrupamentos humanos em forma de cidades é
tipicamente alienígena. É importante, em razão de suas peculiaridades, discorrer brevemente
_______________
28
SILVA, 2008, pp. 30-31.
29
HAROUEL, 1985, p. 147.
30
In: DALLARI; FERRAZ, 2002, p. 46.
21

sobre o peculiar processo de urbanização do Brasil, absolutamente dependente dos europeus:


quer pelas mãos da Metrópole portuguesa, quer pela mão dos imigrantes das mais diversas
nacionalidades. Não há falar em movimento urbanístico brasileiro de força e abrangência até a
industrialização do país nos anos trinta, sob a ditatorial batuta de Getúlio Vargas, sem prejuízo
do processo de urbanização vivido em certas cidades brasileiras, notadamente a partir do
século XIX.

Em regra, os núcleos urbanos havidos no Brasil a contar do início de sua efetiva


exploração pela Metrópole foram criados por iniciativa oficial, ou em decorrência das
Entradas e das Bandeiras. A força motriz da economia nacional nos três séculos após o
descobrimento era a agricultura ostensiva, baseada na monocultura direcionada à exportação.
Até mesmo por tais razões os agrupamentos urbanos tradicionais do século XVI voltavam-se,
impreterivelmente, para o mar.

Outrossim, ignorar o papel no processo de urbanização brasileira que coube às


chamadas colônias militares não é possível. Estabelecidas com a finalidade de proteger as
possessões lusitanas ultramarinas de ataques estrangeiros, carregavam o braço armado da
burocracia Metropolitana a confins do território nacional, marcadamente também no litoral.

Nos primórdios da colonização brasileira, a atividade extrativista vegetal


impulsionou a formação das primeiras feitorias nacionais. Contudo, o primeiro ciclo
econômico nacional, fundado no plantio de cana-de-açúcar, marca definitivamente a história
do urbanismo nacional. A monocultura instalou-se na faixa litorânea nordestina, na chamada
Zona da Mata, com o imprescindível auxílio da mão-de-obra escrava. A utilização de
plantations, ou grandes propriedades destinadas ao plantio da cana instaladas nas ditas
sesmarias31, não favoreciam o estabelecimento de cidades com contingente populacional
considerável.

_______________
31
A sesmaria, segundo ROLNIK (1997), pode ser conceituada como “uma concessão de domínio condicionada
ao uso primitivo da terra”. Assim descreve sua estrutura: “A partir de 1530, a „carta para o capitão-mor dar
terras de sesmaria‟ passada por João III a Martim Afonso de Souza introduz o sistema sesmarial no Brasil,
com alguma especificidade em relação à Metrópole. A „carta de doação‟ permitia ao capitão-mor conceder
terras e criar vilas. Eram confirmadas e regulamentadas por forais. A concessão se fazia gratuitamente, sob a
exigência de ocupação com cultivo e desbravamento da terra e a obrigatoriedade do pagamento de apenas um
dízimo – décima parte da produção –, à ordem de Cristo” (pp. 20-21).
22

Acompanhando os ciclos econômicos brasileiros, o declínio da lucratividade da


cultura da cana-de-açúcar e a descoberta de ouro no interior do país deslocam o eixo de
expansão urbana, pela primeira vez, em direção ao interior. Os agrupamentos reuniam,
comumente, migrantes europeus atraídos pela atividade extrativista mineral e que, a revelia
das autoridades constituídas, formaram vilas autonomamente em torno dos locais de
mineração.

O ciclo da mineração exerceu importante papel na consolidação do Brasil. Em


primeiro lugar, o fluxo constante de imigrantes promoveu o “embranquecimento” da
população do sudeste brasileiro, substituindo em parte a mão-de-obra escrava pelos
aventureiros europeus, preponderantemente portugueses, em busca do el dorado32. Como
consequência, a riqueza gerada pelo trabalho não mais se concentrava nas mãos do
proprietário de escravos, senão era dividida em tantos quantos fossem os extrativistas que, em
seu trabalho, obtivessem sorte e sucesso. O encadeamento de tais fatos dá origem a uma
inédita classe média, formada pelos homens livres, beneficiários direto do produto da
mineração, e pelos comerciantes e prestadores de serviço em geral que aproveitavam o capital
circulante.

A distância entre a nova fronteira econômica nacional e os núcleos tradicionais de


povoamento, que concentravam as estruturas burocráticas metropolitanas, assim como a
necessidade de abastecimento das zonas auríferas com alimentos e produtos básicos para a
subsistência, possibilitaram também a criação de vilarejos em entrepostos de circulação de
pessoas e mercadorias. O escoamento dos metais preciosos criou artérias de comunicação
entre as cidades mineradoras e o litoral. A pecuária, então destinada basicamente à
subsistência e acessória às grandes fazendas escravagistas, ganha impulso nos Estados do Sul;
o galope dos tropeiros abre caminhos, pelo Planalto Meridional, ligando o coração da Colônia
a seus confins. Exemplo da importância da atividade extrativista para o Brasil é a transferência
da sede do então Vice-Reino de São Salvador da Bahia de Todos os Santos para São Sebastião
do Rio de Janeiro, mil milhas ao sul e muito mais próxima das Minas Gerais, em 1763.

_______________
32
A vinda de imigrantes para o Brasil àquela época foi tão vultosa que Célson Ferrari anota: “Não fosse a
acentuada imigração da população branca provocada pela descoberta do ouro nas Minas Gerais,
principalmente, a população brasileira atual se assemelharia, etnicamente, à do Caribe, pelo predomínio da
raça negra” (FERRARI, 1982, p. 266).
23

As Ordenações Filipinas traziam, em seu Livro Primeiro, Tomo 68, normas gerais
limitadoras do direito de construir, que em suma se caracteriza por aspectos que acompanham,
até hoje, o sistema de ordenamento dos agrupamentos humanos. Atos editados pelo Rei,
dirigidas especificamente à Lisboa cuidavam de dirigir a intervenção no desenvolvimento
urbano. Nas demais localidades, inclusive no Brasil, a legislação cuidava de delegar às
autoridades locais, por meio de “regulamentos administrativos”, poder para também delimitar
e fixar limites para a exploração do solo, podendo-o fazer de forma específica considerando as
peculiaridades regionais33. Entretanto, Dalmo de Abreu Dallari já ressalva que nos “inúmeros
dispositivos tratando do problema das construções (...) a preocupação acentuada era pela
estética das cidades.”34

O declínio da atividade mineradora e a substituição da monocultura açucareira


pela cafeicultura ocorre de forma concomitante às bruscas mudanças na estrutura social
europeia promovida pela industrialização. O eixo do poder, deslocado do nordeste em direção
ao centro-sul, fortalece-se com a emergência do Vale do Paraíba, entre as províncias de São
Paulo e do Rio de Janeiro, como produtor da maior parte da riqueza nacional. Na vida política
nacional, vê-se o fortalecimento do poder colonial em face da empobrecida e arrasada
Metrópole, imersa na Europa napoleônica: o primeiro quarto do Século XIX vê o Brasil
tornar-se a Capital do Império Português para, em poucos anos, tornar-se um Estado
independente.

Inicialmente escravagista, a cultura do café impôs-se como força propulsora da


economia imperial, aproveitando-se para tanto da pujança econômica da Europa em
industrialização. Todavia, o mesmo vigor que sustenta o mercado cafeeiro brasileiro também
se opõe à manutenção da mão-de-obra escrava, uma vez que aos mercados produtores
interessava aumentar, no mesmo ritmo de sua produção, seu mercado consumidor. Os
escravos, coisas que eram, não percebiam qualquer remuneração por sua atividade e serviam
apenas como produtores de riqueza a seus proprietários35.

_______________
33
MUKAI, 1988, p. 14.
34
apud MUKAI, 1988, p. 13.
35
Desde 1807 o Reino Unido proibira o comércio de escravos em seu território, abolindo definitivamente a
escravatura em 1833. Doze anos mais tarde, o Parlamento aprovaria o Aberdeen Bill, em que proibia o tráfego
de navios negreiros entre a África e a América, podendo utilizar-se para tanto do poderio de sua Esquadra. A
pressão inglesa resulta na aprovação da Lei Euzebio de Queiroz em 1850. Antes disso, em 1831, o Governo
24

Raquel Rolnik assim descreve a mudança no perfil da massa trabalhadora


brasileira:

A abolição oficial do tráfico de escravos para o Brasil deu-se em


intensa pressão diplomática britânica e após ameaça de intervenção da
armada inglesa (...) Naquele momento, o eixo dinâmico da economia
brasileira estava na expansão do plantio e da comercialização do café,
a princípio implantado no Vale do Paraíba utilizando mão-de-obra
escrava. A expansão do café em direção ao Oeste paulista demandava
crescentemente braços em um momento em que o escravismo já estava
insustentável tanto por pressões externas quando pela ação do
movimento abolicionista nacional. A questão da mão-de-obra tornou-
se, então, um dos grandes pontos de debate nacional, com a
participação intensa dos cafeicultores paulistas na formulação de um
novo projeto econômico para a nação, baseado no trabalho assalariado
livre do imigrante europeu.36

A intensificação da imigração europeia, dessa vez proveniente não apenas de


Portugal mas, especialmente, da Itália e da Alemanha, dá novo vigor ao sistema econômico
nacional. Por consequência, há notáveis reflexos tanto na criação de novos núcleos urbanos
quanto no fortalecimento dos já existentes, quer em número de habitantes, quer em influência
e força política.

O agricultor liberto, imigrante, trouxe consigo mais que apenas sua força de
trabalho. Os que aqui aportaram não eram, em sua maioria, apaniguados. Porém, o simples
fato de não mais dependerem exclusivamente do beneplácito de seus senhores movimentava o
incipiente mercado interno. Como recebiam ordenado pela atividade realizada, estimulavam o
mercado de produtos e serviços que, evidentemente, precisou agir. Verificou-se ainda
crescente movimento de substituição de importações e fortalecimento do mercado industrial
interno, estimulado pela sobretaxa aos produtos estrangeiros implementada pela política
alfandegária conhecida por “Tarifa Alves Branco”. Os trabalhadores industriais, por evidente,
fixam-se justamente nas áreas urbanas.

O Império do Brasil, a contar de 1822, não traz mudanças significativas no regime


urbanístico até então vigente. As autoridades locais, apesar de carentes de plena autonomia,
exercem poder de polícia sobre áreas específicas; dentre elas, as edificações. Trata-se de

Regencial editara um decreto declarando livres os negros desembarcados em portos brasileiros a contar
daquela data. A ineficácia do ato tornou-o conhecido como lei “para inglês ver”.
36
ROLNIK, 1997, p. 24.
25

espécie de “tradição” administrativa: a Constituição Imperial de 1824 reconhecia e trazia


absoluta garantia ao direito de propriedade, ao passo que os municípios continuavam a expedir
“posturas”, normas regulamentadoras que versavam sobre o direito de construir, com
supedâneo no art. 169 da Carta então vigente. Constata-se, contudo, que aquela Constituição
não regula propriamente o exercício do poder de polícia pela municipalidade, remetendo o
estabelecimento das funções e atribuições municipais a uma Lei regulamentar. É o inteiro teor
do indigitado dispositivo constitucional: “O exercício de suas funções municipais, formação
de suas Posturas policiais, aplicação das suas rendas, e todas as suas particulares, e úteis
atribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar”.

É nesta época, e em consequência do comando constitucional, que se registra a


primeira lei de organização municipal promulgada no País, a de n. 28, de 1º de outubro de
1828. O diploma legal reafirma competência dos vereadores para legislar sobre posturas
municipais, determinando sobre quais temas teriam as autoridades locais poder de polícia
administrativa.

Segundo José Afonso da Silva,

as Câmaras deliberavam em geral sobre os meios de promover e


manter a tranquilidade, a segurança, saúde e comodidade dos
habitantes; o asseio, segurança, elegância e regularidade externa dos
edifícios e ruas das povoações; e sobre estes objetos formavam suas
posturas, que eram publicadas por editais. 37

Há de se reforçar a importância, como instrumento de intervenção urbanística, da


legislação atinente a desapropriações. A tomada da propriedade particular – e o dever
consequente de indenizar – era autorizada em casos de reconhecida utilidade pública, com
objetivos notadamente estéticos. A competência para para legislar sobre a matéria, todavia, era
das Assembleias Legislativas provinciais, que poderiam definir os casos e os procedimentos
cabíveis para a expropriação. Tal atribuição fora conferida às Províncias por força de Ato
Adicional à Constituição do Império, e definitivamente regulamentada pela Lei de 9 de
setembro de 1826.

Os atos normativos posteriores, ainda tratando sobre os casos de desapropriação


por força de ato governamental, dão especificidade aos casos em que o direito à propriedade é

_______________
37
SILVA, 2008, p. 55.
26

mitigado em prol do interesse coletivo. A Lei n. 57, de 16 de março de 1836, regula a


desapropriação por utilidade municipal ou provincial para obras de infraestrutura,
notadamente para a abertura de vias, e também para melhorias em monumentos públicos ou
espaços comuns. Por sua vez, a Lei n. 353, de 12 de julho de 1845, vai além e possibilitou, diz
José Afonso da Silva,

a fundação de povoações, abertura, alargamento ou prolongamento de


estradas, ruas, praças e canais; a construção de pontes, fontes,
aquedutos, portos, diques, cais e qualquer estabelecimento destinado à
comodidade ou servidão pública; construção ou obras destinadas a
decoração ou salubridade pública. 38

A sobreposição da área rural sobre a urbana, decorrente até mesmo da vocação


agrícola nacional e em razão da forma de ordenação do território brasileiro, é marcante. Nesse
sentido, o homo colonialis via-se submetido a uma política contraditória da Administração,
que, conforme leciona José Afonso da Silva,

buscava “reunir os moradores dispersos”, fundando povoações e vilas,


mas, ao mesmo tempo, os forçava à dispersão e ao centrifugismo,
instituindo o regime de sesmarias vagas e fomentando a constituição
autárquica dos “engenhos rurais”. Muitos povoados e núcleos
habitacionais existiam e ainda existem que, no entanto, não podem, a
rigor, receber o título de “urbanos”, porque não passam de agricultores
aldeados.39 (grifos do original)

O nascimento de uma burguesia urbana dá impulso a intervenções urbanísticas nas


maiores cidades do Brasil, notadamente nas últimas décadas do século XIX. Repetia-se a
fórmula europeia, ao passo que a política urbana vertia suas preocupações, de forma
destacada, ao embelezamento da urbe e a aspectos sanitaristas, mantendo a salubridade em
agrupamentos urbanos cada vez maiores.

Em São Paulo, a ascenção da cultura do café e o fluxo imigratório transformam a


pequena cidade, em pouco tempo, naquilo que Raquel Rolnik define como “a sede financeira
do boom cafeeiro”, e traz dados indicando que, em oito anos, a população municipal triplicou
40
. Ganha destaque a instituição do código sanitário estadual de 1875 que disciplina e limita o
uso da propriedade em favor de coletividade; no mesmo ano, a cidade de São Paulo institui
seu código municipal de posturas.

_______________
38
SILVA, 2008, p. 55-56.
39
SILVA, 2008, p. 22.
40
ROLNIK, 1997, p. 28.
27

Há, porém, finalidades outras na legislação urbanística que disciplinava os


contornos dados à urbe crescente. A urbanização em São Paulo trouxe consigo, ainda segundo
Rolnik, a redefinição do espaço público, “limpo, exclusivo e onde impera a respeitabilidade
burguesa”41. Em decorrência disso, os atos disciplinadores reafirmavam a vocação burguesa
da cidade, empurrando para a periferia – longe da vista da classe dominante – a classe
trabalhadora. A urbanista paulistana exemplifica:

- na rua, privilegia-se a circulação de veículos à convivência popular;

- as restrições trazidas pela legislação municipal para a construção de cortiços na


área central, moradias destinadas essencialmente à população de menor renda; e

- a responsabilização das classes pobres pela disseminação de epidemias como


justificativa para a intervenção nas propriedades que abrigavam moradas populares.

A cúpula agroexportadora contava com a administração pública e com seus


regramentos como, lançando mão de modelo urbanístico higiênico, “garantia de proteção do
espaço das elites”42 para a habitação em área exclusiva, apartada da massa trabalhadora. Os
investimentos públicos concentravam-se nessas localidades, dotando as moradas de
infraestrutura garantidora de conforto e salubridade.

A inanição do governo liberal no enfrentamento do deficit habitacional favorecia


(novamente) as classes sociais mais altas que lucravam com o aluguel de residências aos
trabalhadores, em regra situadas nas proximidades do local de trabalho. Enquanto isso,
simultâneo movimento centrífugo afastava a classe operária de acessar as regiões nobres: as
exigências e a alta valorização dos imóveis centrais afastava as residências populares em
direção aos subúrbios, livres do regramento legal dos bairros residenciais exclusivos – e
também da infraestrutura estatal.

Raquel Rolnik assevera:

Na linguagem administrativa e política, esses assentamentos


[populares] são classificados como favelas, cortiços, loteamentos
clandestinos ou irregulares e casas sem alvará. Aparecem nos circuitos
de decisão dos governos (principalmente na esfera municipal, mas

_______________
41
Ibid, p. 34.
42
ROLNIK, 1997, p. 46.
28

também estadual) por meio de autuações do aparato fiscalizador ou de


demandas por serviços, regularização e consolidação vindas dos
próprios moradores desses locais ou dos políticos que os representam.
Estas autuações e demandas são negociadas no interior do circuito dos
governos, envolvendo muitas vezes, além do executivo e legislativo, o
aparato judiciário e policial.

(...)

A consequência inevitável da posição extralegal é a ideia de que os


assentamentos irregulares são provisórios e que um dia irão
desaparecer de onde estão. A posição de provisoriedade funciona como
justificativa para o não-investimento público, o que acaba reforçando a
precariedade urbanística e, sobretudo, acentuando as diferenças em
relação ao setor da cidade onde houve investimento. 43

A grande revolução que, de fato, dá impulso ao fenômeno de urbanização no


Brasil acompanha, de forma paradoxal, a instalação de um regime ditatorial. A grande crise
mundial ocorrida em 1929 arruina o comércio de café e leva grandes produtores à bancarrota.
Produto de uso supérfluo, foi dos primeiros a ser cortado das listas de importações pelos
mercados compradores tradicionais. Nesse contexto histórico, um líder pouco dependente das
forças oligárquicas tradicionais, que o país dominavam desde a Proclamação da República,
altera as estruturas de poder até então vigentes. A oligarquia cafeeira vê-se substituída pela
burguesia ascendente, aliada às forças militares44: é a Revolução de 1930, que insere o Brasil,
com um século de atraso, na Era Industrial.

_______________
43
Ibid, p. 183.
44
Na descrição de Ferrari, “com o cracking mundial de 1929 que aqui repercutiu intensamente abalando a
economia cafeeira, o tenentismo burguês de nossas forças armadas implanta a Revolução de 30, derrubando o
feudalismo agrário do poder e dando autenticidade à república brasileira. No Brasil, a burguesia só assume o
poder depois da revolução de 30” (FERRARI, 1982, p. 268),
29

2. A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E A PARTICIPAÇÃO POPULAR


CONSTITUCIONALIZADA: ASPECTOS POLÍTICO-CONSTITUCIONAIS DO
EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA DIRETA PELA INTERVENÇÃO EM POLÍTICAS
PÚBLICAS

2.1. A NOÇÃO DE PARTICIPAÇÃO NAS TEORIAS DEMOCRÁTICAS

O Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. O comando do cabeço do


artigo primeiro da Constituição Federal ressoa e orienta, portanto, toda a estrutura estatal, ao
passo que a formação e a manutenção do ente político depende da vontade popular. A
Constituição é – formalmente – a expressão máxima do ânimo político do povo que constitui,
literalmente, o Estado. A partir daí, verifica-se que a cidadania tida como fundamento da
República é o ponto de encontro entre o ser humano e a abstração jurídica a que se submete. A
cidadania é a forma através da qual o povo exerce seu poder, em consonância com o que
determina o parágrafo único do aqui mencionado artigo.

Os conceitos de Estado de Direito e de Estado Democrático que se enlaçam no


verbete inaugural de nossa Constituição relacionam-se simbioticamente. O império do povo e
da lei é simultâneo. Os anseios populares encarnados pelo Poder Constituinte Originário
lançam garantias paralelas.

Por um lado, a estrita observância dos direitos e garantias estabelecidos pela Carta
Constitucional garante a dignidade da pessoa humana, protegendo-a de manifestações políticas
estranhas aos objetivos nacionais ali entabulados. É garantia que constrange e submete o
Estado à estrita legalidade, impedindo o exercício absoluto e arbitrário do poder. No mesmo
sentido, como decorrência da proteção ao indivíduo conferida pela legalidade a que se curva o
poder, o Estado de Direito serve como freio às práticas opressoras postas em marcha pela
maioria da população, em detrimento de uma minoria que se vê ameaçada. Os direitos e as
garantias fundamentais, assim, exercem função também contramajoritária.
30

De outro lado, o poder concentrado no ente abstrato estatal será exercido por
delegação da comunidade. Seu fundamento, vale repetir, é a soberania popular. Em igualdade
de condições, a cada um dos membros do Estado é conferido o direito de ser chamado a
definir o destino da sociedade que integra; definições essas que, eventualmente, afetarão sua
esfera individual de direitos. Tal fenômeno ganha destaque em razão da constituição social do
Estado, que se coloca numa posição proativa como efetivador de uma sociedade livre, justa,
igualitária, desenvolvida, livre das mazelas da marginalização e da pobreza e promotora do
bem de todos.

Daqui, consegue-se aferir que a Constituição Federal de 1988, no dizer de José


Afonso da Silva,

combina representação e participação direta, tendendo, pois, para a


democracia participativa. É o que, desde o parágrafo único do art. 1º, já
está configurado, quando, aí, se diz que todo o poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos (democracia
representativa), ou diretamente (democracia participativa).45

Não se trata, é bem que se diga, do descrédito do sistema democrático


representativo, condenado por Rousseau, para quem a soberania, vetor pelo qual a vontade
geral se consubstancia, não admite representação de qualquer natureza. O filósofo chega a
afirmar que “os deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes; são
quando muito seus comissários e nada podem concluir definitivamente”46. Parece-nos,
justamente, o contrário: o momento parece revelar o resgate da cidadania política ativa, na
tentativa de conciliar o que Comparato denomina “cidadania civil”, esfera individual de
soberania, e “cidadania política”, exercício da soberania coletiva.

O paradigma da democracia representativa, no entanto, rechaça as vantagens da


distribuição de poder pela cidadania, chamada a definir os rumos da gestão da coisa pública.
Como argumento fundamental, sustenta que o mandato representativo tem por função precípua
proteger o Estado e a sociedade do totalitarismo decorrente de um incremento da participação
das massas no processo democrático. A oligocracia (Michels) ou a poliarquia (Dahl) oferecem,
segundo alguns, estabilidade ao sistema político, inexorável à continuidade do projeto
jurídico-estatal. Segundo Pateman, para tais teóricos a participação popular “não apenas tem

_______________
45
SILVA, 2005, p. 141.
46
ROUSSEAU, 2003, p. 131.
31

um papel menor, como nas teorias de democracia atuais um dado predominante é a ênfase
colocada nos perigos inerentes à ampla participação popular em política”47. Preleciona
António Manuel Hespanha:

De facto, numa óptica utilitarista, quem mais tem, mais arrisca e, logo,
pondera melhor as suas decisões políticas. Para além de que, numa
perspectiva de pura justiça comutativa, quem produz mais riqueza (e
quem paga mais impostos, o “síndroma do contribuinte”) deve ter mais
direito de participação política. Estes pontos de vista – que foram
teorizados, de forma acabada embora não monotónica, por Sieyès,
Bentham e Constant, mas sobretudo por Kant – deram origem aos
sistemas constitucionais de democracia restrita.48

A partir da suposta incapacidade dos cidadãos para a tomada de determinadas


decisões no exercício do poder soberano, relatada por Montesquieu no século XVIII, chega-se
às décadas intermediárias do século XX com o relato da propensão, empiricamente atestada,
da falta de interesse generalizado em política e atividades políticas pelas classes menos
abastadas. Mais: registra-se certa tendência a atitudes não-democráticas, maiores à medida que
as condições sócio-econômicas se deterioram. Quanto mais baixas as condições de vida e o
nível formal de educação, maior seria a propensão ao autoritarismo.

É daqui que se retira a suposta aproximação da ampliação da participação política


com regimes totalitários. A participação popular ampla daria sustentação a arroubos políticos
anti-democráticos e abusivos, tendo como exemplo maior o nazifascismo europeu do século
passado.

Além do aspecto político, até então destacado, merece ser revisitado ainda o viés
epistemológico da teoria clássica, com o rompimento da ciência política com a teoria
democrática clássica ou populista, assim denominada por Joseph Schumpeter. A “purificação”
das ciências sociais, fenômeno também registrado no Direito a partir do purismo kelseniano,
acaba por gestar sistemas teóricos assépticos e herméticos.

No Direito, sublinhou-se “a autonomia do saber jurídico e a sua relativa


indisponibilidade em relação aos projetos de poder”, ao passo que “a jurisdicidade parece
decorrer de valores internos ao discurso do direito, valores que a vontade política ou a

_______________
47
PATEMAN, 1992, p. 10.
48
HESPANHA, 2005, p. 363-364.
32

utilidade social não podem substituir”49. No mesmo sentido, a partir de Schumpeter, a


democracia ganha características de método político, definida como “aquele arranjo
institucional para se chegar a decisões políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de
decidir utilizando para isso uma luta competitiva pelo voto do povo”50. Peter Bacharach, por
sua vez, identifica a democracia “como aquele [modelo] em que a maioria (não elites) obtém o
máximo de rendimento (decisões políticas dos líderes), com o mínimo de investimento
(participação) de sua parte”51.

Note-se que o sistema representativo aqui apresentado toma como máxima a


diferenciação entre igualdade política e igualdade do controle político. Aquela é garantida a
todos os cidadãos na qualidade de eleitores. A expressão de sua vontade é, simultaneamente,
forma de dar legitimidade ao poder dos legisladores e de proteger suas opiniões e atos,
exaradas no exercício do mandato, de questionamentos dos representados. O controle político,
contudo, é restrito a um diminuto grupo de pessoas, sob pena de comprometimento da
estabilidade do sistema democrático. Por tal razão, Dahl, citado por Pateman,

põe em evidência a hipótese de que uma porcentagem relativamente


pequena de indivíduos, em qualquer forma de organização social,
aproveitará as oportunidades de tomada de decisão. E, portanto, o
“controle” depende do outro lado do processo eleitoral, da competição
entre os líderes pelos votos da população; o fato de que o indivíduo
pode transferir o seu apoio a um grupo de líderes para outro confirma
que os líderes são “relativamente afetados” pelos não-líderes. E tal
competição é o elemento especificamente democrático do método, e a
vantagem de um sistema democrático (poliárquico) comparado a
outros métodos políticos reside no fato de ser possível uma ampliação
do número, do tamanho e da diversidade das minorias que podem
mostrar sua influência nas decisões políticas e no conjunto do caráter
político da sociedade.52

Por sua volta, o papel da representação como fundamento do sistema democrático,


mais que apenas como garantidor de sua efetividade, é rechaçado por teóricos diversos nos
séculos XIX e XX, na esteira do pensamento rousseauniano de participação individual no
processo de tomada de decisões.

_______________
49
Ibid, p. 436.
50
Apud PATEMAN, 1992, p. 13.
51
PATEMAN, 1992, p. 26.
52
Ibid, p. 19.
33

O modelo democrático proposto pelo Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau


estimula a interdependência simultânea entre a “pólis” e seus integrantes. O espaço público e o
espaço privado interpenetram-se, colocando-se de forma praticamente indissociável na vida do
cidadão. A premissa fundamental de que nenhum homem possui qualquer autoridade, de
qualquer natureza, sobre seu semelhante impõe o governo de iguais. Para a concretização de
tal objetivo, a unidade política rousseauniana ideal é diminuta e, tanto quanto possível,
igualitária. E tal fato se dá pois, segundo o teórico suíço, a desigualdade material traz consigo,
inexoravelmente, a desigualdade política.

O poder soberano é nada mais que a reunião dos particulares que o compõem,
sendo esta sua condição de criação e existência. O poder soberano traveste-se, portanto, em
uma “vontade geral”, constituinte do pacto social e de compulsória observância pelo
particular53. Nesse sentido, a obrigação de ser livre é decorrência de tal pressuposto, ao passo
que

ao menos que cada indivíduo seja “forçado” a agir de modo


socialmente responsável através do processo participatório, não poderá
haver nenhuma lei que assegure a liberdade de todos, ou seja, não
poderá existir nenhuma vontade geral ou qualquer tipo de lei justa que
o indivíduo possa prescrever a si mesmo.54

Identificam-se aqui três funções primordiais da participação na teoria democrática


de Rousseau. A primeira concerne ao desenvolvimento de estruturas propícias a despertar, nos
indivíduos, um senso de responsabilidade política em decorrência do coexercício da soberania.
Quanto mais fosse o cidadão instado a se manifestar, maior seu vínculo com o Estado e com a
gestão da coisa pública. O segundo aspecto busca facilitar a aceitação, por parte da
coletividade, das decisões tomadas que, porventura, coloquem-se contra vontades individuais.
Tem-se a garantia de que a ampla participação de iguais afirma a posição da “vontade geral”,
diante da qual as vontades individuais se calam. Por derradeiro, como consequência das duas
anteriores, a autorresponsabilização pelo coletivo e a garantia da manifestação livre e
consciente da “vontade geral” por meio da participação popular propiciam sentimentos de
integração e de pertencimento do indivíduo à comunidade. Segundo Pateman,
_______________
53
A vontade geral e a vontade da maioria, para Rousseau, não são necessariamente convergentes. Enquanto a
vontade da maioria é formada pela soma de vontades individuais – mesmo que unânime, a vontade geral tem
caráter coletivo e visa ao interesse comum, consubstanciada como manifestação do próprio Estado, por meio
de seu corpo político.
54
Ibid, p. 40.
34

Mais importante é a experiência da participação na própria tomada de


decisões, e a complexa totalidade de resultados a que parece conduzir,
tanto para o indivíduo quanto para o sistema político como um todo;
tal experiência integra o indivíduo a sua sociedade e constitui o
instrumental para transformá-la numa verdadeira comunidade.55

As principais críticas estabelecidas ao sistema clássico, até aqui retomado, foram


formulados por teóricos que secundam as noções de participação de Rousseau,
destacadamente John Stuart Mill e G. D. H. Cole. Destacam os citados autores que a
estruturação excludente do sistema representativo é sua principal falha, ao passo em que
obstaculiza a desconcentração do exercício do poder político.

Mill sustenta que a representação, como estabelecida, mantém as classes inferiores


num estado de tutela permanente, e afirma que “qualquer conselho, exortação ou orientação a
serem dados às classes trabalhadoras, daqui por diante, precisam ser oferecidos a elas na
condição de iguais e e aceitos por elas de olhos abertos”56.

Cole, por sua vez, obtempera que o mandato irrestrito, outorgado para a
representação em todos os assuntos, elimina a possibilidade de verificar a efetiva vontade dos
representados para questões pontuais. A decisão tomada por aquele a quem o exercício da
soberania foi legado nem sempre se coaduna com a vontade de seus mandantes. Por tal razão,
prefere trabalhar com a noção de representatividade vinculada à funções ou propósitos: a única
representação admissível é aquela em que a associação que “se coloca qualquer objetivo
superior à simplicidade mais rudimentar vê-se compelida a atribuir tarefas e deveres (e, com
estes, poderes e uma parcela de autoridade) a alguns de seus membros, de maneira que o
objetivo geral possa ser efetivamente perseguido”57.

Nesse compasso, Cole identifica como segundo problema fundamental a restrição


à ideia de participação à singela escolha do representante, que tampouco é real. Afinal,
considerada a multiplicidade de questões que será o representante obrigado a enfrentar,
combinada à impossibilidade de controle posterior das ações e manifestações do mandatário, a
representação é, em última instância, ficcional e inapropriada para fins de efetiva expressão
dos anseios populares.

_______________
55
Ibid, p. 41-42.
56
apud PATEMAN, 1992, p. 46.
57
apud PATEMAN, 1992, p. 54.
35

Cole e Mill identificam um novo local de exercício da participação: a indústria. É


interessante notar que, a partir das práticas democráticas decantadas na obra de Rousseau
transpostas para a modernidade, trazem as concepções deste para fora do espaço público.
Definitivamente inseridos no sistema capitalista, deslocam o eixo do estímulo pedagógico, tão
destacado nos teóricos da democracia participativa, às práticas dos locais de trabalho.
Propõem a substituição de estruturas hierárquicas, em que a relação entre capitalista e
trabalhador é estabelecida com fundamento na subordinação, por arranjos institucionais de
cooperação ou de igualdade. A ampliação dos espaços democráticos permite o
recrudescimento da prática e, sobretudo, da “educação democrática”, ressaltada quer pela
teoria representativa, quer pela participativa, como imprescindível para a mantença do sistema
político. Reconhece-se o flerte com o ideário marxista.

Carole Pateman, de posse dos conceitos aqui rapidamente revisitados, apresenta


pois uma teoria de democracia participativa calcada no trinômio educação, integração e
aceitação, resgatando as funções já descritas por Rousseau. Rechaça o modelo de democracia
representativa tradicional, pois nela “o que importa é a participação da elite minoritária, e a
não-participação do homem comum, apático, com pouco senso de eficácia política (...) vista
como a principal salvaguarda contra a instabilidade”58. Levanta-se contra a prática de, em vez
de atacar a causa, fomentando o caráter educacional das instituições democráticas, tomar a
consequência por regra, a fim de afastar a participação popular do quadro democrático.

Em suma, justifica a o sistema democrático na teoria participativa como

aquele onde se exige o input máximo (a participação) e onde o output


inclui não apenas as políticas (decisões) mas também o
desenvolvimento das capacidades sociais e políticas de cada indivíduo,
de forma que existe um feedback do output para o input.59

O modelo adotado pelo Brasil com a promulgação da Constituição Federal de


1988, como anteriormente referido, reúne características de ambas as correntes. Marca
comum, pois, é o local preferencial para estímulo da participação democrática direta: a
comunidade em que se insere o cidadão é ambiente privilegiado para a intervenção popular na
determinação das políticas públicas, e é justamente aqui que o Estado brasileiro concentra as
iniciativas de participação direta da população nos desígnios governamentais.
_______________
58
PATEMAN, 1992, p. 139.
59
Ibid, p. 139.
36

2.2. A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ORDEM CONSTITUCIONAL NACIONAL

O exercício constitucional da cidadania supera a mera representatividade do


Estado liberal. A representação política tradicional torna-se insuficiente quando a organização
estatal se propõe a efetivar a isonomia, ou quando é chamada a defender não apenas interesses
com titulares plenamente identificados. A superveniência de novos direitos (a um meio-
ambiente equilibrado, ao desenvolvimento sustentável, à paz), de caráter transindividual,
desafiam os mecanismos clássicos de garantias de concretização de direitos.

Ganha força a ideia de participação popular na gestão da coisa pública: a crítica


formulada pelos teóricos da democracia representativa encontra ressonância também dentre os
teóricos constitucionais. José Afonso da Silva põe em xeque a ideia de representação
incorporada à ordem constitucional brasileira quando afirma:

Há muito de ficção, como se vê, no mandato representativo. Pode-se


dizer que não há representação, de tal sorte que a designação de
mandatário não passa de simples técnica de formação dos órgãos
governamentais. E só a isso se reduziria o princípio da participação
popular, o princípio do governo pelo povo na democracia
representativa. E, em verdade, não será um governo de expressão da
vontade popular, desde que os atos de governo se realizam com base
na vontade autônoma do representado. 60

A Constituição Federal traz em seu bojo instrumentos de participação popular


classificados como de democracia semidireta. Nas hipóteses previstas pelo ordenamento
jurídico, a população é instada a manifestar-se, fazendo-o todavia por intermédio de alguma
instituição estatal, quer sendo chamado, quer submetendo matéria a apreciação pelo Congresso
Nacional. A matéria é regulamentada, a nível infraconstitucional, pela Lei n. 9.709, de 18 de
novembro de 1998.

A primeira das formas de participação popular previstas pela Carta Política é o


projeto de lei de iniciativa popular. Está prevista no art. 14, III (direitos políticos), e
regulamentada, no processo legislativo federal, no art. 61, § 2º da Constituição Federal. É
forma de participação ativa, ao passo que permite a um por cento dos eleitores do país,
distribuídos em pelo menos cinco unidades da Federação e observado o percentual mínimo de
_______________
60
SILVA, 2005, p. 139-140.
37

três décimos dos eleitores em cada uma delas, submeter ao Poder Legislativo projeto de lei,
seja ela ordinária ou complementar. Inexistem restrições quanto aos temas sobre os quais
poderão versar os projetos de iniciativa popular, desde que circunscritos a um só assunto, em
observância ao art. 13, § 2º, da referida Lei n. 9.709/98.

Os requisitos impostos pelo constituinte para a apresentação do projeto de lei de


iniciativa popular tende a inviabilizar a utilização do instrumento. Desde a promulgação da
Carta Federal, apenas quatro projetos de lei foram convertidos e passaram a integrar o
ordenamento jurídico pátrio:

- Projeto de Lei n. 4.146/93: convertido na Lei n. 8.930, de 6 de setembro de 1994,


que altera a Lei n. 8.072/90 para incluir no rol de crimes hediondos o homicídio qualificado e
o homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio;

- Projeto de Lei n. 1.517/99: convertido na Lei n. 9.840, de 28 de setembro de


1999, que penaliza com multa e cassação do registro ou do diploma eleitoral os candidatos que
captem sufrágio pela doação, oferecimento, promessa ou entrega de qualquer bem ou
vantagem pessoal de qualquer natureza ao eleitor;

- Projeto de Lei n. 2.710/92: convertido na Lei n. 11.124, de 16 de junho de 2005,


que cria o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social; e

- Projeto de Lei Complementar n. 518/09, prejudicado pela aprovação de emenda


substitutiva global pela Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei Complementar n. 168/93:
convertido na Lei Complementar n. 135, de 4 de junho de 2010, que altera a LC n. 64/90 para
acrescentar ao rol de inelegíveis aqueles condenados por órgão colegiado, além de aumentar o
período de inelegibilidade, em situações determinadas.

A segunda e a terceira formas de participação popular, o plebiscito e o referendo


popular, guardam similitudes que permitem sua análise conjunta. Previstos respectivamente
nos incisos I e II do art. 14 da Constituição Federal, constituem-se como forma de consulta aos
eleitores. Considerando que a convocação da população para manifestar sua opinião depende,
obrigatoriamente, de autorização (referendo) ou convocação (plebiscito) pelo Congresso
38

Nacional61, constata-se o caráter passivo destas modalidades de participação, já que a


iniciativa parte do poder representativo constituído.

A diferença entre os dois consiste no momento de tramitação da medida submetida


ao crivo popular. José Afonso da Silva distingue os instrumentos nos seguintes termos:

visa [o plebiscito] a decidir previamente uma questão política ou


institucional, antes de sua formulação legislativa, ao passo que o
referendo versa sobre aprovação de textos de projeto de lei ou de
emenda constitucional, já aprovados; o referendo ratifica (confirma) ou
rejeita o projeto aprovado; o plebiscito autoriza a formulação da
medida requerida (...)62

Todavia, não são apenas esses os instrumentos que permitem à cidadania influir,
de modo mais ou menos direto, na gestão do Estado. A própria Constituição Federal, como se
verá mais adiante, traz chamamentos à população para que intervenha na elaboração de
políticas públicas nas mais diversas áreas, sendo invocada para apresentar suas contribuições.
Por vezes chega a impor aos administradores o dever de ouvir a cidadania. A inobservância ao
comando acarreta nulidade dos atos porventura incorporados no ordenamento jurídico sem a
participação popular em sua concepção. Além disso, prevê-se a responsabilização do próprio
agente político omisso por ato de improbidade administrativa, como se verá adiante.

Fábio Konder Comparato sustenta que “a ideia-mestra da nova cidadania é a


participação direta da pessoa humana e do povo no processo histórico de seu desenvolvimento
e promoção social: é a ideia de participação”63. Ao destrinchar o sentido de participação que
se impõe na “sociedade de massas”, estabelece cinco âmbitos de atuação de intervenção
popular direta na atividade estatal.

O primeiro âmbito de atuação é na distribuição pública de bens, materiais e


imateriais. Vincula-se à persecução dos direitos sociais, compelindo o Poder Público ao agir
de forma a promover a diminuição das desigualdades. Presta-se à exigência de eventual
prestação de natureza patrimonial por parte do Estado, como forma de concretizar o direito
subjetivo a que, por força constitucional, está a Administração obrigada. Vai além: também

_______________
61
O fundamento da obrigação é constitucional e está insculpido no art. 49, XV, da CF: “É de competência
exclusiva do Congresso Nacional: (...) XV – autorizar referendo e convocar plebiscitos”.
62
SILVA, 2005, p. 142.
63
COMPARATO, 1996, p. 10. Grifos do original.
39

deve garantir o acesso a bens de natureza intangível, como assegurando, e.g., o direito à
informação.

A segunda esfera de participação relaciona-se com a proteção dos direitos e


interesses difusos ou transindividuais. É obrigação do Estado, para além da tutela das relações
tradicionais estabelecidas entre titulares de bens ou obrigações, servir como garantidor das
relações sociais havidas entre sujeitos indeterminados, onde inexiste titular específico. A
clássica garantia de acesso à jurisdição, ou o direito a ter direitos, falece em face do
consagrado princípio da legitimidade de parte: não se pode, à exceção das situações previstas
especificamente, pleitear direito alheio em nome próprio. Todavia, a modernidade traz uma
gama de novos direitos cuja titularidade é pulverizada na coletividade: ao mesmo tempo, todos
são partes legítimas para, acorrendo ao Poder Judiciário, ver apreciada sua pretensão.

A própria Constituição cria, na estrutura estatal, ente detentor de titularidade


responsável por demandar em juízo, em nome da coletividade, visando à defesa de bens de
titularidade coletiva, difusa ou transindividual. É o Ministério Público, competente para,
dentre outras atribuições, promover a tutela do patrimônio público e social e do meio-
ambiente. A defesa do consumidor, a família, a criança, o adolescente, o jovem, o idoso e o
índio ganham também especial menção no texto constitucional e a defesa de seus interesses foi
colocada, de igual maneira, sob a guarda da atuação ministerial.

A legislação infraconstitucional cuidou de estender a possibilidade de ação em


defesa de tais modalidades de direitos. Não apenas o Estado, por seu Parquet, mas também a
sociedade organizada em associações civis é detentora de legitimidade processual
extraordinária para buscar, no Poder Judiciário, a anulação de atos estatais atentatórios ou,
ainda, a responsabilização do Estado ou de particular por danos causados a direitos
transindividuais.

O terceiro plano de participação cidadã na condução do Poder Público cuida do


controle do poder político. Na tomada de decisões políticas fundamentais, os cidadãos são
chamados a, sem intermediários, determinar os rumos do Estado, o que fazem por meio dos
mecanismos de democracia direta constitucionalmente previstos: aqui se inserem o plebiscito,
o referendo e a iniciativa popular para a apresentação de projetos de lei. Na correção de abusos
da representação política, o instrumento legado à coletividade para a anulação de atos lesivos
40

ao patrimônio público e social é a Ação Popular, instrumento criado pela Lei n. 4.717, de 29
de junho de 1965. Busca-se tutelar com esse instrumento o patrimônio de órgãos da
Administração Pública direta ou indireta, considerado “patrimônio” não apenas os bens de
valor econômico, assim como aqueles de valor artístico, estético, histórico ou turístico. José
Afonso da Silva, em igual turno, vê na Ação Popular mecanismo de intervenção direta da
cidadania no poder político por dar “a oportunidade de o cidadão exercer diretamente a função
fiscalizadora, que, por regra, é feita por meio de seus representantes nas Casas Legislativas”64.

Insere-se aqui o já antigo anseio de Jeremy Bentham. Segundo Pateman, sem


prejuízo da defesa da democracia representativa que alinhavara, o jusfilósofo inglês “esperava
que o eleitorado exercesse um certo grau de controle sobre os seus representantes” 65, ao ponto
de sugerir-lhes a denominação “deputados”, no clássico étimo do termo – “enviar alguém em
missão ou comissão, na qualidade de representante”66.

A quarta instância de participação popular refere-se à interferência direta na


administração da coisa pública, através de mecanismos tais como a elaboração conjunta de
políticas públicas e a direção da atuação das autoridades constituídas. A intervenção é possível
individual ou coletivamente, em regra por grupos associativos unidos por vínculos de fato ou
de direito.

A própria Constituição Federal determina que a para a elaboração de determinadas


políticas públicas será, necessariamente, ouvida a sociedade civil. Ora organizada por meio de
“setores”, “entidades” ou “organizações representativas”, ora diretamente, são chamados à
discussão:

- as associações representativas para a elaboração do plano diretor (CF, art. 29,


XII);

- os setores de produção, comercialização, armazenamento e transportes na


elaboração da política agrícola (CF, art. 187);

_______________
64
SILVA, 2005, p. 463.
65
PATEMAN, 1992, p. 30.
66
HOUAISS, Antônio (org). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
p. 943.
41

- os trabalhadores, os empregadores e os aposentados, ao lado do Governo, na


gestão quadripartite da seguridade social (CF, art. 194, VII);

- a comunidade para participação no Sistema Único de Saúde (CF, art. 198, III);

- organizações representativas para a formulação de políticas e controle das ações


de assistência social (CF, art. 204, II);

- entidades não-governamentais para participar dos programas de assistência à


saúde da criança, do adolescente e do jovem (CF, art. 227, I);

- os representantes da sociedade civil na gestão do Fundo de Combate e


Erradicação da Pobreza (ADCT, art. 79, parágrafo único); e

- a sociedade civil na gestão dos Fundos de Combate à Pobreza instituídos pelos


Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios (ADCT, art. 82).

É interessante ressaltar que, à exceção da elaboração das políticas nacionais para


agricultura, para a seguridade social e para o Fundo Nacional de Combate e Erradicação da
Pobreza, todas as demais áreas em que, por força constitucional, a participação popular é
obrigatória são de competência municipal, quer privativa, quer comum. O legislador
brasileiro, especificamente nesses momentos, consubstancia aquilo que Carole Pateman
denomina de democratização das estruturas de autoridade, de forma a permitir a participação
efetiva da população, sem intermediários, do processo de tomada de decisão67.

Finalmente, Comparato indica como quinta esfera de participação política cidadã


direta no poder a proteção de interesses transnacionais por organizações privadas. Pende-se,
aí, ao reconhecimento de uma (engatinhante) cidadania universal, lastreada na ideia da
existência de bens da vida que, embora não pertençam especificamente a nenhum Estado-
Nação, a todos atingem. Sua preservação é, portanto, de comum interesse de cada um dos
cidadãos, e a legitimidade para pleiteá-los é condição indelével da própria humanidade.

_______________
67
PATEMAN, 1992, p. 61.
42

2.3. O MUNICÍPIO NA FEDERAÇÃO BRASILEIRA: O FEDERALISMO TRIPARTITE E


A EXTENSÃO DO PODER DO ENTE MUNICIPAL NA ORDEM JURÍDICO-POLÍTICA
NACIONAL

A democracia participativa ocupa-se, desde Rousseau, a afirmar que o nível local


de exercício de poder é preferível para o exercício democrático. No pensamento de Mill. “é a
nível local que se cumpre o verdadeiro efeito educativo da participação, onde não apenas as
questões tratadas afetam diretamente o indivíduo e sua vida cotidiana, mas onde também ele
tem uma boa chance de, sendo eleito, servir no corpo administrativo local”68.

O município é a menor unidade descentralizada de exercício de poder estabelecida


pela Constituição Federal de 1988. A nova Constituição rompeu com a ordem jurídica vigente
desde o ano de 1967, que tentava dar sustentação jurídico-constitucional ao regime ditatorial
instalado no Brasil a partir do golpe de março de 1964. Até então, dentro da tradição
dominante em nosso regime republicano, impera a forma de Estado federal. É o modelo
constitucional adotado por vez primeira pelos Estados Unidos da América nos derradeiros
anos do século XVIII69 e que inspira, claramente, no século XIX, as colônias latino-
americanas no processo de formação de seus respectivos Estados nacionais.

Em apertada síntese, a fundamental característica de tal modalidade de


organização estatal calca-se na união de entes autônomos que cedem sua soberania, sob
condições determinadas e irrevogáveis, a terceira entidade resultante da congregação de
esforços. A União é organizada de forma mais ou menos centralizadora, nos termos da
Constituição que institui o Estado Federal. Em regra, ao Ente Federal delegam-se limitados e
específicos poderes, mormente atinentes ao monopólio no estabelecimento e manutenção de
relações, de paz e de guerra, com Estados terceiros.
_______________
68
Ibid, p. 46.
69
Refoge aos objetivos do presente trabalho debruçar-se sobre os elementos históricos constitutivos do
federalismo. Não se pode, no entanto, esquivar-se de apontar a diferença pontual havida entre o processo de
formação do Estado Norte-Americano, com a união das Treze Colônias, e a formação da União Federal no
Brasil, forjada “como suporte formalizador de uma ordem sócio-econômica que beneficiava somente
segmentos oligárquicos regionais” (WOLKMER, 2005, p. 109) a partir de um Estado unitário já existente.
Em tempo, merece destaque a referência que faz Coulanges às “anfictionias”, reunião de cidades gregas, que
também encontram equivalentes em Roma. Consta, no entanto, que compartilhavam, primordialmente,
práticas religiosas, exercendo, assim “pouca ação política” (COULANGES, 2004, pp. 233-236).
43

Diante disso, traço marcante na estrutura federativa é a repartição de


competências, o que resulta na fragmentação do poder – decorrência da desconcentração
administrativa70. Os agentes políticos, afinal, distribuem-se nas esferas federal e regional,
exercendo as atribuições determinadas àquele locus, sendo “conseqüência desta distribuição
de competências entre uma pluralidade de centros de poder independentes e coordenados (...)
que cada parte do território e cada indivíduo estão sujeitos a dois centros de poder” 71. Poder-
se-ia dizer, desta forma, que o modelo federativo contempla espécie de fenômeno centrífugo
de poder, em que o processo de tomada de decisão se desloca do centro para os extremos da
estrutura estatal.

O constituinte originário brasileiro em 1988, por sua vez, traz controversa


inovação insculpida já em seu artigo inaugural. O cabeço do artigo primeiro da (então) novel
Carta Política afirma que o Estado brasileiro é formado pela indissolúvel união não apenas de
seus Estados federados, mas também de seus municípios. O comando constitucional ressoa
ainda no artigo dezoito da Constituição Federal, que reafirma o papel do município na
organização político-administrativa da República e sentencia: os entes são “todos autônomos”.
Concedeu-se aos municípios aquilo que José Afonso da Silva denomina de “dignidade
federativa jamais lograda no direito positivo das Constituições antecedentes”72, inédita nos
modelos federativos até esta data implementados. Trata-se de vanguardista federalismo
tridimensional, ou federação trilateral.

Hely Lopes Meirelles, por sua vez, compreendia que desde a Constituição Federal
de 1946 o município lograva competências suficientes para ser caracterizado como terceiro
ente da Federação. Por tal razão, comemorava a disposição constitucional que alavanca o
município à condição de Ente Federativo, registrando contudo que seu essencialismo na ordem
político-administrativa não é inédito. Lecionava o administrativista paulista:

Já não corresponde à realidade brasileira a afirmativa de Castro Nunes,


feita em 1920, de que “o Município não é peça essencial da

_______________
70
José Afonso da Silva denomina desconcentração “o fenômeno da distribuição interna de plexos de
competências decisórias, agrupadas em unidades individualizadas”. Menciona, em tempo, que “a aludida
distribuição de competências não prejudica a unidade monolítica do Estado, pois todos os órgãos e agentes
permanecem ligados por um sólido vínculo denominado hierarquia”. (SILVA, 2005, p. 140) (grifos do
original suprimidos)
71
BOBBIO, 2005, p. 481.
72
BONAVIDES, 2006, p. 344.
44

Federação”. Não o era na Federação instituída pela Constituição de


1891, plasmada na sua congênere Norte-Americana, que desconhecia e
desconhece até hoje o Município com entidade estatal. Mas é peça
essencialíssima da nossa atual Federação, que desde a Constituição de
1946 erigiu o Município Brasileiro em entidade estatal de terceiro
grau, integrante e necessária ao nosso sistema federativo. A Federação
Brasileira não dispensa nem prescinde do Município na sua
organização constitucional. Segue-se, daí, que o Município Brasileiro é
entidade político-administrativa de terceiro grau, na ordem
decrescente da nossa Federação: União – Estados – Municípios.73

Exsurge, pois, o destacado papel legado aos municípios pela ordem constitucional
brasileira: seriam eles entes federados, autônomos, que representam terceiro locus de poder a
que se submete o cidadão.

A defesa da dimensão federativa do município não é contudo, registre-se,


uníssona. Merece especial registro a posição adotada por José Nilo de Castro que, rejeitando a
referência constitucional, classifica o município como “entidade condômina de exercício de
atribuições constitucionais”74. Para tanto, faz referência aos artigos da Carta Magna que, ao
instituírem o Poder Legislativo Federal, o fazem pela eleição de representantes eleitos nos
Estados e Distrito Federal. Extrai daí a conclusão de que a vontade política nacional encontra
ressonância nos Entes Federados propriamente ditos, excluídos os municípios. São as urbes
integrantes – mas não formadoras – da União.

Indiferente a isto, nas feições dadas ao ente municipal pela CF, identificam-se com
clareza quatro dimensões de autonomia catalogadas por José Afonso da Silva, insuscetíveis
essas de limitação tanto por parte da União quanto dos Estados-membros. Verifica-se, pois,
que

as normas constitucionais instituidoras da autonomia dirigem-se


diretamente aos municípios, a partir da Constituição Federal, que lhes
dá o poder de auto-organização e o conteúdo básico de suas leis
orgânicas e de suas competências exclusivas, comuns e
suplementares.75

A autonomia municipal, realço, é das mais destacadas características da nova


ordem constitucional de 1988. Tanto isso é verdade que o art. 35 da CF traz rol taxativo de
possibilidades de intervenção estadual na municipalidade: falta de pagamento de dívida
fundada por mais de dois anos sem motivo de força maior; não-prestação de contas nos termos
_______________
73
MEIRELLES, 2003, p. 47.
74
CASTRO, 2006, p. 29.
75
SILVA, 2005, p. 622.
45

da lei; aplicação da receita municipal nos serviços de educação e saúde aquém do


constitucionalmente exigido; e provimento, pelo Tribunal de Justiça, de representação que
assegure a observância a lei, ordem, decisão judicial ou princípio indicado na Constituição
Estadual.

A Constituição Federal de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional


n. 1, de 1969, incluía também dentre as razões para o decreto de intervenção a prática de “atos
subversivos ou de corrupção”. Num regime ditatorial como o então vigente, não é difícil crer
que o significado e amplitude da expressão “atos subversivos” abrisse margem para o
constante vilipêndio à gestão do Município.

A primeira das características inerentes à autonomia municipal diz respeito à auto-


organização. Garante-se ao município, portanto, a capacidade de organizar-se
autonomamente, por meio de lei orgânica, que o regerá nos termos e condições mínimas
delimitadas pelo artigo 29 da CF e no gozo das competências delimitadas a este ente político.
É por meio deste ato normativo, de compulsória adoção pelo município nos termos do
parágrafo único do art. 11 do ADCT, que se dá forma à administração local, definindo por
quais meios exercerá sua autonomia política, normativa, administrativa e financeira. Merece
especial ressalva a irrestrita imposição de observância aos princípios estatuídos pelas
Constituições Federal e Estadual, refletindo o disposto no art. 29, in fine, da CF, que
consubstancia o denominado Princípio da Supremacia da Constituição, do qual derivam outros
diversos princípios, tais como a simetria constitucional.

O autogoverno, por sua vez, é característica que assegura o exercício das funções
governamentais legadas ao município – executiva e legislativa – por representantes eleitos
diretamente pelo povo, nos termos estatuídos no inciso I do art. 29 da CF. Garante a
participação popular na escolha dos representantes municipais que, levando-se em
consideração as dimensões geográficas e populacionais, são os mais próximos de seus
representados. Eleitos são tanto o titular do Poder Executivo, o Prefeito Municipal, quanto os
membros do Legislativo municipal, que exercem a vereança. As atribuições específicas de
cada um dos agentes políticos, exercidas sempre nos limites impostos pela Constituição
Federal, são estabelecidas pela lei orgânica do município.
46

Nos Vereadores reside ainda o terceiro aspecto da autonomia municipal, que


compreende a capacidade de auto-imposição das normas jurídicas referentes àquelas matérias
de competência delegada ao município. Trata-se do poder de autolegislação, que confere ao
município capacidade normativa própria e autônoma, vedada a ingerência dos demais entes da
Federação. Não se pode, no particular, olvidar que o Poder Executivo municipal, encarnado no
Prefeito Municipal, também participa do processo legislativo, seja propondo projetos de lei –
por vezes, exclusivamente –, seja sancionando-os ou vetando-os.

Por derradeiro, a autoadministração garante que a execução das políticas públicas


estatuídas para o município serem levadas a cabo no âmbito desta própria unidade
administrativa, por meio do Prefeito Municipal e respectivos auxiliares, tudo nos termos,
repise-se, da lei orgânica municipal. No mesmo sentido, confere-se à autoridade municipal
poder para cobrar seus tributos76, assim como poder de polícia administrativa77 para fazer
cumprir suas normas, por exemplo.

O exauriente rol de competências municipais exclusivas trazidas pelo art. 30 da


CF, com redação dada pela EC n. 53/2006, bem como as matérias de competência comum
entre os entes federativos a que se refere o art. 23 da Constituição, querem referir-se
estritamente àquelas matérias de interesse local - "peculiar interesse", na expressão utilizada
pelos constituintes pretéritos78. Embora possa haver interesse das demais esferas federativas,
por força constitucional expressa, veda-se a ingerência da administração federal ou estadual
nos municípios.

Aos municípios, portanto, compete legislar sobre assuntos de interesse local e em


caráter supletivo aos demais entes federativos, promover a ordenação da ocupação de seu
território, proteger o patrimônio histórico-cultural merecedor de especial tutela e instituir e
arrecadar os tributos de sua competência a que se referem os arts. 156 e 158 da CF. No mais,
legisla também, paralelamente aos demais entes sobre assuntos tais como a observância ao

_______________
76
Vide art. 156 da CF.
77
Em tempo, menciona-se que as funções de polícia judiciária são exercidas exclusivamente pela União e pelos
Estados-Membros. Aos municípios, nos termos do art. 144, § 8º, da CF, é facultada tão-somente a criação de
guardas específicas para defesa do patrimônio da municipalidade.
78
Vide art. 15, II, da Constituição de 1967, com as alterações promovidas pela Emenda Constitucional n. 1/69;
art. 28, II, da Constituição de 1946; art. 26 da Constituição de 1937; art. 13 da Constituição de 1934; e art. 68
da Constituição de 1891.
47

ordenamento jurídico, atenção à saúde, à assistência pública, aos documentos e obras de valor
histórico, artístico, cultural e natural, ao acesso a cultura, à erradicação da pobreza.

2.4. O ENTE MUNICIPAL E A POLÍTICA URBANA COMO LOCUS DE EFETIVAÇÃO


DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Dentre as competências atribuídas ao ente municipal no âmbito de sua auto-


organização, inclui-se a capacidade de organizar a ocupação espacial do solo. A norma contida
no art. 30, VIII, da CF impõe ao município o poder-dever de, in verbis, "promover, no que
couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do
parcelamento e da ocupação do solo urbano".

A atividade urbanística coloca-se à serviço da sociedade em três subatividades


distintas, extraídas a partir da leitura de José Afonso da Silva dos “momentos” da atividade
urbanística descritos por Joseff Wolff79. A urbanização compreende, pois, o planejamento
urbano, a ordenação das intervenções humanas e os instrumentos de intervenção urbanística.

O planejamento em sentido amplo vincula-se às atividades de planificação das


intervenções humanas e sua distribuição no espaço, dirigindo o crescimento em conformidade
com as condições geográficas e dando forma ao corpo urbano a partir dos objetivos da
ocupação.

A ordenação das intervenções humanas, por sua vez, atua no campo das
intervenções específicas no direito de propriedade alheio, em três esferas principais: o
planejamento das modalidades do uso da terra e de fruição do jus dominii, a regulamentação
do direito de construir e a preservação do interesse coletivo em áreas de interesse especial,
com o fito de preservar o patrimônio natural, histórico, artístico, paisagístico. É aqui que o
urbanismo se ocupa de regular, efetivamente, o trinônio habitação – trabalho – recreação,
dirigindo o crescimento urbano de forma a integrar o organismo social e proporcionar
_______________
79
SILVA, 2008, p. 32.
48

qualidade de vida a seus moradores. É forma específica de atuação na atividade de


planejamento propriamente dita.

Por derradeiro, a atividade urbanística exercida pelo Estado deve ser dotada de
meios para garantir a efetivação das políticas traçadas no interesse da coletividade em
detrimento dos particulares, possibilitando assim a efetiva implementação do planejamento
urbano. É o mecanismo através do qual o Poder Constituído intervém, diretamente, no direito
de propriedade de forma a garantir a ordenação do solo.

A referida diretriz constitucional preserva as atribuições tradicionais do poder


local no que tange à política de ocupação do solo, trazendo, porém, ressalva às competências
municipais no que toca à ordenação territorial. A limitação encontra amparo no próprio texto
constitucional, ao estabelecer o art. 21, IX, como competência exclusiva da União Federal a
elaboração e execução de "planos nacionais e regionais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social". Em igual sentido, o inciso I do art. 24 da CF traz,
ainda, a competência concorrente entre os entes federativos para legislar sobre direito
urbanístico.

No particular, a competência delegada à União para a criação de políticas de


ordenação do território encontra suporte nos objetivos da República. É, portanto, característica
do princípio da solidariedade que permeia o federalismo brasileiro. Leitura diferente não pode
exsurgir do art. 3º, III, in fine, da Lei Maior, ao prever como objetivo fundamental do Estado
brasileiro “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais” (grifei). É esse dispositivo que dá fundamento axiológico às políticas nacionais e
regionais de desenvolvimento urbano, em que se permite identificar objetivos endógenos (a
erradicação da marginalização e da desigualdade social) e exógenos (a eliminação das
desigualdades regionais). Não há falar na erradicação dos abismos sociais entre áreas de maior
e menor atividade produtiva e qualidade de vida sem direta interferência no sistema
urbanístico, ao mesmo tempo, sem intervenção urbanística nesse sentido.

É importante firmar que, em consonância com o entendimento que tinha Hely


Lopes Meirelles, citado por Mariana Moreira, o conceito de urbanismo a que faz referência o
ordenamento jurídico pátrio quer se referir não apenas à organização espacial com fins
49

estéticos, mas antes propõe-se a promover intervenções com “objetivo social que implica
oferecer melhores condições de vida ao homem e à comunidade”80.

O objetivo da política de desenvolvimento urbano adotada pelo texto


constitucional é a cabal demonstração de tal inclinação. O artigo 182 da CF indica como meta
da política de desenvolvimento urbano “o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade”.

É o inteiro teor do supracitado dispositivo:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder


Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

É digno de nota que o exercício das funções sociais da cidade não está inscrito no
texto constitucional como método senão como finalidade. Nesse sentido, é natural que a
Constituição brasileira, dita social de terceira geração81, busque replicar na legislação
infraconstitucional – e para tanto lança mão de norma programática de sentido estrito, diretiva
ao legislador – a garantia de observação das diretrizes democráticas e sociais que traz.
Interessante ressaltar, contudo, que o capítulo destinado à política urbana da Constituição
Federal82 não traz de forma explícita, em nenhum de seus dispositivos, referências diretas à
participação democrática na elaboração da política de desenvolvimento urbano.

A leitura do supramencionado verbete constitucional requer a indicação das ditas


“funções sociais da cidade”. Para tanto, antes de acorrer ao ato regulamentar que delineia o
mencionado instituto, é necessário buscar no próprio texto constitucional, a partir de uma
análise sistemática do ordenamento, as ditas diretrizes para a elaboração daquele diploma
infraconstitucional. Afinal, se vincular comportamentos políticos futuros é o objetivo das
normas constitucionais de caráter programático83, é só a partir da leitura e estudo dos direitos
sociais genéricos, de natureza ampla, que se pode compreender as funções sociais do corpo
urbano em suas especificidades. A persecução dos direitos sociais é, em última medida, a
_______________
80
In: DALLARI; FERRAZ, 2002, p. 35.
81
BONAVIDES, 2006, p. 373. Ainda sobre as gerações de Direitos Fundamentais, BOBBIO, Norberto. A era
dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
82
Capítulo II, “Da política urbana”, do Título VII, “Da ordem econômica e financeira”, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
83
BONAVIDES, 2006, p. 246.
50

realização dos objetivos da República, solenemente insculpidos no art. 4º da Constituição


Federal. E já da primeira leitura cruzada entre os artigos 182 e do art. 6º da CF encontramos
um ponto evidente de convergência: o direito à moradia.

Incluido no texto constitucional através da EC n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, a


constitucionalização do direito à moradia inspirou-se precipuamente – o que se faz
reconhecendo a relevância dos demais atos internacionais – na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, de 1949, que estabelece como direito inerente à condição humana o
“padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive (...)
habitação”84. Ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro, ao incluir a habitação no rol de
direitos sociais garantidos a seus cidadãos no ordenamento pátrio, o faz com quase cinquenta
anos de atraso.

A Comunidade Internacional revela, desde então, reiterada preocupação com a


habitação. E vai além: em momento algum dissocia o direito à habitação da necessidade de,
para além do abrigo, garantir-se uma política urbana sustentável.

Como consequência da inquietação da comunidade internacional com o problema


dos aglomerados urbanos verificada na Declaração de Estocolmo, celebrada em 197285, foi
realizada a I Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos em Vancouver,
Canadá, em 1976. A Declaração subscrita pelas delegações participantes ao final dos trabalhos
aponta claramente que a melhoria da condição dos agrupamentos humanos – demonstrando
particular preocupação com os países em desenvolvimento – é indissociável da satisfação de
suas necessidades mais elementares: trabalho, saúde, educação e lazer.

Para justificar a premente necessidade de drásticas medidas – e expressamente


menciona que não é dado à humanidade se assustar diante da escala da tarefa – fundamenta-se
em prognóstico que indica o agravamento das condições subumanas a que se submetem os
_______________
84
ONU. Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de
dezembro de 1948. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/ legis_intern/ddh_bib_inter_ universal.htm.
Acesso em: 30 nov. 2009.
85
“Deve-se aplicar o planejamento aos assentamentos humanos e à urbanização com vistas a evitar repercussões
prejudiciais sobre o meio ambiente e a obter os máximos benefícios sociais, econômicos e ambientais para
todos. A este respeito devem-se abandonar os projetos destinados à dominação colonialista e racista.” (ONU.
Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano. Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente Urbano. Disponível em: http://www.mma.gov.br /estruturas/agenda21/_arquivos/estocolmo.doc.
Acesso em: 30 nov. 2009)
51

citadinos. Aponta como fatores preponderantes o crescimento econômico desigual, a


deterioração social, econômica, ecológica e ambiental, o crescimento da população mundial, o
descontrole sobre o movimento de urbanização, o subdesenvolvimento das comunidades rurais
e a consequente disparada do êxodo rural e as migrações involuntárias por razões políticas,
sociais e econômicas.

Vinte anos depois, é assinada Declaração de Istambul, documento final da II


Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Urbanos, realizada na Turquia em
1996. O documento firma, expressamente, o endosso “às metas universais para garantir
moradia adequada a todos” e reitera o compromisso dos Estados signatários “com a total e
progressiva realização do direito a moradias adequadas, conforme estabelecido em
documentos internacionais”86.

Em igual sentido, a Agenda Habitat II, documento também resultante da


supramencionada Conferência promovida pelo Programa das Nações Unidas para os
Assentamentos Urbanos, faz constar em seu ponto 39 o compromisso dos Estados signatários
em

melhorar as condições de vida e de trabalho em uma base igualitária e


sustentável, de forma que todos tenham moradias adequadas, que
sejam sadias, seguras, acessíveis e a preços viáveis, que incluam
serviços básicos, instalações e áreas de lazer, e que estejam livres de
qualquer tipo de discriminação no que se refere à habitação ou à
garantia legal da posse. 87 (grifo nosso)

Desta maneira, desde pelo menos a Conferência de Estocolmo, o direito à moradia


não pode contemplar tão-somente o direito ao teto. É mais que isso. O constituinte exige do
Poder Público ações efetivas para garantir o direito a uma residência digna, que incluam o
acesso a serviços básicos. E o próprio art. 6º da CF indica quais são os serviços básicos –
expressão aqui compreendida em sentido estrito – cujo acesso deverá o Estado fornecer:

_______________
86
“We, the Heads of State or Government and the official delegations of countries assembled at the United
Nations Conference on Human Settlements (Habitat II) in Istanbul, Turkey from 3 to 14 June 1996, take this
opportunity to endorse the universal goals of ensuring adequate shelter for all (…)”, e “We reaffirm our
commitment to the full and progressive realization of the right to adequate housing as provided for in
international instruments.” (ONU. Istanbul Declarations on Human Settlements. II Conferência das Nações
Unidas para os Assentamentos Urbanos. Disponível em: http://www.unchs.org/downloads/docs/2072_
61331_ist-dec.pdf. Acesso em: 27 nov. 2009)
87
FERNANDES, 2006, p. 34
52

educação, saúde, trabalho e lazer, assim como a garantia de segurança, incluem-se de forma
mediata no direito à moradia.

A resposta para as demais funções sociais que deverá a cidade exercer encontram-
se, em grande parte, no art. 6º da Constituição Federal. Atua o poder público como garante da
qualidade de vida dos cidadãos, garantindo-lhes a dignidade inerente à condição humana e que
fundamenta o Estado brasileiro.
53

3. A EFETIVIDADE DA MANIFESTAÇÃO POPULAR NA ELABORAÇÃO DAS


POLÍTICAS PÚBLICAS URBANAS

3.1. AS NORMAS DE INSPIRAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE REGEM O


PLANEJAMENTO URBANÍSTICO: O ESTATUTO DA CIDADE E O PLANO DIRETOR

A Constituição Federal não meandreia em suas disposições sobre Direito


Urbanístico, limitando-se a indicar suas diretrizes e determinar a elaboração de atos
normativos infraconstitucionais para regular a matéria. São duas as leis expressamente
indicadas pela Constituição como instrumentos de consecução da política urbana.

A primeira delas é a que estabelece a política de desenvolvimento urbano – que


assume, segundo José Afonso da Silva, “as características de uma lei geral de direito
urbanístico”88. Trata-se, nos termos do cabeço do artigo 182 da CF, de norma elaborada pelo
Poder Legislativo federal cuja execução incumbe à municipalidade.

Esta norma é a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. O Estatuto da Cidade,


cognome pelo qual o diploma legal ficou conhecido, tem origem no Projeto de Lei do Senado
n. 5.788/90, de autoria do Senador Pompeu de Souza, do Partido da Social Democracia
Brasileira, eleito pelo Distrito Federal.

Embora tenha por função precípua – e declarada em sua ementa – a


regulamentação do referido art. 182 da Carta Política de 1988, “não se limita a estabelecer
regras orgânicas e procedimentais para a execução dos dispositivos constitucionais que
„regulamenta‟. Inova originalmente a ordem jurídica, estabelece obrigações e proibições a
particulares e a agentes públicos, cria institutos jurídicos, prevê sanções para os que violarem
as regras que prescreve”89. No uso da competência atribuída pelo art. 21, XX, da Constituição
Federal de 198890, o legislador infraconstitucional estabelece as diretrizes gerais para o

_______________
88
SILVA, 2008, p. 69
89
CAMMAROSANO, Márcio in DALLARI; FERRAZ, 2002, p. 25.
90
Art. 21. Compete à União: (...) XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação,
saneamento básico e transportes urbanos.
54

desenvolvimento urbano. E o faz dotando o poder público municipal de instrumentos de


intervenção direta no espaço, no sentido de orientar o crescimento e a expansão urbana de
forma coercitiva.

Há de se fazer, inicialmente, uma ressalva. O estudo que aqui se alinhava não pode
dar as costas a fatores estruturantes que, alheios à ordem jurídica pura, permeiam o sistema
político. A pertinente lição de Raquel Rolnik, de pronto, nos desanuvia a visão quando
reconhece que

Mais além do que definir formas de apropriação do espaço permitidas


ou proibidas, mais além do que efetivamente regular a produção da
cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de fronteiras
de poder. A lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos,
conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania
diretamente correspondentes ao modo de vida e à micropolítica
familiar dos grupos que estiveram mais envolvidos em sua formulação.
Funciona portanto, como referente cultural fortíssimo na cidade,
mesmo quando não é capaz de determinar sua forma final.91

E tal observação é destacadamente importante neste momento em que, ainda no


escopo de identificar as funções sociais da cidade instituídas pela Constituição Federal, passa-
se a verificar o reflexo da política de desenvolvimento como instrumento de justiça social e de
intervenção na propriedade privada.

No instrumental colocado à disposição da municipalidade para, utilizando-se das


expressões trazidas pela própria lei, “garantir o direito a cidades sustentáveis”, há a
consolidação dos mecanismos legados para o ordenamento territorial local, atribuição essa
constante do art. 30, VIII, da Constituição Federal de 1988, em rol não-exauriente. Nos dizeres
de Adilson Abreu Dallari, “o Município não depende de autorização legislativa federal para
exercer competência que lhe foi conferida pela Constituição Federal”92. A penalização pela
utilização da propriedade de forma alheia às diretrizes estabelecidas pelo ente político alcança
até mesmo a desapropriação decorrente, em especial, do não-atendimento de sua função
social.

A propriedade é direito inviolável garantido aos brasileiros e aos estrangeiros


residentes no país por força do cabeço do art. 5º da Constituição Federal, que inaugura o rol de

_______________
91
ROLNIK, 1997, p. 13.
92
In: DALLARI; FERRAZ, 2002, p. 74.
55

direitos de nossa Carta Política. O inciso XXII do citado dispositivo reafirma a “garantia” ao
direito de propriedade. O inciso seguinte, todavia, traz a ressalva: “a propriedade atenderá a
sua função social”.

Quando se transfere ao Estado o poder de intervenção na propriedade privada – ao


arrepio dos teóricos que vêem no domínio sobre os bens direito natural indelével – cria-se
regramento que integra a estrutura própria do direito, em vez de mera limitação a sua fruição.
Há o que José Afonso da Silva denomina de “funcionalização da propriedade”. Sobre o
assunto, dizia o jurista francês Léon Duguit:

Mas a propriedade não é um direito; é uma função social. O


proprietário, vale dizer, o possuidor de uma riqueza, tem, pelo fato de
possuir esta riqueza, uma função social a cumprir; enquanto cumpre
esta missão seus atos de proprietário estão protegidos. Se não a cumpre
ou se a cumpre mal, se por exemplo não cultiva sua terra ou deixa
arruinar-se sua casa, a intervenção dos governantes é legítima para
obrigar a cumprir sua função social de proprietário, que consiste em
assegurar o emprego das riquezas que possui conforme sua
destinação.93

A definição de função social da propriedade rural, do mesmo modo que os


mecanismos para elaboração e implementação da política agrícola e fundiária do País
encontram-se constitucionalizados. Entre os artigos 184 e 186, a Constituição Federal
descreve as condições que deve satisfazer o imóvel rural para que se considere satisfeita a
função social, fixando ainda como competência da União promover a desapropriação para fins
de reforma agrária pelo não-atendimento de algum dos critérios ali estabelecidos.

Todavia, a determinação da função social da propriedade urbana é delegada aos


Municípios, conforme dispõe o art. 182, § 2º da Constituição de 1988. Em rumo idêntico,
também a elaboração do projeto de expansão e orientação urbana específicos de cada
localidade compete à própria municipalidade, no exercício da regra geral de competência
constitucional que lhe permite legislar sobre assuntos de interesse local94.

A noção de função social da propriedade urbana é atrelada predominantemente ao


atendimento das diretrizes urbanísticas municipais. Como assinala Pedro Escribano Collado,
citado por José Afonso da Silva,
_______________
93
Apud: BEZNOS, Clóvis in: DALLARI; FERRAZ, 2002, p. 121. (trad. do autor)
94
SILVA, 2008, p. 76-77.
94
CF, art. 30. Compete aos municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local;
56

A função social da propriedade privada repousa num pressuposto de


primordial importância, qual seja: o de que a atividade urbanística
constitui uma função pública da Administração, que, em consequência,
ostenta o poder de determinar a ordenação urbanística das cidades,
implicando, nisso, a iniciativa privada e os direitos patrimoniais dos
particulares.95

Identificam-se portanto dois casos em que a privação do particular de seu bem,


conforme preleciona José Afonso da Silva96. O primeiro deles reflete a postura proativa do
ente municipal que, no afã de implementar as diretrizes estabelecidas nos planos de
urbanização, utiliza-se de mecanismos previstos para intervenção na propriedade privada.
Trata-se, pois, da tomada de bem por necessidade, utilidade pública ou interesse social. Há
ainda uma segunda espécie de desapropriação, denominada “desapropriação-sanção”, prevista
tanto no art. 182, § 4º, da Constituição Federal quanto no art. 8º do Estatuto da Cidade. É, em
verdade, espécie de expropriação, decorrente da inércia do proprietário em aproveitar
adequadamente o solo urbano. Aqui inexiste direito à indenização prévia: o pagamento se dá
por meio de títulos da dívida pública, anualmente resgatáveis.

O legislador ainda prevê outros instrumentos para implementação dos planos


urbanísticos municipais, em especial aqueles arrolados no inciso V do art. 4º do Estatuto.
Nenhum deles, no entanto, com efeitos tão drásticos no domínio particular quanto a
desapropriação, ao passo que priva o proprietário do próprio bem.

Não é esse, contudo, o único aspecto merecedor de especial atenção do legislador.


Para além dos objetivos sócio-econômicos, é presença constante no Estatuto da Cidade a
preocupação com a preservação do meio-ambiente equilibrado, direito constitucionalmente
assegurado97 que é, aqui, trazido à tona. Desta forma, alçam-se à condição de diretrizes gerais
para o desenvolvimento dos municípios preocupações com o saneamento básico, com os
efeitos negativos da expansão urbana sobre o meio ambiente, com o controle da poluição e da
degradação ambiental de forma geral.

Para o presente estudo, merecem maior destaque todavia as regras que instituem a
gestão democrática da cidade, mormente quanto à elaboração do plano diretor municipal.
_______________
95
Apud: SILVA, 2008, p. 78.
96
SILVA, 2008, p. 419.
97
CF, art. 225: Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
57

Ambos os aspectos da política urbana serão analisados conjuntamente em razão do destaque


dado pelo Estatuto da Cidade à manifestação popular na elaboração e implementação das
diretrizes de ordenação urbana. Não nos parece razoável ser diferente: como se verificará
adiante, é por meio do plano diretor que o poder público municipal orienta as intervenções no
solo urbano.

Cumpre mencionar que os instrumentos de gestão democrática municipal não se


cinge à política urbana do plano diretor. Inclui também, de forma destacada, a participação na
elaboração e fiscalização do Orçamento Público municipal, por exemplo.

Nos termos do cabeço do art. 39 da Lei n. 10.257/01, o atendimento das


"exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor" é o mecanismo
pelo qual a propriedade urbana cumpre sua função social. É por meio do plano diretor,
obrigatoriamente instituído por lei aprovada pela Câmara Municipal, que o município
promove o "adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do
parcelamento e da ocupação do solo urbano", conforme preceitua o art. 30, VIII, da
Constituição Federal.

Hely Lopes Meirelles assim definia o diploma legal em estudo:

O plano diretor não é um projeto executivo de obras e serviços


públicos, mas sim um instrumento norteador dos futuros
empreendimentos da Prefeitura, para o racional e satisfatório
atendimento das necessidades da comunidade. Por isso não exige
plantas, memoriais e especificações detalhadas, pedindo apenas
indicações precisas do que a Administração Municipal pretende
realizar, com a locação aproximada e as características estruturais ou
operacionais que permitam, nas épocas próprias, a elaboração
dos projetos executivos com a estimativa de custos das respectivas
obras, serviços ou atividades que vão compor os empreendimentos
anteriormente planejados, sejam construções isoladas, sejam planos
setoriais de urbanização ou de reurbanização, sejam sistemas viários,
redes de água e esgoto, ou qualquer outro equipamento público ou de
interesse social.98

O Estatuto da Cidade prevê, em seu art. 40, § 4º, o procedimento básico para a
elaboração e fiscalização da implementação do plano diretor, de compulsória observância pelo
ente municipal. Seus incisos II e III reafirmam solenemente a necessidade de absoluta

_______________
98
MEIRELLES, 2003, p. 519.
58

transparência em todo o processo, garantida pela publicidade e amplo acesso aos atos
produzidos no decurso do processo de elaboração do projeto de lei.

O inciso I do verbete legal mencionado, por sua vez, comina aos Poderes
Legislativo e Executivo do município a “garantia” da “promoção de audiências públicas e
debates com a participação da população e de associações representativas dos vários
segmentos da comunidade”.

Aqui se vê a importância de se permitir a ampla participação popular, individual e


coletiva, na elaboração e implementação do Plano Diretor. É por tal instrumento que o Poder
Público, de forma legítima, pode intervir no domínio privado dos cidadãos, interferindo em
sua propriedade. A esfera pública e a esfera privada tocam-se. O grau de interferência da
administração na propriedade, atacando direito fundamental consagrado pela Constituição
Federal, exige aqui a maior participação possível daqueles diretamente interessados. O recuo
do direito individual em detrimento do direito coletivo deve ser pontual; o consagrado
princípio da supremacia do interesse público não pode ser utilizado como chancela automática
de todos os atos provenientes da Administração, mormente quando o outro direito em tutela é
daqueles que o próprio Estado se comprometeu a garantir.

Para além da manifestação popular decorrente do caráter limitador do direito à


propriedade, há quem identifique na participação no planejamento urbanístico a possibilidade
de inovar, concretamente, no direcionamento da expansão e consolidação da cidade. É mais
que simplesmente dar voz às divergentes opiniões da população: lega-se o direito a opinar e
interferir, diretamente, nos rumos da planificação urbana.

Nesse sentido, recolhe-se da lição de José Nilo de Castro:

As cidades tem suas funções sociais (art. 182, caput, da CR


[Constituição da República]): habitação, trabalho, circulação e lazer.
Para se obter a satisfação das funções sociais da cidade, há o concurso
do Poder público municipal e do cidadão. É que, conforme aqui já
ficou assentado, o envolvimento do munícipe na aliança entre a
cidadania e o Poder público em busca do novo se materializa pela
participação. As ações cooperativas decorrentes das associações ou dos
grupos representativos da comunidade não podem apenasmente ser
tomadas como se tais órgãos fossem órgãos de defesa comunitária.
Tem que ser atuantes, atores e construtivos. A capacidade para gerir
conflitos de maneira evolutiva e dinâmica deve caracterizar tais
associações, isto é, ou elas enfrentam os conflitos, resolvendo-os, ou
toda a comunidade se verá em situação permanentemente periclitante.
59

Ao Estado gerencial incumbe o poder de inovar, afastando, portanto, a


rigidez dos modelos burocráticos e paternalistas, o que a participação
comunitária não admite mais.

Em síntese, é por intermédio dessas duas normas, sob orientação dos comandos e
princípios constitucionais aplicados à espécie, que o Estado implementa sua política de
planificação urbana, visando ao desenvolvimento local e à consecução dos direitos
fundamentais sociais.

3.2. A INAFASTABILIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ELABORAÇÃO DO


PLANO DIRETOR

Verificou-se que o sentido da participação popular na elaboração das diretrizes


urbanísticas, por meio do plano diretor, reveste-se de aspecto dúplice. Por um lado, garante-se
a intervenção da cidadania, quer individualmente, quer organizada, na definição de seu próprio
futuro. Por outro, garante-se maior legitimidade ao processo de limitação do direito à
propriedade, expresso aqui pela definição de função social do solo urbano que a Constituição
Federal lega ao ente municipal.

Assentou em pretérita oportunidade Maria Paula Dallari Bucci:

A plena realização da gestão democrática é, na verdade, a única


garantia de que os instrumentos de política urbana introduzidos,
regulamentados ou sistematizados pelo Estatuto da Cidade (tais como
o direito de preempção, o direito de construir, as operações
consorciadas etc.) não serão meras ferramentas a serviço de
concepções tecnocráticas, mas, ao contrário, verdadeiros instrumentos
de promoção do direito à cidade para todos, sem exclusões. 99

Para tanto, a ampla participação da população, seja individualmente ou organizada


em associações representativas, é condição inafastável do procedimento legislativo que
precede a aprovação do diploma legal. O princípio encontra-se plasmado na Constituição
Federal, que como já visto impõe a manifestação direta da cidadania na gestão municipal. No
mesmo sentido, a Constituição do Estado de Santa Catarina, por exemplo, no exercício de sua
_______________
99
In: DALLARI; FERRAZ, 2002, p. 324.
60

competência suplementar e complementar em matéria urbanística e de forma simétrica à


Constituição, traz em seu bojo disposições que impõem a participação popular na elaboração
do plano diretor.

É interessante destacar que nem a Constituição Federal, tampouco o Estatuto da


Cidade, pormenoriza o modo e os meios pelos quais será a comunidade instada a opinar sobre
o projeto que dará origem ao plano diretor. A Lei n. 10.257/01 satisfaz-se em determinar a
realização de “audiências públicas” e de “debates”, de forma a permitir à população e às
“associações representativas dos vários segmentos da comunidade”, o que faz em seu art. 41, §
4º, I. Todavia, fala-se em garantia de participação popular, devida pelos Poderes Legislativo e
Executivo. Há, aqui, expressa vinculação do poder público: o processo de elaboração e
apreciação do plano diretor deverá, obrigatoriamente, incluir a comunidade em todas as
esferas de tramitação.

Nesse sentido, Jacintho Arruda Câmara pronuncia-se:

Uma primeira regra inserida no Estatuto da Cidade acentua diretriz


encampada na Lei de Processo Administrativo Federal, ao determinar
(e não apenas facultar, como faz a outra lei federal) aos Poderes
Legislativo e Executivo que garantissem a promoção de audiências
públicas e debates com a participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade no processo de
elaboração do plano diretor e de fiscalização de sua implementação
(art. 40, § 4º, I).

A lei não define precisamente como e quando serão realizadas as


audiências e os debates; apenas determina que se realizem, impondo,
inclusive, severa sanção para o caso de descumprimento da regra
(caracterizada como ato de improbidade administrativa – art. 52,
VI).100

Para evitar o esvaziamento do conteúdo da expressão “participação popular”


exigida na elaboração e implementação dos planos urbanísticos, o Ministério das Cidades, por
meio da Resolução n. 25, de 18 de março de 2005, fez várias recomendações para a elaboração
do plano diretor. Dentre as sugestões apresentadas, extraem-se destacadamente:

- comunicação ampla, em linguagem acessível e por via de meios de comunicação


em massa, do processo participativo;

_______________
100
Ibid, p. 317-318.
61

- publicação, com antecedência, do cronograma e locais de reuniões de debates e


de apresentação de estudos e de propostas;

- debates seccionados por segmentos sociais, por temas e por divisões territoriais,
garantida sua alternância;

- presença do Prefeito Municipal e gravação das audiências.

Suprimir a manifestação cidadã da etapa de elaboração equivale a tolher a voz da


soberania popular, em flagrante vilipêndio ao disposto no art. 1º, parágrafo único, da
Constituição Federal. O administrador público que embaraçar, de qualquer forma, a
manifestação democrática da população durante a elaboração do Plano Diretor está sujeito,
nos exatos termos do art. 52, VII, do Estatuto da Cidade, a responsabilização por ato de
improbidade administrativa, conforme previsto na Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992.

Apesar da ausência de norma que determine a competência para apresentação do


projeto de lei instituidor do plano diretor, há quem diga que sua iniciativa é privativa do
Prefeito Municipal, em homenagem ao Princípio Constitucional da Simetria aplicado à leitura
do art. 61, § 1º, II, “b” da Constituição Federal. José Afonso da Silva consigna que “a
iniciativa dessa lei pertence ao Prefeito, sob cuja orientação se prepara o plano”101.

Tomamos a liberdade de discordar, respeitosamente, do constitucionalista citado.


No aspecto formal, acreditamos não ser aplicável o Princípio da Simetria ao caso em comento.
No exercício interpretativo do silêncio do legislador, o texto constitucional e as normas
aplicáveis à espécie impõem conhecer o dispositivo tendo em mente a ampliação, tanto quanto
possível, da participação popular na elaboração da norma, que não se coadunaria com
limitações do poder de iniciativa como sugerido.

A norma constitucional invocada como fundamento para determinar a suposta


competência do Executivo Municipal para propor a lei do plano diretor é o que estabelece
como “iniciativa privativa do Presidente da República as leis que (...) disponham sobre (...)
organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e
pessoal da administração dos Territórios”.

_______________
101
SILVA, 2008, p. 146.
62

Trata-se de reflexo do poder municipal de auto-organização, exercida pelo Poder


Executivo, chefiado pelo Prefeito. O dispositivo aplica-se, portanto, ao poder legado ao
município para, observada a legislação federal e estadual, criar e manter sua estrutura
administrativa, estabelecer o regime jurídico dos servidores públicos e dos serviços prestados
e gerir suas fontes de receita e de despesa.

Entendemos que não há como reconhecer paralelo entre o exercício da


administração pública municipal e o ordenamento territorial, conforme dispõe o art. 30, VIII,
da Constituição Federal. Tratam-se de funções inerentes à administração municipal, de
responsabilidade do Poder Executivo. São atividades distintas: enquanto aquela regulamenta a
própria administração, no âmbito interno, esta tem caráter de planificação, disciplinando o
exercício de direito privado e orientando as prioridades de investimento público na estrutura
urbana.

Há figuras equivalentes na administração pública federal: o art. 43 da Constituição


Federal delega à União o poder de articular “complexos geoeconômicos e sociais” para a
promoção do desenvolvimento e redução das desigualdades regionais. O parágrafo primeiro
do artigo determina que as regiões serão criadas por meio de Lei Complementar; inexiste,
todavia, qualquer restrição quanto à iniciativa de propositura.

De outra mão, o art. 186 da CF, que delimita as diretrizes principais da função
social da propriedade rural, remete o estabelecimento de “critérios e graus de exigência” do
aproveitamento do solo à lei ordinária. Não há, em igual sentido, qualquer referência à
iniciativa privativa do Poder Executivo para propor tal projeto de lei.

É garantida a qualquer membro do Congresso Nacional a iniciativa de projetos de


lei ordinária ou complementar. Compete ao Parlamento dispor sobre “planos e programas
nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento”. Portanto, por se estar diante de normas
que estabelecem competência para o estabelecimento de política de desenvolvimento, não se
pode negar ao legislador municipal o poder de apresentar projeto de lei que institua as
diretrizes de expansão urbana.

Ademais, reconhecer a iniciativa exclusiva do Prefeito Municipal para apresentar o


projeto de lei do plano diretor parece ir de encontro com as disposições democratizantes de
63

ampliação do acesso da população para intervir, de forma direta, no estabelecimento das


diretrizes de desenvolvimento.

A corroborar com a tese aqui apresentada, invoca-se o art. 187 da Constituição


Federal, que trata do planejamento e execução da política agrícola. De competência da União,
e implementada conforme lei regulamentadora, o texto constitucional garante em sua
elaboração, de forma expressa, a “participação efetiva do setor de produção, envolvendo
produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de
armazenamento e de transportes”. O parágrafo segundo do artigo citado estabelece, por sua
vez, a necessidade de compatibilização das ações de política agrícola e de reforma agrária,
instrumento para restabelecer o cumprimento da função social da propriedade rural. Assim,
verifica-se que o constituinte quis destacar o papel da ampla participação popular na
elaboração das citadas políticas de desenvolvimento, em todas as esferas.

Entende-se que até mesmo por meio de iniciativa popular pode-se deflagrar o
processo legislativo de aprovação do plano diretor, na existência de qualquer vedação e forte
no que dispõe o art. 29, XIII, que permite ao eleitorado local apresentar “projetos de lei de
interesse específico do Município” e da cidade.

O texto constitucional também não deixa claro se a manifestação popular ocorre


em oportunidade prévia ou posterior à apresentação do projeto de lei à Câmara Municipal.
Faço referência novamente ao posicionamento de José Afonso da Silva, que compreende que é
durante o processo de elaboração do projeto de lei,

ainda no âmbito do Poder Executivo Municipal, é que o Estatuto da


Cidade exige que sejam promovidos audiências públicas e debates com
a participação da população e de associações representativas dos vários
segmentos da comunidade (associações de bairros, de arquitetos, de
engenheiros, de meio ambiente e similares) e que seja garantido o
acesso de qualquer interessado aos documentos e informações
produzidos, além da publicidade destes (...).102

Respeitosamente, tal opinião nos parece insuficiente. Destarte, apesar de ser o


prefeito responsabilizado pela supressão da participação popular, o parágrafo quarto do art. 41
do Estatuto da Cidade não especifica que o momentum de manifestação cidadã é na minuta do
projeto de lei. Refere-se, isso sim, a um “processo de elaboração do plano diretor”, de forma

_______________
102
Ibid., p. 146.
64

ampla e que não cessa com a aprovação da lei por parte da Câmara Municipal. Tanto é
verdade que o Poder Legislativo também é obrigado a garantir a participação popular na
elaboração e posterior implementação do diploma legal regulatório do plano urbanístico
municipal.

Podendo o legislador municipal apresentar emendas ao projeto de lei encaminhado


pela Prefeitura, não temos por razoável que a participação popular a que se refere a
Constituição Federal não alcance o próprio parlamento, provocando confronto entre as
modalidades de manifestação da soberania. O acompanhamento e manifestação da população
também durante a tramitação do plano diretor no Poder Legislativo pode garantir, por
exemplo, que iniciativas de grupos contramajoritários sejam incorporadas ao projeto. De tal
modo, corroborar com a assertiva de que a manifestação popular a que se refere o Estatuto da
Cidade cinge-se ao momento de elaboração da minuta do projeto de lei, ainda no âmbito do
Poder Executivo, corresponde, a nosso sentir, a afirmar que os titulares da soberania se calam
na manifestação daqueles eleitos, justamente, para representar os efetivos portadores do poder
político.

A manifestação de José Isaac Pilati, nesse particular, vai além. Em sua visão, a
Constituição Federal, dentre os modelos de democracia oferecidos e exigidos no processo de
elaboração legislativa, optou pela participação direta dos cidadãos, eliminando assim a
necessidade de intermediários ou representantes. De tal sorte, compreende que o Poder
Legislativo municipal tem como função única, nesse particular, chancelar o que se decidiu na
fase de construção coletiva do projeto de lei que institui o plano diretor:

O plano diretor é norma da alçada participativa, do povo


constitucional. A discussão, as modificações, as emendas devem ser
debatidas com a comunidade municipal; a Câmara de Vereadores, no
final, aprova o que foi decidido na discussão coletiva.

Vale dizer, o resgate do coletivo não demanda, apenas, sujeito, bem e


fato coletivo; a norma participativa é também uma categoria autônoma,
insuscetível de modificação pelas esferas parlamentares de democracia
representativa. A Câmara de Vereadores não altera o plano diretor;
somente chancela a sua aprovação e as modificações estabelecidas pelo
povo constitucional participativo. Esses procedimentos de participação
popular devem ser claramente definidos, dando vida ao que estabelece
a Constituição da República.103

_______________
103
PILATI, 2007, p. 113.
65

A corroborar com a posição aqui esposada, o guia de implementação do Estatuto


da Cidade, estudo coordenador por Raquel Rolnik e sob a coordenação jurídica de Nelson
Saule Júnior:

A audiência pública, como instrumento de participação popular do


processo legislativo, é requisito obrigatório para a aprovação do Plano
Diretor pela Câmara Municipal.
A realização de audiência pública pelo Legislativo Municipal é
condição de validade da lei municipal que instituir o Plano Diretor.

A não realização das audiências públicas no processo legislativo do


Plano Diretor implica no vício deste processo, que pode resultar na
declaração de inconstitucionalidade por omissão do plano.

Outro aspecto para verificar se este requisito para a aprovação do


Plano Diretor foi atendido refere-se à dimensão e impacto das
audiências públicas.104

As decisões dos Tribunais pátrios, invocados a se manifestar, enveredam-se pelo


reconhecimento da inconstitucionalidade de lei instituidora do plano diretor cuja elaboração
não envolva, de forma direta, a comunidade local. Nesse sentido, verificada a replicação das
normas constitucionais federais que instituem a intervenção popular na elaboração das
políticas públicas municipais nas Cartas Políticas estaduais, recolhem-se julgamentos
favoráveis em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, a título exemplificativo, nas
cortes do Rio Grande do Sul105, São Paulo106 e Minas Gerais107, declarando a

_______________
104
ROLNIK, 2005, p. 50.
105
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI MUNICIPAL Nº 1.635/2001 DE GUAÍBA
QUE ALTERA O ART. 55 DA LEI MUNICIPAL Nº 1.102/92 (PLANO DIRETOR) - ORDENAMENTO
URBANO LOCAL - AUSÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO DAS ENTIDADES COMUNITÁRIAS
LEGALMENTE CONSTITUÍDAS NA DEFINIÇÃO DO PLANO DIRETOR E DAS DIRETRIZES
GERAIS DE OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO - FALTA DE AMPLA DIVULGAÇÃO E DA DEVIDA
PUBLICIDADE - RISCO DE PREJUÍZOS IRREPARÁVEIS AO MEIO AMBIENTE E À QUALIDADE
DE VIDA DA POPULAÇÃO PELA NÃO CONCRETIZAÇÃO DO PRÉVIO ESTUDO DE IMPACTO
AMBIENTAL PARA VIABILIZAR A ALTERAÇÃO PREVISTA NA LEI IMPUGNADA - AFRONTA
AOS ARTIGOS 1º, 8º, 19, 177, § 5º E 251 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E ARTIGOS 29, INCISO XII
E 37 „CAPUT‟ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Ação julgada procedente. (TJRS. Tribunal Pleno. Adin n.
70008224669, de Guaíba. Relator: Desembargador João Carlos Branco Cardoso. Julgado em: 18 out. 2004.)
106
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI COMPLEMENTAR DISCIPLINANDO O USO
E OCUPAÇÃO DO SOLO - PROCESSO LEGISLATIVO SUBMETIDO A PARTICIPAÇÃO POPULAR -
VOTAÇÃO, CONTUDO, DE PROJETO SUBSTITUTIVO QUE, A DESPEITO DE ALTERAÇÕES
SIGNIFICATIVAS DO PROJETO INICIAL, NÃO FOI LEVADO AO CONHECIMENTO DOS
MUNÍCIPES - VÍCIO INSANÁVEL - INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA. (TJSP. Órgão
Especial. Adin n. 994092247280, de São Paulo. Relator: Desembargador Corrêa Viana. Julgado em: 5 mai.
2010)
107
ADIN. PLANO DIRETOR. PARTICIPAÇÃO POPULAR. HARMONIA E INDEPENDÊNCIA ENTRE OS
PODERES. VÍCIO DE INICIATIVA. Se, de um lado, o inciso V do art. 170 da Carta Estadual prevê a
competência do Município para legislar sobre plano diretor, seu parágrafo único, determina a observância de
66

inconstitucionalidade formal dos atos normativos promulgados ao arrepio do princípio da


participação popular. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina já se manifestou firmando
posicionamento conforme108, o que fez até mesmo para fatos ocorridos antes da vigência da
Lei n. 10.257/01, que delineia definitivamente o instituto109.

A participação da cidadania envolvida na elaboração e tramitação do projeto de lei


que institui o plano diretor é, conclui-se, inafastável. José Nilo de Castro afirma, sobre a
manifestação popular:

Faz-se renascer aqui novo pacto social na humanização da cidade, com


o comprometimento com o plano diretor. É que aquele só se justifica
com o acompanhamento da execução deste, vale dizer quem não
participa da elaboração de um plano dificilmente compromete-se com
sua execução. O plano diretor não é da cidade, é de cada um dos

norma geral respectiva, no caso a lei nº 10.257/2001, que determina a participação de entidades comunitárias
no planejamento e controle da execução dos programas pertinentes á elaboração, implementação e alteração
do plano diretor do município, sendo caso de se acolher representação e declarar a inconstitucionalidade de
Lei Complementar Municipal que afronta aos artigos 6º, 66, III e suas alíneas, 170, V, parágrafo único, 172 e
173 caput e § 1º, todos da Carta Estadual, por parte da Lei Complementar nº 12/2005 eis que fere os
princípios da harmonia e separação dos poderes, além de afrontar ao pacto federativo, ao invadir a
competência privativa do Poder Executivo. Representação acolhida. (TJMG. Órgão Especial. Adin n.
1.0000.06.434602-6/000, de São Sebastião do Paraíso. Relator: Desembargador Cláudio Costa. Julgado em:
31 out. 2007)
108
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEDIDA LIMINAR. SUSPENSÃO DE QUALQUER ATO DE TRAMITAÇÃO
DE PROJETO-DE-LEI VOLTADO À APROVAÇÃO DO NOVO PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE
PORTO BELO. POSSIBILIDADE. INOBSERVÂNCIA, NA FASE, PRÉ-LEGISLATIVA DOS PRAZOS
PARA GARANTIR A PARTICIPAÇÃO POPULAR ASSEGURADA NO ART. 141, INC. III, DA
CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E NO ART. 40, § 4º, DA LEI N. 10.257/01 (ESTATUTO DA CIDADE).
FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA EVIDENCIADOS. FLEXIBILIZAÇÃO DA DECISÃO
RECORRIDA PARA PERMITIR QUE O EXECUTIVO OU O LEGISLATIVO OU AMBOS REABRAM O
CICLO DE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS PARA O DEBATE DA PROPOSIÇÃO JÁ ENVIADA À CÂMARA
MUNICIPAL. (TJSC. Segunda Câmara de Direito Público. Agravo de Instrumento n. 2009.071138-2, de
Porto Belo. Relator: Desembargador Newton Janke. Julgado em: 25 mai. 2010)
109
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – MUNICÍPIO – LEI N. 794, DE 19 DE NOVEMBRO
DE 1999 – PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO PROMOTOR
DE JUSTIÇA AFASTADA DIANTE DE RATIFICAÇÃO OCORRIDA (FL. 247) – AUTORIZAÇÃO DE
CONSTRUÇÃO DE EDIFICAÇÕES COMERCIAIS E RESIDENCIAIS COLETIVAS COM ALTURA
MÁXIMA DE 8 (OITO) METROS – INEXISTÊNCIA DE SANEAMENTO BÁSICO –
COMPROMETIMENTO DE ÁREA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL – PLEITO VESTIBULAR
ACOLHIDO.
Abalroando a Lei n. 794, de 19 de novembro de 1999, os arts. 140, 141, inciso III, e 181 da Constituição do
Estado de Santa Catarina, irrecusável é a incompatibilidade material, porque não pode ser desconsiderada a
política municipal de desenvolvimento urbano, a participação de entidades comunitárias na implementação de
planos, programas e projetos destinados ao estabelecimento de normas e diretrizes ao ambiente
ecologicamente equilibrado. (TJSC. Tribunal Pleno. Adin n. 2000.001644-6, de Tubarão. Relator:
Desembargador Francisco José de Oliveira Filho. Julgado em: 17 out. 2001)
67

munícipes, é de cada cidadão, não é, pois, do Poder público municipal,


é patrimônio coletivo.

A bandeira do neolocalismo está desfraldada. Seu despertar proveio da


Constituição da República, que é a Constituição cidadã. Entende-se por
neolocalismo o reforço que se dá às instituições locais na redescoberta
do valor do relacionamento, da amizade, da vizinhança e da união no
Município, que carrega diversidades extraordinárias, com
especificidades e idiossincrasias, interagindo-se à participação e ao
comprometimento. O Estatuto da Cidade reforça-lhe a vitalidade,
valendo-se do planejamento, instrumento irrenunciável na e para a
cidadania.110

Problemática similar é estabelecida quando se discute a necessidade de


participação popular não durante a elaboração do plano diretor, mas sim na superveniência de
ato normativo posterior que altere aquela norma jurídica. Vale dizer, o diploma legal que
institui as diretrizes do ordenamento urbano poderá ser alterado e, em caso positivo, qual será
o procedimento a observar.

Está-se, novamente, diante de aparente conflito entre as formas de externalização


da soberania. De um lado, trata-se de ato normativo instituído por lei que, a princípio, pode ser
alterado por ato hierarquicamente equivalente. Todavia, da exegese do art. 40, § 4º, I, da Lei n.
10.257/01, extrai-se verdadeira intervenção no processo legislativo municipal, que
complementa o preceito de cooperação no planejamento municipal a que se refere o art. 29,
XII, da Constituição Federal. Em igual sentido, muitas das Constituições dos Estados no
Brasil, no exercício de sua competência suplementar em matéria urbanística, obrigam os
municípios a ouvir sua população na elaboração do plano diretor.

Em suma, a ausência da manifestação da população e de suas associações


representativas é vício insanável que contamina tanto a iniciativa de apresentação do projeto
de lei quanto o processo legislativo de sua aprovação. Mais: embaraça o exercício da
soberania popular que consubstancia, em última instância, o próprio regime democrático.

_______________
110
CASTRO, 2006, p. 386.
68

3.3. OS INTRUMENTOS JURÍDICOS DE IMPUGNAÇÃO DOS ATOS DE ALTERAÇÃO


DO PLANO DIRETOR

Como visto, identifica-se vício formal na lei que ignora o comando constitucional
de manifestação das associações representativas na elaboração das diretrizes de planejamento
urbano. Verificou-se também o caráter cogente da norma contida no Estatuto da Cidade que
garante a participação popular na elaboração e implementação do plano diretor. Passa-se
portanto, na última etapa deste trabalho, a verificar os mecanismos pelos quais poderão os
interessados invalidar, judicialmente, atos que atentem contra o comando da soberania popular
que permeia a ordem urbanística e os comandos por ela estatuídos.

Inicia-se pelo ataque ao ato irregularmente promulgado por via do controle


abstrato de constitucionalidade com fundamento nas normas contidas nas Constituições
Estaduais. Para tanto, faz-se necessário uma breve digressão acerca da competência estadual
para a matéria urbanística a fim de investigar o primeiro instrumento judicial para garantir a
participação popular na elaboração do plano diretor e dos atos consequentes que o alterem: a
ação direta de inconstitucionalidade.

O art. 24, I, da Constituição Federal reza que “compete à União, aos Estados e ao
Distrito Federal legislar concorrentemente sobre (...) direito tributário, financeiro,
penitenciário, econômico e urbanístico” (grifei). A competência estadual, todavia, de caráter
suplementar e notadamente residual, espreme-se entre as atribuições da União Federal e aquilo
que Carl Schmitt denomina de “garantia institucional do „mínimo intangível‟ na autonomia do
Município”111.

Ao problematizar a questão da competência do Estado-membro para legislar


acerca da matéria, José Afonso da Silva assim grafou suas inquietações:

Não arde mais dúvida de que os Estados dispõem de competência para


estabelecer planos urbanísticos, conforme expressamente consta do art.
4º, I, do Estatuto da Cidade. Os limites dessa competência é o que se
tentará indicar em seguida, pois, apesar de se lhes reconhecer
expressamente competência em matéria urbanística, continuaram eles
sujeitos a limites institucionais inafastáveis. O primeiro é a obediência

_______________
111
Apud: BONAVIDES, 2006, p. 354.
69

à norma geral federal que dispuser sobre o assunto. O segundo, mais


concreto e traumático, está na competência municipal, que não é
subordinada e nem mesmo suplementar à competência estadual no que
tange à ordenação do solo urbano.112

Deste modo, ao Estado cumpre, de forma precípua, a organização de planos de


urbanização de caráter regional, o que deve fazer respeitando a autonomia municipal para
legislar sobre assuntos de seu peculiar interesse. Assim, legisla o Estado-membro em caráter
supletivo quando, na ausência de normas gerais estabelecidas pela União, as institui113; em
caráter complementar quando, minuciando a regra geral estabelecida pelo ente federal,
reforça-lhe o sentido ou a adapta às peculiaridades regionais.

No exercício de sua competência suplementar em caráter complementar, os


Estados-membros, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, anteviram o sentido
democratizante da manifestação popular na elaboração da ordenação do solo. Muitos deles
elevaram a participação da comunidade na elaboração do plano diretor a diretriz
constitucional. Exemplos disso podem ser encontrados nas Constituições Estaduais do Rio
Grande do Sul114, São Paulo115, Minas Gerais116, Bahia117 e também de Santa Catarina118.

Assim, por meio do ataque ao ato normativo pela via da Ação Direta de
Inconstitucionalidade – instrumento de controle formal, de caráter abstrato, da coadunância do
ato normativo com a Carta Política estadual – há a invalidação da lei impugnada. A
irregularidade é reconhecida pelo órgão do Poder Judiciário local responsável pelo controle de
constitucionalidade.
_______________
112
SILVA, 2008, p. 126.
113
CF, art. 24, § 3º: “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa
plena, para atender a suas peculiaridades.”
114
Art. 177, § 5º: “Os Municípios assegurarão a participação das entidades comunitárias legalmente constituídas
na definição do plano diretor e das diretrizes gerais de ocupação do território, bem como na elaboração e
implementação dos planos, programas e projetos que lhe sejam concernentes.”
115
Art. 180, II: “No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os
Municipios assegurarão: (...) II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo,
encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhe sejam concernentes;”.
116
Art. 245, § 1º, VI: “Na liberação de recursos do erário estadual e na concessão de outros benefícios em favor
de objetivos de desenvolvimento urbano e social, o Estado atenderá, prioritariamente, ao Município já dotado
de plano diretor, incluídas, dentre suas diretrizes, as de: (...) VI – participação das entidades comunitárias no
planejamento e controle da execução dos programas a elas pertinentes;”.
117
Art. 64: “Será garantida a participação da comunidade, através de suas associações representativas, no
planejamento municipal e na iniciativa de projetos de lei de interesse específico do Município, nos termos da
Constituição Federal, desta Constituição e da Lei Orgânica municipal.”
118
Art;. 141, III: “No estabelecimentoede normas e diretrizes relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e o
Município assegurarão: (...) III – participação de entidades comunitárias na elaboração e implementação de
planos, programas e rojetos e no encaminhamento de soluções para os problemas urbanos;”.
70

Há situações em que inexiste disposição constitucional estadual que compila a


municipalidade a garantir o exercício direto do poder democrático pelas populações
interessadas. Ocorrem casos ainda em que a ação tem o fito de afastar irregularidades ainda
durante os trâmites da elaboração do plano diretor, o que decorre da impossibilidade de
controle abstrato preventivo de constitucionalidade pela via judicial. Em tais situações, pode-
se lançar mão da ação civil pública como forma de controle da estrita legalidade dos atos
relativos à matéria.

A ação civil pública, instrumento que a Constituição Federal lega ao Ministério


Público “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos”, é regulamentada pela Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985.
Presta-se o instrumento jurídico a promover a responsabilidade de entes públicos ou
particulares por danos causados à ordem urbanística. O provimento jurisdicional esperado é
uma sentença de caráter executivo em sentido amplo, ao passo que, nos termos do art. 3º da
mencionada lei, determinará à autoridade que pratique ou abstenha-se de praticar ato lesivo.

A legitimidade para a propositura da ação civil pública é, porém, ampla. Além dos
órgãos da Administração Pública direta e indireta e os órgãos indispensáveis à jurisdição que
representam interesses individuais e coletivos da população, também as associações, desde
que constituídas há mais de um ano e destinadas à proteção da ordem urbanística segundo suas
finalidades institucionais, podem demandar em juízo.

Discussão interessante, e que aqui se coloca, é a questão da legitimidade para, em


sede de ação civil pública, questionar-se a ausência da manifestação popular na elaboração ou
alteração do plano diretor. Afinal, a “participação popular” na elaboração da dita planificação
integra a “ordem urbanística” a que se refere a Lei n. 7.347/85?

Temos que sim, concordando com a manifestação de Carlos Ari Sunfeld ao definir
ordem urbanística:

Ordem urbanística é um conceito caro ao Estatuto da Cidade. Seu


primeiro sentido é de ordenamento: a ordem urbanística é o conjunto
orgânico de imposições vinculantes (são as “normas de ordem pública”
a que alude o art. 1º, parágrafo único) que condicionam positiva e
negativamente a ação individual na cidade. O segundo sentido é o de
estado: a ordem urbanística é um estado de equilíbrio, que o conjunto
dos agentes envolvidos é obrigado a buscar e preservar.
71

(...) O crescimento não é um objetivo; o equilíbrio, sim; por isso, o


crescimento deverá respeitar os limites da sustentabilidade, seja quanto
aos padrões de produção e consumo, seja quanto à expansão urbana
(...). Toda intervenção individual potencialmente desequilibradora
deve ser previamente comunicada (...), estudada, debatida, e, a seguir,
compensada.119

Daqui, extrai-se que a ordem urbanística a que se refere o inciso III (e VI) da Lei
da Ação Civil Pública contempla, simultaneamente, as “normas de ordem pública e interesse
social que regulam o uso da propriedade urbana” e o direito público subjetivo à
sustentabilidade da urbe. Se tomamos como referencial inicial a ideia de que a participação
popular permeia e orienta todo o processo de disciplina do ordenamento urbano, pode-se
concluir que a ordem urbanística, sob a ótica político-constitucional aqui desfraldada, tem a
manifestação soberana da população por seu pressuposto. Portanto, a inobservância da
intervenção cidadã na elaboração das diretrizes de desenvolvimento urbano enseja a ação civil
pública.

Em verdade, há de se mencionar que a última modalidade de interpelação judicial


aqui citada pode também ser manejada para impugnar o ato do Poder Executivo municipal em
flagrante desrespeito às normas estatuídas no plano diretor. Nesse norte, parece haver uma
terceira via de impugnação judicial decorrente da prática de ato lesivo ao patrimônio público,
coincidentemente considerada como elemento de manifestação do exercício direto do poder
soberano pela população. Trata-se da ação popular.

Celso Antônio Bandeira de Mello define a actio popularis como “o instrumento


deferido a qualquer cidadão para anular atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade de
que o Estado participe, ou à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural”120. A legitimidade para, manejando o citado instrumento, questionar ato
do administrador público é praticamente irrestrita, bastando para tanto que se comprove a
fruição dos direitos políticos.

Sem prejuízo dos instrumentos jurídicos aqui estudados, há ainda um elemento que
constrange, pessoalmente, os administradores a observar a abertura das discussões acerca da
planificação urbanística local aos munícipes. O art. 52, VI, do Estatuto da Cidade imputa ato

_______________
119
In: DALLARI; FERRAZ, 2002, p. 55.
120
BANDEIRA DE MELLO, 2004, p 839.
72

de improbidade administrativa ao Chefe do Poder Executivo que, na elaboração e fiscalização


da implementação do plano diretor, não garanta a ampla publicidade e a promoção de
audiências públicas e debates com os cidadãos individualmente tomados ou reunidos em suas
associações representativas. Afirma Marcelo Figueiredo que “a norma em tela reafirma a
necessidade de que a política urbana tenha efetivamente concepção e gestão democráticas (art.
2º, II, do Estatuto)”121.

A título de penalização, decorrente do ato ímprobo em prejuízo de princípio da


Administração Pública, a partir da leitura combinada dos arts. 11 e 12, III, da Lei n. 8.429, de
2 de junho de 1992, podem ser imposto ao gestor público desde o pagamento de multa e
ressarcimento integral de eventuais danos causados até a suspensão dos direitos políticos122.

_______________
121
In: DALLARI; FERRAZ, 2002, p. 376.
122
As penas cominadas pelo art. 12, III, da Lei n. 8.429/92 são, in verbis, “ressarcimento integral do dano, se
houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa
civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder
Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por
intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.”
73

CONCLUSÕES

Com este trabalho, verificamos de que forma o ordenamento jurídico brasileiro dá


efetivo suporte ao exercício democrático direto da população, no exercício pleno da soberania
popular sem a participação de interpostos representantes. A partir dos estudos da Teoria da
Democracia Participativa, utilizada como referencial teórico a nortear a pesquisa aqui
alinhavada, procuramos demonstrar que a ordem constitucional pátria, mais que permitir,
assegura a participação popular por amplos canais na elaboração da política de
desenvolvimento urbano.

Constatou-se, primeiramente, que as práticas de ordenação do espaço de


convivência urbana encontram ressonância nos primeiros assentamentos humanos, a partir da
sedentarização de tribos antigas. Com isso, a fixação do homem à terra inverteu a lógica que
vinculava o homem à natureza. O ser humano não mais depende dos caprichos da terra para
sua subsistência; passa a utilizar a natureza em seu favor, o que permitiu a criação de um
espaço permanente de convivência.

Sem prejuízo das iniciativas oficiais pretéritas à Idade Moderna, as primeiras


intervenções urbanas que remontamainda ao século XVII tinham por objetivos principais a
preservação das condições sanitárias e o embelezamento das cidades. Preocupações com a
expansão populacional e com a infraestrutura de transporte e serviços de saúde eram raras;
quando existiam, direcionadas à elite.

A Revolução Industrial e ascenção da burguesia capitalista revoluciona o


urbanismo, em decorrência do fenômeno de selvagem urbanização. As cidades, ao receber um
contingente populacional cada vez maior, vêem-se obrigadas a reordenar a ordem urbana com
vista a garantir a salubridade, a circulação e a convivência no novo espaço público. O
movimento, todavia, de caráter eminentemente elitista, dirige a legislação para a preservação
da qualidade do espaço urbano rico enquanto empurra a classe trabalhadora para a periferia. A
perversa lógica perpetuou-se na ordenação do espaço urbano, que se mostra eficiente em
levantar muros invisíveis que separam a riqueza da pobreza, mas incapaz de servir como
mecanismo emancipatório.
74

Verificou-se, pois, que a ordem constitucional permitiu incorporar a totalidade da


população nas discussões acerca das diretrizes que se deseja implementar no desenvolvimento
urbano. Identificou-se que é no direito à moradia, enquanto direito social constitucionalizado,
que convergem a política urbana e as funções sociais da cidade enquanto espaço de efetivação
dos direitos fundamentais. A partir daí, tem-se que é a comunidade local que permite um
maior acesso do cidadão ao exercício das atividades de poder, e onde mais fácil há a
possibilidade de intervenção na ordem constituída. Eliminam-se os intermediários nessas
discussões, que não mais podem ignorar a manifestação popular, individual ou por grupos
representantes de distintos interesses.

Por tal razão, destacou-se a importância da impossibilidade de tolher a


manifestação legítima dos anseios populares na concretização da planificação urbana. Assim,
constatou-se que há meios criados pelo legislador para impedir que a participação da cidadania
seja suprimida desse processo de tomada de decisão. No particular, verificou-se que a lei que
institui plano diretor sem a participação da comunidade em todas as discussões, desde a
elaboração do anteprojeto até sua promulgação, sofre de vício insanável e que, portanto,
merece ser repelida do ordenamento jurídico. Além disso, pôde-se aferir que o administrador e
o legislador municipal, sob pena de apuração de responsabilidade administrativa, foram
compelidos pelo ordenamento jurídico pátrio a observar a manifestação popular na elaboração
da planificação urbana.
75

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